Cru Dejours Saberes de Prudência
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Saberes de Prudência nas Profissões da Construção CiviI Nova contribuição da Psicologia do Trabalho à análise da prevenção de acidentes na Construção Civil
DAMIEN CRU
Delegado de Segurança no Setor da Construção Civil e Obras Públicas Centro Hospitalar de Orsay, França
CHRISTOPHE DEJOURS Médico do Trabalho, Psiquiatra e Psicanalista — Centro Hospitalar d e Orsay, França
In: Revista Brasileira de Saúde Ocupacional 2 São Paulo. Vol. 15 nº 59, p. 30-34. Jul/Âgo/set. 1987 O comportamento paradoxal em termos de segurança do trabalho registrado entre
os
operários da construção civil, que leva esses trabalhadores a criarem situações de desafio
ao perigo, é aqui encarado como uma rejeição à prevenção vinda do exterior, proposta por especialistas como um conjunto de medidas técnicas dirigidas a operários supostamente ignorantes, inconscientes dos riscos e perigos inerentes à sua atividade. Analisando o fenômeno sob a ótica da Psicopatologia do Trabalho, os autores questionam as medidas de prevenção atualmente preconizadas e atribuem esse comportamento por parte dos trabalhadores à necessidade de suportar o medo, criando, com essa atitude desafiadora, “ideologias defensivas de profissão” e visando, através disso, inverter a relação dos trabalhadores com o perigo real do trabalho.
Introdução
O objetivo deste artigo é avançar a investigação sobre os acidentes de trabalho e a prevenção no setor da Construção Civil, segundo os caminhos sugeridos pelas pesquisas destes últimos anos em Psicopatologia do Trabalho (1) As publicações sobre a psicopatologia do medo no setor da Construção mostraram que, para suportar suportar esse medo, medo, os operário operárioss elaboram elaboram coletiv coletivamen amente te “ideolog “ideologias ias defensiv defensivas as de profissão” que visam a inverter a relação dos trabalhadores com o perigo real do trabalho. 1Savoir-faire, em francês. 2 Traduzido por Leda Leal Ferreira, de Les savoir-faire de prudence dans le métiers du batiment, publicado em Les Cahiers Médico-Sociaux , Genève, 1983, 27 année, nº 3, pp. 239-247.
2 Comportamentos paradoxais de rejeição a medidas de segurança puderam, assim, ser interpretados como verdadeiros desafios lançados ao perigo pela coletividade operária, a fim de afastar, por uma operação simbólica, a vivência de angústia que seria incompatível com o prosseguimento da tarefa. Se avançamos nessa hipótese, toda a concepção oficial da prevenção poderia ser questionada. A prevenção é atualmente proposta como um conjunto de medidas técnicas, concebidas por especialistas, a serem inculcadas, do exterior, a operários supostamente ignorantes, ou até inconscientes. Veremos que esta concepção está intimamente ligada à evolução moderna da organização do trabalho no setor da Construção, que pretende ser capaz de prever e controlar cada etapa do trabalho, até os detalhes dos gestos e modos operatórios de cada operário. A observação mostra que, na realidade, a improvisação ocupa sempre um papel importante e que a prevenção idealmente decidida é substituída, então, por uma segurança feita “de qualquer jeito”. A resistência operária às medidas de prevenção preconizadas atualmente poderia resultar da constatação implícita deste fracasso, por parte dos operários. A coletividade operária preferiria, então, renunciar à prevenção vinda do exterior e continuar apoiando-se na prevenção espontânea nascida dos saberes das profissões e das tradições operárias do setor da Construção. Assim, poderiam observar saberes de prudêncIa que se exercem em sistemas de auto-regulação do coletivo de trabalho e de auto-regulação dos ritmos e dos modos operatórios individuais. Trata-se, assim, de um confronto entre uma organização espontânea do trabalho, feita pelos operários e uma organização imposta do exterior pelos engenheiros, confronto no qual se desenvolve um conflito fundamental entre duas concepções da segurança. A prevenção hoje no setor da Construção
