Cultura_ metodologias e investigação (e-book)

September 17, 2017 | Author: Rafael Silveira | Category: Interdisciplinarity, Sociology, Science, Knowledge, Geography
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Cultura_ metodologias e investigação (e-book)...

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Cultura: Metodologias e Investigação coord, Maria Manuel Baptista

Coleção Estudos Culturais

Grácio Editor

Cultura:

Metodologias e Investigação Coordenação: Maria Manuel baptista

Grácio Editor

Título Cultura: Metodologias e Investigação Coordenação Maria Manuel Baptista Coordenação Editorial Rui Alexandre Grácio Capa Frederico da Silva Design gráfico e paginação Grácio Editor | Frederico da Silva Impressão e acabamento 1ª edição Agosto de 2012 ISBN: 978-989-8377-34-0 © Grácio Editor Avenida Emídio Navarro, 93, 2.o, Sala E 3000-151 COIMBRA Telef.: 239 091 658 e-mail: [email protected] sítio: www.ruigracio.com Reservados todos os direitos

Índice Estudos Culturais: um campo gravitacional, uma tessitura intelectual | Maria Manuel Baptista ............................................................................................................5

1. Metodologias em Estudos Culturais ........................................ O quê e o como da investigação em Estudos Culturais | Maria Manuel Baptista................15 Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais | Moisés de Lemos Martins...29 Para uma etnografia dos públicos em acção | João Teixeira Lopes........................................43 Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise | Rosa Cabecinhas ...53 Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística | Joaquim Barbosa ................................71 Research topics and methodologies in film studies | Anthony Barker .................................97 História oral? Dilemas e perspectivas | Maria Manuela Cruzeiro........................................113 O exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica | Alba Carvalho.....125

2. Investigação em Estudos Culturais Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita | Dália Dias ..............................................149 (Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo | Maria do Rosário Girardier .................................................................177 La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios | Miquel Beltran e Joan Llinàs...............................................................203 Os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas | Jean-Marie Rabot ............235 O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil: um evento comunicacional de interfaces culturais | Severino Alves Filho ........................267

Estudos Culturais: um campo gravitacional, uma tessitura intelectual

A investigação e o ensino da Cultura tornaram-se, na última década, realidades cada vez mais presentes nos contextos universitários, o que se fica a dever, em primeiro lugar, à valorização social crescente que tem sido concedida a esta área, quer nos mais latos e clássicos domínios da formação humanística e artística, quer enquanto factor de conhecimento e compreensão das novas dinâmicas sociais e culturais da contemporaneidade. Acresce ainda a esta valorização académica e social, a tomada de consciência generalizada do potencial económico que detém, tendo mesmo nascido recentemente uma área científica auto-designada por Economia da Cultura. Partindo deste reconhecimento, o presente trabalho procura fazer o levantamento dos principais desafios teóricos, práticos, metodológicos e académicos desta área do saber, assumindo como ponto de partida para a reflexão a tradição anglo-saxónica dos Estudos Culturais, questionando as suas limitações e dificuldades epistémicas, mas também assumindo as virtualidades que lhe são próprias e que se encontram ainda longe de estarem exauridas.

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Em primeiro lugar, gostaríamos de deixar claro ao leitor desprevenido o quanto esta área dos Estudos Culturais é menos uma disciplina, academicamente ‘policiada’, com os seus ‘especialistas’ e paradigmas consensualmente estabelecidos (a este propósito valerá a pena reler o já clássico livro de Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas), com metodologias previamente determinadas e configurações interdisciplinares rígidas ou sequer estabilizadas, mas, mais do que isso, trata-se de uma área ‘pós-disciplinar’, quer dizer, um lugar de encontros e partilha de saberes, métodos e experiências de investigadores de diversas áreas, que têm em comum um interesse particular pelas questões culturais. Do nosso ponto de vista, é pelo facto de os Estudos Culturais constituírem um lugar de prática intensa de interdisciplinaridade, estimulando a constituição de equipas muito heterogéneas que se formam a propósito de projectos específicos de investigação, cuja acção se encontra sobredeterminada por uma questão ou problemática científica concreta, frequentemente esgotando-se no terminus desse processo investigativo, que, em nosso entender, esta área se apresenta fluida e instável, mas simultaneamente tão desafiante e intelectualmente estimulante. Mais do que uma disciplina científica clássica (modo de organização científica tipicamente Moderna), os Estudos Culturais, tal como os compreendemos e são apresentados neste volume, representamse como um centro gravitacional (constituído em primeiro lugar pelo problema sob investigação), que atrai investigadores de muitas áreas, interessados em participar na desafiante aventura de co-construção do conhecimento científico. Procurando uma inserção na tradição nacional, mas também internacional, o conjunto de estudos que aqui se apresenta teve, como núcleo original, as conferências apresentadas no Seminário IberoAmericano em Metodologias de Investigação em Cultura, organizado pela linha de investigação ‘Cultura portuguesa: declinações latino-

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americanas’ do Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, em Novembro de 2008. O que é a Cultura, que temáticas analisa, quem a investiga e como é possível produzir resultados científicos, rigorosos, fiáveis e relevantes neste domínio constitui o núcleo de questões cujas respostas este livro se propõe, pelo menos em parte, tratar. As principais linhas que atravessam todos os textos que integram a primeira parte deste volume, e abordam algumas das principais preocupações metodológicas dos Estudos Culturais, podem sintetizar-se do seguinte modo: a) procura sistemática da inter, pluri e transdisciplinaridade; b) articulação das temáticas, teorias e metodologias das ciências sociais com as das ciências humanas; c) construção de metodologias abertas e críticas, em diálogo intenso com a própria empiria; d) utilização reflectida de metodologias quer explicativas e compreensivas, quer quantitativas e qualitativas, quer intensivas e extensivas; e) valorização da vida, do quotidiano, dos públicos, do concreto e do senso comum, em articulação com a teoria e as metodologias de investigação. Assim, num primeiro estudo de abertura deste volume procurámos apresentar o domínio de investigação dos Estudos Culturais, num texto que sintetiza e discute as características comuns da investigação nesta área: abordámos a história da transformação deste campo em domínio científico, reflectimos sobre o seu actual estatuto académico e disciplinar, apontando, por fim, as principais linhas de desenvolvimento e metodologias de investigação usadas internacionalmente nesta área. Num segundo texto, Moisés de Lemos Martins procura partir de um reflexão crítica sobre a imensa latitude do ofício do sociólogo, sobretudo daqueles que se debruçam essencialmente sobre os fenómenos da Comunicação (como é o seu caso), para discorrer sobre a sua

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própria prática ao nível dos Estudos Culturais, trabalho que o tem aproximado do labor de hermeneuta, por força da ‘cinética do mundo’, hoje mergulhado numa ‘modernidade trágica’. Nesta senda de reflexão sobre a Cultura, e partindo ainda do terreno próprio da Sociologia, o terceiro texto, da autoria de João Teixeira Lopes sublinha algumas das principais tensões e exigências no concreto fazer da Sociologia da Cultura, referindo a importância de nos determos e meditarmos cuidadosamente na ambiguidade dos fenómenos de recepção cultural, articulando a diversidade e o grau de autonomia e crítica dos públicos com as formas de legitimação e imposição do poder (dos poderes). Um quarto texto parte do paradigma próprio da Psicologia Social e discute o quanto o domínio das representações sociais, as suas metodologias e a diversidade dos seus níveis de análise nos colocam de imediato no centro da investigação cultural, tratando—se também aqui, como refere Rosa Cabecinhas, de compreender as práticas individuais à luz de representações que são sociais e historicamente construídas. É ainda tomando como central a temática da Cultura que Joaquim Barbosa nos introduz nos principais núcleos da investigação linguística, no âmbito dos quais destaca o conjunto de estudos e preocupações da sociolinguística, sublinhando não apenas a sua actual relevância na contribuição para a resolução de problemas educacionais, mas também políticos e ideológicos do mundo contemporâneo. São, igualmente, os elementos educacionais e de investigação que estão no centro da reflexão que Anthony Barker nos apresenta no domínio dos Estudos Fílmicos, no contexto de um Departamento de Estudos Literários português. Apresentando um balanço detalhado e crítico da sua riquíssima experiência neste domínio, sublinha algumas das barreiras institucionais, teóricas e técnicas em fazer avançar este género de investigação, apesar da apetência que os investigadores juniores revelam por este domínio dos Estudos Culturais.

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De dilemas e perspectivas nos fala também Maria Manuela Cruzeiro numa reflexão sobre a sua já extensa prática de investigação no contexto da História Oral, centrando-se muito particularmente na discussão epistemológica e metodológica deste modo de construção, análise, explicação e compreensão cultural, concluindo mesmo pela necessidade de articular os modos de produção da ciência e da arte. Em jeito de balanço e reflexão mais global acerca das principais características metodológicas que perpassam as diversas investigações da ‘galáxia’ ou ‘centro gravitacional’ que temos estado a designar por Estudos Culturais, Alba Carvalho encerra a primeira parte deste livro com uma profunda e instigante reflexão sobre o exercício do ofício da pesquisa e o desafio da construção metodológica, sublinhando a articulação dos diversos modos de construção do conhecimento com a tradição do fazer científico e técnico, defendendo uma rigorosa ‘ecologia dos saberes’, numa espécie de ‘tear reflexivo’ ou ‘tessitura intelectual’. Sem pretender de modo nenhum encerrar as questões aqui levantadas (pelo contrário, pretendemos abrir o debate sobre esta área, em Portugal), julgamos que, no seu conjunto, o livro que agora se apresenta inaugura uma discussão que se quer clara e assumidamente comprometida com a realidade cultural envolvente, tanto na Academia como na Polis. Partindo da Cultura (qualquer que seja o nível de análise ou o grau de implicação vivencial que com ela tenhamos) e procurando a ela voltar no final das nossas investigações, quisemos neste livro dinamizar uma área de discussão epistemológica em torno dos Estudos Culturais, abandonando o pressuposto (culturalmente) muito disseminado de que se trata de um domínio sobre o qual tudo se pode dizer ou fazer, e o seu contrário também. E foi por sabermos o quanto os terrenos do ensino e da investigação em Cultura têm de potencialmente equívoco e pantanoso, que procurámos recolher múltiplos olhares e reflexões, buscando activamente uma diversidade considerável de pontos de focagem académica e disciplinar. No ponto de cruzamento e intersecção destes múltiplos olhares

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quisemos situar a discussão em torno das metodologias que cada área utiliza para abordar as questões culturais, mas também apresentar exemplos muito concretos de abordagem multi e transdisciplinar na investigação de um conjunto de questões muito diferentes, mas que podem inspirar outros investigadores que desejem praticar o desafiante ‘politeísmo metodológico’ (como lhe chama Moisés Martins) para que os Estudos Culturais, pela sua própria natureza, nos convocam. Assim, se na primeira parte deste volume (que intitulámos Metodologias em Estudos Culturais) apresentamos as diversas perspectivas epistemológicas e metodológicas de investigadores que, embora oriundos de áreas científicas diversas (Filosofia, Sociologia, Psicologia Social, Linguística, Estudos Fílmicos, Literatura e História Oral), praticam de há longo tempo a investigação no domínio cultural, na segunda parte (que apresentamos sob o título Investigação em Estudos Culturais) podem ser encontrados um conjunto de estudos que ilustram, no concreto, a prática científica geneticamente interdisciplinar desta área. O primeiro, intitulado «Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita» procura colocar em diálogo os Estudos Literários e os Estudos Artísticos (especificamente a Música e a Pintura), enquanto o segundo, «(Inter)-Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo», estabelece inusitadas pontes de diálogo entre os pensamentos de Boaventura Sousa Santos e Eduardo Lourenço por um lado, e Eça de Queirós por outro, nas questões respeitantes ao colonialismo português, usando como conceito-chave uma das questões centrais dos Estudos Culturais: a Identidade; por seu turno, o terceiro texto apresenta-nos um estudo que mostra até à saciedade o modo como Literatura (e a Poesia em particular) e Filosofia concorrem para o estudo de um dos mais prevalecentes e importantes problemas éticos, morais e religiosos da humanidade: a questão do livre-arbítrio; já o quarto texto cruza a análise sociológica com a filosofia da história e a fenomenologia da vida, procurando o significado colectivo (histórico, em primeiro lugar) das práticas individuais, recorrendo tam-

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bém à Literatura no intuito de aprofundar criticamente os sentidos menos evidentes dos comportamentos de risco nas sociedades pósmodernas; finalmente, o quinto e último estudo articula paradigmas teóricos e instrumentos metodológicos oriundos quer da investigação em Cultura Popular, quer da Linguística e ainda do Marketing, de modo a compreender o campo hoje delimitado por um neologismo que sinaliza o nascimento de uma nova área no âmbito dos Estudos Culturais: o folkmarketing. Por fim, refira-se o prazer que constituiu poder editar um livro com uma tal riqueza reflexiva e capacidade prospectiva, que recolhe contribuições nacionais e internacionais de grande relevo, acolhendo no seu seio um diálogo que em Portugal só agora verdadeiramente começa. Se outras virtualidades não tiver, que este livro pelo menos sirva para deixar claro o quanto a área dos Estudos Culturais revela uma importante fecundidade teórico-prática e uma evidente vitalidade académica, plena de potencialidades de trabalho em redes inter e transdisciplinares, quer no contexto nacional, quer internacional. Aveiro, 8 de Julho de 2009 Maria Manuel Baptista

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1. Metodologias em Estudos Culturais

O quê e o como da investigação em Estudos Culturais Maria Manuel Baptista1

A área de Estudos Culturais é intrinsecamente paradoxal, objecto de discussão e incerteza. Caracterizando-se por uma forte presença académica nos discursos intelectuais, revela discórdias internas profundas em relação a praticamente tudo: para que serve, a quem servem os seus resultados, que teorias produz e utiliza, que métodos e objectos de estudo lhe são adequados, quais os seus limites, etc. Na verdade, se algum ‘método’ há nos Estudos Culturais ele consiste na contestação dos limites socialmente construídos (por exemplo, de classe, género, raça, etc.) nas mais diversas realidades humanas. A ‘naturalização’ dessas categorias tem sido precisamente objecto de grande contestação a partir dos Estudos Culturais. Não admira, por isso, e desde logo pela marca da contestação e crítica constantes com que nasceu e da qual se alimenta, que este domínio científico tenha tantas dificuldades em auto-limitar-se. A história dos Estudos Culturais, enquanto disciplina académica está efectivamente marcada pela contestação, já que, aquando da sua emergência nos anos 70 ela formula e procura corresponder a uma ‘viragem cultural’ das ciências sociais e humanas. Num mesmo movimento contribuiu, igualmente, para destabilizar as fronteiras de dis1

Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro – Portugal. Comunicação apresentada ao Seminário Ibero-Americano em Metodologias de Investigação em Estudos Culturais, Departamento de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 6 de Novembro de 2008. Toda a correspondência relativa a esta comunicação deve ser enviada para Maria Manuel Baptista, Departamento de Línguas e Culturas – Universidade de Aveiro, 3810 Aveiro – Portugal ou via e-mail: [email protected]

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ciplinas já com longa tradição académica, como a História, a Sociologia, a Literatura, entre outras. Com efeito, os Estudos Culturais têm funcionado como agente e sintoma na reconfiguração da estrutura disciplinar quer das Humanidades quer das Ciências Sociais, num processo que ainda hoje está em curso e se encontra longe de estar terminado.

1. Características comuns da investigação em Estudos Culturais Na prática, os Estudos Culturais abrigam um conjunto múltiplo de investigadores e investigações de formação muito diversa (nem sempre compatível) e de origens académicas e geográficas muito diferentes. Muitos investigadores chegam a esta área por razões intelectuais e até políticas muito diferentes. De qualquer modo, há traços distintivos na forma como é praticada a análise cultural e é sobre esses elementos, por vezes contraditórios, equívocos e polémicos, que procuraremos desenvolver a presente reflexão. A primeira característica que gostaríamos de destacar é a ideia de complexidade (Morin, s/d) a qual se revela primariamente como um profundo compromisso com a ideia de complexidade do fenómeno cultural. Para além disso, os investigadores desta área colocam um particular ênfase na produção contextual, multidimensional e contingente do conhecimento cultural, procurando reflectir nos resultados da sua investigação a complexidade e o carácter dinâmico e até, frequentemente, paradoxal do objecto cultural que abordam. Uma outra característica muito frequente na análise praticada pelos Estudos Culturais consiste no compromisso cívico e político (no sentido grego e mais radical de intervenção e envolvimento nos assuntos da polis) de estudar o mundo, de modo a poder intervir nele com mais rigor e eficácia, construindo um conhecimento com rele-

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vância social (Pina, 2003). Este compromisso político (no sentido mais lato e profundo do termo) filia-se num contexto mais genericamente definido a partir dos princípios da democracia cultural. Ou como afirma Barker, «(…) os estudos culturais constituem um corpo de teoria construída por investigadores que olham a produção de conhecimento teórico como uma prática política. Aqui, o conhecimento não é nunca neutral ou um mero fenómeno objectivo, mas é questão de posicionamento, quer dizer, do lugar a partir do qual cada um fala, para quem fala e com que objectivos fala»(Barker,2008). Em suma, os Estudos Culturais (e já desde a sua génese com Stuart Hall nos anos 60, no contexto britânico (Hall,1972)) estão geneticamente ligados a um modo de produção de análise cultural que faz convergir princípios e preocupações académicas com uma exigência de intervenção cívica, ou seja, articula inquietações simultaneamente teóricas e preocupações concretas com a polis. Na prática tudo isto apresenta um grande grau de variabilidade nas investigações conduzidas no âmbito dos Estudos Culturais, pois esta dupla atenção à teoria e à prática tem resoluções contextuais muito diversas, apresenta implicações práticas e cívicas com focus muito diferentes e revela estilos de actuação muito específicos. Assim, enquanto para alguns, praticar a investigação em Estudos Culturais é uma forma de política cultural que deve sempre resistir a disciplinarizar-se no âmbito de uma instituição académica, para outros, os Estudos Culturais devem legitimar-se precisamente no contexto académico, o que constitui por si só um objectivo político (Bennett,1998). Mas até o aspecto mais estritamente cívico proclamado por muitos investigadores na área dos Estudos Culturais pode surgir na academia de diferentes formas: o elemento ‘político’ pode estar apenas implícito, por exemplo, numa investigação que critíca os discursos dominantes, usando toda a metodologia e modelos das ciências sociais mais objectivistas ou, num outro extremo, apresentar-se como pura desconstrução crítica, mesmo que seja através de um acto performativo.

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2. História breve da origem e constituição dos Estudos Culturais Vulgarmente a origem desta área de investigação é situada nos finais da década de 50 do século XX, em Inglaterra, tendo-se posteriormente espalhado um pouco por todo o mundo este modo de análise cultural. A sua institucionalização pode situar-se a partir da criação, em 1964, na Universidade de Birmingham do Center of Contemporary Cultural Studies (CCCS). Criado por um professor de Literatura Moderna (de língua inglesa), Richard Hoggart, o CCCS vem a registar uma influência máxima quer em termos geográficos, quer em impacto nos meios académicos e extra-académicos com Stuart Hall, já nas décadas de 70 e 80 do século XX. Do ponto de vista teórico, a inspiração destes estudos pode também situar-se nas obras de Roland Barthes (Barthes,1967, 1972, 1977) e Henri Lefebvre (Lefebvre,1966,1970, 1975) (França), Fiedler (Fiedler,1955, 1996) (EUA) e Fanon (Fanon,1967) (Martinique/ França e Norte de África), entre outros. Para além disso, e embora sem que, numa primeira fase se tenha usado a expressão ‘Estudos Culturais’, apareceu também na América Latina sob designações mais genéricas como ‘Comunicação’, ‘História Intelectual’, ‘Análise do Discurso’ e ‘Estudos Inter-Disciplinares’. O impulso e a inspiração próprias da investigação em Estudos Culturais espalharam-se por todo o mundo, tornando-se uma área de estudos transnacional, da Suécia e Alemanha até à Austrália e ao Quénia. Em consequência deste rápido e prodigioso desenvolvimento, os Estudos Culturais passaram a apresentar-se como uma prática intelectual dispersa, cujo único centro talvez tenha passado a ser o de procurar articular e fazer dialogar três nós problemáticos essenciais: cultura, teoria e acção cívica. Não obstante esta dimensão de fragmentação e pulverização, foise assistindo, paralelamente, ao nascimento dos Estudos Culturais como uma área mais circunscrita e institucionalizada e gozando de reconhecimento académico num número limitado, mas crescente, de países.

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Recuando ainda um pouco às suas origens, cabe sublinhar que, inicialmente, a actividade do CCCS consistia em promover a cooperação entre as diversas áreas do conhecimento, procurando estimular a investigação em interdisciplinaridade, ao mesmo tempo que enfatizava a necessidade e importância de uma ligação prioritária a temas da actualidade. Para além disso, procurava, em primeiro lugar, dirigir a sua atenção para o estudo das classes trabalhadoras, das culturas de juventude, das mulheres, da feminilidade, da raça e etnicidade, das políticas culturais da língua e dos media, entre muitos outros. O que poderemos sublinhar de interesse comum em todos estes objectos de investigação é o facto de todos os estudos procurarem revelar os discursos marginais, não-oficiais, ou daqueles que propriamente não têm voz. Em síntese, trata-se de estudar aspectos culturais da sociedade, isto é, de tomar a cultura como prática central da sociedade e não como elemento exógeno ou separado, nem mesmo como uma dimensão mais importante do que outras sob investigação, mas como algo que está presente em todas as práticas sociais e é ela própria o resultado daquelas interacções. Nos anos 70 do século passado, o CCCS integrava criticamente contribuições teóricas diversas que iam desde o pós-estruturalismo francês (a linguística estrutural de Saussure (Saussure,1960) e a semiótica social de Roland Barthes (Barthes,1972), bem como a psicanálise de Lacan (Lacan,1977) e o marxismo estrutural de Althusser (Althusser,1969, 1971) e até Gramsci (Gramsci,1968, 1971), sintetizando o paradigma estruturalista e o culturalista. O elemento central desta integração teórica e destes múltiplos aportes metodológicos passou a ser a prática duma actividade crítica, que se tornava apelativa porque abordava questões da experiência quotidiana, esta que se constituía de modos cada vez mais complexos, contraditórios e fraccionados. Por outro lado, recuperavam-se questões sobre a contemporaneidade que as academias haviam considerado triviais ou difíceis de estudar.

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Metodologicamente, em vez de se compartimentarem os problemas, passou-se então a integrar diversos métodos capazes de darem conta, através do uso de diferentes perspectivas, da complexidade multifacetada de um problema em particular, abandonando qualquer pretensão de encontrar explicações causais e definitivas para as realidades em estudo. Assim, mais do que interdisciplinaridade tratavase essencialmente de reconhecer a complexidade e as limitações de objectividade no contexto dos Estudos Culturais. Será já nos anos 80 e 90 que se assiste à institucionalização dos Estudos Culturais em diversas partes do mundo, estabelecendo-se programas académicos e departamentos, centros de investigação, revistas, organizações profissionais, etc. Em 2002 o CCCS (que foi, entretanto, transformado em Department of Cultural Studies and Sociology) encerra as as suas actividades, apesar do crescente interesse pelos Estudos Culturais em todo o mundo.

3. O estatuto disciplinar e académico dos Estudos Culturais Os Estudos Culturais apresentam-se, desde a sua génese, menos como uma disciplina e mais como um ‘campo gravitacional’ para intelectuais de diferentes origens (Bennett,1992). Entre as diversas formações dos investigadores que trabalham nesta área, destacam-se aqueles que são oriundos dos Estudos Literários, Linguística, Sociologia, História, Antropologia, Comunicação, Geografia, Estudos Fílmicos, Psicologia, Educação e Filosofia; menos presentes, mas por vezes participantes empenhados no desenvolvimento de projectos de investigação em Estudos Culturais encontram-se economistas, juristas e peritos em relações internacionais. Apesar desta diversidade, o que não podemos deixar de sublinhar é que daqui resulta um cruzamento disciplinar que não é só mistura caótica mas, frequentemente, verdadeira interdisciplinaridade que

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procura resolver um conjunto de problemas culturais através do uso de paradigmas teóricos, metodológicos e estilísticos de origem diversa. Como se pode facilmente deduzir do que ficou dito, também a educação e a formação nesta área apresenta conflitos teóricos e práticos, os quais têm conduzido a disputas, mas também a consensos diversos (como é o caso, entre outros, de algumas discussões entre as áreas dos Estudos Literários e dos Estudos Culturais (Silvestre,1999)). Porém, a maior clivagem nesta área diz respeito às diferenças entre a aproximação mais ‘textual’ (tipicamente das ‘humanidades’) e a mais ‘sociológica’ (tipicamente ligada às ‘ciências sociais’), onde o diálogo interdisciplinar, quer ao nível metodológico quer teórico, é mais difícil. No entanto, e de um modo um tanto paradoxal, é no ponto de convergência entre estas duas tendências que os Estudos Culturais são mais inovadores e podem trazer as mais importantes contribuições para o progresso e desenvolvimento científicos.

4. Linhas de desenvolvimento da investigação em Estudos Culturais A propósito das linhas de desenvolvimento da investigação em Estudos Culturais, refira-se, em primeiro lugar, todo um conjunto de trabalhos que se têm centrado no estudo dos fenómenos de mercantilização generalizada, induzidos pela cultura contemporânea (sublinhe-se aqui a importância de uma postura crítica trazida pela Escola de Frankfurt, mas também a relevância da reflexão sobre a agenciosidade, preconizada por Marx). Esta linha de investigação tem frequentemente conduzido os investigadores a desenvolverem os seus projectos centrando-se nas relações entre o poder e os mercados, articulando-os com a cultura popular, ou desenvolvendo as relações entre textos e audiências, na linha dos estudos de Pierre Bourdieu (Bourdieu,1984) e Certeau (Certeau,1984). Uma outra vertente importante no âmbito dos Estudos Culturais tem aprofundado fenómenos ligados à noção de Estado nas sociedades

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capitalistas contemporâneas. Estes projectos têm ido desde os ‘aparelhos ideológicos do Estado’ de Althusser (Althusser,1980) até aos trabalhos sobre o poder e o micro-poder de Foucault (Foucault,2008). Um terceiro domínio de interesse no âmbito dos Estudos Culturais tem-se desenvolvido em torno do estudo sobre a luta pela hegemonia e contra-hegemonia (Gramsci,1978) com consequências na produção do sentido e nas diversas representações (do Estado, mas também dos movimentos cívicos e sociais), bem como sobre a condição pós-moderna de abandono e descrédito das meta-narrativas (Lyotard,1987). Já o estudo relativo aos modos de construção política e social das ‘identidades’, abordando as questões da nação, raça, etnicidade, diáspora, colonialismo e pós-colonialismo, sexo e género, etc. têm sido das temáticas mais investigadas nos últimos anos, dando origem a uma importante massa de resultados de grande qualidade e importância fora e dentro das academias. Por fim, e mais recentemente, os investigadores destas áreas têmse centrado no estudo dos fenómenos relacionados com a Globalização, articulando-a com questões de desterritorialização da cultura, movimentos transnacionais de pessoas, bens e imagens. Neste domínio tem sido ainda objecto de pesquisa a nova sociedade em rede, fenómenos de terrorismo, choques civilizacionais, a crise ambiental global, entre outras temáticas.

5. Principais metodologias usadas nos Estudos Culturais Sublinhe-se que, no âmbito dos Estudos Culturais, tem havido muita produção sobre metodologia (Alasuutari,1995, Gray,2003, Mcguigan,1995) e pouca sobre métodos. De qualquer modo, de uma forma geral, os estudos nesta área são predominantemente qualitativos e a verdade é entendida como relevando essencialmente do

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campo da interpretação e do ensaio crítico. Em todos os casos, a vigilância auto-crítica e a reflexividade sobre os métodos a usar tem sido vista nesta área como o elemento crucial a garantir o rigor e a qualidade dos resultados. De acordo com Barker (Barker,2008), de entre as metodologias mais frequentemente usadas nos Estudos Culturais destacam-se as seguintes: a) Metodologia etnográfica, que enfatiza o elemento vivencial da experiência b) Abordagem textual c) Estudos de recepção Quanto à metodologia etnográfica (Rorty,1989, 1991)ela designa essencialmente procedimentos de observação participante, entrevistas em profundidade e grupos focais. Tem como elemento fundamental a concentração no detalhe do quotidiano enquadrandoo no todo da vida social. Para isso, procura articular de forma profunda e fundamentada a abordagem empírica e teórica. Sublinhe-se o quanto, nesta perspectiva, a investigação em Estudos Culturais trabalha essencialmente com problemas de ‘tradução’ e justificação, não procurando propriamente a ‘verdade objectiva’, mas a compreensão do significado mais profundo dos discursos e das representações sociais e culturais. Compreende-se assim que esta metodologia se encontre particularmente apta para abordar questões de cultura, estilos de vida e identidades. Por seu turno, a abordagem textual apresenta resultados diversos de acordo com os diferentes modos de tratar o texto: numa perspectiva semiótica o texto é visto como signo, procurando encontrar-se aí ideologias e mitos; numa perspectiva essencialmente ligada à teoria narrativa os textos são vistos e compreendidos como histórias que procuram explicar o mundo e fazem-no de forma sistemática, com uma estrutura frequentemente repetitiva (Neale,1980, Todorov,1977); por fim, a abordagem desconstrucionista, na linha de Derrida, pro-

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cura, quer nos campos da literatura quer no âmbito da teoria pós-colonial, surpreender os pares hierárquicos clássicos da cultura ocidental (homem/mulher, preto/branco, realidade/aparência, etc.), distinguindo o que um texto diz daquilo que ele significa. Finalmente, e no que se refere aos estudos de recepção, a investigação parte da consideração de que o sentido do texto é activado pelo leitor, audiência ou consumidor. O modo como um tal processo se desenvolve em cada contexto histórico e social é o objecto destes estudos. No âmbito dos estudos de recepção, têm-se desenvolvido duas linhas fundamentais: a) o modelo ‘codificação/descodificação’ (Hall,1981), que sublinha o facto de a codificação ser polissémica, pelo que a descodificação da mensagem pode não coincidir com o sentido original, sobretudo se uns e outros não partilharem o mesmo meio cultural, social, económico, etc. b) o modelo clássico da tradição hermenêutica e literária (Gadamer,1976, Iser,1978), que defende a perspectiva de que a compreensão depende sempre do ponto de vista daquele que compreende. Assim, o leitor também produz sentido não tanto a partir do sentido inicial, mas das oscilações entre o texto e a sua própria imaginação.

6. Conclusões A teoria ocupa um lugar central e determinante nos Estudos Culturais, pois proporciona os instrumentos lógicos para pensar o mundo de um modo mais profundo, crítico e rigoroso. Na verdade, os Estudos Culturais rejeitam a ideia empiricista de que o conhecimento é simplesmente uma questão de coligir factos, a partir dos quais as teorias seriam deduzidas para, em seguida, serem elas próprias testadas e validadas pelos factos.

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O quê e o como da investigação em Estudos Culturais

Pelo contrário, nos Estudos Culturais a teoria está sempre implicada no trabalho empírico através de um conjunto de decisões metodológicas e posicionamentos epistemológicos presentes sobretudo nas fases de escolha do tópico a investigar, na focalização da investigação, bem como pelo uso de paradigmas, teses e conceitos através dos quais a empiria é interpretada e discutida. Deste modo, é objectivo primeiro dos Estudos Culturais construir um discurso crítico e auto-reflexivo que procure constantemente redefinir e criticar o trabalho já feito, repensar mecanismos de descrição, de definição, de predição e controlo das conclusões a que se chega, bem como ter um papel desmistificante em face de textos culturalmente construídos e dos mitos e ideologias que lhes subjazem. Sublinhe-se que nenhuma das linhas de investigação propostas no âmbito do Estudos Culturais se exclui mutuamente, antes sugerem múltiplas possibilidades de cruzamentos, até porque os métodos utilizados apesar de serem diversos, podendo complementar-se. É precisamente este apelo à interdisciplinaridade que se constitui, no âmbito dos Estudos Culturais, como um desafio à construção de uma cultura de diálogo entre as diferentes disciplinas. Em síntese, as questões próprias da investigação em Estudos Culturais multiplicam-se e constituem focos problemáticos de luta intelectual contínua, que têm apenas como ponto unificador o conceito, equívoco e problemático, de Cultura. Apesar disto, os investigadores têm revelado ao longo dos anos a invariável e persistente vontade em se comprometerem com a complexidade do fenómeno cultural, colaborando na construção do que pode-ríamos designar pela (inter)disciplina ou pós-disciplina que é hoje o domínio de investigação dos Estudos Culturais.

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Para um ‘politeísmo metodológico’ nos Estudos Culturais Moisés de Lemos Martins1

1. Ofício de sociólogo Sendo eu um sociólogo, não são todavia as ferramentas-fetiche entre os cientistas sociais aquelas que por norma utilizo. Os historiadores utilizam fundamentalmente os arquivos. Os antropólogos fazem da observação participante a sua ferramenta principal. Os psicólogos sociais recorrem por regra a metodologias experimentais e empíricas, às escalas de atitudes, aos estudos focais e às entrevistas, e utilizam com a mesma mestria e eficácia os inquéritos. Sabemos como os geógrafos e os demógrafos se tornaram especialistas na utilização dos inquéritos. E também os cientistas políticos. Mas foram os sociólogos quem mais fez pela popularidade dos inquéritos e das entrevistas. Generalizando, talvez não seja excessivo dizer que não existem cientistas sociais para quem o inquérito e o seu tratamento estatístico não sejam uma importante ferramenta de investigação. Sendo sociólogo, não têm sido estes, todavia, os meus caminhos. Tenho passado quase toda a minha vida académica a ler e a interpretar textos. E textos de variado tipo: textos de carácter político, mas também textos de natureza religiosa, e ainda textos pedagógicos e filosóficos, e mesmo textos literários. Ora, quem lê textos e se entrega à tarefa de os interpretar é um hermeneuta. E é assim que me vejo, como um hermeneuta. Interpreto textos, não apenas com preocupações académicas, mas igualmente com preocupações cívicas. E comparo-os. 1

Centro de Estudos em Comunicação e Sociedade (CECS) da Universidade do Minho. [email protected]

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Se não falasse do interior do campo das Ciências Sociais, ninguém veria nada de especial nesta minha estratégia de investigação. Quem se ocupa de literatura, por norma não faz coisa diferente: lê e compara textos. Mas que um sociólogo faça isso e que, com o decorrer do tempo, faça apenas isso, instala uma dúvida teórico-metodológica, dado o facto de o trabalho do sociólogo, deste modo perspectivado, o aproximar do trabalho do filósofo e do crítico literário. Hoje ensino e investigo Sociologia da Comunicação. E também Teoria da Cultura. Apenas de há meia dúzia de anos para cá, me ocupo mais de imagens do que de discursos. E sobretudo tenho-me interessado pela importância crescente das imagens tecnológicas na cultura2, sendo esta uma cultura de «comunicação generalizada», no dizer de Gianni Vattimo (1991: 12), ou uma cultura da «rede», nas palavras de Manuel Castells (2002), depois de Olivier Donnat (1994: 284) lhe ter chamado «cultura do ecrã» e Lash e Urry (1994: 16) a terem caracterizado pelo «paradigma do vídeo». Mas durante uma dúzia de anos ensinei Semiótica e Teoria do Discurso. E apenas em meados dos anos oitenta, mesmo no princípio da minha carreira académica, é que trabalhei com o inquérito e a entrevista, que são, pois, para mim, uma espécie de arqueologia do meu modo de trabalhar. Para simplificar, direi que o meu território é o dos Estudos Culturais, nos exactos termos em que Armand Mattelart e Érik Neveu (2003) os concebem. Instabilizando fronteiras entre disciplinas académicas, o que sempre enformou o meu modo de trabalhar foi a produção de um olhar que questionasse as implicações políticas do cultural. Nos Estudos Culturais este propósito estende-se da interrogação sobre o modo como o meio social, a idade, o género e a identidade ‘étnica’ afectam as relações que estabelecemos com a cultura, 2

O meu mais recente estudo: Martins, M. (2009), «Ce que peuvent les images. Trajet de l´un au multiple», Les Cahiers Internationaux de l´Imaginaire, 1: CNRS, pp. 158162.

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à indagação sobre o modo de compreender a recepção dos conteúdos dos média (programas televisivos, matérias da imprensa, filmes, publicidade) pelos diversos públicos, passando pela larga indagação sobre os estilos de vida, próprios da sociedade de consumo, uma sociedade globalizada e marcada pela experiência electrónica. Vou inspirar-me no texto de Roland Barthes (1987) «Ao Seminário / no Seminário» para dar o tom à proposta que entendo fazervos. Vou, pois, falar do meu ofício e do modo como o exerço. Estive, há tempos, na Fundação Calouste Gulbenkian, numa Conferência sobre «A Regulação dos Média», organizada pela Entidade Reguladora para Comunicação Social (ERC). Apresentei e comentei um estudo feito por sociólogos, intitulado Estudo de Recepção dos Meios de Comunicação Social (2008). Foram seus autores principais os Professores José Rebelo, Cristina Ponte e Isabel Ferin. O estudo deu conta de uma sondagem nacional feita sobre a recepção dos média. Aplicou inquéritos a alunos de escolas da grande Lisboa. Está, portanto, polvilhado de mapas e gráficos. E tem muitas observações de cariz etnográfico, autorizadas pela utilização da metodologia dos grupos de foco, que é feita a imigrantes e a idosos. Os investigadores são sociólogos experimentadíssimos na sua arte, sabem do seu ofício e têm um grande traquejo em estudos desta natureza. Este estudo sobre a recepção dos média pelos portugueses em geral, e também por segmentos específicos da população, desi-gnadamente crianças e jovens, idosos e imigrantes, colocou-me a mim, pessoalmente, perante um aliciante desafio, sendo eu um investigador da comunicação, como aliás os autores do estudo que eu analisei. Pus-me a pensar em algumas das conclusões a que tenho chegado em vinte anos de investigação sobre os média e confrontei-me com as conclusões do estudo. Uma das questões que me tenho colocado tem sido a de interrogar a relação que os actores sociais têm com os média, seja os média clássicos (imprensa, rádio e televisão), seja os novos média digitais (Internet, ciberjornalismo, blogues, etc). E

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era essa, também, exactamente, uma das questões que me colocava o estudo: que relação têm os distintos públicos com os distintos média? Que usos lhes dão? O que é que pensam deles? O que esperam deles? Como é que se sentem afectados por eles? Sentem-se muito ou pouco satisfeitos com eles? Tanto eu como os investigadores deste estudo interrogamos práticas sociais. Mas não o fazemos da mesma maneira. Quando falamos de práticas sociais, somos por regra confrontados com dois modelos de acção social, que constituem outros tantos modos de inscrever as práticas no tempo da comunidade. Por essa razão, nem sempre são de bom convívio, embora pudessem e devessem saber coabitar pacificamente.

2. A cinética do mundo e a construção do olhar Um dos modelos de acção social insiste na ideia de que o indivíduo é autónomo, livre e racional. E é este, sem dúvida, o modelo adoptado pelos investigadores que referi. Mesmo «públicos sensíveis», como as crianças e os jovens, os idosos e os imigrantes, que tantas vezes têm visto ser coarctada, ou então ignorada, em todo o caso diminuída, a sua capacidade de acção autónoma, livre e racional, são neste estudo perspectivados em termos activos, com ideias próprias sobre a realidade social e como participantes e contribuintes na estruturação dessa mesma realidade. Mas existe um outro modelo de acção social. Esse modelo articula as nossas acções com um quadro de constrangimentos históricosociais que nos são impostos. E tem sido esse o meu caminho. Inscrevo-me na grande tradição historiográfica de Fernand Braudel (1985) e sociológica de Georges Gurvitch (1955), que pensam as práticas humanas por relação à temporalidade, que é na verdade o seu grande escultor, como diria Marguerite Yourcenar. As práticas humanas têm um tempo local, que é o tempo da experiência. Podemos

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dizê-lo com as palavras de Nietzsche, o tempo da «intempestividade», o tempo que está em acto, o «inactual» (1988), e também o tempo das micro-narrativas (Lyotard, 1979), ou então, com as palavras de Foucault (apud Eribon, 1991: 45), o tempo biográfico: o tempo do nosso embate com as coisas, com os outros e com nós mesmos. As práticas humanas têm também um tempo contextual, o tempo de um dado campo social, com relações de força que correspondem a posições sociais assimétricas dos actores sociais, a posições de mais ou menos poder num dado campo social. Entre o tempo da experiência e o tempo contextual anda o tempo da prática, ou seja, os constrangimentos da prática, a que se referem, entre outros autores, Wittgenstein (1995: I 202), que lhe chamou regras da prática: «“seguir uma regra” é uma praxis». Também Jacques Bouveresse (2003: 140- -141) lhe é sensível ao assinalar a «prisão invisível» a que a prática está sujeita. E no mesmo sentido abonam André Joly (1982: 117) ao considerar uma «consciência pragmática», Anthony Giddens (1990: 278, 280) ao referir uma «consciência prática» e Pierre Bourdieu (1972) ao insistir num «sentido prático». Tenho seguido a hipótese de que as práticas são determinadas por um «campo de forças sociais» (Bourdieu), e também por «estados de poder» (Foucault), que são forças sociais reificadas, forças sociais feitas instituição. Ou seja, as práticas sociais ocorrem no interior de uma estrutura com uma lógica social específica, onde se jogam, como já referi, relações sociais assimétricas, de mais ou menos poder, ocupando os indivíduos determinadas posições de força. No entanto, é o conhecimento da natureza e do modo de funcionamento das instituições, assim como o conhecimento dos mecanismos que governam os fenómenos culturais, que dão aos actores sociais uma possibilidade real para modificarem as suas ideias, atitudes e práticas. Ou seja, pensando agora no caso dos usos que fazemos dos média, dos modos como os imaginamos e das expectativas que temos relativamente a eles, o meu questionamento difere do dos autores do

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estudo, uma vez que parte de uma interrogação sobre o quadro actual de constrangimentos que nos são impostos, ou seja, parte das regras da prática. Este quadro de constrangimentos, por sua vez, não é dissociável daquilo a que chamo «tempo global», que é o tempo da «sociedade em rede», o tempo da «economia-mundo» (Wallerstein), o tempo da globalização. Uma pergunta, todavia: que quadro de constrangimentos globais são esses que enquadram a prática? Que regras são essas? Assinalo, por um lado, a importância crescente daquilo a que Mário Perniola chama «ordem sensológica»; assinalo também a implantação de uma sociedade de «meios sem fins» (Agamben); e assinalo ainda a actual cinética do mundo, um movimento de «mobilização infinita» para ao mercado global, como se lhe refere Peter Sloterdijk. Passo a explicitar. 2.1. Considero que a nossa prática social não é dissociável daquilo a que Mário Perniola chama a “ordem sensológica” (1993), que se impõe à antiga «ordem ideológica», com a sensibilidade e as emoções a levarem a melhor sobre as ideias e com a bios a misturarse com a techné, podendo falar-se hoje, por exemplo, no sex-appeal do inorgânico (Perniola, 2004)), num processo acelerado de estetização geral da existência humana, com toda a experiência a constituir-se em «experiência sensível». A nossa atmosfera é cada vez mais sensitiva e libidinal, com a emoção, o desejo, a sedução e a pele a constituírem-se como valores prevalecentes na nossa cultura. Derrick de Kherckhove (1997) fala mesmo, neste contexto, de uma pele tecnológica. 2.2. Somos hoje também uma sociedade de «meios sem fins», como diz Giorgio Agamben (1995), depois do afundamento das verdades tradicionais, da quebra da confiança histórica e da deslocação civilizacional da palavra para a imagem, ou para o ecrã.

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«Meios sem fins», «história sem Génese nem Apocalipse», uma história presenteísta, ou seja, uma história sem teleologia, que já não caminha para um fim, e também uma história sem escatologia, sem redenção. Duas ilustrações sobre este constrangimento da prática, em que a sociedade é de «meios sem fins». A primeira ilustração tomo-a do poeta austríaco Paul Celan (1996). Em o Meridiano, Celan assinala que nós somos seres do tempo e que ao tempo três acentos lhe convêm: o agudo da actualidade (o tempo do nosso confronto como outro e com as coisas); o grave da historicidade (o tempo da nossa responsabilidade pela permanência do sentido de comunidade); e o circunflexo que é um sinal de expansão tempo - da eternidade (o tempo da promessa, que nos arranca à imanência). Simplesmente, o problema está em que nos encontramos hoje com todos os acentos em falta. A cota da cidadania baixou consideravelmente; o sentido de comunidade diluiu-se e perdeu para o tribalismo; e os cidadãos surgem esgazeados pelo vórtice da velocidade e a funcionam cada vez mais como consumidores. A segunda ilustração de que o nosso tempo deixou de ser o lugar da realização de um propósito narrativo, de um propósito de emancipação histórica, de redenção, está bem explícito em O Homem sem Qualidades, a monumental obra de Robert Musil (2008), que acaba de ser reeditada, em português, pela Dom Quixote (com prefácio, comentário e notas de João Barrento). A principal personagem da obra, Ulrich, tem consciência de que em nenhuma época como na nossa foi acumulado tanto conhecimento. Mas igualmente em nenhuma época como na nossa os homens se sentem tão incapazes de intervir no curso da história. E Ulrich somos nós. A nossa época vê alterada, deste modo, a sua natureza, de uma estrutura dramática (de contradições com uma síntese reden-

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tora) para uma estrutura trágica (de contradições sem happy end). É esse o sentido do «regresso do trágico», de que fala Michel Maffesoli (2000), numa das suas obras recentes, L’Instant éternnel. Le retour du tragique dans les sociétés post-modernes. 2.3. Existe ainda uma outra regra que se impõe à prática e que eu gostaria de convocar aqui. Refiro-me ao facto de o humano estar a ser investido, acelerado e mobilizado, pela tecnologia, para um mercado global. Já nos anos trinta do século passado, Ernest Yünger assinalara que a época estava a ser mobilizada pela tecnologia. Usava então uma metáfora bélica. Entretanto, Peter Sloterdijk (2000) fala hoje de uma «mobilização infinita». Esta mobilização infinita para o mercado global, através da tecnologia, vai colocar o humano numa crise permanente. A conjugação destas regras da prática, ou por outra, destes constrangimentos (relembro-os, ordem sensológica, sociedade de meios sem fins, mobilização infinita do humano para o mercado) produz nos actores sociais o cérebro de indivíduos empregáveis, competitivos e performantes. E eu diria que é essa hoje a nossa condição. O «rei clandestino» da nossa época (Simmel), ou seja, as grandes regras da prática são, em síntese, o mercado global e o pensamento da técnica. E como consequência do entendimento que faço deste quadro de constrangimentos, em que as tecnologias da informação suportam o mercado global e as biotecnologias fantasiam melhorar a vida humana, concluo pela «crise permanente do humano», que o mesmo é dizer, crise permanente da cultura, com a crise da razão histórica, ou seja, a crise das grandes narrativas (Lyotard: 1979), e também a crise do narrador (Benjamin: 1992), e as consequentes crise da verdade e o “empobrecimento da experiência”.

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3. A modernidade trágica Como já assinalei, o estudo que analisei centra a atenção na capacidade de acção autónoma, livre e racional do actor social. Sem dúvida uma capacidade com gradações diversas, que se distinguem por faixas de idade específicas, por diferentes localidades, graus de escolaridade e diferenças de género, e mesmo por nacionalidade. No estudo que eu analisei, essa capacidade tem ainda outros cambiantes gradativos, assim nós estejamos a falar de jovens dos 14 aos 18 anos, de idosos de mais de sessenta e quatro anos, ou de imigrantes. Penso que a referência a «contextos sociais», que existe neste estudo, não faz dos «contextos sociais» o equivalente daquilo que eu considero como «regras da prática», como constrangimentos estruturais da acção humana. E está aí, a meu ver, uma distinção de monta na perspectivação da realidade social. Dado então o exemplo que eu tomo aqui, que é o de a pesquisa dos média adoptar distintos modelos de acção social, vou levar um bocadinho mais longe as minhas considerações, antes de concluir esta comunicação. Eu entendo, sem dúvida, que as práticas dos indivíduos ocorrem e variam com específicas condições de tempo, lugar e interlocução (idade, género, escolaridade, nacionalidade…). É essa, como aliás assinalei, a linha condutora dos autores do estudo, em quase quatrocentas páginas, através de sondagens, inquéritos, entrevistas e grupos de foco. Mas as minhas escolhas metodológicas, que são diferentes, conduzem- -me a uma conclusão que também me parece importante, tanto na análise do usos que fazemos dos médias, como na análise das ideias que temos sobre eles, e ainda, na análise das expectativas que temos relativamente a eles. Refiro-me à consideração do ‘tempo global’, a que Fernand Braudel e Georges Gurvitch chamaram “tempo longo”, uma temporalidade que caracteriza as estruturas económicas, simbólicas e culturais duráveis da sociedade e que afecta as regras da prática.

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Na perspectiva adoptada pelo estudo dos meus colegas sociólogos, o ponto de partida é a razão soberana de indivíduos autónomos e livres, num tempo contextual, seja de adultos, ou então de crianças, jovens, idosos e imigrantes. Nos termos da orientação que tem sido a minha, o ponto de partida é o ‘tempo global’, um tempo sensológico, de simulacros, de meios sem fins, de mobilização infinita, um tempo trágico. Utilizo estas metáforas com carácter heurístico, ou para falar como Max Weber, com o carácter de tipos ideais. Penso que é, de facto, pela consideração de um conjunto de constrangimentos globais que se aplicam às regras da prática, que existe em Walter Benjamin (1982: 173) essa ideia de que os média esgotam a actualidade em novidade, em simulacro do novo, com o quotidiano transformado na presa fácil de uma transcrição ruidosa e incessante que o nega enquanto quotidiano em que arriscamos a pele. E é pela mesma razão, que vemos Guy Debord insistir no crescente processo de anestesiamento da vida, um processo de congelação dissimulada do mundo (Debord, 1991: 16), esgotando-se este em espectáculo e euforia, meros simulacros, que não passam de “guardiões do sono” da razão, para falar ainda como Guy Debord (1991: 16)3. Também Norbert Elias viu na excitação uma característica da sociedade actual, depois de Nietzsche já haver assinalado, há mais de um século, o sobreaquecimento do mundo pelo eco de um jornal, pensamento que é, aliás, retomado por McLuhan, quando se refere ao aquecimento e ao arrefecimento dos média, e ainda por Maffesoli, 3

A ideia de “crise da experiência” começa por ser referida em Benjamin no seu texto sobre “O narrador” e parece hoje em fase imparável pela aceleração tecnológica do nosso tempo. Agamben fala da impossibilidade em que nos encontramos, hoje, de nos apropriarmos da nossa condição propriamente histórica, o que torna “insuportável o nosso quotidiano” (Agamben, 2000: 20). Perniola, por sua vez, ao caracterizar a experiência contemporânea, introduz o conceito de “já sentido” e interroga-se sobre o sex appeal do inorgânico, que tem tanto de fascinante como de inquietante (Perniola, 1993, 2004). Quanto a Baudrillard, conhecemos o seu conceito de realização do real como simulacro (Baudrillard, 1981).

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ao assinalar a efervescência social, a euforia, processo esse em que participam os média. Eu próprio, ao valorizar as regras da prática, formulei em tempos a ideia de que os média são «o pensamento da nossa modernidade trágica», que recita sempre o mesmo melancólico conto da permanente hemorragia do humano (Martins, 2002 a).

Para não concluir Foi para mim, como assinalei, um aliciante desafio poder apresentar aqui, ainda que de forma sucinta, o meu ponto de vista sobre metodologias de investigação da cultura. É verdade que o meu entendimento é feito de convicções fortes. Mas não fecha os olhos nem ignora outras ferramentas, mais explicativas do que compreensivas, é certo, mais viradas para a estática social do que para a dinâmica, para utilizar as clássicas categorias de Comte e Gurvitch, mais interessadas por aquilo que no social é coisa e estado de coisa, ou seja instituição, e não tanto processo, relação, movimento, ou seja, corpo. Mas todo o verdadeiro processo hermenêutico, sabemo-lo desde Dilthey e Schleiermacher, vive da tenção que explicar e compreender estabelecem entre si. Por opção metodológica, podemos acentuar mais o processo explicativo, do que o compreensivo. Ou então o inverso, acentuar mais a compreensão do que a explicação. O que não podemos nunca é dispensar um pólo do movimento hermenêutico em favor do outro4.

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Em 2002, desenvolvi este ponto de vista em A linguagem, a verdade e o poder, especificamente nas pp. 145-163.

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Para uma etnografia dos públicos em acção João Teixeira Lopes1

No momento actual de desenvolvimento da Sociologia da Cultura exige-se o exercitar da imaginação metodológica no estudo dos públicos. Antes de mais, porque os instrumentos estritamente quantitativos, apesar da grande vantagem de fazerem sobressair determinações, regularidades e comparações, negligenciam, por generalismo, as trajectórias individuais e dos micro-grupos. Importa, por conseguinte, na conciliação entre quantitativo e qualitativo, exigência, aliás, do próprio cariz relacional do objecto de estudo em causa, construir observatórios de públicos in situ, capazes, numa primeira fase, de construir tipos-ideais e perfis (como de resto já acontece entre nós, particularmente nos estudos do Observatório das Actividades Culturais), para, numa segunda fase, proceder à caracterização etnográfica dos modos antropológicos de recepção dos públicos em formação, para além do necessário mas insuficiente conhecimento sociográfico, seguindo o princípio defendido por Madureira Pinto: “procurar conciliar, na organização global da pesquisa, isto é, em todo o ciclo que vai da problematização teórica até à fase da observação, extensividade e intensividade, por esta ordem (e sublinho: “por esta ordem”) (...) acredito que a análise conduzida à escala macro e meso segundo procedimentos de natureza mais extensiva, convencionalmente associados à sociologia, tem precedência lógica e teórica sobre os procedimentos observacionais ditos «etnográficos» (Pinto, 2004: 26). Dito isto, a etnografia dos públicos em acção permitirá, assim o creio, restituir à sociologia dos modos profanos de recepção, particularmente 1

Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto

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no que respeita às dimensões corporais, emocionais e afectivas, tantas vezes mitigadas ou mesmo silenciadas. Ao falarmos de apropriações e de modos de relação com a cultura entramos, já, na rejeição do modelo behaviourista do estímulo/reflexo, pressupondo-se a existência de um agente social implicado na (re)produção das estruturas e não um reactor sonâmbulo, um alegre robot ou uma marioneta. O receptor cultural, neste sentido, é mais um praticante cultural do que um consumidor. Será importante, a este respeito, relembrar aos alunos a teoria da estruturação de Anthony Giddens e o próprio conceito de agência. Aliás, que fique bem claro: o receptor potencialmente apto a reinterpretar mensagens e seleccionar sentidos não é o «novo herói da cultura» de que nos fala Mike Featherstone. Pelo contrário, pretendo referir-me a uma das características ideais-típicas do sujeito social contemporâneo. Por outro lado, é fundamental partirmos do conceito de art world para compreendermos a cadeia de implicados na produção da obra cultural, esticando tal pressuposto até ao receptor. Assim, defendo o cariz incompleto, indeterminado e aberto das obras culturais, na esteira de Umberto Eco (Eco, 1989). Mais ainda: o facto de as obras culturais serem virtualmente ambíguas e plurívocas (tanto na forma como no conteúdo - ou não fossem as grandes revoluções formais verdadeiras revoluções totais, em que a forma é conteúdo...) é uma das condições do próprio agir comunicacional, possibilitando um enriquecimento do jogo de expectativas e dos próprios mapas culturais e simbólicos dos sujeitos. Andrea Press relaciona as mudanças na estrutura social com a diversificação dos públicos e, consequentemente, dos modos e perfis de recepção. A multiplicação de exemplos que esta autora fornece será de enorme utilidade para a dinâmica pedagógica (Press, 1994). Situemo-nos no já célebre estudo de Radway, Reading the Romance (Radway, 1991). Verdadeiro marco dos Cultural Studies, permitiu um

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salto qualitativo no modo de entendimento de como os leitores interferem na determinação dos significados textuais, opondo resistência, não raras vezes, aos sentidos dominantes. No caso das mulheres, em particular, a leitura do romance permitia uma fuga às rotinas dos modelos patriarcais de família, criando espaços-tempos de maior autonomia. De igual modo, os estudos de Long clarificaram o acto de recepção como terreno de luta simbólica, envolvendo complexas disputas entre as indústrias culturais, os críticos e os públicos. De facto, apesar da importância da autoridade cultural na selecção de livros, a interpretação funciona claramente como resistência ao discurso pretensamente soberano dos críticos. Apesar dos parâmetros pós-modernos destes últimos, os receptores (de livros, de filmes, de séries televisivas) tendem a organizar os seus universos de referência por coordenadas «pré-pós-modernas», identificando-se com certas personagens, acreditando, por vezes, na verosimilhança de cenários e ficções, etc. Lichterman é outro dos mais conhecidos estudiosos da recepção cultural. Os seus estudos no âmbito da thin culture (superficial, ligeira...), em particular no que respeita aos chamados livros de autosuporte, revelaram que os leitores avaliam os ensinamentos e conselhos de forma ambivalente e selectiva, misturando tais sugestões com outras referências mediáticas e mesmo experiências pessoais. Aliás, este estudo permitiu questionar o muito em voga conceito de comunidade interpretativa, já que, na mescla de experiências, mundos da vida e papéis sociais, os receptores acabam por circular entre várias comunidades interpretativas, criando repertórios sincréticos. Em suma, apesar de fortes constrangimentos ligados quer à rigidez da doxa dos campos culturais, para nos situarmos em linha com Bourdieu, quer à fixidez de determinadas instâncias, maxime agências de consagração/legitimação arbitrária de um sentido único para as obras culturais, o ofício de receptor revela-se como um processo activo e criativo, mantendo uma relação complexa e ambivalente com as estruturas do poder.

