Compendio-de-Teologia-Apologetica-V2-Francois-Turretini.pdf

April 20, 2017 | Author: Alexandre Silva | Category: N/A
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Jogois2006 - Emanuence Digital - Mazinho Rodrigues

François Turretini Organizado por James T. Dennison, Jr.

Volume 2

Jogois2006 - Emanuence Digital - Mazinho Rodrigues

0 tesouro oculto da Teologia Reformada, agora publicado em três volumes Contrasta a Escritura com perspectivas teológicas conflitantes. P'

"Se o trabalho de um grande teólogo foi alguma vez injustamente negligenciado, trata-se dos volumes de Turretini sobre a doutrina cristã... Recomendo-o de coração a pregadores e estudiosos em toda parte." James Boicc

"Transparece no trabalho inteiro a superior compreensão da verdade revelada em suas variadas correlações." Roger Nicole

"Fico impressionado outra vez com a grandiosidade da realização de Turretini... Pode-se encontrar um profundo estilo pastoral e devocional... ensinamento maravilhosamente edificante." John Frmne

François Turretini (1623-1687), professor de teologia, nasceu e morreu em Genebra. Educado em Genebra, Leiden, Utrecht, Paris, Saumur, Montauban e Nimes, conquistou respeito ainda em vida e foi honrado posteriormente. Dois séculos depois, Charles Hodge, do Princeton Theological Seminary, adotou no seu curso de Teologia Sistemática esse Compêndio, agora traduzido também para o português.

Jogois2006 - Emanuence Digital - Mazinho Rodrigues

Teologia Sistemática / Fé cristã /Apologética



(EDITORA CULTURfi CRISTÃ w w w .editoracufturacrista.com .br

Compêndio de Teologia Apologética d e F ra n ç o is T u rre tin i (V o lu m e 0 2 ) © 2 0 1 1 , E d ito ra C u ltu ra Institutes o f elenctic theology © 1994 (v o l. II) O rg . p o r Ja m e s

C ristã . T ítu lo o rig in a l e m in g lê s

T. D e n n is o n , Jr. T ra d u z id o e p u b lic a d o c o m p e rm is s ã o d a P & R P u b lis h in g , 1102 M a rb le R o a d , P h illip s b u rg , N e w Je rs e y , 0 8 8 6 5 , U S A . T o d o s o s d ir e ito s sã o re se rv a d o s . 1» e d iç ã o 2011 —3 .0 0 0 e x e m p la re s C onselho E d ito rial Adào Carlos do Nascim ento Ageu Cirilo de M agalhães Jr. Cláudio Marra ( Presidente) Fabiano de A lm eida Oliveira Francisco Solano Portela Neto Heber Carlos de Cam pos Jr. Jôer Corrêa Batista Jailto U m a M auro Fernando M eister Tarcizio José dc Freitas Carvalho Valdeci da Silva Santos P ro d u ç ão E d ito rial

Tradução Edições Paracletos

Revisão O dayr Olivetii Vagner Barbosa W endell Lessa Paulo Arantes

Editoração Eline Alves Martins

Capa Arte Editorial T958c

Turretini, François Com pêndio de teologia apologética: volum e 2 / François Turretini; tradução de Edições Paracletos . _ São Paulo: Cultura Cristã, 2011 864 p.: 16X23 cm Tradução de Institutes o f Elenctic Theology ISBN 978-85-7622-350-4 1. Apologética 2. Fé Cristã 3. Teologia sistem ática

S

6DITORR CUlTURfi CRISTÃ Rua M iguel Teles Júnior, 394 - C am buci 0 1 5 4 0 -0 4 0 - São Paulo - SP - Brasil Fone (11 ) 3 2 0 7 -7 0 9 9 - Fax (11 ) 3 2 0 9 -1 2 5 5 w w w .editoraculturacrista.com .br - ce p @ c e p .o rg .b r

0800-0141963

Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas Editor: Cláudio Antônio Batista Marra

I. Título 230.044 CDD

Jogois2006 - Emanuence Digital - Mazinho Rodrigues

S u m á r io Lista d e A brev iaturas

D P ergunta

1.

é c im o

15

P r im e ir o T

ó p ic o : A

L

ei d e

D

eus

Se há u m a lei n atural, e co m o ela difere da lei m oral. A firm am o s o prim eiro; d istin g u im o s o segundo.

17

A N A T U R E ZA DA LEI M O R A L II.

O s p receito s d o decálo g o são de d ireito natural e in dispensável? Sim .

24

A PE R F E IÇ Ã O DA LEI M O R A L III.

A lei m oral é u m a regra de vida e m oral tão perfeita qu e n ada se pode acrescen­ tar a ela. ou d ev e se r corrig id a para o verd ad eiro c u lto de D eus? O u C risto a cu m p riu n ão só com o im perfeita, m as tam bém a corrigiu co m o con trária às su as d o u trin as? A firm am o s o p rim e iro ponto; n eg am o s o seg u n d o contra os so cin ian o s, an abatistas. rem o n stran tcs e papistas.

38

IV.

E po ssív el acrescen tar alg o à lei m oral á gu isa de co n selh o ? N egam o-lo contra o s pap istas.

49

A D IV IS Ã O D O S P R E C E IT O S DO D E C Á L O G O V.

S âo co rre ta m e n te a trib u íd o s q u atro p receito s à prim eira tábua e seis à segun­ d a? Isso afirm am os.

54

A S R E G R A S D E E X P L IC A Ç Ã O E DE O B S E R V Â N C IA D O D E C Á L O G O VI.

Q u ais reg ras dev em ser o b serv ad as na ex p licação e na o b serv ân cia dos p recei­ to s do decálo g o ? -

56

O P R IM E IR O M A N D A M E N T O VII.

S om ente D eus deve ser adorado e invocado? O u é lícito invocar e religiosam en­ te cu ltu ar o s san tos falecidos? A firm am os o prim eiro ponto e neg am o s o segun­ d o co n tra o s papistas.

60

O C U L T O À S R E L ÍQ U IA S VIII.

O s co rp o s d o s san to s e as relíq u ias devem ser ado rad o s co m c u lto relig io so ? N eg am o -lo co n tra os papistas.

72

O S E G U N D O M A N D A M E N T O -O C U LTO À S IM A G E N S IX.

E lícito cu ltu ar religiosam ente as im agens de D eus. da S antíssim a T rindade, dc C risto , d a v irg em e d o s d em ais santos? N egam os.

77

X.

Se é p ro ib id o , p elo segundo m an d am en to , n ão só o culto, m as tam bém a fabri­ cação e o uso de im agens relig io sas em lugares sagrados. A firm am o s isso co n ­ tra o s lu teranos.

90

O T E R C E IR O M A N D A M E N T O XI.

Se to d o ju ra m e n to obriga dc tal form a a co n sciên cia a p onto de serm o s obriga­ d o s a cu m p ri-lo s por um a necessid ad e inevitável. D istinguim os.

95

XII.

Se é lícito u sar n os ju ra m e n to s subterfúgios am bíguos e reservas m entais. N e­ g am o s isso co n tra os p apistas, especialm ente os jesu ítas.

99

O QUA RTO M A N D A M EN TO XIII.

Se a prim eira in stituição do sábado no quarto m andam ento; e se o m an d am en ­ to em parte é m oral e. em parte, cerim onial. N egam os o prim eiro ponto; afirm a­ m o s o segundo.

107

O D IA D O SE N H O R XIV.

Se a in stitu ição do dia do S en h o r é div in a ou hum ana; se é de o bservância necessária e p erpetua, ou livre e m utável. A firm am os o prim eiro p onto e nega­ m os o seg u n d o (q u an to a am bas as partes).

124

AS FESTAS XV.

Se perten ce â fé no N ovo T estam ento qu e além do d ia do S en h o r há outros dias d e festas p ro p riam en te assim ch am ad o s, cu ja celebração é p e r se necessária e em razão d o m istério, nâo apenas em razão da ordem ou ad m in istração ec le ­ siástica. N eg am os isso co n tra os papistas.

134

O Q U IN T O M A N D A M E N T O XVI.

O s filhos podem esquivar-se d o p o d er de seus pais e casar-se sem seu c o n sen ­ tim en to ? N egam os isso co n tra os papistas.

139

O SE X T O M A N D A M E N T O X V II.

O s direito s d e guerra e punição estão contidos neste m andam ento? O s suicídios (autocheiria) e os d u elo s são p roibidos? N eg am o s o prim eiro ponto; afirm a­ m o s o segundo.

147

O S É T IM O M A N D A M E N T O X V III.

O que é pro ib id o e o q u e é o rdenado pelo p receito concernente a não co m eter adultério?

157

O OITA V O M A N D A M E N T O XIX.

O q u e é p ro ib id o e orden ad o pelo preceito concernente a não furtar? A usura de todas as esp écies está incluída nele? N egam os isso.

161

O NONO M ANDAM ENTO XX.

Se u m a m entira, sob q u alq u er pretexto, pode torn ar-se virtuosa e lícita. N eg a­ m o s isso co n tra os socinianos.

168

O D É C IM O M A N D A M E N T O X X I.

Q u e co n cu p iscência é p roibida pelo d écim o preceito ? O s im pulsos incipien­ tes são pecam in o so s? R espondem os afirm ativam ente.

174

O U S O DA LEI X X II.

Q u ais e q u an to s são os usos da lei m oral segundo os vários estad o s do h o ­ m em ? E la pode o b rig ar à o b ed iên cia e ao castigo ao m esm o tem po? F azem os d istin çõ es.

178

A D E S O B R IG A Ç Ã O D A LEI M O R A L X X III.

Sc a lei m oral é anulada inteiram ente sob o N ovo T estam ento. O u se, em certo aspecto, ela ainda pertence aos cristãos. N egam os a prim eira hipótese; afirm a­ m o s a segunda contra os antinom ianos.

183

9 A LEI C E R IM O N IA L Q u ais eram o fim e o u so da lei cerim onial sob o A ntigo T estam ento?

188

A R E V O G A Ç Ã O DA L EI C E R IM O N IA L A lei cerim o n ial foi rev o g ad a sob o N ovo T estam ento? Q u an d o e com o?

202

Se a lei ju d icial foi revogada so b o N ovo Testam ento. F azem os distinções.

211

D

é c im o

D

upla

E

S

egundo

T

ó p ic o : O

c o n o m ia n o

A

P

acto da

n t ig o e n o

A o rig em e o significado d as palavras evangelium u sad as aqui.

N

G

ovo

T

raça e sua esta m en to

bèrit, diathêkès, foedits, epangelias e 215

A N A T U R E Z A D O PA CTO D A G R A Ç A Q u ais foram as partes co n tratan tes; quem é o m ediador; quais são as cláusulas do p acto - tanto da p arte d e D eus com o do hom em ?

220

O p acto d a graça é co n d icio n al? Q u ais são suas condições?

233

C o m o os pacto s d as obras e da graça co n co rd am e d iferem entre si?

239

A U N ID A D E D O PA CTO DA G R A Ç A O pacto d a g raça cra um e o m esm o, qu an to à substância, sob cad a d ispensação ? A firm am o s isso contra os socinianos. anabatistas e rem onstrantcs.

241

A E X T E N S Ã O D O PA CTO DA G R A Ç A O p acto d a graça foi sem pre u niversal, seja quanto à preserv ação ou à ac e ita ­ ção ? N eg am o s isso.

256

A D U P L A E C O N O M IA D O PA CTO DA G R A Ç A P or que D eus qu is ad m in istrar o ú nico pacto da graça de diferen tes form as? D e q u an tas form as ele foi ad m in istrad o ? E qual sua econom ia?

269

A D IF E R E N Ç A E N T R E O A N T IG O E O N O V O PACTO C o m o o antig o e o novo pacto d iferem entre si: se essen cialm en te (q u an to à su b stân cia d a d o utrina) ou acid en talm en te (q u an to ao m odo da dispensação). F azem o s distinção.

289

O F IA D O R D O PA CTO DA G R A Ç A Se C risto , sob o A ntigo T estam ento, tinha só a relação de um fiador que propi­ cia seg u ran ça o u tam bém de um fiador q u e faz prom essa. N eg am o s a prim eira hipótese; afirm am o s a segunda.

297

O E ST A D O D O S PAIS S O B O A N T IG O T E S T A M E N T O Se é p o ssível d iz e r q u e os pais, sob o A ntigo T estam ento, estavam ainda sob a ira de D eus e a m aldição da lei, e se perm aneciam sob a cu lp a do p ecad o até a m o rte d e C risto ; e se n ão foi feita um a aphesin ou um a plena e propriam ente ch am ad a rem issão de pecados, m as apenas um paresin. F azem o s distinções.

304

O L IM B O D O S PAIS Se as alm as do s pais do A ntigo T estam ento foram im ediatam ente receb id as no céu ap ó s a m o rte ou se foram lançadas no lim bo. A firm am os a p rim eira hipóte­ se; n eg am o s a seg u n d a contra os papistas.

316

XII.

Se o p acto d a lei, feito p o r m eio de M oisés com o p o v o de Israel no M onte Sinai, d e certo m odo era um terceiro pacto, d istin to em espécie do pacto da n atu reza e d o p acto da graça. N eg am o s isso.

D P ergunta

1. II.

é c im o

T

e r c e ir o

T

ó p ic o : A

P

esso a e o

E

stado de

C

r is t o

O M essias p ro m etid o já veio? A firm am o s contra os ju d eu s.

331

Jesu s d e N azaré é o verdadeiro M essias? A firm am o s isso co n tra os ju d eu s.

350

A N E C E SS ID A D E DA E N C A R N A Ç Ã O III.

E ra necessário que o Filho de D eus fosse encarnado? A firm am os.

364

IV.

Se so m en te a seg u n d a pessoa da T rindade se encarn o u , e p o r quê.

370

A N A T U R E Z A A S S U M ID A V.

O L ogos assu m iu a natureza hum ana com o a nossa em to d o s os asp ecto s (com exceção d o pecado), e sua carne to m ad a da su b stân cia da b en d ita virgem , ou ela desceu d o céu? A firm am os a prim eira h ipótese e neg am o s a segunda contra o s anabatistas.

373

A V E R A C ID A D E DA E N C A R N A Ç Ã O E DA U N IÃ O H IP O S T Á T IC A VI.

O Filho d e D eus assu m iu a natureza h um ana na unidade de sua pessoa? A fir­ m am o s isso co n tra os socinianos.

378

VII.

A união hip o stática das duas natu rezas cm C risto era de tal natureza que nem a p esso a é d iv id id a nem as natu rezas con fu n d id as? A firm am os esta tese contra os n esto rian o s e eutiquianos.

386

A C O M U N IC A Ç Ã O D A S P R O P R IE D A D E S V III. C ertas p ro p ried ad es da natureza div in a foram form alm ente co m u n icad as à natureza hum ana de C risto pela união pessoal? N egam os isso contra os luteranos.

391

O D U P L O EST A D O DE C R IS T O IX.

C risto, o M ediador, estava o b rig ad o a ex ercer seu o fício sob um d uplo estado? Isso afirm am os.

403

O P R IN C ÍP IO DA ERA C R IS T Ã X.

E m que an o , m ês e dia se deu o nascim ento de C risto?

40 6

A C O N C E P Ç Ã O E A N A T IV ID A D E DE C R IS T O XI.

C o m o C risto foi concebido do E spirito S anto e n ascido da b en d ita virgem ?

412

A S G R A Ç A S E O S D O N S O U T O R G A D O S A C R IS T O XII.

Q u ais foram as graças o utorgadas à natureza h um ana de C risto? E ele tinha fé e esp eran ça? Isso afirm am os. O C O N H E C IM E N T O DA A L M A D E C R IS T O

XIII.

D esde su a própria criação, a alm a de C risto era tão ch eia de co n h ecim en to que não p o d ia se r ignorante nem precisav a ap ren d er algo? N eg am o s isso contra os p apistas.

XIV.

C risto so freu p o r nós as punições co rp o rais som ente, no corpo ou na alm a, p orém só q u an to às partes inferiores e sen sív eis? O u de fato em si, tam bém su p o rto u , p ro p riam ente, os castigos esp iritu ais e infernais do p ecad o (na parte

O S SO F R IM E N T O S D E C R IS T O

420

11 su p erio r, b em co m o na in ferior) pesso alm en te c sentindo a ira d iv in a? N eg a­ m o s a p rim eira parle c afirm am o s a segunda contra os papistas.

427

A D E SC ID A DE C R IS T O A O IN F E R N O A alm a de C risto, após sua separação do corpo, foi trasladada im ediatam ente ao paraíso ? O u d esceu localm ente ao inferno? A firm am o s a prim eira hipótese; neg am o s a segunda co n tra os papistas c os luteranos.

432

E p o ssível que a d escida ao inferno se refira co rretam en te aos to rm en to s infer­ nais c a um estad o sobrem odo abjeto sob o d om ínio da m orte no sep u lcro ? Isso afirm am os.

438

A R E S S U R R E IÇ Ã O DE C R IS T O C risto ressuscitou por seu próprio poder? A firm am os isso contra os socinianos.

441

A A S C E N S Ã O DE C R IS T O C risto ascen d eu propriam ente por um m ovim ento local, subindo d as regiões inferiores ao su p rem o céu do s b em -aventurados, ou m etaforicam ente p o r d esa­ p arecim en to ? A firm am o s a prim eira h ipótese e neg am o s a se gunda, contra os luteranos.

443

C R IS T O A S S K N T A D O À D E S T R A DE D E U S O q u e é C risto estar assen tad o à destra de D eus? D e aco rd o co m q u e natureza isto se aplica a C risto c pertence à relação da situação? Isso negam os.

D

é c im o

O O

Q

f íc io

uarto

M

T

446

ó p ic o :

e d ia n e ir o d e

C

r is t o

E m q u e sen tid o o título "M e d ia d o r” se aplica a C risto?

453

C risto é M e d iad o r cm co n fo rm id ad e com as d u as n aturezas? A firm am o s isso co n tra o s pap istas c co n tra Slancar.

457

C risto é o M e d iad o r do s anjos? Isso negam os.

464

A U N ID A D E D O M E D IA D O R C risto é nosso único M cd iad o rju n to a D eus? A firm am os isso contra os papistas.

465

O O F ÍC IO T R ÍP L IC E DE C R IS T O P or que C risto d eve su sten tar um oficio tríplice de M ed iador?

471

C risto foi arreb atado ao céu antes do inicio de seu m in istério público a fim de se r ali en sin ad o pelo Pai? N eg am o s isso contra os socinianos.

476

O O F ÍC IO P R O F É T IC O DE C R IS T O Em que co n siste o oficio pro fético de C risto , ou quais são suas partes e seus m odos?

478

O O F ÍC IO S A C E R D O T A L DE C R IS T O Sc C risto foi S acerdote propriam ente assim cham ado c com eçou seu sacerd ó ­ cio na terra. O u foi assim ch am ad o só figurativam ente, c ex erceu seu ofício no céu ap ó s sua ascensão, e não antes. A firm am o s a prim eira h ipótese c negam os a seg u n d a co n tra os socinianos.

486

S obre a natu reza c a un icid ad e do sacerd ó cio dc C risto e p o r qu e se afirm a que ele está cm co n fo rm id ad e com a ordem dc M clquiscdcque.

489

A N E C E S S ID A D E DE SA TISFA Ç Ã O X.

E ra necessário q u e C risto fizesse por nós satisfação à ju stiç a d iv in a? A firm a­ m o s isso co n tra os socinianos. A V E R A C ID A D E DA SATISFAÇÃO

XI.

C risto real e p ro p riam en te satisfez a ju stiç a d e D eus em n osso lugar? A firm a­ m o s isso contra os socinianos.

513

A P E R F E IÇ Ã O DA SA TISFA Ç Ã O XII.

A satisfação d e C risto foi tào p erfeita q u e nâo deix o u q u alq u er esp aço para satisfaçõ es h u m an as n esta vida. nem p ara o purgatório após esta vida? A firm a­ m os isso co n tra os rom anistas.

527

O A S S U N T O D A SA TISFA Ç Ã O XIII.

A satisfação d e C risto d eve restringir-se aos sofrim en tos e castigos que ele sup o rto u p o r n ó s? O u d ev e estender-se tam bém à o b ed iên cia ativa pela qual ele cu m p riu p erfeitam en te a lei ao longo de sua vida? N eg am o s a prim eira pro p o sição e afirm am os a segunda.

536

O O B JE T O DA SA TISFA Ç Ã O XIV.

C risto m o rreu em fav o r de cad a um e de todos os hom ens, un iv ersalm en te, ou so m en te p elos eleitos? N egam os a prim eira h ipótese e afirm am os a segunda.

548

A IN T E R C E S S Ã O DE C R IS T O XV.

581

P o r q u e e co m o C risto intercede po r nós? O R E IN O DE C R IS T O

XV I.

Se o rein o eco n ô m ico d e C risto é tem poral c terreno, ou espiritual e celestial. N eg am o s a prim eira h ipótese e afirm am os a seg u n d a co n tra os ju d eu s.

585

A E T E R N ID A D E D O R E IN O DE C R IS T O X V II.

O rein o m ed ian eiro de C risto co ntinuará para sem pre? Isso afirm am os.

590

A A D O R A Ç Ã O E O C U LTO D E V ID O S A C R IS T O C O M O M E D IA D O R XVIII.

C risto dev e ser adorado com o M ediador? F azem os distinção.

D é c im o Q u i n t o T ó p ic o : V o c a ç ã o P ergunta

I.

e

594



O q u e é vo cação c d e q u an to s tipos ela é? E m ais: co m o a vocação ex tern a se d ifere d a interna?

601

A V O C A ÇÃ O DOS RÉPROBOS II.

O s rép ro b o s, q u e participam da vocação ex terna, são cham ados com o d esíg ­ n io c a intenção, da p arte de D eus. para q u e se to m em particip an tes da sa lv a­ ção ? E, sen d o isto negado, segue-se q u e D eus nâo os trata com seriedade, m as h ip ó crita e falsam ente, p o dendo se ele acusado de algum a injustiça? N egam os am b o s os pontos. A G R A Ç A S U F IC IE N T E

III.

A g raça suficien te, su b jetiv a e interna é d ad a a todos e a cad a um ? N egam os isso co n tra o s ro m anistas. socinianos e arm inianos.

604

13 V O C A Ç Ã O E FIC A Z A vo cação eficaz é assim deno m in ad a com base no ev en to (o u na congruidade), o u na o p eração sobrenatural da pró p ria graça? N eg am o s a p rim e ira h ip ó ­ tese e afirm am o s a seg u n d a co n tra os rom anistas e os arm inianos.

620

Se no p rim eiro m o m ento da con v ersão o hom em é m eram en te passivo ou se sua v o n tad e co o pera, em alg u m a m edida, com a graça de D eus. A firm am o s a prim eira h ip ó tese e neg am o s a segunda co n tra todos os sinergistas.

650

Sc a g raça eficaz opera som ente m ediante certa persu asão m oral que o hom em p o d e receb er o u rejeitar. O u se ela opera m ediante um a persu asão invencível e o n ip o ten te à qual a vontade do hom em não pode resistir. N eg am o s a prim eira h ip ó tese e afirm am o s a segunda contra os rom anistas e os arm inianos.

655

SOBREA FÉ Em quantos aspectos se pode entender a fé e quantos tipos dela sào enum erados?

670

O S V Á R IO S ATOS DA FÉ JU ST 1FIC A D O R A Q u an to s ato s a fé ju stific a d o ra inclui em sua co n cep ção form al?

672

A fé é assen tim en to sem co n h ecim en to e pode ser m ais bem d efin id a com o ig n o rân cia d o que co m o co n h ecim en to ? N eg am o s isso contra os rom anistas.

676

Fé é co n fian ça? A firm am o s isso contra os rom anistas.

680

O O B JE T O DA FÉ Q ual é o o b jeto da fé, em geral, e o que é falso pode v ir so b ela? N egam o-lo.

684

S e o o b jeto p ró p rio e esp ecífico da fé ju stific a d o ra é a p ro m essa especial da m isericó rd ia em C risto. A firm am os isso co n tra os rom anistas.

689

Se a form a d a fé ju stific a d o ra é o a m o r ou a obediência ao s m an d am en to s de D eus. N eg am o s isso contra os rom anistas e os socinianos.

695

O S U JE IT O DA FÉ A s crian ças têm fé? F azem o s distinções.

699

A fé tem p o rária difere som ente em grau e cm duração, ou tam bém em gênero, d a fé ju stific a d o ra ? N eg am o s a prim eira hipótese e afirm am o s a se g u n d a co n ­ tra o s rem o n strantes.

704

A P E R SE V E R A N Ç A DA FÉ Se o cren te g en u íno pode m esm o total e finalm ente decair da fé. N egam os isso co n tra o s rom anistas, os socinianos. os rem onstrantes e outros que favorecem a cren ça na ap o stasia d o s santos.

711

A C E R T E Z A DA FÉ Se o cren te p o d e e d eve estar seg u ro de sua fé e ju stific a ç ã o p o r um a certeza d iv in a, c não m eram ente p o r um a certeza conjetural. A firm am o s isso co n tra os ro m an istas e o s rem onstrantes.

D

é c im o

S

exto

T

ó p ic o : A

737

J u st if ic a ç ã o

A p alav ra “ju stific a ç ã o ” é sem p re usada num sen tid o forense, nesta discussão, ou é tam b ém u sada num sentido m oral e fisico? A firm am o s a p rim e ira h ip ó te­ se; n eg am o s a segunda contra os rom anistas.

757

A cau sa im p u lsiva e m eritória (em virtude da qual o h o m em é ju stificad o no ju lg a m e n to d iv in o ) é a ju stiç a inerente infusa em nós ou as boas o b ras? N eg a­ m o s isso co n tra os rom anistas.

761

III.

A ju stiç a c o b ed iên cia dc C risto im putadas a nós. são a causa m eritó ria c o fundam ento da nossa ju stific a ç ã o diante dc D eus? A firm am os isso co n tra os ro m an istas c socinianos.

IV.

A ju stific a ç ã o consiste som ente na rem issão dc pecados? O u ela ab arca tam ­ bém a ad o ção e o direito à vida? N eg am o s a prim eira hipótese e afirm am o s a segunda.

784

A R E M IS S Ã O DE PEC A D O S V.

A rem issão de p ecados consiste cm um a rem oção absoluta deles? O u no perdão deles? E dep o is qu e a culpa é can celad a, é m antido certo castigo? O u ela é to talm ente can celada? N egam os a p rim eira questão; afirm am os a segunda co n ­ tra o s rom anistas.

788

AADOÇÃO VI.

796

O que é a ad o ção q u e nos é d ada na ju stificação ? A JU S T IF IC A Ç Ã O P R O V E N IE N T E DA FÉ

V II.

VIII.

A fé nos ju stific a propriam ente e po r si m esm a, ou ap en as relativa e instrum cn talm cn tc? N egam os a prim eira h ipótese c afirm am o s a segunda contra os so cin ian o s. o s rem onstrantes c os rom anistas.

799

Só a fé ju stific a ? A firm am os isso co n tra os rom anistas.

806

O T E M PO DA JU S T IF IC A Ç Ã O IX. X.

A ju stificação foi feita desde a eternidade, ou ela é feita no tem po? E um ato indiviso que o co rre im ediatam ente ou ao m esm o tem po?

815

A unidade, p erfeição c certeza da ju stificação .

819

D é c im o S é t im o T ó p ic o : A S a n t i f i c a ç ã o P ergunta

I.

e

as B oas O bras

O q u e é san tificação e com o e la se d istingue da ju stificação , em b o ra seja inseparável dela?

823

A P E R F E IÇ Ã O D A S A N T IF IC A Ç Ã O 11.

A san tificação é dc tal m odo p erfeita nesta vida q u e os cren tes podem cu m p rir a lei de form a ab so lu ta? N eg am o s isso contra os ro m an istas c os socinianos.

828

A N E C E S S ID A D E D A S B O A S O B R A S III.

A s boas o b ras são necessárias à salvação? Isso afirm am os.

IV.

O q u e se req u er para que um a obra seja realm en te b o a? A s o b ras d o s ju sto s são b o as? A firm am os.

838

A V E R A C ID A D E D A S B O A S O B R A S

O M É R IT O D A S O B R A S V.

E xiste um m érito dc co ngruidadc ou dc co n d ig n id ad e? A s boas obras m erecem a vid a etern a? N eg am o s isso contra os rom anistas.

842

L

is t a d e

A

b r e v ia t u r a s

ABREVIATURAS GERAIS * + AA ACW AJ

ANF BT CCSL CG

Cl CR CSCO Cochrane FC Hefele ICR

JW

Citação corrigida A citação não pode ser identificada ou localizada como citada por Turretini Josefo, Against Apion. Trad, por H. St. J. Thackeray. Cambridge: Harvard University Press, 1926. Ancient Christian Writers. Nova York: Newman Press, 1946-. Josefo, Antiquities o f the Jews. Trad, por H. St. J. Thackeray, R. Marcus e L. H. Feldman. Cambridge: Havard University Press, 1928-1931. Alexander Roberts e James Donaldson, orgs. Ante-Nicene Fathers. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1969-1973. I. Epstein, org., The Babylonian Talmud. Londres: Soncino Press, 1935-1952. ' Corpus Christianorum, Series Latina. Turnholt: Brepols, 1953-. Agostinho, City o f God. Trad, por John Gavigan. Nova York: Cima Publishing Co., 1947. Agostinho, Christian Instruction. Trad, por John J. Gavigan, Nova York: Cima Publishing Co., 1947. Corpus Reformatorum. Berlim: C.A. Schwetschke, 1834-. Corpus Scriptorum Christianorum Orientalium. Paris: Reipublicae, s.d. A. C. Cochrane, Reform ed Confessions o f the 16th Century. Fila­ délfia: Westminster Press, 1966. Fathers o f the Church. Washington, D.C.: Catholic University of America Press. Charles J. Hefele, A H istoiy o f the Councils o f the Church. 5 vols. Nova York: AMS Press, 1883/1972. João Calvino, Institutes o f the Christian Religion. 2 vols. Org. por John T. McNeill. Trad, por Ford L. Battles. Filadélfia: West­ minster Press, 1960. Josefo The Jewish War. Trad, por H. St. J. Thackeray. Cambridge University Press, 1926-1929.

LCC Lauchert Mansi NPNF1 NPNF2

PG PL ST Schaff Schroeder VD

John Baillie, John T. McNeill e Henry P. Van Dusen, orgs., L ibra­ ry o f Christian Classics. Filadélfia: Westminster Press, 1953-1966. Friedrich Lauchert, D ie Kanones der Wichtigsten Altkrchlichen Concilen. Frankfurt am Main: Minerva, 1896/1961. Giovan D. Mansi, Sacrorum Conciliorum. Paris: H. Welter, 1901­ 1927. Philip Schaff, org., Nicene andPost-N icene Fathers, First Series. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1956. Philip Schaff e Henry Wace, orgs, Nicene and Post-Nicene F a­ thers, Second Series. Grand Rapids: Wm. B. Eerdmans Publishing Co., 1952. Jacques Paul Migne, Patrologiae ... series Graeca. Paris: J.-P. Migne, 1857-1887. Jacques Paul Migne, Patrologiae ... series Latina. Paris: Benzinger Brothers, 1878. Tomás de Aquino, Summa Theologica. 3 vols. Nova York: Benzinger Brothers, 1947-1948. Philip Schaff, Creeds o f Christendom. 3 vols. Grand Rapids: Baker Book House, 1931. Canons an d Decrees o f the Council o f Trent. Trad, por Henry J. Schroeder. St. Louis: Herder, 1941. Robert Beilarmine, “De Controversiis: Prima Controvérsia Ge­ neralis - De Verbo Dei”, em O pera Omnia. Vol. 1. Neápolis: Josephum Giuliano, 1856.

A L P r im e ir a

ei de

D

eus

q u estão

Se há uma lei natural, e como ela difere da lei moral. Afirmamos oprimeiro ponto; distinguimos o segundo.

^ C °mo a doutrina concernente à lei de Deus (cuja discussão ora 'n'aam os com 0 favor de Deus) propriamente pertence ' " aos teólogos, assim ela tem um múltiplo uso na teologia. (1) Como diretriz da vida - como uma regra perfeita do direito de Deus sobre o homem e dos deveres do homem para com Deus. (2) Para o conhecimento do pecado - porque, como o pecado é ilegalidade (anom ia ), sua veracidade e sua hediondez não se verificam por nenhuma outra fonte senão pela lei (Rm 3.20). (3) Para preparação para a graça - sendo que, com base na declaração do peca­ do e miséria do homem, a necessidade da graça salvífica pode ser desvendada e um anseio por ela excitado em nós (em cujo sentido é chamada “mestreescola para Cristo”, G1 3.24). N ecessidade de discussão

^ Ora, a lei é chamada pelos hebreus tvrh (do verbo yrh), significando no hiphel “ensinar”, porque por meio deía to‘ dos são conscientes de seu dever. Os gregos a chamam no­ mos (de nemeirí), que denota, respectivamente, “governar” e “distribuir”, por­ que, segundo sua prescrição, os homens devem ser governados e o que é próprio de cada um lhe é dado. Os latinos ou a derivam de legendo (segundo Isidoro, Etymologiarum 2.10 [PL 82.130]), porque, como Cícero observa, geralmente ela é lida quando promulgada para que venha a ser conhecida de todos ou é exposta em placas públicas para ser lida (Laws 2*.5.11 [Loeb, 16:384,385]); ou porque legere é expresso por deligere, porque nela está contida uma escolha de coisas a serem feitas e evitadas; ou, finalmente, de ligando (como Tomás de Aquino, ST, I-II*, Q. 90, Art. 1, p. 993 e a maioria dos escolásticos depois dele afirmam), porque ela obriga e aperta os homens, por assim dizer, por cadeias. Pode ser em referência a isto que na Escritura “leis” são frequentemente cha­ madas “algemas” (SI 2.3; Jr 5.5). Etim olo ia do term o “le i”

Seu sentido eauívoco

Entretanto, ela é usada de diferentes formas na Escritura: amplamente, por toda a Palavra de Deus (SI 1.2; 19.7,8) - ora

’ por todos os livros do Antigo Testamento (Jo 10.34; I Co 14.21), ora somente pelos livros mosaicos - ou o Pentateuco como distinto dos Salmos e dos Profetas (Lc 24.44; Rm 3.21); ou estritam ente, pela dispensação mosaica em oposição à dispensação neotestamentária (Hb 7.12; Jo 1.17); ou pelo pacto

das obras exclusivamente, em contradistinçâo do pacto da graça (Rm 6.14); ou pela “norma das coisas a serem feitas e evitadas, as quais Deus prescreveu para criaturas racionais sob a sanção de recompensas e punições”. Ela deve ser exa­ minada particularmente neste sentido. ^ ra’ esta de ^ eus esta dividida em natural e positiva. Como o direito de Deus é duplo (um natural, fundamentado na em natural r . . •• natureza perfeitamente íusta e santa de Deus; a outra, positiva, € positiva . * * dependendo tão-somente da vontade de Deus na qual ele tam­ bém mostra sua própria liberdade), assim há uma lei positiva de Deus edifica­ da sobre o livre e positivo direito de Deus (com respeito ao qual as coisas são então boas porque Deus as ordena). Por isso Deus era livre ou para não dar tal lei ou para instituí-la de outra forma (tal como a lei relativa aos alimentos e à lei simbólica dada a Adão [Gn 2.16,17] e as leis cerimoniais do AT, nas quais não havia bondade moral ou mal p e r se, mas apenas a ordem divina). Há outra (natu­ ral) fundamentada no direito natural de Deus, com respeito ao qual as coisas são chamadas justas não apenas porque são ordenadas, mas são ordenadas porque eram justas e boas antecedentemente à ordem de Deus (estando fundamentadas na própria santidade e sabedoria de Deus). E tal é sua natureza que (sendo pres­ suposta a criação do homem) tinha de ser-lhe dada, visto que lhe prescreve deve­ res indispensáveis a serem efetuados por todos, sempre e em toda parte. ... , . , V. Não obstante, a lei natural é uma vez mais tomada de A lei natural e , ,, ’ . . . , . tom ada ou as ‘ormas: ou amP*a e impropriamente (visto que se es­ , , tende aos seres inanimados e igualmente aos animais, e am plam ente ou , . , , . r. . , / , nada mais denota senao o mui sabio governo da providenestntam ente. . , ^ _ .. . r , , . . . cia de Deus sobre as criaturas e a mui eficaz diretriz para E stabelecim ento _ , .. . , seus Neste sentido, o salmo 119.91 (onde se trata do da uestão ‘ * movimento dos céus e da estabilidade da terra) diz: “Con­ forme os teus juízos, assim tudo se mantém até hoje; porque ao teu dispor estão todas as coisas”. “E os estabeleceu para todo o sempre; fixou-lhes uma ordem que não passará” (SI 148.6). No segundo, ele está falando das obras da criação: por esta lei as plantas crescem, as feras geram e cada animal tem seus próprios desejos (hormas) e instintos espontâneos. Ou a lei natural é tomada estrita e propriamente pela regra prática de deveres morais aos quais os ho­ mens estão por natureza obrigados. Concernente a esta lei, inquire-se aqui se existe tal lei natural de Deus prevalecendo entre todos (como a regra de justiça e injustiça) antecedentemente às leis positivas dos homens ou se a justiça e a virtude dependem tão-somente da vontade do homem e emanam do consenso da sociedade humana e devem ser medidas pela própria utilidade de cada uma delas. Os ortodoxos afirmam a primeira proposição; os libertinos, a segunda. VI. Porque, justamente como desde a Antiguidade, Cameades e os cirenaicos (seguindo Aristipo)1negavam toda justiça natural, pretendendo que “nada D ivide se

,

.

1. Cam eades (214-129 a.C.), natural de Circne. Fundou a Academia Média com o reação ao dogmatismo das

é justo c vil por natureza, mas mediante a lei e o costume” (mêden ein aiphvsei dikaion ê aischron, alia nomõ kai ethei, [Diógenes] Laertius, Li ves ofEm inent Philosophers: Aristippus 2.93 [Loeb, 1:220,221]). Esta era também a opinião de Epicuro, a cuja referência Gassendi diz muitas coisas (“Philosophiae Epicuri Syntagma”, em Opuscula Philosophica [1658], 3:3-94). E assim, em nossos dias, há muitos que, trilhando os seus passos, dizem que a natureza não propicia nenhuma regra de certo e errado, mas que isso depende unicamente da livre determinação do homem, e deve ser medido segundo a vantagem de cada um (como o homem é, por natureza, livre de toda lei e não tem outra regra de certo e bom além da preservação de si próprio e a defesa de sua vida e de seus mem­ bros). Calvino testifica que este ímpio erro (com muitos outros) é mantido pelos libertinos (Contre le secte des Libertins, CR 35.144-248). Hobbes os aborda sobre este tema em seu livro Elementa philosophica de eive (1647). VII. Os ortodoxos, porém, usam termos bem diferentes. Afirmam que há uma lei natural, não oriunda de um contrato ou lei voluntária de sociedade, mas de uma obrigação divina impressa por Deus na consciência do homem cm sua própria criação, na qual se fundamenta a diferença entre certo e errado e que contém os princípios práticos da verdade imutável (tal como: “Deus deve ser cultuado”, “os pais devem ser honrados”, “devemos viver virtuosamente”, “a ninguém injurie”, “façamos aos outros o que queremos que eles nos façam”, e daí por diante). Além disso, tantos remanescentes e evidências desta lei ainda são deixados em nossa natureza (embora tenha sido de diferentes formas cor­ rompida e obscurecida pelo pecado) que não há mortal que não sinta sua força, quer mais quer menos. Ora, desejamos que esta lei seja denominada natural, não porque ela tenha sua origem na mera natureza (visto que ela depende de Deus, o supremo legislador), mas porque ela se toma conhecida pelas condições das criaturas e pela relação do homem com Deus, e o conhecimento dela está impresso na mente por natureza, não sendo adquirido pela tradição nem pela instrução. ^ ass'm a origem e o fundamento desta lei não de­ vem ser buscados (como fazem falsamente os judeus) nos “sete preceitos”, os quais, afirmam, foram dados a Adão e a Pe*os Ç113'8 tQda a posteridade estaria obrigada a: ^^^na0 a(*orar ídolos; (2) não blasfemar o nome de Deus; * (3) não cometer latrocínio; (4) evitar o incesto e as concupiscências imundas; (5) designar juizes e magistrados; (6) não derramar san­ gue; (7) não comer os membros de um animal vivo, ou carne com o sangue (o qual é sua vida). Além de serem fundados somente na tradição (o que não se

A orisem da lei natural não deve ser buscada nos preceitos noéticos

escolas vigentes e como arma para com bater os estóicos. Um dos seus mestres foi Diógenes. Os cirenaicos eram assim cham ados por seguirem a linha de Aristipo, o jovem (séc. 4 a .C ), que cra de Cirene. Para eles a virtude não tinha nenhum valor, com o tam pouco a lógica e a ciência fisica. Só valorizavam o conhecim ento obtido pelos sentidos (pela sensação). N ota de Odayr Olivetti.

pode dizer do direito natural), nem todos são simplesmente morais e de obser­ vância perpétua, mas alguns são cerimoniais e positivos (tais como aquele sobre não comer sangue); nem põem em relevo tudo o que pertence ao direito natural, embora dele se possa deduzir como conclusões de seus próprios princípios. Mas com base ^ as deve ser extraida da luz da própria natureza, fun­ no direito da damentada na natureza de Deus, o Criador (que por sua sannature-a tidade tem necessidade de prescrever a suas criaturas os de­ ” ’ veres fundamentados em tal direito), e na condição das pró­ prias criaturas racionais (que, em virtude de sua dependência necessária de Deus no gênero dos hábitos morais, não menos que no gênero do ser, são obri­ gados a realizar ou a evitar aquelas coisas que a sã razão e os ditames da cons­ ciência lhes impõem fazer ou evitar). De quantas maneiras o direito da nature-a pode ser usado

® direito da natureza, contudo, é aqui usado por nós não ampla e impropriamente (como pelos advogados para “aquilo que a natureza ensina todos os animais” [Corpus luris Civi^ Institutiones 1.2, p. 1]) como distinto da lei das nações e °lue tQdas as nações usam; e da lei civil, que cada estado ou comunidade tem determinado para si (porque, como a razão não pertence aos animais irracionais, assim tampouco são eles propriamente capazes de [discernir] o certo e o errado), mas estrita e propriamente quanto àquilo que só tem referência às criaturas racionais. Os advogados incluem-no sob a lei das nações. Ele é corretamente descrito pelas noções práticas comuns, ou à luz e pelos ditames da consciência (o que Deus grava por natureza em cada indivíduo, para distinguir entre virtude e vício, e conhecer as coisas a serem evitadas e as coisas a serem feitas). XI. Ora, dentre essas noções, algumas são primárias (a que chamamos prin­ cípios), outras secundárias (chamadas conclusões). Os princípios são aqueles que (sendo de si mesmos conhecidos e em tudo inamovíveis, fundamentados no bem comum), pelo auxílio da razão, geram conclusões de si mesmos. Estes são reduzidos ao fundamento do bem comum; são ou mais próximos, imediatos e (como dizem) pertencentes ao primeiro ditame da natureza (os quais são proxi­ mamente deduzidos dos princípios e prontamente entram no conhecimento); ou mediatos e mais remotos (os quais pela consequência mais remota e com mai­ or dificuldade são deduzidos dos princípios). Os primeiros não admitem ne­ nhuma variedade; os segundos admitem uma grande variedade nesta natureza corrompida. Apesar de que nestas conclusões esta lei foi de muitas formas corrompida depois do pecado, pela corrupção natural, pela educação errônea e pelos costumes viciosos (pelos quais os vícios e crimes mais infames às vezes recebem o nome de virtudes e obtêm louvor, o que as leis mais iníquas e os costumes morais mais depravados de certas nações claramente testificam); contudo, isto não impede que permaneça sempre a mesma entre todos, quanto aos seus princípios básicos e às conclusões imediatas daí deduzidas.

Muitos argumentos provam a existência dessa lei natura*- Primeiro, a voz da Escritura assevera que “os genti(1) com base n à os’ ^ue nao ^ *e'” ^ou se-Ía’ a *e' escr'ta Moisés), Escritura como os judeus, “procedem, por natureza, de conformida" de com a lei, servem eles de lei para si mesmos. Estes mos­ tram a norma da lei gravada em seu coração, testemunhando-lhes também a consciência e seus pensamentos, mutuamente acusando-se ou defendendo-se” (Rm 2.14,15).2E lemos que “aquilo que pode ser conhecido de Deus” (to griõston tou theou) se manifesta nos gentios “pois Deus se lhes manifestou” (Rm 1.19*).3 Mas como seria possível que a verdade se revelasse nos gentios (que, embora não possuam lei, contudo fazem as coisas contidas na lei; não por doutrina e instrução prévias, mas pela natureza; que são uma lei para si mesmos e portam a lei escrita em seus corações [da qual a consciência dá testemunho por aprova­ ção ou acusação de atos bons ou maus]), se isto dependesse da mera vontade do homem e não estivesse neles pela própria natureza e deveras impresso e fixado neles por Deus? Prova de aue há uma lei n a tu ra l •

Segundo, ° consenso das nações, entre as quais (mesmo os ma' s se*vaSens) prevalece alguma lei das nações primitivas, a *uz ^ua^ mesrno scm mestre descobriram que Deus deve ’ ser cultuado, os pais devem ser honrados, deve-se viver uma vida virtuosa e da qual, como de uma fonte, têm fluído tantas leis concernentes à equidade e à virtude promulgadas pelos legisladores pagãos, extraídas da própria natureza. E se entre algumas delas se encontram determinadas leis con­ trárias a esses princípios, foram recebidas com relutância e observadas por uns poucos, por fim anuladas por leis contrárias, e caíram em desuso. 2 Com base no consenso das na ões

Terceiro, a consciência de cada um preceituando o bem a ser Prat'cad° e o mal a ser evitado; e a qual, tanto pela observância ela nos exibe os princípios práticos, como igual­ ' mente regras universais das coisas a serem evitadas e omiti­ das. Assim, por meio da conscientização (syneidêsin), ela faz uma aplicação e um teste dessa regra. Daí surgirem estresses da consciência, a qual, à vista do pecado e do senso do juízo divino, estremece e atormenta o pecador como que por fúrias familiares e implacáveis, e noite e dia inflige castigos aos mais devas­ sos. Assim fala Cícero: “Os perversos são punidos, não tanto por juízos, mas pela angústia de consciência e pelo tormento do crime” (Laws* 1.14.40 [Loeb, 16:340,341]). Ora, de onde provêm esses chicotes e terríveis vingadores, senão da lei natural impressa no homem que sabe que esta é a sentença de Deus, que “são passíveis de morte os que tais cousas praticam” (Rm 1.32)? Daí, segundo Cícero, ela é chamada “a lei não-escrita, porém inerente, na qual somos não 3 Com base na consciência de cada um

2. N a passagem citada a NVI deixa clara a distinção entre a Lei e a lei natural. N ota de O dayr Olivetti. 3. E notável que o grego diz literalmente: “o que se conhece de Deus” ou “o que é conhecido de Deus” , o que deixa mais claro o falo de que não há desculpa para o homem. Nota de O dayr Olivetti.

ensinados, mas feitos, não instruídos por preceitos, mas imbuídos por nature­ za” (On B ehalf o f Milo 10 [Loeb, 16:16,17]). Por outros ela é intitulada empsychon dikaion (“o viver correto”) e agraphon theoit nomimon (“a lei de Deus não-escrita”). 4 Com base XV Quarto, a norma e o governo de Deus sobre o homem; no governo P°'s se a cr'atura como tal deve depender do Criador e deixarde Deus sobre se g°vcrnar Por elc fisicamente, é um monstruoso absurdo o homem (asvstaton) que a criatura racional, como tal, não deva estar sujeita a ele no gênero dos hábitos morais e que não se deixe governar por ele de maneira adequada à sua natureza (i.e., por meios morais) pelo estabelecimento de uma lei. Daí se segue que o homem teria sido criado por Deus independente (o que é absurdo) ou que ele tem uma lei natural impressa nele, em concordância com a qual pudesse ser governado por ele. 5 Com base em absurdos

XVI. Quinto, os vários absurdos pelos quais se insiste na opin'ao °Posta- P °'s’ ( ') se na(Ja é justo por natureza, mas so­ mente aquilo que pode ser feito para atender ao proveito hu­ mano, segue-se que os homens nascem para si mesmos e não para a glória de Deus, ou para o bem da sociedade (do quê há neles por natureza um ardente desejo), o que os próprios pagãos, dentre os mais sábios, reconhecem que não se pode dizer. (2) Todas as coisas seriam igualmente lícitas: tanto amar a Deus como odiá-lo; matar os pais ou honrá-los; a própria vontade de alguém lhe seria razão e lei, de modo que poderia fazer o que bem lhe aprouvesse (se isto não pavimentar a estrada do ateísmo, ninguém poderá prontamente entender). (3) Uma vez subtraídos este direito e este governo morais de Deus, todos os funda­ mentos do direito serão removidos; todas as leis humanas, que não podem ter fluído de nenhuma outra fonte, e então todo governo, honestidade e ordem na sociedade humana perecerão, e o mundo se converterá em mera confusão e vilania. XVII. Sexto, os testemunhos dos mais eminentes filósofos PaSaos’ Que bravamente se opuseram a essa ímpia opinião ^ta' s como Platao>Aristóteles e os estóicos). Inclusive Cí­ cero prova suficientemente este fato em seus livros sobre as leis. Ele demonstra por meio de vários e importantes argumentos “que nasce­ mos para a justiça, e que o direito não é estabelecido por opinião, mas por natureza” (Laws 1.10.28 [Loeb, 16:328,329]); que Sócrates severamente exe­ crou o homem que foi o primeiro a traçar uma distinção entre utilidade e natu­ reza, pois costumava queixar-se de que este erro era a fonte de todos os vícios humanos, visto que, se isto procedesse, toda a justiça e toda a piedade seriam varridas do mundo. “Pois se a natureza não ratificara lei”, diz ele, “então todas as virtudes poderiam perder seu domínio. Pois, qual a procedência da generosi­ dade, do patriotismo ou da fraternidade? Onde será possível existir o desejo de beneficiar nosso próximo ou a gratidão que reconhece a bondade? Pois todas

6 Com base nos testemunhos dos pagãos

essas virtudes procedem de nossa inclinação natural para amaro gênero humano. E esta é a verdadeira base da justiça, e sem esta não só a caridade mútua dos homens, mas os serviços religiosos prestados aos deuses, chegariam ao fim; pois estes são preservados, creio eu, mais pela empatia natural que subsiste entre os seres divinos e humanos do que por mero medo e pusilanimidade” (ibid., 1.15.43, pp. 344,345). Daí cm The Republic (3.22 [Loeb, 16:210,211]), como citado por Lactâncio, “A lei verdadeira”, diz ele, “é a razão reta que se conforma à natureza, ao universal, ao imutável, ao eterno, cujos mandamentos nos impelem ao dever, e cujas proibições nos restringem do mal” (Lactâncio, Divine ínstitutes 6.8 [FC 49:412; PL 6.660]). E em seguida: “Esta lei não pode ser contraditada por nenhuma outra lei, e não é passível nem de derrogação nem de ab-rogação. Nem o senado nem o povo podem nos dar qualquer dispensa da obediência a esta lei universal da justiça. Ela não é uma coisa em Roma e outra em Atenas; uma coisa hoje e outra amanhã; mas em todos os tempos e nações esta lei universal deve reinar perene, eterna e imutavelmente. Ela é a soberana senhora e imperatriz de todos os seres. Deus mesmo é seu autor, seu promulgador, seu executor. E aquele que não a obedece luta contra si mesmo e faz violência à própria natureza do homem” (ibid., pp. 412,413; PL 6.660.61). Fontes de XVIII. Com base na cauterização da consciência ( lTm 4.2) do soluções. perverso (“os quais, tendo-se tomado insensíveis [apêlgêkotes], se entregaram à dissolução para, com avidez, cometer toda sorte de impureza”, Ef 4.19) de fato é possível deduzir a supressão da lei natural quanto ao segundo ato ou exercício; porém, não sua extinção e destruição quan­ to ao primeiro ato ou princípio; também insensibilidade da consciência quanto ao dever, porém, não quanto à punição. XIX. Se entre os pagãos imperaram várias leis ímpias, repulsivas à lei natu­ ral (tais como aquelas que sancionam a idolatria, os sacrifícios humanos [anthrõpothysicm] e que permitem o latrocínio, o homicídio, o incesto), isso não prova que nenhuma luz da razão foi outorgada aos homens pela natureza, como infere impropriamente Selden ( De lure Naturali et Gentium 6,7 [1640], pp. 75-94). Antes, elas apenas provam que os homens, com seu tempo de lazer mal-empregado, abusaram perversamente da luz concedida e, porfiando e dili­ genciando com todas as suas forças para extingui-la, entregaram-se a uma mentalidade reprovável. XX. Embora várias noções práticas tenham sido obscurecidas pelo pecado e, por algum tempo, até mesmo obliteradas, não se segue que foram inteiramen­ te extintas ou que nunca de fato existiram. Pois o princípio mais comum (de que se deve fazer o bem e evitar o mal) é absolutamente inabalável, embora nas conclusões particulares e nas determinações dele os homens bons com fre­ quência podem errar, já que os vícios nos enganam sob a aparência e sombra de virtude. XXI. O que é natural de fato tem de ser universal e ser o mesmo quanto ao

fundamento e princípio, porém nem sempre quanto às coisas principiadas: como a razão e a inteligência de fato são naturais, porém de forma alguma existem da mesma maneira e grau (visto que algumas são mais penetrantes que outras). Caso se indague como esta lei natural concorda com a *e' mora' ou dela difere, a resposta é fácil. Ela concorda quanto à substância e com respeito aos princí’ pios, porém difere quanto aos acidentes e com respeito às conclusões. Os mesmos deveres (tanto para com Deus como para com nosso próximo) prescritos pela lei moral estão igualmente contidos na lei natural. A diferença é com respeito ao modo de enunciação. Na lei moral, esses deveres são clara, distinta e plenamente declarados; enquanto que na lei natural são obscura e imperfeitamente declarados, tanto porque muitas intimações foram perdidas e obliteradas pelo pecado, como porque foram corrompidas de modo variado pela vaidade e perversidade dos homens (Rm 1.20-22). Para não men­ cionar outras diferenças: que a lei natural foi gravada nos corações dos homens, e a moral, em tábuas de pedra; a primeira pertence a todos universalmente; a segunda, somente aos chamados pela Palavra; a primeira nada contém exceto moralidade, a segunda também contém certos cerimoniais mesclados com ela. XXI11. Daí deduzir-se facilmente a razão por que Deus quis evocar aquela lei dada por meio de Moisés, para entregá-la a seu povo viva voce, e a procla­ mou de uma maneira solene, fiando-a à escrita e compreendendo-a no decálogo. Pois, embora na natureza íntegra não haja necessidade de tal promulgação; contudo, (depois do pecado) tão profunda foi a cegueira da mente, tal a perver­ sidade da vontade e o distúrbio das afeições, que sobreviveram nos corações apenas resquícios desta lei (como quadros desgastados dos mesmos, os quais por isso mesmo devem ser retocados pela voz e pela mão de Deus como por um novo pincel). Daí haver motivos profundos para tal promulgação. (1) Para que a lei natural fosse confirmada mais e mais, para que os traços restantes não fossem gradualmente obliterados pela vaidade e perversidade dos homens ou para que não fossem considerados como suas opiniões indefinidas e duvidosas. (2) Para que ela fosse corrigida naquelas coisas em que estavam corrompidas pela queda. (3) Para que ela fosse suplementada naquelas coisas que estavam faltando nela e que foram obliteradas. (4) Para que a necessidade de um media­ dor fosse compreendida e forte anseio por ele fosse aceso mais vivamente a cada dia em virtude da fraqueza do homem e da lei na carne (Rm 3.20; 8.3; 10.4). (5) Para que o povo de Israel pudesse viver unido por esta lei numa república e separado de todas as demais nações (Dt 4.6,7; SI 147.19,20; Rm 9.4).

Com o a lei n atural difere da lei m oral dada p o r M oisés

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oral

O s preceitos do decálogo são de direito n a tu ra l e in d isp en sá velt S im .

I. Pode haver quatro indagações concernentes à lei moral. (1) Qual é sua natureza? (2) Quais são suas partes? (3) Qual é sua utilidade? (4) O que dizer

de sua ab-rogação? Em referência à sua natureza, há uma disputa acerca de sua imutabilidade e perfeição. Em referência às suas partes, há uma disputa acerca da divisão dos preceitos e seu sentido genuíno. Em referência à sua utilidade, há uma disputa acerca de seu uso absoluto ou relativo, quanto aos vários estados do homem (na natureza, no pecado e na graça). Em referência à sua ab-rogação, em que sentido se pode dizer que ela foi ab-rogada, e em que sentido não foi? Estabelecimento ^ A primeira pergunta sobre a natureza da lei moral se da questão refere à sua indispensabilidade. A guisa de clareza (1) deSe ela é de vemos estabelecer uma distinção de termos que ocorrem direito natural e am'úde neste argumento. Obrigação é o direito da lei soindisnensável *3re 0 *lonlem em v*rtude do qual o homem que está sob a ‘ * lei é obrigado a obedecer a ela. Dispensação é quando, em qualquer caso em que a lei realmente prevalece e obriga, a obrigação da lei é removida de algum homem em particular, permanecendo os demais sob a obri­ gação. Uma declaração ou interpretação da lei é quando se declara que a lei não obriga num caso particular. Irritação é quando uma lei é abolida antes que possa obrigar perfeitamente; ab-rogação é quando aquilo que é simplesmente abolido e removido já obrigou perfeitamente; derrogação é quando ela é em parte removida e em parte permanece. III. (2) Devemos distinguir entre preceitos simples (i.e., meramente morais) pertencentes ao direito natural e preceitos mistos (morais e cerimoniais, em parte do direito natural e em parte do direito positivo; como o quarto manda­ mento concernente ao sábado, o qual é moral quanto ao gênero do culto público; porém, cerimonial quanto à circunstância do tempo definido; e o quinto, que é moral quanto ao dever prescrito e a promessa de longevidade; porém, cerimoni­ al quanto à promessa apensa da terra de Canaã). O direito de ^ Devemos observar que o direito de Deus (no que concerdomínio e ne cr*a^uras) ®de domínio (que inclui o direito de possuir, f desapossar e usar as criaturas, como o senhor ou proprietário, go\erno. ^ capaz de usar e desfrutar sua própria propriedade como bem quiser); ou de governo (que propriamente se refere às criaturas racionais sobre as quais ele exerce governo como governante e legislador; a quem perten­ cem a legislação, o julgamento e a execução, tendo assim o poder de promulgar leis, de julgar em concordância com elas e de executar a sentença pronunciada). Distingue-se comumente este direito em natural e positivo: o primeiro, de acor­ do com o qual ele deve prescrever às criaturas racionais seus deveres (cujos opostos implicam uma contradição, porque não estão fundados simplesmente na vontade divina, mas na perfeição, eminência, santidade e retidão da natureza divina); o segundo, contudo, de acordo com o qual ele livremente, e por seu mero beneplácito, prescreve tais deveres quando ou não podia prescrevê-los, ou cujos opostos antecedentemente à notificação pública da vontade divina ele po­ deria ter querido e ordenado sem qualquer prejuízo à sua perfeição e santidade, e sem envolver embaraçosa contradição.

V. Portanto, todas as coisas que tenham tão estreita ligação com a natureza, perfeição, eminência e santidade de Deus (que ele não possa ordenar seus opos­ tos sem prejudicar sua natureza e que envolvam contradição quando ordenadas) pertencem àquele direito natural. É certo que Deus não pode negar-se ou fazer ou ordenar algo contrário à sua própria santidade e perfeição. Assim Deus não pode ordenar que ele mesmo se odeie, blasfeme e minta; ou alivie o homem da dependência e obediência a ele, porque isso seria dizer que Deus não é Deus (i.e., a causa primeira e Senhor absoluto). Estas coisas são o que Bradwardine chama “antecedentes razoáveis” (D e Causa D ei Contra Pelagium 1.18 [ 1618], pp. 220-224), as quais são naturalmente antecedentes à vontade divina. Não obstante, todas aquelas coisas das quais não se pode dizer que Deus não estava, por necessidade da natureza, obrigado à outra parte da contradição (ou nas quais sabemos que Deus pode fazer ou tem realmente feito alguma mudança na obrigação) pertencem ao direito positivo. Tal foi a lei simbólica dada a Adão e as leis cerimoniais do Antigo Testamento (que dependiam do livre-arbítrio de Deus). Aqui também geralmente se atribui a permissão do pecado. VI. Além do direito divino natural não-criado (chamado primário) fundado imediatamente na própria natureza e santidade de Deus (cujo contrário ele não poderia querer nem ordenar sem negar a si mesmo), admite-se outro (criado e secundário), fundado na natureza das coisas (segundo a constituição estabeleci­ da por Deus e a adequabilidade ou aptidão mútua das coisas entre si). Sobre a hipótese da ordem instituída por Deus (segundo a qual ele quis que a natureza das coisas fosse assim), ele é necessário. Não obstante, não pode ser considera­ do como da mesma necessidade que o primeiro, nem que os deveres que fluem dele tenham um grau igual de obrigação. Pois o primeiro é imutavelmente abso­ luto; nem há algum caso em que Deus pode relaxá-lo, porque assim ele parece­ ria negar sua própria natureza, na qual seu direito se baseia. Daí ele nunca poderia ordenar ou aprovar o ódio a si próprio, a idolatria, o perjúrio e a falsi­ dade. O segundo, porém (embora contenha a regra natural da retidão, porque pressupõe certo estado das coisas), poderia em certos casos (sendo alteradas as circunstâncias das coisas e das pessoas) ser mudado, porém só pela autoridade de quem o estabeleceu. Por exemplo, o homicídio e o latrocínio (proibidos no sexto e no oitavo mandamentos) poderiam tomar-se lícitos, caso mudasse algu­ ma circunstância - por exemplo, sendo dada uma ordem divina ou da autorida­ de pública. Neste aspecto, tal mudança pode se referir ao direito positivo; não deveras absoluta e simplesmente como tal, e meramente livre (o que não tem nenhum fundamento exceto unicamente na vontade divina), mas relativamente, visto que (embora baseada na ordem das coisas e natureza criadas), contudo, se pode admitir uma mudança em concordância com a sabedoria do legislador que estabeleceu essa ordem. VII. Desta distinção do direito divino flui a distinção dos preceitos (a ser mantida aqui). Pois aquelas coisas que têm tão estreita ligação com a natureza

de Deus que (uma vez pressuposta a criatura racional e governável) ele não pode senão obrigar-se a fazê-las (tal como que ele deve sujeitar-se a Deus e revercnciá-lo; que ele tenha para si somente um Deus; e assim por diante), sem controvérsia pertencem ao direito natural. Mas aquelas que fluem do benepláci­ to de Deus, e as quais ele era perfeitamente livre para estabelecer ou não, devem ser atribuídas ao direito positivo. Com respeito a isto, quase todos estão de acordo. Mas, concernente à distinção particular e à enumeração destas e daque­ las, nem todos estão igualmente de acordo. Alguns atribuem ao direito natural aquilo que outros pensam pertencer ao direito positivo. VIII. (4) Imutabilidade c indispensabilidade podem ser compreendidas de duas formas: ou absoluta e simplesmente com respeito a Deus, bem como a nós, ou compa­ rativa e relativamente com respeito a nós e não a Deus. Algumas são absolutamente indispensáveis a Deus e a nós; outras, contudo, relativamente com respeito a nós, porque, visto que não somos senhores nem juizes, mas súditos e acusados (hypodikoi), não podemos acrescentar nem tirar nada da lei. Não obstante, este não é o caso com respeito a Deus, o qual, como supremo Senhor e legislador, poderia em certos casos dispensar alguma lei dada por ele sem pecar. IX. A questão, pois, volta a isto - se os preceitos, não da lei cerimonial e forense (os quais, evidentemente, são do direito mutável e positivo), mas da lei moral (não segundo os apêndices, mas segundo a substância) são do direito natural, seja primário ou secundário (não meramente positivo) e assim são ne­ cessários (não apenas hipoteticamente da sanção da vontade divina, mas abso­ lutamente da parte da coisa) e impossíveis de ser dispensados, não só pelos homens, mas também por Deus. Indispensabilidade com respeito a Deus e a nós

Em referência a esta questão, há três opiniões mais importantes: duas extremadas, asseverando a dispensabilidade ou a indispensabilidade dos mandamentos; a terceira (um meio-termo) mantendo que são em parte dispensáveis e em parte não. A primeira afirma que a lei moral em todos os seus preceitos é dispen­ sável; tem por fundamento somente o direito positivo, o qual depende do livrearbítrio de Deus. Esta lei, pois, ele pode mudar a seu bel-prazer. Esta opinião é mantida: (1) por muitos dos escolásticos (Occam, em 2 q. 19+; Gerson, “De Vita Spirituali Animae”, 1 em O pera Omnia [repr. 1987], 3:5-16; Pedro de Ailly, em I .q. 14+; Almayno, Acutissim i clarissim i... M oralia, Pt. 3.15 [ 1525], pp. 103,104 e seus seguidores, impelidos especialmente por um desejo incontido de eliminar o segundo preceito do decálogo e em prol de seu papa, reivindi­ cam o poder de dispensar os preceitos de Deus); (2) pelos socinianos, que insis­ tem na dispensabilidade principalmente por esta razão - para que possam pro­ var a imperfeição da lei mosaica e a necessidade de sua correção. Estes se unem àqueles de nosso lado que afirmam que a bondade moral e a perversidade das Três opiniões sohre a n atu re'a da lei

coisas fluem não de outra fonte senão do livre-arbítrio de Deus; de modo que as coisas são boas e justas porque são ordenadas, não ordenadas porque eram antecipadamente justas. E assim não há nada que impeça que seus mandamen­ tos lhes sejam contrários caso ele o queira. A segunda e mediana opinião afirma que três preceitos da primeira tábua são indispensáveis; o quarto, não obstante, é em parte dispensável; e que todos os demais da segunda tábua são dispensá­ veis (como Scotus em Gabriel [Biel], os quais por isso eliminam aqueles precei­ tos da lei natural estritamente assim chamados). A esses alguns de nossos ho­ mens se aproximam, os quais afirmam que certos preceitos morais do decálogo que fluem absolutamente da natureza de Deus são absolutamente indispensá­ veis (tais como o primeiro, o segundo, o terceiro, o sétimo e o nono), porém os demais, dependendo do livre-arbítrio de Deus (como o quarto, em parte, e o quinto, o sexto, o oitavo e o décimo), embora fixos e indispensáveis em referên­ cia a nós, contudo são dispensáveis no tocante a Deus (que pode, por certas razões, ordenar o contrário, sem contudo fazer algo contrário à sua própria natureza). A terceira é a opinião dos que afirmam que a lei moral quanto a todos os preceitos é simplesmente indispensável, porque contém a razão intrínseca da justiça e do dever; não como procedente da lei, mas como fundada na natureza de Deus e oriunda da constituição intrínseca da coisa e a proporção entre o objeto e o ato, comparada com a razão correta ou a natureza racional. Tomás de Aquino - com seus seguidores (ST, 1-11, Q. 100, Art. 8, pp. 1045,1046), Altissiodorensis, Richard de Middleton, Peter Paludanus e muitos outros - pensa assim. XI. Esta última é a opinião mais comum dos ortodoxos. Também a segui­ mos, não obstante com esta limitação - todos os preceitos não estão igualmente baseados no direito primário da natureza, mas alguns fluem absolutamente da natureza de Deus e ordenam coisas que Deus deseja deveras mui livremente, porém necessariamente (e tão necessária e imutavelmente, que ele não pode querer o contrário sem contradição). Não obstante, outros preceitos dependem da constituição da natureza das coisas (estando o livre-arbítrio de Deus no meio), e assim não se deve pensar que eles mantêm um grau igual de necessidade e de imutabilidade. Embora a dispensação propriamente assim chamada não tenha lugar neles, contudo às vezes se dá alguma declaração ou interpretação concer­ nente a eles, sendo mudadas as circunstâncias das coisas ou das pessoas (como veremos mais adiante). XII. As razões seguintes estabe Primeiro, há uma dependência necessária e indispenProva-se a indispensabihdade sável da criatura racional como tal no gênero da dos preceitos: (1) com moralidade e na ordem da razão correta, em virtude base na dependência (ja qua] e]e ng0 p0de senão obrigar-se a obedecer a necessaria em que o Deus e viver em sujeição a ele (pois, do contrário, homem está de Deus. ng0 seria uma criatura, o que é absurdo). Portanto,

há em Deus, natural e antecedentemente ao seu livre-arbítrio, o direito de su­ jeitar a criatura a si e de obrigá-la à obediência (o que ele não pode negar, nem pode decretar o oposto sem contradição). Ora, que tal direito lhe pertence é evidente, tanto à luz da independência, preeminência, perfeição e domínio su­ premo de Deus, quanto dos atributos semelhantes que elaboram tal direito. Tam­ bém á luz da igualdade, porque há uma necessidade e dependência natural es­ sencial em que a criatura está de Deus no gênero do ser e da causa secundária (em virtude da qual a criatura não pode existir e operar sem Deus, nem pode Deus descartar o cuidado que exerce sobre ela e deixá-la entregue a si mesma). Portanto, a dependência moral da criatura racional sob Deus (como a primeira verdade e a santidade perfeita) não é menos necessária e imutável do que a dependência natural das criaturas entre si. XIII. Nem constitui objeção dizer que Deus foi impelido à produção da criatura, não por alguma necessidade, mas por mera liberdade. Pois, se bem que todas as coisas que existem fora de Deus são contingentes neste sentido (i.e., são de tal natureza que ele poderia ter-se abstido de criá-las); contudo, partindo da hipótese, ele quer e age necessariamente naquelas coisas que ele quer que existam e nelas e em tomo delas, de modo que não pode agir ou querer o contrá­ rio. As palavras de Cajetano referem-se a isto: “Embora sendo a vontade divina simplesmente livre, externamente, contudo, no exercício de um ato livre ele pode ter necessidade de outro; como nestes casos: se ele quer prometer absolu­ tamente, precisa cumprir a promessa; se quer falar e revelar, ele é obrigado a revelar a verdade; se quer governar, ele tem de fazê-lo com justiça; se quer ter súditos que usem a razão, é necessário que ele seja o seu legislador” (1 am. 2ae, q. 100, art. 8+). E assim, na hipótese da existência e ação da criatura, Deus deve necessariamente conservá-la e concorrer com ela, enquanto queira que ela exista. E assim, uma vez criada a criatura racional, era necessário que alguma lei fosse estabelecida por Deus, à qual ela é obrigada a obedecer. Pois é contra­ ditório que a criatura esteja e não esteja sob Deus; ou esteja sob Deus e não se deixe governar por ele; ou seja governada sem lei e uma lei justa. Segundo, se todos os preceitos da lei fossem dispensáveis e se fundamentassem só no direito positivo, Deus ser'a perfeitamente livre para realizá-los ou não realizálos; sim, ele poderia inclusive ordenar o contrário sem qual­ quer contradição. Naquelas coisas que são por natureza indiferentes (adiaphora), aquele que tem o direito de ordenar tem também o direito de proibir e então ordenar o oposto. E assim Deus, sobre esta hipótese, poderia não só não pro­ mulgar lei à criatura racional para amá-lo e cultuá-lo, mas também poderia estabelecer o contrário concernente a odiá-lo e blasfemá-lo; não crer em deus algum; ou não crer nele como justo, bom, onipotente etc.; não obedecer a ele; cultuar deuses estranhos; sim, inclusive o próprio Diabo. E assim os pecados mais terríveis (ódio a Deus, o ateísmo, a blasfêmia etc.) se tomariam dignos de

2 Com base na natureza das coisas ordenadas

louvor; pois, pela mesma razão pela qual eles se enquadrariam no preceito, seu caráter seria mudado e não mais seriam pecados. A proposição de absurdos tão monstruosos é sua própria e suficiente refutação. Pois, quem não vê que Deus não pode fazer tais coisas sem negar a si próprio e fazer violência à sua própria natureza? Porquanto, como ele é verdadeiro e santo, é contrário à sua natureza ordenar o que é falso e vil. Ora, se ele ordenasse a aversão por ele (ou o ateísmo e a idolatria), ele ordenaria as falsidades mais terríveis c vis contra sua própria verdade e santidade. Em vão se replica que a vontade de Deus é a suprema regra da justiça e não pode ser governada por nada mais. Uma coisa é que ela o seja cxtrinsecamente (o que admitimos); outra, intrinsecamente (o que negamos, como já se provou no Tópico III, Pergunta 18). 3 Com base na diferença entre a lei moral e a cerimonial.

Terceiro, se todos os preceitos da lei moral fossem disPensáveis, não haveria diferença entre ela e a lei cerimonial; nem haveria obrigação maior à obediência nem maior pecatransgressão em referência a uma do que à outra. E assim contrairia não menor culpa diante de Deus quem co­ messe carne de porco ou tocasse um cadáver, do que aquele que blasfemasse de Deus ou cometesse homicídio. Mas que tal coisa é um absurdo por demais terrível, tanto a natureza quanto o fato em si evidenciam, e a própria Escritura claramente ensina, quando (estabelecendo uma comparação entre os sacrifícios da lei e as obras de piedade e misericórdia, isto é, entre o culto cerimonial e o culto moral) ela, com muita frequência, testifica que, diante de Deus. aquele não tem nenhum valor em comparação com este. 4 Com base na conformidade da lei mora! com a lei eterna de Deus

x ^I. Quarto, a lei moral (que é o padrão da imagem de Deus no homem) deve corresponder à lei eterna e arquetípica em Deus, visto que é sua cópia e sombra (aposkim ation ), na e*e tem man'festado sua justiça e santidade. Daí não podermos conformar-nos à imagem de Deus (a cuja imita­ ção a Escritura tão frequentemente nos exorta), exceto re­ gulando nossas vidas em concordância com os preceitos desta lei. E assim, quando sua observância é ordenada, amiúde ouve-se a voz: “Sede santos, por­ que eu sou santo”. Ora esta lei é imutável e perpétua. Por isso a lei moral (seu éctipo) deve ser necessariamente imutável. 5 Com base na identidade da lei moral com a natural

X^II. Quinto, a lei moral é a mesma, quanto à substância, ^ue a natura*’ seJa P°r(?ue a suma da lei (que é exaurida pelo arr*or por Deus e por nosso próximo) está por natureza im­ pressa no homem, ou porque todos os seus preceitos se deri­ vam da luz da natureza e nada se encontra neles que não seja ensinado pela sã razão; nada que não pertença a todas as nações em todas as eras; nada que não seja necessário que a natureza humana siga a fim de alcançar seu fim. Portanto, ela deve ser de direito perpétuo, porque a natureza racional é sempre a mesma e com a mesma inclinação. Daí, o que se fundamen­

ta nela deve também ser semelhante. Se pelo pecado do homem a natureza racional foi mudada no concreto e subjetivamente, nem por isso a lei foi alte­ rada no abstrato e objetivamente. r . . XVIII. Não se pode dizer que a lei natural tem sofrido uma mu­ t ontes de , . , dança pela divisão de terras e pela posse de propriedades e bens ‘ ' * introduzidas pela lei das nações. Nenhuma lei natural ordena uma comunhão de bens ou proíbe sua distribuição. Se lemos que todas as coisas têm sido comuns desde o princípio, isto deve ser entendido não tanto positivamente (como se Deus tivesse promulgado uma lei que toma todas as coisas comuns) quanto negativamente (porque nada foi expressamente determinado sobre ela, visto que não havia ainda nenhuma necessidade para sua existência). Mais tar­ de introduziu-se de maneira justa uma distinção e o direito de posse de bens com a autoridade de Deus, com o fim de prevenir controvérsias, restringir a violên­ cia externa, propiciar certeza de heranças e fazer uma distinção das condições (sendo que, sem tais medidas, a sociedade humana não subsistiria). XIX. Nem pela introdução da escravidão; enquanto que antes, pela lei pri­ meva, todos eram livres. Não eram livres de outra forma senão porque estavam livres da criminalidade. Quando esta sobreveio, a escravidão também sobreveio a todos. Pois aquele que assalta a liberdade de outro merecidamente perde a sua própria. Não que a lei da natureza nivele a todos com respeito às qualidades e condições externas. Não pela prescrição e pelo usucapião, meios pelos quais alguém obtém domínio sobre a propriedade de outro, se o proprietário não a demandar dentro de certo espaço de tempo. Não é dado o direito de propriedade a outro, se o proprietário não o quiser (o que é contrário à equidade natural). Só se concede que aquilo que antes pertencia a outro passe a ser propriedade de outro quando se considera abandonado pelo primeiro proprietário. Embora o detentor do direito depositado não o tenha expressamente, por pacto ou doa­ ção, transferido ao depositário, contudo pode ser considerado como o havendo feito por implicação, porque ele o negligenciou e o abandonou. Nem pela re­ tenção de uma espada que o enfurecido proprietário reclama a fim de perpetrar o homicídio; pois ela não é retida para que sua propriedade seja extorquida do legítimo proprietário e por amor ao lucro, mas para prevenir o homicídio, o qual cada um é obrigado por direito natural a impedir o quanto possa (porque aquele que não impede um malfeito quando pode é justamente culpado como o feitor). Além disso, não é justo que seja dono de sua própria propriedade aque­ le que não é dono de si mesmo. XX. Deus não prescindiu do segundo mandamento quando ordenou que se pusessem querubins sobre o propiciatório e se fizesse a serpente de bronze. Aquelas figuras não eram imagens religiosas pessoais, representando alguma substância subsistente (visto que não havia similaridade de natureza entre os querubins e os anjos, entre a serpente de bronze e Cristo); antes, eram apenas símbolos e emblemas, com o intuito de prefigurar deveres e qualidades. Não

deviam ser considerados como objeto e meios de culto (em cujo sentido as imagens foram proibidas), mas deviam ser considerados apenas como um sinal sacro que Deus empregou para prefigurar-nos certos mistérios. Portanto, embo­ ra pertencessem à religião, nem por isso deviam ser objetos de religião ou de culto. O mesmo se pode dizer da serpente de bronze, a qual foi deveras um símbolo ou tipo de Cristo; porém, não uma imagem. XXI. O quarto mandamento é moral e perpétuo quanto à substância da coisa ordenada (a saber, que algum culto externo e solene é devido a Deus, e que se devotaria a ele determinado tempo; não quanto à determinação particular do sétimo dia [uma questão de direito positivo], o qual, além do mais, como ceri­ monial podia ser mudado, como se mostrará mais extensamente em seu devido lugar). Se os macabeus lutaram no sábado, isto não foi feito por uma dispensação da lei, mas em virtude de sua declaração e genuína interpretação (segundo a qual obras arbitrárias são deveras proibidas, porém não obras necessárias, tais como a defesa legítima de alguém contra inimigos, o que Cristo mesmo fre­ quentemente confirma). “Qual dentre vós”, diz ele, “será o homem que, tendo uma ovelha, e, num sábado, esta cair numa cova, não fará todo o esforço, tirando-a dali?” (Mt 12.11). “O sábado foi estabelecido por causa do homem, e não o homem por causa do sábado” (Mc 2.27*). Por isso ele curou um homem no sábado, e os discípulos de Cristo, estando famintos, apanharam espigas de trigo no sábado. XXII. Quando Cristo nos ordena a “odia” os pais (Lc 14.26), ele não pres­ cinde do quinto mandamento, mas desvenda seu verdadeiro sentido e realça tanto a subordinação da segunda tábua à primeira quanto a do homem a Deus. E assim a palavra to misein não deve ser entendida absoluta e simplesmente por aversão propriamente assim chamada e expressa; mas, comparativamente, quanto a um amor menor e fraco, para ensinar-nos que nenhuma necessidade deve ter tal poder sobre nós que nos desvie do dever da piedade; que Deus deve ser amado e cultuado acima de tudo; de modo que, se o amor aos pais é incompatí­ vel (asystatos ) com o amor a Deus, devemos estar prontos a prescindir dos pais em vez de negar a Deus, e devemos saber que é sempre melhor obedecer a Deus antes que aos homens. E assim, “odiar” é com frequência usado para “amar menos” (como lemos que Jacó “odiou Lia” [i.e., a amou menos, Gn 29.31,33]); pois não devemos considerar Jacó como tendo sido tão cruel ao ponto de odiála. Que isso deve ser entendido assim neste lugar é evidente à luz de uma com­ paração com Mateus 10.37, onde o termo se explica por “amar menos”: “Aque­ le que amar pai e mãe mais do que a mim não é digno de mim”. XXIII. O sexto mandamento, acerca do homicídio, não foi prescindido quando a Abraão se ordenou que matasse seu próprio filho. O mandamento era apenas de caráter exploratório, não absoluto. Tampouco se ele o tivesse matado pela ordem divina teria violado a lei concernente ao homicídio, porque o teria feito mediante autorização de uma autoridade pública (ou seja, a ordem divina). Entre-

tanto, a lei não condena o homicídio de toda espécie. Pois o magistrado é obrigado a punir o culpado, e toda pessoa privada tem o direito de matar um injusto agressor c ladrão em prol da preservação da vida (sendo feito um uso moderado do direito legítimo de proteção); só é condenado o homicídio come­ tido injustamente por uma pessoa privada, e sem autoridade. O ato de Moisés não pode ser considerado um homicídio contra a lei, porquanto Deus o aprova­ ra mediante uma dispensação (Ex 2.12). Moisés era uma pessoa pública, con­ tando já com uma vocação interna. O mesmo se pode dizer de Finéias, o qual estava munido de autoridade pública e possuía uma vocação interna, se não uma externa, para agir assim. O auto-homicídio (autocheiria) de Sansão não foi simplesmente contra a lei, porque não foi praticado apenas por um impulso privado (o que é condenado), mas por um instinto e inspiração peculiares da parte daquele que tem direito absoluto sobre a vida e sobre a propriedade (e assim pode reivindicar nossas vidas ou as de outros sempre que quiser). Que tal foi o caso aqui, prova-se: (1) pelas orações (que foram ouvidas) que ele dirigiu a Deus para a obtenção de força extraordinária para aquele último ato; assim este e aqueles agiram baseados na fé. (2) Por aquela força divina que lhe foi suprida, munido da qual ele derrubou um edifício tão prodigioso. Daí Agos­ tinho observar com propriedade que o Espírito (que operou um milagre por meio dele) secretamente lhe ordenara isso (CG 1.21 [FC 8:54; PL 41.35]). (3) Pelo testemunho do apóstolo que, entre os exemplos de fé, cita Sansão (Hb 11.32), o que seguramente ele não teria feito se nesse ato ele houvesse pecado e violado a lei. XXIV. Quando ordena “não resistais ao perverso; mas, a qualquer que te ferir na face direita, volta-lhe também a outra; e, ao que quer demandar contigo e tirar-te a túnica, deixa-lhe também a capa” (Mt 5.39,40*), Cristo não muda a lei implantada da natureza, a qual nos ensina a repelir a injúria e a força pelo uso da força. Antes, ele apenas condena a retaliação (to antipeponthos) quando à autodefesa se acrescenta a vingança e uma injúria igual ou maior. Essas pala­ vras devem ser entendidas proverbial e hiperbolicamente, não segundo a letra (kata to rhêton); pois Cristo mesmo não voltou a outra face àquele que o feria (Jo 18.23), nem Paulo (At 23.3). O significado, pois, é que é melhor estar pron­ to a sofrer nova injúria do que retribuir com injúria igual ou recompensar o mal com outro mal; e isso também sob o pretexto de uma lei divina concernente à retaliação. Assim a adversativa (como se dá frequentemente em outras partes) inclui em si uma comparação. XXV. Deus não ordenou a Oséias que cometesse prostituição, que era con­ trária à lei (Os 1.2), porém lhe ordenou que tomasse uma esposa de prostitui­ ções. Que tal coisa deve ser entendida parabolicamente, antes que historicamen­ te, testifica-se pela regra de Agostinho, o qual afirma que a Escritura deve ser entendida figuradamente quando ela ordenar um vício ou proibir uma virtude, e pelo escopo dos profetas, o qual era repreender o povo por sua fornicação

espiritual. Isto ele não poderia ter feito se lhes tivesse imposto tais coisas. Finalmente, as palavras em si o provam: “toma para ti uma esposa de prostitui­ ções e filhos de prostituições”. Os mesmos filhos não poderiam ter sido toma­ dos com a mãe e ter sido gerados dela [pelo profeta]. Portanto, o sentido é: toma para ti uma prostituta em lugar de um argumento, propõe-no ao povo de Israel e aplica este símile da esposa de prostituições aos israelitas, pois se devotaram à fornicação espiritual (i.e., à idolatria). Se os nomes da esposa e de seu pai são mencionados pelo profeta, não se deve considerar como se fosse uma história genuína, porque é evidente, à luz da parábola de Lázaro, que isto não era universal. Além disso, à guisa de argumento, supõe-se que essas coisas ocorreram historicamente, contudo não se segue que ao profeta se ordenasse cometer prostituição. O segundo caso é uma coisa; totalmente outra é casar-se com prostituta. Não obstante, não há nada que impeça que a execução (tanto quanto a ordem) seja emblemática. XXVI. A poligamia simultânea é repulsiva à instituição primeva do matri­ mônio (na qual Deus criou um homem e uma mulher para que dois, não mais, fossem uma só carne). Isto é também confirmado por Cristo quando repreende a facilidade de se obterem divórcios. Ele diz: “não foi assim desde o princípio” (Mt 19.8). É igualmente confirmado pelo testemunho dos pagãos mais sábios, entre os quais se considerava infame um homem possuir duas esposas ao mes­ mo tempo. Seja o que for que Ochino diga em sua defesa (A Dialogue ofP olygam y [1657]), ela é indubitavelmente ilícita em si mesma e oposta à lei natu­ ral. Nem todos concordam quanto ao que se deve pensar dos patriarcas que eram polígamos. Alguns crêem que tinham uma dispensação especial e uma permissão moral da parte de Deus segundo as quais ele remitiu para eles a lei que havia promulgado desde o princípio a fim de que a promessa concernente à multiplicação da semente de Abraão se cumprisse mais depressa. Do contrá­ rio, dificilmente se pode conceber como tantos e tais homens teriam tão fre­ quente e perseverantemente cultivado um modo de vida desagradável a Deus e buscado a bênção da prole naquilo que pervertia as normas do direito natural e divino. E pensam que podem decidir mais facilmente a questão por este meio que a poligamia em si certamente é contrária à lei natural (segunda em posi­ ção) e à natureza respeitável (a qual a mudança de eventos e de circunstâncias de pessoas pode licitamente alterar ocasionalmente), porém não contrária à lei (primeira em posição) que é absolutamente indispensável. No entanto, porque tal dispensação não pode ser provada à luz da Escritura e repousa apenas em razões prováveis, outros acham melhor reconhecer aqui apenas uma tolerância e uma permissão física para a poligamia; não uma permissão moral de direito, segundo o qual ele nem simplesmente a aprovou nem a permitiu absoluta e formalmente como lícita. Antes, ele apenas fechou os olhos e a tolerou como fraqueza e falta, por razões que só a ele pertencem. Daí ela poder ser lícita no tribunal terreno (quanto a obter imunidade das punições civis e eclesiásticas entre os homens); porém, não no tribunal celestial, na presença de Deus.

XXVII. Embora as Escrituras não censurem a poligamia dos patriarcas, não se segue que ela fosse lícita. Pois várias outras coisas estão também relaci­ onadas na Escritura (e não censuradas), as quais não podem ser isentadas do pecado: como o incesto de Ló, o suicídio (autocheiria ) de Saul, e coisas assim. Mas que não foram aprovadas por Deus se pode deduzir a posteriori das hor­ rendas calamidades com que ele castigou os polígamos por sua conduta. Conhe­ cemos a cruz doméstica imposta a Abraão por causa disso; as rixas e rivalida­ des das esposas de Jacó; o que Davi sofreu dos crimes de seus filhos (resultado de poligamia); e quão alto foi seu custo para Salomão. XXVIII. Embora os patriarcas não tivessem consciência de que pecavam pela prática da poligamia, contudo isso não os impedia de pecar por ignorância. Presumiram que era lícito a todos o que prevalecia por toda parte; o mau hábito (que se desenvolveu fortemente neles) obscurecia ou obliterava a memória da instituição primeva, de modo que não a reconheciam como sendo pecado. Tam­ pouco se segue que morreram na culpa daquele pecado de ignorância porque nunca se arrependeram dele. Se não se arrependeram dele expressa e formal­ mente, contudo buscaram seu perdão implicitamente quando buscavam o per­ dão de todos os pecados (inclusive dos pecados secretos). Tampouco foi um arrependimento especial exigido deles por este ato mais do que pelos demais atos dos quais não lemos que se arrependeram. Igualmente não lemos que Noé se arrependeu de sua embriaguez nem Ló de seu incesto; ou outros por outros pecados. Contudo não temos dúvida de que obtiveram o perdão divino de todos os seus pecados pela fé no Messias. Se muitas pessoas piedosas cometem nume­ rosos pecados provenientes de ignorância e erro (dos quais nunca distintamente se arrependeram), isso não impede que busquem a obtenção do perdão deles dizendo com Davi: “purifica-me das faltas secretas” (SI 19.12). Por que não diríamos o mesmo acerca dos polígamos antigos? XXIX. Quanto ao divórcio, Deus simplesmente não o ordenou nem o per­ mitiu, mas apenas desejou restringir, por meio de leis fixas, a facilidade de divórcios que prevalecia entre os judeus contra a lei natural do matrimônio, com o objetivo de regular o modo de uma coisa ilícita, não porém de tomá-la lícita. Daí Cristo dizer que Deus o “permitiu” ou o “tolerou” por causa da dureza do coração dos judeus (Mt 19.8). XXX. Se casamentos nos graus íntimos ocorreram entre os filhos de Adão (entre irmãos e irmãs, no princípio, exigindo-o assim a necessidade), isto não se deu tanto por uma dispensação (propriamente assim chamada) da lei quanto por sua declaração. A maioria dos mestres judaicos haviam recorrido aqui à indul­ gência de Deus como se este houvera tolerado isto naqueles primeiros seres humanos, embora fossem corruptos. Não poderia ocorrer, porém, uma indul­ gência incoerente com o direito e com a virtude naturais, porque Deus nunca tolera a prática do mal. Outros (como Agostinho) alegam aqui necessidade: “uma vez que ninguém mais existia senão aqueles nascidos deste casal, os

homens tomavam por esposas suas irmãs, o que por mais que seja uma ne­ cessidade antiga e compelidora, veio a ser mais tarde a mais digna de condena­ ção e proibição pela religião” (CG 15*. 16 [FC 14:450,451; PL 41.457,458]). Não obstante, tampouco isto é plenamente satisfatório. Deus mesmo foi a cau­ sa dessa necessidade, o qual facilmente teria alterado este estado de coisas criando mais casais para que os homens não fossem reduzidos à necessidade de violar o direito natural. Outros se desvencilham mais facilmente da dificul­ dade traçando uma distinção entre o direito natural primário e absoluto (base­ ado imediatamente na própria natureza de Deus) e o direito natural secundário (fundado na natureza das coisas e ocorrendo somente em certo estado de coi­ sas, como a lei que proíbe o latrocínio pressupõe uma divisão das coisas). Tais casamentos são deveras repulsivos ao direito natural posterior em certo estado de coisas (ou natureza constituída) após a multiplicação da raça humana, e são ilícitos por natureza, em virtude da reverência pelo sangue. Na irmã e no irmão (que são carne e imagem do pai), o pai é em si reverenciado; também o proíbe a modéstia natural. Daí os próprios gentios denominarem tais casamentos “de modo algum santos e odiados a Deus” (mêdamõs hosia kai theomisê, Platão, Laws 8.838 [Loeb, 11:156,157]). Diodorus Siculus afirma que é “o comum costume dos homens (koinon ethos anthrõpõn) não juntar irmãos com irmãs” (Diodorus Siculus, 1.27 [Loeb, 1:84,85]). Pois o morar e o comer juntos diari­ amente nunca existiriam sem uma suspeita de casos amorosos ilícitos, e dari­ am ocasião a concupiscências e adultérios, se tais casamentos fossem permiti­ dos. Não obstante, não eram repulsivos ao direito natural primário e absoluto. Se não Deus (que não nega a si mesmo) nunca poderia administrá-lo nem po­ deria jamais (nem mesmo no início do mundo) ter instituído ou aprovado tal relação. Portanto, como a instituição das coisas depende da vontade de Deus, ele poderia, em certos casos (se não absolutamente, contudo relativamente e em certo estado de coisas), mudá-la, até o ponto em que bem conduzisse à preservação da sociedade humana. Visto que ele quis que todos nascessem de um só sangue, tal conjunção era então necessária ser constituída na natureza. Ora, ainda que a união de pais com filhos nunca pudesse ser lícita, esse não é o caso com o casamento de irmãos com irmãs. A reverência dos filhos para com seus pais é absoluta e intrínseca, e nunca pode ser removida. A de irmãs para com irmãos é apenas intrínseca e relativa, visto que são apenas a imagem de seus pais. Assim nada há que impeça que Deus restrinja este aspecto, a fim de que não se manifeste claramente nesta ou naquela pessoa com quem a moça está para casar-se. XXXI. O mesmo se deve dizer da lei do levirato (Dt 25.5) pela qual o irmão do falecido era obrigado a tomar a esposa de seu irmão a fim de suscitarlhe semente. Caso se entenda do irmão do esposo propriamente assim chama­ do (ou do irmão completo, como os judeus evidentemente o entendiam, Mt 22.24,25), era um caso indubitavelmente peculiar no qual Deus desejava favo­ recer a preservação das tribos e famílias de seu povo. Toda a dificuldade será

removida se for estendido mais amplamente como o parente mais próximo fora dos graus proibidos, como mantêm não poucos eruditos sem improbidade, especialmente Calvino (Com m entaries on the Four Last Books o f Moses, Ar­ ranged in the Fonrt o f a Harmony [org. C. W. Bingham, 1854], 3:103,104, sobre Lv 18.16). Tampouco a palavra ybm h se põe no caminho. Ela significa ou uma relação de sangue, tanto da parte do pai como da mãe, ou uma relação matrimonial (como Boaz e Rute, a moabita, Rt 3.9). XXXII. Não foi feita uma dispensação da lei do latrocínio pelos israelitas que levaram os vasos dos egípcios: (1) porque os egípcios espontaneamente deram aqueles vasos, “o S e n h o r fez que seu povo encontrasse favor da parte dos egípcios, de maneira que estes lhes davam o que pediam. E despojaram os egípcios” (Ex 12.36*). Tampouco os exigiram deles quando partiram; aliás, eles os expulsaram com seus vasos, “apertavam com o povo, apressando-se em lançá-los fora da terra” (Ex 12.33). Assim não se pode dizer absolutamente que os israelitas tomaram a propriedade de outros sem seu consentimento. (2) Deus, como supremo Senhor (sim, como justo Juiz), com justiça transferiu os bens dos egípcios para os israelitas como o salário de seus serviços anteriores e daquela severa escravidão com que os egípcios os oprimiram (livres por natureza); justamente como um juiz permite que o credor tome penhores da casa do devedor ou lhe dá posse de sua propriedade. (3) Certamente os próprios egípcios não podem ser considerados os proprietários legítimos no tribunal ce­ lestial diante de Deus, mas meramente usurpadores (como também os demais perversos, ainda que no fórum terreno e para com os homens sejam estimados como tais). E ainda, embora os israelitas não tenham devolvido aquilo que to­ maram por empréstimo, nem por isso podem ser chamados ladrões, porquanto poderiam ter tido a intenção de restaurar a propriedade, se Deus lhes ordenasse. XXXIII. Se bem que não era lícito usar uma foice para colher grão do vizinho, contudo concedeu-se a liberdade ao viajante de passagem de legal­ mente arrancar espigas de trigo no campo ou uvas de uma vinha para satisfizer sua fome (Dt 23.24,25*). Isto não era feito prescindindo da lei do latrocínio, mas por sua verdadeira interpretação, porquanto era uma obra necessária, per­ mitida pelo supremo Senhor com o propósito de obrigar os homens a estreita­ rem mais os laços da fraternidade. Se esses atos contêm em si alguma indecên­ cia, cessam de ser assim quando a ordem (ou impulso ou vocação) divina inter­ vém, impondo tal necessidade, ou concedendo liberdade. XXXIV. Ainda que os homens prescindam de suas próprias leis, isto não se dá com Deus e a lei moral. As leis humanas são positivas, obrigando somente por parte éo legislador, não por parte da coisa. Ao contrário, a lei moral é correta por natureza, obrigando em si mesma e da parte da coisa.

T e r c e ir a P e r g u n t a : A P e r f e i ç ã o

da

L ei M

oral

A lei moral é uma regra de vida e moral tão perfeita que nada sepode acrescentar a ela ou deve ser corrigidapara o verdadeiro culto de Deus? Ou Cristo a cumpriu não só como imperfeita, mas também a corrigiu como contrária às suas doutrinas? Afirmamos o primeiro ponto; negamos o segundo contra os socinianos, os anabatistas, os remonslrantes e os papistas.

I- Nesta questão temos que tratar de várias partes. Primeiro, com os socinianos, que sustentam que os mandamentos de Cristo diferem dos de Moisés, e que Cristo suplementou e ampliou a lei moral (como imperfeita) por meio de várias adições e a corrigiu como menos correta em certas particu­ laridades. Daí afirmarem que foram feitas por Cristo várias correções e adi­ ções à lei em referência a preceitos particulares do decálogo (pelas quais se tomam perfeitos). Por exemplo, com respeito ao primeiro mandamento, certa forma de oração definida na oração do Senhor e o culto religioso de Cristo, como Mediador; com respeito ao segundo, à abstenção dos ídolos e imagens; com respeito ao terceiro, a proibição de juramentos mesmo cm questões verda­ deiras; com respeito ao quarto, o cancelamento do sábado no que diz respeito à substituição de outro dia; com respeito ao quinto e à segunda tábua em geral, o amor por nossos inimigos; com respeito ao sexto, a proibição da ira e da vingança, sejam privadas ou públicas; com respeito ao sétimo, a proibição de olhares impudicos, do divórcio, exceto em caso de adultério, da impureza e da obscenidade; com respeito ao oitavo, a proibição da avareza e a doação de bens supérfluos aos pobres; com respeito ao nono, a proibição de conversação vã e maldosa, de censuras injustas; com respeito ao décimo, a proibição da concupiscência, não só que não nos deleitemos nela, mas nem mesmo a conce­ bamos em nossas mentes. Com respeito aos novos mandamentos, pretendem que esses foram dados por Cristo em adição ao decálogo, dos quais os princi­ pais são três: (1) a negação de si mesmos; (2) suportar a cruz por amor a Cristo; (3) a imitação dele (cf. sobre estes “of the Prophetie Office of Christ: Precepts Added to the Law”, 5.1,2 em The Racovian Catechism [1818], pp. 173-249; Ostorodt, Unterrichtung... hauptpimcten der Christlichen Religion 22 [ 1612], pp. 149-152; Vokelius, D e Vera Religione 4.21 [1630], pp. 298-301). Os ob­ jetivos deles são: (1) estabelecer o ímpio dogma de Cristo como Salvador não por meio de resgate (lytron ), mas por meio da doutrina; (2) construir a justificação dos homens por meio das obras, não deveras pelo mérito das obras (no quê eles diferem dos papistas), mas pela graciosa aceitação delas; (3) provar que a recompensa da imortalidade das almas não existia sob a economia do Antigo Testamento, mas foi liberada por Cristo. Segundo, os anabatistas e os remonstrantes os seguem. Os primeiros no Frankenthal Co­ lloquy (P ro to co ll... alle Handlung des gesprechs zu F ranckenthal I. Mayer, Art. I, 10,11 [1571], pp. 14,15) e Embden Colloquy (P r o to c o l... handelinge des gesprecks tot Embden ... G. Goebens, Art. 4 [1579], pp. 50-127); os se-

O pinião dos socinianos, anabatistas e rem onstrantes.

gundos em sua apologia (“Apologia pro confessione sive declaratione”, 12 em Episcopius, Openim Theologicorum [1656], Pt. II, pp. 178-181). Aqui eles aprovam a tese dos socinianos concernente à imperfeição da lei, e sobre essa hipótese fazem e defendem várias adições. No capítulo 13, tratam detalhada­ mente dos três preceitos adicionados por Cristo, especialmente o primeiro (ibid., pp. 181,182). rnaniqueus tinham feito o mesmo jogo antes, entre os quais e os ortodoxos se agitou a mesma questão. Assim Agos­ tinho diz que ensinavam que Cristo em parte suplementou a lei moral pelos mandamentos em Mateus 5; em parte a destruiu (Reply to Faustus Manichaean 19 [NPNF1, 4:239-252]). Isto é refutado por Agostinho em todo o citado livro. De seus charcos lodosos os maometanos parecem ter derivado aquela expressão no Corão: Moisés introduziu uma lei menos perfeita; Cristo, uma mais perfeita; Maomé, porém, a perfeitíssima (Azoa 12 +). Os papistas erram aqui também (não pela mesma razão), asseverando a imperfeição da lei. Daí Belarmino ensinar que Cristo tomou perfeita a lei imperfeita (ou, certamente, a lei perfeita, mais perfeita), e que entre a lei e o evangelho há a mesma dife­ rença que a existente entre uma doutrina incipiente e a perfeita (“De Justificatione”, 4.3 O pera [1858], 4:572-574). Maldonatus obstinadamente contende que a lei antiga foi corrigida por Cristo, sendo acrescidas aquelas coisas que estavam faltando para a perfeição evangélica ( Com m entaty on the Hoiy Gos­ pels: M atthew [ 1888], 1:154, sobre Mateus 5.21). Contra todos esses, os orto­ doxos, no entanto, crêem que a lei moral é tão perfeita que não necessita de nenhuma adição ou correção, mas apenas de uma interpretação genuína, e tudo quanto se diz ter sido adicionado ou é falso e gratuito, ou estava na lei antes, ou explícita ou implicitamente. Dos papistas.

® assunto em controvérsia não é se a lei necessitava ilustração, confirmação e vindicação contra as corrup­ ções dos escribas e fariseus, bem como contra os juízos perversos dos homens (pois isto prontamente admitimos e se demonstrará no que segue). Antes, é se ela necessitava de adições ou de correções, como se fosse imperfeita ou incorreta. Nossos oponentes afirmam isso, enquanto nós o negamos. A importância da questão é grande, porque o objetivo de nossos oponentes não é outro senão transformar o evangelho numa nova lei, e assim estabelecer a justiça das obras no lugar da justiça da fé.

E stabelecim ento da questão

^ argumentos dos ortodoxos são: Primeiro, “a lei é perfeita” (SI 19.7), não só relativamente e com respeito à sua era sob o Antigo Testamento, mas também absoluta­ mente com respeito à natureza; e tão perfeita que não só contém todas as coi­ sas a serem feitas, e nestas não há defeito (Genebrardus, Psalm i Davidis [ 1606], p. 71 sobre o Salmo 18 [19].9, e Lorinus, testificando sobre esta passagem), mas também não é passível de nenhuma adição ou detração dela (segundo Dt

Prova-se a perfeição da lei

4.2; 12.32). (2) Ela é perfeita extensivamente quanto às partes, porque adequa­ damente abarca no amor de Deus e de nosso próximo tudo o que lhes é devido (como Cristo ensina em Mt 22.37); intensivamente quanto aos graus, porque ela demanda não qualquer amor, mas o mais perfeito, não se podendo conceber maior que este; e, finalmente, quanto ao uso e ao efeito perfeitos, porque ela pode conceder aos que a cumprem vida e felicidade - “Se alguém praticar estas coisas, por elas viverá” (Lv 18.5). Não se poderia dizer isso se “estas coisas” carecessem de adição ou de correção. V. Segundo, Cristo “não veio destruir a lei, mas cumpri-la” (Mt 5.17). Aqui plêrõsai não significa tomar perfeito o imperfeito ou corrigir as falhas (o que seria antes destruí-la [analysaí])', mas, segundo o costume hebraico, é fazer o que é ordenado. Assim Cristo cumpriu a lei não lhe adicionando nem corrigin­ do algo, mas por sua observância e execução. Ele cumpriu a lei de três formas: como uma doutrina por meio da pregação fiel, confirmação sólida e vindicação poderosa; como uma regra (normam), cumprindo-a plena e coerentemente; e como um tipo por meio de uma consumação perfeita, ao exibir em si mesmo a veracidade dos tipos e profecias, c o corpo de suas sombras. VI. Terceiro, Cristo, no Novo Testamento, não introduziu (seja por si mes­ mo seja por seus apóstolos) nenhum outro preceito da lei além daqueles que foram dados por meio de Moisés (Mt 22.37; Rm 13.9). Ele não deu nenhuma outra explanação deles além daquela que já fora dada pelos profetas. Daí o mandamento do amor é chamado por João “velho e novo” (1 Jo 2.7,8): velho com respeito à sua primeira promulgação no Antigo Testamento; novo com respeito à sua renovação e ilustração no Novo Testamento. VII. Quarto, a lei não poderia ser suplementada nem corrigida sem ser, com isso, acusada de imperfeição e falha (e isso lançaria essa falha sobre Deus, o autor da lei). Só pensar nisto já é ímpio. VIII. Quinto, a “negação de nós mesmos”, “o levar a cruz” e “a imitação de Cristo” já haviam sido ordenados sob o Antigo Testamento. Pois, quando somos solicitados a amar a Deus acima de todas as coisas, não somos por essa mesma ordem advertidos a negar-nos a nós mesmos por amor a Deus e a suportar pacientemente a cruz a nós imposta por ele? E quando a imitação de Deus é tão frequentemente prescrita, a imitação de Cristo (que é verdadeiro Deus) não nos é também ordenada? Além disso, a imitação de Cristo está na prática das virtudes morais, cuja norma deve ser buscada unicamente na lei. Isto é também confirmado por vários exemplos no Antigo Testamento: quanto à negação - por Abraão, que deixa seu país e se prontifica a sacrificar seu filho; os levitas, que matam seus irmãos (Ex 32); Jó bendizendo a Deus na adversidade (Jó 1.21,22); Moisés, Daniel e seus amigos que desdenham de todos os prazeres (Hb 11.25,26; Dn 1,8ss.). Note-se também o seguinte: quanto ao “levar a cruz” - por Moisés (Hb 11.25,26), os profetas sob Acabe (lR s 18.4), Zacarias (2Cr 24.20,21), os amigos de Daniel (Dn 3), a igreja judaica sob Antíoco (SI 44; Hb 11.33-38).

Quanto à “imitação de Cristo”, pelos crentes que se conduziam em conformi­ dade com o exemplo de Deus. ^ ma co'sa é corrigir a lei propriamente dita; outra é purificá-la da falsa interpretação dos escribas e fariseus. Uma coisa é introduzir um sentido inteiramente novo na lei; outra, introduzir apenas uma nova luz pelo desvendamento do que jazia escondido na lei e não recebia a atenção dos mestres (e assim, pela explicação, aclarar; e pela vindicação, restaurar). Cristo fez o segundo, não o primeiro (Mt 5). Ele não age como um novo legislador, mas somente como um intérprete e vindicador da lei dada por Moisés. Ele opõe seus ditos não aos ditos ou escritos de Moisés, mas aos dos escribas e fariseus (que eles se vangloriavam de terem recebido dos antigos mestres). Isto é evidente: ( 1) pela proposição de Cristo onde fala da justiça dos fariseu s-“a não ser que vossa justiça exceda a justiça dos escribas e fariseus” (Mt 5.20). Portanto, sua intenção era descartar a justiça dos fari­ seus, e não aquela ordenada pela lei de Moisés. (2) Pela maneira de falar: ele não diz: “Está escrito na lei de Moisés” ou “a lei ou Moisés vos disse”, mas “tendes ouvido” (ou seja, dos escribas ou fariseus) “que foi dito nos tempos antigos” ou “por aqueles dos tempos antigos”. E assim ele mostra que descarta apenas as tradições dos anciãos (Mt 15.2,3) e não a lei de Moisés. (3) Pelo exemplo evocado concernente ao amor pelo próximo (Mt 5.43) e o ódio pelos inimigos, o que não foi dito por Moisés, que ordena justamente o oposto (Lv 19.18; Êx 23.4,5), e Salomão depois dele (Pv 25.21,22), mas pelos mestres e anciãos judeus dentre os fariseus. (4) Pelas próprias coisas ordenadas ou proi­ bidas por Cristo (as quais mais adiante provaremos que estavam contidas na lei explícita ou implicitamente); e pelas outras que ele rejeita, as quais não estavam na lei (como será exposto adiante). X. Seja como for que as palavras errethe tois archaiois sejam entendidas ou subjetivamente para significar o mesmo que hypo tõn archaiõn (“dito por eles desde os tempos antigos”) como nosso Beza afirma (Annotationes maiores in Novum ... Testamentum [1594], Pars Prior, p. 31, sobre Mt 5.21) e depois dele Piscator; ou objetivamente, o que agrada a outros que seguem Syrus ('1Saint Ephrem Commentaire de l ’Evangile Concordant [trad. L. Leloir, 1954], CSCO 145.55-57) e parece mais adequado, significando pros tous archaious (“dito aos homens dos tempos antigos”), não se segue que foram ditas por Moisés aos antigos israelitas de seus dias. Pois essa palavra se refere indistintamente a todos os ancestrais, e o significado de nosso Senhor não é outro senão que os mestres judaicos (corruptores da lei) costumavam prefaciar os preceitos cor­ rompidos por eles com esta frase capciosa: “foi dito nos tempos antigos” (i.e., os preceitos inculcados por eles não eram novos, mas antigos e enunciados desde outrora pelos anciãos dos judeus). Portanto, a antítese instituída por Cris­ to não é entre ele mesmo e Moisés (ou a lei enunciada por ele), mas entre ele e as interpretações dos fariseus sobre a lei de Moisés pelas quais a restringiram demasiadamente c a interpretaram falsamente. Ele faz isso a fim de mostrar F ontes d e solução

que a letra e o significado da lei foram violados por eles, não por ele (embora fosse acusado por seus inimigos de fazê-lo). XI. Embora Cristo cite as palavras de Moisés (Mt 5.21,27, 31,33,38), contudo não no sentido mosaico, mas farisaico. As palavras deveras eram comuns, porém o significado era dife­ rente. Os fariseus explicavam mui erroneamente as palavras de Moisés ao res­ tringi-las somente aos atos externos, ao passo que elas se estendem também aos impulsos internos (o que Cristo ensina desvendando o sentido verdadeiro e genuíno da lei). Cristo, pois, corrige várias coisas expressas na lei, porém não reduplicadamente (como ali expressas). Antes, ele as corrige como eram geral­ mente explicadas pelos escribas e fariseus (não segundo o significado de Moi­ sés, mas segundo a opinião pessoal deles [pareisaktõ]\ não implantada [emphyíõ] e genuína [gnêsiõ], mas espúria [hypobolimaiõ]). M ateus 5.21, 27,31,33,38.

