Contos e Lendas - Leda Saraiva Soares, 1995

January 21, 2019 | Author: Ed Oliveira | Category: Fishery, Rosary, Dogs, Fires, Prayer
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Coletânea de contos e lendas da região do Litoral Norte do Rio Grande do Sul, reunidas pela pesquisadora Leda Saraiva So...

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Leda Saraiva Soares

CONTOS E LENDAS

Pimeira Edição - 1995 2

Leda Saraiva Soares

CONTOS E LENDAS

Pimeira Edição - 1995 2

Copyright 1995 by Leda Saraiva Soares Capa: Fotografia da primeira Capela de Tramandaí "Nossa Senhora dos Navegantes", construida em 1908 Av. da Igreja com a Av. Emanicipação. Foi demolida em 1954. Cortesia do Estúdio Photográphico "Paragem das Conchas", Rua Sahyde Abrahão, 238  – Tramanciaí.

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APRESENTAÇÃO Há alguns anos passei a me preocupar com o registro de nossa história. As gerações vão passando e quase nada de sua cultura fica registrada. Iniciei uma pesquisa entrevistando os antigos moradores de Tramandaí e de Imbé. Este trabalho me fascinou, pois, descobri muitas coisas interessantes que me fizeram admirar mais nossa terra e nossa gente. Passei a pesquisar sobre o litoral. Depois ,encantaram-me as estórias que o povo contava e que corriam de boca-em-boca: contos, causos, lendas... fatos pitorescos pi torescos acontecidos... Com base no que ouvi e vivi nesta região elaborei alguns contos e lendas tentando colocar a paisagem da época e dar uma visão de como viviam, o que pensavam e como era a vida da gente corajosa e pioneira que, enfrentando toda sorte de dificuldade, se estabeleceram no povoado de Tramandaí, antes mesmo da virada vir ada do século. De certa forma, procurei empregar certos vocábulos e expressões das pessoas que me contaram as estórias, para torna-las tor na-las mais puras, mais autênticas, mais nossas. Alguns causos e lendas, transcritos neste trabalho encontram-se publicados nos livros TRAMANDAÍ TERRA E GENTE de minha autoria com Sonia Purper e no livro IMBÉ HISTÓRICO TURÍSTICO de minha autoria. Achei por bem reuni-los nesta obra, juntando-os a tantos outros, até então inéditos. CONTOS E LENDAS DA REGIÃO resgata um pouco do antigamente, podendo ser utilizado nas Escolas para que os estudantes possam conhecer os usos e costumes de gerações que fizeram a história de Tramandaí. a autora

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AGRADECIMENTO

A todos que colaboraram, concedendo-me entrevistas, contando-me "causos" e lendas com os quais elaborei esta pequena obra: Sr. Edmundo Silveira de Souza. Srta. Eloá de Oliveira Santos. Sr. Jardelino Peroni. Sr. José Batista de Oliveira. Prof. Helena Mafalda Dossena. Sra. Virgulina L.Muri. Sra. Maria Rosa do Amaral Saraiva. Dr.Guido Muri. Agradeço a todos que direta ou indiretamente contribuíram para a elaboração deste trabalho. "In Memóriam": Sr.Fernando Silveira do Amaral. Sra.Altiva de Souza Heto (D. Filuta). Sr. Palmarito de Almeida Saraiva.

Pensamento: O homem só pode progredir intelectual e moralmente, em sua vivência específica, se ajudado pela experiência coletiva que as gerações precedentes acumularam e preservaram. (Jacques Maritain)

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TRINTA ANOS DE EMANCIPAÇÃO POLÍTICA DE TRAMANDAÍ Vinte e quatro de setembro - 1965 - 1995. Tramandaí, parabéns! Trinta anos de conquista gloriosa, impõe - te como a mais popular praia do Sul do Brasil: A CAPITAL DAS PRAIAS! Há um século como eras diferente!... Teus ranchinhos de palha... teus poucos hotéis de madeira cobertos de palha, depois de zinco, mais tarde de telhas de barro ...hoje tua moderna arquitetura transformou tua fisionomia. A vida era difícil. Como sofriam os pescadores e os comerciantes para atravessarem o longo inverno!... E a aventura dos veranistas pelos idos de 1900? Carretas cortavam caminhos, escolhendo terreno aqui e acolá, com pernoites pela estrada, trazendo capoeiras de galinhas mantas de charque, bolachas, conservas e de tudo o que pudessem necessitar nos três meses de veraneio que passariam na praia. Tudo isso, todo esse sacrifício, transformava-se em façanha quase heroica, única e exclusivamente para alcançar o mar e desfrutar de sua magia com poderes de cura. A temporada na praia era sonhada durante o ano inteiro porque representava verdadeiro tratamento de saúde. Comboios de canetas, lentamente arrastavam-se rumo ao litoral. Havia carretas de carga para transportar toda a tralha necessária e as que transportavam pessoas. As senhoras e as crianças acomodavam-se sobre cobertas espalhadas pela carreta. Os homens, os  jovens e os guias seguiam à frente, a cavalo escolhendo o melhor caminho. 1920 pelo automóvel e ônibus. As estradas, entretanto eram as mesmas e esses veículos sofriam com a precariedade dos caminhos, quebrando ponta de eixo, furando pneu, perdendo parafusos, atolando. Frequentemente eram tracionados por juntas de bois, onde a areia e a lama permitiam o trânsito normal. Depois de alguns dias de sacrifício, peripécias, imprevistos e situações difíceis (que depois de vencidas eram motivo para risos), chegavam a Tramandaí. Era como encontrar o paraíso. Lugar tão diferente da cidade, pequeno núcleo de pescadores aninhado entre o rio e as dunas de areia. O vento corria solto na várzea que atravessava o centro deste balneário. Tramandaí de dois tempos: de gente humilde e de gente ilustre. Da vida agitada do verão e da vida difícil e nostálgica do inverno que só era animada pelo bulício da pesca no tempo da tainha, em maio; no tempo da miraguaia em outubro e, em especial, no tempo do bagre. Agitava-se Tramandaí, também, por ocasião das festas religiosas, animadas pela Banda de Música local. Eram dez dias de novenas seguidas de bailes e o décimo baile era dedicado ao festeiro novo. Os naufrágios de navios causavam muita agitação à população, recolhendo a carga que a violência das águas expulsava dos porões que se rompiam. Também acontecimentos políticos, em Conceição do Arroio (Osório), movimentavam o sétimo distrito: Tramandaí. Na temporada de verão, o pequeno balneário transformava-se: o pescador deixava a pesca e se fazia garçom, pedreiro, carpinteiro eletricista e "faz-tudo”. 6

E o vento? O Nordeste, mesmo no verão, forçava as mulheres a usar lenços, chapéus e redes na cabeça para proteger os cabelos. A umidade dos terrenos encharcados e a areia solta impunha o uso de tamancos. Chalés de madeira construídos pelos primeiros veranistas descendentes de alemães erguem-se com varandas envidraçadas, armários embutidos e enfeitados com molduras cheias de recortes. Os beirados dos chalés eram todos rendilhados de lambrequins estilo arquitetônico que marcou época. A cada ano Tramandaí se desenvolvia mais e mais. Edifícios se erguiam. Casas modernas eram construídas. Com a autoestrada FREE WAY Tramandaí transforma-se em bairro de Porto Alegre. Alteram-se os hábitos. O veranista, que só retornava a Tramandaí nas temporadas de verão, agora, também vem passar os fins de semana durante o ano. Muitas pessoas que se aposentaram transferiram sua residência para esta praia, onde se leva uma vida mais tranquila e se respira um ar ainda puro. O comércio conserva-se aberto durante o ano todo, em sua maioria. Tramandaí tens muita história para contar a todos que te visitam!... Tramandaí atinge a sua maturidade aos trinta anos de emancipação política. Desperta para a busca de suas raízes. Valoriza o seu passado e busca uma identidade para projetar um futuro seguro genuíno, voltado para o turismo, descobrindo seus encantos que são tantos... Tramandaí, ainda quero ver-te com a tua história em cada canto, em monumentos, nas ruas, nas praças, nos hotéis em cada casa de comércio. Quando teus habitantes souberem contar a tua história àqueles que nos visitam, para seus filhos e para seus netos, é porque te querem bem, te admiram, orgulham-se de ti. Nesse tempo, então, serás uma cidade turística!