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Hans Robert Jauss, teórico da escola de Konstanz, coloca-se nos antípodas de Adorno e Horkheimer. Estes defendem claramente que a verdadeira arte é incomunicável (Adorno e Horkheimer, 1993). Ao percebê-la, perdemos o sentido crítico e emancipador, já que é necessário um véu de resistência a qualquer mecanismo de empatia, projecção ou identificação, tidos como alienantes. Stefan Collini (Collini, 1993) fala mesmo nos «seguidores do véu», uma espécie de hermetismo ou gnosticismo contemporâneo para quem o essencial é não ter compreendido. Adorno é, a este respeito, taxativo: “ a arte só é íntegra quando não entra no jogo da comunicação”. Eco, ironicamente, caracteriza os novos gnósticos como aqueles que sentem que “cada camada removida ou cada segredo desvendado é sempre a antecâmara de uma verdade ainda mais ardilosamente oculta”. Ora, como defende Jauss (Jauss, 1978), a recepção contemporânea de uma dada obra cultural acciona um conjunto de comparações com as obras anteriores, bem como com a evolução do género em que se enquadra e com a experiência de vida do receptor. Defendo que esta definição permite uma dupla abertura: por um lado, assinala a necessidade de familiaridade com a estrutura da obra, o que evita abordagens ingénuas. Por outro lado, dignifica a história de vida do sujeito, o seu habitus, as suas experiências e a própria fruição enquanto constitutiva da função social da arte, assente na comunicação e na Poiesis: “sentir-se deste mundo e em casa neste mundo” (Jauss, 1978: 143). Não se coíbe, pois, o autor em elogiar a experiência estética, nem, tão-pouco, as categorias que mobilizam perceptiva e cognitivamente os públicos. Ela deve, na verdade, mergulhar “ao nível da identificação (...) espontânea que toca, que perturba, que causa admiração, que faz chorar ou rir por simpatia e que apenas o snobismo pode considerar como vulgar” (Idem: 161). A experiência estética não renuncia, por isso, à linguagem, verbal ou não-verbal, corpo expressivo, comunicante, produtor de sentido e não apenas mera inscrição ou interiorização das marcas das estru-

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turas. O gesto, o olhar, o riso, o choro, a ampla vastidão do sensível e da exteriorização da subjectividade socializada são, então, sinais dessa mobilização estética. As disposições afectivas – a «estrutura de sentimento», na expressão de Williams, existem, pois, como elementos constituintes do horizonte de expectativa, conceito que Jauss utiliza para se referir ao “sistema de referências (do receptor) objectivamente formulável”. E que lhe permite, aliás, tecer duras críticas a um certo tipo de produção cultural que apelida de arte culinária, por corresponder inteira e pacificamente ao horizonte de expectativas do receptor – consideração que, a meu ver, o aproxima, agora, da Escola de Frankfurt, pois tem subjacente um a priori sobre a arte, enquanto inquietação, subversão e transcendência do que existe. Mas opõe-se, com igual veemência, como vimos, à arte que resiste à interpretação e à comunicação geradora de experiências sociais – socializadoras. Devo acrescentar, no entanto, que qualquer abordagem sobre a recepção ficará incompleta sem uma teoria do habitus pessoal e de classe e sem uma sociologia dos públicos da cultura. O stock de aprendizagens do receptor, a sua história, pessoal e social, cruzam-se com contextos mais vastos de constrangimentos e recursos. Jacques Leenhardt coloca o dedo na ferida ao considerar: “os muitos parâmetros de um público dependem dos caracteres fundamentais dos grupos ou das classes a partir dos quais se definem”. Acrescenta, ainda: “o público é uma estrutura social secundária ou dependente (...) nunca existe em si mesmo, duplica apenas um recorte sociológico de classes ou de grupos” (Leenhardt, 1982:73). No entanto, apenas posso concordar parcialmente com o autor. Se me parece correcto afirmar que um público não existe num vazio social mas sim em estreita conexão com a estrutura social e uma matriz de desigual distribuição de recursos linguísticos, perceptivos e cognitivos; se, igualmente, sou contra a reificação do conceito, já que um público existe, a meu ver, virtualmente, sendo mobilizado em contextos e circunstâncias concretas e empiricamente observáveis; tam-

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bém me parece, todavia, que a circulação reflexiva de sentido, o contexto de recepção, nomeadamente nas suas componentes espaciais e interaccionais (indissociavelmente ligadas) e a própria estrutura semântica e estilística da obra constituem variáveis da maior importância, sem esquecer, naturalmente, os canais e filtros institucionais intermediários (instâncias de difusão e de consagração). Jacques Leenhardt, uma vez mais: “é pois necessário interrogar os caracteres gerais do que é recebido pelo público se quisermos compreender a razão por que determinado objecto se torna assimilável como objecto de arte”. E a ênfase, clara, no poder (desigual) dos públicos: “É o público que o «faz» quando reconhece que este último responde às exigências requeridas pelo código. Se esta consagração não chega, desaparece o livro, desprega-se a tela, esquece-se a música. O público é, assim, a instância social que decide, em último lugar, como São Pedro, se se pode ou não entrar no Paraíso! Mas os paraísos são tão numerosos como os públicos! É que o público, no domínio da arte, não ajuíza a partir de uma faculdade de juízo estético motivado, mas a partir de um gosto” (Idem: 74). Importa, por isso, renovar a nossa abordagem metodológica no que se refere à observação dos públicos. Como captar as diferentes atitudes estéticas e distintas representações simbólicas sobre um espectáculo, um quadro ou um livro, de “tipo mais teatral e contextual, de tipo preferencialmente não verbal e aparentemente não convencional” (Goffman, 1993: 15)? Como apreender o espectáculo dentro do próprio espectáculo, no próprio corpo do receptor? Como entender, nas palavras de Serge Collet, que o “espectador é «actor» no seu corpo no próprio lugar do espectáculo” (Collet, 1984: 13) Como entender que, alguns, se movam, dentro do seu «modo habitual de percepção» (Francis, 1992: 117), de maneira a emitirem juízos de valor estéticos que remetem para uma concepção ampla e não pericial da estética, ignorante da história do género em causa, das especificidades estilísticas e dos códigos restritos dos iniciados? Ao invés, como com-

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preender que estes se movam no terreno dos intermediários culturais, do interconhecimento pessoal ou mediado, académico ou autodidacta, dos géneros, das classificações, dos rituais propriamente artísticos? Como interpretar, então, o modo como os públicos fazem e desfazem as telas, os palcos, as partituras? Como explicar que, sendo infinitos os usos da língua, se reduzam, no entanto, as opções linguísticas dos públicos quando querem falar do que viram, ouviram, sentiram? E como relacionar a abertura ou fechamento desses possíveis com tendências e contratendências do processo de socialização, em particular no que se refere às aprendizagens «culturais», com disposições fracas e fortes, afirmações e contradições, crenças e propensões para agir? Como se formam e quebram as «comunidades de código» ou «comunidades interpretativas»? O que explica a sintonia e a dissonância perceptivas? Como se expressam? Por que razão o que para uns é um prazer sofisticado, para outros é, por exemplo, uma «agressão auditiva» (Menger, 1986)? A resposta passa pela imperiosa necessidade de complementar as análises extensivas quer com as análises históricas e institucionais, quer com as análises intensivas, de cariz etnográfico. Aos inquéritos e bases de dados urge acrescentar a maturação hermenêutica patente na interpretação das entrevistas, maxime as de matiz biográfico, nos grupos de discussão, nas várias formas de observação (do observador incógnito ao observador participante), nas deambulações, nas vadiagens sociológicas de que nos fala José Machado Pais, na fotografia social, no vídeo documental... A etnografia, como refere Andrea Press, é sempre uma dupla construção (ou dupla hermenêutica), a partir das construções primeiras dos públicos, manifestas em textos, falas, posturas, gestos, risos, pausas, gritos, silêncios...António Firmino da Costa sugere os quadros de interacção como unidade de análise facilitadora do contínuo vaivém macro-micro, especialmente adequados à análise dos “modos de relação entre as pessoas e os seus contextos de acção”, neste caso quer os

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modos de relação “com as artes e a cultura enquanto esferas institucionais especializadas”, quer “os modos de relação concretos, em situação, das pessoas singulares com os seus contextos imediatos de acção, no domínio das práticas culturais” (Costa, 2004: 134-135). Neste esforço etnográfico e interpretativo importa nunca perder de vista um princípio de dupla recusa: a da sub-interpretação e a da sobre-interpretação. Ou, como diz Geertz: “no nosso caso (de antropólogos) o movimento é entre interpretar demais ou interpretar de menos, lendo mais coisas naquilo que observamos do que a razão recomendaria, ou, ao contrário, menos do que a razão exigiria” (Geertz, 2003: 29). Assim, não nos poderemos limitar às abordagens e conceitos de «experiência-próxima» (as rotinas, o anódino, o anedótico, o vernáculo da vida quotidiana...), nem, tão-pouco, à deriva para o outro extremo, o da «experiência-distante» (própria do trabalho intelectual de abstracção, isto é de selecção e construção da realidade, de um sobreobjecto, como diria Bachelard). Para o estudo dos públicos em acção, como, de resto, em qualquer procedimento etnográfico, é na conexão tensa das duas abordagens que poderá resultar o resgate dos tempos e modos da recepção cultural.

Bibliografia Adorno, Theodor e Horkheimer, Max 81993) , Dialectic of Enlightenment. New York: Continuum. Collet, Serge (1984), in AA. VV, Théâtre Public. Le Rôle du Spectateur, nº 55. Collini, Stefan, dir. (1993), Interpretação e Sobreinterpretação. Lisboa: Editorial Presença. Costa, António Firmino (2004), “Dos públicos da cultura aos modos de relação com a cultura: algumas questões teóricas e metodológicas para uma agenda de investigação” in AA.VV, Públicos da Cultura. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais.

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Eco, Umberto “Entre autor e texto” (1993) in Stefan Collini (dir.) Interpretação e Sobreinterpretação. Lisboa: Editorial Presença. Eco, Umberto Eco (1989) Obra Aberta. Lisboa: Difel. Francis, Robert (1992), La Perception. Paris  : Presses Universitaires de France. Geertz, Clifford (2003), O Saber Local. Petrópolis: Editora Vozes. Goffman, Erving (1993), A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias. Lisboa: Relógio d’Água. Jauss, Hans Robert (1978), Pour une Esthétique de la Réception. Paris : Gallimard. Leenhardt, Jacques (1982), “Recepção da obra de arte” in Mikel Dufrenne (org), A Estética e as Ciências da Arte. Amadora: Bertrand. Lopes, João Teixeira (2004), « Experiência estética e formação de públicos” in AA.VV., Públicos da Cultura. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais. Menger, Pierre-Michel (1986), “L’oreille spéculative. Consommation et perception de la musique contemporaine » in Revue Française de Sociologie, XXVII. Pinto, José Madureira (2004), “Para uma análise sócio-etnográfica da relação com as obras culturais” in AA.VV., Públicos da Cultura. Lisboa: Observatório das Actividades Culturais. Press, Andrea L. (1994), “The sociology of cultural reception: notes toward un emerging paradigm” in Diana Crane, The Sociology of Culture. Cambridge: Basil Blackwell. Radway, Janice A. (1991), Reading the Romance. The University of North Carolina Press. Roussel, Francoise e Kahane, Martine (2002) “Le progrès de la connaissance des publics” in AA.VV, Les Institutions au Plus Près des Publics. Paris : Musée du Louvre/La documentation Française.1

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1. Representações sociais, comunicação e cultura Em 1961 Serge Moscovici publicou a obra La Psychanalyse, son Image et son Publique, inaugurando um novo campo na psicologia social: o estudo das representações sociais. Esta obra lançou uma problemática específica – como é que o conhecimento científico é consumido, transformado e utilizado pelo “cidadão comum” – e uma problemática mais geral – como as pessoas constroem a realidade, através dos processos de comunicação interpessoal quotidiana. Estas problemáticas exigiram novas abordagens metodológicas no seio da disciplina e conduziram a uma articulação com outras ciências sociais e humanas. No seio da Psicologia Social, a teoria das representações sociais contribuiu para o reconhecimento da importância dos processos comunicativos, mediáticos e informais, na forma como determinado grupo social constrói a realidade (Moscovici, 1984). Tal contributo conduziu a um novo olhar sobre a forma de conceber a relação entre o indivíduo e a sociedade. As representações sociais são conceptualizadas como uma modalidade de conhecimento socialmente elaborada e compartilhada, contribuindo para a percepção de uma realidade comum a um determinado grupo. Segundo Denise Jodelet (1989), as representações sociais constituem a forma como os indivíduos se apropriam do mundo que os rodeia, ajudando-os a compreender e a agir, isto é, são teorias sociais práticas. 1

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Moscovici estabelece a distinção entre três tipos de representações sociais, em função do seu estádio de desenvolvimento e do seu modo de circulação na sociedade. As representações controversas ou polémicas são geradas no decurso de um conflito social ou luta entre grupos, não sendo partilhadas pela sociedade no conjunto. Por sua vez, as representações emancipadas são o produto da cooperação e da circulação de ideias entre sub-grupos que estão em contacto mais ou menos próximo, em que cada sub-grupo cria as suas próprias versões e partilha-as com os outros. Finalmente, as representações hegemónicas dizem respeito a significados largamente partilhados pelos membros de um grupo altamente estruturado (uma nação, um partido, etc.) e que prevalecem de forma implícita em todas as práticas simbólicas, parecendo ser uniformes e coercivas (1988: 221-222). Assim, as representações sociais hegemónicas seriam o equivalente ao conceito de representação colectiva proposto por Durkheim (1898). Segundo Moscovici (1989), as representações colectivas cedem o lugar às representações sociais uma vez que as primeiras não têm em conta a sua diversidade de origem e a sua transformação. Isto é, na opinião do autor, a visão clássica das representações peca por as considerar como pré-estabelecidas e estáticas. De acordo com Moscovici, existe uma ligação entre estes diferentes estádios de desenvolvimento das representações sociais e as modalidades comunicativas. Na difusão verifica-se distanciamento e diversidade no tratamento dos temas, com ênfase na informação, sem tomadas de posição explícitas da parte do emissor, mas também sem sistematização das diferentes opiniões face ao tema. A propagação visa produzir uma norma geral, englobante e conciliadora, procurando organizar elementos divergentes de forma a torná-los compatíveis com valores mais centrais para os vários grupos implicados. Em contrapartida, na propaganda verifica-se um recurso a dicotomias redutoras, não havendo espaço para nuances ou moderação. Esta modalidade de comunicação ocorre quando há um conflito que ameaça

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a identidade do grupo, separando «um nós que estamos certos, de um eles que estão errados» (Castro, 2004: 366). Os meios de comunicação social contribuem para a consensualidade alargada de algumas representações sociais, isto é, para o seu carácter hegemónico. No entanto, os meios de comunicação social podem ser também excelentes instrumentos para a visibilidade das minorias activas, permitindo a difusão de representações polémicas e contribuindo assim para a mudança social (Cabecinhas e Évora, 2008). A compreensão do conteúdo de uma representação exige a sua integração na estrutura social e esta remete para clivagens, diferenciações e relações de dominação (Bourdieu, 1979; Deschamps, 1982). Tais clivagens e diferenciações sociais reflectem-se na construção de diferentes representações sociais de um mesmo objecto. A perspectiva das representações sociais enfatiza o papel activo dos actores sociais na sua produção e transformação. É necessário, contudo, ter em conta, por um lado, a relação entre as representações sociais e as configurações culturais dominantes, e por outro, a dinâmica social no seu conjunto. A conjugação destes factores ajuda a compreender as pressões para a hegemonia e a consequente reificação de certas representações sociais. As relações entre as representações sociais e os processos intergrupais são bastante complexas (Doise, 1992). Alguns autores têm sublinhado a influência das posições assimétricas dos grupos, tanto nos discursos como nas identidades sociais criadas por esses grupos (e.g., Cabecinhas, 2007; Ferin, 2006; Lorenzi-Cioldi, 2002; van Dijk, 1991). Embora todos os indivíduos sejam activos na construção das suas representações, a estrutura social determina que nem todos têm igual margem de liberdade no processo de negociação das representações (e.g., Amâncio, 1997; Cabecinhas e Cunha, 2008). Por outro lado, embora as representações estejam em permanente processo de mutação, a apropriação do “novo” segue uma lógica profundamente “sociocêntrica” (Moscovici, 1998: 242).

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Enquanto sistemas de interpretação, as representações sociais regulam a nossa relação com os outros e orientam o nosso comportamento. As representações intervêm ainda em processos tão variados como a difusão e a assimilação de conhecimento, a construção de identidades pessoais e sociais, o comportamento intra e intergrupal, as acções de resistência e de mudança social. Enquanto fenómenos cognitivos, as representações sociais são consideradas como o produto duma actividade de apropriação da realidade exterior e, simultaneamente, como processo de elaboração psicológica e social da realidade. As representações sociais estão ligadas a sistemas de pensamento mais largos, ideológicos ou culturais, e a um determinado estado de conhecimentos científicos. Os meios de comunicação social e as conversações interpessoais quotidianas intervêm na sua elaboração, por meio de processos de influência social. Segundo Jodelet as representações sociais formam sistemas e dão origem a “teorias implícitas”, versões da realidade que incarnam em imagens cheias de significação (1989: 35). Sintetizando, as representações sociais são conceptualizadas como saber funcional ou teorias sociais práticas. Estas permitem a organização significante do real e desempenham um papel vital na comunicação: «todas as interacções humanas, quer ocorram entre dois indivíduos ou dois grupos, pressupõe tais representações» (Moscovici, 1984: 12). Assim, as representações sociais servem como guias da acção, uma vez que modelam e constituem os elementos do contexto no qual esta ocorre (Moscovici, 1961) e desempenham, ainda, certas funções na manutenção da identidade social e do equilíbrio sociocognitivo (Jodelet, 1989). Mas quais são as condições para que uma dada representação seja considerada uma “representação social”? Na acepção de Vala (2000), afirmar que uma representação é social envolve a utilização de três critérios. O critério quantitativo – uma representação é social na medida em que é partilhada por um conjunto de indivíduos – no

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entanto, este critério por si só é «insuficiente para dar conta do conceito de representação social porque nada diz sobre o seu modo de construção» (2000: 461). O critério genético – uma representação é social na medida em que é colectivamente produzida, isto é, as representações sociais são o resultado da actividade cognitiva e simbólica de um grupo social. E, finalmente, o critério funcional – as representações sociais constituem guias para a comunicação e a acção, isto é, as representações sociais são organizadoras das relações simbólicas entre os diversos actores sociais.

2. A sociedade pensante A expressão sociedade pensante foi proposta por Moscovici (1981: 182) para expressar a ideia de que o pensamento não pode ser considerado o produto de um “indivíduo só”, uma vez que o conteúdo desse pensamento está em constante reelaboração através da comunicação quotidiana. Todos os indivíduos são activos na sua construção social da realidade, mas esta construção é efectuada em rede, no seio dos grupos sociais. Ora, nas sociedades contemporâneas cada indivíduo pertence simultaneamente a várias redes sociais e tem contacto com diversos ambientes culturais, o que torna o estudo das representações socais extremamente complexo. Na opinião de Moscovici, o paradigma da sociedade pensante questiona as teorias que consideram que os nossos cérebros são “caixas negras” que processam mecanicamente a informação em função dos condicionamentos exteriores e questiona igualmente as teorias para as quais os grupos e os indivíduos estão sempre sob o domínio das ideologias produzidas e impostas pela classe social, pelo Estado, pela Igreja ou pela Escola, e que os seus pensamentos e palavras são meros reflexos dessas ideologias. Em contrapartida, o paradigma da sociedade pensante assume que «os indivíduos pensam autonoma-

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mente, estando constantemente a produzir e a comunicar representações» (Moscovici, 1981: 183). Como refere Vala, a ideia de que «os indivíduos e os grupos pensam, e de que as instituições e as sociedades são ambientes pensantes, representa uma forma nova de olhar para a constituição das instituições sociais e para os comportamentos individuais e colectivos. Os indivíduos não se limitam a receber e processar informação, são também construtores de significados e teorizam a realidade social» (2000: 457). O estudo das representações sociais caracteriza-se por uma grande pluralidade temática. Vala (2000) agrupou as principais questões analisadas pela literatura nesta área nas categorias seguintes: a inscrição social e a natureza social das representações sociais; os conteúdos e a organização interna das representações sociais; a função social e a eficácia social das representações sociais; e o estatuto epistemológico das representações sociais. Na opinião de Jodelet, as representações sociais são fenómenos complexos, permanente activados na vida social, constituindo-se de elementos informativos, cognitivos, ideológicos e normativos (1989: 36). Na mesma linha de ideias, Vala refere que «o conceito de representação social remete para fenómenos psicossociais complexos. A riqueza destes fenómenos torna difícil a construção de um conceito que, simultaneamente, os delimites e não esbata a sua multidimensionalidade» (2000: 464). Têm sido propostas inúmeras definições conceptuais das representações sociais, recortando-as em dimensões e aspectos específicos. Tais definições incluem na maioria dos casos conceitos de âmbito psicológico ou psicossociológico (por exemplo, atribuição, crença, atitude, esquema, opinião, etc.) e conceitos de âmbito sociológico ou antropológico tão ou mais vastos do que o próprio conceito de representação (por exemplo, ideologia, cultura, habitus, sistema de valores, etc.), relativamente aos quais o conceito de representação social «con-

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fere novas acuidades e suscita a procura de novas pontes articuladoras do velho binómio indivíduo-sociedade» (Vala, 2000: 465). Segundo Moscovici (1961), na formação das representações sociais intervêm dois processos: a objectivação e a ancoragem. Estes processos estão intrinsecamente ligados um ao outro e são modelados por factores sociais. A objectivação corresponde ao processo de organização dos elementos constituintes da representação e ao percurso através do qual tais elementos adquirem materialidade, isto é, são vistos como uma realidade natural. O processo de objectivação envolve três etapas: construção selectiva, esquematização estruturante e naturalização. Na primeira etapa, as informações e as crenças acerca do objecto da representação sofrem um processo de selecção e descontextualização, permitindo a formação de um todo relativamente coerente, em que apenas uma parte da informação disponível é retida. Este processo de selecção e reorganização dos elementos da representação não é neutro ou aleatório, dependendo das normas e dos valores grupais assim como do contexto cultural. A segunda etapa da objectivação corresponde à organização dos elementos. Moscovici recorre aos conceitos de esquema e nó figurativo para evocar o facto dos elementos da representação estabelecerem entre si um padrão de relações estruturadas. A última etapa da objectivação é a naturalização. Os conceitos retidos no nó figurativo e as respectivas relações constituem-se como categorias naturais, isto é, os conceitos tornam-se equivalentes à realidade e o abstracto torna-se concreto através da sua expressão em imagens e metáforas. O processo de personificação consiste em materializar num nome ou num rosto uma determinada ideia (por exemplo, Gandhi como símbolo de luta pacífica ou Einstein como símbolo de genialidade). A figuração diz respeito ao processo através do qual as imagens e metáforas substituem conceitos complexos. Na acepção de Wagner, Elejabarrieta e Lahnteiner (1995), a difusão de

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uma nova ideia num dado grupo depende da sua figuração em imagens e metáforas que transmitam o essencial do seu conteúdo de uma forma compatível com o quadro de valores desse grupo. O processo de ancoragem, por um lado, precede a objectivação e, por outro, situa-se na sua sequência. Enquanto processo que precede a objectivação, a ancoragem refere-se ao facto de qualquer tratamento da informação exigir pontos de referência: é a partir das experiências e dos esquemas já estabelecidos que o objecto da representação é pensado. Neste contexto, a ancoragem refere-se aos processos pelos quais o não-familiar se torna familiar. Enquanto processo que segue a objectivação, a ancoragem referese à função social das representações, ou seja, refere-se aos processos pelos quais uma representação, uma vez constituída, se torna um organizador das relações sociais. Isto é, a ancoragem permite compreender a forma como os elementos representados contribuem para exprimir e constituir as relações sociais (Moscovici, 1961). A ancoragem serve à instrumentalização do saber conferindo-lhe um valor funcional para a interpretação e a gestão do ambiente (Jodelet, 1989). Vala refere que o conceito de ancoragem tem algumas afinidades com o conceito de categorização: ambos funcionam como estabilizadores do meio e como redutores de novas aprendizagens. No entanto, na opinião do autor, o processo de ancoragem é mais complexo visto que a ancoragem leva à produção de transformações nas representações já constituídas, isto é, «o processo de ancoragem é, a um tempo, um processo de redução do novo ao velho e reelaboração do velho tornando-o novo» (2000: 475). Os processos de objectivação e ancoragem servem para nos familiarizar com o “novo”, primeiro colocando-o num quadro de referência, onde pode ser comparado e interpretado, e depois reproduzindo-o e colocando-o sob controlo (Moscovici, 1981: 192). As dinâmicas de objectivação e de ancoragem são aparentemente opostas: «uma visa criar verdades evidentes para todos e indepen-

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dentes do determinismo social e psicológico enquanto a outra remete para a intervenção de tais determinismos na sua génese e transformação. Por esse motivo os estudos sobre representações sociais não devem apenas inventariar os “saberes comuns”, devem também estudar as modelações em função da sua imbricação específica num dado sistema de regulação simbólica» (Doise, Clémence e Lorenzi-Cioldi, 1992: 15). Desde o início dos anos oitenta, numerosos estudos têm sido realizados sobre a estrutura das representações. Na opinião de Doise (1992), estes estudos permitem reduzir consideravelmente a incerteza relativa às fronteiras entre os elementos constituintes e não constituintes das representações sociais. Flament (1989) considera que o núcleo central de uma representação corresponde a uma estrutura que dá coerência e sentido à representação. À volta do núcleo central, e organizados por este, encontram-se os elementos periféricos, que conferem flexibilidade a uma dada representação. Numerosos estudos têm demonstrado que um dado grupo social pode ter práticas em desacordo com as suas representações. Na opinião de Flament (1989), estes desacordos inscrevem-se nos esquemas periféricos que se modificam protegendo durante algum tempo o núcleo central. Com o tempo, as contradições entre a realidade e a representação podem vir a alterar o próprio núcleo duro da representação, o que corresponde a uma mudança estrutural que dá origem a uma nova representação. Doise (1992) considera que a significação de uma representação está sempre ancorada nas significações mais gerais que intervêm nas relações simbólicas próprias de um determinado campo social. Este autor colocou a análise das representações sociais no quadro das relações intergrupais, salientando a mútua determinação entre estes dois fenómenos. Como Moscovici (1961) já tinha salientado, se a especificidade da situação de cada grupo social contribui para a especificidade das

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suas representações, a especificidade das representações contribui, por sua vez, para a diferenciação dos grupos sociais. Nos seus trabalhos, Doise (1976, 1984) tem ilustrado de modo claro como a dinâmica das relações entre grupos conduz a modificações adaptativas nas representações e à atribuição ao outro grupo de características que permitem o desencadeamento de comportamentos discriminatórios e a sua justificação. Mas as representações também imprimem direcção às relações intergrupais: previamente à interacção, cada grupo dispõe já de um sistema de representações que lhe permite antecipar os comportamentos do outro e programar a sua própria estratégia de acção. Na acepção de Doise, as representações assumem um lugar central nas relações intergrupais, desempenhando três tipos de funções: selecção, justificação e antecipação. A função selectiva traduz-se numa centralidade dos conteúdos relevantes para as relações intergrupais, relativamente aos conteúdos irrelevantes. A função justificativa revela-se nos conteúdos das representações que veiculam uma imagem do outro grupo que justifica um comportamento hostil em relação a ele e/ou a sua posição desfavorável no contexto da interacção. Por último, a função antecipatória manifesta-se na influência que as representações exercem no próprio desenvolvimento da relação entre os grupos: as representações não se limitam a seguir o desenvolvimento das relações intergrupais, adaptando-se a ele, mas também intervêm na determinação deste desenvolvimento, antecipando-o activamente (1976-84: 105). Assim, por um lado, as representações estruturam-se de acordo com as estratégias grupais e, por outro, as representações servem e justificam os comportamentos grupais, isto é, as representações sociais têm uma função de justificação antecipada e/ou retrospectiva das interacções sociais.

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Investigar representações sociais: metodologias e níveis de análise

3. Metodologias e níveis de análise Actualmente o estudo das representações ”” constitui uma tradição de pesquisa diversificada e em plena evolução. A investigação em representações sociais está bem consolidada como tradição de pesquisa na Europa e na América Latina e recentemente estabeleceu-se como área de pesquisa na América do Norte, Ásia, Oceânia e África. Na opinião de diversos autores, o conceito de representação social surge como reunificador das ciências sociais: situado na interface entre o psicológico e o social, o conceito oferece inúmeras possibilidades de articulação entre a psicologia, a sociologia e as ciências vizinhas. Como afirma Jodelet, «Esta multiplicidade de relações com as disciplinas vizinhas confere ao estudo psicossociológico da representação um estatuto transversal que interpela os vários campos de pesquisa, não uma simples justaposição, mas uma real articulação dos seus pontos de vista. É nessa transversalidade que reside uma das contribuições mais promissoras deste domínio» (1989: 40-41). Hoje em dia, o conceito de representação social é utilizado em diversas ciências humanas e sociais (psicologia, sociologia, antropologia, história, linguística, geografia, ciências políticas, estudos literários, etc.), sendo aplicado no estudo de questões muito diversas (ambiente, justiça, saúde, discriminação social, relações internacionais, etc.), constituindo um campo de investigação vivo e dinâmico. No que diz respeito às metodologias, Moscovici (1988: 238) salienta: «a nossa estratégia tem sido sempre combinar abordagens mais flexíveis com abordagens mais estruturadas, de modo que a preocupação com o rigor não submerja o interesse heurístico». Moscovici refere que o objectivo desta área de estudos é compreender «o que as pessoas fazem na vida real e em situações significativas. Para alcançar este objectivo, devemos confiar mais na criatividade dos investigadores do que em procedimentos bem estabelecidos» (1988: 239). A sua reserva inicial face a métodos de pesquisa mais rígidos deveu-se ao

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facto de querer evitar «qualquer tipo de exactidão prematura» (1988: 239) que inibisse a criatividade dos investigadores. O autor pretendia um distanciamento face à Psicologia Social mainstream na época, que utilizava quase exclusivamente o método experimental. Como refere Spink, «Já vivemos, na Psicologia Social, a “era do método único”. Aquilo que chamamos de “Psicologia Social NorteAmericana” formatou-se a partir do ideal do método experimental que definia, então, o grau de cientificismo da cada disciplina» (2003: 9). Nas últimas décadas verificou-se um incremento considerável do número e diversidade de investigações sobre as representações sociais, tendo-se registado progressos notáveis ao nível metodológico. O rompimento com a Psicologia Social normal continua a constituir um desafio considerável e de elevado potencial. A Psicologia Social Crítica, por exemplo, conduziu a uma aproximação entre a Psicologia Social e os Estudos Culturais. Hoje em dia, a Psicologia Social (especialmente a Psicologia Social Crítica) é uma das disciplinas científicas que se enquadra no seio dos Estudos Culturais, que constituem uma área interdisciplinar por excelência, ou como alguns referem, pós-disciplinar, uma vez que se tornou clara a necessidade de ter em conta não uma simples articulação de disciplinas, mas uma verdadeira “bricolage” na qual as diferentes disciplinas se mesclam (e.g., Guareschi e Bruschi, 2003). Na acepção de Guareschi, Medeiros e Bruschi (2003), o conceito de cultura é imprescindível para a Psicologia Social, já que esta estuda as intersecções entre os indivíduos, os grupos sociais, as estruturas sociais, a história e a cultura. Doise (1982) distinguiu quatro níveis de análise no seio da Psicologia Social e sublinhou a necessidade da criação de modelos integrados do comportamento social, que abarcassem esses diversos níveis de análise. No nível intrapessoal estão incluídos os modelos que descrevem o modo como os indivíduos organizam a sua percepção, avaliação e

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comportamento em relação ao meio social em que se inserem. Estes modelos focalizam-se nos mecanismos internos que permitem ao indivíduo organizar as suas experiências, descurando a interacção entre o indivíduo e ambiente social. No nível interpessoal ou situacional encontram-se os modelos que descrevem o modo como os indivíduos interagem numa dada situação, não tomando em consideração as diferentes posições que estes ocupam fora dessa situação (os seus grupos de pertença e de referência), isto é, frequentemente as posições dos indivíduos são consideradas como intermutáveis e simétricas. O nível posicional integra os modelos que recorrem explicitamente às diferentes posições ou estatutos sociais que os indivíduos ocupam previamente a qualquer interacção para explicar as diferentes modalidades de interacção. Finalmente, o nível ideológico integra os modelos que descrevem o modo como as representações e os comportamentos dos indivíduos, numa dada situação, são modelados pelos sistemas de valores, crenças e ideologias dominantes num dado contexto cultural. Na opinião de Doise (1984), o estudo das representações sociais abarca diferentes níveis de análise e beneficia da sua articulação. Ora, segundo o autor, é precisamente o trabalho de articulação de níveis de análise que constitui o objecto próprio da psicologia social. O conceito de representação social tem permitido fazer a ponte não só entre várias áreas dentro da psicologia social, mas também entre as diversas ciências sociais e humanas. A pesquisa em representações sociais apresenta um carácter fundamental e aplicado e faz apelo a metodologias variadas: observação participante, estudos de campo, entrevistas, grupos focais, técnicas de associação livre de palavras, inquéritos por questionário, análise de documentos e de discursos; experimentação no laboratório e no terreno; etc. Nenhuma metodologia por si só é suficiente para investigar estes complexos fenómenos. Moscovici salientou a importância

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do “politeísmo metodológico” no estudo das representações sociais. Na mesma linha de ideias, diversos autores têm salientado a necessidade de triangulação de diferentes tipos de metodologias de recolha e de tratamento de dados (e.g. Cabecinhas, 2007; Oliveira, 2008), uma vez que cada uma apresenta potencialidades e limites específicos. Doise, Clémence e Lorenzi-Cioldi (1992), numa publicação sobre as metodologias de investigação, oferecem análises bastante detalhadas sobre os laços privilegiados que existem entre os métodos de análise dos dados e os objectos teóricos no estudo das representações sociais. Na acepção dos autores, um problema importante nos estudos sobre as representações sociais é que a sua matéria-prima é constituída por recolhas de opinião e de atitudes individuais, sendo necessário reconstituir os princípios organizadores comuns aos conjuntos de indivíduos. Esta tarefa exige o recurso a diferentes técnicas de análises de dados. Um dos aspectos que caracteriza a pesquisa em representações sociais é o facto de não privilegiar nenhum método de pesquisa específico. Trata-se de uma tradição de pesquisa muito heterogénea e não prescritiva no que respeito à metodologia. No entanto, alguns autores privilegiam os estudos de terreno em detrimento dos estudos de laboratório. Farr (1992 : 185) argumenta: «As representações sociais, pela sua natureza, devem estar situadas na cultura e na sociedade e não dentro do laboratório. Elas devem ser observadas “in situ”, isto é no terreno». Na opinião do autor, as representações sociais não podem ser estudadas num “vazio” cultural e temporal. Como já referimos, inicialmente os teóricos das representações sociais afastaram-se do laboratório como forma de demarcação face à pesquisa dominante em cognição social, que negligenciava completamente o contexto ideológico e cultural envolvente, isto é, considerava os processos cognitivos, despidos de emoção e num vacuum social (Tajfel, 1972), estudando os indivíduos “fechados” no laboratório. Actualmente, uma vez consolidada essa demarcação face à Psi-

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cologia Social tradicional, o método experimental, é considerado como um método de pesquisa pertinente no estudo das representações sociais, não como “método único e obrigatório”, mas como um dos métodos disponíveis para estudar fenómenos complexos, em conjugação com outros métodos. Frequentemente, as pesquisas seguem um percurso cíclico: num primeiro momento são especialmente úteis metodologias mais abertas (observação, entrevistas, associação livre de palavras, etc.), seguidamente são usadas metodologias mais estruturadas que permitem aprofundar determinado aspecto da problemática em análise (inquérito por questionário, experimentação em laboratório), e, num último momento, os investigadores recorrem novamente a metodologias menos estruturadas no sentido de encontrar possíveis respostas para aspectos que ficaram por esclarecer com as metodologias anteriores ou novas questões entretanto levantadas (por exemplo, os grupos focais constituem uma metodologia muito útil, quer nas fases iniciais quer nas fases derradeiras de uma determinada investigação). A comparação dos resultados convergentes e divergentes obtidos através de diversas metodologias permite averiguar as dimensões estruturantes de uma dada problemática e confere maior segurança ao trabalho interpretativo dos investigadores. No entanto, convém não esquecer que por mais completo e sofisticado que seja o programa de pesquisa delineado, os resultados serão sempre contingentes a um determinado momento histórico e contexto cultural específico. A pesquisa em representações sociais veio tornar clara a necessidade de se considerar o contexto histórico e social no qual a ciência é produzida. Como refere Sousa Santos (2001), toda a ciência é “datada e localizada”, e esse aspecto é de suma importância na interpretação dos dados recolhidos. Nesse sentido, os estudos comparativos afiguram-se como particularmente relevantes, pois permitem a confronto dos dados obtidos “aqui e agora” com os obtidos em outros momentos históricos ou em

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contextos culturais distintos. No entanto, os estudos comparativos levantam questões delicadas de “tradução” cultural, já que a linguagem, os conceitos e as grelhas de análise dos investigadores não podem ser simplesmente extrapolados acriticamente de um contexto para outro. Esse é um dos grandes desafios com que se defrontam actualmente os investigadores na área dos estudos culturais.

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Linguagem e culturas: o papel da Sociolinguística Joaquim Barbosa1

1. Introdução Se percorrermos a história da reflexão humana sobre a linguagem, sempre a veremos ligada a aspectos sociais. Como lembram Boyer & Prieur (1996:56), “La langue, tissu vivant du lien social, participe dans sa structure même du jeu de forces qui, pour le meilleur ou le pire, l’unifient et le désagrègent.”. Todavia, apesar do seu papel fundamental na interacção humana, a reflexão sobre a linguagem não é comum nos estudos sociais e culturais. Talvez porque, como lembra Steven Pinker, “the ability [of language] comes so naturally that we are apt to forget what a miracle it is. ” (Pinker, 1994:15). A língua que falamos é, simultaneamente, um produto cultural e um instrumento de cultura. Um produto cultural, porque é, em grande parte, o resultado da evolução de uma determinada comunidade linguística; instrumento de cultura, porque serve a comunidade que a usa e porque a forma como é usada influencia e determina a forma de desenvolvimento da mesma comunidade. Seja-me permitido usar a metáfora do jogo de xadrez utilizada por Saussure (Saussure, 1986), para falar da língua. Ao olhar para o tabuleiro num determinado momento do jogo, sabemos que esse momento é o resultado de uma série de mo(vi)mentos anteriores, momentos que 1

Centro de Linguística da Universidade do Porto [email protected] A investigação para este trabalho teve o apoio da Fundação para a Ciência e Tecnologia através do Projecto POCTI/CED/60786/2004 (Memórias do Trabalho: Processos de construção de uma identidade operária).

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podemos tentar reproduzir, porque sabemos a forma como cada peça se move no tabuleiro, porque conhecemos as regras do jogo. E porque as conhecemos, também podemos tentar calcular como se vão movimentar a seguir. Ainda que o número de combinações seja, em alguns momentos do jogo, extraordinariamente elevado, podemos apontar algumas delas e, pelo menos, apontar com segurança os movimentos impossíveis. De qualquer modo, sabemos que diferentes movimentos de uma das cores provocam diferentes respostas da outra. A língua que falamos é o resultado de muitos estádios anteriores que se foram sucedendo diacronicamente, estádios linguísticos que corresponderam a estádios sociais e culturais de quem a usou antes de nós; mas é também um instrumento, porque o uso que dela fazemos tem influência no estádio sociocultural a que pertencemos. Por isso me parece estranho o alheamento que referi. Ainda percebo que o estudo diacrónico da língua tenha pouca atenção, mas o seu papel na sociedade não deveria, penso, ser igno-rado, porque a linguagem não pode ser encarada apenas como um instrumento transparente, neutro, de que nos servimos. A forma como a utilizamos e o modo como a tratamos têm consequências, tal como a forma de um machado e o modo como o usamos para cortar uma árvore têm como consequência um corte mais ou menos perfeito, um desperdício maior ou menor de lenha e um maior ou menor esforço para conseguir obter o resultado pretendido. Veremos mais adiante como problemas sociais ou socioculturais graves podem ter origem em diferenças linguísticas ou no desprezo dessas diferenças. Sendo a fala uma marca identitária de cada ser humano, o conhecimento do outro tem de passar necessariamente pelo conhecimento da importância da sua língua, do seu dialecto2. 2

Por dialecto, entende-se uma variedade regional de uma língua. Dizemos que a realização de /b/inho, ou f/ei/ra pertencem aos dialectos do norte, enquanto /v/inho ou f/ai/ra, pertence ao dialecto da Estremadura e f/ê/ra pertence ao dialecto alentejano. Já agora, o Mirandês não é um dialecto do Português, mas uma língua distinta do Português.

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Por outro lado, sendo a língua o instrumento com que modelamos o mundo, línguas diferentes, ou mesmo dialectos diferentes, são formas diferentes de ver o mundo, são o espelho de diferentes culturas. Com frequência, as políticas educativas e culturais ignoram que o multilinguismo, na sala de aula, por exemplo, não significa apenas a presença de línguas diferentes mas sim, e sobretudo, a presença de culturas diferentes. Contrariando a corrente dominante, quiseram os organizadores deste Seminário dedicado à Metodologia da Investigação em Cultura introduzir no debate a questão da linguagem. É com prazer que registo o facto e com prazer que aproveito esta oportunidade dada aos Estudos Linguísticos para, primeiro, introduzir alguma reflexão acerca das relações entre a linguagem e o homem como ser cultural e, depois, falar da disciplina cientifica – a Sociolinguística – que tem como objecto estudar o modo como a linguagem e a sociedade se influenciam mutuamente.3 Começarei por, na secção seguinte falar de algumas das visões da linguagem manifestadas pelo homem ao longo dos tempos. Mostrarei a seguir como o desejo de melhor conhecer a linguagem, esta faculdade tão característica da espécie humana, conduziu ao nascimento da linguística como disciplina científica; e como, pela necessidade metodológica de isolar um objecto de estudo, o uso efectivo da língua na interacção humana foi um pouco esquecido em favor da análise do sistema, abstracto, da língua. Falarei da sociolinguística, das suas origens, dos seus métodos e dos seus campos de actuação, na quarta secção, voltando, na quinta, à ‘divisão’ entre a investigação linguística ‘pura’ e a linguística aplicada para responder à questão: pode haver uma linguística separada do uso da linguagem? 3

Embora corresponda, no essencial, à comunicação apresentada no Seminário, o texto deste artigo vai enriquecido pela reflexão suscitada pelo debate que então teve lugar. A todos os intervenientes, e à organização do Encontro, o meu reconhecimento.

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2. O Homem e a Linguagem No prefácio de The Language Instinct (Pinker, 1994), Steven Pinker afirma que nunca encontrou uma pessoa que não estivesse interessada na linguagem. O interesse pela fala, “este fenómeno simultaneamente tão natural e tão estranho”, como lhe chama Herculano de Carvalho (Carvalho, 1983:1), parece, de facto, percorrer todos os povos e todos os tempos. “Nunca encontraremos o homem separado da linguagem”, afirma Emile Benveniste, “e nunca o veremos inventando-a. [...] O que encontraremos no mundo é um homem falando, um homem falando a outro homem, e é a própria linguagem que ensina a definição do homem”, acrescentando, mais adiante, que “é na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem funda realmente na sua realidade, que é a do ser, o conceito de ego” (Benveniste, 1976:50), um eu que só se afirma na presença de um tu, com quem se confronta. “Quem fala” diz Óscar Lopes nessa magnifica oração de sapiência que é As Mãos e o Espírito, “nunca está absolutamente só, visto que pensa – e pensar, à maneira humana pelo menos, é atingir o mundo material através de um mundo de sinais sensoriais e verbais de que os nossos semelhantes comparticipam” (Lopes, 1958/2007:39). 2.1 Os registos escritos Os registos escritos que até nós chegaram mostram que nenhuma das culturas conhecidas se deixou de preocupar com questões ligadas à linguagem, fosse por razões de ordem filosófica relacionadas com a sua origem e natureza, fosse por razões de ordem prática. Por outro lado, os estudos antropológicos e etnográficos mostram-nos a importância da fala em sociedades ou culturas que não nos legaram registos escritos. Dos gregos antigos, que “tinham o dom de se admirarem com coisas que outras pessoas tomam como garantidas” (Bloomfield,

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1933:4), chegaram-nos as primeiras reflexões filosóficas sobre a natureza e a origem da linguagem – questões que continuam a preocupar-nos vinte e cinco séculos depois – produzidas, possivelmente, a partir do século V a.C., com Protágoras, e claramente inscritas no Crátilo, de Platão, séculos V-IV a.C., e em algumas das obras de Aristóteles, século IV a.C.. Dos gregos, sobretudo com a Lógica e a Retórica de Aristóteles, chegou-nos também a notícia de reflexão sobre a linguagem com preocupações de ordem mais prática, como são as de reconhecer e produzir raciocínios correctos, na Lógica, ou de ordenar o discurso de forma a ganhar as discussões na Ágora de Atenas, na Retórica. Com objectivos práticos podemos, de certo modo, considerar a descrição do Sânscrito feita, dois ou três séculos antes da reflexão grega, pelo sacerdote hindu Panini, século VI ou VII a.C.. Esta descrição – a Gramática de Panini, como ficou conhecida –, que visava descrever a forma de pronunciar correctamente a língua sagrada para que as orações surtissem efeito, ainda hoje é considerada como uma das mais conseguidas descrições fonológicas de uma língua. Objectivos práticos teriam também as descrições médicas de problemas da fala provocadas por lesões cerebrais encontradas num papiro egípcio de cerca de 1700 a.C.. 2.2 Os Mitos As referências à linguagem aparecem também em livros sagrados, independentemente da especulação filosófica sobre a sua origem ou da sua utilização prática. Nas religiões do Livro, a linguagem aparece como figura principal do princípio dos tempos. No Génesis, a Criação é descrita quase como um acto de fala: “E disse Deus: Haja luz. E houve luz. E Deus chamou a luz dia, e as trevas chamou noite: e foi a tarde e a manhã, o dia primeiro” (Gén. I, 3-5)4. Nesta passagem 4

Na tradução de João Ferreira Annes d’Almeida, de 1681, a primeira tradução da Bíblia em português.

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estão patentes o poder transformador, transfigurador, da fala –“e houve luz” – e, simultaneamente, uma das primeiras funções da linguagem: a de modelizar, de dar forma, nomeando-o, ao mundo – “E Deus chamou a luz dia, e as trevas chamou noite” – Este fazer-dizendo e dando nome às coisas feitas continua até ao fim do sexto dia da Criação. A confirmação do papel da palavra na Criação é confirmada num dos últimos livros da Bíblia, o Evangelho de S. João, onde a palavra é identificada com o próprio Criador: No princípio era a Palavra, e a Palavra estava a par de Deus, e a Palavra era Deus. Esta estava no princípio a par de Deus. Por esta foram feitas todas as coisas, e sem ela se não fez coisa nenhuma do que feito foi. Nela estava a vida, e a vida era a luz dos homens. (João I, 1-4) A importância da linguagem, agora como elemento agregador/desagregador, aparece de novo no episódio da Torre de Babel, onde o facto de todos os homens falarem a mesma língua se torna uma ameaça. E era toda a terra de uma mesma língua e de uma mesma fala. […] E disseram: Eia, edifiquemos nós uma cidade e uma torre, cujo cume toque nos céus, e façamo-nos um nome para que não sejamos espalhados sobre a face de toda a terra. Então desceu o Senhor para ver a cidade e a torre que os filhos dos homens edificaram; E disse: Eis que o povo é um, e todos têm a mesma língua; e isto é o que começam a fazer; e agora, não haverá restrição para tudo o que intentarem fazer. Eia, desçamos, e confundamos ali a sua língua, para que não entenda um a língua de outro. […] Por isso se chamou seu nome Babel, porquanto ali confundiu o Senhor a língua de toda a terra, e dali os espargiu o Senhor sobre a face de toda a terra. (Gen. XI, 1-9)

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A restituição da língua comum acontece no Pentecostes, embora só para os discípulos de Jesus, e é assim descrita nos Actos dos Apóstolos: “E foram todos cheios do Espírito Santo e começaram a falar em outras línguas como o Espírito Santo lhes dava que falassem. [… ] E feita esta voz, ajuntou-se a multidão; e estava confusa, porque cada um os ouvia falar na sua própria língua.” (At. II, 4-6). Num comentário mais desenvolvido ao Génesis, Umberto Eco (Eco, 1996:23 ss) dá conta dos esforços para encontrar ou (re)construir a língua perfeita – a língua adâmica, a língua de Adão, criada por Deus no Jardim do Paraíso – e mostra como este mito é transversal a várias culturas. Ao contrário do que acontece nos textos da Bíblia, em que a fala aparece como força criadora, no Popol Vuh, o Livro do Conselho, um dos poucos registos escritos que da civilização Maia nos chegou, a linguagem aparece referida como uma propriedade inata dos homens: havendo os Criadores criado todas as aves e animais ordenaram-lhes: “Falai segundo a vossa espécie e diferença; louvai o nosso nome; dizei que somos Pais e Mães. Falai, invocai-nos!”. Mas os animais e as aves não o puderam fazer “e desta sorte o ultraje lhes cobriu o corpo; e assim são mortos e comidos todos os animais da terra.” (Popol Vuh: 7-8) Foi só ao fim de várias tentativas que conseguiram criar o homem com a faculdade da linguagem para que pudesse invocar os seus Criadores, como se o homem não pudesse ser criado sem linguagem. É curioso pensar na semelhança desta descrição com as concepções modernas que consideram a linguagem como uma faculdade inata do Homem, ou mesmo, como Pinker (Pinker, 1994), um instinto. 2.3 O Testemunho da Antropologia Os antropólogos que a partir do século XIX procuravam “um objecto susceptível de ser estudado e que permitisse, em princípio, o acesso à cultura de uma sociedade “primitiva”“ (Kristeva, 1969:67) descobriram que podiam melhorar o seu conhecimento acerca das

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sociedades consideradas selvagens analisando a linguagem e a consciência que delas têm os seus falantes e registaram informações extremamente úteis para a investigação linguística e para o conhecimento da cultura dos povos estudados. Júlia Kristeva (Kristeva, 1969: 67ss) dá conta dessas investigações. Referirei apenas alguns casos para salientar a importância social da fala. Em alguns povos, a ideia da importância da fala na vida social é tão forte que frequentemente fala é sinónimo de acção ou obra, o resultado da acção. Os Bambara (Sudão) consideram a fala como um elemento físico, tal como o ar, a água, a terra e o fogo. Para este povo, os órgãos da fala são a cabeça, o coração, a bexiga, os órgãos sexuais, a traqueia, a garganta, a boca – língua dentes, lábios, saliva – em que cada elemento tem um papel específico na produção da fala. Falar é fazer sair elementos do corpo, como dar à luz, por exemplo. Para eles, “o elemento linguístico é tão material como o corpo que o produz” (Kristeva, 1969:76). Para que a fala seja sensata, os órgãos que a produzem são preparados de forma especial: tatuagens nos lábios e dentes limados, por exemplo. Também para os Dogons (Niger), os diversos elementos da fala estão difusos pelo corpo, sobretudo na forma de água. “Quando o homem fala, o verbo sai sob a forma de vapor, visto que a água da fala foi aquecida pelo coração” (Kristeva, 1969:77). Em geral, para a grande maioria dos povos então descritos, a linguagem é algo que se identifica com o próprio corpo ou com as coisas nomeadas. Essa é uma das razões para as palavras tabu: o nome dos mortos, por exemplo. Este tabu permanece em fórmulas ainda usadas entre nós como a minha falecida, o meu falecido para evitar dizer o nome do familiar falecido ou sequer pronunciar o grau de parentesco, marido ou mulher, geralmente. Na comunidade cigana é tabu, quase insultuoso, pronunciar o nome dos mortos ou o seu grau de parentesco com os vivos. E não é verdade que continuamos a evitar certas palavras, ou mesmo a bater na madeira, quando as ouvimos? Por que

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teimam os órgãos de comunicação social em dizer: morreu de doença prolongada em vez de dar o nome, cancro, à doença? Será que conseguimos separar completamente o nome da coisa nomeada? O que todos estes mitos sobre a linguagem nos revelam é a preocupação do homem em tentar explicar uma faculdade que não existe em mais nenhum animal. A importância da linguagem é tal que em alguns povos banto uma criança só se torna muntu, pessoa, quando aprende a falar uma língua; até aí é apenas kintu, coisa. Compare-se com a afirmação de Benveniste, já referida: “é na e pela linguagem que o homem se constitui como sujeito; porque só a linguagem funda realmente na sua realidade, que é a de ser, o conceito de ego” (Benveniste, 1976:50). Resumirei considerando, com Óscar Lopes, que “Através dos milénios, a linguagem tornar-se-á um tão importante instrumento, que, quando a criança começa hoje a falar, aprende ao mesmo tempo, sem que a gente dê por isso, toda uma maneira de conceber o mundo” (Lopes, 1958/2007: 33) e que “A análise do pensamento e da linguagem mostra-nos [...] que o ser humano é ainda mais profundamente social do que parece à primeira vista.” (Lopes, 1958/2007:38). Mas sendo tão clara e tão sentida, segundo os diversos testemunhos que nos chegaram, a ligação da linguagem à sociedade, qual a necessidade de uma disciplina chamada sociolinguística, cujo nome, como lembrava Labov, “implies that can be a successful linguistic theory or practice which is not social.” (Labov, 1997:23)?

3. O Estudo das Línguas Até ao século XVIII, e desde a Grécia antiga, o estudo das línguas incidiu sobretudo sobre a gramática, encarada fundamentalmente como um instrumento normativo, como a forma de usar ‘correctamente’ a língua. Ainda hoje dizemos dar pontapés na gramática. Pa-

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ralelamente foi-se desenvolvendo uma outra corrente, filológica, hermenêutica, com o objectivo de interpretar, comentar e fixar os textos antigos, na literatura, na história ou na diplomática. Em qualquer destas correntes, o objecto de análise era o texto escrito; a fala, o uso da língua na interacção verbal, estava fora das suas preocupações. Nos fins do século XVIII, a verificação de correspondências entre línguas como o latim, o grego, o germânico e o sânscrito, conduzidas por William Jones (1746-1794) e, mais tarde, por Franz Bopp (17911867), levou à conclusão de que tais correspondências não poderiam ser coincidências e, consequentemente, à hipótese da existência de uma língua-mãe comum: o chamado Indo-Europeu. Iniciava-se, assim, um novo ciclo no estudo das línguas, o do comparativismo, onde a análise das mudanças fonológicas era, é, essencial. De Franz Bopp, diz Saussure que “foi ele quem compreendeu que essas relações [entre o sânscrito, o grego, o latim e o germânico] podiam ser matéria para uma ciência autónoma. Ver uma língua à luz de outra, explicar as formas de uma pelas formas da outra, eis o que não tinha ainda sido feito” (Saussure, 1986:22/23). Todavia, a escola iniciada por Bopp “que teve o mérito incontestável de abrir um campo novo e fecundo, não soube tornar-se na verdadeira ciência linguística. Ela nunca se preocupou com descobrir a natureza do seu objecto de estudo. Ora, sem esta operação elementar uma ciência é incapaz de encontrar um método.” (Saussure, 1986: 25) A língua, distinta da fala, é um objecto que se pode estudar separadamente. Já não falamos as línguas mortas, mas podemos muito bem assimilar o seu organismo linguístico. A ciência da língua não só pode passar sem os outros elementos da linguagem como exige, para poder funcionar, que eles não entrem nos seus domínios. (Saussure, 1986:42) Quando Ferdinand de Saussure inicia a investigação sistemática da linguagem humana, tem de escolher entre a parole, a fala, individual,

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sujeita à interferência de imensos factores não controláveis, e a langue, a língua, o sistema abstracto que é partilhado num determinado momento por toda uma comunidade linguística e que todos compreendem. Opta pela langue, pois só assim, isolando-a das variações decorrentes do seu uso, consegue isolar um objecto específico, condição sine qua non para ser ciência. Momento dramático este, porque […] o acto de considerar a linguagem como um objecto específico de conhecimento – implica que ela deixe de ser um exercício que se ignora a si próprio para se pôr a “falar as suas próprias leis”: digamos que “uma fala se põe a falar o falado”. Este retorno paradoxal descola o sujeito falante (o homem) daquilo que o constitui (a linguagem), e obriga-o a dizer o modo como diz. Momento com várias consequências, a primeira das quais é permitir ao homem não se considerar já como uma identidade soberana e indecomponível, mas analisar-se como um sistema falante – uma linguagem. (Kristeva, 1969:14) A ideia saussuriana da língua como estrutura – um sistema em que cada elemento é definido pelas relações de equivalência ou de oposição que mantém com os restantes elementos – tornava a língua num objecto autónomo que podia ser estudado por si mesmo, independentemente da mudança e da variação. O conceito de estrutura viria a ser utilizado por Claude Levi-Strauss nos estudos antropológicos alargando-se depois a outros ramos do conhecimento. A autonomia do sistema linguístico sairia reforçada a partir de meados do século XX com os trabalhos de Noam Chomski, sobretudo a partir da publicação de Syntactic Structures (Chomsky, 1957). Ainda que a dicotomia saussuriana língua-fala esteja próxima da dicotomia chomskiana competência-performance, a formulação que lhe está subjacente é distinta. Para Chomsky, qualquer falante adulto de qualquer língua possui um conjunto de conhecimentos – uma gramática – que

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lhe permite produzir e compreender um conjunto indefinido de frases nunca antes ouvidas ou produzidas. A este conhecimento, adquirido de forma inconsciente a partir dos primeiros contactos com a sua língua materna, Chomsky dá o nome de competência. Ao uso que o falante faz da sua língua nos actos de fala concretos é dado o nome de performance. “Para Chomsky”, diz Nicolas Ruwet, […] uma teoria da competência é uma teoria das frases de uma língua […] não tem de se ocupar com o papel que o contexto - seja ele linguístico ou de situação – desempenha na produção ou na compreensão efectiva das frases; limita-se ao estudo das frases isoladas, e a teoria do contexto faz parte da teoria da performance.” (Ruwet e Chomsky, 1966:18) Em resumo, não sendo este o tempo ou o local para tentar descrever a revolução iniciada por Noam Chomsky no conhecimento da linguagem humana, penso ter conseguido mostrar que o caminho para a autonomia da linguística como ciência, ou a forma como esse caminho foi percorrido, parece tê-la afastado da fala concreta.