XII- A lei não é corrigida por Cristo em referência ao ter­ ceiro mandamento sobre juramentos (Mt 5.33,34). Ele ape­ nas a explica e a vindica contra as perversões do texto feitas pelos fariseus, os quais restringiam a proibição geral de “tomar o nome de Deus em vão” ao perjúrio daquele que jurou no nome de Deus. Davam rédeas soltas aos jura­ mentos triviais e temerários na conversação diária, bem como aos juramentos por criaturas, como se não fosse pecado contra a lei ou contra o legislador jurar precipitada e levianamente (ou mesmo falsamente, contanto que não fosse no nome de Deus, mas no nome de alguma criatura), mas tão-somente o perjúrio e não cumprir ou não realizar os juramentos. Aliás, estava obrigado quem ju ­ rasse pelo nome de Deus [ou a efetuá-lo] ou a dar uma oferta consagrada a Deus, porém não aquele que jurasse pelo templo, pelo altar e coisas afins (Mt 23.16-18). Tais juramentos podiam ser feitos e violados com impunidade. Cristo refuta essas falsas interpretações, mostrando que os juramentos vãos e temerá­ rios não são lícitos, nem os juramentos por criaturas, não importa quais. Desta forma ele nada adiciona nem corrige algo na lei. Pois a lei não proíbe apenas o perjúrio, mas também os juramentos levianos e temerários, quando ela proíbe o tomar o nome de Deus Ishv' (“em vão”). Os socinianos (com Grotius os ombreando) falsamente confundem este termo com Ishqr (“numa falsidade” ou “mentira” - de que trata Lv 19.21), como se fosse condenado somente o perjúrio. Mas esse termo tem referência muito mais ampla e corretamente se estende à futilidade e leviandade dos juramentos precipitados. Daí a Septua­ ginta traduzi-lo por epi mataiõ; e Aquila por eis eikê ; o Targum por tm gn ’, o mesmo que o hebraico chnm (“gratuitamente” e sem causa). Embora o nome de Deus seja tomado em vão por perjúrio, contudo pode ser frequentemente tomado em vão sem perjúrio (ou seja, nos juramentos temerários e triviais). XIII. Os juramentos feitos também no nome de criaturas são suficiente­ mente proibidos pela lei do Antigo Testamento, tanto implicitamente (atribu­ indo o juramento somente a Deus como um ato de culto [latreias] devido exM ateus 5 33 34

clusivamente a ele - “temerás o S e n h o r teu Deus e a ele servirás, e jurarás por seu nome”, Dt 6.13; 10.20; cf. Is 65.16) como implicitamente (condenando os juramentos tomados por aqueles que não são deuses - “eles têm jurado por aqueles que não são deuses”, Jr 5.7). A natureza do juramento também prova este fato. Ele é a invocação formal de Deus como testemunha, seja implícita ou explicitamente. As condições requeridas do objeto são onisciência, onipresen­ ça e onipotência (o que não se encaixa na criatura). Os exemplos não se opõem a isso, se existem juramentos desse gênero no Novo Testamento. São eles de fato, não de direito; de prática, não da lei (a qual em parte alguma permite fazer juramento no nome de criaturas). XIV. O que Cristo adiciona, hõlõs (“de forma alguma jureis”, e é confirma­ do por Tg 5.12), não pode ser entendido absoluta e universalmente em relação a todo juramento, como se simplesmente não devêssemos jurar, o que seria con­ trário tanto à natureza da coisa (sendo que é bom em si e necessário, e como tal ordenado para confirmação da verdade e para pôr fim a toda controvérsia, Hb 6.16), quanto à prática do próprio Cristo e dos apóstolos, que às vezes faziam uso de juramentos. Antes, deve ser entendido relativamente - concernente aos juramentos precipitados e levianos ou àqueles concebidos por criaturas (dos quais ele esteve falando neste lugar). A explicação anexa claramente ensina isto. Ele diz: “de modo algum jureis; nem pelo céu, nem pela terra” (i.e., que não fosse empregada nenhuma fórmula perversa de tais juramentos em uso entre os judeus). Tiago condena estes por uma referência geral quando adiciona: “nem por qualquer outro juramento” (5.12). Do contrário, se ele tivesse pretendido proscrever inteiramente todos os juramentos, então deveria ter acrescentado “nem por Deus”. Portanto, a partícula universal é falsamente separada da espécie de juramento acrescentado (ou é atribuído ao gênero e à substância do juramento), não à forma dele expressa por Mateus. Nem as palavras adicionadas por Cristo, “que vossa comunicação seja sim, sim; não, não”, provam o contrário. Cristo não fala absoluta e universalmente de toda conversação; ou de prática extraor­ dinária; ou de casos de necessidade, quando a consciência deve ser esclarecida, o próximo assistido e a glória de Deus, promovida. Ele fala do hábito e da prática ordinários nos casos mais leves e de conversação familiar em que uma simples afirmação ou negação, e “sim, sim; não, não” (to nai nai, ou ou) deve­ riam ser suficientes. Aqui recomendam-se três coisas: (1) simplicidade de lin­ guagem, em oposição ao hábito de jurar; (2) veracidade, como oposta à falsida­ de e ao equívoco; (3) constância e fidelidade, como opostas à leviandade e in­ constância. Quanto a “o que disto passar” (to perisson) lemos que vem “do Diabo” (ek tou ponêrou) não pode estender-se às adições necessárias e justas em juramentos de maior peso e pertencentes à glória de Deus, ou à salvação do próximo, ou à nossa, permitidos e ordenados por Deus, mas deve referir-se somente às adições supérfluas e desnecessárias diversamente daquela simplici­ dade e veracidade de palavras, ocorrendo em juramentos leves e temerários. XV. O sexto mandamento acerca do homicídio não é corrigido, porém vindi-

cado em Mateus 5.21. Os fariseus o explicavam somente em referência ao homicídio externo, punindo-o de forma sumária. Cristo, contudo, o estende aos impulsos internos de ira e à linguagem insultante, impondo-lhes de fato punições eternas, porém diferentes quanto ao grau, em alusão aos diferentes graus das punições capitais infligidas pelos judeus (sobre isso, ver o Tópico IX, Pergunta 4, Seção 17). Assim Cristo ensina que o sexto mandamento se restringe impropriamente, nas escolas farisaicas, à matança positiva, porque somente esta era punida sumariamente entre os homens, ao passo que, no tribunal de Deus (diante do qual teremos que prestar contas não só dos feitos, mas também das palavras e pensamentos) estende-se também àquelas coisas que, diversamente, são removidas das punições geralmente infligidas pelos homens. XVI. Embora Cristo cite as palavras da lei concernentes à retaliação (que ocorrem em Êx 21.24: “olho por olho, dente por dente”), e lhes opõe sua própria opinião (“não resistais ao perverso”, Mt 5.39), nem por isso ele as corrige, como se ele pretendesse abolir simplesmente toda vingança. Pois ele mesmo, como Deus, ordenou o magistrado e o armou com a espada para aterrorizar e punir os mal­ feitores (Rm 13.3). Ele mesmo, quando ferido na face, não ofereceu a outra, porém resistiu ao perverso asseverando sua própria inocência e repreendendo a injustiça de seus adversários (Jo 18.23), o que Paulo imita (At 23.3). Antes, ele apenas refuta a interpretação dos fariseus que transferiam para a vingança pri­ vada o que foi sancionado pela lei de Moisés em referência à vingança pública do magistrado. Cristo deseja que seus seguidores ajam mui diferentemente, de modo que devam preferir que suas injúrias sejam duplicadas a vingar-se pesso­ almente. Moisés já havia ensinado isto: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos de teu povo” (Lv 19.18), indubitavelmente porque (como diz em outra parte): “Ao S e n h o r pertencem a vingança e a recompensa” (Dt 32.35). Não obstante, a lei de retaliação pode ainda ter lugar em seu sentido próprio; não precisa e formalmente, mas com respeito à estimativa moral. XVII. As palavras de Cristo sobre “voltar a outra face ao que a fere, e entre­ gar a túnica ao que a exige” (Mt 5.39,40) devem ser entendidas não tanto positi­ vamente como se a face deva ser realmente oferecida e a entrega da túnica seja feita (o que nem mesmo Cristo nem Paulo observaram quando feridos) quanto negativamente (i.e., concernente à não-resistência e vingança pessoal por uma resistência privada, irregular e desnecessária); não literalmente e segundo o que se expressa (kata to rhêíon), mas figurada e hiperbolicamente segundo o sentido (kata to noêton) sobre suportar outra injúria antes que vingar a primeira. De modo que devemos atentar aqui, não para as palavras, mas para o sentido e propósito em vista; não para a espécie do mandamento, mas para o gênero, que diz respeito à paciência (peri tss hypomonês ) e à tolerância (anexikakias ). Por­ tanto, aqui se proíbe a resistência culpável, oriunda da vingança, porém não a de legítima defesa e de proteção inculpável. XVIII. Cristo não corrigiu o sétimo mandamento sobre o adultério, quando

o estendeu ao desejo e aos olhares (Mt 5.28), porém desvenda o verdadeiro sentido da lei. Como espiritual, ela não considera apenas os impulsos externos, mas também os internos, de modo que o último mandamento concernente à cobiça também prova isto (contra os fariseus, que restringiam esta lei somente ao ato externo de fornicação). XIX. O mandamento de Cristo concernente a “repudiar a esposa, salvo por causa de fornicação” concorda com a lei de Moisés. Em Deuteronômio 24.1, as impurezas (aschêmon pragm a) podem ser melhor referidas a isto e à primeira instituição relatada por Cristo (Mt 19.4,5). Tampouco as palavras “carta de divórcio” são usadas por Cristo no sentido que têm na lei, mas como explicadas pelos fariseus. (1) Os fariseus geralmente falavam categórica e imperativamen­ te, “dá-lhe carta de divórcio” (Do/õ autê apostasiri), enquanto as palavras de Moisés são hipotéticas: “Se um homem tomar uma mulher e se casar com e la ... e se ele lhe lavrar um termo de divórcio, e lho der na mão, e a despedir para casa” (Dt 24.1). (2) Moisés tem uma restrição em sua permissão de divórcio “por causa de alguma impureza” ( 'rvth dbhr). Mas os fariseus não impõem nenhuma limitação: “aquele que repudiar sua esposa, dê-lhe carta de divórcio” (como se o repúdio de uma esposa, de qualquer maneira, de forma alguma conflitasse com a lei, contanto que a fórmula de destituição fosse observada e o esposo, pelo documento usual, lhe ordenasse que tomasse suas coisas e fosse cuidar de sua própria vida). (3) Os fariseus também torciam falsamente as pa­ lavras de Moisés levando-as a uma aprovação de divórcio, visto que havia ape­ nas tolerância e permissão. Isso de si mesmo não o instituiu, mas apenas lhe impôs limites incidentalmente, em virtude da dureza do coração dos judeus (Mt 19.7,8). Daí Cristo, em lugar da expressão tou eneteilato (que os fariseus usa­ vam), acrescenta a palavra epetrepsen (“ele permitiu”), não significando que ele foi admitido por uma dispensação moral, o que se dava por uma lei forense e civil; ou por uma relaxação do direito, o que seria apenas por uma relaxação do castigo; ou quanto à liberdade de culpa no tribunal interior da consciência, que só estaria livre de castigo no tribunal civil e externo. XX. Não se pode dizer que o mandamento de amor ao nosso próximo foi corrigido por Cristo com respeito ao objeto, como se o objeto do amor fosse mais restrito sob o Antigo Testamento (ou seja, o próximo do mesmo pacto e religião), porém no Novo se estendesse mais amplamente para abarcar todos os homens universalmente, inclusive os inimigos. Pois em cada um há o mesmo mandamento de amor, o mesmo objeto, a mesma forma e o mesmo fim, o mesmo amor, seja extensivamente quanto ao objeto, seja intensivamente quanto à ma­ neira e grau. Por “o próximo” (cujo amor a lei prescreve) não está em pauta apenas um judeu e compatrício, mas também qualquer estrangeiro; sim, inclusi­ ve um inimigo, no qual sentido os egípcios são chamados “próximos” (Êx 11.2) e também os filisteus (Jz 14.20). Assim um inimigo é também reputado sob o nome de próximo, quando lemos claramente: “Não te vingarás, nem guardarás ira contra os filhos de teu povo, mas amarás o teu próximo” (Lv 19.18). Saio-

mão ordena “dar pão a um inimigo faminto; e, se tiver sede, dá-lhe água a beber” (Pv 25.21 *), segundo o exemplo de Elias (2Rs 6.22). Sim, Deus ordena que “Se encontrares desgarrado o boi de teu inimigo ou seu jumento, lho recon­ duzirás” (Êx 23.4,5). Finalmente, nosso próximo é alguém contra quem não devemos dar falso testemunho e cuja esposa e bens não devemos cobiçar (ex­ pressões aplicáveis não a uma só, mas a toda e qualquer pessoa). Não constitui uma objeção que em Mateus 5.43,44 lemos (como que extraído da lei): “amarás a teu próximo e odiarás a teu inimigo”, porque Cristo ali se refere à adição de uma interpretação farisaica, não a uma imperfeição da lei (a qual nem agora nem nunca teve isto). A lei de retaliação dada sob o Antigo Testamento não restringia o mandamento do amor, porque ele trata do direito do magistrado, não dos deveres do amor; dos castigos a serem infligidos por um juiz ao culpa­ do, não de vingança privada. XXI. Se aos israelitas se proíbe casamento misto, fazer alianças com as sete nações de Canaã e até apiedar-se delas (Êx 34.12; Dt 7.2): (1) não se segue que foram intimados a odiá-las. Há um meio-termo entre fraternidade (implicando uma concordância na mente e nos deveres) e ódio; a misericórdia para com elas não é proibida absolutamente, mas apenas relativamente (com respeito à vin­ gança de Deus relativa a elas, as quais devem ser mortas por sua ordem expres­ sa e deveras por esta razão - para que não sejam uma rede para seu povo). (2) A ordem não envolve ódio, mas envolve sua destruição, porque Deus as devotou à morte como seus inimigos em virtude de seus crimes terríveis (Dt 20.10). (4) No Novo Testamento, isto também é válido, não só quando somos proibidos de orar por aqueles que pecam para morte (Uo 5.16), e de dar as boas-vindas àquele que introduz outra doutrina (2Jo 10), mas também porque as guerras são permitidas. XXII. (2) O mandamento do amor não foi corrigido por Cristo quanto ao modo e intensidade, se levarmos em conta a Deus ou ao nosso próximo. Com respeito a Deus, não pode haver maior amor do que aquele com o qual somos acenados a amar a Deus como o supremo bem, não só em virtude das bênçãos que ele nos concede, mas também em virtude de sua excelência (cuja grandeza é incomparável). Com respeito ao nosso próximo, o amor não é suscetível de nenhum grau, porque somos impelidos a amá-lo como a nós mesmos. A imposi­ ção do evangelho de que demos inclusive a vida por nossos irmãos (U o 3.16) não prova que devemos amar nosso próximo mais que a nós mesmos, de modo que a medida do amor cristão seja maior do que a exigida pela lei. (a) A ordem de darmos a vida por um irmão não era desconhecida sob o Antigo Testamento, como transparece do exemplo de Moisés que desejou morrer pelo povo; e de Davi por Absalão (2Sm 18.33); dos três amigos dispostos a morrerem por Davi (2Sm 23.13-17). Tampouco este [amor] era desconhecido dos próprios pagãos, como é evidente dos exemplos dos que se devotaram à morte por seu país e não recusaram morrer por seus amigos - como Damon e Pythias, Pylades e Orestes (o que Paulo mesmo confessa, Rm 5.6,7). (b) O termo de comparação (“como

a nós mesmos”) não deve ser entendido canonicamente (kanonikõs), mas exem­ plarmente (paradeigm atikõs ). Tampouco exibe a medida e a regra segundo as quais devemos amar nosso próximo, mas apenas o exemplo, e um exemplo tal que mais intenso comumente não existe, porque por natureza somos propensos a amar a nós mesmos (Ef 5.29). Assim aquele que dá sua vida por um irmão não ama àquele irmão mais do que a si próprio, mas como a si próprio, porque ele faz o que desejaria que fosse feito a si mesmo em caso semelhante, (c) Aquele que dá sua vida por um irmão de fato ama a sua própria vida menos que a segurança de outrem; mas cie faz isso porque a segurança de outrem é muito mais valiosa que a vida temporal, e especialmente porque a glória de Deus está em pauta nela; sim, mesmo nossa própria segurança, à qual devemos amar mais que nossa própria vida. Daí, pode-se perder voluntariamente esta vida a fim de se obter a eterna. XXIII. O mandamento do amor não é por Cristo denominado “novo” (Jo 13.34) e “a lei de Cristo” (G16.2) absoluta e simplesmente quanto à substância do mandamento (o qual era o mesmo em ambos [os Testamentos]). É denomina­ do novo relativa e comparativamente (com respeito ao modo), porque é renova­ do por Cristo e restaurado ao seu esplendor de outrora (visto que ele se tomou quase antiquado pelos maus hábitos dos homens) e ilustrado e sancionado por novas razões e motivos (tais como o exemplo de Cristo e suas bênçãos maiores; visto que, se ele nos amou de forma tão grandiosa, devemos, por nossa vez, para que o amor seja pago com amor, deleitar-nos nele e em nosso irmão, em virtude dele, como uma recompensa de amor, 1Jo 4.11). Ele é novo também com respei­ to à duração, porque é perpétuo e eterno. XXIV. Não se pode dizer que algo foi acrescido por Cristo aos preceitos da lei moral quanto aos essenciais. Não ao primeiro, mesmo pelo novo método de orar (proposto na oração do Senhor), porque o mandamento de cultuar e adorar a Deus necessariamente abarca a oração. Embora a oração do Senhor quanto à forma tenha sido instituída por Cristo, ela nada tem, quanto à matéria e às coisas a serem buscadas, que não esteja expresso nas orações dos santos veterotestamentários. Não um novo culto a Cristo e ao Pai nele, porque a adoração de Cristo foi com frequência tanto ordenada no Antigo Testamento (SI 2.12; 45.11; 97.7; Êx 23.20-25) quanto confirmada por vários exem plos-de Abraão (Gn 18.23), de Jacó(Gn 48.16), de Daniel (Dn 9.17). Sim, nenhuma oração foi oferecida pelos patriarcas a não ser no nome de Cristo (no mínimo implicita­ mente), porquanto descansavam nas promessas divinas cujo fundamento era o Messias (2Co 1.20). XXV. Não ao segundo mandamento, pela proibição não só de se cultuar as imagens e ídolos, mas também sua fabricação e a frequência aos lugares con­ sagrados aos ídolos. Este mesmo fato já fora ordenado sob o Antigo Testamen­ to, quando recebem ordem de queimar os ídolos dos pagãos, destruir seus alta­ res e deitar abaixo seus bosques (Êx 23.24; Dt 12.2,3). Não só isso; foram

proibidos de usar os nomes dos ídolos em sua conversação (Êx 23.13; SI 16.4); inclusive a amizade com os idólatras é considerada mui perigosa para a reli­ gião (Dt 7.2,3). XXVI. Não ao terceiro mandamento, quer pela invocação de Cristo para testificar como aquele que sonda os corações (Ap 2.23). Como Cristo foi adora­ do sob o Antigo Testamento como co-etemo e co-essencial com o Pai, assim por seu nome se pode jurar (Is 45.23; Rm 14.11). Quer pela proibição absoluta de juramentos, visto que (como já foi dito) o discurso de Cristo em Mateus 5 não deve ser entendido absoluta e simplesmente, porém com uma limitação quanto ao tema (i.e., aquelas formas precipitadas e perversas de jurar no nome de cria­ turas usadas na conversação diária). Nem ao quarto mandamento, pela ab-rogação do sábado, porque (como se provará mais adiante) ele foi ab-rogado só como cerimonial, não como moral. XXVII. Não ao quinto mandamento, pelo respeito aos magistrados, senho­ res e esposos (que devem ser obedecidos como pais). É certo que sob o título “pais” no Antigo Testamento estão também inclusos, respectivamente, magis­ trados, senhores e esposos (Gn 41.43; 45.8; Jó 29.16; 2Rs 5.13). Esses devem usar seu poder moderada e paternalmente, não despoticamente (Dt 5.20,21; 17.15; 24.1; Ml 2.14,15). Não ao sexto mandamento, pela proibição de ira e insultos contra um irmão e de vingança contra indivíduos. Quanto ao primeiro ponto, a lei, ao proibir o homicídio, proíbe tudo que pudesse conduzir a ele, tanto injúrias e insultos externos quanto impulsos internos de ira e ódio. Quanto ao segundo, só é proibida por Cristo a vingança privada, em concordância com a lei, porém não a pública, a qual não pode ser separada do ofício do magistrado (Rm 13.1,2). XXVIII. Não ao sétimo mandamento, pela proibição dos olhares impudi­ cos, do divórcio (salvo por causa de adultério) e de toda luxúria e obscenidade de linguagem. Todos estes males já estavam envolvidos na lei (abarcando sob uma espécie o gênero inteiro), proibindo toda impureza (seja de ato ou palavra), e o décimo preceito, sobre a cobiça, confirma mais fortemente este mesmo fato. Não obstante, o divórcio (como já ficou expresso) não era permitido ou ordena­ do pela lei moral, mas apenas tolerado pela lei forense em virtude da dureza do coração (sklêrokarcJian) do povo. XXIX. Não ao oitavo mandamento, pela proibição da avareza e da avidez quanto ao alimento c ao vestuário, pois as duas coisas já tinham sido proibidas na lei: a primeira (Êx 20.17; 22.25; SI 119.36; Is 3.17); a segunda (Dt 21.20; Pv 23.20; Is 3.16,17; 5.11,12). Nem ao nono mandamento, pela proibição de toda e qualquer mentira, calúnia e difamação, porque estas também ocorriam na lei e foram proibidas em outras partes (SI 15.3; 101.5). Nem ao décimo mandamento, pela ordem de não volver a mente para algo cobiçado, porque Paulo ensina que toda concupiscência em geral é condenada (Rm 7.7,8) e as­ sim todas as suas espécies e graus. Numa palavra, todas as adições propostas

por nossos oponentes estão ou contidas sob os próprios mandamentos (como espécie sob seu gênero, partes sob o todo, efeitos sob as causas, consequentes sob os antecedentes e o reverso) ou são heterogêneas em referência a eles, estranhas ao seu desígnio e tema, ou mesmo opostas a eles (como é evidente à luz do que já ficou dito). XXX. O que de forma alguma está contido sob o amor a Deus e a nosso próximo, nem explícita nem implicitamente, nem quanto à letra nem quanto ao sentido, pode-se dizer com razão que foi adicionado à lei. Mas a abnegação, o levar a cruz e a imitação de Cristo estão contidos na lei; se não expressamente, pelo menos implicitamente e quanto ao sentido. Não podemos amar a Deus de todo o nosso coração sem estarmos dispostos a negar a nós mesmos, a levar a cruz por sua causa e a imitar a Cristo, que é Deus verdadeiro. XXXI. Embora a lei trate expressamente só dos deveres para com Deus e para com nosso próximo, contudo sob eles estão necessariamente contidos os deveres para com nós mesmos. Não podemos amar a Deus de todo o nosso cora­ ção sem todo gênero de santidade; nem amaremos corretamente a nosso próximo como a nós mesmos, a menos que regulemos o amor a nós mesmos pela lei de Deus. XXXII. Cristo é comparado a Moisés (Hb 2.1-3), não na legislação (como se ele fosse um novo legislador, mais perfeito que Moisés; pois nisso ele é bem o oposto, visto lermos que a lei foi dada por Moisés, mas a graça e a verdade vieram por meio de Jesus Cristo, Jo 1.17); mas, em parte, quanto ao tipo de doutrina (que num caso era jurídica, no outro, evangélica); em parte, em digni­ dade e glória (pelas quais Cristo é infinitamente mais excelente que Moisés). XXXIII. Embora a lei não ordene direta e formalmente o arrependimento (porque ela não realça a esperança de perdão para o pecador, e assim ele perten­ ce propriamente ao evangelho), contudo material e indiretamente está relacio­ nada com ele, porque nela está prescrita a regra do viver correto e o que é agradável a Deus (que é o desígnio do arrependimento). Q

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H possível acrescentar algo à lei moraI à guisa de conselho? Negamo-lo contra os papistas.

^ sta cluestã° (que jaz entre nós e os papistas) difere da O que é conselho e v a n g é l i c o precedente. Ali a disputa foi sobre preceitos; aqui a dispu­ A opinião dos ta ®so^rc conselhos. Os papistas definem conselhos “como papistas sendo boas obras não impostas, mas demonstradas a nós por Cristo; não ordenadas, mas recomendadas” (cf. Belarmino, “De Monachis”, 2.7 O pera [ 1857], 2:228). Estes são por eles chama­ dos “evangélicos” e “de perfeição” (perfectionis ), porque são proclamados e encorajados no evangelho como a lei mais perfeita e que conduz a uma maior perfeição de santidade (aqueles que se comprometem por um desejo especial

de guardá-los). Daí eles os fazem diferir dos preceitos: (1) da parte da matéria, que nos conselhos são muito mais difíceis e perfeitos do que os preceitos; (2) da parte do sujeito, porque os conselhos pertencem exclusivamente a uma cer­ ta ordem de homens; os preceitos, contudo, a todos universalmente; (3) da parte da forma (ou observância), arbitrária nos conselhos; porém, nos precei­ tos, necessária; (4) da parte do fim e dos efeitos, porque obtêm uma recompen­ sa maior e mais excelente (ou seja, de ouro) e um mais elevado grau de felici­ dade, superior ao da observância dos preceitos. E não estejam de acordo quan­ to ao número (alguns fazendo mais, outros menos), contudo há três principais, sobre os quais eles edificam a vida monástica: a continência, a obediência e a pobreza. A estes correspondem os três votos impostos aos monges: de conti­ nência perpétua, obediência regular [ou pontual] e pobreza voluntária. A opinião dos ortodoxos

contrapartida, os ortodoxos não negam que haja nas Escrituras certas obras indiferentes deixadas à vontade de cada um, e com respeito às quais se podem ministrar conselhos na Palavra de Deus, não impropriamente distinguidas dos preceitos a serem ne­ cessariamente obedecidos: tais como o conselho de Paulo concernente ao ca­ samento ou não casamento das virgens (ICo 7.26,36); concernente ao uso de vinho com respeito a Timóteo ( lTm 5.23*). Entretanto, são de tal natureza que não são em si mesmos agradáveis a Deus, e, quando negligenciados, não mere­ cem punição; nem quando observados, qualquer recompensa. Negamos, po­ rém, que haja algum conselho desse gênero sobre coisas morais, visto que estas se encaixam em mandamentos propriamente assim chamados, não sob conselhos. Uma vez mais, reconhecem que há diversos preceitos - alguns uni­ versais (obrigando a todos os homens sem exceção, como o mandamento do amor a Deus e a nosso próximo); outros especiais - adequados a certas pessoas num estado particular e maneira de vida (tais como os deveres dos magistrados, dos pais, dos esposos, e daí por diante); e ainda outros privados - impostos a indivíduos particulares (como a ordem dada a Noé para construir uma arca, e a Abraão para oferecer seu próprio filho). Negamos, porém, que qualquer desses se classifica entre os conselhos, visto que foram expressamente ordenados. Estabelecimento da questão

IIL A c>a aqu> UIT1 argumento ainda mais forte. Nunca lemos que usassem subterfúgios. Embora Cristo, quando uma vez consultado, tenha-se mantido tranquilo ao testificar que en­ ^ ’ ., .. M tregava sua vida por sua livre vontade, contudo, quando res­ pondeu ao sumo sacerdote e a Pilatos, ele falou francamente (Jo 18.19), e lemos que ele fez a boa confissão ( lTm 6.13). Assim os apóstolos se conduzi­ ram em Atos diante dos judeus e dos gentios. Os mártires, quando interrogados diante dos tribunais de juizes incrédulos, nunca evadiram suas interrogações ou responderam ambiguamente.

8. Está saturado de vários absurdos

(8) A opinião de nossos oponentes está saturada de muitos dos mais sérios absurdos. Pois, se é lícito tornar verdadeiro um anúncio claramente falso adicionando uma limitação (o que alguém pode conceber mentalmente a seu bel-prazer), se seguirá: (a) que não há nenhuma razão para Deus ter promulgado leis contra a falsidade e o perjúrio, visto que não há ninguém a quem tal limitação mental não possa propiciar auxílio imediatamente; (b) que o Diabo não é o pai da mentira, ou que ele nunca mentiu, já que ele deve ter sempre essa reserva; (c) que os mártires foram não só tolos, mas injuriosos, seja quanto à verdade, seja quanto a si próprios, visto que alguém é obrigado, especialmente em perigo de vida, a empregar toda defesa lícita por meio da qual desembaraçar-se (o que, segundo esta hipótese jesuítica, pode ser feito com facilidade), (d) Toda confi­ ança nos tribunais, nos pactos e nos contratos se esvai, seja pública (entre os príncipes ou estados) ou privada, nos procedimentos ordinários, se uma reser­ va mental jazer oculta, pervertendo e fazendo duvidosas todas as coisas. Visto, pois, que esta astúcia-na-perversão-da-justiça (strepsodikopanourgia) labora sob tantos e tão grandes absurdos, claramente se evidencia com quanta razão não só os ortodoxos, mas também os papistas mais sinceros, têm rejeitado e feito oposição com tanta energia a uma ficção tão extrema e contrária.

XVI. Uma coisa é manter em silêncio algo verdadeiro; outra é fa*ar a*S° falso. Não é uma mentira quando a verdade é oculta­ da pelo silêncio, mas quando é deduzida ao falar uma falsida­ de; como Agostinho responde aos priscilianistas que justificavam a falsidade pelo exemplo dos patriarcas ( 7b Consentius: Against Lving 23 [NPNF1,3:491 ]). Abraão pôde guardar silêncio acerca de algo verdadeiro quando não tratou Sara como sua esposa (Gn 12.18), porque não lhe fora perguntado precisamen­ te isto, nem era necessário que ele, de livre vontade, o declarasse; porém nada disse falsamente quando a chamou sua irmã, porque “de fato”, diz ele, “ela é minha irmã, porquanto é filha de meu pai” (Gn 20.12). Ademais, os exemplos dos santos estão registrados nas Escrituras, mas nem por isso são louvados; nem devemos viver por meio de exemplos, mas de leis. Daí Agostinho: “Quan­ do lemos essas coisas nas Santas Escrituras, porque cremos que foram feitas não devemos também crer que devem ser feitas, para não suceder que viole­ mos os mandamentos, enquanto em toda parte seguimos exemplos” (ibid., 21 [NPNF 1,3:489-90; PL 40.531]). XVII. As promessas e ameaças que contêm uma tácita condição não favo­ recem os subterfúgios jesuíticos. Embora esta seja tácita e não expressa, con­ tudo não era desconhecida daqueles a quem aquelas foram propostas (como a ameaça de destruição feita por meio de Jonas aos ninivitas [3.4] incluía uma limitação conhecida de todos, a menos que se arrependessem; os ninivitas en­ tenderam justamente assim, e por isso se arrependeram). Assim Samuel, em­ bora professe que viera a Belém para sacrificar ao Senhor (1 Sm 16.5), diz algo que estava para fazer e realmente o fez, porém não contou o que estava para fazer depois, porque não havia necessidade. XVIII. Cristo não usou subterfúgio quando disse “que não subiria para a festa” (Jo 7.8), enquanto que, não obstante, ele determinara tacitamente subir (como fez pouco depois). Ele não diz simplesmente que não subiria, mas rela­ tivamente com respeito a determinado tempo. “Eu ainda não subo [Egõ oupõ anabainõ ]”, porque seu tempo determinado ou hora designada de subir ainda não chegara, como imediatamente acrescenta. Ele, portanto, protela e não nega que subiria. Assim ele simplesmente diz que não sabe o dia e a hora do juízo (Mc 13.32) sem qualquer reserva mental, mas tem em pauta sua natureza hu­ mana como o Filho do homem. O gesto de Cristo pelo qual seus discípulos que descem para Emaús (Lc 24.28) foram levados a crer que ele iria prosseguir viagem não implica qualquer subterfúgio, mas uma ocultação de seu propósito que pertencia à prudência, não ao subterfúgio. “O Senhor determinou ir mais longe”, diz o jesuíta Barradius, “a menos que fosse retido por seus discípulos” (“De discipulis petentibus Emmaus”, Commentaria in Concordiam et H istori­ am Evangelicam 8.12 [1622], 4:309). “A verdade não enganou”, diz Ribera. “Se não fosse retido, ele indubitavelmente teria passado e ido em frente.” XIX. O exame para trazer a lume a verdade difere do subterfúgio para

Fontes de explanação.

Pa*'ar a mentira. O primeiro é confirmado pela prática de Salomão no caso das meretrizes, e do Salvador com Filipe, a quem . , , _ , . , ,. indagou sobre pao, provando-o, pois bem sabia o que estava para fazer” (Jo 6.6). Daí ser evidente que as investigações diferem amplamente dos subterfúgios, e prudentemente testar alguém ou ocultar uma intenção achamse tão longe de mentir como afastado da sinceridade cristã está quem protege uma mentira. Na prova é admissível ocultar a verdade; porém mentir, enganar, fazer perjúrio para que você prove com mais certeza, não é admissível. XX. As ficções dos médicos para aquietar os dementes têm sempre uma modificação entendida (bem conhecida na prática), de modo que ela é evidente com base na coisa da qual se trata e no fim a que eles se propõem - sendo que não inventam com o fim de enganar, mas apenas narram as ficções para exami­ narem a fraqueza da pessoa enferma. Uma vez feita uma explicação no final da sessão, não constitui pérfida impostura de subterfúgio que cura todas as coisas. XXI. Quando se indaga o que se deve fazer no perigo que corre um prínci­ pe de nosso país, ou para preservar a castidade de uma esposa ou mãe, ou para escapar à severidade de um tirano dominador, estando em perigo pessoal, ou para desviar incólume um viajante de um ladrão e assassino; certo e justo sub­ terfúgio para escapar-se não pode ser considerado uma reserva mental (que não se pode ser empregar sem pecar). Ouçamos particularmente Firmus, bispo de Tagaste, que, sendo interrogado sobre um homem procurado por oficiais, “Nem direi”, diz ele, “nem mentirei” (Agostinho, On Lving* 23 [NPNF1,3:468; PL 40.504]). E a mulher no pelourinho: “Não quero negar para não perecer, mas não me disponho a mentir para não pecar” (Jerônimo, Letter 1, “To Inno­ cent” [NPNF2,6:1; PL 22.327,328]). Portanto, cumpramos nosso dever e dei­ xemos o resto com a providência de Deus, que sabe como proteger o inocente sem o auxílio do pecado.

1 Reis 3" , . ’, l Joao 6.6.

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Se a primeira instituição do sábado estava no quarto mandamento; e se o mandamento em parte é mora! e, em parte, cerimonial. Negamos o primeiro ponto; afirmamos o segundo.

^ ^ ara fac'*'tar 0 entendimento da questão tão discutida acerca do sábado, é preciso pôr em relevo algumas coisas ‘ ’ - tanto concernente à etimologia do termo quanto concer­ nente às suas várias significações. A verdadeira derivação da palavra (pois não há necessidade de mencionar as conjeturas fúteis e absurdas de muitos) é do verbo shhhth (i.e., “cessar” ou “descansar”), o qual se relaciona ou com a exis­ tência de algo, quando cessa de ser e desvanece (como lemos do maná [Js 5.12] e do júbilo [ls 24.8], ou da operação de um agente quando cessa de trabalhar e se diz que “descansou” ou “parou de trabalhar” . Esta é a significa­ ção própria em Gênesis 2.3, quando lemos que Deus abençoou o sétimo dia porque “nele” (hhv shhhth) “ele descansara”. Portanto, aquele dia é chamado Et' lo ei do term o “sá b a d o ”

shbhth e vvm shbhth. O grego o traduz por pauein, anapauein e katapauein; o substantivo shbhth por anapausin (como Josefo, Against Apion 2.27 [Loeb,

1:302,303], e a Septuaginta frequentemente também o faz). Por outro lado, eles retêm a palavra hebraica, como também o fazem os escritores neotestamentários, que se abstiveram de traduzi-la por ser uma palavra bem conhecida, e assim a distinguem de um descanso profano e comum (como foi o caso com muitas outras palavras hebraicas, “Hosana”, “Pascha”, “ Immanuel”, entre outras). Suas múltinlas ® uso s'g n‘f'cado da palavra é múltiplo. O peculiar e sienifíea •ões primário (do qual todos os demais dependem e o qual está ' ’ subentendido aqui) é aquele pelo qual se entende cada séti­ mo dia da semana, bem como o evento - Deus, depois de concluir a criação das coisas, cessou de criar novas espécies e determinou que este fosse posto à parte para o descanso do homem daí em diante em memória do fato; de modo que não só, imitando a Deus, os homens descansariam das obras corporais e seculares, mas também o empregariam para o culto divino. Consequentemen­ te, pela mesma razão, todas as festas solenes dos judeus foram designadas pelo nome “sábado”, ainda que não ocorressem no sétimo dia (Lv 23.32 e outros lugares), porque eram guardadas quase do mesmo modo que o sábado sema­ nal. Terceiro, o primeiro, bem como o último, dia de cada festa (que durava muitos dias) é chamado sábado, porque ambos eram igualmente solenes. Cabe aqui o “segundo sábado depois do primeiro (deuteroprõton )” (mencionado em Lc 6.1), assim chamado, ou porque vinha em seguida à festa da Páscoa (que é o primeiro a partir do segundo [apo tês deuteras prõton ] na computação do Pentecostes, como afirma o grande Scaliger), ou porque era o último dia da festa (o qual, assim como era na ordem o posterior e o segundo sábado, assim também em dignidade era igualmente o primeiro ou o grande sábado, como o primeiro dia da festa, que era solene em virtude da assembléia pública congre­ gada nele; como se fosse chamado o primeiro secundariamente repetido). A segunda opinião é mais plausível para Beza e outros. Quarto, o sábado é tam­ bém tomado como sinédoque para a própria semana que o sétimo dia concluía: “Jejuo duas vezes (nêsteuõ dis tou sabbatou) por semana” (Lc 18.12); também mia sabbaton ( ICo 16.2) é expresso significando o primeiro dia da semana. ,, III. Também se, menciona trí(J sanado tríplice: . . , nas Escrituras um , .sábado , . plice: temporal, espiritual e eterno ou celestial. O tem­ es iritual e eterno Pora*®aquele que Deus prescreveu aos crentes vetero' ’ testamentários, o qual uma vez mais era ou anual (ou seja, a cada sétimo ano), no qual ele ordenara aos israelitas que deixassem a terra sem cultivo para que ela tivesse também seu próprio descanso (Lv 25.2), e o quadragésimo nono ano, que era o ano do jubileu (que era um sábado de sétimos anos, Lv 25.8); ou mensal, da lua nova; ou de cada primeiro dia; ou semanal, do qual falamos aqui. (2) O espiritual consiste naquela paz de consci­ ência desfrutada pelos crentes e na cessação das obras pecaminosas, cessação que devem procurar cumprir ao longo de todo o curso de suas vidas (o que é

mencionado em Hb 4.1,3). (3) O eterno e celestial é aquele pelo qual, tendo sido recebidos no céu perfeitissimamente livres tanto do pecado quanto dos labores e tribulações desta vida, descansamos eternamente em Deus: “Portan­ to, resta um repouso para o povo de Deus” (Hb 4.9, ou seja, um repouso celes­ tial sob o qual a felicidade eterna geralmente é prefigurada). Primeira Buscam_se particularmente duas coisas que esta questão questão■sobre abrangc: (*) concernente à sua primeira origem ou instituia oriaein do Quanto à primeira, não se indaga se houve uma mudança do sétimo dia para o primeiro por meio da aboli­ ' ção do sábado judaico (pois isso é admitido entre os cris­ tãos que reconhecem que tal mudança poderia ser feita por aquele que é o Senhor do sábado), mas tanto teria sido feita como foi feita adequadamente; que o sétimo dia (em virtude de sua parte cerimonial e o que, em razão disso, pertencia à economia legal) fosse abolido para que outro fosse instituído em seu lugar; não obstante, outro não poderia ser mais apropriadamente introduzi­ do sob a nova aliança do que o que ora é chamado dia do Senhor (em virtude da ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo neste dia, cuja escolha deve ser mui justamente celebrada sempre na igreja cristã, visto que nele foi mui plenamen­ te consumada a obra de nossa redenção e da nova criação); para que este fosse um monumento público da lei cerimonial abolida e da distinção que deve exis­ tir entre judeus e cristãos. Antes, a questão diz respeito ao princípio e origem desta mudança - se ela foi apenas de ordenação humana e política (ou eclesiás­ tica) ou de ordenação divina. 111. Aqui as opiniões dos teólogos variam. Alguns o atribuem ao direito canônico (como fazem os papistas, que deduzem dele também a necessidade A orisent do dia do Senhor E stabelecim ento da uestão

de tradições nào-eseritas). Há alguns entre estes que (segundo Azorius, Institutionum M orales, Pt. 11, 1.2 [1613], pp. 12-16) defendem sua autoridade divina (como Anchoranus, Panormitanus, Angelus Sylvester). Outros o atribuem à ordenação política (como os remonstrantes, que cm sua Confissão alegam que a distinção de dias foi removida sob o Novo Testamento, e os socinianos, que asseveram que sua observância é arbitrária (cf. Racovian Catechism [ 1818], p. 220). Outros ascendem a uma ordenação divina, de modo que, ou se pode dizer que Cristo mesmo instituiu imediata e expressamente aquele dia, o que Junius defende ("Praelectiones in Geneses”, em O pera Theologica [1613], 4:26,27 sobre Gn 2.1,2), e alguns outros com ele; ou apenas mediatamente, porque os apóstolos inspirados de Deus ( theopneustoi) o sancionaram na igreja cristã por preceito, pelo exemplo e por sua própria prática. Esta é a opinião mais comum dos ortodoxos e a esta aderimos. IV. Aqueles que atribuem a Cristo a origem do dia do Senhor se valem mui especialmente da ressurreição de Cristo (que ao ressurgir neste dia dentre os mortos parece havê-lo consagrado a seu culto em memória desse fato) e das várias aparições feitas após a ressurreição neste dia quando se apresentou a seus discípulos reunidos (Jo 20.19,26; Ap 1.10); também pela efusão do Espíri­ to Santo sobre os discípulos, a qual é tida como que ocorrendo neste dia. Em­ bora se possa dizer essas coisas com probabilidade, e pareçam haver dado ocasião para a instituição deste dia, contudo não podem gerar um argumento forte e sólido para prová-la, porque isto requereria um mandamento expresso (ou o exemplo de Cristo). V. Muito mais apropriado, portanto, é dizer que esta foi uma instituição apostólica. Puseram o dia do Senhor no lugar do sábado e o recomendaram às igrejas, não sem a influência especial do Espírito Santo, por meio de quem foram infalivelmente dirigidos a prescrever tais coisas como não só conducen­ tes à fé e à moral, mas também à boa ordem (eutaxian) da igreja e à realização do culto divino. Ora, há três passagens em particular das quais se deduz esta instituição: (1) de Atos 20.7 - “No primeiro dia da semana, estando nós reuni­ dos com o fim de partir o pão, Paulo, que devia seguir viagem no dia imediato, exortava-os e prolongou o discurso até a meia-noite”. Por que nos é dito que os apóstolos se reuniam para a proclamação da Palavra e a administração da euca­ ristia. neste dia mais que nos outros (ou no conhecido sábado dos judeus), a menos que naquele tempo o costume de manter reuniões estatuídas já prevalece­ ra, desvanecendo-se gradativamente a cerimônia do sábado judaico? Tampouco se deve dizer que mian sabhaton aqui não designa o primeiro dia dos sete, mas apenas um (i.e., algum dos sete), porque a expressão não é usada em nenhum outro sentido (Lc 24.1; Mc 16.2). O que se deduz de Lucas 5.17 (cf. 8.22) não se aplica aqui, porque uma coisa é dizer en mia ton hêmerõn (que denota um tempo indeterminado); outra é dizer en te mia, com o artigo que determina o dia. VI. (2) De 1 Coríntios 16.1,2, onde não só a prática apostólica, mas tam-

bém seu preceito, são apresentados: “Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa, conforme sua prosperidade, e vá juntando, para que se não faça coletas quando eu for”. O apóstolo deseja que as coletas sejam feitas pelos crentes em cada primeiro dia da semana (ou seja, no dia em que deviam ter suas assembléias públicas), o que ele extrai do costume dos judeus que, segundo Filo (cf. The Special Laws 1. 14.76-78 [Loeb, 7:145]) e Josefo (AJ 18.312 [Loeb, 9:180,181]), em cada sábado em que costumavam reunir-se tinham o hábito de fazer coletas nas sinagogas, dos dízimos e de ou­ tras ofertas voluntárias, e cm seguida os enviavam a Jerusalém para uso do templo e dos levitas. Em virtude da perseguição dos judeus, o advento de muitos estrangeiros e seu zelo contínuo em propagar o evangelho, a igreja de Jerusalém se viu grandemente premida por carência, e o apóstolo deseja que os crentes promovam coletas em benefício deles. Como, pois, ele ordena coletas em cada primeiro dia da semana, assim também se considera, por paridade de razão, ter ordenado assembléias nas quais se costumava fazer tais coletas (ou as haver aprovado por seu voto como já ordenado). VII. (3) De Apocalipse 1.10, onde João diz que “ele se encontrava no Espí­ rito no dia do Senhor”; por certo não no sábado judaico, porque indubitavel­ mente o teria mencionado; não em algum outro dia dentre os sete, porque nes­ se caso o título seria ambíguo, prestando-se mais para confundir do que para esclarecer; mas naquele dia em que Cristo havia ressuscitado, no qual os após­ tolos costumavam reunir-se para a realização do culto sacro e em que Paulo tinha ordenado se fizessem coletas, como era costume na igreja primitiva. Uma vez que ele fala daquele dia como conhecido e observado na igreja, não há dúvi­ da de que ele foi distinguido por esse nome com base no uso aceito na igreja. De outro modo, quem entre os cristãos teria entendido o que João tinha em mente com esta designação, se porventura pretendesse designar algum outro dia? VIII. Segundo, somente podia mudar o sábado (ou imediatamente e por si mesmo ou mediatamente por meio dos apóstolos), aquele que é o Senhor do sábado (Mt 12.8). Era mui adequado que o dia de culto fosse instituído por ele sob o Novo Testamento (por quem o próprio culto foi instituído e de quem se deve esperar todas as bênçãos em todos os cultos). IX. Terceiro, se o dia do Senhor não fosse constituído por Cristo nem pelos apóstolos, a condição da igreja cristã sob o Novo Testamento seria pior que a dos judeus sob o Antigo. Sob o Antigo Testamento foi destinado um dia para descanso do labor secular em que se concedia aos servos e aos animais de carga um tempo de alívio do trabalho servil (Dt 5.14), tal como não existiria sob o Novo Testamento. Todos podem perceber o quanto isto é absurdo, já que muito melhor é nossa condição em comparação com seu estado, que era humi­ lhante pelo intolerável (abastaktõ) jugo da lei. X. Quarto, se a instituição do dia do Senhor não passasse de uma ordena-

ção humana (seja política ou eclesiástica, como uma constituição humana cir­ cunscrevia a necessidade do culto público), então ele poderia ser rescindido tão facilmente quanto fora ordenado. Não poderia a necessidade de sua obser­ vância ser tão fortemente imposta, pois assim a pessoa profana poderia pres­ cindir dele, não atendendo à oração e às assembléias, e qualquer pessoa pode­ ria escusar-se para fazer ou negligenciar qualquer coisa, se nada pudesse ser extraído das Escrituras a obrigar a consciência além de uma designação huma­ na. Prudentemente, pois, e piedosamente (em adição à tradição invariável e ininterrupta da igreja), a sanção e prática apostólica é imposta para que a igreja nada faça, numa atividade de tanta importância, senão o que recebeu de homens inspirados (theopneustois ), e que por isso não seja de observação necessária. XI. Quinto, é favorecido pela autoridade dos pais que estavam mais próxi­ mos da época e dos tempos dos apóstolos. Entre os quais está Inácio (Pseudo­ Ignatius, “Ad Magnesianos”, 9.4 em Patres A postolici [org. F. X. Funk, 1913], 2:125; “Ad Trallianos”, 9.5, ibid., 2:104-107); Justino Mártir, (First Apolog)?* 67 [ANF 1:185,186]); Dionísio de Corinto, Segundo Eusébio (E cclesiastical H istory 4.23* [FC 19:259]); Melito, segundo o mesmo (Eusébio, ibid., 4.26, p. 262); irineu (Against Heresies 5.23* [ANF 1:551,552]); Tertuliano (Chaplet [FC 40:237]); Orígenes (cf. In Exodum Homilia 7.5-6 [PG 12.345-347]) e não poucos ouros. Cabe aqui a lei promulgada acerca dele pelo imperador Cons­ tantino, o Grande (cf. Eusébio, Life ó f Constantine 4.18 [Londres: 1845], pp. 189,190), reiterada e confirmada por imperadores sucessivos - Teodósio, Valcntiniano, Arcádio, Leão e Antêmio* - por meio dos quais as penas mais severas foram impostas sobre aqueles que exibissem espetáculos neste dia ou se entregassem aos prazeres, como se pode ver no “Codex de feriis” (cf. Cor­ pus luris Civilis, II: Codex lustinianus 12.9 [org. P. Krueger, 1968], p. 128). XII. A maioria de nossos homens assevera a mesma coisa. Calvino afirma: “E bem provável que os apóstolos retivessem no princípio o dia já observado; mais tarde, forçados pela superstição judaica, puseram outro no lugar daquele abolido” (em At 20+). Bucer afirma: “O dia do Senhor foi consagrado pelos próprios apóstolos aos atos sacros” (“De Regno Christi”, 1.11* em Martini Buceri Opera Latina [org. F. Wendel, 1955], p. 82). Assim Beza mantém que esta tradição é realmente divina e feita pelos apóstolos sob a sugestão do Espí­ rito: “Os serviços do dia do Senhor, portanto, o que também Justino, na Segun­ da A pologia (sic!), menciona expressamente, provêm da tradição apostólica e realmente divina” (Annotationes maiores in Novum ... Testamentum [1594], Pars Altera, p. 635 sobre Ap 1.10). Assim Gallasius, colega de Calvino e de Beza: “Recebemos isto como estabelecido: que o dia do Senhor teria substitu­ ído o sábado, não pelos homens, mas direto dos apóstolos, isto é, do Espírito de Deus, que os dirigia” (ln Exodum Commentaria [1560], p. 195 sobre Ex 31). Não diferentemente Fayus: “Merecidamente, pois, podemos dizer que os apóstolos, sob a diretriz do Espírito Santo, o colocaram no lugar do sétimo dia legal, que foi o primeiro na criação do mundo antigo” (cf. “Theses in quartum

Lcgis”, 33*. 12* cm Theses Theologicae in Schola Genevensi [1586], p. 66 [40]). Da mesma opinião são Bullinger (A H undredSerm ons upon the Apocalips [1561], pp. 29,30 sobre Ap 1.10); Gualterus, homi. 162+ (sobre Mateus); Junius (“Praelectiones in Geneses”, em Opera Theologica [ 1613], 1:26-61 sobre Gn 2); Piscator, em Aphor explic. Aphor. 18+; Perkins, Ames, Hyperius (In Epistolam D. Pauli a d Romanos e t ... a d Corinthos [ 1583], pp. 331,332 sobre ICo 16.2); Wallaeus (D issertado de Sabbatho 7* [1628], pp. 147-188); Voetius (Selectae Disputationes [1667], 4:760,761) e não poucos outros. Ainda Q116 se Possa dizer que o dia do Senhor é de instituiçâo apostólica, não obstante a autoridade sobre a qual ele repousa é divina, porque [os apóstolos] foram influenciados pelo Espírito Santo não menos nas instituições sagradas do que no estabeleci­ mento das doutrinas do evangelho, quer oralmente quer por escrito. Portanto, a ordenação divina é corretamente reivindicada aqui; não deveras formal e ime­ diatamente pela instituição de Cristo, mas mediatamente pela sanção e prática dos apóstolos inspirados (theopneustõn). XIV. Embora certas ordenações dos apóstolos (as quais se referiam aos ritos e ãs circunstâncias do culto divino) fossem variáveis e instituídas só por algum tempo (como a sanção sobre não comer sangue e animais sufocados [At 15.20]; sobre a mulher manter sua cabeça coberta e o homem a sua descoberta enquanto profetizam [ICo 11.4,5], porquanto houve causa e razão especiais para elas e (uma vez cessadas) a instituição em si deveria igualmente cessar, contudo houve outras invariáveis e de observância perpétua na igreja, nenhu­ ma das quais foi fundada em qualquer ocasião especial para durar só por al­ gum tempo durante o qual viesse a tomar-se temporal (tal como a imposição das mãos na separação dos ministros e a distinção entre os ofícios de diácono e pastor). Visto que a instituição do dia do Senhor foi deste gênero, disto infe­ rimos que a intenção dos fundadores era que a observância deste dia seria de direito perpétuo e imutável. XV. As constituições dos imperadores e os cânones dos concílios sobre a observância do dia do Senhor não provam que ele fosse apenas de ordenação humana, porque não foram os primeiros a sancioná-lo, mas apenas o confirma­ ram e o estabeleceram por sua própria autoridade como já instituído pelos apóstolos, para que ninguém presumisse violá-lo impunemente. Eles fizeram isto mui piedosamente, seja por causa dos gentios ou por causa dos cristãos ímpios, pois não queriam que este dia fosse profanado por eles (e que, sem constituições desse gênero, viessem a considerar-se livres e totalmente desim­ pedidos para violá-lo). XVI. As passagens bíblicas geralmente evocadas contra a instituição divi­ na do dia do Senhor (Rm 14.5; G1 4.10; Cl 2.16) não subvertem nosso argu­ mento. (1) Em todas essas passagens, a observância de algum dia para o propó­ sito da religião (com base na ordem de Cristo) não é mais condenada ou nega-

Fontes de explanação

da do que a escolha de algum alimento particular para o uso da religião com base na instituição de Cristo. E ninguém diria que a seleção de pão e vinho na Ceia para uso religioso fosse ilícito ou não instituído por Cristo. (2) O apóstolo fala expressamente desse respeito por dias (Rm 14.5,6) que naquele tempo cau­ sava escândalo aos cristãos; mas a observância do dia do Senhor (a qual o pró­ prio apóstolo ensina que prevalecia naquele tempo nas igrejas, ICo 16.1,2) não pôde propiciar a ninguém ocasião para escândalo. (3) Tais passagens tratam da distinção judaica de dias, o que era pertinente à escravidão sob os rudimentos fracos e pobres (G14.9), visto que tinham algo típico e cerimonial e recuavam ao rigor da lei (que agora não tem lugar com respeito ao dia do Senhor). XVII. Não se pode dizer que a liberdade cristã é reduzida por esta opinião. Não é liberdade, mas licença anticristã, pensar alguém que está livre da obser­ vância de qualquer preceito do decálogo e de uma sanção divina e apostólica. A experiência ensina suficientemente bem que a licença e a negligência das coisas sacras crescem mais e mais onde não se demonstra um respeito próprio pelo dia do Senhor. XVIII. Não obstante, acima de todas as coisas, devemos observar isto que não devemos ficar tão ansiosos em investigar a origem primária deste dia quanto em sua santificação cuidadosa e séria. Seja qual for a opinião que se queira seguir (pois concedemos a cada um o desfruto de seu próprio juízo), este cuidado deve ser estrita e inviolavelmentc tomado por todos - que, segun­ do o mandamento de Cristo, os crentes se mantenham limpos de profanação, seriamente se devotem aos exercícios sagrados da piedade e observem este dia consagrado de uma maneira santa. Concernente à necessidade e ao modo de sua observância, trataremos no que vem a seguir. XIX. Concernente à observância do Segunda questão: bém não há pouca controvérsia. Alguns (com excesso) concernente à se inclinam a extremo rigor e severidade e assim se observância do dia aproximam do judaísmo. Outros, ao contrário (com in­ do Senhor. Prova-se suficiência), usam relaxamento excessivo, o que abre a sua necessidade. porta para a profanidade e para a licença. Não obstan­ te, o meio-termo nos parece mais seguro. Apresentamo-lo em duas proposi­ ções: a primeira ensina a necessidade; a segunda, o modo de sua observância. XX. Primeira proposição: (1) a observância do dia do Senhor não é neces­ sária p e r se como parte do culto divino ou como uma graça de significação mística, porém ainda é necessária com respeito à observação da boa ordem (eutaxias) e da política apostólica e eclesiástica. Não pode ser considerada uma parte do próprio culto, mas apenas um adjunto e circunstância dele, por­ que o evangelho e o culto racional (logikos) do Novo Testamento já não estão restritos a lugares e tempos (como sob o AT), mas pode ser realizado em todo e qualquer lugar e sempre em espírito e em verdade. Contudo, ele é necessário, segundo o arranjo divino, com vistas a preservar sempre a administração da

igreja, porquanto, sem um dia determinado, nem a ordem nem o decoro existi­ riam na igreja, mas haveria mera confusão nas assembléias eclesiásticas. (2) Não foi instituído com base em alguma razão particular para uma igreja de uma época, mas geralmente, para a igreja de todos os tempos. Como os apósto­ los (que o sancionaram por seu próprio exemplo e preceito, ICo 16.2; At 20.7) eram embaixadores universais, assim tiveram em consideração o bem de toda a igreja nesta sanção. E como foi recebido ainda na época dos apóstolos, assim foi constantemente retido por todas as igrejas (como é evidente com base na história eclesiástica). (3) Não pode haver razão para mudança, visto que, assim como se dá com a memória da morte de Cristo, assim também a memória da ressurreição deve ser perpétua na igreja (ICo 11.26; lTm 2.8). (4) Foi mais tarde confirmado pelos vários cânones dos concílios ecumênicos e pelos mui­ tos editos e leis dos imperadores. XXI. Ora, ainda que prontamente admitamos que, se é do agrado de Deus (que é o Senhor do sábado), ele pode mudar este primeiro dia para qualquer outro dos sete, contudo não cremos que isto seja lícito a qualquer mortal, de­ pois de uma observação tão constante e geral deste dia. E, se é possível admitir casos em que os exercícios públicos de piedade não podem ser realizados neste dia, não se segue que esta observância é apenas temporal e mutável; pois isto não é feito espontaneamente, mas com base na necessidade (que não tem lei). XXII. Se os cristãos antigos observaram o sábado por algum tempo tam­ bém, em relação com o dia do Senhor, de modo que mantinham assembléias naquele dia e julgavam errôneo jejuar nele, como deduzimos das Constitui­ ções dos Santos Apóstolos (2.59 [ANF 7:422,423]) e de Sócrates10(Ecclesias­ tical History’ 6.8* [NPNF2, 2:144]), isto fazia pertinente parte do sepultamento decente da sinagoga. E evidente que a festividade do sábado, mesmo quan­ do observado, era considerado muito inferior ao dia do Senhor. Isto transpare­ ce mesmo disto - que entre os erros dos ebionitas (em virtude dos quais foram condenados pela igreja), eram culpados também disto: celebravam o dia do Senhor e o sábado em conjunto (em Eusébio, Ecclesiastical History 3.27* [FC 19:184]). Note-se também o Concílio de Laodicéia, cujas palavras transcreve­ mos aqui: “Não é conveniente que os cristãos se judaízem e descansem no sába­ do, mas que trabalhem naquele dia, preferindo descansar no dia do Senhor, como os cristãos, contanto que possam” (o que parece haver sido adicionado por causa dos servos que tinham senhores pagãos) “e caso se descubra que são judaizantes, que sejam anatematizados por Cristo” (Cânone 29, Mansi, 2:569). XXM- Segunda proposição: o modo da observação correta do ' dia do Senhor se resolve em duas partes - primeira, que pode ser chamado privativo e consiste em descanso e cessação de todo trabalho servil; E o m odo

10. Sócrates Scholasticum (aproxim adamente 380 a 450), historiador. Deu continuidade á obra de Eusébio,

História Eclesiástica, partindo do início do reinado de Constantino (306) c indo até o ano de 430. [N. do E.]

a outra, que é positivo, e diz respeito à santificação daquele descanso pelo culto religioso de Deus. XXIV. O descanso requerido não é o de tranquilidade e ociosidade, muito menos de festejo e glutonaria, de shows e danças, bem como outras práticas profanas condenadas por Paulo em Romanos 13.13. É o sábado de Yahweh, não a festa de Ceres, Baco ou Vênus. Antes, o descanso é a cessação de todos os trabalhos de nossa vocação ordinária e terrena, os quais nos afastam do culto divino. Assim devemos naquele dia abster-nos: (1) de todos os trabalhos que são estrita e propriamente denominados servis, geralmente feitos por servos e servin­ do aos homens (ou seja, tanto quanto possível, tendo em vista a necessidade ime­ diata); (2) de nossas obras que pertencem aos usos desta vida em atividades natu­ rais e civis, e se referem propriamente ao nosso lucro e beneficio. Isto é deduzido da concessão oposta, pois como ele nos outorga seis dias para que trabalhemos e façamos todo o nosso trabalho neles, assim neste dia ele ordena a cessação de tal trabalho para que nenhum obstáculo se interponha na via do culto divino. E ainda mais faz parte aqui a memorável lei de Leão e Antêmio, existente no “Co­ dex de feriis”, cujas palavras não nos envergonhamos de citar: “Decretamos o dia do Senhor para que seja tão honrado e reverenciado, que seja livre de todas as execuções, não se faça a ninguém nenhuma admoestação, não se faça nenhu­ ma exação de fiança, o oficial fique em silêncio, e não haja nenhuma convoca­ ção. Que o dia seja isento de exames judiciais, que a voz do leiloeiro seja silen­ ciada, que cesse a controvérsia dos litigantes” (Corpus luris Civilis, II: Codex lustinianus 12.9 [org. P. Krueger, 1968], p. 128). E mais adiante: “Tampouco, relaxando o descanso deste dia religioso, permitimos que alguém se ocupe com prazeres obscenos, shows teatrais, circos de diversão, e que os dolorosos espetá­ culos de feras selvagens não tenham nenhum patrocínio nesse dia. e se ocorrer nele nosso natalício, que a celebração seja prorrogada” (ibid.). XXV. Aqui, não obstante, são excetuados: (1) aqueles trabalhos que dizem respeito diretamente ao culto e à glória de Deus (Mt 12.5; Jo 5.8,9), pois neste caso os trabalhos que em sua natureza são servis se encaixam na natureza de trabalhos sacros - já não são bem trabalhos nossos, mas de Deus; (2) obras de caridade e de misericórdia que são contados entre os deveres de piedade (Mt 12.10,12; Jo 5.9; 9.14; Lc 13.15); (3) as obras de honestidade comum, porque, como sempre, assim neste dia mais que nos outros, devemos ocupar-nos e agir honestamente e com decoro; (4) obras de necessidade, que não são imaginadas nem produzidas intencionalmente por nós, mas são impostas a nós pela provi­ dência (Lc 14.5); não só absolutas e simples, para que sejam chamadas somen­ te necessárias (as quais de modo algum podem nos faltar), porém modificadas e relativas, de modo que as coisas que são consideradas necessárias sejam não só aquelas requeridas absolutamente para a subsistência ou sustento da vida, mas também aquelas que produzem um viver melhor. Resultando daí algum grande benefício e emolumento para nós e para o nosso próximo, se forem feitas, ou alguma grande desvantagem e perda se forem omitidas”. “O sábado”

(como Cristo testifica em Mc 2.27) “foi feito por causa do homem, e não o homem por causa do sábado.” XXVI. Portanto, não cremos que nesta cessação os crentes estejam obriga­ dos à precisão judaica que alguns (mais escrupulosos que justos) afirmam que não foi revogada, de modo que não é lícito acender fogo, nem cozer alimentos, nem terçar armas com um inimigo, nem iniciar viagem por terra ou mar, nem renovar-se com descontração inocente da mente e do corpo, coisas providas para que sejam feitas fora das horas designadas para o culto divino, nem prati­ car qualquer diversão, embora leve, de nada que pertença às vantagens e emo­ lumentos desta vida. Pois, embora esta opinião exiba uma bela aparência de piedade (e indubitavelmente com boa intenção é proposta por homens piedo­ sos visando obter melhor santificação do dia do Senhor, geralmente tão vi 1mente profanado), contudo labora sob graves desvantagens; nem pode ser mantida sem desse modo fazer a igreja recuar e pôr de novo nos ombros dos cristãos um jugo insuportável (abastakton ), contrário à liberdade cristã e à mansidão de Cristo e oposto à doçura do pacto da graça, agitando e atormen­ tando as consciências dos homens por escrúpulos infinitos e inextricáveis difi­ culdades (quase levando ao desespero). XX VI1. A outra parte da observância do dia do Senhor pertence à santifica­ ção do descanso que é empregado em assembléias sacras e no culto público e estatuído de Deus. Pois embora as assembléias sacras para os exercícios públi­ cos da piedade possam e devam ser frequentadas por todos também em outros dias (tanto quanto seus negócios o permitam) e toda pessoa piedosa esteja obrigada pelo dever de consciência a ter privativamente seus exercícios devocionais diários, contudo nesse dia, acima dos demais, deve-se fazer uma santa convocação (como era o costume no sábado, Lv 23.3) para que haja lazer para dar-se atenção devota à leitura e à audição da Palavra (Hb 10.25), a celebração dos sacramentos (At 20.7), salmos e orações (Cl 3.16; At 1.14), esmolas e auxílio aos pobres (ICo 16.2) e, em geral, a todo e qualquer serviço sacro pertinente ao culto externo e estatuído. XXV111. E todos concordam que para isto devemos especialmente devo­ tar-nos, sendo removidas as muitas outras controvérsias aqui empreendidas, quer por curiosidade, ou de modo algum necessárias e úteis. O Sínodo de Dort tem referência a isto, mantendo “que este dia deve ser apropriado ao culto divino, para que descansemos nele de todos os trabalhos servis (com a exceção daqueles que a caridade e necessidade premente demandam) e de todos os prazeres que sejam de tal espécie que possam impedir o culto divino” (“PostActa, of Na-Handelingen, Sec. 164”, em Acta o f Handelingen der Nationale Synode ... 1618 en 1619 [1987 repr.], pp. 941,942). E “para que o povo no dia do Senhor, depois das 12 horas, não se distraia com outros labores e exercícios profanos, mantendo-se afastado das reuniões vespertinas, deseja-se que os ma­ gistrados proíbam com editos mais severos todos os trabalhos servis diários, e

especialmente diversões, bebidas em grupo e outras profanações do Sabbath [ou seja, no dia de santo repouso], em que a maioria costuma passar as tardes (especialmente na cidade), de modo que dessa forma também possa assistir melhor aquelas reuniões e aprenda a santificar todo o dia do Sabbath” (ibid.). Não é por outra razão que Deus, na Lei e nos Profetas, tão fortemente insiste e recomenda a santificação do sábado, e ameaça punir com tanta severidade sua violação e profanação. Pois embora essas coisas tivessem uma referência pri­ mária aos judeus, contudo não podemos nutrir dúvidas de que, à sua própria maneira, tinham referência também aos cristãos, porque incluíam um dever moral e uma observância perpétua. XXIX. Embora o consciente respeito por dias (e por outros temP0S cerimoniais típicos do AT) e sua distinção tenham sido removidos sob o Novo Testamento, como também a distinção supersticiosa de dias e tempos (prevalecente entre os pagãos) seja diretamente proibida, não se segue que por isso o Sabbath do Senhor, transferido do sétimo dia para o primeiro (e isento do uso típico e do rigor econômico do AT), foi abolido. XXX. Aquele que faz obras necessárias de caridade e misericórdia no Sa­ bbath não o profana. Seria culpado da mais vil superstição e hipocrisia quem, sob este pretexto, abandonasse um vizinho em sua tribulação. Ele deve ajudar a quem puder e servir a Deus segundo sua ordenação. Pois lemos que o sábado foi “feito por causa do homem”, para que este, de uma forma especial, desen­ volva sua própria salvação realizando os deveres de piedade a Deus e de amor a seu próximo; “não o homem por causa do sábado”, como se ele devesse negligenciar a caridade ou a misericórdia necessária para consigo mesmo ou para com o próximo por respeito supersticioso pelo sábado. XXXI. A cessação de toda obra servil e do prazer carnal não deve ser im­ posta em detrimento da prática espiritual da verdadeira santidade. Não deve ser imposta em virtude de si mesma, como se fosse parte do culto ou como se o dia em si fosse mais santo do que outros, mas como a condição e a ajuda para que os exercícios privados e públicos sejam assim realizados. Portanto, esta doutrina está bem longe de guiar os homens à opinião de que terão cumprido seu dever de maneira extraordinariamente bem se, abandonada a aspiração pela verdadeira piedade e santidade, eles se devotarem a uma cessação escru­ pulosa e absoluta de todo trabalho. Buscamos o meio com vistas ao fim, e a condição com vistas à obra principal (ou seja, o descanso com vistas aos exer­ cícios espirituais da verdadeira piedade e santidade). Portanto, a prática do Sabbath já não se deve sobrecarregar com aquelas consequências do abuso aci­ dental dos homens, mais do que a prática da leitura sacra, de ouvir a palavra, das orações e dos sacramentos, os quais são suscetíveis dos mesmos abusos, embora ninguém negue que estes sejam deveres morais de observância perpétua. XXXII. A acomodação do quarto preceito ao estado peculiar dos judeus Fontes de explanação

(que consistia na observância do sétimo dia desde o princípio da criação) não tomou este preceito algo mais cerimonial do que a promessa de dar a terra de Canaã ao povo de Israel torna cerimonial o quinto mandamento; nem o prefá­ cio, onde se menciona a remoção do povo do Egito, toma cerimoniais todos os preceitos. Aliás, admitimos que uma observância um tanto mais estrita do sá­ bado foi ordenada naqueles tempos, acomodada ao treinamento e à servidão dos tempos, o que não prevalece em todas as épocas. Não obstante, isso não impede que a observância em si seja moral e comum a todas as épocas. D

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Se pertence à fé no N ow Testamento que além do dia do Senhor há outros dias de festas propriamente assim chamados, cuja celebração é per se necessária e em ra^ão do mistério, não apenas em ra^ão da ordem ou administração eclesiástica. Negamos isso contra os papistas.

Festas são dias estatuídos que se repetem a cada ano ou semana ou mês, separados dos demais em prol da religião e da piedade e, por assim dizer, consagrados por alguma lei ao culto público da deidade. Ninguém põe em dúvida que houve muitas sob o Antigo Testamento, visto que uma distinção de dias era parte da lei cerimoni­ al. Mas a questão é se devem ter um lugar na igreja cristã. Esta é a questão entre nós e os papistas, os quais, como em outras coisas, têm retido vários ritos dos judeus. Aqui eles interpolaram o judaísmo, ou, melhor, o próprio paganis­ mo (no qual se sabe que havia mais dias festivos distintos dos dias comuns), sobrecarregando o Cristianismo com imensa massa de festas, ao ponto de abar­ carem a maior porção do ano. II. A questão não é se a memória das bênçãos de Deus a nós e de mistérios de Cristo operados para a aquisição da salvação por nós devem ser perpétuos em nossa mente e ser continuamente objetos da nossa reflexão. Pois isto todos admitem e é feito diariamente mediante a proclamação da Palavra e a adminis­ tração dos sacramentos. Antes, a questão é se, para a recordação e a comemora­ ção solene e pública daqueles benefícios e mistérios, dias de festas especiais, consagrados a Deus, repetidos anualmente, devem ser celebrados pelos cris­ tãos todos os anos. Isto negamos. III. A questão não é se se pode selecionar dias dc aniversário nos quais se comemorem o natal, a circuncisão, a paixão, a ascensão de Cristo e mistérios semelhantes da redenção, ou inclusive nos quais se celebre a memória de algu­ ma bênção extraordinária. Pois os ortodoxos crêcm que isso deve ser deixado à liberdade da igreja. Daí alguns dedicam certos dias a tais festividades, não por necessidade da fé, mas por conselho da prudência para se incentivar mais a piedade e a devoção. Não obstante outros, fazendo uso de sua liberdade, retêm somente o dia do Senhor, e nele, em tempos estatuídos, celebram a me­ mória dos mistérios de Cristo, para quem “a dissonância das coisas desse gê­ nero não remove a harmonia da fé”, como Agostinho+ outrora observou sobre E stabelecim ento da questão.

certa abstinência. Antes, a questão é se uns dias são mais santos e sacros que outros, e se o culto divino, em certa parte, deve ser celebrado sob a razão de mistério e não apenas como relacionado com a ordem e a política eclesiásticas (como Belarmino mantém, “De Cultu Sanctorum”, 3.10 O pera [1857], 2:541 547, e é a doutrina e a prática pública dos papistas). Ao contrário, negamos que tais dias são em si mesmos mais santos que outros; antes, são todos iguais. Se alguma santidade lhes é atribuída, isso não pertence ao tempo e ao dia, mas ao culto divino. Assim, a observância deles entre aqueles que a retêm é apenas de direito positivo e de designação eclesiástica; contudo, não por necessidade de um preceito divino. IV. Primeiro, as festas propriamente assim chamadas (que pertencem à necessidade da fé, por si mesmas obrigatórias e sob a relação de mistério) devem ser ordenadas pela Palavra divina, porque o direito de prescrever seu próprio culto pertence exclusivamente a Deus (que em sua Palavra não omitiu nenhuma coisa que julgasse necessária à sua igreja). Em parte alguma, porém, lemos que tais festas foram instituídas ou guardadas por Cristo ou seus apósto­ los. Tampouco se pode trazer à baila aqui uma tradição não-escrita (agraphos ), visto que em lugar algum se pode admiti-la em matérias de fé e prática, como já se demonstrou. Segundo, esta prática traz de volta a distinção veterotestamentária de dias, abolida no Novo Testamento e condenada por Paulo (Rm 14.5,6; G1 4.10; Cl 2.16). Ela introduz na igreja, sob outros nomes e com apa­ rência suspeita, tanto a superstição quanto a idolatria do antigo paganismo. V. Terceiro, os antigos confessam que as festas eram observadas, não com base na instituição de Cristo nem dos apóstolos, mas por escolha e costume. Há uma passagem digna de nota em Sócrates onde, falando da discordância das igrejas orientais e ocidentais sobre a observância da Páscoa (que foi o primeiro dia festivo que começou a ser guardado na igreja cristã), ele diz ex­ pressamente: “Nem os apóstolos, nem o próprio evangelho, impuseram o jugo de servidão àqueles que se entregaram à doutrina de Cristo, mas deixaram que a festa da Páscoa e outras fossem celebradas segundo o critério livre e impar­ cial ((ê eu g m m o sym tõn euergefêthentõn timan katelipon) daqueles que havi­ am recebido bênçãos cm tais dias” (E cclesiasticalH istory 5.22 [NPNF2,2:130; PG 67.627,628]). E acrescenta: “Nem o Salvador, nem os apóstolos ordena­ ram que tal prática fosse observada” (ibid., p. 627). “Pois”, anexa ele, “os apóstolos não propuseram promulgar leis concernentes à celebração de festas, e sim prescrever-nos o método da piedade e do viver correto” (ibid.). Nicephorus reitera isso (E cclesiastical H istory 12.32 [PG 146.847-854]). VI. Quarto, no papado, estas festas semearam as sementes de superstições letais, fazendo os dias de festas em si mais santos que os demais, fomentando a opinião de obra operada (operis operati), anexando-lhes mérito e a expiação de pecados, consagrando-os aos santos e ligando-os assim ao culto de latria, visto que (segundo Durandus) as festas também pertencem à latria (cf. Senten-

tias theologicas Petrí Lombardi Commentariorum , Bk. 3*, Dist. 38, Q. 1 [ 1556], p. 234). Finalmente, fazem tantas festas, e atordoam a mente com ninharias e escrúpulos tão difíceis, que grandes homens do papado (vencidos por seu té­ dio) têm-se queixado com profunda amargura. Que se ouça Nicolau de Clemangis (“De novis celebratibus non instituendio”, Opera Omnia [1613/1967], pp. 155,156). Entre outras coisas, ele prova que seria melhor abolir algumas festas antigas, em virtude de seu grande abuso, do que instituir novas. Ele se queixa de que tantas coisas são lidas e faladas nas igrejas sobre os santos, que agora a leitura da Santa Escritura é totalmente omitida. Pedro Ailly, entre ou­ tras coisas, aconselha os principais eclesiásticos do Concílio de Constança “a tomarem cuidado para não designar tantas festas novas, para que, além do dia do Senhor e das festas mais importantes instituídas pela igreja, se permitisse trabalhar depois que o serviço [religioso] fosse ouvido, tanto porque muitas vezes depois das festas os pecados se multiplicam mais nas tabernas, nas dan­ ças e noutras diversões lascivas que o ócio fomenta, como porque os dias de trabalho mal suficientes são para suprir as necessidades da vida” (de Reform. Eccles.+). Polydore Virgil escreve: “Na mesma medida em que outrora foi costume instituir festas, igualmente agora parece preferível tomá-las obsole­ tas; visto que muitos grandes homens empregam descaradamente o descanso das festas, não para orar, mas para aumentar, cada dia mais, todo gênero de corrupções dos bons costumes” (De rerum inventoribus 6.8 [1671], p. 396). Erasmo o confirma (In Novum Testamentum ... annotationes [1522], p. 48, sobre Mt 11). O próprio papa Urbano VIII, em sua bula publicada no ano de 1642, tendo se esforçado para restringir o número de festas, entre outras coisas confessa: “As festas instituídas a princípio para glorificar a deidade, no avan­ ço dos tempos o homem hostil tem corrompido e convertido em grande ofensa a ele e a grave perda das almas” (Buli 759, “Pro observatione festorum”, em Bullarium ... sanctorum Romanorum Pontificum [1868], 15:206). Fontes de Embora o dia do Senhor seja sagrado para Deus, não se explanação se£ue>Por uma '8ual razão, que se possa consagrar a Deus ou­ tras festas. ( 1 ) 0 dia do Senhor foi instituído e guardado pelos apóstolos mesmos; outras festas foram ordenadas somente pelos pais. (2) O dia do Senhor, quanto ao gênero, é ordenado para que um dia em sete seja separado para o culto público de Deus (ainda que não quanto á espécie). Ao contrário, essas festas não foram ordenadas por nenhum destes meios. VIII. A prática dos judeus, que guardavam a festa de Purim, em Ester, e a Festa da Dedicação, em memória do templo purificado pelos Macabeus (men­ cionada em Jo 10.22), não provam imediatamente que este costume deve pre­ valecer na igreja cristã (em virtude da diferença entre a economia do Antigo Testamento e a do Novo). Apenas mostram que em certos dias (que se repetem anualmente) pode haver uma comemoração pública dos benefícios singulares de Deus, contanto que estejam ausentes os abusos, a idéia de necessidade, mistério e culto, superstição e idolatria.

IX. Paulo não afirma que a Festa do Pentecostes foi guardada por ele ne­ cessariamente (At 20.16), mas apenas que se apressou a estar presente em Jerusalém no dia de Pentecostes por causa do ajuntamento dos judeus (para que tivesse mais plena oportunidade de pregar e converter muitos a Cristo). X. Uma coisa é fazer menção da concepção, natividade, morte, ressurrei­ ção e ascensão de Cristo em certos dias em discursos proferidos para o povo, e assim abraçar a oportunidade de exortar, consolar, instruir os cristãos para edificação, piedade, paciência e santidade. Outra, entretanto, é realizar e, por lei estabelecida, impor necessariamente aos cristãos festas dedicadas a Deus e aos santos, constituir estas uma parte da religião e do culto divino como mais santos que outros dias. A primeira pode às vezes ser empregada com vantagem segundo as circunstâncias de tempo, lugar, pessoas e coisas (contanto que es­ tejam ausentes abuso, superstição e idolatria, como foi feito não raramente na igreja primitiva); a segunda, porém, não é lícita, tanto porque pertence somen­ te a Deus (e não aos homens) prescrever o que pertence ao culto divino, como porque o culto religioso não deve ser prestado a nenhuma criatura, senão so­ mente a Deus. XI. Uma coisa pode ser chamada “santa” ou absolutamente (com respeito a alguma santidade inerente), ou relativamente (com respeito à sua destinação a um uso sacro); ou por designação divina ou humana. Não existem dias aos quais se possa atribuir alguma qualidade de santidade inerente, para a qual eles não têin capacidade (e mesmo que se pudesse atribuir-lhes tal qualidade, isso não poderia ser feito pela operação dos homens, que a nada podem comunicar santidade interior). Não negamos santidade relativa a certos dias em razão de sua destinação para usos sacros, a qual (se procede de Deus, como outrora no dia de sábado e nas festas estabelecidas entre os judeus) era uma santidade relativa mas real, em razão da vontade divina. Mas se provém de homens, de modo algum se pode atribuir santidade a dias, exceto em relação às coisas feitas neles e em virtude do propósito para o qual se prescreve a cessação de nossos trabalhos. XII. Por festa (de que o apóstolo fala em ICo 5.7,8) ele não tem em mente um dia estatuído no qual a memória da paixão de Cristo deva ser celebrada, mas todo o tempo que começa com nossa regeneração; não só ao longo de sete dias (como a Páscoa dos judeus), mas todo o tempo de nossa vida. Isto é evi­ dente porque ele está falando da festa pascal, quando, uma vez morto um cor­ deiro, come-se o pão sem levedo. Ora, no Novo Testamento, Cristo, o Cordeiro de Deus, uma vez tendo sido morto (cuja eficácia permanece para sempre), nosso pão, o pão sem levedo da sinceridade e da verdade, deve durar o tempo todo do curso da vida. XIII. Se algumas igrejas reformadas ainda observam algumas festas (como a concepção, a natividade, a paixão e a ascensão de Cristo), diferem ampla­ mente dos papistas, porque dedicam esses dias somente a Deus, e não a criatu­

ras. (2) Não lhes é atribuída nenhuma santidade, nem se crê estar neles ne­ nhum poder c eficácia (como se fossem muito mais santos que os demais dias). (3) Não obrigam os crentes a uma abstinência escrupulosa e estrita demais de todo trabalho servil (como se nessa abstinência houvesse algum bem moral ou estivesse situada alguma parte da religião, e cm contrapartida fosse uma gran­ de ofensa se fazer qualquer trabalho nesses dias). (4) A igreja não está obriga­ da por nenhuma necessidade à observância imutável daqueles dias, mas, como foram instituídos por autoridade humana, assim pela mesma autoridade eles podem ser abolidos e mudados, caso a utilidade e a necessidade da igreja o exijam. “Pois tudo é dissolvido pelas mesmas causas pelas quais foi produzi­ do”, dizem os advogados. Numa palavra, eles são considerados como institui­ ções humanas. Estão ausentes a superstição e a idéia de necessidade. XIV. Sc em determinadas igrejas alguns dias são designados pelo nome dos apóstolos ou dos mártires, não se deve presumir que foram instituídos para seu culto, ou que devem ser realizados em sua honra, como fazem os papistas. Daí Belarmino asseverar “que a honra das festas pertence imediata e finalmen­ te aos santos” (“ De Cultu Sanctorum”, 3.16 Opera [1857], 2:555). Antes, são reportados à memória dos santos por quem Cristo edificou sua igreja para nos­ so beneficio (o culto e a honra, porém, são devidos somente a Deus, que confe­ riu aos apóstolos e mártires tudo quanto é digno de louvor que possuíram, fizeram ou empreenderam). Não os invocam nem lhes queimam incenso, po­ rém somente a Deus, a quem invocam. Dão graças pelos benefícios que nos redundam por seu ministério e exemplo. Daí não podermos aprovar o critério rígido daqueles que acusam tais igrejas de idolatria (nas quais tais dias ainda são guardados e o nome dos santos ainda é mantido), visto que concordam conosco na doutrina concernente ao culto devido somente a Deus e detestam a idolatria dos papistas. XV. Não obstante, embora nossas igrejas não condenem essa prática sim­ plesmente como má, contudo, visto que a dolorosa experiência tem demons­ trado que a instituição de dias de festas aceitos no papado, oriunda de um falso zelo (kakorêlia) dos judeus e dos pagãos, deu ocasião à idolatria abominável, a qual continua e se agiganta no papado, não sem pesadas razões têm preferido abolir tal costume em sua reforma (para que não se contraia nenhum contágio, mas que se esquivem criteriosamente do perigo dessa fonte). Pois na religião, quando ocorre mesmo o mais leve afastamento dos mandamentos de Deus, e os homens desejam que uma coisa lhes seja lícita, ou presumem que são, todas as coisas dignas de confiança devem ser temidas. Aliás, tem-se descoberto pela experiência que, a partir de princípios insignificantes, tem havido no pa­ pado prodigioso progresso na superstição e na idolatria quanto ao culto às imagens, invocação dos santos, purgatório, sacrifício da missa, orações aos mortos etc. Assim parece preferível recusar alguma coisa boa e útil (porém menos necessário) a fazer uso dessas coisas e incorrer no iminente risco de algum grande mal.

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Osjilbos podem esquivar-se do poder de seus pais e casar-se sem seu consentimento? Negamos isso contra os papistas.

I. Entre outras, em relação ao quinto preceito, esta questão concernente à honra devida aos pais é debatida entre nós e os papistas. De muitas maneiras, estes enfraquecem este preceito, mantendo que os filhos, contra o consenti­ mento de seus pais, podem não só contrair matrimônio, mas inclusive adotar a vida monástica. Portanto, é preciso aqui discutir dois pontos. Primeiro, se os filhos (os pais não querendo) podem de alguma forma esquivar-se de seu po­ der. Segundo, se têm o direito de casar-se sem seu consentimento. ^ ara c'ue a Pr'me‘ra questão seja mais facilmente estabele°'^ a’ devemos ver o que está implícito na “honra” devida aos Pa*s Parte seus fi^o s (visto que muitas coisas estão "’ contidas nela). (1) Amor, o qual deve ser nutrido para com eles, e cuja ausência (astorgia , “sem afeição natural”, Rm 1.31) é contada entre os mais detestáveis crimes. Pois, se nosso próximo deve ser amado, que próximo é maior entre nós do que pai e mãe, de cuja carne somos? E mais, se a bondade a nós outorgada deve conciliar nosso amor ao doador, de quem temos recebido mais ou maiores benefícios do que de nossos pais (de quem, como instrumentos do poder divino, temos recebido tudo quanto somos e pos­ suímos)? (2) Reverência, que lhes é devida, tanto em virtude da preeminência (hyperochên) (porque são superiores e os filhos, inferiores; e os inferiores de­ vem honra aos superiores) como em virtude de sua autoridade (exousian ) e poder sobre os filhos, que eles têm por direito de geração e de educação. Visto que esta autoridade é a mais alta, demanda honra especial, à qual, como peca­ dos abomináveis, se opõem o menosprezo (Lv 20.9; Dt 27.16; Pv 20.20), o desdém e a zombaria (Pv 15.5; 30.17). (3) Obediência obrigatória e voluntária (Ef 6.1; Cl 3.20; lTm 3.4; Tt 1.6); mas esta deve ser “no Senhor”, isto é, de modo que a obediência a Deus não seja comprometida, e a autoridade de Deus seja reconhecida. Pois, se ordenarem algo contrário, então é certo que os filhos não estarão obrigados à obediência, porque “é melhor obedecer a Deus do que aos homens” (At 5*.29*). (4) Gratidão; não só verbal, mas também real, em ofícios necessários ao sustento da vida em todas as coisas das quais dependem (o que é chamado pelos gregos antipelargia , “amor mútuo”). As cegonhas cos­ tumam cuidar, por sua vez, de seus velhos pais, como menciona Aristóteles (D e historia animalium 9.13 [ 1552], p. 216). O apóstolo e Cristo recomendam esta forma de agir ( lTm 5.4,16; Mt 15.4,5), de modo que, na falta de servos, não devem envergonhar-se de prestar-lhes deveres servis e obediência. Com o os nais devem ser honrados

^ questão é: os filhos podem desvencilhar-se da submissão e da obediência devidas aos pais, e esquivar-se da ' autoridade paterna? Os papistas sustentam isto, afirman­ do que os filhos podem (se os pais não o quiserem) devotar-se livremente à E stabelecim ento da auestão

vida monástica. Tomás de Aquino diz: “Após os anos de puberdade, os filhos podem obrigar-se por um voto religioso sem o consentimento dos pais” (ST, IIII, 0- 88, Art. 9, p. 1574). Belarmino confirma isto (“De Monachis”, 36 Opera [1857], 2:290-292). Ao contrário, nós o negamos. ^ ^r’me’ro’ Cristo condena expressamente isto nos fariseus que, sob o pretexto de piedade e de um voto, afirmavam que os filhos podiam recusar justamente os deveres Para com os Pais- “Mas vó? dizeis: Se alguém disser a seu pai ou a sua mãe: É oferta ao Se­ nhor aquilo que poderíeis aproveitar de mim; esse jamais honrará a seu pai ou a sua mãe. E assim invalidastes a Palavra de Deus, por causa de vossa tradição” (Mt 15.5*,6*). Pois embora esta passagem obscu­ ra tenha dado origem a várias interpretações, contudo todos concordam nistoque eles acreditavam que os serviços devidos aos pais podem ser subtraídos sob o pretexto da religião e do culto divino. Isto pode ser entendido em relação a uma oferta que um filho apresentou a Deus pelo bem de um dos pais, e sob este pretexto recusou socorrê-lo em sua necessidade, como se dissesse: é uma oferta por toda e qualquer coisa pela qual poderias ser assistido por mim, isto é: consagrei a Deus tudo aquilo com o que poderias dc outra forma ter sido ajudado nesta necessidade por mim (ou por meus bens), e por causa disso já não posso dedicá-la ao teu uso. Isso me absolve do direito que tens sobre mim e de toda honra e serviços devidos a ti - como Beza (Annotationes maiores ... Novum ... Testamentum [1594], Pars Prior, p. 92, sobre Mt 15.5) e Scaliger o interpretam. Ou pode-se entender como Masius, em c. 6 Judic.+ e muitos ou­ tros eruditos o preferem (e nos agrada mais). É aqui descrita a fórmula de voto e de juramento pela qual os filhos rebeldes devotam a Deus tudo quanto, pro­ cedendo dele, pudesse beneficiar a seu pai. O sentido é este: juro que não demonstrarei para contigo nenhuma bondade, não além do que não é lícito fazer uso das coisas sagradas para Deus, em cuja classe eu coloco como que por um voto expresso toda ajuda que eu poderia dar-te - “oferta”, ou, como em Marcos 7.11, “Corbã” (acrescentando-se “isto é”), quer dizer, uma coisa devo­ tada a Deus e sagrada, que nem mesmo tocar é lícito; “tudo quanto poderias aproveitar de mim”, isto é, queiras ou possas aproveitar (pois to õpheleisthai, aqui, é verbo que implica poder [dynêtikon] e “não mais honrará a seu pai e sua mãe” com nenhuma assistência (acrescentando-se “ele estará livre” ou “já não deve honrar”, que podem ser as palavras dos fariseus proibindo que o filho dê assistência a seu pai para que tenha participação com o filho). Isto parece ser insinuado em Marcos 7.12: “então, o dispensais de fazer qualquer coisa em favor de seu pai e de sua mãe”. Que este é o significado genuíno da passagem transparece dos ritos dos judeus, entre os quais fórmulas de juramentos e votos como essas eram frequentes. As vezes ocorrem no Talmude: “Que tudo isso seja corbã, pelo qual eu poderia ser-te útil” (qrbhn s h ’ny nhnh lk) ou “é algo sagrado” (i.e., que não era lícito tocar) “tudo quanto provém de mim e poderia Os filh o s não podem tom ar sobre s i um Voto contra o desejo ou o conhecim ento de seus p a is

ser-te proveitoso” (qrbhn khl mh dhthhn ’ mny) (Babylonian Talmud: Seder Nashim [org. I. Epstein, 1936], passim). Não obstante, porque os fariseus man­ tinham tais votos ratificados (tendo mais consideração pelas ofertas sagradas do que pelo mandamento que ordena honrar os pais), e assim lemos que ti­ nham eliminado do mandamento de Deus todo e qualquer efeito em prol de sua tradição, arrebatando os filhos do poder dos pais. Por esta razão, são severa­ mente repreendidos por Cristo, e com eles todos os seus seguidores. V. Segundo, a honra aos pais, prescrita na lei, não pode harmonizar-se com esta opinião, a qual isenta os filhos da reverência a eles devida num dever da maior importância (ou seja, a escolha de um tipo de vida tal que os afasta da obediência que lhes devem). Sim, os arrebata dos deveres que por natureza são indispensavelmente obrigados a cumprir. Não é de alguma ajuda dizer que a obediência devida a Deus. o Pai dos espíritos, deve ser posta antes da obediência devida aos pais humanos. Embora de bom grado admitamos isto, não se segue que ele esteja livre e desimpedido para devotar-se à vida monástica. Não está envolvida aqui a obediência devida a Deus (ou, antes, isso é contrário a ela), visto que ele proíbe que sejamos servos de homens ( ICo 7.23). VI. Terceiro, os filhos não são independentes. Portanto, não podem tomar decisão por si próprios, contrariando a vontade de seus pais. Daí a lei conside­ ra sem validade o voto feito por uma virgem na casa de seu pai, em sua juven­ tude, se o pai discordar dela (Nm 30.4). Tampouco é de algum vigor a objeção de que ele se refere somente a moças que ainda não atingiram os anos de pu­ berdade. A lei não limita isto, porém fala, em geral, de virgens que estão na casa de seu pai. E evidente que na lei não se concede às moças tal liberdade. VII. Quarto, esta opinião (eliminando a obediência dos filhos) subverte a própria natureza e destrói totalmente a sociedade humana. Pois quem trabalha­ ria para nutrir e criar os filhos se, depois de todo cuidado e ansiedade, são estranhos (deixando de pertencer-nos) e, por certo direito (ou, antes, por uma tirania turca), são arrancados de seus pais, os quais não podem desfrutar do conforto e obediência que esperam deles, especialmente na velhice, quando tais serviços lhes são ainda mais necessários. VIII. Quinto, o Cânone 16 do Concílio de Gangra se opõe a esta impieda­ de. “Tudo quanto os filhos”, diz ele, “subtraem de seus pais sob o pretexto de culto divino e não lhes concede a devida reverência, que seja anátema” (Man­ si, 2:1103). Belarmino tenta mostrar, sem qualquer propósito, que isto deve ser restringido aos que negligenciam a extrema necessidade paterna, e contra sua vontade assumem votos de alguma ordem de vida religiosa. O cânone fala em termos absolutos e sem qualquer limitação; não é lícito restringir a obediência devida aos pais a uma necessidade extrema. IX. O exemplo de Abraão, chamado por Deus de seu lar e dos Fontes de seus parentes (Gn 12.1), não pode favorecer nem a perversida­ explanação. de dos filhos que se esquivam do poder dos pais nem os dos

jesuítas gatunos que os arrebatam impunemente do seio de seus pais. (1) Abraão já era casado e não mais estava sob a guarda de seu pai. (2) Ele tinha recebido uma ordem divina especial, que não é o caso aqui. (3) Ele escapou de idólatras; estes, porém, fogem de pais cristãos. (4) Ele não assumiu votos de celibato (ou de obediência a qualquer homem) para enfraquecer o poder paterno; sim, ele saiu de casa, não contra, mas com o consentimento e para o benefício de seu pai. X. Quando lemos sobre os levitas, “aquele que disse a seu pai e a sua mãe: Nunca os vi; e não conheceu a seus irmãos e não estimou a seus filhos, pois guardou a tua palavra e observou a tua aliança” (Dt 33.9), fica demonstrado que deveras são dignos de louvor aqueles que, a fim de obedecer ao Deus que expressamente ordena todas as coisas, não têm respeito nem por sangue nem por relações conjugais. Isto pode se referir ou à lei na qual o sacerdote é proi­ bido de se chegar e de acompanhar o corpo morto de seu pai ou de sua mãe (Lv 21.10,11), como se não os conhecesse; ou ao feito dos levitas que tiveram que matar todos os culpados sem levar em conta as pessoas (Ex 32.25-28); ou aos tribunais, que devem portar-se sem qualquer acepção por pessoas. Não há, porém, qualquer referência aos que (contrariando o mandamento de Deus de honrar os pais) os abandonam para serem escravizados por outros homens. XI. Se lemos que a esposa “esquece seu próprio povo e a casa de seus pais” (SI 45.10), isto não se refere a negar a obediência devida aos pais, a que ela entenda (com base na lei do matrimônio instituída por Deus desde o princípio) que os pais devem ser deixados a fim de que ela se apegue a seu esposo. O dever dos crentes (que são obrigados a renunciar ao mundo, à carne e ao antigo Adão) é misticamente representado para que estejam indissoluvelmente uni­ dos a Cristo. XII. Quando Cristo nos ordena que odiemos aos pais por sua causa (Lc 14.26), ele não quer que os deveres da piedade lhes sejam negados, os quais se fundamentam na natureza e são indispensáveis. A ordem deve ser entendida comparativamente, de modo que o amor aos pais ceda ao amor divino (como quando os mandamentos dos pais se opõem à obediência devida a Cristo, de­ vemos pospô-los aos mandamentos de Deus). XIII. Embora Cristo não permita que aquele a quem ele ordena que o siga sepulte a seu pai (Lc 9.59,60), a fim de ensinar que a vocação divina deve ser preferida ao sepultamento de um pai, isto é, aos deveres para com os pais, não se segue que um filho (não chamado por Cristo, sem necessidade, o pai não queren­ do) faça um voto se esquivando para sempre da autoridade dos pais. Uma coisa é seguir ao Cristo que chama; outra é abraçar uma vida monástica sem tal voca­ ção e pelo culto da vontade (ethe/othrêskeian). Uma coisa é deixar que pais mortos (especialmente se são também espiritualmente mortos) sejam sepultados pelos mortos; outra é livrar-se de pais espiritual e temporalmente vivos e devo­ tar-se a pais fictícios, às vezes mortos em pecados.

XIV. A segunda questão se refere ao consentimento dos pais para casamento - se os filhos têm o direito de con­ trair matrimônio sem a boa vontade dos pais. E necessá­ rio não só restringir a licenciosidade dos jovens (que se entregam a esta matéria mais do que têm direito, envol­ vendo-se mutuamente num contrato conjugal [noivado], sim, e às vezes ao [novo] estado, sem que os pais sejam consultados e o queiram), mas também por causa dos papistas, cuja opinião favorece demais esta desordem. “Não deve ser posto em dúvida que os casamentos clandestinos, feitos com livre consentimento, são legais e genuínos casamentos, contanto que a igreja não os tenha invalidado; e sem delonga deve ser corretamente condenado, e o santo sínodo pronuncia maldito, quem negar que são verdadeiros e quem afirmar que os casamentos de filhos sem o consentimento dos pais são nulos, e que os pais os podem anular ou ratificar” (Session 24.1, “Reform of Matrimony”, Schroeder, p. 183). Belarmino afirma que o consentimento dos pais é matéria de honestidade, porém não de necessidade (“De Sacramento Matrimonii”, 19 Opera [1858], 3:824-826). XV. Ao contrário, os ortodoxos mantêm que o consentimento dos pais, nos casamentos dos filhos, não é apenas matéria de honestidade, mas também de necessidade, de modo que sem ele os casamentos não são legítimos e podem ser desfeitos. Neste estado da questão, observe-se: (1) a questão aqui não é se a autoridade paterna se estende ao ponto de poder compelir os filhos a casar-se contra sua vontade, e de assumir compromisso para eles sem seu consentimen­ to; pois isto é negado por ambas as partes. (2) Não diz respeito a pais insanos e maníacos ou cativos numa região muito remota, não podendo assim dar seu consentimento. Antes, diz respeito a pais sãos e livres, capazes de usar seu poder legítimo. (3) Não diz respeito a filhos livres e em sua maioridade, que já não estão sob o poder paterno (os quais ninguém tem dúvida de que são inde­ pendentes), mas diz respeito especialmente aos menores que em todos os as­ pectos ainda se encontram constituídos sob a autoridade paterna. (4) Não é se algum dissentimento dos pais pode impedir ou invalidar um casamento. Con­ fessamos que onde os pais mal-humorados e avaros, e por mera obstinação, não querem consentir o casamento razoável dos filhos e não podem apresentar razões suficientes para seu dissentimento após feita a solicitação por seus fi­ lhos, estes não estão absolutamente obrigados à vontade daqueles, porém lhes é direito recorrer a um poder superior ao qual pertence o juízo concernente à justiça ou injustiça do dissentimento. E assim, sendo a matéria bem considera­ da, podem determinar o que os filhos devem fazer e consultar seu interesse, suprindo neste ponto a falta de consentimento dos pais. Mas esta é a questão especial - se os filhos, sem o consentimento ou conhecimento de seus pais, podem casar-se legitimamente, não se buscando nem se esperando o consenti­ mento deles. Isto negamos. S egunda questão: concernente à necessidade do consentim ento dos p a is p a ra o casam ento de filhos.



XVI. As razões são: (1) com base no quinto mandamento, visto que a honra consiste principalmente na obediência r r devida a eles, e visto que esta deve ser prestada em todas • « c u » a V . . D , as colsas no Senhor , segundo o mandamento de Paulo excetuar o casamento, o qual é de ' . „ 1. , , . rimensa importancia para estabelecer a condição e a tortu­ ’ ‘ ’ ' na de toda a vida, e que, como a coisa mais difícil, excede a idade, o entendimento e o juízo dos filhos. Como pode dizer que lhes obedece em todas coisas quem no caso mais importante não demonstra respeito por eles? XVII. (2) Com base nas passagens especiais aqui pertinentes, nas quais são dados preceitos aos pais concernentes ao estabelecimento dos filhos no casamento. “E tomes mulheres de suas filhas para teus filhos” (Ex 34.16); “não darás tuas filhas a seus filhos” (Dt 7.3); “tomai esposas para vossos filhos e dai vossas filhas a maridos” (Jr 29.6); “E assim quem casa sua filha virgem faz bem; quem não a casa fãz melhor” (ICo 7.38). Ora, como seria possível dizer isso, a menos que os filhos vivessem em sujeição ao poder paterno, espe­ cialmente no ato de contgrair matrimônio?

rfOVQ-SC U

•j j j necessidade do „ consentim ento dos a is • os p a is. (1) com base na lei E f s io s 6 1

XVIII. (3) Há uma lei expressa concernente a uma filha seduzida e maculada e que é ainda solteira, a não ser que o pai consinta: “Se alguém seduzir qualquer virgem que não estava despo­ sada e se deitar com ela, pagará seu dote e a tomará por mulher” (Ex 22.16). Isto é reiterado em Deuteronômio 22.29. Não obstante, para que isto não fosse tomado absolutamente, mas com a condição do consentimento do pai, imedia­ tamente se acrescenta: “Se o pai dela definitivamente recusar dar-lha, pagará ele em dinheiro conforme o dote das virgens” (Ex 22.17). Nem a objeção de Belarmino é de qualquer força, o qual afirma que se trata, não de um casamen­ to já contraído, mas de um futuro casamento em consequência de um rapto precedente (“De Sacramento Matrimoni”, 20 Opera [ 1858], 3:826-830). A for­ ça do argumento permanece sempre. Se é deixado no poder do pai se este quer dar a filha desonrada em casamento àquele que a desonrou (que a solicita), certamente no casamento da filha se pressupõe a necessidade do consentimen­ to do pai. Sim, esta se impõe ainda mais fortemente; pois, se isto é válido com respeito a uma filha corrompida (cuja desonra parece ser coberta pelo casa­ mento), quanto mais com respeito a uma filha intocada e pura! Prova-se a mesma coisa com base na paridade, como já se averiguou à luz de Números 30.4. O pai pode invalidar o voto da filha; portanto, também um casamento. Se um voto, que é uma promessa feita a Deus, está sujeito à vontade paterna, quanto mais uma promessa feita aos homens! 4. Com base XIX. (4) Com base na prática contínua e do exemplo de na prática sob ambos os Testamentos. Abraão buscou Rebeca para seu fiantbos os lho (Gn 24); Agar, uma esposa para Ismael (Gn 21.21); Jacó, Testamentos. da parte de Labão (Gn 29.21). Ver exemplos afins em Cale-

3. Êxodo 22 16 17.

be que promete sua filha (Jz 1.12); em Sansão, que busca uma esposa da parte de seus pais (Jz 14.3); nos israelitas, que se obrigam em relaçào aos benjamitas que não dariam seus filhos, nem receberiam deles suas filhas (Jz 21.7); em Ta­ mar, que responde a Amnom segundo a lei e o costume, atribuindo a seu pai a entrega dela em casamento - “fala ao rei a meu respeito” (2Sm 13.13). 5 Poraue os filh o s não são independentes

^

Aqueles que não são seus próprios senhores não

P°dem dispor-se de si mesmos. Os filhos que ainda estão

so^ 0 Poder Paterno não são independentes, (a) São consi' ’ derados parte dos bens dos pais, como pertencendo a estes e estando à sua disposição (Jó 1.2,10,12). (b) Era lícito aos pais, em extrema pobreza, vendê-los como escravos (Êx 21.7). (c) O voto de uma filha é invali­ dado por um pai, porque ela está sob seu poder (Nm 30.5). Pois, se não é lícito dispor dos bens dos pais sem o consentimento destes (se ao filho não se deu nenhum poder de tomar dinheiro ou de vender propriedade), como lhe pode ser lícito dispor de si mesmo? O que é abominável no tocante à propriedade rural, em pessoas deve ser muito mais condenado (como no caso de uma alie­ nação de algo pertencente a outro). Punimos os ladrões que roubam dinheiro e objetos de seus proprietários; mas o roubo é muito maior quando é de algo muito mais valioso.

(S) A opinião de nossos oponentes é induzida com os maiores absurdos. Não só é violada a lei divina concernente à honra devida aos pais, a autoridade dos pais é mi­ nada e é tripudiada a moralidade pública que flui da lei da natureza, mas também (uma vez o pai não querendo) um herdeiro é introduzi­ do, a paz doméstica é perturbada, enquanto que (contra a vontade do pai) uma jovem esposa (que deveria estar no lugar de filha) é introduzida e a segurança dos filhos (que em virtude de sua idade não podem ainda decidir por si própri­ os) é posta em risco iminente. Desprovidos de conselho, de experiência e de compromisso, os filhos são facilmente cativados por encantos e enredados por casamentos miseráveis. A janela se abre amplamente para a concupiscência, visto que, com a esperança de casar-se, muitas virgens são facilmente seduzi­ das à fornicação. 6 Com base nas consequências absurdas

7 Com base nas leis civis

XXII. (7) As leis civis escritas com a mais elevada concordância. tanto pelos antigos jurisconsultos, quanto pelos impe­ radores, são tão bem conhecidas que não podem ser ignora­ das; tão claras que não podem ser obscurecidas; tão sagradas, que não podem ser abolidas sem prejuízo. “A razão natural e civil nos convence disto”, diz certo imperador, “que é preciso obter primeiro o consentimento dos pais” (Justiniano, Institutes, 1.10 [“De Nuptiis”] [org. P. Birks e G. McLeod, 1987], p. 4). Nem mesmo às viúvas (ainda que livres) ele admite isto, se têm menos de vinte e cinco anos, nem mesmo a um soldado (a cuja classe de homens se concedem muitos privilégios): “Um soldado, se for de menoridade, não con-

trai matrimônio sem o arbítrio do pai.” Paulus10 diz: “Não pode ser válido, a menos que todos concordem, tanto aqueles que se unem como igualmente aque­ les sob cuja autoridade [eles] se encontram ” (Corpus Itiris Civilis, I: Digesta 23.2.2 [“De Ritu Nuptiarum”] [org. P. Krueger, 1955], p. 330). Ulpianus diz: “Se o pai estiver mentalmente insano, e o avô estando estiver são, deve-se inquirir a opinião deste” (ibid., 23.2.9, p. 331). Não obstante, é preciso obser­ var as razões que são adicionadas na lei civil, (a) O poder paterno tem de ser imposto para que os filhos não sejam seus próprios senhores, (b) A sucessão de herança, para que um herdeiro não seja introduzido contra a vontade do pai. (c) A afeição dos pais, os quais, presume-se, dão o melhor conselho para um filho (para quem eles preparam tudo de bom grado), e de cuja prole esperam lembrança contínua, (d) O instável juízo dos filhos. XXIII. A maioria dos canonistas papais não decide de outro modo. Ver os testemunhos de Euaristius, Leão I, Pelágio, Urbano V, Nicolau (de Cusa) e outros, na obra de Espensaeus (“De clandestinis matrimoniis”, Opera Onmia [1619], pp. 633-655). Ele compilou muitas coisas sobre esta opinião, extrain­ do-as dos pais e dos próprios gentios. Deve-se consultar também Zanchius e Gherardus (“De conjugio, coelibatu et similibus argumentis”, em Loci Theologici [ 1869], 7:54-55), os quais coligem muitas passagens pertinentes de Graciano, Cassander, Erasmo, Vives, Groper, Beatus Rhenanus. XXIV. Se Esaú tomou uma esposa sem consultar seus pais, longe de isto confirmar a validade de tais casamentos, b , antes prova mais fortemente sua nulidade. Tal ato trouxe as partes muita amargura e teve um fim desastroso. Entretanto, se Isaque não o declarou nulo, isso deve ser atribuído, ou à indulgência paterna (que tolera muitas coi­ sas nos filhos que não consegue alterar), ou à obstinação de Esaú, que não pôde ser afastado do enlace injusto e ilegal. Contudo, o argumento do fato para o direito não é válido. Tampouco devemos deixar-nos guiar aqui pelos exem­ plos, e sim pelas leis. O mesmo deve ser dito do exemplo apócrifo de Tobias, que é trazido à baila. XXV. O que Deus ajuntou, que o homem não separe; Deus, porém, não deve ser considerado o autor daquela união feita só pela violação de suas leis. Se uma bênção eclesiástica entra em cena, ela não pode ratificar o casamento. Porque, seja por engano, seja por artes malignas, ela é extorquida da igreja; ou quando se admite que os ministros corruptos a prejudiquem, o que (quando é invalidado) a autoridade eclesiástica não é enfraquecida, mas afirmada. XXVI. A expressão segundo a qual o homem deve deixar seus pais e unir à sua esposa não vale, exceto para os casamentos verdadeiros e legítimos. Nes­ tes o vínculo é tão estreito que, se a alternativa for deixar os pais ou a esposa, é melhor ficar com a esposa. E mesmo numa relação perversa, como poderia o Fontes de

, " explanaçao.

10. Julius Paulus (séc. 3 'd .C .). Sua principal obra .AdEdic/um, enfeixava 80 livros, sobre os mais variados assuntos. Foi um dos mais importantes escritores de temas jurídicos dos tempos antigos. [N. do E.]

Senhor plausivelmente absolver os filhos (manifestamente rebeldes e obstina­ dos) do direito do poder paterno? XXVII. Apesar de os casamentos sem o consentimento dos pais (como sendo clandestinos) serem ilícitos (mesmo que a bênção da igreja e o ato sexu­ al se concretizem), nem sempre são realmente rescindidos. Isto provém, não da equidade ou retidão, mas da indulgência paterna, para que se evitem males maiores. No entanto, uma coisa é buscar o direito; outra é buscar tolerância (epieikeia) ou a remissão do direito em qualquer caso. Com respeito ao segun­ do, deve-se entender tudo quanto é dito por alguns ortodoxos e juristas sobre tais casamentos clandestinos, nos quais tenha ocorrido o ato sexual. Se não, se pelo intercurso ilícito o direito de anular tais casamentos fosse tirado do pai, se propiciariam inúmeros raptos e concupiscências, e se abriria ampla porta para toda tentativa de sedução de virgens respeitáveis, e o poder paterno seria tripu­ diado. Tampouco constitui obstáculo que uma virgem, que já perdeu sua vir­ gindade, seja forçada a viver sem esposo, e assim sofra injúria. Ela deve impu­ tar tal coisa à sua própria insensatez, o que deve fazer outras mais cautelosas e assim não permitam que se arruinem. Não devem queixar-se da injúria recebi­ da do pai. mas da miséria que trouxeram sobre si mesmas. XXVIII. Aqui não há absolutamente a mesma razão para escravos e filhos. Entre os escravos e seu senhor, a obrigação é meramente civil; mas entre pais e filhos é natural. Os servos pertencem aos senhores somente por possessão; os filhos, porém, pertencem aos pais por geração. Daí não há uma necessidade igual, quanto ao consentimento dos senhores nos casamentos dos escravos, como a que existe quanto ao casamento dos filhos em relação a seus pais. E mais, se os escravos são propriedade (como outrora), eles não podem casar-se sem o arbítrio do senhor, seja pelas leis divinas, seja pelas civis. Daí, concedese poder ao senhor para dar esposa a seu escravo (Ex 21.4; Lv 25.44). XXIX. Embora possa haver consentimento das partes contraentes em tais casamentos e a intenção do ministro, contudo há ausência de consentimento legal. Isto é feito não só com respeito às partes contraentes, mas também com respeito àqueles em cujo poder elas se encontram. Se um filho é livre, não é imediata e absolutamente independente (autoexousios) e senhor de si mesmo. Do contrário, como poderia um pai vender seu filho (Ex 21), e como poderia um pai invalidar o voto de uma filha, ou um esposo o voto da esposa (Nm 30)? Se de forma alguma ele pode alienar os bens dos pais. quanto menos a si próprio! D

é c im a

S é t im a P e r g u n t a : O S e x t o M

andam ento

Os direitos de guerra e punição estão contidos neste mandamento? Os suicídios (autocheiria) e os duelos são proibidos? Negamos o primeiro ponto; afirmamos o segundo.

I. Visto que podem ocorrer vários casos em que o homicídio pode ser lícito ou ilícito, e neste caso ser condenado, daí suscita-se a questão - o que é proibi­ do no sexto preceito, “Não matarás”, e o que não é proibido?

/. O hom icídio ju d ic ia l não é proibido.

Primeiro, negativamente (kat ’ arsin), não é proibido o homicídio judicial, praticado pelo magistrado público con*ra pessoas privadas a quem ele pune com a espada ou com a forca, ou de alguma outra forma. O magistrado está ar­ mado com espada com o propósito de vingar o mal (Rm 13.4; IPe 2.14). Isto pertence não apenas aos magistrados pagãos, então no poder, mas a todos os magistrados como tais, sejam ou não crentes. Sim, e tem uma referência espe­ cial aos crentes, os quais, como guardas de ambas as tábuas, devem atentar para a observação da lei. Isto não poderia ser feito se não lhes fosse permitido punir os culpados. Pois onde não há temor do castigo o crime é encorajado. Assim os anabatistas e os socinianos têm fracassado, os quais tudo fazem neste aspecto para arrebatar a espada do magistrado cristão. III. Não só o dever do magistrado reivindica isto, mas a tranquilidade e a paz públicas o demandam. Estas nunca poderiam ser preservadas se a espada não pudesse ser brandida contra os culpados, de modo que o estado seja puri­ ficado de tais infelizes. IV. A este direito público não se opõem, nem o sexto mandamento de Deus, que diz respeito a pessoas privadas (não aos magistrados e ministros de Deus investidos de autoridade pública), nem a caridade cristã, que pode amar as pessoas e punir os crimes. Seria uma violação da lei da caridade deixar impu­ nes os incorrigivelmente perversos como perniciosos à república e prejudici­ ais aos bons. Tampouco se opõe a esse direito a profecia concernente ao lobo que habita com o cordeiro (Is 11.6). Isto não se refere ao dever dos magistra­ dos, mas aos crentes. Consiste disto - que aqueles que outrora eram cruéis e ferozes, se tomam dóceis e vivem juntos pacificamente após colocar o jugo de Cristo. Não se opõem a ele as palavras de Cristo: “não resistais ao mal” (Mt 5.39,40), porque elas tratam apenas da vingança privada, não da pública (a qual deve ser exercida no nome de Deus, o qual afirma que a vingança lhe pertence). Este é o significado das palavras de Paulo: “Não tomeis a ninguém mal por mal” (Rm 12.17). Não lhe é oposto Mateus 26.52: “Todos quantos tomam a espada perecerão pela espada”. Uma coisa é tomar a espada sem que ela seja dada (como fazem todos os que a empunham para vingança privada, e estes são aqui condenados); outra é usá-la legitimamente, quando dada por Deus (o que fazem os magistrados). Tampouco se opõe ao mandamento o fato de Cristo não condenar a adúltera (Jo 8.11), porquanto Cristo não agiu como magistrado ou juiz na terra, mas como ministro da circuncisão (Rm 15.8). Não se opõe a ele a parábola sobre não arrancar o joio (Mt 13.29,30), porquanto o joio se refere aos hipócritas, não aos perversos declarados. Não trata do ofício dos magistrados e do castigo político, mas da administração da disciplina ecle­ siástica, em cujo exercício ele não deseja que seu povo seja demasiadamente rígido, para que os hipócritas não erradiquem os próprios crentes. V. Sustentamos a mesma opinião acerca do direito de guerra contra os

socinianos e os anabatistas, os quais crêem que a mesma esta abolida sob o Novo Testamento. Daí Smaltzius: “Ne­ gamos que seja lícito declarar guerras, e afirmamos que tal coisa é indigna da piedade cristã” (Refutatio Thesium D. Wolfgangi Frantzii, Disp. VI [ 1614], p. 393). Ao con­ trário, sustentamos que o direito de guerra pertence ao magistrado e pode ser legalmente exercido por ele numa guerra justa e necessária. Guerras injustas e precipitadas, empreendidas sem causa justa c necessária com base na mera ambição ou avareza, com o fim de estender as fronteiras de um império, detes­ tamos como meros assaltos de estrada. Prova-se o direito de guerra contra ws socinianos e os anabatistas.

raz®es sao: (1) ela era lícita no Antigo Testamento; por ’sso deve ser também lícita no Novo, visto que há a mesma razao em ambos no que diz respeito a este fato. Tampouco a * objeção de Socino é de qualquer força - que a guerra era lícita outrora porque Deus, de muitas maneiras, declarou que não a desaprovou naquele tempo; sob o Novo Testamento, porém, de modo algum (seja por Cris­ to ou pelos apóstolos) aprovou expulsão de invasores relacionada com sua destruição. Com base no mesmo fato de que Cristo não removeu, porém con­ firmou a autoridade do magistrado, ele também aprovou o direito de declarar guerra, uma vez que pertence ao magistrado defender seus súditos contra a violência injusta (o que certamente às vezes não pode ser feito sem guerra). Além disso, estas razões não se encaixam na lei política, mas na lei moral e natural, a qual foi confirmada por Cristo. (1) Com base no A ntigo Testamento

Segundo, o mesmo direito é reiteradamente aprovado no Novo Testamento. Primeiro, por João Batista, que (preparando 0 carninh° Para 0 Senhor) sancionou a disciplina militar " por meio de leis (Lc 3.14). Ele exortou os soldados que lhe perguntaram o que deviam fazer a fim de escapar à ira vindoura e alcançar a vida eterna; ele não lhes ordenou que renunciassem à profissão militar (o que teriam de fazer inteiramente se ela fosse ímpia e ilícita p e r se), mas que perma­ necessem nela, que se contentassem com seu salário e não fizessem violência a ninguém. Não resolve o problema dizer que João fala apenas da maneira de guerrear e do ofício militar, e não do ofício dos candidatos à vida eterna. Pois se a vida militar fosse repulsiva a Deus sob o Novo Testamento, João não teria prescrito uma regra para essa vida, mas a teria simplesmente condenado e os teria exortado a mudar sua maneira de viver. Assim a fé do centurião é menci­ onada por Cristo (Mt 8.10), a piedade de Cornélio por Lucas (At 10.2) e é adornada pelo testemunho de um anjo (cf. At 10.7). Tampouco Paulo recusa empregar uma guarda militar para sua segurança e proteção (At 23.17-31). (3) Com base VIII. Terceiro, o ofício do magistrado necessariamente deno ofício do manda isto. Foi-lhe entregue a espada como o vingador de m agistrado. crimes (Rm 13.4; 1Pe 2.14). Ora, se os pequenos roubos são (2) Com base no N ovo Testamento

punidos com justiça (cometidos por uns poucos), quanto mais severamente devem ser punidos os grandes roubos públicos praticados por aqueles que se esforçam em deitar abaixo um estado e devastar regiões! Ele é obrigado a empreender a defesa de seus súditos e ter cuidado pela tranquilidade e segu­ rança públicas; cabe-lhc guardar as leis contra os contumazes e inimigos fran­ cos que tudo fazem por destruí-los (o que não se pode fazer sem guerra justa). (4) Com base na r v la •ão

Quart0’ ° Apocalipse registra e aprova várias guerras dos P 'edosos sob o Novo Testamento, o que as circunstâncias das

’ passagens prova suficientemente que devem ser entendidas não apenas espiritualmente, mas também concernente à guerra externa e a efu­ são real de sangue. Tampouco se deve dizer que aqui se mencionam somente as guerras dos infiéis, Gogue e Magogue (que não têm referência aos cristãos). Estas seguem mutuamente umas às outras; pois, se aquelas guerras ofensivas são injustas, estas defensivas são justas. . . . . X. O que se afirma dos crentes neotestamentários não invalida rô tîte s de , o direito de guerra: “Ele julgará entre os povos e corrigira mui' t a s nações; estas converterão suas espadas em relhas de arados e suas lanças, em podadeiras” (ls 2.4). “Destruirei os carros de Efraim e os cavalos de Jerusalém, e o arco de guerra será destruído” (Zc 9.10). Uma coisa é falar da paz espiritual e interior do reino de Cristo a ser proporcionada pelo Messias; outra é falar da paz política e externa, que não tem lugar aqui. Pois Cristo testifica que “não vim trazer paz, e sim espada” (Mt 10.34). O significa­ do destas profecias não é outro senão que a propagação do reino de Cristo deve ser concretizada não por meio de armas carnais, mas unicamente pela procla­ mação do evangelho e pelo poder do Espírito Santo. Não se pode inferir, po­ rém, que não é lícito ao magistrado deflagrar guerras por causas justas e neces­ sárias, porquanto o evangelho não abole governos nem magistrados. XI. Embora leiamos que as armas dos apóstolos (que eram usadas na luta contra Satanás, o mundo e a carne) são espirituais, não carnais (2Co 10.4), visto que lhes foi ordenado fazer guerra contra o mundo, não pela força exter­ na, mas tão-só pela proclamação da Palavra (Mt 28.19); e que as armas dos crentes não são outras senão as orações e as lágrimas na guerra espiritual, não se segue que o direito da espada e das armas carnais não pertence ao magistra­ do. Como a vocação dos apóstolos e dos crentes não anula o ofício do magis­ trado, assim as armas espirituais com que os crentes lutam não anulam as car­ nais usadas pelo magistrado. XII. Uma coisa é o dever privado dos crentes; outra, o dever público do magistrado. Os crentes devem estar dispostos a derramar seu próprio sangue, e não o de outros, porque não lhes é concedido o direito da espada e da guerra. Com o ofício do magistrado, porém, é diferente, visto que Deus o armou para vingara perversidade e defender o Estado e a igreja. Ele lhe concedeu também o direito de deflagrar guerras necessárias.

XIII. As objeções extraídas de Mateus 5.39 e passagens afins não provam que toda guerra é simplesmente ilícita. (1) Ali nada se ordena que seja novo e que não se possa demonstrar ter sido ordenado no Antigo Testamento (onde, não obstante, se aprova a guerra). (2) O que lemos ali se refere a pessoas privadas até que ponto, de alguma maneira, podem aguentar seus sentimentos e suas per­ turbações. A referência não é à autoridade pública ordenada por Deus, um vinga­ dor a executar ira sobre aquele que faz o mal (Rm 13.4). E assim se proíbe ali o ódio contra o inimigo e a vingança pessoal, não o cuidado da justiça. XIV. De fato Tiago ensina que a origem e causa das guerras está no mal, porque de um lado são sempre injustas (4.1), porém não se segue que toda guerra seja negativa de ambos os lados. Com frequência é lícito que o magis­ trado, por sua vez, repila e vingue, pela força, a injúria ofensiva. Segundo, o homicídio defensivo não é proibido quando alguém, com o propósito dc defender sua própria vida contra um a§ressor v'°ler|to e injusto (mantendo-se nos limites ’ da proteção lícita), mata outro. Para que seja considerada uma proteção lícita, é necessário: (1) que o agressor nos assalte injustamente e caia sobre nós; (2) que o defensor esteja colocado além de toda culpa, enquan­ to todas as demais vias pelas quais pudesse escapar moralmente, falando, fu­ gindo ou se entregando lhe estejam fechadas; (3) que nada seja feito por ele sob o impulso da ira, ou com o sentimento e o desejo de se vingar, mas com a única intenção de se defender. XVI. A razão é clara. Embora não seja lícito revidar com a mesma moeda e de se vingar, contudo repelir a força pela força e defender-se pertence ao direito natural e perpétuo (especialmente onde a agressão é simplesmente vio­ lenta e destituída de toda autoridade pública), incluindo até o assassinato do agressor (ainda que em si mesmo não tencionado, mas porque não podemos de outra forma defender nossas vidas e livrar-nos de sua injusta agressão). Não só as leis civis aprovam isto, como é evidente à luz do Codex da lei comeliana e da lei aquiliana:11 “Todas as leis e todos os direitos permitem repelir a força pela força” (cf. Corpus Iuris Civilis, 1: D igesta 48.8 [“Ad legem Comeliam de sicariis”] [org. P. Knieger, 1955], pp. 852,853 e ibid., 9.2.45 [“Ad legem Aquiliam”], p. 162). Vê-se, porém, que o próprio Deus notifica isto claramente na lei, onde se apresenta um caso dc defesa privada do qual se pode formular um juízo concernente á prática dessa lei: “Se um ladrão for achado arrombando uma casa e, sendo ferido, morrer, quem o feriu não será culpado do sangue” (Ex 22.2). Se o sol nascer sobre ele, haverá sangue derramado por ele [será culpado do sangue], caso o matador puder descobrir com certeza que o ladrão veio só com o propósito de roubar, e não dc matar. 2 O hom icídio defensivo não é proibido

11. Lei comeliana: sob o papa Comélio. que foi papa de 2SI a 253). I.ei aquiliana: dc Aquileia, cidade italiana (província de Udine). Construída em 181 a.C., leve seu apogeu nos primeiros séculos da era cristã. A primeira vez que se usou a expressão "desceu ao Hades” ou “ao inferno” ("descendit in inferna") do Credo foi em Aquiléia. em 390. Um 452 a cidade foi destruída por Atila, e jamais recuperou seu antigo esplendor. [N. do E.]