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FOGO SIMBÓLICO? BOITATÁ? O TIRO DE GUERRA, criado em 14 de maio de 1928, em Conceição do Arroio (Osório), veio favorecer o jovem desta região, que poderia prestar serviço à Pátria sem se afastar de seu meio social. Tramandaí, como todo o litoral gaúcho, por muito tempo sofreu um isolamento cultural. De março a dezembro não havia presença de veranistas, cujas casas se fechavam em março, para se reabrirem somente na temporada seguinte. A população residente, durante a "baixa estação", ocupava-se da pesca e do comércio inexpressivo. Sobrevivia do pouco que o trabalho de dois meses lhe rendera. Pouco a fazer havia no inverno, sobrando muito tempo para causos, contos e lendas... Vestir-se de fantasma e sair à noite para assustar as pessoas era um divertimento muito apreciado Estórias de assombração, aparição passavam de boca em boca no pequeno povoado. A cabeça das crianças e dos adultos guardavam estórias horripilantes! ... Por volta de 1942, um jovem de Tramandaí, fora servir no TIRO DE GUERRA, em Conceição do Arroio (Osório). Aproximava o mês de setembro. No dia primeiro, o Fogo Simbólico costumava sair da cidade onde nascera algum herói da pátria, ou de um lugar onde ocorrera algum fato histórico expressivo. Militares ou atletas acendiam urna tocha nessa fonte ardente e iam levando esse fogo a todas as partes do território brasileiro. Cada cidade destacava grupos de militares ou atletas para iro, ao encontro do Fogo Simbólico para acenderem a tocha para ser levada a sua cidade, onde grande parte da população, numa demonstração de Civismo, aguardava a chegada do grupo com espocar de muitos fogos artifício. A turma do TIRO DE GUERRA de Conceição do Arroio (Osório) foi destacada para buscar a tocha ardente perto de Santo Antônio da Patrulha. O jovem de Tramandaí, a quem vamos chamar de Mundinho, nunca ouvira falar em FOGO SIMBÓLICO, mas não perguntou nada a ninguém. Ficou pensando com "seus botões": “Fogo Simbólico”?... Será que tem a ver com Boitatá?... Meu Deus! ““... Não podia fugir, nem demonstrar medo para não servir de chacota aos companheiros... À noite, um caminhão de carga ia distribuindo soldados, um - a - um, ao logo da estrada RS 30, que liga Osório a Santo Antônio da Patrulha. Mundinho ficou nas imediações da lagoa dos Barros. A noite estava muito escura. Há pouco tempo, nesse local, ocorrera um crime que abalou o Estado do Rio Grande do Sul: Ao sair de um baile o noivo matou a noiva, Maria Luiza, moça da alta sociedade de Porto Alegre, jogando - a na lagoa dos Barros com uma pedra amarrada ao pescoço. Mundinho, sozinho à beira da estrada, entre o matagal que se alteava, próximo à lagoa, só pensava no fantasma da moça que, a qualquer momento, poderia emergir das negras águas da misteriosa lagoa... pensava também em tantas outras aparições que costumavam se manifestar naquelas águas... De repente, uma coruja pia de um jeito agourento e, num farfalhar de asas, cruza rente à cabeça de Mundinho que quase desmaia. Olhos arregalados, cabelos em pé, um arrepio lhe faz estremecer todo o corpo. Refeito do susto, olha ao longe e, para sua aflição, vê um fogo em movimento: ora sobe, ora desce, ora vai para um lado, ora vai para outro... Seu coração dispara. É demais!... Descontrolado, solta um grito de horror que ecoa no meio da noite - É o Boitatáááá!... ááááá!... áááá ááá!... Imóvel, branco como cera, não arrisca sair do lugar. O fogo cada vez se aproxima mais. Mundinho vai se refazendo à medida que distingue, na escuridão, a presença de seus companheiros. Entre eles, um traz uma tocha de fogo com a mão erguida acima da cabeça. O 8

soldado que trazia o FOGO SIMBÓLICO entregou - o para Mundinho, dizendo: - É a tua vez! Corre e entrega para o próximo que está na estrada, mais adiante! ... Naquele dia simbólico!... Mundinho entendeu o que era FOGO SIMBÓLICO!...

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A APARIÇÃO Palmarito era caixeiro - viajante. Viajava pelo Rio Grande do Sul, no lombo de um cavalo. Por volta de 1936 chegou a Osório e hospedou-se no Hotel Amaral. Em uma de suas viagens, deixara em Tramandaí uma namorada, Srta. Maria Rosa do Amaral. Já era noite, mas a saudade era muito grande e não queria esperar para viajar no dia seguinte. Inteirou-se das novidades e ficou sabendo que haveria um grande baile naquela noite em Tramandaí. No hotel, encontrou um amigo, Sr. Teotônio Freitas que concordou em fazer - lhe companhia naquela viagem noturna. Montaram em seus cavalos e tomaram a estrada. Conversa vai, conversa vem, Palmarito pergunta ao companheiro: - Teotônio vou fazer uma pergunta prá ti. Tu acreditas em aparição ? Estou te perguntando por que ouvi dizer que no Passo da Mãe Rosa * costuma aparecer fantasmas. Eu, prá te ser bem sincero, não acredito nessas coisas... -Eu também não, Palmarito - respondeu Teotônio com sua voz bem arrastada, demorando-se nas palavras. Palmarito, muito valentão que era acostumado em suas viagens, a enfrentar todo tipo de perigo, em tom de desafio falou: - Se existe Deus e alma do outro mundo, hoje eu quero ter uma prova! Continuaram a trote largo e nem mais se lembravam do que haviam falado. A noite não poderia ser mais escura! O silêncio era profundo, pois o assunto já se esgotara e a monotonia da viagem era propícia a um recolhimento, ouvindo-se apenas o ruído dos insetos que se misturavam com o som surdo das patas dos cavalos na estrada de areia. Palmarito quebra a quietude que os envolve e diz para o amigo -Teotônio, estás vendo alguma coisa na frente do meu cavalo? -Estou vendo um vulto todo de branco!... -respondeu Teotônio numa fala arrastada. -É o que pedi prá ver!... Palmarito, sem perder a coragem, puxou de seu revólver trinta e oito e gritou para o amigo: - Vamos cercar a "coisa”!... Cerca por lá que eu cerco por cá!... Apertaram o cerco e o vulto sumiu do mesmo modo como apareceu. Estavam justamente no Passo da Mãe Rosa... Calados, entregues a seus pensamentos, tentando entender o que acabara de acontecer, prosseguiram a viagem a trote mais acelerado por causa da excitação que a APARIÇÃO lhes causara. Naquele momento só se ouvia a respiração ofegante dos cavalos, o ruído de algum inseto ou o pio de alguma coruja nos matos que se alteavam próximos à estrada... * Mãe Rosa - (arroio da -) Arroio que nasce no campo e deságua na lagoa do Pesqueiro. Este arroio atravessa a estrada que conduz de Osório a Tramandaí.

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O BICHO MEDONHO No tempo da tainha gorda, mês de maio, a turma de pescadores, convidados por meu pai, Palmarito de Almeida Saraiva homem honrado e admirado pela gente de Tramandaí, foram de caminhão de carga lá para os lados da praia da Solidão, fazer uma pescaria. Os integrantes do grupo diziam - se cada qual mais valente, Nem de alma do outro mundo tinham medo... Alfredo Firmino, um tipo muito especial que se achegara a nossa casa de comércio e ali foi ficando. Era muito amigo de meu pai Sentia - se como gente de casa. Muito brincalhão, gracioso, daqueles que, de repente, arrancava o facão da cintura e num pular de quem vai atacar, riscava o chão rente aos pés de um grupo de pescadores que estava a conversar, demonstrando valentia e ligeireza. Quando percebia que os homens, tornados de surpresa, preparavam-se para se defenderem, batia com o pé direito no chão, agachava-se e dava uma gargalhada das suas, inconfundível! Sem ele a pescaria não tinha graça. Bem. Essa turma de pescadores, já na praia, tomavam "umas que outras" com o pretexto de se aquecerem e, além de aquecidos, ficavam valentes barbaridade... No céu, nenhuma estrela. A lua não saíra. Escuridão total. O velho Alfredo Firmino, sempre querendo aprontar das suas, afastou-se por alguns instantes, indo para trás dos comoros. Esperou o momento certo de aparecer para os mais valentes. Quando Arthur, com o Xiru e mais outro valentão estavam distraídos, o velho, na escuridão, com urna capa sobre a cabeça surgiu de trás dos comoros, meio agachado e aos pulos, largando urros e guinchos medonhos para o lado dos nossos heróis que só não encheram as botas porque estavam descalços... Estes, tornados de tanto susto, saíram gritando por socorro: - Palmarito. Palmarito!... Tem um bicho medonho atrás do caminhão!... -O que é que hai, indiada!... Deixem comigo que eu crivo de bala esse monstro filho da manha, com meu trinta e oito!... Nessas alturas, o velho Alfredo Firminio já estava a bater com o pé direito no chão, curvado, segurando a barriga, de tanto que ria do susto que pregara nos companheiros...

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MINGUTA A personagem deste episódio chama-se Domingos Leandro dos Santos mais conhecido, nos anos vinte por Minguta. Parente do Sr. Alfredo Firmino, pescador já mencionado em outro "causo". Era órfão e morava com sua vão Carlota, mãe da Bela Florisbela'. Foi ele o primeiro, empregado de meu avô na "CASA AMARAL ". Era muito esperto. Trazia sempre o troco certo. Ninguém o lograva. Fazia todo tipo de serviço era uma espécie de mandalete. Tinha uns dezesseis anos . Seu passatempo preferido era assustar as pessoas. Vestia-se de fantasma, com lençol envolto no corpo e saía pelos becos, à noite, à procura de medrosos... Certa feita, conta - nos D. Filuta, o Minguta resolveu assustar a D. Joaquina, irmã do Ari, filho do Chico Rita, antigos moradores de Tramandaí. Morava essa senhora numa casa simples, na esquina da Av. Fernandes Bastos (antiga Rua Grande), com a Av. Fernando Amaral (antiga Vicente Barcelos). Próximo à casa, a uma distância de mais ou menos um metro, havia uma peça que servia de cozinha. Aliás, antigamente as cozinhas costumeiramente, eram construídas separadas do corpo da casa O piso desta cozinha era de "chão batido ”. M linhas que sustentavam a peça ficavam afastadas do solo uns dez centímetros. D. Joaquina estava ali, na lida da cozinha, sozinha, o sol já havia posto. Era a hora do crepúsculo. Aquela hora da silhueta em que a terra parece revestir-se de mistério... Minguta, do lado de fora, começa a remexer rente à linha, roncando fungando e gemendo como um bicho... A senhora Joaquina, cuja cabeça se povoava dos mais horríveis contos de fantasmas e assombrações, quase teve um ataque de nervos. Saiu espavorida, aos gritos, pedindo socorro, dizendo haver ali um bicho horroroso, querendo invadir a cozinha. Minguta feliz e, ao mesmo tempo, assustado com o rebuliço que causara, quase matando D. Joaquina de susto, "cravou o pé" na estrada e foi se colocar atrás do balcão da venda como se nada tivesse feito. Enquanto isso, os parentes, intrigados, faziam conjeturas chegando a conclusões desse tipo: - Só pode ser o diabo do Minguta!...