4. A Sociolinguística A abordagem ge(ne)rativista da linguagem – assim chamada por, simplificando, prever a existência de regras formais capazes de gerar um número indefinido de frases bem formadas –, que se tornou dominante a partir dos anos sessenta, passou, de facto, a dar mais atenção às investigações sobre a faculdade da linguagem e ao desenvolvimento de modelos formais do seu funcionamento. Generative grammarians have largely ignored the problem of variation, with a few notable exceptions and exclude all competing data

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except that drawn from their ‘dialect’: that is, their own judgments about sentences. (Labov, 1975:13-14) Todavia isto não impediu que outras abordagens da linguagem e das línguas se desenvolvessem. William Labov considera que embora algumas das diferenças entre linguistas sobre esta questão sejam de ordem retórica, “others seem to be real differences in working strategy” (Labov, 1975:5), acrescentando que “the general program of all linguists begins with the search of invariance” (Labov, 1975:7). Contudo, a busca da invariância implica entender e definir com clareza o que é e não é variação. 4.1 A variação linguística Todas as línguas variam no tempo e no espaço. Possivelmente não precisaríamos de sair da sala onde decorreu este seminário para verificar a existência de variedades linguísticas ligadas à região de origem dos presentes ou mesmo variedades ligadas à sua idade. Encontraríamos variação não só na pronúncia – /v/inho, /b/inho5, por exemplo – ou no léxico que usamos – café/bica, cimbalino/italiana. Reconhecemos facilmente os nossos colegas brasileiros, sobretudo pela abertura das vogais, mas também pelo léxico utilizado, e até, com alguma atenção, pela construção frásica, pelo uso mais frequente do pronome pessoal sujeito nas formas verbais. Apertando a nossa busca encontraríamos entre nós diferentes realizações de alguns fonemas do Português: para alguns, como eu, o /r/ de rato é velar, para outros será apical; é possível até que estivesse alguém que realize de forma diferente o /s/ de con/s/elho e de con/c/elho, marcando uma origem beirã, onde ainda aparecem vestígios de um sistema de seis fricativas que existiu no português até há pouco tempo e que dá origem à caricatura de ‘Vi/j/eu’, ainda que a fricativa produzida pelos beirões não seja, de facto, /j/. 5

Para evitar a utilização de símbolos fonéticos uso as barras (/) para indicar o som, e não a grafia, das vogais ou consoantes assim assinaladas.

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Estas diferenças não prejudicam, em geral, a comunicação, mas algumas delas darão informações acerca da nossa formação cultural, da nossa origem social, regional, nacional, etc.. Speech is socially emblematic in the sense that speakers by their choice of words, manner of pronunciation, and other stylistics features identify with others with whom they share social characteristics, such as socioeconomic status, occupation, and education, but also place of residence, age, gender, and ethnicity. (Coulmas, 2001: 567) George Bernard Shaw, cuja reflexão sobre a língua inglesa, sobretudo sobre a escrita da língua inglesa, é bem conhecida, trata bem o papel identitário da língua em Pygmalion, que conta a história de um professor de fonética que tenta transformar uma florista numa Lady. Na adaptação cinematográfica, que, tal como o musical, recebeu o título de My Fair Lady, a cena da corrida de cavalos em que Eliza Doolitle – que já veste como uma senhora, come como uma senhora e fala como um senhora – entusiasmada com a corrida solta um sonoro “Mexe-me esse cu, sua pileca!”6, mostra bem como a língua que falamos é tão identificadora como a cor dos olhos: nunca a podemos mudar completamente. A existência de uma relação entre a fala e a origem social ou geográfica dos falantes é reconhecida desde há muito. No caso do Português, aparece já descrito na Grammatica da lingoagem portuguesa, de Fernão Oliveira, a nossa primeira gramática, publicada em 1536. [...] E porém todas elas [as falas] ou são gerais a todos, como Deus, pão, vinho, céu e terra, ou são particulares e esta particularidade

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Tradução mais ou menos livre de “C’mon horsie, move yer arse!

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ou se faz entre ofícios e tratos, como os cavaleiros que têm uns vocábulos e os lavradores que têm outros [...], Ou também se faz em terras esta particularidade, porque os da Beira têm umas falas e os do Alentejo outras, e os homens da Estremadura são diferentes dos de Entre Douro e Minho, porque, assim como os tempos, assim também as terras criam diversas condições e conceitos. (Oliveira, 1536: cap. XXXVIII Apenas mais dois casos ilustrativos da variação no Português, descritos por Ana Maria Martins (Martins, 2003)7 i) Em 1845, no seu Código de Bom Tom (ou Regras de Civilidade e de Bem Viver no XIXº Século), José Inácio Roquete dizia que “É muito frequente entre a gente ordinária de Lisboa mudar o /e/ em /a/ nalgumas palavras: dizem p/a/nha, l/a/nha por p/e/nha, l/e/nha”. Menos de uma geração mais tarde Gonçalves Viana dizia, no seu ensaio de fonética e fonologia da língua portuguesa, de 1883, que toda a gente em Lisboa fala assim e só “algum caturra velho” conserva a pronúncia antiga. Actualmente, o Dicionário da Academia das Ciências regista as pronúncias cer/a/ja, l/a/nha, co/a/lho, p/a/nha como pertencentes à norma padrão do português. ii) Em 1671, João Franco Barreto na Ortografia da língua portuguesa, dizia que “por ignorância” ou “por a língua os não ajudar” os “rústicos” do sul “pronunciam barbaramente” /x/ave, /x/apeo, /x/umbo, em vez de /tch/ave, /tch/apeu, /tch/umbo; em 1739, João de Morais Madureira Feijó, na sua Orthographia ou arte de escrever e pronunciar com acerto a língua portugueza, ainda refere o “abuso de pronunciação” dos oriundos de Lisboa, que trocam o ch por x; mas 7 (sete) anos mais tarde, 1746, Luís António Verney afirma, no Verdadeiro método de estudar, que deve preferir-se a pronúncia dos mais 7

Por simplicidade, não localizo com rigor cada uma das citações que se seguem. O texto integral, que se recomenda, está disponível em http://www.clul.ul.pt/ equipa/ana_martins.php , Jan./2009).

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cultos e que falam bem na Estremadura, e esses pronunciam o ch docemente como um x. 4.2 O campo da Sociolinguística Uma das definições actuais de sociolinguística diz que “Sociolinguistics is the empirical study of how language is used in society.” (Coulmas, 2001:563). Esta definição é, contudo, redutora na medida em que perde a interacção, a mútua influência, entre língua e sociedade. Num trabalho sobre a unidade da sociolinguística, Labov começa por perguntar se há questões específicas da sociolinguística, aceitando que uma das mais comuns abordagens define esta disciplina como a intersecção da sociologia com a linguística, “all the ways in which social factors influence language and linguistic factors influence society” (Labov, 1977b:5) ou “the investigation of linguistic structure and change on the basis of data drawn from the use on language in every-day-life” (Labov, 1977b:5), ou seja, o objecto da sociolinguística não é apenas o estudo da forma como a língua(gem) é usada na sociedade, mas também as implicações que a língua tem na estrutura social e que a sociedade tem na estrutura da língua. Para William Bright, The sociolinguist’s task is then to show the systematic covariance of linguistic structure and social structure – and perhaps even to show a causal relationship in one direction or the other. […] One of the major tasks of sociolinguistics is to show that such variation or diversity is not in fact “free”, but is correlated with systematic social differences. In this and in still larger ways, linguistic DIVERSITY is precisely the subject matter of sociolinguistics. (Bright, 1966:11) Numa das investigações fundadores da sociolinguística, realizada para a sua tese de mestrado, em 1963, William Labov mostrou que as

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mudanças que estavam a verificar-se na realização de alguns ditongos do dialecto inglês falado na pequena ilha atlântica de Martha’s Vineyard, Massachusetts, estavam directamente relacionadas com a idade, o sexo, e a atitude dos locais perante os veraneantes ‘invasores’. A ilha era habitada por descendentes de portugueses, índios, ingleses e, no tempo das férias, por veraneantes. Em The social stratification of English in New York City, Labov (1966) mostrou que as classes trabalhadores tinham tendência para pronunciar as consoantes iniciais de palavras iniciadas por th – then, this, there, etc. – como um /d/ alveolar, próximo do /d/ de delta, por exemplo, enquanto os falantes das classes médias o pronunciavam como dental, seguindo a norma padrão. Ou seja, a divisão linguística correspondia à divisão de classe: os colarinhos—brancos aproximavam-se da norma; os colarinhos-azuis (do fato—macaco) afastavam-se. Num estudo muito recente, Sociolinguistic analysis of final /s/ in Miami Cuban Spanish, a publicar num dos próximos números de Language Sciences, Andrew Lynch, (Lynch, 2008), compara a fala de imigrantes cubanos que chegaram a Miami já adultos nos anos sessenta e setenta do século passado com a fala de jovens nascidos em Miami cujos avós chegaram a Miami antes de 1980. Lynch verifica que nos jovens parece não se verificar o abrandamento do /s/ final, ao contrário do que está a acontecer dialectos espanhóis das Caraíbas. This finding is attributed principally to the social need of the Miamiborn grandchildren of early exile Cubans to differentiate their speech from that of later Cuban immigrant groups, mostly for political and ideological reasons. The influence of gender and the impact of Spanish language fluency among the young generation are considered, as is the role of language internal factors. (Lynch, 2008:16) Os aspectos políticos e ideológicos nunca estiveram muito afastados das investigações sociolinguísticos.

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[…] sociolinguistics combines an interest in linguistic structures with the recognition that examining the societal dimensions of language requires interpretative methods allowing us to understand how language is reflective of social processes and relationships and what it contributes to making society work as it does. (Coulmas, 2001:564) Labov (1977b: 7 ss) afirma mesmo que o reconhecimento da existência de problemas sociais decorrentes de questões linguísticas, problemas tão sérios que ameaçavam a existência das próprias sociedades em que ocorreram, foi um dos factores motivadores da disciplina. Vou referir apenas dois casos ilustrativos: a Índia e o Canadá. Quando o governo indiano decidiu lançar um programa para tornar o Hindi – uma língua da família indo-europeia, a que pertence o português – língua oficial do Estado, o facto motivou violentas reacções dos falantes das cerca de setenta línguas da família dravídica. A presença de línguas vernáculas regionais em confronto com uma língua padrão diferente, aliada à presença no ensino superior da língua colonial, o Inglês, e à complexa estrutura social Hindu, tornou-se um campo excelente para a investigação sociolinguística. A necessidade de compreender o fenómeno do multilinguismo e a atitude dos falantes perante a língua foi, como lembra Labov (1977b:7) um forte estímulo para a investigação sociolinguística e para o apoio que lhe foi dado, primeiro pelo Governo Indiano e, mais tarde, pela Fundação Ford. Também no Quebec, nos anos setenta, a questão linguística ameaçou a unidade do Canadá devido à rivalidade entre os falantes das duas línguas oficiais: o francês, dos primeiros colonos, e o inglês, economicamente mais poderoso. Alguns de nós talvez ainda se lembrem do discurso do então presidente da República Francesa, o general De Gaulle, na Exposição Mundial de Montreal, em 1967, que terminou com “Vive le Quebec Libre! Vive le Canada français! Vive la France!”. Os estudos sociolinguísticos então realizados no sentido

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de encontrar os caminhos para a convivência linguística são considerados por Labov “Perhaps the most spectacular advance in our studies of sociolinguistics variation” (Labov, 1977b:11). O papel da investigação sociolinguística na procura de soluções para problemas culturais e políticos está relatado numa das obras mais marcantes da sociolinguística, Language in the Inner City: Studies in the Black English Vernacular (Labov, 1977a), que dá conta da investigação levada a cabo por vários investigadores, brancos e negros, numa tentativa para encontrar a origem dos problemas de escrita, que eram “dolorosamente óbvios” nas escolas da cidade de Nova Iorque. Os investigadores procuravam saber se as diferenças dialectais tinham alguma coisa a ver com o problema. One major conclusion of our work as it emerges in this volume is that the major causes of reading failure are political and cultural conflicts in classroom, and dialect differences are important because they are symbols of this conflict. We must then understand the way in which the vernacular culture uses language and how verbal skills develop in this culture. (Labov, 1977a: xiv) As conclusões apontadas por Labov poderiam, possivelmente, aplicar-se a algumas das nossas escolas, sobretudo na periferia da capital onde a existência de turmas multiculturais, multiétnicas e multilingues são uma realidade. A ideia de que o conhecimento dos problemas pode conduzir à sua resolução tem acompanhado as práticas e as teorias no campo da sociolinguística, numa atitude quase de um activismo militante, como admitia Norbet Dittmar num trabalho em que pretendia apresentar aos leitores alemães o estado da investigação e da teoria em sociolinguística. In the last decade sociolinguistics has become a powerful factor in promoting emancipation. Attempts have been and are being made

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to attenuate conflicts in schools and to remove the obvious inequality of opportunity of broad sections of the working classes and peripheral social groups by systematically exposing the connection between speech forms and class structure, and by application of the insights gained to specified social contexts. (Dittmar, 1977:1) Estão nesta linha as investigações no quadro da Análise Crítica do Discurso desenvolvida, nomeadamente, por Fairclough, (1989; 1995), van Dijk, (1997; 1998), e Ruth Wodak (Wodak et al., 1999 e Wodak & Meyer, 2001), que assumem a existência de uma relação dialéctica entre certas práticas sociais – como abuso do poder, dominação e discriminação de género, etnia, etc. – e o discurso, que pode servir de instrumento de reprodução ou de resistência a tais práticas. Um dos objectivos da Análise Crítica do Discurso, diz Emília Pedro, […] é o de analisar e revelar o papel do discurso na (re)produção da dominação. Dominação entendida como o exercício do poder social por elites, instituições ou grupos, que resulta em desigualdade social, onde estão incluídas a desigualdade política, a desigualdade cultural e a que deriva da diferenciação e discriminação de classe, de raça, de sexo e de características étnicas. Especificamente, os analistas críticos do discurso querem saber quais as estruturas, estratégias ou outras propriedades do texto, falado ou escrito, da interacção verbal, ou de acontecimentos comunicativos em geral, que desempenham um papel nestes modos de reprodução. (Pedro, 1997:25) Neste quadro teórico, considera-se que uma investigação dissidente deve tomar posição explícita no sentido de tentar compreender, mostrar e, até, resistir às desigualdades sociais.

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5. Linguística e sociolinguística Antes de concluir, quero abordar brevemente uma questão que foi colocada no debate: pode haver investigação linguística sem ligação ao social? A minha resposta é: pode e deve. A divisão entre investigação pura e aplicação pode parecer estranha em linguística pelo facto, já referido, de a linguagem ser para os humanos algo adquirido e ser considerada essencialmente um instrumento de comunicação indissociável da interacção humana. Todavia, nem a linguagem é apenas um instrumento de comunicação – a investigação na área das ciências cognitivas e na neuropsicologia tem investigado o seu papel na formação do conhecimento e da memória, por exemplo – nem esta divisão é exclusiva das ciências da linguagem. Consideremos a biologia, por exemplo. Charles Darwin conseguiu formular uma teoria extraordinária da evolução da vida na terra a partir da observação dos seres vivos e da sua capacidade de reflexão. Todavia, foi preciso que alguns investigadores se fechassem em laboratórios assépticos para que fosse possível chegar ao Ácido Desoxirribonucleico (ADN), a chave de instruções, o código genético individual, de cada ser vivo. E isto não prejudicou em nada o conhecimento biológico nem a sua aplicação aos seres concretos. Se é verdade que a necessidade epistemológica de isolar um objecto autónomo e um método de análise conduziu a algum afastamento do estudo da linguagem em funcionamento na interacção verbal humana, também é verdade que investigação autónoma do funcionamento da linguagem e os diversos modelos formais desse funcionamento que têm sido desenvolvidos permitem compreender melhor o uso da linguagem; por sua vez, as investigações sociológicas têm dado luz sobre alguma investigação autónoma. Os investigadores têm muitas vezes de ‘forçar’ os dados empíricos, de usar as suas intuições – método criticado por algumas cor-

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rentes, como vimos – para perceber o funcionamento da língua ou o conhecimento linguístico das falantes. A conhecida frase “colourless green ideas sleep furiously”, de Chomsky, mostrou que a análise estrutural pode ser separada da análise semântica. De facto, a construção está correcta do ponto de vista da organização sintáctica do inglês, mas não é aceitável, porque não faz sentido, porque se contradiz a si mesma. Seria possível encontrar um exemplo assim na interacção verbal corrente? Não me parece, como não me parece que fosse possível encontrar a ‘frase’ “Os tovos niradavam minsicamente as trolas da miradana”, que, inspirado na Alice do outro lado do espelho, de Lewis Carrol, costumo usar para iniciar os meus alunos no conceito de conhecimento linguístico. Quando lhes apresento esta construção e lhes pergunto se pode constituir uma frase do português ficam, em geral, hesitantes. Há sempre um ou outro que pergunta se aquelas palavras existem mesmo em português. Todavia, quando troco a ordem das ‘palavras’, para, por exemplo, “Os niradavam minsicamente tovos as trolas da miradana”, ninguém tem dúvidas: isto não pode ser português! As reacções repetem-se quando exploramos algumas das 40320 combinações que aquelas 8 ‘palavras’ permitem.8 Ao anular, pelo menos parcialmente9, a variável significado, as intuições só trabalham os padrões de ordem previstos em português, as combinações possíveis, as combinações proibídas. Retirando o significado, impede-se o uso, mas não se impedem as intuições, o que permite colocar a questão da origem do conhecimento linguístico e, como consta do programa generativista, interrogarmo-nos se o que descobrimos acerca do funcionamento da linguagem não será aplicável a outros aspectos do conhecimento humano. 8 9

8! (8 factorial) = 8x7x6x5x4x3x2x1=40320 Porque não consigo anular o significado de alguns dos morfemas que constituem as ‘palavras’ e participam na formação do seu significado, como, por exemplo, o {S} final, que significa plural ; ou o {VA} e o {M}, da forma verbal, que referem, respectivamente, passado imperfeito e terceira pessoa do plural.

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Resumindo, diria que não há mal em que a investigação linguística ´pura’, não considere, por razões metodológicas, a linguística aplicada. O que poderá ser errado é os investigadores laboratoriais desconhecerem a prática, tal como será errado, penso, que os investigadores do ADN desconheçam a História Natural.

6. Conclusão Pretendi neste trabalho aproveitar a oportunidade que neste seminário sobre Metodologia da Investigação em Cultura me foi dada para i) manifestar o meu estranhamento por as questões da linguagem andarem arredadas dos estudos culturais e ii) apresentar a disciplina científica que estuda a interacção entre sociedade e a linguagem. Ao apresentar a sociolinguística e alguns dos problemas que pretende analisar, julgo ter mostrado que “a linguagem está não só efectivamente envolvida na produção e reprodução de outras práticas sociais, mas é ela própria produzida e reproduzida por práticas linguísticas, bem como por outras práticas e categorias sociais.” (Kress, 1977:55). Por isso – porque a língua ou a variedade da língua que falamos nos caracteriza e nos integra num determinado grupo social, tal como qualquer outra marca cultural; e porque, por sua vez, o grupo social em que estamos integrados influencia a língua ou a variedade da língua que falamos –, julgo que a investigação no campo, já interdisciplinar, dos Estudos Culturais sairia enriquecida com a inclusão da reflexão sobre o papel da linguagem e que, consequentemente, a investigação linguística por certo beneficiaria com os dados empíricos recolhidos nesta interacção.

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Research topics and methodologies in film studies Anthony Barker1

Although film art has been with us for over 110 years, film studies have only been in the academy for a relatively short time. Here I’m referring to the analytic study of film as a cultural product in universities rather than the distinguished work carried out in film schools, which offer both a theoretical and a practical training for people hoping to work in the various national film industries. Film studies would have started up in the wealthier countries, those with more established film industries, around 50 years ago, have consolidated themselves as independent departments 30-40 years ago and begun to attract large numbers of students during the enthusiasm for Media Studies which began around 25-30 years ago. In less well-funded and more academically conservative educational systems, film studies will have only begun to break through 20 years ago, and often in the face of considerable resistance. The traditionalist’s argument against film studies taking its place in the academy, held in the teeth of evidence that there is great popular demand for study programmes and courses in this domain, is the same one which impeded the establishment of mother tongue/vernacular literature courses at the end of the nineteenth century. This is what we might call the Philology Fallacy: that only things which are difficult, linguistic in character, often foreign and decently dead are deserving of serious study. When my own University, Oxford, finally adopted courses in English over a hundred years ago, it made sure that the degree was called “English Language and Literature”, that it was made up mainly of the obligatory 1

Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro – Portugal.

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philological study of Anglo-Saxon and Middle English (essentially dead and different languages from modern English) and that, for study purposes, all literature stopped in 1832. When I was a student there in the mid-1970s, literature had managed to creep forward into the twentieth-century but still came to rest in 1945. What of course is at issue here is not the utility or even the complexity of the object of study but its well-known capacity for giving pleasure. Pleasure is something that the academy has always been deeply suspicious of. English literary studies were dismissed by their opponents as “chat about Harriet”2, as if the field were little more than gossip and incapable of any analytical or methodological rigour. All these suspicions were reawakened when film studies came knocking on the university’s door, only with two serious aggravating additions. Film had such a short history that it did not need to be exhumed from an unfamiliar past and it required no hard philological grind to come to grips with it. It was like the poet Philip Larkin’s ironic prediction in “High Windows” of “everyone young going down the long slide to happiness, endlessly” (Larkin, 1974: 17). It should create no surprise therefore that it was resisted. Once on the fringes of the academy, thinking and writing about film had to make itself respectable as quickly as possible. This was no easy matter for a debate has raged ever since the invention of cinema about its nature as an art and what kind of art form it most closely resembles. A narrative art like prose fiction, a pictorial art like painting/composition, a performance art like drama, or something more akin to opera because of its use of accompanying music? Or perhaps its origins in photography make it technological in character and the2

Harriet Shelley, née Westbrook, was the first wife of the poet Percy Shelley. Shortly after the poet deserted her to elope with Mary Godwin, the future author of Frankenstein, she threw herself in the Serpentine in London and drowned herself. Citation of the incident is intended to encapsulate all that is sensational and unscientific about literary studies.

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refore perhaps not an art at all? This stimulating contemplation of the hybridity of cinema was all very well but it flew in the face of the academy’s love of established domains, tight boundaries and agreed methodologies. There was an additional problem as well, not unrelated with the above issue of hostility to recent or non-canonical literature. Cinema has been (not exclusively but to very considerable degree) a highly commercialised and mass popular mode of expression in the 20th century. As big business, it was in no particular hurry to make a claim for itself as art. These claims had been made earlier on behalf of distinguished individual film-makers but only began to be made on behalf of all cinema in France in the 1950s, thereafter forming the basis for film studies’ pretension to a place in the academy. As I have suggested, it was not difficult for the writers, critics, film-makers and intellectuals of Cahiers du Cinema to make a case for the acknowledged European masters of film art from the first half of the century, but they went further and attempted to recognise talent (and even genius) as it prospered in the commercial cinema, even or especially under the American factory-like Studio System. In order to do this, Truffault and his collaborators developed the idea of the film director as an auteur, as a man (invariably a man) who “writes” his film using his camera as his pen. The leading American advocate of this strategy was Andrew Sarris, in his book The American Cinema: Directors and Directions 1929-1968. The analogy to literary creation was full of almost wilful misrepresentation, if for no other reason than because nearly every film had its own writer (or team of writers) and that person or persons was rarely the director. Nevertheless, the analogy was necessary and immensely influential because it offered a paradigm for research which could be accepted by people not engaged in film studies. As soon as you try to apply it, you come up against the essentially collaborative nature of film making, with its division of responsibilities into different crafts at nearly every level above that of the simple home-movie or the most rudimentary of documentaries.

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Contrasted with the complexity of creation predicated on dozens of different technical and artistic functions, pretending that a film was “written” by its director was a reassuringly straightforward way to represent a critical approach to understanding film. So, to simplify, film studies established itself upon the basis of a persuasive but erroneous analogy, and then proceeded to branch out into more promising areas. This is not to say that key individual figures in the film-making process do not continue to exert an irresistible appeal for scholars, or that the director does not still remains the most recognised and valued of creative figures. The first serious challenge to traditional ways of practicing film analysis came from the Humanities’ most palpably ‘scientific’ field, Linguistics, and which led to the revolution of thinking about film pioneered by structuralists and semioticians in the late 60s and early 70s. These scholars were quick to proclaim that all that had gone before was evaluative “film criticism,” the totalising assumptions of which were unfounded and the methods deployed little more sophisticated than the old “belle lettres” approach. Film theory was rapidly in the ascendant, and influential general theorists like Roland Barthes and Umberto Eco, as well as film specialists like Christian Metz, began to generate the new paradigms upon the basis of which a thorough-going analysis of film signification could be practised. At the same time, a further group of empiricists led by David Bordwell and Kristen Thompson sought to establish the ‘grammar” of various bodies of film art through detailed structural analysis of an extensive corpus of films. These were intellectually turbulent years but Dudley Andrew (1984: 9) has neatly synthesised the situation when he writes that: The film theory born in the world of humanities has been one based on the efficacy and import of “metaphors” about the film phenomenon. Since metaphors are more readily generated than are computerized analyses of audience questionnaires or minute

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descriptions of hundreds of obscure films, the discourse of film theory is destined to remain in this literary world. Perhaps the three most potent metaphors remain those of the frame (from painting, where all within is composed by the artist), the window (from documentary film-making, where the camera is turned neutrally upon the external world) and, more recently, the mirror (from psychology, where meaning is generated in the act of reception, in the minds of spectators). Andrew also explains the neglect of and hostility towards empirical studies and social science methodologies by many cultural theorists, whose dependence on models of ‘the unconscious’ has licensed a tradition of theory that is “virtually self-sufficient”. Towards the end of the 1970s, Media Studies began to establish itself in the newer universities and polytechnics of the west. Film had always had an uneasy positioning between traditional literature and culture fields on the one hand and recently emerged branches in the social sciences on the other. Research in cinema, radio and TV naturally appealed to sociology because these were all near-contemporary mass cultural forms and therefore had an active and palpable role in new and measurable forms of social interaction and representation. In particular, the establishment of the interdisciplinary fields of media studies and communications studies offered the prospect of a more ready acceptance of cinema, itself a non-traditional performance medium like television, unlike the easier-to-accommodate field of theatre studies. The meeting ground between traditional humanities approaches and social science methods is the new Cultural Studies field, where scholarship of an avowedly literary bent embraced the ideas of the socially-engaged left, and began to analyse film from the point of view of the various dominant and resistant ideologies of social classes and racial and sexual groupings. Cultural studies, with its materialist emphasis, could also bring something new to the table because structuralism and semiotics, while enlarging our capacity to ex-

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plain the how and the what of film art, had been notably less successful in explaining the why. They had not succeeded in dispensing with the need for a historical and commercial context. So in the 1990s, and naturally enough in relation to cinema of the earlier part of the century, historicism made something of a comeback. Film analysts, in their virtual lab coats, were simply found to not know enough about the different contexts in which films came to signify, and how that signification had modified over time. Another important way in which the field changed was in the principles of selection governing which films were to get onto the syllabus and become the objects of study. As I suggested above, interest in the classic auteurs of film art (and their modern analogues) was carried on up to the end of the 1970s and beyond in tandem with an emerging interest in genre cinema. Genres were of particular interest to cultural studies theorists because they seem to come into being in response to a zeitgeist (certain genres are more popular -hence more ubiquitous- at certain times) and out of an unwritten contract between mass producers and mass consumers. Their forms and meanings are in a constant state of negotiation. They also neatly mirror industrial norms of production. A film is not a product like a model of car or a burger: it cannot be wholly standardised (no film can be exactly like the one it follows in the cinema), yet standardisation is a desired end of industrial economics. The familiarity which genre identity brings to product is useful at the marketing stage, especially after the early 1980s when publicity and release costs came to match or even exceed production costs. It also benefits audiences, who are no longer the multigenerational mass market of the 1930s and 1940s which went to the cinema once or twice a week irrespective of what was on. In a world of ever greater competition for the “entertainment dollar,” precise discrimination of cultural products is an advantage. It is not just that “sci-fi” is a brand; so too are “Martin Scorsese” and “Leonardo di Caprio.” This is why a film industry, which once tried

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to deny creative talent any kind of public identity (Florence Lawrence was famously known as ‘The Biograph Girl’ for many years to prevent her from becoming what she eventually did become, the first film star) is now happy to emblazon both film posters and credits with banner lines such as “A Martin Scorsese Film.” Film studies departments are now a broad church, and often function in conjunction with modern languages departments, teaching courses for those departments in specific target cultures. In these cases, the focus is largely on the classics and the contemporary scene. In film degree courses, there has been a shift of emphasis away from the films people ought to want to see to the films they do want to see. Because many of these are formulaic, the subject has increasingly concerned itself with the commercial determinants of production, the processes of signification and the politics of representation in such films. Some of the most dynamic specialisations of film studies, certainly the most productive in terms of book-length studies, have accordingly been those which have been from a feminist, postcolonial and gender orientation perspective. One of the consequences of this (one might argue) new hegemony of thought is that film makers have become very much attuned to what the academy is saying about them. Even a film-maker like Quentin Tarantino, who began producing work soaked in genre violence, wit and machismo, has released a film, Deathproof (2007), which slaughters lightly-clad young women in awareness of and due deference to the feminist writings of critics like E. Ann Kaplan (1983), Tania Modleski (1988) and Carol Clover (1992). Immediately after the slaughter stops, the film is reprised with the male malefactor hunted down and killed by his potential victims. In other words, academic opinion is being fed back into the film-making process, and not merely, as in the past, in response to negative critical reviewing or adverse market forces. A good example of a methodology in operation in film studies which is perhaps not as frequently deployed elsewhere in the huma-

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nities is that of attempting to understand film through the history of emerging technologies. There is of course some form of technology at work in any given art form (production of the paperback book, for example, or drama moving indoors to customised theatres with curtains, artificial lighting and stage machinery, etc), and that technology, like the economic system that gave life to it, will find some kind of representation in the emerging art form itself. Such is the case with the steam-powered presses producing the novels of Thomas Hardy in which apparently timeless 1840s characters watch the milk they have gathered into churns that morning be transported up to the city on steam-powered trains puffing through the countryside. Film, in contrast, has a more direct relationship with technology, since it is totally predicated on machinery to give it form. This has a consequence in the film industry to the extent that the ability to do something frequently dictates that it is done. The phrase “state of the art effects” might have been invented to describe this imperative. The film Titanic (1997), for example, has seen a vast amount of printer’s ink flow about it but very little of it has concerned itself with the film as narrative or art. Instead it has dealt with the construction of special docks in Mexico for the filming, the building of large-scale detailed models of the ship, the funding bail-out of 20th Century Fox by Paramount, stoppages in production caused by technical problems, and polemical casting decisions. Even after completion, when the film went on to break all box-office records, there was still a tendency to dwell upon costs, as if a film so expensive had to be a moral embarrassment. As one critic remarked, without adjusting for inflation, the film cost six times as much to make as the actual ship, The Titanic. As early as 1989, the film’s director James Cameron had been one of the first to introduce CGI into feature-film production, with his film The Abyss. Computer generated imaging has been the single biggest innovation in cinema since the addition of sound in 1927. It has transformed an industry based on ever more sophisticated systems of moving photography

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into one where photography is just one of the battery of image-reproduction techniques available to the movie maker. And in films like The Polar Express (2004) and the recent Beowulf (2008), live-action figures have been wholly substituted by digital versions of the actors, who have now become mostly providers of disembodied voices. If technology had and still has an enormous impact on the aesthetic development of film art, commerce has had an enormous impact on how that technology is developed and implemented. VHS was not a better video-tape recording system than Betamax, but it won out as a world-wide system because of the industrial interests arrayed behind it and the way they marshalled their resources to campaign for the system. VHS was the cheaper system and it prevailed. A similar format war is taking place between Blu-Ray and HD DVD, and it appears that Blu-Ray, the more expensive system, is on the verge of victory. These two instance show that there are no immutable laws of survival of the fittest at work here – technologies come into being, and prosper or wither, according to economic contexts. If there is a principle to be relied upon, it is that media businesses abhor nonstandardisation. Film studies students have to school themselves in the realities of good business practice. Another interesting and dynamic area of film studies is the investigation of the viewing experience itself. Partly this interest has been covered by the sizeable presence of psychology and psychological theory in film analysis. Various schools of psychology and psycho-analysis are thought to be uniquely placed to illuminate film texts. For example, Freudian and Lacanian interpretations of Jane Campion’s The Piano (1993) vie for our attention and Jungian theories of a collective unconscious are often invoked to explain how we can have shared reactions to and reach shared interpretations of popular movies. In another sense, however, just as the fragmentation of the television industry from its origins in free-to-all terrestrial broadcasting into satellite, cable, pay-per-view and internet download has

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transformed the way entertainment and news is consumed, so the film viewing experience has been changed by the various delivery systems available to film consumers. In the 1950s cinema resented television with its small monochrome screen and did all it could to prevent the appearance of films in that medium. Now feature films are made with more than half an eye to their post-theatrical afterlives. Once the Cinemascope and Vistavision systems ravished the eye with broad effects: now young directors are encouraged to concentrate the action centre-frame for fear that anything towards the margins will be cut off by adaptive pan-and-scan re-editings and reframings for TV screens. Similarly, theatrical release presupposed levels of concentration and continuous viewing on the part of audiences which may now no longer be the case. Films have faster, catchier editing styles now because, it is argued, audience attention is harder to hold. The average shot length of a film like Spartacus (1960), calculated by dividing the total length of the film by the total number of shots in the film, is nearly eight seconds. The ASL of Gladiator (2000) is just over three seconds, dropping to significantly lower values than this for fight sequences (King, 2002: 245-6). Thus the way an image is composed in the frame, what that image is, and how long we are allowed to see it is often influenced and sometimes determined by the intended delivery system of the film. As I mentioned before, the return of historicism has been a boon for many film researchers, particularly here in Portugal. In the last part of my paper I would like to write about not what can be done or what should be done in film studies but was is being done in film studies in Portugal. My particular perspective on the subject is that of a teacher and scholar of film as part of the wider spectrum of Anglophone cultures. The many postgraduate students I have had the privilege of working with since 1995, when film studies became a significant part of the English Masters programme in the University of Aveiro (it had been a 5th year licenciatura seminar for much longer than this, since 1987),

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with a handful of exceptions have not been natives of English-speaking countries. They have therefore tended to approach the subject in the first instance as enthusiastic amateurs, not always very well versed in the social realities and contexts out of which their chosen objects of study came. For them, neither a very sociologically grounded nor a very structuralist approach seemed feasible. They neither knew the target culture very well, nor had privileged access to primary research resources in the countries in question. Equally, few had the specialised background and training in the kinds of rigorous analysis that, for example, film semioticians might want to see practised. Finally, we are constantly being told that young people today are visually perspicacious in a way that older generations are not (an argument adduced to make educationalists feel better about declining habits of extensive reading). If this is indeed the case, then they are largely self-taught for one finds very little attention to visual education in the programmes of schools and universities (other than those of schools and departments of Belles Artes). This is reflected in a certain reluctance on the part of young film researchers to take on visual or compositional analysis and a clear preference for the discussion of narrative strategies. Or, to put it another way, they are more comfortable with an art form measurable in conventions of time than one that achieves complex effects of and in space. A cultural studies approach would therefore seem to be the most userfriendly alternative, especially as it might serve as a general set of tools for unpacking film genres or investigating specific historical periods or social issues. So, to conclude, I propose to look at the kinds of subject or topic that students have elected to work upon, as an indication of the platform upon which future postgraduate research projects here can be based. I naturally do not speak for the whole of European or world cinema (although it is worth saying that film research is most likely to be found going on within different language fields as an adjunct to the study of national cultures rather than as an independent field, the study of film art in its own right and for its own sake).

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Casting my eye over dissertations completed during the last 12 years, I find that the old traditional categories still exercise sway over students’ choices. Those students who began with an interest in a film genre have felt more comfortable dealing exclusively with the work of a single acknowledged master in that area. Thus the student interested in the crime thriller wrote on Alfred Hitchcock and the art of murder, the student interested in film comedy wrote on art and autobiography in the films of Woody Allen and the student interested in science fiction wrote on the 1950s sci-fi films of Jack Arnold (such works as It Came from Outer Space, The Creature from the Black Lagoon, Tarantula and The Incredible Shrinking Man). Generally, such an approach enabled the students to focus on a more limited and homogeneous sub-set of films, often from a well-defined historical period and reflecting only an aspect of the auteur’s range or craft. In most cases, interpretation of the finished films was guided by the presumed intentions of their directors and an assumption that their personal concerns were able to resonate through the collective creative process. Most critics would agree that Hitchcock and Allen had that kind of personal control; the argument was harder to make for an auteur in a popular genre form like low-budget science fiction. Even more anchored in the way culture is generally taught in Portugal, a number of students opted for the subject of adaptation for the cinema, relying on their prior training and knowledge in literary studies. In these cases, the auteur was usually an established figure from the world of letters and the thesis consisted of either comparing how two or more filmmakers had adapted the same literary original at different times, or how two or more different literary works by the same author had been adapted for different audiences at different times. Henry James, Agatha Christie, Stephen King and Shakespeare, for example, have all been selected for this type of analysis. In both types of endeavour, historical period and the prevailing attitudes of the times left a heavy imprint on the film adaptations in question,

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and perhaps those historical shifts in taste and cultural value, as well as the practical constraints under which film adaptations are made, became the real subjects of the theses. Another thesis analysed the Beckett on Film project, which looked to adapt the entire works of Samuel Beckett for the medium of film. In this case, we have a project based upon a policy of subsidy and of Irish national and cultural selfpromotion; in many ways the why of the project superseding its how and what elements. In one case, the same work was not only adapted at different times but also for different expressive media. Jonathan Swift’s Gulliver’s Travels, for example, was originally made in a feature cartoon form in 1939, then in stop-motion animatronics in the 1950s then made for television by Hallmark using CGI in the 1990s. This is as much as to say that although the choice of literary originals might seem conservative, the comparison of different types of films made at different times is fraught with complexity. Needless to say, no one in these circumstances is allowed to fall back on simplistic criteria of fidelity in dealing with these processes. Where cultural studies methodologies come into their own is in respect of thematic treatments of film topics. In all those areas where theory tells us questions of identity largely have to do with processes of ideological construction over time, the diverse methodologies of cultural studies can be usefully deployed. Two research students have successfully completed theses on Irish cinema, one on the representation of “the Troubles” in the north, the other on selected aspect of history and social change in the Irish Republic since 1922. Both theses have had to wrestle with a highly politicised, complex and contested national cinema, often invoking historical events rendered in ways which have been the object of much controversy and polarisation. Another student concentrated on the representation of the Japanese in western film culture, beginning with some very crude stereotypical images from the early twentieth century and carrying the argument forward with more sensitive recent (but some would say still patro-

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nising and reductive) representations, like those of The Last Samurai (2003) and Memoirs of a Geisha (2005). In other projects, however, new critical perspectives on the construction of masculinity are available to the researcher from feminist and gender studies. One student looked at the representation of fatherhood in films of the late 1980s and early 1990s, in the light of statistics about the increasingly fragmented nature of the American family. Parenthood (1989), Falling Down (1993) and A Perfect World (1993) were the main films analysed but a battery of twenty or so other films from the period 1985-95 were also used. Another student looked The Silence of the Lambs (1990) and Cape Fear (1991) as imaginative studies in family dysfunctionality. Another student compared the formation and inflection of iconic images of masculinity in the roles of John Wayne, James Stewart and Clint Eastwood in western movies. Perhaps it is not the central issue but it is nevertheless the case that film narratives and constructions of gender can have unintended ramifications in the real world, as they arguably had in the case of the film The Matrix (1999) and the Columbine school shootings. Because there are no simple and linear correspondences between the world of representation and possible effects, methodologies have to be very supple and wide-ranging to deal with these topics. Perhaps owing to my own interest in formalist issues, a number of students were encouraged to look at technical aspects of film. Two students have worked on film noir, exploring its symbols, systems of signification and shifting genre features (notably in the emergence of something called neo-noir and most conspicuously in the transition from black and white to colour). Another study looked at the adoption of a documentary realist style in British cinema of the early 1960s, as the preferred aesthetic component of a revolution in working-class social mobility. A further student explored that most American of genres, the Courtroom drama, studying it for the way that it usurps the techniques of stage melodrama. A purely technical/histo-

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rical thesis that was written concerned itself with the establishment of film censorship in studio-era Hollywood, how the Hays or Production Code came into being, how it policed the American film industry and how it was progressively challenged until its abolition (or rather substitution by a rating system) in 1967. Perhaps the most complex formalist study undertaken was that of the theory and history of film illusion, and its dependence on new technologies, a survey of evolving fantastical effects from Georges Méliès to Peter Jackson’s The Lord of the Rings trilogy. A PhD study, this was perhaps only feasible because the student in question was a computer science specialist with experience in video-gaming design. What informed the study were potential real-world applications in video-gaming of film aesthetics. Film studies has been a very dynamic field in the last 20 years and a vast bibliography has grown up in support of it. We have attempted to accompany most of the more significant movements in film analysis at the University of Aveiro by acquiring a decent library of books on English-language (and not only) cinema. We have not been able to afford the full range of film journals on the market and so cannot consider ourselves to be very well-set for research purposes, although our library resources certainly match or surpass those of any other university in Portugal. Film is fortunate in being such a popular form that there are extensive and well-informed databases available on the internet for people studying in this domain. However, popularity has also bred an uncritical spirit and we counsel people to use these sources with intelligence and caution, for many of them contain the basic weaknesses of ‘fandom’ – inaccuracy and over-enthusiasm. However the balance is definitely positive, since popularity has ensured a world-wide supply of film material which 35 years ago was simply not available for domestic consumption or academic analysis. In the 1960s, you would have to have been a metropolitan-dwelling active member of a film club or society to have access to a fraction of the sort of material that anyone can now purchase and view do-

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mestically anywhere in the world. This perhaps more than anything else has made film studies viable, the sheer diversity and availability of recorded material and the circulation of critical opinion and analysis that has followed on from that availability. Without it, hardly anyone could check an impression that they had of a film or enjoy the privilege of multiple viewings. How many scholars would be able to write literary criticism without being able to consult their texts beyond an initial reading, or perhaps, if they are lucky, on the basis of a second one?

Bibliographical References Andrew, D. (1984) Concepts in Film Theory, Oxford: Oxford University Press. Clover, C. (1992) Men, Women and Chainsaws: Gender in the Modern Horror Film, London: British Film Institute. Kaplan, E. A. (1983) Women and Film, London: Methuen. King, G. (2002) New Hollywood Cinema: an Introduction, New York: Columbia University Press. Larkin, P. (1974) “High Windows” from High Windows, London: Faber and Faber. Metz, C. (1974) Film Language: A Semiotics of the Cinema. Translated by Michael Taylor from the French Essais sur la signification au cinéma [1968] New York: Oxford University Press. Modleski, T. (1988) The Women Who Knew Too Much, London: Methuen. Sarris, A. (1968) The American Cinema: Directors and Directions 19291968, New York: Dutton.

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História oral? Dilemas e perspectivas Maria Manuela Cruzeiro1

Toute l´histoire du monde ne me paraît souvent rien d´autre qu´un livre d´images reflétant le plus violent et le plus aveugle des hommes: le désir d´oublier Herman Hesse

O historiador não é o que faz falar os homens, mas o que os deixa falar Paul Ricoeur

1. A conquista da legitimidade epistemológica da História Oral está associada ao questionamento de uma concepção de história baseada no facto e, de um modo geral, à crise do modelo clássico de ciência e das noções inerentes de objectividade, neutralidade, evidência e distanciamento. A crescente chamada de atenção para o papel do sujeito na percepção do real levou, por um lado, a que se passasse a entender a história como uma construção de modelos explicativos, nos quais o historiador tem necessariamente um papel activo e, por outro, a considerar a memória não como um mero repositório de experiências, mas como constante recriação de significados a partir daquilo que se viveu no passado e daquilo que desse passado interessa ao presente. É já um clássico o estudo de Jacques Le Goff Documentum/Monumentum, em que se questionam os fundamentos de Historiografia Positivista. Ou seja, de uma ciência histórica com base justamente no 1

Centro de Investigação 25 de Abril - Universidade de Coimbra

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documento escrito, erigido como prova de objectividade. Esta seria, pois, garantida pelo documento, ou mais precisamente, pela técnica de leitura do mesmo (com base nas ciências auxiliares da paleografia, diplomacia, epigrafia). Segundo o autor, o termo documento vem do latim documentum, derivado de docere que significa ensinar. Para o positivismo, o que o documento ensina é o fundamento ou a prova do facto histórico. Ao conceito de documento, Jacques Le Goff opõe o de monumentum, que provém do verbo monere, que significa fazer recordar, avisar, iluminar, instruir, e é utilizado pelo poder não como documento objectivo, mas como intencionalidade. Daí que, quando se utiliza o documento, se pretenda uma inocência que ele não tem. Todo o documento é monumento, na medida em que se não apresenta a si mesmo, antes contém uma intencionalidade que é pelo menos nacionalista, quando não imperialista. O documento é, pois, monumento. É o resultado do esforço feito pelas sociedades históricas, para impor ao futuro, querendo-o ou não, determinada imagem de si mesma. Em definitivo não existe um documento-verdade. Todo ele é mentira. Cabe ao historiador não fazer o papel de ingénuo (Le Goff, 1984:95). A tomada de consciência do carácter artificial do facto histórico, da não inocência do documento, lançou uma nova luz sobre a complexidade dos mecanismos de construção da história como disciplina científico-literária, segundo a feliz designação de Paul Ricoeur e conduziu, por outro lado, ao reconhecimento de realidades históricas durante muito tempo secundarizadas ou mesmo ignoradas pelos historiadores. Entre elas está a História Oral que se impõe pois, por um lado, devido à dimensão ilusória do conceito de objectividade, o carácter lacunar, polimórfico, opaco ou mesmo falso (porque um documento falso é também um documento histórico) dos documentos; e por outro, devido à inegável riqueza e complexidade das informações que só através dela podemos obter. Mais do que isso, a História Oral permite devolver vida à história e fazê-la mergulhar num ‘banho de realidade’ por certo mais com-

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preensível para as gerações futuras do que a fria sequência de factos e datas. Segundo José Mattoso, «os novos contributos que a História Oral traz respondem à insatisfação e a um certo cansaço que tantas vezes provocam as investigações conduzidas sob o signo do marxismo, do estruturalismo, ou mesmo da chamada escola dos Annales. Estes ocuparam-se do quadro, da paisagem humana, dos mecanismos da história e do seu funcionamento. Por isso não tinham protagonistas, apenas figurantes. Não se interessavam por acontecimentos, mas por factos. Desprezavam as excepções, porque se ocupavam fundamentalmente das recorrências. Pretendemos agora ver como é que os protagonistas, ou mesmo os heróis, actuam nesse cenário, cuja composição e funcionamento se estudou» (Mattoso,1988: 62). Esse desejo de conhecer os acontecimentos, não ‘descontaminados’, assim como os protagonistas, ou mesmo os heróis (entendidos não como demiurgos que forçam o destino, mas como aqueles cujo comportamento é exemplar ou representativo de muitos outros comportamentos) explica, por certo, o actual sucesso das memórias, biografias e até do romance histórico. Utilizando e combinando em diferente escala os testemunhos directos e a ficção, o registo memorialista e biográfico não deixa de encerrar um determinado grau de verdade. Uma verdade compreensiva, diferente da verdade explicativa da ciência histórica. Mas, parafraseando ou adaptando Kant, a explicação sem a compreensão é vazia, a compreensão sem a explicação é cega. É justamente a valorização da verdade, ou do grau de verdade contida na ficção, que contrapõe a uma ‘história-ciência’ exclusivamente dura e racional, pontualmente satisfeita com algumas verdades ou ‘quase certezas’ e uma ‘história narrativa’ apenas poética e emotiva, continuadamente experimental. Para os defensores desta posição extrema, como Alessandro Portelli, não existe uma diferença clara entre testemunhos ou ficção, uma vez que ambos se alimentam de um imaginário fundante que cria e recria o que denominamos real.

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Para este autor, a História Oral não é instrumento para fornecer informações sobre o passado. O que lhe interessa é a subjectividade dos narradores. Não é, pois, o resgatar da fala dos dominados ou dominadores, o ineditismo, ou mesmo o preenchimento de lacunas que lhe interessa, mas sim a recuperação do vivido, segundo a concepção de quem o viveu. Esta fragmentação do trabalho do historiador e sua dissolução nos ilimitados terrenos da literatura leva a juntar os dois discursos sob a designação única de texto virtual. «A questão da verdade neste ramo da história oral depende exclusivamente de quem dá o depoimento. Se o narrador diz, por exemplo, que viu um disco voador, que esteve noutro planeta, que é a encarnação de outra pessoa, não cabe duvidar. Afinal, este tipo de verdade constitui um dos eixos da nossa realidade social e, em último caso, não buscamos saber se existem ou não ovnis, ou espíritos. A nossa busca implica entender a forma de organização mental dos colaboradores» (Meihy,1996:63-64). Entre a radical subjectividade desta posição e a defesa da posição extrema, de uma história-ciência, baseada na pura positividade dos factos, se desenvolve um rico e apaixonante debate que tem como epicentro o conceito de narrativa. Consoante esta é valorizada ou rejeitada, assim se desenha uma síntese criativa ou uma radical oposição entre objectividade científica e criação literária. Mas, como escreve Rui Bebiano, «um reconhecimento da dimensão plural das metodologias aplicáveis na prática historiográfica parece ser a forma de a retirar do impasse que, de alguma forma, é documentado por aquela hesitação. E, mais importante ainda, de prevenir eventuais ímpetos de exclusão do outro, tentação na qual, particularmente ao longo da década de 70, se caiu em alguns momentos. A dimensão poética da produção e da escrita da história, que esta de facto nunca perdeu» apesar de, insista-se, em dada altura se ter feito crer que tal tinha acontecido, o que apenas diminuiu o valor da sua presença, mas sem a anular - pode então assumir-se, sem pretensão alguma de se tornar

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única ou dominante, de celebrar ‘retornos’ ou ‘rupturas’ que excluam outras experiências, como modelo plausível e capaz de seguir um caminho próprio?» (Bebiano, 2000: 85/86) Portanto, o historiador não tem a mesma liberdade que o romancista, embora só tenha a ganhar com alguma dose de talento literário, e mesmo com a adopção de novas formas de linguagem, que rompam com a linguagem estereotipada e cheia de conceitos muitas vezes ininteligíveis para os leitores. Porque o acontecimento, o evento em história não é um dado transparente, que se oferece na sua essência, mas alguma coisa que se insere numa intriga, numa trama, que se faz e refaz pelo historiador. A este propósito, Paul Ricoeur escreve em La Mémoire l´Histoire l´Oubli: «À cet égard, les archives constituent la première écriture à laquelle l`histoire est confrontée, avant de s´achever elle-même en écriture sur le mode littéraire de la scripturalité. L´explication/compréhension se trouve ainsi encardrée par deux écritures, une écriture d´amont et une écriture d´aval. Elle recueille l´énergie de la première et antecipe l´énergie de la seconde» (Ricoeur,2000:170). No binómio explicação/compreensão parece residir, pois, a chave de uma epistemologia coerente da história, enquanto disciplina que procura não apenas o registo factual do que aconteceu, mas também o ‘porquê’ do que aconteceu. Para isso, ainda segundo P. Ricoeur, a história cumpre três fases, não cronologicamente distintas mas imbricadas umas nas outras, que são: a fase documental, a fase explicativa-compreensiva e a fase representativa. Se o processo epistemológico de maior alcance se passa na segunda fase, a terceira é aquela em que se declara plenamente a intenção histórica de «representação presente das coisas ausentes do passado». Através, precisamente da escrita, que é a única linguagem que a história conhece e que, como narrativa não pode ser uma enumeração fastidiosa de factos e dados, mas sim uma interligação ‘poética’ dos mesmos. «A leitura da história consegue, desta maneira, alargar-se e tornar-se mais estimulante, abrindo-se á possibilidade de ‘viajar’ atra-

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vés da imaginação e de, no presente, observar as personagens do passado como as pessoas que foram, e não como as figuras de cera ou como as ‘não figuras’ em que o discurso científico as transformou» (Bebiano,2000:77). 2. Recuperar as pessoas através das suas próprias memórias, tentando responder à angustiante e radical questão de Pascal «Qu´est ce qu´un homme dans l´infini?» é o apaixonante e arriscado desafio da História Oral (HO). Que, mais do que qualquer outro ramo da história, vive na estreita dependência da memória. É claro que a memória (mental, escrita ou oral) é a matéria principal da história, o que a obriga a um confronto em permanência com o imenso processo dialéctico da memória e do esquecimento, que vivem quer indivíduos, quer sociedades. No caso concreto da HO o indivíduo que rememora ou evoca o tempo vivido, fá-lo sempre de forma selectiva, o que significa que se há lembranças resgatadas, em contrapartida há outras esquecidas e excluídas de forma consciente ou inconsciente. Como escreve Fernando Catroga, «a memória individual é formada pela coexistência, tensional e nem sempre pacífica, de várias memórias (pessoais, familiares, grupais, regionais, nacionais) em permanente construção devido à incessante mudança do presente em passado e às consequentes alterações ocorridas no campo das re-presentações do presente» (Catroga,2001:16). Mas a memória oral, porque pessoal e directa, tem o inegável fascínio de ser mais próxima e mais viva, se comparada com qualquer das outras modalidades da memória, além de ser absolutamente indispensável para todos aqueles acontecimentos que de uma forma ou outra surpreendem o normal curso da história de longa duração, mais preocupada com as impessoais estruturas económicas e sociais e a suas permanências seculares, do que com o tempo de curta duração do acontecimento, que subverte essas estruturas, de alguma forma curto-circuitando esse processo e invadindo a cena com protagonistas que improvisam e não são apenas figurantes que debitam um papel já conhecido.

