Anais do V Congresso da ANPTECRE ANPTECRE “Religião, Direitos Direitos Humanos Humanos e Laicidade” ISSN:2175-9685
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ESTADO LAICO X RELIGIÃO CIVIL; FRONTEIRAS DIFUSAS Júlia Maria Junqueira de Barros Doutoranda em Ciência da Religião Universidade Federal de Juiz de Fora
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[email protected] om Bolsista CAPES ST09 – TRADIÇÕES RELIGIOSAS, ESPAÇO PÚBLICO E POLÍTICA Resumo: Ao falar em em laicidade laicidade o que primeiro vem à mente é França. França. O país país é berço berço do Estado Estado
laico e das discussões acerca da separação entre igreja e Estado. O processo que Paula Montero (MONTERO2013) identifica como de secularização na esfera jurídica representa para a autora uma “expulsão progressiva da autoridade eclesiástica do domínio temporal de modo a afirmar uma jurisdição laica” é o elemento jurídico do afastamento gradativo entre religião e
Estado desenvolvido e aprimorado durante a modernidade. Nesse sentido o campo religioso passa a ocupar o âmbito privado da vida dos sujeitos e a ser excluído do âmbito público ou jurídico. Ao colocar em perspectiva perspectiva os estudos acerca acerca do tema laicidade é possível identificar a predominância do modelo francês de laicidade como parâmetro de observação e análise das relações entre religiões e Estados no mundo contemporâneo. Entretanto, há diversos casos que fogem à regra comum da laicidade à francesa. Neste sentido é possível determinar o caso americano com seu processo de formação diferenciado como um outro modelo de relação entre religião e Estado, onde a religião esteve presente no processo de formação, ainda que (já em uma manifestação manifestação de laicidade determinada pela pluralidade religiosa) de forma não não institucionalizada. À luz desses dois modelos buscaremos problematizar as formas de laicidade e o conceito de “religião civil” desenvolvido por Robert Bellah para caracterizar o elemento
religioso existente nas sociedades sociedades em geral. Pensemos a partir de então, e o caso brasileiro, se encaixa em algum modelo? É possível pensar em uma religião civil brasileira? Como se pode falar em laicidade em uma realidade de crescimento das tentativas imposição de uma ética religiosa à sociedade em geral por meio das bancadas religiosas? Palavras chave: Laicidade; Religião civil, História, Brasil
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Paula Montero (2013) diferencia secularização e laicidade como sendo a primeira, o nível social da perda de poder/controle da religião e; a segunda, como o nível jurídico oficial que é expressa (em seus casos mais radicais como o francês) pela separação total entre igreja e Estado. Mas o que seria hoje esse campo religioso a que estão limitadas as religiões? Para responder a essa pergunta é preciso poder identificar os processos de formação dos campos religiosos. Pierre Sanchis (SANCHIS 1995), em um de seus estudos, faz uma indagação interessante. “O campo religioso será ainda hoje o campo das religiões?”. A pergunta que intitula o artigo leva a um exercício de
análise de como compreender um campo religioso. Sanchis afirma que para a compreensão deste é preciso conhecer e analisar seu processo de formação, seu passado. As raízes ajudam a explicar o campo, mas não são uma resposta dada para todos os desdobramentos possíveis. Entretanto, o processo de sociogênese - a forma como as diferentes culturas e religiosidades interagem - ajuda também, e muito, a explicar os processos pelos quais determinado campo passa ao longo do tempo. Nesse sentido, o estudo da história se torna imprescindível, no nosso caso, para compreender e analisar os meios pelos quais religião e Estado se relacionam no cotidiano. De certa forma as instituições religiosas atingem o meio político e administrativo de uma sociedade através das crenças que propagam, pois um indivíduo que professa determinadas crenças irá atuar de acordo com as mesmas em sua vida pública. Sendo assim, de alguma forma o poder de decisão está ligado às mentalidades e seus processos de formação e ideias. Mesmo que a manifestação religiosa seja relegada ao ambiente privado, as ideologias e dogmas que pautam a vida dos indivíduos repercutem de certa forma no âmbito público de suas vidas. É preciso então compreender que há processos de regulação dessas relações. Processos estes que não seguem à risca os tipos ideais de Estado laico e Estado religioso 1.
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Phillip Portier identifica diversos tipos de Estado e suas relações com o religioso. Há o estado que possui uma religião oficial, entretanto ainda permite a liberdade religiosa; há o Estado que se propõe neutro e a ceita a pluralidade religiosa; há o Estado religioso, governado pela religião. Para mais informações ver PORTIER 2012.