Nas concepções habituais do trabalho, desde o século XIX, nenhuma menção particular era feita à prevenção, com raras exceções. Apenas em alguns canteiros de obras da Construção Civil, medidas precisas tinham sido estudadas e colocadas em funcionamento; a construção da Torre Eiffel, sem nenhum acidente mortal, é até hoje citada pelo seu valor exemplar. Mas na maioria dos outros canteiros de obras trabalhava-se sem que, aparentemente, nenhuma atenção fosse dada especificarnente à segurança. Pouco a pouco, porém, “o espírito da segurança” foi sendo desenvolvido pela administração, fora das empresas. Discursos e publicaçôes multiplicaram-se, principalmente
3 por parte dos serviços do Ministério, da Organização Internacional do Trabalho’ de grupos 23
de empregadores e de sindcatos operámos. A criação, na época da Liberação (1945-47), de organzações especializadas, exteriores às empresas e aos estabelecimentos de ensino, como o Instituto Nacional de Segurança (INS) (3), o Organismo Profissional de Prevenção da Construção Civil e Obras Públicas (OPPBTP) 4 a integração da prevenção à Previdência Social ratificam esta concepção da prevenção. Leis são votadas. O INS e responsável pela pesquisa, o serviço de prevenção das Caixas Regionais de Seguro-Doença (CRAM) e a OPPBTP, além de sua missão de conselho e de controle, intervém nos canteiros de obras e nos locais de aprendizagem para ensinar aos trabalhadores as regras elementares de segurança (uso de equipamentos de proteção individual, andaimes etc). Estes modos de intervenção, conferências, publicações, filmes etc. dirigem-se à razão, ao bom-senso de cada um. O objetivo explícito é o de convencer cada indivíduo e aplicar estas regras para o seu próprio bem, por sua família, pela coletividade. A mola constantemente explorada passa pela culpabilização. O principio de base desta pedagogia é a repetição. Assim, cristalizou-se uma separação entre uma nova segurança vinda do exterior e o trabalho. As formulações modernas sobre a prevenção surgidas nos últimos 15 anos continuam acentuando esta dicotomia. Argumentando sobre os parcos resultados dos rnétodos precedentes e a favor das transformações tecnológicas (pré-fabricação, mecanização), o ideal do “prevencionista” se anuncia corno a vontade de reduzir o máximo possível o ‘fator humano”, por uma organização do trabalho mais estrita, E o que se chamaria “prevenção integrada”. O modelo de referência seria aquele da grande indústria mecânica. A prevenção consistiria em introduzir, a .partir do estudo dos modos operatórios e da escolha dos materiais, os procedimentos de segurança destinados aos trabalhadores. Em função da obra a se construir, do material e da experiência anterior da empresa, o diretor dos trabalhos (ou o escritório de engenharia de produção) seleciona, a partir de uma série de procedimentos e de materiais de segurança propostos e preparados por organismos especializados, o que lhe parece ser mais conveniente. Em seguida, o diretor dos trabalhos redige os modos de emprego, às vezes até um Plano de Higiene e Segurança (PHS), que as chefias dos canteiros de obras se esforçarão por respeitar (5, 6). Para assegurar o cumprimento das regras contidas nos PHS, são organizadas
4 campanhas de informação e de propaganda, A lei de 6 de dezembro de 1976 (7) e seus decretos de aplicação tornam obrigatórias, entre outras coisas, a redação de um PHS para os canteiros de obras de mais de 12 milhões de francos franceses e a formação em segurança (de todo trabalhador recém-chegado, à cada mudança de função etc). Ainda não foi feito um balanço detalhado dos efeitos práticos desta lei. Podemos assinalar, porém, que: 1) os Comités Particulares lnterempresas de Higiene e Segurança (CPIHS) não desempenham quase nunca o papel de observação e diálogo com todas as partes — contramestres, representantes das direções das empresas, representantes de trabalhadores representantes dos organismos especializados e médicos do trabalho: 2) a redação e a harmonização dos PHS de um mesmo canteiro de obras não são jamais realizadas antes do inicio dos trabalhos; 3) na maioria dos casos, são os representantes