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São os momentos de crise como as revoluções, em que a pura racionalidade abstracta dos conceitos e dos sistemas cede face à invasão de elementos supra ou infra racionais, como as paixões políticas, a fidelidade aos valores e aos ideais, a coragem, a honra, o respeito ou desprezo pelas instituições, os sentimentos altruístas, a sensibilidade democrática. Mas, como lembra, de novo Jacques le Goff, «De même que le passé n´est pas l´histoire mais son objet, de même la mémoire n´est pas l´histoire, mais à la fois un de ses objets et un niveau élèmentaire d´élaboration historique» ( Le Goff, 1988:221). O autor pretende assim chamar a atenção para ingénuos entusiasmos em relação à importância do testemunho oral, sublinhando que «s´il veut dire par là que le recours à l´histoire orale, aux autobiographies, à l´histoire subjective élargit la base du travaille cientifique, modifie l´image du passé, donne la parole aux oubliés de l´histoire, il a parfaitement raison.» (Le Goff, 1988:221). Mas acrescenta também que não se pode colocar no mesmo plano «produção autobiográfica» e «produção profissional». É justamente aqui que tem lugar um importante debate sobre o estatuto científico-académico da HO. Um debate que, apenas iniciado entre nós, me parece desde o início desviado para questões acidentais ou periféricas. Não discuto a importância das questões técnicas que envolvem a produção e conservação do documento oral (natureza da relação entrevistador/entrevistado, momento ideal da gravação, a sua duração e frequência, formas de conservação, inventariação e utilização), mas elas parecem-me estranhamente sobrevalorizadas em relação às questões epistemológicas que deverão estar a montante. Isto é: a HO é tão somente uma ferramenta, uma técnica, uma metodologia auxiliar das diversas áreas do conhecimento, ou mais do que isso, tem plena legitimidade a constituir-se como uma nova disciplina académica? A que necessidades responde e como explicar que o seu êxito seja muito maior justamente fora dos meios académicos? Excluindo as correntes da historiografia mais conservadora, que remetem a HO para o domínio da pura subjectividade, que o mesmo

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é dizer para um terreno demasiado exposto ao risco do embuste, da falsidade ou da invenção, os historiadores começam a baixar o nível das resistências, utilizando progressivamente nas suas obras a HO, com uma importante ressalva: desde que entendida como meio e nunca como fim, ou seja como ferramenta, instrumento, mecanismo, recurso. Seja qual for a designação, a ideia parece clara: não reconhecer dignidade e autonomia à HO, à qual, sintomaticamente, preferem a designação de testemunho oral (é o caso de José Mattoso), que só se justifica enquanto instrumento ao serviço de uma interpretação histórica global. Não é, contudo, uma versão consensual. Em paralelo cresce uma outra que se afirma defensora da HO como disciplina autónoma, a única capaz de escutar a voz dos excluídos, trazer à luz do dia realidades ‘indescritíveis’ e dar testemunho das situações extremas de sofrimento ou exaltação. Finalmente, a questão de saber por que razão a comunidade académica resiste ao reconhecimento da HO, ao mesmo tempo que se recusa a conceder dignidade histórica aos muito e muitos trabalhos nesta área, desenvolvidos dentro, mas sobretudo fora do seu contexto. Muitas vezes essa desconfiança maior esconde-se por detrás de desconfianças menores, relativamente às técnicas de produção, arquivo e utilização, mas visam no fundo a grande questão do processo de validação e verificação dos documentos orais que a comunidade académica ainda encara como um monopólio seu. É como se o documento resultante de uma entrevista (em que colabora naturalmente, e apenas, o investigador e o entrevistado), precisasse de um certificado de validade que nenhum dos dois está em condições de assegurar, e que só uma entidade exterior, ‘a academia’, poderia fazer. Não discuto que os documentos orais (exactamente como os escritos) têm que estar sujeitos à crítica, mas não apenas à crítica da comunidade científica, que, como a própria história tem abundantemente provado, não é imune àquilo que tanto teme e pensa esconjurar: embustes, falsificações ou manipulações. Talvez que uma crítica alar-

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gada, responsável e democrática seja o que mais falta faz à história em geral, oral ou escrita. Afinal, como nos lembra ainda Paul Ricoeur: «Il ne faudra toutefois pas oublier que tout ne comence pas aux arquives, mais avec le témoignage, et que, quoi qu´il en soit du manque principiel de fiabilité du témoignage, nous n´avons pas mieux que le témoignage en dernière analyse, pour nous assurer que quelque chose s´est passé, à quoi quelqu´un atteste avoir assisté en personne, et que le principal, sinon parfois le seul recours en déhors d´autres types de documents, reste la confrontation entre témoignages» (Ricoeur,2000:182). Continuando na senda deste autor, atingiremos o critério último de fiabilidade que incorpora, mas ultrapassa, quer o procedimento técnico ‘artificial’ do arquivista, quer o da investigação do juiz. O lugar da prova é, pois, o de uma outra instituição, que não é nem o arquivo, nem o tribuna, nem a academia. É a segurança do vínculo social que repousa na confiança na palavra do outro. Este vínculo fiduciário estende-se a todas as trocas, contratos e pactos, e transforma-se num habitus da comunidade, corporizado afinal uma regra de prudência: primeiro confiar na palavra do outro, em seguida duvidar, se fortes razões a isso obrigarem. O crédito dado à palavra do outro faz do mundo social um mundo intersubjectivamente partilhado. E esta partilha é a componente maior do que podemos chamar ‘senso comum’. É ele que é duramente afectado quando as instituições políticas instauram um clima de vigilância mútua, de delação, de práticas mentirosas, que rompem pela base a confiança na linguagem. E conduzem à manipulação da memória e, consequentemente, da história. 3. Para os mais relutantes em conceder dignidade histórica aos documentos recolhidos no registo único da oralidade, não resisto em invocar o que todos sabem, mas parecem esquecer: o testemunho constitui a estrutura fundamental da transição entre memória e história. Por isso, a HO longe de ser uma conquista das mais modernas

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correntes da historiografia, tem, afinal, grandes tradições: é tão velha como a própria história, cujo pai (Heródoto) transpõe para a narrativa factual o imenso legado da narrativa poética do seu antecessor Homero. E, quanto a mim, a chave para a compreensão da origem e verdadeira natureza do conhecimento histórico (às quais parece ser tão urgente regressar) reside não apenas no consagrado historiador Heródoto, mas também no não menos célebre poeta Homero. Ligaos afinal, a prática magistral da narrativa (factual ou poética) como tentativa de nos aproximar o mais possível da realidade. Porque, como escreve Hannah Arendt, «a realidade é diferente da totalidade dos factos e dos acontecimentos e é mais do que esta, que, de qualquer modo não pode ser determinada. Aquele que diz o que é, conta sempre uma história e nessa história os factos particulares perdem a sua contingência e adquirem um significado humanamente compreensível» (Arendt,1995:58). E não é afinal o fim último de toda a ficção, tocar, mesmo ao de leve, os mistérios da realidade humana? E mais do que isso, torná-la suportável, mesmo nos limites da dor extrema ou da suprema alegria? Como nos diz Karen Blixen «todas as dores podem ser suportadas se as transformarmos em história ou se contarmos uma história sobre elas». O regresso à dupla Homero/Heródoto, como matriz e horizonte da frágil fronteira entre história e literatura, parece-me mais do que bloqueio, sinalização de um caminho que, apontado desde a antiguidade, e após a longa deriva de séculos sob o império de um conceptualismo analítico redutor, abre para uma hermenêutica compreensiva como corolário de um pluralismo dinâmico que ligue ciência e arte, como os dois polos da vida individual e colectiva. Como escreve Gilbert Durand: «A razão e a ciência só ligam os homens às coisas, mas o que liga os homens entre si, ao humilde nível das felicidades e das penas quotidianas da espécie humana é a representação afectiva, porque vivida. (...) Depois do Museu Imaginário (de Northop) no sentido estrito, o museu dos ícones e das estátuas, é

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preciso apelar para um outro museu, é preciso generalizar um outro museu mais vasto que é o dos ‘poemas’» (Durand,1993:104).

Bibliografia ARENDT, Hannah, Verdade e Política, Relógio d´Água Editores, Lisboa,1995. BEBIANO, Rui, Sobre a ‘História como Poética’. In Revista de História das Ideias, vol 21. Coimbra, 2000. CATROGA, Fernando Memória, História e Historiografia. Quarteto, Coimbra, 2001. DURAND, Gilbert, A Imaginação Simbólica, Edições 70, Lisboa, 1993 LE GOFF, Jacques, ‘Documento/Monumento’ In Enciclopédia Einaudi, vol.I. Lisboa,Imprensa Nacional, 1984. LE GOFF, Jacques, Histoire et Mémoire, Editions Gallimard, Paris, 1988. MATTOSO, José, A scrita da História, Teoria e Métodos, Lisboa, Editorial Estampa 1988. MEIHY, José Carlos Sebe Bom, Manual de História Oral, Loyola, São Paulo, 1996. RICOEUR, Paul La Mémoire, l´Histoire, l`Oubli. Éditions du Seuil, Paris, 2000.

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1. Algumas demarcações de partida: à guisa de Introdução O que é pesquisa? O que é ciência? Quais as exigências do fazer científico?- Estas são questões simples, fundantes que sempre provocam um tipo particular de perplexidade… Como bem demarca Boaventura de Sousa Santos (1995; 2000; 2001; 2008), em tempos de transição paradigmática – como o nosso tempo - as questões simples impõe-se como «perguntas fortes» que, por se dirigirem às fundações, aos fundamentos abrem um horizonte de possibilidades entre as quais é possível escolher… De fato, em tempos de crises e transição de paradigmas epistemológicos – que estamos a viver nessas três últimas décadas – tornam-se mais visíveis e delineadas as múltiplas possibilidades do «fazer científico» que vão desde as versões do paradigma positivista de ciência moderna - dominante ao longo de quatro séculos – até perspectivas pós-modernas, passando por racionalismos de diferentes matizes. É a expressão da diversidade epistêmica, alargando perspectivas e possibilidades da produção do conhecimento científico, em distintos contextos culturais e políticos. Uma reivindicação central do nosso tempo é a afirmação da pluralidade e da diversidade que, hoje, expressam-se de forma inequívoca, no campo epistemológico. Comungo a tese de que «uma das batalhas mais importantes do século XXI é travada, sem dúvida, em 1

Professora da Universidade Federal do Ceará – UFC – Brasil; Pós-Doutoranda CES – Universidade de Coimbra; Bolsista CAPES/Brasil.

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torno do conhecimento» (Menezes, 2008). Revela-se, com clareza, o esgotamento de uma epistemologia abstrata, descontextualizada, que, por séculos de dominância da ciência moderna, proclamava-se única e universal, a sustentar o «mito do método científico» como a única via do fazer ciência, efetivando a supressão dos saberes circunscritos fora da rigidez dos seus cânones2. É a crítica contemporânea do colonialismo também como dominação epistemológica, no âmbito da modernidade. Tal colonialismo epistemológico encarna uma relação «saber-poder» extremamente desigual e aniquiladora da riqueza da diversidade de saberes, produzidos, então, como «não existentes» e, assim, radicalmente excluídos do padrão dominante de racionalidade. Esta dimensão do colonialismo mostra-se como uma das mais difíceis de se perceber, criticar e confrontar em uma perspectiva pós-colonial de emancipações em curso, no tempo presente. Em verdade, o adentrar no contexto paradoxal do final do século XX/início século XXI - a revelar, por um lado, inimaginável desenvolvimento científico-tecnológico e, por outro, crises dos padrões de racionalidade científica - propicia a visibilidade de alternativas epistêmicas emergentes. Analistas, pesquisadores delineiam, para além da crítica, propostas de conhecimento que consubstanciam caminhos diversos do 2

Crítica contundente ao esgotamento deste padrão de racionalidade que preside a ciência moderna - constituído a partir do século XVI e legitimado como «o padrão de Ciência», nos séculos seguintes – emerge no cenário dos anos 80. Como referências emblemáticas desta crítica, a incidir em uma perspectiva de constituição de novos padrões de racionalidade científica, destaco duas obras que bem encarnam uma ruptura epistemológica, com ampla repercussão no âmbito das comunidades científicas de diversos campos e áreas: O Ponto de Mutação de Fritjof Capra, cujo original The Turning Point foi publicado, em inglês, em 1982 e, no Brasil, em 1988, pela Editora Cutrix; Um discurso sobre as ciências de Boaventura de Sousa Santos, publicado, em 1ª edição, em Portugal, em Julho de 1987, estando esta obra, em 2001, na 12ª edição. No contexto brasileiro dos anos 70, uma produção que se tornou «clássica» nas discussões de epistemologia e de metodologia é a da socióloga Miriam Limoeiro Cardoso, intitulada O Mito do Método, produzida em 1971 para apresentação em Seminário de Metodologia, na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-RJ e publicada no Boletim Carioca de Geografia, em 1976.

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fazer científico. Neste campo de construções epistemológicas emergentes, ganha relevo, ao longo dos últimos vinte e cinco anos, a proposição de Boaventura de Sousa Santos (2000; 2004; 2007b; 2008) de constituição de outra racionalidade, outro padrão de pensamento, nos termos do que hoje denomina de «Epistemologia do Sul»3.

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Em meados de 1980, Boaventura de Sousa Santos, em sua obra referência Um discurso sobre as ciências (1987), afirma que o modelo de racionalidade então dominante mostrava sinais evidentes de exaustão, configurando uma crise paradigmática. No contexto deste debate epistemológico, delineia um paradigma emergente, designando-o de «ciência pós-moderna». Trata-se de um paradigma a encarnar uma outra racionalidade, uma racionalidade mais ampla, assente na superação da dicotomia natureza/sociedade, na complexidade da relação sujeito/objeto, na concepção construtivista de verdade, na aproximação das ciências naturais às ciências sociais e destas aos estudos humanísticos, em uma nova relação entre ciência e ética, em uma nova articulação entre conhecimento científico e outras formas de conhecimento. Nesta perspectiva, sustenta ser este «o paradigma de um conhecimento prudente para uma vida decente», constituindo, assim, um paradigma científico – o paradigma de um conhecimento prudente – e um paradigma social – o paradigma de uma vida decente. No início dos anos 90, para contrapor a sua concepção de pós-modernidade ao pós-modernismo dominante que circulava tanto na Europa como nos EUA, Boaventura Santos passa a denominá-la de «pós-modernismo de oposição», concebendo a superação da modernidade ocidental a partir de uma perspectiva pós-colonial e pós-imperial, pautada na exigência de reinventar a emancipação social. Em meados da década de 90, Boaventura Santos tinha clareza que essa construção de uma outra racionalidade só podia ser completada a partir das experiências das vítimas, dos grupos sociais que tinham sofrido com o exclusivismo epistemológico da ciência moderna e com a redução das possibilidades emancipatórias da modernidade ocidental. O seu apelo é «aprender com o Sul», entendendo o Sul como uma metáfora do sofrimento humano, causado pelo capitalismo e pela colonialidade do poder. Assim, insatisfeito com a designação pós-moderno e consciente da impossibilidade de afirmar a denominação de «pós-moderno de oposição», Boaventura Santos, nos anos 2000, passa a propugnar uma «Epistemologia do Sul», a consubstanciar um padrão de racionalidade ampla e ampliada, capaz de apreender a riqueza infinita da experiência social em todo o mundo. Na formulação de Boaventura Santos «uma epistemologia do Sul assente-se em três orientações: aprender que existe o Sul; aprender a ir para o Sul; aprender a partir do Sul e com Sul». (Santos, Boaventura de Sousa (1995), Toward a New Common Sense: Law, Science and Politics in the Paradigmatic Transition. Nova Iorque Routledge).

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2. Tessituras de um diálogo crítico: uma alternativa do “fazer científico” em processo No âmbito do debate epistemológico em curso no presente, vivenciado nos percursos da minha trajetória acadêmica, circunscrevo, como perspectiva de produção científica, o Racionalismo Aberto e Crítico (Carvalho, 2000, 2004, 2005)4, fundado na epistemologia de Gaston Bachelard e inspirado em concepções do «fazer científico» de Karl Marx e dois pensadores contemporâneos: Pierre Bourdieu e Boaventura de Sousa Santos. É uma configuração epistemológica gestada no diálogo entre distintas vertentes racionalistas que tem em comum o exercício da razão crítica, sempre em aberto às interpelações da realidade, na busca incessante de descobertas na produção do conhecimento5. A rigor, é uma articulação de racionalismos, a mobilizar o entrecruzamento de concepções de ciência/pesquisa que permeiam às minhas reflexões epistemológicas, ao longo das três últimas décadas. 4

Em produções na década de 90 e, de modo particular, nos anos 2000, delineio esta alternativa do «Racionalismo Aberto e Crítico» como via do fazer científico. Ver especificamente: produção de Novembro de 2000, denominada «Texto Síntese de Estudos – problematizando: resgatando pistas e apontando vias para deflagar a aventura da produção do conhecimento»; produção de Fevereiro de 2004 intitulada «Tú me ensinas a fazer renda que eu te ensino a namorar…: tecendo descobertas do mundo nosso de cada dia – reflexões sobre o ofício da pesquisa»; produção de junho de 2005, denominada «Referências teóricas e metodológicas em questão: linhas Epistemológicas do Conhecimento». 5 Estou convicta de que, em nosso tempo presente, se faz necessário e imperativo, o diálogo crítico, a interlocução entre diferentes vias do fazer científico como caminho de produção do conhecimento, com potencial investigativo para responder às provocações do mundo, em sua complexidade. Enfim, o pensar complexo e relacional exige, como «dever de ofício», a construção de diálogos e interlocuções entre perspectivas e vertentes que tem fundamentos comuns e/ou lógicas que se comunicam e complementam-se reciprocamente. No meu caso específico, construo um diálogo crítico, no âmbito do racionalismo, comprometido radicalmente com a crítica, em sintonia vigilante às provocações do mundo. O pressuposto fundante é a tese de que o vetor epistemológico na construção científica vai «do racional ao real», ou seja, a ciência é a realização do racional, aberto às interpelações da realidade, em sua riqueza inesgotável, na diversidade de contextos, no curso da História.

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Em verdade, o Racionalismo Aberto e Crítico, que propugno como via fecunda do «fazer científico», consubstancia uma tessitura que estou a empreender, com persistência e paciência, mesclando fios de diferentes texturas e tonalidades que me parecem fortes e resistentes na produção do «artesanato intelectual» da ciência6. A base fundante da tessitura é a Epistemologia Histórica de Gaston Bachelard7 que viabiliza uma revolução no âmbito da história da ciência, a consubstanciar-se no que, 6

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Aqui resgato a expressão «artesanato intelectual» cunhada por Wright Mills, em sua obra referência «The Sociological Imagination», publicada em 1959. Com o título «Imaginação Sociológica», esta obra foi publicada, em português, em 1980, pela Zahar Editores, passando a constituir um «clássico» no pensamento das Ciências Sociais, no Brasil. Em verdade, o retomar desta ideia do artesanato intelectual quer sublinhar o caráter de criação processual desta alternativa do «Racionalismo Aberto e Crítico», qual tessitura de ideias, de pistas de indicações, de intuições que, de forma ativa, recolho e trabalho, mobilizando saberes e imaginação, como o fazem os artesãos no exercício do seu ofício. Gaston Bachelard (1984-1962) – Filósofo francês, historiador das ciências e epistemológo, com profunda influência nos pensadores contemporâneos. Suas obras repercutem nos mais diversos campos da investigação, demolindo velhas concepções cristalizadas e propondo novas e, às vezes, surpreendentes soluções para os problemas, sobremodo no campo da filosofia científica. «Apoiado numa interpretação do desenvolvimento histórico das doutrinas científicas, Bachelard formulou seu lema de inconformismo intelectual através do que ele denominou de ‘filosofia do não’». (Bachelard, 1978: VI). No âmbito da história de ciências, expressa esta sua ótica da descontinuidade na constituição de uma nova concepção de construção científica. Para ele, o conhecimento ao longo da história, não se faz por evolução ou continuismo, mas através de rupturas, revoluções, a consubstanciar, na linguagem bachelardiana, «cortes epistemológicos». Com efeito, Gaston Bachelard constitui-se como um dos teóricos da descontinuidade, no interior do pensamento filosófico contemporâneo. Segundo os especialistas - dentre eles, Hilton Japiassu - a obra bachelardiana, em um esforço didático de compreensão, pode ser dividida em duas: a obra diurna e a obra noturna, como o próprio autor expressa no seguinte trecho da obra Poética do Espaço: “Demasiadamente tarde, conheci a boa consciência, no trabalho alternado das imagens e dos conceitos, duas boas consciências, que seria a do pleno dia e a que aceita o lado noturno da alma”. (Japiassú, 1976:47). Dentre as obras diurnas destacam-se O novo espírito científico, de 1934; A formação do espírito científico, de 1938; A filosofia do não, de 1940; O racionalismo aplicado, de 1949 e O Materialismo Racional, de 1952. Dentre as obras noturnas destacam-se A psicanálise do fogo, de 1938; A água e os Sonhos, de 1942; O ar e os sonhos, de 1943; A terra e os devaneios da vontade, de 1948; A poética do espaço, de 1957.

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então, denominou de «um novo espírito científico», como encarnação de uma ruptura com os padrões de racionalidade então vigentes, nos marcos do empirismo e de racionalismos fechados. Assim, constitui uma nova concepção de racionalismo: o racionalismo aberto. Na ótica bachelardiana, este novo espírito científico, materializado neste racionalismo aberto, pressupõe uma reforma subjetiva total, necessitando de uma conversão. Sustenta a tese de que a «filosofia científica deve ser essencialmente uma pedagogia científica» (Bachelard, 1978: VI). Na sua preocupação em delinear os fundamentos e os requisitos para o desenvolvimento de um «novo espírito científico», Bachelard combate as formas tradicionais de filosofia científica e, especificamente, as formas tradicionais de ensino, propondo, então, uma pedagogia nova para uma ciência nova. Esta Epistemologia Histórica de Bachelard propicia-me os fundamentos para constituir um racionalismo amplo e aberto às interpelações do real, sempre em movimento. «O mundo é a provocação do homem», sustenta Bachelard (1976). Este racionalismo bachelardiano, fundado na «Filosofia do Não», a propugnar o trabalhar tensões e erros, insere-me nos circuitos de uma nova racionalidade, eminentemente contemporânea, em um contundente movimento de ruptura com o racionalismo fechado e linear da modernidade. No meu trabalho de tessitura epistemológica, resgato em Karl Marx uma das suas marcas por excelência: o exercício radical da razão crítica, na dinâmica da dialética marxiana. Assim, o racionalismo aberto é essencialmente crítico, como via fecunda para adentrar na complexidade do real, em um esforço de desvendamento. Marx, nas suas reflexões metodológicas, oferece-me uma demarcação epistemológica fundante: «… e toda ciência seria supérflua, se a forma de manifestação e a essência das coisas coincidissem imediatamente»8 (Marx, 1983). 8

Estou inteiramente convencida de que uma das dimensões insuperáveis de Marx são as suas configurações metodológicas que permeiam o seu pensamento. Algumas dessas preciosas indicações estão no texto de O Método da Economia Política, apresentado na Introdução à Crítica da Economia Política (Ver Marx, 1978:116-123).

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O Método de Marx «Do Abstrato ao Concreto» é fonte de inspiração no delineamento dos percursos da razão em seu movimento dialético. De fato, este desenho metodológico bem configura a dinâmica racionalista marxiana, afirmando, com clareza, a produção do conhecimento como um processo da razão aberta e crítica, no esforço de apropriar-se do concreto que desafia o sujeito que busca conhecer a realidade, desvendando-a para além das aparências. Explicita Marx:… «o método que consiste em elevar-se do abstrato ao concreto, não é senão a maneira de proceder do pensamento para se apropriar do concreto, para reproduzi-lo como concreto pensado» (Marx, 1978:117). No meu tear reflexivo, trabalho fios resistentes resgatados do racionalismo aplicado de Pierre Bourdieu, constituído na sua contundente investida contra o empirismo e suas apartações e reducionismos9. A idéia-chave é a de construção racional e criativa do sujeito que assume o desafio do conhecer e, processualmente, opera recortes no chamado objeto real a gestar «objetos científicos», mobilizando, nestes percursos, o pensar relacional. Apreendo em Bourdieu a «pesquisa como um ofício» a constituir «habitus» no campo da produção científica. Na processual tessitura de fios, a confecção do Racionalismo Aberto e Crítico ganha amplitude e multicores com o material epistemológico-político que recolho de Boaventura de Sousa Santos e seu «pensamento sempre em aberto, inconcluso que não visa a completude»10. Com este mestre, faço-me vigilante para a «razão indolente», atada e domesticada nas armadilhas e reducionismos da racionali9

A configuração dessa investida de Pierre Bourdieu contra o empirismo, nos marcos de uma ruptura radical e constituição de um racionalismo aplicado, perpassa a sua construção epistemológica/metodológica no âmbito da sua obra. Especificamente, ver análises de Bourdieu na obra A Profissão de Sociólogo – Preliminares epistemológicas, de autoria de Pierre Bourdieu, Jean Claude Chamboredon, Jean Claude Passeron, publicada em português, em 1999, pela Editora Vozes. 10 Uma tentativa de circunscrever um momento desta minha recolha está em um ensaio – ainda em processo de construção – que comecei a elaborar, em 2008, com o título «Um olhar sobre o Pensamento de Boaventura de Sousa Santos – em busca de vias investigativas».

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dade moderna e alço voos em busca de uma racionalidade abangente e ampla – «racionalidade cosmopolita» – a perseguir a riqueza infinita da experiência social. É a busca permanente de fazer presente as ausências e de vislumbrar as emergências, constituindo uma ecologia de saberes11. Sinto-me interpelada a «aprender que existe o Sul, aprender a ir para o Sul, aprender a partir do Sul e com o Sul». (Santos, 1995, 2008, 2009). Assim, o Racionalismo Aberto e Crítico – aqui delineado – é por excelência, produto do diálogo entre estas distintas vertentes racionalistas que se encontram no «vetor epistemológico» da razão crítica12, em sintonia com as interpelações de distintos mundos sociais, em nosso tempo histórico presente. Este diálogo, ao resgatar e articular aportes epistemológicos-medotológicos de cada uma das matrizes racionalistas constitutivas da tessitura reflexiva, amplia horizontes e alarga caminhos do «fazer científico». Fundado nesta interlocução de matrizes, este racionalismo concebe a ciência como uma criação da razão crítica, em articulação com a imaginação e a sensibilidade13, em resposta às interpelações da realidade, nas suas infinitas conexões de espaço e tempo. É a afirmação da ciência como realização criativa do racional, em sintonia vigilante 11

A busca de uma outra racionalidade perpassa as obras de Boaventura de Sousa Santos, ao longo de mais de duas décadas. Tal perspectiva ganha corpo nos marcos de uma «razão cosmopolita», na sua produção contemporânea Sociologia das Ausências e Sociologia das Emergências que delineia procedimentos sociológicos de exercício deste novo padrão de racionalidade. (Santos, 2004, 2006, 2007b). 12 «Vetor Espistemológico» é uma categoria da Epistemologia Histórica de Gaston Bachelard que significa a direção de onde parte a construção científica, ou seja, o «sentido do percurso». No caso dos racionalismos, o sentido do vetor epistemológico é nítido: do racional ao real (Bachelard, 1976). 13 Karl Marx, nas Teses contra Feubarch, fornece-me uma indicação preciosa no sentido de circunscrever sensibildiade como dimensão humana decisiva na busca do conhecer. Diz ele na Tese 5: «Feubarch, descontente com o pensamento abstrato recorre à intuição; mas não capta a sensibilidade como atividade prática, humana e sensível». De fato, é nesta perspectiva que sustento que a Ciência pressupõe exercício da Sensibilidade, em articulação com a Razão e a Imaginação (Marx, 1978).

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às provocações do real, em sua diversidade e complexidade de experiências. Como perspectiva epistemológica, que se pretende ampla e ampliada, o Racionalismo Aberto e Crítico encarna como princípios norteadores: Construção processual do conhecimento: a produção do conhecimento é um processo que se faz em um percurso infinito de aproximações que não pretende a completude, tendo em vista o processo sempre em aberto da História… É a convicção de que a realidade, no seu movimento incessante e em sua complexidade, é sempre mais rica do que qualquer conhecimento que possamos construir e sistematizar14. Logo, o real está sempre a provocar, a interpelar o processo do conhecer… Contextualização cultural-política do conhecimento: a produção do conhecimento científico efetiva-se sempre em espaço e tempo específicos, estando, assim, circunscrita em um contexto sócio-político-cultural. Propugna Boaventura de Sousa Santos que todo saber é local, inclusive as ciências (Santos, 1987, 2007a). Por consequência, a reflexão epistemológica precisa incidir nas práticas de conhecimento devidamente contextualizadas, reconhecendo a diversidade de experiências e epistemologias15. Perspectiva da incerteza e da busca na aventura do conhecer: em tempos contemporâneos afirma-se, nos diferentes campos científicos, a perspectiva da incerteza e da busca no horizonte da ciência, rom14

Karl Marx delineia uma tese a constituir um pressuposto epistemológico: «A realidade é sempre mais rica que qualquer teoria» (Marx, 1978 ). 15 Nesta perspectiva do reconhecimento da diversidade de experiências e epistemologias, cabe destacar a obra Epistemologias do Sul, organizada por Boaventura de Sousa Santos e Maria Paula Menezes, publicada em Janeiro de 2009. O Prefácio que abre esta produção, eminentemente contemporânea, bem explicita os dois pressupostos fundantes da obra: «primeiro, que não há epistemologias neutras e as que reclamam sê-lo são as menos neutras; segundo que a reflexão epistemológica deve incidir não nos conhecimentos em abstracto, mas nas práticas de conhecimento e nos seus impactos noutras práticas sociais» (Santos e Meneses, 2009:7).

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pendo radicalmente com o «paradigma da ciência moderna» que se pretendia fundada em certezas, a «cultuar» o mito do «método científico», como caminho único e linear. Assim, a produção científica consubstancia a aventura do conhecer, a exigir opções, decisões face à pluralidade de caminhos e alternativas. Lógica da descoberta, em detrimento da lógica da prova: no horizonte das incertezas e da imprevisibilidade, conhecer implica desvendamento, em um esforço de reflexão problematizadora e analítica a adentrar nas tessituras do real. E, assim, a dinâmica processual do conhecimento é movida pela lógica da descoberta, no sentido de resgatar sentidos e significados, a encarnar a postura da busca, sem as amarras da prova. Para o(a) pesquisador/pesquisadora é o assumir, em plenitude, da condição de sujeito do conhecimento que interpela, que problematiza, no esforço de descobrir, abdicando de qualquer pretensão passiva de mero coletador de provas sobre um real considerado já dado e previsível. Ótica da complexidade, a exigir transdisciplinaridade e articulação de saberes: as tramas da realidade, em princípio, são complexas, no pleno sentido do termo latino «complexus»: aquilo que é tecido em conjunto. Em verdade, fenômenos, fatos, situações, circunstâncias, representações que interpelam o/a pesquisador/pesquisadora estão entrelaçados, imbricados nesta trama histórica da vida, embora possam aparecer separados. Bourdieu sustenta: «o real é relacional»(1989:28). O racionalismo marxiano circunscreve a realidade na ótica dialética da totalidade. Tal complexidade do real exige um «pensar complexo»16 que se materializa em distintas alternativas: a dialé16

Configurações conceituais como «pensar complexo»/ «pensamento complexo» remetem, necessariamente, ao sociólogo e filósofo francês Edgar Morin, um dos principais pensadores da complexidade. Dentre a multiplicidade de suas obras, destacam-se no âmbito da formulação do pensamento complexo: Introdução ao Pensamento Complexo (1995); Ciência com Consciência (1998); Os sete saberes necessários à educação do futuro (2001); A cabeça bem-feita: repensar a reforma, reformar o pensamento (2003).

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tica na lógica marxiana; o pensamento relacional de Bourdieu. A rigor, o exercício deste pensar complexo para apropriação da complexidade do real, em qualquer de suas vertentes, exige a transdisciplinaridade, ou seja, a articulação, a conjugação de disciplinas, na superação de parcialidades e isolamentos. É o esforço de romper as fragmentações de toda ordem, inclusive as disciplinares… Assim, impõe-se a articulação de saberes como condição do «pensar complexo em sintonia com a complexidade do real». Diálogo crítico/interlocução entre diferentes pensamentos e vertentes analíticas: o fazer ciência no âmbito de uma racionalidade ampla e abrangente, no pleno exercício da razão crítica, pressupõe trabalhar pluralidade de perspectivas, construindo diálogos entre diferentes pensamentos. A «pedra-de-toque» é fazer a devida interlocução, a partir de dilemas analíticos, circunscritos nos percursos de desvendamentos de objetos de investigação. Em verdade, a infindável riqueza da experiência social no mundo contemporâneo é um permanente desafio ao diálogo crítico no campo da epistemologia, da metodologia, da teoria, configurando a produção científica como «locus de criação». Trânsito Ciência/Arte: homens e mulheres, em sua humanidade, «despertam o mundo» – aqui tomando a elaboração poética de Bachelard (1976). E, assim, respondem às suas provocações pela criação em diferentes domínios. Dentre esses domínios de criação, destacamse ciência e arte, como campos de descobertas e revelações. A rigor, no «despertar do mundo», ciência e arte tem lógicas distintas de criação, mas com um imenso potencial de relação. Em verdade, todos os conhecimentos tem um elemento de «logos» e um elemento de «mythos», a consubstanciar uma dimensão racional e uma dimensão mítica dos saberes (Santos, 2007a). Assim, ciência e arte aproximam-se no exercício do pensar complexo. O conhecimento complexo ultrapassa as fronteiras da ciência, estabelecendo interlocução com literatura, poesia, música, teatro, enfim, com as artes, resgatando os seus saberes e descobertas. Logo, o exercício da racionalidade ampla e

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abrangente exige reconhecer e trabalhar o trânsito ciência/arte, alargando horizontes analíticos e vias de acesso à complexidade da vida. Tessitura teoria/empiria na construção do conhecimento: o exercício do racionalismo aberto e crítico em resposta às interpelações do real, em sua trama complexa de relações, exige movimentar teorias para pensar objetos de investigação, no esforço da busca e da descoberta. Assim, o processo de construção do conhecimento pressupõe a tessitura teoria/empiria, ou seja, constituir nexos fundamentais entre o plano teórico das ideias, conceitos, categorias e o plano empírico dos fenômenos, fatos e representações. É o fecundar a teoria a iluminar o mundo aparentemente caótico da realidade, estabelecendo o permanente movimento do abstrato ao concreto, na perspectiva do concreto pensado17. Rigor criativo: o exercício da ciência como criação da razão crítica, em articulação com a imaginação e a sensibilidade, delineia uma amplitude de horizontes, com novos cânones do fazer científico, libertos de toda e qualquer rigidez. Bourdieu, em sua ciência reflexiva, demarca a exigência de distinguir rigidez – que é o contrário da inteligência e da invenção – e rigor (Bourdieu, 1989). Boaventura de Sousa Santos sustenta a exigência de outros critérios de rigor que rompam com a monocultura do saber e do rigor científico da ciência moderna (Santos, 2004, 2006, 2007a). Assim, nas aventuras do fazer científico, impõe-se o rigor criativo, na permanente vigilância da crítica. Liberdade metodológica de constituição de caminhos, com pluralidade de recursos e estratégias: o rigor criativo implica, como consequência e exigência, a liberdade da criação, na plenitude da condição do ser sujeito de conhecimento. Implica a liberdade metodológica de constituir caminhos, sabendo apropriar-se das potencialidades de vias investigativas, da pluralidade de instrumentos e 17

Essa tessitura teoria/empiria no movimento dialético abstrato/concreto é trabalhado por Marx, em seu método de investigação, a propiciar inesgotável fonte de inspiração. Em outra configuração metodológica racionalista, Bourdieu sublinha a relação teoria, empiria como «pedra de toque» nos processos de construção do objeto e no seu desvendamento analítico.

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recursos. É a construção da coerência criativa, em meio à pluralidade de possibilidades e alternativas, a demandar esforço, competência, investimento, domínio de recursos, imaginação, invenção. Ecologia de Saberes: o encarnar de uma racionalidade aberta e crítica, liberta da rigidez, dos reducionismos, das parcialidades e das fragmentações, implica a plenitude de uma ecologia de saberes, fundada no diálogo horizontal de conhecimentos, sem as amarras de hierarquias classificatórias e excludentes e sem as violências de supressão dos saberes, levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pelo padrão epistemológico dominante. É o que propugna Boaventura de Sousa Santos: ecologia de saberes, fundada na convicção da incompletude de todos os saberes, a exigir a radicalidade do diálogo horizontal entre eles, para além de fronteiras, de campos, de classificações e hierarquizações, de monoculturas de qualquer espécie (Santos, 2004, 2006, 2007a). Na conjugação desses princípios norteadores delineia-se a perspectiva do Racionalismo Aberto e Crítico como alternativa de produção científica no debate contemporâneo. Em verdade, é esta uma produção epistemológica que afirma a natureza política da ciência, como uma prática que se institui e se desenvolve na teia das relações sociais de um dado espaço, em um tempo histórico específico. De fato, a ciência é uma forma de conhecimento e uma prática social que encarna compromissos, com nítidas expressões sócio-político-culturais (Santos, 1987, 2004). É inconteste o caráter decisivo da ciência na civilização capitalista, ao longo de séculos e, de modo particular, nos circuitos da mundialização do capital. E, um dos desafios centrais na reinvenção da emancipação no século XXI é o assumir do desenvolvimento científico-tecnológico pela humanidade, na perspectiva da sua autonomia, no pleno exercício da vida18. Em ver18

É na convicção da natureza política da ciência como forma de conhecimento e prática social que Boaventura de Sousa Santos circunscreve, na matriz da modernidade ocidental, dois tipos de conhecimento: o conhecimento de regulação e o conhecimento de emancipação. Ver Santos, Boaventura de Sousa, 2007a, mais especificamente, o capítulo «Uma cultura política emancipatória», na obra Renovar a Teoria Crítica e Reinventar a Emancipação Social.

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dade, como explicita Boaventura de Sousa Santos, a «tensão política é também epistemológica» (Santos, 2007a:52). Assim, na ótica desta do Racionalismo Aberto e Crítico, impõe-se como questão-chave o «ser pesquisador nas circunstâncias do nosso tempo histórico»: tempo de incertezas e instabilidades no âmbito de inimaginável avanço científico-tecnológico; tempo de profusão ilimitada de informações e imagens na chamada «sociedade do espetáculo»19; tempo de reflexões minimalistas e ausência de pensamento crítico; tempo de vertigem de mudanças e crises que se entrecruzam; tempos de renascimento da crítica na mais genuína matriz marxiana; tempo de embates e lutas por um «outro mundo possível»; tempos em que se impõe a reinvenção da emancipação social como exigência histórica… A questão do “ser pesquisador» está posta como desafio à reflexão epistemológica que se reconhece política, na mais plena dimensão da crítica.

3. O ofício da pesquisa: aventuras de percurso No âmbito do Racionalismo Aberto e Crítico, a pesquisa é um trabalho racional de criação, de descoberta, por aproximações sucessivas… É uma construção processual do pesquisador, no esforço de desvendamento da realidade, a partir das provocações do mundo que, ao despertar seu apetite de conhecer sempre mais, o mobilizam a fazer descobertas… Afirma Bachelard: …Vivemos num mundo em estado de sono[…]despertar o mundo, eis a coragem da existência. E esta coragem é o trabalho da pesquisa e da invenção… O essencial é que permaneçamos sempre em estado de apetite (Gaston Bachelard. In: Japiassu, Hilton 1991:77). 19

Aqui, resgato a configuração de Guy Debord, na sua obra A Sociedade do Espetáculo, lançada na França, em 1967 e que se tornou livro de referência da ala mais extremista de Maio de 1968, em Paris. Hoje, a obra é um «clássico» da «crítica do sistema do capital».

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Na reflexão bachelardiana, os homens – na plena vigência da sua humanidade – são os únicos «despertadores do mundo» pela criação e invenção. A pesquisa, como «ciência em ato», no processo de produção do conhecimento, é um «locus» de criação e invenção que amplia suas potencialidades, alarga horizontes ao superar fronteiras rígidas, apartações arbitrárias, demarcações institucionalizadas, no pleno exercício da ecologia de saberes. A rigor, pesquisar é aventurar-se nos caminhos íngremes e apaixonantes do conhecimento do que está escondido e/ou disperso nas aparências, nas evidências, buscando delinear relações e determinações, reconstruir mediações que conferem sentido e significado aos fenômenos, fatos, representações circunscritos no real. É pôr em questão fatos, fenômenos, representações, classificações, versões… é desnaturalizar o que é dado como «natural», é desconstruir o que se apresenta como construído (Carvalho, 2004, 2005). Em verdade, a pesquisa encarna a busca do pesquisador/pesquisadora de apropriação do concreto, no plano do pensamento, explicando-o ao pensá-lo, tornando-o, assim, um «concreto pensado», conforme a configuração de Marx, no seu método «do abstrato ao concreto» (Marx, 1978). Esta apropriação do objeto, como «concreto pensado», exige um esforço de reflexão, mobilizando razão, imaginação, sensibilidade. Nesta perspectiva de construção processual, a pesquisa «é um ofício» que implica um «modus operandi» que se aprende, exercitase no fazer, incorporando o «habitus científico»(Bourdieu, 1989)20… Cai por terra o mito do «dom da pesquisa», do «pesquisador como 20

Nas explicitações metodológicas de Bourdieu, «habitus científico é uma regra feita homem ou, melhor, um ´modus operandi` científico que funciona em estado prático, segundo as normas da ciência sem ter essas normas na sua origem: é esta espécie de sentido do jogo científico que faz com que se faça o que é preciso fazer no momento próprio, sem ter havido necessidade de tematizar o que havia que fazer, e menos ainda, a regra que permite gerar a conduta adequada” (Bourdieu, 1989:23).

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um gênio excepcional»… De fato, a pesquisa é uma atividade racional que exige investimento e esforço, devendo «estar orientada para a maximização do rendimento dos investimentos e para o melhor aproveitamento possível dos recursos, a começar pelo tempo que se dispõe» (Bourdieu, 1989: 18). Na vivência deste ofício, de natureza racional a demandar prática efetiva do pesquisar, é fundamental a reflexão permanente sobre o processo e o produto, no sentido de uma avaliação crítica que mantém o(a) pesquisador/pesquisadora em estado de alerta e de vigilância. Questionar e questionar-se sem cessar é «dever de ofício». Assim, configura-se a exigência da reflexão epistemológica como um «habitus» do campo científico. O exercício da pesquisa, movida pela lógica da descoberta, implica uma dinâmica metodológica, no sentido da demarcação de caminhos na aventura do conhecer. A partir de cânones amplos do fazer científico que constituem, antes de tudo, trilhas abertas a orientar o processo de criação, delineiam-se exigências básicas a serem trabalhadas pelo(a) pesquisador/pesquisadora. O adentrar neste campo metodológico exige discutir estas exigências, materializadas em operações, mecanismos, estratégias, recursos e instrumentos. O fundamental é constituir uma discussão epistemológica da questão metodológica. Nesta perspectiva de refletir a dinâmica metodológica, nos marcos do Racionalismo Aberto e Crítico, cabe uma primeira demarcação: a operação decisiva é a construção do objeto, muitas vezes ignorada ou desconsiderada em outras tradições de pesquisa. Sustenta Bourdieu, ao ensinar o ofício da pesquisa, que «o que conta, na realidade é a construção do objeto […] sem dúvida a operação mais importante»…(1989:20)21. 21

Em uma de suas reflexões epistemológicas mais instigantes, ao discutir o que denomina de «dimensão empirista», Pierre Bourdieu estabelece uma distinção fundamental na dinâmica do fazer científico: a distinção entre objeto real e objeto científico. E configura o «objeto real» como objeto pré-construído pela percepção e o «objeto científico» como uma construção do sujeito pesquisador a efetivar recortes, configurando um sistema de relações a investigar (Bourdieu, 1999).

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Em verdade, é a tarefa fundante da investigação, ao longo da qual o pesquisador, em um processo de aproximações sucessivas, vai transformando uma temática, um fenômeno em objeto de estudo: é o objeto científico, resultante do trabalho reflexivo do sujeito pesquisador/pesquisadora a interrogar o real que lhe interpela… Assim, desconstrói-se o «fetiche da evidência», tão caro a determinadas vertentes epistêmicas. Como bem destaca Bourdieu, (1999) «a realidade não fala por si», oferecendo respostas quando sabemos colocar questões, ou seja, problematizar… De fato, no objeto em construção, o(a) pesquisador/pesquisadora vai efetivando seu recorte peculiar de estudo, constituindo o ângulo novo, imprevisto que delineia e estrutura o eixo da investigação, o seu «fio condutor». Enfim, a construção do objeto faz a diferença, a constituir a dimensão original da produção do sujeito pesquisador. Esta construção do objeto é eminentemente processual e vai se aprimorando, numa «sintonia fina», ao longo de toda a pesquisa, a exigir uma vigilância atenta e permanente do(a) pesquisador/ pesquisadora. Bourdieu, em uma lição de mestre, assim configura este esforço processual de construção: A construção do objeto não é uma coisa que se produza de uma assentada, por uma espécie de ato teórico inaugural […] é um trabalho de grande fôlego, que se realiza pouco a pouco, por retoques sucessivos, por toda uma série de correções, de emendas, sugeridos por o que se chama o ofício, quer dizer, esse conjunto, de princípios práticos que orientam as opções ao mesmo tempo minúsculas e decisivas (1989:27) . As observações, reflexões e análises, por meio das quais se efetiva esta decisiva operação de construção do objeto, exige um tipo de pensamento que é inerente ao esforço sistemático do conhecer: é o «pensamento relacional» de Bourdieu (1989); é a «perspectiva de

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Totalidade», consubstanciada no método marxiano (1978). Com configurações conceituais distintas, estas formulações postulam a exigência do «pensar relacionalmente», resgatando a tessitura das relações constitutivas do objeto, estabelecendo mediações, reconstituindo as vinculações geral/particular, no esforço permanente de contextualização e de especificação…É o assumir de uma postura ativa e sistemática do sujeito do conhecimento, em um efetivo trabalho de reflexão, no esforço de configurar um sistema de relações a investigar. O exercício do pensar relacionalmente, no processo de delineamentos processuais do objeto, exige a tessitura teoria/empíria: movimentar teorias para pensar dimensões e questões da realidade, adentrando nos interstícios do objeto. Tal tessitura exige competência analítica, sensibilidade, domínio teórico-empírico, constituindo a «pedra-de-toque» nos percursos investigativos22. No âmbito dessa tessitura teoria/empiria é preciso avançar no diálogo entre teorias, explorando potencialidades explicativas, a partir das interpelações do real, a colocar dilemas e questões. Nesse sentido, a complexidade da realidade contemporânea, em sua teia de relações, em permanente movimento, exige a articulação de enfoques, de aportes, no âmbito de teorias de diferentes disciplinas, na direção da «transdisciplinaridade», constituindo o desafio das teorizações nas «fronteiras disciplinares». É um processo de (re)construção teórica, a partir das demandas do objeto, na direção da produção do «pensa22

Nas minhas reflexões epistemológicas no âmbito da metodologia, sublinho a importância crucial desta tessitura teoria/empiria, no sentido de uma postura ativa do pesquisador/pesquisadora a tecer «fios da teoria» e «fios da realidade». Para melhor visualizar essa trama reflexiva, recorro a uma metáfora, eminentemente brasileira e nordestina: o trabalho da rendeira, artesã que tece rendas, de forma artesanal, na sua almofada, a jogar os seus bilros, de um lado para o outro, com a perícia do saber e a arte do ofício. É o movimento contínuo das mãos no jogo dos bilros. À semelhança da rendeira, o(a) pesquisador/pesquisadora joga «bilros», portando, em uma mão, os da teoria e, na outra, os da empiria. E na perícia do saber e na arte do ofício, entrecruza teoria e empiria, em um movimento incessante da razão, da imaginação e da sensibilidade.

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mento complexo»23. Em verdade, trata-se de uma «tessitura teóricoconceitual» que impõe o exercício do «rigor criativo», superando qualquer resquício de «rigidez disciplinar», rompendo com dogmatismos e formalismos que empobrecem o processo do pensar… A partir das exigências do objeto, em estreita articulação com a lógica da construção teórico-conceitual, o(a) pesquisador/pesquisadora vai, então, delineando os percursos metodológicos, em uma perspectiva ampla e plural. Assim, necessário se faz a superação de dicotomias e sectarismos de qualquer espécie… É o desafio da construção metodológica, a pressupor a estreita vinculação teoria/metodologia, como uma relação fundante. Sustenta Bourdieu, em suas reflexões sobre o “modus operandi” no exercício do “ofício da pesquisa”: … as opções técnicas mais ‘empíricas’ são inseparáveis das opções mais ‘teóricas’ de construção do objeto. É em função de uma certa construção do objeto que tal método de amostragem, tal técnica de recolha ou de análise dos dados, etc. se impõe… (1989:24) Nesta ótica, o desenho metodológico é um esforço de construção, na busca de caminhos, capazes de atender às demandas do objeto, aproveitando potencialidades de diferentes alternativas metodológicas. A perspectiva é eminentemente plural, impondo a recusa de qualquer «monoteísmo metodológico». Com efeito, em cada contexto particular de pesquisa, faz-se necessário tentar «mobilizar todas as técnicas que, dada a definição do objeto, possam parecer pertinentes e que, dadas as condições práticas 23

Edgar Morin, nas suas teorizações do pensar complexo, já enuncia a exigência de estudos de caráter «inter-poli-transdisciplinar» diante da complexidade das sociedades contemporâneas, a enfrentar dilemas e problemas, exigindo uma radicalidade no repensar a reforma do pensamento. Ver Morin (2003), em sua instigante obra «A cabeça bem-feita. Repensar a reforma, reformar o pensamento».

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de recolha dos dados, são praticamente utilizáveis» (Bourdieu, 1987:26). Nesta operação de construção metodológica, entra em cena, mais uma vez, o «rigor criativo», conjugando a «liberdade extrema» com uma «extrema vigilância» das condições de utilização de diferentes estratégias metodológicas. Nos rumos desta construção aberta e plural, impõe-se a articulação de saberes de natureza distinta, rompendo com a hierarquização arbitrária, dentro dos padrões dominantes da Ciência Moderna que, por séculos, produziu a «não-existência de outros saberes», para além da ciência e da técnica24. É a articulação da ecologia de saberes, em um diálogo eminentemente horizontal, capaz de ampliar os horizontes do conhecimento. Por fim, cabe destacar que o processo de pesquisa - como um campo de permanente tessitura - é permeado por dificuldades e tensões… Na intimidade do «laboratório», da «oficina» ou do «escritório de trabalho», o(a) pesquisador/pesquisadora, no seu processo de criação, vivencia sempre dúvidas, inseguranças, hesitações, angústias. Na verdade, na aventura do conhecer, as dificuldades complexificam-se a exigir do(a) pesquisador/pesquisadora competência analítica, criatividade, esforço sistemático e disciplina, vigilância permanente… Em verdade, a cada experiência de pesquisa, em nossa trajetória na «aventura do desvendar», vivenciamos a grande lição de Bourdieu: «Nada é mais universal e universalizável do que as dificuldades» (1989:18).

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Boaventura de Sousa Santos (2004, 2006, 2007a), em sua análise da indolência da razão, nos marcos da modernidade ocidental, demarca, como uma das encarnações desta razão indolente, o que chama de «razão metonímica» que se reivindica como uma única forma de racionalidade e, por conseguinte, não se aplica a descobrir outras formas de racionalidade. Nesta perspectiva é que a racionalidade da ciência moderna efetivou a supressão de saberes, construindo a sua não-existência. Assim, propõe a «Sociologia das Ausências», a efetivar a «Ecologia de Saberes».

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2. Investigação em Estudos Culturais

Ritmo e dissidência: uma experiência de escrita Ruben A. - La respectueuse allumeuse1 Dália Dias2

A delimitação conceptual da noção de ritmo não se afigura, de há muito, uma questão pacífica no domínio da poética. Convém lembrar que a etimologia da palavra ritmo, como ponto de partida para uma maior dilucidação do conceito, foi já debatida e colocada nos seus termos mais rigorosos por Émile Benveniste em Problèmes de linguistique général (Benveniste, 66: 327-335). Nessa obra fundamental, o autor parte da fundamentação etimológica para expor o equívoco que, de há muito, falsificava o tratamento linguístico do conceito, com as inevitáveis consequências nos estudos literários. A tese então refutada por Benveniste foi aquela que há mais de um século fazia escola, desde os primórdios da gramática comparada, e que consistia na satisfatória e simples noção de que ao homem bastaria imitar o movimento das ondas, o fluxo e refluxo das águas do mar, para fazer nascer no seu espírito a ideia de ritmo, por um processo de apropriação mimética de movimentos característicos da natureza. Refutando a ideia de que a linguagem fosse fruto dessa imitação da natureza, o linguista esclarece especificamente a origem da palavra ritmo. Trata-se de uma palavra que, por via latina, vem já do grego carregada semanticamente de tal modo que desmente, até na etimologia, a crença enraizada no fundamento, para a origem da lingua1

“La respectueuse allumeuse” / Ruben A.. In: Revista Colóquio/Letras. Ficção, n.º 10, Nov. 1972, p. 46-48. (http://coloquio.gulbenkian.pt/bib/sirius.exe/issueContentDisplay?n=10&p=46&o=r). Daqui em diante referidos como RA (Ruben A.) e LRA (La Respectueuse Allumeuse. 2 Centro de Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro

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gem, do fenómeno da imitação. A palavra ritmo deverá ser relacionada, na sua origem etimológica, preferencialmente, com a ideia de curso contínuo, de fluxo ininterrupto, tal como acontece de facto com o movimento das águas, não as do mar, mas antes as dos rios e nascentes. Ao contrário das primeiras, as segundas não sugerem nenhum movimento cadenciado por síncopes isócronas. Portanto, será necessário procurar, fora da inexacta atribuição de etimologia até então aceite, a relação semântica entre a palavra ritmo e a ideia de movimento contínuo decomposto em tempos alternados, ainda que ela seja empregue quando se trata de dança, poesia ou música. Tal como em outras questões que envolvem grandes problemas de linguagem, se a arte for concebida como imitação da natureza, a dificuldade consiste, como diz Benveniste, em aceitar que nada terá sido menos natural do que a elaboração lenta, pelo esforço de pensadores, de uma noção como a de ritmo. Hoje essa noção compreende-se como tão necessariamente inerente às formas do movimento articulado que se torna difícil acreditar que disso não tenha havido consciência desde o início. Quando se parte da história do conceito de ritmo e da evolução que teve, nos campos da filologia e da filosofia, tornam-se evidentes inúmeras implicações. Apreciada em função dos pressupostos para os quais Benveniste chamou a atenção, a palavra ritmo passa a conter não só a ideia de modo de viver mas até a de visão paradoxal do mundo, uma vez que nela se foi inscrevendo semanticamente a valorização dos sentidos correspondentes quer ao eixo da fixidez quer ao eixo do movimento. Se, em Arquíloco, ritmo exprime mais a paragem, a limitação trazida ao movimento, para os atomistas, como Demócrito, ele designa um movimento dos átomos, de acordo com a física materialista de que esses filósofos são precursores. Tal como nos exemplos precedentes, a mesma palavra virá a carregar sempre, em consequência da sua história etimológica e filosófica, um feixe de significações contraditórias que deverão ser compreendidas em conjunto.

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O ritmo, entendido como configuração particular do movimento (Benveniste), participa ao mesmo tempo da ordem da forma, do que se mantém imóvel, e da ordem do fluxo, o que corre no tempo. A mesma palavra tem jogado com esta dimensão paradoxal desde a tradição grega e por isso tem sido usada para abordar quer o pensamento de Heraclito quer para designar a forma singular dos átomos em movimento, de acordo com o pensamento de Demócrito. Para Platão e Aristóteles, ritmo tomará depois o sentido musical e poético que vai permanecer no futuro. Apesar destas profundas variações, convém reter que o conceito grego de ritmo se refere, de um modo geral, à forma ou figura na sua relação com o tempo. Pierre Sauvanet, em Le rythme grec d’Héraclite à Aristote explica claramente a relação entre ritmo e temporalidade: Le rythme grec est en quelque sorte ‘une forme spatialle temporalisée’, c’est à dire la forme que prend quelque chose dans le temps, la forme telle qu’elle est transformée par le temps. ( Sauvanet,1999:6) Talvez pela sua dimensão temporal, o fenómeno rítmico possa ser entendido sobretudo como a marca de uma voz que organiza subjectivamente o discurso. E por essa mesma razão, por ser traço da voz enunciadora, se justifica que a análise do ritmo não possa ser confinada a um aspecto da linguagem, não corresponda apenas a um outro nível linguístico, como seria a sintaxe ou o léxico. Diversamente, o ritmo pode ser compreendido como estruturação conjunta de todo o sentido a partir dos significantes, inscrevendo assim o sujeito na obra como sistema de valores da linguagem. É precisamente esta ideia que sustenta Meschonnic no fundamental e completo trabalho Critique du rythme (Meschonnic,1982), mais recentemente reiterada em Modernité modernité (Meschonnic, 1988) Das abordagens, de algum modo herdeiras de Benveniste, e sobretudo dos trabalhos mais recentes de Pierre Sauvanet (Sauvanet,

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2000) sobressai a ideia principal de que o ritmo surge, de facto, como um fenómeno transversal e interdisciplinar, que não se fecha num campo do saber, nem se consegue delimitar na história das ideias. No entanto, e para que não se renuncie a uma abordagem racional dos fenómenos rítmicos, tal como Sauvanet sugere, podem seguir-se alguns caminhos metodológicos capazes de colocar em debate o problema estético. Essa é a proposta da abordagem que se vai seguir, sempre tentando outras diferentes e esclarecedoras travessias da escrita de Ruben A.

Estrutura, periodicidade e movimento Um ponto fulcral para aprofundar a noção de ritmo encontra-se perseguindo a tensão existente entre ritmia e arritmia. Tenta-se apreender o que vai sendo pensado acerca do ritmo como confronto entre presença e ausência, numa espécie de quadro gradativo que irá do máximo ao mínimo ritmo. Orientando a observação no sentido da detecção de analogias, segue-se um caminho de busca, não de traços que se possam dizer comuns e capazes de identificar um determinado ritmo, mas tenta-se antes o reconhecimento de um certo “ar de família” entre várias entidades. Segue-se assim a indicação, no tratamento da questão da analogia 3. Segundo o filósofo, encontrando um “ar de família” realiza-se um processo de generalização que deixa reconhecer a semelhança, a parecença que relaciona todos os membros de um mesmo grupo. Tal aproximação não resulta da efectiva existência de um “ponto” comum a todos os elementos mas antes à detecção de uma espécie de cadeia de sinais variamente repetidos em 3

Veja-se sobre este assunto Wittgenstein The blue and brown books, Oxford, Basil Blackuell & Mott, Ltd. A edição utilizada é a versão castelhana, a partir da segunda edição inglesa, Los cuadernos azul y marron, Madrid, Editorial Tecnos, 1984, p.45.