XVII. Contudo, tal defesa é estendida erroneamente à preservação ou re­ cuperação da honra (frequentemente imaginária), cujo ídolo, o Diabo (que é homicida desde princípio), estabeleceu no mundo para que se lhe oferecesse o sangue humano, tanto porque se pode recuperar a honra, porém nunca a vida, como porque tal homicídio não pertenceria à defesa lícita, mas à vingança ilícita. Mas é um direito propriamente atribuído (1) para a defesa da vida, seja a nossa, seja a do próximo, especialmente quando este está ligado a nós por um laço um tanto estreito (como nossos pais, esposas, filhos, amigos, e assim por diante). Pois aquele que não repele uma injúria por outra quando pode é tão culpado como aquele que a comete. Não obstante, a pessoa que age pode ser alguém, como, por exemplo, um pai ou um príncipe, de modo que é mais con­ veniente para quem é atacado sofrer a própria morte do que repelir injúria com tal defesa. (2) É atribuído à defesa da castidade, seja a nossa ou a de outrem (como os exemplos de bravas virgens o revelam, as quais mataram aqueles que tentaram violentar sua castidade, quando de outra forma não podiam escapar). Justamente como muitas leis permitem que o pai ou o esposo mate impune­ mente quem violentar sua filha ou esposa, pego no ato (ep ’ autophoro). XVIII. A proteção inculpável não é proibida em Romanos 12.19, e sim a vingança privada (como as próprias palavras o demonstram: mê heautous ekdikoimtes). Nem é culpável aquele que defende justamente sua própria vida por iniciativa privada, mas pela autoridade pública da lei da natureza. As injunções de amar nossos próprios inimigos não destroem a defesa necessária da vida, porque o fundamento do amor ao próximo é o do amor por nós mesmos. A passagem dc Mateus 26.52, na qual nosso Senhor ordena a Pedro, “Embai­ nha tua espada; pois todos os que lançam mão da espada à espada perecerão”, não remove a autodefesa justa. A de Pedro tinha a aparência, não tanto de defesa (que teria sido inútil contra tão grande multidão), quanto de vingança. Além disso, ele não esperou pela ordem do Senhor (que não tinha necessidade de tal defensor), porém agiu precipitadamente. XIX. Tercciro, o homicídio casual não é condenado, seja cometido pessoalmente ou por meio de outro, contanto que de modo algum sej a intencional e estejam ausentes a perfí­ dia e a culpa (tais como descritas em Dt 19.4,5). Daí a de­ signação de asilos e cidades de refugio para tal emergência, para os quais os homicidas podiam retirar-se, para que o Goel (ou vingador do sangue), arreba­ tado pela fúria antes que a causa fosse conhecida, não matasse o inocente. Mas isso no papado se estende falsamente a miseráveis de todos os tipos e a homi­ cidas voluntários, a raptores de virgens etc., para os quais desejam um asilo para que fiquem protegidos em lugares sagrados. A firm ativam ente, XX. Afirmativamente (kata thesin), o homicídio privatodo hom icídio do é proibido quando cometido por autoridade privada privado ép ro ib id o . e traição ímpia, ou movido por ódio e vingança maqui3 O hom icídio casual não é condenado

nada, ou por qualquer outro motivo vil: seja por força ou astúcia, pela espada ou por veneno; seja diretamente por alguém, ou indiretamente por outro (como Davi que matou Urias pelas mãos de outros). Daí Abraão não teria pecado contra esta lei se, em concordância com o mandado de Deus, ele tivesse mata­ do seu próprio filho. Ele o teria feito pela suprema autoridade daquele que tem sobre todos o direito de vida e morte. XXI. Há uma tríplice razão da sanção: divina, natural e civil. Divina, por­ que, visto ser o homem a imagem de Deus, não pode ser destruído sem mani­ festa e sacrílega injúria a Deus (o arquétipo e o único árbitro e o Senhor de nossa vida). Natural, porque, visto que todas as coisas, por sua própria nature­ za, buscam sua auto-preservação, devem ser merecidamente considerados ini­ migos da raça humana aqueles que privam os homens da vida. Civil, porque a sociedade civil (que é prejudicada por outras perversidades) é, pelo crime de homicídio, diretamente perturbada e subvertida. No qu al o XXII. No homicídio condenado pela lei incluímos: (1) o autosuicídio está homicídio (autocheirian), tão altamente louvado pelos estóiincluído cos) ^os 9ue abandonam este posto sem a vontade do supremo ordenador. Por este preceito se proíbe o auto-homicídio (autophonia) não menos que o homicídio de outros (heterophonia). Pois, embora a segunda tábua pareça terminar em nosso próximo, contudo deve ser considera­ da não menos pertinente ao homem com respeito a si próprio, visto que cada um é o mais próximo de si mesmo. Sim, visto que cada um é obrigado a amar seu próximo como a si mesmo e defender vida alheia como à sua própria, pela mesma razão que lhe é proibido fazer violência à vida de um próximo, é-lhe muito mais fortemente proibido fazer injúria à sua própria vida. XXIII. Que o suicídio (autocheirian) é um crime em extremo hediondo, transparece das razões seguintes: um suicida (autocheir) peca contra Deus por tripudiar sua autoridade, porque é o único Senhor da vida; sua bondade, por havê-lo preservado tão bondosamente entre os vivos; sua providência, cuja ordem o suicida tudo faz para perturbar. Ele peca contra si mesmo por violar a inclinação natural que inspira a cada um a amar a si próprio e a nutrir e preser­ var sua própria carne (Ef 5.29). Ele peca contra o Estado por destruir um de seus cidadãos; contra sua família por dilacerar violentamente um membro e (talvez o principal) precipitar todos os seus familiares em desgraça, tristeza e luto; contra a igreja e a religião por estigmatizar o sistema cristão com ignomí­ nia, causando tristeza a todos, escandalizando os bons e ocasionando escárnio aos inimigos. Opõe-se à lei da natureza, a qual obriga a cada um à auto-preservação; e à confiança e piedade em Deus, que deve receber todos os males, ou descansando em nós ou nos ameaçando, como de Deus; à sabedoria, porque este crime é concretizado não tanto por reflexão quanto por fúria e impulso selvagem. Nem mesmo Sêneca pôde negar isto: “Um homem sábio não deve dar ajuda a seu próprio castigo; é insensatez morrer pelo medo da morte” (Epistle 70 [Loeb, 2:60,61]). Opõe-se à justiça, porque o homem não é mais senhor de

sua própria vida do que da de outro. Ele é um servo que tem um senhor, um soldado que tem um general. Ele é colocado em seu próprio posto; não deve ser irregular (leipotakfês ) nem desertar a seu bel-prazer, mas deve deixar que outro o despeça. Isto é expresso na mais excelente forma pelo próprio Epicteto, que ordena que os homens esperem até que Deus dê o sinal (ekdechesthai ton theorí) e nos descarte deste serviço (Discourses 1.9.16 [Locb, 1:68,69]). Opõese à força de vontade, porque se origina dc uma impaciência ante o mal enviado, ou do medo de que este seja enviado, seja a fim de poder removê-lo ou evitá-lo. Daí Agostinho dizer com propriedade que o suicídio não pertence à magnanimi­ dade, e que merecidamente se diz que tem maior alma quem pode suportar uma vida de tribulações do que quem foge dela (CG 1.22* [FC 8:54]). Opõe-se ao consentimento dos mais sábios entre os pagãos, sejam gregos ou romanos: Pitágoras, Platão, Aristóteles, Sêneca, Cícero entre outros, os quais confessam que ele é perverso. Cabem aqui os exemplos de auto-homicídio (auíocheirias) regis­ trados nas Escrituras, os quais são atribuídos somente aos incorrigíveis: em Saul (1 Sm 31.4); em Aitofel (2Sm 17.23); em Judas Iscariotcs (Mt 27.5; At 1.18). Fontes d e XXIV. O exemplo de Sansão (Jz 16.30) não favorece o suicíexnlanação d'° (aut°ch eiria ), porque nas ruínas da casa que ele derrubou ele se sepultou não menos que os demais. Este foi um feito singular, perpetrado pela influência extraordinária do Espírito Santo, como transparece tanto do apóstolo (Hb 11.34), que declara que ele fez isso pela fé, baseado nas orações que ofereceu a Deus para a obtenção de força extraordi­ nária para este ato, e no fato de que elas foram ouvidas (Jz 16.28). Deus au­ mentou sua força e lhe outorgou o desejado sucesso para que assim ele fosse um eminente tipo de Cristo, que causa grande destruição de seus inimigos por meio de sua morte e que quebra o jugo tirânico posto no pescoço de seu povo. Finalmente, o desígnio não visava simplesmente a uma vingança privada, mas à vindicação da glória de Deus, da religião e do povo, visto que ele era uma pessoa pública e levantada por Deus dentre o povo como vingador. XXV. Tampouco os exemplos de Eleázar, irmão de Judas Macabeus, que morreu ao rastejar-se debaixo de um elefante e ser esmagado pelo mesmo (1 Macabeus 6.43-45); e de Razias12 (que se matou com sua própria espada, 2 Macabeus 14.41,42) favorecem o suicídio, porque são extraídos de livros apó­ crifos. Não pode ser chamado generosidade, mas o cúmulo da pusilanimidade, alguém voluntariamente precipitar-se em sua total destruição em virtude de um mal incerto. Não fazem parte do presente caso os exemplos dos que dese­ jaram enfrentar perigos extremos em prol de seu país ou de amigos, com o intuito de adquirir a tranquilidade e segurança de outros por meio de sua pró­ pria morte. Uma coisa é alguém expor-se aos perigos motivado pela pressão da necessidade e em resposta a um chamado especial de Deus; outra é matar-se. Tampouco deve ser considerado suicida (autocheir) quem entrega sua vida por 12. Nom es Eleázar c Razias, conform e a versão dc Maios Soares. [N. do E.]

outro, pois então, ao entregar Cristo sua vida por nós, teria ele sido suicida (autocheir) (o que ninguém diria). XXVI. O ato dos que destroem seus navios (como às vezes ocorre com marinheiros que, reduzidos a uma situação extrema, ateiam fogo a seus própri­ os navios para que não se vejam sob a tirania dos inimigos; nem os instrumen­ tos militares, em seu poder, sejam revertidos pelo inimigo à destruição de seu país nativo e para que as mesmas ações inflijam dano ao inimigo, eliminando­ se juntamente com o navio), embora seja aprovado por certos teólogos (ou afastado da esfera do suicídio [aulocheiria ], porque não se destinavam à sua própria destruição, mas à matança do inimigo e para o bem de seu país); não obstante, de modo algum é aprovado por nós e por muitos outros. Por meio deste ato, direta e voluntariamente, trazem a morte sobre si mesmos como uma causa física e moral; e assim não podem escapar ao crime de auto-homicídio (aulophonõn). Além disso, nele contrariam a confiança em Deus, limitando sua providência, como se nele não existissem mil maneiras de escape mesmo quando presumimos que estamos cercados de todos os lados. Opõem-se à pru­ dência cristã porque comparam uma certa e presente destruição com uma chance e um evento incertos, c atribuem maior peso àquela. Poderiam, se bem que quase vencidos, sair-se superiores; o inimigo poderia poupar suas vidas; al­ guns poderiam salvar suas vidas nadando ou de alguma outra maneira. Opõemse à força, pois constitui bravura não abandonar vilmente nosso posto desespe­ rando da vitória ou da segurança, mas lutar até o último suspiro. Opõem-se ao amor e à bondade para com as pessoas desvalidas: os idosos, os fracos, os doentes, as crianças - a quem os próprios inimigos poderiam poupar e em sua maioria costumam poupar. Portanto, tais pessoas não podem ser absolvidas da culpa, segundo a regra do apóstolo (não praticar males para que venham bens); nem pode alguma lei, seja de guerra ou do Estado, fazer oposição à sanção divina. Embora tais atos às vezes possam ser escusados um tanto, contudo não podem ser escusados de todo, quer digam que os pratiquem como pessoas privadas quer como servos públicos. Não pode a autoridade pública obrigarnos em oposição à autoridade divina. Tampouco pode alguma desvantagem feita ao inimigo ou vantagem ao país ser tão grande que absolva a consciência aqui. Nem pode a intenção de injuriar o inimigo ser totalmente abstraída do certíssimo conhecimento de destruir-se juntamente com o inimigo e de trazer sobre si morte indubitável. XXVII. E bom retribuir a Deus o que foi dado por ele, mas quando isso é tanto exigido de nós como devolvido da maneira devida; no entanto, não quan­ do nem é exigido nem devolvido da maneira devida. Admitimos que a morte é às vezes melhor que a vida; porém infligida por outros, não buscada por nós mesmos. A morte pode ser licitamente desejada, porém não buscada. Assim como a vida é recebida só pela vontade divina, assim também não deve ser entregue, a não ser por sua ordem. E bravo desprezar aquele terribilíssimo mensageiro (lo phoherõtaton) de Deus; porém, precipitar-se sobre ele volunta-

riamentc é temerário e insano (o que Aristóteles, Nichomachean Ethics 3.8 [Loeb, 19:163-171]), ensina que não é bravura, mas covardia). E também o amor pelo país, a segurança de outros e o anelo pela imortalidade, que podem impelir à brava sujeição à morte enviada contra nós, não devem ter a mesma influência em levar-nos a convidá-la quando não enviada. XXVIII. Uma coisa é suportar a morte, deixar-se matar; sim, inclusive apresentar-se a ela bravamente ante o chamado de Deus. Outra coisa é matarse. O primeiro caso, em algumas circunstâncias, é lícito, e Cristo, os mártires e os heróis fizeram algo semelhante; porém não igualmente o segundo caso. XXIX. “Dar o próprio corpo para ser queimado”, no dizer de Paulo ( ICo 13.3), não é um ato temerário e destituído de valor, pelo qual alguém voluntá­ ria e desnecessariamente se expõe à morte em prol da causa de Deus. Antes, é um ato necessário e santo, pelo qual ele enfrenta o martírio atendendo ao cha­ mado de Deus e não recusa tal chamado, ou mentindo, ou negando a verdade pelo amor da família ou do mundo, quando lhe cabe por sorte ser levado aos tribunais dos pagãos pelos inimigos do evangelho. XXX. Segundo, é proibido duelar; não meramente um combate ou luta singular entre duas pessoas, tal como se faz necessário na defesa da vida contra um agressor injusto (o que já ficou provado por nós previamente); não o travado por autoridade pública em prol do bem comum (como se deu naquele combate singular entre Davi e Golias); mas uma luta entre pessoas privadas, travada direta e voluntariamente, por combinação ou acordo, com o risco de matar ou mutilar, o que cremos que deve ser simplesmente condenado, tanto em quem a aceita como em quem desafia, ainda que quem desafia seja mais culpado. Ele agride diretamente este preceito: “Não matarás”. XXXI. Não se pode apresentar nenhuma razão pela qual o duelo se toma honroso e lícito. Nem as defesas da honra profana e o impedimento de infortú­ nio resultante, porque tal honra é falsa e prevalece somente entre os homens indignos (cujos ferimentos nada podem remover do verdadeiro vigor, o que não pode ser preferível à honra devida a Deus). Tampouco pode haver algum risco de infortúnio real quando aquele que recusa aceitar um desafio apresenta como razões a proibição divina e o perigo que envolve a alma (com a qual não se deve comparar nenhuma perda de honra). Além disso, a honra ferida pode ser curada melhor e mais facilmente do que a morte daquele que injuria. Nem a defesa dos bens, porque nossa própria vida e a de outro não deve ser permutada por outros bens temporais. Nem a manifestação da verdade ou a purgação do crime, porque, visto que não há nenhuma promessa de Deus de que ele queira dar testemunho da verdade desta forma, assim consultar sua extraordinária pro­ vidência (ou apelar para ela) nada mais é do que tentar a Deus por meio de uma invenção diabólica. Nem a execução de vingança, porque se nega vingança a pessoas privadas. E assim seriam juizes em causa própria, o que só é lícito a 2 Duelos ilícitos

pessoas públicas, e isso de maneira legal. Que os jesuítas (Lessius, Amicus, Es­ cobar entre outros) favorecem esta arte diabólica se evidencia à luz dos extratos de sua teologia moral publicada no ano dc 1666 (Proposi, 11,12,15,16+). XXXII. Terceiro, não só é proibido o homicídio externo e tudo ’ ’ quanto lhe pertence, mas tambcm (visto que a lei é espiritual) a ira, o ódio, o desejo de vingança, a inveja, a afronta e tudo o que se opõe ao amor sincero e verdadeiro para com nosso próximo ou sua defesa legítima. Tudo isso é condenado não só no Novo Testamento (Mt 5.21), como os socinianos falsamente sustentam, mas foi também proibido e condenado no Antigo Testamento (Lv 19.17,18; Zc 8.16,17). Pois embora só o homicídio efetivo e externo fosse punido sumariamente pela lei forense (Lv 24.17), o homicídio pelos sentimentos e interior, aos olhos dc Deus, encaixa sob o mesmo tópico. XXXIII. Não obstante, visto que sob os preceitos negativos estão contidos os afirmativos, somos obrigados por esta lei a defender, a ajudar, a amar, a tratar bem ao nosso próximo, e a desejar e promover a concórdia e a paz (Rm 12.18). Pois não é suficiente que não injuriemos a ninguém; antes, é preciso que demos a cada um o que lhe é devido. Não basta não matarmos a ninguém, mas devemos, em adição, tudo fazer para preservar a vida de nosso próximo dc todas as formas lícitas que pudermos. E assim como a candeia é extinta de dupla maneira (ou soprando sua chama ou deixando de abastecê-la com óleo), assim a vida de nosso próximo é destruída, ou por extinção violenta, ou por uma subtra­ ção iníqua de donativos e assistência pelos quais ela poderia ser preservada. 3 Ira e ódio

D

é c im a

O itava P e r g u n t a : O S é t im o M

andam ento

O que é proibido e o que é ordenado pelo preceito concernente a não cometer adultério ?

I. Assim como pelo sexto preceito tanto a nossa própria vida como a de nosso próximo nos é confiada, assim pelo sétimo [preceito nos é confiada] nossa própria virtude bem como a dos demais. Assinala-se uma tríplicc razão: divina, porque, visto que Deus é santo, é justo que o homem criado à sua imagem se conduza cm santidade e, consequentemente, também em castidade (já que a castidade é parte da santidade); natural, porque, visto que a conjun­ ção de masculino e feminino pertence ao direito da natureza, necessariamente deve ser dirigida cm concordância com a regra da razão correta, para que a natureza não permaneça sem freio (e assim não haja nação no mundo que não aprove o matrimônio e não condene as relações promíscuas); civil, porque, assim como pela distinção de famílias se mantém boa ordem política (eutaxia ), assim o distúrbio da mesma, porconcupiscências promíscuas, subverte as repúblicas e traz destruição aos lares. II. Portanto, este preceito de todo gênero de lascívia e licenciosidade é proibido sob a palavra “adultério” (que é uma de suas formas mais grosseiras, mais injuriosas à sociedade humana e uma agressão moral ao nosso próximo)

como compreendido em termos de sinédoque. E assim aclu*se condena toda relação ilícita fora do casamento. Sob ele se inclui primeiro o adultério propriamente assim chamado, a violação do leito de outro, quer uma das partes seja solteira, ou ambas casadas (de maneira tal que o adultério é duplicado pela violação de um leito duplo). (2) Fornicação em geral e simplesmente (entre duas pessoas solteiras), a qual, embora ainda que entre os pagãos era visto como um pecado venial (ou, melhor, como abso­ lutamente não pecado - como também entre os papistas), contudo é, com fre­ quência, condenado expressamente como um pecado hediondo no Antigo e igualmente no Novo Testamento (Dt 22.28; 23.17,18; ICo 6.18; Hb 13.4; Ap 21.8). O apóstolo frisa sua gravidade, porque aquele que comete fornicação une seu corpo com uma meretriz, peca contra seu próprio corpo, profana o templo do Espírito Santo e polui um vaso da graça (1 Co 6.16). Daí deduzirmos a extensão da criminalidade dos que defendem os prostíbulos públicos contra as leis humanas e divinas (como se faz no papado, onde tais estabelecimentos são publicamente tolerados; sim, inclusive taxas e tributos são arrecadados deles; apesar de Deus ter outrora proibido que se trouxesse ao templo o salário de prostituição e o preço de sodomia, ou “salário de rameira e preço de cão” Dt 23.18). Espensaeus se queixa disto [contra a referida tolerância] (“De Continentia”, 3.4 O pera Omnia [1619], pp. 732-735), enquanto outros defendem esta causa infame (como Emanuel Sa, Toletus e vários casuístas entre os papis­ tas). Belannino confessa que os prostíbulos são males necessários para se evi­ tar pecado ainda maior; aqui, porém, a regra apostólica é não faça o mal para que venha o bem. Se lemos no Antigo Testamento que havia meretrizes (como no tempo dos patriarcas e de Salomão), nem por isso são aprovadas ou propos­ tas para imitação. Não se deve impor o exemplo de Salomão (e sua dissipação na luxúria), porquanto é um mau exemplo. Antes, temos de imitar o zelo de Josias que reformou o culto de Deus, e especialmente destruiu os prostíbulos (2Rs 23.7); e também de Luiz IX (chamado Sanctus), o qual expulsou os ato­ res de seu reino e destruiu as casas de prostituição. Incesto W O incesto que é cometido entre pessoas relacionadas por consanguinidade ou afinidade, se os graus proibidos em ambos os tipos de relação são estabelecidos pela lei de Deus, não pela legislação huma­ na. (4) O rapto, quando uma moça é forçosamente levada da casa de seu pai com o propósito de luxúria, quer relute ou o aceite. Pois então pelo menos se faz violência ao pai, cuja propriedade é violentamente arrebatada. (5) O con­ cubinato, quando alguém tem relação com uma mulher que vive em sua casa; não com afeição marital, mas apenas por uma questão de conveniência (que pode inclusive ser descartada, para que os filhos não sejam considerados nem legítimos, nem herdeiros). Esta é outra espécie de prostituição; sim, pior ain­ da, pois esta presume apenas um ato transitório, mas o concubinato acrescenta permanência à condição. Daí o apóstolo formular uma antítese direta entre

Sob o adultério se pro íb e toda relação ilícita em fo rm a de sinédoque.

casamento e prostituição (Hb 13.4), porque todo concubinato que extrapola o casamento é prostituição. Não obstante, embora tenha prevalecido sob o Anti­ go Testamento, entre os patriarcas, nem por isso pode tornar-se honrado ou ser imitado. Vivemos regulados por normas; não por exemplos. Não devem os defeitos e manchas morais dos santos, registrados pelos escritores sagrados, ser por isso aprovados; tampouco, sc forem escusados pela lei canônica, po­ dem consequentemente ser escusados pela lei divina. ^ ® pecado contra a natureza e aqueles crimes horríve’s exPressos Pe'as palavras “sodomia” e “bestialidade” (dos quais se faz menção em Lv 20.13 e Rm 1.27, os quais nem mesmo devem ser mencionados entre os cristãos, embora no momento preva­ leçam excessivamente em vários lugares, para a desdita do nome cristão).

Pecado contra a nature-a

O bscenidade • dança '

^ Toda obscenidade impura, existente também no coramentira, sem qualquer exceção, é condenada em outras Partes da Escritura como um pecado abominável a Deus (SI 5.6; Pv 6.17,19; 12.22; Ef 4.25; Cl 3.9), como sendo pro­ movida por instigação do Diabo, o pai da mentira (Jo 8.44), injuriosa à majestade de Deus, o autor da verdade e que tanto a ama que, nem pode mentir, nem por qualquer dispensação jamais pode con­ ceder a faculdade de mentir; sim, e decretou expressamente proibir a mentira e puni-la severamente (Pv 19.5,9; 21.28).

A Escritura condena toda e qualquer m entira

^ ^ ® cIue ®mau acord° com sua natureza, em seu próprio gênero, de modo algum pode se tornar bom e lícito. Ora, toda mentira é inerentemente má e se enquadra em matéria indevi­ da. Constitui uma desordem de quem mente, em si mesmo, por­ que é contra a ordem da natureza de sua linguagem (o intérprete da mente

Porque ela é inerentem ente má

claramente em desacordo com a mente) e contra seu próximo, porque cada um deve respeito à veracidade para com o próximo, com base na obrigação natural e no direito divino. “As palavras”, diz Tomás de Aquino, “são naturalmente sinais do pensamento, portanto não é natural e indevido que alguém signifique por meio de palavras aquilo que não está em sua mente.” Assim Durandus: “As palavras foram instituídas, não para que o homem engane uns aos outros pelo uso delas, mas para comunicar suas opiniões a outros; portanto, é um ato inde­ vido que alguém use palavras para significar o que não tem em sua mente” (Sententias theologicas Petrí Lombardi Commentariorum, Bk. 3, Dist. 38, Q. 1.8 [1556], p. 244). O filósofo (Aristóteles) conclui que uma mentira é em si perversa e deve ser evitada (Nichomachean Ethics 4.7.6 [Loeb, 19:240,241]). Portanto, não se pode conceder nenhuma mentira oficiosa que não seja inoficiosa ao mentiroso, visto que ela contém tanto uma desordem (ataxian ) formal intrínseca, quanto uma deformidade contrária à natureza e à lei de Deus. Não obstante, o que é em si e intrinsecamente mau não pode tornar-se bom pela consideração de algum fim. mesmo o melhor. Pois as coisas boas devem ser obtidas apropriadamente e se deve buscar um fim bom por meios bons; nem podem quaisquer circunstâncias mudar uma coisa má em si mesma. VI. (3) Se somente uma mentira perniciosa fosse pecaminosa, sua ilegali­ dade (anomia ) só seria deduzida de seu fim. O que é falso, porque em si mes­ ma a própria deformidade e desordem (ataxia ) da mentira (ou seja, no divórcio da mente e da língua, a qual deve ser a intérprete da mente) caracteriza sua ilegalidade (anomia). (4) Se uma mentira pudesse ser justificada por seu fim (a saber, pela intenção de beneficiar o próximo), assim também os ladrões que fossem oficiosos poderiam ser justificados, quando o seu desejo é beneficiar o próximo por meio do roubo. Não obstante, ninguém diria tal coisa, porque a regra apostólica deve prevalecer aqui: “Não façamos males para que venham bens” (Rm 3.8). VII. Agostinho inculca isto com frequência: “Toda mentira é pecaminosa, embora não peque tanto quem mente com o desejo de beneficiar como quem mente com o desejo de injuriar” (Enchiridion 6 [ 18] [FC 3:383; PL 40.240]), o que ele reitera (ibid., 7 [22], p. 389; PL 40.243). “Dizer que alguma mentira é justa é dizer que há alguns pecados justos, e consequentemente que há algu­ mas coisas justas que são injustas” (To Consentius: A gainst Lying 15 [31] [NPNF1, 3:495; PL 40.539]). Ele discute isto mais plenamente nos dois livros: On Lying (NPNF 1, 3:457-77) e To Consentias: Against Lying (NPNF1, 3:481­ 500). Gregório diz: “Toda mentira é iníqua, porque, tudo quanto está em dis­ cordância com a verdade está em discordância com a equidade. Nem pode a vida de alguém ser defendida pela falácia da mentira, para que não injurie sua própria alma quem se esforça para dar vida ao corpo de outro” (M orais on the B o o k o fJ o b 18.3*.5 [1845], 2:320; PL 76.40,41 sobre Jó 27.34). VIII. Embora Deus tenha enaltecido as parteiras que mentiram a Faraó (Êx

1•' 7-21), nem por isso ele galardoa sua mentira, e sim seus bons sentimentos e sua piedade para com as criancinhas, por­ que preferiram expor-se à indignação do rei a obedecer à sua ordem cruel. “O engano não é recompensado nelas, e sim a benevolência; a bondade da mente, não a iniquidade da mentira”, como diz Agostinho (To Cosentius: A gainst Lying 15 [32] [NPNF1, 3:495; PL 40.540]). Pois é preciso distinguir aqui dois atos: um, pelo qual recusaram obediência ao edito tirânico do rei, ato procedente do temor de Deus (o qual é enaltecido); o outro, da mentira, pelo qual se escusaram e mentiram, procedente mais da pusilanimidade e de um temor servil do rei do que do temor de Deus (o que foi pecaminoso). Deus, pois, em sua benignidade, perdoando o ato pecaminoso, quis que o feito bom fosse galardoado, com o fim de mostrar quão agradável lhe pareceu a piedade e compaixão delas, embora não fossem livres de máculas. Pode-se dizer também, com alguns, que essas parteiras não mentiram porque o que disseram poderia ter sido verdadeiro - que as mulheres hebréias eram vívidas e fortes, e não dependiam da assistência das parteiras. IX. Tudo o que lemos que homens santos fizeram não deve de imediato ser imitado como sendo lícito. Embora santos, é evidente que não viviam sem peca­ do. Daí, nem a mentira de Jacó nem a da meretriz Raabe podem tomar-se líci­ tas. Sc Deus abençoou o mentiroso Jacó (Gn 27.20), não se segue que sua mentira foi aprovada, porque a bênção seguiu a fé que exerceu para com a Palavra de Deus, de que o mais velho serviria ao mais jovem (Gn 25.23). Não obstante, não foi dada em virtude do erro e da culpa ligados à fé. Tampouco o apóstolo atribui a fc à mentira de Raabe (Hb 11.31), mas a um ato de bondade e honesto pelo qual ela escondeu e preservou os espias, embora empregasse meios iníquos para salvá-los. Portanto, a bênção que ela granjeou de Deus não foi uma recompensa da mentira, mas do amor para com o povo de Deus e de sua fé para com os homens a quem hospitaleiramente recebeu. E assim, em feitos semelhantes, devemos distinguir sempre entre a virtude da ação e as manchas e máculas que a ela se ligam, bem como a maneira pela qual ela é feita; entre a fraqueza do homem e a bondade de Deus. A primeira nas melho­ res ações sempre mescla algo faltoso com relação à segunda, a qual, ao perdoar a falta, graciosamente recompensa o bem. Assim como, pois, era do agrado de Deus que o filho de Moisés fosse circuncidado, sem que ele aprovasse a violenta maneira de o fazer (adotado por Zípora, Ex 4.25), assim aprouve a Deus que as parteiras se abstivessem do infanticídio, que Raabe procurasse a segurança dos hóspedes, que Mical preservasse a vida de seu esposo, Davi (ISm 19.17), e Jônatas, a vida de seu amigo (1 Sm 20.6,28), embora o modo de fazer essas boas obras, por meio de fraude, não fosse isento de criminalidade a seus olhos. X. Não é mais lícito dar falso testemunho em favor de um vizinho do que contra ele, como não é mais lícito perv erter a justiça em favor de uma viúva e de um órfao do que contra eles (Lv 19.15). Como somos obrigados “a falar a verdade em amor” (alêtheiiein en agapê), assim somos obrigados “a amar faFontes de explanação.

lando a verdade” (agapan en alêtheia) e inclusive aos altares. Sim, embora nenhum pretexto seja mais enganoso para propiciar a falsidade do que a glória de Deus e a vindicação da verdade divina, contudo Deus rejeita isto e não deseja que seja empregado na defesa de sua causa: ‘'Porventura falareis a per­ versidade cm favor de Deus e a seu favor falareis mentiras?” (Jó 13.7). Visto que Deus é a própria verdade, ele não deve ser defendido com mentiras, nem se deve pedir ao Diabo que empreste suas armas para esse mister. XI. Embora às vezes tais dificuldades se ponham no caminho dos homens que, estando em grande apertura, preferem pecar contra a verdade a pecar con­ tra o amor; embora nesse caso sejam escusados de grande parte, contudo não podem ser escusados da coisa completa, como se estivessem livres de toda cul­ pa. E a isso são pertinentes as palavras de Agostinho: “Uma mentira não deve ser considerada como destituída de pecado só porque às vezes podemos be­ neficiar alguém com a mentira. Pois podemos também beneficiar outros com o roubo” (Enchiridion 1 [22] [FC 3:389,390; PL 40.243,244]). Portanto, se a men­ tira beneficia alguém, nem por isso se deve atribuir esse benefício à natureza da mentira, mas à bondade e à providência de Deus, as quais, com frequência, frus­ tram os pccados dos homens encaminhando-os para alguma coisa boa. XII. Eliseu não mentiu aos soldados sírios, porque não disse nada que fal­ seasse a possibilidade do fim em vista (2Rs 6.19). Quando inquirem sobre o caminho em que poderiam encontrar Eliseu, ele responde: “Este não é o cami­ nho” (já que estava indo a Samaria) “nem é esta a cidade” (da qual ele já havia saído). De fato ele promete conduzi-los ao homem a quem buscavam, o que realmente cumpriu guiando-os a Samaria, onde reconheceram o profeta. XIII. Quando Micaías persuade o rei a sair à guerra (lR s 22.15), ele não fala tanto afirmativa e profeticamente como irónica e imitativamente (mirriêtikõs)', não segundo sua própria opinião, mas segundo a do rei e dos falsos profetas; não para enganá-los, mas para ensinar-lhes que eram enganados (pois cm seguida, quando foi conjurado pelo rei a não lhe dizer senão a verdade no nome do Senhor [vs. 16,17], ele falou mui diversamente), o que o rei percebeu suficientemente, ou pela grandeza do profeta, ou por seu modo de falar. Tam­ pouco se pode atribuir mentira a Jeremias em favor do rei (Jr 38.27), porque ele relatou ao príncipe o que era verdadeiro (ou seja, que ele havia solicitado ao rei que não o lançasse novamente na velha prisão da casa de Jônatas, o que Jeremias realmente solicitara do rei, como é evidente à luz de Jeremias 37.15,20 e 38.15,16, para que não fosse entregue nas mãos de seus inimigos. Não obstante, uma coisa é manter silêncio sobre uma parte desnecessária da verdade; outra é dizer o que é falso como se fosse verdadeiro. A primeira é lícita; não a segunda. XIV. É tríplice a simulação (1) de fraude e malícia; (2) de cautela e propó­ sito; (3) de instrução e prova. A primeira, quando um exterior virtuoso é feito para encobrir em seu seio o vício; a segunda, empregada em estratagemas de

guerra e aprovada por Deus (concernente à qual, cf. Js 8.5-7); a terceira, em­ pregada não para enganar, porém para explorar e ensinar, tal como às vezes ocorre na sociedade dos homens. Tal foi a situação dos anjos que simularam o propósito de passar a noite nas ruas a fim de instigar em Ló o desejo de recebêlos sob seu teto. Isso foi verdadeiro em referência a Cristo, que finge seguir adiante (Lc 24.28). Ele não faz isso com o intuito de enganar os discípulos, mas de prová-los se desejavam ardentemente ter sua companhia. Além disso, tal simulação (prospoiêsis) deve ser entendida não tanto formal e materialmen­ te, porque Cristo fez o que costumava fazer quem pretendesse seguir adiante. Ele avança alguns passos além do lugar destinado com o intuito de excitar suas orações e despertar o desejo mais ardente por ele (como os pais quando estão para partir costumam provocar as orações dos filhos, e os amigos dos amigos). E possível dizer também que Cristo pretendia seguir avante e o teria feito se não fosse detido pelas orações de seus discípulos. XV. Pressupõe-se gratuitamente que Deus sugeriu uma falsidade a Samuel, quando lhe ordenou que dissesse a Saul que viera a Belém para sacrificar (1 Sm 16.2). Pois, embora viesse com outro propósito em vista (ou seja, ungir Davi), contudo isso não impedia que viesse ali com o propósito de sacrificar e de celebrar uma festa. Ora, uma coisa é fixar todos os fins de algo; outra é decla­ rar um fim falso. A primeira foi sugerida a Samuel pelo Senhor; não a segunda. Nem quando um fim é declarado, outros são negados. XVI. Quando Paulo diz que não sabia que Ananias era o sumo sacerdote (At 23.5), o sentido pode harmonizar-se no mais alto grau com suas palavras, sem qualquer sombra de mentira. Isto é verdade, quer ele tivesse falado ironi­ camente (como alguns afirmam, porquanto de sua furiosa maneira de falar ele não via nele nada digno de um sumo sacerdote, tampouco se conduzia de modo digno de sua função); quer o tivesse dito seriamente (como querem outros, com mais sucesso), porque na verdade ele não era o sumo sacerdote, mas se intrometera no oficio do genuíno sumo sacerdócio (seja de Ismael ou de José, pois havia uma grande anarquia [anarchia] naqueles dias, de modo que cada dia havia sumos sacerdotes ou não os havia); quer ainda porque ele estivera ausente de Jerusalém por tanto tempo, que um novo sumo sacerdote lhe era desconhecido até então. De seu assento, ele não podia deduzir isto, porque não estavam no templo nem na casa do sumo sacerdote, e estavam reunidos no local ordinário do concílio (e talvez em desordem e confusão). XVII. As parábolas são falsamente evocadas em apoio das mentiras. A parábola não é introduzida para significar aquilo que é expresso, mas para significar aquilo que é representado pelo que é dito. Daí ser ela proposta não por causa do seu conteúdo material, mas por causa de seu caráter formal, e (como Jerônimo bem o expressa, Commeníarius in Ecclesiasten, CCSL 72.357 sobre Ec 12.9,10 [cf. Figueiredo e Matos Soares]), a parábola tem uma coisa no âmago e promete outra no exterior. Difere, pois, em muitos aspectos, da

mentira. (1) Quanto à origem, porque toda mentira procede ou de uma mente maldosa, ou se desvia do bem para o mal; a parábola, porém, de uma mente boa que persiste no bem. (2) Quanto à forma, porque a mentira tem uma con­ tradição intrínseca à mente do orador; a parábola não. (3) Quanto ao fim, por­ que lemos que a mentira tende a enganar; a parábola a ensinar. (4) Quanto aos efeitos, porque por meio da mentira produz-se uma noção falsa na mente do ouvinte; por meio da parábola, ao contrário, uma verdadeira. O mesmo se pode dizer concernente às apologias nas quais se propõe, não uma história, mas um tipo; nem algo é representado como um fato; nem aquilo que se propõe, embo­ ra falso e inventado, é o que se quer dizer, mas sim inteiramente outra coisa e deveras verdadeira. XVIII. Concluímos com Agostinho: “Quem pensa que existe alguma espé­ cie de mentira que não seja pecaminosa engana-se a si mesmo grosseiramente, julgando-se um honesto enganador de outros” ( On Lving 21 [42] [NPNF1, 3:477; PL 40.516]). E, quanto ao mesmo assunto: “Portanto, ou que as menti­ ras sejam evitadas agindo convenientemente ou que sejam confessadas com arrependimento; contudo, visto que proliferam subsistindo malfadadamente, que também não sejam avolumadas pelo ensino” (To Consentias: A gainstLying 21 [41] [NPNF1, 3:500; PL 40.547]). ' V ig é s im a P r im e ir a P

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Q ue concupiscência é proibida pelo décimo preceito? O s impulsos incipientes são pecaminosos? Respondemos afirmatit 'amente.

I- Deus implantou dois princípios na mente do homem: a esquivança do mal e o desejo do bem; o apetite irascível (io thymikon ) e o apetite concupiscível (to epithymêtikon). Considerados no gênero do ser e fisicamente, estes nem são bons nem maus, mas são um meio-termo e indiferen­ tes, auferindo sua bondade e seu mal morais da qualidade dos objetos sobre os quais são exercidos. Daí a concupiscência, num tempo, é louvada como boa, quando se ocupa de um objeto bom e lícito (em cujo sentido lemos que “o Espírito [cobiça] contra a carne” [G1 5.17(cf. ARC)] e Paulo deseja que os crentes cobicem os dons espirituais [ICo 12.31]). Noutro tempo, é condenada como desordenada e viciosa, quando tem um objeto injusto e ilícito. Ainda noutro tempo, como média e natural, não sendo louvada nem inculpada. Concupiscência cobiça/ tríplice: natural, boa e má.

/o h

^ concupiscência depravada e desordenada (da qual ora tratamos) pode ser considerada, ou quanto à fonte e ao esta­ ' do (chamada concupiscência original, indicada em Tg 1.14,15, como frequentemente o pecado original é intitulado concupiscência, por Agostinho). Os judeus costumavam denotar isto por ytsr hr' (“fraude ma­ ligna”), e os escolásticos comumente a chamavam “pavio”. Ou pode ser consi­ derada quanto aos atos e impulsos depravados, e é chamada “atual”. Esta uma

Ela é original ou atual

vez mais é, ou determinada por um consentimento formal c fixo da vontade (chamada deleite), ou indeterminada e excitante em seus primeiros impulsos, não indo além de uma veleidade e sugestão. III. Visto que o preceito sobre não cobiçar é geral, ele deve estender-se a toda concupiscência depravada e desordenada, original e de estado, bem como atual - quer esta seja determinada e voluntária, quer seja, contudo, indetermi­ nada e apenas excitante. Isto é verdade a fim de que a pureza e a santidade perfeitas do legislador [divino] sejam notadas (o qual não permitirá sequer a mínima mancha de concupiscência depravada no homem, porém demanda jus­ tiça e santidade de todo gênero). ^ Aqui os papistas usam duas questões. A primeira diz resPe't0 a concupiscência original e de estado; a segunda diz respeito a seus impulsos incipientes. Quanto à primeira, ne8am 9ue a concupiscência ou o pavio seja proibido pela lei de Deus, porque não o consideram como pecado. O Concí­ lio de Trento assevera “que a concupiscência permanece no batizando, mas que esta concupiscência, à qual o apóstolo às vezes chama pecado, não o é em si, e é assim denominada não porque seja real e propria­ mente pecado no regenerado, mas porque ela provém do pecado e se inclina para o pecado; e, quem quer que pense diferentemente, que seja anátema” (Sessão 5, Cânone 5, Schroeder, p. 23). Os ortodoxos, porém, pensam que a concupiscência é propriamente pecado e que é proibida pela lei.

Se a concupiscência original está contida sob o décim o preceito.

Pr'rne' ro>com base nas palavras da lei que expressamente proíbem a concupiscência, aliás, geral e indefinidamente, de m°do que toda concupiscência desordenada está subentendida na0 no at0>mas também no estado e na raiz. Além disso, não devemos limitar o que a lei não limita. Segundo, o fim da lei implica isto, ou seja, demandar do homem santidade perfeita, não só quanto ao ato, mas também quanto ao estado. Pois como ela requer ambos os tipos de santidade (de estado e atual), assim tem de proibir ambos os tipos de concupis­ cência (atual e de estado). Terceiro, concupiscência depravada e maligna não procede de Deus, mas do mundo (1 Jo 2.16). Deve, pois, ser coibida pela lei, a qual proíbe todo vício. VI. Quarto, Paulo assevera expressamente que ela é proibida pela lei e é pecado. “Mas eu não teria conhecido o pecado, senão por intermédio da lei; pois não teria eu conhecido a cobiça se a lei não dissera: Não cobiçarás” (Rm 7.7). Ele não nega simplesmente que a concupiscência lhe era conhecida, mas que ele a conheceu como pecado (a qual por fim conheceu mediante a lei que a proíbe). E assim ele presume que a concupiscência é pecado por ser proibida pela lei; não só atual, mas também habitual. Pois acrescenta imediatamente: “Mas o pecado” (indubitavelmente a concupiscência proibida pela lei), “to­ mando ocasião pelo mandamento, despertou em mim toda sorte de concupisProva de que ela está contida sob ele.

cência” (Rm 7.8). Ele confirma isto em Romanos 7.9,11,13,17,20, onde chama “pecado” o mesmo elemento, “o pecado que habita em mim” e “excessiva­ mente pecaminoso”; ainda, “mas vejo em meus membros outra lei que, guerre­ ando contra a lei de minha mente, me faz prisioneiro da lei do pecado que está em meus membros” (Rm 7.23). Ora, quem iria crer que Paulo tão frequente e expressamente a teria chamado pecado, se não fosse realmente pecado e pro­ priamente assim chamada, mas simplesmente porque ela flui do pecado e se inclina para o pccado (como o concílio falsamente afirmou)? Ao contrário, quem não percebe que sua intenção era atribuir-lhe uma real relação do pecado que ele só conhecera com base na lei escrita, não chegando a isso a luz da razão na mente pagã? Ver supra, Tópico IX, Pergunta 11, Seções 20 e 21. Embora a lei próxima e imediatamente proíba apenas atos e seJa enunciada por palavras que significam ações, isto não impe­ " de que o estado de pecado e os princípios dos pecados sejam proibidos sob elas (tais como o pecado original e o estado de concupiscência). Sim, deve-se notificar isto, e até necessariamente, porque as causas estão inclu­ ídas em seus efeitos e os princípios no que flui deles. Assim, que o machado seja posto na raiz do pecado, e que se exija do homem santidade perfeita. VIII. Embora o pecado original deveras tenha sido removido dos regenera­ dos quanto á culpa, mediante a justificação, de modo que já não existe conde­ nação para eles (Rm 8.1), e quanto ao domínio, mediante a santificação, para que ele não mais reine sobre eles, contudo ele permanece sempre neles, en­ quanto permanecerem nesta mortalidade, no tocante a presença e habitação. E assim o pecado deve ser continuamente crucificado e mortificado neles. IX. Quando Tiago diz “a cobiça ... dá à luz o pecado” (1.15), ele não nega que ela seja pecado, porque ele não discute aqui quando ela tem início (ou quando é considerada pecado aos olhos de Deus), mas quando ela emerge à luz e é consumada por um ato. Ele se preocupa apenas com isto - ensinar que a raiz de nossa destruição está em nós. Tão longe está de se poder inferir licita­ mente disto que a concupiscência não é pecado, que por consequência necessá­ ria se pode extrair daí sua pecaminosidadc. O efeito deve corresponder à causa; nem pode a concupiscência produzir pecado atual, a menos que ela seja pecado. Fontes de explanação

^ outra questão se relaciona com os primeiros impulsos da concupiscência (o que os papistas negam que são proibidos aclu'’ Porcluanto julgam que não são pecaminosos). Chamam “primeiros impulsos” os que se originam furtivamente, mas sem um juízo deliberado da mente e um consentimento for­ mal da vontade. Em razão disso, costumam chamá-los propatheian, visto que diferem das afeições determinadas e deliberadas, as quais têm o consentimen­ to da vontade e são por isso chamadas “permanentes”, porque a mente e a vontade repousam nelas com deleite. Acreditam que somente estas são proibi­ das pela lei porque são voluntárias e estão em nosso poder; não as outras, já

S e seus p rim eiros im pulsos são pecados

que não são livres nem estão em nosso poder, e por isso não são pecados. Toletus fala sobre Romanos 7 nestes termos, e outros com ele. Ao contrário, como cremos que a concupiscência é maligna em sua raiz e proibida pela lei, assim tambcm ocorre quanto a todos os atos e impulsos oriundos dela, quer sigam ou precedam o consentimento formal da vontade. XI. Primeiro, condcnam-se aqueles impulsos da concupiscência 9ue uma Pessoa só poderia conhecer pela lei escrita, como o apóst0*° testifica. Ora, os impulsos voluntários da concupiscência não eram desconhecidos dos próprios pagãos como depravados e de­ sordenados. Daí lermos em Sêneca: “Um homem se torna bandido mesmo an­ tes de manchar suas mãos com sangue” (De Beneficiis 5.14.2 [Loeb, 3:328,329]). Assim também Juvenal: “Pois aquele que medita secretamente num crime em seu íntimo tem toda culpabilidade do ato” (Satires 13.209,210 [Loeb, 260­ 61]). (2) Tais impulsos não se harmonizam com a santidade e a pureza que Deus demanda de nós e com a perfeição requerida de amar a Deus de todo o coração e de todas as forças; portanto, outra coisa não podem ser senão depra­ vados e iníquos (anomoi). (3) Outros impulsos são agora proibidos pelos de­ mais preceitos nos quais a lei de tal modo proíbe os atos externos, que também condena os atos internos, porquanto ela é espiritual. Assim é por Cristo chama­ do adúltero aquele que olha para uma mulher com intenção luxuriosa (Mt 5.28); e, segundo João, “quem odeia seu irmão é homicida” (U o 3.15). Se, pois, apenas tais impulsos são proibidos, nada novo seria ordenado ou proibido por este preceito acima dos restantes (o que é absurdo). Pois, embora não negue­ mos que este preceito foi acrescido aos demais à guisa de uma regra geral para declará-los e aplicá-los mais expressamente no tribunal da consciência, contudo a distinção dos preceitos demanda necessariamente que algo mais seja designado, o que nada mais pode ser senão o estado de concupiscência com seus primeiros impulsos. E assim se pode demonstrar o quanto a lei divi­ na difere das leis humanas (que consideram apenas os atos externos e não remontam à fonte do mal).

Prova-se que são pecados.

XII. Ainda que o involuntário (to akousion) (o que é involuntár'° e uma v°liniagern de Deus. Este representou de tal sorte sua próPr'a mente em sua le*> cada um P°de contemplar (como num espelho) o vivo e acurado reflexo da santidade de Deus. Isto transparece ainda mais do fim da lei, que é fazer com que os princípios internos e as operações externas dos homens se unam a Deus pelo vínculo da santidade, e de seus efeitos, porque a lei de Deus, inspirada pelo Espírito Santo e escrita no coração, é o instrumento eficientíssimo da santidade. Daí lermos que a Palavra de Deus é “puríssima” (tsrvphh m ’dh, SI 119.140) e lermos que “o mandamento de Yahweh” “é puro” (SI 19.8). Uso relativo VIII. O uso relativo é múltiplo segundo os diferentes estados no estado do homem. (1) No estado instituído de inocência, era um coninstituido. trato de um pacto de obras feito com o homem e o meio pelo (5) Com base em sua santidade

qual obter vida e felicidade, em conformidade com a promessa anexa à lei. Embora não tenha sido feita menção expressa de uma promessa à obediência (mas apenas de uma punição), contudo pode-se inferir suficientemente, com base nesta, porque não é muito provável que Deus tenha ameaçado nosso pri­ meiro pai com punição (caso pecasse) e não tivesse anexado qualquer promes­ sa de galardão (caso obedecesse); ou que ele prometeu menos em referência a um galardão do que ameaçou em referência a uma punição. Sim, a árvore da vida em si era um selo de que ali lhe seria conferido vida eterna, a qual se opõe á morte eterna juntamente com a temporal denunciada em Romanos 6.23. Isto já se provou na Parte I, Tópico VIII, Pergunta 5. estad° destituído de pecado, o uso da lei não pode ser a “justificação”, porque ele era fraco na carne. Não se diz que foi dada para vida, mas “por causa das transgressões” (G1 3.19). Não obstante, há [neste estado] um tríplice uso da lei. (a) Para convicção, quando conduz o homem ao conhecimento do pecado e o convence de sua culpa - “pela lei vem o conhecimento do pecado” (Rm 3.20). E assim ela se assemelha a um espelho no qual vemos nossas mazelas, (b) Para restrição, restringindo e refreando os homens por meio de seus mandamentos e ameaças, de modo que aqueles que não sentem nenhuma consideração pela justiça e retidão, a não ser compelidos a isso (ao ouvirem suas terríveis sanções), sejam restringidos ao menos pelo temor do castigo. Neste sentido, ela é como um freio, mantendo os pecadores trancafiados pela disciplina externa para que o mundo não se transforme num covil de ladrões. Com respeito a isto, Paulo diz que “não se promulga lei para os justos, mas para transgressores c rebeldes [ataktois], para irreverentes e pecadores” (lTm 1.9). Cabe aqui outro uso da lei, acidentalmente (ou seja, para provocação e para intensificação do pecado, porque a lei, ao restringir o pecado à semelhança de um freio, não só não reduz sua rebelião e contumácia, mas, antes, a aumenta e irrita em decorrência da perversidade do pecador, que busca com esforço o que é proibido). Daí dizerse que ela foi dada “para que avultasse a ofensa” (Rm 5.20), e em outro lugar lemos que pela lei o pecado se fez “excessivamente pecaminoso”, ou “sobre­ maneira maligno” (kath ’ hyperbotên hamartõlon, Rm 7.13). (c) Para condena­ ção, quando anuncia ao pecador convicto a maldição divina pela terrível sen­ tença, a qual estrondeia em seus ouvidos: “Maldito quem não persevera nela”. Daí o apóstolo a denomina “o ministério da condenação” (2Co 3.9), e diz que “a lei suscita a ira” (Rm 4.15) e então diz que ela se assemelha a um azorrague que atormenta e fustiga a consciência culpada de pecado. No estado destituído

^ estad° restaurado pela graça, ela tem um uso variado com resPe*to aos eleitos, seja antes ou depois de sua conversão. ’ Antecedentemente, ela serve (a) para convencer e humilhar o homem, de modo que (sentindo sua própria miséria e fraqueza) ele desespera de si mesmo, renuncia a confiança em sua própria retidão e mérito e descansa exclusivamente na misericórdia de Deus. (b) Para levar os homens a Cristo, No estado restaurado

não de fato primariamente e por si mesma (porque a lei não conhece a Cristo), mas pelo acidente da graça, visto que ela impele o homem (humilhado e deses­ perado de sua própria força) a buscar o remédio da graça salvífica. Sob esta relação (schesei ), ela é chamada por Paulo “um pedagogo” para conduzir a Cristo (G1 3.24 [grego]), e Cristo é chamado “o fim da lei” (Rm 10.4). Não o fim de destruição e abolição (porque a lei permanece também no evangelho, como se verá mais adiante), mas de perfeição e de complemento (porque Cris­ to foi obrigado a cumpri-la em si mesmo e em nós) e de intenção (porque ele é o alvo para o qual ela se dirige e em virtude de quem a lei foi dada). Não deveras em sua própria natureza e por parte da coisa, pois o fim da lei, neste sentido, era a justificação do homem justo, mas por parte de Deus que outorga a lei ao homem pecador para que ele seja preparado por Cristo; para que por sua fraqueza (astheneia ), sendo vista à luz da lei, ele conheça mais claramente a necessidade de um mediador, e também o busque mais ardentemente. XI. A lei não só prepara antecedentemente o homem eleito para Cristo, mas também consequentemente o dirige, já renovado por meio de Cristo, nos caminhos do Senhor; servindo-lhe de padrão e regra da vida mais perfeita, para a qual ele sabe que foi chamado por Cristo e a qual ele deve seguir dili­ gentemente (lTm 1.5). Antes ela era um instrumento do espírito de servidão para demolir e esmagar o homem; mais tarde, porém, tomou-se um instrumen­ to do Espírito de adoção para promover a santificação. E assim a lei conduz a Cristo e este nos leva de volta à lei; ela conduz a Cristo como o redentor, e este conduz à lei como o líder e a diretora da vida. Dessa forma o homem, em sua integridade e como justo, estava sob a bênção da lei; corrupto, ele se submete à sua maldição; regenerado, ele se submete à sua direção. Concernente a este último fator do uso da lei, trataremos mais plenamente na Pergunta 23. XII. E pertinente aqui a questão concernente à obrigação da lei - se ao mesmo tempo ela sujeita à obediência e pune. Essa questão surgiu da opinião de Cargius concernente à imputação a nós unicamente da obediência passiva de Cristo, e não de sua obediência ativa. Pois, visto que a lei não sujeitou os pecadores à obediência, mas somente à punição, Cristo (assumindo nosso lu­ gar) nos devia somente o castigo, e não a obediência. Sobre o estado da ques­ tão, note-se (1) que em geral não se inquire se a lei sujeita à obediência e ao castigo. Pois visto que ela prescreve obediência sob a promessa de uma recom­ pensa e proíbe a desobediência sob a ameaça de castigo, evidentemente sujeita o homem a ambas. Antes, a questão diz respeito à maneira - se ao mesmo tempo ou sucessivamente e em que ordem ela obriga. (2) A questão não é se em cada estado a lei sujeita ambas ao mesmo tempo. No estado inocente, a lei sujeitava à obediência, porém não ao castigo, porque teria sido injusto sujeitar ao castigo a quem não havia pecado. No estado de graça, ela sujeita o crente apenas à obediência, não ao castigo, porque não há condenação para aqueles que estão cm Cristo (Rm 8.1), cujas transgressões são perdoadas (SI 32.1).

Antes, a questão diz respeito ao estado de pecado - se nele o pecador está sujeito tanto à obediência como ao castigo (o que afirmamos). XIII. Primeiro, com base na condição dupla do homem pecador, que é tanto criatura quanto criatura pecaminosa. Como criatura, ele deve a Deus obediência para sempre e nunca pode ser eximido dela. Como pecador, ele deve punição. Ele está sujeito àquela em virtude de uma dívida presente e futura; ele está sujei­ to a esta em virtude da desobediência pregressa; à primeira, primariamente e de si mesma; à segunda, secundária e acidentalmente, em decorrência do pecado. XIV. Segundo, se a lei não sujeitasse o pecador à obediência, então Deus, com relação ao pecado do homem, estaria despido de seu direito de requerer dele obediência. O homem também não pecaria ao desobedecer, porque onde não há lei, aí não existe transgressão. XV. Este não é o caso com o estado de integridade, porque nele Fontes de só havia uma relação (sch esis) do homem (a saber, visto que explanação. ele era uma criatura racional, devendo obediência ao seu Criador), porém no estado corrupto foi acrescentada àquela primeira outra relação - culpa pelo pecado. Daí, embora no primeiro estado a lei sujeitasse à obediên­ cia (de modo que o homem, obedecendo, seria livre de punição), não se segue igualmente que no estado de pecado (em que o homem se tornou passível à punição) ele seja isentado de obediência. Como ambas as relações (sch esis ) se encontram no pecador, ambas devem ser aqui associadas (como sujeitos rebel­ des, dignos de punição em decorrência de rebelião, não cessam de continuar sujeitos à obediência perpétua ao legislador). XVI. Embora a lei sujeite ao mesmo tempo o homem pecador ao castigo e à obediência, não se segue que o homem seja mantido sob obrigação de pagar a mesma coisa duas vezes. A lei sujeita à obediência presente e futura; no entanto, demanda-se castigo somente pelo pecado já cometido e um por ato de obediência violado uma só vez. XVII. Quando se diz que, pelo sofrimento da punição, um pecado de omis­ são é expiado, não se deve entender tal declaração no sentido de que o pecado não fora cometido e que o homem fizera o que estava na obrigação de fazer (o que é contrário à verdade). Antes, visto que por sofrer a pena ele fica isento da maldição que repousava sobre si em decorrência do pecado (tampouco essa pu­ nição pode voltar a ser imposta a ele para ser expiada), a remissão, pois, a ele concedida de fato remove a culpa atual, mas nem por isso lhe dá direito à vida. XVIII. A obrigação à obediência é ou natural, a qual o homem deve a Deus como criatura racional (a qual é eterna e indissolúvel e permanece inclusive no céu); ou federal, pela qual cada um é não só obrigado a obedecer à lei, mas a cumpri-la sob a relação (sch esei) de um pacto - para merecer a vida eterna, seja para si mesmo, seja para outro. Cristo, pela primeira obrigação, devia obediência a Deus para si mesmo como homem; mas não estava sujeito à se­ gunda (exceto em nosso favor), porque não tinha necessidade, por meio dela,

dc merecer a vida eterna para si (o que ele obteve em virtude da união hipostática). Isto se mostrará em seu lugar quando tratarmos da obediência de Cristo. V ig é s im a T e r c e ir a P e r g u n t a : A D e s o b r i g a ç ã o

da

L

ei

M

oral

Se a k i mora/ é anulada inteiramente sob o Novo Testamento. Ou se, em certo aspecto, ela ainda pertence aos cristãos. Negamos a primeira hipótese; afirmamos a segunda contra os antinomianos.

I. Do terceiro uso da lei (ao qual chamamos diretivo) surge a questão pro­ posta, que jaz entre nós e os antinomianos, os quais afirmam que não há uso da lei em qualquer extensão sob o Novo Testamento. Por isso declaram que as Escrituras do Antigo Testamento não pertencem aos cristãos (sobre isso já tratamos na Parte I, Tópico II, Pergunta 8). II. A fim de apreender propriamente o estado da questão, devemos deter­ minar cm que sentido se pode dizer que a lei foi ab-rogada, e em que sentido não. Primeiro, a questão não diz respeito ao uso da lei quanto à justificação se estamos ainda sujeitos à lei a fim de adquirir a vida. Uma vez que tal coisa é impossível depois do pecado, neste sentido pode-se dizer que ela foi abrogada: “visto que ninguém será justificado diante dele por obras da lei” (Rm 3.20) e “Todos quantos, pois, são das obras da lei estão debaixo de maldição” (G1 3.10). Segundo, a questão não diz respeito à sua maldição porque, por meio de Cristo sob esta relação (schesei ), ela foi ab-rogada com respeito aos crentes: “Cristo nos resgatou da maldição da lei, fazendo-se ele próprio maldi­ ção em nosso lugar” (GI 3.13). Terceiro, a questão não diz respeito à restrição e ao rigor (que foi o caso sob o AT), porque já não estamos sob aquele treina­ mento e dispensação servis cm que o espírito de servidão cxercia seu poder. Antes, estamos sob a economia evangélica, na qual reina o Espírito dc adoção (Rm 8.15); pela qual o jugo de Cristo se toma suave (Mt 11.30) e seus manda­ mentos não são pesados (Uo 5.3). Mas a questão só diz respeito ao seu uso diretivo - se agora estamos livres da direção e observância da lei. Os adversá­ rios sustentam isto; nós o negamos. Primeiro, Cristo “não veio para destruir a lei, mas para cumpri-la” (Mt 5.17). Portanto, uma vez que ela não foi aboPor Cristo, mas cumprida, tampouco seu uso entre nós esta ab°l*do. Lucas quer que ouçamos a Moisés e aos profetas: "^les Moisés e os Profetas, ouçam-nos” (16.29). Se eles devem ser ouvidos, infere-se que seus mandamentos tam­ bém devem ser obedecidos. Se isto foi dito por Cristo aos judeus de seu tempo, prontamente se deve entender que se refere a eles, à exclusão de outros. Ele não apresenta aqui um preceito especial, porém geral, a todos quantos desejam escapar ao lugar de tormento. Ora, o que se dá com os judeus, em referência a isto, dá-se igualmente com os cristãos. Além disso, a prática do que aqui se propõe como um preceito é por Pedro recomendado em termos gerais aos cris­ tãos (2Pe 1.19, e reiteradamente em outros lugares).

Prova de que a lei não está desobrigada auanto à direção

IV. Segundo, Cristo e seus apóstolos confirmam e recomendam que ela seja observada por todos (Mt 22.36-40). Paulo diz: “A ninguém fiqueis deven­ do coisa alguma, exccto o amor com que vos ameis uns aos outros; pois quem ama o próximo tem cumprido a lei” (Rm 13.8,9). O amor é chamado por João o mandamento antigo e novo (Uo 2.7,8). Terceiro, “Anulamos, pois a lei pela fé? Não, de maneira alguma! Antes, confirmamos a lei” (Rm 3.31). Daí o evan­ gelho ser com frequência designado pelo título “lei”: “a lei do Espírito de vida” (Rm 8.2); “a lei régia da liberdade” (Tg 2.8,12). “Porque eu, mediante a própria lei, morri para a lei, a fim de viver para Deus. Estou crucificado com Cristo” (G1 2.19), por intermédio da lei de Cristo, para a lei de Moisés. Pois ela tem relação de um pacto, o que deve ser entendido não só imitativamente (mimêtikõs) em relação à mentalidade dos judeus (porque o evangelho nos dá real e perfeitamen­ te o que os judeus falsamente buscavam na lei [ou seja, justificação e seguran­ ça], em cujo sentido até mesmo a fé é chamada “obra de Deus”, Jo 6.29), mas também propriamente (porque o evangelho não é destituído de lei, a qual agora é descrita de uma maneira mais suave, mas, não obstante, sempre sujeita o ho­ mem à obediência). Quarto, a lei moral é de direito natural e imutável (como já ficou provado). Por isso ela pertence igualmente a todos os homens em todo e qualquer estado, de modo que não podem ser liberados de sua sujeição a ela. ^ F*nalmente, a lei é necessária aos cristãos de diversas maneiras. (1) Com respeito ao pacto da graça (sob o qual os crentes vivem), o qual contém não só a promessa da &Tã(rã e da salvação da parte de Deus, mas também leva em s' a est'PulaÇa0 de obediência da parte do homem, de modo que, justamente como Deus promete ser o nosso Deus em amor c proteção, por nossa vez somos seu povo Pe*° cu*t0 e obediência a ele (Jr 31.33; 2Co 6.16,17). (2) ^ orn resPe't0 a Deus, o Pai, que nos recebe em sua famí*'a e mantém conosco a relação (schesin ) de Pai e Senhor, a cuJa honra e culto estamos indispensavelmente obriga­ dos (Ml 1.6; IPe 1.15,16). (3) Com respeito a Cristo que, como mantém uma dupla função para conosco (de fiador e sacerdote para sa­ tisfazer por nós o cumprimento da lei; e de cabeça e rei, para operar e cumprir a lei em nós por meio de seu Espírito), assim ele demanda uma dupla virtude dos crentes, que estejamos unidos a ele e a ele nos conformemos pela fé (fé, que abarca a promessa da graça e o mérito do fiador; e amor, que imita a santidade da cabeça mediante obediência aos seus mandamentos). Daí sua morte não ser apenas o preço de nossa redenção (lytron ), pela qual ele fez uma perfei­ ta satisfação por nós, mas também “o modelo para nossa imitação” (que é posto diante de nós) “para seguirmos seus passos” (1 Pe 2.21). (4) Com respei­ to ao Espírito Santo, que nos consagra como seus templos nos quais possa habitar ( ICo 3,4); que tem o nome e ofício de Consolador e Santifícador, que pelo oficio de Parácleto ele nos consola contra a maldição da lei, e igualmente,

Prova-se a necessidade da lei (1) Com respeito ao p a cto da graça (2) Com respeito a Deus o P ai (3) Com respeito a Cristo (4) Com respeito ao E spirito

como o Espírito de santificação, ele confirma e sanciona a necessidade de obediência à lei. ^1. (5) Com respeito à graça (ora conferida a nós aqui), a qiial demanda aquela obediência (Tt 2.14) como fruto da­ quela semente; gratidão pelos benefícios recebidos (SI 116.12; 130.4; Lc 1.74) e o alvo ao qual visa, como é evidente na eleição (Ef 1.4), na redenção (Tt 2.14), na vocação (IPe 1.15; 2.9), na justificação (SI 85.9; G12.20; SI 130.4), na regeneração (2Co 5.17; Rin 6.14). (6) Com respei6 Com respeito t0 ** clue aguardamos, com a qual a obediência devià glória a Permanece relacionada como um meio para o fim, "sem o qual não podemos atingi-lo (Jo 3.5; Mt 5.8; Hb 12.14); o caminho para o alvo (Ef 2.10; Fp 3.14); a semente para a ceifa (G1 6.7,8) e as primícias para a massa (Rm 8.23) - sim, como o princípio é parte da felicidade. Daí surgir a necessidade de boas obras para a glória; não de mérito, mas de meio. Ninguém pode ser glorificado no céu se não foi glorificado na terra pela busca da santidade e pela obediência à lei. 5. Com respeito à graça.

^ ma co‘sa é estar s°b a *e' como um pacto para a aquisi^ao ^a v'^a Por me'° dela (como Adão estava), como um peda­ gogo e uma prisão a guardar os homens até o advento de Cris­ to; outra é estar sob a lei como uma regra de vida para regular nossa vida moral piedosa e santamente. Uma coisa é estar sob a lei porque ela se opõe ao evan­ gelho quanto à exação rígida e perfeita da obediência e à terrível maldição com que ela ameaça os pecadores; outra é estar sob a lei porque ela está subordina­ da ao evangelho quanto à sua suave direção. No primeiro sentido, Paulo diz “Não estamos debaixo da lei, e sim da graça” (Rm 6.14) quanto à relação federal e quanto à maldição e rigor, porque Cristo, por seu mérito, nos livrou daquela e por seu Espírito nos afastou desta. No segundo sentido, porém, per­ manecemos sempre sujeitos a ela, embora para um fim diferente. No primeiro pacto, o homem era obrigado a fazê-lo para que pudesse viver (merecer a vida); neste, porém, ele é igualmente obrigado a faze-lo (não para viver, mas porque vive) para a posse da vida adquirida por Cristo e o testemunho de uma mente agradecida (como o apóstolo, no mesmo lugar, exorta os crentes à obediência). VI11. A lei é por Paulo comparada a “um esposo falecido” (Rm 7.2,3), não simplesmente, mas relativamente, com respeito à autoridade e domínio rigoro­ so que ela manteve sobre nós e a maldição a que ela sujeitou os pecados; mas não com respeito à liberação do dever a ser cumprido por ela. E assim a lei que ameaça, compele e condena não é feita “para quem é justo” ( lTm 1.9), porque ele é impelido espontaneamente ao dever e não mais se deixa influenciar pelo espírito de servidão e pelo temor do castigo (Rm 8.15; SI 110.3), mas a lei diretiva e normativa do viver moral é sempre estabelecida para ele, e ele deve sujeitar-se a ela. “Mas, se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei” (G1 5.18, a saber, esta compelindo e amaldiçoando), mas sob ela em seu caráter Fontes de explanação

diretivo, porque o Espírito opera essa lei em nosso coração (2Co 3.2; Jr 31.33). E por isso que a lei é chamada o Espírito de vida (Rm 8.2). IX. Uma coisa é falar da duração da economia legal; outra é fãlar da dura­ ção e do uso da doutrina enunciada nela. A primeira haveria de ser mudada e de cessar (e realmente cessou); contudo, não propriamente a segunda. Em Lucas 16.16, Cristo fala no segundo sentido, quando diz: “A lei durou até João”; não, porém, no segundo sentido. Nem tampouco se a economia foi removida, deve a doutrina acomodada a essa economia ser inteiramente removida, mas só em concordância com a relação (segundo a qual ela era peculiar a essa economia). X. Uma coisa é a lei não ser imposta aos cristãos; outra é que não lhes seja imposto um jugo (abastakton ) intolerável (ou seja, a observância da circunci­ são e das cerimônias legais). A primeira não é removida dos cristãos, mas somente a segunda: “Agora, pois, por que tentais a Deus, pondo sobre a cerviz dos discípulos um jugo que nem nossos pais puderam suportar, nem nós?” (At 15.10). Com base na ocasião destas palavras (ditas no v. 5), fica evidente que se ergueram alguns homens afirmando “que era necessário circuncidar os cris­ tãos e ordenar-lhes que guardem a lei de Moisés” (a saber, a cerimonial, como deduzimos dos vs. 20,28,29, em outros lugares chamada “jugo de servidão” [zygos doa leias], G1 5.1; ou a moral com um fim indevido, como se os cristãos devessem buscar nela vida, seja plena ou, pelo menos, parcial; assim ela pode com razão ser chamada “jugo insuportável” [zygos abastaktos] em virtude da fraqueza da carne, porque ninguém pode ser justificado por ela, Rm 8.3). De modo que o jugo pode ser retirado até onde é ele intolerável (abastakton ) (ou seja, quanto à estrita severidade [to akribodikaion] da lei, à compulsão e à maldição anexas a ela), embora permaneça quanto à necessidade de obediência. XI. O que é em si e em sua própria natureza causa do aumento e multipli­ cação das ofensas, não deve ser mantido em uso entre os cristãos. A lei, porém, não aumenta o pecado (neste sentido), porque o pecado não provém da pro­ mulgação da lei como tal, mas somente de sua transgressão. Por isso lemos que ela aumenta o pecado acidentalmente (Rm 5.20), não só porque o manifesta declarativamente, mas também ocasionalmente, visto que o pecado, tomando ocasião pelo mandamento, incrementa a concupiscência (Rm 7.8, a saber, por irritá-lo, de modo que ele se toma mais furioso contra o mandamento restrin­ gente, como um corcel ingovernável aumenta sua fúria contra seu cavaleiro, quanto mais este aperta o freio). Daí a violação da lei conhecida atrai sobre si uma culpa mais pesada. XII. Quando a lei é chamada “a letra [que] mata” e “o ministério da mor­ te... e da condenação” (2Co 3.6-9), não se deve inferir isto de si e de sua pró­ pria natureza, mas acidentalmente, em virtude da corrupção do homem; não absoluta e simplesmente, mas relativamente, quando vista como um pacto de obras, em oposição ao pacto da graça; ou com respeito à economia e ao ensino legais considerados precisamente em si mesmos, à parte das promessas da gra-

ça e em contradistinção à ministração evangélica (comparada ali com ela pelo apóstolo). Neste sentido, pode com razão chamar-se “a letra”, porque de fato ela mostra o dever, porém não o cumpre; ordena, porém não auxilia; manda, mas não opera, e lemos que “anulamos a lei” [Rm 3.31 ] (katargeisthai) com respeito àquela economia, porque aquele antigo pacto tinha de ser revogado. Contudo, não pode ser chamada assim absolutamente (sob a relação de regra c padrão). XIII. A liberdade de Cristo nos livra do jugo da lei que amaldiçoa, da tira­ nia do Diabo e da servidão do pecado. Não nos libera da necessidade de render obediência a Deus, o que é indispensável com base na própria criatura como tal, e especialmente dos filhos redimidos. Sim, a cadeia de nosso dever aperta tanto mais fortemente quanto mais nomes nos ligam a Deus. Assim a liberta­ ção do pecado implica necessariamente o serviço da graça; uma vez livres do pccado, nos tomamos servos da justiça (Rm 6.18). A verdadeira liberdade con­ siste nisto - que estejamos sujeitos a Deus, pois “servi-lo equivale a reinar”. “A liberdade do espírito”, pois, difere da “licença da carne”. De fato esta é incompatível (asystatos) com a lei, porém aquela é no mais elevado grau con­ sistente com ela e inseparável dela: “como livres que sois, não usando, toda­ via, a liberdade por pretexto da malícia, mas vivendo como servos de Deus” ( IPe 2.16); “porém não useis da liberdade para dar ocasião à carne” (G1 5.13). XIV. O que foi dado aos judeus como tais só pode ser para o uso dos judeus; mas o que é dado aos judeus na forma de pacto (ou simplesmente como povo de Deus) não envolve somente a eles, mas a todos quantos mantêm a mesma relação de povo de Deus. A lei não foi dada aos judeus no primeiro sentido em todos os aspectos, mas no segundo; pois em nossos dias ela fala a nós (Rm 7.7; ICo 9.8). Tampouco ao dizer-se que foi dada por Moisés (Jo 1.17) se segue que sob o evangelho de Cristo ela não tem lugar. Moisés não é contra Cristo, mas lhe é subordinado (como servo a um senhor, e como alguém na casa que está subordinado ao que tem direito sobre a casa como seu constru­ tor e governante). XV. Moisés também pode ser considerado por dois prismas: ou geral e indefinidamente como um mestre de toda a igreja; ou particular e definida­ mente como um líder do povo e legislador de Israel, tendo em consideração o interesse deste. No segundo sentido, a lei (introduzida por Moisés) pertencia somente aos judeus, mas no segundo se estende a todos não menos que a lei da natureza (da qual ela é um compêndio). E assim é possível conciliar as diver­ sas opiniões dos ortodoxos sobre o uso e a obrigação da lei mosaica. Alguns afirmam que ela pertencia aos judeus exclusivamente (como Zanchius e Musculus); outros, contudo, asseveram que ela se destinava a todos (como Pareus e outros). Os últimos consideram Moisés e a lei sob a primeira noção; os pri­ meiros, contudo, sob a segunda.

V ig é s im a Q

uarta

P e r g u n t a : A L e i C e r im o n ia l

Q u a is eram o fim e o uso da lei cerimoniai sob o A ntigo Testamento?

i . . , . tríplice' m oral cerim ònial ' ’f o re n se '

I. A lei dada por Moisés geralmente é distinguida em três especies: moral (tratando dos costumes e dos deveres perpétuos para com Deus e para com nosso próximo); cerimon' a' ^ as ccr*mônias ou ritos sobre as coisas sagradas a se­ rem observadas sob o Antigo Testamento); e civil, consti­ tuindo o governo civil do povo israelita. A primeira é o fundamento sobre o qual repousa a obrigação das outras, e estas são seus apêndices e determina­ ções. A cerimonial tem a ver com a primeira tábua determinando suas circuns­ tâncias, especialmente no que diz respeito ao culto externo. A civil tem a ver com a segunda tábua nas coisas judiciais, embora estabeleça punições para crimes cometidos contra a primeira tábua.

^ veracidade desta distinção transparece da diversidade ^os nomes pelos quais é designada nas Escrituras. A lei moral é em sua maior parte expressa por mtsvth (“preceitos”), a ce­ rimonial por chqym (“estatutos”) e a judicial por mshptym (“juízos”), o que a Septuaginta traduz por entolas, dikaiõmata e krimata. “Tu, porém, fica aqui comigo e eu te direi todos os mandamentos, e estatutos, e juízos que tu lhes hás de ensinar que cumpram na terra que eu lhes darei para possuí-la” (Dt 5.31); assim também em 6.1,20; 7.11; e Levítico 26.46. Não obstante, às vezes estas palavras são sinônimas e são empregadas indistintamente (Ez 5.6; 20.11,16,18). Mas a distinção transparece principalmente da natureza da coisa e do ofício da lei (que é para fixar a ordem segundo a qual o homem está associado a Deus e a seu próximo). Ora, o homem está associado a Deus primeiramente por certa semelhança externa —em amor e justiça, santidade e verdade, cuja regra a lei moral enuncia. Além disso, pela significação e testifícação externas daqueles atos do culto divino (sendo empregados emblemas e símbolos), cujo uso a lei cerimonial prescreve. Finalmente, a lei civil explica qual é o dever do homem para com o homem (aplicada mais distintamente aos israelitas). A lei moral considera o povo israelita como homens; a cerimonial, como a igreja veterotestamentária que aguarda o Messias prometido; a civil os considera como povo peculiar que na terra de Canaã deve ter uma república que se ajuste ao seu gênio e à sua disposição. Fundam ento da distinção.

^ ai sur8'r uma múltipla diferença entre a lei moral e as dema‘s tant0 na origem (porque a moral se fundamenta no direito natural e por isso é conhecida pela natureza; as demais, porém, sobre o direito positivo e por isso provêm da revelação livre) como na duração. A primeira é imutável e eterna; a segunda é mutável e temporária. Com respeito ao objeto, uma é universal e abarca todos; as outras são particulares e se aplicam somente aos judeus (a civil, deveras,

Diferença entre a lei m oral e as dem ais

visto que os considerava como um estado distinto dedicado a Deus; a cerimo­ nial, contudo, se destinava ao seu estado eclesiástico e ao estado de menorida­ de e infância). Com respeito ao uso, a lei moral é o fim das demais, enquanto as outras são subservientes à moral. Até aqui temos falado da moral; agora deve­ mos discutir a cerimonial. ^ cerimonial é o sistema dos preceitos positivos de Deus concernentes ao culto externo nas coisas sacras, prescritas para a igreja antiga, seja em prol da ordem ou da significação. É assim chamada em decorrência do objeto sobre o qual ela é versada (ou seja, as cerimônias ou os ritos sacros que outrora eram observados no culto externo de Deus). Assim é, quer a palavra cerimônia seja derivada do etrusco cerus, signi­ ficando “santo”, como sanctimonia vem de sanctus (segundo Joseph Scaliger e Dionysius Gothofredus em notis a d Festum+); ou de Ceres, que (porque os gauleses ocuparam Roma, preservaram o fogo eterno e as virgens vestais) era chamada santuário do povo romano e receptáculo dos vasos sagrados roma­ nos. Os romanos, tendo em vista a renumeração, chamavam seus ritos sacros caeremouiae, de Ceres (segundo Valerius Maximus, Factorum et Dictorum Memorabilium 1.1.10 [org. C. Kemp, 1966], p. 6; cf. Florus lib. 1, cap. 13+). Ou (o que é mais provável) do hebraico chrm, que significa uma coisa sacra e devotada a Deus. Q ue é a lei cerim onial?

V. Ela é assinalada por vários nomes - ora por chqym (como mshptym assinala a judicial e mtsvth a moral); então pela frase “a lei de mandamentos eni ordenanças” (nomon fõn entolõn en dogm asi, Ef 2.15), visto que seus pre­ ceitos são ordenados (dedogm ena ) (sancionados pela vontade de Deus), não tendo bondade exceto pela designação divina; depois pelas expressões “man­ damento carnal” (entolên sarkikên, Hb 7.16) e “ordenanças carnais” (dikaiõmata sarkos, Hb 9.10), porque se ocupam em prescrever coisas externas e corruptí­ veis (que nas Escrituras são chamadas carnais); então pela frase “rudimentos fracos e pobres” (stoicheia astheriê kai ptõcha tou kosmou, G1 4.9), porque foram os primeiros rudimentos e, por assim dizer, o alfabeto da igreja judaica. Durante seu estado infantil, ela devia ser instruída neles e era inapta para fazer algo por si mesma, quer para a justificação quer para a salvação. Cerimônias são ritos externos e acidentes sacros do culto divino. Não são em si mesmas o culto de Deus, mas adjuntos concomitantes e assistentes por significação, exercício, obra e decoro. Sua origem e fundamento são traçados da natureza e condição do ho­ mem, o qual, visto ser um “animal cerimonial” (segundo Melanchthon), adere a cerimônias e ritos externos e se deixa afetar por eles. Além disso, visto que o homem consiste de alma e corpo e em ambos deve glorificar a Deus, ele de­ manda ritos externos pelos quais possa adequar os impulsos de seu corpo ao culto divino e ser transportado das coisas sensíveis e terrenas para as coisas espirituais e celestiais. Daí, no estado de integridade não faltavam certos simOrigem das cerim ônias

bolos externos e ritos cerimoniais; tais como a árvore da vida posta acima das demais como um sacramento do pacto e das promessas, e a árvore do conheci­ mento do bem e do mal, a qual, somente ela, era separada das muitas como um símbolo de prova; tal também foi a santificação do sábado. Mas, após o peca­ do, aumentou a necessidade desses ritos, não somente para a boa ordem (euta xian) e como um vínculo da sociedade santa e da pia comunhão sob Deus (para a selagem do pacto, quanto à presença e bênçãos de Deus, e quanto aos teste­ munhos de nossa gratidão e às marcas de nosso dever para com Deus), mas especialmente para prefigurar a pessoa e os ofícios do Mediador, sem o qual não se pode ter nenhum acesso a Deus. VI1. Daí adveio a instituição da lei cerimonial, na qual há muitas razões importantes pelas quais devemos aquiescer, além da vontade santíssima de Deus. (1) A condição da igreja, que, embora constituída em sua infância (em virtude da pequena porção que o Espírito Santo lhe outorgou, G1 4.1), tinha de ser instruída pelo uso de figuras deste gênero, visto que ordinariamente ela não estava apta para receber maior luz. (2) A natureza do povo israelita, que, sendo um povo de dura cerviz e mui inclinado à idolatria e ao culto profano dos gentios, tinham de ser guardados por cerimônias deste gênero e refreado, por assim dizer, dentro de certas barreiras, para impedir sua iniciação em outros cultos. (3) A torpeza e hediondez do pecado, as quais tinham de ser exibidas a fim de que o homem (convicto delas) fosse impulsionado a buscar um remédio que seria encontrado nas purificações e nos sacrifícios. (4) A necessidade e eficácia da graça, a qual tinha de ser prefigurada por vários tipos. VIII. Portanto, pode-se observar um fim múl O fim g era l da nos que útil, da lei cerimonial. (1) Geral (ou seja, boa or­ lei cerim onial dem [ cutaxia ], para que nela o povo tenha uma forma exter­ - boa ordem ; o na de culto e religião públicos os quais Deus pudesse apro­ f im especial var. (2) Especial, também variada, segundo suas diferentes com respeito à relações ( schesin ), seja em relação à lei moral, ou ao povo lei m o ra i israelita, ou à graça. Pois, com respeito à lei moral, seu fim era ser útil à primeira tábua por meio de uma prescrição de culto externo legí­ timo e um serviço religioso determinado (ethelothrêskeiõn ), e para auxiliar a lei moral em convencer os homens de sua impureza, fraqueza e culpa. (3) Com Com respeito resPe't0 30 Povo>el3 se destinava a servir para distingui-los ao ovo de outros povos e para congregá-los mais fortemente entre si. ao povo. gchamada uma “parede de separação que estava no meio” (mesotoichon , Ef 2.14) pela qual os israelitas viviam separados das demais nações, e, sobretudo, não mantinham comércio com elas; sim, exerci­ am ódio mútuo e inimizade por esta razão. Daí ser chamado pelo apóstolo, no mesmo lugar, “ódio” (echthra ) ou “inimizade” (i.e., ocasião de ódio e diver­ gência entre si). E assim ela se assemelhava a um pedagogo que guiava o povo afastando-o da companhia dos gentios (de sua idolatria e impureza) e os con­ duzia a Deus e, mais estritamente, os obrigava a cultuá-lo como seu Deus pes-

soai e peculiar, e assim a ocupar-se com este culto laborioso, para que não houvesse tempo ou hora livre e viessem a inventar novos cultos ou aceitar os que eram empregados por outros. C °m respeito ao pacto da graça, o uso da lei era para mos,rar sua necess'dade por uma demonstração do pecado e da miséria humana; sua veracidade c excelência por meio de uma prefiguração de Cristo e de seus ofícios e benefícios; para selar sua múltipla graça por meio de suas figuras e sacramentos; para despertar a expectativa e o anelo por ele por meio daquele culto laborioso e pela severidade de sua disci­ plina a compeli-los a que o buscassem; e para demonstrar a retidão e a imagem do culto espiritual requerido por ele naquele pacto. Indubitavelmente, há três coisas que sempre devem ser especialmente inculcadas no homem: (1) sua miséria; (2) a misericórdia de Deus; (3) o dever de gratidão: o que ele é por natureza; o que ele tem recebido pela graça; c o que ele deve por obediência. A lei cerimonial pôs diante dos olhos dos israelitas essas três coisas, visto que as cerimônias incluíam especialmente estas três relações. A primeira, porque eram apêndices da lei, e as outras duas como sacramentos da graça evangélica, (a) Havia confissões dos pecados, da miséria humana e da culpa contraída pelo pecado (Cl 2.14; Hb 10.1-3). (b) Símbolos e sombras da misericórdia de Deus e da graça a ser outorgada por Cristo (Cl 2.17; Hb 9.13,14). (c) Imagens e figuras do dever e do culto a ser prestado a Deus em testemunho de uma mente agradecida (Rm 12.1). Miséria engendrada em sua mente, humildade, miseri­ córdia, refrigério e o dever de gratidão, e santificação. Essas três coisas foram expressamente designadas nos sacrifícios. Pois, assim como eram um “escri­ to” da parte de Deus (Cl 2.14) representando o débito contraído pelo pecado, assim também eram uma sombra do resgate ( lytrou) a ser pago por Cristo (Cl 2.17; Hb 10.5,10), e figuras do culto racional ( latreias logikês) e evangélico a ser prestado a Deus pelos crentes (Rm 12.1; 1Pe 2.5). X. Não obstante, é certo que a primeira e mui especial relação (schesin) desta lei era com Cristo. Assim como ele era o alvo e o fundamento de todas os oráculos e promessas (2Co 1.20), assim também ele era o corpo e a verdade de todos os tipos e figuras (Cl 2.17). Estes eram “a sombra das coisas por vir; mas o corpo é de Cristo” (skia ton melhmtõn, to de sõrna tou Christou). São chamadas uma “sombra” tanto fisicamente (como opostas ao corpo, porque, como uma sombra é o sinal de um corpo, assim as cerimônias eram as sombras de Cristo a mostrar-se; como um corpo é a causa da sombra, em contrapartida Cristo não foi a causa da instituição desses ritos; como a sombra em si mesma não tem e não pode ter força, mas o poder pertence ao corpo, assim toda a eficácia é de Cristo - mas as cerimônias, em si mesmas, são vãs e mortas), quanto artificialmente, pois uma delineação obscura e rude de uma coisa se opõe à imagem perfeita (eikona) dessa coisa (sendo nesse sentido empregada pelo apóstolo, Hb 10.1). Não obstante, isso foi mui sabiamente planejado por Deus para que, dado que por razões de suma importância ele quis protelar o Com respeito à g raça

advento do Messias por muitos séculos, este não só fosse prometido e predito nos oráculos, mas também fosse representado em tipos, somente enquanto o tempo da renovação (diorthõseõs) não chegasse e o sol da justiça não nascesse. Foi também planejado por Deus que seu antigo povo, por essas sombras e oráculos, pudesse manter-se na esperança da vinda do Messias e assim, sob essas imagens, pudesse ter uma prelibação da graça celestial a manifestar-se em Cristo; e que os crentes do Antigo Testamento, com base nessas marcas, pudessem mais pronta e certamente reconhecer o Messias (como representa­ do), e sua fé ser mais confirmada pela contemplação da concretização das sombras no corpo, e das figuras na verdade. ^ ^ 'sso P°demos facilmente deduzir o que devemos decidir concernente à questão movida por alguns em nossos ^ 'as ~ sc a ^e‘ cer*monial (prescrita depois que a " fabricação do bezerro [moschopoiian]) teve um uso sig­ nificativo de selar a culpa e a maldição, e ainda obriga os crentes, e por isso foi dada por ira para ira, seja para agravar, seja para selar a servidão dos pais sob a culpa de ira e de maldição (como alguns afirmam). Ou se diz respeito princi­ palmente a Cristo e foi dada como um tipo de coisas boas no futuro, com o fim de despertar a mente dos crentes (como outros pensam). Pois, como houve uma dupla relação (schesis ) daquela lei que deve ser cuidadosamente conside­ rada (uma legal, referente ao pacto das obras e sua lei violada; a outra evangé­ lica, pela qual estava em pauta o pacto da graça, e seu Mediador), assim temos que arrazoar sobre ela por diferentes prismas, segundo essa dupla relação (schesin). Pois, com respeito à primeira, não há dúvida de que ela teve a utilidade de revelar o pecado, selando sua culpa e ameaçando com ira e maldição divinas iminentes cm decorrência do pecado. Neste sentido, Paulo diz que o “escrito” era contra nós, e por meio dele foi feito uma responsabilizante rememoração (anamnesin) dos pecados. Mas, quando a segunda está em pauta, é indubitável que mesmo nela sc encontravam símbolos e selos da graça dc Deus em Cristo, pelos quais os crentes pudessem ser sustentados na esperança de coisas boas futuras e ser confirmados contra o senso do pecado e da ira de Deus. XII. Entretanto, essas relações (scheseis) estão de tal modo interligadas que quem quer que deseje apropriadamente entender a natureza da economia veterotestamentária e a utilidade da lei cerimonial terá sempre que enfeixá-las; tampouco podem ser tomadas em parte, exceto em pesado detrimento da ver­ dade. Porque, assim como aquele que quiser atentar somente para a relação (schesin) evangélica (uma vez desconsiderado o rigor da lei como um pedago­ go) não entenderá o caráter do Antigo Testamento, o qual consistia principal­ mente nisto, assim também se vê que aquele que salientar demais a relação legal (negligenciada a evangélica e não considerada suficientemente) obscure­ cerá não pouco a graça de Deus exercendo-se sob aquela dispensação, e dene­ grirá e enfraquecerá demais a fé e a consolação dos pais. Daí, o caminho mais seguro aqui parece ser o meio-termo - para que tenhamos sempre em vista

S e a lei cerim onial f o i dada p o r ira para ira

ambas essas relações (schesin ). Não obstante, a legal deve ser a inferior, sub­ serviente à evangélica e constituindo o fim menos importante de toda aquela dispensação; a evangélica, contudo, deve ser a primordial, como contendo o fim especial e último de Deus naquela economia. XIII. Daí, não se pode dizer absolutamente que a lei cerimonial foi dada por ira para ira, para selar e agravar a servidão dos pais sob a culpa e a maldi­ ção; e que os sacrifícios não foram um antídoto para o pecado, e sim um escrito ( chirographum ), e como coisas desse gênero pelas quais o rigor da pedagogia legal é apresentado. Pois, ainda que seja possível dizer que essas coisas num bom sentido, quanto à relação (schesin) legal, consideradas estritamente em si mesmas (não cremos que se deva levar a cabo alguma controvérsia entre ir­ mãos por esse motivo, se essa era sua intenção), contudo não podem ser rece­ bidas absoluta e simplesmente, se as cerimônias forem consideradas relativas quanto à relação (schesin ) evangélica da qual jamais deveriam separar-se. Pois, se é verdade (como não se pode negar) que Deus sob estas quis preanunciar e selar-nos os mistérios do evangelho e da graça salvífica de Cristo (a qual o apóstolo com frequência e expressamente inculca na epístola aos Hebreus, e os tipos e sacramentos necessariamente demandam), como é possível dizer que essa lei foi dada por ira para ira e para selar e agravar a culpa e a servidão dos pais? Ou podemos crer que o que teve uma utilidade tão grata e doce foi dado com vistas a um fim tão opressivo e severo? E se os sacrifícios selavam a própria expiação futura de Cristo para uma liberdade mesmo então eficaz, como é possível dizer que eles selavam a culpa que pesava sobre os pais com uma penosa censura à sua consciência? XIV. Não se pode estabelecer a opinião contrária a partir do fato de que a lei é denominada “jugo insuportável” (abastakton, At 15.10). Isto está implíci­ to na própria lei considerada em oposição ao evangelho. Neste sentido, ela é um ministério de morte e de condenação que sobrecarregava a consciência com laboriosos rituais. Tampouco esta opinião pode ser estabelecida a partir da sua subordinação ao evangelho, em cujo sentido ela era um pedagogo a nos conduzir a Cristo (G1 3.24); ou do fato de ser descrita em termos dos “rudi­ mentos fracos e pobres” do mundo (G1 4.9), aos quais o apóstolo atribui fra­ queza e inutilidade (to asthenes kcii anõpheles, Hb 7.18). Paulo não fala de cerimônias em seu uso legítimo, em conformidade com a instituição divina sob o Antigo Testamento, mas fala delas como agora abolidas e amortecidas por Cristo; ou consideradas p e r se, à parte de sua relação típica, separadas (a saber, de Cristo), como os judaizantes as consideravam; ou por dizer-se que a lei tinha uma sombra das coisas boas que viriam, e não a própria imagem das coisas (Hb 10.1). E certo que o apóstolo fala da lei em si considerada simplesmente, à parte de Cristo, o Mediador. Neste sentido, ninguém nega que ela continha apenas a sombra das coisas boas que viriam, e não podia expiar o pecado nem apaziguar a consciência. Mas isto não a impede de apontar para Cristo para prefigurar sua graça; sim, as palavras do apóstolo nos levam claramente a isto.

XV. Tampouco se deduz algo melhor de Colossenses 2.14, onde ela é cha­ mada o escrito (chirographum) contra nós; o que parece caracterizar a selagem e acusação da culpa que ainda pesa sobre os crentes. Isto é dito apenas com respeito à relação (scheseõs) legal, a qual de modo algum deve ser fortemente imposta, ao ponto de apagar a evangélica. Se não, Paulo teria dito falsamente: “E recebeu o sinal da circuncisão como selo da justiça da fé” (Rm 4.11). Em conformidade com a primeira, é possível dizer que foi um escrito de conta, porque nela estava a confissão de pecado e de culpa; não cancelado pelas víti­ mas legais (como se evidenciou em sua reiteração), mas a ser cancelado uni­ camente pela morte de Cristo. Em conformidade com a segunda, era uma figu­ ra do Mediador como nosso Substituto e da culpa a ele transferida, e daí da liberação a ser recebida por meio dele e da remissão já obtida em virtude do sacrifício que seria oferecido. Daí dizer Paulo, não simplesmente que o escrito é enantion (“contrário” a nós), mas hypenantion (“subcontrário”, i.e., de certa forma contrário). A saber, contra os pais sob aquela relação legal e porque eram pecadores, era o escrito do pecado e da culpa incorrida por este, e da punição merecida; contudo, visto que eram crentes, ele continha os símbolos favoráveis e os selos da graça mesmo então outorgados a eles segundo a relação evangélica, a qual era a principal e última, e aquela pela qual a primeira era temperada para a consolação dos crentes, para que fossem considerados como ainda sob culpa, transferida para Cristo em virtude do acordo feito e do pagamento futuro. XVI. Além do mais, a multidão de cerimônias e figuras era prova da imper­ feição sob a qual laboravam. Ao mesmo tempo, ela apresentou diante de suas mentes e olhos a suprema perfeição de Cristo, para ilustrar que havia necessi­ dade de tão grande variedade para que, o que não podia ser representado ple­ namente por uma figura, fosse enfatizado por muitas que exibissem o mesmo objeto considerado em diferentes relações (schesei ). O mesmo Cristo foi prefi­ gurado pelos reis, profetas e sacerdotes com referência ao seu tríplice ofício: pelo sacerdote oferecendo, em referência ao seu eterno Espírito ou divindade; pela vítima oferecida, em referência à sua natureza humana; pelo altar de todas as ofertas queimadas, em referência à sua satisfação; pelo altar do incenso, em referência à sua intercessão etc. O mesmo Espírito, pela água da purificação, pelo óleo da unção, pelo fogo sagrado era significado em referência às suas várias operações. Daí, o que era dividido nos tipos foi enfeixado no antítipo. Acerca disto, deve-se formar um juízo, não de um ou de outro separadamente, mas de todos considerados em relação, porque não havia tipo adequado que cobrisse plenamente o antítipo, mas todos eram parciais c inadequados. XVII. Não obstante, como o mesmo mistério era com frequência represen­ tado sob várias figuras e cerimônias, assim a mesma figura era frequentemente usada para prefigurar diferentes mistérios, especialmente quando esses misté­ rios eram subordinados e tinham uma relação (schesin) mútua entre si. Assim o tabernáculo era um tipo de Cristo (Jo 1.14), da igreja e dos crentes (Ef 2.20) e do céu (Ap 11.1,2). Os sacrifícios eram figuras do sacrifício expiatório de

Cristo (Hb 10.5,6) e dos sacrifícios espirituais e das ações de graças dos cren­ tes (IPe 2.5). Os sacerdotes representavam Cristo, que é o principal sumo sa­ cerdote do Novo Testamento (Hb 9,10); os ministros do evangelho, que devem ministrar (leitourgein ) para Deus (Rm 15.16), e os crentes, que são feitos “sacer­ dócio real” (1 Pe 2.5; Ap 1.6). A páscoa era, não só um memorial da passagem do anjo pelo Egito e do livramento do Egito, mas também um símbolo da futura redenção por Cristo da servidão de Satanás e do pecado; e uma figura da passa­ gem dos crentes da escravidão para a liberdade, da morte para a vida ( I Co 5.7). Inaptidão das XVIII. E daqui podemos claramente deduzir contra os judeus cerim ônias Q116 0 u s o e 0 ^im *e' cerimonial eram, não a justificação e p a ra expiar a santificação do homem pecador (porque “(a lei nunca aperpecado feiçoou [eteleiõsen] coisa alguma, e, por outro lado, se intro­ duz esperança superior, pela qual nos chegamos a Deus”, Hb 7.19), visto que ela se preocupava só com o mandamento carnal e com coisas terrenas e corporais, as quais são “no tocante à consciência,... ineficazes para aperfeiçoar [teleiõsai] aquele que presta culto” (Hb 9.9). Ela não foi além da “purificação da carne” (v. 13), isto é, da purificação externa e cerimonial, o que o apóstolo mostra detalhadamente (Hb 10.1-4). Prova-se isto facilmente: (1) geralmente, “visto que a lei tem sombra dos bens vindouros” (Hb 10.1), e não a própria imagem das coisas, e assim não podia “tomar perfeitos os ofertantes”. (2) Especialmente, com base na imperfeição das cerimônias, as quais eram desproporcionais, quer quanto aos pecados (os quais, como morais, só podem ser expiados e purgados moralmente por meio de uma vítima que tenha uma relação moral, i.e., do supremo amor e de perfeitíssima obediência se apresentando a Deus, sendo Cristo a única) quer quanto a Deus, a quem se deve fazer satisfação. Sendo ele Espírito, demanda também uma vítima espiri­ tual e racional para que lhe seja dada satisfação; tampouco sua sabedoria ou justiça permitiria que os pecados fossem removidos por um animal e por san­ gue material, porém requeria uma vítima racional para remover a culpa contra­ ída pela criatura racional, e que a rebelião contra a majestade infinita fosse resolvida por um preço e satisfação infinitos. As imperfeições das cerimônias não tinham proporção com relação ao homem, por quem se deve fazer expia­ ção, porque o pecado tem de ser punido segundo a mesma natureza em que foi cometido. Daí o apóstolo asseverar expressamente: “E impossível que o san­ gue de touros e de bodes remova pecados” (Hb 10.4) - não só com base na designação divina, mas na natureza da coisa (visto que, naqueles sacrifícios continuamente renovados, o que havia era na verdade uma rememoração [anamríêsis] repetidamente feita dos pecados, ano após ano, vs. 2,3). XIX. Se a expiação é algo frequentemente atribuído àqueles sacrifícios, não se segue que real e propriamente expiassem. Isto deve ser atribuído so­ mente a uma expiação típica e cerimonial, pela qual a impureza da carne era removida (i.e., o pecado cometido contra a lei), contudo não a uma expiação real e espiritual da culpa e da corrupção do pecado propriamente assim chama-

da (a qual purgasse a consciência, como o apóstolo o expressa em Hb 9.14). Portanto, deve estar subentendido um duplo efeito daquela lei: o primeiro (ex­ terno e carnal), a remoção da impureza da came pela qual alguém era afastado das assembléias eclesiásticas, tal como era contraída pelo toque de coisas proi­ bidas pela lei cerimonial; o segundo, sacramental (a saber, a significação e selagem da graça e de todos os benefícios a serem obtidos do Mediador). Com respeito ao segundo, cf. “Disputatio ... De Satisfactionis Christi”, Pt. VI, Sec­ tion 4 em O pera (1848), 4:564. ^ ra’ essas cerimônias podem ser distribuídas em vár'as c*asses: (1) com respeito às pessoas pelas quais os r'tos sacros eram realizados; (2) com respeito às coisas sacras em si mesmas, as quais devem ser feitas; (3) com ’ respeito aos lugares em que devem ser celebradas; (4) com respeito aos tempos em que devem ser realizadas. As pessoas sagradas eram de dois tipos: algumas comumente chamadas sagradas; outras por uma razão es­ pecial. Do primeiro tipo eram aquelas iniciadas pelo sacramento da circunci­ são (por cuja marca um povo dedicado a Deus era separado e distinguido das demais nações). Este rito prefigurava a remoção de nossa corrupção inerente, restauração da imagem de Deus em nós, nossa implantação em Cristo e a sela­ gem do pacto divino. XXI. Do segundo tipo são aqueles cujo ministério Deus usou para o gover­ no de sua igreja. Eram ministérios tanto ordinários como extraordinários. Es­ tes últimos foram aqueles que, para a edificação da igreja e para estabelecer nela a ordem, a princípio, ou restaurá-la quando falhasse, e assim predizem coisas futuras, foram imediatamente suscitados (tais como os profetas). Daí, por meio de visões, sonhos e inspiração interna do Espírito Santo, foram pre­ parados para profetizar. Os ordinários foram aqueles que, sendo mediatamente chamados, eram obrigados a preservar a ordem estabelecida na igreja pela realização de ritos sacros (tais como os sacerdotes e os levitas). Os primeiros provieram de uma série perpétua de sucessão da família de Arão, exerceram seu ofício no tabernáculo, estendiam suas mãos sobre o povo e os abençoavam invocando o nome de Deus. Entre eles, o principal, o sumo sacerdote, era pre­ eminente, cuja consagração particular, vestimentas particulares e oficio parti­ cular o constituíam um tipo particular de Cristo. Eram especialmente chama­ dos “levitas” os que (empregados para as coisas sacras no lugar do primogêni­ to, Nm 18) serviam os sacerdotes na limpeza dos vasos santos, na imolação e lavagem dos animais, na colocação dos pães e em outros deveres semelhantes.

A s cerim ônias são vistas ou com respeito às pessoas ou etc

XXII. Os nazireus eram também contados entre as pessoas sagra­ * ’ das, embora nada tivessem a ver com as coisas sacras. Alguns deles entraram na ordem por meio de um voto (mencionados em Nm 6.2-8); outros por nascimento e por mandado divino (como Sansão, Samuel, João Ba­ tista). A santidade peculiar destes últimos prefigurava a pureza perfeita de Cristo,

Na~ireus

que foi o verdadeiro nzyr de Deus (na figura de antonomásia), separados (aphõrismenos) dos demais. Nele [em Cristo] realmente se encontra um misté­ rio que ocorria nos nazireus quanto à letra, visto que de fato ele se absteve de toda mácula que pudesse tisnar sua perfeitíssima santidade. Ele não teve co­ municação com as obras mortas do pecado, e sua vida foi um contínuo exem­ plo de sobriedade e temperança, bem como dc todas as demais virtudes. Ele se devotou ao seu oficio com tal zelo que chegou ao ponto de preferi-lo a todos os deveres de relacionamento [humano], XXIII. As coisas sacras eram aquelas que estavam isentas ^os usos Pr°fanos e (santificadas pela Palavra de Deus) se destinavam aos usos sagrados, tais como oferendas ou sacri­ fícios. Aquelas eram o oferecimento de coisas inanimadas que (procedentes da terra) ministravam para o homem, seja alimento para a vida, ou especiarias para o aprazimento, ou remédios para a cura. Do primeiro tipo, pão e vinho; do segundo, óleo e sal; do terceiro, era apresentado o incenso, por meio do qual eram designados tanto os benefícios de Cristo para conosco e os dons do Espí­ rito, como o nosso dever para com Deus, e também o testemunho de uma men­ te agradecida (Ml 1.11). Coisas sacras: Oferendas.

XXIV. Os sacrifícios se encaixam especialmente aqui, pois cons­ tituíam uma grande parte da lei cerimonial. Não porque fossem de livre uso, que pudessem ou não ser oferecidos sem se negligenciar o culto devido (como alguns afirmam); pois, que foram prescritos por Deus, é sufici­ entemente, e mais que suficientemente deduzido disto - lemos que Abel fez uma oferenda pela fé (Hb 11.4). Ora, a fé está fundamentada na Palavra de Deus, e lemos que Deus deu testemunho quanto àqueles sacrifícios, testifican­ do assim que lhe foram agradáveis. Ora, em questão de religião, nada lhe agra­ da exceto o que ele mesmo ordenou; assim se condena o culto de si mesmo (ethelothrêskeia , Cl 2.23). Sua instituição, porém, foi mais clara e solenemen­ te renovada por Moisés. Os sacrifícios também eram de vítimas vivas, apre­ sentadas pelo crente e oferecidas pelo sacerdote a Deus, segundo os ritos pres­ critos por ele. Sua integridade e sua saúde perfeita (holoklêria ), como signifi­ cavam Cristo, o cordeiro imaculado, e a marca de perfeição que devemos al­ mejar nesta vida, assim o oferecimento deles designava primeiramente o sacrifí­ cio de Cristo feito em nosso favor e então, também, o nosso culto racional (logikên latreian). Havia duas espécies principais deles. Pois alguns eram hilásticos (hilastica) ou propiciatórios, pelos pecados cometidos (os quais prefiguravam o sacrifício expiatório de Cristo oferecido em nosso favor na cruz, “em aroma suave” [eis osrrièn euõdias], para expiar nossos pecados [Ef 5.2], e a consagração dc nós mesmos, corpo e alma, feita por Cristo ao Pai, Rm 12.1). Outros eram eucarísticos, para benefícios ou esperados ou recebidos, e os quais eram tipos dos sacrifícios espirituais de orações e louvores a serem a cada dia oferecidos a Deus, e do amor a ser exercido em prol de nosso próximo (Hb 13.15,16). Sacrifícios

XXV. O termo sacrifício às vezes é tomado amplamente, significando qual­ quer ação religiosa instituída por Deus para que lhe ofereçamos o nosso pró­ prio, para sua glória e para estarmos unidos na mais estreita comunhão com ele. Neste sentido, ele poderia existir mesmo antes do pecado, e o fim era testificar, selar, preservar e aumentar a comunhão com Deus, retribuindo o homem com ação de graças, reconhecendo sua dívida e tomando tudo o que possui e depositando diante de Deus para testificar de uma alma agradecida e obter as bênçãos de que ainda necessita. Mas, estritamente, denota o ofereci­ mento e a imolação de uma vítima para a expiação do pecado pelo derramamen­ to de seu sangue (haimatekchysian) e sua morte; e assim só após o pecado é que ele entrou em cena. Visto que os males da culpa e do castigo, introduzidos pelo pecado, tinham de ser removidos e as coisas boas que o homem perdera tinham de ser granjeadas por meio da satisfação da justiça divina e o apaziguamento de sua ira, o derramamento de sangue e a morte da vítima nos sacrifícios foram necessariamente requeridos como prefiguração mais eficaz do sacrifício de Cris­ to em sua morte maldita e no derramamento dc seu mui precioso sangue. . , XXVI. Terceiro, visto que lugar e tempo se encaixam nas coisas r , sagradas, por isso também pertencem à lei cerimonial. Um lugar ‘ ’ sagrado é aquele no qual Deus exibia sua presença por meio de algum símbolo visível e publicamente ordenava que o adorassem ali. Mesmo antes da construção do tabernáculo e do templo, isto é chamado “a face do Deus visível”, “a casa de Deus” e “a porta do céu” (Gn 16.13; 28.17). Pois, como a lei ordena assembléias santas, assim também tinham de ser escolhidos lugares para as assembléias, nos quais as coisas para as quais as assembléias eram convocadas fossem feitas mais conveniente e oportunamente. Esta esco­ lha dependia, não do bel-prazer humano (que às vezes inventa uma divindade onde não existe nenhuma prova dela), mas de Deus, que os seleciona e os separa, tanto pela manifestação de si mesmo (onde, por assim dizer, por um faiscar de relâmpago, ele o mais brilhante, sim, a própria luz, faz com que os olhos de todos se voltem para ele), como por meio de uma declaração de sua vontade. Esta adesão local era necessária sob o Antigo Testamento, onde o culto externo e cerimonial requeria também determinado lugar, no qual fosse confinado. Mas agora, sob o evangelho, no qual o conhecimento de Deus é difundido por todo o mundo, isto se tomou acidental e indiferente, porque nosso culto não se restringe a nenhum lugar. Nem somente no Monte Gerizim nem somente em Jerusalém é ele adorado em espírito e em verdade (Jo 4.23). É lícito erguer mãos santas para Deus em todo e qualquer lugar ( lTm 2.8). XXVII. A Moisés se fez conhecer esse lugar pela ordenaÇã° de Deus. Primeiro, o tabernáculo móvel que lhe foi or­ ’ denado construir para esse propósito. Justamente por isso era comumente chamado o “tabernáculo da assembléia” e “do testemunho”. Mais tarde, no tempo de Salomão, ele foi trocado por um templo fixo e imóvel. Ele era figura (1) de Cristo, em quem habita corporalmente (sõmatikõs , Cl 2.9) O tabernáculo o tem plo '

“toda a plenitude (plêrõma) da Divindade”, no qual somente Deus podia ser corretamente reconhecido e adorado, o qual, por sua humanidade, habita entre (eskêríõsen) nós como num tabernáculo (Jo 1.14; Hb 10.20; Jo 2.19). (2) Da igreja, fora da qual não há salvação (Ap 11.2), a qual é o tabernáculo de Deus no Espírito (Ef 2.22) e a casa do Deus vivo (lTm 3.15). (3) Dos crentes, os quais levam em tomo de si o tabernáculo terreno do corpo, feito por mãos, o qual se dissolve gradativamente (2Co 5.1; 2Pe 1.14). Eles são o templo de Deus (1 Co 3.16; 6.19) em quem Cristo habita pela fé (Ef 3.17). (4) Do céu e da glória (Ap 11.19; 21.3,22). XXVIII. Sua unidade significa, respectivamente, a unidade de Cristo, a cabeça, e de seu corpo místico ou a igreja. Sua divisão em santuário, lugar santo e átrio duplo, em Cristo pode representar o corpo (correspondente ao átrio), a alma (correspondente ao lugar santo) e a Deidade (correspondente ao santuário [ou lugar santíssimo]); na igreja pode representar suas três condi­ ções: a igreja visível, na qual os hipócritas e as pessoas profanas podem entrar (correspondente ao átrio); a igreja invisível e igreja dos eleitos, ainda na terra, na qual somente os crentes e eleitos, como o sacerdócio legal, são admitidos, para que prestem a Deus culto racional (logikên latreian), onde ainda necessi­ tam da luz do mundo para sua orientação, do alimento dos sacramentos para sua nutrição e do incenso das orações; e a igreja dos santos do alto, que, admitidos no céu como o santuário de Deus, desfrutam de íntima comunhão com ele (Hb 9.24). Ou pode representar o estado da natureza, graça e glória: no homem, suas três partes - os sentidos externos, que apreendem as coisas sensíveis (ta aisthêta), que estão no átrio; o intelecto e a mente, que conhecem as inteligíveis (ta noêta), que estão no lugar santo; e o coração ou a consciência, que abarca as críveis (ta pista), que estão no Santo dos Santos (cujos olhos não viram, nem ouvidos ouvi­ ram); na revelação de Deus, os três graus: pelas obras, correspondentes aos átri­ os, porque estão abertos a todos indiferentemente; pela Palavra, correspondente ao lugar santo, porque é destinada somente à igreja; e pela face, correspondente ao Santo dos Santos, o que é outorgado somente aos santos beatificados. XXIX. A relação apta do tabernáculo feito por mãos e fixo figurava o cor­ po da igreja perfeitamente unido (synarmologoumenon) e compactado (svmbibazomenorí) de Cristo, a cabeça, e os crentes, seus membros (Ef 4.16). A mu­ dança dele para o templo designava a forma mutável da política judaica, a qual foi primeiramente móvel e ambulante pelo deserto, então sob Salomão obteve descanso. O templo designava isto, aliás análogo ao tabernáculo em suas par­ tes e em sua mobília, porém em estabilidade, esplendor e grandeza o excedia em muito. Além disso, o tabernáculo demonstrava corretamente a imagem do estado móvel, tanto da igreja antiga quanto de toda a vida humana. O templo, contudo, demonstrava tanto a igreja cristã [militante na terra] como a igreja triunfante. Justamente por isso, somente os judeus trabalhavam no tabernácu­ lo, enquanto que os gentios, tírios e sidônios, também trabalhavam no templo.

XXX. A arca da aliança (inclusa no tabernáculo e no templo, na qual foram depositadas as tábuas da lei - um propiciatório coaliança, ' berto de ouro com querubins repousando sobre ele) significava: (1) Cristo, sobre quem Deus erigiu o trono da graça (Hb 4.16); em quem ele se manifesta reconciliado conosco; a quem ele propôs que fosse uma propiciação por nós, em seu sangue (Rm 3.25); em quem estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento (Cl 2.3) e as tábuas da lei estão depositadas, visto que a lei de Deus está escrita em seu coração (SI 40.8); em quem se encontra o oráculo (logion) de Deus, porque, como a Palavra (Logos ) do Pai, ele nos anuncia seus oráculos e nos revela sua vontade; a quem os anjos minis­ tram e, para contemplarem mais de perto sua glória e seus mistérios, diante dele os querubins se inclinam (parak)’p tou si ) e se prostram (IPe 1.12). (2) A igreja, na qual Deus estabeleceu seu trono e quis que as tábuas sagradas fos­ sem depositadas; onde ele se mostra presente em graça e é apaziguado em Cristo, a verdadeira propiciação; de onde ele anuncia seus oráculos por meio da Palavra; onde anjos, como espíritos ministradores, se postam continuamen­ te junto aos crentes e velam por sua salvação; onde a vara da disciplina e da cruz, com a qual ele nos exercita, está lado a lado com o maná da consolação e da vida, com o qual ele nos sustenta.

A arca da

..