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Paula Montero (2013) identifica que em geral, os regimes políticos que tiveram origem no paradigma da laicidade (a grande maioria dos Estados modernos) sofrem de uma incapacidade em lidar com a relação da Religião com a esfera pública. O fato de o mundo laico girar em função dos indivíduos e seus direitos criou a necessidade de formas de regulação das relações entre igreja(s) e Estado, é o que afirma Philippe Portier (2012). De acordo com o autor, as formas de regulação dessas relações são variáveis e em muito dependem da trajetória do processo de formação de cada nação, ideia essa corroborada por Montero (2013). Portier elenca cinco fatores determinantes dentro dessas trajetórias para o estabelecimento dos modelos de regulação; a) a proximidade da relação com Roma; b) a orientação dos intelectuais envolvidos no processo; c) a duração do processo de formação do Estado; d) o contato com as ideias capitalistas e; e) a diversificação da matriz religiosa. É através, segundo Portier, da conjugação desses fatores que surgem as variações dos modelos de regulação. Então baseando-nos em Montero (2013) e Portier (2012) podemos pensar, aqui, em dois exemplos opostos da relação (ou não relação) entre igreja e Estado promovidos pela modernidade sob circunstâncias distintas. Na França, onde o poder da Igreja Católica era tão forte a ponto de sobrepujar, por séculos, qualquer tentativa de emancipação social, conjugado a fatores sociais (diretamente relacionados ao controle temporal exercido pela Igreja) a certo momento insuportáveis é que a laicidade encontrou sua manifestação mais radical. Em contraposição ao radicalismo da laicidade francesa há o exemplo norte americano, onde o “tri unfo secular foi promovido pela própria religião” (MONTERO, 2013;18) o que tornou nesse país as fronteiras entre
religião e Estado um tanto quanto incertas, como observado por Tocqueville (2010) em sua obra A Democracia na América: Assim, pois, ao mesmo tempo que a lei permite ao povo americano tudo fazer, a religião impede-a de tudo conceber e proíbe-lhe tudo ousar. A religião, que entre os americanos nunca se mistura diretamente ao governo da sociedade, deve pois ser considerada com a primeira das suas instituições políticas, pois , se não lhes dá o gosto à liberdade, facilita-lhes singularmente o seu uso. (TOCQUEVILLE, 2010:215)
A priori estabeleceu-se que é necessário um olhar sobre a matriz religiosa e o processo de formação da nação para compreender de forma exitosa os meios pelos
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quais religião e espaço público interagem. No caso norte americano, sabemos que o processo político de formação da nação foi marcado pela revolução de independência, que enfrentou dificuldades no processo de unificação; pela Guerra Civil, que ameaçava, devido a crenças irreconciliáveis em relação à mão de obra escrava, a mesma unidade tão dificilmente contemplada e pelas crises internas provocadas pela atuação internacional. Ao longo dos primeiros séculos a nação americana teve seu meio religioso constituído com base no pluralismo. Diferenciando-se das perseguições religiosas que ocorriam na Europa, em seus países de origem, os primeiros colonos ajudaram a moldar uma nação plural, e esse é o espírito apresentado pelos pais fundadores no momento da promulgação da Constituição Americana 2. O processo de formação da nação, segundo vimos nas opiniões de Portier, Sanchis e Montero, é significativo para a compreensão da relação entre Religião e Estado e dos meios de regulação dessa relação, naturalmente ou não, desenvolvidos em cada experiência. Cecília Mariz (2011) utiliza a obra de David Martin (1978) para também apontar a diversidade dos processos através dos quais a religião se retira do meio público. A autora se vale do exemplo francês, contraposto ao norte americano para exemplificar a amplitude das possibilidades de relação (e regulação desta) entre Religião e Estado. Destaca-se aqui, mais uma vez o combate, presente no caso francês, entre Igreja Católica e Estado culminando na formação da República. No caso dos Estados Unidos “a república se constituiu simultaneamente à nação” (MARIZ, 2011:
264). Sendo assim, todo o processo de formação e transformação do cenário religioso/social nos Estados Unidos esteve fortemente presente no meio político durante o desenrolar dos séculos. Pode-se interpretar a busca desse tipo de autonomia do Estado como fruto de um “contrato” de igrejas. Não há aí uma oposição entre o estado e as igrejas,
mas uma aliança; desde a sua formação, esse Estado se diz autônomo em relação a todos os credos e igrejas por causa da pluralidade religiosa e de credos existentes na nação que ele representa. Portanto, destaca-se como que o fato de ter se constituído como país, por populações que fugiram de guerras religiosas, permitiu aos Estados Unidos esse tipo de experiência republicana que defende um Estado sem religião, acima das igrejas, mas em defesa delas. (MARIZ, 2011:264/265)
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Para mais informações acessar: https://www.whitehouse.gov/1600/constitution