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cada um desses membros, que os relaciona a todos sem que eles se relacionem obrigatoriamente um a um. A busca de tais traços de analogia, o “ar de família” reconhecível entre diversas realidades, pode permitir falar do ritmo de um texto, do ritmo de uma fachada ou do ritmo cromático de uma tela e aproximá-los, em função de analogias. Permite também que se pense uma música ou um batimento cardíaco, aspectos da antropologia ou uma dança como fenómenos rítmicos que podem ser análogos. Para tratar deste modo a questão rítmica estabelecem-se critérios, partindo ainda da proposta do autor de Rythmologiques (Sauvanet, 2000) capazes de dar conta de uma realidade que não se deixa reduzir a nenhum deles mas que, por analogia, se consegue tratar teoricamente como rítmica. Há três critérios distintos, destacados por Pierre Sauvanet: a estrutura, a periodicidade e o movimento. Tais critérios, entendidos como problemáticas abertas, consentem que se trabalhe em torno do ritmo de um modo mais sistematizado e, sobretudo, de forma a que a sua apreciação não o faça parecer um aspecto parcelar da escrita, de limitadas consequências interpretativas. Eis pois o método que neste trabalho se pretende seguir para pensar o problema do ritmo, reconhecido facilmente como um aspecto crucial da construção de sentido no universo da escrita de Ruben A. O corpus seleccionado para desenvolver a observação é formado por um dos seus últimos textos publicados (Colóquio Letras nº10, Novembro 1972), cujo título – La respectueuse allumeuse – se faz seguir da já habitual indicação genológica que, neste caso é “conto de Ruben A.” O conto oferece uma oportunidade de observação bastante fecunda do que poderá ser considerado como uma abordagem rítmica. Não se deseja adoptar uma definição do conceito que tenha a pretensão de ser “perfeita”, mas tão somente descrever uma experiência rítmica particular. Quer-se ainda tentar responder, perante este texto e as suas hipóteses de leitura, à questão fulcral: “quando é que há

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ritmo?” Vivendo entre a complexidade das definições de ritmo, percorrendo a distância que vai do enunciado à enunciação, pontuando a leitura ainda pelo próprio ritmo do pensamento, assim se procede à travessia da unidade formada pelo conto La respectueuse allumeuse. O primeiro critério, o de estrutura, nesta linha de pensamento, entende-se como princípio de unidade e organização, valorizando a ideia de construção no sentido mais literal (con – struction), em função do modo de agenciar, ajustar, compor e imbricar. Por isso ele evidencia a dependência entre os vários elementos, a sua relação com o conjunto do sistema. A estrutura rítmica, de facto, só deverá ser entendida enquanto ressonância de conjunto, uma espécie de motivo e suas variações que darão ao texto uma configuração própria. Neste conto de Ruben A. (doravante designado como LRA), a primeira observação suscitada remete para o desvio a aspectos da convenção gráfica, situação que no autor é já recorrente. O primeiro de entre eles surge imediatamente no início do texto, no parágrafo de abertura, que não respeita o espaçamento normalmente deixado para iniciar a primeira linha. No restante texto isto não se repete, embora essa convenção seja respeitada apenas no espaçamento, pois verdadeiramente o sinal de ponto parágrafo é, doravante, omitido em todos os segmentos que antecedem a mudança de linha. Tal observação tornará ainda mais oportuna a reflexão sobre o valor que aqui possa ter o jogo com a convenção gráfica e tipográfica. Neste conto que parece não ter uma marcação clara do primeiro parágrafo, se for aproximado o início do final, compreende-se que se leia a última frase, “era uma vez uma menina...”, como ponto de partida e verdadeiro princípio. Na verdade, nesta frase reconhece-se o generalizado início de todas as histórias, formando com a indefinida formulação do sujeito gramatical, do tempo e do modo verbal, uma abertura consagrada pela tradição narrativa. Na obra de Ruben A, marcar a reversibilidade entre a abertura e o fecho, o princípio e o fim, o andar para trás e andar para a frente,

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constitui uma temática forte e um recorrente princípio de unidade e organização. O caso mais destacado é nitidamente o de Caranguejo, primeiro romance do autor, arquitectado sob a epígrafe/epílogo das palavras de Hamlet – like a crab -, empregues exactamente para sugerir a possibilidade de andar para trás. A metáfora desenvolvida a partir da figuração do caranguejo representa não apenas a paradoxal arquitectura desta narrativa, mas afinal o próprio movimento da rememoração, da escrita autobiográfica ou até, dir-se-á, de toda a escrita. E de que outro modo se pode pensar o movimento atribuído ao acto de leitura reflexo, imaginar o autor que lê o registo das suas memórias, que reescreve o seu arquivo frágil, lendo-se e relendo-se num movimento regressivo que será já memória da escrita, da escrita da sua escrita, infinitamente… Um elemento estruturante assinala ainda claramente as narrativas de RA. Trata-se do modo de construção da temporalidade, uma sempre incerta configuração que decorre da inexistência de um lugar unificador para a enunciação, um agora que possibilitasse definir um eixo de organização, a partir de uma unificada presença do eu. De facto, insistindo nesta regularidade patente na obra do autor de Kaos, a notação temporal assinala em LRA um importante princípio de composição e ajustamento. Dois dos três (?) parágrafos iniciam-se com as expressões “Pouco depois...” e “Um dia...” Ambas as referências formulam uma relação com o tempo cronológico dominada pela indeterminação, por algo equivalente a um princípio de incerteza no quadro das notações temporais. O restante texto não contém outras referências que permitam determinar um tempo narrativo ou cronológico, para além de um vago antes ou depois, ainda assim confundidos pelo emprego amalgamado de verbos no presente e no pretérito imperfeito ou perfeito. Surpreende-se então, neste caso, uma certa realidade (um tempo que deveria estruturar a narração), sem que nada se possa saber sobre a sua trajectória, a sua posição e movimento, enfim, o que determina essa mesma realidade. Apenas se sabe

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que ela é observada a partir de um ponto de vista errante, partindo de um incompleto “eu”, sucessivamente cindido. A partir desse fragmentado enunciador resta conceber então um tempo que se dissolva numa indeterminável cadeia de possíveis, tal como acontece quando se diz “era uma vez...” Do mesmo modo que em outros textos de RA, o efeito desta indeterminação torna-se claro no tocante também à construção da personagem e à arquitectura da acção narrativa. Neste conto, como em outras narrativas do autor, a sobreposição de perspectivas cria uma impossibilidade de representação que estabilize formas reconhecíveis, sejam espaços ou personagens, uma acção definida ou, como se viu, um tempo que se possa identificar cronologicamente. Quando é estilhaçada a perspectiva única, quando ela deixa de ser concebida a partir de um ponto de vista narrativo estável, e se acede portanto a uma realidade que passou a ser múltipla e dinamicamente simultânea, o modo de conceber a personagem e as definições de espaço e tempo alteramse profundamente. A existência simultânea de várias perspectivas dá sentido a uma leitura que não pode ser ordenada pelas relações lógicas normais, quer da sintaxe da frase, quer da sintaxe mais geral do conjunto da narrativa. Será antes a partir do ritmo instaurado pelo devir da própria linguagem que se estabelece um modo possível de significação, partindo da “escuta” de uma escrita feita com sobrecarga de palavras, fluindo numa saturada catadupa de imagens acústicas que comunicam estranhas relações entre as palavras e os sentidos que elas produzem. Repetidas, aglutinadas em frases e sequências com erráticos sinais de pontuação, essas palavras ou partes de palavras conduzirão ao que se pode chamar uma alucinação de leitura capaz de efeitos de sentido que resultam da insistente presença de elementos lexicais, gráficos ou prosódicos, estruturados ritmicamente. Como se formasse uma blue note, imediatamente associada à experiência musical do jazz, que como ela flutuasse no intervalo do que normalmente seria a sintaxe da frase e as suas consequências semânticas, assim se deverá ler LRA:

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Ela sabia sábia que sabia a rosas rosas com melancia água péde um só gesto e golo engolo também diz ela, veja como eu estoumesmo boa não faz mal, é-me igual, sente-se ali em frente ao pé de toda a gente, traga-me o pente, mais não está tudo encaracolado, de que lado? O exemplo torna-se eloquente no que diz respeito ao modo de criar efeitos de leitura que se tem vindo a debater. É patente que, para que o fluxo verbal construa possíveis sentidos, é preciso deixar que as palavras “flutuem” num intervalo obtido pela suspensão da articulação lógica que a sintaxe normalmente produz. Por isso se pode encontrar uma analogia rítmica com as “blue notes” quer pelo modo como elas fazem a fuga à sintaxe normalizada quer porque, como se sabe pela história do jazz, com o recurso a essas notas musicais intermédias que a voz humana desenvolveu, se valorizam estratégias de improvisação a partir de um escasso manancial de estruturas fixas e reconhecíveis. É também característico das “blue notes” o facto de, quando cantadas, não chegarem a constituir notas exactas, tendo uma localização vaga, algures na região dos terceiro e sétimos graus da escala diatónica. Incerto portanto o seu lugar, tanto quanto o ponto de onde irradia aqui a perspectivação e a voz narrativa, também ele matéria de improvisação. A nota intermédia é possuidora de um ritmo deslizante, criando uma tensão de forte poder emocional, consequência de uma dissonância não resolvida. Essa mesma tensão dissonante pode ser pensada analogamente a propósito da obra de RA e, em particular, deste texto que funciona no limite do que já se considerou uma alucinação de leitura. Parece assim encontrado o “ar de família” wittgensteiniano, a ligação para uma analogia com a experiência do jazz4, a relação com que o critério 4

Sobre a questão musical e as definições de “blue note” confronte-se Stephan, Rudolph (coordenação), Musik, Fischer Bücherei KG, Frankfurt am Main und Hamburg,. Ed. utilizada: Música, Lisboa, editora Meridiano, 1978 (2ª ed.). Veja-se, em especial, pp.202-211.

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da estrutura rítmica se deixa pensar neste texto: como uma presença, efeito de um ponto de vista não unificado, múltiplo e instável para a voz narrativa. Esta, por sua vez, desenvolve-se numa tensão dissonante que dá lugar a simultâneas falas, cuja origem é indeterminada e contraditória, reiterando o mais permanente traço da assinatura de Ruben A. (“de que lado?”). Um segundo critério, o de periodicidade, deve ser tido em conta na abordagem do problema rítmico, seguindo o mesmo conceito de analogia, já referido para o critério de estrutura. De facto, falar de períodos remete com facilidade para uma associação de noções a que pertencem palavras como ciclos, partes, cadências, alternâncias, repetições. Inseparável da anterior noção, de estrutura, o período valoriza prioritariamente um movimento duplo, de vai-vem, que decorre da esperada repetição, de acordo com o intervalo regular que pelo movimento se estabelece. Uma vez que em LRA se está perante uma organização textual que apresenta uma espacialização de inegável importância, justifica-se que se observe a mancha gráfica e o que nela se salienta como cíclico, as repetições ou as partes que compõem o texto e equacionem as consequências que daí podem advir para uma leitura mais complexa. Começando precisamente por observar o título, haverá que interrogar os efeitos da rima bem como o valor do emprego da língua francesa. A repetição fonética que aproxima e faz rimar respectueuse e allumeuse funciona de modo contraditório, a partir do antagonismo trazido pelo recorte semântico das duas palavras. O reforço que a repetição das sílabas finais de ambas provoca, e a subsequente aproximação que entre elas se gera pelo facto de serem, em parte, semelhantes, tudo isso é contradito porque as duas palavras constituem uma antinomia. O emprego de allumeuse classifica uma figura feminina que não é caracterizada pela respeitabilidade social5, não se apresentando, por isso,como respectueuse. Deste modo se inscreve no 5

Allumeuse: n. f. Fam. Femme coquette, aguichante, segundo a definição do dicionário enciclopédico Petit Larousse.

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título uma imediata divergência que resulta da contradição entre as duas palavras, cuja força dissidente se manifesta reforçada pela rima. Neste título fica também marcada uma aparentemente gratuita presença da língua francesa, que se julgaria aqui não ter outra função que não fosse a de obter efeitos fónicos e propiciar a referida rima. Mas, de facto, essa presença tem um efeito mais vasto e, eventualmente, uma leitura mais rica. Para RA a questão da língua dupla, do bilinguismo, é muito importante, quer no sentido mais restrito do uso de duas línguas, quer no sentido de uma presença “bífida”, assente numa patente “diglossia”. Em LRA as outras duas frases nominais em língua francesa incluídas no texto correspondem a períodos identificáveis, que são pontuados pela alternância do português e do francês: “Les cris aigus des filles mouillées” e “la source ardente”. Embora em evidente minoria, as frases em francês são todas de uma importância crucial. Para além do título, em si mesmo sempre relevante e neste caso mais ainda, as duas outras frases pertencentes ao texto reiteram e expandem os traços contraditórios de respectueuse e allumeuse. Elas surgem em itálico, o que de acordo com a convenção tipográfica permite interrogar a sua origem a partir de fora do texto, dando-lhes um estatuto de eventual citação, de referência a um título ou o sinal de uma deslocação de sentido. “Les cris aigus des filles mouillées” e “la source ardente” são duas frases, distribuídas com regularidade no texto. A primeira encontra-se na vigésima linha e a segunda está a vinte e duas linhas do fim. Entre ambas há cinquenta e oito linhas de distância, o que vem a ser um intervalo de aproximadamente o dobro da distância, em linhas, que separa cada uma delas do início ou do fim, respectivamente. Ora, se for aceite a leitura circular proposta (a partir da ligação com o final “era uma vez uma menina...”), LRA adquire uma repartição em segmentos aproximadamente equidistantes, pontuados em termos rítmicos pela emergência da língua francesa que, graficamente, o itálico assinala na vigésima e na septuagésima oitava linhas. Há portanto duas partes em LRA, quando se segue um movimento circular de leitura. São ambas marcadas por idênticos

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períodos, com um intervalo regular entre si, o que dá à emergência do bilinguismo um carácter cíclico dentro do próprio texto. A cada uma destas frases em itálico pode ser atribuída uma marcação periódica no texto, consequência da sua ocorrência espacialmente mesurável, que é equivalente de um ponto de vista quantitativo. Será também possível fazer corresponder-lhes uma leitura que instaure semanticamente um batimento em ciclo e contraciclo, sugerido pela natureza contraditória dos possíveis sentidos a percorrer. É deveras relevante que “la source ardente” remeta para um precioso elemento da simbólica da iconografia cristã, presente na arte do renascimento. A ideia de um fogo que não consome o objecto que arde está relacionada com o tema dito da maternidade virginal, ou do clauso utero, que fundamenta a tradição cristã da crença na virgindade da mãe de Cristo após o seu nascimento6 A iconografia cristã representa esse mistério sob a forma de um arbusto em chamas, que na arte francesa se identifica como buisson ardent, correspondendo ao equivalente português sarça ardente. Eis como surge o tema no texto de RA, suscitando a leitura que agora se propõe: “olhos saídos de labaredas la source ardente assim se diz quem acredita no cariz do milagre”. Na verdade, a apropriação da simbólica de origem cristã torna-se aqui evidente, auxiliada pela presença quase contígua da palavra “milagre”. O território do sagrado, do mistério e do milagre, associados à questão da maternidade afigurase ainda, por isso mesmo, como uma hipótese interpretativa forte. Existem, contudo, novas relações a estabelecer com outras frases do texto, já mais distantes, que podem suscitar uma divergente leitura 6

Para este assunto pode consultar-se a obra de Louis Réau, Iconographie de l’art chrétienne, vol. II, p.70 a 86. O autor trata a questão do chamado fogo do Espírito Santo, representado como uma chama que não consome o objecto em combustão. No caso da representação da Virgem, trata-se de um buxo. Simbolicamente esta representação coloca em presença o Mistério quer do nascimento de Cristo, quer da sua Ressurreição, ambos entendidos como um movimento de dentro para fora, em que o elemento continente não é afectado pelo facto de o conteúdo ser expulso do seu interior. Assim se entenderia a inviolabilidade de dois invólucros, o tumular e o ventre materno, misteriosamente mantida após a saída do corpo da criança ou do adulto, cadáver ressuscitado.

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em torno da questão do amor, da posse, da figura feminina pronta para a maternidade, do desejo e da sua negação. Outros sinais ainda admitem ser lidos simbolicamente, como sejam as eminentes fálicas presenças da Torre Eiffel7, do Big Ben ou da Torre de Pisa, nomeadas neste contexto. Todos eles enfatizam o mundo obscuro e misterioso do desejo e da negação do desejo, que o título do conto já prefigurara. Aparentemente bem diverso do universo sacralizado que em “la source ardente” pareceu aflorar, no caso de l’allumeuse a ideia de “queima” está muito mais próxima da consagrada explicação de Bachelard, que sublinha o sentido que adquire, neste texto, a combustão, sobretudo como indício de uma fricção de corpos em contacto: O fogo queima a gente sua, fica com os dedos em pó de pedra, jogo que não joga nem ela nem ninguém das mil e quinhentas virgens da aventura8. 7

Refira-se, a propósito, a importante presença desta torre na pintura de Marc Chagall e Robert Delaunay. Apollinaire colocara também no início de Alcools (1913), como texto de abertura, o poema Zone, cujos dois primeiros versos são: “À la fin tu es las de ce monde ancien/ Bergère ô tour Eiffel le troupeau des ponts bêle ce matin (...)”. 8 De novo se pode estabelecer uma aproximação, com referência à iconografia cristã, de inspiração nas narrativas hagiográficas medievais. Trata-se da lenda de Santa Úrsula e das Onze Mil Virgens, a filha de um rei Bretão martirizada em Colónia, pelos Hunos, no sec.IV ou V d.C. A sua história encontra-se em Jacobus de Voragine ( La Legende Dorée, título dado no sec. XV à recolha de Vidas de Santos, composta por Voragine cerca de 1260 ). A lenda está também resumida nos onze quadros de Vittore Carpaccio, da Academia de Veneza, e nos painéis da célebre cena de caça de Bruges (Hôpital de Saint Jean), da autoria de Hans Memling. Embora o número de virgens seja bem diferente na referência do texto de RA, há uma evidente proximidade de sugestão, ainda mais acentuado pelo facto de as narrativas medievais não serem unânimes na atribuição de um número exacto de donzelas martirizadas (cf. Réau, Louis, op. cit, tomo III, Iconographie des saints, pp.1296-1301). Pelo mesmo processo de associação que permite relacionar a frase de RA, as “mil e quinhentasl virgens da aventura”, com a Lenda das Onze Mil Virgens, a frase pode sugerir também o título de Apollinaire, Les onze mil verges. Uma vez que a proximidade do autor de Alcools se evidencia em vários momentos de LRA, tal ligação é aceitável. A obra de Apollinaire,não assinada, normalmente incluída na classificação de literatura erótica, também refere – como o título indicia – um suplício de morte, mas desta vez infligida por vergastadas e não por flechas, como é narrado na lenda de Santa Úrsula.

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Na senda de uma leitura orientada para a exploração deste tipo de símbolos, também a figuração da fonte – la source – seria ainda uma outra hipótese contraditória, conforme se pensasse em termos de nascença de águas doces e de campos metafóricos a elas associados desde a literatura medieval, ou fosse entendida nos sentidos bíblicos de fons vitae, fonte da vida, água purificadora e baptismal. Uma vez que o conceito de período levou a relacionar as duas frases de língua francesa no texto de LRA, justifica-se que sejam ainda observadas nas suas relações semânticas, destacando-se as repetições e ciclos estabelecidos por essas mesmas relações. A frase “Les cris aigus des filles mouillées” encerra uma multiplicidade de sugestões de sensações, auditivas, tácteis e visuais, muito significativa. Num texto em que as sensações auditivas são preteridas em favor das visuais, cris aigus tem um poder evocativo especialmente forte. Também a presença de filles mouillées repõe o mesmo quadro de sugestão erotizada já antes identificado e profusamente assinalado em todo o texto. O tema das donzelas molhadas é recorrente em toda a pintura europeia e vem a ser mais modernamente representado, a partir da imensa tradição das banhistas, que transita de modo muito claro para a pintura do sec.XX. A associação à pintura é pertinente, neste texto dominado pela repetição do campo semântico instaurado pela palavra olhar, ora como verbo, ora como substantivo regressivo, ora sob a forma do nome olhos, e pelos sentidos de palavras que lhe estão associadas. Aqui, como em toda a obra de RA, a presença das artes plásticas não se limita a cumprir qualquer função de ilustração simples, mas constitui fundamentalmente um dos grandes eixos da sua criação de escrita, o lugar das imagens de pensamento já anteriormente referidas, que trabalham analogias diversas, configurando a existência verbal do autor autobiográfico, compondo o seu idioma e a sua paradoxal figuração. Talvez por isso se admita que estas duas frases possam ser pensadas como presença de dois quadros – “Um dia foi passear, ver quadros num jardim” – ou como referência a duas séries de quadros que comportam analogias próprias – as banhistas/les filles mouillées, a virgem/la

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source ardente. As tematizações deste modo sugeridas estabelecem ciclos de repetições, intervalos quantificáveis, uma cadência de movimentos que se reconhecem como sendo semelhantes, marcação que é acentuada neste texto, talvez ainda mais claramente, pela presença regular do ritmo distinto da língua francesa, que o título do conto tão bem salientou. Um último critério para a abordagem da questão ritmológica em LRA é o que Pierre Sauvanet distinguiu como movimento, no sentido que decorre do grego metabolè, da ideia de auto-transformação e de mudança de forma. Este autor considera que o movimento é o critério que resiste mais a uma análise racional do ritmo (Sauvanet, 2000: 188 e ss), pois vem a ser, na senda do que já dissera Benveniste, a maneira própria de fluir, esse fluxo rítmico, nas suas configurações particulares. O movimento, assim entendido, não constitui um elemento suplementar, incluído numa estruturação ternária de que faria parte, junto com os outros dois critérios – estrutura e periodicidade. Na verdade, o critério do movimento representa o próprio ritmo, aquilo pelo qual a coisa é, não um acaso de segunda ordem mas antes o primeiro princípio errático, um princípio de auto-diferenciação ritmológica. Na mesma linha de Deleuze, Sauvanet dirá por isso que a diferença é que é rítmica e não a repetição, que no entanto a produz (Sauvanet, 2000: 191). O movimento deixa-se descrever a partir da metáfora do jogo, no sentido que a língua francesa melhor exprime quando emprega a palavra jouer e o seu correlativo oposto déjouer. Assim, jouer tem o sentido musical, lúdico e mecânico – “le mouvement donne du jeu au rythme” (Sauvanet, 2000: 192) – que permite entender o movimento como o que faz viver o ritmo. Déjouer é a acção inversa, pertence à ordem da morte. A falta de diferenças rítmicas anula o movimento. Compreendendo-se por isso que a essa negação se associe a isoritmia, entendida como a morte do ritmo, resultado de uma perfeição mecânica formal. A presença de síncopes, seja na música, na cronobiologia ou nos impulsos eléctricos detectados no cérebro humano, é um sinal vital dado pelo movimento. Um certo grau de arritmia do movimento assinalará

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portanto, ainda segundo Sauvanet, a vida do ritmo associada à desordem, a uma espécie de princípio de entropia, uma vital capacidade de diferenciação na repetição que possuem as realidades estruturadas. O que se pretende fazer, para prosseguir o traçado do mapa de leituras do conto LRA, é precisamente assinalar a oscilação, não forçosamente isócrona, entre ritmia e arritmia, entendida essa diferenciação como movimento vital da construção narrativa. Observa-se o modo como esse movimento se joga entre fixação e perda de sentido, entre fluxo e paragens, entre ordem e caos. Uma vez que este texto repete e radicaliza os traços mais marcantes da assinatura da escrita de RA, ao lê-lo deste modo procura-se ainda um caminho rítmico para a leitura mais global do idioma do autor e em especial para a complexidade dos seus textos autobiográficos. A arritmia ocorre quando há uma presença ou uma ausência excessiva do irregular no regular ou do regular no irregular. De arritmia se fala igualmente quando se detecta uma ausência ou presença excessiva do contínuo no descontínuo ou do descontínuo no contínuo. Veja-se então como há ritmo dado pelo movimento da linguagem em LRA, sabendo que uma certa dose de arritmia se torna indispensável a uma ordem rítmica de conjunto, resultante de uma parte de caos sem a qual a ordem não existe. Observe-se, antes de mais alguns aspectos do funcionamento da linguagem, o modo como nela se inscreve uma certa arritmia que se pode considerar gramatical. Nas três páginas de LRA a escrita de RA é levada a um máximo de experimentação, com evidente perda de legibilidade imediata. A maior resistência do texto à leitura resulta de uma impressão de agramaticalidade que cria uma permanente impossibilidade de fixação da sintaxe da frase. Ao nível macrotextual, a sintaxe narrativa não se faz no sentido de poder criar um universo determinado para o conto, capaz de construir os seus pressupostos de legibilidade. Está-se pois perante uma situação de extrema dificuldade porque se pretende interpretar o conto e lidar com uma construção verbal de cujos sentidos possíveis a

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cada momento vão irradiando novas condições de impossibilidade, tornando-se cada vez mais forte a opacidade da narrativa. “Cansada não eles estão”, afirma a certo ponto o narrador, rompendo a progressão narrativa com esta frase exemplarmente caótica, que não consente a reordenação gramatical pois o feminino “cansada” perverte qualquer hipótese de solução que decorresse da lógica da sequência sujeito-predicado (que resultaria em “Eles não estão cansada”). Ou ainda quando diz, como a confirmar o fundamento das construções agramaticais: “Ele estribicou tropeçando na gravata na gramática na grama da encosta dos vestígios de um polícia chamado consciência (...)”. Com um certo valor autojustificativo, levanta-se outra vez o problema do tropeção na gramática, a partir do emprego de um verbo formado provavelmente a partir da palavra estribo – estribicou – deixando assim a sugestão de transgressão associada ao gesto de inventar novas derivações. A confirmar o carácter infractor da escrita de La respectueuse allumeuse, surge a cadeia de palavras “na gramática na grama”9 que em parte se lê como a na grama, recordando, no jogo fónico obtido pela frase, o efeito das letras que se sucedem para trás (o anagrama), que só significam quando lidas ao revés, ou, mais exactamente, fora da ordem normalizadora, à revelia da gramática10. 9

Sublinhados nossos. Estes jogos de sentidos ocultos a partir da relação entre a fonética e a grafia são reconhecidos como uma prática associada aos chamados poetas visionários, de que Rimbaud será um exemplo maior. A esse propósito, Mário Cesariny escreveu, nas notas à sua tradução de Illuminations e Une saison en enfer (Arthur Rimbaud, Iluminações e Uma cerveja no inferno, Lisboa, Assírio & Alvim, 1999, p.189, 190), que em tais jogos se revela uma Cabala fonética, de raiz medieval e instalada com grande voga na literatura profana a partir do sec.XIX. Escreveu o poeta surrealista: “Verbo mercurial que rouba à linguagem o que devolve à língua, assenta no princípio cabalístico da magia, negra ou branca ,a que fazem não pequena chamada o primeiro romantismo alemão (Hölderlin, Novalis, Kleist, Arnim) e o romantismo francês com Baudelaire, Nerval, depois Alfred Jarry, Rimbaud, Lautréamont, depois Marcel Duchamp Breton, Péret, Fourré.(… ) A palavra, depois de destruída duas vezes – na extrapolação e na primeira tradução – é reconduzida à constelação mítica a que pertence mesmo quando afirme o oposto da expressão inicial: Elle est retrouvée Elle erre. Trouvez Au soleil Eau sol oeil”

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Um outro exemplo de frase agramatical, entre muitos que este texto fornece, será “Desejo adulto de posse o seu a seu dona” (l.25). Eis uma frase que, sem qualquer sinal diacrítico que a pontue no final, pode ser lida imediatamente como não terminada, apenas interrompida ao ser iniciado o parágrafo seguinte. O nome, no feminino no final, não deixará contudo de propor uma leitura mais profunda da estranha frase em que os elementos parecem não jogar entre si. Destaca-se o proverbial “o seu a seu dono”, que é subjacente à formulação o seu a seu dona, que constitui a segunda metade, independente da primeira, na frase que vem a ser duplamente formada por duas metades distintas (desejo adulto de posse e o seu a seu dona). Tal como no caso de cansada, de novo o feminino (dona) torna irregular a frase conhecida, de modo que ela deixa de poder funcionar como simples repetição do provérbio. Há uma clara irregularidade no sentido obtido, embora se mantenha a aparente regularidade sintáctica e o movimento da frase não pareça sofrer qualquer alteração. Assim se poderá atestar a presença excessiva do irregular no regular, instaurando o que se chamou arritmia gramatical como claro traço de escrita, presente no limite do que pode ainda ser legível com uma certa ordem rítmica. Trata-se, com efeito, do limiar mais baixo de legibilidade, quando ainda se consente interrogar, jogar (contraditoriamente jouer e déjouer) com a possibilidade de obter efeitos de sentido, algo próximo de uma pulsação das frases, que irradie nexos como se se tratasse do ritmo de uma respiração. Da leitura do mesmo texto decorrerá uma outra arritmia, complementar da primeira, e que pode ser referida como narrativa. Os inúmeros exemplos que podem ser colhidos em LRA reiteram uma contínua dissidência sempre que se tenta fixar um possível narrativo, ordenado em função de frases que permitam a instauração de um mundo pensável a partir delas. Será este o sinal de um segundo modo de arritmia, uma vez que a linguagem faz aqui uma permanente negação de sentido, animada pelo movimento que advém da repetida

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separação da palavra de si mesma. Tal dissidência no interior da matéria narrada é instaurada desde o início por uma voz narrativa que sempre se divide e aparta, nascendo da fractura ininterrupta do lugar de origem da própria escrita. Tal será a causa efectiva do estilhaçar da sintaxe que não admite a direcção única, para passar a conter inúmeras perspectivas simultâneas e, por isso mesmo, não unificadas e sintacticamente discordantes. Por este processo se vai desenhando um movimento contínuo de dissipação do que mesmo ao nível da frase parecia único, desencadeado pela acumulação dos sucessivos e díspares fragmentos com que cada uma delas se compõe. Admite-se portanto uma presença excessiva do descontínuo no contínuo, do que seria a continuidade e complementaridade das vozes narrativas, abandonada a fim de aceder a uma sincopada polifonia narrativa, multiplicada em segmentos mínimos dentro de cada frase, cada voz desdobrada em pequenas vozes também díspares, que compõem uma ruidosa massa verbal apenas capaz de significar em função do movimento do conjunto, sem que as partes apresentem continuidades nítidas ou se completem de alguma maneira. Por analogia, poder-se-ia falar de uma imensa desafinação que produzisse alguma harmonia poderosa, quando ouvida sem a pretensão de isolar partes significativas. Ao aproximar a leitura de LRA do critério rítmico do movimento, valerá a pena estabelecer uma última analogia, que introduz a ideia contraditória da de movimento, a ideia de paragem. Aparece aqui a paragem como se fosse uma espécie de meio-dia solar, quando se verifica um máximo de verticalidade da luz, um prumo de momentâneo equilíbrio, que logo desaba no movimento de queda em direcção ao ocaso, desenhando a parábola da sua inexorável transformação. Esse momento de paragem ocorre, numa clara quebra do ritmo vertiginoso de todo o conto, quando é dita a frase final (“era uma vez uma menina”). Tal remate, que representa o mínimo ritmo, o menor movimento e o verdadeiro início do movimento catastrófico em sentido contrário, instaura um outro ciclo rítmico. Ele está no li-

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mite de maior lentidão, na quase paragem que, qual zénite do arco do movimento cónico, retoma o caminho descendente, invertendo o seu sentido. O ponto de equilíbrio, a paragem do meio-dia encontrase por ventura no fim/início deste conto que se vem a revelar exemplar quanto aos aspectos pertinentes de excessiva descontinuidade e irregularidade, os seus modos de arritmia patentes quer na sua quase agramaticalidade, quer na extrema desfiguração narrativa a que ele é submetido. O conto LRA serve ainda para apoiar uma última reflexão em torno do ritmo. A construção interpretativa sugerida pela personagem protagonista, a virgem sedutora que possui o fogo incorruptível e que simultaneamente age como incendiária do desejo, resulta numa composição de fortes referências sexualizadas. A insistência numa ritmia que se diria à bout de souffle, em acumulação de palavras que se jogam numa aparentemente gratuita associação, desenha uma leitura que pode fazer-se no território bem explorado por Bachelard com o seu conceito de “dynamogénie”: o fogo material da madeira, o fogo corporal do aquecimento do músculo e o fogo simbólico do sonho sexual. A aproximação à metáfora do fogo, lida ainda como resultado simbólico da fricção de dois corpos, já antes foi feita a propósito do recorrente recurso à ideia de queima, várias vezes presente nos escritos autobiográficos de RA e na sua auto-justificação. Assim surge o retrato feminino da respectueuse allumeuse, nova la bella emoldurada numa pose estática de que sobressai “a canícula do pescoço”. Assim é a enigmática figura que discreta quieta inquieta provoca voca por ali acima sem chegar a tocar com a luz que deita para o sinal vermelho se ver no olhar que desperta e aperta. Ao propor esta leitura, de que resultam sugestões interpretativas que reenviam sempre para sentidos construídos em função do movi-

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mento do fluxo verbal, propõe-se enfim uma analogia com a respiração, o movimento duplo de inspirar e expirar. Tal respiração não é tanto pensada como origem mas antes como rasto de movimento de um texto invisível subjacente ao próprio texto que se procura interpretar. Será esse invisível texto a marca da evanescente presença do eu que de si mesmo se aparta de cada vez que se enuncia. Em consequência dessa cisão, a língua será sempre bífida e todas as histórias surgem com um carácter bilingue. A ideia da respiração permite então encontrar uma analogia para o critério do movimento que levará a conceber o ritmo como fenómeno vivo. Nessa medida, a noção de ritmo surge ainda como um fundamento estético para a escrita, capaz de dar conta do que nela há de mais inexplicável, de mais poderoso e mais profundo: O ritmo da palavra é como se pode ver uma expressão musical – quanto mais afinado está o ritmo harmónico mais sensível aparece o estado de alma dado em pormenor pelo som silábico. Os meus estudos imaginativos têm-me levado a estas novas possibilidades onde a alma consegue definir-se estaticamente, o verbo é a criação e o ritmo é a necessidade de agitação para o homem – As palavras são a essência da vibração como folhas de árvore são necessidades de vento – Toda a religiosidade da natureza é dada pela interpretação ritmada do verbo – o verbo divino nada mais é do que a possibilidade vocálica de Deus! (A. Ruben, 1949: 133 e 134)

Cubismo, Expressionismo, Dadaísmo, Surrealismo Para seguir na via proposta e, consequentemente, alargar o trabalho de analogia, não poderá deixar de se fazer uma aproximação aos movimentos e correntes estéticas que dominaram as artes plásticas na primeira metade do século XX. P e MMP, os textos autobiográficos tão claramente

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embricados em profícuas relações com as artes plásticas e com os ecos do que, também no campo literário, se vinha pensando e produzindo em Portugal, em Inglaterra ou França nesse mesmo período, porventura consentirão ainda outras inquietantes propostas interpretativas. Parece sustentável a ideia de que a escrita de Ruben A, embora a uma distância de mais de trinta anos, pode ser colocada numa relação de grande proximidade com alguns pressupostos ou manifestações identificadas habitualmente com os movimentos dadaísta e surrealista. Admite-se que ela ainda se reveja em correntes mais circunscritas ao primeiro quartel do século, para a qual a crítica e a história de arte aceitaram os nomes de orfismo, ou ainda o movimento mais conhecido por cubismo. Algumas das suas características permitem observar ainda, concomitantemente, afinidades com o grande movimento que se designa globalmente como expressionista que, por sua vez, também se relacionou com todos os anteriores. A escrita de RA não se confina a uma poderosa afinidade com as concepções de espiritual na arte, de Kandinsky, alguma relação com o expressionismo alemão, o surrealismo ou as práticas do movimento dada. Tal escrita afirma-se de modo determinado também em sintonia com as ideias defendidas nos primeiros anos do século passado pelo poeta Guillaume Apollinaire a propósito da pintura cubista11 e, em particular, da corrente que ele veio a designar em 1912 por “cubismo órfico”. Referia-se, em Les peintres cubistes12, o poeta de Calligrammes, a uma arte que dispensava o reconhecimento de temas para valorizar preferencialmente formas e cores capazes de comunicar emoções e sentidos. Desenvolvida tão precocemente por um autor 11

Sobre este tema, confronte-se Apollinaire, Les peintres cubistes: Méditations Esthétiques, Paris Figuières, 1913; ed. ut, Paris, Hermann, 1965. Sobre o assunto, vejase também Chipp, H.B, Theories of Modern Art, University of California, 1968, ed. ut. Teorias da Arte Moderna, Editora Martins Fontes, 1988, pp.218-222. 12 Sobre o assunto veja-se Stangos, Nikos (org.), Concepts of Modern Art – from Fauvism to Postmodernism, Thames and Hudson, Ltd, Londres, 1994, pp.85-95.

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fundamental como Apollinaire, que conviveu com todas as experiências do modernismo europeu no primeiro quartel do século XX, esta reflexão estética em torno da identificação do cubismo e dos caminhos da abstracção merece ser relacionada com o campo da literatura. A importante corrente que veio a designar-se como orfismo teve como principais representantes, de acordo com o agrupamento pensado por Guillaume Apollinaire, Robert e Sónia Delaunay, Francis Picabia, Fernand Léger e Marcel Duchamp. Apenas Robert Delaunay e Francis Picabia aceitam sem reservas a classificação, o que não obsta a que se retenha a importância do conjunto de pintores e a evidente sobreposição deste orfismo a outros ‘ismos’ que posteriormente se fazem notar, tal como aconteceu com o dadaísmo ou o surrealismo. A aproximação aqui proposta entre a pintura dos Delaunay, representantes maiores do orfismo, e a escrita de Ruben A tem razões de vária ordem. Em primeiro lugar, deve-se a características marcantes da pintura de Robert e Sónia Delaunay, que se desenvolve na busca constante de formas e cores capazes de comunicarem sentidos e emoções (cubismo órfico), sem contudo perseguir deliberadamente a abstração, como veio a fazer Mondrian, pouco depois. O recurso aos famosos “círculos órficos” para representar estruturas dinâmicas não naturalistas evidencia a sua crença na geração circular da luz como princípio de toda a criação. Precisamente porque adoptam um paradigma de filiação cubista, os quadros de Robert têm títulos como, por exemplo, Janelas simultâneas ou Sol, Lua. Simultâneos. Os vestidos criados por Sónia são também chamados Simultanées. Uma vez pensadas estas afinidades, é importante acentuar que não se esgotam no chamado cubismo órfico os pontos de contacto patentes entre a obra de RA e os movimentos de vanguarda dos primeiros anos do século passado. Observe-se mais de perto o que se passa com o movimento dada, talvez o decisivo eixo de aproximação à excêntrica obra de RA, que viu a luz do dia quase meio século depois da eclosão do grupo dadaísta.

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Coincidindo com os anos da Primeira Guerra, mantendo a principal sede num país neutral, na cidade de Zurique, autores de várias nacionalidades, usando diferentes línguas (de que sobressaem o alemão e o francês), desenvolveram actividades artísticas de características rebeldes, quer em relação à política dos estados beligerantes, quer em relação aos mais consensuais valores estéticos e ao pensamento sobre a arte então mais aceite. As apresentações no Cabaret Voltaire (fundado por Hugo Ball na mesma cidade em 1916) e sobretudo o Manifeste Dada de 1918 clarificaram essa rebeldia artística à cabeça da qual se reconhece o romeno Tristan Tzara (1896-1964). O texto inaugural de Tzara, que inclui o primeiro Manifesto Dada (Manifeste de monsieur Antipyrine), é o poema dramático La Première aventure céleste de monsieur Antipyrine (1918)13. A experimentação poética, no caso de Tzara, surge marcada por uma prática de desarticulação de linguagem que assenta em rupturas de sentido e de sintaxe, sugerindo que as palavras serão agrupadas ao sabor do acaso. Ao criar efeitos de surpresa e inesperadas associações, esta escrita vai afirmando um dos propósitos essenciais da arte dadaísta que será o de dar prioridade à palavra sobre a ideia (Fauchereau, 2001: 247). “Nous extériorisons la facilité”, diz o Manifeste, “car l’art n’est pas sérieux, je vous assure”, insistindo na paradoxal afirmação do artista que garante seriamente que a arte não é coisa séria. Tanto os textos produzidos como a conhecida dramaturgia que os acompanha nas apresentações públicas acentuam a vertente de uma certa clownerie agressiva, uma ideia de facilidade e de algo de pouco sério de que se reivindicaria a arte dada. Mais tarde, dirá o mesmo Tzara, insistindo no primado do modelo da improvisação e dos jogos fonéticos para a criação de uma arte assente em novos pressupostos (em Dada manifeste de l’amour faible et de l’amour amer): “Le grand secret est là. La pensée se fait dans la bouche.” 13

O texto encontra-se reproduzido em Oeuvres complètes de Tristan Tzara, tomo I, Flammarion, 1975.

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Tzara, depois de se instalar em Paris, no início do ano de 1920, quando convive e trabalha com o grupo que dará início ao movimento surrealista em França – o mesmo grupo responsável pela publicação de Littérature – insistirá numa criação poética fiel aos princípios do dadaísmo de Zurique. Sobressai nessa criação, de modelo dadaísta, o jogo da improvisação, a tutela do acaso (o hasard) e o especial gosto pelas desordens na distribuição sintáctica, provocadas pelas associações automáticas. Este tipo de escrita é característico dos poemas e textos dramáticos do autor romeno e a sua explicitação é feita, como seria de esperar, em outros textos de Tzara, tidos por mais programáticos, como é o caso de L’Antiphilosophe, integrado no Deuxième manifeste de Monsieur Anripyrine (1920). Não se pretende apreciar a vasta obra de Tzara e ainda menos convirá tirar qualquer conclusão acerca das polémicas com André Breton e o posterior regresso ao debate em torno do surrealismo, após a Segunda Guerra. Mais do que os seus importantes textos teóricos e as polémicas em que se envolveu merece atenção, tendo em conta o âmbito deste trabalho, a sua prodigiosa e multiforme capacidade criativa. O poeta judeu romeno, sempre o principal rosto conhecido do dadaísmo, é normalmente referido como integrando os grupos de vanguarda mesmo depois da eclosão do surrealimo (Manifeste surréaliste, 1928). Tzara fixou-se em Paris em 1919 e manteve-se activo em França até ao ano da sua morte, 1964, tendo sido sempre reconhecidamente influente14. Do ponto de vista cronológico, portanto, nem sequer é muito estranho que se aproxime o autor de Caranguejo do autor de L’Antitête, uma vez que ainda partilham um tempo comum. Mas não serão as razões de 14

Tzara foi fazendo durante vários anos traduções de poetas turcos e húngaros, prefaciou edições de François Villon e Apollinaire e apresentações de livros de arte de Picasso. Escreveu o último texto, publicado um dia depois da sua morte, a 18 de Julho de 1964, em homenagem a Louis Armstrong, dando assim sinais de uma vitalidade que interessa reter.

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época a sustentar o argumento que pretende aproximar a escrita de Ruben A da corrente dadaísta e das ideias que acabariam também por ser fundadoras do movimento surrealista. Há, de facto, uma aproximação a estabelecer entre estes movimentos e o autor de Kaos, decorrente dos modos de conceber a arte, do carácter inovador das linguagens que usam e sobretudo da relação que estabelecem com a tradição e as vanguardas. No que se refere a esta última questão, é evidente que a arte dada não se quer nem antiga, nem moderna, pois compreendeu o carácter paradoxalmente transitório da modernidade, na linha do pensamento de Baudelaire. Fala-se de désespoir e de dégoût no Manifeste dada 1918 e, compreensívelmente, o núcleo de Tzara prefere recusar-se a adoptar teorias que conduzam a fórmulas que ameacem transformar-se num novo academismo. Pratica antes um lirismo torrencial, que sendo embora próximo da prática de escrita automática dos criadores de Champs magnétiques, tem rupturas que perturbam a ideia de fluxo interior, expondo uma procura não automática de novas relações sintácticas. Pertence a Tzara este verso do poema “Les écluses de la pensée”, incluído em L’Antitête : “Je me, en décomposant l’horreur, très tard” 15. O verso apresenta, com evidente contenção de palavras, a multiplicidade de significações que decorre da ideia central de “decomposição do horror”, dada pelo predicado que sustenta equilibradamente os dois extremos da frase, “Je me” e “trés tard”, separados por vírgulas. Parece que neste rigoroso verso se pode encontrar uma marca profunda da arte dada, uma escrita talvez mais rasurada e menos automática do que veio a ser a pretensão surrealista de escrita automática. O que não quer dizer que seja menos livre por isso. Tal como aconteceu com o dadaísmo, que terá sido menos forte em termos programáticos, mas cumpriu um percurso que pode pensar-se como mais rebelde ou até mais cosmopolita do que o movimento surrealista16. 15 16

Confronte-se Les Cahiers libres, 1933, p.46, sublinhados nossos. Sobre esta questão, tratada mais profundamente, pode ler-se Scarpetta, Guy, Elogio do Cosmopolitismo, João Azevedo, editor, 1988.

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Ruben A afirma, bem mais tarde, manifestando uma aguda consciência do que terá estado sempre em questão na busca do seu idioma, da escrita de cada poeta, de qualquer poeta moderno: A língua cansada, não evoluída, impede-se de nos dar coisa nova, falando a nossa época, com as inquietações próprias a um sentir desarticulado. (A. Ruben, 1970: 195) Por tudo o que se vem concluindo, faz sentido retomar o que disse Maurice Blanchot em L’entretien infini, no capítulo intitulado “Le demain joueur” (Blanchot, 1969: 597-619), a propósito da escrita automática surrealista, quando salienta o jogo desinteressado do pensamento – “présence fortuite qui joue et permet de jouer”- como o único elemento sério (sérieux) a designar. O jogo, o hasard, o aleatório (“l’aléa, entre raison et déraison”), incondicionalmente procurados, são os criadores da descontinuidade. A lacuna, a falha, a ruptura assim definidas compõem a trama textual que a linguagem dá efectivamente a ler. Fá-lo, tanto mais quanto se desacredita, na medida em que com esse descrédito recusa a ideia do real como uma plenitude homegénea que ela seria capaz de transportar. O texto de Blanchot obriga a pensar a experiência do surrealismo (e, neste caso também o dadaísmo) como algo muito mais alargado do que o movimento circunscrito a um tempo e lugares determinados, a uma série de características mais ou menos comuns a um conjunto de autores relacionados em grupo. O movimento deve principalmente ser observado, tal como aqui se tentou fazer ao relacioná-lo com a obra de Ruben A, como uma libertadora experiência de déseuvrement, em que é exposta a desordem da linguagem e se arrisca avançar para o desconhecido, recusando o saber prévio ao acto da escrita. Seguindo a lição de Tzara, reconhece-se que nesta experiência de escrita “la pensée se fait dans la bouche”. A leitura, descoberta de caminhos interpretativos e mundos possíveis, é assim proposta, na

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infinita deriva dessa espécie acaso, do jogo de analogias, do ar de família produtor de sentidos. A eterna questão do enunciado e da enunciação, entre o dito e não dito.

Bibliografia A., Ruben Páginas I, Coimbra, Edição do autor, 1949; ed. ut: 2ª edição, Lisboa, Assírio e Alvim, 1996. A., Ruben Páginas VI, Lisboa, Parceria A. M. Pereira, 1970; edição ut: 2ª edição, Lisboa, Assírio e Alvim, 2000. A., Ruben “La Respectueuse Allumeuse»” in Colóquio/Letras nº10, Fundação Calouste Gulbenkian, Novembro, 1972. Apollinaire, Guillaume, Les peintres cubistes – Méditations esthétiques, Paris, Hermann, 1965; 1ª ed, Paris, Figuière, 1913. - Oeuvres poétiques, Paris, Gallimard, 1956. Benveniste, Émile, Problèmes de linguistique générale , Paris, Gallimard, 1966. Blanchot, Maurice, L’Espace Littéraire, Paris, Gallimard, 1955. Ed. ut., Folio Gallimard, 2000. Blanchot, Maurice, L’entretien infini, Gallimard, 1969. Blanchot, Maurice, Le pas au-delà, Gallimard, 1973 Blanchot, Maurice, L’écriture du désastre, Gallimard, 1980. Fauchereau, Serge, Expressionisme, Dada, Surréalisme et Autres Ismes, Paris, Denoël, 2001 (1ªed. 1976, 2ª ed. revista e prefaciada pelo autor). Meschonnic, Henri, La critique du rythme – antropologie historique du langage, Paris, Verdier, 1982. Meschonnic, Henri, Modernité, modernité, Gallimard, 1988. Meschonnic, Henri, Les états de la poétique, Paris, Presses Universitaires de France, 1985. Sauvanet, Pierre, Le rythme et la raison, I- Rythmologiques, tome I, Paris, Éditions Kimé, 2000. Sauvanet, Pierre, Le rythme grec d’Héraclite à Aristote, Paris, PUF, 1999.

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(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo Maria do Rosário Girardier1

O método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada para dizer. Apenas para mostrar. Não escamotearei nada de valioso nem me apropriarei de formulações espirituosas. Mas os farrapos, o que cai dos dias: esses não vou inventá-los. Vou deixar que afirmem os seus direitos da única forma possível: dando-lhes uso. Walter Benjamin, Das Passagenwerk, fragmento N1a,8

Com os Descobrimentos e as suas consequências – estabelecimentos na costa da Índia, em Malaca, na China, povoamento de ilhas atlânticas, colonização e povoamento do Brasil, mais tarde, ou simultaneamente, presença em Angola, Guiné, Moçambique -, Portugal entrou num tempo histórico que lhe alterou não só o antigo estatuto de pequeno reino cristão peninsular, entre outros, mas a totalidade da sua imagem. Em sentido próprio e figurado, passou a ser dois, não apenas empiricamente, mas também espiritualmente. Eduardo Lourenço, Portugal como Destino

1. Narrativas queirosianas que abordam a temática do colonialismo Esperemos que o método e a filosofia de montagem literária preconizados por Walter Benjamin impregnem esta análise. Quanto aos «farrapos» benjaminianos, não usaremos os nossos, mas aqueles a 1

Universidade de Aveiro – Departamento de Línguas e Culturas

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Maria do Rosário Girardier

que Eça de Queirós deu uso e que afirmaram os seus direitos em diferentes narrativas, tais como: os folhetins publicados entre 1866 e 1867 na Gazeta de Portugal2, As Farpas – as primeiras referências directas às colónias surgem nesse «livrinho» (Queirós, 2004: 16) em 1871 -, o relatório A Emigração como Força Civilizadora (elaborado a pedido do ministro Andrade Corvo em 1874), as cartas que enviou de Bristol à Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro (entre Setembro de 1880 e Outubro de 1882)3, os artigos na Revista de Portugal (entre 1889 e 1890)4 e vários dos seus contos (Civilização, Singularidades de uma Rapariga Loira) e romances (O Primo Bazilio, O Mandarim, A Relíquia, Os Maias, A Correspondência de Fradique Mendes, A Ilustre Casa de Ramires, A Cidade e as Serras) de forma mais ou menos explícita. África é também o espaço onde se desenvolve o enredo de King Solomon’s Mines, de Rider Haggard, único livro que Eça traduziu5 e onde introduziu algumas alterações «subversivas» (Quatermain, 2008: 24) no sentido de realçar a descoberta e a ocupação de territórios africanos por portugueses6. 2

Na crónica «Lisboa», o narrador transcreve alguns versos cantados por uma personagem: «O preto que vem d’Angola/ Traz a bordo fava rica», o que indicia a presença de africanos em Lisboa e remete para uma imagem de África como lugar de abundância. Cf.: QUEIRÓS, Eça de (1999) in Prosas Bárbaras: 183. 3 QUEIRÓS, Eça de (2008) in Cartas de Inglaterra. 4 Estes artigos foram assinados com o pseudónimo de João Gomes. Cf.: QUEIRÓS, Eça de (1995), Textos de Imprensa VI (da Revista de Portugal). 5 Relativamente à polémica sobre o grau de participação de Eça de Queirós na tradução ou revisão, ler: QUATERMAIN, Allan (2008), «Introdução» in As Minas de Salomão - Edição Crítica: 15-20. 6 A tradução da primeira parte do romance As Minas de Salomão apareceu no quarto número da Revista de Portugal, em 1889, ou seja, já depois da Conferência da África Ocidental, acolhida por Bismarck em Berlim (realizada entre 15-11-1884 e 26-02-1885), mas antes do Ultimato Britânico (1890). A questão da partilha de África e a ameaça aos direitos históricos sobre as colónias é matéria da actualidade. Na mesma Revista, nas várias «Notas do Mês», Eça evoca frequentemente a tensão nas relações anglo-lusas: «… colocaram a actividade colonizadora da Inglaterra face a face com a nossa propriedade histórica.» (Queirós, 1995: 70). Apesar de céptico relativamente ao poder colonizador de Portugal, Eça de Queirós não resistiu a corrigir o que via como uma representação literária adversa aos interesses de Portugal: Cf. Op. Cit. Quatermain: 15-91.

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(Inter-)Identidade portuguesa na narrativa queirosiana sobre o colonialismo

Feito o levantamento dos textos do diplomata, cronista e escritor7 - onde podemos encontrar referências e/ou discursos alusivos à questão do colonialismo português -, urge enquadrar o homem nos tempos e na geração que com ele partilhou o cair dos dias.

2. O passado e o futuro do presente do presente de Eça de Queirós Dado o objectivo do estudo – a compreensão dos sistemas de representação inter-identitários através da exegese textual –, decidimos apoiar-nos nas reflexões de Eduardo Lourenço. Durante séculos, Portugal era «um país que tinha um império» (Lourenço, 2001: 16). Não obstante, nos meados do século XVI, abandonam-se os pontos fortes em Marrocos; no século XVII, holandeses e ingleses vão conquistando o monopólio comercial do Oriente; com a Restauração, «cede Bombaim, Tânger e a mão de uma princesa à aliada e, desde então, sempre protectora Inglaterra» (ibid.: 23). Dáse então uma «translação do sonho imperial português do Oriente para o Brasil» (ibid.: 22). Em 1785 corre o manuscrito de Francisco de Melo Franco, O Reino da Estupidez, poema satírico («A mole Estupidez cantar pretendo/Que distante da Europa desterrada/Na Lusitânia vem fundar seu reino»8) que valerá o encarceramento ao seu autor. A Inquisição, embora enfraqueça gradualmente ao longo do século XVIII, só em 1821 é extinta formalmente numa sessão das Cortes Gerais. No século das Luzes, o esforço do rei João V, que convida Luís António Verney, autor do famoso Método de Estudar, para colaborar no processo de Reforma Pedagógica, não é suficiente para 7

Dada a leitura atenta das várias obras de Eça de Queirós, e com o apoio de várias fontes documentais, julgamos poder afirmar que este levantamento é exaustivo. Contudo, não afastamos a possibilidade de sermos surpreendidos por especialistas queirosianos com a revelação de outros textos/narrativas que evoquem, de forma objectiva ou simbólica, a temática do colonialismo. 8 FRANCO, Francisco de Melo, «Canto I» in O Reino da Estupidez: 3.

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aproximar Portugal dos ventos do progresso cultural que anima a Europa. «Nós adaptámos o romantismo a uma cultura e a um país que não tivera Luzes», afirma Eduardo Lourenço (ibid.: 26). Mas, pela primeira vez, com o romantismo, «Portugal discute-se» (ibid.) e «de certa maneira, Portugal e a sua cultura nunca mais deixaram de se discutir» (ibid.). Almeida Garrett e Alexandre Herculano refundam, remitificam Portugal. Cinco anos depois da Revolução Liberal, Garrett escreve o poema Camões. Garrett recria Camões, «é ele o verdadeiro rei Sebastião» (ibid.: 32), foi ele que «salvaguardou» (ibid.) a memória de Portugal. Também Herculano se reapropria do passado e inventa uma nova História de Portugal. Entre 1851 e 1890, Camilo Castelo Branco escreve mais de duzentas obras: sentimentaliza a vida portuguesa e naturaliza a ficção entre nós. Na década de 60, «Paris, então capital cultural da Europa, fica ligada a Lisboa. (…) Portugal acede um pouco ao coração da Europa. Portugal, isto é, a sua escassa classe financeira, industrial, aristocrática e política, mas também, paradoxalmente, a sua classe intelectual. É nesse momento exacto que uma nova geração (…) descobre que não é europeia» (ibid.: 37). Antero de Quental é a figura de proa da plêiade de jovens que se tornou conhecida por Geração de 70. Eça de Queirós acompanha-o e cria a sua própria aura. Conhece Antero em Coimbra, em 1864, onde ambos estudam Direito. O movimento de renovação ideológica que protagonizam tem início com a Questão Coimbrã (1865), desenvolve-se entre membros do Cenáculo e afirma-se nas Conferências do Casino Lisbonense (1871). Não está só em causa uma nova estética literária. O carácter revolucionário da mensagem é mais abrangente. Ricoeur9 diria que se enraíza o acto de imputação nas Causas da Decadência 9

«A acção é a posse daquele que a pratica, que é sua, que lhe pertence propriamente. Sobre este acto ainda neutro do ponto de vista moral enraíza se o acto de imputação que reveste uma significação explicitamente moral, no sentido em que ela implica acusação, desculpa ou absolvição, censura ou louvor, em suma, estimação segundo o “bom” ou o “justo”.» in RICOEUR, Paul (1988), «L’identité narrative», Esprit, Julho-Agosto: 298.