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O BANHO DE SODA Minguta era moreno, pele escura, sem ser negro. Era, digamos assim, encardido por natureza. Desejava ardentemente ter a pele clara. Um dia, chegou ao emprego todo vermelho, parecendo queimadura. O pessoal da casa perguntou - lhe: - O que isso, rapaz? -Ah! ... Isso foi um banho de soda cáustica que eu tomei para ver se clareava a minha pele... A GEMADA Minguta adorava comer gemada. Porém achava muito pequeno um ovo de galinha. Ficava sempre desejoso de comer mais um pouco. O seu sonho era fazer gemada com um ovo de avestruz! ... Aí sim, poderia fartar-se. Assim pensou, assim o fez. Tão logo botou os olhos num ovo de avestruz que chegara ao armazém, começou a pensar "É hoje!... É hoje!...”. Fez a gemada a capricho. Não ofereceu para ninguém. Começou a comer às escondidas, mas não conseguiu comer tudo, Pois começou a ficar enfarado... A noite ainda não chegara e o Minguta já estava a vomitar até não poder mais... Por muito tempo, não podia nem ouvir falar em gemada quanto mais sentir o cheiro... Ou ver um ovo de avestruz!... Obs.: Dizem que um ovo de avestruz equivale a uma dúzia de ovos de galinha. Nos campos da região Litoral Norte, havia grande quantidade de avestruz. Os ovos eram utilizados para fazer pão de ló, merengue esquecidos, etc. Para extrair o conteúdo do ovo, sem estragar a casca perfuraram-se as extremidades. As pessoas habilidosas pintavam paisagens na casca do ovo. Transformava-se em objeto de adorno. O PAPAI NOEL Outro dia, Minguta foi ao Hotel Corrêa comprar um balaio de pão para o armazém. Diga-se que esse hotel tinha padaria de primeira qualidade. Era tempo de Natal. O rapazote nunca havia visto Papai Noel, muito menos ouvido falar... O padeiro vestiu-se de Papai Noel, mas daqueles brabos, com relho na mão dando relhaço a torto e a direito, fazendo respingar moleque para todos os lados... Era um "salve-se quem puder!" Minguta, que gostava de assustar os outros, dessa vez se deu mal. Trazia o balaio cheio de pão, quando botou os olhos naquele bicho vermelho, barbudo e enlouquecido... Não teve dúvida: largou o balaio no meio da rua e... “Pernas para que te quero”?... Voou para a casa de seu patrão sem balaio nem pão!... 13

ACREDITE SE QUISER... Contava Fernando Silveira do Amaral, comerciante abastado e proprietário do primeiro sobrado de alvenaria de Tramandaí que, numa de suas façanhas, meteu-se a caçar nos banhados da região, no tempo das vacas gordas, no tempo que se amarrava cachorro com linguiça... Sua arma era um cordão com um pedaço de toucinho amarrado na ponta. O dia não estava lá muito bonito, nem muito feio nem chuvoso, nem ensolarado. Era daqueles dias em que não apetece fazer nada. Um dia em que não se arranja parceiro nem para caçada... Foi ele caçar sozinho, sem testemunho para seu feito. Chegou ao local, olhou para todos os lados, sondou daqui sondou dali... Aproximava - se a hora do cruzo dos marrecões. Lançou a linha com toda a sua força pelos ares, bem no local onde mirara - pois o homem era bom de mira... Ficou na espreita por detrás de uma moita. Começava a se inquietar, quando a linha em suas mãos era puxada de forma ritmada. Começou a contar os puxões: parou no cinquenta. Estava intrigado. Que diabo seria aquilo? Sua linha agora era puxada com grande força e começava a subir feito pandorga. Agarrou-se a um pé de guanxuma e, com a força de um touro bravo, conseguiu, de uma feita, ver do que se tratava. Aos seus olhos, parecendo até ser mentira, coisa de não se acreditar, ondulava no céu uma enfiada de marrecões, dominou - a. E como quem recolhe pandorga veio trazendo devagarito, para junto de si aquela bicharada vivinha, vivinha!... A isca, lançada na ponta da linha, era engolida por um marrecão. O toucinho produzia uma diarreia de imediato no bicho que a excretava, tal qual a engolira. A mesma isca era engolida pelo segundo marrecão. O mesmo acontecendo com o terceiro, até chegar ao quinquagésimo... Essa enfiada foi levada para casa e por muito tempo comeu marrecão!...

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FLORISBELA Florisbela mais conhecida por Bela era filha de D. Carlota, avó do Minguta. Nascida, mais ou menos em 1870. Bela era muito pobre. Vivia de esmolas e morava numa casinha bem pequena, com um quartinho – que mal cabia a cama – e uma cozinha. Era magra e caracterizava-se por um sinal muito grande, negro e áspero na face. Usava um lenço amarrado sob o queixo. Andava muito suja, sempre com uma cesta de palha quadrada com duas alças. Era cartomante para o "gasto". Nas sortes, não lia o que fosse negativo, dizendo: "Nas coisas ruins a gente mete os pés..." E passava a ler o que fosse bom. Dizia ter parentes em São Luiz Gonzaga. Sempre falava ter sido filha de gente abastada; criouse "chutando patacões de prata". Usava tamanco, e chamava a atenção o brilho na parte interna de seu calçado. Elogiava constantemente seus pés, dizendo: “Meus pezinhos são muito mimosos!” Quando era bem velhinha, sua voz estava rouca e sua pele adquirira uma tonalidade escura, como a das pessoas que vivem próximas ao mar. Ela mostrava os braços e apontava para a garganta, dizendo: "Eu fiquei assim, porque comi rapadura, bebi água e fui pro sóli..." (sol). Recebia ajuda de todos. Quando não tinha o que comer chegava à CASA AMARAL, subia para o andar superior, dirigia-se à cozinha e, ali era servida. Dizia: "Bota bem pouquinho, Mariquinha, quase não como nada". E repetia a refeição quatro ou cinco vezes. Isso era frequente. Esta figura quase folclórica se integrara à família Amaral e à comunidade tramandaiense. Viveu muitos anos, deveria estar na casa dos noventa. Morreu de velhice.

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CLARA Clara era benzedeira. Todos lhe tinham muita fé. Sua mãe era parteira. Desde 1908, ela, sua mãe e seu irmão rezavam terço nos velórios e nas novenas, nas ocasiões em que o sacerdote não se fizesse presente. Atribuíam à Clara, certos poderes extrassensoriais: mistérios da meia noite... Falava à meia língua. Não tinha quase nenhum dente, o que dificultava, ainda mais, a sua dicção. Salivava muito e, ao falar respingava o seu interlocutor com perdigotos. Quando encontrava alguém, costumava dizer: Ti vai, tirida?  (Como vai querida?). Um defeito na perna a fazia claudicar. Dizia ser consequência da mordida de um cachorro. Andava apoiada num bordão. Usava sempre um lenço, já sem cor, preso à nuca pelas três pontas, escondendo todo o cabelo. Uma cesta quadrangular, de palha, muito grande, encardida pelo uso, já se integrava à sua personalidade. Clara era de cor branca. Sua pele, judiada pelo vento e queimada pelo sol, a deixava mais velha. Caminhava muito. Percorria todas as casas dos moradores de Tramandaí. Nas saídas de Missas ou Novenas, lá estava Clara, pedindo seu óbulo, para sobreviver. Há certas passagens de sua vida que os antigos lembram, sem maldade, mas que são engraçadas, por sua espontaneidade. Contam, por exemplo, que nos terços rezados à acompanhada de sua mãe e de seu irmão a quem chamava Mandivera (mano Oliveira). Os três se revezavam durante a reza. Clara apresentava certa dificuldade respiratória  – talvez sofresse de asma - e se cansava logo, sendo acometida, ainda, por constantes bocejos. Iniciava a reza, puxando o terço e, no meio da Ave-Maria, sem interromper a oração, pedia ao irmão para rezar com os fiéis a segunda parte. Dizia assim: Ave - Maria, cheia de graça O Senhor é convosco Bendita sois vós entre as mulheres “ Mandivera, pega nu pé ditrais..." E bendito é o fruto de vosso ventre Jesus "Mandivera, pega nu pé ditrais" queria dizer: Mano Oliveira, reza tu a segunda parte da Ave Maria, com o povo. E o mano Oliveira respondia: Santa Maria mãe de Deus...