XXXI. O altar duplo (de todas as ofertas queimadas e de incenso) representava as duas partes do ofício sacerdotal de Cristo, o qual se cumpriria em seu duplo estado: satisfação, no ofereci­ mento de seu corpo e no derramamento de seu sangue no estado de humilha­ ção; e sua intercessão no céu, no estado de exaltação, por meio de uma repre­ sentação viva e contínua de seu sacrifício, prenunciado pelo incensário de ouro em que se queimava incenso sobre o altar (Ap 8.3). “Possuímos um altar do qual não têm direito de comer os que ministram no tabernáculo” (Hb 13.10). Foi aberta uma passagem de um para o outro: no altar de bronze, era preciso primeiro oferecer sacrifício, antes de se poder oferecer incenso; e assim a sa­ tisfação deve preceder a intercessão, porque, sem uma satisfação, todas as ora­ ções são inúteis. Cristo é o nosso altar: na cruz, pela imolação; no céu, pela intercessão; na mesa, pela comemoração. A m esa o XXXII. No lugar santo, viam-se particularmente três coisas: a candelabro mesa, onde o pão da proposição era posto; o candelabro, no o altar do ’ ^ua* se acend>a a *uz; e ° a*tar de incenso, onde se queimava incenso incenso. A estes há correspondência na igreja, como a luz do mundo, por meio da qual ele nos ilumina; o pão da vida, com o qual ele nos alimenta; e o culto sagrado, que ele demanda de nós pelo ofereci­ mento de orações e outros sacrifícios espirituais. A luz da fé brilha no candela­ bro; a vida de esperança é nutrida pela mesa; e o fogo do amor é fornecido pelo altar. O altar duplo

r t, .r . O lavaton o de bronze

XXXIII. O lavatório de bronze, no qual os sacerdotes eram , . . . „ . , , , obrigados a lavar suas maos e pes antes de se chegar ao altar e ' realizar os ritos sacros, era um sinal da purificação especial requerida daqueles que se aproximavam de Deus, quer detivessem o ofício especial de ministros de Deus quer o ofício comum dos crentes. E assim era evidente que ninguém poderia engajar-se no culto divino, a menos que, pela fé em Cristo, tivesse sido purgado inteiramente da culpa dos pecados, e pelo menos em parte da corrupção (Jo 13.8; Hb 10.22; Tt 1.15,16). Tenmos XXXIV. Finalmente, tempos sagrados são aqueles nos quais as saerados o bênçãos divinas, sejam passadas, ou futuras, são publicamente sacrifício expressas e celebradas. A estas pertencem: (1) o sacrifício contícontinuo nuo’ c'uc cra costurneiraniente oferecido a cada dia (de manhã e à

‘ tarde) com o dever acompanhante, o qual significava, respectiva­ mente, o poder eterno e a eficácia do sacrifício de Cristo, e as orações diárias dos piedosos e o culto dos que agradavam a Deus por intermédio de Cristo. XXXV. Segundo, as festas de um tipo tríplice: semanais, mensais ’ e anuais. A semanal era a festa do sétimo dia, chamado Sabbath, para fazer-nos pensar tanto na criação do mundo quanto em Cristo, que nos redime e nos santifica, bem como no princípio de seu descanso em nós. As mensais eram chamadas “luas novas”, celebradas no primeiro dia de cada mês, contudo sem a intermissão de obras externas. Isto ensinava que todos os meses e suas mudanças eram santificados em nós por Cristo. XXXVI. As anuais eram aquelas que se repetiam ou a cada ano, ou apenas depois de certo número de anos. Das festas de aniversários, as mais solenes eram aquelas três nas quais se ordenava que todo macho comparecesse na presença do Senhor, não de mãos vazias (ou seja, a Páscoa, o Pentecostes e a Festa dos Tabernáculos). Embora fossem instituídas para a memória das bên­ çãos passadas (como a Páscoa, em comemoração de seu livramento do Egito; o Pentecostes, para evocar a bênção da promulgação da lei; e a Festa dos Taber­ náculos, em memória da proteção divina no deserto), contudo continham con­ juntamente uma prefiguração e uma promessa dos benefícios espirituais a se­ rem conferidos por Cristo. A Páscoa prefigurava a libertação do Egito, a liber­ tação do poder do inferno e a imolação de Cristo (ICo 5.7; IPe 1.18,19). O Pentecostes prefigurava a missão do Espírito Santo e a inscrituração13 da lei nas tábuas do coração pelo mesmo Espírito (2Co 3.2,3; Jr 31.33). A Festa dos Tabernáculos indicava a peregrinação do homem piedoso por este mundo de­ sértico rumo à sua pátria celestial (Hb 13.14). XXXVII. As festas que se repetiam depois de um intervalo de alguns anos eram o ano sabático, repetido a cada sétimo ano, na qual se permitia a intermis­ são do cultivo; o Jubileu, no quinquagésimo ano, no qual havia, além da alforA s festas

13. Um neologism o que vale a pena acatar para certos contextos. [N. do E.]

ria de escravos, uma remissão de dívidas e a restituição de bens vendidos. Este é um símbolo do jubileu evangélico promulgado pelo evangelho de Cristo, que é realmente o ano aceitável do Senhor (Is 61.1-3). Todas as nossas dívidas espirituais (a saber, os pecados) são remitidos por meio de Cristo (Rm 8.1; Cl 2.14); libertação que nos é conferida do pecado, de Satanás e da morte (Lc 1.74; Rm 6.13); e os bens perdidos em Adão são restaurados. Numa palavra, a concessão do pleno livramento de todos os males e o perfeito e eterno descan­ so sob Cristo. XXXVIII. Basta dizer de passagem e estritamente estas coisas concernen­ tes às cerimônias e seus usos, especialmente os típicos e cerimoniais. Pois, discuti-las plenamente e explicar os mistérios de todas as cerimônias, seria o tema de não poucas páginas, mas de um longo tratado (que não se encaixa cm nosso escopo e pertence mais à teologia didática do que à apologética). V ig é s im a Q

u in t a

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ergu nta:

A R evogação

da

L e i C e r im o n ia l

A lei cerimonial foi revogada sob o Novo Testamento? Quando e como?

Estabelecimento da questão.

A lei cerimonial pode ser vista de duas maneiras: ou com respeito à doutrina e à significação ou com respeito à revogação e à observância. A questão não é se ela foi re­ vogada quanto à doutrina. Confessamos que esta ainda permanece e é útil de muitas maneiras entre os cristãos; e que a verdade mística, oculta sob esta casca, é sempre a mesma e de necessidade perpétua. Daí, cm virtude dessa analogia, os nomes são sempre mantidos (o antigo estado sendo mudado), e a circuncisão, os sacrifícios, os altares, o incenso são atribuídos aos cristãos, não porque esses ritos devam prevalecer sob o evangelho, mas porque a vera­ cidade dessas figuras sempre permanece (nas quais temos as coisas prefigura­ das pelos sinais). Antes, a questão é se ela foi revogada quanto à obrigação e obediência, e se os crentes estão ainda em sujeição à lei cerimonial (como os judeus de outrora) e são obrigados a guardá-la (como os judeus professam). Esta era a opinião não só dos judeus de outrora (e é dos judeus de nossos dias), mas também dos falsos apóstolos judaizantes nos dias dos apóstolos. Insistiam na observância das cerimônias como necessárias, confundindo temerariamente a lei com o evangelho, Moisés com Cristo. Não obstante, nós, com os após­ tolos e toda a igreja, o negamos. II. As razões são: (1) visto que a economia mos Prova-se a a lei cerimonial era a parte principal) deveria ser mudada, revogação da consequentemente a lei cerimonial também deveria ser re­ lei cerimoni­ vogada. Ora, que a primeira deveria ser mudada se deduz al: (l) com demonstrativamente, contra os judeus, com base nos orácu­ base em los do Antigo Testamento, (a) Com base em Gênesis 49.10, Gênesis 49.10. onde lemos: “Um cetro não se apartará de Judá, nem um legislador de entre seus pés, até que venha Siló”. Em alguma medida, aqui se

assevera a necessidade da economia legal, designada pelo cetro e pelo legisla­ dor, até o advento do Messias, que é expresso por shylh (como se fosse shr lh - “de quem é” o reino). Assim, uma vez sendo ele manifestado, presume-se que a revogação dela se faz necessária. Pois, se ela precisava permanecer até Cristo, não deve mais haver lugar para ela depois da vinda dele. As objeções dos judeus serão refutadas quando tratarmos do advento do Messias. Com base em Jeremias 31.31,32*, onde se prometem um novo pacto e uma nova lei nos últimos dias (i.e., sob o Novo Testamento): “Eis aí vêm dias, diz o S e n h o r , em que firmarei nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais”. Não só é verdade e indubitável que haverá uma mudança almejada, porque lemos que se fará uma nova aliança pelo fato de a primeira haver envelhecido (Hb 8.13), mas também se indica a causa da mudança: a violação (a saber, da primeira aliança), e a maneira, por meio de uma escrita interior da lei. E para que ninguém objete com os judeus, dizendo que ela é chamada nova em razão da confirmação e coalizão da antiga (não quanto à instituição de uma nova), assevera-se expres­ samente que “ela não será segundo aquela que foi feita com seus pais”. Isto necessariamente implica uma diversidade de alianças, se não quanto à subs­ tância, certamente quanto à economia.

(b) Com base em Jerem ias 31.31 32*.

^ ^ ^ om ^ase em Darriel 9.27, onde lemos: O Messias “fará cessar o sacrifício e a oferta de manjares” e fará ces­ sar a profecia. Isto não pode ser entendido sem a revoga­ ção da economia legal. E com base em Jeremias 3.16,17: “nunca mais se ex­ clamará: A arca da Aliança do S e n h o r ! Ela não lhes virá à mente, não se lem­ brarão dela nem dela sentirão falta; e não se fará outra”. S e jamais se fará menção da antiga arca, a qual era (por assim dizer) o centro da antiga econo­ mia, então a totalidade dessa economia se destinava a envelhecer. Tampouco o que se adiciona no versículo 17, sobre a glória de Jerusalém e o regresso a Canaã, se põe no caminho desta opinião. Isto deve ser entendido espiritual e misticamente, cm referência à igreja, não literalmente, em referência à Jerusa­ lém terrena (que se destinava à destruição).

(c) Com base em D aniel 9 2 7

^ ^ om ^ase em salmo 110-4, onde se promete um novo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque, o qual não só procederia de uma tribo diferente, mas tam­ bém realizaria seu ofício de um modo diferente, sem sucessor e sem substitu­ to; não por algum tempo, mas para sempre. Daí o apóstolo inferir: “Pois, quando se muda o sacerdócio, necessariamente há também mudança de lei” (Hb 7.12,13). “ Portanto, se a perfeição houvera sido mediante o sacerdócio levítico (pois baseado nele o povo recebeu a lei), que necessidade haveria ainda de que se levantasse outro sacerdote, segundo a ordem de Melquisede­ que, e que não fosse contado segundo a ordem de Arão?” (Hb 7.11). O mesmo (d) Com base em Salm o 110 4

se deduz de todas aquelas passagens nas quais se diz que o culto divino seria difundido por todo o mundo (Ml 1.11; ls 54.5* e noutras), o que não poderia ocorrer sob a antiga economia. ^ ^ orn ^ase no ^,m ^cssa econom'a e das cerimônias. Pois, uma vez mudadas as causas e as razões da introdução • , , da lei, as,Lleis,também econom ia legal. „ são .mudadas. _ . [11A L 1 lei se assemelhava a um pedagogo a guiar a Cristo e a conservar os cren­ tes na expectativa das coisas boas que estavam por vir, até o tempo da restau­ ração (dioríhõseõs) ou até ao tempo designado (prothesm ias ) pelo Pai (G14.2), no qual a igreja seria adulta e estaria emancipada. Ora, quando Cristo, que é o pai e cabeça da igreja, entrou em cena, e a própria igreja foi conduzida por ele à idade adulta, já não havia necessidade de um pedagogo como o apóstolo o prova em Gálatas 4.1-3. [2] A lei era uma “parede divisória” (mesotoichon) que separava os judeus dos gentios, porém uma vez removida por Cristo a distinção de nações, já não há mais qualquer utilidade para aquela parede, e Paulo testifica expressamente que Cristo a derrubou (Ef 2.14). [3] A lei foi um escrito (cheirographon ) contra nós, não só porque pôs a descoberto o pecado, mas também por selar, respectivamente, a culpa e a condenação do pecador. Nossa dívida, porém, uma vez quitada, e os pecados expiados por Cristo, o escrito é destruído e removido; sim, igualmente afixado na cruz, como o ex­ pressa elegantemente o apóstolo (Cl 2.14). [4] Aquela lei tinha a sombra das coisas futuras (Hb 10.1), porque todos os seus ritos (como já vimos) tinham este fim especial: prefigurar Cristo, bem como seus ofícios e benefícios. No entanto, as sombras se desvanecem quando o sol surge no horizonte; não há mais lugar para figuras quando a verdade vem a público; e não há necessidade de lâmpadas acesas em plena luz do dia. Estas são tão incompatíveis (asystata ) entre si, que pretender reter as sombras no Novo Testamento é o mesmo que negar aquele advento de Cristo porque elas foram empregadas como sinais de sua vinda (o que deveras podia realmente ser feito antes de seu advento; depois disso, porém, seriam falsas e fúteis). [5] A lei era um guarda {phroura ) sob o qual o povo foi mantido para que não se volvesse para o culto profano dos gentios, misturando-se com eles (G1 3.23), pelo espírito de escravidão que prevalecia entre eles. Agora, porém, os crentes, chamados para a liberdade do evangelho e dotados com o Espírito de adoção, como um povo de que se dis­ põe voluntariamente (SI 110.3), não mais podiam ser mantidos sob o poder daquele guarda. (f) Com base ^ Porque as pessoas, coisas e lugares requeriam, para na m udança de uma observância estrita da lei cerimonial, que esta fosse coisas pessoas mudada, e realmente foi mudada. Portanto, a própria lei tam­ e lugares ^ém t'n^ia ser rev°gada, como de fato foi revogada. Quan­ to às pessoas, a lei foi introduzida exclusivamente para os israelitas, e não tinha nenhuma referência às demais nações. Agora, porém, todos os povos e nações são chamados à economia da graça salvífica, e aquele (e) Com base no fim da

povo foi rejeitado. Cabem aqui aquelas diversas passagens dos profetas que falam da rejeição da nação judaica e da vocação dos gentios (Dt 32; Lv 26; Os 2; ls 2; 49; 54; 60; 66). Antigamente, apenas uma das tribos (a saber, a levítica) era admitida ao ministério sacro; agora, porém, entrou em cena outro sacerdó­ cio, segundo a ordem de Melquisedeque, procedente da tribo de Judá. Os sa­ cerdotes são tomados, não só dentre os judeus, mas também dentre os próprios gentios (ls 66.21; 1Pe 2.5; Ap 1.6). Antigamente, os sacrifícios eram externos e carnais; agora, porém, demandam-se sacrifícios espirituais (Rm 12.1; Ml 1) e Deus declara que às vezes ele rejeita e se opõe aos sacrifícios antigos (ls 1.12; Os 6.6; Mq 6.7; SI 50 e 51; ls 58 e 66). Sim, Ezequiel 20.25 os denomina “estatutos que não eram bons”, pelos quais o homem não pode viver, indubita­ velmente tanto em si mesmos quanto à impossibilidade de justificação e santi­ ficação, e relativamente ao abuso dos judeus, que separavam do culto moral as cerimônias. Antigamente, o culto sacro estava confinado numa certa parte do mundo e num só lugar, fora do qual não era lícito realizar ritos sacros; agora, porém, o templo de Deus está em todo lugar. Na igreja universal é lícito erguer por toda parte mãos santas a Deus ( lTm 2.8) e os verdadeiros adoradores já não são obrigados a comparecer em Jerusalém ou no Monte Gerizim para o culto, porque podem adorar a Deus em outros lugares em espírito e em verdade (Jo 4.21,23). Daí dizer-se que se erigirá um altar no meio da terra do Egito (ls 19.19), o que seria errôneo sob o Antigo Testamento, sob o qual o culto religi­ oso é simbolizado. Prediz-se que se oferecerá a Deus incenso em todo lugar (Ml 1.11), o que não se poderia fazer sob a lei. Daí Eusébio provar conclusiva­ mente que a observância da lei cerimonial se tornara impossível após a voca­ ção dos gentios (P ro q f o f the G ospel 1.3.6 [trad. W. J. Ferrar, 1920], 1:20); não se pode conceber que Deus, o sapientíssimo legislador, tenha querido impor tal lei às nações distantes do lugar escolhido pelo Senhor (como se Deus qui­ sesse que os indianos, os europeus e os britânicos, espalhados por todo o mun­ do, mesmo agora subissem a Jerusalém três vezes ao ano). Pois, que cidade (não direi que templo), sim, que região teria capacidade para conter todos estes povos? Que altares seriam suficientes para receber as vítimas? Que região po­ deria fornecer vítimas para tantos adoradores? Não só de direito deve ser abolida aquela lei com t0í^a a econom*a mosaica; mas também já foi realmente abo^ ° 's deveras sendo o templo destruído e Jerusalém arra' sada até ao pó (tendo sido ela a sede do culto), e a nação toda miseravelmente dispersa e espalhada por todo o mundo, é impossível que a lei seja observada segundo a prescrição divina. Não existem ali nem altar nem templo onde realizar culto; nem sacerdote e sacrifícios estão presentes ali; tampouco há razão para a antiga política e para a distinção das tribos e famíli­ as; e isso realmente durante tantos séculos, o que a divina providência nunca teria tolerado, se tais cerimônias devessem ter tido continuidade. Os judeus não podem replicar que estes são de fato sinais da ira divina, o que experimen-

(g) Com base na destruição do tem plo

taram noutros tempos (como no cativeiro babilónico e no egípcio); e, como foram libertados daqueles, assim poderiam também ser recambiados deste, o último exílio. A dispersão atual dos judeus é amplamente diversa de seus de­ mais cativeiros. O tempo deles era fixo; mas o deste, de modo algum, é fixo. Tanto tempo já passou que excede o tempo designado para os outros, não duas vezes, nem quatro, mas dez; já passaram, não setenta anos, ou um ou dois sécu­ los, mas dezesseis séculos. Nos outros, o templo e Jerusalém (embora corruptos) ficaram ainda de pé; agora, porém, jazem totalmente destruídos. Nos outros, permaneceu ainda a distinção dc tribos; aqui, porém, não se pode admitir nenhu­ ma distinção real, não importa o que os circuncisos balbuciem. Nos outros, hou­ ve profetas e sacerdotes; agora, porém, estão totalmente ausentes. ^ ® decreto do [primeiro] concílio (At 15) confirma publicamente esta revogação quando mantém que nada mais se ^eve 'mPor aos cristãos além da abstinência de animais sufocados e do sangue, bem como de alimentos oferecidos " ’ aos ídolos (vs. 28,29). Com base nisto, claramente se deduz que, com a exceção destas três cerimônias, todas as demais, bem como a obser­ vância da lei cerimonial, foram revogadas (como o uso da circuncisão, na qual os falsos apóstolos insistiam, dando assim ocasião ao Concílio de Jerusalém). Não obstante, por qual razão se tomou aquela decisão e como deve ser enten­ dida, será comentado doravante.

(h) Com base no decreto do concílio em A tos 15 ’

^ preciso inquirir sobre a maneira e tempo da revogação. Considera-se primeiramente a maneira, quando se removem o .vigor da lei e o fundamento da obrigação (o que foi feito pela . . I morte de Cristo, em que ele destruiu - não só destruiu, mas U V fl UI v c U v * « * j-acto removeu totalmente do caminho - escrito que era contra nos, ' tendo-se feito pleno pagamento das dívidas, Cl 2.14). Segun­ do, de facto, quando real e atualmente a lei cessa de obrigar e é revogada com respeito ao homem. O primeiro foi feito ao mesmo tempo e imediatamente; o segundo, contudo, sucessiva e gradativamente. No primeiro, a revogação foi feita meritória e causalmente; no segundo, formal e efetivamente. XI. Daí, deve-se distinguir acuradamente os três tempos (têm pora ) das cerimônias: primeiro, em qual estão vivas; segundo, em qual estão mortas; terceiro, em qual são letais. O primeiro tempo, com respeito à instituição divi­ na, de que maneira eram não só lícitas, mas úteis e necessárias sob o Antigo Testamento. Neste sentido, a circuncisão é expressa como um selo da justiça da fé (Rm 4.11), e se lhe atribui um grande valor (Rm 3.2), o que se pode aplicar às demais cerimônias com base na paridade de raciocínio. O segundo tempo, com respeito à acomodação (synkatabaseõs) e à tolerância humana, de que maneira (agora revogadas segundo 0 direito provindo da morte de Cristo) se tomaram mortas e indiferentes. Não obstante, às vezes podiam ainda ser observadas para o benefício dos judeus fracos, contanto que se fizesse com Observa se o modo de

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base somente no amor, e não com base na necessidade. O terceiro tempo, com respeito aos ensinos falsos dos judeus e dos falsos apóstolos, que forçavam para inseri-las no evangelho como necessárias à salvação (com a idéia de mé­ rito), e desta maneira se tomaram perniciosos e destrutivos. Quanto ao primei­ ro, as cerimônias são observadas como necessárias, segundo o mandamento divino. Quanto ao segundo, são suprimidas como nulas e indiferentes (ICo 7.19; Rm 14.3,4). Quanto ao terceiro, são condenadas como letais e nocivas (G1 5.4). O primeiro se estende da sanção da lei até o tempo da correção (dioríhoseos) e da morte de Cristo; o segundo, da morte de Cristo até a plena mani­ festação do evangelho e da liberdade cristã; o terceiro, da promulgação do evangelho e da destruição do templo até o fim do mundo. XII. Não obstante, esta revogação não constituía uma mera abolição pela qual algo então cessa para que daí nada suceda. Antes, era uma consumação da perfeição (Hb 8.6) pela qual algo mais perfeito sucede ao que é imperfeito (como a luz do sol, à aurora, e a idade adulta, à infantil). E assim, indubitavel­ mente, à circuncisão segundo a letra (en gram m ati) sucedeu a circuncisão se­ gundo o espírito; às vítimas irracionais de touros e bodes, a vítima celestial e racional (i.e., o Cordeiro de Deus); à imolação feita por meros homens pecado­ res, a imolação por Cristo, o santíssimo Deus-homem (theanthrõpõ)\ às coisas terrenas, as coisas celestiais; ao sacerdote mortal, o imortal e celestial; a um santuário terreno e feito por mãos, o santuário celestial e não feito por mãos (acheiropoiêton)\ à pureza da carne, a pureza de consciência; a um culto carnal e externo, o culto racional e espiritual (latreia logikê, Rm 12.1; IPe 2.5). XIII. Aquilo que é de direito divino natural é imutável, estando fundamentado na santidade imutável de Deus; mas não igual­ ’ mente aquilo que é de direito divino positivo, fundamentado na vontade do legislador (que, como deu a lei por suas razões pessoais, pode também mudá-la, caso o queira). A lei cerimonial não é de direito natural, mas apenas de direito positivo; não é ordenada por ser justa, mas meramente por­ que é ordenada. XIV. A revogação da lei cerimonial não é contrária à constância e imutabi­ lidade de Deus, porque ele não a deu para permanecer perpetuamente, mas apenas por algum tempo. Assim a lei foi mudada segundo a vontade imutável de Deus, que não começou a querer o que queria, nem deixou de querer o que queria, porém cumpriu o conselho que tomara de governar sua igreja menor por certo tempo por meio dessa lei, até que Cristo, tendo entrado em cena, a economia evangélica a substituísse e passasse a governar sua idade adulta. XV. Nem mais contrários a ela são os fatos de a circuncisão ser chamada “pacto eterno” (Gn 17.7) e que a lei tinha de continuar para sempre. Está implí­ cita uma perpetuidade, não absoluta, mas limitada e periódica; assim designa­ da porque deve continuar, não apenas por alguns anos, mas durante todo o tempo da economia mosaica, até a retificação (diorthõsin , Hb 9*. 10). A palaFontes d e exp/una ■ ão

vra ‘lm é com frequência usada em outros lugares para indicar uma longa dura­ ção, mas ainda limitada (como se faz menção do ministério dos levitas como sendo perpétuo [ I Sm 1.22],14o qual foi apenas de 50 anos; e lemos que o servo que se sujeitava ao seu senhor até o jubileu tinha que servi-lo Vim “para sem­ pre”, Êx 21.6). É possível dizer também que as cerimônias são expressas como sendo perpétuas, não com respeito aos sinais em si mesmas, mas com respeito às coisas significadas e a verdade espiritual prefiguradas por elas, as quais permanecem sempre as mesmas. Daí lermos que a circuncisão é feita cm Cris­ to (Cl 2.11) e a verdadeira páscoa nos é dada nele (ICo 5.7). XVI. Os oráculos proféticos que parecem prometer uma restauração da economia legal sob o Messias com um regresso ao seu país natal e a reedificação de Jerusalém e do templo não lhe são contrários (Dt 30.1-5; Ez 37.24,25; 40; 41). Muitos destes podem se referir ao regresso do cativeiro babilónico. Daí não surpreende que esteja em pauta a restauração do templo, do altar c de outras coisas pertencentes a ele. Se forem inferidas do estado da igreja sob o Messias (como certamente deve ser até onde se estende a fim de que se obte­ nha seu pleno significado), as expressões não devem ser impostas literalmen­ te, porque são simbólicas, não próprias; típicas, não literais; devem ser expli­ cadas espiritualmente, e não carnalmente. Israel tem de ser restaurado, não segundo a carne e a letra, mas segundo a promessa e o espírito (Rm 9); a cidade santa, não Jerusalém, mas a igreja; o culto tem de ser renovado, não carnal, mas espiritual - mas tudo designado segundo o estado dos tempos e a compre­ ensão da nação por meio carnal, ao qual os judeus estavam especialmente ane­ xados. Isso justamente como os profetas chamam as orações, incenso; a con­ versão dos gentios, subir a Jerusalém; a adoração, oferecimento de incenso; o conhecimento de Deus, visões e sonhos. Portanto, sempre que os profetas fa­ lam do regresso do povo ao seu país natal e de sua restituição, isto pode ser entendido em parte literalmente (para o regresso do cativeiro); em parte místi­ ca e simbolicamente (concernente à constituição da igreja do NT, descrita em termos legais). Que não podem ser entendidos literalmente, é sobejamente evi­ dente com base nisto - que não se cumpriram até então, e não podem cumprirse, tendo sido o templo uma vez destruído, Jerusalém devastada e a nação dispersa. XVII. Se os apóstolos observaram as cerimônias depois da morte e ressur­ reição de Cristo, não agiram assim por necessidade, mas por caridade, com o intuito de acomodar-se à fraqueza dos judeus; em parte para que mostrassem que não eram opostos à lei de Moisés (como os de disposição maldosa impia­ mente caluniavam a Paulo); em parte para que ganhassem os judeus para Cris­ to (1 Co 9.20); em parte para dar às sinagogas uma sepultura decente. Isto é claramente evidente, até mesmo à luz do fato de que, embora em se tratando 14. Uma passagem pertinente é Números 8.25, c que o levita servia até completar 50 anos dc idade (variando a idade dc ingresso nesse m inistério: 20,25 c 30 anos). [N. do E.]

dos irmãos fracos quisessem usar as cerimônias por algum tempo, contudo, quando se tratava dos falsos apóstolos e adversários obstinados, as repudia­ vam constantemente. Paulo, que desejou que Timóteo fosse circuncidado (At 16.3), contudo (discutindo com os falsos irmãos que tramavam contra sua li­ berdade) não quis circuncidar Tito (G1 2.3,4), para não lhes dar oportunidade para sofismas. E foi justamente por isso que repreendeu a Pedro com severida­ de, porquanto se fizera judaizante (cf. Agostinho, Letter 82, “To Jerome”, [FC 12:399]). XVIII. O voto que Paulo fez de raspar sua cabeça (At 18.18) não constituiu um ato religioso (como se prometesse algo a Deus segundo a lei como parte do culto necessário), mas caridoso, a fim de acomodar-se aos fracos, mostrando que ele não desprezava a lei, mas, diz ele: “Fiz-me tudo para com todos”, ICo 9.22). “Não praticando enganosamente todas as más ações dos homens, mas aplicando diligentemente a medicina da misericórdia a todos os males de todos os demais, como se fossem propriamente seus”, no dizer de Agostinho (Letter 82, “To Jerome” [FC 12:414; PL 33.288]). XIX. Uma coisa é que se admitam na igreja alguns ritos externos; outra, contudo, é reter a lei cerimonial. Ritos externos são necessários à igreja em prol da boa ordem, porque todas as coisas devem ser feitas nela “com decência e ordem” (ICo 14.40). No entanto, diferem amplamente da lei cerimonial, porque essa significava Cristo, que havia de vir; estes, absolutamente não. Esta [a lei cerimonial] era uma parte necessária do culto divino; aqueles [os ritos da igreja cristã] são apenas suportes e adjuntos do culto. Em referência a eles, é preciso observar-se sempre estas cautelas: (1) que nenhum rito seja prescrito com uma idéia que favoreça sua necessidade e mérito; (2) que não tenham sobre a consciência obrigação igual à das leis divinas, como se alguém incorresse, de condenável culpa, em qualquer violação deles (embora isso pos­ sa ocorrer sem o desprezo de quem os prescreve e sem o escândalo de outros); (3) que esses ritos não sejam muito numerosos, ao ponto de obrigar os cristãos a um jugo servil e levá-los de volta, por assim dizer, à escravidão judaica. XX. A sentença apostólica concernente à abstinência de animais sufoca­ dos e de sangue (At 15.20) não foi de direito perpétuo, mas temporário. Isto se prova: (1) com base no fim e alvo que foi a causa da instituição (que era tem­ porária; fim e alvo que era a paz da igreja, por uma tolerância dos fracos entre os judeus que, acostumados às cerimônias, tinham que gradativamente apar­ tar-se delas); (2) com base na maneira como foi tomada a decisão, pela qual tanto agradaram aos gentios (absolvendo-os das cerimônias da lei) como qui­ seram satisfazer os judeus (prescrevendo aos gentios certas cerimônias para que, por amor à harmonia, eles as tolerassem um pouco, até que a liberdade cristã fosse mais bem conhecida, especialmente porque os judeus professavam oposição aos gentios, particularmente por causa disto); (3) porque toda distin­ ção de alimento fora totalmente revogada sob o Novo Testamento (como trans-

parece de Rm 14.14; ICo 8.8; 10.27; Cl 2.21; lTm 4.3). E tão mais fortemente o argumento fecha que o próprio Paulo, que esteve presente no concílio, e que conhecia e explicava melhor sua intenção, escreveu estas coisas após aquela reunião conciliar. Ora, como poderia o apóstolo tão clara e expressamente ter removido tal distinção sem qualquer exceção, se a sanção apostólica fosse considerada por ele como de direito perpétuo? Sim, visto que a segunda lei restringia a primeira, não devemos nutrir dúvida de que aquela lei era conside­ rada por ele como já revogada ou prestes a ser revogada. Sc esta sanção é renovada depois que Coríntios fora escrita (At 21.25), não se deve entender de nenhum outro modo senão com base na instituição e ordenação apostólicas, por certo tempo, não perpetuamente; (4) pelo juízo e autoridade da igreja que, sob um conhecimento mais pleno da liberdade cristã, gradualmente mudou e revogou aquela lei (concernente a este ponto, ver Agostinho, Replv to Faustus the Manichaean 32.13 [NPNF1, 4:336]). ' XXI. O seguinte não prova a perpetuidade daquela sentença: (1) que ela foi feita por autoridade apostólica - porque as coisas pertencentes à boa ordem (ieutcixian) foram também sancionadas por eles (1 Co 14.33). (2) Que ela é san­ cionada a título de necessidade, porque não é uma necessidade absoluta e sim­ ples, mas relativa e hipotética (com referência ao tempo e para que se evitasse escândalo). (3) Que é anexada à proibição de fornicação, que é totalmente de direito perpétuo - porque não se pode entender a fornicação em si, mas o ali­ mento proveniente do meretrício; ou o preço da luxúria, de modo que a palavra corrupção ou contaminação (alisgem atos ) deve scr repetida (apo koinou), de­ notando a contaminação da comida e da bebida (com base em Dn 1.8). E, se for uma referência à própria fornicação, não se segue que pertença à mesma classe, porque com frequência coisas dessemelhantes são colocadas juntas, e costumes ou princípios morais com cerimoniais (como em Ez 18.6; Lc 1.6; lTm 3.2). Aqui ele fala de “sacrifícios a ídolos”, abstinência dos quais não é da mesma necessidade que a fornicação, porquanto às vezes é lícito participar de coisas oferecidas aos ídolos, porém nunca é lícito cometer fornicação. Por­ tanto, questões de costumes podem ser colocadas junto com questões positi­ vas, especialmente quando consideradas como do mesmo tipo na avaliação humana (como a fornicação era considerada pelos pagãos como algo quase indiferente ou, pelo menos, como falha muito leve, especialmente entre os gregos; entre os quais cometer fornicação, como diz Comicus, não constituía uma desdita). (4) Que esta lei foi sancionada antes de Moisés (Gn 9.4) - por­ que muitas coisas cerimoniais prevaleciam antes de Moisés, como os sacrifíci­ os e a circuncisão. (5) Que a razão da lei é moral e perpétua, para que os homens, acostumados com o sangue humano, não viessem a ser em extremo cruéis - porque uma razão moral nem sempre impõe uma lei moral, como a observância do sétimo dia tem uma razão moral no descanso divino, contudo não é moral. Além disso, essa razão tinha nela algo de forense, acomodado à dureza e austeridade da nação judaica, e em relação com aquele tempo em que,

antes do dilúvio, os homens estavam totalmente entregues à violência e ao crime (Gn 6.5). XXII. (6) Finalmente, tampouco isso foi confirmado pelo Sínodo de Gangra (Cânone 2, NPNF2, 14:92), pelo Concílio de Trullo* (Cânone 67 [NPNF2, 14:395]) e pelo imperador Leão no século 59, e foi por muito tempo observado na igreja cristã. Daí relacionar Tertuliano, entre as provações dos cristãos, “o oferecimento que lhes faziam de chouriços com sangue” (Apology 9 [FC 10:33; PL 1.376]); como atualmente os armênios observam esta lei e alguns protes­ tantes acreditam que deva ser mantida. A autoridade humana não deve exceder à divina, da qual os antigos eram destituídos. A longa e contínua observância desta lei se origina da errônea explicação da passagem e da sua concordância com a ignorância e o falso zelo (kakozêlia) dos que não sabem (ou não querem saber) como distinguir entre coisas (kata ti) instituídas por causa de outra coi­ sa (e em determinado sentido) e as que devem ser observadas simplesmente em virtude de si mesmas. V ig é s im a S e x t a P e r g u n t a Se a leijudicial foi revogada sob o Novo Testamento, ta lem o s distinções.

^ ^ forense ou judicial dizia respeito ao governo civil do povo de Deus sob o Antigo Testamento e continha um corpo de preceitos acerca da forma daquela norma política. Havia vári­ os propósitos para ela. (1) A boa ordem (eutaxia ) e a constituição legítima da política judaica, a qual deveria ser uma genuína teocracia (theokratia ), como a chama Josefo. (2) A distinção daquele estado e nação de todos os demais po­ vos e estados, e para que aquela forma de administração política fosse a sede da igreja e o lugar para a manifestação de Deus. (3) A defesa da lei moral e da cerimonial contra o menosprezo, e assim fomentasse maior respeito e obriga­ ção com relação a ambas. (4) A prefiguração do reino espiritual de Cristo. Fins da lei individual.

^ tr®s °P 'n>ões sobre sua revogação: a primeira, quan-^1^ to a omissão (dos anabatistas e dos antinomianos, que cre, , , . , , M em c*ue absoluta e simplesmente revogada quanto a {0das as coisas). Em razão disso, todos os argumentos as­ sacados contra eles com base no Antigo Testamento em prol do direito do magistrado e da guerra; a divisão de heranças e coisas semelhantes, eles costu­ mam resolver com esta única resposta - que estas questões são judiciais e pertencem ao povo israelita e ao Antigo Testamento, porém estão agora cance­ ladas sob o Novo. A segunda, quanto ao excesso, dos que pensam que a lei está ainda em vigência e deve ser mantida, e que os estados cristãos devem ser gover­ nados como o judaico (esta era a opinião de Carlstadt e de Castellio, com quem concorda o luterano Brochmann). Estes e aqueles se distanciam da verdade. Aque­ les, porque assim seriam revogadas muitas coisas morais que estão contidas na lei forense. Estes, porque assim teriam que scr observadas muitas coisas típicas Trfiv nnininpc 1 9 C3 l / l / l f I H / v ij . . concernentes a sua revo a 'ão sua revogaçao.

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que são muito estranhas à razão de nossos tempos. A terceira, dos ortodoxos que, mantendo um terreno médio, aliviam a matéria mediante uma distinção, tanto sobre o que foi revogado quanto ao que ainda se acha em vigência. III. Naquela lei, deve-se distinguir vários fins. Pois, visto que ela era uma forma de distinção do estado judaico em relação ao dos gentios e um tipo do reino de Cristo, foi simplesmente revogada por não haver mais qualquer dis­ tinção entre os judeus e os gentios em Cristo (GI 3.28; E f 2.14). Como o estado e a política judaicos foram destruídos, assim não há necessidade de um tipo para prefigurar o reino futuro de Cristo, visto que ele já veio. Mas, quanto à boa ordem (eutaxian) ou à forma de governo do povo israelita, não se pode dizer que foi revogada, a não ser relativamente. Sem dúvida deve-se distinguir acuradamente as coisas que na lei eram de direito particular (que peculiarmen­ te se aplicavam aos judeus em relação ao tempo, lugar e nação judaicos: dessa natureza eram as leis concernentes ao irmão de um esposo, à carta de divórcio, à respiga etc.) das que eram de direito comum e universal, fundado na lei da natureza comum a todos (tais como as leis concernentes aos julgamentos e punições de crimes, às viúvas, aos órfãos, aos estrangeiros e a situações seme­ lhantes, que são do direito moral e comum). Quanto àquelas, pode-se dizer com razão que foram revogadas, porque, uma vez removida a política judaica, tudo quanto tinha relação com ela também deveria, necessariamente, cessar. Mas, quanto a estas, ainda permanecem, porque entram na natureza da lei moral e perpétua e foram ordenadas aos judeus, não como simplesmente judeus, mas como homens sujeitos, juntamente com outros, à lei da natureza. Para distinguir aquelas coisas que são de direito comum e particular, pode-se empregar um trí­ plice critério. ( I ) Que o que prevalece não só entre os judeus, mas também entre os gentios (seguindo a luz da reta razão) é de direito comum. Assim os gregos, os romanos, entre outros, tinham suas próprias leis nas quais muitas coisas se har­ monizam com as leis divinas (o que ensina mesmo uma simples comparação da lei mosaica e romana, instituída por várias pessoas). (2) O que se vê que se conforma aos preceitos do decálogo e que serve para explicá-lo e conformá-lo. Isto se deduz facilmente caso se atente, ou para o objeto e para a matéria das leis, ou para as causas de sua sanção. (3) As coisas que de tal modo são reiteradas no Novo Testamento, que se recomenda aos cristãos sua observância. ^ as *e's fundamentadas no direito comum ou na lei da natureza, deve-se distinguir entre a substância do preceito e suas circunstâncias. Algumas, sejam quanto à substância ou quanto às circunstâncias, são de direito comum; outras, contudo, são, quanto à subs­ tância, de direito comum, mas, quanto às circunstâncias, de direito particular. As primeiras são perpétuas em todas as suas partes; as segundas, em contra­ partida, só relativamente. Assim, nas leis concernentes à punição dos crimes, a substância da punição é de direito natural, mas o modo e o grau da punição são de direito particular, e por isso mesmo mutáveis. Fontes de explanação.

V. Todas as leis forenses que são mescladas com tipos são em sua própria natureza mutáveis, e por isso foram revogadas do direito, porque suas causas e fundamentos são temporários, não perpétuos. Tais são as leis concernentes ao direito de primogenitura (Dt 21.17), asilo (Dt 19.2), o Jubileu, não usar dife­ rentes tipos de sementes nas lavouras, não usar roupas de lã e linho, e coisas semelhantes. Embora pudessem ter também um fim político, contudo (porque eram típicas), deixam de ser obrigatórias. VI. As leis forenses, acomodadas ao gênio e à razão da política judaica, tomaram-se não só inúteis para os cristãos que vivem sob uma política diferen­ te, mas nem podem nem devem mais ser observadas (tais como a lei do levirato, a lei do ciúme, a lei da venda de filhos [Ex 21], a lei concernente ao repouso dos campos, da divisão da terra de Canaã entre as tribos, e coisas semelhan­ tes). Estas tinham uma relação (schesin) peculiar com o povo israelita e seu governo. Uma vez sendo isto removido, tomam-se inúteis. VII. Uma vez sendo a política abolida, as leis sobre a qual aquela política estava alicerçada devem, necessariamente, ser abolidas. São de direito positi­ vo e se destinavam simplesmente ao estado judaico; mas não imediatamente as outras, fundamentadas no direito natural e como apêndice do decálogo. Por­ tanto, a lei forense, quanto às determinações gerais, fundamentadas na lei moral, não é revogada; mas, quanto à determinação especial, que diz respeito ao Esta­ do judaico, é revogada. VIII. A lei forense pode ser considerada ou formalmente, como foi promul­ gada para os judeus (e por isso é revogada); ou materialmente, visto que con­ corda com a lei natural e se fundamenta nela (e assim ainda permanece). IX. Embora as melhores e mais sábias leis (no que diz respeito ao Estado daquele povo) tenham sido sancionadas por Deus, não se segue que por isso devem ser perpétuas. Deus, com base no direito positivo e livre, podia dar por algum tempo e para certas ocasiões, a alguma nação, leis não vigentes para outras. O que é bom para uma pode não ser imediatamente bom para outra. X. O que é melhor do que outras coisas em todos os aspectos (seja no abstrato, seja no concreto, e tanto negativa quanto afirmativamente), deve ter preferência sobre as outras. Mas a lei forense é melhor que as demais leis, não afirmativamente, mas negativamente, porque ela foi determinada para certas circunstâncias, as quais ora não mais existem. Ela é, então, melhor do que as leis humanas (simplesmente como humanas), porém não porque se fundamen­ tam na lei natural, cuja fonte é Deus. Portanto, quando as leis romanas são preferidas à lei mosaica, não são preferidas simplesmente como promulgadas pelos homens, mas como derivadas do direito natural e comum, podendo, por isso, ser mais adaptáveis a lugares, tempos e pessoas.

O Pacto no

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A origem e o significado das palavras bryth, li um usadas aqui.

diathêkès, foedus, epangelias e evange-

^ ^ natureza e utilidade da lei (que vem antes do pacto da graça), uma vez desvendadas, devemos agora tratar do pacto propriamente dito. Visto ser da maior importância na teologia " (sendo, por assim dizer, o cerne e o vínculo de toda religião, consistindo na comunhão de Deus com o homem e abarcando, em sua abran­ gência, todos os benefícios de Deus para com o homem e seus deveres para com Deus), nosso supremo interesse jaz em conhecê-lo e observá-lo correta­ mente. Daí, a discussão dele demanda peculiar exatidão (akribeian), para que a verdade seja confirmada contra os erros pelos quais Satanás tem se esforça­ do, em quase todas as épocas, para obscurecer e corromper esta doutrina salvífíca. p . . . II. Para que a natureza do pacto seja mais facilmente compreen, , ' dida, é preciso estabelecer umas poucas coisas acerca da ori­ gem e significado das palavras usadas na Escritura para desig' ná-lo e comumente empregadas pelos teólogos. Ao examinar detidamente estas, é possível lançar não pouca luz sobre as várias dificuldades que ocorrem aqui. Pelos hebreus, pacto é expresso pela palavra bèrit (de etimo­ logia incerta). Alguns a derivam da raiz brh, quer no sentido de “comer” (por­ que na preparação das festas pactuais costumava-se preparar comida), ou de­ notando mais “escolher” (porque se escolhiam as pessoas, coisas e condi­ ções sob as quais o pacto era feito). Daí os judeus serem chamados “filhos do pacto” (At 3.25), “povo de Deus”, “raça eleita” (genos eklekton, 1Pe 2.9), pois aqui há uma eleição mútua, da parte de Deus escolhendo pessoas para compo­ rem um povo, e da parte das pessoas escolhendo Deus para ser o seu Deus (como isto é expresso em Js 24.22,25). Outros a derivam de 6 /r(“ele purificou” e “declarou”), porque por meio de um pacto se confirma e se declara a fé e a amizade sincera das partes contratantes. Outros, com mais propriedade, a dedu­ zem da raiz b r que no Piei significa “ele corta em pedaços”; ou da raiz bthr do mesmo significado por meio de uma metátesc das letras th c r . A Escritura usa esta palavra quando ela menciona pactos confirmados (Gn 15.10; Jr 34.18), N ecessidade de tratar do Dacto

porque, quando se fazia um pacto, cortava-se um animal em duas partes e passavam por entre as partes das vítimas mortas, significando que quem vio­ lasse o pacto seria igualmente cortado em pedaços (como se evidencia à luz de Gn 15.10,17). Entre os árabes, 'qsm é que significa dividirem partes e “cortar em pedaços”. Significa também “jurar”, porque os pactos eram ratificados por vítimas cortadas em pedaços (como Cirilo de Alexandria, Contra Julianum 10 [PG 76.1054] atribui este costume aos caldeus). Daí “ferir” e “cortar um pacto” os hebreus chamam krth bèrit. Isto se ajusta muito bem ao pacto evangélico. Está fundamentado no fato de Cristo ser morto (como lemos em G1 3.17, “o pacto foi confirmado em Cristo” [diathêkê kekyrõmene eis C hristori])- o pacto começou em Cristo ferido e morto; sim, naquele Cordeiro imaculado dividido em quem Deus estava reconciliando o mundo consigo (2Co 5.19); e por inter­ médio de quem, passando (por assim dizer), ele confirmou e ratificou aquele pacto. Entre os gregos, a palavra “pacto” é comumente expressa Por diathêkê. Esta palavra pode de fato indicar todo e qualquer pacto c acordo. E com frequência tomada neste sentido (Lc 1.72; At 3.25; 7.8; Rm 9.4; G1 3.15; 4.24; Ef 2.12; Hb 8.6,8,9). Mas particular­ mente denota uma disposição testamentária com um acordo federal. Contém esta significação em Mateus 26.28, em 1 Coríntios 11.25 e especialmente em Hebreus 9.15,16, onde Paulo diz: “Ele é o mediador do novo testamento, a fim dc que, intervindo a morte para a remissão das transgressões que havia sob o primeiro testamento, aqueles que têm sido chamados recebam a promessa da herança eterna”. Entretanto, isto não foi feito sem autoridade, quando a Septu­ aginta (que o apóstolo segue aqui) traduz a palavra bèrit por diathêkê em prefe­ rência a svnthêkên (que denota um simples acordo). O pacto da graça partilha tanto de um testamento como de um pacto. Daí não ser chamado impropriamen­ te “pacto por um testamento”, “pacto testamentário” e “testamento federal”. E um pacto porque, segundo o costume quanto aos pactos, havia um acordo entre as partes e se estabeleciam condições de ambos os lados, tanto da parte de Deus como da parte do homem, e havia um mediador para conciliar as partes discor­ dantes. Mas é também um “testamento” (1) porque é um pacto em que se pro­ mete uma herança (que necessariamente demanda a morte antecedente do testador, visto que somente então se inclui um herdeiro que toma posse dos bens pela intervenção da vontade de quem dispõe). Visto, pois, que o pacto (diathêkê) é uma promessa (epangelia ) deste tipo (em virtude da qual se reconhece a heran­ ça), então necessariamente ela é testamentária. E por isso que o apóstolo adici­ ona: “Porque, onde há diathêkê [a saber, por meio do qual se promete uma herança, i.e., um testamento], é necessário que intervenha a morte do testador”. (2) Porque este pacto foi feito unicamente para o nosso beneficio, visto que num testamento não se leva em conta o benefício do testador, mas dos herdeiros; tampouco Deus é reconciliado com base em benefícios mútuos, mas em seu próprio. (3) Porque, sejam apresentadas condições para ambos os lados, sua

Sienifícacão de diathêkê

execução é confiada à virtude e à fidelidade só de uma parte (i.e., de Deus). Daí fundamentar-se na mera graça de Deus e em nenhuma disposição e mérito do homem (como se provará sobejamente no lugar próprio). IV Daí se deduz facilmente 0 que se deve determinar sobre a mas também dos homens o nosso D eus em §era*’ s'm’ inclusive de todas as criaturas com respeito à criação e governo, e nada de singular e extraordinário seria prometido ao seu povo além do prometido às outras nações. Antes, deve ser tomado estritamente porque implica uma relação federal e aquela comunhão graciosa pela qual Deus se comunica ao pecador para outorgar-lhe vida e felici­ dade imortais (como se costuma explicar aquela fórmula toda parte). E assim, se ele é o Deus de toda a providência, então é o Deus dos crentes pela graça; se é o Deus das criaturas do mundo, por autoridade e poder, então é o Deus de seu povo na igreja por benevolência e amor e pelas bênçãos que lhe outorga. Todos os benefícios XIX. Ora, ainda que estes sejam inumeráveis, contusalvíficos estão do podem ser reportados a estes quatro principais. (1) incluídos aqui, m as Reconciliação e comunhão com Deus pelas quais ele principalm ente esta nao s° crn Paz conosco, mas também se dá a nós quatro. Para 9 ue Possa ser nosso tanto essencialm ente A s coisas a cordadas ■da arte de D eus

(io u siõ d õ s , quanto à sua natureza e atributos) como hipostaticam ente (hypostatikõs , quanto às pessoas e às operações pessoais). (2) Comunhão de bens, para que todas as coisas boas de Deus e tudo quanto lhe pertence sejam nossos. (3) Conformidade com Deus por meio da participação da natureza divina e transformação à sua imagem. (4) A constância e a eternidade do amor de Deus e de nossa união com ele. Visto que estes elementos são de grande importância neste argumento, serão explicados um pouco mais plenamente. XX. Digo que devemos primeiramente enfatizar a reconciliação e a comunhão com Deus, porque ele não pode ser chamado nosso senão depois de ser apaziguado; e de um -Íu‘z 'rado procede um Pai misericordioso que não só se digna outorgar-nos liberalmente seus bens, mas se dá a n° s Para surge a pergunta —Quais são as condições deste pacto e sob qual relação (schesei )? Somente a fé é chamada a condição do pacto da graça ou, com ela, o arrependi­ mento e a obediência de uma nova vida? E quanto à fé, de fato a questao nao ®se eIa é uma condição deste pacto (a Escritura ’ afirma isto de forma clara, Jo 3.16; Rm 1.16,17; 10.9), mas (a) que relação ela tem aqui? (b) Somente ela desempenha este ofício?

^1. Quanto ao primeiro elemento, quando dizemos que a fé ®uma condição do pacto, não estamos falando absolutamen­ te e segundo sua natureza e essência. Ela está contida sob a obediência como sendo ordenada pela lei (assim como as outras virtudes), e assim não pode ser contra-distinguida dela. Daí ela não poder ser aceita como equivalente à justiça ou à obediência da lei, porque tal juízo não estaria em concordância com a verdade (visto que a fé é apenas a parte menor daquela justiça). Antes, deve ser considerada relativa e instrumentalmente, visto que abraça Cristo e se apropria dele para justiça e por meio dele obtém o direito à vida eterna. Primeiro, distingue-se das obras da lei (o que não poderia ser rea­ lizado se fosse tomada absolutamente, porque assim ela seria uma obra da lei). Segundo, a fé (tomada instrumentalmente) pode condizer somente (a) com a graça de Deus (para a qual nada se requer senão aceitação, que é a ação própria da fé, Rm 5.17; Jo 1.12); daí Paulo dizer: “provém da fé, para que seja pela graça”; pois todas as demais virtudes parecem dar algo a Deus, mas somente esta é meramente receptiva - “porque pela graça sois salvos mediante a fé” (Ef 2.8); a vanglória é excluída pela lei da fé (Rm 3.27). (b) A fé pode condizer somente com a condição do pecador, porque no primeiro momento da justifi­ cação não há nada nele exceto a fé que pode agradar a Deus. (c) A fé pode condizer somente com a satisfação e a justiça do Mediador, porque ele se aproComo a f é é uma condição.

pria dela para si. (d) A fé pode condizer somente com a vida eterna como o dom e herança de Deus, porque a fé compreende esta no evangelho (Rm 3.24,25; ICo 1.30; Ef 1.3,4; 2.8). (e) A fé pode condizer somente com as promessas do evangelho, o qual põe a vida diante do homem, não para que seja adquirida (como a lei), mas como já comprada. Terceiro, Cristo é nossa justiça (ICo I.30; 2Co 5.21), em quem temos redenção e vida. Portanto, ela não pode ser atribuída à fé materialmente (porquanto ela é uma obra), mas instrumcntalmente (porquanto ela é a mão que apreende). XII. Ora, neste pacto a fé se opõe à justiça ou à obediência, não porque elas não possam subsistir irmanadas (visto que só é verdadeira fé aquela que é eficaz mediante o amor ou da obediência), mas porque não podem ficar juntas causalmente (visto que a causalidade de cada uma é distinguida em sua espécie total — uma meritória e principal e a outra apenas orgânica e instrumental). A justiça dá; a fé recebe. A justiça consiste do amor mútuo de Deus; a fé, numa persuasão do amor de Deus. Daí, o que é removido de uma é atribuído à outra, não em razão da mesma causalidade, mas em razão do efeito, porque a fé, no pacto da graça, está para nós no lugar das obras, isto é, obtém para nós (embora num gênero diferente de causa) o que as obras deveriam ter feito no pacto da natureza. XIII. Para que saibamos mais como a fé tem a relação de uma condição neste pacto, devemos saber que a fé não sustenta esta relação exceto em referên­ cia a Cristo (visto ser ela o meio e instrumento de nossa união com o Cristo que o reconcilia conosco: “Eu subo para meu Pai e vosso Pai; para meu Deus e vosso Deus”, Jo 20.17). E assim não podemos ser recebidos no pacto divino a não ser que estejamos unidos a Cristo, que é o fundamento do pacto e o elo de nossa união com Deus. Não obstante, visto ser de grande importância sabermos se nossa fé é realmente a fé que une, isto pode ser percebido não tanto a p rio ri quanto a posteriori (a partir de suas operações). Se ela incita em nós um amor fervoroso por Cristo (Ct 5.10,16; Fp 3.8; Jo 1.14; 21.15); um desejo ardente de desfrutá-lo (SI 42.1; 84.1,2; Fp 1.23); uma separação de todas as coisas terre­ nas e carnais que obstruem nossa união com Cristo, tal como “o amor pelo pecado e pelo mundo” (Os 4.8; Rm 6.2; Mt 10.37; 1Jo 2.15,16; Tg 4.4). Daí o negociante da parábola vender todas as coisas por essa preciosíssima união (Mt 13.46); Moisés prefere o opróbrio de Cristo aos tesouros e honras do Egito (Hb II.25,26); os discípulos deixam todas as coisas a fim de seguir a Cristo (Mt 19.27). Essa fé produz na pessoa a presunção de [in]justiça, porque “os sãos não precisam de médico, e sim os doentes; e Cristo não veio chamar os justos, e sim os pecadores ao arrependimento” (Mt. 9.12,13); incredulidade, impenitência, e outros pecados desse gênero, e obras da carne, são incompatíveis (asystata) com Cristo (Rm 8.1,10). Especialmente se ela produz dois atos que seguem juntos com essa união imediata e necessariamente. Daí, da parte de Cristo, um senso de seu amor mediante a consolação do Espírito Santo que, selando a

adoção em nossos corações, nos persuade de que somos filhos de Deus, her­ deiros de Deus e co-herdeiros com Cristo; que Cristo habita em nós e se tomou nosso (Rm 8.15,16; lJo 3.24). De nossa parte, o consenso mútuo de nosso amor mediante a aspiração por santificação pela qual, como Cristo nos ama, por nossa vez o amamos; como ele se dá por nós, também nos doamos a ele inteiramente, de modo que já não vivemos para nós mesmos, mas na fé do Filho de Deus que nos amou e se deu por nós (G1 2.20; 2Co 5.15). A esposa pateticamente descreve isto: “Meu amado é meu, e eu sou dele” (Ct 2.16). XIV. Para que esse consenso seja verdadeiro, ele não deve ser um consen­ so quanto ao futuro (como se dá com aqueles que protelam sua conversão dia após dia), mas quanto ao presente, de modo que, se hoje ouvirmos a voz de Cristo, não endureçamos nosso coração, mas recebamos a graça oferecida; não distinguindo entre Cristo como Redentor e Senhor, como fiador e cabeça, en­ tre as bênçãos e deveres (como sucede com aqueles que espontaneamente abra­ çam o mérito de Cristo, porém não se dispõem a viver em submissão ao seu domínio; dispõem-se a desfrutar as bênçãos, porém não se submetem aos de­ veres), mas, associando a totalidade de Cristo com seus deveres e benefícios, e o recebendo não só como fiador, mas também como cabeça; não só para justi­ ça, mas também para santificação; não só um Salvador para redimir, mas tam­ bém para governar (e a quem somos obrigados a obedecer em todas as coisas); não com ressalva e condicionalmente (como aqueles que consentem com Cris­ to e seu evangelho; porém, quando entram em cena a cruz e a perseguição, dão um passo atrás e se escandalizam), mas total e sem reserva, de modo que, sem qualquer limitação, sigamos a Cristo em toda e qualquer condição (não só triun­ fante e glorioso no céu, mas também sofredor e cravado na cruz na terra) por onde quer que ele nos guie, preparados tanto para viver quanto para morrer com ele. Assim nossa comunhão com Cristo será verdadeira e salvífíca e com todas as bênçãos de Cristo: comunhão no mesmo Espírito (Rm 8.9; ICo 6*. 17); “na mesma vida” (G1 2.20); “na mesma justiça” (2Co 5.21; Jr 23.6); “na mesma glória e herança” (Jo 17.21,24; Rm 6.8; 8.17). E como recebemos as coisas boas de Cristo em comunhão com ele, assim, em troca, Cristo espera de nós amor (Jo 21.17; IPe 1.8) e submissão (Ef 5.24; Mt 11.29; SI 2.11; 110.3) sincera, plena e constante. XV. Assim conseguimos demonstrar como a fé é uma condição neste pacto. Agora precisamos ver se ela realiza este ofício sozinha ou se conta com a parti­ cipação de outras virtudes, particularmente do arrependimento. Os ortodoxos disputam entre si acerca disto - alguns o negam e outros o afirmam. Cremos que a matéria pode ser prontamente estabelecida mediante uma distinção, se tivermos em mente os diferentes sentidos de uma condição. Ela pode ser tomada ou ampla e impropriamente (quanto a tudo o que o homem é obrigado a oferecer no pacto da graça) ou estrita e propriamente (quanto àquilo que tem alguma causalidade em referência à vida e da qual depende não só antecedentemente,

mas também causalmente, a vida eterna a seu próprio modo). Entendida no segundo sentido, a fé é a única condição do pacto, porque somente sob esta condição sc prometem o perdão dos pecados e a salvação, bem como a vida eterna (Jo 3.16,36; Rm 10.9). Não há outro elemento que possa realizar esse ofício, porque não há outro que seja recipiente de Cristo e capaz de apropriarse de sua justiça. No primeiro sentido, porém, nada há que impeça que o arrependimento e a obediência da nova vida sejam chamados condições, por­ que estão computados entre os deveres do pacto (Jo 13.17; 2Co 5.17; Rm 8.13). XVI. Segundo, a condição é ou antecedente à aceitação do pacto (o qual mantém a relação da causa por que somos recebidos nele) ou subsequente (mantendo a relação de meio e a via pela qual avançamos para sua consuma­ ção). No primeiro sentido, a fé é a única condição do pacto, porque somente ela abraça a Cristo com seus benefícios. No segundo sentido, porém, a santida­ de e a obediência podem ter a relação de condição, porque são o meio e a via pela qual chegamos à plena posse das bênçãos do pacto. Se não têm causalida­ de seja com respeito à justificação (ou vida eterna fluindo dela), contudo em outros aspectos pertencem a este pacto como acompanhantes inseparáveis da fé genuína e sincera, porque “a fé deve operar mediante o amor” (G1 5.6), como as qualidades dos que são salvos (Mt 5.8; 25.35,36; Hb 12.14), como frutos do Espírito em Cristo (Rm 8.2,9,10) e as marcas de nossa conformidade com Cristo (Rm 6.4,5; Cl 3.1; Ef 2.4,5), como provas de nossa gratidão para com Deus (Tt 2.14), como testemunhos de nossa filiação (Uo 3.3; Rm 8.15) e como deveres que as criaturas racionais devem a Deus (Lc 17.10). XVII. Não há a mesma relação da justificação e do pacto por meio de todas as coisas. Quanto àquela, a fé concorre sozinha, mas quanto à observância deste, requerem-se também outras virtudes além da fé. Estas conduzem não só à aceitação do pacto, mas também à sua observância. Pois estas duas coisas devem sempre estar relacionadas - a aceitação do pacto e a conservação do mesmo uma vez aceito. A fé o aceita mediante a recepção das promessas; a obediência o guarda mediante o cumprimento dos mandamentos. “Sede san­ tos, porque eu sou santo.” E no entanto desta maneira a obediência legal e a evangélica não se confundem, porque a legal é prescrita para o merecimento da fé; a evangélica, contudo, somente para a posse dela. A primeira precede como causa da vida (“faze isto e viverás”); a segunda segue como seu fruto, não para que você viva, mas porque você vive. A primeira não é admitida a menos que seja perfeita e absoluta; a segunda é admitida ainda que imperfeita, contanto que seja sincera. Aquela é apenas ordenada como dever do homem; esta é também prometida e dada como dom de Deus.

Q

uarta

P erg u nta

Como os pactos das obras e da graça concordam t diferem entre si?

*• Pactos das obras e da graça concordam em vários particu*ares: (1) em seu autor, que em cada caso é Deus, a quem so­ mente pertence o direito de fazer algum pacto com a criatura; ^ nas Partes contratantes, Deus e o homem; (3) no fim geral, a glória de Deus; (4) na forma extrínseca, porque se anexa uma reestipulação a cada uma; (5) na promessa, que é a vida e a felicidade, celesti­ ais e eternas.

Os p a cto s das obras e da graça concordam

E d if r • (1) no autor

Diferem, porém, em diversos particulares. (1) Quanto ao autor’ P°is embora Deus seja o autor de ambos os pactos, con­ " tudo ele deve ser visualizado em diferentes relações (schesei): no primeiro como Criador e Senhor, no segundo como Redentor e Pai; no primeiro, ele foi impelido pelo amor e benevolência para com a criatura ino­ cente; no segundo, por especial misericórdia e graça para com uma criatura miserável. 2. N as p a rtes ^1- (2) Quanto às partes contratantes entre as quais o pacto foi contratantes. fei*0- Porque na primeira eram apenas duas (Deus e o homem),

nem havia qualquer necessidade de um mediador, porque foi feito quando ainda não havia divergência entre eles. No outro (travado depois da queda) se requeria necessariamente um mediador para fazer a paz e recon­ ciliar os homens com Deus e Deus com os homens. E por isso que ele é chama­ do “pacto de amizade”, e este é o “pacto de reconciliação” (que pressupõe um desacordo precedente que tem de ser resolvido). ^ ^ Quanto ao fundamento, o primeiro repousava na própria obediência do homem e na força da natureza ou no livre-arbítrio, visto que o homem foi posto nas mãos de seu próprio conse­ lho. O segundo, porém, é edificado sobre Cristo e sua obediência. Daí ser chamado “pacto do povo” (Is 49.8). Tampouco o homem se encontra nas mãos de seu próprio conselho (uma vez posto aí, imediatamente caiu), mas nas mãos de Deus, por cujo poder ele é mui eficazmente guardado para sempre (1 Pe 1.5).

3 No fu n dam en to

^ Quanto à promessa, não nisto - que o primeiro pro­ ' ’ meteu apenas felicidade perpétua (mas a ser desfrutada no paraíso), como afirmam alguns, não considerando suficientemente a natureza daquele pacto, pois no primeiro pacto se prometeram felicidade e vida celesti­ ais não menos que no segundo (como já se provou no Volume I, Tópico VIII, Pergunta 6). Antes, a diferença consistiu nisto —que no primeiro se prometeu somente a vida, isto é, um estado aperfeiçoado por um acúmulo de todas as bênçãos; neste, porém, se prometeu salvação, a qual (juntamente com a vida) traz livramento do pecado e da morte. O primeiro prometeu vida como uma recompensa devida (Rm 4.4); o outro, como dom de Deus (Rm 6.23). 4 Na prom essa

„ VI. (5) Quanto à condição prescrita - no primeiro, obras . a con içao. (“faze jst0 e viverás”); no segundo, fé (“crê e serás salvo”). O primeiro consistiu em doar ao homem uma retidão perfeita; o segundo, em receber ele a justiça infinita de Deus. Um foi levado a efeito no tribunal da justiça, no qual foi pronunciada ou uma sentença de absolvição sobre o justo ou uma sentença de condenação sobre o pecador (porque não havia esperança de perdão); o outro, no tribunal da misericórdia, onde se pronunciou uma sen­ tença de absolvição sobre o pecador (porém crente e penitente). VII. Tampouco se pode objetar aqui dizendo que se requeria também fé no primeiro pacto, e as obras não estão excluídas no segundo (como já se afirmou previamente). Eles estão numa relação muito diferente. Pois no primeiro pacto requereu-se fé como obra e como parte da retidão inerente à qual se prometeu vida. No segundo, porém, demanda-se fé não como obra em virtude da qual se outorga vida, mas como um mero instrumento que apreende a justiça de Cristo (em virtude unicamente da qual se nos concede salvação). Em um, a fé era uma virtude teológica oriunda da força da natureza, terminando em Deus, o Cria­ dor; no outro, a fé é uma condição evangélica segundo a maneira da graça sobrenatural, terminando em Deus, o Redentor. Quanto às obras, foram reque­ ridas no primeiro como uma condição antecedente à guisa de causa para a aquisição da vida; no segundo, porém, elas são apenas a condição subsequente como fruto e efeito da vida já adquirida. No primeiro, elas devem preceder o ato de justificação; no segundo, o seguem. 6 No fim VIII. (6) Quanto ao fim -p o is o fim do primeiro era a declaração ’ * de justiça; do segundo, porém, a manifestação da misericórdia e do incomparável amor de Deus. Naquele, a estrita severidade (to akribodikaion) do legislador e Juiz exerceu sua parte, pela qual não havia lugar para arre­ pendimento ou para perdão. Neste, porém, entra em cena a paciência (epieikeia) do Pai - ele abriu caminho para a graça e a salvação do pecador. 7. N a m anifestação.

IX. (7) Quanto à manifestação - pois como o primeiro foi feito no estado da natureza, assim ele foi conhecido mediante a natureza e impresso nas consciências dos homens (nas quais a obra da lei foi escrita, Rm 2.14,15). O segundo, porém, um mistério, é inteiramente oculto, o qual a razão não pode descobrir, a menos que se nos faça conhecido mediante uma revelação sobrenatural (porque depende do beneplácito [eudokia] de Deus e do seu soberano propósito). Portanto, ele não podia tornar-se conhe­ cido a ninguém senão mediante revelação da parte do próprio Deus. Daí Cristo dizer que carne e sangue não podiam revelá-lo, mas somente o Pai que está no céu (Mt 16.17). Lemos que os mistérios do evangelho são de tal natureza, “que olhos jamais viram” ( iCo 2.9). 8 . Na ordem. X. (8) Quanto à ordem, o pacto das obras precede e o pacto da graça sucede. Deste para aquele é concedido recurso do trono da justiça para o trono da misericórdia. Daí, quem viola o pacto da graça não

tem mais remédio ou esperança de perdão, porque não há outro pacto pelo qual possa ser reconciliado com Deus. É por isso que o pecado contra o Espírito Santo é imperdoável, porque ele é cometido contra o pacto da graça. ^ Quanto à extensão, o primeiro era universal, feito com todos os homens em Adão. Daí não haver mortal que não esteja por natureza sob o pacto das obras (como cada indivíduo porta a obra da lei, que é o contrato daquele pacto, escrito em sua consciência, Rm 2.14). O segundo, porém, é particular, feito somente com os eleitos e com aqueles que são ou serão salvos em Cristo (como se provará mais adiante). 9 Na extensão

XII. ( 10) Quanto aos efeitos, o primeiro deu ocasião a que o homem se gloriasse por sua observação; o segundo, porém, exclui toda ostentação humana, porque ele se fundamenta unicamente na graça de D e u s -“toda vangloria é excluída, não pela lei das obras, mas pela lei da fé” (Rm 3.27). O primeiro, depois da queda, se tomou terrível, golpeando com terror as consciências; o segundo, porém, é gracioso e salvífico. O primeiro gera para escravidão, o outro gera para a liberdade. No primeiro, Deus, do Monte Ebal, fulmina os ouvidos dos pecadores com maldições; no segundo, porém, por assim dizer, do Monte Gerizim promulgam-se bênçãos. O primeiro afasta os homens de Deus, porque, por meio dele, ninguém pode ter-lhe aces­ so; o segundo, porém, conclama os homens de volta a Deus e abre uma via rumo ao trono da misericórdia, de cuja aproximação podemos, com confiança, achar socorro em todo tempo de necessidade. 10. N os efeitos.

Q

u in t a

P e r g u n t a : A U n id a d e

do

P acto

da

G raça

O pacto da graça foi um e o mesmo, quanto à substância, sob cada dispensação? A firm am os isso contra os socinianos, anabatistas e remonstrantes.

I. Esta controvérsia muito importante é levada adiante por nós com os pelagianos antigos e modernos (a saber, os socinianos, os remonstrantes, os ana­ batistas e outros que negam a identidade do pacto gratuito). Afirmam que os pais do Antigo Testamento não foram salvos pela misericórdia gratuita de Deus em Cristo, o Mediador (Deus-homem, theanthrõpõ) pela fé nele ainda por vir. soc>n>anos expressam sua opinião no Catecismo Racoviano, onde asseveram que na lei de Cristo estão contidas duas promessas (que não estavam contidas na lei de Moisés) - a vida eterna e o Espírito Santo: “Em parte alguma você descobrirá na lei de Moisés, nem a vida eterna nem o dom do Espírito prometidos aos que obede­ cem aos preceitos da lei, como é evidente que são prometidos na lei dada por Cristo” (Racovian Catechism 5 [1652], p. 113). Socino afirma isso claramen­ te: “Dizemos, pois, que o novo pacto nos trouxe francamente a promessa da vida eterna; além da promessa da remissão dos pecados. Finalmente, a pro­ messa do Espírito Santo a ser obtido por todos os crentes. Visto que o antigo Opinião dos socinianos

pacto carecia e carece de todos estes e propunha a felicidade terrena, é fácil reconhecer a superioridade do novo pacto neste aspecto” (de Officio Christi+). Volkelius luta para provar a mesma coisa por meio de vários argumentos (De vera Religione 3.11 [1630], pp. 56-72) e também Smaltzius (D e D ivinitate Jesit Christi 2 e 7 [1608], pp. 3-7 e 25-29). Contudo, não negam que os pais do Antigo Testamento foram salvos ou seriam salvos para felicidade ctcma. “Para não sermos culpados de dissimulação”, diz Smaltzius, “sustentamos firme­ mente que, embora no antigo pacto não ocorra nenhuma promessa franca de vida eterna, esta seria dada num ou noutro tempo a todos eles, os quais sempre confiaram em Deus e lhe obedeceram” (ibid., 7, p. 27). Volkelius concorda com ele (ibid.). Tampouco negam que Deus perdoou os pecados deles, embora não prometesse nem sinalizasse sua intenção de fazê-lo (Socino, D e lesu Christo Servatore , Pt. III. 2 [ 1594], pp. 228-250; “Tractatus de Justificatione”, 3* O pe­ ra Omnia [1656], 1:604-609), e que os pais tiveram algum conhecimento e esperança de vida eterna, embora não prometida a eles (Smaltzius, D e D ivini­ tate Jesu Christi 1 [1608], pp. 25-29); como também que Cristo, a graça e a salvação em Cristo, foram pregados sob o Antigo Testamento. Socino, em seu Praelet.+\ “Ora, é certo que Cristo não era e é apenas realmente nosso salva­ dor, mas foi também proclamado pelos profetas, como aprendemos, entre ou­ tras passagens, nos capítulos 23 e 33 de Jeremias”. Mas nem por isso afirmam ou que os antigos contemplaram a Cristo ou foram salvos na esperança de sua vinda. Diz o mesmo: “Discordo de você nisto: que parece admitir que os pie­ dosos sob o Antigo Testamento contemplavam a Cristo naquelas cerimônias e sacrifícios nos quais ele era tipificado, e foram salvos na esperança de sua vinda, algo do que de modo algum posso me persuadir” (Socino, “Ad amicos epistolae: ad Matthaeum Radecium”, O pera Omnia [ 1656], 1:377). Daí distin­ guirem entre a fé daqueles tempos e a dos nossos, de modo que aquela era uma fé em Deus simplesmente, e esta uma fé também em Cristo. Smaltzius: “Tampou­ co aquela fé era em Cristo, mas somente em Deus e em suas promessas” (Refiitatio Thesium D. Wolfgangi Frantzii, Disp. 12 [1614], p. 459); e Volkelius afir­ ma que a fé dos antigos e a nossa diferem em três coisas e especialmente em “que agora somos ordenados a crer tanto em Cristo como em Deus; mas que outrora essa fé de forma alguma foi exercida é evidente à luz do fato de que Cristo não havia sido então manifestado” (De vera Religione 4.3 ] 1630], p. 176). remonstrantes não diferem dos socinianos. De fato Armínio coloca propriamente a concordância de ambos os testamentos numa só e a mesma matéria (a saber, a obediência de fé requerida em ambos, e a herança de vida eterna prometida por meio da imputa­ ção da justiça da fé, e a gloriosa adoção em Cristo) (“Disputation XIII: On the Comparison of the Law and the Gospel”, Works [1956], 1:539-548). O único objeto é Cristo. A diferença está em alguns acidentais que nada detraem da unidade substancial. Mas seus seguidores têm outro tom de voz. Os apologis­ tas chamam a questão sobre a fé em Jesus Cristo (“se tiveram e como tiveram

D os rem onstrantes

lugar sob o Antigo Testamento”) “absurda, ambígua e inútil, e certamente não há passagem onde apareça que aquela fé fora ordenada ou florescera sob o Antigo Testamento” (“Apologia pro confessione sive declaratione ... Remonstrantes”, 7 em Episcopius, Operum theologicorum [1665], Pt. II, p. 155). Por fim distinguem o modo de revelação (claro ou obscuro), e dizem que a fé em Jesus Cristo foi ensinada no Antigo Testamento, não pública e diretamente, mas indireta e obscuramente, compreendida e envolvida na fé no favor e na graça geral de Deus. Dizem a mesma coisa acerca da promessa de vida eterna: “A luz deste fato é fácil deduzir o que se deve determinar acerca da famosa questão: a promessa de vida eterna teve lugar no antigo pacto, ou, antes, estava compreendido no próprio pacto? Pois, se promessas especiais parecem estar expressas naquele antigo pacto, devemos confessar que nenhuma promessa clara de vida eterna se pode encontrar nelas. Se alguém crê diferentemente, é seu dever realçar onde pode ser encontrada, e creio que isso não pode ser feito. Mas se parece haver ali promessas gerais, deve-se confessar, por outro lado, que tais promessas de vida eterna não só parecem estar inclusas, mas também, pela intenção, deve-se crer que estão inclusas nelas” (Episcopius, “Institutiones theologicae”, 3.4.1 O pera theologica [1678], p. 156). ^ Muitos anabatistas caíram no mesmo erro, como é evi­ dente à luz do Colóquio de Frankenthal, onde falam do povo israelita como se este fosse uma horda de suínos, dos quais dizem jocosa­ mente que foram cevados nesta terra pelo Senhor sem qualquer esperança de imortalidade celestial (P ro to c o ll... Fnm kentral, Art. 15,16 [J. Meier, 1573], pp. 292-335). Sustentam que somente bens temporais e promessas terrenas lhes foram outorgados. Esta era também a ímpia noção de Serveto, contra quem Calvino disputa solidamente (ICR, 2.10, pp. 428-449). Dos anabatistas

*~om *3ase nestas c° isas>é possível deduzir claramente ° estad° da questão. A questão não é: (1) se o pacto da graça era variado quanto aos acidentais e diferentes mo­ dos e graus de dispensação e manifestação (pois confessamos que, sob esta relação [schesei], há uma múltipla diferença entre o Antigo e o Novo Testa­ mento, ou a antiga e a nova economia, como se provará em seu lugar próprio). Antes, a questão é se ele era o mesmo quanto à substância e as partes essenci­ ais do pacto, isto é, seja quanto aos próprios pactuários, e quanto ao pacto federal que consiste na obrigação mútua das partes. Uma vez que o mesmo Mediador (Cristo) está em ambos; a mesma fé em Cristo; as promessas das mesmas bênçãos espirituais e celestiais; a mesma via de reconciliação e salva­ ção - só variando a economia e a administração do pacto. Nossos oponentes negam este fato; nós o afirmamos. VI. A questão não é se os pais veterotestamentários foram salvos, se seus pecados foram perdoados, se nutriram alguma esperança de vida eterna, se Cristo lhes foi proclamado. A maioria de nossos adversários não ousa negar estes

E stabelecim ento da questão

fatos. Antes, a questão é se olhavam para Cristo e se foram salvos na esperança de sua vinda. Se as promessas não só temporais, mas também espirituais e celestiais concernentes à vida eterna e ao Espírito Santo, lhes foram feitas. E se o mesmo pacto firmado conosco em Cristo já havia sido acordado com eles, ainda que mais obscura e reservadamente. Isto, eles negam; nós, porém, asse­ veramos. Sustentamos que Cristo foi não só predito, mas também prometido aos pais, e por sua graça foram salvos sob o Antigo Testamento não menos que nós somos salvos sob o Novo; tampouco foi qualquer outro nome dado abaixo do céu, sim, desde o princípio, do qual se poderia esperar salvação (At 4.12), e isso também segundo a promessa inviolável do pacto da graça. razões são: primeiro, em geral, as Escrituras ensinam clue 0 Pact0 da graça (Que Deus acordou conosco no ^T ) é igual ao previamente feito com Abraão. Daí Zacarias dizer em seu cântico: “Deus visitou e redimiu seu povo, como falara pela boca de seus santos profetas, “Bendito seja o Se­ nhor, Deus de Israel, porque visitou e redimiu o seu povo ... como prometera, desde a antiguidade, por boca de seus santos profetas,... para usar de misericórdia com nossos pais e lembrar-se de sua santa aliança e do juramento que fez a Abraão, nosso pai” (Lc 1.68,70,72,73). E Pedro fala aos judeus acerca dos dias de Cristo (os quais foram preanunciados por todos os profetas), dizendo: “Vós sois os filhos dos profetas e da aliança que Deus estabeleceu com vossos pais, dizendo a Abraão: Em tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra” (At 3.25). Paulo faz menção nominal­ mente da promessa do evangelho: “Ora, tendo a Escritura previsto que Deus justificaria pela fé os gentios, preanunciou o evangelho a Abraão: em ti serão abençoados todos os povos” (G13.8). Daí ele apresentar a justificação de Abraão pela fé como um exemplo para nós (Rm 4.3) e o exibe aos judeus, bem como aos gentios, como “o pai dos fiéis” (o que não poderia ter ocorrido se o pacto não fosse idêntico). Isto é confirmado pelo fato de denominar a promessa dada a Abraão “uma aliança já anteriormente confirmada por Deus” em Cristo (diathêkênprokekyrõmeriên hypo tou Theou eis Christon, G1 3.17). Prova-se a identidade do p a cto ' (1) com base nas E scrituras

Segundo, em particular, com base em todas as partes Pact0 da graça, as quais eram as mesmas em ambos os casos. Tal é a cláusula do pacto segundo a qual Deus será o nosso Deus e o Deus de nossa semente; pois como já havia sido proposto a Abraão (Gn 17.7) e renovado a Moisés numa visão (Ex 3.15), e frequentemente na legislação, confirmado no cativeiro e depois dele (Ex 36.28), assim nada mais foi proposto no pacto da graça como fundamento de todas as bênçãos, quer espirituais, quer celestiais (Mt 22.32; 2Co 6.16; Ap 21.3). 3. Com base na IX. Terceiro, a identidade do Mediador (dada no Antigo e identidade do no Novo Testamento), o fundamento do pacto. Ele é a benMediador. dita semente da mulher que esmagaria a cabeça da serpente

2 Com base na identidade do p acto da graça

(Gn3.15, cf. com Hb2.14 e Rm 16.20), a semente de Abraão em quem todas as nações da terra seriam abençoadas (Gn 22.18, a saber, Cristo - cf. G1 3.16); no Antigo Testamento, “o anjo da presença de Yahweh” (Is 63.9), “o anjo do concerto” (Ml 3.1), “um pacto do povo e dos gentios”, isto é, seu Mediador (Is 42.6; 49.8), que suportou as tristezas de seu povo e foi golpeado por seus peca­ dos (Is 53.5,6). No Novo Testamento, ele é o Mediador entre Deus e os homens (lTm 2.5); o Mediador do Novo Testamento e de uma aliança superior (Hb 8.6; 9.15); “o mesmo ontem, hoje e o será para sempre” (Hb 13.8); por cuja graça os pais, não menos que nós, foram salvos (At 15.10,11); de quem todos os profetas deram testemunho (At 10.43); o único nome dado debaixo do céu pelo qual podemos ser salvos (At 4.12); o Caminho, a Verdade e a Vida, de modo que ninguém pode ir ao Pai senão por meio dele (Jo 14.6). X. A objeção a Hebreus 13.8 é fútil. Lemos que Cristo é “o mesmo ontem, hoje e o será para sempre”, e pressupõe-se ou que se trata de sua doutrina, não concernente à sua pessoa e ao pacto feito nela. Se uma doutrina é eterna, então também a pessoa que a enuncia e o pacto proposto nela são eternos. Ou se pressupõe que “ontem” denota o dia de sua carne antes de sua ascensão, e “hoje” o tempo depois da ascensão. Isto é contrário à meta de Paulo, que é exortar à constância da fé, sendo o argumento extraído da identidade e perpetuidade da doutrina evangélica, da qual Cristo, como Mediador, é o objeto. Ou que “hoje” e “ontem” denotam uma coisa nova e recente, que teve início não há muito tempo (como lemos que os homens são de “ontem”, em Jó 8.9, c entre os gregos ephêmeroi [“seres de um dia”] em decorrência da brevidade de suas vidas). As expressões são muito dessemelhantes. Ser mthmvl (“de ontem e de anteontem”) deprecia a natureza humana. Aqui, porém, lemos que Cristo existiu ontem e existirá hoje e para sempre ao longo de todas as diferenças de tempo, para denotar sua glória e eternidade. Tampouco lemos apenas que ele existe ontem, hoje e para sempre, mas que também é o mesmo, isto é, não diferente, seja agora, seja então, seja depois; mas que sempre e em toda parte ele é o mesmo Jesus Cristo. Não seria possível dizer isto, se Cristo não fosse desde o princípio o Mediador do pacto da graça, bem como o Profeta e o Mestre da igreja. XI. Não é possível entender que Atos 15.11 se refere aos apóstolos compa­ rados com os crentes convertidos dentre os gentios, e não aos pais do Antigo Testamento (como afirmam). Pois Pedro falava proximamente dos pais, e assim as palavras seguintes se referem a eles com propriedade - “Mas cremos que, pela graça do Senhor Jesus Cristo, seremos salvos, como eles o foram (kath ' hon tropon kakein oi)” (2) O desígnio de Pedro demanda isto. Ele deseja provar que o jugo da lei cerimonial não deve ser posto nos pescoços dos gentios por esta razão - que os próprios pais não puderam suportá-lo, porém foram salvos pela mesma graça de Cristo como nós o somos. (3) Se os apóstolos quisessem juntar-se aos gentios no modo de salvação, não teriam dito: cremos que somos salvos justamente como eles; mas, antes, vice-versa: eles são salvos como nós. Não são os apóstolos a seguir os gentios e a pô-los diante de si como um

exemplo no modo da salvação, mas, ao contrário. (4) Tampouco é absurdo que Pedro (discursando sobre o modo como os gentios obteriam a salvação) termi­ ne com um argumento tomado dos pais, porque há um só método de salvação para todos. Se o jugo da lei foi insuportável (abastakton) aos pais, infere-se corretamente que os gentios não podem sujeitar-se a esse jugo. XII. Também alega-se falsamente que as palavras “Não há salvação em nenhum outro; porque abaixo do céu não existe nenhum outro nome, dado entre os homens, pelo qual importa que sejamos salvos” (At 4.12) indicam apenas o tempo em que Cristo se manifestou, e não podem estender-se ao passado. As palavras em si desaprovam esta interpretação. Elas não asseveram que agora não há nenhum nome dado entre os homens pelo qual importa que sejamos salvos, mas que não existe nenhum nome entre os homens (en anthrõpois), em todos os tempos. A coisa em si demanda isso. Porque, visto que não se pode admitir nenhuma salvação para o pecador sem um mediador (e não há media­ dor exceto Cristo), segue-se, ou que os pais não tiveram salvação, ou que fo­ ram salvos por Cristo. Se as palavras são usadas no presente, tampouco é ex­ cluído o pretérito ou o futuro; mas isto é feito para que a veracidade da medi­ ação de Cristo seja afirmada com relação a todos os tempos. XIII. As palavras “desde a fundação do mundo” (apo katabolês kosmou, Ap 13.8) não devem ser separadas daquelas que imediatamente as precedem (“o Cor­ deiro morto”) e anexadas a “o livro da vida” por transposição (como é o caso cm Ap 17.8). (1) Não há necessidade que tal transposição faça violência à série de discursos, os quais fluem muito mais suavemente quando lemos assim - “cujos nomes não estão escritos no livro da vida do Cordeiro que foi morto desde a fundação do mundo” - , do que segundo o desejo de nossos oponentes - “cujos nomes estão escritos desde a fundação do mundo no livro da vida do Cordeiro morto.” Porque, como lemos que o livro da vida “é o livro da vida do Cordeiro” (Ap 21.27), não se deve forçar a separação das palavras “do Cordeiro morto” (arniou esphagmenou). (2) Em parte alguma é “o Cordeiro morto” posto por si próprio, mas se faz sempre menção ou do tempo desde que, ou das pessoas por quem (ou por quais causas) ele foi morto. (3) Lemos com muita propriedade “morto desde a fundação do mundo”; não em si mesmo, mas, intencionalmen­ te, no decreto de Deus; objetivamente, nas promessas da Palavra e da fé dos pais; tipicamente, nos sacramentos e sacrifícios. (4) Mesmo admitindo que as palavras devem ser assim explicadas, não se destrói a força do argumento, porque ninguém pode ser inscrito no livro da vida a menos que seja no Cristo morto (ou em sua morte). Quart0>há em cada caso a mesma condição do pacto (ou seJa’ ^ Pe*a 9ua*obtiveram a salvação. Ela é evidente em Abraão, de cuja fé lemos que foi o instrumento para a imputação da justiça (Gn 15.6) e nos é proposta como exem­ plo (Rm 4.11; G13.6-8); em Davi (SI 116.10 cf. com 2 Co 4.13); nas celebrida-

4 Com base na identidade da condição

des antigas cuja fé é celebrada em todo o capítulo 11 de Hebreus. Aqui perti­ nente o que lenios em Habacuque 2.4: “O justo viverá pela fé”, onde se faz menção não só da fé, mas também da justificação, que depende da fé (Rm I.17). Daí Pedro testificar: “Dele todos os profetas dão testemunho de que, por meio de seu nome, todo aquele que nele crê recebe remissão de pecados” (At 10.43). Tampouco se pode objetar que a fé dos antigos era geral em Deus, não especial em Cristo (o Salvador), porque o oposto é evidente à luz de muitas considerações, (a) Nenhuma fé pode ser salvífica a menos que esteja fundamen­ tada em Cristo, (b) Ele fala da fé pela qual contemplavam a Deus como seu Deus (Hb 11.16) e do céu como sendo sua pátria natal. Ora, isto não poderia ocorrer sem Cristo, (c) Da fé pela qual contemplavam a Cristo mesmo e preferiram seu opróbrio a todos os tesouros (Hb 11.26). (d) Não só geral, mas também um man­ damento especial de fé em Cristo está fundamentado no Antigo Testamento (Êx 23.20,21; Dt 18.18,19; SI 2.12; Is 53.1,5). Se a fé dos antigos não fosse idêntica à nossa, seria impropriamente apresentada a nós para imitação (Hb 12.1,2; Rm 4.12). Paulo não poderia argumentar com suficiente força com base na fé do pai dos crentes e sua justificação em prol da nossa (G1 3.6,7; Rm 4.16). Qu'nto> as mesmas promessas espirituais lhes foram dadas conosco, ainda que frequentemente sob a casca e o v^u ^as co*sas temporais. Isto é evidente (a) em geral, quanto às promessas de Atos 13.32 - “Nós vos anunciamos”, diz Paulo, “o evangelho da promessa feita a nossos pais.” Por isso se faz evidente que o evangelho proclamado por Paulo não diferia das promessas feitas aos pais, e em decorrência desse fato, que Paulo (o mais fiel arauto das promessas) nada ensinava além do que Moisés e profetas ensinaram (At 26.22). Em parti­ cular, certas bênçãos espirituais conferidas aos crentes sob o Novo Testamento já tinham sido prometidas e dadas a Abraão (At 3.25,26; G1 3.8,9): o dom do Espírito Santo (G1 3.14; Ez 36.26,27); a justificação e a remissão dos pecados (Gn 15.6; SI 32.1; Is 43.25; Jr 31.33; At 10.43); a santificação (Dt 30.6; Ez 36.26; SI 51.12); a vida eterna, tanto com base na promessa federal, na qual Cristo ensina claramente que a vida eterna e a ressurreição estão inclusas (Mt 22.31,32), como também com base na herança dada a Abraão e a sua semente, que não é outra senão a vida eterna (G1 3.18; Hb 9.15); com base na “cidade que tem fundamentos” e na pátria celestial pela qual os pais esperavam (Hb II.10); na vida prometida aos crentes (Is 55.3). Daí decorre que Jó sabe que seu Redentor vive (Jó 19.25); Davi é persuadido de sua própria ressurreição e vida (SI 16.10; 22.26); Daniel aguarda a ressurreição e a vida eterna (12.1,2). XVI. Não se pode objetar: (1) quanto às promessas concernentes a Cristo no Antigo Testamento, que realmente foram feitas aos pais, mas não para os pais; antes, para os crentes do Novo Testamento, como as promessas da voca­ ção dos gentios foram feitas aos antigos, mas somente para os tempos do Novo Testamento, (a) Seria absurdo que os profetas tivessem feito tais promessas aos crentes, e que estes as ouvissem e não as aplicassem a si próprios. Pois foram 5 Com base na identidade das prom essas

oprimidos pelos mesmos males que os demais a quem se presume que foram feitas, e necessitam igualmente do mesmo remédio. Visto que foram enviadas ao povo antigo a fim de sustentá-lo na esperança de um Messias que estava para vir e da salvação a ser obtida por intermédio dele, quem não percebe que tais promessas foram feitas aos pais para sua salvação? (b) As promessas lhes pertenciam da mesma forma que a adoção, a glória, os pactos, a doação da lei e o serviço de Deus (Rm 9.4). Ora, estes últimos pertenceram propriamente aos antigos, (c) Se as promessas não lhes pertencessem, não poderiam e nem deveriam tê-las aplicado a si próprios, como foi feito por Abraão (Gn 15.6), que também foi justificado dessa mesma forma (Rm 4.4); por Jacó (Gn 49.18); por Davi (SI 16,23,40,110,118 e, com frequência, em outras partes); por Isaías (Is 9.6 - “Um menino nos nasceu, um filho nos foi dado”) e por toda a igreja israelita (Is 53.11); por Jeremias, em todo seu livro (Jr 23.5,6; Mq 5.2). Pedro não poderia ter dito que todos os profetas deram testemunho, e que todo aquele que “crê nele receberá remissão de pecados” (At 10.43), nenhum dos crentes, seja do Antigo, seja do Novo Testamento, seria aceito; nem Paulo poderia ter dito que Cristo é feito Mediador para a redenção das transgressões dos que estavam sob o primeiro testamento, para que os que são chamados recebam a promessa da herança eterna, (d) A relação da vocação dos gentios (que eviden­ temente de modo algum conduziu à salvação dos judeus) difere da do advento do Messias e da graça em Cristo (sem o qual nenhuma esperança de salvação poderia ter brilhado sobre eles). XVII. (2) Tampouco é melhor a objeção de que a profecia evocada por Cristo em Mateus 22.32 era obscura demais para ser percebida pelos crentes; ou que ela não é uma promessa geral de uma vida futura, mas uma promessa especial a Abraão, Isaque e Jacó nominalmente (como diz Volkelius, D e vera Religiorte 3.11 [1630], pp. 56-72). Embora a promessa de vida eterna apresen­ tada nesta profecia seja um tanto obscura (quando comparada com a clareza das promessas neotestamentárias), não se segue que não pudesse ser percebida pelos pais, até onde pudesse servir para sua consolação. Sim, a menos que tivesse sido uma prova evidente c clara, os saduceus não teriam segurado suas línguas (o que não fizeram em virtude da autoridade do orador, mas da evidên­ cia do argumento). Não se pode chamar graça especial para os patriarcas, por­ que ela se estende à sua semente (Gn 17.7). Se não, a prova de Cristo contra os saduceus não teria sido suficientemente sólida, nem o salmista poderia chamar bem-aventurada aquela nação cujo Deus é o Senhor (SI 33.12). XVIII. (3) Acrescenta-se falsamente que os pais buscaram uma cidade que tem fundamentos (Hb 11.16), não porque lhes fora prometida, mas porque foi acomodada às suas aspirações e adaptada aos seus feitos, e porque era crível que Deus a daria a seus adoradores (como o mesmo Volkelius diz, e também o Racovian Catechism, “Of Christ’s Prophetic Office” [1652], p. 114). Pois qual pode ser a esperança fundada em nenhuma palavra? Sim, visto que ela é proposta como um ato de fé, necessariamente a pressupõe e diz respeito a uma promessa. Daí

lermos que “morreram na fé”, “buscavam e aspiravam a uma pátria” (Hb 11.13,14,16). E como é possível que buscassem e aspirassem ao que não conhe­ ciam, visto que não há desejo de algo desconhecido? Tampouco se deve confun­ dir a fugidia e duvidosa opinião que os gentios (não tendo esperança, Ef 2.12) poderiam conceber sobre a imortalidade com a esperança segura e infalível de vida eterna que os pais tinham com base na Palavra. XIX. (4) Em vão se afirma que Jó trata de um livramento temporal das tribulações que o homem de Deus sofre; e da visão ou do conhecimento mais claro do poder, da sabedoria e da providência de Deus (como em Jó 42.5: “Ago­ ra meus olhos te vêem”) - embora esta seja a opinião dos judeus e também de alguns cristãos. Pois muitas coisas provam que Jó olhava para mais longe e se consolava (contra suas tribulações e os juízos contrários que os homens faziam sobre ele) por sua convicção na ressurreição e na vida eterna, (a) Ele espera este benefício de g ‘l (seu Redentor). Ora, gV não é outro senão Cristo, (b) Ele o espera no tempo do juízo final, pois afirma: “Eu sei que o meu redentor vive, e por fim se levantará sobre a terra”, (c) Ele o espera só após sua morte, depois que seu corpo fosse consumido e destruído pelos vermes, ele seria restaurado inteira­ mente, e em sua carne veria a Deus. (d) Esta visão não pode referir-se simples­ mente ao conhecimento do poder e da providência de Deus (de que ele fala em 42.5). Aqui Jó ouve Deus falar-lhe diretamente e experimenta sua presença mais próxima que antes, despertando nele séria compunção. Isto não o teria consolado muito, nem poderia persuadi-lo firmemente da sua restauração. E, se o pudesse persuadir, não poderia ter gerado nele tanta alegria e plenitude (ptêrophorian ) de fé. Portanto, isto se infere mais propriamente da visão beatífica, pela esperança da qual ele se consolava em suas tribulações e por meio da qual (certo de sua salvação eterna) ele esperava com a máxima certeza a sua própria ressurreição. XX. Nem mais veraz é o argumento de que Daniel não trata da ressurrei­ ção universal dos mortos (Dn 12.2), porque se refere somente a “muitos”. An­ tes, alega-se, diz respeito à restauração do povo judaico da terrível calamidade que estava para sofrer sob Antíoco, denotada por “aquele tempo” (ou seja, aquele do qual falara até aí, que era o tempo de Antíoco). (1) As palavras em si provam o oposto, visto que tratam de uma ressurreição propriamente assim chamada, do pó da terra e para a vida eterna ou para a vergonha eterna; mas não se pode dizer que uma libertação temporal é para a vida eterna, visto que os crcntes ainda se acham expostos à morte; nem para a vergonha eterna, já que os homens podem arrepender-se. (2) Não se faz necessário entender que o tempo mencionado em Daniel 12.1 é o tempo em que Antíoco se destinava a perseguir a igreja com muito rigor. Muitas vezes essa frase é tomada sem qual­ quer referência à precedente (como em Mt 3.1; 4.1) e beth pode significar “depois de” (como em Js 5.5). E assim o significado é que, após aquele livra­ mento do povo pela morte dc Antíoco, outro muito mais eminente sucederá por meio dc Miguel (i.e., Cristo), e assim, não obstante, terríveis calamidades pre­ cederão a bendita ressurreição que se seguirá. Aquele tempo, pois, que se se-

guiu à morte dc Antíoco, era o tempo evangélico no qual Cristo realizaria a obra da redenção da igreja. Assim é porque, primeiro, está contido nos dois adventos de Cristo; e, segundo, o todo está aqui compreendido pelo Espírito Santo (porque ele não dá uma série contínua de coisas e tempos, mas apenas menciona extraordinárias mudanças no estado da igreja). Portanto, aqui se denotam: “(a) o tempo do primeiro advento de Cristo e o que ele faria em favor dc sua igreja; (b) o tempo do segundo advento na ressurreição ou na plena consu­ mação da felicidade (12.2). Ora, não deve causar surpresa se aqui se faz uma transição da primeira para a segunda vinda de Cristo, e os tempos mais remotos entre um e outro são enfeixados em virtude de sua similaridade (como em Mt 24 a destruição do templo e a do mundo estão enfeixados). E assim a salvação da igreja é mais propriamente relacionada com a ressurreição final, porque no mun­ do todas as coisas se confundem; e a questão da salvação não ocorre em lugar algum, a menos que elevemos nossa mente para lá. Além do mais, o “muitos” é aqui expresso por “todos” (como ocorre frequentemente em outros lugares). , „ , XXI. Sexto, os sacramentos (os selos do pacto) foram os 6. Com base na , . . . .... . mesmos em ambos os testamentos quanto a substancia, sigidentm ade aos -r. , , , „ . . , ~ . nificando e selando Cristo e seus benefícios. Isso e evidensacram entos. . . . ■. .■ • • / ■ te tanto com respeito aos ordinários ou comuns (a saber, a circuncisão, que é chamada selo da justiça da fé [Rm 4.11] e a Páscoa, que é cumprida em Cristo [ICo 5.7]), como com respeito aos extraordinários ou incomuns (a passagem do mar e o dilúvio, que correspondem ao nosso batismo [ 1Co 10.1,2; 1Pe 3.20]; o maná e a água da rocha, correspondentes à eucaristia [ICo 10.3,4]). E daí surge a mudança de nomes (ocorrendo aqui com frequên­ cia) pela qual os nomes do Novo Testamento são dados aos sacramentos do Antigo, e vice-versa. Aos pais são atribuídos o batismo e a festa (ICo 10.1-4; [5.7]); a nós, a circuncisão (Cl 2.11,12), a Páscoa (ICo 5.7), os sacrifícios (Hb 9). Isto, contudo, não podia ser feito por enálage (enallagê ), a menos que hou­ vesse real identidade. Ora, isso não é possível com respeito ao sinal, porque os sinais são diferentes. Portanto deve ser com respeito à coisa significada, a qual em todos os sacramentos era sempre a mesma (i.e., Cristo com seus benefíci­ os; em quem os tipos e sacramentos, não menos que as promessas, são o sim e o amém, i.e., obtêm sua realização e seu cumprimento). XXII. Tampouco se deve dar atenção à objeção de nossos oponentes - que os antigos comiam o mesmo alimento entre si, e não conosco. Isto é contrário ao desígnio de Paulo, que é comparar os antigos com os cristãos e, com base nos exemplos (tanto dos sacramentos quanto dos benefícios que lhes foram outorgados e dos pecados e punição dos israelitas), insistir numa paridade de castigos, se tinham igualdade de pecados. Não obstante, (1) este argumento não teria força se os israelitas fossem comparados somente entre si, e não conosco. (2) E contrário às palavras de Paulo pelas quais ele ensina que Cris­ to, mesmo então, era conhecido dos antigos quando diz que a rocha que os seguia era Cristo, e que tentaram a Cristo no deserto (IC o 10.9). (3) O após-

tolo teria falado em vão do batismo, se não fosse verdade que os sacramentos do Antigo e os do Novo Testamento eram os mesmos, pelo menos analogicamente e quanto à substância. 7. Com base no uso da lei.

XXIII. Sétimo, a própria lei de Moisés (sob a qual os pais v*vcram) os instruiu concernente ao pacto da graça e os prepa­ rou e os estimulou a abraçá-lo (o que não podia ser feito se o pacto da graça já não tivesse entrado em vigor). Justamente por isso a lei é chamada “pedagogo para nos conduzir a Cristo” (G1 3.24) e Cristo o fim da lei (Rm 10.4). Isto se demonstra prontamente com base em três partes: (a) da lei moral, porque, ao convencer os pais de pecados cometidos contra a lei (Rm 3.19,20; G1 3.19) e em decorrência deles os sujeitando à maldição divina (G1 3.10), ela os incitou e estimulou a buscarem e a abraçarem, em Cristo, a expi­ ação e perdão dos pecados (G1 3.24); (b) da lei forense, porque ela constituía a política dos israelitas até Cristo (Gn 49.10) e selou (por assim dizer) com uma marca indelével a nação da qual o Messias nasceria; (c) da lei cerimonial, porque as cerimônias da lei eram tipos e figuras do Cristo que havia de vir, prenunciando seu sacrifício pelos pecados e confirmando as mentes dos cren­ tes acerca do desfruto dele (Cl 2.17; Hb 9 e 10). XXIV. O evangelho (significando a doutrina da graça de Deus em Cristo) é usado de duas formas: ou quanto ao evangelho prometido ou epangelicr, ou ao euangelismõ ou o evangelho com­ pletado e manifestado. No primeiro sentido, ele estava sob o Antigo Testamen­ to; no segundo, somente no Novo. Neste aspecto, lemos que ele foi “mantido” em segredo nas eras precedentes (Rm 16.25), não absoluta e simplesmente, vis­ to que no mesmo livro lemos que ele foi prometido e manifestado pela Escritura profética (Rm 1.2), mas relativamente: (1) quanto ao conhecimento natural, porque carne e sangue não podem revelar isto; (2) quanto à sua promulgação entre os gentios, porque Deus lhes permitiu andar em seus próprios caminhos e nada lhes fez conhecido sobre Cristo; (3) quanto ao seu cumprimento entre os judeus, porque reservou seu cumprimento não para seus dias, mas para os nos­ sos. Portanto, o apóstolo não quer dizer que o evangelho era totalmente desco­ nhecido sob o Antigo Testamento, mas quando comparado com a luz do Novo Testamento, pelo qual ele o fez claramente conhecido e a mais pessoas (Ef 3.5). XXV. Uma coisa é o “princípio do evangelho”, visto que ele denota a his­ tória evangélica concernente ao ministério de João Batista e ao nascimento de Cristo (em cujo sentido é expresso em Mc 1.1). Outra é o princípio da doutrina concernente à graça de Deus em Cristo. Neste sentido, ele não começou só no Novo Testamento, mas no Antigo Testamento foi declarado por Moisés e pelos profetas (como se confirma no mesmo lugar por testemunhos proféticos, Mc 1.2,3). XXVI. Lemos que a Lei e os Profetas “profetizaram até João” (Mt 11.13) quanto ao modo de dispensação, não quanto à substância federal, como se o Fontes de explanação.

pacto legal se limitasse somente ao Antigo Testamento. Pois a Lei e os Profe­ tas, com a promulgação da lei, sempre tiveram as promessas da graça, porém trataram só do ministério legal e profético em oposição ao evangélico, especi­ almente quanto à clareza da manifestação. As pessoas que ministravam e as coisas administradas não são opostas, mas apenas os diferentes modos pelos quais as mesmas coisas eram administradas - antes por meio de profecia (prophêteian) ou de um modo um tanto obscuro de ensinar, simbólica e enig­ maticamente; mais tarde por meio do evangelho (euangelismon), um modo claro e franco de ensinar. Portanto, não se deve confundir aqui a coisa e o modo da coisa (to hon kai to poiori). XXVII. Uma coisa é o pacto da graça ser renovado e ser apresentado de uma maneira mais clara; outra é ser ele feito como algo novo, visto que não existia antes. Lemos que o que se deu foi o primeiro (Jr 31.33), não o segundo, porque a mesma cláusula do pacto já existia no pacto feito com Abraão. Não é estilo bíblico incomum falar que determinada coisa é feita quando é mais clara e eficazmente manifestada (como o mandamento do amor, chamado “novo” [Jo 13.34; Uo 2.8], não absolutamente, porque já tinha sido proposto na lei, mas relativamente, porque inculcado de novo, baseado em novas promessas e sanci­ onado por um novo exemplo). Assim lemos que “o poder de Deus é aperfeiçoa­ do na fraqueza” (2Co 12.9), quer dizer, é demonstrado como perfeito e como um amigo que se deve ter na adversidade; e lemos que as estrelas surgem quan­ do o sol se põe, isto é, para se tomarem visíveis. XXVIII. Uma coisa é não ver Cristo exibido na carne; outra é não perceber os benefícios e frutos de sua mediação. Pedro diz que a primeira foi negada aos pais, quando diz que “A eles foi revelado que, não para si mesmos, mas para vós outros, ministravam as coisas que, agora, vos foram anunciadas por aqueles que, pelo Espírito Santo enviado do céu, vos pregaram o evangelho, coisas essas que anjos anelam perscrutar (1 Pe 1.12), porque Cristo deveria manifestar-se comple­ tamente em nossos dias, não nos dias deles. Mas nem por isso a segunda lhes foi negada, porque o poder da morte de Cristo, embora muito distante, podia exercer sua eficácia sobre eles para expiação dos pecados e produção da paz de consciên­ cia (como as causas morais costumam agir antes de existirem). XXIX. Embora Deus tenha provido algo melhor para nós do que para os pais veterotestamentários (Hb 11.39,40), quanto ao complemento das promes­ sas e a manifestação do Messias (em cujo sentido lemos que os olhos dos discí­ pulos eram bem-aventurados porque viam aquelas coisas que os reis desejaram ver e não viram, Lc 10.23,24), não se segue que não tivessem a mesma substân­ cia do pacto feito conosco, visto que Deus quis ser seu Deus não menos que nosso. Portanto, lemos que “sem nós” (i.e., separados de nós, chõris hêmõri) “não poderiam ser aperfeiçoados”, porque foram salvos pelo mesmo mérito, a mesma justiça e a mesma graça de Cristo. Mas puderam ser aperfeiçoados “antes de nós” quanto à ordem e ao tempo.

XXX. Embora Cristo tenha trazido à luz a vida e a imortalidade mediante o evangelho (2Tm 1.10), não se segue que este não foi absolutamente conheci­ do sob o Antigo Testamento. (1) Paulo não fala de uma manifestação absoluta e simples entre todos, mas “entre os gentios”. Daí ele acrescentar imediatamen­ te: “Pelo que fui designado pregador e mestre dos gentios”. (2) Ele ensina (v. 9) que aquela graça não era nova quando diz que existia antes que o mundo tivesse início (pm chroriõn aiõniõn), tanto por destinação eterna como por promessa temporal. (3) Ele não fala propriamente da promessa dc vida etema, mas da obtenção dela pelo real mérito de Cristo, que era peculiar ao Novo Testamento. XXXI. Quando o apóstolo diz: “A lei nada aperfeiçoou” (Hb 7.19), ele não toma a lei amplamente quanto à economia mosaica, como se os antigos não fos­ sem aperfeiçoados sob o Antigo Testamento quanto à possessão da graça e da glória. Antes, ele vê a lei estritamente e em oposição ao evangelho, porque a lei moral não podia justificar nem santificar, visto que era fraca na carne (muito menos a lei cerimonial). XXXII. Se o mesmo apóstolo assevera “que ainda o caminho do santo lugar não se manifestou, enquanto o primeiro tabernáculo continua erguido” (Hb 9.8), ele não tem em mente negar que os pais sob o Antigo Testamento foram recebi­ dos no céu, o que provam sobejamente o exemplo de Enoque e a ponderação de Cristo (Mt 22.32). Antes, ele deseja notificar duas coisas: (1) que as cerimôni­ as, tais como eram antes designadas pelo tabernáculo, por si sós não podiam abrir o caminho para o céu em virtude de sua fraqueza e ineficácia; (2) enquanto essas cerimônias existissem, aquele acesso ao céu (ou o método e modo dele) era mais obscuro e não era tão claramente manifesto, como foi feito quando Cristo entrou em cena e as cerimônias foram abolidas. Ora, a consequência da negação do modo para a negação da coisa em si não é válida. Uma coisa é de alguma forma tomar-se público; outra é não ser clara e plenamente revelado. O apóstolo diz isto, não aquilo - pois to pephanerõsthai indica a plena manifesta­ ção de uma coisa (o que foi negado sob o AT). XXXIII. O antigo pacto é entendido de duas maneiras: ou quanto ao pacto das obras ou pacto legal estritamente entendido, feito com os primeiros pais antes de sua queda e depois renovado no deserto; ou quanto ao segundo pacto, da graça, feito com os primeiros pais depois da queda e confirmado na econo­ mia mosaica. O novo é entendido ou em geral, quanto ao pacto da graça, ou quanto ao pacto da graça ilustrado no Novo Testamento. Daí a necessidade de distinguir acuradamente uma dupla oposição do antigo e do novo pacto: uma cm razão da substância, se forem tomados no primeiro sentido; o outro quanto aos acidentes ou ao modo acidental de dispensação, se forem tomados com o segundo significado. Pois, embora quanto à casca da letra o pacto mosaico pareceria ser legal, porque somente sob a condição da própria obediência de alguém (e essa realmente perfeita, sem qualquer abstenção [epieikeia ]) prome­ tia vida; contudo, quanto à intenção do legislador e quanto ao fim da lei uma

vez mais promulgada, levava à vinda do Messias - e por isso se diz correta­ mente que pertence ao pacto da graça. Neste sentido, o antigo pacto é chamado “antiquado” só quanto ao modo de administração, não quanto à coisa adminis­ trada; quanto aos acidentes do pacto, não quanto à sua substância; quanto à observância externa das adições anexas ao pacto, não quanto à forma interna do próprio pacto. XXXIV. Lemos que as “promessas do novo pacto” são “mais excelentes” (Hb 8.6), relativamente, não simplesmente. Não com respeito à substância das promessas, mas com respeito ao modo tanto de apresentá-las mais claramente, de ampliá-las e mais eficientemente imprimi-las, como de estendê-las também aos gentios. Portanto, essa preeminência (hyperochê ) do Novo Testamento está totalmente no modo, não na coisa, e tem relação com os pontos não-essenciais (ta epousiõdê) e não quanto aos essenciais (ousiõdê) do pacto. Porquanto, nes­ ta questão, não poderiam ser concedidas promessas mais excelentes do que as que foram feitas a Abraão, a Isaque e aos demais pais. XXXV. Uma coisa é que “a justiça da fé agora” (i.e., sob a economia evan­ gélica) seja simplesmente manifestada (phanerõtheisan haplõs)\ outra é que seja manifestada sem lei (phanerõtheisan chõris nomou) (i.e., por outra palavra além da palavra da lei, i.e., a palavra do evangelho). A primeira não é assevera­ da por Paulo (Rm 3.21), mas a segunda. Ele diz que a justiça foi “testemunha­ da” (martyroumeriên) pela lei e pelos profetas. Não se pode dizer que foi teste­ munhada (martyroumeriên) como futura, não como presente (como destinada aos crentes do NT) e não aos pais. E assim se seguiria ou que nenhum dos pais foi justificado (o que os exemplos de Abraão, de Davi e outros provam ser falso) ou que foram justificados de uma outra forma, e não pela justiça da fé (como Paulo assevera, Rm 4). XXXVI. Embora Moisés fosse o mediador do antigo pacto, Cristo não é excluído deste ofício mesmo no Antigo Testamento, porque Moisés foi apenas um mediador típico e um mero mensageiro entre Deus e seu povo; Cristo, porém, é um pacificador (eirênopoios) real e genuíno, reconciliando o Pai conosco por meio de seu mérito; o mesmo ontem, hoje e para sempre; no Antigo Testamento, deveras fora da carne (asarkos), mas no Novo encarnado (ensarkos). XXXVII. A fé dos pais era não apenas “a fé em que Cristo havia de vir”, mas “a fé no Cristo que havia de vir” (At 19.4,5). Não obstante, não podiam crer nele, exceto como fora prometido (i.e., como o Messias e o único Salvador, fora de quem não pode haver salvação). Ora, embora não existindo ainda fisica­ mente como encarnado, contudo Cristo já existia moralmente desde o princípio (com respeito à destinação e à promessa quanto à encarnação). Por isso mesmo, pela eficácia de sua divindade, ele pôde mesmo então outorgar aos crentes seus benefícios. A fé que haveria de se revelar sob o Novo Testamento (G1 3.23) era uma fé objetiva. Crê-se em razão da manifestação mais clara, não subjetiva pela qual se crê.

XXXVIII. Como a fé e a Palavra se relacionam, a fé em Cristo deve ter sido tal como era a Palavra do Antigo Testamento concernente a Cristo. Ora, a pala­ vra do Antigo Testamento ensina sobre Cristo e testifica dele (Jo 5.39), contudo o faz de modo um tanto obscuro. Por causa das promessas e dos tipos daquele que havia de vir, a fé deles, portanto, estava posta nele também, porém mais obscuramente e menos iluminada. Por conseguinte, a mesma coisa foi sempre conhecida e proposta como o objeto da fé, porém o modo se via menos clara­ mente antes do advento de Cristo do que depois dele (como o conhecimento de todas as coisas futuras é menos evidente do que o conhecimento do passado e a intuição do presente; mas uma vez negado o maior grau de luz, nem por isso se nega o menor). XXXIX. O modo da redenção pela morte do Messias não pode ter sido totalmente desconhecido aos pais, visto que era tão frequentemente indicado tanto pelos oráculos verbais quanto pelos tipos (quer reais ou pessoais) [Con­ sulte o leitor as seguintes passagens: Salmos 22,69; Isaías 53,63; Daniel 9.27; Zacarias 12.10]. Cristo mesmo ensina, com base no Antigo Testamento, que ele deveria manifestar-se e depois entrar em sua glória (Lc 24.26). O mesmo foi visualizado no cordeiro pascal, em cada um dos dois bodes (Lv I6.5ss.) e em todos os sacrifícios: coisas que os pais teriam que ter recebido sem fé e acreditando que os pecados podiam ser expiados pelo sangue de touros. Então sua fé teria sido inferior à luz dos próprios pagãos, que não tinham tal crença. Ou devemos afirmar que perceberam nestes um significado espiritual e que tudo se referia ao Messias. XL. Se os dois discípulos de Emaús estavam ainda fascinados pela opinião de um reino terreno a ser estabelecido por Cristo na terra (Lc 24.21) e não pensaram na cruz sobre a qual Cristo tinha que sofrer, não se segue que todos os crentes pensavam da mesma forma ou que nada sobre a morte de Cristo fora revelado aos pais. Pois isso era uma falha do sujeito, não um defeito do objeto. Isso foi predito com suficiente clareza no Antigo Testamento e ensinado por Cristo, se tivessem desejado dar-lhe atenção. Sua fé, pois, poderia ser genuína quanto ao objeto, porém eivada de erro; derivada não das Escrituras (segundo as quais ele os convence, Lc 24.27), mas da opinião errônea dos judeus concer­ nente a um reino terreno de Cristo (Mt 20.21). XLI. Se os apóstolos às vezes imaginavam por sua conta um reino terreno e carnal de Cristo, isso não procedia tanto da ignorância quanto da cegueira (abepsias) e temerária precipitação (propeleias ). Em virtude desse fato, ou nem sempre pensavam neste mistério, ou por vários afetos carnais eram levados a idéias incor­ retas, ou às vezes diziam o que era muito diferente do que realmente sabiam. Em muitos outros casos (com base na mesma causa), com frequência transgrediam o que sabiam ser seu claro dever; como quando desejaram repelir os homens que solicitavam o auxílio de Cristo e quiseram que fogo fosse enviado do céu sobre os samaritanos; quando não quiseram subir a Jerusalém, e daí por diante.

XLII. Se Pedro repreende a Cristo que fala da cruz (Mt 16.22), a causa de tal reprovação (epitimêseõs) não era uma ignorância absoluta do mistério da redenção ou de sua morte. Pois eles tinham ouvido João testificar que ele [Cris­ to] era o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo. Cristo mesmo, de forma mui expressiva, predissera a destruição do templo de seu corpo e sua permanên­ cia no sepulcro até o terceiro dia (Jo 2.19; Mt 12.39,40, além dos oráculos dos profetas). Antes, isso foi causado pela impetuosidade (propeteia) e pelo zelo (thermotês) comuns de Pedro, coisas que às vezes impelem um homem a pro­ nunciar o que é estranho ao que ele já descobriu mui claramente, porque no momento tal coisa já não lhe vem à mente. XLI11. O espanto e a consternação dos discípulos não são prejudiciais seja à revelação, seja à fé e ao conhecimento dos demais. Eles não entenderam o que podiam e deviam entender, e o que os piedosos anteriores e posteriores a eles entenderam bem segundo a medida da fé (Mt 26.12). E se o mistério não pudesse então ser entendido, os discípulos não pecariam não o entendendo (já que ninguém é obrigado a uma impossibilidade desse gênero, da qual, não obstante, eram culpados); contudo, eram, com frequência, severamente repre­ endidos por Cristo (Mt 16.23; Lc 24.25,26). Não havia necessidade de que os crentes conhecessem aqueles mistérios com outros olhos além dos olhos da fé (com os quais viam o corpo nas sombras, o núcleo e a verdade nas profecias). XL1V. Embora Deus prometesse bens corporais por meio de Moisés no Antigo Testamento, contudo não lhos prometeu à exclusão dos [bens] espiritu­ ais (os quais são frequentemente prometidos - Ex 34.6,7; Lv 26.12,41,42,44; Dt 18.15ss.; 30.2,3,6,11,12). Sim, eles estão compreendidos com suficiente clareza na fórmula do pacto. Aliás, esses mesmos bens corpóreos eram evidên­ cias e símbolos dos espirituais (Rm 4.12ss.; ICo 10.1-3; Hb 11.8-10). Faz-se menção expressa da vida eterna (Is 45.17; Dn 12.2; SI 16.11), embora não fosse tão claramente revelada, nem a tanta gente como agora. XLV. O dom do Espírito Santo é prometido sob o Novo Testamento; não simplesmente, como se estivesse absolutamente ausente da igreja (contra a de­ claração destas passagens: SI 51.11,12; 143.10; Is 44.3; 59.21; Ez 36.27; 39.29; Ag 2.5), mas relativamente, porque ele era dispensado tanto mais frugalmente como o menor número de pessoas, como que, por assim dizer, gota a gota. Agora ele flui em grande profusão e, à semelhança de um rio, inunda toda a igreja (Jo 7.39). O que começou visivelmente no dia de Pentecostes (At 2.17,18) continuaria invisivelmente sob o reino de Cristo até a consumação dos séculos. S exta P e r g u n t a : A E x t e n s ã o

do

P acto

da

G raça

O pacto da graçafoi sempre universal, seja quanto à apresentação ou à aceitação? Negamos isso.