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dos Povos Peninsulares nos Últimos Três Séculos. Para Eduardo Lourenço, «essa visão do passado nacional, evocado e condenado sem apelo, (…) era uma espécie de sacrilégio cultural sem precedentes e, de um certo modo, um parricídio» (ibid.: 39). Uma nova mitologia é proposta, desprovida de justificações de ordem transcendente: «Pela primeira vez entre nós, a ideologia – sob a roupagem do socialismo proudhoniano – ocupava e reclamava para si o estatuto de legitimação cultural, até então desempenhado pela religião» (ibid.: 40). Eça de Queirós é o autor da 4ª Conferência, intitulada «A Literatura Nova ou o Realismo como Nova Expressão de Arte», proferida a 12 de Junho de 1871. Depois do ministério do Duque de Ávila o exonerar das suas funções de Administrador do concelho de Leiria10, durante uma conversa com Ramalho Ortigão, lança a ideia de escreverem uns opúsculos semelhantes aos de Alphonse Karr («Les Guêpes»). As Farpas são escritas e, logo no primeiro fascículo, Eça revela o seu imaginário sobre a posição de Portugal na Europa: Portugueses – pequenos, obscuros, sem nenhuma espécie de significação ou de influência no movimento das ideias ou no movimento dos factos universais (…). Pouca importa o nosso voto, o nosso juízo ou a nossa vontade! A nossa única missão, improrrogável e fatal, é submeter-nos, e aceitá-la. (Queirós, 2004: 52) 10

Maria Filomena Mónica estabelece uma relação de causa-efeito entre a participação de Eça nas Conferências do Casino e a sua exoneração da Administração do concelho de Leiria. A investigadora justifica ainda a proposta de Eça a Ramalho Ortigão - de escrita de As Farpas – pelo facto do escritor se encontrar sem emprego (Queirós, 2004, «Introdução»: 4). Existe contudo uma falta de coerência nas datas. Na verdade, as Conferências têm início em Maio de 1871 e o primeiro número de As Farpas é datado do mesmo mês/ano – apesar de o fascículo só ter sido posto à venda a 17 de Junho. O que o próprio Eça escreve no fascículo 7 (Novembro de 1871) é que, apesar de ter ficado classificado em primeiro lugar nas provas para cônsul que prestou a 1 de Outubro de 1870, mais tarde teria sido preterido para um lugar vago na Baía porque «o sr. Ministro dos estrangeiros declarara que eu não poderia nunca entrar na carreira consular, porque eu era… O Chefe do Partido Republicano em Portugal!» (Op. Cit.: 250).

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Boaventura de Sousa Santos bem poderia intitular esta passagem de Portugal, «um Caliban na Europa» (Santos, 2002: 46).

3. Entre Prospero e Caliban – a tese de Boaventura de Sousa Santos sobre colonialismo e inter-identidade O nosso corpo teórico fundamenta-se essencialmente nas hipóteses de investigação formuladas originalmente na obra de Boaventura de Sousa Santos, Pela mão de Alice: O social e o político na pós-modernidade (1994). Essas hipóteses e novas reflexões foram desenvolvidas posteriormente no artigo do mesmo autor: «Entre Prospero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade» (2002)11. Para efeitos da presente análise centrámo-nos neste último artigo e, mais especificamente, na problematização relativa ao colonialismo (pondo de lado as implicações do colonialismo no pós-colonialismo português). Foram resgatadas as seguintes hipóteses: i. Sendo Portugal, «desde o século XVII um país semiperiférico no sistema mundial capitalista moderno» (Santos: 23), nunca assumiu plenamente «as características do Estado moderno dos países centrais, sobretudo as que se cristalizaram no Estado liberal a partir de meados do século XIX» (ibid.: 23-24). ii. Sendo protagonizado por um país semiperiférico, o colonialismo português foi, ele próprio, «semiperiférico, um colonialismo subalterno, o que fez com que as colónias fossem colónias incertas de um colonialismo certo» (ibid.: 24). iii. Tendo em consideração as suas características e a sua duração histórica, «a relação colonial impregnou de modo particular e 11

O par conceptual Prospero e Caliban é inspirado na peça Une Tempête de Aimé Césaire em que, apropriando-se o escritor e ideólogo da negritude, por sua vez, das personagens de Shakespeare na peça homónima The Tempest, faz Prospero encarnar o colonizador europeu e simboliza em Caliban o povo colonizado e oprimido.

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intenso as configurações de poder social, político e cultural, não só nas colónias como no seio da própria sociedade portuguesa.» (ibid.). O poder, em Portugal e nas colónias, foi sempre mais colonial do que capitalista. iv. As culturas nacionais são uma criação do século XIX, o produto histórico de uma tensão entre universalismo e particularismo gerido pelo Estado. Sem um Estado forte, «a cultura portuguesa é uma cultura de fronteira» (ibid.: 25), tendo sempre dificuldade em se diferenciar de outras culturas e mantendo, a nível interno, uma forte heterogeneidade. Partindo deste corpo teórico, analisámos o uso que Eça de Queirós deu aos «farrapos» de discursos e práticas da época em que viveu, no sentido de aferir as (suas) representações inter-identitárias do país e (em menor grau) das colónias.

4. Identidade «dupla» A escrita de Eça de Queirós percorre os anos que vão de 1866 a 1900. Temos pois que, todas as obras, incluindo As Farpas, obra sobre a qual mais incidimos a nossa análise – pela quantidade de referências ao tema e porque, apesar de satírico e (sempre) subjectivo, o discurso é mais directo -, são urdidas já depois da Conferência de Berlim (18641865). Parte dos artigos publicados na Revista de Portugal são escritos no ano que antecede o Ultimato Britânico de 11 de Janeiro de 1890. As Farpas, Emigração como Força Civilizadora, Cartas de Inglaterra, o conto Singularidades de Uma Rapariga Loira e os romances O Primo Bazilio, O Mandarim e A Relíquia são também anteriores ao Ultimato. Os restantes textos (artigos e romances) nasceram ou foram revistos depois de 1890. Guerra Junqueiro escreveu nesse ano o opúsculo Finis Patriae, cujo título per se elucida sobre o ambiente político vivido na

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época. Afirma Jaime Cortesão que «a intimação brutal da Inglaterra imperialista impressionou vivamente Eça de Queiroz, como aliás os espíritos mais nobres e lúcidos de Portugal» (Cortesão, 2001: 19). Para Eduardo Lourenço, com o Ultimato de 1890, «de súbito, nós, que já não tínhamos nem verdadeiro império nem imaginário imperial desde os princípios do século, com a natural independência do Brasil, acordámos para o império africano (…) e aí buscámos uma imagem de nós próprios» (Lourenço: 55). Estas considerações prévias tornam-se relevantes, tanto mais que Boaventura de Sousa Santos identifica o final do século XIX (e primeiras décadas do século XX) como um dos raros momentos de Portugal Prospero12 (Santos: 65). Segundo Santos, «se alguma vez Prospero se disfarçou de Caliban, foi com a máscara dos portugueses. Semicolonizadores e semicolonizados (…) os portugueses não puderam regular eficazmente as suas colónias» (ibid.: 75). A tese do investigador assenta no pressuposto de que «a norma é dada pelo colonialismo britânico e é em relação a ele que se define o perfil do colonialismo português, enquanto colonialismo subalterno» (ibid.: 26), É um pensamento que vai ao encontro do que Eça de Queirós escreve em A Emigração como Força Civilizadora (1874): «[a Inglaterra é] a raça a quem cabe o privilégio de primeiro no mundo ter colonisado por systema (…). Os Inglezes que desde o século XVI se derigiam à America não eram conquistadores, nem missionários, nem negociantes, eram verdadeiros colonisadores.» (Queirós, 1979: 23). O colonialismo anglo-saxónico assenta numa polarização extrema entre colonizador e colonizado. O que lemos em Eça – desde As Farpas – é que o colonialismo português subverteu essa polarização. Portugal é Prospero e Caliban. Ou, seguindo a reflexão de Boaventura de Sousa Santos: «A identidade do colonizador português é, assim, duplamente 12

Boaventura de Sousa Santos distingue apenas dois momentos de Prospero: o período referido é o primeiro; o segundo corresponde ao período do 25 de Abril e a adesão à EU: Op. Cit: 65.

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dupla. É constituída pela conjunção de dois outros: o outro que é o colonizado e o outro que é o próprio colonizador enquanto colonizado» (Santos: 42). Como veremos, as representações queirosianas vão ao encontro desta tese, ilustrando-a de maneira quase perfeita.

5. 1. Hibridismo Centremo-nos na primeira hipótese. A fragilidade do nosso liberalismo vai gerar um estado de desenvolvimento económico «intermédio» e, do ponto de vista cultural e identitário um forte hibridismo ou, se quisermos, uma forma diferente de ser e estar face aos «binarismos próprios da modernidade ocidental: natureza/cultura, selvagem/civilizado, tradicional/moderno» (Santos: 24). Eça de Queirós revela claramente esse hibridismo n’ As Farpas referentes à cidade de Lisboa e à sociedade lisboeta finissecular. No jogo de representações, a metrópole é espelho e reflexo das colónias (ou póscolónias, o Brasil), mais do que exemplo de prosper(o)idade. A narrativa, realista (com pendores naturalistas), faz uso de recursos estilísticos variados, criando uma magnificação disfémica do lugar e das suas gentes. Em nenhuma outra cidade da Europa a mortalidade se pode comparar à de Lisboa. Em África, apenas, morre, nas regiões mais insalubres, tanta gente como aqui. Em nenhuma outra parte há tantos pequenos escrofulosos, tantas mulheres cloróticas, tantos homens oftálmicos, raquíticos, pequenos e feios. (Queirós, 2004: 478) Lisboa é a cidade mais suja da Europa. (ibid.: 290) Por não haver onde, as famílias pobres de Lisboa não se banham nunca. (…) A indiferença municipal colabora no raquitismo e na bestificação do município. (ibid.: 479)

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Durante os últimos dois meses foi tão grande o número de recémnascidos abandonados em diferentes pontos da cidade, que Lisboa comoveu-se. Ela que tão raramente se comove! (…) em benefício dos direitos humanos nada por certo mais eficiente do que a medida que acabamos de ver decretada: um bico de gás em cada escada! Um porteiro em cada prédio! (ibid.: 337-339) Eça não quer ser cúmplice na «indiferença universal» (ibid.: 17), pelo que aponta «o que poderíamos chamar – o progresso da decadência» (ibid.). Em As Farpas, o alvo é a elite política do país. E, afirma, «que de uma vez se ponha a galhofa ao serviço da justiça!» (ibid.). A má fama do barroco, uma constante do século XIX - talvez porque, como dirá Eugeni D’Ors, «deseja fundamentalmente a humilhação da razão» (D’Ors, 1964: 102) -, é manipulada por Eça contra a Câmara Municipal de Lisboa. A hibridação está na sugestão da «regeneração» exótica: A câmara municipal de Lisboa, diz-se, compenetrada da necessidade iniludível de melhorar as condições da cidade trata com toda a solicitude de fazer a aquisição – de um leopardo. Diz-se ainda que depois procurará alcançar – para completar a obra de regeneração municipal – araras do Brasil. (ibid.: 289) A burguesia é, para Eça, uma «caricatura» sob as roupagens de uma aspirada modernidade: Sim, Offenbach, com a tua mão espirituosa, deste nesta burguesia oficial – uma bofetada? Não! Uma palmada na pança, ao alegre compasso dos “cancans”, numa gargalhada europeia. (ibid.: 29) A burguesia desprendeu-se da crença, fez-se “livre pensadora”. (… ) A religião ficou sendo um artigo de moda. Expulsa da consciência liberal, as burguesias enriquecidas tomaram-na sob sua protecção:

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é um bom-tom aristocrático. (…) Aceitam Deus como um “chic”. (ibid.: 19) Na narrativa queirosiana, a indústria, como actividade económica, afirma-se pela sua ausência. A única referência indirecta revela-se nos tipos que compõem a «sombria e triste multidão lisbonense» (ibid.: 364). Um dos tipos é «O operário» (ibid.: 366). A sua caracterização remete, mais uma vez, para o hibridismo. Não há indústria, há ofícios honrados, sendo o operário um escravo dos modismos da civilização: Tipo incaracterístico. É o janota barato e em terceira mão, assim como é o janota “dandy” de pouco preço. Detesta blusa e prefere parecer um fidalgo indigente e desmoralizado a representar um honrado sapateiro ou um digno tecelão. Particularidade notável: Não há em Portugal operários velhos. (ibid.) Não sendo Eça de Queirós «um cabide onde se ponha um “bonnet rouge”» (ibid.: 251), o socialismo proudhoniano subjaz às suas considerações sobre o estado da agricultura em Portugal – a começar pela sátira à estrutura social, cuja hierarquia tem laivos feudais. A real associação central da agricultura portuguesa é uma sociedade que tem casa e um parque no pátio do Duque de Cadaval… Na casa quatro cavalheiros jogam o “whist”. No parque, sob as árvores, algumas senhoras fazem partidas de “croquet”. (…) De quando em quando, na estação do campo, alguns sócios da real associação (…), caçando codorniz nos restolhos, ou pescando a truta em algum ribeiro, falam aos agricultores com quem se encontram (…), e os lavradores, então ,tiram comovidos o seu chapéu, e coçam reconhecidamente na cabeça. (ibid.: 440)

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O influente ordinariamente é proprietário; foi cavador de enxada, enriqueceu, tem ambições, quer ser da junta de paróquia, da junta dos repartidores, e mais tarde num futuro glorioso, vereador! (…) Na véspera das eleições todos o vêem montado na sua mula (…). Dispõe de 200 ou 300 votos: são os seus criados de lavoura, os seus devedores, os seus empreiteiros, aqueles a quem livrou os filhos do recrutamento, a bolsa do aumento de décima, ou o corpo da cadeia. (…) As suas fazendas não são colectadas à justa: “é o influente”! (ibid.: 61) Vejamos a província! (…) estendiam-se pirâmides de púcaros e panelas de barro, montes de melancias, cabazes de pêssegos e canastras com galinhas, que cacarejavam (…) Os homens eram magros, requeimados do sol, pálidos, com as mucosas desbotadas e os beiços lívidos. Tinham o olhar triste e dilatado dos convalescentes. (ibid.: 148)

5. 2. Subalternidade Portugal é um país semiperiférico, com um colonialismo subalterno, o que se traduz no domínio das práticas e dos discursos. Se lermos a narrativa queirosiana como uma auto-representação do colonizador, percebemos a impossibilidade de emergir um Prospero, mesmo que imaginário, e a situação da «dupla colonização das colónias». Que o país despreza as colónias; que elas estão abandonadas a uma frouxa iniciativa particular, sem estímulo, sem protecção, sem tranquilidade; que a iniciativa é excelente mas só pode desenvolver-se num país bem policiado: que nas colónias não há garantias de segurança, nem tranquilidade; que não há melhoramentos, nem protecção ao comércio, nem exército, nem higiene, nem instrução; que

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tudo ali vive na desordem, na desorganização, no desleixo, e numa antiquíssima rotina: e que o único movimento que há é o do estrangeiro que as explora de facto – apesar de nós as possuirmos de direito. (Queirós, 2004: 117) A exploração capitalista das colónias pressupõe capacidade política, administrativa e militar. Eça salienta essa condição e a sua impossibilidade. Mesmo se, a partir da Conferência de Berlim, a pressão para uma ocupação efectiva dos territórios aumentara. Antes de tudo, nós não temos marinha. Singular coisa! Nós só temos marinha pelo motivo de termos colónias – mas justamente as nossas colónias não prosperam porque não temos marinha! (… ) Das 8 corvetas que temos – são inúteis para combate ou transporte – todas as 8.(…) Há ideia de as alugar – como hotéis! A nossa esquadra é uma colecção de jangadas – disfarçadas! Este grande povo de navegadores acha-se reduzido – a admirar o vapor de Cacilhas. (Queirós, 2004: 117) Eça de Queirós acusa e resiste com a arma da ironia a um défice claro de colonização portuguesa. Prospero não se afirma nas possessões do Oriente, nem nas colónias africanas. a) Oriente. Eduardo Lourenço fala de criticismo patriótico na Geração de 70 e As Farpas de Eça assumem nestes trechos todo esse sentido. O que dói é «o presente diminuído à espera de redenção» (Lourenço, 1999:139). [Camiloff, general inglês:] Mandarim, meu amigo, não é palavra chinesa, e ninguém a entende na China. É o nome que no século XVI os navegadores do seu país, do seu belo país… - Quando tínhamos navegadores… - murmurei, suspirando. Ele suspirou também, por polidez. (Queirós, 2003:72-73)

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Houve este mês um pânico patriótico: julgou-se que íamos perder Macau. Os chins, dizia-se tinham intimado modestamente a evacuação, cheios de energia – e de rabicho! (…) As nossas colónias são originais neste sentido: que o único motivo por que elas são nossas colónias – é o não estarem situadas na Beira. Porque não nos dão rendimento algum: nós não lhes damos um palmo de melhoramentos: é uma luta… de abstenção! (ibid.: 115) Oliveira Martins, na sua História de Portugal, cita uma expressão que atribui a Afonso de Albuquerque: «As coisas da Índia fazem grandes fumos!» (Martins, 2003: 189). O mesmo autor remata: «em fumo se havia de tornar o império efémero que [Albuquerque] construía na sua mente» (ibid.). É deste último fumo que Eça de Queirós dá conta: O corpo de engenheiros na Índia é de vinte oficiais, e não tem soldados. Nem precisa! (…) se ela não tem canais, nem estradas, nem pontes, nem edifícios, nem calçadas ,não é positivamente pela razão humilhante de falta de homens. Quando o estrangeiro curioso pergunta à Índia pelos melhoramentos materiais que se sucederam ao empréstimo colonial contraído por D. João de Castro sobre os cabelos da sua barba, a Índia orgulhosa manda pôr os bigodes da sua engenharia pela ordem pomposa das respectivas habilitações. (Queirós, 2004: 191) Há na Índia portuguesa uma escola de Medicina. Esta escola, de que têm saído inumeráveis sábios, acha-se estabelecida em Goa. Há pouco tempo um naturalista inglês, em viagem nas Índias, apeou-se do caminho-de-ferro que serpenteia naquela região torcendo-se por fora das nossas possessões (…). O naturalista britânico viajou pois em cesto (…). Por fim despejaram-no em Goa (… ). O viajante foi introduzido, e achou-se frente a frente e a sós com o nosso antigo e ilustrado amigo João Stwart da Fonseca Thorie. Este homem, de uma rara erudição e elevado talento, era naquele

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estabelecimento o lente proprietário e substituto de todas as cadeiras, o director, o conselho e o secretário da escola. Há ocasiões em que (…) além de fazer as vezes de todos os lentes, que não há, [é obrigado] a fazer igualmente as vezes de todos os discípulos, que também não há! (ibid.: 195-197) b) África. Boaventura de Sousa Santos defende que para «a desqualificação e estigmatização de Prospero cafrealizado contribuiu também a origem dos portugueses que povoaram os territórios» (Santos, 2002: 57). Desde o início do século XV que cada navio que partia para a exploração de África levava o seu contingente de degredados. O que Eça delata é que a prática persiste no fim do século XIX. Igual zelo pelas possessões do África, verdadeiras e legítimas colónias, essas! Para aí o país é inesgotável… de celerados! Mas são escolhidos com inteligência. Um sujeito que tenha tido a baixeza de roubar 5$000 reis nunca poderá aspirar a fazer parte da sociedade de Luanda. Para se ser remetido como mimo da Metrópole – é necessário pelo menos, ter sondado com navalha de ponta as entranhas de um amigo querido! Nobre solicitude! (Queirós, 2004:116) O relato seguinte é mordaz: um erro diplomático do governador geral de Angola origina uma guerra (1871-1872)13. O que emana desse episódio é a existência de uma subalternidade invertida - derivada da forte disjunção entre colonizado e Estado colonial. O colo13

Em 1872 o dembo Caculo Cahenda, revoltou-se. A resposta militar portuguesa foi materializada através do envio de uma coluna comandada pelo Tenente-Coronel Gomes de Almeida. O aparente sucesso militar traz consigo uma paz negociada com a manutenção do Status Quo. No período de 1890 a 1907, os dembos, entraram em conflito com os portugueses três vezes. Para mais informações, ler: MARRACHO, António Machado (2008), Revoltas e Campanhas nos Dembos (1872-1919) 47 Anos de Independência às Portas de Luanda.

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nizador não compreende que não é Senhor mas vassalo, como qualquer outro nativo, de um rei local. Temos pois que a subalternidade não se afirma apenas face à Europa central. Há um risco trágico na história do corrente mês: temos a guerra dos Dembos. A guerra, a crua guerra, ó leitor pacífico, sacode o facho homicida ao rosto lívido e maternal da pátria confrangida. (…) A questão foi a seguinte: Um régulo africano apresentou-se a prestar homenagem ao governador geral de Angola. Este preparou-se para a entrevista vestindo o grande uniforme, pregando as suas condecorações e calçando luvas cor de pérola. (…) Respondeu-se-lhe que o preto se achava na sala de espera, de tanga. (…) e sua excelência em nome da praxe e do pudor recusou a audiência ao negro. Daqui o despeito, a animadversão e a guerra. (ibid.: 571-572) Na metrópole, obviamente, os arquétipos são importados - da Inglaterra (em termos de política colonial) e da França (em termos ideológicos, ou ao nível dos modismos). Na Europa, Portugal é um pequeno Caliban. Todos os estrangeiros notam, todos os viajantes consi-gnam, (…) que somos o país dos tristes, dos cismáticos, dos piegas, dos choramingas. Isto procede de sermos o país dos mandriões e dos ignorantes: a mandriice é a mãe do tédio; em século tão instruído como o actual a ignorância não pode deixar de produzir uma tristeza desconsolada, abatida, profunda (…) ninguém na Europa sabe menos, ninguém trabalha menos do que nós na Europa. Parece que só não foi para nós que os pensadores meditaram, que os historiadores escreveram, que os naturalistas pesquisaram, que os químicos descobriram, que os filósofos averiguaram! (…) aproveitamos apenas binóculos para as toilettes de S. Carlos e lunetas para as fisionomias do Passeio Público. (Queirós, 2004: 113-114)

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Lisboa é uma cidade gulosa, como Paris é uma cidade revolucionária. Paris cria a ideia e Lisboa o pastel. (ibid.: 415) Que significa a construção do período à inglesa – adoptada pelo discurso da coroa? Que britânico furor a tomou de colocar adjectivos antes dos substantivos? É uma adulação à pérfida Albion? (…) Que significam as expressões repetidas repetidas de pública fazenda, nacional riqueza? São influências da política inglesa? (ibid.: 97) Com o Ultimato de 1890, Portugal toma consciência de que é um verdadeiro Caliban face ao Prospero Inglaterra. Eça de Queirós afirma então o direito (de colonizado) a uma expressão de auto-significação. A sua escrita passa a revelar-se, mais do que nunca, como um instrumento de construção da consciência nacional: afirmando a diferença face ao Outro (opressivo), mas sem deixar de aceitar as premissas intelectuais da modernidade (fundadas na forma de ser do Outro). [Ingleses:] O povo duro que britanizou a Índia. (Queirós, 1995: 69) Odiar a Inglaterra? Sentimento bem legítimo – porque, por muito cristão que se seja (e nós somos inteiramente pagãos), não podemos abençoar quem nos brutalizou. Mas o ódio fixo, em perpetuidade, cultivado e organizado como Programa Nacional (e assim o apregoam os manifestos) que significa? (…) Mas que esse sentimento seja secundário na vasta obra que temos diante de nós, agora que acordámos. (ibid.: 76-77) É com efeito mais importante para Portugal possuir vida, calor, energia, uma ideia, um propósito – do que possuir a terra de Mas-

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hona: mesmo porque, sem as qualidades próprias de dominar, de nada serve ter domínios. (ibid.: 73)

5. 3. Mais colonial que capitalista Esta hipótese remete para um modo estar da sociedade portuguesa per se e para o tipo de poder exercido nas colónias. O deficiente desenvolvimento interno do país inviabiliza o controlo das colónias, o que condiciona as representações inter-identitárias. Santa cordialidade de relações! Às vezes a Metrópole remete-lhe um governador; agradecidas as colónias mandam à mãe pátria uma banana. É vendo este grande movimento de interesses e trocas que Lisboa exclama: - Que riqueza a das nossas colónias! Positivamente, somos um povo de navegadores! (Queirós, 2004: 115) Por que temos colónias? E em primeiro lugar não as teremos muito tempo. Podem-nos ser expropriadas por utilidade humana. (...) Tirar-nos as colónias é conquistá-las para a riqueza e para o progresso. Nós temo-las aferrolhadas na nossa miséria: no nosso cárcere privado de civilização. (…) Elas mesmas o sentem, sentem-no os Açores sobretudo, província próxima mais abandonada que uma colónia distante. E têm razão. Povos novos e fortes não querem estar presos à nossa decadência; com elementos de riqueza não querem sofrer as fatalidades do nosso aniquilamento; (…) nós somos o pai pródigo. Que prestígio, que razão tem a nossa tutela? Por consequência – sejamos vilmente agiotas, como compete a uma nação do século XIX – (vide Alemanha, etc.) – Vendamo-las! Sim, sim! Bem sabemos, toda a sorte de frases ocas! A honra nacional, Afonso Henriques, Vasco da Gama, etc.! (…) Dilema pavoroso! (…) – porque não teríamos governo que administrasse o produto! Miserere! (ibid.: 120-121)

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A expressão do colonialismo no Brasil criou um habitus que acabou por perpetuar o poder, apesar da independência em 1822. Eça de Queirós é claro, neste sentido. No Brasil, ao colonialismo externo sucede o colonialismo interno: O governo do Brasil, quase tão solícito como o nosso pela instrução do povo, acaba de dotar uma verba de cem contos de reis destinados a dotar cada uma das escolas do império com um crucifixo. (…) Brasil! Terra fenomenal da cachoeira e do mato virgem! Pátria ditosa de Magalhães e do Sabiá! Se não conseguir ensinar-te a ler, que Deus pelo menos te abençoe e te faça santo! (Queirós, 2004: 275-276) O imperador14 com a sua vontade ilimitada e pessoal impõe moralmente ao Brasil a colónia portuguesa – que por outro lado a indústria, o comércio, a importação de braços lhe impõem socialmente. (…) Esse ódio comercial a uma colónia [em Pernambuco], manifestado por agressões e pancadas (…). Teria que ver se os srs. Brasileiros depois de serem célebres pela sua bonomia aspiravam a serem gloriosos pela sua ensanguentada ferocidade. (Ibid.: 508-509)

5.4. Cultura de fronteira Em 1874, em A Emigração como Força Civilizadora, Eça de Queirós vai ao encontro deste pensamento, afirmando que, historicamente, «os portugueses não foram nunca emigrantes colonos. Foram simples commerciantes: as suas viagens são commerciaes: os seus estabelecimentos não são colónias propriamente ditas de criação agrícola e in14

Eça refere-se a D. Pedro II do Brasil que reinou de 1841 até à instauração da República (15-11-1889).

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dustrial, são uma série de comptoirs defendidos por fortalezas; nasceram do instincto commercial, não do trabalho colonisador» (Queirós, 1979: 22). Ou seja, o objectivo da presença portuguesa não era «o povoamento civilizador da terra» (ibid.: 15). E não é apenas o emigrante comum que não possui predisposição para aculturar os povos com os quais estabelece contactos. As elites, nomeadamente a diplomática, em As farpas, são acusadas de «oferecer como resultado dos seus trabalhos há vinte anos o seu papel almaço – em branco. (…) Que conhecimento têm dado a esses países das nossas instituições, do nosso comércio, da nossa ciência?» (ibid.: 225-226). A frustração do escritor face à nação que parece empenhada em não querer ser Prospero, convive com a resignação de Caliban. Eça não deixa de indagar os mesmos diplomatas sobre «Que relações sólidas, que protecções valiosas têm obtido para a nossa pequenina nação? Que estudos têm feito sobre a organização e instituições desses países? Em que sábios relatórios as têm aconselhado para nosso progresso?» (ibid.). Serão contudo alguns dos seus personagens quem melhor ilustram esta dificuldade de diferenciação face a outras culturas nacionais. Temos «Raposo, Português, de Aquém e de Além-Mar» (Queirós, 2002b: 71) mas o mais paradigmático é, certamente, Carlos Fradique Mendes. Fradique é todas as civilizações reunidas. Em Lisboa «aparece vestido com uma cabaia chinesa» (Queirós, 2002: 26), no Cairo veste «uma larga quinzena preta e um colete branco fechado por botões de coral. E o laço da gravata de cetim negro representava bem, naquela terra de roupagens soltas e rutilantes, a precisão formalista das ideias ocidentais» (ibid.: 35). Declara-se Bab, que em persa quer dizer porta - «a única porta através da qual os homens poderiam jamais penetrar na Absoluta Verdade» (ibid.: 46), sendo o babismo uma seita religiosa que agrega o melhor de todas as religiões cristianismo, judaísmo, guebrismo, maometismo (ibid.). Boaventura de Sousa Santos justifica também essa «cultura de fronteira» com a inexistência de um Estado forte, capaz de promover

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homogeneidade cultural no interior do território. Assim, se por um lado não existem elementos que permitam uma diferenciação positiva face ao estrangeiro, internamente existiria uma grande heterogeneidade. Eça, centrando a acção da maior parte dos seus romances em Lisboa e sobretudo, criando uma dicotomia rígida entre personagens do campo e da cidade, não nos dá fundamentos para confirmar esta valência da tese de Santos.

6. Imagens associadas a África Portugal Caliban (re)produz outras identidades subalternas – a das colónias. Muito sucintamente, numa análise que se centrou no imaginário de África presente na ficção queirosiana, identificamos os seguintes eixos identitários: [conotação negativa] - Local de degredo/punição, servindo esta imagem, simultaneamente, para afirmar o poder de quem ameaça (em diferentes contextos, foram sujeitos a esta ameaça: Juliana, de Primo Bazilio; Palma Cavalão, em Os Maias; Noronha e Casco em A Ilustre Casa de Ramires); - Refúgio face a humilhação/insucesso na Metrópole (Macário, de Singularidades de uma rapariga loira; Jorge, de Primo Bazilio; Carlos da Maia, em Os Maias; Gonçalo Ramires e Titó em A Ilustre Casa de Ramires); - Terra de escravos/indígenas sem cultura (Primo Bazilio; Gracinha Ramires e José Barrolo, em A Ilustre Casa de Ramires); [conotação positiva] - Local de abundância (Macário, no conto citado; Gouvarinho, de Os Maias; Gonçalo Ramires);

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- Natureza luxuriante e selvagem/paraíso (Gonçalo Ramires); - Se associada ao negro leal e digno, que vive na Europa (Bento, em A Ilustre Casa de Ramires; Grilo, de Civilização e A Cidade e as Serras). Eça nunca sanciona o despotismo e violência dos Europeus em África (os textos mais esclarecedores são os de Cartas de Inglaterra; Fradique Mendes é o personagem que melhor representa esta postura de respeito face à diferença do Outro). Contudo, não chegando ao ponto de afirmar, como Hegel, que «Africa had no history» (Merrington,2000: 105), cria uma hierarquia entre civilizações: «Pior, muito pior, é violentar culturas como as do Egipto, Índia ou China.» (Queirós, 2008: 39).

Conclusão As identidades são sempre relacionais. É nesse sentido que a narrativa queirosiana representa um ‘Portugal Caliban’. Ao longo de As Farpas, e em particular no Fascículo nº 10, completamente dedicado aos «Fastos da Peregrinação de sua Majestade o Imperador do Brasil por estes reinos» (Queirós, 2004: 358-395), Eça revela uma grande animosidade contra D. Pedro II e contra os brasileiros em geral. O destino do refúgio da família real portuguesa aquando da invasão francesa em 1807, transformado depois em nação irmã, não parece ter sido bem assimilado pelo escritor. Da mesma forma, após o Ultimato de 1890, o seu discurso tende a ser menos corrosivo com a pátria e mais feroz para com o agressor15. Através de uma argumentação objectiva ou pelo uso da sátira e da 15

Eça de Queirós, contudo, já «maldizia» a colonização inglesa em Cartas de Inglaterra. Colocava o seu enfoque no modo «como eles trabalham sobre as antigas civilizações como a Índia, onde existem artes, costumes, litteraturas, instituições, em que uma grande raça pôs todo o seu génio» (in Cartas de Inglaterra: 63).

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ironia, o autor afirma sempre uma atitude de resistência. Mas, face a uma ameaça ou facto (histórico) real, tende também a negar o outro, e a disputar uma elevação (ou superioridade) na identidade. A sua escrita torna-se assim uma forma de subversão da subalternidade. Em 1891 Eça escrevia no artigo «A Decadência do Riso»16 que «a humanidade entristeceu. E entristeceu - por causa da sua imensa civilização» (Queirós, s/d: 165). Eduardo Lourenço leria aqui um «regresso à casa lusitana» (Lourenço: 55) motivado pela humilhação simbólica que a Europa tão admirada perpetrara. Concordamos com a sua ideia de um Eça fascinado-decepcionado com a Europa mas, nem o conto Civilização, nem o romance de que constitui a génese, e que foi o último que escreveu, A Cidade e as Serras, nos convencem da perda da sua capacidade de subversão. Na nossa opinião, Eça projecta sempre um destino, ou um futuro do futuro da Pátria, à imagem do herói absurdo Sísifo. Ler-se-á, por vezes, que deverá ser um Sísifo feliz. Mas a decadência do riso queirosiano impregnou sempre todos os tempos e lugares.

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Foi publicado originalmente na Gazeta de Notícias. Integra a obra QUEIROZ, Eça (s/d), Notas Contemporânea: 162-167.

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La defensa del libre albedrío en el Esfuerço Harmonico de Miguel de Barrios Miquel Beltrán y Joan Lluís Llinàs1

Observación liminar El barroco atendió, más que cualquier otra época en Occidente – excepción hecha de los primeros siglos de literatura latina en nuestra era – la posibilidad de tratar los más sutiles asuntos metafísicos bajo la compleja forma métrica impuesta por la poesía. Desde Calderón a Sor Juana Inés de la Cruz, cuestiones como la de la libertad del albedrío o la posibilidad de acercamiento a la divinidad fueron tratadas en obras teatrales o en poemas filosóficos de tanta envergadura estética como intelectual. Lo mismo ocurrió entre los más renombrados poetas judíos. Baste recordar el Poema de la Reyna Ester de João Pinto Delgado, pero también los numerosos textos poéticos dedicados a elucubrar sobre nociones que los filósofos esclarecían en prolijos tratados, por parte del capitán Miguel (Daniel Leví) de Barrios. En las páginas que siguen intentamos, creemos que por primera vez, un estudio del ‘Esfuerço Harmonico’ de este último autor considerando las fuentes de su argumentación, para dar cuenta de la validez, en el orden de la especulación, de estos versos destinados a esclarecer la naturaleza del arbitrio. El Esfuerço Harmonico, poema del capitán Don Miguel de Barrios en el que éste “descrive, defiende, y prueva la verdad del libre Alvedrio, respondiendo à las objeciones que se le oponen”, forma parte de la 1

Universitat de les Illes Balears La investigación previa a la redacción de este artículo ha sido posible gracias a la participación de sus autores en el proyecto titulado “La comunidad judía de Ámsterdam y Spinoza” (HUM 2006-11468) financiado por el MEC y cofinanciado por el FEDER.

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compilación de obras del autor intitulada Libre Alvedrio y Harmonia del Cuerpo por disposición del alma. Dirigido, al infinito creador, en la ara de su divina carroça2, y fue publicado por vez primera en 1680. Tal como indica la descripción de su cometido que subtitula el poema, éste trata de la cuestión del albedrío libre en el hombre. Scholberg, en su edición de la poesía religiosa de Miguel de Barrios, que data de 1962, incluía fragmentos del Libre Alvedrio -entre los cuales el Esfuerço Harmonico en su totalidad -y observó en su prólogo que la obra no había recibido hasta entonces la atención crítica que sin duda merece. Casi medio siglo después, habrá que admitir que el texto carece todavía de un examen crítico pormenorizado, y no sólo desde el punto de vista filosófico, sino también desde el literario. La propensión que Scholberg demostró hacia la producción religiosa del poeta de Montilla no parece haber sido ampliamente compartida por los diferentes estudiosos que se han dedicado con algún afán al examen de la poesía de Barrios después de él. Queremos aquí ahondar en la consistencia filosófica de los argumentos que Barrios esgrime en defensa del albedrío libre, y explicar en parte las razones de su directo interés por tan ardua cuestión (en particular de cómo el conocimiento que el poeta pudo poseer de las acerbas controversias en torno a la cuestión de la predestinación y la gracia, que tuvieron lugar en la España de su tiempo, le hicieron detenerse en aspectos de aquella problemática que se alejan del empeño que, como post-marrano3 que había abrazado el judaísmo en tierras italianas,4 habría debido ocuparle en el propósito de consolidar dicha religión). 2

La primera edición del Livre Albedrio es, en efecto, de 1680. La que nosotros estudiamos,con las anotaciones al margen, es ésta, y en nada difiere de otra con la que la cotejamos, publicada en 1688. En ambas se lee que ha sido ‘impresso en Brusselas, En Casa de Baltasar Vivien’, pero se trata de ediciones falsificadas. En realidad imprimió la obra David de Castro Tartás, en Ámsterdam (cf. Boer 1996, p. 55). 3 Es ésta una expresión acuñada por Méchoulan (Cf. 1978a y b. También Méchoulan 1991). 4 En Liorna, a donde llegó procedente de Niza, fue donde Barrios “fue circuncidado y abrazó plenamente la religión de sus antepasados” (Scholbert 1962, p. 9).

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En sus versiones completas el Libre Alvedrio comprende diez composiciones distintas, y algunas de ellas tratan también, de modo indirecto, la cuestión de la libertad humana, como son Harmonia del Cuerpo o Real Consideración del hombre5. El Esfuerço Harmonico está compuesto por 612 versos y se halla dividido en trece secciones. Lo precede, además, un poema de cuarenta versos6 que se erige como prólogo a los distintos textos que comprende la obra, y en él se afirma la inmortalidad del alma, que se querrá probar con argumentos filosóficos en el poema Harmonia del cuerpo. La consideración del alma como inmortal y la recurrente defensa del arbitrio libre parecen correr parejas en la vindicación que hicieron de su religión los pensadores de la comunidad judía de Amsterdam, y se concretó en la pugna por afianzar ciertas creencias teológicas en torno a una muy peculiar recuperación de aquélla. En tierras holandesas, esto ocurrió ya desde el inicio bajo la constante preocupación de no poner en peligro, a través de la misma, las relaciones político-religiosas que se habían establecido con la mayoría protestante que dominaba en el ámbito político los Países Bajos. Los dirigentes religiosos de las Provincias Unidas habían aceptado el establecimiento de los primeros miembros de la comunidad imponiendo, sin embargo, ya en las primeras décadas del siglo XVII, que, al emprender la recuperación de los principios de su fe, los judíos no se atrevieran a contravenir ciertos dogmas que el calvinismo holandés pretendía incontrovertibles como fundamento de toda religión permitida. En el Esfuerço Harmonico se presentan trece objeciones a la naturaleza del albedrío libre, concernientes, algunas de las mismas, a la propia inteligibilidad de la noción –dado que el discurrir de las leyes de la naturaleza podría coartar su posibilidad- que se contestan en 5

Lo completan, además, Quadriga de Amor Celestial, Creacion del Universo y algunos poemas breves, e incluso un único texto en prosa, una descripción de la visión mística de Ezequiel intitulada Carroça de Ezequiel. 6 Antes aún hallamos un soneto titulado Sol y Escudo es el Señor Dios.

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estrofas que, tras ser presentada cada una de aquéllas, se destinan a probar, inversamente, su existencia e idoneidad. Al inicio del poema se describe el albedrío libre comparándolo con ‘Un bagel que si lo rige de la virtud el timon, sigue al Norte de la gloria en olas de tentacion’7 un ‘cavallo que quando corre sin la rienda del temor, lleva al que mal lo govierna, hasta hazerlo su Phaëton’8 o un ‘camino de vida, y muerte para el fiel, y el transgressor que vá à la Corte gloriosa, y à la carcel de Pluton’.9 La fuente directa de estos símiles es la cuarta parte del Conciliador o de los lugares de la S. Scriptura que repugnantes entre si parecen, de Menasseh ben Israel, obra publicada en Amsterdam en 1651. Menasseh había querido en aquella ingente obra conciliar –de ahí el títulola aparente contradicción entre pasajes de la escritura que parecen refutarse mutuamente. Entre las cuestiones que hallan en distintos lu7

En nota marginal se remite el símil a Isaías 54:11. El símil se remite en la nota al margen a Daniel 8:25. 9 En nota al margen se remite el símil a Jeremías 21:8 y Eclesiastés 15:17. 8

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gares del Testamento una aparentemente irreconciliable justificación están, por un lado, el arbitrio humano libre, y por el otro, la preordenación con la que Dios establece el devenir de las cosas10. En las seis primeras secciones de la parte iv del Conciliador se compendian argumentos de Agustín, Tomas o Suárez, además de las numerosas fuentes hebreas que ben Israel utiliza. Barrios, a su vez, elabora los argumentos en los que se divide el Esfuerço a partir de aquéllos, recurriendo también sin embarazo a fuentes y argumentos católicos. Menasseh había establecido su solución a aquella presunta incompatibilidad en estos términos: ‘Otras vezes sin forçar el libre alvedrio, inclina el coraçon de los reyes, poniendoles tales raçones delante que se persuadan, y no se fuerce la voluntad’11. Además, Dios vio desde su eternidad todos los futuros sucesos, no como contingentes, sino como infalibles, porque la hora y punto de la eternidad no admite diferencias de tiempo. En Dios es lo mismo decir que sabe que decir que supo, de modo que su presciencia no fuerza las acciones humanas, porque no las ve futuras, sino presentes, y ‘obradas con el libre alvedrio que concedió a los hombres’12. La edición del Esfuerço Harmonico que pretendemos examinar se halla cuajada de anotaciones al margen en las que se detallan los pasajes de las obras en las que se halla ya sea la objeción a la que el poeta quiere oponerse, ya la defensa que Barrios perpetra. De Cicerón a Quevedo, de Gregorio a Luis de León. Dios como autor y los hombres como actores de la comedia de la vida. La primera objeción contra la que Barrios aducirá sus peculiares argumentos se halla en la parte segunda del poema. Leemos que en 10

La enumeración exhaustiva de pasajes de la Escritura que parecen defender ambas nociones sería una tarea ingente. Entre los que podría sospecharse que se vindica el albedrío libre se hallan, por ejemplo, Deut 30:15; 30;:19, Mal. 1:9, Job 34:11, y Prov. 19:3. Entre los que inducen a creer en la preordenación de las cosas citaremos Salm. 135:6, 1 Sam 2:6, Is. 45:7, Salm. 127, Job 34:29, Salm. 104:29. 11 Conciliador tomo iv, p. 8. 12 Conciliador tomo iv, p. 10.

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Proverbios 21, Salomón sostiene, según los versos en los que Barrios la compendia, que ‘à todo lo que Dios quiere inclina al regio valor’13 En primera instancia, parecería no dejarse lugar a la libre elección humana, pero la defensa de Barrios sostiene, de modo concluyente, lo contrario, y se basa también en los Proverbios de Salomón (Prov. 21:4, y 16:5), ‘Si lo inclina, no lo fuerça pues el propio Rey mostrò que no haziendo lo que deve, es yerro su ostentacion’14 No hacer lo que se debe, es yerro, de modo que la culpa del obrar mal recae sólo en el agente. Sin embargo, la objeción segunda incide en que sin que Dios lo quiera, la voluntad humana no podría moverse sólo por sí misma, de este modo ‘sin voluntad divina ninguno el passo moviò’15

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En cursiva en el original. En Proverbios 21:1 leemos: “Arroyo de agua es el corazón del rey en mano de Yavé, que Él dirige a donde le place”. 14 En cursiva en el original. Proverbios 21:4 reza: “Ojos altivos, corazón soberbio, luz de los impíos, son pecado’, de modo que en efecto parece lícito concluir con Barrios que el hombre peca cuando yerra. También en Proverbios 16:5: “Aborrece Yavé al de altivo corazón, pronto o tarde no quedará sin castigo”. 15 En cursiva en el original.

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Esta voluntad, no obstante, y según la inmediata defensa, ‘es un querer, no un rigor que fuerça’, pues si forzara sería necesariamente hacia el bien, nunca hacia el mal ‘porque à forçar diera justa ocupación. No injusta, que esto no cabe en la bondad superior, supuesto que solo quiere lo bueno, y lo malo no’ El hombre hace lo que quiere del poder que Dios les da, y puede, siguiendo la Ley, hacer lo correcto, aunque Dios ‘como primer moviente’ concurre en el acto, en el sentido de que, si no lo hiciera, nadie podría poner en acto su propia voluntad. Barrios da el siguiente ejemplo: Un bajel ‘llevado del soplo aereo’ puede sin embargo ir a la parte opuesta, sin que tenga privación ‘que le impida andar al Austro, ò echar al Septentrion’. Así, movido por su propia deliberación, que depende de él mismo, el hombre puede ‘seguir ò al supremo impulso ò al movimiento inferior’ Puede el hombre así inclinar su voluntad a cada uno de los dos extremos, pero tan solo una vez Dios consiente en moverla, y dirigirla ‘una à donde le encamina la bondad del Promotòr, y otra à donde el mal dictamen lo lleva à su inundacion’

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Refiere Barrios Salmos 36:23, donde David canta ‘que ordena los passos Dios, y que el camino que quiere el hombre, siempre siguiò’16 Aquí Barrios parece no contemplar incompatibilidad alguna entre la ordenación previa de Dios y la libertad humana, como si ambas ocurrieran en dos planos diferentes que no se interrelacionan entre sí, algo cuyos precedentes cabría rastrearlos en la tratadística judía medieval acerca de la cuestión, según la cual aquello que en el plano divino es preordenación de las cosas es en el del hombre libertad, insólita solución que podemos hallar, incluso, en los Cogitata Metaphysica de Spinoza: “Por lo que respecta a la libertad de la voluntad humana, que dijimos que es libre, también es conservaba por el concurso de Dios: ningún hombre quiere o ejecuta nada, fuera de lo que Dios decretó ab aeterno que quisiera o ejecutara. Cómo, sin embargo, pueda tener lugar ese concurso sin menoscabo de la libertad humana, supera nuestra capacidad. Mas no por ello vamos a rechazar lo que percibimos claramente a causa de lo que ignoramos. Pues, si prestamos atención a nuestra naturaleza, entendemos clara y distintamente que…somos libres en nuestras acciones y que, precisamente porque queremos algo, deliberamos acerca de ello. Y si prestamos atención a la naturaleza de Dios…también percibimos clara y distintamente que todas las cosas dependen de él y que sólo existe lo que él decretó ab aeterno que existiera”17. 16

En cursiva en el original. Aunque la nota al margen remite, como decimos en el texto, a Salmos 36:23, tal versículo no existe. Con probabilidad Barrios pensaba en Salmos 37:23, donde se lee: “Por Yavé se afirman los pasos del varón cuyo camino le place”. 17 La cita se halla en CM 1/3 (Cogitata Metaphysica, Parte Primera, Capítulo 3). En la edición canónica de Gebhardt se halla en el tomo I, p. 243, líneas 25-37, p. 244, línea 1. La traducción al castellano es de Atilano Domínguez (Alianza Editorial, n. 1325, p. 242).

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En la parte tercera del Esfuerço Harmonico, Barrios concede la natural disposición del inicuo a decidirse por el mal ‘Porque desde su niñez tuvo perversa intencion’18 Con todo, y llamándolo ‘el adversario’, Barrios describe el parecer de Pablo en la Epístola a Romanos, que en su poética interpretación compendia así: ‘era el saber de la carne enemistad contra Dios’19 De modo que ‘el hombre está por la privacion de la original justicia, pronto à siguir lo peor Que pues por naturaleza ofende al que todo obró, no tiene por si poder para pedirle perdon’20

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En cursiva en el original. La nota al margen remite a Gen. 8:21. En cursiva en el original. La nota al margen, en efecto, remite a Romanos 8:7. 20 En cursiva en el original. La nota al margen remite a Deut. 5:22. 19

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Tras exponerla en los versos anteriores, Barrios emprende un ataque contra la tesis de la naturaleza corrupta de los hijos de Adán, que el poeta establece en los siguientes términos ‘A esto el mismo Dios responde Quien le influyera temor, para que el mi Ley guardasse, y le diesse el premio yò!21 ‘Vesse aquí que por si puede admitir la correpcion, pues solo es capàz del premio quien es del merecedor’ Y aunque la carne se ve inclinada a los bajos deseos, el querer de Dios puede reconducir el alma ‘Si de la carne el saber haze à Dios oposición, de espiritus quebrantados es su querer el crisol.’ Pues, según Barrios ‘el pensamiento veloz se dirige libremente’ ‘à donde lo lleva el peso del uno ò del otro amor’ La parte cuarta del Esfuerço Harmonico trata de dar solución a la célebre cuestión del endurecimiento del corazón del faraón por

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En cursiva en el original.

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parte de Dios22, que Maimónides al igual que otros exégetas medievales se esforzaron por solventar, dada la amenaza que parecía representar para el albedrío libre. Escribe Barrios: ‘Si el haver endurecido el pecho de Pharaòn de Balaam abierto el lavio, y empedernido à Sihòn; Alguna señal descubre de que el Summo Proveedor23 les quitò el libre Alvedrio por la elegida nacion; Pruevo mas esta verdad, pues si Dios se lo quitó; ergo que antes lo tenian para su condenacion’ 22

Durante siglos los sabios del Talmud intentaron interpretar el pasaje según el cual la actitud del faraón se halla en apariencia determinada. Dios dice: “y yo endureceré el corazón del Faraón y multiplicaré en la tierra de Egipto mis señales y mis maravillas. Y Faraón no os escuchará. Más yo pondré mi mano sobre Egipto, y sacaré a mis ejércitos, mi pueblo, los hijos de Israel, de la tierra de Egipto, con grandes juicios. Y sabrán los egipcios que yo soy Yavé, cuando extienda mi mano sobre Egipto y saque a los hijos de Israel de en medio de ellos” (Ex. 7:3-5). El significado de ‘endurecer el corazón del faraón’ ha desconcertado a los exégetas hasta nuestros días. Parece indudable que Dios tiene el poder de cancelar, en circunstancias insólitas, el albedrío libre, inclinando la voluntad hacia el mal. Pero ello, como Barrios señala, comporta que el faraón no carecía del mismo antes del endurecimiento de su corazón. Por otro lado, el episodio de Balaam se resume en que éste no pudo decir ante Balac, quien le había mandado llamar para maldecir al pueblo de Israel, sino lo que Dios ‘ponía en su boca’, de modo que estaba determinado lo que dijera. Por último, con respecto a Sihón, Barrios no cita correctamente. Se trata de Deut 2:30,en que se lee: “Pero Seón, rey de Hesebón, no quiso dejarnos pasar por su territorio, porque Yavé, tu Dios, hizo inflexible su corazón, para entregarle en tus manos, como hoy lo está”, y no de Deut. 33, como anota el poeta al margen. 23 En cursiva en el original. Barrios remite estos episodios a Ex. 4:21, Num. 22:37 y Deum. 33.

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Pero el haber sido libre hasta entonces no obsta para que la imposibilidad efectiva del faraón de dejar partir el pueblo se dé, en ese preciso momento, desde una férrea determinación causada por Dios. Lo mismo ocurriría con los episodios de Balaam en Números 22:37, y Sihón en Deum 2:3024 Sin embargo, si Dios se lo quitó, antes lo tenían, y este albedrío los inclinaba de modo persistente hacia el mal. Por lo demás, en el momento en que lo fuerza Dios probaría su poder, tan sólo arrebatándoles el auxilio necesario para realizar el bien, cuya concesión depende de Él mismo en inmediata instancia. En la parte quinta del Esfuerço se plantea otra interesante objeción: El hombre no puede conocer, por naturaleza, las cosas divinas, de modo que no tendría tampoco poder para poner su afición en ellas, ‘porque ninguno lo que no supo no amò’25. La defensa de Barrios procede del modo siguiente ‘Si aquello que se cree haver por bueno se desseò, aunque se ignore lo que es, claro està que influye amor. El hombre aunque no conoce como es la alta perfeccion, viendo en sus obras que es buena, la ama con ciego fervor’26 24

Como decíamos en una nota anterior, se trata de Deut. 2:30 y no de Deut. 33. En cursiva en el original. 26 La anotación al margen remite a Salmos 146:5: “Bienaventurado aquel cuyo auxilio es el Dios de Jacob, cuya esperanza es Yavé, su Dios”, y Sab. 13:5: “Pues en la grandeza y hermosura de las criaturas, proporcionalmente se puede contemplar a su Hacedor original” 25

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Y más adelante, con respecto a quien ama a Dios por conocer su bondad a través de sus obras ‘No atendiò à cosas del siglo sino à las que empyreas son; porque ciega para el Mundo el que mira para Dios’ Se precisa, sin embargo, del poder asistido de Dios para amarlo. Si éste nos es dado, será posible amarlo, aunque no lo es conocerlo en Sí mismo, ‘Del poder propio assistido tras de su imaginacion con no ver por donde và, và donde considerò Los que à Dios assi caminan, por si en su investigacion, aunque nacieran vendados, encuentran con su favor. La parte sexta expone que debe sin embargo iniciarse en el hombre el movimiento de amor a Dios que hace que Éste le otorgue su gracia, asistiéndole, y ésta es la diferencia crucial por la cual la necesidad de su asistencia no implica que sea Él quien decide qué hombre inclinará su voluntad hacia el bien, y cuál no lo hará, la controvertida creencia protestante que los judíos de Amsterdam no podían en modo alguno admitir. Será la disposi-ción iniciática de la criatura la que propiciará que el auxilio divino le sea otorgado. Así lo expresa Barrios, ‘Dios es fuego, y no calienta sino al que busca su ardor,

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porque de uno es dar la luz, y de otro la aceptacion’. La objeción a este punto es la siguiente ‘Si en el presidio del Mundo el que llorando naciò, es violentado en la obra27; como es libre en la eleccion?’ En primer lugar, si careciera de libertad, no sería justo castigarlo, argumento a posteriori harto usado por los defensores del albedrío libre. ‘Si libertad le faltara, pecar fuera institucion, y pena para el juzgado, la culpa del juzgador. Entre la virtud, y el vicio nunca huviera distincion, ni de piadoso, ni recto tuviera Dios el blason. Quexarse el mortal deviera, si para su destruccion, yerros forçado arrastrara en la carcel del dolor’. Si Dios es justo, ¿como puede criar al hombre para el error? ¿O condenarlo al castigo si el que peca no hace otra cosa sino obedecerlo, es 27

En cursiva en el original.

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decir, seguir la inapelable inclinación de su voluntad preordenada por Dios ab initio?. Sería ignorancia o desesperación en Dios –aduce Barrios- ser autor de los hombres para que lo ofendieran. De modo que éstos en modo alguno pueden carecer de la libertad para amarle y obedecerle. La objeción siete postula ‘que el mortal’ no comete los delitos por la creación, sino por la corrupción. Barrios arguye ‘Diré que antes del pecado el hombre que Dios formó no podìa corromperse, sino con su execucion’ Esto es, sólo sus actos podían corromperlo, ya que su naturaleza era inmortal, de modo que Adán pecó ‘por la parte apetitiva’. Y esto fue así porque Dios le había entregado ‘en su bien y mal dictamen la vida, y la perdicion’ De modo que ocurrió que ‘De su creacion con el malo no hay duda que delinquió, pues si Dios se lo negara, no incurriera en el error. Y si huviera 28(como quiere el tenaz contraditor) perdido el libre Alvedrio en los laços del dragon’29 28 29

En cursiva en el original. En cursiva en el original.

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El ‘tenaz contraditor’. Se trata, de nuevo, de Pablo, que negaría que el hombre corrupto tuviera la posibilidad de elegir el bien tras la caída, pues ésta habría corrompido para siempre su naturaleza. En su defensa, y contra lo anterior, Barrios escribe, ‘No Dios entonces mostrando casi especie de temor lo echara del Paraiso, conociendo su ambicion’. La parte séptima del poema resulta ser la crucial desde el punto de vista filosófico, y en ella es donde se vislumbran los diferentes influjos de las controversias sobre la gracia y el auxilio divino que se produjeron en tierras ibéricas a lo largo de los siglos XVI y XVII, y de las que Barrios podía saber, bien por haber vivido entre españoles gran parte de su vida anterior a la llegada a Amsterdam, bien por la lectura de los textos de ben Israel u otros conocedores de las mismas que en la comunidad judía de esta ciudad escribieron con respecto a la cuestión de la predestinación divina y la libertad humana. La noción del concurso divino en forma de auxilio recuerda a Báñez, pero se da una diferencia fundamental que inclina su versión de la gracia hacia la posición de Molina, el gran adversario de aquél. Leamos, primero, la objeción en el poema de Barrios ‘Si dize que para errar con la libertad quedò, mas no para hazer lo justo sin la gracia superior Aquello, y no esto concedo, porque segun viendo estoy, primero que el sacro auxilio es la humana conversion’30 30

En cursiva en el original.

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Scholberg escribía en su prólogo a la edición que preparó de la poesía religiosa de Barrios que ‘cabe decir que la posición del poeta sobre la gracia…está más cerca de la ‘gracia eficaz’ de Molina que de la ‘gracia suficiente’ de Báñez’31. Los versos anteriores, en efecto, muestran la decisiva inclinación hacia posiciones molinistas de Barrios, pues se da una libertad prístina, originaria, en el hombre, que puede querer libremente rogar por obtener el auxilio divino antes de la decisión divina de otorgarlo, y puesto que éste es el requisito previo para dicha obtención, podrá decirse en efecto que aquella gracia es insuficiente. El que Dios la otorgue depende de la natural inclinación que se halle en el hombre de pedirla, dado lo cual se da también una diferencia capital entre lo que defiende Barrios y la libertad que los molinistas vindicaban. A Barrios le interesa ante todo destacar una absoluta responsabilidad del hombre frente a Dios, que haga tanto comprensible como justa la eventual imposición de un castigo divino posterior a la muerte, algo de cuya importancia para la comunidad judía de Amsterdam le es imposible dudar a quien conozca las fervorosas controversias mantenidas en torno a esta cuestión en el seno de la misma, en la década de los treinta del siglo XVII32. El modo realmente disuasorio en el que rabinos como Saul Leví Morteira combatieron las opiniones de quienes se negaban a creer en un castigo eterno posterior a la muerte, como es el caso de Isaac Aboab de Fonseca y otros cabalistas seguidores de Herrera, puede probar por sí mismo la magnitud político-religiosa de la polémica. La vindicación de la gracia eficaz perpetrada por Molina tenía, sin embargo, un cometido algo distinto; ésta se define por oposición a la teoría bañeziana del auxilio divino ab intrinseco, esto es, que por su naturaleza tiene una infalible conexión con el efecto, en virtud de la premoción física que determina a la voluntad en la realización de toda acción, y que habría sido decretada por Dios en términos abso31 32

Scholberg 1962, p. 92. Altmann describió magistralmente dichas controversias en su artículo de 1972.