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Em outra ocasião, sua mãe estava rezando o terço. Diga-se que nesses encontros para oração comunitária, os cachorros acompanhavam seus donos. Às vezes, o imprevisível, ou melhor, o indesejável acontecia. Sem maldade alguma, a mãe da Clara fazia o seu comentário espontâneo, ou a sua reclamação, no meio da oração. Vejamos: -Ave - Maria, cheia de graça O Senhor é convosco Bendita sois vós... cufum Quilara!... Cachorro peidô, entre as mulheres... E bendito é o fruto... "Cufum"   = rumor que fazia com o nariz e com a boca expirando e maldizendo o mau cheiro exalante "Quilara"  = queria dizer Clara. Também a mãe era meia - língua. Clara morreu como indigente, por volta de 1963.

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AS PEGADAS NA AREIA Contam que Mané - Chico, pescador antigo, conhecido de todos em Tramandaí, por seus causos fantásticos, um dia saíra para pescar na barra. Nesse dia, não encontrou lá nenhum pescador. Estava solito e Deus. Atirou várias vezes a tarrafa no rio, na tentativa de trazer algum peixe para a janta. Nada. Era primavera! O rio estava calmo, espelhando as águas que, naquele instante, tingiam-se dos mais diversos matizes. Paisagem digna de ser apreciada! Mané - Chico olhou ao longe, até onde sua vista alcançava e admirou aquela beleza indescritível, como se fosse a primeira vez que se deparasse com tal espetáculo. As águas estavam muito calmas. As ondas espumantes com delicadeza, nesse dia, vinham banhar-lhe os pés. O sol já se dirigia para o oeste. Uma barra avermelhada desenhava no firmamento as mais estranhas formas. Esse homem simples deixou-se enlevar, nesse momento, por forte emoção. Ficou extasiado diante de tanta beleza. Uma gaivota cortou os ares e, num mergulho decidido, buscou um peixe, fazendo um ruído que tirou o nosso pescador daquele encantamento. Tarrafa recolhida às costas, meio curvado, retira-se do local e começa a caminhar, quando percebe, na areia, umas pegadas pequeninas. Dois pés em miniatura. Curioso, começa a seguilas. Caminha, caminha, seguindo-as por toda a praia. Numa determinada altura, as pegadinhas tomam a direção da Av. N. Senhora dos Navegantes (Avenida da Igreja). Naquela época, 1920, os comoros vinham até a Prefeitura Municipal. Sua curiosidade aumenta. Ainda é dia claro. O sol ainda não se pusera de um todo. As pegadas ficavam cada vez mais nítidas. Animado pela curiosidade, acelera o passo, sobe comoro, desce comoro... e as pegadas ali, na sua frente. E, para seu espanto, as pegadas terminam na porta da Capelinha. Mané-Chico sente-se preso a terra. Não consegue dar passo. Olha para a Capela que tantas lembranças lhe traz: batizados, casamentos, enterros de pessoas amigas e de parentes... Festas religiosas... Tudo isso se mistura em sua cabeça. Lembra-se da construção do tempo: pedra sobre pedra, madeirame... Passa-lhe pela cabeça a figura Comendador Militão D'Almeida, homem devoto a quem se deve a construção desta capela. Abandona estes pensamentos que o perturbam, hesita por um instante. Decide entrar. Deixa a tarrafa à porta, benze-se com devoção. Não vê ninguém na casa de Deus. Dirige-se ao altar. Corre os olhos pelos Santos... e o que vê? Nosso Senhor Jesus Cristo, Menino Jesus, no colo da Virgem Maria com os pezinhos sujos de areia!... Não acredita. Com todo o respeito, passa a mão nos pezinhos do Deus-Menino para tirar qualquer dúvida. É areia mesmo! Aquele homem baixo, de olhos azuis, chapéu na mão ajoelha-se, deixando-se ficar ali por momentos que pareciam eternidade. Depois, como se despertasse de um sonho, levanta-se, olhar vago, vai até a porta que dá para a rua, apanha a tarrafa, sai, atravessa a rua empoeirada, em direção norte e entra no boteco do Sr. Antônio Isabel. Encosta-se no balcão, pede um aperitivo para sair do torpor que se apodera dele e, mais reanimado, conta o fato aos 18

companheiros que, costumeiramente, àquela hora, estavam ali para um gole de purinha e para um dedo de prosa... - Juro por essa luz que me alumia que eu vi!

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A CUMBUQUINHA Quem nos conta é D. Filuta... Quando criança aconteceu-lhe um fato que até hoje está vivo em sua lembrança. Isso já vai muito longe... lá pelos idos de mil novecentos dez, quando em Tramandaí não havia mais do que cem ranchos de pecadores que se distribuíam ao longo do piscoso rio. Esses ranchos eram de madeira, mui pequenos, cobertos de palha; a cozinha era de chão batido. Atendendo ordens de seus pais que moravam na Av. Beira-rio, logo a nordeste da ponte que vai para o Imbé, ela e sua amiguinha Cebeli, foram recolher as vacas que pastavam lá para as bandas do Sr. Manoel José (hoje Imobiliária Casa da Praia). Naquela época, o centro de Tramandaí era cortado por uma várzea que se estreitava entre os comoros e o rio, entremeado de banhados, excelente pastagem salitrada para o gado. Debruçados nas taquaras da mangueira, seus pais seguiam, com os olhos, as meninas que, saltitantes, corriam em direção às vacas. A garotinha Filuta, que tinha à mão uma taquara para tocar os animais, viu, rolando na areia, uma cumbuquinha muito engraçadinha. Enfiou-a na ponta da taquara; não sabia o que era; levou-a para casa. A mãe, ao ver as meninas se aproximarem, disse para o marido, intrigada: -O que é aquilo que a Filuta traiz na ponta da vara? Quando a Filuta chegou perto, a mãe perguntou-lhe: -O que é isso, rapariga? -Não sei mãe. É uma cumbuquinha que achei lá nos combros... -Já me leva isso de vorta, sua bruaca! É uma cabeça de defunto!... Corre e vai já colocar isso no lugar onde encontraste! Senão o defunto vem de noite mexer contigo!... Mal a menina ouviu aquilo, cravou o pé com sua amiguinha para devolver o achado ao seu lugar. Chegaram lá excitadas os olhos não lhes cabiam nas órbitas. E agora? Não sabiam mais de onde haviam tirado a cumbuquinha. O vento, indiferente ao fato  já havia apagado qualquer marca na areia. Sem tempo a perder, atiraram o crânio humano em qualquer lugar, pois a noite já vinha caindo e o frio era intenso. Cravaram o pé de volta à casa, empurradas pelo medo e pelo vento Minuano gelado que, implacável, fustigava-lhes as pernas com nuvens de fria areia, deslocadas dos comoros, feito chicotadas em mão de hábil e impiedoso feitor. Chegaram a casa com os olhos esbugalhados, olhando sempre para trás, durante o trajeto de volta, a ver se o defunto não as estava a perseguir...

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O TOURO NA FAXINA DE IMBÉ Era junho de 1914. O dia amanhecera bonito, apesar de ser inverno. De véspera, fizeram a combinação. Dona Maria Germana, com as filhas Nicuta e Filuta, sairiam bem cedinho para cortar junco em Imbé. Com elas iriam a Cota e a Estelita, vizinhas de porta. Moravam próximo ao rio, hoje, Av. Beira Rio, com Rua Doze de abril, Com esse material confeccionariam esteiras e trilhos para vender no verão. Escolhiam os juncos verdinhos, sem defeito. Secavam-nos em casa. D. Maria preparou uma cesta com rosca, pão de casa, pó de café, uma chocolateira para ferver água e ainda uns pedaços de peixe que sobrara da janta. - Filuta, anda ligeiro, rapariga! Agarra a cesta e vai vê se a comadre já tá pronta - disse D. Maria, quase a gritar para a filha que estava na outra peça. Filuta era adolescente. Aquela atividade a deixava muito animada, pelo menos era uma programação diferente que a tirava da rotina. Saiu quase a correr com a cesta no braço. Enquanto caminhava apressada, tentava colocar por baixo do pano que cobria o balaio, uma rapadura para roer, quando tivesse vontade. E lá se foi porta à fora. Só se ouvia o pléc... pléc...dos tamancos, batendo nos seus calcanhares. Todas prontas, dirigiram-se para o passo do Tramandaí. Nessa hora muitos pescadores já estavam cuidando de seus afazeres. Uns consertando redes, outros voltando da pesca. Algumas galinhas soltas ciscavam ao redor das casinhas. O cheiro da fuligem dos candeeiros de querosene misturavam-se com a fumaça do fogo, mal aceso, nos fogões rústicos. Talvez porque as achas de lenha estivessem verdes não permitindo que o fogo se acendesse de vez, impregnando de fumaça todo o rancho, fazendo arder os olhos de quem estivesse por perto. Do outro lado do rio, em Imbé, havia muito gado solto e, vez por outra, um touro bravo e impertinente corria com alguém. Aproximaram-se do rio. Buscar junco era uma atividade das mulheres. A Cota era a remadeira. Puxavam a canoa, já com os remos, o mais próximo possível do barranco. Com os tamancos numa das mãos e a saia presa à outra, embarcaram e começaram fazer a travessia. Alguns respingos de água provenientes dos remos, quando trocados de lado, aspergiam a tripulação, abrandando a excitação das mulheres que paravam de tagarelar. Chegadas a Imbé amarraram a canoa. Os pescadores que sempre andavam por ali, já familiarizados com os animais soltos nos campos de Imbé, recomendaram: "- Ceis cuidi que tem toro brabu na faxina!... ” Os cachorrinhos saltaram da canoa e começaram a fazer reconhecimento do lugar, cheirando aqui, latindo ali, levantando a perna acolá... Um dos cães chamava-e Menino. Os cachorros sempre acompanhavam os donos em toda parte. E, nessa atividade, serviam para correr com o gado. 21