Ocasião da questão.

I. Esta questão se relaciona com o objetivo do pacto movida contra nós pelos patronos da graça universal (embora jg diferentes formas e para um fim distinto). Pois, a fim de po-

derem sustentar (diaphylattein) sua tese (thesin) concernente à universalidade da graça, eles se vêem obrigados a manter a universalidade do pacto pelo qual a graça é dispensada. E assim não há nenhum mortal que não esteja sob aquele pacto em sua medida e com quem ele não seja feito. Extraem um argumento da universalidade da morte de Cristo, a qual colocam como um fundamento sob o pacto da graça. Pois crêem que Cristo morreu por todos para que Deus granje­ asse o poder de contrair um novo pacto com a raça humana. Opinião dos remonstrantes, na declaração de sua opinião sobre isto, rem onstrantes. expressam sua opinião assim: “Cristo, pelo mérito de sua morte, até aqui reconciliou Deus, o Pai, com toda a raça humana, para que o Pai, em virtude desse mérito, sem prejuízo da sua própria justiça e verdade, pudesse e quisesse fazer c sancionar um novo pacto da graça com os pecadores c expusesse os homens à condenação” (cf. Acta Synodi Nationalis ... Dordrechtdi (1620), Pt. 1, pp. 115,116, sobre o Artigo 2, “Concer­ nente à Morte de Cristo”). Ora, eles afirmam que este novo pacto foi feito de tal forma com toda a raça humana, que não se pode dizer que alguma nação ou algum indivíduo esteja excluído dele. “As nações que viveram sob o Antigo Testamento, ainda que o pacto não lhes tenha sido revelado da mesma forma como aos judeus, nem por isso se deve considerar como tendo sido absoluta­ mente excluídas do pacto, as quais, de alguma forma, pelo menos são chama­ das para que busquem a Deus. Sim, a elas, igualmente com os judeus, os dons espirituais do pacto foram expostos, se apenas cumprissem as condições - que se convertessem ao Deus de Israel” (Corvinus, Defensio Sententiae D. lacobi A rm in ii ... adversus ... Tileno 3 [1615], p. 98). E, mais adiante: “Embora mui­ tas nações estejam destituídas da pregação ordinária do evangelho, e de fato estão, segundo a vontade de Deus, contudo elas não estão absolutamente eli­ minadas da graça do evangelho” (ibid., pp. 105,106). Ainda: “Admitimos de bom grado que ninguém, quanto a si próprio, nasce absolutamente estranho ao pacto” (Corvinus, Petri M olinaei novi anatornici [1632], p. 440). ^ ão s° os luteranos concordam com eles sobre este ponto, mas também alguns de nossos homens que sustentam a graça universal. Testard afirma “Esse pacto Deus fez inicialmente com Adão após sua queda, c nele com toda a raça humana a ser propagada dele; então, após o dilúvio, ele o renovou com Noé, e nele com toda a raça humana a ser restaurada, mais tarde permitindo às nações andarem em seus próprios caminhos, com Abraão e sua família até o reino de Cristo, quando, uma vez removida a distinção entre judeus e gregos, em terceiro lugar ele o estabeleceu com toda a raça humana” (Eirenikon , Th. 112 [1633], pp. 82,83). Em virtude disso, ele tinha dito: “Deus não ocultou inteiramente a graça do novo pacto nem a nenhuma nação nem a nenhum indivíduo” (ibid., Th. 111, p. 82). E acrescenta que há três espécies de chamado: o primeiro, real, pelas obras, discutido em salmo 19.1; Mateus 5.45; Atos 14.17; 17.26; o segundo, verbal, por meio do evangelho; o terceiro, interno, pelo Espírito (ibid.. Th. E dos universalistas.

113, pp. 83,84). Amyrald não é diferente: “O grau de amor e misericórdia, pelo qual Deus se viu induzido a fazer tal pacto com os pecadores, vale para todos igualmente. O consequente, pois, é que ele deve ser considerado como tendo sido feito com todos os homens” (“Theses Theologicae de Tribus Foederibus Divinis”, 34 Syntagma Thesium Theologicanm [ 1664], p. 220). IV. Ora, uma vez que aquele pacto pode ser visto de duas formas (ou com respeito à sua promulgação, ou apresentação externa na graça objetiva; ou com respeito à sua outorga, ou recepção interna na graça subjetiva), alguns insis­ tem que este pacto é universal em ambos os aspectos. Asseveram que a graça suficiente objetiva e subjetiva é dada a cada um e a todos os que podem ser salvos, caso o queiram (como os socinianos, os remonstrantes e outros que lutam lado a lado com o pelagianismo). Não obstante, outros estendem a uni­ versalidade do pacto apenas à graça objetiva, e não à subjetiva (tais são alguns dentre nós que abraçam a graça universal). ^ ^ a0 °bstante, a opinião comum e aceita entre os reformados ®diferente. Aferram-se a uma particularidade do pacto (não menos os crentes antigos buscavam uma cidade celestial e nutriam uma grande consolação e esperança inabalável da glória na morte (o que não teria acontecido se '' tivessem ainda que ser lançados no inferno). Como poderia Jacó ter testificado que buscava com tanto ardor a salvação do Senhor (Gn 49.18), e Davi que tinha confiado seu espírito à mão do Senhor (SI 31.5), se ainda se sentissem longe da face de Deus e fossem glorificados somente de­ pois de muitas eras? Tampouco se pode dizer que Davi assim confiou a Deus a perfeição da vida, porque as palavras não podem conter nenhum outro sentido, segundo o estilo da Escritura, senão a entrega da alma a Deus (como é evidente à luz do exemplo de Estêvão, At 7.59). 5 Com base na consolação dos antigos

® clue *cmos s°t>re “o sepulcro” e a “morte” (Gn 37.35; 42.38) - que Jacó estava à mercê de descer com tristeza (Ish V/) ’ (“à sepultura”) é falsamente atribuído ao limbo. Sh ’vl ou hadês é a sepultura para onde os homens descem após a morte. XI. A “cova cm que não havia água”, da qual os antigos haveriam de ser tirados pelo sangue do pacto (Zc 9.11) não deve ser entendida como limbo, uma vez que se pode dizer que isso é, em parte, dito literalmente acerca do livramen­ to do cativeiro babilónico e das misérias que o acompanhavam (do qual os judeus ainda não estavam inteiramente livres); em parte, misticamente, acerca do cativeiro espiritual sob o pecado do qual Cristo nos livra pela eficácia de seu sangue, pelo qual o pacto da graça é ratificado (porquanto ele era o fundamento de todos os livramentos, inclusive temporais). XII. O que a mulher viu não era o Samuel real ( ISm 28.12), mas apenas sua visão (spectrum) (ou seja, um demônio personificando o profeta), que saiu da Fontes de explanação

terra com o fim de aterrorizar Saul, pois o próprio Satanás com frequência se transfigura em anjo de luz. Porquanto os demônios não têm nenhum direito ou domínio sobre as almas dos piedosos que Deus já recebeu no tabernáculo eter­ no para que descansem de suas fadigas (do contrário sua condição após a mor­ te seria pior do que em vida, na qual, armados da fé, estão seguros contra todos os assaltos de Satanás). Além disso, se fosse o próprio Samuel, ele não teria permitido que Saul o adorasse; nem se pode afirmar que Deus não respondeu a Saul que o consultava - nem por meio de sacerdotes, nem por meio de profe­ tas, porque ele então lhe havia respondido por meio dos profetas. Tampouco há algo importante no tocante ao equívoco do nome de Samuel dado àquela apa­ rição; é possível que fosse assim chamado em virtude da similitude, como as imagens geralmente são chamadas pelos nomes das coisas das quais são ima­ gens (como Agostinho prova sobejamente a d Simplicianum). Não há alguma importância no fato de haver predito coisas futuras, porque isto poderia ser feito por revelação divina para punição dos homens (como o mesmo Agosti­ nho e depois dele Lyranus observam; cf. D e diversis questionibus adS im plici­ anum [PL 40:101-148]). XIII. Está escrito que ninguém subiu ao céu antes de o Filho do homem descer do céu (Jo 3.13), não quanto à ascensão local para a visão beatífica, porque Enoque e Elias já tinham sido trasladados fisicamente, mas quanto à ascensão mística (i.e., um conhecimento das coisas celestiais ser manifestado aos homens). Como “subir ao céu” (Rm 10.6) é conhecer os mistérios divinos (cf. Pv 30.4). Neste sentido, lemos que ninguém jamais viu a Deus, senão o Filho, que está no seio do Pai, ele no-lo revelou (Jo 1.18); e “ninguém conhece o Pai, senão o Filho e aquele a quem o Filho o quiser revelar” (Mt 11.27). XIV. Lemos que “o caminho do Santo dos Santos” foi manifestado antes da ascensão de Cristo (Hb 9.8); não que estivesse inteiramente oculto, mas (1) que não se fizera claramente conhecido. Portanto, os pais entraram no céu por intermédio de Cristo (em quem criam), porque ele é o caminho de acesso ao céu, mas que ainda não era claramente conhecido porque ainda não tinha vin­ do. (2) Além disso, não foi conhecido por nenhum dos gentios como o foi no Novo Testamento. (3) Ainda não tinha se manifestado pelo resgate (Ivtrõ) fatual dc Cristo (o qual ainda não fora pago), mas somente quanto à eficácia do mérito. (4) Não se deve comparar tempo com tempo aqui; mas, antes, os sacri­ fícios mosaicos com o sacrifício de Cristo, para notificar que aqueles não nos podiam abrir o céu, o que foi outorgado exclusivamente ao sangue de Cristo. (5) Se lemos que Cristo foi o primeiro a entrar no céu, isto não deve ser enten­ dido quanto ao tempo, mas quanto à causalidade, porque a entrada de Cristo foi a verdadeira causa da entrada dos pais no céu, não menos que da nossa. XV. A “prisão” (phylakê) mencionada em 1 Pedro 3.19 (“no qual [Espírito] também foi [Cristo] e pregou aos espíritos em prisão” [tois en phylakê ]) não pode significar o limbo dos pais. Ele fala dos que “noutro tempo foram desobe-

dientes” (apeithêsasi pote), enquanto Cristo, por meio de seu Espírito proféti­ co, por meio de Noé, lhes pregava arrependimento. Antes, denota a prisão infernal (como em Ap 20.7) na qual (no tempo de Pedro) foram mantidos en­ cerrados em decorrência de sua resistência à pregação de Cristo por meio de Noé (a saber, aos que estão em prisão agora [tois en phylakê ousi], não que outrora estivessem ali). XVI. Ainda que se possa dizer que os antigos receberam algum aumento de conhecimento e de consolação após a manifestação de Cristo na carne e de sua ascensão ao céu (como é dito dos anjos, Ef 3.10), não se segue que tinham sido excluídos totalmente do céu e da contemplação da face de Deus; mas apenas que sua beatitude não estava ainda plenamente consumada. A isto al­ guns referem as palavras do apóstolo: “Por haver Deus provido coisa superior a nosso respeito, para que eles, sem nós, não fossem aperfeiçoados” (Hb 11.40). E Calvino parece ter feito referência a isto por meio [da figura] do espelho ou do ato de mirar com a qual ele diz que o que foi dito dos pais foi com base no desejo de Cristo, não de os excluir da fruição da beatitude e da visão de Deus, mas de assinalar o desejo e a ardente expectativa (apokaradokian) do advento de Cristo, o que também os anjos buscaram (1 Pe 1.12) (Epistle o fP a u l... to the H ebrews e the First an d Second Epistles o f St. Peter [trad. W. B. Johnson, 1963], p. 293 sobre IPe 3.19). XVII. A promessa às vezes denota o primeiro advento de Cristo na carne, prometido no Antigo Testamento; às vezes o segundo em glória, prometido no Novo. Os antigos morreram sem “receber a promessa” (Hb 11.39) - isto é, concernente ao primeiro advento de Cristo, o qual nos foi reservado sem eles. Os crentes, porém, ainda esperam pela promessa (epangelian) - isto é, a que será introduzida no segundo advento do Senhor (Hb 10.36,37) - a qual eles mesmos estão também por receber, porém não sem nós, pois o que ora esperamos será comum a nós e a eles. E assim Deus pôs diante de nós “algo superior” (kreitton ti) com respeito ao primeiro advento, no qual somente nós nos regozijamos. D

é c im a

S eg u nd a P ergu nta

Se o pacto da /ei,feito por meio de Moisés com oporo de Israel no Monte Sinai, de certo modo era um terceiro pacto, distinto em espécie do pacto da natureza e do pacto da graça. Negamos isso.

*• As opiniões dos teólogos variam sobre este tema. Alguns mantêm que o pacto do Sinai era um pacto de obras; outros> que era um misto do pacto das obras e do pacto da graça; ainda outros, que não era propriamente um pacto da natureza nem da graça, mas um terceiro pacto distinto de ambos em toda sua espécie e que foi instituído para ministrar ao pacto da graça (e por esta razão foi propriamente chamado “subserviente"). Finalmente, outros (com quem con­ cordamos) dizem que ele era um pacto de graça, porém promulgado com a lei

Várias opiniões acerca do p a cto do Sinai.

e subserviente a ela (que foi sancionada de maneira inusitada, com terror e servidão, em concordância com o estado do povo israelita e a era da igreja naquele tempo). Opinião de Aquele eminente homem. John Cameron, parece ter sido o Cam eron primeiro dentre nossos homens a introduzir uma opinião consobre o p a cto cementc a um pacto tríplice (“De Triplici Dei cum homine tríplice. foedere theses”, O pera [ 1642], pp. 544-551). O eminentíssi­ mo Amyrald abraçou esta [tese] e lutou laboriosamente para prová-la em “Theses Theologicae de Tribus Foederibus Divinis” (em Syntag­ ma Thesium Theologicarum [ 1664], pp. 212-231). Seus seguidores concordam com eles, sustentando que há três pactos (propriamente assim chamados), os quais Deus fizera com o homem: o primeiro natural, feito com o Adão inocente no paraíso terrestre; o segundo da graça, feito com os homens caídos, no evan­ gelho; o terceiro, o pacto legal, confirmado por intermédio de Moisés com os israelitas no Monte Sinai. O último é chamado o pacto “antigo” ou “subservi­ ente”, porque Deus o fez com eles a fim de prepará-los para o pacto e para os inflamar com a aspiração da promessa e do pacto evangélico, e ao mesmo tempo para restringir-lhes a perversidade pondo-lhes (por assim dizer) um freio, até o tempo em que enviaria o Espírito de adoção para então governá-los pela lei da liberdade. III. Ora, eles afirmam que a natureza desse pacto era tal que em vários particulares ele concorda com o pacto da natureza e com o pacto da graça e deles difere. Ele concorda com o pacto da natureza: (1) quanto às partes contratantes, porque em ambos elas são Deus e o homem; (2) quanto à esti­ pulação, que é anexada a ambos; (3) quanto à promessa, que é a mesma em gênero. Ele difere: (1) quanto ao objeto, porque o pacto da natureza foi cele­ brado com todos os homens; o legal, somente com os israelitas (o primeiro com o homem no estado de inocência; o segundo, com uma parte da raça humana caída); (2) quanto à promessa, que no primeiro era a vida a ser vivida no paraíso terreno; no segundo, uma vida feliz em Canaã; (3) quanto à estipu­ lação, porque o primeiro obriga à obediência devida à lei da natureza; o segun­ do, também às cerimônias; (4) quanto ao fundamento, porque o pacto da natu­ reza repousa sobre a criação e a conservação geral, mas o pacto legal repousa sobre a eleição do povo israelita e seu livramento do Egito; (5) quanto ao fim, o do primeiro era mais propriamente a exação de deveres do homem; do se­ gundo, preparação para Cristo com base numa convicção da fraqueza do ho­ mem; (6) quanto ao mediador, o primeiro não tinha um; o segundo não podia ser celebrado sem um mediador. IV. Ele concorda com o pacto da graça: (1) em seu autor, porque o autor de ambos é Deus; (2) em seu objeto (a saber, o homem - um pecador); (3) em seu mediador, que se encontra em ambos; (4) em seu fim - o fim de ambos é exibir o pecado e guiar a Cristo. Ele difere: (1) quanto à relação (schesin) do autor.

pois no legal Deus é considerado simplesmente como que repreendendo o pe­ cado e aprovando somente a justiça, mas no evangélico como perdoando o pecado e renovando a retidão no homem; (2) quanto à estipulação - pois a do primeiro é “Faze isto e viverás"; a do segundo, “Crê e serás salvo”; (3) quanto ao mediador, que no primeiro era Moisés, um mero homem; no segundo é Cristo, o Deus-homem ( theanthrõpos ); (4) quanto ao objeto, o homem entor­ pecido pelo pecado era o objeto do primeiro; a consciência terrificada pelo pecado era o objeto do segundo; (5) quanto aos efeitos, o primeiro gerava para a escravidão; o segundo, para a liberdade; aquele levava a Cristo indiretamen­ te; este, diretamente. Aquele era um escrito (syngraphê) contra nós; este, um alívio do peso (seisachtheia); um restringe do pecado, mas com compulsão, enquanto o outro restringe com inclinação espontânea (cf. Cameron, “De Triplici Dei cum homine foedere theses”, Opera [1642], pp. 544-551). Entretanto, reconhecemos somente dois pactos mutua­ mente distintos em espécie (ou seja, o pacto das obras, que Prometc vida 30 praticante; e o pacto da graça, que prometc sa^va clue 0 Messias foi prometido imediatamente aP°s a queda, desde o exato princípio do mundo, como o único meio de salvação; segundo, que, embora prometido desde o princípio, ele não seria enviado imediatamente, mas só após um longo intervalo de tempo, e Para sua mu' S3^ 'a administração, pode-se evocar uma múltipla razão, quer consideremos Cristo ou os homens. ‘ ' Com respeito a Cristo: primeiro, isto conduziu à sua dig­ nidade: que, antes que ele viesse ao mundo, vários arautos anunciariam de ante­ mão sua vinda como de um soberano supremo - “Para que o Juiz supremo chegasse, o precedeu a mais longa linhagem de arautos” (Agostinho, Tractate 3 1 ,0 « the G ospel o f John [NPNF1, 7:190; PL 35.1638]). E assim a fé pôde repousar de antemão sobre ele, e o caminho ser preparado, não por vários tipos, mas também por concordantes testemunhos de profetas. Segundo, a longa ex­ pectativa de um evento tão grande tornou este beneficio o mais aceitável entre os homens, que a natividade (que iria suplantar todos os milagres e toda a medi­ da de inteligência) produzisse em nós uma fé muito mais constante, como sua declaração precedera as mais antigas e as mais ricas (como diz Leão, Sermon XXIII, “On the Feast of the Nativity, III” [NPNF2, 12:133,134; PL 54.202]). Oue foi prom etido desde o principio porém não ' im ediatam ente enviado por uma dupla ca u sa • (1) am bas com respeito a Cristo

^ om resPeit0 aos homens, a magnitude do mal requeria isto: que a consciência (convencida da multidão e hediondez dos pehom ens cados e da incapacidade da natureza e da inutilidade de todos os ‘‘ meios humanos que porventura se inventasse), manifestando-se a necessidade de um remédio e o paciente sentindo sua debilidade, clamasse ao médico e buscasse o auxílio da graça, como o expressa Agostinho. Deus aban­ donou os homens a uma longa expectativa dele mesmo, para descobrir se eles cairiam por sua própria culpa, ou se se ergueriam por sua própria força. Justa­ mente por isso Deus, durante todo aquele tempo de sua paciência (anochês), deixou que o pecado proliferasse e até certo ponto transbordasse, para que, assim, a abundância de sua graça fosse mais gloriosa. Não obstante, ele não quis que o evento se delongasse até o fim do mundo, para que por tão longa espera o conhecimento e a reverência de Deus não se desvanecesse das mentes dos homens e o desespero viesse a tragar a fé. Além disso, a dispensação da graça tinha de ser distinta da dispensação da glória, e também a obra de repara­ ção não deveria ser contígua à da perfeição. A cada obra tinha de ser designada sua própria época e tempo (kairos ) ou estação; e o primeiro advento de Cristo não deve ser confundido com o segundo.

2 E com

'

.

^ ^ questâ° aclu>diz respeito ao tempo do primeiro advento’ rcsPe't0 a esta questão, deve-se não só instituir ’ uma inquirição permissível, mas também necessária à se­ gurança (asphaleian) de nossa fé. Por esta causa o Espírito Santo, no Antigo Testamento, quis indicar o evento por certas marcas inequívocas para que os crentes reconhecessem sua vinda e ninguém pudesse alegar pretexto de igno­ rância em sua rejeição dele. Tampouco se deve ouvir os rabinos modernos que (para mais facilmente desembaraçar-se dos argumentos com os quais demons­ tramos irrefutavelmente, com base na Escritura, que este tempo já chegou) têm buscado o seguinte refúgio: que na Escritura não se define nenhum tempo certo para o advento do Messias, senão que Deus reservou isso como um se­ gredo exclusivamente seu, ou seja, que o envio do Messias será no tempo em que ele mesmo escolheu. Daí, proíbem severamente qualquer inquirição sobre o tempo do Messias e anatematizam qualquer pessoa que tentar computar o tem­ po do Messias - “Que os ossos de quem computar os períodos de tempos in­ chem e quebrem” (“Sanhedrin”, 97b, BT, p. 659). Se não houver nenhuma ou­ tra, esta seguramente é a prova de uma causa desesperada. Pois, quem poderia acreditar que seria possível encontrar entre eles os que pudessem negar uma coisa tão clara, tão constantemente crida entre o povo de cada era passada, tão desejada e tão esperada (a menos que estejam feridos por um erro cego da mente e pervertidos pelo preconceito)? Eles são tão dominados pelo espírito de con­ tradição, que chegam a pensar que não há comentário que seja tão demasiada­ mente estranho que não possa ser agarrado de unhas e dentes, contanto que esteja o mais longe possível do sentido que porventura venha a favorecer nos­ so Jesus. E stabelecim ento da questão

VI. Quando realmente disputamos acerca do tempo do advento do Messias, é preciso observar: (1) que não tratamos de um tempo ou de sinais e marcas dele em termos que firam nossos sentidos inadvertidamente, e que sejam totalmente desconhecidos a quem quer que seja (tais como os judeus desejam e que são geralmente chamados matemática e física; por exemplo, o Messias virá, estan­ do o sol no meridiano; ou durante um eclipse do sol na lua cheia; ou num monte de Deus elevado acima dos demais montes). Antes, discutimos as marcas do tempo a que chamamos históricos, passíveis de ser conhecidos mediante os fa­ tos e os eventos, e de tal ordem que devem ser observados com atenção e apre­ endidos pela fé. (2) Que não fazemos isso para que provemos o artigo preciso do tempo (p.ex., o ano, o mês, a semana etc.) designado por Deus e qual era (pois não há necessidade de tal coisa). Mas fazemos isso apenas para que pro­ vemos amplamente (enplatei) que foi designado certo tempo para o advento do Messias, e de tal modo que pode ser conhecido pelos fatos e eventos mais claros (pois isso é agora suficiente, depois que ocorreram todos os eventos). (3) Que não tratamos de toda e qualquer marca de todas as que são mencionadas na Escritura, mas daquelas que servem para convencer os judeus e que têm uma ligação essencial com o advento do Messias, de modo que não existiriam, a menos que o Messias tivesse vindo. Porque existem, por isso mesmo devemos crer que ele já veio. VII. E assim o estabelecimento da questão se reduz a estes limites - se o Messias prometido realmente já veio; ou sua vinda está ainda pendente e deve ser esperado por nós. O tempo daquele advento designado de antemão por Deus já é passado e se foi, ou ainda não veio? Os judeus defendem a segunda hipótese com grande obstinação. Não obstante, asseveramos a primeira, com base em razões invencíveis. / D em onstração i/o advento do

VIU- A primeira demonstração baseia-se na determina­ temP° em clue ° advento do Messias deveria ocorrer' ^ ° 's’ se 0 temP° fixado para o advento do Messias já iMessias extraída do tem po de S iló ve'0, entào 0 próprio Messias certamente já veio. Ora, * que ele já veio e passou sem ser percebido [pelos judeus] deduz-se claramente de vários característicos. O primeiro é extraído do oráculo de Jacó, no qual o advento do Messias é relacionado com a remoção do cetro judaico. “O cetro”, diz ele, “não se apartará de Judá, nem um legislador de entre seus pés, até que venha Siló” (Gn 49.10). Daí insistirmos nestes termos - Se o cetro não seria removido de Judá até que viesse Siló (que é o Messias), segue-se que mui certamente ele já veio, porque aquele oráculo se cumpriu há muito tempo, e o cetro judaico já foi removido; tampouco possuem os judeus algum governante. Para confirmar o argumento contra as cavilações dos judeus, é preciso provar duas coisas: (1) que em Siló, aqui, está implícito o Messias; (2) que a referência é à remoção do domínio político e da autoridade dos judeus. IX. Siló não pode ser nenhum outro senão o Messias. Pois qualquer que

seja a origem e significação da palavra, é certo que nenhum outro é aqui desig­ nado. Isto é verdade, quer seja explicado por apestalmenon, mittendum (se­ gundo a Vulgata, como se fosse lido shvlvch); quer por “seu filho” (i.e., como Kimchi o expressa - bnv , que nascerá [mshlvch] de “placenta” de uma mulher, como todos os que nascem); ou que pode derivar-se do idioma árabe, no qual shvl é “um fluxo de sangue” - “até o fluxo [shlvch] de seu sangue” (i.e., a semente que emanaria dele, segundo Louis de Dieu, C ritica Sacra [1963], p. 22, sobre Gn 49.10); ou a palavra se deriva de shlh, que significa tornar-se ditoso e próspero, “até o precursor da paz”, ou até que venha “o pacificador e pacífico” (como afirmam Oleaster, Avenarius e outros); ou se afirma que a palavra é composta de shv, significando “oficio”, e o afixo lv (i.e., “oficio para ele”), porque os ofícios lhe seriam impostos (como afirma o Rabbi Salomon Jarchi; cf. Pentateuch with ... R ash is Commentary [trad. M. Rosenbaum e A. M. Silberman, 1965], 1:245). Ou, finalmente, é explicado por shr lv “de quem é” (acrescente-se, o reino), que, de todas, parece ser a opinião mais apropriada e mais bem adaptada a esta passagem. E assim o significado é: o reino não será removido de Judá “até que venha aquele a quem ele pertence”. E foi assim que as paráfrases de Onkelos e de Jemsalém o entenderam: “até que o Messias venha, de quem é o reino” (cf. Walton, Biblia sacra polvglotta [ 1657], p. 271, sobre Gn 49.10 e Das Fragmententhargum: Thargum jeruschalm i zw n Penta­ teuch [org. M. Ginsberguer, 1899], p. 25). A Septuaginta o traduz ta apokeimena autõ ou hõ apokeitai (como Justino, Irineu, Tertuliano). E pode lançar luzes sobre esta passagem a de Ezequiel 21.27, na qual a coroa de Jeconias é descri­ ta: “e ela [acrescente-se, coroa] já não será, até que venha aquele ['shr /v] a quem ela pertence de direito; a ele a darei”. Não obstante, não importa de que forma a expressão seja explicada, só se ajusta melhor ao Messias, especial­ mente visto que logo a seguir se anexa uma marca do Messias (ou seja, que “a ele será a obediência” ou “a congregação do povo” - o que em outra parte é atribuído ao Messias, Gn 22.17,18; ls 11.10; Mq 4.1). A relação também o demanda. Pois como ele atribui a Judá a prerrogativa e o domínio sobre seus irmãos e os filhos de seu pai, assim ele diz do Messias (que procederia dele) que não só seus irmãos o adorariam, mas todo o povo também lhe obedeceria. X. Não pode aplicar-se a nenhum outro. Nem a Moisés, porque o poder régio não estava ainda com Judá, nem podia ter-se transferido de Judá para Moisés. Nem a Saul, que deveria ter sido ungido em Siló, por meio de quem o cetro foi removido de Judá e transferido para a tribo de Benjamim. Pois (a) Saul não foi ungido em Siló, mas primeiramente em Ramá, escolhido solenemente em Mizpa e mais tarde confirmado em Gilgal (ISm 9; 10.17; 11.14); (b) antes de Saul, o cetro régio ainda não estivera em Judá; sim, ainda não havia sido estabelecido um reino no meio do povo, em nenhuma tribo particular; (c) embo­ ra Saul estivesse reinando, o cetro foi transferido para Judá e Davi, portanto não removido dele; (d) nem a obediência nem a expectativa dos povos podiam estar em Saul. Nem a dignidade régia foi transferida para Davi (em quem a

tribo de Judá estava para ser a preferida), porque não lemos que o cetro fosse transferido, mas removido; nem o cetro cessou onde primeiro começou. Nem a Jeroboão, que deveria ter sido coroado em Siló, porque ele foi ungido na cidade de Siquém, não em Siló (1 Rs 12.1,25); nem o reino já tinha sido removido de Judá; sim, ele continuou por muito tempo e também só eles foram reconhecidos como reis genuínos. Nem a Nabucodonosor, que seria enviado para remover o reino em virtude dos pecados do povo, porque: (a) todas as palavras de Jacó neste oráculo apontavam para a bênção de Judá, enquanto aquele transporte foi um castigo, não uma bênção, (b) Não é verdade que o cetro foi removido abso­ lutamente, porque é certo que muitos dos homens principais foram levados para Babilônia, e que os judeus viviam em conformidade com suas próprias leis com o consentimento do rei e tinham seu próprio cabeça (aichmalõtarchên) ou prín­ cipe do cativeiro ( r ’s h glvth) eleito por Judá. Finalmente, os judeus antigos reconheciam que a palavra tinha de ser entendida como referente ao Messias: (a) a Paráfrase Caldaica, Onkelos, Jonathan, Jerusalém - “Até que venha o Rei Messias [m /k' mshych ']” (cf. Walton, Biblia sacra polyglotta [1657], p. 271, sobre Gn 49.10; Targiim Pseudo-Jonathan o f the Pentateuch [E. G. Clarke, 1984], p. 62; Das Fragmententhargum: Thargum jeruschalm i zum Pentateuch [org. M. Ginsburger, 1899], p. 25); (b) os talmudistas - “Qual é o nome do Messias? Que a casa de Rabbi Schelah nos ensine: Siló é seu nome, como está escrito até que Siló venha” (“Sanhedrin”, 98b, BT, 2:667); (c) os rabinos - “Até que Siló, isto é, o rei Messias venha” ( Genesis Rabbah [org. J. Neusner, 1985], 3:358). Rashi (Pentateuch with ... R ash i’s C om m entaiy [trad. M. Rosenbaum e A. M. Silbermann, 1965], 1:245) e o Rabbi Bechai (B eo ra l ha-torah: Bereshith, pp. 382,383) têm a mesma coisa. XI. (2) Segundo, que trata da remoção do reino judaico deduz-se da palavra shbt, que pode referir-se aqui a nada mais que à marca dos reis (ou seja, “a vara” ou “cetro”, o símbolo de majestade real). Daí a Septuaginta traduzir por a/vkõn, Aquila1 por skêptron (Orígenes, Hexapla [PG 15.324]); Símaco por exousia (ibid. [PG 15.325]). Os judeus falsamente afirmam que aqui o sentido é “vara de correção”, como em Provérbios 22.15* (i.e., “aflição” e “opressão”), de modo que o sentido é: “Os opressores não cessarão de afligir Israel até que o Messias venha e então os livrará”. Mas, em contrapartida: (a) tal vara deve ser tomada como é própria para “o legislador” (m chvqq , que aqui está assciado), como cabe a um rei ter um cetro e promulgar leis (skêptron de t ede themistas, como diz Homero, I lia d 2.205 [Loeb, 1:64,65]). Ora, que tem o legislador a ver com uma vara de opressão? (b) O patriarca assim teria profetizado concernente aos castigos e não às bênçãos de Judá, cujo oposto é evidente à luz das palavras 1. Áqilila. prosélito judeu. Embora na Bíblia a Versão de Almeida, Atualizada, registre Áqilila, como também a NV1, verificam os que várias fontes, antigas e modernas, registram Áquila. o que é favorecido pelas formas grega e latina: grego Akyla: latim: Aquila. Note-se que cm latim tem os Aquila com o nome de ave e nom e de homem. Note-se ainda que em latim temos, por exemplo. Aqilílius. de outra raiz, o que pode levar a confusão. [N. do E.]

“Judá, tu és aquele que teus irmãos louvarão” (Gn 49.8). A ele se promete vitória, a prerrogativa entre os irmãos, a força de um leão e a posse pacífica da presa. Como podem estas coisas harmonizar-se com uma predição de aflição? Além disso, já que uma vara de correção deve ser comum a todas as tribos, não havia razão para que aqui a referência seja exclusivamente à tribo de Judá. (c) Não é verdade que a opressão nunca cessou naquela tribo, já que ela vicejou entre muitas gerações de Davi a Zedequias. (d) As mesmas palavras ocorrem em Zacarias 10.11, y sv r shbt, as quais a Scptuaginta traduz por skêptron Aig)'ptou periairethêsetai (“o cetro do Egito se apartará”), (e) Os judeus antigos tomam a palavra como fazemos: “Ele não cessará (sh btv) de exercer domínio” (Taigum Onkelos to Genesis [org. M. Aberbach e B. Grossfeld, 1982], pp. 284,285); “Os reis e os príncipes não cessarão” (cf. Walton, Biblia sacra p olyglotta [ 1657], 3:130 sobre Zc 10.11); “Os reis não cessarão” (D as Fragmententhargum: Thaigim jeruschalm izum Pentateuch [org. M. Ginsburger, 1899], p. 25). Com respeito a principado e domínio, é assim explicado por“Sanhedrin” (cf. 59, BT, p. 16); Bereschit Rabba (Genesis Rabbah, 98.8 [trad. J. Neusner, 1985], 3:356,357); Ramban 1 ult. Jad. Cap. 4+; Rabbi David Kimchi sobre a palavra shbt (Seser ha-shorashim [1847], pp. 365,366). XII. Entretanto, não é sem razão que a remoção do reino de Judá permane­ ceu como uma marca do advento do Messias. A retirada de (arsis) um é o estabelecimento (thesis) do outro; a remoção (aphairesis) do reino de Judá é a fundação do reino de Cristo. Porque, uma vez que a república judaica foi pri­ mariamente instituída por causa de Cristo para preservar a tribo da qual o Mes­ sias iria nascer, a república não poderia ser subvertida, nem a tribo deveria ser dissolvida até o advento do Messias. Além disso, uma vez que a política era prcfigurativa e terrena (à qual as promessas foram feitas não diretamente), não podia continuar para sempre, mas sua glória tinha de ser abolida (katargeis­ thai ) e dar lugar ao reino místico e eterno de Cristo. Faz pouca diferença, con­ tudo, se a partícula V/£y (“até que”) é tomada exclusivamente, para significar que o cetro tinha de cessar antes do advento do Messias; ou inclusivamente, com o sentido de que o império não cessaria até que o Messias viesse, e que ele viria antes da remoção do cetro. A força do argumento permanece perenemente contra os judeus. Pois, se é verdade que o advento do Messias está associado à remoção do cetro de Judá. não pode haver dúvida de que ele já veio, já que por longo tempo esse cetro se mantém removido, todo poder judicial inteiramente desfeito, a cidade destruída e o povo disperso (como os próprios judeus se vêem forçados a reconhecer). Ver Rabbi David Kimchi: “Estes são os dias de exílio em que ora vivemos, não podemos ter rei, nem príncipe fora de Israel, visto que, deveras, vivemos sob a autoridade dos gentios” (Commentary o f ... Kimhi on Hosea [org. H. Cohen, 1966], p. 31, sobre Os 3.4); c Manasseh (ben Israel) “Este castigo sofremos... vivendo sem rei, sem príncipe, sem governo” (Conciliator [1972], 1:93). XIII. Ora, não há necessidade de nos cansarmos em busca do artigo preciso

de tempo em que esse poder foi retirado do povo judaico; basta a evidência (que é certíssima) de que ele agora está desfeito e isso desde os tempos de outrora. Pois embora os cronologistas contendam entre si veementemente so­ bre isso, e haja grande discrepância em suas opiniões, alguns afirmam que o cetro foi tomado sob Pompeu; outros, sob Vespasiano; outros (o que é muito mais satisfatório) afirmam que isso não foi a obra de um momento, quando a república foi abalada por várias mudanças sob Pompeu e Herodes e, por fim, subvertida sob Vespasiano; contudo não há necessidade de resolver esta intrin­ cada questão para corroborar nosso argumento contra os judeus. Sua própria força permanece sempre com base neste fato - que é estabelecido, além de qualquer sombra de dúvida, que toda a autoridade foi por muito tempo removi­ da dos judeus, de modo que transcorreram, não dias ou anos, mas eras, desde o tempo do cumprimento deste oráculo. Segue-se daí, necessariamente, ou que ele era falso e enganoso (o que só pensar é ímpio), ou que o Messias já veio. XIV. Não devem os judeus ser ouvidos quanto à estória que inventaram de que o cetro ainda permanece na Babilônia naqueles que governam sobre o povo ali. Manasseh [Manassés] (Ben Israel) se esforça em confirmar isto baseado em Benjamim, o qual relata que em Bagdá viu com seus próprios olhos, entre os israelitas, certo governador nascido da família de Davi, transportado em carru­ agem em meio a aclamações do povo (C onciliator [1972], p. 98). Estas são as mais puras ficçòes de seus cérebros, contrárias à opinião dos rabinos supracita­ dos; contrárias aos relatórios de todos quantos viajaram pelo mundo ou que escreveram sobre o assunto (os quais conservam um profundo silêncio acerca de tais governadores). E se houvesse alguma verdade nisto, deve-se crer, mesmo por um momento, que os judeus restantes espalhados pelo mundo permaneceri­ am na miserável servidão sob a qual gemem? Daí o testemunho de Benjamim (como falso e forjador de fábulas, e muitas vezes acusado de mentir pela erudita [publicação] L’Empereur), não deve ter nenhuma autoridade entre nós (Itinerium D. Benjaminis cum versione et notis ... L ’Empereur [ 1633] e Itinerary o f Benjamin ofT u dela [org. M.N. Adler, 1907], pp. 39,40). E possível dizer tal coisa com toda a certeza, porque, estando agora as tribos confusas, é impossível saber com certeza quem é da tribo de Judá e quem é de outra. XV. A principal dificuldade, segundo a insistência dos judeus, permanece — não se pode deduzir desta passagem que o Messias já veio, se não ele já teria vindo antes do cativeiro babilónico, porque nele o cetro foi removido dos judeus e nunca mais lhe foi devolvido. Para sua solução, postulamos: (1) que nem sempre é possível designar pontos de tempo certos e indubitáveis nos quais o florescimento e a glória dos reinos permanecem ou nos quais se desvanecem, ou são subvertidos. Como o estabelecimento e a dignidade dos reinos não são obti­ dos juntos e imediatamente (mas pouco a pouco e sucessivamente), assim o declínio e a queda deles não ocorrem num só momento, nem de uma maneira palpável e pública, mas graduai, imperceptível e impalpavelmente. E assim podem ser percebidos mais depressa depois de ocorridos do que observados enquanto

ocorrem. Portanto, tal fato não pode restringir-se a um ponto particular do tempo, mas deve ser considerado amplamente (en p laíei), com certa latitude de tempo. (2) Uma coisa é que uma família real (tendo o direito de reinar) continue; outra é que reis reinem de fãto. Pois estes podem ser abolidos, en­ quanto que aquela permanece (como quando um reino é ocupado tiranicamen­ te por alguém e os herdeiros legítimos são expulsos, a posse [Ar/ês/s] permane­ ce, enquanto que o uso [chrêsei] é removido). (3) Não é necessário ao cumpri­ mento do oráculo que a mais alta dignidade seja sempre mantida pela tribo de Judá. É suficiente preservar sua veracidade, se algum domínio e principado floresceram nele, porque estas palavras (“o cetro não se apartará, nem um le­ gislador ...”) devem ser tomadas disjuntiva, não conjuntivamente. O significado é que os judeus não seriam privados de ambos até que o Messias viesse, mas um ou o outro seriam mantidos: se não o cetro, contudo um legislador, um poder judiciário e uma legislação (nomothesian ). (4) Nem mesmo se requer que o do­ mínio exista sempre numa série contínua e ininterrupta. E suficiente que esteja sempre presente uma denominação (embora o reino espanhol tenha sido transfe­ rido para a Casa da Áustria, ele não deixa de ser chamado Coroa Espanhola). XVI. Uma vez estabelecidas estas posições, digo que a continuação do cetro e do poder em Judá pode ser claramente demonstrada: (1) de Davi ao cativeiro babilónico, ao longo de 470 anos; (2) durante o cativeiro, primeira­ mente em Joaquim, cuja “cabeça Evil-merodaque ergueu, e pôs seu trono aci­ ma dos tronos dos outros reis” (2Rs 25.27,28); segundo, em Daniel que era da tribo de Judá e de sangue real (Dn 2.25; 5.13); terceiro, nos Aiquemalotarcas2 (“governadores do cativeiro”), que viveram no cativeiro. Daí dizerem Ramban: “Os Aiquemalotarcas tiveram o lugar de reis, porque lemos que o cetro não será afastado” (lib. Ult. Lad. C. iv+) e o Rabbi Solomon: “O cetro não será retirado; estes são os governadores do exílio, os quais governam o povo por permissão dos reis persas” (“Sanhedrin”, 5», BT, 1:16). (3) Depois do cativeiro babilónico, em Zorobabel, sobrinho de Joaquim, e Neemias, o qual Eusébio afirma ter sido da tribo de Judá (cf. Joseph Scaliger, Anim adversiones in Chronologica Eusebii in Thesaurus Temporum [1968], 2:98). Daí o Neemias que é contado entre os sacerdotes (Ne 10.1) teria sido uma pessoa diferente, ficando evidente, à luz de 7.5,7, que houve dois Neemias. (4) De Neemias a Herodes, um espaço de 335 anos, a prova é mais difícil, porque o cânon da Escritura é omisso. Não obstante, pode-se deduzir destas três coisas: (a) quanto aos Macabeus, embora fossem da tribo de Levi, não deixaram de ser chamados o reino judaico, porque, como somente a tribo de Judá regressou do cativeiro, com a tribo de Benjamim (que era uma acréscimo a ela), assim o reino e a república estavam na tribo de Judá e aqueles que presidiam, embora sendo de uma tribo diferente; contudo, porque receberam o cetro da tribo de Judá e nela e em seu nome e o empunhavam, pode-se realmente dizer que o cetro foi mantido por 2. Dü grego aiqmalosia (cativeiro, estado de cativo) + arque,

arqaia (autoridade, poder). [N. do E.]

Judá, porque a majestade imperial sempre permaneceu nela (como se deu em Roma quando os espanhóis e os trácios foram eleitos imperadores); (b) nos Aiquemalotarcas (“governadores do cativeiro”, ver supra e nota); (c) no gran­ de concílio, cujo poder era sempre grande, como nos informa Josefo, um trono real sendo por isso atribuído a este colégio de senadores (AJ, 14.9*. 167-172 [Loeb, 7:536-541) (SI 122.5; 2Cr 19.8); o presidente é chamado ngydh, e nos livros judaicos ele é em outras partes chamado n s y ’ e era sempre da tribo de Judá, como testifica a cronologia judaica. E visto que somente a tribo de Judá, com o acréscimo de Benjamim, regressou, não há dúvida de que pelo menos a maioria do concílio se compunha desta tribo, com a qual o governador ainda subsistia até que (tendo sido a Judéia conquistada pelos romanos) o poder foi pouco a pouco retirado e por fim totalmente removido. E assim a queda da república judaica pode ser avaliada sob estes três passos: o primeiro, sob Pom­ peu, que começou no ano 60 a.C.; o segundo, por quem foi levado avante, 10 anos antes deCristo, quando, tendo Arquelau sido despedido, a Judéia foi reduzida à forma deuma província; o terceiro, no qual ela foi consumada sob Tito, sendo o templo destruído e a cidade, subvertida. XVI1. A segunda demonstração é extraída das semanas de A segunda Daniel. A passagem diz: “Setenta semanas estão determina­ dem onstração, das sobre o teu povo e sobre a tua santa cidade, para fazer com base nas cessar a transgressão, para dar fim aos pecados, para expiar sem anas de a iniquidade, para trazer a justiça eterna, para selar a visão Daniel. e a profecia e para ungir o Santo dos Santos. Sabe e enten­ de: desde a saída da ordem para restaurar e para edificar Jerusalém, até ao Ungido, ao Príncipe, sete semanas e sessenta e duas semanas; as praças e as circunvalações se reedificarão, mas em tempos angustiosos. Depois das ses­ senta e duas semanas, será morto o Ungido e já não estará; e o povo de um príncipe que há de vir destruirá a cidade e o santuário, e o seu fim será num dilúvio, e até ao fim haverá guerra; desolações são determinadas. Ele fará fir­ me aliança com muitos, por uma semana; na metade da semana, fará cessar o sacrifício e a oferta de manjares; sobre as asas das abominações virá o assola­ dor, até que a destruição, que está determinada, se derrame sobre ele” (Dn 9.24-27). Daí, nosso argumento é este: se depois de setenta semanas de anos (i.e., depois de quatrocentos e noventa anos desde a permissão do regresso do povo), o Messias se manifestaria e morreria para consumar a obra de redenção, necessariamente há muito que ele deve ter vindo, porque já se passaram mais de quatro tempos desde aquela profecia. Ora, uma vez que, à luz das palavras do profeta, a primeira parte é verdade, então a segunda também é verdade. XVI11. Para elucidar os argumentos, é preciso provar três coisas: (1) que a profecia se refere ao Messias; (2) que estas semanas são de anos e não de dias; (3) que, não importa em que tempo fixemos seu começo, este tempo já expirou. Pois, se esses elementos forem estabelecidos, ficará inquestionavelmente evi­

dente contra os judeus que o Messias já veio. Quanto ao primeiro, que ela se refere ao Messias é claro (a) com base na designação explícita dele (v. 25), sendo que o nome que ali consta é atribuído somente a Cristo, absolutamente, à guisa de eminência (kaí ’exochên) como peculiar a ele, e não o vemos atribuído a nenhum outro, quer governante quer sacerdote, exceto com alguma adição, seja de Senhor, ou de um afixo, ou de um nome próprio, (b) O Messias é chama­ do ng\’dh ( '\.e., “príncipe” e “líder”), o que é apropriado somente a Cristo, como a ele é atribuído (Is 55.4 e Mq 5.2; cf. Mt 2.6); portanto ele o chama um líder à guisa de excelência, porquanto ele suplanta a todos os demais reis e sacerdotes, (c) As obras que aqui se diz que serão realizadas no tempo do Messias não podem pertencer a nenhum outro senão somente a Cristo: por exemplo, pôr fim ao pecado, a expiação da iniquidade, a introdução da justiça eterna, a selagem da profecia, (d) Os judeus explicam a passagem como se referindo ao Messias (Rabbi Saadia a Gaon, D aniel im Targum, in loc. [Dn 9.24-27]; Rabbi Nach­ man Gerundcnsis, Perushe ha-Ramban [1963], p. 233, sobre Dn 9.24-27, e outros, como Manasseh ben Israel observa. D e Termino Vitae [1639], pp. 165­ 180). (e) Lemos do Messias que ele confirmará a aliança no meio da semana e será cortado, o que só é pertinente a Cristo, e a mais ninguém. XIX. O que o Rabbi Solomon Jarchi diz sobre Daniel 9 é indigno - que há muitos Messias, mas um só é o filho de Davi, à guisa de excelência (kat ’exockên), sobre quem não se pode entender a passagem. [Cita-se] Ciro (que é chamado “o Pastor de Deus” e o “Messias”, Is 44.28; 45.1). Antes, o versículo 25 discute Herodes Agripa, versículo 26; a arca e outras mobílias do templo de Jerusalém, versículo 24. Pois (1) visto que a Escritura, no mesmo lugar, fala do Messias três vezes sem qualquer sinal de distinção, não se pode dar qualquer razão pela qual se deva inventar muitos aqui, e que o único verdadeiro seja o excluído (acerca de quem unicamente o Espírito Santo quis falar para a consolação de Daniel e do povo aflito). (2) Ciro deveras é chamado “o ungido de Deus” (Is 44.28; 45.1) em virtude do benefício singular feito ao povo de Deus, para cuja realização ele foi designado pela providência de Deus; mas ninguém poderia dizer que ele foi o principal redentor dos israelitas (acerca de quem fala Daniel). Ele fala novamente do Messias que havia de vir depois de sete semanas e ses­ senta e duas semanas, ao passo que Ciro morreu antes da primeira semana. Daí Aben Ezra e outros rabinos rejeitam este comentário. (3) O que se diz no versí­ culo 26 é destituído de qualquer propriedade, se aplicado a Herodes Agripa. Pois além do fato de se imaginar absurdamente que, no mesmo lugar, Daniel apresenta outro Messias vindo mais de quinhentos anos depois da morte do primeiro, esse último Agripa (que reinou em Traconites) nunca exerceu qual­ quer poder cm Jerusalém ou na Judéia; longe esteja alguém de sonhar que ele foi o Messias dos judeus. Tampouco (a não ser falsamente) lemos ter ele morrido antes que a cidade fosse tomada pelos romanos, visto que até o fim de sua vida ele viveu com estes em termos mui amigáveis e, quanto pôde, ajudou Vespasiano a subjugar os judeus. (4) O Santo dos Santos mencionado no versículo 24

não pode aplicar-se à arca ou ao altar, mas a uma pessoa que seria ungida. Ora, a arca era de fato aspergida com sangue todo ano, porém nunca lemos que fosse ungida com óleo. Acrescente-se a isto que no segundo templo os judeus afirmam que não havia nem arca nem óleo de unção. E assim a referência não pode adequar-se a nenhum outro senão ao nosso Cristo, que foi não só o lugar santís­ simo, mas o próprio Santo de Israel, ungido pelo Espírito Santo com o óleo de alegria acima de seus companheiros (Lc 1.35). XX. Segundo, as semanas aqui mencionadas não são de dias, e sim de anos (das quais Lv 25.8 trata), de modo que seriam reconhecidos sete anos em cada semana, segundo o costume profético (Ez 4.6). A razão é múltipla: (1) 70 sema­ nas de dias seriam restritas demais e não completariam um ano e meio, o que se adequaria pouco a uma profecia tão eminente, para não falar de seu cumpri­ mento; (2) nada aconteceu dentro daquele espaço de tempo sobre o qual o anjo predisse, nem poderia Jerusalém ter sido construída em sete semanas (o que levaria muito mais anos); (3) o estilo aqui é profético (Ez 4.3-6; Ap 12.6; 13.5). Em outro lugar a expressão também é tomada no mesmo sentido (Gn 29.27) e onde se fala em semanas em termos de “dias”, a palavra “dias” é acrescentada (Dn 10.2; Ez 45.23). Aqui, no entanto, não se faz menção de anos, porque os anjos falam obscuramente com o propósito de preservar o costume profético. Os judeus, sem qualquer propósito (pressionados pela força da verdade) têm recorrido aqui a “semanas de dez anos” ou “jubileus”. (1) Por nenhum autor aprovado (nem em toda a Escritura) é feita menção de tais semanas, mas so­ mente ou de dias ou de anos; daí transparecer que o que fazem é gratuitamente forjado. (2) O objetivo do Espírito Santo, aqui, é claramente contrário a tal idéia (seu propósito é consolar Daniel e o povo, esmagados pelo peso da triste­ za, com base na próxima chegada do Messias, depois de 70 semanas); mas quão frígida seria tal consolação - que ele só viria depois de três mil e quinhentos anos! (3) Daniel põe o advento do Messias antes da destruição da cidade e do templo; sim, ele anexa aquela calamidade como consequência da morte do Messias, como o castigo mais merecido por tão grande crime; mas esses inven­ tores de fábulas põem o advento do Messias três mil anos depois da destruição da cidade. XXI. Portanto, o propósito divino era consolar o povo em seu cativeiro extremamente severo e confirmar sua fé; não só designando seu fim, mas tam­ bém prometendo uma redenção muito mais excelente, a qual se revelaria depois do intervalo de um tempo mais longo, não de 70 anos, mas de 70 semanas de anos, para que assim a graça de Deus fosse comparada com seu juízo, e as 70 semanas de anos com os 70 anos, durante os quais os judeus foram punidos. E assim o anjo responde o discurso de Daniel (que falou do fim dos 70 anos): “Tu falaste do fim do cativeiro e do fim dos setenta anos. Não obstante, eu te anun­ cio não só aquele livramento temporal que está próximo, mas prometo um pe­ ríodo muito mais excelente de setenta semanas de anos para que assim a miseri­ córdia de Deus suplante sete vezes mais seu juízo e a magnitude da graça absor-

va a magnitude da calamidade”. Porque, após o cumprimento daqueles próxi­ mos setenta anos. Deus predeterminou setenta semanas, não de dias, mas de anos (ou seja, quatrocentos e noventa anos) para a duração do povo e da cidade. Dentro dessas semanas, o Messias (Senhor) virá, o qual expiará e abolirá o pecado, estabelecerá a justiça evangélica (que durará para sempre), cumprirá e concluirá as profecias, selará a visão e consagrará para si o Santo dos Santos pela unção do Espírito Santo (o qual ele receberá sem medida [ametros] para ser o rei eterno e a cabeça de sua igreja. XXII. Terceiro, concernente ao princípio e ao fim das semanas, os intérpre­ tes se digladiam entre si com grande zelo. Não é fácil a conciliação. Mas não é necessário que nos importunemos na tentativa de solucionar estas dificuldades tão sérias. Independentemente disto, o argumento permanece sempre invencível contra os judeus. Pois, seja de que ponto for seu ponto de partida - se do primei­ ro ano de Ciro, no qual se permitiu aos judeus regressarem e construírem sua cidade (como mantêm Beroaldus e Calvino com base em Esdras 1.1); ou do segundo ano de Dario Nothus, com base em Esdras 6 (como Scaliger, Junius, Calvisius); ou do sétimo de Artaxerxes Longimano, de quem fala Esdras 7.1,13,14 (como afirmam Capellus, Bullinger, Helvicus, Tomiellus e outros); ou do vigé­ simo, com base em Neemias 2.1 (conforme Julius Africanus, Torniellus, Ussher); ou de algum outro ponto (pois nem mesmo agora tomamos esta contro­ vérsia como nossa, e deixamos os judeus livres para que sigam qualquer opi­ nião que prefiram) - seja qual for o início que se tome destas semanas, susten­ tamos que é mais claro que o sol do meio-dia que elas se concretizaram há muito tempo. Tampouco o intervalo que há é de alguns anos ou de um século, mas de muitos séculos. Portanto, uma vez removida do cerne de nossa controvérsia a questão cronológica, isto deve ser retido como certo e indubitável - que se deve estabelecer o início na liberdade de regressar e edificar a cidade, proclamada ao povo pelos editos dos reis da Pérsia; e o fim, na destruição da cidade e na desolação final do povo. Dentro dessas fronteiras, todas as coisas aqui preditas necessariamente aconteceram, tanto as relativas ao advento do Messias, como a restauração e queda final da cidade (o que por si só brada que já ocorreu há muito tempo). XXIII. Não impropriamente pensam alguns que o início e o fim dessas se­ manas não devem restringir-se aqui a um certo ponto ou artigo de tempo, mas que deve ser entendido amplamente (en platei) e com uma certa latitude, de modo que quatro editos que foram promulgados em sucessão para levar o povo de volta do cativeiro à restauração da cidade podem ser sintetizados e contados como um só (visto que os últimos constituem, por assim dizer, interpretações e, como comumente se afirma, ampliações do primeiro; como nossa era é igual­ mente conhecida por diferentes editos feitos por causa da religião). Portanto, não devemos torturar nossa mente com o inútil exercício de buscar algum ponto indivisível no qual essas coisas se cumpriram, visto que Deus não quer que nos

apeguemos a um ponto, mas que consideremos a importância e a substância dos eventos propriamente ditos. Portanto, visto que ele quer que sejam com­ preendidas aqui as várias coisas que têm certa relação mútua para que sejam, por assim dizer, observadas de relance por nossa mente (quais sejam, o adven­ to e a morte do Messias, o cerco e a derrocada da cidade, a destruição do templo e a supressão do culto judaico, a angústia e a desolação do povo), elas necessariamente demandam certa latitude de tempo dentro da qual poderiam cumprir-se. De modo que todas as coisas que aqui são preditas sobre o livra­ mento dos cativos, a restauração da cidade e a ruína e destruição da mesma devem ter ocorrido dentro do limite dessas setenta semanas. XXIV. Os judeus (que se contorcem miseravelmente para evitar este argu­ mento) recorrem à distinção entre uma predição absoluta e uma hipotética, afir­ mando que a predição de Daniel concernente ao advento do Messias foi hipoté­ tica, desde que o povo não retardasse, com seus pecados, a vinda dele, e que em virtude dos pecados do povo ele não veio no tempo anunciado por Daniel. Mas (1) isso não passa de mero pressuposto, nem há a mais leve sombra de indicação de qualquer condição no oráculo, ou em Daniel, ou em outras partes. (2) O advento do Messias irrompeu da mera graça de Deus, e seu desígnio primário era remover os pecados do povo. Daí, nada da parte do homem poderia delongálo, muito menos o pecado, visto que o advento foi destinado por Deus especial­ mente para a remoção e destruição do pecado. (3) Se algum pecado tivesse retardado o advento do Messias, o mesmo teria sido mais hediondo do que quais­ quer outros previamente cometidos. Não lemos, porém, sobre nenhuma outra transgressão peculiar, cometida por eles, que excedesse sua perversidade anteri­ or, caso se excetue a culpa da crucifixão do Messias, a qual eles dizem que não constituiu pecado. Sob o primeiro templo, porém, a idolatria, o homicídio, o adultério e todos os tipos de pecados os mais hediondos grassavam entre eles (segundo o testemunho dos profetas), a despeito dos quais ele enuncia a pro­ messa do advento do Messias. Depois do tempo fixado para o advento do Mes­ sias, a idolatria cessou entre eles, bem como outros crimes (exceto a increduli­ dade obstinada, a qual não reconhecem). Ninguém lhes imputa nada além dos pecados supramencionados. Portanto, não se pode extrair daqui a tal delonga. XXV. Tampouco pode ter lugar aqui a astúcia dos judeus - que realmente tinham de sofrer, em virtude de seus pecados, um severo e prolongado cativeiro, mas que por fim ele chegaria ao término, não diversamente do cativeiro babiló­ nico. Pois, que comparação pode haver entre o cativeiro babilónico e a atual e mui amarga dispersão dos judeus? O que tem em comum um exílio de 70 anos com o exílio de 16 séculos? No primeiro houve a esperança de restauração e uma designação do fim; aqui, não obstante, não existe tal coisa. Então o corpo da nação utilizava ainda suas próprias leis; agora vivem sob poder e leis estra­ nhos. Então as tribos eram ainda distintas e as famílias sacerdotais e reais podi­ am ser distinguidas; agora todas as coisas entre eles são confusas e conturba-

das, de modo que não transparece nenhuma forma de política e de igreja, mas o que se vê é um horrível exemplo da maldição divina nestes restos que peram­ bulam miseravelmente. A terceira XXVI. A terceira demonstração é extraída da glória do sedem onstração gundo templo, durante cuja existência o Messias viria. Pois com base na ’ esta era a Prerrogativa do segundo templo - que o Messias glória do Princ’Pe da Paz) o dignificaria com sua presença. Visto, segundo tem plo po‘s’que 0 seound° templo tem permanecido por longo tem­ * po destruído, ele fornece uma prova certíssim Messias já veio há muito tempo. Essa marca é deduzida do duplo oráculo de Ageu e Malaquias, onde ela é claramente apresentada: “Ainda uma vez, dentro em pouco, farei abalar o céu, a terra, o mar e a terra seca; farei abalar as nações, e as coisas preciosas de todas as nações virão,3e encherei de glória esta casa, diz o S e n h o r dos Exércitos” (Ag 2.6,7); e “A glória desta última casa será maior do que a da primeira” (v. 9). Malaquias 3.1o confirma: “Eis que eu envio meu mensageiro, que preparará o caminho diante de mim; de repente, virá a seu templo o S e n h o r , a quem vós buscais, o Anjo da Aliança, a quem vós desejais; cis que ele vem, diz o S e n h o r dos Exércitos”. Daí insistirmos nisto - o segundo templo não seria destruído enquanto o Messias não viesse; portanto, é um sinal indubitável de que o Messias já veio, quando o templo foi destruído. Pois, na primeira passagem lemos que ele viria pouco depois que o templo, que fora iniciado no tempo em que Ageu profetizava, tivesse sido construído, e então o templo se encheria de uma glória ainda maior que a do primeiro. Na segunda passagem lemos que ele viria a seu templo de repente - àquele que foi erigido quando Malaquias profetizava. Mas como é possível dizer que ele viria imedia­ tamente, se não deveria vir exceto depois de alguns milhares de anos? XXVII. Além do mais, é evidente que o Messias é referido em ambas as passagens. (1) Em Malaquias, porque se trata daquele que seria enviado e viria a seu templo como Senhor e Anjo da aliança; que teria Elias como seu precur­ sor; e que era buscado e esperado. Ora, a quem, senão ao Messias, é possível pertencer tais coisas? Nem mesmo os judeus mais eruditos põem cm dúvida tal coisa (como o Rabbi David Kimchi, Aben Ezra e Maimonides, que o atribuem ao Messias; cf. Twelve Prophets [org. A. Cohcn, 1948], p. 349 [sobre Ml 3.1] e M aim onides' Mislmeh Torah [org. P. Bimbaum, 1985], p. 328). (2) Assim em Ageu, o qual faz menção do abalo do céu, da terra e de todas as nações, que verão seu desejo satisfeito, o que não se refere a nenhum outro (quer pela ex­ pressão “o desejo das nações” se designe “o desejado das nações”, i.e., tantos quantos foram escolhidos dentre as nações e chamados para Cristo, responden­ do ao oráculo de Jacó, o qual diz que a reunião dos povos seria para ele; ou, o que parece mais adequado, subentende-se ali o próprio Messias, o qual, muito 3. A Vulgata e algum as traduções, entre as quais a “NIV” (inglesa), dizem: “o desejado de todas as nações” . A NVI insere essa tradução na m argem (nota de rodapé). [N. do E.]

mais verazmente que em Daniel, é um “homem de desejos”, “totalmente [epipothêtos] desejável”, por quem os crentes ansiavam com ardentes anelos). Além disso, o que ele adiciona acerca da superior glória do segundo templo se encaixa aqui, porque isto não poderia vir de nenhuma outra fonte senão da presença do Senhor da casa, o qual traria paz - não física (da qual não lemos que os judeus desfrutassem muito sob o segundo templo, como eles mesmos confessam), mas espiritual e celestial (o que o Messias, o Príncipe da Paz, traria e os anjos proclamariam, Lc 2.14). XXVIII. Em vão os judeus querem que a glória superior desta segunda casa tenha a ver com as coisas externas que a tomaram conspícua; ou com a duração, porque a segunda ficaria de pé 420 anos (i.e., dez anos mais que a primeira); ou com as dádivas e os sacrifícios esplêndidos com os quais Dario, Artaxerxes e outros reis contribuíram para a edificação do templo; ou com as adições de Herodes, o qual tornou o templo ainda mais glorioso (como afirma Josefo, AJ 15.380-387 [Loeb, 8:184-189]); ou, pelo menos, o adornou, segundo Hegesippus. Digo e repito que isso é aduzido em vão. (1) Tais coisas externas e insignificantes não compõem a glória da casa de Deus, nem Deus falaria tão augusta e magnificentemente de coisas tão pequenas, ao ponto de mover céu e terra e fazer prodígios. (2) Deus diz expressamente que não se propunha a pôr essa glória nestas coisas perecíveis: “Minha é a prata e meu, o ouro” - como se dissesse: se eu quisesse, poderia adornar este templo com ouro e prata, como adornei o templo de Salomão; pois todo o ouro que existe é meu, como lemos em salmo 50.10-12. Eu, porém, o adornarei com algo muito mais precioso (ou seja, com a presença de meu Filho, que é a glória de Israel). (3) Sejam quais forem os acréscimos ou os ornamentos que Herodes fez no templo, isso nunca se igualaria (muito menos excederia) à glória do de Salomão, o qual se tomou conspícuo muito acima dos demais por estes ornamentos especiais do templo (o que os judeus confessam faltava no segundo): a arca da aliança, o fogo perpé­ tuo, o óleo sacro, o espírito de profecia e a Sheckinah, isto é, a presença de Deus no propiciatório. XXIX. O que acrescentam acerca da edificação de um terceiro templo ao qual pertencem essas coisas é igualmente espúrio. Trata-se daquele templo que os judeus viam, o qual é chamado “esta casa” (hbyth hzh); do contrário, Zorobabel e seus companheiros que edificavam este templo não teriam extraído daí nenhuma consolação, aos quais, não obstante, o Senhor deseja confortar por meio deste argumento - que esta casa se encheria de maior glória. Se lemos que Herodes restaurou aquela casa, nem por isso se deve considerar ter ele constru­ ído uma casa inteiramente nova. Pois ela é reputada como sendo a mesma que o templo de Zorobabel. Por último, inutilmente se inventa que se edificará um templo inteiramente novo, visto que ele foi destruído de tal forma que não dei­ xou nenhuma esperança de restauração. Os que tentaram tal coisa, sob Adriano ou Juliano, fracassaram em sua tentativa, proibidos pelo céu.

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XXX. A quarta demonstraçao e extraída dos si­ . , . . ... nais que acompanhariam o advento do Messias: . .. . . .... . com respeito aos mdeus, a queda da republica e da . política mdaicas, bem como a reieiçao do povo; J . , c , Jc , - . com respeito ao mundo, o fim dos falsos oráculos; ' com respeito à igreja, a vocação dos gentios. Visto que todos essas coisas há muito já se cumpriram, é necessariamente fato que o Messias também já veio. (1) Com respeito aos judeus, o sinal era a queda da república. Pois já que o Messias estava para nascer dos judeus, a república não podia ser destruída antes de seu advento. E evidente que o Messias tinha de vir daquele povo, distinto em suas tribos e famílias; daquela terra e daquele templo que era esperado no culto diário. Ora, visto que a república foi desfeita há muitas eras e o povo se dispersou miseravelmente por todas as partes do mundo -expulso de sua pátria e terra, todo o governo foi subvertido, a cidade lançada ao chão, os sacrifícios abolidos, o templo destruído, todas as tribos misturadas sem qualquer esperança de retomo, não só por setenta anos (que foi o extenso cativeiro babilónico), nem por duzentos (durante os quais durou sua escravidão egípcia), porém mais de dezesseis séculos —o que mais todas essas coisas bra­ dam, senão que o Messias já veio e que ele não é mais esperado? Se a nação miserável as considerasse mais atentamente, seu povo perceberia em si mesmo e em sua própria condição o suficiente para forçá-lo a reconhecer seu erro e sua perfídia. Pois, que outra causa se poderia assinalar? Por que será que os judeus, ao longo de tantos séculos, foram assim negligenciados, experimentaram tão dura sorte, foram dispersos tão amplamente como exilados, vieram a ser objeto de chacota tão lamentável de toda a raça humana? Pois avidamente esperam seu Messias e se exaurem dia a dia com votos e orações; e não estão tão corrompi­ dos pelo culto idolátrico ou outros pecados dos gentios como seus ancestrais. Por certo, deve haver, necessariamente, outra causa que faz com que esse povo (outrora amado de Deus) peregrine tão miseravelmente. A causa não poderia ser outra senão sua rejeição do verdadeiro Messias, bem como a horrível mortanda­ de e apostasia da verdadeira fé, em que perseveram até os dias atuais. Tampou­ co aqui se deve dar ouvidos aos judeus que comumente objetam que este adven­ to foi deferido em virtude de seus próprios pecados, bem como dos pecados de seus pais, os quais cometeram sob ambas as casas. Visto que aqui se trata, não de um ou outro oráculo, mas do constante teor dos profetas e das profecias, nenhuma certeza restaria, se isso não fosse propiciado neste capitulo (do qual todo o resto depende). Além disso, se outrora ele prometeu algo a seu povo, não lemos se isso fosse em algum tempo negado em virtude de seus pecados (como é evidente à luz do livramento do Egito e Babilônia, o que Deus cumpriu exata­ mente no tempo designado, embora o povo não estivesse menos sobrecarregado de pecado do que agora). Por que, pois, não dizer que a mesma coisa sucedeu nesta notável promessa, na qual estava contido o bem de toda a nação, enquanto que, não obstante, o cumprimento de uma promessa tão extraordinária seria

A quarta dem onstraçao, . . . com base nos sinais: ... (I) com respeito aos . . . . ju d eu s, a queda da

agora deferido para após dezesseis séculos e não resta nenhuma esperança de seu cumprimento? Terceiro, se em virtude dos pecados do povo se deferisse o advento do Messias, então ele nunca viria, já que nunca se viram livres de toda perversidade. Mas, longe de seus pecados impedirem ou retardarem o advento, devem, antes, acelerá-lo, visto que ele vem para sua remoção. XXXI- Com respeito ao mundo, a destruição dos falsos oráculos e da idolatria pagã (que os profetas prediziam com frequência que seriam destruídos no tempo do Messias, Is 2.18,20; Zc 13.2). A história profana nos informa que os ’ oráculos cessaram no advento de Cristo. Daí, no tempo de Tibério, surgiram dúvidas quanto a por que os oráculos emudeceram, por que os demônios não agiam como antes. Tão súbita e espantosa foi aquela mudança, que pareceu formidável e estupendo aos próprios adversários da causa cristã. Porfírio se queixa de que os deuses irados não emitiram resposta depois que Jesus veio (cf. Eusébio, Preparation fo r the G ospel 179d [trad. E. H. Gifford, 1903], 1:197). Cícero testifica que em seu tempo os oráculos haviam cessado e menciona uma causa absurda como explicação (a saber, a época do lugar de onde surgiam as exalações sob cuja influência a sacerdotisa Pítia4 proferiam seus oráculos, D eD ivin itate 2.57.117 [Loeb, 20:502,503]). Plutarco, que viveu no tempo de Trajano (i.e., cem anos depois de Cristo), publicou um tratado sobre a cessação dos oráculos. Ele relata que Epitherses, navegando próximo às ilhas Echinadian, ouviu uma voz anunciar-o Grande Pã está morto (a saber, no tempo de Tibério, quando Cristo foi crucificado; cf. “Obsolescence of Oracles”, M oralia 419c [Loeb, 5:401]). E sob Augusto, a alguém que consultara o orácu­ lo de Apollo quanto a quem reinaria depois dele, foi dito: “Um menino hebreu, governando sobre os deuses ditosos, ordena-me que eu saia deste templo e que vá imediatamente para o Hades”. 2 Com respeito ào m undo a destruição da idolatria

XXXII. As confissões dos próprios judeus fornecem o quinto argumento. Entre eles (1) é celebrada a tradição da casa de com base nas ’ Eli ^para iss0, ver “Sanhedrin”’ 97a> 2:657). Esta districonfissões dos ^u' os temPos mur>do em três períodos, e conclui toda sua adversários duração dentro de seis mil anos. Ela dá os últimos dois mil '' anos ao reino do Messias: dois mil anos à inanidade; dois mil anos à lei; dois mil anos ao Messias. E isso não os ajuda a replicar que o tempo do advento já passou, porém foi deferido em virtude dos pecados do povo. Visto que a promessa não era condicional (como já se disse), mas absoluta, longe de a mesma ser deferida em virtude dos pecados do povo, ao contrário sua remoção a teria acelerado. Tampouco os ajuda replicar que sua vinda tinha de ser nos anos dois mil (dischilian ), porém se diz se sua vinda seria no começo ou no fim Quinta dem onstração

4. F.m Delfos, antiga cidade grega, a serpente Píton proferia oráculos. Morta por Apoio (segundo lenda), este sc redimiu criando os “jogos píticos". Em lugar da serpente, uma sacerdotisa. Pítia, pronunciava os orácu­ los. Daí a palavra “pitonisa” . [N. do E.]

deles. Pois lhe são designados dois mil anos da mesma forma que os outros dois mil anos são designados à inanidade e à lei (i.e., que a duração da lei teria seu início depois da inanidade, devendo perfazer dois mil anos). E assim o advento do Messias deveria começar no fim dos dois mil anos da lei a fim de continuar o tempo dele ao longo dos outros dois mil anos. (2) Prevaleceu entre os judeus dos dias de Cristo a opinião de que o Messias estava para chegar (para quem o pensamento dos crentes se dirigia). Daí lermos que Simeão e Ana esperavam a consolação de Israel (Lc 2.25,38), e a mulher samaritana testifica de sua convicção de que o Messias viria brevemente (Jo 4.25); também vários falsos cristos surgiram naquele tempo. Além disso, temos o registro de predi­ ções pagãs, pelas quais os próprios gentios se agitavam. Aqui se encaixam estas declarações de Josefo, que diz: “Então se cumpriu o oráculo (chrêsmon ) concernente a um Rei que estava para surgir da terra deles e governar o mun­ do” (JW 6.312 [Loeb, 3:466,467]); e de Suetônio: “Ganhou força em todo o oriente a antiga e constante opinião de que as pessoas daquele tempo, oriundas da Judéia, estavam destinadas a possuir o poder soberano” (Lives o fth e Cae­ sars: The D eified Vespasian 8.4.5 [Loeb, 2:288,289]). Que isto deveras não dizia respeito a Vespasiano (dissesse Suetônio o que dissesse), mas a Cristo, que nasceu e sofreu pouco antes do tempo de Vespasiano, o fato em si o decla­ ra. Todo aquele que cuidadosamente considerar todos os prodígios que ocorre­ ram por volta da data em que Cristo nasceu (relatados por Orosius e outros) poderá descobrir facilmente que a natureza estava então com dores de parto quanto a um rei que estava para vir do oriente, a quem quantos quisessem ser salvos deveriam submeter-se (Seven Books Against the Pagans 7.1-4 [FC 50:283-292]). Quem porventura quiser mais, poderá consultar Raimundi, que coligiu os testemunhos dos judeus sobre este tema (Pugio Fidei 2.10 [1687/ 1967], pp. 394-403). ' r . . XXXIII. Elias, que devia preceder o Messias, não é literalmen­ t o a tes de ’ ^r v lana ão te ° tesb 'ta’ mas J°ao Batista, analógica e figurativamente (em ' " virtude da semelhança entre ele e Elias, em zelo e fervor, por­ quanto tinha que vir no espírito e poder de Elias [Lc 1.17; Mt 11.14], como o Messias é com frequência chamado Davi, Jr 30.9; Os 3.5). XXXIV. O “fim dos dias” ou “os últimos dias” (Is 2.2) durante os quais o Messias havia de vir não denotam o fim do mundo, mas a plenitude dos tempos (plêrõma kairõri) ou a última dispensação (após a qual não se deve esperar nenhuma outra, mas somente a eternidade). Por isso é chamado o fim dos dias, não absolutamente, mas comparativamente em relação aos tempos precedentes, porque devem conduzir o Antigo Testamento a um fim. Até aquele tempo, todas as coisas ficaram, por assim dizer, suspensas; e ao povo sempre se ordenava que olhasse para o Messias e que mantivesse viva sua esperança (não repousan­ do em sombras então presentes). Mas, com o advento de Cristo, é dada uma plenitude de dias em que a igreja seria restaurada à sua integridade.

XXXV. Quando lemos “o monte do S k n h o r será exaltado acima dos outros montes” (Is 2.2), no tempo do Messias, este oráculo não deve ser entendido própria e literalmente (o que não se pode dizer sem proferir um absurdo), mas misticamente, acerca da exaltação da igreja (que é constantemente designada pelo Monte do Senhor ou Monte Sião, visto que nele refulge a majestade de Deus, que quis estabelecer seu trono ali). Daí o som do evangelho ser ouvido pelo mundo (o qual nos arrebataria até o céu) e um estandarte ser hasteado para todas as nações. Assim em Bereschit Rabba: “O grande monte, isto é, o Messi­ as”. Assim também Abcn Ezra: “Aquele monte, o Messias, haverá de estar exal­ tado gloriosamente no meio das nações” (Commentary o f Ilm Ezra on Isaiah [trad. M. Friedlander, 1873], 1:14). O que se acrescenta acerca da confluência de todas as nações para ele (v. 3) não prova que haveria somente uma religião no mundo nos dias de Cristo. Antes, o significado é que haveria uma igreja univer­ sal a ser congregada indiscriminadamente dentre todos os povos, professando uma só religião e uma só fé em Cristo (o que de fato se cumpriria sob o NT). XXXVI. A paz que o Messias haveria de trazer não é uma paz terrena e física (o que Cristo ensina francamente que os seus seguidores não deveriam esperar, Lc 12.51; Jo 14.27), mas uma paz espiritual, a qual Cristo comprou para nós por meio de sua morte e foi proclamada por meio do evangelho. E se lemos: “O lobo habitará com o cordeiro” (Is 11.6), isto deve ser entendido figu­ radamente com relação à vocação c conversão dos gentios, por cujas nações Cristo fora hostilizado antes (como por animais selvagens), c então seriam con­ tados entre as ovelhas de Cristo; e homens brutais e cruéis (como feras) seriam domados e pacificados ao ponto de nutrir comunhão mútua e de viver de tal modo que aqueles (a quem agitava o desejo de fazer mal), então competiriam em aplicar-se aos deveres recíprocos, devotando sua atenção ao proveito comum (designado pela conversão de espadas e lanças em arados e relhas, instrumentos agrícolas empregados no tempo de paz para o benefício do homem, ls 2.4). De fato isto não escapou a Maimonides, que ensina: “Estas e outras coisas, escritas acerca de coisas referentes ao Messias, são alegorias” (M aim onides' Mishneh Torah [org. P. Bimbaum, 1985], p. 328, sobre 2Rs 12). XXXVII. Se “a luz do sol será sete vezes maior” no tempo do Messias, como também “a luz da lua será como a luz do sol” (Is 30.26), isto não pode ser entendido literalmente. Além do fato de que ninguém poderia suportara clarida­ de do sol, assim não haveria noite em virtude do brilho da lua. () Senhor faz seu sol brilhar sobre os bons e os maus; no entanto, aqui se discute a felicidade que não pode ser comum aos perversos. Mas os referidos termos devem ser explica­ dos figuradamente, seja historicamente, em relação à grandeza da alegria que a igreja judaica (libertada do cativeiro babilónico) experimentaria, ou mistica­ mente, em relação à grandeza da glória, do conhecimento e do contentamento que o Messias (que havia de vir para curar as feridas da igreja) lhe traria, quando as trevosas sombras da lei se dissipariam e a luz do evangelho brilharia, com muito mais fulgor que a pálida luz do Antigo Testamento.

XXXVIII. Ezequiel 41, e o capítulo seguinte, não significam que o templo em Jerusalém seria restaurado novamente, mas o templo místico da igreja pre­ figurado sob o símbolo do antigo Templo de Salomão. Não se deve buscar o cumprimento deste na Jerusalém carnal e terrena, mas na espiritual e celestial; a saber, naquela que João descreve com palavras extraídas deste esquema de Eze­ quiel (Ap 21.22) - tendo início nesta vida deveras pelo templo da graça, e sendo concluído em outra pelo templo de glória no céu. XXXIX. O que lemos, “Nos dias do Messias Judá será salvo e Israel habi­ tará em segurança” (Jr 23.6), não significa Israel segundo a carne, do qual só um remanescente seria salvo (como os próprios judeus reconhecem com base em Jr 3.14 e ls 8.14; cf. “Sanhedrin”, 111a, BT 2:762). Antes, se refere ao Israel segundo o espírito, unicamente ao qual as promessas foram feitas (Rm 9.4), sob o qual se tem em vista toda a igreja dos eleitos e crentes. XL. O advento do Messias não pode ser posto em dúvida com base no fato de que Gogue e Magogue (aos quais ele se sujeitaria) não tinham ainda entrado em cena. Não passa de mera pressuposição que o Messias haveria de vencê-los. O que lemos em Ezequiel 38.2ss. acerca de Gogue e Magogue é falsamente interpretado com este propósito. Pois é evidente que o Messias não é menciona­ do ali, e é evidente que isto é uma referência aos opressores cruéis da igreja judaica depois do cativeiro babilónico (tais como os reis da Síria e o povo da Ásia Menor, assim chamados, ou derivando de Gyges, rei dos lídios, ou dos citas e tártaros, assim chamados [Gn 10.2], que antigamente ocuparam a Ásia Menor e a Síria). Daí na Ásia, Hierápolis, era chamada Magogue (segundo Plínio, Natural H istory 5.19* [Loeb, 2:282,283]), e ficava não longe do Eufrates; e, na Síria, Citópolis, ao oriente do Lago de Tiberíades, antigamente se chamava Bethsan. Eusébio menciona isto: “Os citas invadiram a Palestina e ocuparam Baisan” (i.e., Bethsan), “à qual deram seu próprio nome, Citópolis” (Eusebi Chronicorum Canonum [org. A. Schoene, 1967], 2:88). S eg u n d a P ergu nta Jesus de N azaré é o verdadeiro Messias? A firm am os isso contra osjudeus.

Após Provar, na questão precedente, que o Messias já veio, prosseguimos, então, investigando mais sobre sua pessoa, para que possamos saber quem ele é e demonstrar que ele não pode ser nenhum outro senão Jesus de Nazaré, o filho de Maria. Entretanto, como este é o principal fundamento de nossa religião e o fulcro de nossa fé, por isso este argumento tem de ser tratado com a maior exatidão, para que fechemos a boca dos judeus (os mais amargos inimigos do nome cristão) que fazem tudo a seu alcance a fim de subverter esta verdade salvífica. II. A questão não é: o Messias já veio? Isto já ficou provado. Antes, a questão é: Jesus de Nazaré (cm quem cremos e a quem pregamos como o Mes­

E stabelecim ento da questão

sias) é aquele Messias verdadeiro e próprio, prometido por Deus, que havia de vir para a salvação dos homens? Os judeus obstinadamente o negam; nós o declaramos com firmeza e o demonstramos inquestionavelmente. ***' Primeiro, todos os critérios (krifêria) do Messias Pelos quais Deus QUIS designá-lo, no Antigo Testament0, Para confirmar nossa fé (aqueles que se referem ao scu nascimento, bem como à sua pessoa e estado; ou à doutrina e obras) lhe são pertinentes. E assim ou não pertencem a ninguém ou lhe são próprios. Quanto ao seu nascimento, se . . . . atentarmos para o tempo de sua natividade e de seu 1. A primeira r . , r . . . ‘ . precursor, ou o lugar ou a tribo e tamilia, ou a maneira, dem onstraçao, com , .. , ° r . . , . e evidente que tudo se enfeixa e tem seu cumprimento base no nascimento , . , , .... r . de Jesus e (como se Pot*e demonstrar facilmente por partes); ' ’ não quanto às particularidades em separado (via esta pela qual nada se poderia provar), mas rclacionadamente quanto a todas (o que fornece um argumento sólido). Que Jesus de N azaré é o M essias p rova-se cont base em seus critérios

*^. (1) Quanto ao tempo, o Messias tinha de nascer no tempo em clue 0 P °der régio e legislativo tinha de ser removido dos judeus após as 70 semanas de anos (i.e., após o lapso de 490 anos desde o cativeiro babilónico); também no tempo em que a casa de Davi enfrentaria o mais humilhante desprezo e, por assim dizer, o tronco seria cortado até às raízes [dela brotando um rebento] (Is 11.1). Ora, que nosso Jesus entrou em cena naquele tempo já ficou provado previamente e o fato em si o declara.

Quanto ao tem po

V■(2) Quanto ao seu precursor; o advento do Messias tinha de ser precedido por um precursor a fim de preparar-lhe o caminho em conformidade com os oráculos proféticos (Is 40.3; Ml 3.1). “Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível Dia do S e n h o r ” (Ml 4.5). Assim transparece que isso cum­ priu-se em João Batista, que era a voz do que clama no deserto, que veio adian­ te de Cristo no espírito de Elias a fim de preparar-lhe o caminho (Mt 3.3; 11.14; Lc 1.17); não só anunciando arrependimento, mas também dando um claro testemunho de Cristo e distinguindo-o quando presente com um elogio divino. Neste sentido, ele é chamado o maior de todos os profetas e o primeiro dos evangelistas (Mt 11.9,11). Uma vez cumprida sua missão, ele rendeu-se a Cristo e encerrou o Antigo Testamento (Mt 11.13). 2. Quanto ao seu precursor.

^ Quanto ao lugar, o Messias havia de nascer em Belém em conformidade com a predição de Miquéias: “E tu, Belém-Efrata, ’ pequena demais para figurar como grupo de milhares de Judá, de ti me sairá o que há de reinar em Israel, e cujas origens são desde os tempos antigos, desde os dias da eternidade” (5.2). A Paráfrase Caldaica: o Rabbi So­ lomon Rashi e Kimchi reconhecem que o texto trata do Messias, e os fariseus e escribas o confessam em sua resposta à inquirição de Herodes (Mt 2.5,6) (cf. 3 Ouanto ào lugar

Bíblia sacra polyglotta [ 1657], 3:74, sobre Mq 5.2; cf. também Johannis Buxtorf, Biblia Sacra H ebraica an d Chaldaica [1619], in loco [Mq 5.2]). Ora, todos sabem que Jesus nasceu em Belém. Para que ninguém presumisse que isso aconteceu por acaso ou segundo o propósito e acordo ou conselho delibe­ rado de José ou Maria, Deus quis introduzir o fato por sua notável providência, cumprindo sua própria predição, os pais de Jesus não só ignorando e nem pensando em tal coisa, mas desejando o contrário. Pois com nenhum outro propósito ele impeliu César Augusto (o império estando então estabelecido, desfrutando por toda parte de profunda paz e pensando [Deus] em nada menos que o cumprimento da predição pertinente ao Messias) a fazer um registro de todo o mundo judaico, senão para que este oráculo se cumprisse e assim fosse estabelecido por meio de um argumento indubitável que José pertencia à famí­ lia de Davi. Pois sua família era obscura e estava então reduzida à mais humil­ de condição de vida; ele não exibia nenhum sinal de sua descendência real. Em vão Manasseh ben Israel (afastando-se com os judeus mais modernos dos anti­ gos) afirma que “Belém é chamada o lugar natal do Messias porque ele havia de nascer de Davi, um belemita, de modo que não se demonstra a natividade real [fatual] do Messias, mas a original” (C onciliator [1972], 2:228, sobre Mq 5.2). O texto fala de um governante que nasceria em Belém, o qual não pode ser reportado ao nascimento de Davi (já ocorrido há muito tempo) sem se cometer absurdo. Nem o que se acrescenta acerca de sua origem desde os tem­ pos antigos prova isto, porque isto diz respeito à geração eterna do Messias desde o seio do Pai, pelo que ele é o Filho de Deus, ao passo que a natividade em Belém denota o nascimento temporal do ventre de sua mãe.

^ Quanto à tribo e à família, o Messias havia de nascer da tr'^ ° e ^arn'^ a de Davi, em conformidade com as predições (Gn 49.10; Is 11.1; 2Sm 7.13,14) e com a confissão da multidão (Jo 7.42). Daí ele ser frequentemente chamado pelos profetas “Davi”. Que isto se cumpriu em nosso Jesus, é evidente tanto à luz do lugar de sua natividade supramencionado (que era a casa de Davi, da qual os pais de Jesus se considerariam oriundos, comprovando assim que tiveram sua origem naquela família), como das genealogias de Cristo que temos em Ma­ teus e Lucas. Tampouco se pode objetar que a família de José não prova que Jesus nasceu da família de Davi, visto que, segundo nossa hipótese, ele não era seu pai. [Mas,] com base na lei, as esposas tinham que ser tomadas da mesma tribo e família (Nm 36.8), o que, embora não seja absolutamente universal, deve ser o caso em que as virgens tinham sucessoras quanto ao patrimônio (epiklêroi) (como Maria). Tampouco constitui obstáculo o fato de Maria ser chamada prima (syngeriês ) de Isabel (Lc 1.36), porque isto podia originar-se do fato de que ou um dos ancestrais de Maria tomara esposa da tribo de Levi, ou algum sacerdote tomara uma filha de parentes de sangue de Maria. VIII. (5) Quanto ao modo de natividade, ele nasceria de uma virgem, com

4 Quanto à tribo e à fa m ília

^asc na Pr0^ec’a Isaías: “Eis que a virgem conceberá e dará a *uz a um e seu nome será Emanuel” (Is 7.14). Isso tem ta0 8rar|de Peso> basta este fato para estabelecer-se este " ’ mistério. Mas, para que se vindique o caso contra as astúcias dos judeus, é preciso observar o escopo do profeta, que é confirmar o povo contra o temor com que se agitava em virtude de Rezin e Peca, reis da Síria e de Israel, respectivamente, que na ocasião sitiavam Jerusalém. Por essa razão, Deus ordenou ao profeta que se chegasse ao rei (juntamente com seu filho) e lhe ordenasse (descartando o temor) que descansasse sereno na preservação e livramento, de si mesmo e do povo. E para que ele fosse mais plenamente persuadido da veracidade desta promessa, o profeta lhe dá a escolha de algum sinal a ser visto no céu ou na terra. Não obstante, visto que Acaz impiamente recusou o sinal e muitos remanescentes dos crentes ainda sobreviviam, para consolação e confirmação destes (como também para condenação de Acaz), ele adiciona: Deus (não obstante a perversidade do rei) lhes dará um duplo sinal - futuro e presente: o futuro em Emanuel, que nasceria de uma virgem em seu tempo próprio (v. 14), e o presente em seu filho Sear-Jasube (v. 16), antes de cuja adolescência a destruição de ambos os reis se concretizaria. IX. E claro que a profecia não pode ser entendida de nenhum outro senão do Messias, porque (1) ela fala de um menino que seria Emanuel e Senhor da terra (v. 14; 8.8); (2) de alguém que havia de nascer de uma virgem; (3) de alguém que havia de ser por sinal inaudito e maravilhoso. Isto não se pode aplicar a Ezequias, filho de Acaz, porque ele já havia nascido, e não ainda estava por nascer. Além disso, o nascimento de Ezequias não foi de uma ‘Imh (“uma virgem”), mas da esposa de Acaz; nem é denominado miraculoso; nem lemos em parte alguma ter sido ele um sinal peculiar. Nem pode aplicar-se a Sear-Jasube, o filho do profeta; ou ao outro mencionado no capítulo 8, chama­ do Maher-Shalal-Hash-Baz. O primeiro já havia nascido, tendo sido levado por Isaías ao rei (nem seu nascimento foi miraculoso e de uma virgem, embora a imposição de seu nome fosse simbólica); o segundo é distinguido do Messias (8.8) e nasceu não de h 'Imh (“a virgem”), mas de hnhy 'h (“o profeta”). Nem se pode aplicar a qualquer outro menino não especial, porque este estilo não é comum, nem são comuns as coisas atribuídas a ele. Antes, é a promessa de um sinal extraordinário a manifestar-se não em uma mulher, mas em uma virgem. Daí se segue que este oráculo não poderia ter referência ou cumprimento em nenhum outro além de Jesus de Nazaré. X. Embora o sinal dado aqui pelo profeta só se manifestasse depois de muitos séculos, contudo poderia, não obstante, conduzir à confirmação do li­ vramento uma vez prometido. (1) Não constitui nenhum absurdo e algo incomum que coisas futuras sejam empregadas como o sinal de algo a ocorrer em um futuro próximo (como transparece de Ex 3.12; ISm 2.34; lRs 22.25,28; Jr 44.29, onde se fornecem sinais consequentes, como também antecedentes, e 5 Ouanto ao m odo de nascim ento

os eventos das profecias são expostos em sinais, Dt 18.21,22). (2) Não é incomum na Escritura, pela menção de grandes promessas, granjear fé nas promes­ sas menores, especialmente quando as maiores não permanecem firmes sem a fé nas menores (que é o caso aqui). Pois, visto que o Messias mais tarde nasce­ ria da família real de Davi, e isso também enquanto a república ainda existia, é evidente que nem aquela terra (pela qual Acaz tanto temia) podia render-se totalmente ao poder do inimigo, nem a casa de Davi ser inteiramente destruída. Daí o argumento poderia ser elaborado com base na similaridade (« sim ili) ou do menor para o maior (a minori a d majus). Deus certamente cumprirá a pro­ messa principal concernente ao Messias; portanto, muito mais ele concederá ao que é menos (a saber, o livramento dos reis). (3) E costume dos profetas confir­ mar todas as promessas especiais pela promessa geral concernente ao Messias, porque ela é o fundamento do resto, sendo que nele todas as promessas são sim e amém (2Co 1.20). (4) A promessa de livramento próximo não está só funda­ mentada no sinal futuro (i.e., o Messias, que havia de nascer de uma virgem depois de muitos anos), mas também no presente (ou seja, o filho do profeta já nascido, o qual ele levou consigo ao rei). O versículo 16 se refere propriamente a ele: “Antes que este menino” (apontando [deiktikõs] para ele) “saiba rejeitar o mal e escolher o bem” (i.e., ter atingido os anos de discrição) “a terra será desamparada” (como na verdade mal se haviam passado quatro anos antes de esses reis serem destruídos); ou no filho que havia de nascer pouco depois, de quem fala Isaías 8.3,4. XI. Ora, ainda que nunca encontremos Jesus de Nazaré sendo abordado como Emanuel, contudo não menos se pode dizer que ele se destinava a ser chamado assim. O verbo q r ' na Escritura é com frequência traduzido por “ser”; como quando se diz que “será chamado maravilhoso, o conselheiro” (Is 9.6) e “Yahweh justiça nossa” (Jr 23.5) - não tanto para notificar com que nome ele seria distinguido, como o que ele realmente seria (seja quanto à sua pessoa, Deus-homem [theanthrõpos], ou quanto ao seu ofício, o Mediador), sendo ele que haveria de reconciliar Deus conosco. Daí Crisóstomo observar com razão sobre esta passagem: “E comum a Escritura expressar as coisas que ocorrem no lugar dos nomes: eles o chamarão Emanuel; portanto, nada mais significa senão que eles verão a Deus com os homens” ( H om ilies... on Matthew 5.3 [NPNF1, 10:32; PG 57:56,57]). Se se atribui ao Emanuel certa ignorância, é de mera negação (o que poderia dar-se com Jesus, Lc 2.40); não de disposição deprava­ da (o que é pecaminoso), da qual ele estava sempre isento. O que se acrescenta acerca de manteiga e mel denota o processo de educação usual de outros, com o uso do alimento comum (que está incluído sob manteiga e mel, porque a terra de Canaã manava leite e mel). XII. Que aqui Imh denota uma “virgem”, e não qualquer mulher, é eviden­ te: (1) com base na origem da palavra da 'lm (“ocultar”), denotando o estado de uma virgem - escondido da vista e comunicação dos homens; ‘Imvmh (“oculto

de”) e não conhecido do homem (por assim dizer). Daí as virgens serem cha­ madas entre os antigos katakleistoi e apokryphoi (2 Macabeus 3.19), porque eram escondidas e mantidas em casa. (2) A autoridade dos interpretes que não pode sofrer suspeita dos judeus: os Targuns, Onkelos e Jonathan (cf. Walton, Biblia sacra Polyglotta [1657], 3:20, sobre ls 7.14), e a Septuaginta, que tra­ duz a palavra por parthenos , embora Símaco e Teodocião (favoráveis aos ju ­ deus) a traduzem por “ m ulher jo v em ” (cf. O rígenes, H e x a p la [PG 16:1653,1654], sobre Is 7.14). (3) A razão evidente o demanda, porque se trata de um sinal divino e maravilhoso, cujo nascimento não é menos maravilhoso do que o nome. Mas, que tipo de sinal seria este, tão comum, algo tão natural e costumeiro, que uma mulher conceba e dê à luz depois de manter relação sexu­ al com um homem? (4) O uso comum da palavra na Escritura, em outras seis passagens nas quais ocorre (Gn 24.43; Ct 1.3; 6.8; Êx 2.8; SI 68.25; Pv 30.19). Nesta última passagem, os judeus inutilmente afirmam que o sentido é de “pros­ tituta”, porque, depois das palavras “o caminho do homem com uma donzela b ‘Imh está oculto”, acrescenta-se imediatamente “tal é o caminho de uma mu­ lher adúltera”; o emprego do sinal de similaridade revela que se denota simila­ ridade, não identidade. O sentido é que o caminho de um homem com uma donzela é oculto (a saber, as artes pelas quais os homens se esforçam por gran­ jear as afeições das virgens, seja para o matrimônio honesto ou para a corrup­ ção). Ela pode também ser chamada virgem antecedentemente, indicando que o era antes; não consequentemente ou por informação (doxastikõs) e opinião (synchõrêtikõs ), seja porque ela é tida por virgem, ou porque desejava ser con­ siderada assim (o que não pode ser o caso aqui). XIII. Além do mais, que Maria, que deu à luz Jesus, era virgem, não só a história evangélica testifica, mas a própria reputação o declara. Pois, se isso não fosse verdade, como seria possível uma virgem expor-se a algo tão grande e tão incrível, e os apóstolos (que tão facilmente poderiam ter-se convencido de sua falsidade) mostrar-se tão ousados em declará-lo, sem que nenhum deles o negasse? Se ela realmente tivesse sido apanhada em adultério (como alguns dos judeus modernos cometem a blasfêmia de asseverar), por que ela nunca foi acusada disto pelos fariseus e escribas? Por que não foi arrastada ao tribunal segundo a lei para receber a devida punição, de modo que a fama do filho fosse destruída por parte de sua mãe? Mas ela sobreviveu a seu filho, e ninguém chegou a sondar sua vida. XIV. A segunda demonstração é extraída dos critérios de A segunda sua pessoa e de seu estado. (1) Que o Messias tinha de ser dem onstração, Deus, com toda certeza deduz-se não só das predições (as com base nas quais lhe atribuem este título), mas também das obras di­ m arcas da pessoa vinas que teria de realizar na execução da obra da reden­ e do estado do ção. E que Jesus, o filho de Maria, era, respectivamente, M essias. o Filho de Deus e Deus, prova-se indubitavelmente, seja

com base nas várias obras feitas por ele (como se provará mais adiante), seja com base no testemunho do próprio Cristo, que tão frequentemente se procla­ ma Filho de Deus. E se pessoalmente proclamou tal coisa, e sendo ela falsa, porventura se pode presumir que Deus (o zeloso vindicador de sua própria glória) permitiria que sua glória fosse atribuída a outro? Porventura um crime tão hediondo (maior não se pode conceber), não teria sido visitado por uma severa punição? Se um anjo foi tão severamente punido por afetar igualdade com Deus, o que se teria feito a este usuipador e sequestrador da própria natu­ reza da divindade? Ora, Jesus não só não foi punido por Deus, mas foi coroado com a mais sublime glória e majestade. Em um curto espaço de tempo, ele encheu o mundo inteiro com sua doutrina e erigiu um império poderosíssimo. XV. (2) O Messias é descrito como sendo investido de um ofício tríplice (para o qual ele tinha de ser ungido, Dn 9.24): o profético, em Deuteronômio 18.15; Isaías 61.1,2; o sacerdotal, em salmo 110; o régio, nos Salmos 2.6; 45.6,7 e em Zacarias 6.12,13. Ora, descobrimos que isso se cumpriu cm nosso Jesus, o qual exerceu o ofício de profeta (na proclamação do evangelho); de sacerdote (na oferta de si próprio); e de rei (no estabelecimento de um reino celestial, como se provará no lugar próprio). XVI. (3) A ele se designa um duplo estado: o primeiro, de humildade e sofrimento, no qual havia de morrer; o segundo, de exaltação e glória, no qual lhe coube ressurgir e ascender ao céu (como é evidente à luz de SI 22,110 e de Zc 9.9; ls 53). Ora, que este mesmo fato se observa em Jesus de Nazaré, perce­ be-se na história evangélica que descreve seu sofrimento e glória, o estado de esvaziamento (no qual se humilhou até a morte de cruz) e o estado de exaltação (no qual, ressuscitando dentre os mortos, granjeou um nome que está acima de todo nome, e sentou-se à destra da majestade nas alturas, Fp 2.6-9; Hb 1.3). Isto pode ser mais plenamente demonstrado à luz de todas as circunstâncias do sofrimento e glória preditos sobre o Messias no Antigo Testamento (o que descobrimos se cumpriu exatamente em Jesus sob o Novo Testamento). Terceira X VII. A terceira demonstração deriva-se da doutrina e obras dem onstração de Cristo. Visto que, com base nos oráculos proféticos, o com base na Messias haveria de proclamar um ano aceitável e introduzir doutrina de a doutrina salvífica do evangelho a fim de curar o coração Cristo e suas contrito e proclamar liberdade e redenção aos cativos, quem 0 !yras considera a doutrina anunciada por nosso Jesus porventura não percebe que ele preencheu plenamente isto em sua pes­ soa? Ele nos trouxe do céu o evangelho, o qual fulgura por toda parte com os raios mais intensos da divindade, e no qual, desvendando-nos a perfeitíssima vontade de Deus (em seus preceitos e em suas promessas), instituiu uma reli­ gião, mais pura e mais divina que a qual jamais existiu alguma. Ele bafeja por toda parte piedade e amor, e ministra para a glória de Deus e a salvação dos homens.

XVIII. Além disso, tão grandes e tantas foram suas obras, que nenhuma mais gloriosa, ou em maior número, se poderia desejar ou esperar do Messias, em conformidade com a confissão da multidão - “Quando vier o Cristo, fará, porventura, maiores sinais do que este homem tem feito?” (Jo 7.31). Daí Jesus tão frequentemente apelar para suas obras como o sinal certíssimo de sua vo­ cação (Jo 4.36; 7.37,38; 10.37; 15.24); sim, sendo arguido por João, por meio de seus discípulos, se ele era o Messias que havia de vir (ho erchomenos), ele firma a prova de quem ele é em nada mais que a multidão e a magnitude de seus milagres. Ele responde com uma obra, não com palavras; com um ato mais rápido do que com uma palavra (Mt 11.4,5), porque o Messias havia de ser um operador de prodígios (thaumatourgon ), distinguido por milagres (como ensina Isaías): “ele vem e vos salvará. Então, se abrirão os olhos dos cegos, e se desim­ pedirão os ouvidos dos surdos” (Is 35*.4,5). Pois, se a lei foi gloriosa com sinais e maravilhas, por que o evangelho não o seria (2Co 3.7,8)? E se o Messi­ as seria maravilhoso (pl ’) em sua pessoa, não o seria menos em suas obras. Ora, que Cristo se fez eminente por tais obras, os próprios judeus não podem negar. Josefo o chama “um operador de obras maravilhosas” (paradoxõn ergõn poiêíên, AJ 18.63* [Loeb, 9:48,49]). Alguns exemplos disto são relatados no Talmude. O próprio Juliano, o principal inimigo do nome cristão, não pôde negá-lo. Seus milagres não poderiam ter sido mais claros, porque não foram feitos secreta­ mente em algum canto e algum lugar retirado (o que os impostores buscam); mas aberta e publicamente, à luz do sol, nas esquinas das ruas e nos cruzamen­ tos, em todo lugar e ante os olhos dos inimigos mais acirrados. Não poderiam ser mais numerosos, porque João afirma que foram tantos que, se todos fossem escritos, nem mesmo o mundo inteiro poderia conter os livros que fossem escri­ tos (Jo 21.25). Nem maiores (com respeito à natureza), porque foram não só portentos e prodígios tremendos, que causavam terror (tais como foram os si­ nais relativos à lei), mas benefícios salvíficos dos quais os homens não só não se afastavam, mas corriam em multidões para ver e examinar. Não eram sinais comuns e maravilhosos como os que se pode operar pela arte humana ou diabó­ lica; mas grandiosos, incomuns, tais como só podiam ser realizados pelo poder divino (como ressuscitar mortos, curar cegos de nascença e outras doenças in­ curáveis [aniatõn] etc.). Com respeito ao objeto, não eram sinais particulares ou restritos a certa espécie de coisas, mas universais, testificando de seu poder e domínio sobre todas as criaturas no céu e na terra, nas águas, sobre os demô­ nios, sobre os homens, sobre as árvores etc. Com respeito ao modo, ele não tinha que despender grande esforço para realizá-los, mas os operava por meio de uma palavra ou mesmo apenas com um gesto; ora sem meios, ora fazendo uso deles (pois a maioria deles era em si mesma inútil; sim, até contrária); agora de perto, depois de longe - sim, mesmo quando ausente. XIX. Que réplica os judeus apresentavam? Que outros também operaram milagres? Porventura lemos de algum outro que operasse tantos, tão grandes e daquele modo? Ou que fossem apenas maravilhas e não milagres genuínos?

Mas, o que é um verdadeiro milagre senão o que excede aos poderes de toda a natureza finita e criada (tal como ressuscitar mortos, curar doenças incuráveis e irremediáveis, expulsar demônios etc.), o que sabemos foi feito frequente­ mente por Cristo? Que foram meras imposturas pelas quais ele enganava os homens e os fazia de tolos? No entanto, por que isto nunca lhe foi lançado em rosto pelos judeus, seus mais implacáveis inimigos, que avidamente aproveita­ vam cada oportunidade para destruí-lo? Por que não desmascararam o impos­ tor e charlatão? Ao contrário, quem mais longe andava das artes dos imposto­ res? Estes buscam lugares e refúgios ocultos e se esquivam da luz para mais facilmente ludibriar os simplórios. Cristo, porém, agia aberta e publicamente, diante de inumeráveis testemunhas, grandes e pequenas, eruditas e iletradas, de modo que não podia haver sequer a mínima suspeita de fraude. Aqueles buscam avidamente as coisas fúteis, ridículas e inúteis. Cristo, porém, nada opera senão o que é santo e benéfico. Aqueles tudo fazem pelo lucro imundo e buscam adquirir glória para si ou enganar outros. Mas, que semelhança isso tem com Cristo, que dirigia todas as coisas à salvação de seu povo, ao ponto de dispor-se a fazer-se pobre para que de sua pobreza viéssemos a ser ricos? Aqueles são escravos das paixões mais vis e servem à carne e ao Diabo. Cristo, porém, o mestre da piedade, propôs-se uma única coisa - a produção da santidade em nossas almas. Que Cristo operava esses milagres pelo poder da magia, como frequentemente lhe era lançado em rosto pelos fariseus, quando o caluniavam dizendo que ele expulsava os demônios pelo poder de Belzebu, o príncipe dos demônios? Mas, por que os judeus poderiam suspeitar de Jesus, o Nazareno, que era considerado filho de carpinteiro, mais do que de Moisés que (educado na corte do Egito) poderia ter adquirido o mais profundo conhecimento das artes mágicas? Além disso, quem poderia suspeitar, mesmo que levemente, que algum mágico ou algum demônio poderia realizar tantas obras que eram puras bênçãos outorgadas à raça humana? Quem poderia acreditar que o Diabo se dispusesse a armar Cristo para sua própria destruição e para a subversão de sua tirania? Tampouco tais coisas poderiam ter sido feitas por conluio, uma vez que amigos é que entram em conluio, e não inimigos. Ora, o Diabo não tem inimigo mais mortal do que em nosso Jesus e em sua religião (que tendiam à total des­ truição das obras do Diabo e inspiravam piedade e santidade na alma). Final­ mente, se ele era um mágico, por que nunca foi arrastado ao tribunal por ser mágico e condenado pelos senadores do Sinédrio, todos os quais a escola dos judeus assevera que eram mui hábeis em detectar as artes mágicas? Por que avidamente se buscavam contra ele crimes, quando o único crime de magia teria sido suficiente para assegurar sua condenação em conformidade com a lei (Ex 22 . 18)? XX. Mas, se as obras que Cristo realizou nos dias de sua carne o procla­ mam como o Messias, não menos eficazmente se prova essa mesma coisa por aquelas que ele realizou após sua ressurreição e ascensão ao céu, pela missão do Espírito Santo e por obra do Cristianismo. Primeiro, a ressurreição de Cristo

em si propicia um claro testemunho em favor dele, visto que nela ele foi (por assim dizer, por um solene decreto) aprovado por Deus e declarado seu Filho, crido pelos crentes e reconhecido pelos inimigos. Daí ele não evoca nenhum outro argumento mais eminente e certo de sua divindade e vocação: “Destruí este templo”, diz ele (falando do templo de seu corpo), “e cm três dias o recons­ truirei” (Jo 2.19). Para os judeus que buscavam um sinal, ele não exibiu ne­ nhum outro senão sua ressurreição sob o tipo de Jonas (Mt 12*.38-41). E de fato, a menos que Jesus fosse enviado por Deus, e a menos que fosse o ungido do Senhor (como professava ser), quem creria que Deus, o mais zeloso vindicador de sua própria glória, teria exercido seu poder em ressuscitá-lo, confirman­ do tão grande fraude e impostura, e teria coroado tão grande impiedade com tão grande recompensa? Adicione-se a isto, em segundo lugar, o maravilhoso e inau­ dito envio do Espírito Santo, que se aconteceu expressamente no tempo e no lugar previamente preditos pelo próprio Cristo, com o qual os apóstolos fica­ ram tão plenamente cheios que foram transformados em novos homens e fala­ ram coisas que não só chocaram os espectadores e ouvintes enchendo-os de admiração e espanto, mas também foram impelidos com emocionante e podero­ sa força à fé e à obediência a Cristo. Donde poderia proceder tão grande mila­ gre, senão de Deus dando seu testemunho de Cristo? Que homens de uma con­ dição humilde, vulgares e incultos (agram m atoi ), num piscar de olhos surgem transformados em homens os mais eruditos e eloquentes, familiarizados com todos os idiomas e dotados de profundo conhecimento das coisas mais grandio­ sas, os quais defendem tão intrepidamente a causa de seu mestre e com grande energia (eneigeia) e ousadia (parrêsia) de linguagem advogam veementemente a religião, não com argumentos maquinados e forjados, mas com argumentos de clara verdade e superando toda e qualquer objeção, arrebanhando multidões e massas populares (por assim dizer) para o evangelho, não obstante as ameaças, os editos, as prisões, as torturas e todo gênero de castigos severos? XXI. Entretanto, isto veio ainda mais claro mais tarde na vo­ C onfirm a-se cação dos gentios e na fundação do Cristianismo por meio do com base na mundo inteiro. Pois a vocação dos gentios foi obra peculiar do vocação dos Messias em conformidade com os oráculos proféticos (Gn gentios e na 17.5; 49.10; SI 2.8; 22.27,30; 68.31,32; 47.7-9; 110.2,3; Os fu n d a çã o do 1.10,11; J1 2.28; Is 2.2,3; 11.10; 42.1,4; 49.6; 54.1,2 e em Cristianism o. muitas outras passagens). A coisa em si exclama c os monu­ mentos das histórias testificam que isto foi feito pelo evangelho, de modo que num curto espaço de tempo ele foi difundido pelo mundo inteiro, e as nações de todos os quadrantes afluíram a Cristo, e imperadores e reis lançaram suas coroas c seus cetros a seus pés. E assim não se pode apresentar nenhuma razão por que não deveríamos crer que nosso Jesus é o verdadeiro Messias, mesmo que com base nesta única marca.

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XXII. Pois a nao ser que Jesus fosse o verdadeiro Messias e ,.,^ sua doutrina realmente divina, como poderia suceder que ele fosse recebido como o Messias e o mundo depositar fé em sua doutrina, não obstante tantos e tão grandes obstáculos (quase insuperáveis)? Como poderia isso suceder da parte do pró­ ' prio Cristo (o fundador da religião), da parte da própria dou­ trina a ser proclamada, dos próprios arautos e seu método de pregação? Pois, se Cristo mesmo foi considerado o príncipe e cabeça da religião, e ele era um homem comum na aparência (como se presumia, filho de um artesão), sem nenhuma dignidade de nome ou de posição; sim, desprezado pela classe mais alta de seu próprio povo e sobrecarregado de todo gênero de insultos e por fim feito cativo, manietado como um escravo, açoitado e obrigado a carregar sua própria cruz; acusado de traição contra Deus e os homens, pregado no madeiro maldito. Ora, quem poderia imaginar que Deus iria usar uma criatura tão co­ mum c miserável (como parecia) para a realização de obra tão imensa? Certa­ mente que isto constituiu a maior pedra de tropeço (scandalum ) para os judeus e uma loucura para os gregos, justamente o que para os chamados constituiu o mais elevado poder e sabedoria de Deus (1 Co 1.18).