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lutos33. Las razones políticas que llevaron a la acerada controversia entre Molina y Báñez están en la base del posterior enfrentamiento teológico entre sus seguidores. No ha lugar para considerarla aquí. Con todo, cabe decir que desde el punto de vista teológico, Molina defendió contra Báñez una consideración de la gracia eficaz ab extrinseco, esto es, que tiende infaliblemente a un efecto contemplado por Dios no en función de que Él mismo lo haya decretado, sino por medio de un elemento externo, a saber, la ciencia media, gracias a la cual Dios conoce todos los futuros contingentes con una suerte de anterioridad lógica con respecto a Sus propios decretos. Conoce, en particular, cuáles serán los actos que cada uno de los hombres realizaría bajo la incitación o el auxilio de cierta gracia particular. De este modo Molina salvaguarda la libertad de elección humana, cuyas decisiones se hallan fuera del ámbito del conocimiento divino, pero sabiendo Él las circunstancias en que cada uno de nosotros se hallará en todo momento, y también lo que cada uno haría con su libertad en éstas o aquéllas circunstancias, puede prever qué actos libres acometerá el hombre a lo largo de su vida, aunque no predeterminándolos causalmente. Molina reduce así la predestinación, en lo tocante a los designios de la voluntad humana y a las acciones que se siguen de ella, a la presciencia de Dios, y no a los medios usados para que ésta se produzca.34. La libertad de indiferencia que Molina se obceca en vindicar era extraordinariamente importante para los jesuitas dadas sus pretensiones pedagógicas y de expansión político-religiosa. El propósito de Barrios, y por extensión, el de los tratadistas judíos que se ocuparon de la cuestión del arbitrio en el Amsterdam del XVII era distinto: asegurar la justicia de Dios en el juicio de las almas, que les aterrorizaba de modo especial pues éste era un dogma que se les había impuesto man33 34

Cf. Bañez 2002. Cf. Luis de Molina 2007.

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tener por parte de los dirigentes religiosos de Holanda, a través de la Remonstrantie de Grocio, pero que no formaba parte de su dogmática originaria. No hay distancia, sin embargo –lo mostraremos a continuación- con respecto al molinismo en el hecho de que, para el autor del Concordia, dos hombres pueden recibir de Dios el mismo auxilio interior, y sin embargo el uno convertirse, por el buen uso que hace del mismo en virtud de su libre decisión, y el otro sin embargo no hacerlo, echando a perder, por así decirlo, la gracia concedida. Pero la gracia eficaz de Molina se supone in actu primo en la predefinición virtual de toda buena acción, lo que es decir que está presente, desde el inicio, en ese acto, en virtud de que Dios sabe que su auxilio llevará a tal resultado. La obra capital de Molina asegura que el inapelable dogma de la predestinación es compatible con la libertad de indiferencia de la voluntad humana, pero no tiene como objetivo primordial garantizar la absoluta responsabilidad del hombre frente a Dios. Al igual que Barrios, también Abraham Pereyra, autor de La Certeza del Camino, aducía que si el hombre no quisiese previamente el auxilio de Dios, la gracia precedería a los méritos de aquél, lo que sería lo mismo que conceder arbitrariedad a su concesión35. Sucede, al contrario, que ‘este auxilio presupone haver antecedido la obra, como quando un hombre quiere levantar una carga y no puede solo, viene otro a ayudarle, y assi la pone al ombro’36. En el poema de aquél ‘Dios no fuerça, mas ayuda al que sale del error, por la voluntad que tiene natural cooperacion’

35 36

Cf. La Certeza del Camino, p. 109. En Méchoulan 1987. Cf. La Certeza del Camino, p. 109. En Méchoulan 1987.

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Y apelando, esta vez, al De natura deorum ciceroniano ‘Por lo qual pedirle deve (narra el docto Ciceròn) el bien de seguir lo justo Tal necesidad de ayuda no coarta, en ningún caso, la libertad, tal como en la parte octava del poema Barrios se esfuerza por probar: ‘No es falta de libertad estar atado al Criador, mas es un acto prudente que anhela su proteccion’37 Y compara ‘Puede con la medicina quedar sano el que enfermò: mas como podrà curarse si el tomarla despreciò?’ Así, el poder del albedrío humano consiste en lo siguiente: ‘Poder tiene, pues que puede no admitir la aplicacion medicinal, ò con ella hazer bueno el mal humor Impide el Rey soberano por ser triaca interior, 37

En cursiva en el original

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que el veneno del pecado le penetre el coraçon Queda à su arbitrio el curarse con tal celestial doctor, porque en el querer del hombre està el que lo sane Dios’ En la parte novena Barrios aduce que los episodios de Sodoma, ciudad que Dios habría, a los requerimientos de Abraham, salvado de ser destruidos por la lluvia de azufre y fuego si en ella hubiera hallado diez hombres justos, o Nínive, a la que perdonó, probarían que si existe el mérito, Dios otorga su auxilio. Escribe el poeta ‘Que hay merito se conoce, pues el sacro Emperador à Sodoma perdonava por el que en diez no se halló’ Para concluir: ‘Solo el humano por si adquiere el glorioso honor, que no debe al nacimiento, sino à su especulacion Si obrara forçado, fuera indigno de galardon: y pues es digno, se prueva que de su obrar es Señor’ La parte décima del poema se ocupa de la cuestión de la predestinación, y remite a Proverbios 16:4 donde, según Barrios, Salomón afirmó

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‘que Dios todo lo criò por si propio, y al impìo para el dia del horror’38 La objeción plantea nuevamente el decreto de la naturaleza corrupta del hombre ‘Quiere el Contrario que sea este, el hombre pecador que dexar de ser no pudo por alta disposicion. Concluye que el Rey Supremo, no màs que por la razon de haverlo determinado se condena el hombre, ó no’39. Pero Barrios replica que – e importa reproducir aquí varias estrofas del poema ‘Si no le puede faltar lo que Dios predestinó; esto es prever su accidente, pero no ser su ocasion. Porque à ser, no amonestara que dexando el agressor la culpa, merecimiento la harìa en su reducion. 38

En cursiva en el original. Proverbios 16:4 reza, en efecto: “Todo lo ha hecho Yavé para sus fines, aun al impio para el día malo”. 39 En cursiva en el original.

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Ni al justo lo amenaçara, diziendo que si traydor le ofendia, que su muerte seria su obstinacion. Pues si previò que hallaria en su mano y su mansion aquel, azote funesto, y este, laurel vencedor; Del acto condicional se hallara en el formador si mentida la amenaça, falsa la amonestacion. De aquí pruevo que à forçar el saber del Causador, ni a uno llamara à la enmienda ni a otro diera su temor.’ También la parte undécima se ocupa de la predestinación, y toma el ejemplo de Jacob, en su rectitud innata, que Agustín eligió también en algunas de las cartas en las que expuso su visión de la preordinación de las cosas. Previò ab eterno en su idea lo que en tiempo prorumpiò, de Jacob la rectitud, y la iniquidad de Edom’

La objeción que Barrios entiende enfrentar es la siguiente:

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‘Si como juzga el Sectario por la predestinacion, ni aquel negar su amor pudo, ni este omitir su rencor’.40 Dicho saber, según Barrios ‘no es violencia antes si una aspectacion que vè en sus contrarios fines la enemistad de los dòs’ En versos sucesivos el poeta expone cómo Dios llamó, en el paraíso, a Adán, tras haber éste pecado, como sin saber lo que había hecho el primer hombre, para que éste no arguyese que pecó necesariamente. Dios previno al hombre, y al hacerlo, este último se vio tentado a comer del árbol. Pero no le indujo a caer. Del mismo modo, Dios dio ‘forma y ley’ al Pueblo de Jacob, avisándole ‘de que serìa su premio conforme su observacion’ La teoría de Barrios acerca de la preordenación divina se resume en las siguientes estrofas ‘Mirase en esto que el hombre puede por si ser Nembrot, contra el Señor que lo pune conforme ab eterno vio. 40

En cursiva en el original.

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Mas no por querer punirlo hizo que fuesse, sino porque assi lo havia mirado desde su eterna atencion. Para que resplandeciera su clemencia, y su rigor, dando premio à la observancia, y castigo a la estorcion.’ En la duodécima parte del poema se esfuerza Barrios en seguir probando que ‘el saber superior no fuerça’, ‘Porque su inmenso poder de todo conocedor, antes falta à lo que anuncia que obliga a su execucion’. Y más adelante: ‘Todo estó considerando Jeremias; expressò no ser el divino lavio del bien ni el mal productor’. Y en la última parte se ocupa Barrios de exponer la privilegiada condición del hombre, única entre las criaturas que escapa, por su libre arbitrio, de aquello que dictamina Dios: ‘Todas las cosas criadas en el corò de la union, con varios modos de metros alaban al Hazedor.

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Desto, à ninguna es possible dexar la continuacion, excepto el hombre, que puede serle leal, ò traydor.’ Y algo más adelante: ‘El hombre con el conviene, mas discuerda en quanto son voluntarias las acciones de ser ó no su loor’. Por otro lado ‘El Angel sin alvedrio siempre à Dios obedecio: y a no tenerlo, tambien le obedeciera el varon Solo entre los animales el hombre le venerò, por la parte razional, que tiene la religión.’ De modo que, ‘solo el mixto humano con imperio, y cognocion en el entender, y obrar, es imagen del Criador. Pruevase el libre Alvedrio pues si tuviera prision,

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quando quisiera no obrara, ni fuera imagen de Dios’ El poema acaba con estas tres estrofas ‘Y assi Aristoteles dize que pues nada en vano obrò, no le diera activa industria si le forçara la accion. Con que juzgo que atropello la fanatica opinion, descriviendo como el hombre tiene de todo porcion. Del bruto lo sensitivo, el señorio del Sol, la razon del Seraphin, y el Alvedrio de Dios’. Al igual que en ciertas obras capitales de Menasseh ben Israel o Abraham Pereyra, la consideración del albedrío en el Esfuerço Harmonico reposa sobre una hábil variación de las teorías sobre el auxilio divino y la gracia cuyo auge tuvo lugar en la península ibérica durante el XVI. Por lo demás, el fermento teológico que las diversas sectas en Holanda mantuvieron vivo en la época de Barrios tuvo un influjo directo sobre el devenir de la polémica, dados los permanentes contactos que, por ejemplo, el autor del Conciliador mantuvo con hebraístas cristianos, milenaristas, remostrantes. Tal como Rosenbloom41 sugería, leer a la luz de la controversia teológica en el milieu calvinista las 41

Cf. Rosenbloom 1992.

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discusiones de Menasseh acerca de la predestinación –que no es, en esencia, una temática judía- asume una significación especial. Al citar los versículos de Ezequiel acerca de Dios forjando un nuevo corazón42, Menasseh se atreve a discutir la relación entre la gracia divina y las acciones humanas, negada por el calvinismo. De acuerdo con Menasseh, la predicción de Ezequiel acerca de Dios ‘ofreciendo un nuevo corazón al hombre’ implica que el destino humano no se halla predeterminado. El profeta no restringe la concesión de un nuevo corazón sólo a los elegidos, sino que es un ofrecimiento al hombre, a todo hombre. Menasseh se distancia claramente de la opinión de aquéllos para quienes la gracia de Dios precede a los méritos. Esta opinión, como sabemos por pasajes de su Conciliador y por los argumentos contenidos en De la fragilidad humana (1642) es, según Menasseh, contraria a la lógica humana y a la ética judía, pues quienes no recibieran aquélla estarían justificados en sus acciones malvadas y no podrían ser castigados por perpetrarlas. Como leemos en los versos de Barrios, la disposición humana precede al auxilio, y se da así una primigenia inclinación en el hombre que puede decantarle, libremente, hacia el bien o hacia el mal, como Deut 30:15 pone en claro:” Mira, hoy pongo ante ti la vida con el bien, la muerte con el mal”. Así, en la exposición de la contradicción que da paso, en la obra capital de Menasseh, a su defensa del albedrío libre, se lee: “quien tiene libre alvedrio haze lo que quiere, mas el hombre no haze lo que quiere, segun consta de los versos de nuestra contradiccion”43. Para situar la misma, Menasseh elige los versos en los que se relata el endurecimiento del corazón del faraón, por un lado44, y, para la vindicación 42

En Ezequiel 18:31 leemos: ‘Arrojad de sobre vosotros todas las iniquidades que cometéis y haceos un corazón nuevo y un espíritu nuevo”. Y en Ezequiel 36:26: “Os daré un corazón nuevo y pondré en vosotros un espíritu nuevo”. 43 Conciliador vol. I, p. 148. 44 Ex. 7:3, que en el Conciliador reza: “Y yo endureceré á coraçon de Parhó” y Ex 10:1: “Ven á Parhó que yo he endurecido á su coraçon” (Conciliador v. i, p. 148).

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del albedrío libre: “Vé yo dan delante de vos oy bendicion y maldición”45 y los más arriba citados de Deut 30:15, que en el Conciliador rezan: “Vé di delante ti oy la vida y el bien, la muerte y el mal”. En De la fragilidad humana queda claro, sin embargo, que el hombre precisará, más adelante, una vez muestra su originaria impulso hacia el bien, del auxilio que Dios, por esa mismo razón, le concede: “Nota, que es necessario principiar el hombre, para que Dios, acabe. Y ansi los Antigos en el tratado de Sucá cap. 5. profieren esta sentencia. El apetito del hombre, procura vencerlo cada dia, y conspira en su muerte….y si el Dio bendito, no lo ayudara, no pudiera contra el”46. Y más adelante: “He aquí claro, que el primero movimiento, es del hombre, y entonces usa Dios De su justiça, y misericordia, ayudando a aquellos que con sumo affecto, ve aplicados a la virtud, y al bien. Y es este, un cierto premio justo: como suelen los hombres ayudar a aquellos, que ven hazer por la virtud, y aplicarse a buscar la vida”47. Algo parecido leemos en Abraham Pereyra, quien plagia casi palabra por palabra este pasaje de Menasseh en el capítulo I del Tractado Primero de La Certeza del Camino, titulado ‘Del auxilio divino’: “Opinión es de algunos autores tratando de la materia de auxilios que la gracia del Señor precede a los méritos del hombre. Pero de muy contrario sentir son los nuestros porque ellos dizen haver…dos modos de auxilio: el primero, quando el hombre ha empeçado a hazer alguna obra meritoria, que en tal cazo le ayuda el Señor para que la perfeccione y acabe. Assi lo pondera doctamente R. Eliahu Haim en su Ressit Hochma… con estas palabras: “¿Diráse por ventura que Dios da al hombre desde luego el auxilio para vencer su mala inclinación? Esto sería lo mismo que quitarle totalmente el mérito. Justamente perguntaríamos: este auxilio, ¿lo da Dios a particulares o a todos? Si a todos, 45

Deum 11:26. De la fragilidad humana 1642, pp. 69-70. 47 Ibid., p. 70. 46

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¿por qué no son todos justos? Si a particulares, ¿por qué cauza haze esta distinción de personas? Que parece es querer que hunos se salven y otros no, siendo que no puede aver en Dios excepción de personas. Luego diremos que este auxilio presupone haver antecedido la obra, como quando un hombre quiere levantar una carga y no puede solo, vieno otro a ayudarle y assi la pone al ombro. Del mismo modo Dios….prencipiando el hombre la buena obra y aviendo dificultades por parte de la materia, le ayuda para que la ponga por acto””48. Y Pereyra concluye: “Assi que es nesseçario que el hombre empiesse para que Dios acabe, como prefieren nuestros antiguos”49.

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1. Os comportamentos de risco como antídotos ao processo de «securização» e de «providencialização» da vida Neste texto, propomo-nos compreender os comportamentos de risco que desabrocham na pós-modernidade, em particular nos meios juvenis. Se a experiência da radicalidade levanta «a hipótese não negligenciável de morrer» (Le Breton, 2003: 10), já que os hábitos extremos, como a absorção de drogas ou as tentativas de suicídio, do mesmo modo que rotinas mais suaves, como o tabagismo, uma alimentação descuidada causam inúmeras estragos, essa mesma experiência obriga-nos também, e quiçá sobretudo, «a pensar um ideal comunitário em gestação» (Maffesoli, 2006: 88). Tal como o mostrou Nietzsche, a experiência da radicalidade leva-nos a compreender «que o único meio de dar mais solidez aos fundamentos da sociedade consiste em tornar a dar um papel ao lado obscuro que está na base de todas as coisas humanas, ao excesso de energia que todo o organismo possui face à exigência de sobrevivência pura e simples» (Empoli, 2006: 18). Os riscos que nos ameaçam por toda a parte confrontam-nos com uma experiência do absoluto, com a sensação do irremediável, que pode ter por nome a morte. Inúmeras como as estrelas, os deuses e os diabos, são as adversidades da vida com que nos deparamos ao longo da nossa existência. Adversidades essas que têm como origem a pró1

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pria mão do Homem e que, muitas vezes, resultam dos progressos científicos e técnicos. Basta recordar Chernobyl, a doença da SIDA ou ainda a de Kreutzfeld-Jacob. Contra o carácter inevitável da ocorrência de acidentes e contra o carácter irremediável do surgimento contínuo de novas doenças, muitos advogam a favor da implementação de campanhas de prevenção, do reforço de políticas sociais mais justas, de programas educacionais mais adaptados aos costumes do tempo e vocacionados para as camadas mais vulneráveis da população. Assim, poder-se-ia alcançar a generalização de padrões culturais orientados pelos exclusivos critérios da razoabilidade e da temperança. Em suma, usar de tudo sem abusar de nada. Particular ênfase é dada à educação sexual, às práticas alimentares saudáveis, à promoção da saúde, à luta contra as discriminações sociais, ao combate à ignorância e ao obscurantismo. Muito em voga está o termo de qualidade, uma panaceia de múltiplas aplicações, como por exemplo nos domínios da educação, da saúde ou ainda do mundo do trabalho. Nessa linha de acção, foram avançadas várias propostas que insistem sobre o papel eminentemente salutar de certas organizações, e mesmo, de determinados agrupamentos sociais. Assim, foi avançado que as organizações de saúde «deverão adoptar práticas e comportamentos pautados pela defesa intransigente da vida humana e da pessoa» (Costa, 2006: 16). Do mesmo modo, constatamos também que a própria família se tornou no principal eixo de uma política de higienização do mundo ou, melhor dito, de «medicalização da sociedade» (Leandro et al., 2006: 186). Em todo o caso, existe um consenso geral para reconhecer que uma boa «gestão da saúde tem que ver com a organização da vida quotidiana no seio da família que se traduz nas práticas alimentares e higiénicas, nas condições habitacionais, nos ritmos de trabalho, no ambiente afectivo, na flexibilidade de uns em relação aos outros, na coesão familiar, no investimento na saúde preventiva através da formação das atitudes e dos comportamentos a esse propósito (tabaco, consumo de álcool ou outras drogas, condu-

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ção rodoviária, horários de sono, educação sexual…), no recurso periódico ao médico e a exames de rotina, na prevenção dos riscos, entre outros aspectos» (ibid.: 189). Contra o moralismo ambiente, partimos do pressuposto de que a sociologia não tem uma vocação prática directa, orientada para a acção, e que, por esse motivo, não tem que se pronunciar judicativamente sobre os perigos que os comportamentos de risco constituem para o indivíduo e para a sociedade. Por conseguinte, a sociologia não terá que se associar às campanhas profilácticas orquestradas pelos profissionais da saúde com o seu chorrilho de litanias higienistas destinadas aos indigentes, como se dizia antigamente. Será que as ditaduras de antanho que se exerceram em nome da soberania dos povos não se exercem hoje em nome da salubridade pública e do respeito da integridade física e psíquica da pessoa? Em todo o caso, as campanhas de prevenção, à semelhança da campanha de informação lançada em França, em 1999, pela Missão interministerial de luta contra a droga e a toxicomania, intitulada «saber mais para correr menos riscos», mostraram os seus limites, como no-lo recorda P. PerettiWatel: «inúmeras experiências anteriores sublinham que a difusão do saber não modifica forçosamente os comportamentos ditos “de risco”» (cf., 2001: 84). Uma análise perspicaz da realidade mostra-nos precisamente que estes programas e estas propostas, por mais legítimos que sejam de um ponto de vista moral, por mais justos que pareçam do ponto de vista de uma razão burguesa que zela pela exclusiva «conservação de si», advogando a favor da plena integração no todo social «por meio da tomada de consciência pelos indivíduos do seu interesse» (Horkheimer, 1979: 203), não passam de meros rituais encantatórios. Talvez fosse mais oportuno e judicioso compreender que os comportamentos de risco não são mais do que o remanescente do processo de «apagamento da experiência do eu», correlativo dos progressos da medicina em matéria de «prolongamento muitas vezes artificial da

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vida» (Gadamer, 1998: 72), em matéria também de tratamento das doenças, e mais particularmente da utilização generalizada de cuidados paliativos que alienam a «consciência da existência da nossa corporeidade» (ibid.: 84). A esse propósito, podemos dizer que não são tão irrisórias quanto podem parecer à primeira vista, as elucubrações proferidas na véspera da Páscoa de 2008 pelo arcebispo emérito de Pamplona, Fernando Sebastián Aguilar, ao sustentar que a morte de Jesus Cristo na cruz «foi uma morte digna», apesar de não ter tido o auxílio de «cuidados paliativos». Sociologicamente falando, é interessante constatar que a tomada imponderada de riscos a nível pessoal não abrandou com o aumento das tragédias sociais, como as guerras, as epidemias, os acidentes nucleares. É mesmo o contrario que se verifica. Isso deve-se, em parte, ao processo de «providencialização» da existência por parte de sistemas de protecção que estenderam os seus tentáculos à sociedade no seu todo. Já nada escapa ao domínio dos seguros que banalizaram a noção de risco, como no-lo mostrou magistralmente François Ewald no estudo sobre a sócio-génese do Estado-providência: o trabalho, em primeira instância, mas também a velhice, a pobreza, a invalidez, o desporto, o empreendedorismo, e a própria vida. Essa praga da propagação da ideologia do risco zero tem influenciado a própria vida doméstica. Vemos os acidentes domésticos transformarem-se em riscos domésticos. Nos Estados Unidos, não faltam processos intentados contra marcas famosas de refrigerantes, de café ou ainda de cigarros, por causa de uma garrafa que caiu, partiu e provocou um corte no pé de uma consumidora, ou por causa da queda de uma chávena de café que atiçou uma queimadura na perna de uma outra, ou ainda por causa de um cancro pulmonar contraído por um fumador qualquer. Estas anedotas são, no entanto, bem representativas do sentido da evolução do Estado-providência, com a proliferação de sistemas de segurança, em que o risco profissional, dependente do direito civil, é transferido para o risco social, correlativo do direito constitucional.

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Como assinala Ewald, o risco «passava de um eixo delituoso para um eixo nitidamente contratual. Mais, com este deslize produzia-se também a passagem da problemática do delito para a problemática do contrato. O reconhecimento do “risco social” institui a racionalidade do risco e do seguro ao nível de uma norma fundamental, como uma fonte própria de jurisdição» (cf., 1994: 332). Por outras palavras, assistimos à generalização da noção de risco, com o consequente alastramento dos seguros: «a relação social iria agora revestir a forma de seguro» (ibid.: 342). E, também, com o consequente alastramento de uma política da prevenção de todos os riscos, que se reveste de contornos claramente totalitários, «o seguro torna-se obrigatório: asseguramos os indivíduos e, ao mesmo tempo, seguramo-los» (ibid.: 334). Podemos destas reflexões tirar a ilação de que os medos atávicos e ancestrais foram sublimados e que a violência que era natural, socialmente reconhecida e aceite, foi negada e recalcada. Deste ponto de vista, as sociedades sofrem do mesmo mal que os nossos antepassados de finais da Idade Média e dos primórdios do Renascimento: a denegação do mal por procedimentos de substituição. Assim, os homens do período medieval tentaram superar o medo ocasionado pelas fomes, guerras e peste, pelos presságios, pelo mar, pelo diabo, etc., por meio da designação de responsáveis bem mais visíveis e palpáveis: «os turcos, os judeus, os heréticos, as mulheres (nomeadamente as bruxas). [Os ecle-siásticos] foram à procura do Anticristo, anunciaram o juízo final, prova terrível de facto, mas que significaria o fim do mal na terra. Uma ameaça global de morte foi assim segmentada em vários medos, deveras ameaçadores, mas “designados” e explicados, na medida em que eram reflectidos e clarificados pelos padres da Igreja. Esta enunciação nomeava perigos e adversários contra os quais o combate, embora difícil, era possível, mediante a ajuda divina. O discurso eclesiástico reduzido ao essencial foi, com efeito, o seguinte: os lobos, o mar e as estrelas, as pestes, as fomes e as guerras, são menos temíveis que o demónio e o pecado, e a morte do corpo é menos temível que a

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morte da alma. Desmascarar Satã e os seus agentes e lutar contra o pecado, consistia, além disso, em diminuir na terra a dose de desgraças de que eram a verdadeira causa» (Delumeau, 1985: 39-40). Os tempos mudaram, mas os problemas permaneceram intactos. Continuamos a esconder a face ao iludirmos a questão premente do mal. Já não por meio da «intrusão maciça da teo-logia na vida quotidiana da civilização ocidental» (ibid.: 40), mas pela intromissão da ciência e da técnica nas nossas vidas. O racionalismo destronou a teologia cristã e assumiu o mesmo papel de «velamento» e de alienação da experiência. Levou-nos a acreditar «que em cada instante poderíamos, desde que o desejássemos, provar que não existe, em princípio, nenhum poder misterioso e imprevisível que interfira no curso de nossa vida; em suma, que podemos dominar tudo pela previsão» (Weber, 1974: 158-159). Hoje em dia, mediante sistemas de protecção e de prevenção eficientes, mediante uma ideologia da «securização» e da «providencialização» da vida, pensamos conjurar esses males que se chamam doença, crime, violência, carnificina, morte. Ora, esses processos não protegem o indivíduo contra as «escórias da psique» (Maffesoli, 1976: 155), contra a sua insaciável vontade de se confrontar com a experiência. Em suma, os comportamentos de risco conduzemnos a pensar a vida, não como um simples «devir mercadoria», mas sim «como existência, como destino» (ibid.: 152). O problema de fundo reside no facto de que a tomada de consciência dos riscos, o seu controlo por sistemas sofisticados de protecção, não resolveram a questão da sua proliferação em sociedades altamente seguras e asseguradas. Em todo o caso, não nos premunem contra a procura deliberada «destes estados próximos da vertigem, onde o corpo, em parte desapossado de si, entra num mundo para o qual não é feito, e que prefigura as ligeirezas glaciais da morte» (Yourcenar, 1997: 19). Se é verdade que boa parte dos problemas actuais estão directamente relacionados com estilos de vida instilados por determinados

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valores sociais e culturais, não é menos verdade que os valores que os indivíduos seguem são raramente o objecto de um consenso. A verdade é que os homens podem preferir uma existência mais curta, mas ao mesmo tempo mais intensamente vivida: «Viver depressa, morrer jovem e fazer um belo cadáver», parece-nos ser um exemplo paradigmático da filosofia de vida da juventude oriunda da geração de James Dean. Existencialmente falando, o adestramento dos seres é deveras irrealizável, já que embate contra a infinita variedade das sensibilidades humanas. Gostaríamos, à guisa de exemplo, de citar um excerto elucidativo do filósofo Michel Onfray, vítima de um enfarte do miocárdio em 1987, aos vinte e oito anos: «Entre dois electrocardiogramas, uma injecção de Calciparina, e uma análise de sangue, o destino manifestou-se sob a forma de uma dietista com ar de anoréxica. Austera e de uma magreza pouco convidativa – sinal, no entanto, de consciência profissional – fez-me um discurso maçador sobre o bom uso de uma alimentação para monge do deserto. Na véspera do acidente cardíaco, uma refeição para seis ou sete pessoas permitiu-me confeccionar os quartos dianteiros de um borrego à base de cogumelos e de aipo. E tinha que abdicar de tudo isso para me lançar às cegas no regime hipocalórico, hipoglicemiante, e hipocolesterolemiante. Mais umas tantas intimações para trocar os meus livros de cozinha por um dicionário de medicina ou um Vidal. Pálida e enfezada, a funcionária das calorias fez-me uma conferência sobre os méritos dos cremes aligeirados, dos leites desnatados e das cozeduras com água. Fora os molhos crepitantes e as ligações farinhentas! Tinha que me converter às ervas e aos legumes verdes… Num sobressalto heróico declarei, como se fosse a minha última palavra antes do trespasse final, que preferia morrer comendo manteiga do que economizar a minha existência à base de margarinas. Psicóloga endiabrada, mas péssima dialéctica, exclamou, com prejuízo de toda a lógica elementar, que a manteiga e a margarina eram a mesma coisa. Era retórica a menos… Visto que se distinguia mais no domínio do

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oligoelemento do que no da dialéctica, disse-lhe então, do fundo da minha cama, que preferia a manteiga…, já que se tratava da mesma coisa. Ai! A conversa estava a azedar. Declarou que me abandonava à obesidade – quando acabava de perder sete quilos – ao colesterol, à morte próxima. Tornou a empacotar as suas falsas receitas de falsos molhos para falsos pratos e deixou-me marinar na secção da pós-reanimação» (Onfray, 1994: 17-18). De notar que em 2008, Michel Onfray continua a desprezar os regimes dietéticos! Este texto mostra bem que as campanhas de profilaxia contra os males que assolam o nosso quotidiano e que dizem respeito à protecção do ambiente, à luta contra o terrorismo, ao impedimento dos comportamentos desviantes, à semelhança dos consumos de droga, têm os seus limites. A despeito de toda a boa vontade contida nessas profissões de fé, é forçoso reconhecer que o Homem é feito de madeira nodosa, como o refere Kant. Diríamos mesmo que o Homem tem razão em preferir o bom senso à imposição normativa da normalidade, por parte de uma razão imperiosa que se pretende universal. O bom senso, pelo qual prima a ideia de que uma certa insegurança constitui «o preço a pagar pela liberdade», segundo a expressão do filósofo francês Élie Halévy (cf., citado por Ortega y Gasset, 1967: 175). O bom senso, pelo qual as premissas de uma vida sã residem na aceitação do destino. O bom senso, pelo qual «o que não tem remédio remediado está», seguindo o provérbio português. De facto, não será que a existência consiste em pôr a morte a ridículo? Em resistir aos estragos que o tempo exerce infalivelmente em nós? Em gozar, inclusive de forma perigosa, excessiva e violenta, cada instante que passa? Em desafiar a morte, integrando-a na vida de todos os dias? Por meio de actos perpetrados por sua conta e risco; pela intercessão de gestos tão inúteis como absurdos; pela mediação de excessos de toda a ordem, de violências gratuitas cometidas sobre os outros como sobre os próprios. Em suma, trata-se de submeter toda a existência ao sentimento trágico da vida. Neste desafio metafísico

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o que está em jogo é tudo o que se joga no erotismo: «a aprovação da vida até na própria morte» (Bataille, 1985: 17). O tema dos comportamentos de risco parece-nos particularmente interessante numa altura em que as divisões têm tendência em apagar-se. Já não existe uma linha de demarcação nítida que possa separar categoricamente o normal do patológico, o permitido do proibido, o sensato do insensato, o racional do irracional. Basta recordar que os pais fundadores da sociologia tiveram em conta essa dimensão indomável do homem que é a irracionalidade. Assim, Vilfredo Pareto sublinhou o carácter altamente relativo da lógica do social. O que é lógico de um ponto de vista, pode não o ser de outro ponto de vista. O monge que se enclausura no seu convento, vivendo uma vida de privações e de abnegação, não age logicamente se o nosso ponto de vista for a «normal» racionalidade produtivista e consumista, induzida pela economia de mercado, ou então se o nosso ponto de vista for a sobrevivência da humanidade, que implica a necessidade da reprodução biológica entre os seres humanos. Age todavia logicamente na medida em que segue coerentemente os desígnios ditados pela sua crença na redenção pessoal. Também Max Weber nos ensinou que o conceito de racionalidade não pode ser encarado univocamente, já que «contém toda a espécie de oposições» (Weber, 1964: 81-82). Por outras palavras, não existe padrão único e comum de «razoabilidade» para todos, contrariamente ao que pensa Jürgen Habermas, que acredita nas possibilidades de um consenso social na base de uma discussão argumentativa racional entre os homens. Ora, o que é tido como razoável para uns, não o é para outros. Não existe simplesmente processo de igualização dos costumes, crenças e mentalidades por meio da discussão, por mais racional que esta seja. O grande humanista e ensaísta francês, Michel de Montaigne, tinha certamente razão e continuará a tê-la por muito tempo, ao afirmar que «cada um chama barbaridade ao que não é do seu próprio hábito».

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Não podemos pois, falar dos comportamentos de risco sem nos referirmos às duas maneiras que existem de conceber a sociedade: a sociedade pode, de facto, ser concebida do ponto de vista linear da filosofia da história; ou então do ponto de vista cíclico de uma fenomenologia da vida.

2. Os comportamentos de risco na perspectiva da filosofia da história A seguirmos o primeiro ponto de vista, a sociedade tem que ser aperfeiçoada (Condorcet), desalienada (Marx), regenerada (Comte). O que deve ser combatido é a desorganização, que se declina de muitas maneiras: a pobreza em Saint-Simon; a anomia em Durkheim, a anarquia da produção em Marx, as disfunções em Merton ou em Crozier. Estas concepções omitem por completo que o ser humano é plural e que os valores que dão vida aos grupos raramente são consensuais. A maior parte dos autores que enveredaram pela perspectiva do «endireitamento» do homem esqueceram-se da sua complexidade. Esqueceram-se de que o processo de domesticação do homem de que falavam Nietzsche, Foucault, Marcuse e Elias nunca podia ser total. Aliás, só podemos concordar com Norbert Elias quando este afirma que o processo civilizacional, que consistiu em recalcar a vida pulsional, em aquartelar a vida afectiva, em adocicar os costumes e em instaurar toda uma série de controlos e de autocontrolos interiorizados, a ponto de se tornarem uma «segunda natureza» (Elias, 1973: 197) para os homens, não pôs fim às múltiplas incarnações do mal: loucuras, barbaridades, violências, insanidades, à semelhança dos comportamentos de risco. Até porque estes constituem muitas vezes uma maneira de opor uma resistência sã e serena à asseptização prometeica da vida, imposta pela trindade laica referida por Michel Maffesoli: «o Progresso, o Trabalho e a Razão» (cf., 2002: 63).

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Resistência, portanto, ao «fantasma da assepsia social que nos embala na fantasia do “risco zero”: segurança e bem-estar plenos, nas estradas, nos campos e nas cidades, na vida de todos os dias. “Se conduzir, não beba”. “Não à droga, sim à vida”. “Mais esquadras e mais polícias”. “Sexo seguro”. “Liberdade duradoura”. Tudo operações de caça ao animal que vive no humano, exorcismos para enxotar as sombras (medos e angústias) que possuem o corpo individual e colectivo» (Martins, 2002: 1). Resistência também à tentativa obsessiva de minimizar e de controlar, a todo custo, por meio da previsão e da profilaxia, os riscos reais e vir-tuais, uma tentativa que, por um lado, acaba por alimentar ainda mais os nossos medos, e, por outro, suscitar um controlo cada vez mais apurado da nossa existência. Zygmunt Bauman assinalou-o bem: «Mergulhamos na busca dos “sete sinais do cancro»” ou dos “cinco sintomas da depressão”, ou no exorcismo do espectro da tensão arterial e da taxa de colesterol elevadas, do stress ou da obesidade. Por outras palavras, procuramos alvos de substituição sobre os quais podemos despejar o excedente de medo para o qual já não se encontra saída natural, e encontramos estes expedientes nas precauções refinadas tomadas em relação ao fumo do cigarro, à obesidade, ao fast-food, à sexualidade sem preservativos ou à exposição ao sol» (cf., 2006: 92). Resistência ainda às diversas paranóias psiquiátricas e higienistas que pretendem «constituir a loucura como doença e a perceber como perigo» (Foucault, 1999: 110). Resistência, por conseguinte, aos desígnios da modernidade, para a qual os comportamentos de risco em particular, e a loucura em geral, significam, antes de mais, como o sublinhou Roger Bastide, uma «forma de improdutividade», já que «a nossa sociedade é uma sociedade industrial, a nossa ideologia é uma ideologia da produção, e o desvio é definido pelos nossos modos de produção» (cf., 1977: 276). Por mais que a loucura e os comportamentos de desvio tenham sido ocultados, afastados, banidos, sendo rejeitados na esfera do sobrenatural pelos antigos, enquanto marca do sagrado, ou rejeitados

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na ordem da alienação pelos modernos, enquanto carência de consciência, de liberdade e de responsabilidade individual, mais ninguém, melhor do que Michel Foucault, mostrou que o louco interpela o Homem, mantém com ele uma relação de reciprocidade e, finalmente, o obriga a confrontar-se com ele próprio, com a sua verdade mais essencial: «O louco revela a verdade elementar do homem: redulo aos seus desejos primitivos, aos seus mecanismos simples, às determinações mais urgentes do seu corpo. (…) Mas o louco revela a verdade terminal do homem: ele mostra até onde puderam conduzilo as paixões, a vida da sociedade, ou seja, tudo aquilo que o afasta de uma natureza primitiva que desconhece a loucura. Esta está sempre ligada a uma civilização e ao seu mal-estar» (Foucault, 1976: 538). As loucuras societais constituem, por outras palavras, uma denegação radical dos ideais da modernidade, e correspondem a uma redescoberta das paixões, enquanto verdadeiro motor dos comportamentos e das acções humanas. Em todo o caso, representam uma refutação categórica dos desígnios da filosofia da história para a qual «o instinto de razão encontra na sua procura apenas a própria razão» (Hegel, 1987: 219). E, em consequência, representam uma relativização da «propensão do nosso mundo para racionalizar tudo, tanto quanto possível, para moldar todas as coisas num modelo administrativo e em absorver a parte de irracional» (Mannheim, 2006: 95). Ao restabelecerem a espontaneidade e a efervescência da irracionalidade, ao valorizarem a arquitectónica das paixões, os comportamentos de risco contrapõem-se a essa preocupação «com a unidade da história universal e com o seu progresso no sentido de um fim derradeiro ou pelo menos no sentido de um “mundo melhor”», que se materializa e se concretiza no «esquema de ordem e sentido progressivos, um esquema que tem sido capaz de vencer o medo antigo pelo fado e pela fortuna» (Löwith, 1991: 31). Da mesma forma, os comportamentos de risco impugnam a ideologia burguesa alicerçada no substancialismo da consciência. Esse substancialismo implica a dominação do mundo e de si, a prevalência

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do livre arbítrio ou aquilo a que Hans Jonas chamou o princípio de responsabilidade. Podemos dizer que os comportamentos de risco redescobrem a animalidade que existe em nós. Lembramos, a propósito, Hermann Hesse: «Só podemos viver intensamente se for em detrimento do eu. O burguês, pelo contrário, o que aprecia mesmo é o eu (um eu, é verdade, que apenas existe em estado rudimentar). Assim, em detrimento da intensidade, obtém a conservação e a segurança; em vez da loucura em Deus, recolhe a tranquilidade da consciência; em vez da volúpia, o conforto; em vez da liberdade, o bem-estar; em vez do ardor mortal, uma temperatura agradável. O burguês, em virtude da sua natureza, é um ser dotado de uma fraca vitalidade, medroso, assustado por todo o abandono, fácil de governar. É por essa razão que colocou a maioria no lugar da potência, a lei no lugar da força, o direito de voto no lugar da responsabilidade» (cf., 1976: XV). As filosofias da história primam pela obsessão compulsiva em querer conferir uma unidade a tudo: à história, à existência, ao homem. Têm a pretensão de absorver as trevas na luzes, de fundir o real no racional, de sujeitar a fatalidade à liberdade, de submeter o acaso à necessidade. «A pesquisa filosófica tende a captar o irracional e o anti-racional; tende a elaborá-lo através da razão, a transformá-lo num modo da razão, e até, finalmente, a demonstrá-lo como idêntico à razão. Todo o ser deve tornar-se ordem ou lei. Mas, a esta tendência opõe-se o sentido da lealdade e a vontade de desafio. Estes reconhecem e afirmam o irracional como sendo inultrapassável» (Jaspers, 1987: 9). É precisamente essa propensão tipicamente humana em manifestar de forma ostensiva a irracionalidade da sua conduta que caracteriza os comportamentos de risco. Nestes, podemos ler uma contestação das normas estabelecidas, sob a forma de uma aniquilação do eu, em sociedades que privilegiam o individualismo, quer económico (capitalismo), quer religioso (protestantismo), quer político (democracia). O caso dos comportamentos de risco parece-nos paradigmático, na medida em que instrui uma dialéctica entre o individual e o colec-

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tivo. Os comportamentos perigosos, tanto para a vida dos outros como para a própria vida, parecem conter a marca do individualismo moderno. No entanto, devem ser compreendidos no prisma do colectivo. Já Durkheim nos tinha incentivado em apreender o suicídio, que emana de uma vontade e de uma decisão individuais, como uma manifestação do colectivo. Os comportamentos de risco, propagam-se na sociedade sob a forma do contágio, onde se processa um movimento de amplificação induzido por uma manifestação colectiva, que pode ser o ambiente de uma cervejaria, ou ainda a partilha de emoções comuns numa situação de perigo, sofrida ou deliberadamente provocada. Convocamos Max Scheler: «Em todas as excitações colectivas, e mesmo aquando da formação daquilo que se chama a “opinião pública”, é sobretudo a reciprocidade deste contágio cumulativo que provoca o movimento emocional colectivo e produz esta situação singular em que a “massa” age, sem ter em conta as intenções dos indivíduos que a compõem e realiza coisas relativamente às quais nenhum destes indivíduos quer reconhecer-se “responsável”, porque não as “quis”. É, de facto, o próprio processo de contágio que produz os fins e os objectivos de cada um dos indivíduos que compõem a massa» (cf., 2003: 66). O que está em jogo na compreensão sociológica dos comportamentos de risco é a presença do mal e da barbaridade no homem. Não se trata da barbaridade que se enraíza nas próprias civilizações, nos Estados-nações, nas religiões instituídas, e que deu origem aos genocídios que conhecemos. Trata-se antes de um retorno ao arcaico no homem, da irrupção da selvajaria dionisíaca nas manifestações societais pós-modernas, que apela ao reconhecimento da complementaridade entre a ponderação e a imoderação. Edgar Morin recorda-nos que os gregos antigos acolheram e incorporaram Dionísio no seu panteão: «O politeísmo grego acolheu um deus aparentemente bárbaro, violento, um deus da embriaguez, da hybris: Dionísio. A peça extraordinária de Eurípides, As bacantes, mostra a chegada destruidora e louca desse deus. Mesmo assim, Dionísio não deixou de ser

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integrado à sociedade dos deuses gregos» (cf., 2005: 15). Hoje em dia, assistimos ao retorno em força da fúria dionisíaca. Esta fúria podia ter sido momentaneamente asfixiada, mas nunca desapareceu do mapa da condição humana, assumindo várias formas, inclusive a da morte e a da aniquilação. Somos possuídos por demónios que lançam sobre nós «o sangrento aparelho da destruição» (Baudelaire, 1973, poema La destruction: 116). Em plena era produtivista, no século XIX, um mal apodera-se dos homens, um mal que tem por nome a melancolia, a exacerbação da sensibilidade, o spleen, ou seja, o gosto pelo desgosto. Ora, é nesse desgosto que Baudelaire encontra as sensações agudas que lhe conferem a convivência com as coisas; é nele que o poeta encontra os pontos nodais do emaranhado da sua vida, a união mística com o universo que nos rodeia, o acesso voluptuoso à árvore do conhecimento através do mal. «Como me serias agradável, ó noite! sem essas estrelas / Cuja luz fala uma linguagem conhecida! / Pois, eu busco o vazio, e o escuro, e o despido! / Mas as próprias trevas são teias / Onde vivem, jorrando do meu olho aos milhares / Seres desaparecidos com olhares familiares» (ibid., poema Obsession: 203). Esta procura do vazio caracteriza inúmeras obras literárias deste século, conjugando os estados doentios com a graça divina e a delicadeza humana. Jean—Jacques Rousseau, Benjamin Constant, Alfred de Musset, Alfred de Vigny, George Sand, e, naturalmente, Wilhelm Goethe, são os autores mais representativos desta corrente. «Para todos eles, a morte está presente no meio da vida. O suicídio, já admitido por Voltaire no L’Ingénu, por Montesquieu, por Diderot, por D’Alembert, torna-se mais frequente e traz aos contemporâneos um arrepio mórbido, fonte de volúpia. Mas o desesperado, na maior parte das vezes, não se desfaz brutalmente da vida; priva-se antes de tudo, abandona-se e evolui para a tísica, dela acabando por morrer. E os poetas gostaram particularmente destes seres, descobrindo na sua fraqueza fisiológica o sinal de uma qualidade espiritual excepcional» (Hillemand e Gilbrin, 1980: 375).

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A fúria dionisíaca pode portanto exprimir-se perfeitamente na aceitação do destino, na confrontação com a morte, na procura deliberada dos perigos, em suma, nos comportamentos de risco, que permitem insuflar a morbidez no seio da vida, para lhe dar um sentido, e experimentar a partilha de emoções comuns, para colmatar as brechas do sofrimento e da frustração, abertas pelo individualismo civilizacional moderno. Estamos diante de vivências diárias de pequenas mortes que nos preparam para a ideia da «mortalidade absoluta (sem salvação, nem ressurreição, nem redenção) – nem para nós, nem para os outros» (cf., Jacques Derrida, «Je suis en guerre contre moi-même», in Le Monde do 19 de Agosto de 2004). É nesse contexto que devemos compreender as motivações dos aficionados das corridas de touros em voga na Espanha. Na arte de tourear, onde o toureiro parece partilhar os mesmos valores que o touro, a saber as virtudes heróicas do combatente, e padecer dos mesmos males, a saber o confronto com a incerteza do resultado do combate, joga-se, na realidade, uma ética do ser, ou seja, uma ética do desprendimento. Passamos a citar Francis Wolff: «Ser toureiro, tal como ser Sábio, consiste em tratar com desprezo – ou com indiferença – tudo aquilo que nos deveria afectar, ou seja tudo aquilo que afecta o comum dos homens. Há aqui um paradoxo essencial: a distância moral do herói ou do Sábio em relação à adversidade é tanto maior quanto menor é a distância física relativamente ao adversário. Este paradoxo é constitutivo tanto da moral estóica, famosa na Antiguidade pelos seus paradoxos, como da ética “torera”: O toureiro tem de tocar no touro ou na morte, para deles se poder mostrar desprendido. Quanto mais o adversário estiver próximo do seu corpo, melhor poderá mostrar que ele próprio mantém uma distância em relação ao adversário. Deverá, por conseguinte, manter-se o mais próximo que puder dele, para se poder manter distante dele. Portanto, só poderá mostrar que se afasta moralmente dele se dele se aproximar fisicamente» (cf., 2007: 142). Ora, forçoso é reconhecer que esta ética do

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ser desemboca numa ética da estética. Retomamos Wolff: «O que é próprio da emoção taurina... é que produz beleza na base de um risco de morte. (...) [O toureiro] parece pôr o seu corpo entre parênteses, elevar-se acima da vida: apresentar a sua vida ao touro para poder representá-la para nós. O desprendimento da sua própria vida permitenos vislumbrar na sua pureza a beleza sem o medo» (ibid.: 310 e 312). É nesse contexto que devemos compreender também o espírito aventureiro dos portugueses na sua conquista dos mundos, à semelhança de Luís de Camões que cantou o génio heróico dos descobridores: «E também as memórias gloriosas / Daqueles Reis que foram dilatando / A Fé, o império, e as terras viciosas / De África e de Ásia andaram devastando, / E aqueles que por obras valorosas / Se vão da lei da Morte libertando: / Cantando espalharei por toda a parte, / Se a tanto me ajudar o engenho e arte» (Camões, 1972, Canto Primeiro, Estrofe Um: 4). Libertar-se do carácter inelutável do finito, recorrendo «à arte dionisíaca e ao seu simbolismo trágico… que força eternamente o ser à existência e se satisfaz eternamente da inesgotável variedade dos fenómenos» (Nietzsche, 1976: 112). É nesse contexto que devemos compreender ainda «a eficácia da errância», própria do espírito cavalheiresco, como expressão de «um “mal do infinito” inerente a todo o conjunto social. A aspiração desmedida, a não satisfação pontual, a sede daquilo que não existe, o excesso nas experiências de toda a ordem (sexualidades, modos de viver, corrida ao prazer) baseia-se na “incerteza do futuro, acrescentada à própria indeterminação”» (Maffesoli, 1984: 158. O excerto citado entre aspas é de Émile Durkheim). Do que se trata sempre é de experimentar com outras sensações fortes como remédio ao irremediável desgaste do tempo. Daí que Simmel tenha dito que «o encanto da aventura reside quase sempre na intensidade da tensão através da qual ela nos faz sentir a vida» (cf., 2002: 83). Assim, contra a tolerância zero nas estradas aparecem os «malucos do volante» e os «rodeios» motorizados aos fins-de-semana. Sem falar

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daqueles que andam em contramão nas estradas, na sequência de uma aposta. Contra os princípios laicos garantidos pela Constituição, aparecem os malucos de Deus. Contra o despotismo impessoal dos peritos e dos pedagogos, surgem as mais variadas perversões. Contra o consenso social de obediência racional e contra «o adestramento tecnocrático, funcional, pragmático, burocrático» (Durand, 1996: 39), assistimos ao desabrochar de uma violência gratuita a que Julien Freund deu o nome de «violência dos sobrealimentados» (cf., 1972). Contra a «sociedade de vigilância» (Foucault), existem os comportamentos de risco: condutas pelas quais os jovens desafiam e exorcizam a morte, vivendo-a no quotidiano. Assim, todos aqueles que erigem o excesso em regra de vida recordam-nos que as campanhas de luta contra toda a forma de dependência (tabagismo, alcoolismo, droga, sexo, seitas, Deus, ansiolíticos, Internet, etc.) se fazem em vão. É preciso acrescentar que a noção de risco pode ser uma «arma política» (Pourtau, 2002: 71). Basta referir a concepção de John Stuart Mill, que advogava em favor de uma «polícia moral», dispondo de um direito de controlo para proteger as pessoas contra si próprias, ou ainda, a proibição das raves ou free parties por parte das autoridades estatais e administrativas, que as julgam perigosas para os indivíduos. As filosofias da história excluem precisamente os sentimentos, as paixões, as emoções, e submetem a evolução da natureza e o destino do homem aos desígnios de uma razão soberana. Assim, fechamse à possibilidade de compreender o mundo e a existência no que estes têm de contraditório, cruel e louco. Ao pressupor um indivíduo desejoso de se emancipar, de continuamente se aperfeiçoar, já que a emancipação é a palavra-chave do Ocidente, as filosofias da história mostraram-se incapazes de entender os autores que perscrutaram as profundezas da natureza humana. Entre estes, lembramos Nietzsche, que admite que o homem possa negligenciar a riqueza, a glória e a felicidade; Miguel de Unamuno, que admite que o homem possa não desejar a sua redenção; Freud, que emite a hipótese de um instinto

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de morte no homem, capaz de se sobrepor ao instinto de vida. Mas sobretudo Dostoïevski, que admite que o homem possa preferir a «volúpia no sangue» ao bem-estar.

3. Os comportamentos de risco na perspectiva da fenomenologia da vida O segundo ponto de vista que atrás referimos parte daquilo a que Pierre-Joseph Proudhon chamou «o bom génio da experiência». O mundo não é denegado, mas aceite como é, com todas as suas incoerências, imperfeições e loucuras. Não se trata de inventar paraísos celestes ou terrestres, segundo o princípio do diferimento evidenciado por Jean Baudrillard (projectar o melhor para a frente, adiar o prazer), mas de gozar cada instante que passa. Deste ponto de vista, diremos que os comportamentos de risco, as loucuras societais e as manifestações ritualizadas da fúria são saudáveis. A violência nos estádios de futebol, por exemplo, serve de exutório à irreprimível agressividade que está em nós. Ela desempenha o mesmo papel que uma válvula de segurança de uma panela de pressão: permitir ao vapor escapar-se em pequenas doses para evitar a explosão. É nesse preciso sentido que Durkheim afirma que a violência que se exprimiu historicamente nas revoluções ou nas cruzadas não devia ser julgada do ponto de vista moral, mas compreendida do ponto de vista dos seus efeitos sobre a moral. De facto, as múltiplas violências e transgressões do interdito contribuem, muitas vezes, para o fortalecimento dos sentimentos comuns, que dão vida e consistência aos diferentes grupos sociais. É assim que devemos compreender os comportamentos de risco nas sociedades pós-modernas e a mudança de sensibilidade que estas induzem. Hoje em dia, os riscos ligados, por exemplo, à escalada, já não são sintomáticos da «simbólica ascencional» do prometeísmo, onde «o alpinista, ao escalar as montanhas, participa no movimento “colo-

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nialista” característico da modernidade, simultaneamente científico e patriótico, que consiste em tornar-se “mestre e possuidor da natureza”» (Corneloup, 1997: 25). Estes riscos, são, isso sim, sintomáticos da socialidade pós-moderna, «procurando os alpinistas antes de mais o ludismo e o contacto “simpático” com a natureza» (ibid.). Mesmo que a sociedade industrial avançada seja centrada no princípio da «repartição dos riscos» (Beck, 2001: 35), isto é, na potencialização dos mesmos através dos processos de modernização e de crescimento, o homem continuará a promover atitudes relacionadas com o ordálio, ou seja, a promover condutas onde a totalidade do grupo ou uma parte dos seus membros se entrega ao acaso, à fortuna, ao destino, ao juízo de Deus, para decidir da sua sobrevivência, como no-lo testemunham os comportamentos de risco. Mesmo que dos nossos dias o ordálio se revista de uma forma essencialmente individualista e constitua «um acto solitário e imprevisível no seu surgimento» (Le Breton, 2004: 113), uma vez desprovido do ritualismo da comunidade, a verdade é que ele contribui igualmente, à semelhança do que ocorria nas sociedades primitivas, para restaurar «uma relação mais propícia com o mundo» (ibid.: 110). Deste ponto de vista, a dialéctica entre a ordem e a desordem, entre a destruição e a construção, entre a perda de si e o reencontro com os outros, afigura-se como a condição da sobrevivência individual e da reprodução social: «A actuação do ordálio convoca estruturalmente um intercâmbio simbólico com a morte para que seja garantido o facto de viver» (ibid.: 111). Os comportamentos de risco constituem outras tantas formas de ritualização por meio das quais o indivíduo procura socializar-se, entrar em comunidade, fazer corpo com os membros da sua tribo. Essa socialização pode enveredar pela via do desvio ou da perversão. Em todo o caso, é o pretexto para uma participação em rituais que propiciam aos jovens a «encenação social da sua personalidade» (Jeffrey, 2005: 96). Os comportamentos de risco assumem as formas mais variadas: a recusa deliberada do preservativo nas relações sexuais; o consumo

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de drogas; as bebedeiras (que são o objecto de concursos organizados); o salto ao elástico; o base-jump, que consiste em lançar-se equipado de um pára-quedas do alto de um imóvel; o canyoning, que consiste em descer os rios que serpenteiam entre as falésias escarpadas, com o seu burburinho de cascatas e obstáculos; a prática imponderada do mergulho em apneia; a prática compulsiva de desportos radicais (desde a prática da break dance até à escalada em condições extremas); a tomada de substâncias neurotóxicas que, sendo misturas, provocam efeitos desconhecidos e incontroláveis. Podemos afirmar que estes comportamentos representam outras tantas formas de resistência ao delírio do imperialismo da moral, que começa precisamente, como o afirma Ruwen Ogien, quando esta se ocupa dos danos causados a si próprio, em vez de se limitar a tratar dos prejuízos provocados aos outros. Retomamos Ogien (cf., 2007: 11): «Imaginai um mundo no qual seria possível julgar-vos “imorais”, não só por causa das vossas acções, mas também por causa dos vossos pensamentos, desejos, fantasmas ou traços de “carácter”. Não só por causa daquilo que fazeis aos outros, mas também por causa daquilo que fazeis a vós próprios. Não só por causa daquilo que fazeis de maneira deliberada, com conhecimento de causa, mas também por causa daquilo que vos acontece um tanto por acaso. (…) Quem gostaria de viver num tal mundo, onde nada daquilo que somos, pensamos ou sentimos, onde nenhuma actividade, fosse ela a mais solitária, escaparia ao juízo moral?» Particularmente sintomáticos do imoralismo ético e estético são os jogos que se difundem nas escolas, ou seja, em instituições detentoras e dispensadoras do moralismo mais afinado, e que permitem às crianças compensar a imposição de um mundo que lhes escapa por completo pela sensação de dispor livremente do seu corpo, de jogar com os seus movimentos e, por via de consequência, com a própria vida. Parece mesmo que o corpo condensa em si as novas modalidades das utopias, indícios de uma socialidade intensamente vivida no quotidiano: «As micro-utopias são utopias do corpo, e o espaço em

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que se desdobram é o espaço de um “corpo utópico”. É certo que tais “micro-utopias” mal são reconhecíveis, que em boa medida nem recorrem à palavra utopia. É ela que alimenta os bodybuilders, os atletas de alta performance, os paraísos artificias do Prozac, os cyborgs ou a estranha “física” da virtual reality» (Miranda, 2002: 179). Podemos recensear várias formas de jogo, jogos esses que trabalham, molestam, transfiguram os corpos. Os jogos de desoxigenação, em primeiro lugar. É o caso do «jogo do lenço», cujo objectivo reside na procura de sensações eufóricas e cujo princípio consiste em provocar um desmaio por estrangulação, devido à falta de irrigação de oxigénio no cérebro. Este jogo goza, aliás, de inúmeras denominações, que variam em função da terra: cosmos, verão indiano, sonho azul, jogo da corrente, jogo do pano. Como variante dessa brincadeira, temos o jogo do tomate, em que o jovem tapa o nariz até ficar vermelho; o jogo do esterno (ou da rã), com o intuito de bloquear a respiração por compressão do tórax. É o caso ainda do «jogo do pulverizador», que tem por finalidade deformar a voz ao inalar o produto contido num aerossol qualquer, com a agravante de poder criar um edema pulmonar. O recenseamento destes artifícios dá conta, em segundo lugar, de jogos de ataque. É o caso do «jogo da lata», que tem por motivo a comprovação da sua força e que se processa da seguinte forma: as crianças formam um círculo e uma lata de soda ou de cerveja é lançada na direcção de um dos participantes. Se a criança não for capaz de a apanhar, é logo espancada. Está visto que a vítima de um dia poderá tornar-se no carrasco do dia seguinte. Este jogo, à semelhança dos outros, tem várias designações: o bode expiatório, o jogo do julgamento, os sapatos. É o caso também do «jogo da bolinha», que consiste em surrar um colega, de forma gratuita, para testar os limites da sua resistência. É o caso ainda do «jogo do touro», no qual um bando de jovens se atira de cabeça contra uma criança isolada. É o caso, afinal, do «jogo de Beirute»: uma criança pergunta a uma outra qual a capital do Líbano. Se não for capaz de responder, é fustigada nas partes genitais.