das CRAM ou da OPPBTP que dirigem a estrutura de coordenação interempresas (Colégio lnterempresas de Higiene e Segurança). Isto porque o protocolo previsto pela lei choca-se com múltiplos obstáculps, ao nível dos contramestres e dos organizadores do trabalho, em que dominam geralmente considerações de ordem econômica e comercial. As empresas que conseguem um mercado e esperam ampliá-lo estão mal colocadas para exigir que o mestre-de-obras respeite as obrigações de viabilidades do terreno (água potável, evacuação de águas usadas, rede de esgotos). Freqüentemente não só as diversas redes não são feitas, como a ordem de serviço para iniciar os trabalhos é dada pelo mestre-de-obras, mesmo quando faltam os projetos das empresas de grandes obras. Assim, em um canteiro de obras no sul de Paris, quatro guindastes são instalados de uma só vez para apenas trinta e cinco operários, o que é claramente desproporcional. O chefe dos trabalhos é, então, condenado a concentrar seus esforços sobre a rentabilização do material, em detrimento da organização do trabalho. Ele diz “80% do que faço é comercial, 20% é técnico”. Isto mostra como é difícil elaborar um PHS preciso... e útil. Em uma outra situação que se pode combinar com a precedente. o planejamento imperativo e a exigüidade dos prazos não permite nenhum jogo, nenhuma flexibilidade na organização do trabalho. Bastam dias de intempéries ou atraso no fornecimento do material (falha do fornecedor, greve do transportador) para que o modo operatório torne—se caduco: o que estava previsto não pode ser realizado e a improvisação comanda. É o caso, por exemplo,
5 do uma obra de instalação de uma caldeira para o aquecimento urbano que se inicia com seis meses de atraso por razões administrativas mas que deve, impreterivelmente, terminar no outono, para poder funcionar no inicio do inverno E, ainda, o que ocorre frequentemente na construção de supermercados, onde, meses antes da abertura, começa a campanha publicitária, anunciando o dia e a hora da inauguração. Todos estes pontos mostram a extrema dependencia da indústria da construção em relação a seus clientes: a cada vez, a obra é única, o terreno é escolhido pelo cliente (com todas as suas dificuldades de acesso e de vizinhança etc), os tempos são decididos pelo mestre-de-obras, o mercado é difícil de se obter. Compreende-se bem que nestas condições até as preparações mais minuciosas não escapam às ímprovisaçóes de última hora. Depois dos artigos elogiosos sobre as medidas de segurança promulgaoas para a restauração da Torre Eiffel em 1982 que apareceram nas revistas especializadas (8, 9) é com reserva que se pode esperar os relatórios das operações efetivamente realizadas. Neste universo da Construção, caracterizado por urna grande divisão entre as funções (mestre-de-obras, empresas de grandes estruturas, varios tipos de empreitadas), a segurança aparece freqüentemente desarticulada. A segurança, a tão duras penas integrada no projeto de Construção, separa-se dele, na prática, no momento da execução.
Além dos obstáculos técnicos e comerciais, as resistências operárias
Este protocolo esbarra igualmente nas resistências operárias, talvez mais difíceis de se compreender. Os trabalhadores respeitam mal as regras, relutam em usar os equipamentos de proteção individual. Para controlar este obstáculo, os “prevencionistas” pregam atualmente a redução das iniciativas operárias, através de uma organização do trabalho mais rígida (reforço do peso da hierarquia) e de uma maior precisão nas previsões. Esta redução permanece muito teórica. Mesmo quando não há incidentes importantes, a iniciativa de cada um permanece indispensável ao bom andamento dos canteiros de obras. Pedir mais aos trabalhadores em matéria de segurança, ao mesmo tempo em que se retira deles o domínio sobre seu trabalho, é bem contraditório. Porém os “prevencionistas” tentam ainda, e cada vez mais, convencer os trabalhadores a respeitar as regras e as ordens da hierarquia, utilizando-se da publicidade, de cartazes, de
campanhas etc. Fazem apelo à.”formação em segurança’.