Foram em direção aos juncos que ficavam nos terrenos encharcados. A Filuta não largava a cesta da comida e, de vez em quando, mordiscava a rapadura. Estavam a meio caminho, quando um touro, incomodado com o barulho, levantou a cabeça, deixou o gado e começou a correr na direção delas. Estas corriam campo a fora rumo a um albardão de mato que se alteava nas proximidades do rio velho. Filuta perdeu uma tamanca na desabalada corrida que empreendeu, mas, em momento nenhum, largou a cesta do café. Conseguiu subir num araçazeiro muito débil. Para seu azar a perseguida pelo touro fora ela. Sobre a árvore quase sem fôlego, agarrada a cesta, estava à salvo. Muito branca, lá de cima, olhava o touro que nervoso, fazia investidas sem direção. As outras mulheres já haviam chamado os pescadores que espantaram o touro com remos e redes. Meio trêmula Filuta desceu da árvore. Em pouco tempo se refez do susto. Sua tamanca, pé esquerdo, nunca mais achou. Deve estar até hoje nos banhados que havia no Imbé. Por muito tempo lembraram-se dessa história e riam muito ao contá-la.

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O MONSTRO Seguidamente tropeiros passavam por Tramandaí e Imbé, é levando gado vacum, cavalar e muar para outros estados do Brasil. Esse fato aconteceu na primeira década deste século. Nesse dia, um burro se extraviara da tropa e ficara vagando pelos campos de Imbé. João colono, negro, tocador de gaita-ponto e soldado da época, era um tipo muito bonachão, que gostava de dar gargalhadas. Quando chegava numa venda, sentava - se a tocar gaita, enquanto um pescador contava um causo ou outro. Fernando Damásio era pescador e tocava na Banda de Música de Tramandaí. Os dois combinaram fazer urna pescaria à noite. Tarrafas às costas, iam passando de venda em venda , benzendo - se com caninha de Santo António da Patrulha, para não sentirem frio, ou melhor, “prá esquentá u peitu”. Já estavam altos...

Chegando ao rio arregaçaram as calças de riscado e, sem muito equilíbrio, entraram na canoa. A noite era escura como breu. Uma quietude se espalhava pela lagoa, quando, de repente, um ruído assustador na água, amedronta os dois homens. Cada um deles pensava: "Será o Minhocão, o monstro que bota fogo pelos olhos e, com rabanadas costuma virar as canoas dos pescadores?” Fernando grita para o negro Colono: -Rema ligeiro, "home”, que o monstro "ta” perto!... João Colono, entorpecido pelo álcool, remava para um lado e Fernando, afobado, remava para outro lado; e o bicho cada vez mais perto... E, cada vez mais perto! Tão perto que quase botou a cabeça dentro da canoa. A escuridão era total e a proximidade do monstro os deixava atordoados. O barulho desencontrado dos remos que batiam nas laterais da canoa, associado ao ruído que o bicho produzia na água, cada vez mais perturbava os pescadores. Nesse momento de maior nervosismo, o monstro resfolegou e bufou dentro da canoa. João Colono e Fernando Damásio que, nessas alturas, já estavam de pé, desequilibraram-se e caíram na água. O choque da água fria põe tenência nos dois homens que veem passar por eles um burro extraviado... Não é preciso dizer como é que ficaram as duas figuras, saindo do rio, molhados até a alma, brancos de susto, sem peixe e, ainda, tendo que amarrar a canoa sem muita coordenação motora... Pelo menos, teriam assunto para muitos dias!

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O LOBISOMEM Contam que... Era uma vez, uma mulher casada com um lobisomem e não sabia. Era sexta-feira. Após o jantar, o marido arranjou um pretexto qualquer e saiu. A mulher pôs em ordem a cozinha, acomodou os filhos e foi deitar-se. Dormiu profundamente. Era meianoite, quando se acordou com latidos de cachorro. Possuía um cachorrinho de estimação e ficou preocupada, "Meu Deus, o que há de ser isso? ” - pensava lá com seus botões. Apalpou o lado da cama onde o marido deveria estar dormindo. Nada. Ainda não voltara. Sentou-se na cama acendeu o candeeiro. Os latidos tornavam-se cada vez mais intensos. Tomou-se de coragem. Apressadamente vestiu a saia de baeta * vermelha que usara durante o dia, passou a mão num xale que estava sobre a cadeira, colocou-o sobre a cabeça para se proteger do sereno e do frio. Armou-se com um pau e saiu ligeiro para ver o que era. O cachorrinho latia nervoso para um cachorro enorme, preto, com o pelo todo eriçado e os olhos em tocha. Parecia querer devorá-lo. A mulher estacou. Arrepiou-se toda. Nunca vira bicho tão grande! Seu coração disparou. Mas agora estava ali, no pátio. Estimava demais o cãozinho e precisava fazer alguma coisa para evitar o pior. A lua cheia prateava o arvoredo no quintal. Tirante os latidos e o ruído de algum inseto, tudo era silêncio. Havia qualquer coisa de mistério no ar!... O cachorrão, nesse momento, indiferente ao latido do outro, buscava a lua cheia no firmamento, com os olhos em fogo, principiando a uivar. A mulher ficou paralisada. Aquilo poderia ser prenúncio de mau agouro. Investiu contra o cão, com o pau (sua arma) para quebrar aquela situação agourenta. O cão enraivecido e com o pelo eriçado, avançou contra ela, latindo, tentando despedaçá-la. Esta, disparou em direção à casa. Ninguém para socorrêla. Nervosamente, abre a porta da cozinha, virando a tramela. Quando estava a entrar, o animal abocanhou-lhe a saia, arrancando um bom pedaço de tecido vermelho. Fechou a porta atrás de si e enconstou-se nela. Talvez para impedir que o monstro entrasse... ou porque estivesse aterrorizada... Faltaram-lhe as forças. Parecia que ia desmaiar. O relógio marcava pouco mais de meia-noite. Suas pernas tremiam como vara verde. Na casa reinava um silêncio mortal. As crianças dormiam. Conseguiu dar alguns passos e preparar água com açúcar para se acalmar. Agora menos tensa dirige-se para o quarto. Adormeceu e nem viu o marido chegar. Ao amanhecer, levantou-se como de costume para fazer as tarefas da casa. O marido ressonava alto, de boca aberta. Uma réstia de claridade iluminava seu rosto. Olhou para ele e estranhou. Estava com os dentes cheios de fiapos vermelhos. O mesmo tecido de sua saia!... Com o olhar perdido, não acreditou no que via, dizendo para si mesma: Então eras tu o LOBISOMEM!...

* Baeta – Tecido felpudo de lã. 24

PROCISSÃO DAS ALMAS Contam que numa determinada noite do ano acontecia a procissão das almas. Todas elas vestidas de branco, com uma vela na mão, vinham do cemitério em direção ao centro, num silêncio aterrador. Iam até a Capela Nossa Senhora dos Navegantes, depois se recolhiam, sumindo como por encanto. Uma senhora que morava em Tramandaí, nessa época, queria muito assistir a esse acontecimento, ainda que todos a aconselhassem a desistir de tal ideia. Obstinada, quando chegou a dita noite, escondeu-se atrás de uns gravatas e arumbevas que serviam de cerca ao terreno de sua casa. Ali no escuro, à meia-noite, estava ela. A lua cheia, muito redonda, emprestava ao ambiente um ar de mistério, prateando aquela vegetação que circundava a quadra gramada. A casa pequenas de tábua, cobertura de tiririca do brejo, ficava a uns cinquenta metros. Um valo dividia o terreno, drenando-o. Os copos-deleite, no valo, em grande quantidade, nessa noite, pareciam luminosos, pelo efeito do luar. A senhora continuava à espreita. Nem respirar direito podia - tal era a emoção que se apoderara dela. Nesse meio tempo, esticou o pescoço para olhar mais longe, esgueirando-se por entre os espinhos. Um arrepio percorreu-lhe todo o corpo. Seus cabelos pareciam levantar-se. Uma nuvem encobria a lua e uma lufada de vento Minuano gelava-lhe a alma. A procissão surgia lá, muito longe, deslocando-se com certa velocidade como se estivessem sobre patins. O silêncio era aterrador. Agora, já estão passando bem à frente. Consegue ver por entre a vegetação espinhosa, um grande número de entes do outro mundo, todos muito compenetrados, olhar distante, como se nada vissem, caminhando como se deslizassem. Nisso, desloca-se uma alma em sua direção e lhe entrega uma vela. A senhora, branca como cera e trêmula, segura-a como autômato. Tão logo pode refazer-se da emoção, tenta correr em direção casa, mas sente-se puxada pela saia. Um grito de horror ecoa na noite, estendendo-se por toda a várzea. Sua saia estava presa nos espinhos do gravatá. Consegue dar uns passos, sempre com a vela na mão. O medo a faz andar. Pula o valo e quase cai. Finalmente chega a casa. Entra. Fecha a porta com a tranca. Coloca a vela sobre a mesa. Atira-se à cama trêmula. Todos dormem. Exausta, adormece. No outro dia, foi ver a vela (objeto comprovante de sua coragem). No lugar desta, havia uma canela de defunto (osso humano). A senhora quase ficou louca! A família reuniu-se em conselho e decidiu que a canela deveria ser levada ao cemitério. E, assim foi feito.