ISao obstante , . os varios obstácu los • (1) da pa rte de Cristo

XXIII. A natureza da doutrina o confirma, a qual era tal que ter* a antes repelido aqueles homens, em vez de os iludir., .Não só nu nmurtftjít • • • • * . da doutrina porque ela condenava todas as demais religiões contrarias que " prevaleceram ao longo dos séculos e vieram a ser fortes pela longa prática, e demandava sua completa extirpação como fúteis, falsas, indig­ nas de Deus e hostis a ele; mas também porque ela continha preceitos mui desagradáveis e incômodos para a carne - abnegação, amor aos inimigos, tole­ rância para com os maus (inclusive do alto uma cruz sumamente opressiva) e abstinência de todos os vícios e prazeres. Ensinava mistérios absurdos e ina­ cessíveis à razão (tais como que o Deus da glória e príncipe da vida foi cruci­ ficado). Ora, se ele era Deus, o que existe de mais absurdo? Se ele era homem, o que era mais fútil? Sua doutrina prometia pouco ou nada neste mundo, po­ rém a honra do martírio e o fardo da cruz (Mt 16.24; Jo 15.18,19; At 9.16). Ora, quem se deixaria persuadir a recorrer a tais recursos? E admissível que tantas nações dessem seu consenso a preceitos tão opressivos e difíceis, em­ preender tais labores sem qualquer recompensa, destituídos de todas os encan­ tos do prazer (sim, com a perda imediata de todas as coisas que lhes eram deleitáveis), que pudessem ser impelidos a uma virtude ruinosa, a menos que fossem plenamente persuadidos da divindade daquela doutrina? Maravilha­ mo-nos ante Alexandre o Grande por conquistar o mundo com tão poucos sol­ dados; ainda mais ante Josué por capturar Jericó pelo uso de trombetas. Mas, quem não se encherá de pasmo ante Cristo que, acima de todos os demais, conquistou o mundo por meio de línguas, cujo som (embora não havendo ne­ nhuma linguagem da natureza para eles, a não ser dos céus) encheu toda a terra (Rm 10.18)? A palavra era loucura para os homens. Era terrível, e como tal 2 Com base

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teria repelido os homens. Ela tanto concilia a mente quanto atrai o coração. Não havia nela nenhuma arte de persuasão, nenhum encanto retórico e nenhu­ ma palavra atraente. No entanto, havia nela “a mais poderosa demonstração do Espírito” (apodeixis pneum atos kai dynameõs , ICo 2.4). Tampouco se deve presumir que a parte que é chamada a loucura da pregação era dissimulada e foi difundida com diferentes cores. Absolutamente não, ela foi exposta publi­ camente (como Paulo mesmo testifica e que publicamente declara que nada mais determinara conhecer entre eles senão a Jesus Cristo, e este crucificado). Ela recebia a oposição de inumeráveis inimigos, não só por pessoas de fora e estranhas, mas pelo próprio homem carnal, que não deixa por fazer para arran­ cá-la dele. E, no entanto, ela venceu todos esses obstáculos e triunfou sobre o homem e sua resistência. Cícero admira-se de que Rômulo, numa época ainda rude, tenha chegado a ser considerado um deus {The Republic 2.10 [Loeb, 16:124-127]). Mas quanto mais se deve admirar que nosso Jesus, numa época muito literária e refinada, só pela pregação da Palavra, conquistou a confiança em sua pessoa como Deus, de modo que, em virtude dessa confissão, seus discí­ pulos estavam dispostos a sofrer todo mal. Calígula, Nero, Domiciano, enquanto ainda vivos, foram adorados com honras divinas; mas quando mortos foram ex­ postos a mil insultos. Jesus, quando ainda vivia, era tido como o mais desampa­ rado e miserável dos mortais; depois de morto, ele obteve glória divina, e agora é elevado acima de todos os reis. Qual poderia ter sido a causa de tão grande mudança? Nenhuma outra além da persuasão da divindade de sua doutrina. 3 Com base XXIV. A condição dos arautos acrescenta não pouco peso a na condição esta demonstração. Eram poucos - doze em número; dentre o dos arautos Povo comum - obscuros, pescadores, coletores; aos quais nem sua família tornara ilustres, nem poder nem recursos desejá­ veis, nem favores caros, nem os sorrisos agradáveis dos grandes, nem a erudi­ ção ou a eloquência de famosos e capazes de conquistar as mentes dos mortais; eles eram deficientes em todas as coisas geralmente requeridas para a persua­ são dos homens. Quem acreditaria que pudesse suceder que por meio de tais homens fossem realizadas tão grandes coisas; e que a eles se rendessem tantas sinagogas, tantas escolas, tantas associações de filósofos, tantos gênios, tantos tribunais, tantos cetros, se aquele a quem proclamavam não fosse de fato o verdadeiro Messias? Poucos que eram, foram enviados a inumeráveis pessoas; ignorantes, aos cultos; sem recursos retóricos, aos mui eloquentes; simples, aos perspicazes; desarmados, aos armados; sem recursos, aos mui poderosos — não obstante tudo isso, eles arrastam todos após si. Que se comparem com estes todos os autores das mais celebradas e antigas seitas, os quais aplicavam todo o poder do gênio para fazer-se renomados por todo o mundo, e a quem nada faltava para a propagação de seus sistemas em todas as direções. No entanto, quem dentre todos esses arrastou após si (nem digo tantos seguido­ res), mas pelo menos a milésima parte? Assim Deus quis depositar seu tesouro em vasos de barro para que a excelência do poder fosse de Deus, não dos

homens; para que a piedade e a religião nada devessem de seu aumento ao mundo, mas para que dependessem totalmente de Deus. XXV. Finalmente, o método de pregação evidentemente prova este mesmo fato. Pois ela não era emaranhada e inusitada. , , , , adornada com ornamentos de estuo e palavras atraentes e , . , ' c ~ , composta para enganar, porem simples, sem afetaçao e igual­ mente óbvia ao iletrado e ao douto, de modo que toda e qualquer suspeita de fraude e engano estivesse ausente. Por isso, não usaram de violência para com­ pelir o dissidente, nem dc perfídia para enganar o incauto, nem de ameaças para terrificar o relutante; antes, desejavam que houvesse uma fé livre, ou nada. Queriam que ela fosse digna de Deus em Cristo para levar em triunfo, não corpos, mas almas. Se tivessem recorrido a meios forçados, se tivessem pretendido fundar a religião por meio de armas ou legiões, com sangue e mor­ tandade (como o impostor Maomé erigiu e mantém sua tirania), não pareceria espantoso se obtivessem sucesso. Mas para o inundo todo armado deixar-se subjugar por homens sem fama e fracos, destituídos de poder e autoridade, meramente pela persuasão, isso de fato prova inquestionavelmente a divinda­ de, tanto do autor como da doutrina pelos quais essa obra foi realizada. Atri­ buí-la ao Diabo, que outra coisa seria senão supor que ele queria ser o autor de sua própria destruição e conspirar para a queda de seu próprio reino? Isto ne­ nhum ser humano, em seu juízo, diria. XXVI. Se a conversão do mundo e a fundação do Cristianismo (entre tan­ tos obstáculos intervenientes) constitui uma prova inconfundível da veracida­ de do Messias, não menos claro testemunho da mesma verdade é sua conserva­ ção e propagação. Ao longo de tantos séculos ele não foi destruído; ainda que Satanás e o mundo tenham usado todo o empenho para derribá-lo desde os ali­ cerces, no entanto ele mais e mais se fortalece e aumenta, e sempre finca mais fundo suas raízes. Em contrapartida, outras religiões e sistemas (que sempre foram sustentados pela autoridade de príncipes, pela sutileza de filósofos e pela eloquência de oradores) foram abolidos final e definitivamente. Quem não con­ clui que a obra do Cristianismo não é humana, mas divina; e, assim, quem real­ mente não conclui que seu autor era o que professava ser - o Cristo do Senhor? A quarta XXVII. A quarta demonstração é deduzida de absurdos. (1) dem onstração ^esus na0 era 0 Cristo (como professava ser), seu nome e com base nos ' sua doutrina nunca poderiam ter-se erguido entre os reis e absurdos governantes, que tudo fizeram para suprimi-los, porém sua glória teria sido sepultada com os nomes de outros que fo­ ram falsos cristos; especialmente já que ela não era sustentada pelo poder e autoridade do mundo, nem pela sabedoria secular. (2) Se Jesus não era o Cris­ to, de todos quantos já viveram (peço perdão pela blasfêmia) ele teria sido o mais ignominioso, tendo ele declarado muitas vezes sobre Deus, sobre si mes­ mo e sobre nós, as maiores falsidades, e inclusive as confirmando com jura­ 4

Com base .1 j no m étodo de pregaçao.

mento - e não pode haver falsidade maior nem mais perigosa. E, no entanto, é fato reconhecido (mesmo pelos judeus, pelos próprios pagãos e por Maomé) que a mais perfeita pureza de vida, associada à honestidade de alma, fulgiu nele (o que remove inteiramente dele qualquer suspeita). (3) Se Jesus não foi enviado de Deus, este (o mais zeloso vindicador de sua própria glória) ou teria predito isto por meio de um profeta para que os homens se guardassem contra tal impostura, ou o teria confrontado pelo surgimento de profetas; ou pelas próprias coisas e pelo correr do tempo se teria cumprido o que disse Gamaliel: “Se a obra não é de Deus, ela será destruída”. Ora, no transcurso dos séculos, sua fama não só não foi extinta e destruída, mas também sua doutrina cresceu e encheu o mundo inteiro (como águas que jorram de uma fonte com correntes confluentes, que antes só atingiam os tornozelos, vão subindo até os joelhos e então cobrem o peito e a cabeça). XXVIII. Quando Cristo declara que não veio trazer paz à terra, mas espada (Mt 10.34), o significado não é que Cristo seria a causa eficiente de guerra p e r se, mas a causa acidental (em virtude da perversidade do mundo, que, não suportando o evangelho, resistiria a ele e excitaria guerra contra seus adeptos). Esta não é oposta à paz que o Messias traria ao mundo em conformidade com os oráculos proféticos (Is 2.4; 11.6,7; Mq 4.3): (1) porque a paz de Cristo não é uma paz terrena, mas mística e celestial; (2) não com o mundo do perverso e com a semente da serpente (com quem teria de haver uma guerra irreconciliável [aspondon], Gn 3.15), mas com os crentes entre si mesmos, que, pondo de lado o ódio e a inimizade, seriam reconciliados em Cristo e viriam a ser uma unidade. (3) Se guerras são vistas entre cristãos, isto não tem origem na doutrina de Cristo, mas na depra­ vação dos homens. XXIX. A destruição da idolatria (que foi predita para o tempo do Messias) não deveria ocorrer num momento, mas pouco a pouco e seguindo vários graus (o que percebemos já ter acontecido). (1) A religião de Cristo franca e ostensi­ vamente condena a idolatria de forma com extremo rigor. (2) Por meio dela, esta foi inteiramente extirpada de todas as assembléias que realmente professam a doutrina de Cristo. (3) A idolatria é removida a cada dia no mundo pela prega­ ção do evangelho, e, se entre os cristãos alguns ainda a retém (ou totalmente ou em parte), por esse mesmo fato mostram que não pertencem à igreja de Cristo, mas à do Anticristo (sendo este o maior obstáculo para a conversão dos judeus). XXX. Se João Batista enviou a Jesus [uma delegação] a inquirir: “Es tu aquele que havia de vir?” (Mt 11.2,3), ele não fez isso porque nutrisse dúvida acerca dele (visto que, de uma maneira notável, ele se convencera disto e dera testemunho expresso dele, Jo 1.29,32-34), mas para que ele confirmasse seus próprios discípulos (ainda não suficientemente persuadidos, e estando ainda fortemente apegados a seu próprio mestre, vendo-o e ouvindo-o). XXXI. Longe de ser necessário que Cristo fosse aprovado e recebido pela Fontes de explanação.

sinagoga, sua rejeição fora claramente predita: “A pedra que os construtores rejeitaram” (SI 118.22); “Quem creu em nossa pregação” (Is 53.1). “Quando o filho de Davi vier”, diz o Rabbi Judah, “os homens sábios serão raros em Israel, a sabedoria do escriba estará podre e as escolas dos teólogos serão covis de infâmia” (“Sanhedrin”, 97a, BT 2:655). XXXII. Se Jesus aboliu a lei cerimonial, não se segue que era transgressor da lei, mas seu cumpridor (teleiõíên) e consumador - pois, ao cumpri-la, ele a ab-rogou. Além do mais, tampouco ele se opôs àquela lei, porque ela não fora dada para continuar perenemente, mas até o tempo da restituição (diorthõseõs ). Nem se opôs ao conselho dc Deus, que decretara esta mudança desde a eternida­ de. Se lemos que as cerimônias e os sacrifícios ainda existiriam sob o Messias, isto deve ser entendido misticamentc, quanto à veracidade interna do evangelho e ao culto espiritual, não literalmente, quanto à figura externa (em concordância com o estilo do Espírito Santo, que num estado transformado retém o antigo nome e descreve os mistérios evangélicos por meio de termos da lei). T e r c e ir a P e r g u n t a : A N lir a necessário que

e c e s s id a d e d a

E ncarnação

o rilho de Deus fosse encarnado? Afirmamos.

*• Antes de abordarmos a questão, é preciso observar brevemente as várias palavras empregadas para designar o mistério da encarnação, tanto na Escritura, como entre os antigos. Na Escritura, ela é chamada phanerõsis en sarki (“manifestação na carne”, 1Tm 3.16); sõm atos kasartism os (“adaptação” ou “preparação de um corpo”, Hb 10.5); kenõsis (“esvaziar”) e assumir a forma de servo, Fp 2.7); epilêpsis (“revestindo-se” da semente de Abraão, Hb 2.16); epiphaneia (“aparecimento”, 2Tm 1.10).

P alavras pela s quais a encarnação é designada na Escritura.

Pel°s Pa's>®agora chamada oikonomia como distinta da theo­ logia, porque foi obra de uma dispensação maravilhosa; de­ pois enanthrõpêsis, ensõmafõsis, ensarkosparousia, mais comumente sarkõsis ou em arkãsis, uma palavra indubitavelmente tomada de João 1.14, quando lemos que o logos “se fez carne”. Aqui a palavra “carne” não é tomada estrita­ E nelos nais

"

mente por uma parte do homem, mas amplamente e em termos de sinédoque, referindo-se a toda a natureza humana, incluindo a alma com a carne. E dessa forma se insinua mais claramente a grandeza da misericórdia e do amor de Deus para com os homens, visto que Deus condescendeu em tão alto grau que não somente quis associar a si a alma (que é a parte mais nobre do homem), mas também assumiu o que é inferior e mais fraco em nós (ou seja, esta carne frágil e mortal). . II. Não obstante, como este mistério não pode ser averiDa necessidade guac]0 pCla razão e é conhecido somente pelo auxílio da da encarnação. revelação, várias questões costumam ser agitadas sobre ela.

A primeira trata de sua necessidade. Isto uma vez mais pode ser distribuído em vários tópicos: (1) teria sido necessário que o Filho de Deus se fizesse carne, mesmo que o homem não pecasse? (2) Era necessário que o Filho de Deus se fizesse carne por nossa causa, e não havia outro modo de salvação possível a Deus? (3) Era necessário que nosso próprio mediador fosse Deus-homem (iiheanthrõpon )'? Concernente a estes tópicos falaremos separadamente sob três proposições. f>r'me'ra proposição: como o Filho de Deus se encamou somente em virtude do pecado, não teria sido necessário que ele se encarnasse, se o homem não pecasse. Isto se opõe aos antigos escolásticos que temerariamente e sem a autoridade bíblica o assevera­ vam (como Alexander de Hales, Occam, Boaventura entre outros). Osiander, um luterano, no século anterior, interpolou o erro deles. Em tempos recentes, os socinianos renovaram o mesmo com nenhum outro objetivo senão buscar nele algum apoio para sua pestilentíssima heresia concernente à redenção me­ tafórica de Cristo e à satisfação imprópria.

Prim eira proposição: a encarnação não era necessária exceto p o r causa do pecado.

IV. Nossas razões são: (1) jamais se propõe outro fim para o advento de Cristo e de sua encarnação (quer no Antigo Testamento quer no Novo) senão o de salvar seu povo do pecado. Se ele é prometido, isso se deu somente depois da queda (Gn 3.15) e para esmagar a cabeça da serpente. Se ele é prefigurado, é por meio de sacrifí­ cios designados para a expiação dos pecados dos homens. Isto o anjo claramente confirma no Novo Testamento (Mt 1.21), como fazem Zacarias (Lc 1.67ss.), Simeão (Lc 2.30,34), João Batista (Jo 1.29), Cristo mesmo (Mt 9.13; 20.28), os apóstolos: Paulo (G14.4,5; lTm 1.15; Hb 2.14) e João (Uo 2.1,2; 3.8).

Prova-se: (1) com base na E scritura.

2 Com base ^ ^eu °^1C'° se 0CUPa dos pecadores. Como Profeta, em seu ofício e*e ens'na os pecadores e os chama à fé e ao arrependimento o qual só diz ’ ^ ^ como Sacerdote, ele se doa como resgate respeito aos (antilytrorí) pelos pecados ( lTm 2.6; Is 53.10; 1Jo 2.2) e ora pecadores. pelos transgressores (Is 53.12; Jo 17); como Rei, ele governa

seu povo e o defende contra o Diabo, o mundo e a carne, para que os seus não sejam arrebatados de suas mãos (Jo 10.28; Rm 8.35,38,39). Numa palavra, ele se encamou para ser Mediador. E, no entanto, não haveria nenhuma necessidade de um mediador se não houvesse nenhum pecado. 3. Com base VI. (3) A causa impulsora da missão de Cristo foram o na causa amor e a bondade de Deus para com os homens - não ínteim pulsora da gros, mas apóstatas (Jo 3.16). Este amor é muito mais form issão de temente enaltecido quando se declara que ele [Cristo] foi Cristo, que enviado unicamente para este fim - livrar-nos das cadeias era am ar os do pecado -, do que se tivesse vindo por alguma outra cauhom ens caídos. sa (Rm 5.6-8).

^ ^a'S COm ^reclu®nc'a confirmam isto: “Se a carne não necessitasse ser salva, a Palavra de Deus de modo algum nos pais. ter-se-ia feito carne” (Irineu, Against Heresies 5.14 [ANF1 1:541; PG 7:1161]); “Não havia razão para a vinda de Cristo, o Senhor, exceto para salvar pecadores, remover doenças, remover feridas; nem há razão para medicina” (Agostinho, Sermon 175, “De Vcrbis Apostoli [9]” [PL 38:945]); “Se Adão não tivesse pecado, não teria havido necessidade de nosso Redentor tomar sobre si nossa carne” (Gregório o Grande, In Librum Primum Regam 4.17 [PL 79:222]). 4 Com base

'

.



*-r*st0 ® chamado “o primogênito de toda criatura” (Cl 1.15), não como se as criaturas racionais fossem produzidas expianaçao. , , . . , _ r segundo seu modelo, mas com respeito a geraçao eterna e com respeito ao domínio (que lhe pertence nelas). Lemos que todas as coisas foram criadas nele e por causa dele como Deus, não como homem. Lemos que ele é o primeiro em todas as coisas (v. 18), em dignidade, não no tempo. E não lemos que o homem foi criado segundo a imagem de Deus porque foi formado segundo o modelo de Cristo, mas porque foi criado segundo a imagem essencial de Deus, a qual consiste em sabedoria e santidade (como ensina Paulo, Ef 4.24; Cl 3.10). IX. Uma coisa é que o casamento de Adão e Eva tenha sido um sinal e tipo do casamento de Cristo com a igreja (segundo a intenção secreta do Espírito Santo); outra é que Adão o soubesse e o estabelecesse como uma profecia de tal vínculo conjugal. O primeiro caso é admitido, não o segundo. E se o apóstolo aplica a Cristo as palavras de Adão (Ef 5.31), não se segue que foram pronun­ ciadas por Adão para tal fim, mas podem propriamente referir-se a ele só alegoricamente em virtude da semelhança (sim ilitudinem ). X. Se Cristo não devesse encamar-se ante a consideração do pecado, a igreja não existiria sem cabeça (akephalos). Ele teria sido sua cabeça (não mais que dos anjos), não com respeito à humanidade, mas por direito de divindade e de criação. XI. A demonstração de amor para com a raça humana, pela encarnação do Filho ocorrer sem relação com o pecado e com a expiação dos pecados feita por ele (encarnado), não pode ser considerada como indicando fins subordinados, visto que tal subordinação diverge da Escritura. Esta não propôs nenhum outro fim da missão de Cristo senão a salvação dos pecadores, nem é certo prolongar mais nossas inquirições, visto que a Escritura silencia. XII. Deus não subtrai da natureza humana o bem do qual ela é capaz por capacidade natural (resultante dos princípios da própria natureza), mas ele pode remover dela aquilo de que ela é capaz segundo o poder decorrente da obediên­ cia ou segundo a falta consistente em não aceitar tudo aquilo que Deus deseja. Tal é a capacidade da união hipostática na natureza humana. XIII. A bondade de Deus (na comunicação de si mesmo) poderia ser mo­ tivo suficiente para influenciá-lo para a produção das criaturas, mas não para Fontes de

, ‘

-

a encarnação do Filho de Deus (a qual se estende mais, com vistas à sua restauração). XIV Segunda proposição: foi não só oportuno, mas também necessário (sendo pressupostos o pecado e o decreto de Deus concernentes à redenção dos homens) cIue 0 FMo de Deus se fizesse carne a fim de concretizar esta °^ ra- ( 0 A questão não diz respeito a uma necessidade simples e absoluta da parte de Deus, pois clc poderia (caso o quisesse) abandonar o homem, não menos que o Diabo, à sua destruição. Antes, a questão refere-se a uma necessidade hipotética - se a vontade de salvar os homens, uma vez postulada, a encama9ao se f£Z necessária; ou se ela podia ter sido substituída por algum outro meio. (2) Além disso, a questão não diz respeito à necessidade do decreto, pois nin­ guém nega que, na suposição de Deus haver decretado isto, necessariamente isto teria sido feito. Antes, a questão diz respeito à necessidade por natureza se (uma vez o decreto sendo revogado e antecedentemente a ele) era necessá­ rio que o Filho de Deus se encarnasse a fim de nos redimir. (3) A questão não diz respeito à necessidade de adequação, porque todos confessam que este era no mais elevado grau adequado à majestade divina - para que seus preceitos não fossem violados impunemente. Antes, a questão diz respeito à necessidade de justiça - que de nenhuma outra forma a justiça de Deus poderia ter sido satisfeita e nosso livramento efetuado (o que asseveramos). XV. Estou ciente de que alguns dos antigos (aos quais muitos dos escolás­ ticos seguem aqui) eram de opinião diferente - que outras vias possíveis não faltaram a Deus. Agostinho: “Outra via possível não faltava a Deus, sob cujo poder todas as coisas jazem igualmente, mas não havia e não podia haver outra via mais adequada à cura de nossa miséria” (The Trinity 13.10 [FC 45:388]). Vários escolásticos concordam com ele aqui: Tomás de Aquino, ST, III, Q. 1*, Art. 2, pp. 2026-2028; Lombardo, Sententiarum 3, Dist. 2 (PL 192/2:759,760); Boaventura. “Liber III. Sententiarum”, Dist. 20, Q. 6 Opera Theologica Selec­ ta (1941), 3:422-424. Tampouco faltam de nosso lado homens que se inclinam a isto: Pedro Mártir, Loci Communis , Cl. 2, c. 17.19 (1583), p. 419; Tilenus, Disp. II, “De Incamatione”, Syntagmatis Tripertiti Disputationum Theologicam m (1618), pp. 398-408; Kimedoncius, O f the Redemption o f Mankind 1.5 (1598), p. 9 e, acima de outros, Twisse, que não mede esforços para provar isto a duras penas. Mas não faltaram também alguns dos pais e dos escolásticos que reconheciam tal necessidade: Atanásio, On the Incarnation o f the Word\ Ansel­ mo, Cur Deus Homo ; Ambrósio sobre Hebreus 9+. Com eles concordam mui­ tos de nossos homens (especialmente depois do surgimento de Socino) e nós também abraçamos sua opinião como sendo a mais verdadeira e mais segura.

Segunda proposição: unta ve~ sendo postulado o pecado, e o decreto de D eus concernente à salvação dos homens, fe z -s e necessário que o Filho de D eus se fize sse carne. E stabelecim ento da questão.

XVI. As razões são: (1) como Deus não pode negar sua própria justiça, ele não poderia libertar os homens sem que se fizesse antes uma satisfação. Não se podia fazer satisfação à justiça infinita exceto por algum resgate ( lytm n ) infini­ to; nem era possível encontrar esse resgate (lyíron) infinito em nenhum outro senão no Filho de Deus. Ora, que o exercício dessa justiça era necessário (não livre nem arbitrário, dependendo unicamente do beneplácito de Deus), já prova­ mos no Volume I, Tópico III (concernente a Deus), Pergunta 19. XVII. (2) Se ela pudesse ser efetuada de alguma outra maneira, não é crível que o Deus sapientíssimo e boníssimo tivesse celebrado este conselho, o qual parecia ser pouco adequado à sua sabedoria e bondade. Pois se ele pudesse livrar os homens somente por sua palavra, seria conveniente à sua sabedoria efetuar algo tão fácil valendo-se de um labor tão árduo e, por assim dizer, mo­ vendo céus e terra? Teria ele feito com tanto, o que poderia ter feito com tão pouco? E quem creria que o Pai teria desejado enviar do céu seu amantíssimo Filho (em quem está posto seu deleite [eudokia]), vestido desnecessariamente de nossa carne, e expô-lo a mil provações e por fim a uma morte cruciante por nós? De fato a sabedoria e bondade de Deus não nos permitem crer que isto lhe era indiferente, mas que só pode ter-se interposto uma necessidade indubitável e inelutável. XVIII. Não se deve presumir que neste caso queiramos limitar a onipotên­ cia de Deus ou definir o que ele pode fazer com supremo direito para com suas criaturas. Apenas mostramos, com base na Escritura, o que Deus pode ou não pode fazer em conformidade com o poder ordenado e o direito temperado pe­ las virtudes. As outras coisas pertinentes a este ponto serão discutidas mais adiante, quando tratarmos da necessidade de satisfação. X1X- Terceira proposição: a obra de redenção não Podia ter se concretizado a não ser por um Deus-homem (theanthrõpon) associando, pela encarnação, a natureza humana com a divina por um vínculo indis­ solúvel. Pois, desde que para redimir-nos se requeri­ am mui especialmente duas coisas - a aquisição da salvação e a aplicação da mesma; a sujeição à morte para satisfação e a vitória sobre a mesma para o desfruto da vida - nosso mediador deveria ser Deus-homem (theanthrõpos ) para efetuar estas coisas: o homem sofrer. Deus vencer; o homem receber a punição que merecíamos, Deus suportá-la e bebê-la até as borras; o homem nos adquirir a salvação, morrendo, Deus no-la aplicar, sobrepujando a morte; o homem tornar-se nosso por assumir a carne, Deus fazer-nos semelhantes a ele pela concessão do Espírito. Isto nenhum mero homem poderia fazer, nem so­ mente Deus. Pois Deus sozinho não poderia sujeitar-se à morte, nem o homem sozinho poderia vencê-la. Somente o homem poderia morrer pelos homens; somente Deus poderia vencer a morte. Ambas as naturezas, pois, deveriam associar-se para que em ambas, juntas, tanto a fraqueza suprema da humanida­

Terceira proposição: a obra da salvação requeria um D eushom em

de se exercesse para o sofrimento, como o poder e a majestade supremos da divindade se exercessem para a vitória. XX. (1) Cabia-lhe ser homem com respeito à justiça de Deus, a qual requeria que o pecado fosse punido na mesma natureza em que ele foi come­ tido, segundo o o rá c u lo -“A alma que pecar, essa morrerá” (Ez 18.4). Cabialhe também ser Deus, para adicionar um valor infinito aos seus sofrimentos. (2) Com respeito ao ofício de Cristo, ele tinha de exercer o ofício de Mediador a fim de reconciliar os homens com Deus. Portanto, ele tinha de estar entre ambos e, como a escada de Jacó que une céu e terra, por uma participação da natureza de ambos. Como Profeta, ele tinha, como homem, de ser tomado den­ tre seus irmãos, para se familiarizar com os homens e podermos aproximarnos dele livremente. Como Deus, porém, ele tinha de enviar o Espírito aos nossos corações e escrever a lei em nossas mentes, para que fôssemos instruí­ dos por Deus (theodidaktous). Como Sacerdote, ele tinha de ser homem, por­ que o próprio sumo sacerdote é tomado dentre os homens (Hb 5.1) como aque­ le que santifica e aqueles que são santificados são todos de um só (Hb 2.11); como Deus, porém, para reconciliar o homem com Deus, satisfazer a justiça divina, abolir o pecado e introduzir uma retidão eterna, o que nenhum mortal poderia fazer. Além disso, a vítima a ser oferecida não deveria ser angélica, porque tal vítima não poderia morrer; nem um ser irracional, mas racional e humano; sim, é mais que humano e celestial aquele que se oferece por meio do Espírito eterno e adiciona peso e mérito infinitos à veracidade de seus sofri­ mentos. Como Rei, ele tinha de assumir nossa humanidade a fim de se unir a nós; mas esta tinha de estar unida à divindade, pela qual ele exerceria domínio, não apenas sobre corpos, mas também sobre almas; não por algum tempo, mas para sempre; não sobre apenas uma nação, mas sobre o mundo inteiro. XXI. (3) Com respeito a nós, ele tinha de ser homem para que, por direito de relação e como um irmão e nosso g pudesse libertar os cativos e escravos de Satanás (Lc 1.71,74) e unir-nos (livres de nosso primeiro matrimônio sob a lei e o pacto das obras) a si no pacto da graça por um vínculo eterno e indisso­ lúvel (Rm 7.4; Ef 5.25). Também tinha de ser Deus para que, por direito de relação e domínio, pudesse redimir-nos e reivindicar-nos para si. Temos neces­ sidade de sentimento semelhante (hom oiopatheia ) no que morre e de simpatia (sympatheia) no que vive. Ele tinha de ser homem para poder suportar toda a punição que nos era devida e ter sentimentos semelhantes (homoiopathês ). Ele tinha de ser Deus para ser apto como Sacerdote misericordioso para solidari­ zar-se conosco em nossos sofrimentos e socorrer-nos quando tentados. O mal pelo qual fomos oprimidos era de tal sorte que ninguém, a não ser um homem, poderia suportá-lo, e ninguém, a não ser Deus, poderia livrar-nos dele. E o bem que deveria ser-nos conferido (ou seja, a justiça e a vida) era de tal sorte que, embora o homem devesse recebê-lo, contudo ninguém, a não ser Deus, pode­ ria pôr-nos na posse dele.

XXII. Daí que, quando a Escritura fala de Cristo, quase sempre ela associa estas duas relações (sch eseis ) e lhe atribui coisas que mostram que ele era realmente Deus-homem (theanthrõpon). Se ele é chamado a semente da mu­ lher (o que pertence ao homem), lhe é atribuído o ato de esmagar a cabeça da serpente (o que pertence a Deus). Se ele é chamado a semente de Abraão, na mesma passagem acrescenta-se que ele é a semente na qual todas as nações da terra seriam abençoadas. Se como Profeta ele tinha de ser tomado dentre seus irmãos, contudo ele era um Profeta de tal natureza que tinha de ser ouvido sob pena de morte (Dt 18.19). Ele é um menino nascido no tempo como homem, mas também um Filho que é o Pai da Eternidade como Deus (Is 9.6). O descen­ dente de Davi segundo a carne, mas também Yahweh justiça nossa, segundo o Espírito (Jr 23.6). Um filho nasceria de uma virgem, porém seu nome seria Emanuel (Is 7.14). O Anjo da Aliança enviado por Deus para a obra da salva­ ção, porém o mesmo Senhor que vem ao seu templo (Ml 3.1). Um cidadão de Belém, tendo de nascer num lugar obscuro, porém um governante cujas saídas são desde a eternidade (Mq 5.2). Um Sacerdote, porém para sempre; um Rei cujo reino não terá fim. A semente de Davi segundo a carne, porém o Filho de Deus segundo o espírito de santificação (Rm 1.3,4). Q

uarta

P ergunta

Se somente a segunda pessoa da Trindade se encarnou, e p o r quê.

1. No maravilhoso mistério da encarnação que o apóstolo merecidamente denomina “sem grande controvérsia” (lTm 3.16) [ARA: evidente; NVI: sem dúvida], entram em consideração especialmente quatro questões: (1) a pessoa que assume; (2) a natureza assumida; (3) o modo de apreensão pela união hipostática; (4) seus efeitos. Aqui discutimos a primeira. A cluestao nao ®se t°da a Trindade era ativa no mistério encarnaÇã°- Porque, visto que as obras externas estão ' divididas segundo um axioma aceito pelos teólogos, esta obra de encarnação (que é externa) não pode senão ser comum com respeito a toda a Trindade. Daí lermos que o Pai enviou o Filho (Jo 3.16) e que pelo Espírito Santo o Filho foi concebido no ventre da virgem. Sim, para esta obra demandavam-se necessariamente três pessoas. Uma, para sustentar a majestade de Deus, o autor de todas as coisas e o juiz supremo, a parte ofendida. A segunda, para agir como Mediador entre Deus e os homens, e fazer satisfação pelos ho­ mens. A terceira, para levar a bom termo a obra de salvação em nós. A primeira lemos pertencer a destinação da salvação; à segunda, sua aquisição; à terceira, sua aplicação e consumação. Portanto, a questão não é: a encarnação pertence de algum modo à Trindade santa? Antes, a questão é apenas se ela foi terminante e apropriadamente encarnada. Embora originalmente e em termos de princípios, quanto à eficiente obra de toda a Trindade, contudo não subjetiva e apropriada­ mente, quanto ao término (em cujo sentido ela pertence somente ao Filho).

E stabelecim ento da auestão

III. A questão não é se era necessário que Deus se fizesse carne (o que já ficou provado); nem se as três pessoas poderiam encarnar-se. Pois a unidade do Mediador necessariamente requeria uma unidade de pessoa. Antes, a ques­ tão é qual pessoa da Trindade tomaria isto sobre si. A primeira, a terceira, ou somente a segunda? Afirmamos esta última hipótese. IV. As razões são: (1) a Escritura atribui isto exclusivamente ao Filho, não ao Pai nem ao Espírito Santo. Lemos que somente o Logos se fez carne (Jo 1.14); o Filho de Deus, que existia na forma de Deus, tomou sobre si a forma de servo (Fp 2.6,7*; Hb 2.14,15); lemos do Filho que ele participou da carne e do sangue e que foi feito semelhante a nós em todas as coisas, com exceção do pecado. V. (2) O Pai não poderia encamar-se, pois como ele era o primeiro em ordem, não poderia ser enviado por ninguém ou agir como mediador em lugar do Filho ou do Espírito Santo. Nem era próprio que ele, por ser o Pai nas coisas divinas, se tomasse o Filho nas coisas humanas, por nascer de uma virgem. O Espírito Santo não poderia, pois que seria enviado pelo Mediador à igreja (Jo 16.7), e, sendo assim, não poderia ser enviado por si próprio, caso em que haveria dois filhos: a segunda pessoa por geração eterna, e a terceira por encarnação no tempo. VI. (3) Unicamente o Filho poderia corretamente exercer esta função: (a) que aquele que está entre o Pai e o Espírito Santo seria o Mediador entre Deus e os homens, (b) Era oportuno que aquele que era o Filho por natureza nos fizesse filhos adotivos pela graça, para que fôssemos co-herdeiros com aquele que é herdeiro de todas as coisas, (c) Aquele que criou era próprio recriar (anak tizein)', que a Palavra, pela qual todas as coisas foram feitas na primeira cria­ ção, nos reformasse em conformidade com sua imagem na segunda. A imagem de Deus, obscurecida pelo pecado e totalmente destruída, não podia ser restau­ rada em nós melhor do que por aquele que era a imagem do Deus invisível, (d) Nenhum outro era mais adequado para fazer nossa reconciliação do que aquele que era o bem-amado (agapêtos) Filho do Pai, em quem este tinha todo prazer (eudokêse, Mt 3.17). Fontes de Ainda que se possa dizer que a natureza divina foi proprievplanação amcnte encarnada no Filho, não se segue que toda a Trindade se fez carne. Lemos que a natureza divina está encarnada, não imediatamente e considerada absolutamente em si mesma, mas mediatamente na pessoa do Filho, ou sob aquela reduplicação até onde é determinada e ca­ racterizada na pessoa do Filho. E assim a encarnação não é uma obra natural, e sim pessoal, terminando na pessoa, não na natureza. Daí dizer-se com razão que toda a natureza divina de fato é encarnada, não porque ela esteja encarna­ da em todas as pessoas, mas porque nada há faltando à pessoa do Filho de Deus quanto à perfeição de sua natureza divina. Esta encarnação particular de uma pessoa sem a encarnação das demais não impede aquela relação (schesis)

entre as próprias pessoas (porque, visto que ela denota uina distinção e uma oposição quanto a gerar e ser gerado, não propicia um impedimento, mas, ao contrário, o remove), ou a relação entre a pessoa e a essência (porque, visto que ela não elimina a distinção de pessoas, nem impede uma de ser distinguida das demais, muito menos impede uma de ser encarnada sem as demais). VIII. Se a encarnação, em algumas passagens, é atribuída a Deus (como lTm 3.16; Cl 2.9), isto deve ser inferido da natureza divina não absolutamente em si mesma, mas relativa ao característico do Filho pelo qual ele se distingue do Pai e do Espírito Santo. E os pais [da igreja] mantêm isto, afirmando que a natureza divina é encarnada (ou seja, numa das hipóstases [en mia hypostaseõn] e na hipóstase da Palavra [en hypostasei logou]). E assim que João de Damas­ co explica esta frase (Exposition o f the O rthodoxFaith 3.6 [NPNF2,9:50,51 ]), como faz Lombardo (Sententiarum 3, Dist. 2 [PL 192/2:759]). IX. Embora a essência (em virtude de sua perfeita simplicidade) não possa ser dividida em partes, contudo, porque ela é de uma maneira no Pai (ou seja, não gerado [agennêtõs ]), de outra maneira no Filho (em quem ela é gerada [gennêíõs ]), de outra maneira no Espírito Santo, por isso mesmo a natureza humana podia ser assumida segundo um modo de subsistência que constituía uma pessoa da Trindade; e por conseguinte não podia ser assumida segundo as demais (que constituem as pessoas restantes), visto que esses modos diferem não só na razão (logicamente), mas também na coisa (realidade). X. Há certa diferença entre a visão intuitiva na bendita união hipostática cm Cristo. A primeira é terminada primeiro e por si só na essência divina como é comum às três pessoas, porque ela deve atingir a coisa como é cm si mesma (i.e., Deus deve ser visto e conhecido pela [união] bendita como ele é, e então, ao mesmo tempo, um e três). Mas a natureza humana não deve ser unida hipostaticamente a toda a Trindade. Era suficiente que fosse combinada com a natu­ reza divina, não em toda sua extensão e como pertencente também ao Pai e ao Espírito Santo, mas como é caracterizada e determinada na pessoa do Filho. XI. Se nossos doutores não têm admitido a fraseologia dos luteranos (os quais asseveram que a natureza divina se encarnou), não é porque neguem absoluta e simplesmente que a natureza divina se encarnou e digam que so­ mente um modo de subsistência (tropon hyparxeõs) se encarnou sem a nature­ za divina (como são injustamente ridicularizados). Mas fazem objeção a ela somente como um modo menos acurado de falar, não coerente com a Escritura nem com a veracidade da coisa (a menos que seja explicado com perícia).

Q

u in t a

P erg u nta: A N atu reza A

s s u m id a

O 1 jogos assumiu a natureza humana como a nossa em todos os aspectos (com exceção do pecado), e sua carne tomada da substância da bendita virgem, ou ela desceu do céu? A firm am os a primeira hipótese e negamos a segunda contra os anabatistas.

Varios erros \ Como a divindade de Cristo foi atacada pela fúria de concernentes a várias heresias, assim Satanás suscitou muitos inimigos conhum anidade de tra sua humanidade. Os maniqueus e os marcionitas susCristo: dos tentavam que Cristo não era um homem integralmente, mas maniqueus. apenas aparentemente (como um fantasma). E assim con­ Dos valentinianos verteram sua humanidade num espectro. Os valentinia-

" nos afirmavam que de fato ele tinha um corpo, porém este enviado do céu, não um corpo recebido da virgem. Crêem também que o corpo da virgem foi como que um canal por meio do qual o corpo de Cristo D os a olinaristas Passou- Os apolinaristas criam que de fato ele tinha car‘ ‘ ‘ ne, contudo não que ele o tenha tomado da virgem; an­ tes, na encarnação, algo da Palavra se converteu em came e a divindade vivifi­ cou a came no lugar da alma. Seguindo os passos de todos esses, os anabatistas mo­ dernos negam que Cristo tenha tomado came e sangue da substância da virgem bendita (P ro to c o l ... de Gansche Handelinge des Gespreckes te F ranckenthal ... G aspar von der Heyden, Art. 3 [1571], p. 125, e Protocol... handelinge des gesprecks tho Emdden... G Goebens, Art. 11-13 [1579], pp. 290-360). Sobre esta opinião negativa, as igrejas holandesas e ale­ mãs concordam - que Cristo não tornou came e sangue da substância de Ma­ ria; porém não concordam na afirmativa - de onde ele a recebeu. Os alemães confessam sua ignorância. Os holandeses, contudo, mais claramente profes­ sam que a came de Cristo proveio da Palavra da Vida, da semente do Pai (cuja semente é a Palavra de Deus). D os anabatistas

A questão não é se Cristo tem came e foi e pode ser chamado homem. Mas se ele foi homem como nós em todas as coisas, com a exceção do pecado. E se ele rece­ beu carne da virgem bendita e de nenhuma outra fonte. Isto, eles negam; nós o afirmamos.

E stabelecim ento da questão

As razões são; primeiro, ele é em outros lugares chamado homem e Filho do homem, o que não se poderia dizer com plena verdade se não possuísse uma natureza como a nossa (i.e., tomada dos homens). Se os anjos (que apareciam na forma humana) são às vezes chamados homens, segundo a aparência (kata doxan), porque se assemelhavam àqueles a quem apare­ ciam, não se segue que se pode dizer o mesmo de Cristo. Em parte alguma

Prova-se que Cristo é um hom em verdadeiro com o nós: (1) po rq u e ele é cham ado homem e Filho do homem.

lemos que eles foram filhos de homem, que se fizeram carne, que foram parti­ cipantes de carne e sangue. ^ Segundo, ele é chamado “a semente da mulher” (Gn 3-15*’ “a semente de Abraão” (Gn 12.3; 22.18), “o filho de Abraão” (At 3-25X “o filho de Davi e o fruto de seus l°mbos” (Lc 1.32; Rm 1.3), “a semente da virgem ^ lt° sua madre” (Lc 1.31,42) “nascido de mu­ lher (G1 4.4). Ora, como e possível que tosse distin­ guido por esses títulos, a menos que possuísse uma natureza como a nossa, tomada da mesma substância de uma mulher e esta virgem? Tampouco se pode dizer (1) que ele é chamado o filho de Abraão ou de Davi porque lhes fora prometido; pois assim ele poderia igualmente ser chamado o filho de todos os crentes, aos quais tambcm fora prometido. (2) Ele é o filho de Davi no mesmo sentido em que se diz ser o filho de José. Ele é chamado o filho de José só equivocadamente, porque parecia ser tal na opinião de outros (como “supo­ mos” [hos enom izeto ], no dizer de Lucas, 3.23), porém deve ser chamado o filho de Davi própria e inequivocamente, tendo procedido dos pais e da se­ mente de Davi segundo a carne (Rm 1.3; 9.5). (3) Ou ele é chamado o fruto da madre de Maria porque fora concebido nela, não dela. Por madre não se denota somente o lugar da concepção, mas também a matéria (como explicado cm Rm 1.3 e G1 4.4, quando lemos que ele foi “nascido de mulher”). Se Cristo foi Se­ nhor de Maria segundo o Espírito, não se segue que ele não pudesse ser seu filho segundo a carne. (4) Ou está implícita a semente espiritual e natural, porque tal semente deve ser subentendida, em virtude da qual ele procederia dos pais se­ gundo a came (Rm 9.5). , p . VI. Terceiro, ele se fez participante de carne e sangue, e com . orque e e base neste fato é chamado nosso irmão (Hb 2.10,14,16). Tams e f e z carne e ,, . . ' . . pouco carne e sangue podem ser tomados simplesmente no nosso irmao. ■, , ^ ° r . , . ,, . sentido de fraqueza, mas necessariamente esta implícita a natureza humana. Trata-se do homem (referido no SI 8) que deve provar a morte por todos, que é nosso irmão e deve ser igual a nós em todas as coisas (v. 17); que era de um só sangue conosco (“pois tanto aquele que santifica como os que são santificados são todos de um” [v. 11], a saber, da mesma massa ou natureza humana, a qual ele chama came e sangue [v. 14], como o sumo sa­ cerdote no Antigo Testamento que santificava o povo era da mesma natureza do povo (Hb 5.1); ou as primícias são da mesma natureza do fruto restante. E ensina ainda mais que Cristo é uma pessoa apta a sofrer por nós, e por seu sofrimento nos santifica e nos redime como nosso Goel. Mas, como seria possível afirmar que ele é um conosco ou ser apresentado como nosso irmão, igual a nós em todas as coisas, se ele não possuísse a natureza humana ou came consubstanciai (homoousion) conosco? Não é válida a objeção de que esta natureza também era comum aos réprobos, visto que Cristo a tomou por causa de seus filhos; nem poderia ter assumido nenhuma outra senão aquela que é comum a todos.

2 Poraue ele é cham ado a sem ente da m ulher e de A braão o fru to da madre.

Quart0’ “P °'s ele, evidentemente, não socorre anjos, mas socorre a descendência de Abraão” (Hb 2.16*). O verbo epilambanesthcii significa propriamente apoderar-se de e assum'r ^ou tomar ^e), e corretamente se refere à apropriação da ‘ natureza na unidade de pessoa. E assim o sentido é - o Filho de Deus assumiu, não a natureza angélica, e sim humana, da posteridade de Abraão, e de fato segundo a promessa. O objetivo do apóstolo, e a relação, mostram que este é o sentido genuíno, pois sua intenção é provar a veracidade da natureza humana de Cristo e sua consubstancialidade (homoousian ) conos­ co por uma participação de carne e sangue (o que era necessário de todas as formas para a redenção) e porque lemos que ele participou de carne e sangue para que nos pudesse libertar (vs. 14,15). Ele então ensina como e de onde ele participou daquela carne (a saber, assumindo a semente de Abraão, i.e., não a natureza humana em geral, mas em particular uma natureza derivada de Adão, segundo a promessa que lhe fora feita). Nem as coisas engendradas por Socino e outros para escaparem à sua força refutam esta interpretação, (a) “O apóstolo não diz epelabeto (‘no passado’), mas epilambemetai (‘no presente’), visto que o ato de apropriação da natureza é momentâneo, não contínuo.” Visto que a união hipostática dura perpetuamente e é preservada, e sua conservação é uma produção certa e contínua da coisa, ele fala com propriedade no presente. Além de ocorrer com frequência uma enálage do presente pelo futuro (especialmen­ te em narrações de eventos públicos), de modo que as coisas pareçam não tanto já haver passado, mas ainda continuam, (b) “Ele provaria a mesma coisa pelo mesmo fato, pois ser feito semelhante a nós (o que segue) é o mesmo que assumir nossa natureza.” Mas as palavras seguintes (“por isso lhe cumpria”) contêm não tanto uma inferência do que é aqui asseverado quanto uma afirma­ ção da necessidade da coisa ali asseverada (em virtude do que segue - “para que ele fosse um sumo sacerdote”), (c) “A semente de Abraão é uma expressão coletiva denotando muitos crentes” (Rm 4.16; G1 3.29). Mas, “semente” tam­ bém expressa com frequência caráter individual, e aqui Paulo ensina peculiar­ mente que é isso que se deve entender (G1 3.16). VIII. O verbo epilam banesthai não pode referir-se aqui a simples auxílio e proteção, porque em parte alguma ele tem tal sentido. Nem a passagem de Ro­ manos 15.7 se encaixa aqui. Uma coisa é proslambcmein eis doxan (“receber para a glória”); outra é epilambanein sperm a (“tomar a semente”). Ali, lemos que Cristo recebeu para glória, ou nos fez participantes da glória celestial; aqui, não obstante, que ele assume para si a semente ou se toma participante de carne e sangue. (2) Os anjos estão excluídos dessa apropriação (epilêpsei ); mas, do cuidado de Cristo, a cabeça (exaltado ele em seu ofício), os anjos (que são membros da igreja triunfante) não estão excluídos (Hb 12.22). (3) Cristo assumiu a semente na terra (como ensina uma comparação do que vem antes com o que segue); portanto, não finalmente no céu (como nossos oponentes sustentam). 4 Poraue ele assum iu a sem ente de A braão

5 Com base ' genealoeiu .‘ . tta

Qu'nt0>apresenta-se a genealogia de Cristo, na qual le­ mos que ele procedeu dos pais segundo a carne (Mt 1;’ Lc 3;’ " r * ° v

^ ^St0 030 Ser*a vend'co se e*e f°sse tomado da subs­ ’ tância da carne de alguma outra fonte, e não da virgem bendita. X. Sexto, se Cristo não fosse feito semelhante a nós em todas as coisas, quanto à identidade de natureza, ele não poderia realmente redimir-nos, visto que o pecado tem de ser expiado na mesma natureza em que foi cometido.

de Cristo

XL Crist0 é chamado “° Senhor do céu” (1 Co 15.47), nao com resPe't0 a matéria dc seu corpo, mas com respcito: (1) à Pessoa do LoSos (LoSou) e à natureza divina clue se rnanifestou em carne; (2) à causa eficiente ^ou seJa’ do Espirito Santo, de quem a humanidade foi ' ' concebida); (3) à condição da vida de Cristo na terra, que não era terrestre e terrena, mas divina e celestial; em santidade e poder, não no corpo. A antítese instituída em João 3.31 e 8.23, quando lemos que Cristo “veio” e “está no céu”, mas os homens são “da terra”, não prova que sua carne desceu do céu, mas apenas contrasta Cristo, o Deus-homem (theanthrõpõ ), com os meros homens que procedem da terra. Cristo é contrastado com Adão (1 Co 15.45-47), não com respeito à carne, segundo a qual ele é chamado filho dc Adão (Lc 3.38), mas com respeito à sua pessoa e ofício como o Senhor do céu. Ele é contrastado com o mero homem animal, como o autor da justiça e da vida é contrastado com o autor do pecado e da morte. XII. Uma semelhança pode ser ou só da aparência externa, ou da verdade interna e das propriedades naturais. Lemos que Cristo foi feito à semelhança de homem (Fp 2.7), não no primeiro sentido, mas no segundo (como lemos que Adão gerou Sete à sua semelhança, Gn 5.3). E lemos que Elias era “sujeito às mesmas paixões que nós” (homoiopathês hêmin, Tg 5.17), sendo que, no entan­ to, ele tinha afeições humanas realmente, e não só aparentemente. E se lemos na mesma passagem (schêmati) que Cristo foi “achado na forma de homem”, nem por isso se nega a veracidade de sua natureza humana, porém é confirmada mais fortemente, porque hõs caracteriza não só semelhança, mas realidade (como ocorre com frequência noutras partes, Jo 1.14; 2Co 3.18). Se lemos que ele foi achado na forma externa de mero homem e pecador como os demais, isso não nega que ele foi um homem real quanto à identidade de natureza. Finalmente, quem pode negar que ele era homem, que foi achado na forma de homem e a si mesmo se humilhou até a morte? XIII. A consubstancialidade (homoousion ) de Cristo conosco consiste na identidade de natureza e de propriedades essenciais, porém não na relação dc subsistência, que faltava à natureza humana. Portanto, a natureza humana sin­ gular de Cristo era completa fisicamente em seu ser substancial quanto às par­ tes integrais, porém não metafisicamente quanto ao modo de subsistência. XIV. O mesmo que após a ressurreição subiu ao céu é aquele que descerá

6. Porque o pecado tem de ser punido na natureza que pecou Fontes de explanação

do céu (Ef 4.9), quanto à pessoa, porém não quanto a ambas as naturezas da pessoa. Ele desceu como Logos (Logos) por meio de uma manifestação extra­ ordinária; ele subiu como Deus-homem (theanthrõpos). Tampouco é necessá­ rio que a ascensão corresponda inteiramente à descida no tocante à diversida­ de dos sujeitos. Um é verdadeiro e local; o outro é apenas metafórico. “O pão que desceu do céu” prefigurado pelo antigo maná (Jo 6.33) não significa a natu­ reza humana no abstrato, mas a pessoa no concreto. Ora ele é chamado assim em relação à natureza divina quando lemos que ele desceu do céu; ora em relação à humana, como quando lemos que a carne de Cristo foi dada para a vida do mun­ do. O pão que dá é a pessoa de Cristo; o pão que é dado é a carne de Cristo. XV. Os que presumem que as mulheres são geradas sem impregnação (asporous) e negam que elas concorrem ativamente na geração, não só se opõem aos médicos, mas também contradizem a Escritura, a qual assevera que o poder de geração é outorgado à parte feminina tanto quanto à masculina (Gn 1.28), e lhes atribui semente (Gn 16.10; 24.60). Daí admitir-se uma consanguinidade entre irmão e irmã uterinos, ainda que nascidos de diferentes pais (Lv 18.9,10). XVI. Cristo não nega que Maria era sua mãe simplesmente (Mt 12.47,48), mas prefere mãe e irmãos espirituais a carnais, a fim de testificar que os estima com mais sublimidade. XVII. Lemos que Cristo foi concebido do Espírito Santo, não material­ mente, mas energeticamente (dêmiourgikõs) e eficientemente (como a preposi­ ção denota aqui a causa eficiente, porque por seu poder e operação extraordi­ nários ele foi concebido, e não pela matéria da qual ele foi concebido). XVIII. O “Filho do Deus vivo” não pode ser chamado filho de Maria segundo aquilo em que ele é o Filho de Deus. Mas porque ele assumiu dela a natureza humana em unidade de pessoa, ele é correta c verazmente chamado filho de Maria neste aspecto. Assim Maria realmente pode ser chamada theotokos ou “mãe de Deus”, se a palavra “Deus” for tomada concretamente para a personalidade total de Cristo consistindo da pessoa do Logos (Logou) e da natureza humana (em cujo sentido ela é chamada “mãe do Senhor”, Lc 1.43), porém não precisa e abstrata­ mente com respeito à deidade. Assim ela é chamada mãe de Deus especificamente (i.e., daquele que é Deus), porém não reduplicadamente (como ele é Deus). XIX. Todo aquele que é nascido da carne é carne (Jo 3.6), ou seja, segundo a ordem da natureza de uma maneira natural, ou por geração ordinária e inequí­ voca; porém não além da ordem e de uma maneira sobrenatural, que é o caso aqui. Daí, embora Cristo proceda de Adão, um pecador, contudo não herdou dele o pecado, seja imputado ou inerente, porque ele não descendeu dele em virtude da promessa especial - “crescei e multiplicai-vos”. Antes, ele descen­ deu dele em virtude da promessa especial concernente à semente da mulher. E, embora ele estivesse em Adão quanto à natureza, contudo não quanto à pessoa e estado moral ou relação federal, pela qual sucede que toda a posteridade de Adão (com a exceção de Cristo) participa de seu pecado.

S e x t a P e r g u n t a : A V e r a c id a d e

da

E ncarnação

e da

U n iã o H

ip o s t à t ic a

O l :i/ho de Deus assumiu a natureza humana na unidade de sua pessoa? Afirm am os isso contra os sociniatios.

I. Na religião cristã há duas questões que, acima de todas as demais, são difíceis. A primeira diz respeito à unidade das três pessoas na essência única na Trindade; a outra diz respeito à união das duas naturezas na pessoa única na encarnação. Ora, ainda que mutuamente difiram (porque na primeira a discus­ são diz respeito à unidade da essência e da trindade de pessoas, enquanto a outra diz respeito à unidade da pessoa e à diversidade de naturezas), contudo uma ajuda grandemente na compreensão da outra. Pois, como na Trindade a unidade de essência não impede que as pessoas sejam distintas entre si e que suas propriedades e operações sejam incomunicáveis, assim a união de nature­ zas na pessoa de Cristo não impede que ambas as naturezas e suas proprieda­ des permaneçam inconfundíveis e distintas. ^ questão não diz respeito à veracidade da natureza humana, porque isso é reconhecido de ambos os lados. Não diz respeito à veracidade da natureza ou da hipóstase do Filho de Deus, porque já a consideramos em outro lugar. Antes, a questão diz respeito à veracidade da encarnação - se o Filho de Deus assumiu a nature­ za humana na unidade de pessoa, de modo que o mesmo que era o Filho de Deus se fez o Filho do homem pela união hipostàtica. Isto, os ortodoxos afir­ mam e os socinianos negam. III. A questão não diz respeito à união física e essencial de duas coisas para constituir uma terceira natureza (como a alma está unida ao corpo para consti­ tuir um só ser humano). Não diz respeito à união constitucional (schetikê) e relativa, consistindo na união de almas e no consenso de vontades, tal como a união de amigos. Não diz respeito à união parastática (parastatikê) por mera lealdade, tal como a dos anjos com corpos assumidos. Não diz respeito a uma união eficiente (drastikê ), quanto à eficácia e à sustentação gerais pelas quais todas as coisas estão em Deus e nos movemos, vivemos e temos nele nosso ser (At 17.28). Não diz respeito à união mística c à graça dos crentes com Cristo. Nem da união substancial (ousiõdei) ou essencial das pessoas da Trindade numa só essência. Antes, a questão diz respeito à união hipostàtica pela apropriação da natureza humana na unidade do Logos (Logou ). Isto é assim chamado, tanto com respeito à forma (porque ela está na pessoa do Logos [Logou]) como com respeito ao termo (porque está terminada nele). E assim a união é pessoal, po­ rém não de pessoas, como a união de naturezas, porém não natural. Se em algum tempo ela foi pelos pais (p. ex., Cirilo, “Anathema 3”, E xplicatio Duodecim Capitum [PG 76:299]) chamada physike (união natural), isso deve ser entendido num sentido correto, de modo que se considere não tanto a relação de união quanto os extremos da união (pois os extremos unidos são duas naturezas). E stabelecim ento da questão

IV. Esta união pode ser vista ou com respeito ao princípio ou com respeito ao término. No primeiro sentido, é atribuída a toda a Trindade, por cujo poder tal união é feita (ou seja, por uma ação transitória de Deus pela qual ele uniu na pessoa do Logos a humanidade de Cristo). No segundo, pertence somente ao Logos, porque é terminada nele. Embora se possa dizer com razão que a pessoa do Logos se encarnou, contudo da Trindade propriamente dita não se pode, porque a encarnação não é terminada na natureza divina absolutamente, mas na pessoa do Logos relativamente. V. Por meio desta união, pois, nada mais é designado senão a conjunção íntima e perpétua das duas naturezas —a divina e a humana - na unidade de pessoa. Por meio desta, a natureza humana (que era destituída dc personalidade própria e era sem subsistência [anypostatos], porque de outro modo teria sido uma pessoa) foi assumida pela pessoa do Logos (Logou), e, ou foi unida ou foi adicionada a ele em unidade de pessoa, de modo que agora é substancial com o Logos ( enypostatos Logo). Pois ela é sustentada por ele, não por uma sustenta­ ção geral (pela qual todas as criaturas são sustentadas por Deus), mas por uma sustentação especial e pessoal, visto que ela é unida numa só pessoa com a Palavra. Ora, ainda que se possa dizer corretamente que a natureza humana é consubstanciai com o Logos (enypostatos Logo) (porque ela foi assumida na unidade da pessoa e é sustentada por ela), contudo menos exatamente se diz que ela subsiste com a subsistência do Logos {Logou), porque nesse caso a natureza humana seria uma pessoa divina. VI. A natureza humana no Deus-homem (theanthrõpõ) pode ser chamada tanto seu adjunto como parte dele num sentido correto. Adjunto, não que seja adicionada ou aderida a ela como o acidente ao sujeito ou a roupa ao corpo, mas porque ao Logos (Logo) (existente fora da carne desde a eternidade) foi no tempo conjugada na unidade de pessoa. Também pode ser chamada parte, analogicamente e num sentido mais amplo; não como se a pessoa de Cristo fosse composta ou consistisse de duas naturezas incompletas, como partes propria­ mente assim chamadas (o que teria sabor de imperfeição); mas porque ela sub­ siste não cm uma, mas em duas naturezas e se harmoniza com ambas; não acidentalmente, mas essencialmente. Daí dizer-se que é composta (syntheton) mais de número do que de partes, porque nela existem muitas coisas numerica­ mente (quais sejam, as naturezas humana e divina). Se por alguns é chamada instrumento do Logos (Logou), isso não é feito com respeito à existência, mas à operação, porque ele a assumiu em virtude da operação e opera por meio dela. VII. Portanto, esta apropriação não foi feita para a completação da pessoa do Logos (Logou), como tal, reduplicadamente, visto que ela era em si mesma perfeitíssima desde a eternidade, mas da pessoa do Deus-homem (theanthrõpou) ou Mediador especificamente; não para a aquisição de nova perfeição com res­ peito ao Filho de Deus intrinsecamente, mas para a comunicação de perfeição com respeito a nós e à operação extrinsecamente, a fim de que, por essa natu­ reza, ele pudesse realizar o que era necessário para a nossa redenção.

VIII. Quando a pessoa do Deus-homem ( theanthrõpou ) é tida pelos pais como sendo composta (hen prosõpon syntheton ek theoíétos epouraniou, kai anthrõpim s sarkos, como os pais do sínodo de Antioquia+ falam contra Paulo de Samosata), não está implícita uma composição propriamente assim chamada (como se as naturezas humana e divina fossem como partes incompletas da constituição do todo). Antes, está implícita uma imprópria, visto que se diz que o composto o é de coisas diferentes; não físicas destas (i.e., de partes essenci­ ais), como o homem de alma e corpo; não acidental com estas (i.e., de sujeito e acidente), mas hiperbolicamente e extraordinário (i.e., desta natureza tomada para esta subsistência individual, incomunicável na qual um dos extremos com­ pleta e aperfeiçoa, o outro é completado e aperfeiçoado). Tampouco é absurdo que a natureza divina entre desta maneira em composição com outra, porque esta não é segundo o modo de uma parte propriamente assim chamada, mas segundo o modo de assumir outra natureza. Assim se pode dizer que uma coisa compõe com outra não essencialmente, mas pessoalmente; não quanto à sua perfeição intrínseca, mas apenas quanto à sua operação extrínseca. IX. Se bem que reconhecemos em Cristo uma dupla união, uma pessoal (das duas naturezas, a divina e a humana numa só pessoa), a outra natural (da alma e do corpo numa só natureza humana), contudo somos acusados falsa­ mente, por alguns luteranos, de sustentar uma dupla união hipostática em Cris­ to e assim favorecer o nestorianismo. Essas duas uniões diferem entre si de muitas maneiras: (1) em espécie, porque uma é física, a outra é hipostática; (2) no término, porque ali é uma natureza, aqui é uma pessoa; (3) no sujeito, que ali é somente a natureza humana, aqui ambas as naturezas; (4) nos adjuntos, por­ que aquela é inseparável e foi dissolvida pela morte de Cristo, enquanto esta é inseparável - o que o Logos (Logos ) uma vez assumiu jamais renunciará. X. A questão, portanto, volta a isto - foi uma encarnação verdadeira? Isto é, o Filho de Deus, a segunda pessoa da santa Trindade, une a si em unidade de pessoa, não uma pessoa, mas uma natureza humana; não por conversão e trans­ mutação, mas por apropriação e sustentação, de modo que o Filho de Deus se fez o Filho do homem e nosso Mediador, e é realmente Deus-homem (theanthrõpos )? Os socinianos negam isto. Ensinam que em Cristo há somente uma natureza; que ele é homem não só verdadeiro, mas também mero e simples, cuja prerrogativa, consequentemente, estava, toda ela, na excelência de seus atributos e ofício, não de sua natureza. Em contrapartida, o negamos. As razões sao: primeiro, “o Verbo se fez carne” (Jo 114), onde se faz menção distinta: (a) de dois extremos saber’ 0 Verbo, o qual se revela como uma pessoa divina com base n0 clue vem antes’ onde se diz que ele é Deus e com Deus e que fez todas as coisas [vs. 1,3], e carne, o que denota a natureza humana por meio de sinédoque); (b) da união pela qual foram mutuamente ligadas; não por conversão e mudança (sendo que disso o

Prova-se a união h ipostática• (1) com base em João 1 14

Deus imutável é incapaz), mas por apropriação, pela qual (permanecendo o mesmo em si mesmo, ou seja, Deus verdadeiro e eterno) ele foi feito o que não era antes, por participar de carne e sangue, segundo aquela frase bem conheci­ da - “Eu sou o que sou” (ou seja, Deus), “não era o que sou” (i.e., homem), “agora sou chamado ambos” (ou seja, Deus e homem). XII. Tampouco se pode admitir a glosa ímpia de Socino pela qual (para corromper esta passagem tão lúcida) ele mantém que o verbo egeneto deve ser traduzido não por “foi feito” (como geralmente é traduzido pelo consenso dos intérpretes), mas por “foi” [era, houve, existiu] (como é usado em outros luga­ res neste sentido, em Jo 1.6 - egeneto , “houve um homem enviado por Deus”, e Lc 24.19). A glosa é francamente contrária ao texto, onde João claramente dis­ tingue a existência do Logos (tou Logou) da existência da carne; aquilo que Cristo era desde a eternidade daquilo que ele veio a ser no tempo. O primeiro ele subentende pelo verbo en {en arche hen ho Logos, “no princípio era o Verbo”, v. 1), sem qualquer indicação de princípio ou origem. Já no princípio, ele era o Verbo, ele estava com Deus e ele era Deus. O segundo ele denota pelo verbo egeneto, o qual designa um princípio e origem, porque na plenitude do tempo Deus enviou seu Filho genomenon (feito de mulher, G14.4), que em outro lugar lemos que foi feito (genomenos) da semente de Davi (Rm 1.3). Se o verbo ginom ai em outro lugar é tomado num sentido diferente, não se segue que ele não possa ser usado neste sentido aqui (o que o contexto demanda imperativa­ mente). Em vão ele acrescenta que a palavra “carne” denota a condição humil­ de e abjeta de Cristo. Pois assim estão implícitas suas enfermidades para que sempre se presuma a natureza humana (que é o sujeito delas), de modo que se pode dizer que a palavra se fez came (i.e., um homem fraco e pobre como nós em todas as coisas). XIII. Segundo, “pois ele, subsistindo em forma de Deus, 2. Com base em não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si Filipenses 2.6,7. mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de homens; e, reconhecido em figura humana, a si mes­ mo se humilhou, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fp 2.6­ 8*). Aqui se ocultam vários argumentos, não só para provar a divindade de Cristo (como já se demonstrou no Volume I, Tópico III, Pergunta 28, Seção 2), mas também a veracidade da encarnação, (a) Faz-se menção expressa das duas naturezas de Cristo - a divina (tanto pela forma de Deus [morpkên Theou], a qual lemos que ele possuía, quanto pela igualdade com Deus, a qual ele não considerava roubo atribuir a si); a humana (pela forma de servo [morphên doulou] a qual assumiu, e a semelhança de homem, na qual foi feito), (b) Da união dessas duas naturezas em uma só pessoa - lemos que a mesma que existia na forma de Deus assumiu a forma de servo e foi feita semelhante aos homens; não somente apareceu na forma de homem, como antigamente sob o Antigo Testamento ele se manifestava na forma de homem ao revestir-se por algum tempo dessa forma, como uma vestimenta ou símbolo de sua presença, mas

que ele assumiu essa forma para indicar a verdadeira apropriação de nossa natureza em união pessoal. Aqui também se encaixa o verbo ekenõse, que não deve ser tomado simples e absolutamente (como se ele cessasse de ser Deus ou fosse reduzido a uma nào-entidade, o que é ímpio só de imaginar acerca do Deus eterno e imutável), mas com respeito ao estado e comparativamente, porque ele ocultou a glória divina sob o véu da came e, por assim dizer, a pôs de lado; não renunciando o que ele era, mas assumindo o que ele não era. E como o verbo ekenõse implica propriamente que ele a si mesmo se esvaziou ou parecia haver-se esvaziado de toda aquela glória que é corretamente chamada a plenitude da deidade, para que ele pudesse assumir nossa vil natureza (a qual não passa de futilidade e, por assim dizer, nulidade com respeito a Deus, e na mais abjeta e miserável condição de escravo), e assim de todo-poderoso para fraco, dc riquíssimo para pobre (2Co 8.9), de Senhor dos anjos para servo dos homens, de um estado glorioso e feliz, que desfrutava junto ao Pai, assumiu a mais dolorosa condição, na qual ele veio a ser um verme, não homem; opróbrio dos homens e desprezado do povo (SI 22.6), sem forma, sem formosura (ls 53.2), rejeitado e, por assim dizer, reduzido a nada, segundo a predição de Daniel 9.26. XIV. Nossos adversários laboram em vão para escapar à força desta passa­ gem, afirmando: (1) “morphên Theou não designa a natureza divina (que não pode ser esvaziada), mas a excelência e dignidade da natureza humana, vista na operação de milagres e naqueles fulgentes raios que escapavam de sob o véu da came.” Primeiro, neste sentido Cristo teria assumido a forma de servo antes de existir na forma de Deus. Isso é diretamente contrário a Paulo, o qual assevera que Cristo já subsistia na forma de Deus quando recebeu a forma de servo, e, existindo como tal, a si mesmo se esvaziou, assumindo então a forma de servo. Segundo, a forma de Deus aqui é “ser igual a Deus”, o que não se pode dizer de qualquer excelência da natureza angélica, muito menos da natureza humana. Os apóstolos operaram milagres estupendos; sim, maiores que os de Cristo mesmo (Jo 14.12), e contudo nem por isso podem ser chamados iguais a Deus. Tercei­ ro, Deus não pode esvaziar-se por uma diminuição de glória, mas por seu ocultamento (occuliationem)\ não à vista de Deus intrinsecamente, mas extrinsecamente no tocante aos homens. (2) Não granjeiam melhor sucesso afirmando que “a forma de servo não implica a natureza humana de Cristo, mas apenas a mais abjeta condição de Cristo, porque, havendo recebido a forma de servo, diz-se simplesmente que ele foi feito à semelhança de homem, isto é, como se fosse um homem, não propriamente que ele fosse feito um homem simplesmente”. Coi­ sas que têm de ser mantidas juntas são separadas, pois a condição servil de Cristo (designada pela forma de servo) não exclui a veracidade da natureza humana, mas a pressupõe, porque ele não poderia assumir aquele estado servil exceto na natureza humana. Caso se afirme que ele foi feito à semelhança de homens, não se nega a identidade específica da natureza humana, mas apenas a numérica. Do contrário, Sete não teria sido da mesma natureza de Adão, porque lemos que ele foi feito à sua semelhança (Gn 5.3).

, ~ , 3. Com base em i -rm 1 Timoteo 3.16.

XV. Terceiro, “Deus se manifestou na carne” (1 Tm 3.16), , ’ . ,■ ■ , onde .se conotam duas naturezas (uma divina . . , _ . . e, uma numana) se unindo na pessoa de Cristo por meio de sua en­ carnação. Do contrário o mesmo Cristo não poderia ser chamado Deus e carne; “manifestar-se na carne” equivale, em outro lugar, a “ser feito participante de carne e sangue” (Hb 2.14); “ser feito carne” (Jo 1.14); e “vir na carne” {en sarki erchesthai, 2Jo 7). Lemos que Deus se manifestou não essencialmente (ousiõdõs), mas hipostaticamente (hypostatikõs) (ou seja, na pessoa do Logos [.Logou ]), não por meio de algum sinal de sua presença dado aos homens (como na sarça ardente [Êx 3.2] ou na coluna de nuvem e de fogo [1 Rs 8.10,11]), não por meio de uma forma humana assumida só por algum tempo (como em Gn 18), ou por meio de sombras fantasmagóricas (j)hasmata ), por cuja via os deu­ ses falsos se tomavam visíveis, “vestindo-se com corpos” (como diz Servius, In Vergilii Carmina Commentarii [1961], 2:157 [Eneida, 7:416]), heaiitous eidopoiountes eis anthrõpous, como o expressa Heliodorus (Les Ethiopiques, 3.13.1 [trad. J. Maillon, 1960], 1:115). Mas ele se manifesta “em carne” (i.e., na natureza humana mortal e miserável). Ele não diz simplesmente que se manifestou como divindade no abstrato, mas “Deus” ( Theon) no concreto (ou seja, a pessoa do Logos [Logou] se manifestou, porque a encarnação não é da natureza divina absolutamente, mas de uma pessoa). XVI. Quarto, com base nas passagens onde duas naturezas na Pessoa de Cristo são claramente enfatizadas: “Com respeito a seu Filho, o qual, segundo a carne, veio da des­ cendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espíri­ to de santidade pela ressurreição dos mortos” (Rm 1.3,4). A limitação segundo a carne e o Espírito denota suas duas naturezas, uma segundo a qual ele foi feito da semente de Davi (i.e., a humana), a outra divina, segundo o Espírito de santidade, pela qual foi declarado que cie é o Filho de Deus por meio de sua ressurreição (o argumento indubitável de sua divindade). Se “segundo a car­ ne” é em outro lugar tomado num sentido um pouco diferente, seja quanto à corrupção (como “andar segundo a carne”, Rm 8.1), ou quanto à forma externa que toca os sentidos (como “julgar segundo a carne”, Jo 8.15), não se segue que aqui não possa significar Cristo quanto à natureza humana. Pois, tanto a semente dc Davi quanto a antítese do Espírito necessariamente demandam isso. Se o mesmo homem pode nascer segundo a carne e segundo o Espírito (como lemos de Isaque, G1 4.29), nem por isso se deve negar de pronto que em outro lugar a dupla natureza esteja designada. Uma coisa é que se acrescente alguma limitação a um agente quanto ao modo de geração (cm cujo sentido lemos que Isaque foi gerado “segundo o Espírito”, embora fosse gerado segundo a carne, porque, em virtude dc uma promessa especial, ele foi gerado de uma maneira sobrenatural); outra coisa é que ela seja acrescentada ao sujeito quanto às na­ turezas das quais ela é constituída (como nesta passagem). XVII. Acrescenta-se a mesma limitação quando se diz: “deles são os pa4 Com base em Rom anos 1 3 4

triarcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre todos, Deus bendito para todo o sempre” (Rm 9.5). Designa-se aqui a natureza humana, segundo a qual ele realmente procede dos patriarcas, e a divina, segun­ do a qual ele é Deus bendito para sempre. Assim em 1 Pedro 3.18, lemos que “morto, sim, na carne” (i.e., havendo sofrido na natureza humana), porém “vi­ vificado no Espírito” (i.e., ressuscitado pela divindade, por aquele Espírito eter­ no pelo qual ele se ofereceu a Deus, Hb 9.14). Assim lemos que “Deus comprou a igreja com seu próprio sangue” (At 20.28). Aqui as palavras “seu próprio” (idiou) mostram que a natureza que sofreu pertence realmente àquela pessoa divina que, segundo lemos, comprou a igreja. XVIII. Embora a natureza humana de Cristo seja uma primeira substância (inteligente e perfeita no ser substancial), não é simultaneamente uma pessoa, porque ela não possui incomunicabilidade e subsistência própria (como a alma separada é uma substância singular inteligente, contudo não uma pessoa, por­ que ela é um ser parcial, incompleto, que não subsiste, mas tem de anexar-se a outro). Não obstante, a falta de personalidade própria não tira o mérito da vera­ cidade e perfeição da natureza humana de Cristo, porque medimos a veracidade da natureza humana com base na matéria, na forma e nas propriedades essenci­ ais, não com base na personalidade. Daí a definição de natureza difere da de subsistência. Finalmente, personalidade não é uma parte integrante nem essen­ cial de uma natureza, mas, por assim dizer, o término. Porque partilha de uma subsistência não-criada, por isso mesmo muito mais perfeita do que se subsis­ tisse por si só separada da Palavra. XIX. O Filho de Deus não assumiu o homem como uma subsistência inteira e incomunicável, mas a natureza humana (i.e., o homem especificamente assim chamado). E sempre que Cristo é chamado na Escritura homem ou Filho do homem, esse é um nome não da natureza, mas da pessoa denominada a partir da outra natureza. XX. Deus e homem são ou considerados no abstrato (para denotar a divin­ dade e a humanidade), ou no concreto (para designar a pessoa, que é Deus e homem ao mesmo tempo). No segundo sentido não são díspares, mas diversos (podendo pertencer a um só sujeito). No primeiro sentido, porém, são realmente díspares (nunca podendo ser predicados um do outro simultaneamente). Embo­ ra se possa propriamente dizer que o homem é Deus, impropriamente contudo se diria - a humanidade é divindade. Ora, ainda que não se possa dizer que esses díspares sejam um em número ordinária e fisicamente, nada impede que isto seja mantido teologicamente e naquele extraordinário Deus-homem (theanthrõpou ). XXI. Não cremos que se deva devotar muito esforço para explicar a natu­ reza e a representação das proposições usadas neste mistério, tais como “Deus é homem” e “homem é Deus”. Nada semelhante ocorre no universo, e neste sentido são chamados com propriedade “incomuns”; não díspares, no sentido

de um díspar ser predicado de um díspar (porque nenhuma pessoa é de si mes­ ma dividida ou separada); mas idênticas, onde uma coisa é predicada de si mesma não formalmente. Neste sentido, podem ser chamadas sinonímicas por uma consideração lógica, e troponímica por uma consideração retórica. Sinonímica, porque sujeito e predicado são tomados concretamente quanto à uni­ dade de pessoa; e assim o sentido é: a pessoa que é Deus é também homem. E assim a espécie menor é um predicado de um indivíduo extraordinário e singu­ lar. Troponímica, porque sujeito e predicado de fato designam a mesma pes­ soa, mas em aspectos diferentes (kat ’ alio kai alio) (i.e., quanto à deidade e à humanidade). Esta predicação troponímica, portanto (“Deus é homem” e “ho­ mem é Deus”), não deve ser resolvida neste característico - a deidade é Deus; a humanidade é homem - como objetam falsamente os adversários. Antes, deve ser resolvida nisto: Cristo (Deus segundo a deidade) é homem segundo a humanidade (e sucessivamente). Como lemos que Deus sofreu (i.e., Cristo, que é Deus, segundo a deidade, sofreu) não na deidade, mas na carne. XXII. A comunicação da hipóstase do Logos (Logou) feita carne pode ser entendida de três maneiras: ou efetivamente (como se efetuada na carne outra hipóstase); ou transitivamente, de modo que se pode afirmar que ele transferiu formalmente sua própria hipóstase para a carne; ou em termos de apropriação, porque ele assumiu a carne na mesma hipóstase e a uniu a si. Na primeira maneira, a frase é heterodoxa e nestoriana. Pois se ele formou outra hipóstase, então haveria duas hipóstases e, consequentemente, duas pessoas. A segunda não é menos herética, porque assim a carne subsistiria formalmente na subsis­ tência do Logos {Logou), e assim seria realmente uma pessoa. Além disso, uma propriedade pessoal é simplesmente incomunicável. Mas no terceiro sentido, a proposição é verdadeira e ortodoxa (a saber, pode-se dizer que o Logos (Logos) comunicou sua subsistência à carne assumindo-a na unidade da sua própria hipóstase, resultando que a carne não é uma hipóstase, mas é real [enypostatos]; não existindo separadamente, mas tendo suporte no Logos [Logo] [como instrumento e adjunto pessoalmente anexado a ela] a fim de realizar a obra de nossa redenção). XXIII. Elementos contraditórios não podem concordar no mesmo sujeito, da mesma maneira e no mesmo aspecto. Mas, ser dependente e independente, finito e infinito pertencem a Cristo em diferentes aspectos (kat ’ alto kai alio): o primeiro com respeito à natureza humana; o segundo, com respeito à divina. XIV. Uma distância local infinita pode impedir a união de duas naturezas, porém não uma distância infinita de perfeição (tal como existe entre as nature­ zas humana e divina). XXV. Se o Filho de Deus assumiu nossa natureza, nem por isso lhe foi adicionado algo intrinsecamente para aperfeiçoar sua natureza (o qual já pos­ suía num grau eminente toda a perfeição da humanidade). Só extrinsecamente lhe foi adicionado algo para a obra da redenção.

XXVI. Aquele que é feito o que ele não era antes transmutativamente é mu­ dado; porém não imediatamente aquele que só é feito o que não era em termos de apropriação. Portanto, a mudança (se aqui houve alguma) é na natureza humana (que de uma maneira extraordinária e especial é sustentada pelo Logos [Logo], não na pessoa do Logos (Logou ) que, existindo sempre o mesmo, a uniu a si). S é t im a P e r g u n t a A união bipostática das duas naturezas em Cristo era de tal natureza que nem a pessoa é dividida nem as naturezas confundidas? Afirmamos esta tese contra os nestorianos e os eutiquianos.

I• Embora o modo da união hipostática seja positivamente indescritível (arrêtos ), contudo não é impropriamente designada negativamente quando se nega que foi feita ou por uma divisão da pessoa ou por uma mistura de naturezas- Estas são as duas principais pedras a serem evitadas aqui: nestorianismo, de um lado, o qual divide a pessoa; eutiquianismo, do outro, o qual confunde as naturezas. II. Em oposição a este duplo erro, os pais, no Concílio de Calcedônia (451 d.C.) diziam que a união foi feita adiairetõs e achõristõs (“indivisível e insepa­ ravelmente”) contra Nestório; e atreptõs e asynchytõs (“sem mudança e confu­ são”) contra Eutico. As duas naturezas foram unidas de tal modo numa só pessoa, que não se converteram uma na outra, nem se confundiram, de modo que das duas resultasse uma terceira natureza composta de ambas. Antes, elas permaneceram inconfundíveis [sem fusão nem confusão], cada uma com suas propriedades próprias.

É preciso escapar de duas pedras acerca da união hipostática: nestorianism o e eutiquianism o.

® Pr' me' ro erro é o de Nestório, Patriarca de Constantinopla, que das duas naturezas de Cristo inventou duas pesso­ a opinião de „ _ , . . . . , N estório as' essa razao e*c neg °u Q116 a virgem bendita pudesse ser ‘ ' chamada “mãe de Deus” (theotokon ) ou “portadora de Deus”, mas apenas mãe de Cristo ( Christotokon); e dizia que Cristo não era Deus (Theori), mas apenas um homem possuído por Deus (anthrõpon theophoron). E assim ele fez dois Cristos - um que foi crucificado pelos judeus; o outro, contudo, que não existia. Daí repetidamente ele reiterava isto: “Por que te glorias, ó Judeu? Crucificaste um homem, não Deus”. Tampouco re­ conhecia qualquer outra união (henõsin ) de naturezas senão união acidental, seja quanto à assistência (kata parastasin ), seja quanto à simples habitação (visto que a Palavra habitava no homem Cristo, como em seu templo); tam­ bém quanto à graça (kata chariri) e ao beneplácito (eudokian ) (visto que Deus aquiesceu a esse homem no mais elevado grau e dele se agradou); quanto à energia (k a t’energeian) pela operação (visto que ele era o instrumento de Deus naquelas obras maravilhosas que o Filho de Deus operava); quanto à igualdade de vontade (kata tautobouliari) e afetos (com respeito ao consenso entre a vontade do homem e a de Deus em Cristo); e quanto ao valor (kat ’ E xam ina-se

* ...

,

axian ) e honra ( isotim ian) igual com respeito à dignidade outorgada à carne

assumida. IV. Ora, embora não faltem aqueles que (mais favoráveis a Nestório e mais injustos com Cirilo) podem proclamar ortodoxo o primeiro porque ele de fato distinguia as naturezas em Cristo, porém não as separava (e por isso foi injus­ tamente condenado no Concílio de Efeso), mas proclamam herético o segundo, e assim não hesitam em opor-se (até aqui) à opinião constante nas igrejas refor­ madas; contudo não cremos que este novel comentário e aquela opinião altiva (kyrian ) possam ser demonstrados por algum argumento (doxan) sólido. Sim, há não poucos que provam sua futilidade. (1) Ninguém pode sem mais nem menos presumir que o pensamento de Nestório não era aquele do qual ele é acusado por consenso unânime, tanto pelos três concílios ecumênicos (de Éfeso, Calcedônia e Constantinopla), como por escritores de história eclesiástica e heresiólogos; sim, inclusive pelas próprias leis imperiais, as quais ordenavam que os livros de Nestório fossem queimados e devotados à completa destruição e impunham a mais severa punição àqueles que ousassem possuir ou ler tais escritos ou livros ( Corpus Iuris Civilis, II: Codex lustinianus, 1.5-7 [“De sum­ ma Trinitate”], pp. 6-10). (2) As doze seções ou excomunhões de Cirilo aprova­ das pelo Sínodo de Efeso (dadas por Forbcs, Instructiones H istorico-theologicae, 2.6 [1645], pp. 82-84) claramente provam isto. (3) Por nenhuma outra razão, Nestório nega que Maria possa ser chamada Mãe de Deus (theotokon) senão porque negava que as duas naturezas se uniram numa só pessoa. Vincentius Lerin, seu contemporâneo (colocado fora dos partidos), testifica deste fato. Ele relata que, três anos após o Concílio de Efeso, escreveu: “Nestório, com um mal oposto ao de Apolinário, enquanto finge que distingue duas substâncias em Cristo, de repente introduz duas pessoas e com inusitada perversidade mantém que há dois Filhos de Deus, dois Cristos - um Deus, o outro homem” (Commonitories, 1.12* [FC 7:289; PL 50.654,655]). Se Nestório usou frases duvidosas e equívocas para encobrir seu erro (as quais, no entanto, podem admitir um sentido sólido), não se segue imediatamente que ele era ortodoxo, ou que os pais (que conheciam plenamente sua intenção) forçaram uma construção errônea em sua linguagem. Se às vezes Cirilo usava frases mais rudes que pareciam aproximar-se do eutiquianismo para refutar Nestório (como é feito com frequ­ ência por aqueles que, ao se oporem a um erro, parecem deslizar para outro) não se pode daí inferir cjue ele tinha pontos de vista impróprios sobre este mistério e que favorecia Eutico. Como quando repetidamente afirma que “uma só natureza” pertencia ao Logos ( Logou ) encarnado, não quer dizer que a hu­ manidade e a divindade se uniram numa só natureza, visto que no mesmo lugar ele sustenta que a união foi feita “sem confusão” ( asynchytõs ). Antes, ele diz isto em oposição a Nestório, porque há uma só hyphistamenon (“subsistente”) pela qual “a Palavra é unida à carne segundo a hipóstase” (como o anátema5o 5. Cirilo. analemalizado cm 4.10, foi condenado cm 4 3 1 pelo Concilio dc Éfeso. É nolável que ele foi conde-

expressa). Seja o que for, a questão é histórica, de fato, não de direito. Isto não nos impede de rejeitar como fundamental o erro atribuído a Nestório. E assim rejeitado por todos os ortodoxos, os quais asseveram que a união hipostática de fato foi feita com uma distinção de naturezas, porém sem uma divisão da pessoa (firmados em várias razões). f>r'me'ro> as passagens que demonstram que o Filho de Deus nasceu de uma virgem provam isto. Uma vez que isto não pode ser inferido da natureza divina (que não é criada e é eterna), mas da natureza humana (que teve um princípio em seu próprio tempo), conclui-se corretamente que as naturezas divina e humana em Cristo constituem uma única pessoa concernente à qual são corretamente predicadas todas as coisas pertencentes às naturezas divina e humana. “O ente santo que nascerá de ti será chamado Filho de Deus” (Lc 1.35); “Deus enviou seu Filho, feito de mu­ lher” (G1 4.4). VI. Segundo, as passagens nas quais se descreve uma pessoa consistindo de duas naturezas provam isto. Lemos: “com respeito a seu Filho, o qual, se­ gundo a carne, veio da descendência de Davi e foi designado Filho de Deus com poder, segundo o espírito de santidade” (Rm 1.3,4*); “deles são os patri­ arcas, e também deles descende o Cristo, segundo a carne, o qual é sobre to­ dos, Deus bendito para todo o sempre” (Rm 9.5); “Deus manifestado na carne” (lTm 3.16); “pois ele, subsistindo em forma de Deus, não julgou como usur­ pação o ser igual a Deus; antes, a si mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, reconhecido em figura humana” (Fp 2.6,7). VII. Terceiro, provam-no as passagens que atribuem diversas propriedades e operações a um só Cristo: como aquelas que afirmam que o Filho do homem desceu do céu e, no entanto, está no céu (Jo 3.13); que o Senhor da glória foi crucificado (ICo 2.8); que Deus comprou a igreja com seu próprio sangue (At 20.28); que toda a plenitude da Deidade habita nele (Cl 2.9). Isto não poderia ser predicado dele a menos que duas naturezas estivessem unidas numa só pessoa. r- . , VIII. Onde há duas naturezas completas (em sua existência subsF ontes de ... . „ . , . . , . . ex lana ão tancia*’ “em corn° em sua existência subsistencial e íncomuni’ ’ cáveis) há duas pessoas. Ora, em Cristo não há duas naturezas completas quanto à subsistência e à incomunicabilidade. Se em Pedro e Paulo duas naturezas singulares constituem duas pessoas, não se segue que se dá o mesmo com Cristo. As duas naturezas nos homens têm incomunicabilidade com singularidade, porém não em Cristo, porque a natureza humana é determi­ E é reieitada

nado por Joào de Antioquia por suas palavras duras contra Nestório. Curiosamente, tanto a condenação imposta pelo Concílio de Éfeso com o a de Joào de Antioquia (contrária àquela) foram ratificadas pelo imperador. Entre­ tanto, não demorou muito para que Cirilo fosse restaurado. A dupla e antagônica condenação acima referida faz lembrar a referência que M onteiro Lobato faz em sua crônica "Justiça oxigenada” a juizes "que desesperam de nào poder condenar ao m esmo tempo as duas partes” (cm Na Antevéspera). [N. do E.]

nada à apropriação da Palavra, à qual está pessoalmente unida. Tampouco se segue que a palavra “homem” é predicado equivocamente de Cristo e de nós, mas apenas que a palavra “homem” é tomada em um tempo especificamente para natureza humana (quando é predicado de Cristo); noutro, pessoalmente (como nos é atribuída). IX. Ações e paixões pertencem às subsistèncias individuais incomunicá­ veis denominativamente. No entanto também podem ser atribuídas formal­ mente a uma e à outra natureza. Assim, dor e morte pertencem própria e formalmente à natureza humana, porém denominativamente à pessoa segundo a outra natureza. X. Um templo não pode ser física e materialmente o mesmo que aquele que habita nele; porém nega-se isso metafórica e misticamente (como se diz que a alma está em seu próprio corpo como num templo ou tabernáculo, embora cons­ tituindo a mesma pessoa com ele). A humanidade de Cristo é, neste último sen­ tido, chamada templo da divindade, não no primeiro sentido. Assim a distinção de naturezas é deveras bem denotada, porém não a divisão da pessoa. XI. Maria é corretamente chamada mãe de Deus (theotokos) no concreto e especificamente, porque ela gerou aquele que também é Deus, porém não no abstrato e reduplicadamente como Deus. Embora não esteja expressamente declarado nas Escrituras, contudo é suficientemente notificado quando ela é chamada mãe do Senhor (Lc 1.43) e mãe de Emanuel. Se a bendita virgem nada trouxe à pessoa do Logos (Logou ) considerado absolutamente, contudo pode-se dizer que ela trouxe algo à pessoa do Logos (Logou) encarnado, con­ siderado economicamente, visto que ela deu à natureza humana o que ele to­ mou na unidade da pessoa. XII. O título mãe de Deus dado à virgem foi pervertido por homens supers­ ticiosos numa ocasião de idolatria, como observa Paul Sarpi. “Porque a impie­ dade de Nestório dividiu a Cristo, constituindo dois filhos e negando que ele, que nasceu da virgem Maria, é Deus; a igreja, a fim de implantar a verdade universal na mente dos crentes, dccidiu que as palavras Maria, mãe de Deus (M aria theotokos), fossem mais frequentemente inculcadas nas igrejas do Ori­ ente, bem como do Ocidente. Isto, instituído deveras unicamente para a honra de Cristo, gradualmente começou a ser partilhado com a mãe e, finalmente, passou a referir-se inteira e unicamente a ela” (H istory o f the Council ofTrent 2 [1620], p. 181). Digo que, embora este gravíssimo erro, ou surgido dessa ocasião, ou aumentado por ela, nada detrai da verdade, porque o abuso e o erro dos papistas não devem eliminar o uso lícito deste título. XIII. A segunda pedra a ser evitada aqui é o eutiquianismo. ’ Opõe-se ao primeiro e é assim chamado por causa de Eutico, abade de um mosteiro de Constantinopla, que, embora se opusesse ardoro­ samente a Nestório (que divide a pessoa de Cristo em duas), confundiu as duas naturezas numa só e foi condenado pelo Concílio de Calcedônia. Aqui se en-

Eutiqnianisnio

caixam os dois advérbios atrepfõs kai asynchytõs (“sem mudança e sem confu­ são”), pelos quais se notifica que uma natureza não é mudada nem convertida na outra pela união hipostática. Não são as naturezas confundidas e misturadas entre si ao ponto de cada uma delas não reter suas próprias propriedades e condições. XIV. As razões são: (1) a oposição das duas naturezas em Cristo é frequen­ te na Escritura (Rm 1.3; IPe 3.18; Hb 9.14; Jo 1.14; Fp 2.6,7,11); (2) Não se lhe atribuem duas vontades (“faça-se não a minha vontade, mas a tua”, Lc 22.42). Nem se segue que haja duas disposições, porque a vontade pertence à natureza, enquanto a disposição pertence à pessoa; tampouco se prova que a vontade segue pessoal e imediatamente, porque em Deus há três pessoas, mas somente uma vontade. (3) Atribuem-se a Cristo elementos contrários, os quais não poderiam existir se não houvesse nele duas naturezas (como aqueles em que ele partiria do mundo e permaneceria conosco para sempre; que um meni­ no nasceu, e que é o Pai da eternidade; que ele sofreu a morte e ressuscitou; na forma de Deus, e na forma de servo etc.). Embora a causa eficiente das operações de Cristo seja apenas uma' contudo a causa incitante é dupla - a divindade e a ’ ’ humanidade. A obra em que ambas as causas incitantes (egergêm a) exercem seu poder é uma só, porém a ação (energeia) é dupla. XVI. Não se deve distinguir o que se aglutina numa natureza, porém não [é assim com] o que se aglutina numa substância subsistente (como as duas natu­ rezas em Cristo de fato se unem na mesma substância subsistente, porém não na mesma natureza, a qual consiste de duas, como a alma e o corpo). Se os pais às vezes empregam esta similitude ao descrever a união hipostática, não se segue que isso vale para cada aspecto. Deveras concordam nisto - que, como o corpo e a alma formam uma só pessoa, assim a divindade e a humanidade; e como a alma opera por meio do corpo (como o órgão substancialmente unido a si mes­ mo), assim também a divindade por meio da humanidade. Diferem, porém, nisto - que a alma e o corpo formam uma pessoa como partes e naturezas incompletas. Mas a divindade não é propriamente uma parte nem uma nature­ za incompleta. Finalmente, da alma e do corpo surge uma terceira natureza; porém não da divindade e da humanidade. XVII. Uma coisa é falar do Cristo todo; outra é falar da totalidade de Cris­ to. Todo o Cristo é Deus e homem, porém não a totalidade de Cristo. Todo masculino (totus) denota uma pessoa no concreto, porém totalidade, no neutro (totum), é uma natureza no abstrato. Portanto, afirma-se corretamente que todo o Cristo é Deus ou homem, porque isto caracteriza a pessoa; porém não a totalidade de Cristo, porque isto caracteriza cada natureza que existe nele. F ontes de explanação

O itava P e r g u n t a : A C o m u n i c a ç ã o

das

P r o p r ie d a d e s

Certas propriedades da natureza divina foram formalmente comunicadas à natureza humana de Cristo pela união pessoal? Negamos isso contra os luteranos.

I- O efeito da união hipostática é duplo: alguns se referem a natureza humana de Cristo; outros, à pessoa subsistente em ambas as naturezas. Aos primeiros comumente é atribuída tanto a graça eminente (que é a dignidade da natureza humana acima de todas as criaturas, oriunda da união da mesma com a natureza divina, pela qual a carne é uma propriedade do Filho de Deus - o que não se pode dizer de nenhuma outra criatura) como as graças habituais (ou seja, aqueles dons extraordinários que a natureza divina outorgou à humana, as quais embora fossem as mais elevadas e as mais perfeitas em sua própria ordem, con­ tudo não eram simplesmente infinitas, mas segundo a capacidade do recipiente na ordem dos dons criados; no entanto, eram maiores que em quaisquer anjos ou santos, seja na dignidade do sujeito, seja na perfeição das partes, seja em graus). Daí dizer-se que “Deus não lhe dá o Espírito por medida” (Jo 3.34).

Os efeitos da união hipostática com respeito à natureza hum ana são: a graça de em inência e as graças habituais.

^ om resPe‘t0 a Pessoa' 0 efeito, diga-se também, é tríPlice: ( 1) comunicação de atributos e de propriedades de cada natureza a pessoa; (2) comunicação de oflc'° e de e^e’tos’ Pe'os quais as obras medianeiras, com relação à nossa salvação, são atribuídas à pessoa que aSe segundo ambas as naturezas; (3) comunicação de honra e de culto devidos ao Deus-homem (theanthrõpõ). Com unicação UI- A comunicação dc atributos (sobre a qual ora disputade atributos. mos) é um efeito da união pela qual as propriedades de am­ bas as naturezas se tomaram comuns à pessoa. Daí surgir a fraseologia (ou o modo de falar) concernente a Cristo, pela qual as proprieda­ des de qualquer das naturezas são predicados da pessoa de Cristo, não importa a maneira como se denomine. Isto é feito ou diretamente, quando o que perten­ ce à natureza divina é predicado da pessoa denominada pela natureza humana (como quando se diz que a Palavra no princípio estava com Deus e era Deus [Jo 1.1]; quando se diz que o Filho do homem foi entregue à morte e crucifica­ do [Lc 9.22]). Ou é feito indiretamente, como quando o que pertence à deidade é predicado do homem Cristo e à humanidade de Cristo como Deus (como quando se atribui sofrimento a Deus [At 20.28] e se atribui ubiquidade [que é própria da deidade] ao Filho do homem [Jo 3.13]).

Com res eito à pessoa: (1) com unicação de a trib u to s• (2) com unicação de oficio ■(3) com unicação de honra

^ ^ sta comunicação é não só verbal, mas é corretamente chamada “real”; não deveras com respeito às naturezas (como se as propriedades de uma natureza fossem real­ mente comunicadas à outra), mas com respeito à pessoa, a qual consiste de

Pode ser cham ada “re a l”

duas naturezas realmente unificadas e reivindica as propriedades de ambas para si. Pois embora a união das naturezas entre si seja real, não é necessário que as propriedades das naturezas sejam comunicadas uma à outra sucessiva­ mente. E suficiente que sejam comunicadas a toda a substância subsistente em virtude dessa união. ^ ^ ssa comunicaÇão pode ser considerada ou no abstrato (com respeito à natureza) ou no concreto (com respeito à pessoa). As palavras “concreto” e “abstrato” não devem ser expressas no sentido abusivo dos luteranos (com quem abs­ trata é a natureza humana abstraída ou separada da deidade, enquanto concreta é a natureza humana como unida ao Logos [Logo]). Isto é contrário ao uso comum dos filósofos e à natureza da coisa, segundo a qual a natureza humana nunca pode ser separada do Logos (Logo). Mas são usadas aqui em concordân­ cia com o uso aceito nas escolas, como abstrato é o nome de uma natureza ou de uma forma que está presente em outra essencial ou acidentalmente (como deidade, humanidade). Concreta é uma pessoa ou um sujeito que tem aquela forma ou natureza que é expressa pelas palavras concretas “Deus”, “homem”.

É considerada ou no concreto ou no abstrato

E stabelecim ento ^ questã° aqui não diz respeito à comunicação no con­ da uestão ereto ou (como a chamam) de uma natureza à pessoa. Isso é ‘ ' reconhecido de ambas as partes. Antes, a questão diz res­ peito à comunicação no abstrato ou de natureza para natureza - se as proprieda­ des da natureza divina foram realmente e verdadeiramente comunicadas à natu­ reza humana pela união hipostática. Isto os luteranos afirmam; nós o negamos.

^ origem da controvérsia deve remontar a outra contro­ vérsia, concernente à Ceia do Senhor. Pois, para reter a presen­ ça corporal, os luteranos não puderam achar apoio suficiente nas palavras de Cristo e se sentiram pesadamente pressionados pelo artigo de sua ascensão. E assim se valeram da ubiquidade. Ora, ainda que Lutero mais tarde quisesse descartá-la (contando somente com as palavras de Cristo), contudo Brentius e outros (que renovaram a controvérsia sacramental após a morte de Lutero) evocaram a observação da ubiquidade como a proa e a popa de sua causa. E porque se lhes objetou que a ubiquidade é um atributo de Deus, e por essa causa é incomunicável a outros, chegaram ao ponto de dizer que algumas pro­ priedades divinas, em virtude da união hipostática, foram infundidas à nature­ za humana de Cristo. Daí, na Conferência de Maulbrun (Maulbroon), afirma­ ram que a união pessoal consiste formalmente na comunicação de proprieda­ des ou na comunicação de subsistência, cujo efeito consequente é a comunhão de propriedades (“Die Maulbrooner Formei”, em Zwei Actenstude zur Genesis der Concordienformel [Th. Pressel] em Jahrbucher fu r Deutsche Theologie [1866], p. 652). Esta opinião é agora mantida por quase todos eles. No entanto, ela não agradou a Lutero, o qual insistia na comunicação de propriedades so­ mente no concreto, não no abstrato. “A crença universal é esta: que confessamos

Sua origem

um só Cristo como verdadeiro Deus e homem. Desta verdade de dupla substân­ cia e da unidade da pessoa segue o que se chama comunicação de atributos, de modo que se pode dizer corretamente que as coisas que pertencem ao homem concernem a Deus, e, em contrapartida, aquelas que pertencem a Deus pode-se dizer que concernem ao homem. Pode-se dizer com verdade: este homem criou o mundo, e este Deus sofreu” (“Disputatio de divinitate et humanitate Christi”, em Werke [Weimar, 1932], 39:199). E as últimas palavras de David: “Chamam a estas formas de linguagem comunicação de atributos (i.e., quando aquilo que é próprio a ambas as naturezas se diz ser separadamente no abstrato, contudo no concreto é atribuído à pessoa)” ( Works [1955], 15:341, cf. p. 293). Paul Eberus, um teólogo de Wittenberg, concorda com isto em seu livro sobre este tema (Von heiligen Sakrament des Lei bs und Bluts imser Herrn Jesu Christi [ 1562]). Vlll. Uma vez mais, a questão não é - se as propriedades da natureza hu­ mana foram comunicadas à natureza divina (o que os adversários confessam não ser possível). Nem - se todas as propriedades da natureza divina foram comunicadas à natureza humana. Mas se apenas algumas delas foram comuni­ cadas (como onipresença, onisciência, onipotência e o poder de ressuscitar). Isso eles afirmam; nós o negamos. As raz°es sao: (1) a essência divina não pode ser coniunicada a uma criatura, porque uma coisa criada não pode v'r a ser uma c° isa não-criada, do contrário seria Deus. Portanto, nenhuma das propriedades essenciais de Deus clue sao identificadas com a essência divina pode ser comunicada. A mesma natureza seria ao mesmo tempo criada e não-criada, imensa e finita, o que é contraditório. Tampouco se remove a contradição dizendo que por um ato da natureza humana ela concorda com a natureza humana que é criada e finita; mas por um ato da pessoa ela é não-criada e imensa, (a) Personalidade não é um ato, mas o modo de uma coisa. Se o ato de uma pessoa concorda com a humanidade de Cristo, indubitavelmente ela será uma pessoa. Tampouco estas proposições cessam de ser verdadeiras - “a Palavra se fez carne” e “o homem é Deus” - se a essência divina não se comunica com a natureza humana. Sua veracidade não se fundamenta na comunicação de pro­ priedades no abstrato, mas na união pessoal das duas naturezas no concreto. Por meio da regeneração, somos feitos participantes da natureza divina (2Pe 1.4), não formalmente, mas analogicamente, em razão dos dons.

Prova-se que não há com unicação de atributos no abstrato(I) porqu e a essência divina não p o d e ser com unicada

Segundo, o que é próprio a uma não pode ser comunicado a outra; do contrário, ela deixaria de ser própria e viria a ser comum àquela à qual é comunicada. E fútil a réplica segundo a clua^ e'a c*e fato não pode ser comunicada por participação (kata methexin), mas (kata synd\’asin) por meio de uma união de ambas, como ocorre em sujeitos acoplados (syndedyasmenois ). Pois a syn-

2 Porque as propriedades não são com unicadas

dyasis não é nas naturezas unidas no abstrato, mas numa pessoa ou num conjun­

to consistindo das naturezas unidas no concreto. (2) “As propriedades podem ser comunicadas e, contudo, permanecer propriedades, visto que somente a Deus pertencem por natureza, mas à natureza humana pela graça.” O que se toma comum à outra, não importa de que modo é comunicado, não mais pode ser uma propriedade. Tampouco a diversidade da natureza humana de Cristo, de outras coisas criadas, pode favorecer esta comunicação, o que não pode ocorrer nelas. Ela consiste na excelência dos dons, na dignidade do ofício e na apropriação pela pessoa do Deus-homem (theanthfõpou)\ nem na comunicação de atributos. Terceiro, ou todas as propriedades da natureza divina foram comunicadas, ou nenhuma, porque são inseparáveis e na rea*'dade uma só. Ora, das coisas que realmente são uma ’ ’ só, sendo uma comunicada, as outras têm de ser necessaria­ mente comunicadas. Além disso, se por causa da união hipostática certas pro­ priedades foram comunicadas à carne (visto que o Logos [Logos ]) se uniu à came), todas as propriedades do Logos (Logou ) também necessariamente fo­ ram comunicadas (a menos que queiramos dividir o Logos [Logon ]). Nem se pode dar uma razão por que algumas são comunicadas e outras, não. Pois se lemos ser contrário á natureza humana ser ela eterna, por que não é também contrário ser ela onipresente? E, no entanto, na hipótese dos luteranos, nem todas são comunicadas; portanto, nem sequer uma é comunicada. Tampouco se pode responder dizendo que há certa diferença entre os atributos de Deus: que alguns são energéticos (energêtikas), exercitando-se externamente nas ope­ rações peculiares, e a comunicação deles era necessária para o ofício media­ neiro; outros, inoperantes (anetgêtikas ), não precisando ser comunicados. Pois cada diferença só é válida com respeito ao efeito e a nós, não realmente cm si mesma e intrinsecamente, onde não se pode admitir nenhuma diferença desse gênero em virtude da simplicidade perfeita da essência; nem mesmo uma di­ versidade na comunicação. Tampouco os ajuda a distinção entre comunicação mediata e imediata, pela qual todas as propriedades divinas de fato devem ser comunicadas mediatamente na hipóstase do Logos (Logou) (a qual é comuni­ cada à carne), mas imediatamente só alguns. Além disso, uma vez admitida a comunicação formal da hipóstase feita à came (como se provará mais adiante), não se trata de uma comunicação mediata, mas imediata, pela qual as proprie­ dades divinas devem ser predicados da natureza humana segundo aquela hi­ póstase, porque deve haver uma relação igual de todas as propriedades entre si. Confesso que se distinguem em comunicáveis e incomunicáveis, porém sabemos que isso deve ser entendido não formalmente (em cujo sentido todas são igualmente incomunicáveis), porém só analogicamente. 4. Porque as XII. Quarto, se em virtude da união as propriedapropriedades des divinas são comunicadas à came, então as proda carne não são priedades da came devem, por sua vez, ser comucom unicadas ao Logos. nicadas ao Logos (Logo). A união é recíproca. Não 3 Poraue ou se com unica tudo ou nada

obstante, eles não conseguem admitir tal coisa. Nem pode a distinção da natu­ reza assumindo e assumida remediar esta dificuldade. O fundamento de uma comunicação recíproca não é apropriação, mas a própria união, a qual é recí­ proca (como a divina é unida à natureza humana, assim a humana é unida à divina). Assim também se demandaria uma comunicação recíproca, não so­ mente no concreto, mas também no abstrato. Tampouco se pode derivar disto uma diferença - que a natureza humana de fato necessita de uma comunicação desses atributos, porém não a natureza divina. A natureza humana de fato ne­ cessitava dos dons exaltados para a realização de sua própria obra, porém não os atributos de Deus (os quais, antes, teriam destruído a natureza humana e a teriam transformado em deidade). 5 Porque assim haveria confusão das naturezas

9 u' nt0’ sc ^or im itid a uma comunicação real das propriedades no abstrato, então se admitirá também um nivelamento e confusão das naturezas (erro esse há mui­ to condenado em Eutico). A consequência é evidente com base no significado de confusão, a qual ocorre quando duas ou mais coisas, e suas propriedades, são comunicadas (i.e., se tomam comuns). Não os ajuda replicar que não se faz um nivelamento, porque a natureza humana não deriva de si onipresença. Para que uma coisa se tome igual á outra não é necessário que de si e por si mesma não seja igual àquela à qual se torna igual. Comunica­ ção se opõe ilogicamente à equiparação e confusão, o que não se pode fazer sem comunicação. Tampouco sempre se ouviu que aquelas coisas que já exis­ tem numa igualdade se tornam iguais; ou aquelas coisas que são confundidas são confusas. E Eutico nunca foi acusado de crer que a carne de Cristo por si e de si mesma se tomou divina; sim, pois, aqueles que são dotados de razão não podem nem sequer imaginar isso. Pois, como poderia tomar-se divina, se por natureza ela já era divina? Sexto, se houve a união (as mesmas naturezas e suas propriedades permanecendo não confundidas e inteiras e dis­ como os luteranos reconhecem), não poderia ter havi­ do nela uma comunicação de propriedades. Pois o que é co­ municado não permanece o mesmo. Tampouco se pode dizer que as proprieda­ des sempre permanecem distintas, porque pertencem à divindade peculiarmente ( idiõs) e por natureza, e à humanidade pela graça. Seja qual for o modo de as ter, eles mantem que são real e verdadeiramente possuídas pela natureza hu­ mana, de modo que podem legitimamente ser predicados dela, e por isso já não permanecem as mesmas no Logos (Logo). 6. Com base na hipótese dos luteranos.

7. A onipresença é im pugnada

Sétimo, nosso argumento contra a onipresença da natureza humana de Cristo é este: (1) não lhe é comunicada onipresença nem no estado de humilhação nem no estado de exaltação. Não lhe é comunicada absolutamente, porque só há dois estados em Cristo, o Mediador. E, no entanto, não lhe é comunicada em nenhum deles:

nem na humilhação, porque o evangelho testifica que ele não estava em todo lugar, ora neste, ora naquele, e que ele ia de um lugar a outro (Jo 6.24; 11.15; Mc 6.6); nem na exaltação, porque ela não lhe foi concedida enquanto vivia sobre a terra: “porque sei que buscais Jesus, que foi crucificado. Ele não está aqui; ressuscitou, como tinha dito. Vinde e vede o lugar onde ele jazia” (Mt 28.5,6); “Vede minhas mãos e meus pés, que sou eu mesmo” (Lc 24.39*). Não lhe foi concedida depois de subir ao céu, porque (a) ele predisse que sairia do mundo e não mais estaria presente aqui: “Porque os pobres sempre os tendes convosco, mas a mim nem sempre me tendes” (Mt 26.11); “Vim do Pai e entrei no mundo; todavia, deixo o mundo e vou para o Pai” (Jo 16.28); “Já não estou no mundo” (Jo 17.11), isto é, muito brevemente já não estarei, (b) Realmente, ele partiu deste mundo (Lc 24.51; At 1.9). (c) Ele agora permanece no céu, não regressará enquanto não chegar o dia do juízo: “ao qual é necessário que o céu receba até os tempos da restauração de todas as coisas” (At 3.21); “Ora, se ele estivesse na terra, nem mesmo sacerdote seria” (Hb 8.4); “O Senhor descerá do céu” (lTs 4.16*). XVI. Não se pode replicar: (a) “A natureza possuía onipresença no estado de humilhação no primeiro ato, porém não foi exercida nem declarada.” Isto toma por certo a própria coisa que se deve provar. Tampouco a Escritura nega­ ria absoluta e simplesmente que Cristo estava cm outros lugares, se isto devesse ser entendido somente com uma restrição e uma limitação, (b) “Cristo deixou o mundo no tocante ao diálogo visível e familiar com seus companheiros e condi­ ção servil, mas não no tocante à presença real e substancial, segundo a qual ele diz que estaria com seus discípulos até o fim do mundo.” Como a Escritura não ensina a presença invisível do corpo de Cristo em nenhum lugar, assim as palavras de Cristo excluem qualquer presença de seu corpo segundo a qual se declara que ele deixaria o mundo (i.e., a terra) e subiria para o céu. Se lemos que metaforicamente o Logos (Logo) veio do Pai e desceu do céu, não há a mesma relação de deixar o mundo no tocante à carne (o que lhe é propriamente atribuído). De fato ele promete que estaria sempre com seus discípulos no tocan­ te ao Espírito, não no tocante à carne, (c) “Há três aspectos nos quais o corpo de Cristo pode ser visto: primeiro, em conformidade com as propriedades de sua natureza; segundo, em conformidade com a glória de sua ressurreição; terceiro, em conformidade com a graça da união pessoal. Nos primeiros modos, ele está somente em um lugar; mas, no último, ele está em todo lugar.” Com base no terceiro aspecto, não mais que nos outros, segue-se a onipresença do corpo por­ que (unido à deidade) quanto permaneceu, o corpo igualmente permaneceu. XVII. (2) A onipresença do corpo de Cristo não pode resistir a vários arti­ gos de fé. Pois se se inventar que ele é onipresente em virtude da união pessoal, não poderia ser concebido no ventre da virgem, nem nasceria e viria à luz para fora dele, nem morreria. Pois a alma não poderia separar-sc do corpo, nem ser sepultada (porque ela já estava num sepulcro), nem ressuscitaria (porque ela já estava agindo fora de um sepulcro), nem subiria ao céu (onde ela já estava

vivendo); nem poderia descer do céu à terra no dia do juízo, se pudesse estar presente em toda parte. Tampouco se pode dizer que Cristo, no estado de hu­ milhação, não exibiu a majestade comunicada à sua carne, mas a sujeitou à localidade e a outras condições deste mundo. Toma-se por certo (não provado) que há uma comunicação de majestade. Finalmente, localidade depende da liberdade da vontade e não flui de uma necessidade da natureza humana. A história da ascensão ensina que sua partida foi não só uma intermissão de com­ panheirismo e diálogo, mas uma trasladação de seu corpo da terra para o céu e de um lugar inferior para um superior (Mc 16.19; At 1.1-11). XVIII. (3) É contrária à natureza do corpo, o qual é circunscrito e finito, e tem partes externas que têm de ser visíveis e palpáveis. Tampouco se pode obje­ tar: (a) “que é injusto sujeitar um corpo glorioso às leis de uma natureza co­ mum.” A glória não destrói nem muda uma natureza, mas somente a adorna e aperfeiçoa, (b) “Que o corpo de Cristo é circunscrito por uma propriedade de natureza e de um modo físico, porém não circunscrito em razão da união e de um modo hiperfísico.” Esta distinção tem fundamento não na Escritura, nem na natureza da coisa; é de fato ilógica e ridícula, porquanto se afirma que um corpo é recipiente de propriedades contrárias - localidade e não-localidade. O modo é, na verdade, apresentado inutilmente quando a coisa não é reconhecida, (c) “O corpo de Cristo às vezes era invisível (aphanton) e não visto (aoraton )” (Mc 16.12; Lc 24.31; Jo 8.59). Isto ocorreu não por uma separação do corpo e sua visibilidade, mas em parte por uma evasão ou retirada miraculosa, em parte por um ofuscamento (retentionem) dos olhos para que não fosse reconhecido. XIX- Oitavo, contra a onisciência, argumentamos assim: não pode ser denominada onisciente a natureza que ignora algo, cresce em conhecimento e é finita. Ora, tal é a natureza de Cristo, que não conhece o dia do juízo (Mc 13.32), progrediu em sabedoria (Lc 2.40,52) e é finita e limitada (e por isso não-receptiva do infinito). 8 Onisciência

Nono, contra a onipotência. Esta não é comunicada * " àquele que reconhece outro mais poderoso do que ele mes­ mo, à qual toca certo poder passivo. Aquele que é onipotente, esse mesmo é impassível e imortal. Ora, Cristo (segundo a natureza humana) era passivo e mortal e tinha necessidade da sustentação do Pai (Mt 26; Jo 17). Tampouco se deve dizer que Cristo agiu em conformidade com a economia (k a t' oikonomian) (porque se humilhou), mas não com base em necessidade ou indigência. Embora seja verdade que o Filho de Deus assumiu nossa natureza com base na economia e não com base em necessidade, contudo é falso que a natureza humana de Cris­ to não necessitasse simplesmente do auxílio divino para sua conservação. 10 O p o d er XXL Décimo, contra o poder de vivificar. Quem quer que tede vivificar n*ia 0 P°der inerente de vivificar é Deus, porque o poder de vivificar pertence exclusivamente a Deus: “Contigo está a fonte da vida” (SI 36.9). E a vida de Deus nada mais é do que sua própria essência 9 Onipotência

ativa, a qual não pode ser comunicada a uma natureza criada. Finalmente, se a natureza humana possuísse tal poder de vivificar, não se poderia dizer que clc morreu, porque a vida de Deus não pode ser extinta, nem a união pessoal pode ser dissolvida. Fontes de XXII. “Da união real das duas naturezas em Cristo para uma explanação comunicação de propriedades entre as naturezas, a consequên­ cia não é válida.” A união real das naturezas não remove sua diferença: sim, antes a estabelece, visto que não se pode dizer que são real­ mente unidas (coisas que na união não são distintas). Tampouco isto implica uma comunicação real de propriedades com respeito às naturezas, mas sim com respeito à pessoa (que consiste de duas realmente unidas e reivindica para si as propriedades de ambas). XXIII. Do “Cristo todo para a totalidade de Cristo” ou “da pessoa de Cris­ to para as naturezas, o argumento não é válido.” Não pode o que é atribuído à pessoa ser imediatamente predicado das naturezas, porque a pessoa de fato reivindica para si as propriedades de ambas as naturezas, porém uma natureza não reivindica para si as propriedades da outra, as quais pertencem à pessoa. Do contrário, as naturezas seriam confundidas. Daí podermos facilmente recor­ rer a Mateus 18.20 e 28.20, porque tratam da pessoa no concreto, não da natu­ reza humana no abstrato. XXIV. “Com base na apropriação da natureza humana para a unidade da pessoa, não se extrai bem um argumento em prol da comunicação formal da hipóstase do Logos (Logou ), nem de uma comunicação de atributos no abstra­ to.” A apropriação de natureza pode ocorrer sem uma comunicação de hipósta­ se. Uma sustentação hipostática é suficiente para que a natureza humana (que em si é sem subsistência [anypostatos]) venha a ser substancial no Logos (enyposlatos Logo) e seja sustentada por ela. Daí de fato se segue que ela não tem subsistência, nem subsiste de maneira própria de uma pessoa, visto que nem mesmo na união é uma pessoa; mas, não obstante isso, ela subsiste (ou, antes, tem sustentação) no Logos (Logo). XXV. Quando lemos que “a plenitude da Divindade habita Cristo corpo­ ralmente” (sõmatikõs )” (Cl 2.9), não se pode inferir uma comunicação de atri­ butos no abstrato. (1) Trata-se de Cristo no concreto, não da natureza no abs­ trato. (2) Se se referisse à natureza humana como o templo da Divindade (Jo 2.19), não se poderia deduzir nada daí em prol da comunicação de atributos. Pois uma coisa é habitar no sentido apostólico; outra é comunicar no sentido luterano. Para o apóstolo, “habitar corporalmente” significa que toda a pleni­ tude da Divindade (i.e., a essência divina com toda a plenitude de suas perfeições) estava unida à natureza humana; não em forma de sombra ou por meio só da eficácia ou proximidade (como nos tipos do Antigo Testamento e nos cren­ tes e em outras revelações obscuras e imperfeitas), mas real e pessoalmente, justamente como o corpo se opõe à sua sombra (Cl 2.17) e para os gregos sõma

às vezes significa “pessoa”. Mas, comunicar (no sentido luterano) denota dar e transfundir realmente na humanidade toda a plenitude da Divindade. É eviden­ te que este não pode ser o significado aqui, porque a plenitude da Divindade nada mais é do que a própria essência de Deus com todos os seus atributos; e se a plenitude da Divindade fosse comunicada à carne, a carne seria a própria Divindade e todas as propriedades seriam igualmente comunicadas a ela (o que contraria sua própria hipótese). XXVI. Uma união indivisível (adiairetos ) e permanente (adiastatos ) não demanda imediatamente que onde quer que uma delas esteja unida, aí a outra deve também estar (a menos quando falamos daquelas coisas que são mutua­ mente iguais e das quais uma não excede à outra, o que não se pode dizer da deidade e da humanidade de Cristo). E assim o que está naquela totalidade (que está em toda parte) de fato deve estar em toda parte (se está na totalidade onipresente por equiparação ou de uma união tal como a que existe entre as coisas igualmente infinitas); mas não onde uma natureza finita se une a uma infinita, sendo retida sua própria finitude. XXVII. Se o Logos (Logos ) está em alguma parte fora da humanidade por separação, e assim está separado dela, então realmente se pode dizer que o homem não deve estar em parte alguma. Mas se ela está em alguma parte fora da humanidade por não-inclusão, então não se pode dizer com propriedade que o homem não está em parte alguma porque o Filho de Deus é homem, não por uma co-existência local da humanidade com a deidade, mas por uma união hipostática da natureza humana - feita não com um lugar, mas com o Logos (Logo). Por esta razão, o Logos (Logos) existente na terra é verdadeiramente homem e possui a natureza humana pessoalmente e mui intimamente unido com ela, embora não esteja presente na terra. Portanto, onde a humanidade de Cristo não está, contudo se pode dizer que Cristo, o homem, está, porque o Logos (Logos) (ali existente) sustenta a humanidade (embora não existente ali, mas em outras partes). XXVIII. “Uma vez negada a ubiquidade da natureza humana, não se segue imediatamente uma separação ou divisão das duas naturezas em Cristo.” Uma coisa é o Logos (Logon) existir sem a carne por não-inclusão, e neste sentido isso é admitido porque não está incluído nela por ser infinito. Outra coisa é existir fora dela por separação (o que se nega), porque, embora não esteja incluído, contudo em parte alguma está separada da carne. Esta proposição “a Palavra em algum lugar não é homem” - admite um duplo sentido: ou signi­ fica “a Palavra abandonou a natureza humana em algum lugar”, e neste sentido é falsa, porque a Palavra uma vez assumida nunca é descartada; ou significa que a “Palavra está em algum lugar onde não está a carne da Palavra”. E assim ela é verdadeira segundo a palavra de Cristo (“nem sempre me tendes”, i.e., segundo a humanidade). Em outro lugar ele diz: “estarei convosco todos os dias até o fim do mundo” (i.e., segundo a deidade).