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Sempre nesta mesma perspectiva, imputam-se os fracassos às modalidades destes diversos métodos: diferencia-se a propaganda, multiplica-se o uso de audiovisuais, criam-se serviços especializados, organizam-se estágios de “formação de formadores”. Nunca a segurança foi tão exterior e estranha ao trabalho concreto como nestas diversas modalidades de formação. Paradoxalmente — e nesta perspectiva não poderia ser de outro modo — a segurança é apenas acessória na formação de aprendizes e técnicos da Construção. Continua-se a operar por ondas, por repetição dos mesmos princípios, sem que os resultados sejam jamais conclusivos. As fontes das resistências operárias
Além das resistências operárias produzidas pela divisão segurança/trabalho na organização moderna do trabalho, as pesquisas em Psicopatologia do Trabalho sugerem que as resistências resultam não apenas de um aumento da carga de trabalho ocasionado pelos numerosos procedimentos de segurança, mas de hábitos, atitudes e comportamentos paradoxais que se articulam em sistemas coerentes. Longe de serem absurdos, estes sistemas visam controlar o medo engendrado peIos perigos do trabalho’ são as “ideologias defensivas de profissão”
10.
Além destas investigações, a Psicopatologia do Trabalho revela que a coletividade operária possui um conhecimento real do perigo e que a maioria dos comportamentos, mesmo quando parecem estranhos, tem uma finalidade e uma legitimidade solidamente fundadas, em relação com a realidade concreta do trabalho. O saber dos operários é maior do que freqüentemente se crê. Nesta perspectiva, formulamos a hipótese, radicalmente oposta aos discursos habituais sobre a prevenção, segundo a qual os trabalhadores conhecem implicitamente, e em profundidade, os perigos de seu trabalho e que provavelmente se defendem espontaneamente (isto é, de um modo não perceptível pela organização do trabalho) não somente contra o medo (papel das ideologias defensivas da profissão), mas também contra os próprios riscos; e defendem-se concretamente, com a ajuda de procedimentos específicos eficazes, no decorrer do trabalho. Estes procedimentos, estas estratégias, estes saberes de prudência são parte integrante do saber operário e são dele indissociáveis. Uma parte é consciente; uma outra, adquirida na arte da profissão, nas tradições, nos costumes e hábitos, é inconsciente. Uma pesquisa feita entre os talhadores de pedra é bastante demonstrativa do que
7 acabamos de dizer. Esta profissão, com tudo o que contém de saberes de prudência é atualmente vitima de um desmantelamento progressivo pela organização moderna do trabalho, como acontece com várias outras. E uma profissão que requer conhecimentos tanto em geometria (importância do “traço”) quanto em talho propriamente dito e em “bardagem” (ação de deslocar os blocos de pedra). Apresenta a particularidade de ter sido alcançada mais tardiamente que outras pelas reestruturações e as mudanças tecnológicas. Assim, possui a singularidade de oferecer, simultaneamente, facetas diferentes, em função dos tipos de organização do trabalho existentes nas diversas empresas. Algumas destas empresas tentararn levar bastante longe a organização, no sentido da divisão precisa das tarefas: no escritório fazem-se cálculos e desenhos, tomam-se notas; na oficina talham-se as pedras; no canteiro de obras, colocam-se as pedras. Mesmo neste caso, esta repartição é incoerente e mesmo que, por exemplo, os colocadores não desenhem mais, devem, apesar disto, saber interpretar os desenhos e esquemas. Ao contrário, em outras empresas, particularmente na restauração de monumentos históricos, conserva-se o hábito de deixar à equipe que trabalha no canteiro de obras a responsabilidade do conjunto das operações e a escolha do modo operatório. Este último é, então, o resultado de um consenso complexo onde intervêm a coesão da equipe e o saber adquirido e experimentado por uns e outros. O valor do chefe reside menos na