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O BAILE Grande acontecimento em Tramandaí no Hotel Pelgrini. Por volta de 1912, foi programado um baile nesse hotel. Os preparativos eram grandes. D. Concheta e seu esposo Pelegrini, proprietários da casa, cuidaram de tudo para que tal festa fosse inesquecível. Autoridades do Município de Conceição do Arroio (Osório) estariam marcando sua presença como de costume. O Sr. Firmiano Osório, na época, Intendente, na companhia de seu irmão, Manoel Luiz da Terra Osório, conhecido por Dadá Osório, chegaram de charrete para o baile, muito bem trajados e bem armados. A Winchester era o seu anjo da guarda. Impunham respeito e temeridade a todos por sua severidade e pelos cargos políticos que ocupavam. A noite chegou. Nessa época, moravam em Tramandaí aproximadamente, umas cem famílias. A festa começara. Bancos e cadeiras dispostos ao redor do salão eram ocupados por quem não estivesse dançando, especialmente pelas senhoras mais idosas que se ocupavam em observar o modo de dançar decente dos moços e das moças. O Sr. Firmiano e o Sr. Dadá Osório sentavam-se em atitude severa, eretos segurando as armas à sua frente, com a coronha apoiada no chão e, assim mantinham a ordem. A certa hora da noite, Alfredo Matilde e Chico Marinheiro entraram no meio do salão fantasiados: formavam um casal de negros. A negra trazia um enorme travesseiro no traseiro. O Sr. Firmiano e o Sr. Dadá Osório acharam que aquilo era uma provocação para desfazer do baile. Houve intervenção autoritária e uma reação em defesa própria, por parte dos artistas. A briga se formou. Os dois travestidos apanharam tanto quanto apanha um boi ladrão! Queriam explicar que sua intenção não era aquela imaginada por eles... mas... contra a força não há argumento... O rolo foi grande. Mulheres e crianças gritavam e choravam. Sim, crianças, porque naquele tempo os pais levavam até os nenéns para as festas, bem como era de costume os cães acompanharem seus donos. Até pelas janelas saia gente com medo de receber algum tiro perdido. Quando a briga havia sido controlada e tudo já voltava à calma, aconteceu o inesperado: A cachorrada, que acompanhava seus donos, estranharam-se no meio do salão e aí sim... rolava cachorro pelo chão... era dentada prá cá... dentada prá lá... uns abocanhando os pescoços dos outros, numa briga desenfreada, sem se soltar nem mesmo quando lhes atiravam água. As mulheres e as crianças que não puderam fugir para fora do salão, estavam subidas nas cadeiras, tentando proteger-se das dentadas. Objetos de uso pessoal era o que mais se via espalhados pelo salão e debaixo dos bancos...

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A BRIGA DAS DUAS BANDAS No início do século, Tramandaí era um povoado de pescadores. Nessa época, já havia uma Banda de Música regida pelo professor Lídio Januário da Rosa. A barra nem sempre permanecia aberta. Tendia a correr em direção Norte até perder a força, terminando por obstruir-se totalmente. O peixe que, costumeiramente, entrava na barra, passava de largo. E o nosso pobre pescador ficava prejudicado em sua pesca artesanal. Nessa época, como em outras, os pecadores se reuniram e, em mutirão, abriram a barra. Era uma obra que merecia comemoração, ainda porque também vinha beneficiar os fazendeiros da região que teriam seus campos menos inundados. E nada melhor, do que uma churrascada e um baile para comemorar. O então Intendente de Osório, Sr. Firmiano e seu irmão Dada Osório, chegaram a Tramandaí em sua tradicional charrete. O local da comemoração seria á sombra de uma frondosa figueira: esquina Jorge Enéias Sperb com Av. Fernandes Bastos, então Rua Grande. Durante o almoço comeram bastante, beberam muito, festejando a conquista da abertura da barra com tudo que tinham direito. As autoridades de Osório trouxeram a Banda de Música para dar mais brilho aos festejos. A Banda de Música de Tramandaí não poderia deixar de marcar sua presença. Estava lá também. Diga-se que havia uma rivalidade muito grande entre as duas Bandas. Osório, na época, era Vila, enquanto que Tramandaí não passava de um pequeno povoado de pescadores, muito pobre. Os arroienses (osorienses) sentiam-se superiores. Chegavam a dizer que, quando os músicos de Tramandaí viravam seus instrumentos de sopro para limpá-los, caíam espinhas de peixe, porque os elementos componentes da banda de Tramandaí, em sua maioria, eram pescadores. Após o almoço, para evitar desavenças, o Intendente determinou que as duas bandas se deslocassem para o salão onde se realizaria o baile, tomando direções opostas: A de Tramandaí seguiria pela Av. Fernandes Bastos, em direção à ponte, até a Rua Cândido Osório da Rosa, dobrando à direita até a Av. Emancipação (Capitão Mariante); Enquanto que a banda de Osório seguiria até a Rua Fernando Amaral (Vicente Barcelos), para chegar à Av. Emancipação. Nessa avenida, as duas bandas seguiriam tocando diferentes músicas, até se encontrarem na frente do salão de baile - esquina Jorge Sperb com a avenida já referida local onde hoje há a casa (GULA GULA). Ao se aproximarem, cada qual queria tocar mais alto para fazer prevalecer seu som. Os bumbeiros vinham à frente, puxando o grupo de músicos. Quando as duas bandas se defrontaram, ficando os bumbeiros cara a cara, a confusão se formou. Nenhuma das duas bandas cedia. O som tornou-se infernal. A provocação estava feita. O bumbeiro de Osório, num ímpeto de ódio, levantou o braço com a baqueta e, em vez de bater no bumbo, acertou com toda a força a cabeça do negro Virge que era o bumbeiro da Banda de Música de 27

Tramandaí. Aí, fechou o tempo e a briga se instalou. Uns com o rosto ensanguentado, outros pisados... O Intendente Firmiano Osório, dono da festa, ficou indignado. Passou uma descompostura nos músicos de Osório, até que conseguiu acalmar os ânimos. Briga controlada, dirigiram-se para o salão. As bandas se colocaram em lados opostos, tocando uma de cada vez, alternadamente. Por ordem de Intendente, quando terminou a festa, os músicos tiveram que se despedir como gente civilizada.

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O NADADOR IMBATÍVEL Jorge José Muri deveria ter vindo da Síria em 1877 e aqui chegando, dedicou-se ao comércio. Inicialmente era mascate. Vendia corpetes de tecidos, miudezas, bijuterias e até espartilhos que ajudava a ajustar no corpo das moças, quando os experimentavam, colocando o joelho em suas costas. Com o tempo, tornou-se proprietário de terras em Tramandaí e Imbé. Foi pioneiro no comércio de Tramandaí. Certo dia, Jorge, saudoso de sua terra, numa tarde muito bonita, dirigiu-se à praia para nadar. Nadou, nadou... e retornou sentando-se na areia branquinha. Um tanto melancólico, começou a contemplar o mar. A saudade de sua pátria crescia dentro de seu peito machucando sua alma. Para afugentar tal estado de espírito, retornou ao mar. Nadou até cansar... Quis retornar e a correnteza cada vez o afastava mais da costa. Tentou dar mais algumas braçadas. Avançava um metro e era arrastado três. Pensou que chegara a sua hora e começou a exclamar: "Ai dios!... Dios!... Por que Dios mi trouxe de mi terra prá vir morer tão longe? Nunca fiz mal a ninguém!... Nunca roubei! Dios mi trais de mi terra prá vir morer aqui tão longe!... Adios, mi casinha! Adios Deolinda! (Deolinda era sua namoradinha). Dios,sei que vou morer..." Cruzou as mãos sobre o peito e, num gesto de entrega, ficou boiando a mercê da correnteza. Não tentou fazer mais nada. Deixou-se ficar ali para morrer. Perdera a noção do tempo. Boiou... boiou ... boiou... Depois de ficar algumas horas naquele estado de torpor, sentiu necessidade de suspirar. Suspirou profundamente como se estivesse voltando a viver. Sentiu-se recuperado em suas forças, parecia outro. Deu algumas braçadas e tentou ficar de pé. Encontrou chão. Surpreso apressou-se a sair do mar. Olhou para um lado e para outro, reconheceu que estava em Cidreira. Descansou um pouco e caminhou até Tramandaí. Ninguém acreditava no que contava. Achavam que ele teria nadado até Cidreira. Desde então era considerado um nadador imbatível! Esse fato foi muito comentado na época. Salvou-se porque não se afobou. Assim corno a correnteza o levou mar adentro, assim também o devolveu a terra.