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Em terceiro lugar, e por fim, são recenseados jogos de pura violência sobre si próprio, como o jackass, à semelhança daquele jovem americano que colou o ânus com uma cola extra-forte. O que está em questão em todos estes jogos, é poder tocar na morte para se sentir todo-poderoso, já que, como o afirmou Dostoïevski, «toda a questão humana consiste, na realidade, em o homem provar a si mesmo, a cada instante, que é homem, e não um mecanismo. Mesmo provar à custa da própria pele, por meio da selvajaria, mas provar» (cf., 2001: 158). Nestes jogos, trata-se de promover «uma forma de jogo deliberado com a morte» (Le Breton, 2004: 179), para dar um sentido à vida e fortalecer os laços comunitários. Mesmo que os perigos sejam minimizados, condenados à banalização, à comercialização e à programação, como no caso das maratonas no deserto sariano, dos retiros na Amazónia, do trekking nos Himalaias, trata-se de viver «um acontecimento de excepção», que, quando partilhado por muitos, desemboca na «formação de uma comunitas, cujas acções recíprocas são edificadas sobre um risco iniciático» (Barthelemy, 2002: 91). O valor altamente societal destes jogos é comprovado pela prática do happy slapping, uma prática importada de Inglaterra, e que consiste em gravar em filmes as diferentes agressões físicas para difundi-las na Net e projecta-las nas sessões reservadas aos iniciados. Trata-se de uma encenação colectiva da violência, que não remete para a morbidez de instintos sádicos ou sadomasoquistas, mas antes para a partilha de emoções comuns, para o gozo que confere a revivescência de ocorrências extraordinárias, pretexto de uma ingerência, que mais não seja às escondidas, nessa trama do mundo feita de «“provas”, “mortes” e “ressurreições”» (Eliade, 1975: 244). Por mais individuais e individualistas que possam parecer os comportamentos de risco, revestem-se, mesmo assim, de um significado colectivo. Não existe incompatibilidade entre a desinibição individual e a busca de relacionamentos, entre a lógica de um mercado ávido em comercializar as mercadorias oníricas e as lógicas hedonistas

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que resultam do consumo de drogas, da prática desportiva radical, das ligações perigosas. Alguns fazem dessa incompatibilidade uma petição de princípio. Para Lipovetsky, os comportamentos pós-modernos «não autorizam a erigir Dionísio num mito emblemático da nossa época» (cf., 2006: 227). Por outras palavras, o «gozo de “sair de si”, [a] experiência do transe, [as] emoções colectivas na efervescência das raveparties, onde grande parte dos participantes se encontram sob o efeito de drogas» não nos podem fazer esquecer «o clima de “multidão solitária”, marcado pela ausência de comunicação verbal, os “bad trips”, a prova da angústia frente ao vazio e à fusão social impossível» (ibid.: 228). Já David Le Breton se mostra mais circunspecto, nos seus estudos sobre os sofrimentos infligidos ao corpo, como é o caso dos piercings, escarificações, escoriações, lacerações, incisões, ao reconhecer que o homem «pode caminhar para o pior com toda a lucidez» e que «a própria vida quotidiana está repleta de ambivalência, de incerteza, de obstinação, de atalhos que, muitas vezes, são os únicos a poderem ser percorridos, quando todos os outros se afastam» (cf., 2003: 10). Em todo o caso, não podemos circunscrever a explicação dos comportamentos de risco ao mal-estar individual, como consequência da falta de valores susceptíveis de agregar os indivíduos em sociedades altamente individualizadas. Tão-pouco, poderíamos recorrer à explicação unilateral de uma desagregação da estrutura familiar, de uma cada vez maior desresponsabilização das famílias nos domínios da transmissão de valores educacionais, como os valores espirituais, morais ou cívicos, mesmo que essa tendência se verifique nos nossos dias de forma inegável. Lembramos, a este propósito, Maria Engrácia Leandro: «os sistemas de valores, orientando-se mais para o material e o bem-estar pelo bem-estar, “hic et nunc”, multiplicam-se mas tornam-se efémeros; os universos de sentido para a existência, sendo multiformes e tornando-se fragmentados deixam instalar, por vezes, uma certa sensação de vazio e as pessoas sentem-se, frequentemente à deriva» (cf., 2001: 85). Na explicação dos riscos assumidos pelos jo-

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vens, não podemos deixar de ter em conta também o mimetismo inerente a esses comportamentos. O fenómeno da imitação diz respeito aos suicídios, ao consumo de drogas, aos jogos perigosos. O grupo social constitui simultaneamente um factor de emulação para os comportamentos de risco e um elemento de protecção para os indivíduos. No grupo, o indivíduo sente-se estimulado e invencível. Assim, as sensações de auto-realização são desmultiplicadas ao contacto dos outros e acabam por fundir-se em relações sociais caracterizadas pela intersubjectividade e pela intercorporalidade. Por outras palavras, a experiência vivida do risco contribui para a valorização social do indivíduo e reforça a sua integração no grupo. Será necessário repetir que o irracionalismo pode manifestar— se de maneira sã, se for reconhecido e integrado pela sociedade, e que poderá manifestar-se de maneira desenfreada, se for recalcado? Mais vale dar uma possibilidade de expressão à irreprimível violência antes que esta degenere em mal absoluto. Mais vale acomodar-se a uma «guerra dos deuses», segundo a expressão de Max Weber, que permite à sociedade constituir-se a partir de uma rivalidade entre valores antagónicos, para não dizer inconciliáveis, e que permite aos grupos interagirem segundo o esquema da conjunção e da disjunção (Octavio Paz), do que ter que suportar a posteriori as nefastas consequências do racionalismo exacerbado. Em suma, mais vale pequenas loucuras, pequenos males, pequenas violências (sobre si e sobre os outros), que permitem exprimir a infinita complexidade e diversidade dos caracteres (Nicolau Maquiavel), dos humores (Julien Freund) e dos temperamentos humanos (William Sheldon, Aldous Huxley), do que os delírios assassinos dos totalitarismos do século XX. De facto, podemos perfeitamente interpretar estes últimos como o resultado do processo de racionalização levado ao paroxismo. Mais vale reconhecer a debilidade congénita do homem, no sentido em que Santo Agostinho afirmava que «nascemos entre as fezes e a urina» (citado por Vaneigem, 1993: 233), ou no sen-

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tido em que Karl Popper construiu uma teoria do reconhecimento da falibilidade do homem como condição da existência da sua liberdade, do que nutrir acerca dele esperanças demasiadamente elevadas, que, aliás, levaram aos genocídios que conhecemos. Que se poderá pensar de um homem, tal como o observamos no seu dia-a-dia, se acreditássemos, à semelhança de Trotsky, que no firmamento comunista o nível base da humanidade corresponde ao de Miguel Ângelo? Não podemos esquecer nunca que os maiores crimes contra a humanidade foram cometidos em nome da perfectibilidade humana. Ao querermos fazer o anjo, acabamos por fazer a besta, como dizia tão bem Pascal. Deste ponto de vista, o adágio popular segundo o qual «o óptimo é inimigo do bom» tem toda a razão de ser. Fernando Pessoa, pela pluma de Ricardo Reis, exprimiu essa ideia de maneira mais erudita: «O ideal é a noção de que a Vida não basta» (cf., 2003: 191). Ora, a sabedoria instintiva dos jovens, que organizam de maneira selvagem, e muitas vezes ilegal, «raves» nas quais pisam a terra barrenta horas a fio ao som da música «tecno», ensina-nos que a vida se basta a si mesma. Pelo menos, podemos afirmar que esta sabedoria está em consonância com todos aqueles que, à imagem de Michel Serres, «definem o homem pelo Húmus: autóctone, vindo da terra, por ela nutrido e voltando a ela para a nutrir» (cf., 2003: 280). Mais vale concebermos os males morais do mesmo modo que concebemos os males naturais, como uma manifestação necessária do acaso ou do acidente, e optar pela «astúcia metafísica que consiste em livrar-se de uma parte da responsabilidade do mal, fazendo deste um destino, uma sobre-natureza, uma transcendência laica, uma entidade pendente sem malignidade, mas extremamente perigosa, que pode deixar-nos em paz enquanto não a desafiamos» (Dupuy, 2005: 27). Nós sabemos que são inevitáveis os comportamentos de risco deliberadamente assumidos nas estradas, à semelhança do chicken game, cuja ilustração mais famosa é a corrida de dois carros para o precipício com a finalidade de revelar o condutor mais corajoso, afinal aquele

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que salta do carro em último, no filme protagonizado por James Dean, Rebel without a Cause (A fúria de viver). Perante estes comportamentos, mais vale então adoptar o ponto de vista da «dromoscopia – este fenómeno óptico de desenrolamento que inverte as margens das estradas, com as suas árvores que parecem precipitar-se sobre o párabrisas antes de desaparecerem no retrovisor, enquanto que, na realidade, é o contrário que acontece» (Virilio, 2005: 141). Da mesma forma, a sublimação do medo, no qual se alicerçam todos os poderes, tanto o poder dos médicos, como o poder dos gestores, constitui claramente um «ponto de inflexão do sentimento de “risco”» (Sirost, 2002: 6). Como o sublinha ainda Olivier Sirost no seu comentário à relação estudada por Alain Corbin entre o mar e a costa, verificou-se, nos últimos séculos, uma mudança de paradigma na apreensão dos perigos ligados às aventuras náuticas. Diz Sirost: «em relação ao mar, a costa é um território que se constitui durante os séculos XVIII e XIX, passando do estatuto de abismo dos medos ao de praia dos prazeres. A mudança opera-se por meio de uma reorientação estética dos sentimentos, onde o medo e o arrepio se integram com o sublime. A cena marítima que aviva estas emoções muda o seu quadro de percepção. Doravante, o mar é apreendido a partir desse ponto fixo e tranquilizante que é a costa, e já não enquanto “mobilis in mobile”» (ibid.). Em suma, mais vale ficarmos pelo aspecto contraditório, heterogéneo, múltiplo de toda a realidade, por aquilo que Fernando Pessoa chamou a «ebriedade do Diverso» (cf., 1986: 893). O que implica a aceitação da crueldade e, correlativamente, a aceitação do destino. É este o sentido que Rüdiger Safranski dá à obra literária e poética do Marquês de Sade: uma aspiração à liberdade, uma consagração da estética no acto de destruição, uma procura hedonista do «supra-terrestre no infraterrestre» (cf., 2000: 184), como formas perversas de escapatória aos desígnios racionais da natureza e de Deus. «Qual é então a mais “abominável” inclinação que a natureza colocou manifestamente em nós, sem nos deixar a possibilidade de a satisfazer como o queríamos? É o

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desejo da destruição total. Já que podemos dizer “não”, já que podemos pensar a nossa morte, ou, simplesmente, escorraçar qualquer coisa do nosso pensamento, somos aparentemente cúmplices do nada. Mas nunca estamos fundidos na experiência do nada ao ponto de podermos desprender-nos totalmente de algo. E este desprendimento é a grande obsessão de Sade. (…). E a paixão mais profunda de Sade é libertar-se do ser em geral. Encontramos um gosto antecipado dessa libertação na ebriedade sexual. No cume do prazer sensual perdemos os sentidos. Esta perda aponta para a grande desvinculação a que Sade aspira ardentemente nos seus sonhos e fantasias. Sade exige uma dissidência com o que é fundamental. Se pudesse, romperia com a natureza, tal como rompeu com Deus. Não esqueçamos que esta ruptura com a natureza em jogos de fantasia é um excesso de liberdade. À semelhança de Kant, também para Sade, o que está em jogo é o triunfo da liberdade sobre a natureza. No entanto, trata-se de um triunfo que, no final, se encontra numa escala oposta. Não se trata do dever do bem para com o bem; em Sade actua o desejo da destruição para com a destruição. A vontade do mal é, no final, tão “pura” como havia também de o ser a vontade kantiana do bem. Já não é útil, já não serve a própria conservação; tornou-se num fim em si mesma. Em Kant, a liberdade moral elege o dever absoluto. Em Sade, a liberdade apropria-se da negação absoluta: quando existe, deveria deixar de existir» (ibid.: 180-181). É neste sentido também que Alain Badiou interpretou o poema A ode marítima, da autoria de Álvaro de Campos (Fernando Pessoa), poema que exprime um lirismo da barbárie, patente na metáfora da pirataria que nos penetra, já que «a relação com o real nunca é dada como harmonia, é contradição, brusquidão, ruptura» (Badiou, 2005: 165). Um poema que exprime também um nomadismo ontológico, palpável na «aliança (mais uma correlação anti-dialéctica) entre a ferocidade mais extrema e a submissão absoluta», uma submissão «que não é mais do que a dissolução do “eu”, a renúncia a toda a ideia subjectiva», um consentimento «ao que advém», «um abandono ao que

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acontece» (ibid.: 178). Dois excertos de Pessoa comprovam o seu estetismo da violência e a sua paixão pela despreocupação: «Os piratas, a pirataria, os barcos, a hora, / Aquela hora marítima em que as presas são assaltadas, / E o terror dos apresados foge pra loucura – essa hora, / No seu total de crimes, terror, barcos, gente, mar, céu, nuvens, / Brisa, latitude, longitude, vozearia, / Queria eu que fosse em seu Todo meu corpo em seu Todo sofrendo, / Que fosse meu corpo e meu sangue, compusesse meu ser em vermelho, / Florescesse como uma ferida comichando na carne irreal da minha alma!» (Pessoa, 1986: 905; cf., Badiou, 2005: 159-160); «Ah, os piratas! Os piratas! / A ânsia do ilegal unido ao feroz, / A ânsia das coisas absolutamente cruéis e abomináveis, / Que rói como um cio abstracto os nossos corpos franzinos, / Os nossos nervos femininos e delicados, / E põe grandes febres loucas nos nossos olhares vazios! / (…) Tomar sempre gloriosamente a parte submissa / Nos acontecimentos de sangue e nas sensualidades estiradas!» (Pessoa, 1986: 908; cf., Badiou, 2005: 168-169). Apaziguar os inúmeros perigos induzidos por esse indomável «querer-viver» (Maffesoli), patente nas expressões do tipo viver nos limites, bater no fundo, confrontar-se com os extremos, expor-se, evadir-se, estoirar, cortejar a morte, ir até às entranhas, por meio da aceitação do destino; domesticar o desejo de morte pela ritualização festiva, eis os segredos do bom uso dos riscos. Os comportamentos de risco, além de representarem uma das únicas fontes de liberdade numa sociedade que invariavelmente tende para a uniformização, têm o mérito de nos confrontar com a questão da alteridade, uma alteridade que está em nós e à nossa volta. Toda a questão que se levanta aos sociólogos consiste então em saber integrar nas suas reflexões a realidade indelével da vida, essa alteridade, essa parte maldita que se chama mal, violência, crueldade, fúria, loucura: «Dialogia da pars destruens e da pars construens. Destruições e construções andam de mãos dadas. E a arte do saber consiste claramente em ajustar-se à arte de viver que se alicerça numa tal dialogia» (Maffesoli, 2007: 30).

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O maior São João do Mundo em Campina Grande - João Pessoa - Brasil: um evento comunicacional de interfaces culturais Severino Alves Filho1

Historicidade No Nordeste do Brasil as festas juninas sempre estiveram associadas ao mundo rural. É um ciclo de festas transposto da Europa, que aqui comemora especialmente a colheita do milho, cuja plantação coincide, mais ou menos, com o dia 19 de Março, no qual o catolicismo homenageia a São José e se estende até o final do mês de Julho, quando os católicos homenageiam Santa Ana, esposa de Joaquim, pais de Maria, mãe de Jesus. Nesse período, muitas pessoas que residiam nas áreas urbanas se deslocavam para o campo, tanto por razões econômicas quanto por razões lúdicas. Nesse período, o catolicismo comemora, ainda, os santos Antônio (13 de Junho), João (24 de Junho) e Pedro (29 de Junho). Com o tempo, as comemorações do ciclo junino aportaram e se enraizaram nas cidades, como em Campina Grande, no Estado da Paraíba. A tradição de acender fogueiras, principalmente na véspera do dia 24 de Junho2, a reunião das famílias em seu entorno, na cidade e no campo, para celebrar os Santos de Junho cujas datas comemorativas têm 1

Departamento de Comunicação e Turismo do Centro de Ciência, Letras e Humanidades da Universidade Federal da Paraíba - Brasil 2 As pessoas, no Nordeste, também guardam o costume de acender fogueiras em homenagem não apenas a São João, como também nas festividades populares em homenagem a Santo Antônio e São Pedro.

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coincidência com a colheita do milho, motivaram o desenvolvimento de uma série de festejos populares onde predominam: uma gastronomia própria3, os costumes da dança e música que se adaptaram às condições do clima (principalmente a quadrilha), o uso dos fogos de artifício produzidos artesanalmente, além de brincadeiras onde a religiosidade popular deu ênfase, também, as ocorrências da arte divinatória (voltadas, principalmente, para especulações em torno do casamento das pessoas, sob a invocação ou não de Santo Antônio, tido como ‘santo casamenteiro’). É todo um conjunto de tradições que ainda se conserva. A festa de “O maior São João do Mundo” teve sua institucionalização e seu início na década de 1980. São trinta dias de festa - um empreendimento público de caráter massivo e promocional para o turismo cultural da região. A realização dessa festa, considerada um megaevento na localidade e na região, passou a estabelecer novas relações econômicas, políticas, culturais e turísticas do Estado com a localidade e com os demais municípios da região. Hoje, os municípios vizinhos realizam festas juninas que tentam copiar o modelo de sucesso do evento em foco. As festas juninas são festas agrárias ligadas aos ciclos naturais que marcavam a passagem do tempo, tendo origem anterior ao cristianismo. A Igreja Católica as transformou em manifestações cristãs. No início dos anos 1980, em Campina Gande na Paraíba, as festas populares do ciclo junino transformaram-se em eventos culturais com características mercadológicas, com feições de espetáculo com marcas profanas e, nessa esteira, passaram a ser atração turística e fonte geradora de renda para a comunidade local e para a região. No próximo item relataremos o processo metodológico de investigação em culturas, em especial nas culturas populares, que re3

As comidas estão relacionadas com a abundância do milho-verde e da massa-damandioca, preparadas – quase sempre – com leite-de-coco, tais como a canjica, a pamonha e o munguzá e os bolos como o pé-de-moleque, o manuê e uma enorme variedade preparada com a massa-da-mandioca.

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querem do pesquisador sensibilidade na escolha dos múltiplos caminhos a serem percorridos para que as pedras de toque construtoras desse processo respeitem as fronteiras simbólicas das culturas locais em contextos globalizados.

Percurso metodológico O caminho percorrido na condução da pesquisa foi dividido em duas etapas: a primeira concerne à revisão bibliográfica, onde examinámos a literatura sobre a festa, a cultura massiva, a comunicação organizacional integrada, o marketing, a teoria da Folkcomunicação e a teoria da análise do discurso, enfocando as especificidades conceituais e perspectivas analíticas que orientaram o processo de construção e análise do problema proposto. A segunda etapa foi a da pesquisa de campo, quando realizámos coleta de dados, através de entrevistas e registros fotográficos das principais imagens dos cenários da festa, o que possibilitou analisar a sua iconografia e captar seus múltiplos sentidos; pesquisa na imprensa local, nos periódicos Jornal da Paraíba, Diário da Borborema e nos veículos impressos de circulação em João Pessoa, O Correio da Paraíba, O Norte e A União, que forneceram não apenas as matérias jornalísticas mas também material iconográfico. Pesquisámos ainda em sites ligados ao evento, produzidos pelos órgãos gestores da festa e por outras empresas. Durante a pesquisa, coletámos vários instrumentos de comunicação dirigida, como panfletos, folhetos, boletins, cartazes e folderes da programação da festa; cartões telefônicos, bandeirolas, camisetas e embalagens dos produtos das empresas participantes do acontecimento, que registram marcas de apropriação do uso dos símbolos da tradição junina em sua programação visual, com objetivos comunicacionais. O objetivo da pesquisa foi analisar a festa junina do “O maior São João do Mundo” como um evento comunicacional, gerador de discursos

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organizacionais, no contexto do marketing, ou seja, através da apropriação de elementos da cultura popular pelas instituições públicas e privadas, com objetivos comunicacional, mercadológico e institucional. O material, que compõe o corpus da pesquisa, foi coletado durante os meses de Junho, nos anos de 2001 a 2003. Na condução das análises do corpus, utilizámos dados dos anos anteriores e posteriores a essas datas, uma vez que nosso interesse era também alcançar a contextualização de toda a promoção. É de Rúdio (1992) o seguinte conceito amplo de método: É o caminho a ser percorrido, demarcado, do começo ao fim, por fases ou etapas. E como a pesquisa tem por objetivo um problema a ser resolvido, o método serve de guia para o estudo sistemático do enunciado, compreensão e busca de solução do referido problema. Examinando mais atentamente, o método da pesquisa científica não é outra coisa do que a elaboração, consciente e organizada, dos diversos procedimentos que nos orientam para realizar o ato reflexivo, isto é, a operação discursiva, de nossa mente. A pesquisa de caráter qualitativo, pela qual optámos, é um trabalho intelectual empírico, em ciências humanas e sociais, cujo objeto é trabalhado de maneira holística, já que a coleta de dados é executada sem considerar como cerne a quantificação. O método qualitativo, segundo Oliveira (2002), [...] possui a facilidade de poder descrever a complexidade de uma determinada hipótese ou problema, analisar a interação de certas variáveis, compreender, classificar processos dinâmicos e experimentados por grupos sociais, apresentar contribuições no processo de mudança, criação ou formação de opiniões de determinado grupo e permite em maior grau de profundidade, a interpretação das particularidades dos comportamentos ou atitudes dos indivíduos.

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Recorremos ao suporte conceitual da teoria da análise do discurso na condução do procedimento analítico da pesquisa. Optámos pela Análise do Discurso (escola francesa), por ser uma proposta teórico-metodológica que busca, por meio dos sentidos do texto, acessar o discurso, seus sujeitos sociais, históricos e ideo-lógicos e suas condições de produção. A nossa visão de discurso contempla os diferentes tipos de linguagem usadas em distintas situações sociais, como as múltiplas marcas visibilizadas nos diversificados campos discursivos: jornalístico, publicitário, organizacional, político, na medicina, envolvendo produtos culturais originários das manifestações da cultura popular, religiosa e outras práticas discursivas que integram cenários multiculturais.

Considerações sobre análise do discurso A escola de análise do discurso francesa, fundada por Michel Pêcheux, surge no final dos anos 60 e firma-se nos anos 70, do século XX, no seio de uma conjuntura intelectual que procurava refletir criticamente as relações entre lógica, filosofia e linguagem e propor uma perspectiva materialista das práticas da linguagem, em especial da formação dos processos discursivos4. Tratava-se de uma prática e um campo da lingüística e da comunicação especializado em analisar construções ideológicas. Conforme Pêcheux e Fuchs (1975), o quadro epistemológico da análise do discurso configura-se na articulação de três regiões do conhecimento científico, a saber: 4

A análise do discurso, com essa especificidade, nasce em 1969 através da Análise Automática do Discurso (AAD), passando por uma revisão crítica em 1975. A preocupação em A Propósito da Análise Automática do Discurso: atualização e perspectivas (1975), bem como em Semântica e Discurso, também em 1975, é com a Teoria do Discurso.

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a) o materialismo histórico, como teoria das formações sociais e de suas transformações, compreendida aí a teoria das ideologias; b) a lingüística, como teoria dos mecanismos sintáticos e dos processos de enunciação; c) a teoria do discurso, como a teoria da determinação histórica dos processos semânticos. Pêcheux e Fuchs registram que essas três regiões são atravessadas e articuladas por uma teoria da subjetividade, de natureza psicanalítica. Na condição deste estudo, a região do conhecimento evidenciada, é a teoria do discurso, como teoria da determinação histórica dos processos sociais segundo o olhar semântico. Na análise do discurso faz-se uma leitura capaz de ir além de um sentido único, considerando a opacidade dos sentidos. Deste modo, ela substitui a análise de conteúdo, que apenas percorre o texto, para codificá-lo. A análise do discurso não trabalha especificamente com textos, mas com discursos, pois considera os textos como materialidade destes discursos. E eles são defendidos como efeito de sentidos entre enunciadores. O discurso não é um sistema fechado; ele é um processo, está sempre em movimento. Por isso, não pode ser visto como um mero conjunto de textos, mas uma prática lingüístico-social. Portanto, é encarado no âmbito das práticas que edificam a sociedade, na sua historicidade. Os conceitos basilares da análise do discurso que marcam e caracterizam a corrente francesa para esse estudo são, pelo lado do discurso, as orientações de Michel Foucault, materializadas na obra Arqueologia do Saber5 (onde se destaca a noção de formação discursiva). Influenciado pelas idéias de Foucault, Michel Pêcheux desenvolveu seus estudos estabelecendo referências conceituais para os estudos da análise do discurso. 5

A data da tradução brasileira é de 1997, segundo constatamos nas referências bibliográficas.

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Nos conceitos e releituras de Michel Pêcheux, os estudiosos têm a referência basilar dos estudos da análise do discurso. É evidente que, com o decorrer do tempo, mudanças, aproximações teóricas e novos olhares se agregaram a esses conhecimentos. No Brasil, os trabalhos de pesquisa acadêmica são desenvolvidos com base na multiplicidade dos corpora que espelham as práticas sociais vivenciadas em diferentes momentos políticos, históricos e culturais, e que são usados como estudo no contexto da análise do discurso. Os referenciais teóricos, que nutrem essas pesquisas, têm como base os conceitos oriundos das correntes francesa e anglo-saxã. Atualmente, os trabalhos da análise do discurso não estão centrados em um único modelo ou corrente. Predomina uma combinação, em que as análises são resultados dos momentos e dos lugares de enunciação em que se inserem os discursos a serem estudados, e os interesses dos analistas. Segundo Ferreira (2001), [...] a análise do discurso trabalha com as relações de contradição que se estabelecem entre as disciplinas lingüísticas e as ciências das formações sociais, caracterizando-se, não pelo aproveitamento de seus conceitos, mas por repensá-los, questionando, na lingüística, a negação da historicidade inscrita na linguagem e, nas ciências das formações sociais, a noção de transparência da linguagem sobre a qual se assentam as teorias produzidas nestas áreas. Ela defende que a análise do discurso francesa permite trabalhar em busca dos processos de produção de sentido de suas determinações histórico-sociais. Isso implica o reconhecimento de que há uma historicidade inscrita na linguagem que não nos permite pensar na existência de um sentido literal, já posto, e nem mesmo que o sentido possa ser qualquer um, já que toda interpretação é regida por condições de produção.

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Análise do discurso: conceitos-chave Os conceitos escolhidos para essa abordagem são pautados no caráter heterogêneo do objeto em estudo: os discursos organizacionais no contexto do folkmarketing, produzidos pelas organizações públicas e privadas que participam do evento em análise. Apresentamos a noção de “discurso”, segundo Ferreira (2001): O discurso, objeto teórico da análise do discurso (objeto históricoideológico), que se produz socialmente através de sua materialidade específica (a língua) é uma prática social cuja regularidade só pode ser apreendida a partir da análise dos processos de sua produção, não dos seus produtos. O discurso é dispersão de textos e a possibilidade de entender os discursos como prática derivada da própria concepção de linguagem marcada pelo conceito de social e histórico com a qual a análise do discurso trabalha. É importante ressaltar que essa noção de discurso nada tem a ver com a noção de parole/fala referida por Saussure. O cotidiano promove encontro diário com uma multiplicidade de discursos originados pelos panfletos, catálogos, cartazes, folderes, outdoors, banners, malas-diretas, faixas, grafitos, guias turísticos, relatórios empresariais, bandeiraços e outros cenários. Esses instrumentos de comunicação são objetos de estudo na análise do discurso, pois integram as práticas cotidianas no contexto social, global e local, produzindo múltiplos sentidos. Tais objetivos reunidos constituiram nosso corpus da análise, entendendo corpus como um conjunto finito de materiais coletados, sobre os quais foram procedidas as análises em busca de múltiplos sentidos. Para (Pêucheux,1969), discurso é efeito de sentido entre interlocutores. Ou seja, todo discurso produz diferentes sentidos, possíveis conforme as condições em que os enunciados deste discurso são re-

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produzidos e a formação ideológica do sujeito que os produz, bem como de quem os interpreta (reprodutores). Em Semântica e discurso, Pêcheux (1995) afirma que [...] o sentido de uma palavra, de uma expressão, de uma proposição, etc., não existe em si mesmo (isto é, em sua relação transparente com a literalidade do significante), mas, ao contrário, é determinado pelas suas posições ideológicas que estão em jogo no processo sócio-histórico no qual as palavras, expressões e proposições são produzidas (isto é, reproduzidas). Dessa forma, entende que as palavras, as proposições, as imagens, etc., combinam sentido de acordo com as posições assumidas por aqueles que as empregam. Essa mudança vincula-se também às relações culturais, econômicas e políticas daqueles que as produzem/reproduzem. Os sentidos são intervalares e mutantes. Eles nunca estão dados, não existem como produto concluído. Os sentidos são sistemas abertos, sempre em curso, moventes, produzem-se e se modificam em um determinado contexto histórico, social, econômico e cultural. Nos cenários do evento em estudo, os sentidos são produzidos com base no universo simbólico do ciclo junino e à medida que os públicos entram em contato com estas produções, promovem várias ressemantizações dos mesmos, que aproveitam as suas histórias de vida e as suas convivências e trocas em âmbito rurbano. Os produtos culturais dos acontecimentos ou eventos comunicacionais, originam discursos fundamentados e orientados segundo a historicidade de um contexto social, que se explica segundo o entendimento de Ferreira (2001), a saber: [...] historicidade é modo como a história se inscreve no discurso, sendo a historicidade entendida como a relação constitutiva entre a linguagem e história. Para o analista do discurso, não interessa

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o rastreamento de dados históricos em um texto, mas a compreensão de como os sentidos são produzidos. A esse trabalho dos sentidos no texto e à inscrição da história na linguagem é que se dá o nome de historicidade. É assim que se dá com “O maior São João do Mundo”: um produto cultural constituído de discursos cujos sentidos vinculam—se à historicidade, marcada pelo legado cultural do colonizador português e da mistura das etnias autóctones e/ou transatlânticas que integram a paisagem híbrida cultural brasileira. No Nordeste do país, essas marcas se fazem presentes nas danças, na música, nas comidas típicas, nas vestimentas, nos rituais de celebrações religiosas, bem como nas festas populares. Orlandi (2001) defende que a noção de formação discursiva «permite compreender o processo de produção dos sentidos, a sua relação com ideologia e também dá ao analista a possibilidade de estabelecer regularidades no funcionamento do discurso» Sendo elas - as formações discursivas - um espaço de constituição de sentido, aberto e com marcas heterogêneas, apresentam fronteiras fluídas, permitindo o deslocamento das significações, de modo que uma formação discursiva pode, então, ser entendida como uma unidade heterogênea, com fronteiras permeadas por deslocamentos nas suas relações com a exterioridade. . Segundo Charadeau (2004), «o enunciador é aquele que diz ‘eu’, que ocupa, na produção, o lugar de produtor físico do enunciado». Para ele, a posição do enunciador coincide com aquela de produtor do enunciado, embora haja casos do ‘eu’ não ser empregado para fazer referência ao produtor. Os enunciadores dos discursos organizacionais, no contexto do folkmarketing, no acontecimento em foco, são as instituições públicas e privadas que, durante os 21 anos de sua realização, dela participam, gerando um conjunto de discursos, visibilizando o universo simbólico da festa junina com objetivo comunicacional.

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No caso da festa junina do “O maior São João do Mundo”, as marcas que os enunciadores visibilizam, nos seus discursos organizacionais, são apropriadas dos saberes populares da tradição junina, para constituírem os discursos folkcomunicacionais. E são marcas contaminadas por características sociais, políticas, culturais, segundo a posição e a condição que cada enunciador ocupa no espaço onde atua. Para Pêcheux (1997), [...] a apropriação do conceito e a desidentificação de que essa apropriação necessita se efetuam, assim, paradoxalmente, através de uma identificação-presentificação que coloca inevitavelmente em jogo conveniências, garantias, perspectivas [...]. Diz o autor que essa identificação e presentificação se apoiam, ao mesmo tempo, numa mise-en-scène (ficção realizante) do conceito ou do dispositivo experimental como ‘coisas’ (figuras, esquemas, diagramas, etc). Não se dá de maneira diferente com os enunciadores dos discursos organizacionais, no contexto do folkmarketing, posto que eles promovem uma apropriação dos conhecimentos e dos saberes da cultura popular, com objetivos comunicacionais mercadológicos e institucionais que, em seqüência, impõem à apropriação uma identificação, que a fazem adquirir a condição de presentificação, materializada através de símbolos, mitos, cenários e figuras do cotidiano rural e religioso com que se constrói o universo simbólico dessa formação discursiva heterogênea que é a festa do ciclo junino. Para Ferreira (2001), a heterogeneidade discursiva destaca que todo discurso é atravessado pelo discurso do outro ou por outros discursos. Estes diferentes discursos mantêm entre si relações de contradição, de dominação, de confronto, de aliança e/ou de contemplação.

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Noutras palavras, as condições de produção dos discursos tanto são responsáveis pela viabilização do acontecimento em que um discurso é originado, quanto, também, pelas suas contestações. Nas relações de edificação das condições de produção, as variáveis sócio-culturais e políticas, desde o lugar onde os discursos são gestados, são de fundamental importância para a sua constituição. ‘Acontecimento’, que para este escrito tem a mesma acepção de “evento” ou “fato”, para Ferreira (2001), [...] é o ponto em que um enunciado rompe com a estrutura vigente, instaurando um novo processo discursivo. O acontecimento inaugura uma nova forma de dizer, estabelecendo um marco inicial de onde uma nova rede de dizeres possíveis irá emergir. Na concepção da análise do discurso, o acontecimento deve ser focado como um evento que produz um fato físico, sócio-histórico ou sócio-cultural, um processo gerador de novas maneiras de dizer, enquanto um fato discursivo dinâmico. O acontecimento é um processo comunicacional que veicula um conjunto de significações de um emissor para um destinatário. Pode ser observado e estudado pela análise do discurso, partindo-se do pressuposto de que, por trás dos discursos, heterogêneos, simbólicos e polissêmicos, existem sentidos para serem mobilizados e interpretados. A interpretação dos processos comunicacionais envolve uma visão holística dos discursos analisados, demonstrando que os fatos sociais são sempre complexos, históricos, dinâmicos e estruturais. Mais ainda, trata-se de uma visão que defende que o todo não é a mesma soma das partes e que tem propriedades que faltam aos elementos individuais que o constituem. Daí, também, o enfoque da interpretação varia, podendo ser feito a partir de uma ênfase sociológica, psicológica, política, cultural, mercadológica, filosófica ou folkcomunicacional, como no caso em estudo.

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A construção dos discursos consiste na maneira e na ordem em que os elementos ou eventos são combinados, arrumados ou rearrumados, para se constituírem e serem visibilizados na sociedade. Essa estruturação pode ser ampliada ou reduzida, segundo a percepção dos sistemas de conhecimento e crença dos intérpretes e dos pressupostos que orientam as relações sociais e as identidades, provocando diferentes interpretações. A ser seguida a compreensão de Pinto (1999), para quem a «análise de discurso procura descrever, explicar e avaliar criticamente os processos de produção, circulação e consumo dos sentidos vinculados àqueles produtos na sociedade», os produtos culturais devem ser entendidos como textos, como formas empíricas do uso da linguagem verbal, oral ou escrita, e/ou de outros sistemas semióticos, no interior de práticas sociais contextualizadas, histórica e socialmente. Poder-se-ia, então, afirmar que os produtos culturais dos eventos comunicacionais originam os textos/discursos que podem ser verbais e não-verbais e que, na sua superfície é possível encontrar pistas, vestígios ou marcas deixadas pelos processos sociais de produção de sentidos, que se encontram depositadas na memória, e que proporcionam ao analista interpretações e re-interpretações. O acontecimento cultural aqui estudado, que vem se realizando há mais de duas décadas – embora sua origem histórica efetiva seja ainda mais remota no tempo6 - tem procurado resgatar da memória do público uma cultura tradicional rural, tornando-a visível através de cenários e programação com discursos elaborados, re-elaborados e apresentados pelos meios de comunicação massivos. Na festa junina de Campina Grande ocorre um entrecruzar dos 6

Há informações de que a festa, com a duração de 30 dias, teria ocorrido pela primeira vez em Campina Grande no ano de 1966, porém restrita ao âmbito do Gresse, clube social de militares que serviam na cidade. A festa, desde então, não foi descontinuada, convertendo-se num mega-evento ao redor dos anos 80 do século passado.

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símbolos do passado e do presente, das vivências rurais e urbanas, do global e local, no contexto midiático na contemporaneidade. Segundo Davallon (1999), [...] lembrar um acontecimento ou um saber não é forçosamente mobilizar e fazer jogar uma memória social. Há necessidade de que o acontecimento lembrado reencontre sua vivacidade; e, sobretudo, é preciso que ele seja reconstruído a partir de dados e de noções comuns aos diferentes membros da comunidade social. É a memória coletiva, referida por Grigoletto (2003): «a concepção de memória coletiva, enquanto constitutiva de um determinado grupo social, o qual passa, através da história - de geração em geração - os seus dogmas, as suas crenças, os seus ensinamentos». Durante a realização do evento junino de Campina Grande, seus gestores promovem programações gastronômicas, musicais, religiosas, apresentações e representações que visibilizam e retomam as crenças, os costumes, os ensinamentos do cotidiano rural para os públicos que buscam recordar fatos ligados aos festejos juninos que estavam guardados na memória. Os condutores dos processos de comunicação organizacional, das diferentes organizações, se apropriam desses conhecimentos populares para dinamizar suas campanhas publicitárias junto aos seus públicos de interesse, com objetivos mercadológicos e institucionais. Achard (1999), sublinha que, [...] a publicidade utiliza a imagem em complementaridade com o enunciado lingüístico para apresentar - tornar presentes - as qualidades de um produto e conduzir assim o leitor a se recordar de suas qualidades, mas também fazê-lo se posicionar em meio ao grupo social dos consumidores desse produto; a se situar, a se representar esse lugar. Os processos polissêmicos, presentes no mosaico de imagens originadas pelas apropriações do universo simbólico da festa junina, do “O

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maior São João do Mundo”, pelas instituições públicas e privadas, permitem, devido à presença variada de símbolos e métodos de significação e de re-significação, resultado da multiplicidade de sentidos vivenciados nessa rede discursiva, onde o passado e o presente se entrecruzam e são operacionalizados em cenografias, construídas com objetivo de mobilizar sentidos e lembranças que permanecem guardados na memória do público rurbano. O passado, mesmo que realmente memorizado, atua como mediador de reformulações, permitindo reenquadrá-las no discurso concreto no qual nos encontramos. O evento comunicacional gerador de discursos organizacionais folkcomunicacionais - do “O maior São João do Mundo” – que se assenta em um espaço discursivo permeado por sentidos edificados a partir e formações discursivas religiosa, mercadológica e institucional. Da primeira delas, a formação discursiva religiosa, fazem parte ritos, mitos e celebrações, tanto as de cunho eclesial quanto as provenientes da cultura popular. A segunda, ou seja, formação discursiva mercadológica uma ação mercadológica projetada para ser operacionalizada nas comunidades de consumo, com o direito de visibilizar e vender os produtos e serviços nas localidades onde atuam as empresas. A formação discursiva institucional é um processo produtor de sentidos orientadores da construção, exibição e da solidificação da imagem das organizações, nos lugares onde atuam. As formações discursivas integram as condições de produção do discurso comunicacional organizacional, no contexto do folkmarketing, constituídas pela apropriação dos saberes da cultura popular por parte das instituições públicas e privadas que agem na região e na localidade da festa junina do “O maior São João do Mundo”. Esse espaço discursivo é o lugar de mostrar os discursos, materializados pelas imagens publicitarías e cênicas da festa junina, que serão analisadas e que comporão a operação analítica, na próxima etapa desse estudo.

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Análises dos blocos imagéticos discursivos-BID Iniciamos a análise, tecendo algumas considerações sobre o material que compõe nosso corpus de estudo, o qual é orientado pelos questionamentos abaixo, que permitirão visualizar e compreender a festa junina do “O maior São João do Mundo” - como um evento comunicativo gerador de discursos organizacionais, no âmbito do folkmarketing: a) de que forma ocorre a relação de apropriação e materialização por parte das empresas do universo simbólico da festa popular do ciclo junino do “O maior São João do Mundo”, no âmbito da comunicação organizacional, com recorte para o folkmarketing? b) quais os símbolos mais usados da festa junina, na construção das formações discursivas, na modalidade comunicativa do folkmarketing? c) quais os sentidos mais evidenciados, em nível de trocas simbólicas, por parte das empresas enunciadoras dos discursos, na ação comunicacional do folkmarketing? Buscamos, em especial, compreender o funcionamento dos discursos folkcomunicacionais gerados pelas empresas públicas e privadas que participam do evento em foco, na condição de gestoras, patrocinadoras e/ou apoiadoras, no contexto da modalidade comunicativa do folkmarketing, promovendo apropriações do universo simbólico da manifestação da cultura popular. A constituição do corpus é um mosaico construído pelo analista e com o qual ele irá proceder à análise, considerando sua amplitude, a homogeneidade da materialidade e a temporalidade. Segundo Barthes (1976), «o corpus é uma coleção finita de materiais determinada de antemão pelo analista com (inevitável) arbitrariedade e com a qual ele irá trabalhar». Barthes, ao analisar textos, imagens, música e outros materiais, como significantes da vida social, estende a noção de corpus, de um texto, para qualquer outro material.

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Apresentamos os BIDs, com suas respectivas nomeações, segundo o contexto cultural, histórico e comunicacional da festividade, e que serão distribuídos, para a análise, na seguinte seqüência: BIDProgramação da festa ; BID- Embalagens juninas; buscamos, através destes, registrar e analisar os seguintes níveis de apropriação:manutenção da identidade cultural; historicidade; objetivos mercadológico e institucional; transformações radicais de sentidos.

BID - Programação da Festa Folder da programação de 2000. (Fonte: arquivo do pesquisador)

O casal de bonecos de milho foi o símbolo da festa, pela primeira vez no ano de 1984, mas reaparece em todas as programações como uma das referências do evento. O Sabogildo e Milharilda, bonecos de milho, são produzidos artesanalmente. As espigas de milho verdadeiras são transformadas em representações de figuras humanas. Nessa apropriação, o símbolo sofre uma transformação radical. O milho, produto agrícola básico, presente nas comidas típicas da festividade, adquire um novo sentido: passa a ser o casal ”embaixador do forró”. Os elementos que integram o símbolo artesanal são: o sabugo de milho; o chapéu de palha; a chuta estampada e colorida, com bico, babados e rendas, e o instrumento musical referencial da música regional - a sanfona que, junto com o pandeiro, o triângulo e a zabumba, executam páginas musicais do ritmo identitário da região Nordeste, o forró.O milho é o símbolo que representa os traços e os valores da cultura rural e da festividade junina, pois este é a base das comidas típicas que se encontram presentes no banquete junino, nos lares do nordestino, durante a festa e por todo o mês de junho.

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A construção de sentidos mobilizados pelos personagens, a partir dessa condição de produção, evidencia que o milho é o elemento mediador entre a cultura rural e urbana. Ao adquirir personalidade e identidade, o milho perde a generalização de produto a ser consumido para se transformar em personagem com o qual o receptor se identifica.Assim, ele pode tanto manter-se fiel a sua origem rural quanto identifica-se com o receptor urbano, que almeja aproximarse do rural. Nesse bloco imagético discursivo, os principais símbolos evidenciados são os balões coloridos, além de telefones celulares, transformados em um casal de matutos estilizado, bem como bandeirolas em cores variadas.

Outdoor da empresa de telecomunicções BCP (Fonte: arquivo do pesquisador , Junho/2001/2002)

O balão é um engenho humano que simbolicamente representa o elemento ar, dos quatro elementos mencionados por Bachelard (1990, 1991, 1993) em suas obras. Segundo essa perspectiva, o imaginário é composto por imagens oriundas de variados materiais da natureza, como: água, ar, fogo e terra. Os balões coloridos conduzem os nossos sonhos, pois é no ar que os nossos pensamentos voam, em uma dança com evoluções, sem formas definidas e sem fronteiras. Neles também são levados os pedidos e agradecimentos dos devotos, por graças alcançadas junto aos santos juninos para fazerem um bom casamento, para chover ou por obterem uma boa colheita, além de tantas outras solicitações, baseadas na necessidade física e material do seu cotidiano.

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As empresas de telecomunicação em foco agregam ao seu discurso publicitário tradicional, imediato, que é a venda de telefones celulares, os “balões coloridos” que, no evento do “Maior São João do Mundo” transitam no céu estrelado de Campina Grande e da região, levando mensagens para os seus públicos consumidores. Em especial, a de que no “O Melhor São João do mundo a gente só pode falar bem”: da festa, das conquistas, da alegria de estar junto e comemorar a manifestação popular mais significativa da região. Falar para os amigos que não vieram e não conhecem a festa, do “orgulho” de pertencer à região do país em que a tradição da festa junina é o referencial da cultura regional e local. Combinam-se, aqui, dois níveis de discurso: primeiro a apropriação imediata, de símbolos da cultura popular, combinados com os da cultura de massa: o balão que leva mensagens é o celular que também permite transmitir mensagens; na atualização do suporte balão para celular, há complementação; um elemento não elimina nem diminui o outro; e o segundo o celular é personalizado, na medida em que se transforma o casal de matutos, aproximando efetivamente o objeto, em princípio frio e distante, da viagem de um amigo, um casal simpático e sorridente. Assim, os sentimentos de pertencimento e valoração da cultura junto ao objetivo mercadológico, são sentidos nas condições de produção dos discursos não-verbais/verbais organizacionais O outdoor da BCP, onde o celular aparece simulando um casal de matutos estilizado, a apropriação mostra uma transformação em nível radical do sentido principal do aparelho de telecomunicação. Nele, são adicionados acessórios diferenciados, como chapéu de palha e uma trança, como marcam identificadora da vestimenta, usados nas danças típicas juninas. A BCP agrega no seu discurso a mensagem - Em cada lugar de Campina Grande você vê a alegria do São João. A festividade junina, em sua dimensão cultural, religiosa e turística, gera, em qualquer es-

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paço da região e da cidade, a alegria da celebração e da comemoração dos santos juninos com os familiares, amigos e visitantes. É a alegria de se ver as coisa da terra sendo preservadas e valorizadas, a reforçarem o orgulho de ser campinense, o lugar da festa do “Maior São João do Mundo”. Nesse discurso, a identidade cultural é uma marca significativa, que mobilizam sentidos e evidências financeiras para as empresas que participam desse projeto cultural, agregando, ao seu discurso os símbolos fundadores da festividade junina. A embalagem do cartão telefônico de 30 unidades da empresa de telecomunicações TELEMAR se apropria do símbolo da formação discursiva religiosa da festa do ciclo junino, a imagem de Santo Antônio. BID – Embalagens Juninas

A celebração dos santos juninos se constitui numa marca dessa formação discursiva religiosa. Nela, os santos juninos comemorados são Santo Antônio (dia 13), São João (dia 24) e São Pedro (dia 29). Na materialidade destacada para análise, Santo Antônio é celebrado e considerado como milagroso pelas graças, envolvendo, especialmente, o casamento; além de descoberta de objetos, obtenção de empregos e aprovações em exames escolares, além de muitos outros pedidos. A popularidade do santo, no Nordeste do país, é uma realidade. Nascido em Portugal, de nome Francisco de Bulhões, em 1195, foi morto na Itália, em 1231. Santo Antônio é padroeiro dos pobres, in-

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vocado para achar objetos perdidos e promover casamentos. Na comunidade religiosa, as moças casadeiras e as mães, para alcançarem bons casamentos rezam à trezena, orações que se iniciam no dia 1º e duram até o dia 13 de junho, em louvor ao santo. No mês de junho, 44 cidades da Paraíba realizam festas religiosas em louvor a Santo Antônio, e em três dessas, ele é o santo padroeiro. Segundo a crença popular, para conseguir marido, as devotas promovem advinhas e rituais, como: por a imagem de cabeça para baixo, amarrada pelas pernas, garantindo colocá-la na posição certa assim que seus pedidos sejam atendidos; colocar a imagem dentro de uma cacimba, num afogamento deliberado. Se o Santo não atender, “era uma vez”; retirar-se o esplendor, colocando sobre a tonsura uma moeda pregada com cera. No evento “O maior São João do Mundo”, uma das atrações é o “Casamento Coletivo” que ocorre, na maioria das vezes, à véspera da data de comemoração da festa do santo, dia 12 de Junho, também é dedicado ao “Dia dos Namorados”. O “Casamento Coletivo” é uma atração com as seguintes condições de produção: o caráter religioso em torno do santo é fruto das crenças populares, em especial, relacionadas ao casamento; a realização do casamento civil coletivo, que acontece em frente à cenográfica Catedral de Nossa Senhora da Conceição, no Parque do Povo, é o lugar da festa. É um evento promovido pela Prefeitura Municipal de Campina Grande, que presenteia aos nubentes com o bolo, as despesas de cartório, penteado, maquiagem e fotografias. Essa atração se constituiu numa ação de folkmarketing, que edifica o discurso com sentido institucional, cuja anunciadora é a gestora do evento, a Prefeitura Municipal de Campina Grande. Assim, mescla-se a perspectiva religiosa, a institucional laica e a popular, marcada pelas crenças religiosas populares. A atração cultural, dentro da formação discursiva religiosa, fragmenta-se em uma ação turística, quando a modalidade comunicativa do folkmarketing atua com objetivo institucional na divulgação da lo-

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calidade. O símbolo religioso em foco, Santo Antônio, também é apropriado com a função comunicativa mercadológica, gerando discursos no contexto do folkmarketing, pelas empresas privadas, como: shopping centers, lojas de confecções, motéis, floriculturas, restaurantes, lojas de jóias e perfumarias. No período junino, mais precisamente 12 de Junho, consagrado ao “Dia dos Namorados”, o comércio formal e informal, em Campina Grande, o locus de nosso estudo, promove o calor do “fogo da paixão”, da “conquista” e do “desejo”, motes usados nos discursos publicitários, evidenciando símbolos do saber popular - as advinhas - vinculadas ao “Santo Casamenteiro”, para a dinamização do processo comunicacional nas comunidades de consumo regional e local. No período da manifestação popular da Festa Junina, o banquete tem os sentidos de alegria; de renovação; de gratidão, pela colheita, em especial do milho, que foi plantado em março, no dia 19, dia de

Cartões telefônicos da empresa Brasil Telecom (imagens de comidas típicas) (Fonte: arquivo do pesquisador , Junho/2003)

São José, e colhido no mês de junho; do desfrute de uma mesa com abastança, compartilhada com os familiares, vizinhança e amigos. As comidas que integram a culinária da festa junina é uma miscelânea da temperança da cultura nordestina, onde encontramos traços culturais das raças negra, indígena e dos dominadores portugueses, que constituem a nossa história e uma das referências identitária da região. Nas imagens estampadas nos cartões telefônicos evidenciam- se a canjica, a pamonha, o milho cozido ou assado, o bolo pé-de-moleque, pratos que compõem o cardápio básico da mesa junina.Além

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dos já mencionados pratos típicos do ciclo junino, com milho se fazem bolos, sopas, pudins, papas, suflês, pães, broas, cuscuz, fubás e pipoca; junto com o açúcar, côco, macaxeira, ovos, castanhas, amendoim e especiarias como cravo e canela, fazem do banquete de São João uma festa de prazer à mesa. A arte de fazer essas comidas típicas saboreadas na época junina é um legado cultural transmitido pelas “pretas velhas”, pelas avós para as mães, as filhas, as netas e as amigas. Esse conhecimento culinário passou, através da história oral e escrita, via caderno de receitas, de geração em geração, constituindo a memória coletiva, dessa região. A memória, como fato social, abriga uma dimensão simbólica que é apropriada pelas empresas que participam do evento em foco, retendo, do passado, o que dele ainda é vivo ou capaz de viver, na consciência do grupo. As comidas típicas da festividade junina são objetos culturais, operadores da memória social nordestina. Propiciam o intercruzamento entre a memória coletiva e a história, produzindo efeitos simbólicos. Para Achard (1999), «a imagem atua como operadora da memória social no seio de nossa cultura e convida para poder dar sentido ao que ele tem sob os olhos; permite criar de uma certa maneira numa comunidade um acordo de olhares». As imagens visibilizadas nas embalagens dos cartões telefônicos em análise mobilizam os sentidos constitutivos da cultura nordestina como traços identitários, através de ícones que operam acordos com a capacidade dos olhares, da ressonância histórica e das lembranças. As imagens rabelaiseanas de banquete na festividade junina mobilizam os sentidos de celebração da vitória da colheita; da concepção e do nascimento de São João Batista, no dia 24 de junho; da alegria de estar junto dos familiares, vizinhos e amigos; da comemoração do encontro e dos desencontros com a alegria e a tristeza, respectivamente. Enquanto come e bebe para celebrar as festividades, o homem engole o mundo e não é engolido por ele, segundo a concepção rabelaiseana do mundo (Bakhtin, 1999).

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Observe-se que, enquanto a Brasil Telecom preferiu destacar um a um, alguns dos pratos preferidos, a Telemar optou pela fotografia de conjunto. Pode-se imaginar que, no primeiro caso, seja favorecida a idéia da característica individual, da preferencialidade qualitativa, enquanto que, na segunda, sugere-se o banquete coletivo, propriamente dito, ou seja, a ênfase quantitativa sobre a comida! De um ou de outro modo, o que chama a atenção é a vinculação do cartão telefônico - que está ligado ao sentido da audição - às imagens das comidas - ligadas ao sentido do paladar; em ambos os casos, a função ou o consumo são exacerbados pelos objetos e pelas imagens apresentadas ao consumidor. Nas celebrações da festividade junina, os espaços da festa agem como uma vitrine para essas empresas que, além da prestação de serviços, objetivam o lucro. Por isso, agregam, à sua formação discursiva, elementos da cultura popular que fazem parte da construção cotidiana nordestina, da memória social do nordestino e dos campinenses, em especial, no caso em estudo. Essa estratégia comunicativa diferenciada, com base nos saberes locais, solidifica a imagem e os níveis de relacionamento dessas organizações com seus públicos que, além de perseguirem um serviço de qualidade, também valorizam a cultura onde atuam. Concluímos que a festividade em estudo é um evento gerador de discursos em que as relações sociais entre as pessoas são mediadas em parte por imagens, pelo projeto do modo de produção da classe dominante e pelo modelo atual da vida predominante na sociedade local. Os discursos são constituídos por marcas da produção reinante e da mistura de símbolos culturais do passado e do presente, num local em que a festa é vendida e consumida como mercadoria, em contexto conflituoso e de hibridez cultural.

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A investigação e o ensino da Cultura tornaram-se, na última década, realidades cada vez mais presentes nos contextos universitários, o que se fica a dever, em primeiro lugar, à valorização social crescente que tem sido concedida a esta área, quer nos mais latos e clássicos domínios da formação humanística e artística, quer enquanto fator de conhecimento e compreensão das novas dinâmicas sociais e culturais da contemporaneidade. Acresce ainda, a esta valorização académica e social, a tomada de consciência generalizada do potencial económico que detém, tendo mesmo nascido recentemente uma área científica autodesignada por Economia da Cultura. Partindo deste reconhecimento, o presente trabalho procura fazer o levantamento dos principais desafios teóricos, práticos, metodológicos e académicos desta área do saber, assumindo como ponto de partida para a reflexão a tradição anglo-saxónica dos Estudos Culturais, questionando as suas limitações e dificuldades epistémicas, mas também assumindo as virtualidades que lhe são próprias e que se encontram ainda longe de estarem exauridas.

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