sua posição hierárquica que na sua aptidão em deixar emergir soluções e proposições por parte do coletivo de trabalho. E preciso ter seguido de perto este tipo de canteiro de obras para compreender como a flexibilidade da repartição das tarefas, longe de ser sinônimo de descaso ou de anarquia é, ao contrário, geradora de trabalho bem feito, de correção rápida dos erros, de modificação dos modos operatórios mais penosos ou mais arriscados, tanto para os homens como para as pedras. Assim, tal colega, sem que isto seja explicitamente formulado, é “reconhecido” como o mais apto a dirigir as operações de posicionamemto das pedras, tanto pelo chefe como pelos outros. Um scgundo é melhor em montar os andaimes, outro em cortar etc. Todos podem participar de todas as tarefas, porem cada um ocupará um lugar particular na equipe. Espontaneamente, as preferências individuais e as competências específicas harnonizam-se. Trata-se de urna verdadeira auto-regulação do grupo. Esta repartição de tarefas não se faz sem choques e até conflitos; mas se poderia mostrar como um conflito declarado encontra em geral, uma solução favorável a todos ao contrário da oposição bloqueada que acontece nas obras onde a chefia controla muito e conhece pouco; a
8 vingança do colega que deixa o chefe se exasperar por uma dificuldade técnica sem dizer uma palavra, toma aqui todo seu sentido. Mas se deve reconhecer que é apenas urna pequena compensação, com um valor rnínimo em relação à importância do objetivo visado pela nova organização do trabalho. Assim, os gritos que se ouvem em um canteiro de obras, os xingamentos, as raivas, não são forçosamente sinal de ineficácia. Esta repartição tradicional de tarefas está em perigo pela evolução destes dez ou quinze últimos anos, com um confisco crescente da arte do traçado pelos técnicos de escritório e uma maior polivalência manual exigida no canteiro de obras, onde o talhador de pedra, além dos oficios tradicionais (polidor de pedra, carregador, serrador, talhador)* deve também ser pedreiro e marmorista. Neste caso, a polivalência faz-se em detrimento das profissões. A antiga repartição das tarefas que ainda sobrevive a estas mudanças permite uma melhor harmonização das pessoas no grupo (por exemplo, pai a serrar com um “ passe partout” — grande serra com duas alças — é preciso entender-se corri o colega de serviço); permite também a cada um uma boa repartição de seus esforços durante a jornada ou a semana. Tudo depende do trabalho em curso, da “boa forma’ de cada pessoa. Um interrompe um trabalho de precisão no meio da tarde para retomá-lo apenas na manhã seguinte; ele aproveitará este tempo para preparar urna outra tarefa, para arrumar seu local de trabalho ou para dar uma ajuda a um colega, interrogá-lo; assim, talvez, descubra um erro ou um perigo, para si, para os outros. Aqui, o tempo aparentemente perdido não é estéril para a segurança. Outras vezes, porque o trabalho “não anda”, porque já se esfolou várias vezes no mesmo lugar, porque os colegas estão desagradáveis este dia, porque não se ousou pedir qualquer coisa ao patrão, em resumo, porque alguma coisa não vai bem e porque se sente irritado, ao invés de quebrar a pedra na qual se trabalha há vários dias e ao invés de, assim, arriscar um ferimento, descem-se os andaimes e deixa-se o canteiro de obras; vai-se procurar uma outra ferramenta, afiar aquela que se estava usando, ou arrumar a caixa de ferramentas, enfim, fazer outra coisa. Vê-se que a “vadiagem” está longe de ser um tempo vazio, improdutivo ou inútil. Ela contribui de fato para a auto-regulação da carga de trabalho e a prevenção de acidentes ou ferimentos Deve-se acrescentar que, mesmo fora destas situações de irritabilidade, a afiação das ferramentas representa freqüentemente um tempo de recuperação. O colega toma consciência de que se força muito: afiar seu instrumento será um modo espontâneo de economizar o esforço, mas será também a ocasião de descarregar imediatamente o excesso de tensão interior.