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O BAÚ DE MOEDAS DE OURO O Sr. Jardelino Peroni trabalhava intensamente na urbanização de Imbé, para a firma "SOCIEDADE TERRITORIAL PRAIA DE IMBE LTDA", em 1940. Nessa época morava nas imediações da Av. Osório, numa casinha que servia de depósito ao DAER. Estava fazendo um canteiro grande, em forma de estrela, no local onde se inicia o Imbé, ao sair da ponte principal. Seria uma estrela de grama com uns vinte metros de diâmetro. Atento ao seu trabalho estava, quando se aproximou o Sr. Coufal, dizendo-lhe que trouxera do Aguapé e do Arroio das Pedras umas mudas de flores. Pediu-lhe que interrompesse o serviço no canteiro, para plantar as mudas na costa do valo que corria ali por perto. A noite chegou. Cansado, Peroni adormeceu. Sonhou. Em sonho alguém lhe dissera que não poderia deixar de cavar no canteiro de estrela, porque havia ali um baú cheio de moedas de ouro, com mais ou menos doze ou catorze quilos. Mas, para cavar, teria que usar uma pá nova. De manhã, bem cedinho, foi para o serviço. A primeira coisa que fez foi plantar as mudas no valo. Mas o sonho não lhe saía da cabeça. Às nove horas parou para descansar e pensou: "Agora vou cavar onde parei. Não vou comprar pá nova, coisa nenhuma..." Começou a cavar e encontrou uma camada de carvão, como indicara o sonho. Continuou cavando e a pá bateu num metal. Cavou mais um pouco e veio uma Peça cheia de areia. Limpou-a, examinou-a. Era uma peça com formato de uma portinha de oratório, de prata, com Jesus crucificado e São Jorge em alto relevo. Nesse momento vem passando o Zé Branco que trabalhava no DEPREC, disse-lhe: - Tu tens que me vender esse Santo! - Não. Esse Santo eu não vendo por dinheiro nenhum. Isso aqui não tem dinheiro que me tire. A notícia de que Jardelino tivesse encontrado um tesouro correu longe!... Impressionado com o achado, tornou a sonhar. Mas teria que ir à meia noite, sozinho, porque ali havia um baú cheio de moedas de ouro. Corajoso, e na esperança de achar o tesouro, à meia noite estava cavando. Cavou... cavou... cavou... quase foi chão adentro e nada! Tornou a sonhar. Sonhou que era a perna de Nosso Senhor Jesus Cristo, de prata, que teria de tirar. Depois, os sonhos começaram a se transformar em pesadelos: "que a alma do dono do tesouro o estava a perseguir..." Chateado com os sonhos e já nervoso, fez uma promessa: "Só queria ficar com a imagem que achara. Se tivesse baú ali não o interessaria mais ”. O mais importante era recuperar a tranquilidade e poder dormir sossegado. Graças a Deus os sonhos não voltaram! Pessoas diziam que, naquele local, aparecia uma moça, toda de branco, muito bem vestida, bem alta. Depois, costumava aparecer uma bola de fogo que começava a se deslocar bem baixinho e quando a pessoa se aproximava dela, tentando pegá-la, não conseguia nunca... Seria Boitatá? Só sei que aquele que tentasse pegá-la, saía com os cabelos em pé... 30

Dizem que, depois de algum tempo, veio uma senhora de São Paulo, com um detectador de metal e arrancou o baú cheio de moedas de ouro!

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O CASAMENTO Helena Mafalda Dossena, filha do Sr. Reinaldo Vaccari, era noiva do Senhor Quinto Dossena, natural de Encantado. O seu casamento realizar-se-ia em Santa Terezinha, 19 de maio de 1951. Aproximava-se o grande dia. Durante a semana foram grandes os preparativos. Seus pais ofereceriam um verdadeiro banquete como era costume na época. A cerimônia seria realizada nas primeiras horas da manhã. Na véspera do casamento, uma grande tempestade se abateu sobre a praia com forte vento Sul. O mar, em ressaca, avançava até os comoros. O noivo deixara para vir no dia, para viajar com os parentes. Vieram em comitiva. Chegaram cedo a Imbé e ficaram retidos nas esteiras que davam acesso à praia, sem possibilidade de prosseguir viagem. A praia estava intransitável. Procuraram condução em Tramandaí, porém o único carro que fazia serviços de táxi, não quis se aventurar pela praia. O tempo se escoava. Não havia alternativa. Os convidados, já vestidos para a recepção, descalçaram-se, segurando seus calçados, empreenderam caminhada pela praia, por sobre os comoros. O vento acompanhado de uma chuva contínua, fustigava-os, regelando-lhes o rosto. O rugido do mar os amedrontava. No hotel, os convidados que chegaram de véspera, não acostumados com temporais à beira da praia, temiam que o mar tragasse o hotel, quando fortes rajadas de vento o sacudiam. O Padre Pedro Jacobs, o Juiz de paz, Palmarito de Almeida Saraiva e o Escrivão, Zeferino Silveira do Amaral (Lila), já haviam chegado, pois saíram de Tramandaí, de manhã, bem cedo, a cavalo. Estavam encharcados até a alma. Todos se voltavam em atenção para o Padre Pedro, querendo secar-lhe as roupas. Deram-lhe, para vestir, as calças do dono da casa, até que providenciassem a secagem em de suas roupas, porém as calças não fechavam na cintura, porque o Padre era bem mais gordo, mas... a batina escondia esses pormenores. Não faltavam aquelas pessoas "agourentas" que, baixinho entre si, murmuravam: "Será que o noivo vem?” Já era perto do meio dia, quando o padre impaciente e nervoso, declarou terminantemente: -Se o noivo não chegar até às duas horas da tarde, eu vou embora! Ainda tenho mais dois casamentos para realizar em Osório. A noiva, nervosa, corria de um canto para outro. Um certo desconforto começava a reinar na casa. Num determinado momento, a noiva sem muita esperança, correu para seu quarto. O seu vestido de noiva, todo branco, de brocado, com uma cauda longa, jazia ali, dependurado num cabide. A grinalda e o véu estavam sobre a cama. Seus olhos encheram-se de lágrimas e fez urna oração que saiu do fundo de seu coração, para que seu noivo chegasse a tempo. No salão, a todo momento, alguém espiava pela janela ou entreabria a porta para ver se havia sinal de gente chegando. Os ponteiros do relógio, indiferentes a toda ansiedade reinante, avançavam no tempo marcando hora por hora. Já passava do meio dia. Os assados: leitões, perus, galinhas... as saladas ... já estavam dispostos sobre a mesa cuidadosamente decorada. O cheiro daquelas iguarias deliciosas, chegavam às narinas dos convivas, estimulando-lhes o 32

apetite. A fome inquietava os convidados impacientes e deixava em situação de desconforto os anfitriões. A todo momento, o padre ameaçava ir embora. De repente, um grito ecoou pelo salão, invadindo todas as dependências do hotel: - O noivo chegou! O noivo, os convidados e os parentes surgiram por entre os comoros. Pareciam estar voltando de uma expedição ao martírio: cansados, com os cabelos em desalinho, sujos de areia e encharcados. As senhoras, com seus casacos de pele, vestidas para a cerimônia, estavam em estado deplorável! A caminhada por sobre as dunas os deixara extenuados! A noiva, ao ouvir o grito, exultou de alegria e seu coração estremeceu no peito. Começou a se vestir apressadamente. A alegria tomou conta de todos. Os recém-chegados foram recebidos muito bem. Roupas secas foram providenciadas para vestirem. Seus casacos e capotes foram colocados sobre o fogão, numa corda, bem ao alto, para secar. Os calçados foram colocados no forninho do grande fogão à lenha. Enquanto a aventura da "missão quase impossível" para chegar à festa, se arrumando e se preparando para a cerimônia. A roupa do noivo havia ficado na casa da noiva e não teve problemas maiores. A confusão era generalizada e a euforia por tudo terminar bem, fez com que não se lembrassem dos calçados no forno. Quando a cozinheira os retirou, as botas e alguns calçados estavam retorcidos e torrados. Alguns tiveram que assistir à celebração do casamento, com sapato emprestado. Finalmente chegou a hora! Celebraram o Sacramento do Matrimônio às 14 horas, mesmo com o padre mal-humorado. Tudo começou a melhorar. A tempestade foi se amainando. A festa se estendeu por toda a tarde. Ao entardecer, os noivos conseguiram partir de automóvel, em lua de mel para Porto Alegre.

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LENDA DA ABERTURA DA BARRA Conta-se... No tempo em que a barra não era fixa, o rio Tramandaí ia caminhando em direção Norte, até perder sua força. Bastava uma cheia de mar grosso para que a barra ficasse totalmente fechada. Esse fenômeno não era bom nem para os fazendeiros da região que ficavam com seus campos inundados, nem para os pescadores que ficavam prejudicados em sua pesca. O rio de Tramandaí recebe toda a carga de água que procede do sistema lagunar que se estende ao Norte, desde Itapeva (Torres) e ao Sul. Toda essa carga deságua no mar através de sua embocadura. Sabe-se também que em épocas de grandes enchentes, pela força das águas, naturalmente a barra se abria. A barra estava fechada. A distância entre o rio e o mar era de uns quinhentos metros, aproximadamente. Havia poucos moradores em Tramandaí nessa época. Num dia, que já vai muito longe, contam que o mar estava muito grosso em ressaca. Ventava Minuano. O rio, após continuados dias de chuva, tornou-se volumoso. Mar e rio pareciam buscar-se. Nesse tempo uma mulher que andava por ali, olhou para a força daquelas águas e despretensiosamente, fez um sulco na areia com o seu tamanco, na tentativa de interligar as águas. Conseguiu 'que um filete de água doce corresse a se misturar ao oceano. O sulco foi tomando corpo, dando vazão às águas represadas. A cada minuto, a força colossal da natureza assuma dimensões assustadoras arrastando, à sua passagem, comoros inteiros que se esboroavam à fúria da correnteza. Era um espetáculo indescritível e emocionante! A barra do Tramandaí estava aberta! ... e... com um tamanco!!! ... Atribui-se essa passagem à Sra. Maria Bernarda. * Esta lenda nos foi contada por D. Filuta, antiga moradora de Tramandaí, nascida no final do século passado.