XXIX. Embora Cristo esteja sentado à mão direita de Deus (que é outro lugar), não se segue que ele, segundo a carne, esteja em toda parte. (1) Uma coisa é a mão direita de Deus; outra é estar sentado à mão direita. A primeira é a onipotência e majestade de Deus. A segunda, contudo, é o ofício real do Medi­ ador. Não se pode dizer de forma direta daquele que se assenta à mão direita, tudo o que se diz da mão direita. Do contrário, como a mão direita de Deus é eterna e imensa, e assim aquele que se assenta à mão direita deve ser justamente assim, inclusive a própria igreja (da qual se diz assentar-se à mão direita de seu esposo, SI 45.9) poderia reivindicar o mesmo para si. (2) A frase não é própria, porém metafórica e figurada. Indica o nome do ofício próprio da pessoa, não a onipresença (pantcichousian) ou propriedade da natureza (ou seja, o império c domínio outorgados a Cristo sobre a igreja e o mundo, como o apóstolo o inter­ preta - “Pois ele deve reinar”, ICo 15.25). Ora, reinar não é desta ou daquela natureza, mas da pessoa do Deus-homem (theanthm pou). (3) Não lemos que Cristo está sentado em toda parte, mas somente no céu (Ef 1.20; Hb 8.1). Em virtude deste fato, lemos que ele subiu para o céu, onde a frase “no céu” deter­ mina o lugar que Cristo, tendo subido, ocupa (Jo 14.2,3; 17.13); não é uma significação da glória celestial, a qual é suficientemente expressa pela palavra “assentar-se”. XXX. Lemos que Cristo subiu para o céu para “encher todas as coisas” (Ef 4.10). Ele não encheu todos os lugares com seu corpo, mas os membros da igreja com os dons do Espírito Santo (cujo sentido demandam necessariamente os antecedentes e os consequentes). Nos antecedentes (com base no SI 68.18), ele mostra que o fim da exaltação é a efusão dos dons do Espírito Santo (Ef 4.8). Ele repete imediatamente esta opinião (ilustrada por uma antítese, vs. 9,10, e o que ele disse ali, “deu dons”, ele chama “encher todas as coisas”). No que vem a seguir, ele declara a exaltação de seus efeitos, mostrando como Cristo (sendo exaltado) enche expressamente os membros da igreja (especificada em seus mestres) com seu próprio Espírito. XXXI. Ao lermos “em quem estão ocultos todos os tesouros da sabedoria e do conhecimento” (Cl 2.3), isso não diz respeito à natureza humana de Cristo, mas ou ao mistério do evangelho em razão de significação (acerca da qual Paulo já havia tratado no versículo anterior), ou ao próprio Cristo. Não tanto em razão do sujeito ou da sabedoria com que Cristo foi dotado, como com respeito ao objeto, porque no reconhecimento dele consiste toda a sabedoria salvífica. XXXII. Lemos que o Espírito foi dado (am ettvs) a Cristo “não por medi­ da” (Jo 3.34); não absolutamente, como se os dons do Espírito Santo (outorga­ dos a ele segundo a predição, Is 11.2) fossem simplesmente imensos, como o conhecimento e a sabedoria de Deus são simplesmente imensos. Antes, são dados comparativamente como a nós e a todos os membros de Cristo, que de sua plenitude, como sua cabeça, recebemos graça sobre graça (Jo 1.16). E assim, os que são separados em outros (quanto a este, é dado um dom; àquele,

outro dom “segundo a medida do dom de Cristo” [kata to metron tês dõreas tou Christou, Ef 4.7], i.e., que Cristo quis outorgar a nós), nele se encontram asso­ ciados, porque Cristo é tudo em todos (Cl 3.11). Os que em outros são sempre imperfeitos, nele são perfeitíssimos. Daí lermos que ele foi “ungido com o óleo de alegria acima de seus companheiros” (SI 45.7; Hb 1.9), porque lhe coube ser o “primogênito entre muitos irmãos” (en p a si prõteuein , Rm 8.29). XXXIII. Visto que o juízo universal é obra do ofício medianeiro, é atribu­ ído à pessoa segundo ambas as naturezas, não segundo uma só. Portanto, as operações distintas de cada natureza concorrem para isso, a divina de fato por meio da onisciência e da onipresença, a humana por meio da apresentação ao juízo e aos atos sensíveis e visíveis do juízo descritos em Mateus 25.31 -46. Ao lermos “E lhe foi dada autoridade também para exercer juízo, porque ele é o Filho do homem” (hoti hyios anthrõpou , Jo 5.27), a partícula hoti deve ser tomada não tanto reduplicadamcnte (no sentido de “visto que”), de modo que Cristo, não só como Deus, mas também como homem, é chamado Juiz desig­ nado por Deus (como o apóstolo o expressa, At 17.31), como causalmente (“porque”), para caracterizar a causa da concessão desta autoridade ao Filho isto é, o ofício de Mediador que teve acesso por intermédio da encarnação. Assim [a expressão] Filho do homem denota, aqui, não a natureza humana no abstrato, mas a pessoa no concreto, em relação ao seu ofício; nem significa algo mais senão que tal poder lhe foi dado por ser o Messias (que é chamado por Daniel “o Filho do homem”, 7.13) a quem Daniel viu ser dado pelo Ancião de Dias o império e o poder (visto ser ele aquela pessoa que foi escolhida para tão grande e tão sublime obra medianeira). XXXIV. Cristo não fala daquilo que foi comunicado à natureza humana pelo Logos (Logo) na união pessoal (Mt 28.18), mas apenas mostra o que lhe foi dado por Deus, o Pai, para a execução de seu ofício, não na união, mas após a ressurreição. (2) Ele não fala do poder (que é uma propriedade essencial de Deus), mas do poder delegado (que é uma função pessoal do Mediador); ele não diz p asa dvnamis, mas pasci exousia, para denotar o direito e autoridade de ordenar e julgar. Daí acrescentar imediatamente: “Ide, portanto, e ensinai”. Se todo o poder requer onipotência para seu exercício, não é necessário que aque­ le que tem todo o poder tenha imediatamente onipotência com respeito a am­ bas as naturezas. E suficiente que ela pertença à pessoa no tocante a uma natu­ reza. (3) Ele não diz “à natureza humana”, mas “a mim”, para designar a pes­ soa no concreto, não a natureza no abstrato. (4) Embora nada seja dado propri­ amente à deidade quanto à essência; contudo, economicamente, pode, tanto quanto ao ofício (para que o empreenda e o execute segundo a vontade do Pai) como quanto à manifestação (para que a glória da deidade, que esteve oculta na forma de servo, agora se revele e se tome conspícua a todos, Jo 17.5). XXXV. Aquele que opera milagres por uma virtude própria e física tem de ser onipotente. Cristo como homem, porém, não os opera por seu próprio po-

der, mas à maneira de um instrumento moral. Portanto, ele tem de concorrer para uma obra miraculosa, contribuindo com o que é seu, porém a virtude infinita pela qual o milagre foi propriamente produzido pertencia unicamente à divindade (Mc 5.30). Os milagres são atribuídos a Cristo no concreto, não à humanidade no abstrato. XXXVI. Lemos que a carne de Cristo é vivificante (Jo 6.48), não eficien­ temente (produzindo por si só vida eterna), mas meritoriamente (adquirindo um direito à vida para nós por meio de sua morte). Também nos símiles se deve reconhecer a sinédoque, pela qual a obra que pertence propriamente à pessoa, segundo ambas as naturezas, é atribuída à carne ou ao sangue, por meio de uma sinédoque da parte. XXXVII. Embora à pessoa denominada com base em uma natureza seja atribuído o que pertence a essa natureza, contudo se derivaria a falsa idéia de que se atribui ao sujeito o que não lhe pertence; por exemplo, atribuem-se a Deus sofrimento e morte - o que não lhe pertence (At 20.28). Não são atribu­ ídos a Deus como o sujeito de fixação, mas à pessoa (que é Deus) no tocante ao sujeito de dita denominação (o que é suficiente para remover uma falsa concepção). XXXVIII. As várias distinções apresentadas pelos luteranos, com o fim de conciliar as contradições que ocorrem em sua opinião, não podem desatar o nó e envolvem múltipla contradição. (1) E do ato da pessoa e da natureza que a natureza humana (quanto à segunda) seja finita, porém onipresente quanto à primeira, (a) Mas isto não procede, porque o ato de uma pessoa não pode pertencer à natureza que não é uma pessoa. E se um ato pessoal pertencesse à carne de Cristo, realmente ela seria uma pessoa, (b) Personalidade não é um ato divino, mas o modo de uma coisa distinguir-se de sua essência e existência. (c) Um ato divino não pode ser atribuído à natureza humana (que não é Deus). (d) Esse ato pessoal destrói ou não o ato da natureza. Se destruísse, a carne cessaria de ser carne, porque um ato da natureza é a própria natureza. Se não, então a carne de Cristo poderia ser sempre chamada infinita [.s/c] e circunscrita dentro de determinado espaço (o que é incompatível [asystaton] com sua ubiquidade). XXXIX. (2) A razão de um modo físico e de um hiperfisico (ou majestoso) é a mesma, (a) Um modo hiperfisico não destrói uma natureza, porém a ador­ na. Mas o modo de estar em toda parte a destrói, e por isso mesmo é antifísico. (b) O corpo de Cristo, pela união, não perdeu a quantidade, e portanto nem seu modo nem sua dimensão, (c) Se o modo de majestade significa apenas aquela glória excelente (que a carne assumiu na hipóstase do Logos [Logou ]), então de fato introduz uma prerrogativa da carne acima de todas as demais criaturas; po­ rém não uma comunicação de propriedades divinas. Não obstante, se significa um conjunto de todos os atributos divinos (visto que a majestade nada mais é do que a deidade), segue-se que a própria deidade é comunicada à carne de Cristo.

XL. (3) Costumam distinguir em Cristo um duplo ser - local, segundo o qual ele ocupa certo espaço; e não-local, segundo o qual ele existia em toda parte desde o princípio da encarnação. Isto, porém, vem a ser ilógico: (a) visto que a relação de tempo não é menos relacionada com o corpo do que a relação de lugar, então se admitirá em Cristo uma dupla existência: uma temporal e uma não-temporal (ou eterna), o que, no entanto, eles não mantêm, (b) Localidade e não-localidade são conceitos contraditórios, não podendo pertencer à mesma coisa; nem aspectos diversos assistem a tudo. Pois visto que a união hipostática não remove a natureza do corpo, ela não elimina a existência local e assim não pode dar-lhe uma existência não-local, porque o que deixa de lado uma parte da contradição não pode ao mesmo tempo atribuir-lhe a outra. XLI. (4) Distinguem “posse” (k tê s in ) e “uso” (c h r ê s in ), “por si só” e “quan­ to à outra coisa” (k a t ’a lio ). Afirmam que a deidade de Cristo é por si só onipre­ sente, segundo a posse (k a ta k tê sin ) e quanto ao primeiro e ao segundo ato ao mesmo tempo; mas a humanidade somente quanto à outra coisa (k a t ’ a lio ) e segundo o uso (k a ta c h r ê sin ). Isto, porém, é falso, (a) porque tais distinções removem o próprio sujeito (do qual tratamos). Todos eles tendem a isto - que a onipresença de um modo ou de outro pertence ao corpo de Cristo, porque ele não pode permanecer corpo se for onipresente, (b) Nas coisas terrenas, posse (k tê s in ) ou propriedade às vezes pode ser distinguida do uso de uma coisa, porque aquele que tem o c h r ê s in ou o uso de uma coisa nem sempre tem o senhorio. Mas isto não é assim nas coisas divinas. Nenhum outro é onipresente pelo uso senão aquele que é tal pelo senhorio (visto que Deus não dá sua glória a outro), (c) Se “estar em toda parte quanto a outra coisa” (k a t ’ a lio ) só signifi­ ca onipresença com respeito ao concreto ou à pessoa, o sentido será verdadei­ ro, porém com uma locução inadequada. Não obstante, se implica a onipresen­ ça dada à carne em virtude da união, é uma distinção absurda, envolvendo uma incompatibilidade (a s y s ta ta ), qual seja, que o mesmo sujeito está, ao mesmo tempo, circunscrito e não-circunscrito. XLII. Os exemplos da alma (que comunica vida ao corpo) e do fogo (que comunica ao ferro aquecido a capacidade de queimar e de brilhar) não favore­ cem a comunicação de propriedades. A vida que é produzida no corpo pela alma não é uma propriedade da alma, mas o efeito. O poder de brilhar e de queimar no ferro aquecido não está no ferro, mas no fogo latente e inserido nos poros do ferro. N

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Cristo, o Mediador, estava obrigado a exercer seu ofício sob um duplo estado? Isso afirmamos.

O duplo estado de Cristo: de hum ilhação e de exaltação.

I- Até aqui tratamos da pessoa de Cristo. Agora vamos falar deste estado em que ele tinha de exercer o ofício a ele incumbido pelo Pai. Comumcnte este é tido como duplo: um de esvaziamento e humilhação; o outro, de exaltação e

majestade; de sofrimento e de glória; de batalha e de triunfo; do caminho e da meta; de morte e de vida. ® ^ue se£ue demonstra a veracidade de ambos. (1) Os " oráculos do Antigo Testamento nos quais ele é predito. No salmo 8 se menciona que ele foi feito inferior aos anjos (que é o esvaziamento) c se fala de uma coroa de glória e de honra (que é a exaltação). No salmo 110.7 lemos do Messias que “De caminho, bebe na torrente e passa de cabeça ergui­ da”. Por “torrente” denota-se a multidão, o peso e a breve duração dos sofri­ mentos de Cristo. Pois em toda parte as águas são um símbolo de calamidades (SI 69.2,14,15; 32.6; Jó 21.20; 34.7; ls 51.17), em oposição ao rio de delícias do qual Deus dá de beber a seu povo em graça e glória (SI 36.8*). Também “beber da torrente” denota a comunhão de sofrimentos (que tinha de ser supor­ tado por Cristo em sua jornada ao longo desta vida, que era a via da glória). Não obstante, por “cabeça erguida” indica-se a glória que seguiu seus sofri­ mentos pela ordenação de Deus e a necessidade de nossa salvação (Lc 24.26; Fp 2.9). E assim “a pedra que os construtores rejeitaram, essa veio a ser a principal pedra, angular” (SI 118.22), isto é, Cristo que frequentemente é com­ parado a uma pedra e a um fundamento (Is 28.16; 1Co 3.10), desdenhosamente rejeitado pelos escribas e pelos sacerdotes, a cujo cuidado foi confiada a edifi­ cação da igreja, como inútil e danoso ao edifício, é constituído por Deus a cabeça da igreja e uma pedra angular, a qual une e sustenta ambas as paredes, as judaicas e as gentílicas. Em Isaías 53, o duplo estado do Messias é tão graficamente pintado, que Isaías parece antes um evangelista relatando even­ tos do que um profeta predizendo o futuro. Daí Cristo demonstrar, com base nos profetas, a veracidade e a necessidade de ambos os estados (Lc 24.26,27); e 1 Pedro 1.10,11 afirma que os profetas inquiriram diligentemente sobre os sofrimentos e as glórias que os seguiriam. (2) As várias passagens do Novo Testamento, nas quais é exposto o cumprimento dos oráculos (Fp 2.7-9; 2Co 13.4; ICo 15.3*,4; Hb 2.9; 1Pe 3.18; lTm3.16).

Sua veracidade

Sua n ecessidade ■ ^ ua necess'dade se evidencia da parte tanto de Deus (1) da p a rte ' Q1131110 de Cristo, bem como de nossa parte e da parte da de D eus salvação a ser-nos outorgada. (1) Da parte de Deus por­

" que para reconciliar Deus conosco e nos obter os frutos da graça salvífica, duas coisas deveriam ser feitas: primeiro, era preciso ofere­ cer satisfação à justiça ofendida pelo sofrimento e pela morte de Cristo; segun­ do, os dons da graça tinham de ser derramados sobre os homens (o que foi feito na exaltação, Ef 4.8). ^ Parte de Cristo, porque ele tinha de manter uma dupla relação: de fiador (para fazer satisfação por nós) e de cabeça (para vivificar-nos e nos governar em união consigo). Com res­ peito à primeira, ele tinha de agir por nós junto a Deus, fazendo e sofrendo tudo o que nos era devido. Com respeito à segunda, ele tinha de agir no nome 2 Da p a rte de Cristo

de Deus em nosso favor, nos comunicando os benefícios do pacto para nos atrair à comunhão com ele. Seu tríplice ofício também demanda isto. O sacer­ dotal consiste de duas partes: satisfação na terra; intercessão no céu. Quanto à realeza, ele tinha que lutar para adquirir para si um povo antes que pudesse subir ao trono e assumir as rédeas do governo. No profético, ele tinha primei­ ramente que ser ministro da circuncisão entre seus irmãos antes que pudesse subir ao céu como a luz dos gentios e o mestre do mundo. ^ ^ e nossa parte, somos oprimidos por dois males que o pecado nos acarretou: culpa à vista de Deus e cor­ rupção inerente em nós. A culpa não podia ser removida senão pelo sangue de Cristo (o qual foi um resgate [antilytron] por nossas almas); a corrupção não podia ser lavada exceto pela graça do Espírito, sendo este o fruto de sua exal­ tação (Jo 16.7). 4. Da pa rte (4) Da parte da salvação, para sua fruição requeriam-se duas da salvação. co*sas: (a) aquisição; (b) aplicação. Para a aquisição, era ne­ cessário um estado de humilhação, porque ela não podia ser adquirida exceto por meio da morte. Para a aplicação, contudo, era necessário um estado de exaltação, porque ela não podia ser aplicada exceto pela eficácia da vida. Numa. ele mereceu para nós o direito à vida; na outra, ele no-la confe­ re fatualmente. Na primeira, a justiça de Cristo foi exercida para nossa recon­ ciliação com Deus. Na outra, o poder de Cristo foi exercido contra o Diabo e o pecado. Em ambas, ele realizou a obra que o Pai lhe deu para fazer. VI. Embora Cristo vivesse num estado de humilhação, contudo esse estado de humilhação não o impediu de emitir muitos raios de sua glória divina para o fortalecimento (asphaleian) de nossa fé: seja nos milagres que operou, seja nas coisas maravilhosas que lhe aconteceram (tais como as que foram contempla­ das em sua natividade, em seu batismo, em sua transfiguração e em sua morte). VII. Caso se indague - em conformidade com qual natureza a humilhação e a exaltação são atribuídas a Cristo? respondemos que isto se refere propri­ amente à pessoa e deve ser atribuído a ambas as naturezas (mas com uma grande diferença). A natureza humana, de fato a depressão e exaltação propri­ amente ditas. A divina, contudo, somente com respeito à ocultação e à mani­ festação, relativas à carne como um véu (pelo qual ela foi coberta e do qual se manifestou). O esvaziamento pertence propriamente à natureza humana, visto que ele tomou sobre si nossa fraqueza e sofreu e morreu. A exaltação, contudo, lhe pertence, porque ao ressuscitar ele despiu-se de todas as fraquezas e assu­ miu a glória que não possuía antes. Quanto à deidade, porém, ela não foi dimi­ nuída na humilhação, nem intensificada na exaltação. Mas se lhe atribui esva­ ziamento quanto à ocultação e moderação da glória e majestade sob a forma de servo. A exaltação, porém, lhe é atribuída quanto à manifestação (kata phanerõsin) e desvendamento, quando (sendo removido o véu da fraqueza da carne) aquela glória que ele possuía desde a eternidade e que esteve oculta por 3. D e nossa parte.

algum tempo sob aquele véu, por fim brilhou na pessoa do Mediador, exaltado acima de todos os céus (Jo 17.5). VIII. Lemos que o Filho de Deus a si mesmo se esvaziou (Fp 2.6,7) não por uma abdicação da deidade (pois ele permaneceu sempre igual a Deus, Jo 5.17,18), mas por uma ocultação dela sob a forma servil. Ele se tomou pobre (2Co 8.9), não pela perda das riquezas celestiais, as quais ele sempre reteve (visto que a plenitude da Divindade estava nele e os tesouros da sabedoria e do conhecimen­ to permaneceram nele, Cl 2.3,9), mas por uma ocultação delas sob a carne fraca e necessitada (Mt 8.20; Ef 4.9). D

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E m que ano, mês e dia se deu o nascimento de Cristo?

^ Embora haja várias épocas (quer sacras ou profanas) pelas Quais se costumava marcar os tempos, contudo não há uma que se equipare em dignidade à era cristã. A natividade do Salvador é inquestionavelmente a primordial de todas as épocas. Todos os tempos precedentes olhavam para ela como seu centro feliz e próspero, e dela todos os tempos posteriores fluem como de uma fonte até o fim das eras. “A geração de Cristo”, diz Leão, “é a origem do povo cristão, e o nascimento da cabeça é o nascimento do corpo, e enquanto adoramos o nascimento do Salva­ dor nos deparamos a celebrar nosso próprio princípio” (“On the Feast of the Nativity”, 6.2 [NPNF2, 23:137; PL 54.213]). q , II. Ora, ainda que a excelência e a utilidade daquela sejam tão teve inicio granc*es*contudo é uma verdade não menos maravilhosa que os ’ cristãos só há pouco pensaram em estabelecê-la e usá-la. Pois antes do século 7° nada se lê sobre o nascimento do Senhor ser aplicado à designação de alguma atividade, seja civil ou eclesiástica. E verdade que Justiniano, que reinou 500 anos depois de Cristo, por um edito concernente à notação dos tempos e os documentos de atos públicos desejou que uma quarta marca dos imperadores fosse adicionada às antigas designações dos tempos, a partir da construção da cidade, dos nomes de cônsules, de taxas ( Corpus luris Civilis, III: Novellae 47 [org. R. Schoell, 1968], pp. 283-285). No entanto, não diz sequer uma palavra sobre a era cristã. Nem nos pais e nos concílios reuni­ dos naqueles primeiros séculos há alguma menção dela. Primeiro Dionysius Exiguus, um monge cita ou abade romano, indignado porque em seus próprios dias os círculos pascais, que proclamavam os tempos da Páscoa e das festas, os anos eram especialmente designados a partir da perseguição sob Diocleciano (tendo apagado esta marca de um perseguidor pagão e mui cruel), pôs em seu lugar o nascimento de Cristo, na época de Justiniano (532 d.C.). Tendo sido descoberto, isto foi seguido pelo venerável Bede, no século 7®d.C., e por mui­ tos outros (porém privativamente). Pois a era de Cristo não começou a ser

A dignidade da era cristã

empregada nem em atos públicos, nem em sacros, nem em civis antes do tem­ po de Carlos Magno, 800 anos depois de Cristo. III. Depois desse tempo, por mais que os cristãos concordassem no uso de uma época traçada desde o nascimento de Cristo, contudo não se pode dizer o quanto os cronologistas e os teólogos discordavam entre si na fixação do início certo e real daquela era. Alguns apontam para um ano, outros para outro. Sobre isto, uma dupla questão é agitada a qual deve ser distintamente examinada: (1) concernente ao verdadeiro término do ano do nascimento; (2) concernente a seu mês e dia. ^ Quant0 30 primeiro, seria tedioso enumerar aqui todas as °piniões dos cronologistas; muito mais laborioso, se não totalmente impossível, é conciliá-los uns com os outros. De passagem, notamos somente os principais. Scaliger, Calvisius e Helvicus atribuem o ano do nascimento de Cristo ao ano do mundo, 3947; do período Juliano, 4711; da fundação da cidade, 750; de Nabonassar, 745; de Augusto, concernente ao assassinato de Júlio César, 41; do calendário corrigido por Júlio, 43; do reinado de Herodes, 33; e de sua vida, 70 (baseados nos cônsules Lucius Comelius Lentulus e M. Valerius Messalinus). Lansbergius concorda com os anos da cidade e com os períodos Juli­ ano e de Nabonassar, porém adiciona três aos anos do mundo, descendo ao ano 3950. Petavius afirma ser 3979. Salianus (recuando ainda mais) o estende ao ano do mundo, 4052. Tomicllus subtrai um. Para não mencionar outros (que partem mais ou menos disto) - a era vulgar de Dionysius começa cerca do ano do mundo, 3949. Várias opiniões concernentes ao ano do nascim ento

^ ao Estante, como estas são questões mais cronológicas Que te°lógicas, cremos que não se deve despender sobre a matéria trabalho excessivo. Não cremos que de fato contribua rnuito para a segurança (asphaleian) de nossa fé saber preci­ samente em que ano Cristo nasceu, contanto que sustentemos que em sua natividade as marcas do tempo, preditas pelos profetas, realmente concordam. E assim, uma vez descartadas as várias questões envolvidas e que aqui suscitadas, de fato é suficiente agora observar que é mais seguro aquiescer ao que a Escritura quis relatar-nos sobre este tema para a confirmação de nossa fé. Ela põe diante de nós as marcas comuns do aniversário de Cristo em prefe­ rência às especiais. Estas de fato circunscrevem em alguma medida o tempo do natal; contudo, em parte alguma designam precisamente o ano. Três marcas principais são dadas no Novo Testamento, das quais se pode formar um juízo sobre o tempo do nascimento de Cristo. A primeira na notação do reinado de Herodes, em cujos dias lemos que ele nasceu: “Jesus nasceu em Belém, nos dias do rei Herodes” (Mt 2.1). A segunda na designação do recenseamento do mundo inteiro, instituído por Quirino, governador da Síria, por um decreto de Augusto (Lc 2.1,2). A terceira na concordância do décimo quinto ano de Tibério e o Três m arcas do ano do natal dadas na Escritura

trigésimo de Cristo, quando ele foi batizado (Lc 3.1,23). Lemos que Cristo tinha cerca de 30 anos de idade (hõs etõn triakonta) quando foi batizado por João Batista, ao qual lemos que a palavra de Deus veio no décimo quinto ano de Tibério César. Mas, todas essas marcas são gerais e indefinidas. De fato ensi­ nam que Cristo nasceu nos dias de Herodes e por ocasião do primeiro recense­ amento promovido por Quirino, porém não designa precisamente o ano do rei­ nado de Herodes, nem o do recenseamento. Somente duas coisas são certas e indubitáveis. Primeira, que Cristo não nasceu antes do governo de Augusto e do reinado de Herodes, nem depois disso. Segunda, que sua natividade se encaixa nos últimos dias de Herodes, visto que após a morte deste lemos que Cristo regressou do Egito, ainda em sua infância (paidion , Mt 2.20), isto é, em idade tenra. Finalmente, que a morte de Herodes é imediatamente anexada como sendo infligida por Deus (theêlaton), depois que as redes foram armadas con­ tra Cristo e depois do crudelíssimo massacre das criancinhas em Belém. VI. Caso se inquira por que o Espírito Santo quis deter-se nestas marcas mais gerais e nada mais transmitiu de especial acerca do ano do natal (o que se poderia fazer facilmente), a resposta é fácil. Inquestionavelmente, foi: (1) para que ficasse em evidência que a nossa fé e a nossa salvação não giram sobre o gonzo da computação exata dos tempos. E-nos suficiente que Cristo tenha re­ almente nascido no tempo designado pelo profeta, embora não se perceba a notação particular do ano. Ora, não nos pertence definir com riscos o que pode permanecer desconhecido sem riscos. (2) Ele quis também, desse modo, apre­ sentar mais claramente a harmonia de ambos os Testamentos. Pois, como no Antigo Testamento o advento de Cristo é designado pela queda do cetro de Judá e da independência judaica (autonom ias ), sem uma designação mais es­ pecial e precisa delas, assim afirma-se que sua natividade ocorreu sob o reina­ do de Herodes e o império de Augusto. Isto indica eloquentemente que o cetro fora removido de Judá e se exibira o cumprimento dos tempos (pelo qual o advento do Messias fora circunscrito). VII. E embora o ano do natal, propriamente dito, não seja precisamente designado, não se deve daí presumir que a fidedignidade da história evangélica corre perigo. A determinação acurada do tempo pode ser desconhecida sem detrimento da verdade, quando a indagação - E um fato? - é reconhecida por todos (como é o caso aqui). Pois ainda que haja concordância entre os doutores acerca da notação do tempo, contudo todos confessam (inclusive os próprios judeus) que Cristo nasceu num determinado tempo. Portanto, uma designação geral feita pela Escritura pode ser suficiente aqui; nem devemos labutar dema­ siadamente por algo mais. E preferível aqui refrear-nos (epechein) e falar so­ briamente, a afirmar algo levianamente. A questão VIII. A outra questão diz respeito a mês e dia do nascimento, acerca do dia sobre a qual há três opiniões principais. A primeira, que o põe e do m ês do n0 dia 25 de dezembro (que é a opinião comum dos papistas e nascim ento. é aceita também por nossos homens), e que é seguida pela igre-

ja cristã. A outra o põe no final de setembro, que é a opinião de Scaliger, Calvisius, Beroald e outros. Mas quanto a nenhuma delas os argumentos são demons­ trativos, mas apenas prováveis, fundados, em sua maior parte, sobre conjeturas. IX. O principal fundamento da primeira opinião A prim eira de Crisóstomo sobre Lucas 1. A concepção de João Batista e opinião, que a de Cristo ocorreram nos dois equinócios; a natividade, con­ o estabelece tudo, nos dois solstícios. João foi concebido no equinócio ou­ no dia 25 de tonal e nasceu no solstício de verão (a saber, no mês de ju ­ dezembro. nho). Cristo, porém, foi concebido seis meses depois, no equi­ nócio vemal [na primavera] e nasceu no solstício invernal (que se suponha cair, segundo o calendário de Eudóxio e Meton, no dia 25 de dezembro). Ora, ele deduz que João foi concebido no mês de setembro, no equinócio outonal, deste fato - que o anjo Gabriel predisse a Zacarias que a concepção de João seria no décimo dia do sétimo mês, chamado Tishri (que corresponde ao nosso setembro). Esse era o dia das expiações durante o qual Zacarias (que, pelo que se supõe, era o sumo sacerdote) entrava no Santo dos Santos segundo a lei e queimava incenso diante da arca (Lc 1.9). Tendo cumprido esse dever, Zacari­ as foi para casa e Isabel concebeu no início de outubro. Seis meses depois (no início de abril, Lc 1.26), Cristo foi concebido e nasceu depois de nove meses (no final de dezembro). X. No entanto, não é difícil demonstrar que este fundamento é bastante frágil. Repousa sobre falsa hipótese - que Zacarias era o sumo sacerdote que devia queimar incenso no dia das expiações. Isto é rejeitado por mais de uma razão, com base no próprio texto. Pois, se Zacarias era o sumo sacerdote, por que Lucas nada diz sobre isso, não o chamando sumo sacerdote (archierea, mas apenas “certo sacerdote” (hierea tina) (ou seja, do número dos sacerdo­ tes)? Como lemos que ele exercia seu dever sacerdotal segundo a ordem de seu turno (ephêmerias) (dever que pertencia aos sacerdotes ordinários que serviam diariamente junto ao altar e após o serviço de uma semana voltava para casa), não de fato o oficio do sumo sacerdote, que (não vinculado a nenhuma ordem) podia ser empregado em qualquer função sacra e em qualquer tempo? Por que lemos que ele obteve por sorte o serviço (leitourgian) de queimar incenso, quando ao sumo sacerdote, e somente a ele, cabia aquela cerimônia solene, oficialmente, sem o lançamento de sortes? XI. Não se prova o contrário, quer à luz do fato de lermos que ele entrou no templo para queimar incenso (porque queimar incenso do lado de fora do véu e do santuário pertencia a qualquer sacerdote escolhido para isso por lança­ mento de sortes, quando o altar do incenso estava situado fora do véu e do lugar santo [Ex 30.6]); quer à luz do fato de que o povo esperava do lado de fora do templo (Lc 1.21), porque lhes era comum esperarem o regresso do sacerdote, visto que somente a este se permitia adentrar o lugar santo. Portan­ to, o povo (segundo seu costume usual) esperava por Zacarias, enquanto ele

cumpria os deveres sacros que lhe caíram por sorte. Tampouco se prova o contrário à luz do fato de que o anjo lhe apareceu do lado direito do altar do incenso. Isto não se deu do lado de dentro do véu onde estava a arca, mas do lado de fora do véu junto ao altar do incenso, onde se permitia ao sacerdote queimar incenso diariamente de manhã à tarde. XII. A segunda opinião é a de Scaliger, Calvisius e A segunda quais acreditam que Cristo nasceu no equinócio outonal ou per­ opinião o to do final do mês de setembro. Para prová-lo, Scaliger crê ser associa ao possível fazer uma demonstração de “o turno” (ephêmeria) men­ equinócio cionado em Lucas 1.5 (ou seja, da distribuição das famílias dos outonal ou sacerdotes, que cada uma em sua própria ordem de turnos devia ao fin a l de devotar-se ao serviço divino, segundo a ordem estabelecida por setem bro. Davi [ 1Cr 24.7-18], pela qual eram distribuídos em vinte e qua­ tro classes e por sortes, lançadas por Davi, caindo a primeira classe na família de Jeoiaribe, a segunda na família de Jedaia [que era a de Zacarias] e o restante nas famílias ali mencionadas). E porque em duzentos e vinte e quatro anos todos os turnos retornavam aos mesmos dias, com o auxílio deste ciclo sagra­ do, os turnos de famílias particulares podem ser investigados de forma bem mais precisa. Não obstante, a calamidade do cativeiro babilónico, a idolatria de vários reis de Judá e a negligência do culto divino (e igualmente das ordens sacerdotais no templo) introduziram confusão nesta ordem. Judas Macabeus (purificando o templo das contaminações de Antíoco) de tal modo restaurou esta ordem dos turnos que Josefo testifica que nunca foi interrompida até o último cerco de Jerusalém por Vespasiano (cf. JW 6:269,270 [Loeb, 3:454,455]). Em conformidade com esta computação do ciclo hierático, Zacarias (na oitava classe de Abias) entrou em seu turno em 21 de julho, cento e sessenta anos (e cento e vinte e dois dias) depois da festa da dedicação dos Macabeus. Ela terminou em 28 de julho, e, após esse dia (Zacarias regressando à sua casa), Isabel pôde conceber João Batista no início de Agosto e passou cinco meses sem revelar o segredo (segundo Lucas). No começo do sexto mês (ou seja, janeiro), depois de visitar Isabel, Maria concebeu Cristo, dando-o à luz depois de nove meses ou no início de outubro, quase no equinócio outonal. XIII. Esta demonstração, porém, por mais sutil e engenhosa que seja, não parece suficientemente sólida. Ela repousa sobre tantas hipóteses, uma das quais escapando todo o edifício se esboroa, de modo que não consegue um franco assentimento. Aqui se toma especialmente por certo que foi feita uma restaura­ ção desta ordem por Judas Macabeus e nunca mais foi perturbada nem inter­ rompida. Mas, além do fato de que nada se diz da restauração desta ordem (1 Macabeus 4), por qual argumento se nos pode persuadir de que nenhuma inter­ rupção jamais ocorreu depois disso (como afirma Josefo) enquanto tantas mu­ danças poderiam ter perturbado esta ordem (ibid.)? Por exemplo, se alguma família fosse manchada com contaminação legal, se alguma das vinte e quatro famílias tivesse perecido ou não estivesse presente, e outras coisas desse gêne­

ro. E com que base se prova que as famílias sempre permaneceram na mesma ordem, visto que nem sempre estão enumeradas no mesmo grau? Acrescentese a isto que também se presume (sem fundamento seguro) que Isabel conce­ beu imediatamente um ou dois dias depois do regresso de Zacarias, visto que Lucas simplesmente afirma que isto ocorreu “depois daqueles dias” (meta tan­ tas hêmeras), o que implica certa latitude de tempo. XIV. Além desta demonstração de Scaliger, outros argumentos são evoca­ dos em confirmação desta opinião, porém nenhum de grande peso. Por exem­ plo, que Cristo teria nascido no tempo em que os pastores podiam viver fora das portas (agraulein) e passar a noite ao ar livre (dianyktereuein en hypaithrõ); e, contudo, esse não era o tempo de inverno. Mas esta razão parece menos forte para Casaubon (D e rebus sacris e t ... exercitationes ... Baronii, 2, A nnil,N um . 14 [1614], p. 174), porque não devemos formar nosso juízo com base na França ou Alemanha concernente à Judéia e outros países mais quen­ tes e mais ao sul, especialmente tendo em vista que nos países mais frios e mais ao norte este é também o caso (como na Inglaterra, onde não há medo de lobos ou de outros animais selvagens, os rebanhos estão acostumados, durante todo o ano, a passar a noite nos campos). Por que, pois, os pastores da Judéia (muito mais quente) não podiam viver (agraulein) nos campos mantendo vigi­ lância sobre seus rebanhos? XV. Ora, ainda que o tempo do censo instituído por Augusto pareça menos apropriado se fosse inverno, não se segue que devesse ser outro tempo. Pois é preciso buscar aquele tempo não em outra fonte além da vontade do impera­ dor, para cujo deleite todas as coisas eram feitas. Sim, essa sujeição àquelas duras determinações fazia parte da servidão judaica. Tampouco os judeus eram tidos em tal estima pelos romanos que os levasse a consultar sua vantagem ou desvantagem. XVI. Não era necessário que Cristo nascesse na mesma ocasião do ano em que o mundo foi criado (ou seja, no outono). Nada impedia que o mundo fosse renovado por Cristo, mesmo quando sua natividade ocorresse em outro tempo. Não se deveria fazer a promulgação do jubileu evangélico na mesma ocasião que o legal. Qualquer ano e qualquer estação sob o Messias é o ano aceitável do Senhor e o dia da salvação. Oninião XVI1. A terceira opinião é a daqueles que suspendem (epechousi) seu juízo, afirmando que o mês e o dia do natal de Cristo não ' ' * podem ser fixados por ninguém, visto que a Escritura mantém silêncio e em parte alguma lemos qualquer estabelecimento dele nos primeiros séculos da igreja cristã. Concordamos com eles em que não podemos definir temerariamente o que não pode ser solidamente definido; porém só podemos ignorar o que a Escritura quer que ignoremos (que poderíamos determinar facil­ mente aquele ano, mês e dia, se porventura parecesse necessário para nossa con­ solação e fé). Daí crermos que não se deve iniciar nenhuma controvérsia sobre

este argumento. E quando julgamos ser a celebração do aniversário de Cristo mui pia e útil, contudo cremos que a observância precisa do dia 25 de dezem­ bro repousa mais no costume e na longa prática da igreja do que em qualquer mandamento ou exemplo apostólico. Quem quiser consultar mais sobre o as­ sunto, poderá recorrer a Ussher’s Annals ( The Armais o f the World [1658]), Spanheim’s Doubts (Duhia Evangélica [1639]), Baillie’s Chronology (Operis historiei et chronologici [ 1668]), e outros de nossos mestres que têm desenvol­ vido completamente este argumento. D

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Como Cristo fo i concebido do Espirito Santo e nascido da bendita virgem?

^ ® primeiro passo da humilhação e esvaziamento de Cristo ^eve ser buscado em sua concepção e em sua natividade (que sao duas partes de sua encarnação). Pois embora houvesse Provas não obscuras de sua glória em ambos, é certo que aqui se descerra o grande mistério do esvaziamento de Cristo - o eterno e glorioso Filho de Deus quis deixar-se humilhar ao ponto de ocultar-se nos recessos de um ventre materno e assumir a carne frágil e mortal. II. A concepção ou syllêpsis (Lc 1.31), também chamada gennesis (Mt 1.18), é aquela pela qual Cristo foi invisivelmente formado no ventre da bendita vir­ gem, sem a concorrência de homem, mas pelo único poder do Espírito Santo, que a envolveu com a sua sombra: “Aquele que nela é concebido é do Espírito Santo”, ou, “o que nela foi gerado” (Mt 1.20). Nisto se deve observar um duplo princípio: um ativo - o Espírito Santo; o outro passivo - a bendita virgem. . III. O princípio ativo não foi um homem (como na geração Sen principio N ' - • . . ■ . ativo é o ordinaria), porque a concepção tinha de ser tal que permitisse Sue a v'rê 'ndade da bendita virgem permanecesse pura e Es írito Santo ’ inviolável. Também tinha de ser tal que Cristo ficasse isen­ to de toda e qualquer mancha de pecado, o qual geralmente se propaga e se contrai por geração ordinária. Mas o Espírito Santo foi o único (Mt 1.18; Lc 1.35), não à exclusão das outras pessoas da Trindade, que por inteiro concorre para isto, como também para as demais obras do mesmo gênero; mas apropri­ adamente, porque a consumação e a fecundação das coisas geralmente são atribuídas ao Espírito Santo (como as da criação e do governo são atribuídas ao Pai; as da redenção e sabedoria, ao Filho). Isto foi feito a fim de que a geração de Cristo correspondesse à nossa regeneração e tivesse a mesma causa. IV. Ora, o Espírito age aqui não materialmente, mas apenas eficientemen­ te; pelo poder (dêmiourgikõs), não pelo sêmen (spermatikõs)', pela energia (kat ’ exousia), não pela relação sexual (kata synousian)\ de modo que ele foi conce­ bido pelo poder do Espírito, não da substância do Espírito; não por geração,

O prim eiro passo da hum ilhação de Cristo na concepção

mas por bênção e consagração (como os antigos o expressam). Assim a prepo­ sição ek marca a causa eficiente, como às vezes ocorre em outros lugares, quando lemos que “todas as coisas pertencem a Deus” (Rm 11.36) [ek aiitou] e lemos que os piedodos “nascem de Deus” (ek tou Theou, 1Jo 3.9), não pro­ priamente da causa material (como quando se atribui à virgem de quem é dito que ele nasceu). V. E daí podermos responder prontamente à p Não obstante, mulada aqui pelos socinianos - o Espírito Santo pode cor­ eíe não po d e retamente ser chamado pai de Cristo, uma vez que lemos ser cham ado haver aquele concebido este? Porque, uma vez que o título p a i de Cristo. p a i requer geração da substância do gerador (e a geração de uma natureza semelhante à sua) e nem uma coisa nem outra ocorre aqui, é evidente que o Espírito Santo não pode ser chamado pai de Cristo. Além disso, Cristo é chamado “sem pai” (apatõr , Hb 7.3) com respeito à sua huma­ nidade; e Deus é chamado Pai - seu único Pai, e isso peculiarmente (Jo 1.18; 5.17). Um pai não procede do filho, nem é enviado e dado pelo filho, como lemos que o Espírito procedeu de Cristo e foi enviado e dado por ele. Ora, uma coisa é formar por seu próprio poder algo de matéria assumida de alguma outra fonte; outra é gerar de sua própria substância. O Espírito Santo fez a primeira, porém não a segunda (que pertence a um pai). VI. Os socinianos não conseguem melhor sucesso mantendo (com o fim de destruir a divindade de Cristo) que ele é apenas chamado Filho de Deus em virtu­ de de sua extraordinária concepção pelo Espírito Santo. (1) Como já se provou, ele era o Filho de Deus mesmo antes de sua concepção pelo Espírito Santo (Jo 1.1,2; SI 2.7; Pv 8.24), e por causa deste mesmo fato os crentes do Antigo Testa­ mento eram realmente filhos e herdeiros. (2) Ele é chamado Filho de Deus segundo a natureza divina, oposta à humana (Rm 1.3,4; 9.5; IPe 3.18). (3) Assim como ele é chamado Filho do homem, uma vez que foi gerado de ho­ mem da raça de Adão, assim deve ser chamado Filho de Deus, não porque foi concebido pelo Espírito Santo com respeito à sua humanidade, mas porque foi gerado de Deus com respeito à sua divindade. Do contrário, a antítese perpétua e imediata que ocorre entre estes dois nomes não poderia prevalecer. VII. Tampouco isso pode ser provado com base em Lucas 1.35: “O Espíri­ to Santo descerá sobre ti”, dio kai, “por isso também aquele ente santo que nascerá de ti será chamado o Filho de Deus”. As partículas dio e kai não são marcas de um consequente, como se ele fosse o Filho de Deus por ser gerado do Espírito Santo. Pois antes de ser concebido, lemos que ele já subsistia (Jo 1.2; Fp 2.6). Antes, são marcas de uma consequência com respeito à manifes­ tação, porque sua filiação eterna foi declarada a posteriori. Aqui são pertinen­ tes os seguintes argumentos: (1) não se diz “ele será” (estai), mas “ele será chamado” (klêthêsetai) (i.e., manifestado e reconhecido como o Filho único de Deus [Jo 1.18], como em Jo 14, “Vimos sua glória, como do unigénito”). (2)

Não é expresso no gênero masculino ( ho gennõmenos), e sim no neutro (to genm m enori) para indicar não que o homem que vai nascer será chamado “Fi­ lho de Deus”, mas assim será chamado separadamente algo essencial em Cris­ to (i.e., sua natureza ou pessoa divina). Isto se denota muito bem pelo gênero neutro como uma subsistência (hyphistamenon). VIII. Se os crentes são chamados filhos de Deus em virtude da graça da regeneração, não se segue que Cristo fosse distinguido pelo nome em virtude de sua concepção miraculosa. Existe uma razão para que os crentes, analogicamente (só em razão de uma participação de virtudes morais), sejam descritos como nascidos de Deus; outra é a razão quanto a Cristo, o unigénito de Deus, gerado de sua essência e igual a ele em todas as coisas. IX. Além do mais, a operação do Espírito Santo na virgem é expressa na Escritura por duas palavras - epeleusin e episkiasin. “O Espírito Santo descerá sobre ti, e o poder do Altíssimo te cobrirá” (epeleusetai epi se, kai dynamis hypistou episkiasei soi, Lc 1.35), termos pelos quais se designa essa maravilho­ sa e mui poderosa eficácia que opera o mistério. Por epeleusin se denota a presença do Espírito Santo e sua ação em geral; não a ação comum e ordinária exercida na concepção de todos (Jó 10.8; SI 139.15), mas aquela extraordinária e celestial (como o Espírito do Senhor vem em socorro dos que são designados para uma grande e extraordinária obra [Jz 14.6]; e o Espírito desceu sobre os apóstolos quando foi enviado do céu na fornia de línguas de fogo para santificálos e prepará-los para a obra do evangelho [At 1.8]). Por episkiasin se indica peculiarmente o modo daquela operação, que foi: (1) poderosíssima para prote­ ção e defesa (para que a bendita virgem não fosse consumida pela majestade divina); (2) mui eficaz para a fecundação, para que ela concebesse em seu ven­ tre sem qualquer participação de homem (como lemos de uma ave que cobre, aconchega e põe seus ovos e com seu calor os filhotes são incubados) - em alusão à criação, na qual lemos que o Espírito pairava sobre as águas, Gênesis 1.2; assim este feto (pode-se dizer) nascerá daquela virtude [poder] da qual o mundo teve seu princípio; (3) secreta e incompreensível, o que não pode ser rastreado pela razão nem expresso com palavras. Há uma referência a isto na sombra da nuvem que pairava sobre o tabernáculo (Ex 40.34*,35) e no queru­ bim que cobria a arca (2Cr 5.8). Assim Deus quis produzir uma sombra, a marca de uma energia (energeias) secreta e incompreensível, para que não espreitássemos com muita curiosidade o modo deste mistério. Assim o anjo habilidosamente responde à bendita virgem, a qual considerava a questão como impossível, porquanto nunca conhecera um homem. Isso não deveria parecerlhe espantoso, visto que não se daria pela intervenção humana, mas pelo poder de Deus (para quem nada é impossível) e de uma maneira totalmente inusitada (que lhe era conveniente admirar, não sondar). X. Ora, houve aqui duas operações principais do Espírito Santo: (1) a pre­ paração do material; (2) a formação do corpo de Cristo do material preparado. Primeiro, ele prepararia por meio de uma santificação adequada o material

separado da substância da virgem, não só vestindo-o com aquele poder e ele­ vando-o àquela atividade que seria suficiente para a geração (sem o sêmen masculino), mas também purificando-o de toda mácula de pecado para que fosse sem mancha (akakos) e puro (amiantos), e assim Cristo pudesse nascer sem pecado. Por isso não houve necessidade de relação sexual na concepção imaculada de Maria. Pois, embora não haja nenhuma criatura possuída de todo e qualquer poder que possa gerar um ente puro de um impuro (Jó 14.4), contu­ do o poder de Deus não deve ser medido dessa forma (para quem nada é im­ possível e que chama à existência as coisas que não existem). XI. A segunda operação foi na formação do corpo de Cristo, à qual pertence sua organização, animação e a união de corpo e alma, respectivamente, com o Verbo. O apóstolo expressa isto pelo uso de katartismon : “um corpo me prepa­ raste” [soma kafêrtisõ moi, Hb 10.5). Pois, pela encarnação, o corpo de Cristo foi formado de tal modo, e de tal modo preparado pelo Espírito Santo, que nele ele pudesse realizar um ministério servil, obedecer ao Pai e ser sacrificado. ^ as0 se *nclu‘ra (como fazem os escolásticos) como *st0 ^°' realizado pelo Espírito Santo, se num instante ou sucessivamente, pode-se responder distintamente que aqui ocorreram três fatos: (1) a preparação do material do qual 0 corP° de Cristo foi formado; (2) a formação do corpo daquele material adequadamente preparado; (3) a perfei­ ção do mesmo corpo gerado pouco a pouco numa quantidade justa por seu próprio aumento. Quanto ao primeiro e ao terceiro, todos concordam que ele foi realizado sucessivamente. Quanto ao segundo, porém, o qual diz respeito à formação do corpo, os teólogos disputam entre si, alguns advogando uma for­ mação momentânea, outros uma formação sucessiva (com os quais também concordamos). XIII. (1) A formação momentânea de todo o corpo de Cristo, e sua conjun­ ção com a alma são imaginadas sem o endosso da Escritura (na qual não se acha o menor traço de tal formação miraculosa). Sim, mencionam-se expressa­ mente espaços de tempo nesta atividade, e os atos de concepção, geração e nascimento são distintamente enumerados e se lhes atribui tempo ordinário (Lc 1.26,38,56,57; 2.6). (2) Lemos que Cristo, ao assumira natureza humana, foi feito semelhante a nós, nem mesmo excetuando as enfermidades (a não ser o pecado). Portanto, ele não foi formado num instante, mas em conformidade com a maneira ordinária, pouco a pouco. (3) Fora da madre, ele cresceu como os demais corpos; portanto, não houve nenhuma diferença quanto à sua formação na madre (inclusive a geração de nove meses foi sucessiva e ordinária, a qual estaria fora de propósito se o corpo fosse formado e aperfeiçoado num instan­ te). Pois, se o corpo de Cristo fosse aperfeiçoado num instante, poderia igual­ mente ter nascido no mesmo instante; e a bendita virgem teria que suportar as dores e os labores de uma gestação ordinária.

O corpo de Cristo f o i fo rm a d o num só m om ento ou sucessivam ente?

XIV. Não se deve imaginar que este dogma fomente algo indigno sobre o Espírito Santo. Embora o corpo de Cristo pudesse sem delonga e num só instan­ te ter-se formado plenamente, contudo nada impede que sua operação aqui te­ nha sido sucessivamente (como geralmente ele costuma agir do imperfeito para o perfeito nas obras da natureza e da graça). Não é de importância inquirir curiosamente em que tempo a alma se uniu ao corpo, o Logos (Logos) à carne. Basta-nos crer que a natureza humana, desde o momento em que começou a existir, nunca existiu à parte do Logos {Logo), mas foi assumida por ele e hipostaticamente unida a ele. E se a alma não podia ser introduzida no corpo a menos que já estivesse organizado e completamente formado (um ponto em que os médicos não concordam entre si), não se segue que o Logos (Logon) não pudesse imediatamente unir-se à carne, visto que sua obra não podia res­ tringir-se à alma, quer presente quer ausente. E o corpo de Cristo (não como já animado) estar unido ao Logos (Logo) não é mais absurdo do que o mesmo corpo (quando sem vida no sepulcro permanecer unido ao Logos [como os teólogos reconhecem que se deu na morte de Cristo]). XV. Desta concepção miraculosa de Cristo pelo Espírito Santo surge a santidade absoluta de Cristo e sua isenção de todo pecado, seja imputado ou inerente. Não constitui obstáculo que ele seja chamado filho de Adão (Lc 3.38) em quem todos nós morremos (1 Co 15.22). A solidariedade do pecado perten­ ce somente à posteridade natural de Adão, que se destinava a proceder dele de modo ordinário; não àquele que descendeu dele de maneira evidentemente ex­ traordinária. E como a graça da santa concepção o preservou da participação da corrupção, por que o não teria isentado da culpa (que costuma ser imputada somente aos seus herdeiros naturais segundo a ordenação divina)? E se Cristo podia estar nos lombos de Abraão com Levi, e no entanto não dizimou com ele, o que o impede de estar em Adão e no entanto não haver pecado com ele e nele? XVI. O nascer da bendita virgem seguiu-se à concepção de Cristo e ocorreu no tempo do parto fixado e definido por natureza. Este parto, ainda que miraculoso por ser de uma vir­ ’ gem, contudo pode muito bem ser chamado natural, porque ela deu à luz de maneira usual, como todas as mães. Daí não se pode dizer que deu à luz sem dores. Porque, visto que ela não era sem pecado, teria suportado a punição também do pecado neste particular e a sorte primeva das mães: “Em dores darás à luz filhos” (Gn 3.16) e “A mulher, quando tem dar à luz tem tristeza” (Jo 16.21); muito menos (com os papistas que derivam daí a transpo­ sição dos corpos) se deve afirmar que Maria deu à luz com a madre cerrada. A Escritura declara expressamente o contrário (Lc 2.22,23, quando aplica a Cris­ to a passagem “todo macho que abre a madre”, Ex 13.2) e também a natureza da própria coisa (que não admite tal transposição e a existência de dois corpos num só lugar). Além disso, não é a virgindade de Maria posta em xeque. Ela não consistia nisto - que Cristo nasceu de uma madre cerrada - , mas que ela era uma virgem intocada por homem.

A natividade de Cristo foi ordinária

XVII. Aqui se evoca falsamente a passagem concernente à “porta fechada” (Ez 44.2) por meio da qual ninguém podia entrar, exceto o príncipe. Além de ser alegórica e por isso mesmo não argumentativa (como confessam nossos oponentes), ela é estranha ao tema discutido aqui. Pois o edifício mostrado ao profeta não era um tipo da bendita virgem, mas um tipo da igreja universal. A porta do céu (fechada em decorrência do pecado) está aberta para a igreja e é destrancada por Cristo, seu Sumo Sacerdote e Príncipe. XVIII. Com base nesta natividade. Cristo com razão é chamado filho de Maria, como, com base na geração eterna, ele é intitulado o Filho de Deus. Não que a dupla filiação em Cristo (uma com respeito ao Pai, no céu; a outra com respeito à sua mãe, na terra) constituísse um duplo filho, mas uma pessoa sin­ gular à qual vem aquela dupla relação (visto que um e o mesmo sujeito é reci­ piente de muitas relações). XIX. Aqui se formulam especialmente duas perguntas: (1) por que Cristo deveria nascer de uma virgem? (2) Tendo sido virgem antes e durante o parto, continuou virgem? A primeira se responde em geral que isto era necessário ao cumprimento dos antigos oráculos que o prediz expressamente (Is 7.14) e que por isso mesmo o Messias é geralmente descrito pela semente da mulher e pelo fruto da madre. Mas, em particular, costumam-se assinalar várias razões para aquela dispensação. (a) Um novo modo de geração se adequava a um novo homem, e uma pessoa extraordinária requeria um nascimento extraordinário. Antes, o primeiro homem foi criado imediatamente por Deus; depois, Eva foi extraída de um homem sem mulher. Depois disso, todos os homens nascem ordinariamente de um homem e de uma mulher. Um quarto modo restava para manifestar a admirável sabedoria de Deus na produção de seres humanos - que um homem nasceria de uma mulher sem nenhum homem (o que se cumpriu somente em Cristo). Sobre isto, alguns apontam para a passagem: “Porque o S e n h o r criou coisa nova na terra: uma mulher infiel virá a requestar um ho­ mem” (Jr 31.22, i.e., em sua madre), (b) Deus quis que ele [seu Filho] nascesse de mulher como os demais homens para provar que ele era genuinamente ho­ mem. Deus não quis que ele fosse gerado do sêmen de um homem “para que creiamos que ele era algo mais que mero homem”, como o expressa Ambrósio (de Sacr. Incarn.+) - o primeiro pertencia à nossa necessidade; o segundo, à sua dignidade, (c) Não era conveniente que o mesmo filho tivesse dois pais, mas como ele não reconhecia nenhuma mãe no céu (como o Filho de Deus), assim não deveria reconhecer nenhum pai na terra (como o Filho do homem) e assim realmente viesse a ser sem pai (apafõr) e sem mãe (amêíõr). (d) Se ele fosse concebido do sêmen masculino, então não se poderia dizer que ele foi concebido do Espírito Santo e seria um filho natural de Adão e assim o herdei­ ro de todos os seus males. Portanto, a fim de que se fizesse evidente que ele nada tinha em comum com o pecado (o qual nos é imposto por geração ordiná­ ria), cra necessário que nascesse de maneira extraordinária. XX. Se alguém indagar com a virgem - “Como isso é possível?” - , a res-

posta do anjo deve ser-nos suficiente - “Não há impossíveis para Deus” (Lc 1.37). Agostinho declara que, “Caso se peça uma razão, não causará espanto; caso se exija um exemplo, não será singular. Admitamos que Deus pode fazer algo que nos leve a confessar nossa incapacidade de o investigar; em tais coisas, toda a razão do feito é o poder do seu realizador” (Letter 13 7, “To Volusian” 2.8 [FC 20:24; PL 33.519]). Tampouco deve isto parecer absurdo, seja aos judeus, seja aos gregos, visto que entre eles mesmos várias coisas não menos absurdas e impossíveis se propõem à razão. Cirilo de Jerusalém reforça este mesmo fato excelentemente (C aíechetical Lectures 12 [NPNF2, 7:72-81]). XXI- Quant0 à segunda questão sobre a virgindade de Maria, a questão não diz respeito ao tempo do nasciment0 ou 30 temP° que 0 antecedeu. Tratamos, porém, do tempo que segue ao nascimento - se ela permaneceu sem­ pre virgem depois. Isto não é claramente expresso na Es­ critura, no entanto é piamente aceito pela fé humana com base no consenso da igreja antiga. E assim é provável que a madre na qual nosso Salvador recebeu os auspícios da vida (por meio da qual ele teve acesso a este mundo como se fosse um templo) foi tão consagrada e santificada por tão grande visitante, que permaneceu sempre intocada pelo homem; nem mesmo José chegou a coabi­ tar com ela. XXII. Daí Helvidius e os antidicomarianitas (assim chamados por terem sido oponentes [antidikoí] de Maria) serem merecidamente repreendidos pelos pais por negarem que Maria foi sempre virgem (aei parthenon). Afirmavam que ela coabitara com José após liberada; sim, também dera à luz filhos dele. Como Agostinho observa, eles confiam nos argumentos mais frívolos, isto é, porque Cristo é chamado o “primogênito” de Maria (cf. D e H aeresibus 56,84 [PL 42.40,46]). Pois, como Jerônimo bem observa, ele foi assim chamado por­ que nenhum foi gerado antes dele, não porque houvesse outro depois dele. Daí entre os advogados: “Ele é o primeiro a quem ninguém precede; ele é último, a quem ninguém segue”. Os hebreus costumavam chamar também o primogênito simplesmente o único gerado; Israel é chamado “o primogênito de Deus” (Ex 4.22), embora fosse o único povo escolhido de Deus. Assim lemos que “o pri­ mogênito” é “santo para Deus” (Êx 13.2), o primeiro a abrir a madre, se outros o seguiam ou não. Do contrário, o primogênito não seria redimido enquanto não fosse procriado outro descendente (a lei mostra que isto é falso, porque ordena que ele fosse redimido um mês após o nascimento, Nm 18.16). XXIII. (2) Nem mais solidez conseguem extrair isto do fato de que no Novo Testamento algumas pessoas são chamadas “os irmãos de Cristo”. E comum na Escritura não só que alguém e os irmãos completos por natureza seja designado por este título, mas também parentes consanguíneos e primos (como Abraão e Ló, Jacó e Labão). Assim Tiago e José, Simão e Judas são chamados irmãos de Cristo (Mt 13.55) por uma relação de sangue. Pois Maria (que é chamada por

M aria f o i sem pre virgem tanto antes quanto depois do p arto?

Mateus e Marcos a mãe deles) é chamada por João a irmã da mãe do Senhor. Não obstante, o que lemos em João 7.5, que “nem mesmo seus irmãos criam nele”, deve ser inferido nas relações consanguíneas mais remotas. XXIV. (3) Nem derivação superior disto ocorre quando se diz que José não conheceu Maria “enquanto ela não deu à luz um filho” (Mt 1.25). As partículas “enquanto” e “até que” com frequência se referem somente ao passado, não ao futuro (i.e., conotam assim o tempo precedente, acerca do qual podia haver dúvida ou que era da mais elevada importância saber, como não tendo referên­ cia ao futuro - cf. Gn 28.15; SI 122.2; 110.1; Mt 28.20 etc.). E assim se de­ monstra o que foi feito por José antes da natividade de Cristo (a saber, que ele sc absteve dela); porém não implica que ele viveu com ela de alguma outra forma pós-parto. Quando, pois, lemos que ela se viu com o filho “antes que se juntas­ sem” (prin ê synelthein autous), nega-se a copulação precedente, porém não se afirma uma subsequente. XXV. Embora não ocorresse copulação naquele casamento, ele não cessou de ser verdadeiro e ratificado (ainda que não consumado) por nenhuma relação sexual, porém o consentimento [mútuo] faz o casamento. Portanto, ele foi per­ feito quanto à forma (a saber, vida em conjunto, não separada, e fé não violada), não porém quanto ao fim (a saber, a procriação de filhos, ainda que não defici­ ente quanto ao nascimento do descendente). XXVI. Não obstante, ainda que se acredite piamente que sua virgindade foi perpétua, contudo os papistas lhe atribuem falsamente um voto de virgindade. Pois ela não podia ao mesmo tempo prometer a Deus virgindade e casamento a José, nem fazer voto de viver sem filhos (ateknian ) como algo agradável a Deus (o que ela bem sabia que era objeto de maldição na lei [Dt 7.14] como também seria estar em discrepância com o costume de sua nação, o que foi mencionado com um epíteto de opróbrio por sua prima Isabel [Lc 1.25]). Além disso, ela não poderia ter feito voto nem antes e nem depois de seu noivado. Não antes, pois, se tivesse feito voto, por que se casou (pois de outro modo ela poderia manter sua virgindade com mais segurança)? E com que consciência poderia ela ostentar o título de casada para enganar José e sujeitar-se a unir-se a um esposo com desprezo pela aliança sacra do leito conjugal, sem menospre­ zar Deus? Não depois, porque o voto não teria valor sem o consentimento de seu esposo (o que nenhum argumento pode provar). XXVII. Nem as palavras de Maria estabelecem tal voto (“Como será isto, pois não tenho relação com [ou “não conheço”] homem algum?”, Lc 1.34), como se ela indicasse sua incapacidade moral para fazer um voto, não sua capacidade natural (“não conheço”, i.e., não tenho o costume de conhecer, nem posso); na verdade, não a natureza, nem a lei o proíbem, mas o voto (como afirma Maldonatus, Commentaria in quatuor evangelistas [1863], 2:44 sobre Lc 1.34). Estas palavras são falsamente forçadas a favorecer um voto do qual não há o mínimo vestígio. São somente palavras de uma pessoa que ficou

maravilhada ante a novidade e a grandiosidade do fato e que inquire acerca do modo. Pois para uma virgem era algo maravilhoso o prenúncio de uma concep­ ção imediata e do nascimento, sem se fazer menção da consumação do casamen­ to ou de seu esposo José, simplesmente como se já fossem casados (enquanto ela mesma estava ciente de sua virgindade e ainda não conhecia seu esposo). XXVIII. Caso se inquira mais por que Cristo quis nascer não apenas de uma virgem, mas de uma virgem desposada, várias razões são aduzidas pelos pais com respeito ao próprio Cristo, à sua mãe e a nós. Com respeito a Cristo, para que ninguém o imaginasse como filho ilegítimo e nascido de adultério, para que sua genealogia fosse conhecida da maneira usual do homem José (que se suponha ser seu pai) e de cujos pais ele nasceu; finalmente, para que ele tivesse José como seu protetor e guardião na infância. Com respeito à sua mãe, para que sua reputação e segurança fossem preservadas, e não fosse considerada adúlte­ ra e segundo a lei não fosse apedrejada e morta, e para que tivesse um homem para cuidar dela, defendê-la e protegê-la. Com respeito a nós, para que nossa convicção concernente ao nascimento de Cristo de uma virgem fosse ainda mais confirmada, quando José também o testificou de sua esposa. D

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C r is t o

Quaisforam as graças outorgadas à natureza humana de Cristo? H e/e tinha fé e esperança? Isso afirmamos.

^ 9 uestão não diz respeito à graça eterna que está em Deus (ou seja, o amor e a benevolência com que ele abra‘ " çou Cristo e o abraçará para sempre; sendo este o sentido em que Cristo é chamado o Filho bem-amado [agapêtos] em quem o Pai tem todo prazer, Mt 3.17). Tampouco a questão diz respeito à graça da união pela qual a humanidade foi assumida pelo Logos (Logo) em união com sua pessoa. Antes, a questão diz respeito às graças habituais ou aos dons e perfeições ou­ torgados à natureza humana, em virtude da união hipostática. II. Que tais graças foram verdadeira e plenam Prova de que das a Cristo, a Escritura ensina em muitas passagens: como se outorgaram em Isaías 11.2, onde lemos: “Repousará sobre ele o Espíri­ graças a Cristo to de sabedoria e de entendimento”. E, para este fim, ele é verdadeira e com frequência chamado justo, santo, inocente: Isaías 53.11; plenam ente. Lucas 1.35; Atos 3.14; Hebreus 7.26. Aqui se encaixam as passagens nas quais lemos que ele foi ungido com o Espírito Santo e com poder (At 10.38), ungido com o óleo de alegria (SI 45.7), o que só pode pertencer aos dons do Espírito, maravilhosamente recreando sua alma. Também se designa a plenitude destes [dons] quando lemos que Cristo era “cheio de graça e de verda­ de” (Jo 1.14) e que recebeu o Espírito sem medida (ametrõs , Jo 3.34). III. Não obstante, não devemos presumir que esta plenitude seja simplesE stabelecim ento da auestão

mente infinita, tanto porque a humanidade cm si mesma é finita e não pode ser recipiente do infinito, como porque esta graça é algo criado (o que por isso é contraditório ser infinito). Mas deve ser entendida relativamente: (1) com res­ peito às graças que são comunicadas ou aos anjos ou aos homens, além das graças de Cristo que são muito maiores. Em outros há uma “plenitude de sufi­ ciência”, visto que obtêm de Deus tanta graça quanto seja suficiente para sua salvação. Em Cristo, porém, ela é uma “plenitude de abundância”, suficiente não só pra si mesmo, mas também para outros, de modo que todos nós pode­ mos beber de sua plenitude (Jo 1.16). (2) Com respeito aos graus, porque as graças de Cristo tinham todos os graus - tudo quanto se pode possuir da lei de Deus (além do qual não pode haver nada mais) ou para o qual não se pode encontrar entre os homens nada que seja igual numérica ou internamente. Não constitui objeção que não há algo finito que não possa tomar-se igual a outro. Isto de fato vale para aquelas coisas que são do mesmo gênero e da mesma relação. A graça de Cristo não é assim com respeito às graças de outras criatu­ ras, porque a sua era universal, mas estas são particulares. IV. Estes dons do Espírito Santo, em sua plenitude, sejam extensivos (quanto às partes e espécies), ou intensivos (quanto aos graus), são enumerados por Isaías 11.1,2: sabedoria, entendimento, conselho, poder, conhecimento, temor. A estes os escolásticos acrescentam (com base na Vulgata, porém sem fundamento e necessidade) piedade, que já está incluída no temor de Deus. Neste número não estão incluídos todos, visto que em outras partes se faz menção de outros dons; mas os principais estão indicados, pois eram especialmente requeridos para a administração do ofício imposto a Cristo. Não é dito aí que o Espírito, com seus dons, é conférido somente a Cristo, mas que “repousará sobre ele”. Denota-se com isso não só uma comunicação verdadeira e real, mas também uma continu­ ação e permanência dos dons, visto que Cristo os possui não como um ato e como certo movimento transitório ou perecível, mas como permanentes e fixos (os quais ele usou mui livremente, sempre e na medida que lhe aprouve). os esco*ásticos evocam uma questão - se Cristo ti­ n*ia ^ e esPeranÇa- E nao poucos dentre eles, e especialmen­ te Feuardentius ( Calvinismus exorcizatus sive Theomachia 8 [1563], pp. 327-425), escrito a Calvino que atribui fé a Cristo. Feuardentius chama isto um erro ímpio e contrário à Escritura. No entanto, que não se deve simplesmente negar fé a Cristo, a Escritura, em mais de um lugar, mostra quando denomina Cristo fiel6 (Hb 2.17; 3.2). Pedro aplica a Cristo as palavras do sal­ mo 16 - “Minha carne repousará em esperança” (At 2.26). Cristo, chamando o Pai meu Deus (Mt 27.46), testifica sua fé nele. Mas esta não pode pertencerlhe em todas as formas pertinentes aos homens, visto que dessa maneira ela envolve imperfeição.

Cristo tinha f é e esperança?

6. Nole-se que. literalmente, fiel é aquele que tem fé. Grego: pistos —confiante, [aquele que] tem fé. Note-se ainda que a palavra inglesa faithfuI quer dizer literalm ente cheio de fé. [N. do E.]

l>ortanto’ atr>bui-se fé a Cristo não porque ela seja uma apre’ ensão fiducial da misericórdia divina. Neste sentido, ela pertence somente aos pecadores; nem lhe é atribuída com respeito ao modo de conheci­ mento, tanto quanto se opõe à obscuridade de um enigma (porque ela se opõe à vista [eidei, 2Co 5.7], o que nâo sc pode fazer sem imperfeição, da qual Cristo é isento). Antes, é atribuída a Cristo quanto à substância do conheci­ mento de uma coisa e ao assentimento à coisa conhecida (i.e., à doutrina reve­ lada de Deus), e quanto à confiança, a qual repousa na bondade de Deus, que provê todas as coisas que nos são necessárias. Vil. O mesmo se deve dizer da esperança. Seja qual for a perfeição que exista nela quanto à certeza (pela qual descansamos firmemente na promessa divina acerca de algo futuro) é atribuída corretamente a Cristo; porém não se deve atribuir a ele o que envolve defeito e imperfeição (visto ser ela ainda uma expectativa obscura de algo ainda não possuído, Rm 8.24). Vlll. Embora seja um fato que a alma de Cristo, desde o princípio, se rego­ zijava na felicidade e desfrutava pessoalmente de Deus, em virtude da união hipostática, contudo não possuía ainda sua plenitude (em virtude da necessidade de sofrimento). Antes, finalmente a obteria após sua ressurreição e ascensão, quando (tendo-a obtido) ele foi plenamente glorificado quanto à alma e tam­ bém quanto ao corpo. E assim nada o impedia de crer em Deus e esperar pela glória que lhe fora prometida (Hb 12.2).

E co m o 9

D é c im a T e r c e ir a P e r g u n t a : O C o n h e c im e n t o

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C r is t o

Desde sua própria criação, a alma de Cristo era tão cheia de conhecimento que não podia ser ignorante nem precisava aprender algo? Negamos isso contra os papistas.

I. Os escolásticos distribuem o conhecimento de Cristo em três espécies principais - abençoado, infuso e adquirido - , segundo a tríplice luz da glória, da graça e da natureza. Denominam abençoado aquele pelo qual Cristo vê Deus segundo a essência, como os santos contemplam sua face no céu. Para eles, o infuso é aquele pelo qual (por um hábito sobrenatural) ele conhece as coisas celestiais e tudo quanto pode ser visto por meio da luz da graça. O adquirido é aquele pelo qual ele compreende tudo quanto pode ser conhecido pela luz da natureza ou da razão. Mas, menos corretamente, porque o conheci­ mento beatífico (que pertence aos que o têm obtido) não pode ser adequada­ mente atribuído a Cristo enquanto ainda peregrino na terra, como se verá mais adiante. Portanto, reconhecemos um duplo conhecimento da natureza humana de Cristo enquanto na terra - infuso e adquirido ou experimental. Ele recebeu o infuso pela graça do Espírito Santo que santificou seus dons (referidos em ls 11.1,2). O adquirido é o conhecimento fatual que Cristo granjeava por meio do raciocínio, extraindo conclusões dos princípios do conhecimento infuso, e por sua experiência pessoal (Hb 4.15; 5.8). II. Disputamos aqui com os papistas acerca da natureza e extensão deste

cor,hecimento: não acerca do conhecimento do Cristo glorificado, mas do Cristo vivo na terra; nem se lhe foi dada ‘ ' consciência por meio da graça da união (o que já refuta­ mos); nem se ele laborava sob grosseira ignorância de muitas coisas (o que é caluniosamente lançado contra nós por nossos oponentes), porque assim ele não poderia ser isento de pccado, nem a mínima sombra do qual reconhecemos ter havido nele. 111. Mas a questão vem a ser esta —a alma de Cristo, desde o princípio, era imbuída de tão grande conhecimento, em virtude da união hipostática, que não ignorava nada nem podia aprender algo novo ? Os papistas o afirmam. “A opi­ nião comum dos católicos sempre foi que a alma de Cristo, desde sua exata criação, foi cheia de conhecimento e graça, de modo que ele não aprendeu nada que conhecesse antes” (Belarmino, “De Christi Anima”, 1.1* O pera [ 1856], 1:266). Não obstante, nós o negamos. Reconhecemos que Cristo, como Deus, era deveras onisciente; porém, como homem, afirmamos que ele era dotado de conhecimento, deveras grande além de todas as demais criaturas; porém finito e criado, ao qual se podia adicionar algo mais (e realmente foi adicionado). E stabelecim ento da questão

^ razões são: (1) lemos que Cristo “crescia em sabedoria e estatura” (Lc 2.52). Ora, onde há perfeição não há aumento. Não se pode dizer que ele crescia somente na opinião dos homens (como afirma Belarmino, “De Christi Anima”, 5 O pera [1856], 1:269), porque mais e mais e a cada dia ele descortinava sua sabedoria. Como ele crescia na idade e na estatura, assim também no aumento dos dons no tocante ao co­ nhecimento, como o prova claramente Toletus. Daí Ambrósio dizer: “Como ele se desenvolvia na idade de um homem, assim ele se desenvolvia na sabedo­ ria de um homem” ( The Sacrament o f the Incarnation o f Our Lord 7 [72] [FC 44:247; PL 16.872]). Stapleton reconhece o mesmo nesta passagem (“Antido­ ta ... in Lucae Cap. II”, O pera [1620], 3:157 sobre Lc 2.52). E é confirmado pelo seguinte - não lemos apenas haver ele crescido em relação aos homens, mas também “em relação a Deus” (o que não se pode referir a uma mera opi­ nião, mas porta consigo a veracidade do fato). Prova-se a opinião dos ortodoxos• (1) com base em Lucas 2 52

V. (2) Porque lemos que o Filho não conhece o dia do juí20 *3-32). De modo algum (como o Logos [L ogos ] ou Filho de Deus) ele podia ser ignorante quanto ao dia, o qual ele mesmo predeterminara junto ao Pai (At 17.31); nem (visto que fez o tempo) podia ser ignorante, nem quanto ao seu início, nem quanto ao seu final; mas como homem e só com respeito à sua natureza humana (como os antigos, nestes termos, se livraram da objeção dos arianos extraída disto contra a divin­ dade do Filho). Não só porque ele não sabia dizê-lo a outros (como querem Belarmino, Becanus, Tirinus entre outros). Isso exala o odor do equívoco jesu2 Com base em M arcos 13 32

ítico. Pois, quem (sem ser culpado de falsidade) pode negar absolutamente que ele conhece o que conhece porque não era obrigado a revelá-lo a outros? Além disso, neste sentido dificilmente haveria algo que Cristo não pudesse conhe­ cer, porque não revela seus mistérios aos gentios e aos turcos. Sim, é possível dizer que o próprio Pai era ignorante no tocante ao dia do juízo, já que ele não o revelou a ninguém. Tampouco só porque de fato ele sabia teoricamente, mas não praticamente segundo a experiência. Nem mesmo o Pai o conhecia desta maneira, já que ele ainda não havia chegado. Mas simplesmente porque o Ver­ bo não lho revelara. E, além do mais, Cristo quis assim coibir a curiosidade de seus discípulos, para que não ousassem penetrar além do que deviam, ou ela­ borassem questões ansiosas acerca da ocasião daquele juízo, visto que os mem­ bros não devem avançar naquele conhecimento que não fora outorgado nem mesmo à cabeça, em conformidade com sua humanidade. Nem por isso se deve crer em dois Cristos, um que conhecia e o outro que ignorava o dia do juízo, mas apenas duas naturezas no único Cristo, as quais, como estão vincu­ ladas em união com a pessoa, assim também retêm suas propriedades incon­ fundíveis (tantas coisas são ditas do Cristo ou da pessoa integral que não per­ tencem a todo o Cristo ou a ambas as naturezas, mas somente a uma ou a outra delas). Portanto, estas proposições podem ser ao mesmo tempo verdadeiras, porém em aspectos diferentes (kat' alio, kai alio): Cristo era ignorante no to­ cante ao dia do juízo, e Cristo não era ignorante no tocante ao dia do juízo. A oposição é feita entre as naturezas mui intimamente relacionadas, uma das quais não está inclusa na concepção da outra. Mas é diferente no caso de pro­ posições que são feitas acerca de coisas que diferem não por uma distinção real, mas apenas formal, e que são tais que uma é subordinada à outra e nela está incluída. Daí não se pode dizer com propriedade que um homem é igno­ rante de algo no tocante ao seu ser animal, o que ele conhece em conformidade com seu ser racional (porque o racional está incluso no animal). VI. (3) Porque ele foi feito “semelhante a nós em todas as coisas” (Hb 2.17) “exceto o pecado” (4.15). Tampouco " ’ pode a ignorância que atribuímos a Cristo formar uma exceção aqui. Embora a ignorância de uma disposição depravada e universal de coisas que é necessário saber seja propriamente computada entre os vícios (dos quais Cristo era isento), contudo não a negativa e particular de certa coisa desnecessária para tal estado e tempo. A isto se referem as palavras de Atanásio: “Como homem, ele não sabia, pois a ignorância é própria dos homens” (hõs anthrõpos ouk oiden, anthrõpõn g a r idion to agnoeiri”, Contra Arianos, Oratio quarta”, Opera omnia [1627], 1:496).

3 Com base em H ebreus 2 17

*ernos clue Cristo conhece todas as coisas (Jo 21.17; Mt ^-27), ou isso pertence ao seu conhecimento divino, ou, se ’ estende ao humano, não deve ser entendido absolutamente. Do contrário seria preciso atribuir onisciência à sua natureza humana (o que nos-

Fontes de explanação

sos oponentes não ousam fazer). Antes, deve ser entendido apenas relativa e comparativamente com respeito ao conhecimento dos homens, do qual [o de Cristo] era muito mais perfeito. VIII. “Os tesouros da sabedoria e do conhecimento”, os quais lemos “estão ocultos em Cristo” (Cl 2.3), não provam que havia nele toda forma de conheci­ mento e em todo tempo, sempre e absolutamente; mas que havia todo aquele conhecimento que podia pertencer ao desígnio de seu ofício medianeiro, o qual era totalmente superior ao conhecimento dos homens e dos anjos. Além disso (como foi visto em outra parte), isto pode ser mais bem atribuído à pes­ soa de Cristo ou ao evangelho, acerca do qual [o apóstolo] acabara de falar. IX. Cristo, como o Filho de Deus, tinha direito a todos os bens paternos com base na própria encarnação, porém ele pôde viver sem a posse de alguns por algum tempo mediante uma dispensação voluntária. Ele de fato estava cheio de todos os dons necessários à realização de sua obra medianeira; mas, cm sua própria ordem e grau, segundo a economia da vontade divina. A unção foi deveras feita desde o exato momento da concepção, mas os atos desta un­ ção foram dispensados a intervalos de tempo, como também mediante vários objetos (como a natureza divina em Cristo a princípio reprimia, em alguma medida, sua majestade e, por assim dizer, a ocultava sob o véu da carne, a qual mais tarde se projetou mais claramente em sua exaltação). Assim, o Espírito de sabedoria (com o qual fora ungido) restringiu seus próprios atos e não derra­ mou imediatamente seus raios em toda sua plenitude no intelecto de Cristo. Daí, embora tendo o mais pleno (sim, infinito) conhecimento, contudo ele não o comunicou plenamente ao Cristo homem. X. Uma coisa pode conduzir ao propósito da encarnação de duas maneiras: ou mediatamente de um modo comum, ou imediatamente de um modo singu­ lar. Embora a ignorância de Cristo fosse negativa, não se pode dizer que foi útil ao propósito da encarnação singular e imediatamente (como sua morte e sua ressurreição eram necessárias). Basta que o tenha sido mediatamente e de um modo comum, para que Cristo se declarasse verdadeiro participante de nossa natureza com suas fraquezas inculpáveis (adiablêtois ), visto que tal ig­ norância é uma condição ligada à nossa natureza animal. XI. Nossa opinião é falsamente comparada com a heresia dos Agnoetae. Não há nada comum entre nós e eles, os quais atribuíam ignorância ao Verbo ou a Cristo na qualidade de Deus (cf. Alphonsus de Castro, Adversus omnes haereses, Bk. 5, Haer. 8 [1556], pp. 151,152, e Isidoro, Etymologiarum 8.5.68 [PL 82.304]). Daí Nicephorus ensinar que eram rebentos do arianismo (Ecclesiasticae H istorae 12.30 [PG 146.839-846]). Cristo f o i ao m esm o XII. Daí se pode facilmente deduzir o que devemos tem po um viajante e decidir sobre a outra questão aqui inserida pelos paum vencedor? pistas - Cristo era ao mesmo tempo um viajante e um Prova-se o negativo. vencedor? Eles sustentam isto com toda facilidade

com o fim de negar que os sofrimentos espirituais foram sentidos pela alma de Cristo. Não obstante, nós o negamos. Esses estados de tal modo se opõem que se tornam incompatíveis (asystatoi ) entre si. Um viajante se encontra na estra­ da; um vencedor alcança a meta. O viajante luta e sofre; o vencedor desfruta de felicidade perfeita depois que seus esforços são coroados. Visto, pois, que ele aqui se encontrava na estrada a correr a corrida que jazia diante de si (a fim de concretizar a obra de nossa redenção, na qual ele se expôs a várias provas e lutas; sim, enfrentou, respectivamente, a maldição e o peso da ira divina), não podia ao mesmo tempo desfrutar o benefício de um vencedor na mais plena felicidade da natureza humana. Isto ele só obteve por meio de sua exaltação, embora fosse sempre dotado da mais perfeita santidade sem qualquer mancha de pecado. XIII. A felicidade dos que já venceram é um estado glorioso e jubiloso, livre de dor e de opróbrio. Toda a história da vida, sofrimento e morte de Cristo exclama que esse estado glorioso (Fp 2.7,8), feliz (Mt 20.28; Lc 9.58), livre de dor e de opróbrio (Mt 26.39; 27.31) não pertenceu a Cristo enquanto na terra, mas que só veio a ser seu após sua morte e partida deste mundo (Lc 24.26; Fp 2.8,9). ^ 'st0 °lue e*e est3 mu' intimamente unido a Deus, então ^eve ser tod°s os lados e de todas as formas perfeito com ' ' respeito à santidade, de modo que nenhuma mancha de pecado se poderia achar nele. Não, porém, quanto à felicidade, o que pode ser provado mesmo à luz do exemplo do corpo de Cristo unido ao Logos (Logo) (o qual não podia ser chamado perfeitamente feliz, já que ele era passível de sofrimento e morte). Portanto, a união de sua alma com Deus deveras implica a posse da felicidade, porém deve ser desfrutada imediatamente ou constantemente e sem­ pre. Segundo a dispensação de Deus, o sofrimento deve preceder sua glória e sua felicidade. XV. A glória e a felicidade intrínsecas e essenciais da deidade diferem das extrínsecas e compartilhadas. Com relação à natureza divina, a glória e a felici­ dade intrínsecas e essenciais (as quais implicam uma comunhão de todas as perfeições divinas) foram comunicadas pela união hipostática à pessoa, ao Deushomem (theanthrõpõ). Mas à natureza humana só deveriam ser comunicadas as externas e compartilhadas. Isto não adere à deidade, mas flui dela como um efeito para a criatura; aliás, flui como um acidente que às vezes pode estar ausente e às vezes presente. XVI. Se lemos que Cristo viu o Pai (Jo 6.46), não se trata precisamente da natureza humana, mas da pessoa do Logos (Logoa), o qual, como esteve sem­ pre intimamente unido ao Pai, só podia desfrutar sempre de sua visão beatífi­ ca. Se a alma de Cristo estava mais estreitamente unida à deidade do que as almas dos bem-aventurados, não se segue que ele desfrutasse do benefício dos santos aperfeiçoados. Mediante uma dispensação, ele abdicou este direito para

F ontes de explanação

que pudesse exercer o ofício de fiador (cuja fiança não se põe entre as almas dos santos no céu e a união destas com Deus). D

é c im a

Q

uarta

P

ergunta:

O s S o f r im e n t o s

de

C r is t o

Cristo sofre/t p o r nós punições corporais somente no corpo ou na alma, porém só quanto às partes inferiores e sensíveis? O u de fato também suportou em si, propriamente, os castigos espirituais e infernais do pecado (na parte superior, bem como inferior), pessoalmente e sentindo a ira divina? Negamos a primeira parte e afirmamos a segunda contra os papistas.

I. Como o sofrimento de Cristo é a parte principal do resgate (lytrou ) pago por ele em nosso favor e o fundamento especial de nossa confiança e consola­ ção, também deve ser o objeto primário de nossa fé e o tema de meditação, para que, com Paulo, possamos considerar todas as coisas como perda em prol do conhecimento do Jesus crucificado. Devemos dar mais diligente atenção a como Satanás age impotentemente para obscurecer a realidade daqueles sofrimentos e privar-nos de seu fruto salvífico. ^ clu*nao 'nclu'r'rnos se Cristo sofreu alguma coisa. Pois outrora houve alguns que (já que presumiam ser inconve­ niente à glória divina de Cristo ser afetada por dores e tris­ tezas) chegaram ao ponto de dizer que o corpo de Cristo era impassível, e por isso mesmo não sofreu realmente, mas apenas aparentemente (kata doxan) (sendo esta a heresia dos Aphthartodocetae, dos quais fala Nicephorus, Ecclesiasticae H istoriae 17.29 [PG 147.295]). Destes Hilário parece aproximar-se não pouco, quando afirma que a natureza humana em Cristo (em virtude de sua união com o Verbo) não estava exposta a sofrimentos (cf. The Trinity 10.23 [FC 25.414-416]). Não obstante, se essa é a opinião de Hilário (que é aqui alegada por Lombardo em escusa), é como se removesse de Cristo não tanto o senso de sofrimento quanto a causa e mérito de sofrimento (Sententiarum 3, Dist. 15.7 [PL 192/2.788,789]). No entanto esta opinião há muito foi condena­ da como contrária à verdade da história do evangelho e da nossa redenção, de modo que não há necessidade de colocá-la novamente em cena. Antes, inquirese sobre a natureza e o sujeito dos sofrimentos (ou seja, quais foram os sofri­ mentos e em que sujeito? Estavam somente no corpo, ou também na alma? E se na alma, situavam-se somente em sua parte inferior que se chama sensível, ou também na superior e racional?). Estabelecim ento da questão

PaP'stas (com 0 de defender seu dogma da felicidade perfeita da alma de Cristo durante todo o es. 0 humilhaçao e de poder concilia-la com a histona de sua paixão) sustentam que Cristo sofreu no corpo, nao na a'ma- Se são pressionados, distinguem a alma inferior e sensível da superior e racional. Quanto à pri­ meira (à qual atribuem os afetos e as perturbações), admitem que Cristo so-

Provam se os f . ‘ ‘ sofn m en tos espirituais de C risto • (I) com base na E scritura

freu; porém, quanto à segunda, de modo algum. Ou, se porventura sofreu algo nela, não sofreu propriamente e em si mesma sentindo a ira divina, mas so­ mente pela proximidade (dia parasíasin), ou solidariamente (dia sympatheiari) (em virtude da união da alma com o corpo). Em contrapartida, os ortodo­ xos referem os sofrimentos de Cristo à alma tanto quanto ao corpo; à parte superior tanto quanto à inferior. Deveras suportou no corpo as dores e agonias corporais de uma morte temporal crudelíssima acima de todas as demais; e na alma ele suportou as agonias espirituais e internas (ou seja, aquele mui pesado e terribilíssimo peso da ira divina e da maldição [kataram ] devida a nós). IV. As razões são: (1) a Escritura atribui os sofrimentos de Cristo a ambas as partes, especialmente à alma, quando diz que a alma de Cristo ficou pertur­ bada (Jo 12.27), “muitíssimo triste” [angustiada] (perilypos) e, por assim di­ zer, esmagada (Mt 26.38); portanto, não só em sua parte inferior, mas também na superior. Por isso, e até mais, visto que a alma é comunicável (am eristos ) e indivisível, uma qualidade não poderia ser afetada sem que todas as demais o compartilhassem. Ora, o peso daquela tristeza é demonstrado nisto - que foi “até a morte” (i.e., extrema), para denotar o “peso da tribulação” (como traz a glosa). Isto é descrito por taraxin (angústia de alma, Jo 12.27), por adêmonian (Mt 26.37) e “espanto” (ekíhambêsin , Mc 14.33), quando a alma, por assim dizer, se rende sob o horror e desmaia sob a pressão da tristeza na agonia (agõnian ) (ou seja, uma ansiedade tal da mente que provoca suor de sangue, Lc 22.44) e nas mais fervorosas orações que já oferecera ao Pai com fortes gritos e lágrimas - para que dele passasse o cálice (quando precisou de um anjo como consolador). Ora, até onde reportar esse extremo abandono e per­ turbação, esse horror e excessivo temor, esse severo conflito com o senso da ira divina e maldição, a não ser dizermos que tais sofrimentos foram não só no corpo, mas também na alma; não só na parte inferior, mas também na superior da alma, a não ser que queiramos que Cristo tenha sido inferior aos inumerá­ veis mártires, os quais não só paciente e calmamente, mas também com alegria e exultação, suportaram a morte física e os tormentos mais lancinantes. ^ ^ necessidade de nossa salvação o requer. Pois já que Pecamos na a'ma e n0 corpo, assim Cristo, o fiador, tinha so^rer em ambas as partes a fim de pagar o preço sufici­ ente do resgate (lytron ) à justiça divina e para redimir a alma e o corpo. Confirma-se com isto - que os sofrimentos anunciados contra os pecadores pela lei seriam não só físicos e externos, mas principalmente espirituais e internos pelo senso da ira e maldição divinas (Lv 26; Dt 27,28; G1 3.10,13). Daí Irineu dizer: “ Com seu próprio sangue o Senhor nos redimiu, o qual deu sua própria alma por nossa alma e sua própria carne por nossa carne” (Against Heresies 5.1 [ANF 1:527; PG 7.1121). Daí ser ele chamado não só antilytron, mas também antipsychos , que empenha e troca alma por alma. VI. (3) A punição do abandono, sofrido por Cristo (do qual ele se queixa, 2 Com base na necessidade de salvação

Mt 27.46) não foi um sofrimento físico, mas espiritual e interno. Proveio não de qualquer tormento (por mais medonho que fosse) que pudesse sentir em seu corpo (pois muitos dos mártires puderam ter tal experiência, os quais, não obstante, não se queixaram deste abandono), mas de um senso em extremo opressivo da ira de Deus que pesava sobre ele em virtude de nossos pecados. Ora, este abandono não deve ser concebido como absoluto, total e eterno (tal como é sentido somente pelos demônios e pelos réprobos), mas temporal e relativo; não com respeito à união da natureza (a qual o Filho de Deus uma vez assumiu, e a qual ele nunca desfez); ou da união de graça e santidade, porque ele foi sempre inculpável (akakos ) e puro (amiantos), dotado de imaculada santidade; ou de comunhão e proteção, porque Deus estava sempre à sua direi­ ta (SI 110.5), nem nunca ficou sozinho (Jo 16.32). Mas, no tocante à participa­ ção de alegria e felicidade, Deus, suspendendo por algum tempo a presença favorável da graça e o influxo de consolação e felicidade para que ele pudesse sofrer toda a punição a nós devida (no tocante à subtração da visão, não no tocante à dissolução da união; no tocante à ausência do senso do amor divino, interceptado pelo senso da ira divina e vingança que repousa sobre ele, não no tocante à privação ou extinção real desse amor). E, como dizem os escolásti­ cos, no tocante à “afeição da vantagem” para que fosse destituído da inefável consolação e alegria que provêm do senso do amor paternal de Deus e da visão beatífica de seu semblante (SI 16); porém não no tocante à “afeição da justi­ ça”, porque ele não sentia em si nada desordenado que tendesse ao desespero, impaciência ou blasfêmia contra Deus. VII. (4) Cristo foi feito maldição por nós (G1 3.13), embora a maldição a nós devida lhe fosse imposta em virtude da fiança assumida; não só “maldito” (epikataratos ), mas “uma maldição” (katard) - sendo o abstrato expresso pelo concreto para intensificação (epitasin ), porque ele suportou toda a maldição que a lei anunciara contra os pecadores. Com toda a certeza, isto diz respeito não só ao corpo, mas especialmente à alma, a qual pode ser afetada por tal senso. Isto é reconhecido por não poucos papistas (cf. Maldonatus, Commen­ tary on the H oly Gospels: M atthew (1888), 2:446, sobre Mt 26.37; Ferus, In sacrosanctum lesu C hristi evangelium secundum M atthaeum (1559), pp. 376,377, sobre Mt 27.46, e outros). Embora a Escritura, em sua maior parte, atribua a salvaFontes de exDlanacão 3 cruz’ 30 sanSue e a morte de Cristo, isto não é feito à " exclusão dos sofrimentos espirituais e internos, mas, por sinédoque, denominando a totalidade da parte sensível e externa ostentada aos olhos. Tampouco a cruz ou a morte podem ser mencionadas sem envolver por isso mesmo a noção da maldição anexa a elas, porque a morte nada mais é do que aquela denúncia feita pela lei. IX. Embora os tormentos internos e espirituais não pudessem ser figurados em espécie e em particular pela morte e derramamento do sangue das vítimas,

contudo podiam, em geral, estar contidos sob elas. Pois já que o fogo é símbo­ lo da ira divina, não existe nada que impeça este fogo que consome os sacrifí­ cios de referir-se ao senso da ira divina, que Cristo suportou em sua alma. E assim o sangue dos sacrifícios (como a sede da vida) é também mais bem denominado símbolo da alma. Além disso, não faltou um tipo particular nos sofrimentos de Davi descritos nos salmos 22 e 69, os quais não eram só exter­ nos, mas também internos. X. Não é necessário que os sacramentos representem todas as partes dos sofrimentos de Cristo; é suficiente que exibam uma certa parte que possa ser significada por tais símbolos (mas dos quais o demais é facilmente deduzido), visto que necessariamente acompanham uns aos outros em Cristo; nem pode a morte de Cristo ser representada, sem que a maldição ligada a ela seja apre­ sentada às nossas mentes. XI. O sacrifício de Cristo é chamado “oferenda de seu corpo” (Hb 10.10), não em oposição do corpo à alma (a qual também lemos que ele entregou por nós, ls 53.10; Jo 10.15), mas mediante uma antítese aos sacrifícios levíticos repetidos muitíssimas vezes (dos quais o apóstolo estava falando). Daí, este tipo de expressão é sumamente adequada. XII. E por isso é possível deduzir claramente o que se deve julgar acerca dos sofrimentos de Cristo - se são propriamente chamados geenal e infernal, como afirmam nossos homens. Pois já que inferno na Escritura denota não só o sepulcro ou o lugar dos condenados, mas também sua extrema condição de miséria e calamidade (como bem observa Arias Montanus, Bíblia sacra Hebraice, Chaldaice, G raece et Latine [1572], 7:183), e “dores infernais” são expressas para o que há de mais grave, nada impede que os sofrimentos de Cristo sejam chamados (neste sentido) infernais, em virtude de sua terribilidade e intensidade. XIII. Além do mais, tampouco se poderia dizer que ele entrou no lugar dos condenados ou foi condenado. De fato ele pôde suportar os castigos dos que merecem ser condenados, porém não dos condenados, ao ponto de adentrar os lugares infernais preparados para eles (de onde ninguém pode regressar), ou que ele foi devotado ao castigo eterno, visto que a eternidade dos castigos que merecemos foi compensada ricamente em Cristo por seu peso e por seu valor extremo. XIV. Muito menos se deve atribuir a Cristo o desespero proveniente do senso de ser condenado. Isso não provém da essência do castigo em si mesmo considerado e como é infligido pelo juiz. Antes, provém do vício do sujeito que sofre, o qual, quando considera a eternidade dos terribilíssimos males e a im­ possibilidade de escapar dele, nada pode fazer senão cair em desespero (o que era mui estranho a Cristo, o qual, embora sentisse a terribilidade dos tormentos infligidos contra ele, contudo estava certo de seu fim feliz e de seu próprio livramento). Daí transparecer a falsidade da atroz calúnia injustíssima lançada

por nossos oponentes contra Calvino - por Belarmino (“De Christo Anima”, 8 Opera [ 1856], 1:271-275); Genebrardus (Psalm i D avidis [ 1606], p. 79 sobre o SI 21 [22], 1); e Maldonatus (Com m entaty on the Holy Gospels: Matthew [ 1863], 2:551-554 sobre Mt 27), e por outros - porque ele diz sobre Mateus 27.46: “porém é absurdo que uma voz de desespero escapasse de Cristo” (João Calvi­ no, Harmony o fth e Gospels [trad. A. W. Morrison, 1972], 3:208). Pois quem não percebe ser esta uma objeção que ele propõe a si mesmo com base nas palavras de Cristo (“Deus meu ...”) e as quais ele explica para provar mais claramente que ele estava muito longe do desespero e cheio de confiança? “A solução”, diz ele, “é fácil, embora os sentidos apreendessem a destruição da carne, contudo a fé permaneceu firme em seu coração, pela qual ele contempla­ va um Deus presente, de cuja ausência cie sc queixava” (ibid.). Ora, se a fé estava arraigada em seu coração, como poderia o desespero cair sobre ele? Ele confirma isto ainda mais fortemente na ICR 2.16.5,12, pp. 507-520, como trans­ parecerá de uma inspeção da passagem. Mas se o quisermos recriminar, quanto mais justamente poderia isto ser aplicado aos nossos oponentes, dos quais não poucos se vêem culpados de tal acusação (como Maldonatus, Commentary on the H oly Gospels: M atthew [1863], 2:552, sobre Mt 27.46)! Ferus, sobre a mesma passagem, de modo expresso atribui desespero a Cristo (In sacrosanctum lesu Christi evangelium secundum Matthaeum [1559], p. 376, sobre Mt 27.46); cf. também Cusanus de Cruciatibus Christi+ entre outros. Ver nosso “Disputation on the Satisfaction”, O pera (1848), 4:554. XV. Com calúnia semelhante, aquele grande homem de Deus é acusado de afirmar que Cristo “era maldito”, porquanto diz que “ele foi constituído de uma maldição tal” que se queixa de ser abandonado por Deus (Catechismus Ecclesiae Genevensis [1545], CR 34.28-32). Mas: (1) quem não percebe que “maldi­ ção” é expressa aqui por “condenação”, segundo o estilo mui costumeiro do idioma francês naquele tempo? (2) Se Cristo é chamado “maldição”, por que não é possível atribuir-lhe condenação? (3) Os pais e alguns de nossos oponen­ tes têm falado nestes termos: “Ele foi amaldiçoado para nos isentar da maldi­ ção; ele sofreu para curar os doentes; ele temeu para tomar-nos seguros” (“De Passione Christi” [atribuído a Cipriano] em Arnold Camotensis, Opera, p. 49 em Cipriano, Opera [org. John Oxoniensem, 1682]); Gregório de Nazianzo: “Ele uniu aquilo que foi condenado para que livrasse o todo de condenação” (“Fourth Theological Oration, Second on the Son”, 21 [NPNF2, 7:317; PG 36.131]); Atanásio: “Havia necessidade de que o próprio Juiz, que lavrou o decreto, cumprisse em si a sentença na forma do condenado” (de lncarn+); Gregório, o Grande: “Ele assumiu a forma de um homem condenado” e “pelos pecadores condena aquele que é sem pecado” (M orais on the Book o fJ o b 3.14* [1844], 1:148,49; PL 75.612,613). A Vulgata usa a palavra damnatio, como a Versão Louvain do ano de 1533. Cusanus usa a mesma palavra (Exercit. lib. xi+).

A alma de Cristo, após sua separação do corpo, fo i trasladada imediatamente ao paraíso? Ou desceu localmente ao inferno? A firm am os a primeira hipótese; negamos a segunda contra os papistas e os luteranos.

I. A questão concernente à descida de Cristo ao inferno é dupla: uma com os papistas e alguns luteranos, que crêem numa descida local de Cristo; a outra entre os próprios ortodoxos, acerca do verdadeiro sentido do artigo - se deve ser uma referência à angústia espiritual de Cristo ou ao seu sepultamento e seu mui abjeto estado sob a maldição da morte. Então devemos examinar a primei­ ra e falar da segunda logo em seguida. . , . . , II. Os papistas sustentam que a alma de Cristo, desde o E stabelecim ento , ~ , , momento de sua scparaçao do corpo, d(i questão. r desceu direta e lo7 calmente ao inferno até sua ressurreição. No Catecismo de Trento se propõe que se creia: “Estando Cristo agora morto, sua alma des­ ceu ao inferno e permaneceu ali durante o tempo em que seu corpo permane­ ceu no sepulcro” ( Catechism o f the Council ofTrent, Art. 5 [trad. J. A. McHu­ gh, 1923], pp. 62 e 64). E para que ninguém pensasse que isto só foi feito por virtude e poder, e não por essência (como Durandus afirmava, cf. Sententias theo/ogicas P etri Lombardi Commentariorum, Bk. 3, Dist. 22, Q. 3, 4 [1556], p. 215), acrescenta-se no mesmo lugar: “Deve-se crer inteiramente que a própria alma realmente e por presença desceu ao inferno”. Não obstante, querem que ele tenha descido ali com o propósito de libertar as almas dos pais veterotestamentários detidos no [imaginário] limbo e então conduzi-los com ele ao céu. III. Os luteranos concordam com eles em asseverar a descida substancial de Cristo ao inferno; não só ao limbo, mas ao próprio lugar dos condenados, para mostrar sua vitória ali e exibir seu triunfo. Por isso mesmo querem que esta seja uma referência ao estado de exaltação e não ao de humilhação (como Brochmann determina: “De Servatoris Nostri Jesu Christi”, Sect. 14, Q. 6, 7 em Universae theologicae system a [1638], 1:920-923). IV. Daí, a questão assumiu esta forma - se Cristo desceu localmente ao inferno, ou somente ao limbo dos pais e ao purgatório, com o propósito de guiar as almas dos piedosos ou ao lugar dos condenados para exibir publicamente sua vitória. Nossos oponentes afirmam isto; nós o negamos. V. Primeiro, a alma de Cristo, imediatamente após sua liberação do corpo, subiu ao paraíso, em conformidade com a promessa feita ao ladrão: “Hoje mes­ mo estarás comigo no paraíso” (Lc 23.43). Em vão (1) nossos oponentes pre­ tendem que as palavras sejam inferidas somente da deidade, com a qual a alma do ladrão seria conduzida ao paraíso. Envolvem a fúturição no paraíso ou a trasladação não só da alma do ladrão, mas também a de Cristo; que, como Cristo e o ladrão realmente sofreram, assim deveriam também ser levados jun­ tos para o céu, para que ambas as condições fossem comuns a ambos. E assim

foi consolador não só para o ladrão, mas tambcm para o próprio Senhor que em breve ambos emergiriam de suas tribulações. E assim, da mesma maneira, esta­ riam no céu no tocante às suas almas como estiveram juntos na cruz no tocante aos seus corpos. Daí Cipriano dizer: “O ladrão veio a ser participante do reino, o qual, por meio de sua confissão, se tomou um colega de martírio” (“De Passione Christi” [atribuído a Cipriano] em Amold Camotensis, O pera , p. 50 em Cipriano, Opera [org. John Oxoniensem, 1682]). As palavras por si sós pro­ vam isto. Cristo não diz: “Eu estarei contigo” (o que designa a presença da deidade no paraíso), mas “estarás comigo”, a fim de prometer-lhe o compa­ nheirismo de sua humanidade. Promete-se companheirismo com Cristo em seu reino. Ora, isto não pode ser inferido da deidade (que a ninguém concede tal privilégio), mas de Cristo, o Deus-homem ( theanthrõpõ ), que chama os crentes a partilharem de seu reino. (2) Outros não fazem melhor querendo que a palavra “hoje” seja uma referência às palavras de Cristo, não à introdução no paraíso. E assim o sentido seria: “Eu te digo hoje”, estarás comigo no paraíso. Como bem observa Suarez, esta é uma evasiva, não uma interpretação. Pois não havia necessidade de Cristo indicar isto, o que o verbo no presente do indicativo e a própria expressão de Cristo indicam suficientemente. Antes, ele deseja encorajar o ladrão (mergulhado em agonia e bafejado pela graça de Cristo) por meio desta consolação de que sua petição seria satisfeita naquele mesmo dia. (3) Tomás deAquino também inventa gratuitamente: “Paraíso aqui denota geralmente o lugar de felicidade, onde quer que ela esteja, no qual estão aqueles que desfrutam da glória divina; daí, quanto ao lugar, o ladrão está no inferno com Cristo; quanto ao galardão, no paraíso; de modo que para­ íso é onde Cristo está e onde Deus é visualizado” (ST, III, Q. 52*, Art. 4*, p. 2305). Mas o que é isto senão misturar o céu não só com a terra, mas também com o inferno? Se fosse assim, o ladrão na cruz já estaria no paraíso, porque ele estava ali com Cristo. Não obstante, Cristo fala daquele paraíso onde então não estava. Finalmente, paraíso não deve ser entendido de nenhuma outra ma­ neira senão como a Escritura em outros lugares fala dele: como a sede dos bem-aventurados (2Co 12.4; Ap 2.7), o que dizem Belarmino (“De Sanctorum Beatitudine”, 3 O pera 2:426) e Suarez (“Commentaria ... in tertiam partem D. Thomae”, Q. 52, Dist. 42 em Opera Onmia [1856-78], 19:697-743). O próprio fato prova isto, porque a promessa de Cristo deve corresponder à petição do ladrão: “Lembra-te de mim quando vieres em teu reino”. Ao que Cristo res­ pondeu: “Hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (i.e., em meu reino). VI. Segundo, a alma de Cristo estava nas mãos do Pai: “Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23.46). Portanto, não estava no inferno, porque, segundo o estilo da Escritura, as mãos do Pai não devem ser entendidas com respeito ao poder (segundo o qual as mãos de Deus estão em toda parte, SI 139.7-10), ou como as terríveis mãos de Deus, o Juiz; mas como as mãos consoladoras do Pai de misericórdia com respeito à glória e graça; ou a condição dos bem-aventurados geralmente descritos como estar nas mãos de Deus. Isto

é confirmado pelo scguine - que Cristo, com esta frase, quis proclamar que nada mais restava a ser feito por ele, tanto quanto a libertar outros como quan­ to a suportar novos tormentos. Mas, assim como o corpo estava prestes a des­ frutar seu repouso no sepulcro, assim também a alma estava prestes a repousar de todo seu labor e a embeber-se nas mais profundas alegrias. Pois confiar ou entregar a alma tem relação com os labores precedentes. Não obstante. Cristo não poderia ter dito “eu entrego meu espírito”, se após a morte tivesse ainda que descer ao inferno e sofrer tão dolorosos fardos. (3) Ele confia seu espírito às mãos de seu Pai da mesma maneira que Davi c Estêvão confiaram suas almas, porque estas foram as próprias palavras de Davi outrora (SI 31.5), de quem Cristo as tomou, e Estêvão mais tarde (At 7.59), o qual imitou o próprio Cristo; sim, como Pedro recomendou a todos os crentes que entregassem suas almas ao fiel Criador (1 Pe 4.19*); com toda a certeza, não para que descessem ao inferno, mas para que fossem recebidos no céu (como a glosa comum traz: “Em tuas mãos eu entrego meu espírito para que o recebas, ao deixar o cor­ po”). Daí, entre os pais, as mãos do Pai e o inferno são opostos. Cirilo de Alexandria diz: “O inocente em cima, o culpado embaixo; o inocente no céu, o culpado no abismo; o inocente nas mãos de Deus, o culpado nas mãos do Diabo” (D e exitu animi [PG 77.1082]). VII. Terceiro, se no tocante à alma. Cristo realmente desceu ao inferno, fez isso ou para sofrer algo ali, ou para libertar os pais, ou para pregar o evangelho aos mortos, ou para exibir sua vitória aos demônios. Não se pode, porém, afir­ mar o primeiro, porque na cruz ele consumou todas as coisas (Jo 19.30) e por sua oferta ele aperfeiçoou para sempre os que são santificados (Hb 10.14). Nem o segundo, porque já foram admitidos no céu; nem nunca estiveram num limbo fictício, como já ficou provado. Nem o terceiro, porque a pregação do evange­ lho pertence unicamente ao estado desta vida, não à condição da morte. Se Pedro diz: “o evangelho foi pregado aos mortos” (1 Pe 4.6*), isso não deve ser entendido no sentido composto (como se ele fosse pregado aos mortos como tais, porque, uma vez que não estão no estado do caminho, não há mais neces­ sidade de qualquer pregação), mas no sentido dividido (i.e., aos que ora estão mortos, mas que outrora viviam quando o evangelho lhes foi proclamado). Nem o quarto, porque tal descida teria de ser penal, não triunfal, e pertence ao esta­ do de humilhação, não ao de exaltação. VIII. Ora, que essa foi a descida de Cristo, provam-se com vários argu­ mentos. (1) Segundo o estilo da Escritura, descer ao inferno significa as mais terríveis adversidades e as dores mais inusitadas (Gn 37.35; Jó 14.13; Os 6.5; 86.13; 130.1). (2) As passagens que falam da descida ao inferno denotam sua extrema miséria, não triunfo (a saber, no qual ele, em razão disso, não deveria ser deixado, mas libertado pelo Pai, At 2.30,31). (3) A descida às regiões inferiores da terra se opõe à sua ascensão acima de todos os céus, que é uma parte da exaltação (Ef 4.9). Portanto, tal descida tem de ser uma parte de sua humilhação.

^ “coraÇao da terra”, no estilo dos hebreus, significa nada ma's nada menos *íue estar dentro da terra, pois lb é expresso ' por thvdh (que é o meio), e o que é interno às vezes é chamado meio, esteja ou não no meio. Lemos que as fronteiras de Tiro estão “no meio dos mares” (Ez 27.4), porque eram banhadas de todos os lados pelo mar; lemos que a altura dos montes “chegava até o céu” (Dt 4.11), isto é, no meio da região atmosférica. Assim, “estar no coração da terra” (Mt 12.40) nada mais significa do que estar dentro da terra, não importa se esteja mais próximo ou mais remo­ to de sua superfície. E assim se notifica o estado do corpo de Cristo no sepul­ cro (que estava na terra, onde repousou até o terceiro dia). X. Quando lemos que Cristo “desceu às regiões inferiores da terra” (eis ta katõtera merê fês gês, Ef 4.9), isso não implica uma descida local, mas sua humilhação e manifestação na carne, a qual ele assumiu na terra, de modo que nada mais significa senão sua descida à terra (que é a parte mais baixa do universo), por uma construção sobejamente conhecida dos hebreus, na qual a palavra dominante representa uma aposição - “nas profundezas da terra” (SI 139.15), isto é, na terra, que é a parte mais baixa em relação ao céu. Daí, o que se compara entre si não são as partes da terra, mas o céu e a terra, partes do universo. Tampouco as palavras do texto admitem algum outro sentido. Há certa oposição entre a subida da terra ao céu e a descida do céu. Não obstante, como a subida tem a terra como o ponto do qual, e o céu como o ponto para o qual, assim, por sua vez, a descida tem o céu como o ponto do qual, e a terra tem o ponto para o qual. Cajetano percebeu que pelas partes mais baixas ou inferiores da terra deve-se entender “a terra que é a parte mais baixa do mundo como distin­ ta das partes mais baixas do céu que pairam no ar. E assim ele o quis expressar mais claramente, porque ele desceu primeiro à parte mais baixa da terra”. XI. Quando Pedro diz que a alma de Cristo não seria deixada no inferno: “não deixarás a minha alma na morte” (At 2.27, com base no SI 16.10), não se pode inferir uma descida local, mas a detenção no sepulcro, porque Pedro atri­ bui isto à ressurreição. Isto se deduz: (1) do contexto: “minha carne”, diz ele, “repousará” (i.e., no sepulcro) “em esperança, porque não deixarás”. (2) Da frase adicionada para explanação, “Nem permitirás que o teu Santo” (i.e., eu) “veja corrupção” (ou seja, no corpo), o que de outra forma aconteceria, se dei­ xado no sepulcro. (3) De uma comparação com Atos 13.34,35, onde lemos que Deus ressuscitou Cristo dentre os mortos para que não visse corrupção. A isso não se opõem nem palavra psyches, a qual, como observa Emanuel Sa (de phrasibus Scriptura+), é expressa por sinédoque da parte para o todo, para a própria pessoa em sua totalidade, em outro lugar (SI 3.2; 17.13; At 7.14), ou de uma parte para uma parte, para o próprio corpo (Lv 19.28; 21.1,11; Nm 5.1; Lc 6.9), como Virgílio (“Sepultamos a alma no túmulo”, Eneida 3.68 [Loeb, 1:352,353]), nem pela palavra hadês, que evidentemente é às vezes colocada no sentido de sepulcro, como se provará mais adiante. Fontes de exnlana õo

XII. A passagem de Pedro, quando lemos que Cristo “vivificado no espíri­ to, no qual também foi e pregou aos espíritos cm prisão” (tois en phylakê, I Pe 3.18,19),7 não favorece a descida local ao inferno. (1) Pedro não falada “alma”, mas de “o espírito”. Portanto, não se pode inferir de alguma descida da alma. Pois Espírito, aqui, não pode ser equivalente a alma, mas à deidade, o que se deduz do versículo precedente. Nem está em pauta outro espírito senão aquele pelo qual ele foi vivificado. Isto não se pode dizer da alma, nem subjetivamen­ te, porque só é vivificado quem pode morrer (o que não se pode aplicar à alma); nem eficientemente, porque vivificar é uma obra de poder infinito. Por isso mesmo, a própria deidade, necessariamente, está em pauta. As vezes isso é assim designado em outras passagens (Rm 1.4; Hb 9.14; lTm 3.16), nas quais lemos que ele foi “justificado pelo Espírito”, o que Cajetano, Gagnaeus, Tomás de Aquino, Lyranus, entre outros, entendem como sendo da deidade e o Espírito Santo. (2) Trata-se dos apeithêsasi (i.e., espíritos rebeldes), os quais não obedecem aos que lhes dão bons conselhos (do quê os pais não podem ser chamados, os quais, como querem [os oponentes], Cristo levou do limbo [onde foram detidos] para o céu). Tampouco se pode dizer que de fãto eram, a princí­ pio, incrédulos, mas que depois se arrependeram, porque tal coisa não se en­ contra no texto, mas, ao contrário, se lhe opõe. Pois lemos que somente oito pessoas foram salvas, o restante pereceu. No entanto, caso alguns tivessem se arrependido, Pedro não os teria denominado apeitheis. (3) Não há menção aqui de libertação, mas apenas de pregação. (4) A “prisão” {phylakê ) mencio­ nada aqui só é considerada de duas formas na Escritura, ou como uma guarda noturna, ou como uma prisão na qual os culpados são detidos (Lc 3.20). De fato, visto que não pode ser usada aqui no primeiro sentido, necessariamente deve ser tomada por uma prisão (como afirma a glosa interlinear, “a prisão de trevas e de incredulidade”). Em parte alguma da Escritura há algum lugar cha­ mado prisão, onde espíritos felizes estão retidos. (5) Não lemos que a pregação foi feita aos espíritos em prisão, como eles estivessem em prisão no tempo da pregação. Pois com que propósito teria sido feita, visto que não se admite êxito ali? No entanto, lemos que foi feita anteriormente, nos dias de Noé (nos quais a paciência de Deus aguardava os homens), àqueles que (nos dias em que Pe­ dro escreve) estão em prisão. Daí Pedro não dizer ekêiyxe tois pneum asi en phylakê, mas tois en phylakê pneumasi ekêryxe. Por isso é preciso suprir o verbo substantivo, não como faz a Vulgata, iis qui in cárcere erant, como se eles estivessem em prisão no tempo da pregação, mas tois ousi (“que estão”, ou seja, no tempo em que o apóstolo escreve). Por essa razão, Pedro não anexa p o te às palavras en phylakê, mas a apeithêsasi, desta maneira: tois en phylakê penumasi apeithêsasi pote, distinguindo claramente os tempos em que foram rebeldes nos dias de Noé e em que foram lançados na prisão em virtude de sua rebelião. E assim o significado da passagem é claro, como nosso Beza mui 7. Cf. NVI; tam bem com referência a Romanos 1.4 e 1 Tim óteo 3.16. [N. do E.]

afortunadamente a explicou. “Cristo”, diz ele, “digo que foi vivificado pelo Espírito, tendo ido, não por uma mudança de local, mas por determinada mani­ festação especial de sua presença, por revelação e operação, como às vezes lemos na Escritura que Deus veio, não literalmente, mas figurada e metafori­ camente; não no corpo, o qual ainda não assumira, mas por aquele mesmo Espírito ou poder divino pelo qual ressuscitou e foi vivificado e inspirado (do que falam os profetas, 1Pe 1.11), e pregou àqueles espíritos, os quais ora estão na prisão do inferno, onde sofrem a punição de sua rebelião à sua pregação no tempo de Noé.”+ Isto mesmo percebeu Andradius, dizendo que este é o signi­ ficado da passagem - “em cujo Espírito (vindo muito antes) ele pregou àque­ les espíritos que agora em prisão pagam a merecida pena de sua incredulidade pregressa, visto que nunca quiseram crer no que Noé lhes dizia enquanto cum­ pria seu dever na construção de uma arca por ordem divina” (Defensio tridentinae fid ei catholicae 2 [1580], p. 294). XIII. Se lemos que Cristo, mediante a ressurreição, rompeu “os grilhões da morte” (At 2.24), não se segue que ele suportou dores no momento de sua ressurreição, e que sua alma partiu para o inferno, onde pudesse ser afetado por tais dores. A passagem pode ser entendida de duas formas: (1) que “as dores da morte”, mediante uma figura gramatical ( hen dia dyoin), são expres­ sas por uma morte dolorosa. Lemos que Cristo “batizará com o Espírito Santo e com fogo” (como em Mt 3.11), isto é, com fogo espiritual, como diz Virgílio: “Eu canto de armas e homens”, isto é, do homem armado (Eneida 1.1 [Loeb, 1:240,241]). E certo que a morte de Cristo estava ligada às dores mais inusita­ das, nem tal morte foi extinta senão no momento da ressurreição. (2) A passa­ gem a que Pedro alude (SI 18.5) emprega a expressão chbly mvth, a qual deno­ ta propriamente cordas e correntes, pelas quais o homem é detido na morte como cativo, das quais ele é libertado pela ressurreição. E assim não há neces­ sidade de inventar, em adição, algum sofrimento da alma após a morte. Não obstante, Pedro, seguindo a Septuaginta, retém a palavra odinas, que pode conotar tanto os tormentos que ele sofreu na morte, quanto as correntes da morte, pelas quais, em certa medida, ele ficou preso no sepulcro. Assim o significado deve ser “a quem [i.e., Cristo] Deus ressuscitou, tendo soltado as correntes da morte, porque era impossível que ele fosse sempre mantido [krateisthai] por ela como cativo”. XIV. O canto triunfal que Paulo entoa (seguindo Oséias, ICo 15.54,55) é corretamente aplicado à ressurreição de Cristo, pela qual ele começou a triun­ far sobre o pecado, a morte e o inferno. No entanto, não pode pertencer à desci­ da ao inferno, a qual foi o mais baixo grau de sua humilhação, na qual ele parecia estar sendo tragado pela morte.