9 Todos os operários não agem do mesmo modo. Os modos de auto-regulação são variados e personalizados mas não podemos detalha-tos aqui. Pode-se pensar, legitimamente, que estes procedimentos espontâneos tenham um poder protetor sobre a saúde e a segurança. Ao contrário, outros opemários (os jovens?) têm constantemente os olhos fixos no instrumento em ação. Observam a ferramenta e não sabem observar-se a si mesmos. Sua fadiga resulta freqüentemente de uma má posição em relação ao trabalho: muito baixa para polir uma cornija, por exemplo, ou demasiado alta. Eles não pensam em colocar os andaimes numa altura adequada, não sabem que é justificável e que ninguém os criticará por isto; pelo contrário, mostrarão que dominam sua profissão. Assim, forçam-se muito e somente quando se vêem esgotados deixam o posto de trabalho, reclamando dos olhares dos outros (e do chefe), querendo mostrar uma segurança... que não têm. Assim se caracterizam entre os jovens atitudes que se parecem com aquelas que se induzem hoje entre todos, com a progressão da moderna organização do trabalho. Lombalgias, dores e acidentes testemunham aqui a importância, para a saúde e a segurança, dos saberes de prudência, incorporados na experiência profissional e nas profissões. O ritmo e a harmonia dos gostos são dificeis de se ensinar. Os conselhos são sempre parciais e difíceis de formular. Nada poderia substituir o que cada um aprende, por exemplo, daqueles com quem gosta de trabalhar. A complexidade deste aprendizado do ritmo e da harmonia dos gestos, indispensáveis a um trabalho de qualidade. implica ao mesmo tempo a segurança dos trabalhadores. Não podemos desenvolver aqui os outros aspectos destas ligações entre segurança e profissão. A titulo de indicação, mencionamos apenas que estes saberes de prudência se articulam muito precisamente çom os outros saberes e com a linguagem da profissão, que deles são indissociáveis. O estudo de seu modo de transmissão, na prática, junto da coletividade operária, leva-nos a insistir sobre um ponto: a desqualificação, o desaparecimento das profissões, a vontade de não se deixar formarem novas profissões alteram tanto os conhecimentos e as regras da arte, como os procedimentos espontâneos contra os acidentes.
Conclusão
Esta análise dos saberes de prudência sugere uma critica ao conteúdo e aos modos de aprendizado defendidos atualmente em matéria de prevenção no setor da Construção. Parece
10 que, em numerosos casos, eles não se inserem na continuidade, nem na lógica da prudência operária espontânea. Podem mesmo estar em contradição aguda com a prudência operária da profissão. Assim se compreenderá melhor por que as campanhas de prevenção são muitas vezes tão mal recebidas: não se trata, por parte dos operários, nem de má vontade, nem de inconsciência, mas de uma conduta que, por dificil que seja a se explicitar, tem uma racionalidade e uma legitimidade fundadas na eficácia de uma experiência que a coletividade operária forjou e transmitiu, de geração a geração, no curso da história
Referências Bibliográficas
1 — DEJOURS, Christophe. A loucura do trabalho: estudo de psicologia do trabalho. São Paulo. Oboré, 1987. 163 p. 2 — A Organização internacional do Trabalho (011) foi criada pelo Tratado de Versailles (1919-1920) 3 — O Instituto Nacional de Segurança (lNS) é atualmente o Instituto de Pesquisa e Segurança. 4 — O Organismo Profissional de Prevenção na Construção Civil e Obras Publicas foi criado pela Portaria Ministerial de 9 de agosto de 1947. 5 — ORGANISME PROFESSIONNEL DE PREVENTI0N DU BATIMENT ET DES TRAVAUX PUBLICS Planos de higiene e segurança. Paris, 19/9 (OPPE3IP Eds., 207.A 79). 6 — ORAN1SME PROF[SSIONNEI DE PRIIVENJION O 1 I3ATIMENT EI DES IRA VAUX PUBLlCS Collteges et comitês d’hygiêrte et de securité dans les chantlers BTP. Paris, 1979 (OPPBjp Ldmtmons, 204.A 79) 7 — A lei de 6 de dezembro de 1976 delírio, nas operações da construção, a responsabilidade dos chefes de obra e empresários em matéria do higiene e segurança. 8 — LA TOUR a Neuf Sauvagarde des Chantiers, Paris, (6):4-6 1981 9 — CURE de jouvence pour tine vicifle dame. Trarail & Securité, Paris, (12):576-86, Dcc. 1982. 10 — DEJOURS, C. Op. cit. nota (1)
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