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Mariz (2011) nos lembra de que o estado norte americano é baseado na ideia da liberdade religiosa, ou seja, na convivência pacífica e tolerante entre diversas religiões. Ora essa afirmação é um claro exemplo de que o processo de formação da nação e sua matriz religiosa estão mesmo diretamente relacionados. Mesmo tendo maioria protestante, os Estados Unidos receberam imigrantes de diversas denominações religiosas cristãs, além de outras religiões; fazendo com que prevaleça na nação americana o espírito religioso, a religiosidade, mesmo no meio político. Essa manifestação do elemento religioso no meio político é o que Robert Bellah (BELLAH,1991) chama de “religião civil”. Bellah define essa “religião civil” como a dimensão religiosa da esfera política,
que sendo diferente das instituições eclesiásticas, é o elemento religioso presente na formação do pensamento americano. Segundo Bellah, o discurso político norte americano é marcado, desde o momento da fundação da nação, por elementos religiosos constantes e pela citação de Deus. A utilização desses elementos pelo discurso político funciona como uma espécie de moldura a enquadrar e indicar os valores e compromissos (em geral cristãos) que estão profundamente enraizados na cultura e consequentemente na política norte americanos. O tom religioso presente no discurso americano é formado de elementos generalizantes, de orientação religiosa partilhada pela maioria dos americanos. Ao se evitar o uso de termos e elementos específicos de determinadas denominações ou religiões se exclui o protecionismo ou o favorecimento de uma ou outra instituição. Dessa forma o elemento religioso está presente e é profundamente respeitado e tido como necessário, entretanto ele é superior a qualquer instituição ou indivíduo. Considerações Finais:
O paradigma da laicidade sob o qual foram formados os estados nacionais da era moderna, somado ao crescente processo de secularização das sociedades, antes regidas pela religião, trouxe consigo a necessidade de meios de regulação da relação entre religião e espaço público. Os estados laicos, inicialmente careciam de tais elementos de regulação dessas relações e se viram desenvolvendo meios para administrá-las. Philippe Portier (2012) destaca as diferentes formas de regulação Anais do Congresso ANPTECRE, v. 05, 2015, p. ST0911
desenvolvidas pelos estados para regularem a interação entre a religião, o espaço público e o elemento religioso. Ao afirmar que o processo de formação da nação, o estado da questão religiosa, sua relação com o meio político no momento da fundação do Estado, a matriz religiosa e os processos de sociogênese, devem ser colocados em posição de destaque para o estudo da questão; Portier coloca na análise aprofundada da história a possibilidade de compreensão da relação de um Estado com o Sagrado. Mas e o caso brasileiro? De que forma é possível analisar a formação do Estado e relacioná-lo com o elemento religioso aqui presente? Com uma colonização baseada em uma administração católica tanto da vida pessoal e seus bens, como do Estado as colônias ibéricas desfrutaram de um processo de formação singular, onde a ética cristãcatólica obtinha o domínio não apenas dos bens simbólicos mas também do modelo administrativo empregado. Os países Ibéricos colonizavam para a igreja e sob a tutela da mesma. Herdeiro de costumes patrimonialistas, o Brasil ibero-americano, não passou por profundos processos revolucionários ao se tornar independente (JUNQUEIRA 2011); nem mesmo o cordão umbilical administrativo foi rompido. A própria família real portuguesa continuou a governar o a ex-colônia, em forma de império. Ao tornar-se República foi alterado o modelo de governo, de ditatorial e centralizado na figura do imperador, para o modelo republicano representativo, onde os governantes passaram a ser eleitos por voto popular. Muitas foram as mudanças que desde então sofreram nosso processo eleitoral e, as relações oficiais entre religião e Estado, há muito delimitadas e afastadas, não existiam mais -ao menos em teoria- no espaço público. Muito embora não haja uma religião oficial no Brasil, dizemos a todo o tempo que “todos são católicos, em algum nível”, pois o catolicismo está embutido nos noss os
costumes cotidianos e até mesmo no nosso calendário oficial, onde a maioria de nossos feriados é religiosa (católicos). Poderíamos chamar isso de uma espécie de manifestação de nossa religião civil? Apesar de instituições religiosas não possuírem voz ativa nas decisões do Estado brasileiro (sendo este um Estado laico), o que se vê é o crescimento das “bancadas religiosas” nos órgãos legislativo e executivo brasileiros.
Ao que parece, seguindo uma tendência da sociedade de ênfase na religiosidade e
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busca do sagrado baseada em uma retomada de valores, muitas vezes tradicionalistas - como exposto por Danièle Hervieu- Léger (2008) em sua obra O Peregrino e o Convertido – o ambiente político brasileiro tem, de fato, experimentado um crescimento
dessa interferência aberta da religião, da defesa de agendas pautadas, delineadas e eleitas por éticas religiosas e interesses diretamente relacionados à determinadas denominações. Essas agendas se mostram por vezes excludentes e incapazes de aceitar as diferenças e, demonstram grande desejo em impor sua ética e seus costumes. O que se faz necessário perguntar, frente aos exemplos vistos acima é: Seria esse um cenário de deslaicização? Ou seria a manifestação da laicidade a possibilitadora dessa expressão de grupos, antes sem voz, no espaço público? Referenciais
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