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LENDQA DA LAGOA DOS BARROS "BARROS (Lagoa dos -) Extensa lagoa que fica na divisa com o município de Santo António da Patrulha, na costa da Serra. Seu primitivo nome foi "Lagoa Formosa”. Mais t arde tomou o nome de Lagoa do "Defunto Barros" porque Manuel de barros Pereira fora concessionário de grande extensão de campos, banhados pela dita lagoa. Por idêntica razão, chamou-se também mais tarde "Lagoa do Machado Gomes”. É navegável em toda sua ext ensão. Por enquanto, não é navegada. Diz a lenda, que aparecem ali, à noite, sobre as águas, ninfas montando belos corcéis brancos, enquanto que um rumor estranho quebra o silêncio daquelas paragens e um vento todo misterioso agita fortemente as águas da lagoa. Diz outra versão lendária, que em noites de luar, em determinados lugares da praia ocidental dessa lagoa, aparece uma moça lindíssima coberta de tênue véu branco, ostentando basta e ondulada cabeleira dourada, que lhe chega quase aos pés. Costuma ela pedir um pente. O mortal que conseguir trazer-lhe este objeto, guardando o mais rigoroso segredo, quebrará o encanto e receberá enorme tesouro que se encontra misteriosamente oculto em lugar próximo à lagoa. Ao contrário morrerá irremediavelmente no dia da aparição. Mais de uma pessoa, levadas por essas lendas, têm  feito escavações em lugares onde têm imaginado existir cobiçada riqueza. Afirma-se que alguém já conseguiu encontrar um boião contendo onças de ouro. Outras pessoas têm visto nessa mesma lagoa, a horas tardias, linda embarcações feericamente iluminada e de velas amplas e douradas. É frequente em dias de forte vento, principalmente de sudoeste, levantarem-se nessa lagoa, trombas d’água que atingem altura considerável. (...)” 

Transcrição do “Pequeno Dicionário Hitórico e Geográfico de Osório”  de M. E. Fernandes Bastos – 1935.

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O MINHOCÃO Há uma lenda entre os antigos pescadores de Tramandaí sobre um MINHOCÃO que aparecia na Lagoa do Armazém. Dizem os que viram tratar-se de um monstro, com forma de serpente gigantesca, com olhos verdes de fogo, pelos na cabeça. Pela língua soltava labaredas. Esse monstro, quando surgia na lagoa, ao se locomover, dava rabanadas tão fortes que virava as embarcações que estivessem por perto, enquanto dava medonhas bufadas que apavoravam os pescadores. Além de virar barcos, dizem que o monstro se alimentava de porcos e galinhas que se aventuravam até a beira da lagoa. Transcorrido o tempo, nunca mais o Minhocão se manifestou. Acreditam alguns que ele tenha saído mar a fora por um canal subterrâneo, afastando-se desta região.

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DO SIRI, DO LINGUADO E DA SAVELHA Contam os pescadores que, em certa ocasião Nossa Senhora andava catando gravetos para aquecer o menino Jesus que ficara em casa. Fazia muito frio. A Mãe de Deus caminhou muito e se perdeu. Chegou junto a um rio e precisava atravessá-lo. Na beira d'água, viu um linguado e lhe perguntou: - Linguado, a maré enche ou vaza? O linguado retorceu-se todo, fez umas caretas, entortou a boca e, com voz esquisita, arremedou Nossa Senhora: -Linguado, a maré enche ou vaza? Por castigo, desde aquele dia, o linguado ficou muito feio com boca torta e o s dois olhos de um lado só, além de ficar bem achatado. A savelha, que assistia a tudo, não se contendo, deu uma gargalhada, divertindo-se com o fato. Nossa Senhora, irritada, atirou-lhe o feixe de gravetos dizendo-lhe: -Savelha, cada uma destas varinhas será uma espinha em teu corpo! A partir desse dia, a savelha transformou-se num peixe com muitas espinhas. Um siri, que andava ali por perto e presenciara tudo prontificou-se a atravessá-la. Nossa Senhora abençoou-o, deixando sua imagem em seu casco. Olhando-se detidamente a casca de um siri, vê-se a imagem de Nossa Senhora.

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LENDA DE NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO “  Alguns historiadores dizem que a causa da aparição da Santa foi o afundamento de um dos navios que transportavam imagens de Santos da Espanha para a Província de Buenos Aires. Tal  feito ocorreu nas proximidades do Rio Tramandaí e, com forte borrasca, uma das imagens entrou pelo rio e acabou em terra, às margens de um arroio pertencente ao município de Tramandaí. O senhor Romário Machado (pesquisador osoriense) chegou a pesquisar em uma das Congregações Religiosas (Companhia de Jesus) de Buenos Aires onde encontrou a confirmação desse fato. Logo que soube da descoberta, o proprietário da fazenda do Arroio, por ser muito crente, tratou de trazê-la para a capela da Vila da Estância da Serra que depois passou a chamar-se Conceição do Arroio (Freguesia de Nossa Senhora da Conceição do Arroio), o que os escravos não admitiam, pois a descoberta havia sido feita por eles. Durante muito tempo, os moradores da vila tentaram manter a imagem da Santa na Capela-Mor, mas os escravos a levavam durante a noite, fato esse que gerou, naquela época, a crença de que a Santa fugia da Capela indo instalar-se na Capela da Fazenda (Fazenda do Arroio). Daí surgiu a lenda da aparição de Nossa Senhora da Conceição. Por muito tempo houve esse vai e vem da Santa. Quando a Santa sumia, ia o povo da Vila, mais o padre, e buscava a Santa. Isso ocorreu muitas vezes, até que, um dia, o padre resolveu mandar fazer uma redoma de vidro para Nossa Senhora da Conceição, colocando-a na Capela que era coberta de palha. O Padre, aproveitando a ocasião, resolveu fazer uma campanha para que os moradores da Vila se empenhassem financeiramente e construíssem uma nova capela para a Santa.  A Capela foi construída graças a fé e a boa vontade dos moradores do lugar. E a imagem nunca mais saiu daqui. Nossa Senhora da Conceição é padroeira de Osório (Conceição do Arroio) e a festa em sua homenagem é dia 08 de dezembro.” 

Observação: Esta lenda foi transcrita do livro REMEMBRANÇAS DE CONCEIÇÃO DO ARROIO, v.2  – 1989, gentilmente autorizada pelo autor Dr. Guido Muri.

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LENDA DA LAGOADA PINGUELA "Pela revolução de 1835, dois negros, em uma pequena canoa, atravessaram, com vento forte, a lagoa da Pinguela. Vinham dos lados do Morro Alto e traziam dinheiro e roupas de seus donos, para esconderem do outro lado, em algum recanto do morro. Acontece, porém, que chegando perto da ilha, a canoa vira perecendo ambos os tripulantes. Até hoje, os moradores daquelas imediações afirmam que em dias calmos aparece,  justamente no lugar onde se deu o naufrágio, uma canoa tripulada por dois remadores, e que essa canoa transforma-se rapidamente em dois formosos patos brancos, que, a seu turno, emergem graciosos nas águas mansas da lagoa, reaparecendo mais adiante." Nota: Lenda transcrita da obra de Antônio Stenzel Filho - A VILA DA SERRA - CONCEIÇÃO DO ARROIO.

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PAI MANUEL Na Ponte do Camarão, antigamente, havia apenas um córrego que se avolumava, um pouco, quando ocorriam enchentes. Em 1907, rompeu-se esse sangradouro, ligando, até hoje, a lagoa das Custódias à lagoa do Armazém. Por ocasião de seu rompimento, aconteceu ali uma tragédia que deu origem ao nome do novo sangradouro SANGRADOURO PAI MANUEL. Pai Manuel era um negro velho - "Pai Manuel do Arroio", contemporâneo da guerra de 35. Morava em Conceição do Arroio (Osório). Pela manhã viera a Tramandaí, tendo passado pelo córrego normalmente, embora notasse que estivesse um pouco mais volumoso, devido à chuva. À noitinha, quando retomava o caminho de volta, no trote macio de seu cavalo, uma surpresa o aguardava. Jamais passou por sua cabeça que seria sua última travessia... Ao se aproximar do córrego, diminuiu a marcha de seu cavalo e, como sempre fizera, começou a atravessá-lo cuidadosamente, até porque estava muito cheio. Caiu num poço profundo que se formara pelos redemoinhos causados pelo rompimento do novo rio. Pai Manuel e seu cavalo, companheiros inseparáveis morreram dentro da noite, tragados pelas águas do rio, sem ninguém para socorrê-los.

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