D

é c im a

S exta P erg u nta

í i possível que a desáda ao inferno se refira corretamente aos tormentos infernais e a um estado sobremodo abjeto sob o domínio da morte tio sepulcro? Isso afirmamos.

I. Pela questão precedente, já foi refutada a falsa opinião dos papistas con­ cernente à descida local de Cristo ao inferno. Agora é preciso apresentar seu sentido verdadeiro e genuíno. Sobre isto, uma vez mais os ortodoxos não estão concordes entre si, alguns referindo-a à angústia espiritual e aos tormentos infernais que ele sofreu (como opinam Calvino, Beza, Danaeus, Ursinus e ou­ tros, e mesmo várias confissões das igrejas); outros mantendo que ela diz res­ peito ao seu sepultamento e à detenção de três dias no sepulcro (como Zanchius, Piscator, Pierius e outros). r , , , . . II. Não obstante, devemos observar antes de todas as coiE sta b elea m en to . . , . da uestão sas ^ue ° incluinrnos sobre a origem deste artigo - se ' ’ fazia parte desde o princípio do Credo dos Apóstolos e constantemente reconhecido e aceito pelas igrejas. Pois é evidente que não se faz nenhuma menção dele no Credo Niceno e no Romano, segundo Ruffinus (A Commentary on the A postles' C reed 28* [NPNF2, 3:553,554]). Os antigos que publicaram as confissões e apresentaram a regra de fé (tais como Irineu, Orígcnes, Tertuliano, Agostinho e outros) nada dizem sobre ele. Também Ru­ ffinus só o reporta ao final do século 45. Este artigo deveras ocorre no Credo Atanasiano, mas o fato de ser omitido o artigo sobre o sepultamento é clara prova de que ambos eram considerados como sendo a mesma coisa. Portanto é bem provável que este artigo tenha sido transferido do Credo Atanasiano para o Credo dos Apóstolos, e a princípio talvez fosse posto na margem com o propósito de explicação; depois, da margem para o próprio texto, onde mais tarde foi retido e incorporado nele. Esta questão, porém, sendo então descarta­ da, tratamos aqui somente de seu verdadeiro sentido (sobre o qual nem todos concordam). III. Não obstante, visto que não há nenhuma outra causa para tal discrepân­ cia senão a ambiguidade das palavras sh V/ e hadês, bem como o múltiplo sentido da frase “desceu ao inferno”, é preciso discutir isto em termos breves. A palavra sh V/ é expressa na Escritura de quatro formas: (1) quanto a um sepulcro (SI 16.10; 49.15); (2) quanto ao lugar dos condenados (Lc 16.23); (3) quanto aos tormentos mais profundos (SI 18.5; 116.3); (4) quanto à humilha­ ção extrema (Is 14.15). Daí, a expressão descer ao infemo é usada de quatro formas: (a) denota ser sepultado (Gn 37.35; 42.38); (b) descer ao lugar dos condenados (Nm 16.33); (c) sentir dores infernais (ISm 2.6); (d) ser extrema­ mente humilhado (Mt 11.23). Em conformidade com esta quádrupla significa­ ção, é possível haver um quádruplo significado deste artigo. De modo que pode referir-se ou a uma descida local ao lugar dos condenados (como os pa­ pistas e luteranos mantêm e já foi refutado por nós); ou ao sepultamento de Cristo, ou aos seus sofrimentos infernais, ou ao grau extremo dc sua humilhação.

IV. Os M que afirmam M que este não difere de seu .sepul. . artigo b p tament0 apoiam-se especialmente nestas razoes: (1) que *uz do SI 16.10 e em At 2.31) parece indicar claramente o sepultamento de Cristo: “Prevendo isto, referiu-se ’ à ressurreição de Cristo, que nem foi deixado na morte, nem seu corpo experimentou corrupção”. (2) Em outra parte da Escritura, sh 'vl é expresso pelo sepulcro, e a descida ao inferno c expresso pela descida ao se­ pulcro (como ensinam Arias Montanus, Emanuel Sa e outros papistas e lexicó­ grafos). (3) Em vários credos se faz menção de uma descida ao inferno, sem fazer qualquer menção a sepulcro (como no Credo Atanasiano, o que eviden­ cia que eles foram levados por ele quanto a uma e à mesma coisa). E aqui se pode fazer referência ao fato de que Paulo menciona a morte, o sepultamento e a ressurreição de Cristo segundo as Escrituras (1 Co 15.3,4), porém nada diz de sua descida ao inferno. Entretanto, teria falado dela se cresse que tal artigo significa algo mais além de seu sepultamento. V. Todavia, não é provável que este artigo seja o mesmo que sepultamento. (1) Seria uma tautologia (tautologia ) difícil de caber num credo tão sucinto e breve. (2) Não se pode dizer que este artigo foi apenso ao primeiro acerca do sepultamento com o fim de explicá-lo, visto ser mais obscuro do que o primei­ ro. E assim não deve referir-se precisamente ao sepultamento, mas ao estado dos mortos e sua detenção no sepulcro sob o domínio da morte (como esta frase às vezes é usada para descrever o estado dos mortos; cf. Gn 37.35, onde Jacó, lamentando seu filho José, crendo que o mesmo tinha sido dilacerado por animais selvagens, diz: “chorando descerei [ls h ’vf) a meu filho”; realmente não ao sepulcro, porque ele presumia que o mesmo fora dilacerado por ani­ mais selvagens, e não sepultado; mas simplesmente à morte ou ao estado dos mortos). Assim, “na morte não há lembrança de ti; no sh ’vl, quem te dará graças?” (SI 6.5; cf. Jó 17.13-15; SI 30.3; 49.15; Is 14.11,19,20). VI. Além disso, a passagem de Pedro (At 2.27), extraída do oráculo (SI 16.10), parece, necessariamente, demandar tal conclusão: “Não deixarás mi­ nha alma eis hadou" (suprindo oikon, empregado por ele para provar a ressur­ reição). Ele afirma que esta profecia se cumpriu na ressurreição de Cristo, de modo que este é o significado: “Não deixarás minha alma” (i.e., minha vida), ou “[não me deixarás] na morte, mas me levantarás da morte mediante a ressurrei­ ção”. Aqui se encaixa o que lemos no versículo 24 acerca de “as dores” ou “cadeias da morte”, pelas quais foi mantido pela morte como cativo (da qual ele foi libertado pela ressurreição). Era impossível (tanto em virtude da glória de sua divindade como em virtude da santidade de sua humanidade) ser manti­ do por ela por mais tempo. £ - , VII. Mas, tampouco se deve repudiar a outra opinião que en­ . ‘ . tende esta descida como se referindo aos extremos sofrimenos torm entos. , _ . , , tos de Cristo suportados tanto no horto quanto na cruz. Ela A . A s razoes para o senultam entn e o estado dos m ortos

concorda (1) com o estilo da Escritura, o qual geralmente designa os tormentos mais graves por “inferno” e “dores do inferno”, como já falamos; (2) com o credo, sendo que os sofrimentos mais pesados e especiais de Cristo não seriam passados cm silêncio (o que aconteceria se a descida de Cristo ao inferno não fosse entendida como referente aos sofrimentos íntimos de sua alma). Pois os artigos precedentes só falam dos sofrimentos externos do corpo. ^aso se indague qual dessas duas opiniões deve ser niantida, respondemos que ambas podem ser aceitas e de­ ’ vem ser postas em perfeita harmonia uma com a outra. E assim pela descida ao inferno podemos entender como sendo extremo grau do sofrimento e humilhação de Cristo, seja no tocante à alma e ao corpo, seja quanto ao grau mais baixo de humilhação, enquanto o corpo era mantido no sepulcro; e, no que se refere à alma, foram aqueles terríveis tormentos que ele sentiu. E assim este artigo final será aposto para expressar o grau último da humilhação de Cristo, seja quanto à miséria do corpo, seja quanto à angústia da alma. Não deve causar surpresa que estas duas partes (mutuamente diversas entre si) sejam inseridas num só e o mesmo artigo. Nem é estranho à Escritura que um sentido único seja revestido de várias relações (schesin) e que muitas coisas sejam enfeixadas, especialmente quando as coisas são mutuamente su­ bordinadas e relacionadas entre si. Visto que esta frase pode ser atribuída ora à degradação do corpo, ora às tristezas da alma (e Cristo teria suportado ambas as condições), não foi sem razão que os antigos acrescentaram este artigo ao precedente a fim de apresentar mais distintamente este estado de Cristo. C onciliação de duas opiniões

^ un'ao constante e indissolúvel da natureza humana com a divina, em Cristo, não o impede de ser passível de sofrimen* to, seja na alma, seja no corpo, do castigo que nos era d A união com o Verbo faz com que de fato ele seja sempre santo e isento de todo pecado; mas não que ele seja sempre feliz e glorioso (já que ele veio com o propósito de sofrer). Cristo sempre possuiu a glória da pessoa como Deushomem (theanthrõpos)\ porém não teria perenemente a glória da natureza hu­ mana (a qual ele só obteria após a ressurreição), porque ele tinha de ser tentado em todas as coisas em pé de igualdade conosco e tomar-se maldição para nossa salvação. X. Quando lemos que é propriamente condenado aquele que suporta no inferno o castigo devido aos seus pecados pessoais, esta forma de expressão não pode aplicar-se a Cristo, o qual nunca sofreu por seus próprios pecados, mas pelos nossos; nem poderia sofrer no inferno, mas na terra. No entanto, não há objeção em dizer que o Filho de Deus foi condenado por Deus por nossa causa, assim como em outro lugar lemos que ele foi feito maldição (katara) e abomi­ nação por nós. Não mais absurdo é dizer que Cristo foi condenado do que dizer que o Senhor da glória sofreu e foi crucificado, e por nossa causa foi pendura­ do na cruz e punido (como se afirma com frequência). Fontes de explanação

XI. A visão de Deus pertencente aos santos no céu mediante a glória difere da dos crentes na terra mediante a graça. Aqueles que vêem a Deus na primeira forma não podem mais ser sujeitos a castigos e dores porque estão em seu país natal, estabelecidos num estado de felicidade. No entanto não se dá o mesmo com os crentes que, embora vejam a Deus pela fé, não cessam de ser expostos a várias aflições. Cristo na terra (como homem) viu a Deus no segundo senti­ do, e muito mais perfeitamente do que os crentes; mas esta visão não o impe­ diu de sofrer e de se queixar de que fora abandonado por Deus. D

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S é t im a P

ergunta:

A R

e s s u r r e iç ã o d e

C r is t o

Cristo ressuscitou por seu próprio poder? A firm am os isso contra os socinianos.

^ ^ Pr>meiro grau da exaltação de Cristo se situa em sua ressurreição. A esse respeito, os socinianos suscitaram aqui uma dúvida. Na verdade, não acerca de sua veracidade, pois embora os judeus a ponham em xeque (sim, ousam inclusive negá-la), foi provada por tantos testemunhos e testemunhas, e confirmada por tantos sinais e milagres, que a dúvida lançada contra ela constitui uma inescusável incredu­ lidade, especialmente depois do irrefutável testemunho dos apóstolos que, ao dá-lo, não se enganavam nem queriam enganar a outros (nem poderiam, como se provou no Volume I, Tópico II, Pergunta 4). Os milagres que seguiram a ressurreição de Cristo provam que ele vive e reina gloriosamente no céu (sem nada dizer agora da justiça de Deus, da glória de Cristo e de nossa salvação, que necessariamente a demandam, segundo as profecias pronunciadas sobre ela). Antes, a questão se relaciona com isto - ele ressuscitou por seu próprio poder, ou pelo poder de outro? II. Pois os socinianos, assim como afirmam que Cristo é mero homem (psilou anthrõpori), assim também sustentam que Cristo não ressuscitou por seu próprio poder, mas foi ressuscitado pelo poder de Deus. Daí os socinianos cha­ marem esta doutrina “ridícula, absurda e impossível” (cf. D e imigeniti filii Dei existentia [1626], pp. 58,59). O Catecismo Racoviano diz ser ela “um erro notá­ vel” (cf. “O f the Kingly Office of Christ”, Sect. VII, Racovian Catechism [1818], pp. 361-364). Os ortodoxos, porém, atribuem a causa da ressurreição a Cristo, não menos que ao Pai. Visto que o poder do Pai e do Filho é o mesmo, crêem que pelo mesmo poder o Pai ressuscitou Cristo e este ressuscitou a si mesmo. E stabelecim ento da questão

Pr'me'ro>Cristo atribui expressamente isto a si mesm0: “Destrui este santuário” (falando do templo de seu corpo) “e. em três dias o reconstruirei” (Jo 2.19). Em João , _ ’ testifica que “tem poder para a entregar [sua vida] e também para reavê-la”. Ele não poderia ter dito ' ’ ' tal coisa se não tivesse poder para ressuscitar dentre os mortos. Se a primeira passagem for troponímica, não terá menos peso visto ser claramente explicada por Cristo. Prova de que Cristo ressuscitou n ti í i / t j / f i t / » U (1) com base em joão 2 19

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IV. Segundo, a Escritura menciona a ressurreição de Cristo

2. Com base em ° . . R .j entre os principais argumentos pelos quais se prova sua om anos . . divindade. Em Romanos 1.4, Paulo diz que ele foi horisthenta (i.e., ‘'declarado”, por assim dizer, por um decreto público e comprova­

do Filho de Deus, poderoso ou “com poder, segundo o Espírito de santidade, pela ressurreição dentre os mortos” ). Ora, isto não poderia ser dito de uma ressurreição passiva, na qual Cristo seria meramente passivo (como o mesmo não poderia ser dito da filha de Jairo e dc outros que foram ressuscitados por Deus). Daí necessariamente devermos entender aqui uma ressurreição ativa pela qual ele ressuscitou a si mesmo por seu próprio poder de divindade, o que se prova claramente não só pelas passagens paralelas (nas quais a natureza divina de Cristo vem a ser denotada pelo Espírito, IPe 3.18; lTm 3.16; Mc 2.8), mas especialmente pela antítese (em confronto com carne) - designada por “o espíri­ to de santidade”. Pois como ele é chamado o Filho de Davi segundo a carne (kata sarka, i.e., com respeito à sua natureza humana); segundo o Espírito (kata Pneuma, i.e., segundo sua natureza divina), vemos que é feita a declaração de que ele é o Filho de Deus mediante a ressurreição. Do contrário, a antítese seria falha, nem mostraria que o Filho de Deus não foi feito da semente de Davi. ^ Terceiro, Cristo realiza as mesmas obras em igualdade com ° ^ a' e “vivifica a quem ele quer” (Jo 5.21). Ora, se ele pode ' " * vivificar a quem quer, que lugar haveria para duvidar de que ele também ressuscitou a si mesmo? E confirmado por isto - que ele denomina a si próprio a ressurreição e a vida: “Eu sou a ressurreição e a vida; aquele que crê em mim, ainda que esteja morto, viverá” (Jo 11.25). Aqui o abstrato ex­ presso pelo concreto notifica que ele é a causa principal da ressurreição e a real fonte da vida, aquele que dá vida a outros a si próprio dá vida (autozõê) e é o autor de sua própria ressurreição.

3 Com base em ío ã o 5 21

Quart0>c*c ^ 0 “primogênito dos mortos” (Cl 1.18), o que implica não só a prerrogativa de ordem, mas tam, , ' . . / . • ■ , bem sua virtude e poder de ressuscitar, possuindo por natureza o que seus demais irmãos só obtêm pela graça da adoção. Fontes de Embora a ressurreição de Cristo às vezes seja atribuída ao explanação ^a' ^ ^ ^ *-19,20), não se segue que não * ’ possa ser atribuída ao Filho, porque tudo quanto o Pai faz, o Filho semelhantemente o faz (Jo 5.19); e como a ressurreição é uma obra ex­ terna, ela tem de ser indivisa em relação a toda a Trindade. Há, porém, uma razão peculiar pela qual ela é atribuída ao Pai, em virtude da obrigação que Cristo assumiu sobre si, de que ele deve ser absolvido pelo Pai (como Juiz), o qual, como entregara Cristo à morte por nossos pecados, assim deve ressuscitálo para nossa justificação - a fim de testificar que foi feita por ele uma plena satisfação. Diversamente, quando se trata da confirmação da vocação de Cristo e da vindicação de sua divindade, a ressurreição é mais frequentemente atribuída a ele (como já dissemos). 4 Com base em ^ , » »o Colossenses 1.18.

VIII. É absurdo e ridículo que um mero homem (psilon anthrõpon), que morreu, ressuscite a si próprio dentre os mortos. Mas que o Deus-homem {theanthrõpon) ressuscite sua humanidade por virtude de seu poder divino tão longe está de ser absurdo, que negá-lo é blasfemo e ímpio. IX. Cristo poderia ter obtido do Pai sua ressurreição mediante orações a ele oferecidas como homem (Hb 5.7), e contudo ele a efetuou como Deus pelo mesmo poder do Pai. Pois, visto que Cristo pôde ressuscitar Lázaro e outros (já que o Pai deu ao Filho ter vida em si mesmo, e o Filho, como o Pai, vivifica a quem quiser), quem lhe negaria o poder de chamar de volta a si a vida? X. Além do mais, quando Cristo ressuscitou a si mesmo, não se deve presu­ mir que ele atravessou com seu corpo a pedra posta sobre o sepulcro (como os papistas desejam com o fim de defender seu erro). Pois o corpo espiritual que ressuscita não se converte em espírito como não o pode um corpo converter-se em alma. E o poder divino se manifesta não destruindo, mas conservando as naturezas das coisas. Materialidade e finitude não pertencem às debilidades da vida animal, mas às propriedades essenciais do corpo. A criatura poderia, pois, ter sujeitado ao Criador, em sua ressurreição, este lado de uma penetração de suas dimensões; ou Cristo empregou o ministério de um anjo para remover a pedra da boca do sepulcro antes de sair dele (Mt 28.2) - não por indigência, mas por indulgência, a fim de testificar que seu poder foi acompanhado por ministros procedentes de todas as criaturas; ou porque, estando ainda constitu­ ído no estado de obrigação, ele quis aguardar a sentença do Pai a ser-lhe noti­ ficada por um anjo. D

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Cristo ascendeu propriamente p or um movimento local, subindo das regiões inferiores ao céu supremo dos bem-aventurados, ou metaforicamente p o r desaparecimento? A firm am os a primei­ ra hipótese e negamos a segunda, contra os luteranos.

^ ^ sta questã° é introduzida por causa dos luteranos e dos clue atribuem ubiquidade ao corpo de Cristo. Para mais facilmente evitar o argumento extraído da ascensão de Cris­ to com o fim de provar a circunscrição do corpo de Cristo, negam que Cristo real e propriamente ascendeu; mas que o fez apenas figuradamente, visto que ele desvencilhou sua presença visível do mundo (embora ainda permaneça no mundo invisivelmente). E o céu para onde ascendeu (afirmam eles) não é o supremo ou terceiro céu (chamado o céu dos bem-aventurados), mas o céu da bcatitude e reino de Deus (o qual está em toda parte); cf. Brentius, “De Ascensu Christi”, Operum (1579-1590), 8:102ss. II. E verdade que não estão inteiramente concordes entre si. Pois alguns (como Brochmann, “De Servatoris Nostri Jesu Christi”, Sect. 16 em Universae theologicae system a [1638], 1:937-948), não negam que a ascensão de E stabelecim ento da questão.

Cristo consista numa verdadeira e real transferência e movimento das partes interiores deste mundo ascendente e numa mudança de lugar; sim, que ele também adentrou o céu (o que ele prova à luz de várias passagens da Escritu­ ra). Mas o que esse céu é não se pode conceber ou explicar por algum mortal. Ele tem como certo que não há um lugar corpóreo determinado e constituído além dos céus visíveis e separado desta terra por uma distância local. E defini­ do não tanto por situação local quanto por alegria e glória. III. Ao contrário, mantemos que Cristo subiu local, visível e corporalmente da terra para o terceiro céu ou sede dos bem-aventurados além dos céus visí­ veis; não por mero afastamento de sua presença visível ou da comunhão fami­ liar, mas por uma trasladação verdadeira e local de sua natureza humana. Ali ele permanecerá até que chegue o dia do juízo, de modo que, embora esteja sempre presente conosco por meio de sua graça, do seu Espírito e da sua divin­ dade, contudo já não está conosco pela presença física de sua carne. Prova' se ( 0 corn base na história da ascensão, a qual notifica uma mudança verdadeira e real de lugar. Lemos que recebido no ceu (anelêphthe eis ton ouranon , Mc ^ue l *a se ret' rando deles, sendo elevado para o céu” {diesfê ap ’autõn, kai anephereto eis ton ouranon , Lc 24.51); “estando eles com os olhos fitos no céu, enquanto Jesus su­ bia, e uma nuvem o encobriu de seus olhos” (At 1.9,10). Aqui se descreve o ponto do qual ( terminus a quo) se deu a ascensão (ou seja, a terra e o Monte das Oliveiras, em particular); através do qual (a atmosfera e as nuvens); para o qual (o céu) - as palavras descritivas (anatêpsis , anaphorê, diastasis, eparsis) indicam uma real trasladação e mudança de lugar. Não é de qualquer valor replicar que tais coisas pertencem apenas ao diálogo familiar e de relacionamento terreno, e não de sua presença real e invisível, a qual se retirou dos crentes, o que a promessa solene de Cristo confirma (Mt 28.20). As palavras em si ensinam suficientemente que o seu relacionamento familiar foi removido, não menos que a presença real de seu corpo na terra, visto que de fato pressupõem necessariamente uma trasladação de um lugar inferior para um superior. V. Segundo, lemos que ele “deixou o mundo e partiu para o Pai” (Jo 16.28), o que não se poderia dizer se somente fosse subtraída do mundo a sua presença visível. E as circunstâncias das passagens mostram que está implícita uma pre­ sença local, em parte da antítese do terminus a quo e adquem - “Eu deixo”, diz ele, “o mundo” (i.e., a terra) “e vou para o Pai” (i.e., subo para o céu); e em parte da oposição de sua “vinda” e de sua “partida” - “Eu vim ao mundo” mediante a encarnação, agora “deixo o mundo” no tocante à carne (i.e., segun­ do a qual lemos que ele foi elevado [analêphtheis ] e visto por seus discípulos subindo para o céu [poreuomenos eis ton ouranon , At 1.10,11]). Se lemos que ele veio ao mundo como o Logos (Logos) somente por manifestação, e não por

Prova de aue n Cristo ocorreu p o r um m ovim ento [oca[

uma mudança de lugar, não se pode dizer a mesma coisa de sua carne, porque um é o modo de sua divindade, a qual (visto ser imensa) não pode mudar de lugar; outro, de sua humanidade, cuja propriedade é passar de um lugar para outro. VI. Terceiro, o céu para o qual Cristo foi levado nos é descrito como um determinado lugar no qual ele entrou e no qual entraremos após ele. Ele é cha­ mado “a casa de meu Pai”, onde há muitas moradas, para onde Cristo subiu para “preparar-nos lugar” (Jo 14.2,3); “o terceiro céu e paraíso” (2Co 12.2,4); onde Cristo entra como nosso precursor (Hb 6.20); para onde devemos erguer nossos olhos buscando “as coisas lá do alto, onde Cristo vive, assentado à direita de Deus, e não nas que são aqui da terra” (Cl 3.1,2). Falsamente, pois, Brentius e outros luteranos afirmam que o céu nada mais é do que a própria felicidade (o que nos é incompreensível). Uma coisa é buscar saber que céu é esse; outra, contudo, é buscar sua qualidade. Lemos que Cristo “subiu acima de todos os céus” (Ef 4.10) ^ou seJa’ do c®u v‘s've*- *-e->0 c^u atmosférico) e o firmamen­ to (ou seja, para que pudesse entrar no terceiro céu ou paraíso). Porquanto lemos que ele subiu acima de todos os céus, não obstante lemos que ele está no céu (Ef 1.20). Se lemos que ele subiu para lá “a fim de encher todas as coisas”, isso não deve ser inferido do enchimento de todos os lugares pela onipresença do corpo, mas acerca do enchimento de todos os membros de sua igreja mediante uma efusão dos dons do Espírito (como é explicado na mesma passagem). VIII. Cristo estava no meio dos sete castiçais e, portanto, na terra (Ap 1.13) por meio de seu Espírito, graça, proteção e governo; porém não por meio de uma presença física. Tampouco João o viu, pela visão ocular, caminhando sobre a terra, mas apenas por meio de uma visão mental e extática (como se nota no v. 10, onde lemos que “se achava no Espírito” [en penum ati, i.e., num êxtase], como em At 10.10; Paulo também, de forma semelhante, o contem­ plou de pé junto dele, At 23.11). IX. O mesmo que desceu, também subiu (Ef 4.10), no tocante à pessoa, porém não no tocante à natureza. Para a descida divina, porém a subida huma­ na - a primeira de fato metafórica e figuradamente (porque não podia ser de outra forma); a segunda, no entanto, própria e localmente, de modo que real­ mente está no céu (onde não estava antes), e não mais na terra (onde esteve antes). Embora Cristo não descesse própria e localmente do céu (porquanto como Logos [L ogos] ele está em toda parte), não se segue que aquele céu não seja local, mas alegórico, visto que lhe são atribuídas coisas que não podem harmonizar-se com qualquer coisa senão com um lugar real e próprio. Nestas locuções, pois, o tropo não está na palavra “céu”, mas nas palavras “descer” e “subir”. X. Embora Cristo tenha partido para o Pai (que está em toda parte) por Fontes de explanação

meio de ascensão, não se segue que aquela ascensão nada mais é do que uma partida para a suprema felicidade (que está em toda parte no Pai, não em qual­ quer lugar particular). Lemos que ele partiu para o Pai, não que estava em toda parte com o Pai, mas para onde seria coroado com glória e honra (i.e., o céu, onde Deus tem seu trono e onde o próprio Cristo ainda permanece até a consu­ mação de todas as coisas). Assim, quando ele diz que se vai, simplesmente notifica uma mudança de lugar; quando acrescenta que vai para o Pai, ele no­ tifica uma mudança de condição, adequada à natureza humana. XI. Embora os crentes sejam felizes onde quer que estejam (porque estão sempre com Deus), no entanto sua felicidade não é perfeita até que sejam rece­ bidos no céu (o qual Estêvão, anelando por Cristo, visualizou). Daí Paulo, em­ bora já estando com Cristo pela fé, contudo anseia (deixando a terra) partir para o céu e estar com ele pessoalmente (Fp 1.23). E lemos que os crentes já estão assentados nos lugares celestiais com Cristo pela fé e pela esperança, contudo ainda estão ausentes dele e do seu lar (2Co 5.6). XII. Como lemos que Estêvão viu a Cristo no céu, enquanto “via os céus abertos e Cristo em pé à mão direita de Deus” (At 7.56), a saber, dotado pelo Espírito Santo de extraordinária agudeza da vista, da mesma forma Paulo pode tê-lo visto (At 9.27). Daí em Atos 26.19 ele chamar isto de “visão celes­ tial”. E “uma luz do céu, mais resplandecente que o sol, que brilhou ao redor de mim e dos que iam comigo” (v. 13) era deveras um símbolo de sua gloriosa majestade, porém não uma prova da presença de seu corpo na terra ou no ar. Se lemos que Paulo estava no caminho quando viu o Senhor, não se segue que Cristo (visto por Paulo) também estava no caminho. D

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O que é Cristo estar assentado à destra de Deus? D e acordo com que natureza isto se aplica a Cristo epertence à relação de situação? Isso negamos.

I. Esta questão se faz necessária por causa dos luteranos, os quais, para provar a onipresença e onipotência da natureza humana de Cristo, afirmam que ele (segundo sua natureza humana) se assenta à destra de Deus. Não obs­ tante, para que isso seja mais facilmente entendido, devemos primeiramente falar, de forma sucinta, de seu assentar-se. Daí, pode-se deduzir com pouca dificuldade como isso pertence a Cristo. II. E preciso entender o assentar-se à de Deve-se entender própria e literalmente (visto que não possui mão direita o assentar-se à nem esquerda), mas figurada e metaforicamente, para de­ destra de Deus notar a suprema dignidade e autoridade de Cristo. A me­ não literal, mas táfora é tomada do costume dos reis e príncipes de colo­ figuradamente. car à sua direita aqueles a quem concediam o mais ínti­ mo grau consigo, seja de honra, seja de poder em governar. Esta frase é inferi-

da do mais íntimo grau de honra em 1 Reis 2.19, onde Salomão, para dar à sua mãe uma honra especial, a coloca à sua mão direita. E no salmo 45.9 lemos que a esposa do rei (i.e., a igreja) está em pé à direita do Messias (i.e., em segundo grau de dignidade em relação a ele). É usada para indicar domínio ou adminis­ tração dc um reino (Mt 20.21), onde a mãe dos filhos de Zebedeu solicita que lhes seja permitido assentar-se à destra de Cristo no reino (i.e., terem os prin­ cipais ofícios). 111. Daí poder-se discernir facilmente a natureza do assentar-se de Cristo à destra do Pai. Pois duas coisas são especialmente designadas aqui: (1) a supre­ ma majestade e glória pela qual ele foi supremamente exaltado por Deus e recebeu um nome que está acima de todo nome (Fp 2.9,11; Hb 1.3); (2) o supremo domínio que poderosamente exerce sobre todas as criaturas e o qual ele mostra especialmente no governo e defesa da igreja. A segunda é explicada por Paulo em 1 Coríntios 15.25, onde ele explica o assentar-se à mão direita com base no Salmo 110.1 como sendo “reinar” ( basileuein ): “ele deve reinar até que ponha todos os inimigos debaixo de seus pés”. Assim, esse assentar-se é representado pela sujeição de todas as coisas debaixo de seus pés (Ef 1.22); e “depois de ir para o céu, está à destra de Deus, ficando-lhes subordinados anjos, e potestades, e poderes” (1 Pe 3.22). ^ Com base na declaração do ato de Cristo assentarse’ é fácil deduzir de que forma pertence a Cristo ou (í ua*®0 suj e't0 desse ato. Se é a natureza humana simplesmente, como os luteranos (com o propósito de de­ fender sua hipótese da presença plena [pantachousia] do corpo de Cristo). Ou a natureza divina (como outros). Ou a pessoa (que é a opinião aceita entre os ortodoxos). Seguimos estes últimos, afirmando que o assentar-se pertence propriamente à pessoa dc Cristo em conformidade com ambas as naturezas (mas com certa distinção). V. A razão é - assentar-se à destra não pertence propriamente à natureza (nem da divina nem da humana), mas uma propriedade da dignidade da pessoa (ou seja, o glorioso estado da pessoa de Cristo e da administração do ofício medianeiro, cujas obras [apotelesm ata] são comuns à pessoa como um todo com respeito a ambas as naturezas). Daí, o que o Pai diz ao Logos (Logos ), “assenta-te à mão direita”, não é à carne, mas ao Filho (chamado para o ofício medianeiro). E aqui deve-se distinguir o poder de seu exercício. Pois o sujeito do poder é a pessoa ou Cristo, o Deus-homem (theanthrõpos ), manifestado na carne, não as naturezas simplesmente. Pois esse poder não é um acidente abso­ luto necessariamente inerente às naturezas, mas uma simples relação (como o poder real que não pertence à alma nem ao corpo de um rei, mas ao ser com­ posto). O sujeito de seu exercício, contudo, é cada natureza: a divina, por sua própria onipotência e onipresença; a humana, em contrapartida, por aqueles dons extraordinários e aquela glória pelos quais ele suplanta a todas as criaturas.

O ato de assentar-se não ép ro p ria m en te de naturezas m as de uma pessoa

VI. Portanto, desse modo o ato de assentar-se a pessoa consiste na glória e no poder supremos a ele outorgados por sua exaltação, pelos quais ele foi exaltado como o Rei e a Cabeça da igreja. Com respeito à natureza humana, ele consiste na glória e honra com que o adornavam acima de todas as criaturas e das quais ele fora destituído anteriormente. Com respeito à natureza divina, contudo, o referido ato consiste na manifestação do poder e majestade que ele mantivera ocultos sob o véu da carne frágil e da condição servil. VII. Assim como a paixão, a morte e a crucifixão pertencem de tal sorte à natureza humana, subjetivamente, que são atribuídas à pessoa também denominativamente (em cujo sentido ações e sofrimentos pertencem ao ser com­ posto), assim também o assentar-se (que implica uma comunicação real de honra e glória com respeito à natureza humana) denota uma relação de domí­ nio e poder que é própria da pessoa. VIII. Quando Cristo é considerado teologicamente, como Logos (Logos ) sim­ plesmente, afirma-se corretamente que ele está à destra de Deus porque partilha com o Pai da mesma essência onipotente de Deus. Mas quando considerado economicamente, como Mediador, afirma-se corretamente que ele se assenta à destra de Deus. No primeiro sentido, a destra de Deus equivale à onipotência divina, mas no segundo, metaforicamente, ao império e ao domínio que perten­ cem propriamente à pessoa. Pode-se atribuir também à natureza divina no tem­ po, se não quanto à nova concessão de uma coisa ainda não possuída, contudo quanto á manifestação de uma coisa de fato já possuída, porém ainda oculta. IX. Embora se requeiram onipotência e onipresença para o exercício do po­ der outorgado a Cristo, não se segue que estas foram dadas à natureza humana de Cristo. E suficiente que pertençam à pessoa (supposito ) de Cristo em razão da natureza divina. E assim a natureza humana foi feita participante daquele domí­ nio, porém segundo o hábito de uma criatura (tal como ela sempre permanece). O poder e operações da deidade, pelos quais ele gloriosamente administra seu reino, são divinos - iguais a Deus, porque ele mesmo, como Deus, é igual junto ao Pai. Mas as ações da humanidade são deveras mais perfeitas do que as ações de outras criaturas, ainda que não iguais à divina, porque ele realmente se assen­ ta à destra de Deus em conformidade com ambas as naturezas (no entanto sendo preservada a veracidade de ambas as naturezas). ^ a’ P°dermos responder prontamente à indagação formulada aqui acerca do tempo em que Cristo se assentou ~ Q113^ 0 e*e começou a assentar-se? Desde a eternidade? - como Tomás de Aquino, Maldonatus e outros desedestra de Deus.' . . . , r-,, jam, os quais interpretam o ato de o Filho assentar-se como sendo sua igualdade com o Pai; ou desde o exato momento de sua encarnação? - como querem Brentius e seus seguidores, os quais explicam esse assentar-se como sendo a união pessoal da carne com o Logos (Logo) e a comunicação de propriedades à carne; ou somente depois de sua ressurreição e ascensão? - o que sustentamos com os ortodoxos. Ouando Cristo com ecou a assentar se à . , . n

XI. Primeiro, a Escritura põe expressamente o ato de Cristo assentar-se depois da ressurreição e da ascensão (Ef 1.20; Mc 16.19; Hb 10.12; 1Pe 3.21,22). Segundo, ele é o fruto de sua humilhação e morte (Hb 1.3; 12.2). Terceiro, ele não poderia administrar gloriosamente o reino medianeiro, a menos que seus inimigos fossem vencidos na cruz e na ascensão. XII. Cristo deveras, como Logos (Logos), existiu desde a eternidade com o Pai, mas nem por isso lemos que ele estivesse assentado à destra de Deus (no sentido em que esse ato lhe é atribuído depois da ressurreição cm conformidade com seu glorioso estado como Mediador). Ele reinava como Filho sobre o reino da natureza, porém não como Deus-homem (theanthrõpos ) sobre o reino cósmi­ co. Lemos que Cristo como Mediador em certo sentido já se assentava à destra de Deus, não na carne (asarkos), mesmo antes da encarnação; portanto desde o princípio do mundo, porque ele sempre foi a Cabeça e o Rei da igreja por ele governada e defendida (SI 2.6; Hb 13.8). Mas, “na carne” (ensarkon ), ele se assenta somente depois de sua paixão e ressurreição (Lc 24.26). De fato ele possuía o direito ao reino com base na união hipostática, porém não obteve a posse fatual senão depois de sua ascensão (SI 110.1; At 2.34-36). XIII. O tempo do assentar-se a posteriori não tem limite, porque tinha de ser perene (eis to diênekes, segundo o apóstolo, Hb 10.12). Nem as palavras do salmo 110.1 servem de obstáculo, onde se lê que ele se assentará “até que ( 'dh khy) seus inimigos sejam postos debaixo de seus pés”. Sabe-se que esta partícu­ la de tal modo expressa certo tempo, sobre o qual ela trata e o qual pode-se pôr em dúvida, que não se pode negar uma continuação no futuro (como transpare­ ce de Gn 28.15; Mt 28.20; 1Tm 4.13). Assim, aqui se afirma que o domínio de Cristo é no meio de seus inimigos (i.e., num tempo em extremo perigoso). Po­ rém não se nega quanto ao futuro, porque seu reino deve ser eterno. De fato deve haver uma mudança na maneira de reinar, porém não no próprio reino (como se verá no lugar próprio). XIV. Além do mais, o assentar-se Cristo à destra do Pai não denota a situa­ ção ou posição ( ubicationem ) do corpo de Cristo, visto ser ele o estado de sua pessoa. Tampouco se pode lançar contra nós, a não ser caluniosamente, que para nós a destra de Deus é um certo lugar, e o assentar-se à direita é uma certa situação local. O céu, no qual lemos que ele está assentado à destra de Deus, para nós é o lugar em que (como num palácio real e num santuário feito não por mãos) ele se assenta à destra de Deus. Nenhum de nós, porém, afirma que a destra de Deus é um lugar. XV. Não obstante, o erro de que os defensores da ubiquidade falsamente nos acusam nós lhes atribuímos com justiça, em conformidade com sua pró­ pria hipótese. Do assentar-se Cristo à destra de Deus inferem a ubiquidade do corpo de Cristo em virtude de que a destra de Deus está em toda parte. Não podem tirar tal conclusão sem pressuporem e conceberem a destra de Deus à maneira de certo lugar e o assentamento à maneira de uma situação local.

XVI. Ao argumento extraído do assentar-se Cristo à destra de Deus em prol de sua ubiquidade, além do que já foi dito na Pergunta 8, Seção 29 (e para não dizer nada da forma do silogismo, o qual é claramente falho em virtude dos quatro termos, quando da destra de Deus, a qual está em toda parte, se conclui que aquele que está assentado à destra de Deus deve estar em toda parte). Não obstante, visto que a destra de Deus e o assentar-se à destra de Deus diferem amplamente (como tampouco aquele que se assenta à destra de Deus deve estar onde quer que essa destra esteja, especialmente já que o ato de assentar-se não é a designação de uma situação local, mas a outorga de domínio e glória), é indubitável: (1) que o estado e oficio da pessoa aqui se confundem com a propriedade de sua natureza, porque ubiquidade é uma propriedade de sua natureza, enquanto o assentar-se à mão direita é um estado e oficio da pessoa. (2) Que uma locução figurada e metafórica é confundida com uma locução vera e própria; porquanto se afirma que o assentamento à mão direita é figurado, en­ quanto o estar em toda parte deve-se entender real e propriamente. (3) Glória e dignidade são confundidas com onipresença; pois o que é glorioso não deve ser necessária e imediatamente onipresente, se onipresença destrói sua natureza pró­ pria (que é o caso aqui). Fazer o corpo onipresente equivale dizer que o corpo não é um corpo. (4) Que a carne de Cristo é confundida com seu domínio, de modo que a essência da carne se estende tão amplamente como seu reino e domí­ nio (o que deveras é procedente no que tange a Deus, porém não à carne por mais sublimemente glorificada que seja). Não há necessidade de que a carne esteja presente onde quer que ele reine, não mais que um rei deva estar fisicamente presente em todas as províncias de seu reino, especialmente já que Cristo está presente em toda parte quanto à pessoa com respeito à sua natureza divina. XVII. Embora o recebimento de um nome que está acima de todo nome pertença, em sua própria medida, também à natureza assumida, contudo deve­ se entender isso de modo que as propriedades das naturezas sejam preservadas em conformidade com as Escrituras. Assim o Filho é também glorificado se­ gundo a carne, porém não quanto a tomar a carne igual ao Logos (Logo). Tam­ pouco dividimos Cristo nem lhe atribuímos duas glórias e poderes, [mais] do que, quando dizemos que o homem foi feito à imagem de Deus e depois se tomou corrupto, isso faz o corpo igual à alma ou inferior à alma, no mesmo nível do corpo em ignomínia. XVIII. Uma coisa é dizer que Cristo está presente em toda parte, igual cm glória com o Pai e cheio de todas as coisas; outra é atribuir isto à came de Cristo. O que se diz da pessoa no concreto não pode (nem deve) aplicar-se imediatamente às naturezas no abstrato. Pois embora seja verdade que o ho­ mem Cristo é Deus, contudo se diria impropriamente que esta came é divinda­ de. Pois a união das duas naturezas não se dá por mescla ou confusão, mas o Filho de Deus foi feito homem por uma união das duas naturezas sem confusão e sem mistura.

XIX. Uma coisa é um corpo glorificado ser feito espiritual quanto às qua­ lidades com respeito a esplendor, atividade, transparência e outras coisas des­ se gênero; outra, porém, é ser feito espírito ou ser transformado na natureza de um espírito - e um espírito imenso e infinito. O corpo de Cristo, por sua exal­ tação e posição à destra de Deus, foi feito realmente espiritual quanto às qua­ lidades, porém não foi transformado em espírito quanto à substância ou às propriedades essenciais, muito menos em um espírito onipresente. XX. Quanto ao resto, pode parecer existir certa diversidade entre nossos doutores na explanação do assentar-se Cristo à destra de Deus. Alguns o fazem consistir em quatro coisas: (1) na igualdade do Logos (Logou ) ou pessoa do Mediador com o Pai, a qual ele deveras não recebeu no ato de assentar-se, porém manifestou no tempo da humilhação; (2) na perfeição de seu ofício medi­ aneiro, pela qual ele foi constituído Rei e Cabeça da igreja; (3) na perfeição da honra e do culto, pelos quais Cristo é cultuado e adorado como Senhor e Rei da igreja. Outros o fazem só na comunicação de honra e de domínio outorgados a ele depois de sua ascensão. Isso não é bem uma divergência real, mas uma divergência quanto ao método de ensino. O primeiro grupo considera esse as­ sentar-se mais amplamente e o descreve não só pelo prisma da forma própria, mas também do princípio ou fundamento (ou seja, igualdade com o Pai, sem a qual ele não seria capaz de receber tão grande honra e domínio dos antecedentes e dos consequentes que lhe estão necessariamente anexados). Os outros, con­ tudo, o vêem de maneira mais estrita - simplesmente quanto à forma do assen­ tar-se, que consiste propriamente na perfeição do ofício medianeiro, pelo qual Cristo, coroado de glória e honra, governa no meio de seus inimigos.

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f íc io

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e d ia n e ir o d e

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r is t o

P rim eira P ergunta Em que sentido o titulo “Mediador” se aplica a Cristo?

I. Em seguida à discussão acerca da pessoa e do estado de Cristo, passamos agora à discussão de seu ofício medianeiro, em virtude do qual ele foi feito Deus-homem (theanthrõpos), e deve sustentar um duplo estado. Aqui se deve explicar inicialmente o significado do termo “Mediador” (geralmente aplicado a ele nesta função). “Mediador” (cm grego mesitês) se deriva dc medius. Comumente, é assim chamado quem se põe entre partes discordantes e ^ue 'n,e™ m (mesiteuei ). Pois um “mediador não é de um só” " (como diz o apóstolo, G1 3.20), mas de mais de um que conten­ dem entre si (a saber, com o fim de reconciliá-los). Daí Suidas explicar mesilên por eirênopoion. Ele é também chamado pelos latinos Seques te r ' como Tertuliano que usa a palavra para designar Cristo (Against Praxeas 27 [ANF 3:624; PL 2.192]). Além do mais, ele é um sequester que se põe entre duas partes em disputa e por meio de quem se estabelece a questão em controvérsia. Ele é então chamado sequendo, porque cada um dos contestadores segue sua decisão. III. Não obstante, como a mediação de Cristo pode ser vista ou em relação à sua pessoa ou ao seu oficio, ou porque ele é o ponto médio, ou porque medeia, a mediação é distinguida em dois tipos: o primeiro dos quais costumam chamar substancial, pelo qual Cristo é o ponto médio entre Deus e o homem; o outro eficaz e operativo, pelo qual ele cumpre o dever que lhe foi confiado pelo Pai. O primeiro caracteriza o estado da pessoa; o segundo, a execução do ofício na pessoa. Mas o primeiro (como menos próprio) não nos compete aqui; somente o segundo (o qual pertence a este tópico). D erivação do term o “M ediador ”

^ P°rtanto, Cristo é propriamente chamado Mediador por ato e exercic'°> p o r q u e ele exerce o ofício de Mediador para estabe'ecer uma un'30 entre Deus e os homens, separados entre si em virtude do pecado. Ora, como Mediador entre os homens suas ' funções variam, seja como mero intemúncio (o intérprete de cada parte, como Moisés é chamado mediador no Antigo Testamento porque se põe entre Deus e o povo, Dt 5.5); ou como um árbitro, que é escolhido pelos litiganD e quantas m aneiras ele é assim cham ado?

1. No latim,

aqueie que intenvm ou que entra ou é posto no meio. [N. do E.]

tes e tem poder sobre toda a atividade a ser estabelecida, não por estrita justiça, mas com imparcialidade (kat ’epieikeian); ou como um intercessor e advogado, que roga e intercede por uma parte junto à outra; ou como um fiador e que faz satisfação, que reconcilia os discordantes fazendo satisfação à parte ofendida e fazendo-se penhor pela fidelidade e obediência futuras da parte ofensora, de modo que nenhuma causa de desacordo surja posteriormente entre elas. E as­ sim, segundo essas relações (scheseis) variadas, Cristo é corretamente chama­ do Mediador. Pr*rne*ro>cle foi um intemúncio em razão de sua doutrina, visto ser ele o intérprete de ambas as partes, e es­ pecialmente porque declarou a vontade de Deus aos homens (Jo 1.18; Lc 4.18). Neste sentido, ele é chamado o “Anjo da Aliança” (Ml 3.1) e “Conselheiro” (Is 9.6). Segundo, ele pode também ser Como árbitro. chamado árbitro (como Ambrósio sobre 1Tm 2 - cf. Amhrosiater/Pseudo-Ambrose: In Epistolam B. Pauli a d Timotheum Primam [PL 17.493] e Agostinho sobre SI 103, Ennaratio in Psalnmm CIII: Sermo I V 8 [PL 37.1383] o chamam), porque, ao produzir nossa reconciliação com Deus, ele agiu não com estrita justiça, mas justiça temperada com a graça e a misericórdia. Tercei­ ro, porque tivemos de enfrentar o supremo poder ofendido, foi necessário que ele exercesse o oficio de intercessor e patrono a fim de Como intercessor. pleitear nossa causa diante de Deus contra o Diabo e assim obter para nós a graça necessária (em cujo sentido ele é chamado “Advoga­ do” -p a ra k lêto s, 1Jo 2.1). Quarto, como a discordância entre nós e Deus oriun­ da do pecado não podia ser removida sem uma satisfação à justiça de Deus e a expiação do pecado, coube ao nosso Mediador manter a relação não só de internúncio e de intercessor (como afirmava Socino), mas es­ Como pacificador. pecialmente de reconciliador e pacificador (eirênopoiou) que nos granjeasse paz com Deus por meio de seu próprio sangue e, ao pagar o resgate (antilytron) por nós, nos livrasse da culpa e do domínio do pecado. Uma vez que não era suficiente que uma vez reconciliasse os homens com Deus, se depois disso a mesma discordância fosse renovada pelo pecado do homem, era preciso que o mesmo, pela eficácia de sua própria fiança, estabelecesse solida­ mente a reconciliação uma vez feita para que estivéssemos perenemente unidos a Deus. O primeiro e o segundo modo pertencem ao seus ofícios profético, o terceiro e o quarto, aos seu oficio sacerdotal e real. VI. Como Mediador, coube-lhe agir em favor de ambos os lados (junto ao Deus ofendido e junto ao homem ofensor) a fim de remover os obstáculos rumo à reconciliação, e ele realmente agiu de ambas as formas - tanto satisfazendo e intercedendo quanto a nós junto a Deus (como Sacerdote), como quanto a Deus junto a nós, então operando em nós (como já ficou plenamente explicado previ­ amente no Tópico XII sobre o pacto da graça. Pergunta 2, Seção 16). Daí todos esses atos serem distinguidos em imperativos (pelos quais aquela reconciliação Cristo o M ediador

foi adquirida e dos quais ela depende) e aplicativos e conservativos (pelos quais todos eles são aplicados e conservados). Pelo primeiro. Cristo é o Mediador e Salvador por mérito; pelo segundo, ele é o Salvador e Mediador por eficácia. Nossa controvérsia aqui é com os socinianos, os quais, com ° ^im subverter toda a doutrina da satisfação, con­ fessam que Cristo é um Mediador, porém somente (1) da instituição ou revelação divina pela qual ele declarou a via da salvação que consiste (segundo eles) em obediência aos mandamentos de Deus; (2) do exem­ plo, porque ele entrou na mesma via dos seus e lhes mostrou um perfeitíssimo exemplo; (3) da confirmação, porque fixou inalteravelmente aquela obediên­ cia por meio de sua própria morte e paixão. Ao contrário (embora não negando que Cristo sustenta estas relações), negamos que seu ofício medianeiro consis­ te somente nelas, mas especialmente na relação de reconciliação e satisfação, visto que ele foi o pacificador (eirênnopoios ) que (tendo feito a paz por meio de seu sangue) nos reconciliou com Deus. E stabelecim ento da questão.

razões são: (1) a Escritura o descreve não como mero intemúncio, mas como um genuíno apaziguador (eirênopoion ) e pacificador, e sua mediação como redenção e reconciliação. Ele é chamado Mediador (visto que ele se deu em resgate [antilytron] por nós, lTm 2.6), o qual, tendo feito a paz (eirenopoiêsas) pelo sangue de sua cruz, reconciliou Deus conosco (Cl 1.20); é também autor de uma fiança (enguos) e fiador da nova aliança (Hb 7.22) que, consequentemen­ te, haveria de quitar a conta c fazer satisfação por nós; e Mediador, que obtém redenção por meio de sua morte e eterna salvação por meio de seu sangue (Hb 9.12,15). Daí o sangue da aspersão (rantism ou ) ser associado ao Mediador em alusão ao sangue das vítimas legais que morriam pelos pecadores (Hb 12.24). Tudo isto implica não uma simples declaração, mas uma genuína satisfação (como se provará mais plenamente no tópico próprio). IX. (2) A necessidade de salvação requeria isto, já que a desarmonia entre Deus e o homem causada pelo pecado converteu os homens “aborrecidos de Deus” [NVI: “inimigos de Deus”] ( theostygeis , Rm 1.30, i.e., não só “inimigos de Deus” ativamente, mas também “odiados por Deus” passivamente); desarmo­ nia que não podia ser removida simplesmente pela doutrina ou pelo exemplo, mas demandava um resgate (lytron) pelo qual o homem poderia não só ser reconciliado com Deus mediante arrependimento e aspiração por santidade (como os socinianos confessam), mas também Deus com o homem, contra quem (em virtude da natureza de sua justiça vindicativa) ele estava merecidamente irado e que, por isso, só poderia ser apaziguado por uma satisfação adequada (pela colocação de um Mediador, em seu lugar, o qual, devotando-se em favor do homem, recebesse sobre si os castigos que lhe eram devidos, e, tomando-os sobre si, o isentasse deles). X. (3) Se Cristo fosse Mediador de nenhum outro modo senão pelo ensino

Prova de que Cristo é pacificador.

e exemplo, então poderia ser considerado como pertencendo à mesma classe dos profetas e dos apóstolos - especialmente aqueles que sofreram martírio, manifestaram o caminho da salvação por meio de seu ensino e exemplo e nos apresentaram todo o conselho de Deus (At 20.27). Não obstante, o apóstolo nega que se possa dizer tal coisa quando chama Cristo nosso único Mediador (lTm 2.5). (4) Ele seria um Salvador de nenhuma outra forma senão moral e acidentalmente, porque a salvação de cada indivíduo realmente dependeria de si próprio, mediante sua obediência aos mandamentos divinos (como se mos­ trará mais plenamente quanto tratarmos da satisfação). Cristo é chamado Mediador que “dá testemunho” [a saber, da verdade] “em tempos oportunos” (eis martyrion kaim is idiois, lTm 2.6), não só porque ele deu testemunho da verdade evangélica mediante profecia, mas também porque, por meio de sua própria morte, ele nos assegurou da benevolência que nos foi obtida e da reconciliação feita com Deus. Ou martyrion pode ser entendido passivamente, acerca daqui­ lo em favor do qual se dá testemunho, visto que todos os homens de Deus devem dar testemunho a seu respeito. XII. A semelhança entre Moisés e Cristo não implica imediata paridade que Cristo foi Mediador de nenhum outro modo senão como Moisés o foi, como mero internúncio (Dt 5.5; At 7.38). Moisés foi apenas um mediador típico, e muito [ou incomparavelmente] mais imperfeito que o antítipo, Cristo (no entan­ to, foi um verdadeiro e propriamente assim chamado mediador). Ele foi mero homem; Cristo, porém, o Deus-homem. Ele de fato comunicou os oráculos de Deus ao povo, porém não reconciliou o povo com Deus, nem por seu próprio sangue apaziguou a ira de Deus, uma vez que ele tremeu grandemente à voz de Deus, o legislador (Hb 12.21). Cristo, porém, fez a paz por meio de seu próprio sangue e deu-se a Deus como fiador (engyon ) por nós. E assim, como um tipo parcial e inadequado, Moisés pôde representar Cristo em algumas funções de mediador (p.ex., quanto à profecia e ao reino), porém não quanto a todas, espe­ cialmente quanto às funções sacerdotais, que eram significadas por outros tipos (ou seja, pelos sacerdotes e vítimas). XIII. NemGálatas 3.19 socorre nossos adversários. Aqui lemos que a lei foi dada “na mão de um mediador” (en cheiri mesitou). Além do fato de que o texto pode ser reportado corretamente a Cristo (o que a maioria dos gregos e latinos, sejam antigos ou mais modernos [e entre eles nosso Calvino, The Epistles o f P a u l... to the Galatians (trad. T. H. L. Parker, 1965), p. 62] têm feito), tanto porque em nenhum outro lugar o título m ediador não é dado a ninguém além de Cristo, que também é chamado o único ( lTm 2.5), como porque em outra parte (At 7.35) lemos que Moisés foi ordenado líder e libertador do povo en cheiri (“na mão” - a saber, pela autoridade e diretriz angelou - “de um anjo”, a saber, daquele que lhe apareceu na sarça ardente, o Filho eterno de Deus). Lemos que este deu a Moisés os “oráculos vivos” (logia zõnta , v. 38, ou seja, a lei que ele Fontes de explanação

entregou ao povo). De modo que o sentido é, ou que a lei foi entregue aos israelitas pelas mãos (i.e., pelo poder e diretriz do Mediador, Cristo, preparan­ do assim aquele povo para seu advento), ou que Cristo, ao apresentar a lei com suas próprias mãos, se interpôs como fiador, que tanto cumpriria perfeitamente a lei, em algum tempo, como, ao atrair sobre si a maldição da lei, nos livraria dela. Caso se refira a Moisés (o que agradou a Epifânio e outros, a quem Beza segue aqui - cf. Annotationes maiores in Novum ... Testamentum: Pars Altera [1594], p. 329 sobre G13.19), porquanto en ch eiri denota ministério, em vez de poder supremo (que seria menos adequado a Cristo) e por ser evidente que a lei foi dada por meio de Moisés [(Jo 1.17), como noutra passagem se afirma que ela foi dada por Deus “pela mão de Moisés” (Lv 26.46), nossa opinião nada sofre desta fonte, porque Moisés pode ser chamado apenas um mediador típico, justamente como a lei era um tipo do evangelho. Não se pode dizer que ele era semelhante a Cristo em todos os aspectos, mas que o prefigurou levemente só em certos aspectos. Mas o que se acrescenta “o mediador não é de um, mas Deus é um” (mesifês de henos ouk esti, ho de theos heis es ti, G1 3.20), para que possamos dizer algo de passo acerca de uma passagem obscura e difícil, pode ser assim ilustrado não impropriamente à luz do escopo do apóstolo (o qual consiste em mostrar que a vida e a justificação não são dadas pela lei porque, visto que para produzi-las cra necessário um Mediador, aí transparece que ela não é o vínculo de nossa união com Deus, mas, antes, o sinal de nossa alienação dele e de nossa desarmonia com ele). Pois ele diz “o mediador não é de um” (ou seja, de uma parte), mas de muitos, pelo menos de dois, e em discordância. Pois onde existe união, não há necessidade da interposição de um mediador. Não obstante, o que se acrescenta (“mas Deus é um”) não se refere tanto à unidade e simplicidade de Deus quanto à sua constância e imutabilidade, não menos em sua natureza que em seus propósitos e decretos (i.e., constantes e sempre coe­ rentes). Visto, pois, que ele prescrevera na lei a justiça perfeita para a obtenção da vida (a qual não podia ser-lhe dada por um homem pecador), é evidente que a união entre estas duas partes discordantes (ou seja, Deus e o homem) não poderia ser efetuada pela lei, mas tão-somente pela justiça e satisfação de Cris­ to, o qual o evangelho nos anuncia (como o apóstolo no-lo notificou, v. 13). Alguns, segundo o intérprete etíope, apresenta esta explicação: “o mediador não é de um, mas Deus é um” (a saber, das duas partes em discordância). Mas isso parece um tanto insípido, porque ninguém pode ignorar que Deus é uma das partes discordantes, visto que seria falar de um mediador de si mesmo. S eg u nda P ergunta

Cristo é M ediador em conformidade com as duas naturezas? A firm am os isso contra os papistas e contra Stancar.

1. Esta questão se põe entre nós e os papistas, os quais, para mais facilmente introduzir muitos mediadores, afirmam que Cristo era um Mediador somente

em conformidade com sua natureza humana (como asseveram seguindo Lom­ bardo, Sententiarum 3, Dist. 19.7* [PL 192/2.797,798]; Tomás de Aquino, ST, III, Q. 26, Art. 2, pp. 2159,2160; Belarmino, “De Christo”, 3 Opera [1856], 1:290; Becanus, Manuale controversariarum 3.2 [1750], pp. 420,421 e ou­ tros). Stancar os segue neste ponto. Ele se opôs mui veementemente a (Andréas) Osiander, seu colega na Regiomontane (Königsberg) Academy, o qual afirmava que Cristo não era Mediador a não ser em conformidade com sua natureza divina, e assim somos justificados por sua justiça etema e essencial (não distin­ guindo suficientemente entre a eficácia de Cristo e seu mérito). Stancar caiu no erro oposto dos papistas, afirmando que Cristo é Mediador somente no que diz respeito à sua natureza humana. ^ tluestâ° nao é se a pessoa do Mediador é divina. Pois nossos oponentes não negam isto. Antes, a questão é se os atos ou sofrimentos do Mediador procederam dele em con­ formidade unicamente com a natureza humana. Ou em conformidade com am­ bas. Os papistas fazem distinção entre um princípio-o-qual (principium quod) e um princípio-pelo-qual (principium quo) ou um princípio formal. O primeiro eles dizem que é um suppositum ou uma pessoa, não uma natureza. Os segun­ dos, contudo, afirmam que é somente sua natureza humana. “Pois embora sen­ do ele Deus”, diz Belarmino, “que sofreu, obedeceu e fez satisfação, contudo ele fez tudo isso na forma de servo, não na forma de Deus” (“De Christo Me­ diatore”, 1 O pera [ 1856], 1:290). III. E preciso distinguir acuradamente quatro coisas aqui em referência às ações de Cristo, como João de Damasco salientou (Exposition o f the Orthodox Faith 4.18 [NPNF2, 9:90-92]). (1) Ele é alguém que opera (ho energõn), o agente ou princípio que age (que é o suppositum ou a pessoa de Cristo). (2) A atividade (energêtikon) ou princípio formal pelo qual ele age - aquilo por meio do qual o agente ou a pessoa de Cristo opera (ou seja, as duas naturezas, cada uma das quais opera sem qualquer confusão). (3) A energia (energeia) ou a operação que depende do princípio-pelo-qual e participante da natureza de seu próprio princípio, de modo que é divino se o princípio-pelo-qual for a natureza divina; porém humano, se for a humanidade. (4) O efeito (eneigêma) ou concre­ tização (apotelesm a) que depende do princípio-o-qual e é a obra externa, a qual chamamos mediação. Há, pois, um duplo princípio de mediação - um comum e um próprio. O comum é uno (ou seja, a pessoa do Mediador); no entanto, o próprio é duplo (ou seja, a natureza divina e a humana - o princípio divino, aliás, próprio e formal das ações divinas; o humano, das ações humanas). Nem por isso as ações próprias devem ser também atribuídas aos princípios ou natu­ rezas formais (como se agissem separadamente), pois cada forma age em co­ mum com a outra que é própria (ou seja, a Palavra operando o que pertence à Palavra, e a carne dando prosseguimento ao que lhe pertence, como diz Leão, Letter 28 [10], “To Flavian” (FC 34:98; PL 54.767). Uma é o agente principal

E stabelecim ento da questão

(ou seja, a pessoa de Cristo); a outra, o resultado (apotelesm a ), ou a obra medi­ aneira. Mas ela é operada pelas duas naturezas como dois princípios; daí fluírem duas energias (energeiai) ou operações que concorrem para aquela obra. IV. Além disso, as ações de Cristo podem ser vistas numa ordem tríplice, como Cristo pode ser considerado sob uma relação (sch esei) tríplice - ou como Deus, ou como homem, ou como Deus-homem ( theanthrõpos ). Algumas são meramente divinas, as quais ele efetua somente como Deus (tais como a criação e a preservação). Outras são meramente humanas (tais como comer, andar e dormir). Outras são mistas, as quais são chamadas teândricas (theandrikas) (tais como a redenção, para cuja realização ambas as naturezas, divina e huma­ na, concorreram). Portanto, a questão é: a que classe desses atos pertence a mediação? Aqueles meramente humanos (como afirmam os papistas), ou aos teândricos (theandrikas )? (O que afirmamos). raz° es sao: 0 ) a Escritura atribui a mediação de Cristo a ambas as naturezas - Deus comprou a igreja com seu san8ue os santos não podem conhecer nossas necessidasondar as entranhas e o coração, a fim de desvendar nos­ sos Per|samentos e desejos de modo distinto e acurado (sem ’ss0 não podem exercer o ofício de mediadores e intercesso­ res). Quanto à objeção de nossos oponentes em referência ao conhecimento dos santos, ver a discussão no Tópico XI, sobre a lei, Pergunta 7.

4 Porque não podem conhecer nossas necessidades

^es e

Qu'nt0> este dogma tem cheiro de superstição pagã e originou-se dos erros dos gentios que distinguiam seus deuses em Pr'mar'os e secundários [os quais eram de uma ordem inferior (demônios) e eram mediadores entre os deuses * supremos e os homens], “Deus”, diz Platão, “não se aproxi­ ma dos homens, mas todo relacionamento e comunicação entre os deuses e os homens são feitos por demônios” (Symposiuni 203 [Loeb, 3:178,179]). Daí eles distribuíram entre os demônios províncias, cidades, artes, doenças e designaram vários ofícios a diferentes classes deles (justamente como os adeptos do papa estabelecem santos sobre impérios, cidades, artes e doenças, e os reconhecem como patronos e deuses tutelares a quem podem recorrer continuamente).

5 Porque este dogm a cheira a superstição pa g ã

cornur|hão dos santos à comunicação de ofícios entre e*es’a consequência não é válida. É verdade que os santos admi­ tidos no céu têm comunhão com os vivos, uma vez que são mem­ bros do mesmo corpo místico. Mas, nem por isso se pode admitir-lhes comuni­ cação de ofício, visto que nem partilham de nossas necessidades, nem podem ouvir e responder nossos pensamentos e orações; nem mantemos com eles qual­ quer relacionamento em virtude do qual possamos implorar sua assistência. XIV. Nem todo aquele que ora a Deus por nós é por isso um mediador junto a Deus; porque, se assim fosse, teríamos quase tantos mediadores quan­ tos os pagãos têm. E embora a Escritura mencione com muita frequência as orações mútuas dos homens, contudo nunca ensina que os homens são media­ dores junto a Deus. Portanto, deve ser chamado Mediador quem, primeira­ mente, não apenas ora em geral, mas também ora por indivíduos; segundo, quem ora em virtude de seus próprios méritos e nos obtém a remissão de peca­ dos e a salvação. Isto só é possível dizer de Cristo. XV. Uma coisa é que Moisés e Samuel, enquanto viviam aqui, oravam em favor do povo; outra é que eles, mesmo depois de mortos, exerçam este ofício em favor do povo. Em Jeremias 15.1 não há exortação à intercessão dos faleci­ dos, porém mostra-se hipoteticamente a inutilidade de suas orações (se ainda estivessem entre os vivos orassem pelo povo, como frequentemente era feito por eles: “Ainda que Moisés e Samuel se pusessem diante de mim, meu cora­ ção não se inclinaria para este povo”). O significado é - se Moisés e Samuel ainda vivessem e suplicassem em prol deste povo, nada poderiam efetuar por Fontes de explanação

suas súplicas, como outrora aplacavam a Deus com suas orações (Êx 32.14; ISm 7.9). Portanto, ele notifica que a salvação daquele povo era desesperadora e sua destruição era certa e inevitável. Comparar: “Ainda que estivessem no meio dela estes três homens, Noé, Daniel e Jó, eles, por sua justiça, salvariam apenas sua própria vida, diz o S e n h o r ” (Ez 14.14*). E assim a referência aqui não é às orações dos mortos, mas dos vivos (se eles voltassem ao povo). XVI. O que lemos das harpas e taças de ouro nas mãos dos vinte e quatro anciãos (Ap 5.8,9) não favorece a intercessão dos santos. Se isto fosse uma refe­ rência aos santos falecidos, não significaria as orações que oferecem pelos vi­ vos, mas sua doxologia oferecida a Deus (tên eis theon doxologian), como obser­ vam Aretas e André de Cesaréia (a saber, louvores e incenso de ação de graças que continuamente oferecem a Deus; cf. Commentarius in Apocalypsin [PG 106.261] sobre Ap 5.7,8). Isto é explicado imediatamente no versículo seguinte pelo “novo cântico”. E assim, o que lemos dessas taças de ouro cheias de incenso são as orações dos santos (hai eisin hai proseuchai fõn hagiõn, “as quais são” [i.e., designadas simbolicamente] “as orações dos santos”, ou seja, daqueles que tinham as harpas e as taças de ouro); ou, indefinidamente, de todos os santos, cujas orações são descritas pelos aromas. Não obstante, se as atribuirmos aos louvores e orações dos santos vivos (como mais provavelmente é o caso, e Estius não faz objeção), nada será daí extraído em prol das orações dos falecidos (cf. Biblia Magna Commentariorum Literal um [ 1643], 5:1137 sobre Ap 5.8). E as­ sim, aqui se descreve, indubitavelmente, o culto evangélico de orações e louvo­ res por meio de palavras tomadas do serviço legal, de modo que harpas (instru­ mentos de louvores) denotam os louvores; e as taças de ouro, as orações dos crentes oferecidas por um coração purificado e pela fé. E assim mostram que são verdadeiramente reis e sacerdotes (como se dirá mais adiante), pois harpas são adequadas aos reis (como no caso de Davi), mas taças são próprias aos sacerdotes. XVII. Embora no que diz respeito aos reis há necessidade de agentes e mediadores para sermos admitidos à sua presença, não se dá o mesmo no que diz respeito ao Rei, que nos chama imediatamente a si (nem nunca remete os crentes aos santos). Se um rei terreno convidasse diretamente a si seus súditos, quem não se aproximaria dele livremente e com confiança? Quem desejaria patronos principescos para assegurar-se de seu acesso? XVIII. As passagens aqui evocadas em favor da intercessão dos santos (Jó 5.1; 19.21; 33.23; Êx 32.13; Zc 1.12; Ap 8.3; Tobias 12) já foram discutidas no Tópico V, sobre os anjos, Pergunta 9, e Tópico II, Pergunta 7. XIX. Uma coisa é orar pela igreja em geral; outra é orar por indivíduos. Embora os santos orem em geral pela igreja militante (a qual bem sabem é ainda assaltada por adversários e exposta a várias lutas), não se segue imediatamente, ou que oram por indivíduos (cujas necessidades e orações não conhecem), ou que são seus mediadores (que podem obter-lhes a graça de Deus mediante suas orações e méritos pessoais).

XX. Não pode socorrer nossos oponentes a passagem onde lemos que Ju­ das Macabeus viu numa visão a Onias, o sacerdote, e Jeremias (que então já havia morrido) orando pelo povo judeu (2 Macabeus 15.14). (1) Este é um livro apócrifo eivado de fábulas (como romanistas confessam). Em particular, o papa Gelásio admite somente Primeiro Macabeus, rejeitando o Segundo (cf. Conciliorum sub Gelasio [PL 59.158]). (2) A passagem apenas prova que os santos oram cm geral, não em particular, à maneira dos mediadores. (3) Os próprios romanistas afirmam que os pais, antes da morte de Cristo, estavam ainda no limbo excluídos da facc de Deus; portanto não estavam em condições de orar em favor de outros. XXI. “O clamor das almas debaixo do altar” (Ap 6.9,10) não pertence à intercessão em favor de outros, pois oram em favor de si próprios. Não dizem: “Por que não libertas nossos irmãos?” mas: “Por que não vingas nosso san­ gue?”. Tampouco isso deve ser entendido propriamente (visto que almas não clamam), mas alegoricamente - denotando seu anseio pelo juízo final e pela ressurreição (como pensam Ambrósio e Bernardo, “Sermon 3”, ln fe sto om­ nium Sanctorum [PL 183.468-471 ]); ou uma manifestação da perversidade dos tiranos, que serão merecidamentc punidos por Deus, e da inocência dos márti­ res, que serão galardoados (como em outro lugar lemos que a voz do sangue de Abel clamava da terra [Gn 4.10], porque a morte e a matança dos mártires, sempre vivas diante de Deus, demandam a vingança da justiça divina, como observa Lyranus, Biblia sacra cum Glossa ordinaria [ 1545-1603], 6:1517, sobre Ap 6.9,10). XXII. Das orações mútuas dos vivos, para as orações dos falecidos em prol dos vivos, a consequência não é válida. Entre os primeiros há uma comunhão mútua de ofícios e necessidades; não existe nenhum destes entre os mortos e os vivos. Os primeiros são recomendados e louvados na Escritura, porém de modo algum os últimos. Nem a perfeição da caridade (com que os santos são abençoados) os autoriza a orarem por nós em particular, porque a condição daquela vida não o admite. Q

u in t a

P ergu nta: O O

f íc io

T r íp l ic e

de

C r is t o

Por que Cristo deve sustentar um ofício tríplice de Mediador?

I. O ofício de Cristo nada mais é. do que uma mediação enDeus e os homens, para cujo exercício ele foi enviado Pe*° ^a' 30 mund° e ungido pelo Espírito Santo. Ele abarca ' ” tudo o que Cristo deveria fazer em sua missão e vocação diante de um Deus ofendido e os seres humanos ofensores, reconciliando-os e unindo-os outra vez entre si. E instituído com II. A instituição deste ofício é desdobrada especialmente quantos grau s? em três graus: (1) pela predestinação de Cristo; (2) por (I) predestinação, sua missão; (3) por sua vocação. O primeiro grau está na rt i ' r- • Q ual e o oficio m edianeiro de C risto?

predestinação eterna de um Mediador, pela qual Deus escolheu e designou seu próprio Filho como Mediador com o fim de reconciliar consigo mesmo os eleitos e realizar a obra de salvação (referida em IPe 1.20; At 2.23; Ap 2 P or m eio d e ^ ® segundo, em sua missão, pela qual, segundo o de‘ . ereto eterno de predestinação, ele foi não só prometido sob suo nnssao. ' '' o Antigo Testamento, predito em várias profecias, prefigu­ rado por tipos e exibido como o Mediador da igreja, mas na plenitude dos tempos foi enviado ao mundo e tomou sobre si nossa natureza, para que nela realizasse a obra que lhe fora requerida (cuja missão é mencionada no evange­ lho com a máxima frequência; não por uma mudança de lugar, como se viesse para onde não se achava antes, mas por uma manifestação extraordinária de sua presença na carne, na qual ele visivelmente apareceu e operou). ® terceiro grau consiste em sua vocação, pela qual foi consagrado para assumir aquele ofício referido em 1saías sua vocaçao, a ® *1 , ^ ( uai consiste 42.6: Eu, o S e n h o r , te chamei em justiça (cf. SI 110.4 e o em un •ão próprio Cristo, Jo 10.36). Ora, esta vocação abrange duas em unçao. partes: unção e inauguração. A unção, da qual se originaram os nomes Messias e Cristo (o que, à guisa de eminência [k a i’ exochên] era peculiar ao nosso Redentor, ainda que também outros sejam chamados impro­ priamente ungidos e cristos por razão de seu ofício profético, ou sacerdotal ou real), denota duas coisas: (a) consagração ao ofício, o qual pertence à pessoa de Cristo inclusive em conformidade com sua natureza divina, pela qual ele foi realmente consagrado para o oficio dc Mediador (SI 2.6), geralmente designa­ do na Escritura pela palavra “santificação” (Jo 10.36); (b) a concessão de to­ das as graças e dons necessários à execução daquele ofício (relativo somente à sua natureza humana), pelo qual lemos que ele foi ungido com o óleo de ale­ gria acima de seus companheiros e revestido com o Espírito incomensuravelmente (ametrõs) (SI 45.7; ls 61.1,2; Jo 3.34). 3 P or m eio d e

*

-

™ Inauguração é aquele ato pelo qual (embora sendo ele, por direito de nascimento e pelo beneficio da umao hipostática, realmente o Senhor e herdeiro de todas as coisas) ele quis ser inau­ gurado em seu oficio de um modo solene (do mesmo modo como hereditariamente os reis costumavam, mediante uma inauguração solene, ser investidos da plena posse de seu reino a fim de que fossem reconhecidos por todos). Ora, isso foi feito primeiramente no batismo de Cristo (Mt 3.17), quando, de um modo eminente e claramente extraordinário, ele foi consagrado para o exercí­ cio público de seu oficio. Isso foi confirmado, não só pela abertura dos céus e pela descida do Espírito Santo sobre ele, mas também pela voz vinda do céu e testificando da excelência de sua pessoa e ofício. Quanto à pessoa, sendo cha­ mada Filho de Deus, não adotivo (destes Deus tem muitos), mas Filho natural, unigénito e próprio (que além do mais é chamado “bem-amado” [agapêtos] e mui querido). Quanto ao seu ofício, já que lemos que o Pai teve nele todo prazer [eudokêtai] (i.e., o Pai não só aquiesce inteiramente a Cristo e evidente­ E em inauguração.

mente se deleita nele, mas também nele e em virtude dele Deus se agrada de nós e lhe somos aceitáveis, E f 1.6). Além do mais, a excelência daquele oficio é claramente demonstrada nisto - ele não foi constituído nosso Mediador sem um juramento: “O S e n h o r jurou” (SI 110.4). Disto Paulo infere a superiorida­ de e a eternidade do sacerdócio de Cristo acima do sacerdócio levítico (Hb 7). Segundo, na transfiguração, na qual ele foi de igual modo confirmado em seu tríplice ofício por uma voz celestial (Mt 17.5). Terceiro, a inauguração foi completada após sua ressurreição e exaltação, quando “foi feito Senhor e Cris­ to” (At 2.36); “e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra” (Fp 2.9,10); quando lhe foi dado todo poder no céu e na terra (Mt 28.18); e quando ele se assentou à destra da majestade nas alturas (Hb 1.3). M étodo do V. Este ofício medianeiro de Cristo é desdobrado em três funofício tríplice Ç°es, as quais são outras tantas partes dele: profético, sacerde Cristo dotal e real. Cristo não exerceu estes separadamente, mas em conjunto (o que é admitido somente com relação a ele). Pois o que em outros foi dividido em virtude de sua debilidade é unido em Cristo cm virtude de sua suprema perfeição (visto que a dignidade e o peso dessas funções foram tão imensos que nenhum mortal poderia isoladamente supor­ tar). De fato poderia haver reis e sacerdotes (como Melquisedeque), reis e profetas (como Davi), sacerdotes e profetas (como às vezes os sumos sacerdo­ tes), porém nunca se deparou alguém que sozinho exercesse perfeitamente estes três. Isso foi reservado para Cristo, o qual, sozinho, pôde sustentar a verda­ de prefigurada por esses vários tipos. Não obstante, se lemos que Moisés o pre­ figurou (porquanto ele foi não só um profeta de Deus e um líder e libertador de seu povo, mas também, antes da inauguração de Arão, ele às vezes oficiara como sacerdote, como cm Êxodo 24.4-6, isso foi feito fora de ordem e somente para um ato [ou um caso]. Isso não pode nem deve ser evocado como exemplo. ^ P0SSIvel assinalar várias causas para tal distribuição: (1) a Escritura costuma designar Cristo por ' este nome tríplice, ora o apresentando como Profeta (Dt 18.15,18; ls 61.1,2), como a Sabedoria do Pai e como o Verbo [Logon) por intermédio de quem Deus nos fala. ora como Sacerdote (SI 110.4 e com fre­ quência na epístola aos Hebreus), ora como Rei (SI 2; 110.1; ls 9.6,7; Lc 1.32,33). Estes três ofícios não são descritos só separadamente, mas são tam­ bém apresentados em conjunto (como em ls 9.6). Aquele que é chamado meni­ no em razão de sua concepção humana, e Filho em razão de sua geração eter­ na, é intitulado “Maravilhoso” (em razão da pessoa), “Conselheiro” (com res­ peito à profecia), “Pai da Eternidade” (com respeito ao sacerdócio) e “Príncipe da Paz”, sobre cujos ombros o governo repousa (com respeito ao seu reino). E assim em Isaías 61 se designa um tríplice propósito da unção de Cristo: “pre­ gar boas-novas aos mansos” (o que pertence a um profeta); “curar os quebran­ tados de coração” (o que pertence a um sacerdote); “proclamar libertação aos

Isto se fu n dam enta(I) na E scritura

cativos e pôr em liberdade os algemados” (o que pertence a um rei, SI 110). A dignidade real de Cristo e sua vitória e triunfo sobre seus inimigos são asseve­ radas ao longo de todo o salmo. A profecia é elaborada no Salmo 110.2, onde lemos que o cetro de sua palavra sairá de Sião. O sacerdócio é ensinado no versículo 4: “O S e n h o r jurou e não se arrependerá: Tu és sacerdote para sem­ pre”. Do homem, cujo nome é Renovo, de quem lemos que edificará o templo do Senhor pela palavra do evangelho (Zc 6.12-14), o que pertence a um profe­ ta, lemos que ele governará em seu trono (função de um rei) e um sacerdote se assentará em seu trono (o mesmo que será rei, também será sacerdote). “E o conselho de paz estará entre ambos” (i.e., entre estas duas dignidades, a real e a sacerdotal). Pois uma e a mesma pessoa será rei e sacerdote, a qual adquirirá paz para a igreja por meio de seu ofício sacerdotal e por meio de seu ofício real. VI1. E assim, no Novo Testamento estes três ofícios são com frequência enfeixados, como em João 14.6, quando lemos que Cristo é “o caminho, a ver­ dade e a vida” - o Caminho conduz, a Verdade instrui, a Vida salva. O Caminho em seu sacerdócio, quando por seu próprio sangue ele nos abriu uma via de acesso ao céu (Hb 10.20); a Verdade em seu ofício profético, porque ele nos revela a palavra do evangelho, a única verdade salvífíca; a Vida em seu ofício real pelo qual ele nos vivifica e nos protege mediante sua eficácia; o Caminho na morte, a Verdade na palavra, a Vida no espírito. Daí dizer Emissenus sobre esta passagem: “Eu sou o Caminho, porque ninguém vem ao Pai senão p o r mim; eu sou a Verdade, porque ninguém conhece o Pai senão de mim; e eu sou a Vida, porque ninguém vive senão em mim”+. O mesmo se vê na célebre passagem onde lemos que Cristo foi feito pelo Pai, em relação a nós, “sabedo­ ria, justiça, santificação e redenção” (ICo 1.30). Lemos que ele “foi feito” (i.e., designado por Deus Sabedoria em relação a nós, isto é, o autor e mestre infalível da sabedoria celestial por meio de profecia); justiça (i.e., aquele que outorga a justiça eterna e infinita pela qual somos libertados da culpa e justifica­ dos diante de Deus por intermédio de seu sacerdócio); santificação (i.e., a causa da santidade verdadeira e espiritual pela qual somos libertados do domínio e purificados da corrupção do pecado mediante sua realeza e redenção [a qual se aplica nestas três] - ou, se tomado estritamente, como ele é redenção da miséria e morte). E assim lemos que Deus nos falou por meio de seu Filho como que por meio de um Sacerdote supremo (Hb 1.2,3) que, depois de purificar nossos peca­ dos como Sacerdote, assentou-se à destra da majestade nas alturas, como Rei. Segundo, a tríplice miséria dos homens introduzida pelo pecado - ignorância, culpa e a tirania e escravidão do pecado ~ recluer*a esta conjunção de um ofício tríplice. A ignorância é curada pelo ofício profético; a culpa, pelo sacerdotal; a ti­ rania e corrupção do pecado, pelo real. A luz profética se difunde nas trevas do erro; o mérito do Sacerdote remove a culpa e nos granjeia reconciliação; o poder do Rei desfaz a escravidão do pecado e da morte. O Profeta nos revela 2 Na tríplice m iséria dos hom ens

Deus; o Sacerdote nos guia a Deus; e o Rei nos une e nos glorifica junto a Deus. O Profeta ilumina a mente pelo Espírito de iluminação; o Sacerdote, pelo Espírito de consolação, tranquiliza o coração e a consciência; o Rei, pelo Espírito de santificação, subjuga as afeições rebeldes. Terceiro, a natureza da salvação a ser outorgada requer*a 0 mesm0- P°'s três coisas são plenamente requeridas para e*a - anunciação, aquisição, aplicação - , para que ela nos ' fosse revelada (de quem é desconhecida por natureza), para que nos fosse adquirida e aplicada quando adquirida. Portanto, Cristo, por seu ofício tríplice, realizaria estas três coisas: anunciar-nos a salvação por meio do ensino de um Profeta; adquirir a salvação prometida pelo mérito de um Sacerdote; e aplicá-la, quando adquirida por meio da eficácia de seu Es­ pírito como Rei.

3 Na nature~a da salvação a ser conferida

Quart0’ os atos um Mediador não poderiam ser efetuo u tr a maneira. Pois duas coisas se faziam necessá' rias: que agisse por nós junto a Deus (ta pros ton theori) e por Deus junto a nós (ta pros hêmas). Ao satisfazer e interceder por nós junto a Deus, ele agia na qualidade de Sacerdote: “Pois todo sumo sacerdote é orde­ nado nas coisas pertencentes a Deus, com o fim de oferecer tanto dons quanto sacrifícios” (Hb 5.1). Ao falar e agir por Deus junto a nós, no primeiro caso anunciando a graça de Deus e nosso dever, e nisso ele agia na qualidade de Profeta; no segundo, por meio de uma poderosa redenção de todos os nossos inimigos e da aquisição eficaz de uma plena salvação, sendo que nisso ele agia como Rei.

4 Nos atos de úm M ediador

ac*o s

Qu'nt0’ a unÇao simbólica do Antigo Testamento. Há u tríplice unção de homens sob o Antigo Testamento, mento dos tipos. . . . . „ ’ obrigados a serem consagrados por uma unçao santa (ou seja, profetas, sacerdotes e reis - como nos casos de Eliseu [1 Rs 19.16*], de Arão [Ex 29.7] e, com frequência, de reis). Ora, como todos os tipos se relaci­ onavam com o único Cristo e nele obtinham seu cumprimento, cabia a Cristo demonstrar em si mesmo a veracidade desse tríplice ofício, porém muito mais perfeitamente do que nos outros - não só em razão da conjunção dessas três partes (as quais nenhum homem poderia cumprir ao mesmo tempo, como já vimos), mas também em razão da eminência e dignidade, tanto de seus ofícios quanto de seus dons. 5 No cu m yri ’ ? cumP™

Sexto, isto é também claramente notificado nas três princiPa*s Per^e'ÇÕes de Deus, as quais foram exercidas em nosso fa­ vor na °kra redenção - sabedoria, misericórdia e poder (visto que o Filho, como Profeta, nos revela a sabedoria de Deus, me­ rece por nós sua misericórdia como Sacerdote e manifesta seu poder para nos­ so livramento e salvação, como nosso Rei). Daí se origina o objeto das três virtudes cardeais - fé, esperança e amor. Pois a fé abarca a doutrina do Profeta; 6 Nos três atributos de Deus

a esperança edifica sobre o mérito do Sacerdote; e o amor se sujeita, por uma obediência voluntária, ao cetro do Rei. XIII. Estes três ofícios, contudo, estão unidos em Cristo de tal modo que não só exercem suas operações distintas, mas o mesmo ato procede ao mesmo tempo dos três (o que aumenta não pouco a magnitude da coisa). Assim a cruz de Cristo (que é o altar do sacerdote, sobre o qual ele se ofereceu a Deus pessoalmente como vítima) é também a escola do profeta, na qual ele nos ensina o mistério da salvação. Daí o evangelho ser chamado a palavra da cruz e o “troféu do rei”, sobre a qual ele triunfou sobre os principados e potestades (Cl 2.15). “O evangelho é a lei do profeta” (Is 2.2,3), “o cetro do rei” (SI 110.2), “a palavra do sacerdote”, pela qual ele penetra ao ponto de dividir alma e espírito (Hb 4.12) e um altar sobre o qual se deposita o sacrifício de nossa fé. E assim o Espírito (que, como o Espírito de sabedoria) é o efeito da profecia, como o Espírito de consolação é fruto do sacerdócio, como o Espírito de força e glória é dom do rei. S exta P erg u n ta

Cristofo i arrebatado ao céu antes do início de sen ministério público a fim de ser ali ensinado pelo Pai? Negamos isso contra os socinianos. E stabelecim ento da questão.

A opinião dos socinianos - como Smalcius {De Divini,ate ^esu Christi 4 [1608], pp. 10-15), Ostorodt ( Unterrichtung ... hauptpuncten d e r C hristlichen R eligion 16

[1612], pp. 91-96), o Catecismo Racoviano (cf. “O f the Prophetic Office of Christ”, Racovian Catechism 5 [1818], pp. 170-172) - é que Cristo (sendo mero homem) a princípio não era instruído, sendo, portanto, ignorante quanto à doutrina que estava para promulgar ao longo de seu ministério para a salva­ ção dos homens. Por isso mesmo, quando atingiu trinta anos de idade, e tendo sido batizado por João, antes que iniciasse suas ministrações públicas, foi arre­ batado ao céu. Ali ele foi instruído mais perfeitamente pelo próprio Deus sobre sua vontade, e então regressou à terra e começou a declarar aos homens, plena e suficientemente, a mesma doutrina. O tempo daquela trasladação (embora não ousem fixar com precisão), crêem que pode ser mais bem reportado à sua estada no deserto, onde jejuou por quarenta dias e quarenta noites. O objetivo deles é escapar das passagens bíblicas pelas quais provamos que Cristo existiu antes de nascer da virgem - além do fato de que lemos que ele veio do Pai e que desceu do céu. II. Os ortodoxos rejeitam tal trasladação de Cristo ao céu como sendo mera ficção, sem qualquer base bíblica, e não reconhecem nenhuma outra descida do céu, nos dias de sua came, a não ser aquela metafórica por meio de sua encarnação. Prova da opinião UI- As razões são: primeiro, o silêncio da Escritura, que ortodoxa. não menciona isso em parte alguma. Aliás, ela menciona

uma só ascensão ao céu e um só ingresso no Santo dos Santos após sua ressur­ reição (Hb 9.12), porém não encontramos o mais leve vestígio de alguma ou­ tra. As passagens evocadas aqui têm uma referência diferente, como se prova­ rá mais adiante. Ora, qual poderia ser a causa deste silêncio, se essa trasladação ocorreu, visto que conduziria grandemente ao enaltecimento da doutrina de Cristo? Por que em vez disso se menciona a condução de Cristo pelo tenta­ dor a um ponto alto de um monte, e não sua trasladação ao céu pessoalmente por Deus? Não se pode replicar aqui que os evangelistas não mencionaram tal trasladação porque ela se deu secreta, e não publicamente, já que eles mencio­ nam somente coisas que viram e ouviram. Teriam, então, mantido silêncio sobre a ressurreição de Cristo, a qual ocorreu quando ninguém estava presente exceto os guardas; nem poderia Mateus ter descrito a transfiguração (da qual ele não foi uma testemunha ocular [autoptês]). Portanto, foram obrigados a relatar não meramente o que eles mesmos viram e ouviram, mas o que lhes foi revelado pelo Espírito Santo acerca dos feitos de Cristo (os quais foram con­ duzidos para a instrução dos crentes). IV. Segundo, Cristo não necessitava de tal trasladação a fim de granjear conhecimento dos mistérios, nem em conformidade com sua natureza divina (porque ele era o Verbo [Logo.v] do Pai [Jo 1.1] que estivera em seu seio e que por isso contemplava todos os seus segredos), nem em conformidade com sua natureza humana. Em conformidade com esta, ele recebeu o Espírito sem medi­ da (Jo 3.34), por meio de quem ele foi suficientemente instruído em seu ofício, e tesouros de sabedoria e conhecimento foram depositados nele (Cl 2.3). Isto é assim confirmado - enquanto ainda menino de doze anos, ele deu prodigiosas provas de sua sabedoria, ensinando no templo e disputando com os fariseus (Lc 2.47). Igualmente em seu batismo (antes dessa trasladação fictícia), o Pai tes­ tificou do céu que tinha nele todo o seu prazer. Como, porém, poderia ser todo o seu prazer quem não ainda compreendia sua vontade? Terceiro, se Cristo ascendeu ao céu depois do batismo, a Escritura teria posto sua subida antes de sua descida. Ao contrário, ela pôs sua descida antes de sua subida (Ef 4.9). ^ ^ ma co'sa ®Cristo ter subido ao céu própria e localmente com resPe*t0 a sua humanidade; outra é ter ele subido metafó­ rica e misticamente por um sublime conhecimento dos mistéri­ os celestiais. Não lemos ter Cristo subido no primeiro sentido (“Ora, ninguém subiu ao céu, senão aquele que de lá desceu, a saber, o Filho do homem [que desceu do céu]”, Jo 3.13), porque lemos que o mesmo que desceu (e assim não se poderia dizer que ainda estava no céu), mas concernente à ascensão mística (pois lemos que subiu ao céu aquele que penetra o segredo do céu [Pv 30.4], porque quanto dista o céu da terra, assim o conselho divino dista do humano [Is 55.9]). Aquilo que está perto de nós óbvia e evidentemente não está no céu (nem podemos subir para lá, Dt 30.12; Rm 10.6). Assim o sentido será: nin­ guém conhece as coisas celestiais e se familiariza com o conselho divino, a F ontes de explanação

não ser ele mesmo. O contexto ensina que este deve ser o significado, porque no versículo precedente ele tratara dos mistérios celestiais: “Se tratando das coisas terrenas não me credes, como crereis se vos falar das celestiais?”. E a fim de dar a razão por que ele podia ensinar as coisas celestiais por si só e ninguém pode conhecê-las (a não ser que ele o instrua), acrescenta: “ninguém subiu ao céu”. Mas, quanto às palavras “o Filho do homem está no céu”, isto deve ser inferido da pessoa no concreto, não da natureza humana no abstrato. VI. Quando lemos que Cristo desceu do céu e veio da parte do Pai (Jo 6.38; 16.28), trata-se de sua descida metafórica mediante sua manifestação na carne; não que ele estava onde não estivera antes, mas que ele agiria ali. Não há alusão a uma descida local em conformidade com sua humanidade, e em parte alguma lemos que Cristo voltou do céu, mas apenas que partiu dali. Se lemos que o Filho do homem subiu para onde ele estivera antes, após sua ressurreição (Jo 6.62), isto não deve ser inferido de sua humanidade, mas somente de sua divin­ dade, onde a Palavra (ho Logos) estivera antes, quando estava com Deus (pros ton theon, Jo 1.1). VII. Embora Cristo exprima aquelas coisas que aprendera do Pai (Jo 8.38), uma vez que ele fala o que ouvira (Jo 3.32) e nada faz que não vira o Pai fazer (Jo 5.19), para indicar que o Filho tem um conhecimento íntimo de todas as obras do Pai, não se segue que ele fosse arrebatado ao céu a fim de ouvir e ver tais coisas. Ele teve tudo isso de sua comunhão íntima com o Pai, em virtude da qual lemos que ele estava no seio do Pai (Jo 1.18) e (por estar em seu seio) para revelá-lo a nós. VIII. Embora Cristo não tenha sido arrebatado ao céu, nem por isso deve ser considerado inferior a Moisés e a Paulo, que experimentaram isso para que pu­ dessem aprender de Deus. (1) Embora arrebatados para lá, Cristo foi ensinado de uma maneira muito mais excelente em virtude de sua união hipostática. (2) Há certa diferença entre os servos e seu Senhor. Aqueles tinham necessidade de instrução extraordinária para adquirir aquele conhecimento do qual eram defici­ tários. Cristo, porém, desde o momento da concepção (ungido pelo Espírito San­ to), conhecia aquelas coisas plena e completamente. (3) Não se diz que Moisés foi levado ao céu, mas que foi levado para o alto de um monte. De Paulo lemos que foi arrebatado ao terceiro céu, porém não se pode dizer se no espírito ou no corpo não houve informação (pois Paulo mesmo confessa que não sabia). S é t im a P e r g u n t a : O O f í c i o P r o f é t ic o

de

C r is t o

lim que consiste o oficio profético de Cristo, ou quais são suas partes e seus modos?

D e quantas m aneiras se po d e entender a profecia.

I- A primeira parte do ofício de Cristo é a profecia. Ela é entendida aqui não ampla e impropriamente, quanto a qualquer conhecimento e celebração de Deus, como está em Joel 2.28, onde lemos que os crentes sob o Novo Testamento profe-

tizariam; ou quanto à instrução pública, a qual pertence aos intérpretes das coisas sacras; ou aos mestres e ministros públicos da igreja, sentido no qual “os espíritos dos profetas estão sujeitos aos profetas” (ICo 14.32); ou, mais estritamente, acerca daqueles a quem Deus chamou imediatamente e da ordem que lhes é própria, não só para ensinar o povo, mas também para substituir o culto corrompido de Deus e predizer muitas coisas futuras. Esta é a significaE em que ma's comurn da palavra no Antigo Testamento, reivindicada sentido se Por Moisés de maneira peculiar (Nm 12.6-8), como se verá mais aplica a adiante. Mas é entendida mais estrita e propriamente quanto àquela Cristo plena e augusta revelação dos mistérios da salvação que Cristo (como o mais excelente mestre da igreja) nos demonstrou. Alguns pretendem que este ofício profético está compreendido sob a realeza (à qual pertence a legislação) ou que esta contido sob o sacerdócio (ao qual estavam ligados ° P ° d e r de profetizar e a faculdade de consultar a Deus e dar respostas). Mas não falam com suficiente exatidão, porque isto não impede que esses três ofícios sejam previamente distintos. Assim como de fato uma coisa é ser um pastor comum, porém outra é ser um profeta, assim também uma coisa é ouvir as respostas, outra é apresentar novas coisas nunca ouvidas ou buscadas. Os profetas eram suscitados extraordinari­ amente ou para instruir ou para renovar o culto de Deus (cujas palavras os reis e sacerdotes pios avidamente recebiam). Eram também tomados de outra tribo, não da de Levi (à qual pertencia o sacerdócio) e eram consagrados especial­ mente para este fim: para que confiassem à igreja o cânon sagrado, cuja pala­ vra não provém dos sacerdotes e dos reis, mas dos profetas (2Pe 1.19), e sobre a qual a igreja tinha de ser edificada (Ef 2.20). Assim há em Cristo as partes de profeta, sacerdote e rei (como já se demonstrou).

N ão é com preendida sob o sacerdócio ou sob a realeza.

^ necessidade deste ofício transparece de três coisas. (1) necessidade de uma revelação, porque não pode haver co­ nhecimento de Deus e das coisas divinas sem uma revelação, pois o homem natural não aceita as coisas de Deus (ICo 2.14) e nenhuma revelação salvífica é transmitida exceto por intermédio de Cristo (Jo 1.18; Mt 11.27). Nenhuma razão ou lei pode desvendar-nos o mistério da piedade, se­ não unicamente Cristo no evangelho. (2) Do método de salvação, porque ne­ nhum meio de salvação foi dado exceto a fé: “E assim a fé vem pelo ouvir, e o ouvir pela Palavra de Deus” (Rm 10.17). (3) Dos oráculos do Antigo Testa­ mento que aquela profecia promete, a qual necessariamente tem de se cumprir. Prova-se sua necessidade

IV- A Escritura frequentemente ensina a veracidade do ofício Cristo: no oráculo de Moisés, “ O S e n h o r , teu Deus, te susci­ tará um profeta do meio de ti” (Dt 18.15), o que Pedro nos ensina que se refere a Cristo (At 3.22); onde lemos que o Espírito é dado a Cristo pelo Pai para poder promulgar o direito para os gentios (Is 42.1-3,6),

E sua veracidade

isto é, agir como profeta no meio dos gentios, e para que, pelas justas leis do evangelho e pelo culto correto de Deus, os guiasse à verdadeira retidão. Daí lermos que ele foi dado “como mediador da aliança com o povo, luz para os gentios” c “para abrir os olhos aos cegos”. Isto é confirmado em 49.12, mas especialmente em 61.1,2, onde ele é apresentado como falando: “O Espírito do S e n h o r está sobre mim, porque o S e n h o r me ungiu para pregar boas-novas aos quebrantados”. E ensina que isto se cumpriu nele mesmo (Lc 4.21). Aqui se encaixam as descrições breves de Deus quando é chamado o “Anjo da Alian­ ça” (Ml 3.1), “Conselheiro” (Is 9.6*), a “Sabedoria” eterna, que chama os homens (Pv 9.1); “o Verbo” (Logos ) por meio de quem Deus nos fala (Hb 1.1), “Senhor” e “Mestre” (Mt 23.7,8), o único a quem se deve ouvir (Mt 17.5) sendo que essa opinião a tal ponto prevaleceu entre os judeus que até foi pas­ sada aos samaritanos - “que há de vir o Messias, chamado Cristo; quando ele vier, nos anunciará todas as coisas” (Jo 4.25). Se Cristo é distinguido de um profeta (Jo 1.21), nem por isso se nega absolutamente que ele é profeta, senão que se demonstra que ele é mais que profeta. Não se nega absolutamente ser ele um profeta, mas “o Profeta” (ton Prophêfên ) (ou seja, aquele eminente profeta a quem os judeus presumiam viria antes de Cristo; ou um dos profetas que criam seria ressuscitado por ocasião da vinda do Messias). ^ ^ natureza desta profecia deve ser considerada princiPalm ente em dois aspectos: (1) na matéria da doutrina enunciada; (2) no método de pregação. A matéria vem sob três tópicos: exposição da lei; promulgação do evangelho; e predição de eventos futuros. Pois, assim como a obra dos pro^etas se reduzia principalmente a estas três partes - expla­ nação e aplicação da lei, o inculcar das promessas da graça, e predição de eventos futuros que lhes eram revelados por Deus - assim tam­ bém Cristo, com toda a perfeição, cumpriu as mesmas três, interpretando a lei de modo perfeitíssimo segundo a intenção do legislador, proclamando o evan­ gelho e predizendo eventos futuros para a consolação da igreja.

S ua natureza é considerada ou na m atéria da doutrina ou no m étodo da pregação.

^ primeira parte do ofício profético diz respeito à doutrina da lei, consistindo em explicar e inculcar o que e*e executou para que o homem (convicto de sua fraque­ za pessoal) fugisse para Cristo com a máxima solicitude (como para uma âncora sacra na qual pudesse sentir-se seguro em meio aos raios e maldições da lei) e para protegê-lo das falsas interpretações e glosas dos fariseus de seus dias e restaurar o significado tencionado por Deus, o Le­ gislador. Também em inculcar a obediência espiritual e interior do coração demandada pela lei espiritual, rejeitando a retidão externa que os fariseus su­ punham ser suficiente (Mt 5-7); subordinando a lei cerimonial à moral e o serviço daquela a esta como sendo esta superior (Mt 12.1 ss.); e em rejeitar as tradições dos anciãos como inúteis e ofensivas a Deus (Mt 15.3; 23).

A prim eira p a rte da profecia na explicação da lei

VII. Se Cristo nesta explicação da lei corrigiu a antiga lei como sendo imperfeita e adicionou-lhe novos preceitos (como os socinianos e os romanistas presumem), isso já foi discutido no Tópico XI, sobre a lei, Perguntas 4 e 5 (que é bom consultar). Quanto a questão (costumeiramente suscitada aqui) se Cristo é ou pode ser chamado legislador. Respondemos em poucas palavras que Cristo pode ser visualizado por dois pris­ mas: ou absoluta e teologicamente (visto ser ele o Verbo [Logo.s] e o mesmo Deus com o Pai e o Espírito Santo); ou relativa e economica­ mente (visto ser ele o Deus-homem [theanthrõpos] e o Mediador entre Deus e os homens). No primeiro aspecto, ele é o único legislador que pode salvar e destruir (Tg 4.12). No segundo, ele não é propriamente um legislador, como o foi Moisés (porque ele é oposto a Moisés e à sua lei como o autor da graça e da verdade, Jo 1.17); nem principalmente, porque seu principal ofício era revelarnos o mistério do evangelho. Contudo, nada obsta que lhe chamemos legisla­ dor secundariamente e menos principalmente, porque ele foi o restaurador e o vindicador da lei, e porque ele é o Rei e a Cabeça de sua igreja. Ora, cabe aos reis promulgar leis. Daí ele ser chamado “legislador” (mchqq, Is 33.22), e a doutrina de Cristo também tem sua própria lei, a qual nos prescreve fé e obedi­ ência em nosso viver. Neste sentido, a lei é subordinada ao evangelho, e o próprio evangelho é chamado a lei da fé, a lei régia da liberdade, a lei do Espírito e de vida. Entretanto, nossos doutores negam com razão (contra romanistas e socinianos) que Cristo seja legislador, visto que dizê-lo legislador de­ notaria que ele introduz novas leis e novos preceitos morais não contidos na própria lei (nem tendo nela seu fundamento). IX. Embora a fé em Cristo (que é prescrita no evangelho) possa ser chama­ da nova com respeito ao seu objeto (que é revelado somente no evangelho), contudo pertence à lei com respeito ao ato e à obrigação, porque somos obriga­ dos a crer em Deus e em toda sua Palavra. O arrependimento também pertence à lei; não como foi promulgada ao primeiro homem, mas como reiterada ao pecador e ilustrada pelo evangelho; e materialmente, se não formalmente, por­ que ela ensina e prescreve o modo de arrependimento. S e Cristo p o d e ser cham ado legislador

X. Outra parte do ofício profético (e de fato a principal) é a proclamação do evangelho ou a anunciação da graça introduzida por Cristo. Daí o evangelho ser chamado “a doutrina de Cristo” (At 13.12) e “o testemunho de Cristo” (ICo 1.6; Ap 1.2). Isto é assim não só porque Cristo é o objeto próprio daquela doutrina (1 Co 2.2), mas também porque ele é sua causa primordial e seu autor primário. Não obstante, aqui não entendemos o evangelho amplamente, quanto a qual­ quer promessa da graça (o que teve lugar também no Antigo Testamento), mas estritamente, quanto ao evangelho completado, o qual contém a manifestação de Cristo na carne. Ali Cristo ensina que ele é uma pessoa, não apenas o Filho

A segunda, na proclam ação do evangelho.

do homem (Mt 8.20; 9.6), mas também o Filho de Deus (Jo 3.16; 5.19; e em outras partes); que no ofício ele é aquele Cristo que foi prometido sob o Antigo Testamento (Mt 16.16)- Profeta (Jo 10.11,14), Sacerdote (Jo 10.15; 17) e Rei de sua igreja (Jo 18.36,37) - que veio para servir e dar sua vida em resgate (antilytron) de muitos (Mt 20.28); para salvar seu povo de seus pecados (Mt 1.21); e para instituir um novo culto evangélico diferente do antigo culto legal, tanto quanto ao lugar (porque Deus não determina nenhum lugar peculiar para seu culto atual, como fez outrora), como quanto ao modo de culto (porque ele quer ser cultuado em Espírito e sem cerimônias camais, e em verdade [sem as sombras da lei mosaica], e também porque ele é Espírito [portanto, com um culto mais apropriado à sua natureza]). Terceira na XI. A terceira parte é o prenúncio de coisas futuras. Estas predição de sã° gerais: tais como a predição da destruição de Jerusaeventos fu tu ro s e ^im c*° mundo (Mt 24); a vocação dos gentios (Jo 4.21); e a revogação do culto cerimonial ccdendo lugar ao espiritual e evangélico (Jo 4.23; Jo 10.16); da cruz futura e da perseguição movida quase contínua contra os crentes (Mt 24; Jo 15.20; 16.20,22). Não obstante, essas predições foram temperadas com as mais doces promessas da graciosa presença de Cristo e do Espírito Santo em meio às calamidades (Jo 14.18; 17.9), do feliz fim das aflições (Jo 16.20,22). O prenúncio pode tam­ bém ser especial com respeito ao seu próprio sofrimento, crucifixão, morte e ressurreição (Mt 16.21; 26.23); o escândalo c a fuga de seus discípulos; a ne­ gação e o martírio de Pedro; a traição de Judas; o advento de falsos cristos e impostores, bem como de falsos profetas. As profecias apocalípticas também se encaixam aqui, nas quais Cristo inspirou a seu servo as coisas que acontece­ riam até o fim do mundo, seja com respeito às lutas e calamidades da igreja, ou com respeito às suas vitórias e triunfos. O m odo da ® modo da profecia de Cristo está presente em várias Dro fecia ■ particularidades. (1) No modo duplo de ensino, tanto imediato Por s' mesrno nos dias de sua carne, quanto mediato por meio (1) im ediato e m ediato seus rn>nistros antes de sua encarnação por meio de seus " profetas no Antigo Testamento (os quais falaram sob a influ­ ência do espírito profético de Cristo, 1Pe 1.11; 2Pe 1.21). Dai lermos que ele, mediante o Espírito, pregou a Noé (1 Pe 3.19). E se lemos que Deus nos falou por meio de seu Filho nestes últimos dias (Hb 1.2), isto deve ser inferido não simplesmente, mas comparativamente (i.e., de uma maneira visível e por ele como na carne [ensarkon]). Também depois de seu advento, por meio dos após­ tolos e dos pastores - os primeiros extraordinariamente chamados e inspirados com o dom da infalibilidade por certo tempo; estes chamados pelo ministério ordinário de homens, dotados somente da inspiração comum (até o fim do mundo). (2) No externo e no interno, pelos quais não só exter2. Externo namente enriquece os ouvidos do corpo por meio de sua Palae interno. vra< mas também internamente enriquece os ouvidos do cora­

ção por meio de seu Espírito e guia a toda a verdade (Jo 16.13). Neste sentido, lemos que as palavras de Cristo são “espírito e vida” (Jo 6.63), não só com respeito a uma compreensão das palavras expressas concernentes a comer sua carne (o que não deve ser tomado grosseira e carnalmente, mas espiritual e misticamente), mas também com respeito à invencível eficácia que ela exerce na conversão do coração. Daí lermos que o evangelho é escrito não em tábuas de pedra, mas “em tábuas de carne, isto é, no coração” (2Co 3.3) - o privilégio da nova aliança segundo a qual Deus escreveria a lei no coração, e os crentes seriam ensinados por Deus ( theodidaktoi , Is 54*. 13). ^ os var'os característicos que acompanhavam sua pregação: (a) no ensino, ele exerceu por toda parte a mais elevada autoridade, vindo a ser um mestre supremo e infalí­ vel, não em conformidade com os demais mestres inferiores, pois ele ensinava como alguém que tem autoridade (exousian echõn), não como os escribas e fariseus (Mt 7.28,29). E assim ninguém podia resistir a ele e todos eram com­ pelidos ao reconhecimento de que ninguém jamais falara assim (Jo 7.46). (b) Sabedoria admirável pela qual ele temperava sua doutrina de tal modo que a defendia das astúcias de seus oponentes, e com frequência os derrotava com suas próprias armas (Mt 21.23-46). A isto acrescenta-se aquele divino conhe­ cimento pelo qual ele provava conhecer bem o coração (kardiognõstên ) e estar plenamente informado do futuro, (c) Imensa liberdade, sem servil respeito a pessoa alguma iprosõpotêpsian) quando ensinava a verdade de Deus e lembra­ va a cada um os seus deveres, (d) Eloquência extraordinária pela qual palavras graciosas procediam de sua boca (logoi tês charitos, Lc 4.22) e excedia a todos os demais, de modo que a majestade rivalizava com a simplicidade, e a subli­ midade com a doçura, (e) Constância inquebrantável, não levando em conta a autoridade e influência de seus adversários, cujos crimes ele censurava da for­ ma tanto mais ferina à medida quanto mais se esforçavam para impor-se aos simples com sua máscara de santidade (Mt 23.5). (f) Mui ardente zelo (cujo exemplo é dado em Jo 2.15,16), movido pelo qual ele não buscava o retrai­ mento, mas falava publicamente, com frequência negligenciando também o próprio alimento (Mc 3.20; Jo 4.32). 3 N os vários característicos

^ eficáeia evidentemente divina de sua doutrina’ A cácia pela qual Cristo ensinava visivelmente deve­ ' " ras com a maior gravidade e majestade (e pela qual seus ouvintes se sentiam especialmente abalados). Sua pregação era evidentemente diferente da pregação dos escribas (Mt 7.29). Mas ele interiormente se insinu­ ava com grande poder nas mentes deles e as afetava de modo assombroso, convertendo ou convencendo alguns, exercendo sobre todos um poder muito acima do humano (Jo 7.46; Lc 24.32). Daí inferirmos que necessariamente nosso Profeta estava munido de poder divino, visto que ele não só nos envolve com sua luz, mas também supre os olhos, abre nossos corações e irradia nossas mentes com esplendor celestial (2Co 4.6). 4 Na eficácia de sua doutrina

^ autent‘c‘dade e na perfeição da doutrina que era tal que, depois da revelação doutrinal que Cristo fez, , , . . „ , nenhuma outra deve ser esperada no porvir (como o aposr ' 1 tolo o demonstra, Hb 1,2). Se lemos que o Espírito iria ensinar a igreja depois de Cristo, esta não deve ser uma referência a uma per­ feição maior extensiva e objetivamente, mas intensiva e subjetivamente. Daí lermos que “ele tomará da doutrina de Cristo” (Jo 16.14), porque não haveria de ensinar nada mais além do que já fora proposto por Cristo e pertencia à sua pessoa e a seu oficio.

5 Na autentici j . * . . dade e perfeição . j . . de sua doutrina.

^ sant*dade de vida e na operação de milagres, de vida e nos ^ °’s e*e estabeleceu e confirmou sua doutrina não só com m ilagres a ma's perfeita santidade de vida e uma maravilhosa paci­ ência, mas também com vários e estupendos milagres, tan­ to a fim de vindicar a divindade de sua pessoa como para selar a veracidade de sua doutrina. Pois aquele que, por seu próprio poder, realizou tantas e tão gran­ des obras, suplantando a força de toda a natureza criada, só poderia estar re­ vestido de poder divino, visto que ele realizou obras que somente Deus pode realizar. E evidente que o mesmo falou as palavras de Deus e devemos crer que ele introduziu uma doutrina por si só crível (autopiston ) e divina. Pois nem a falsidade convém ao poder supremo, nem podemos imaginar que Deus em­ prestaria seu poder a um impostor ou falso profeta. Sei que os adversários de Cristo apresentavam muitas objeções para lançar descrédito sobre os milagres de Cristo, porém já demonstramos que são fúteis e falsíssimas; cf. Tópico XIII, Pergunta 2, Seções 18,19. 6 Na santidade

XVII. E daí se pode deduzir claramente a vasta diferença existente entre Cristo e os demais profetas. Porque (1) eles eram apenas servos na casa de Deus (falando em nome de Cristo), de quem recebiam seus mandamentos. Cristo, po­ rém, é Filho e Senhor (Hb 3), o principal Pastor (Archipoimên , 1Pe 5.4) e supre­ mo Senhor, Mestre dos mestres, por cujo Espírito todos os que falam são influ­ enciados e o único a quem se deve ouvir como árbitro da fé (Mt 17.5). (2) Eles só podiam pregar externamente, porém nada mais. João batiza com água, Pau­ lo planta e rega, porém não pode dar o crescimento. Por isso mesmo lemos que eles “nada” são (ICo 3.7) com respeito ao poder e eficácia intemos. Cristo, porém, opera tanto externa quanto internamente, escreve a própria lei nos cora­ ções e “batiza com o Espírito e com fogo” (Mt 3.11), isto é, inspira uma eficá­ cia interna e opera no íntimo por seu Espírito com ação como a do fogo - cuja propriedade não só expurga a escória e lava a superfície externa como com água, mas também penetra profundamente no íntimo. (3) Outros foram ilumi­ nados pela luz divina, mas com brilho (coruscationem) passageiro e à maneira de ato transitório; daí não podiam revelar coisas futuras e secretas como bem lhes aprazia. Cristo, porém, ilumina como um hábito permanente (o que pode­ Como Cristo difere de outros p rofetas

ria fazer quantas vezes quisesse, embora, enquanto estava na terra, isso não coubesse absolutamente a todas as coisas futuras, mas sim às coisas que as exigências de seu ofício e de nossa salvação requeriam; daí lermos que ele não conhecia o dia do juízo, Mc 13.32). (4) Aos outros, o Espírito foi dado somente por medida; mas a Cristo ele é dado sem medida (ametrõs, Jo 3.34). Lemos que o Espírito repousou sobre ele com todos os seus dons (Is 11.1,2). Os tesou­ ros da sabedoria e do conhecimento estão ocultos nele (Cl 2.3). (5) Outros são chamados por um tempo determinado; Cristo, porém, é chamado para sempre. XVIII. Deus se manifestou aos outros em vários graus (polym erõs) e de diversas maneiras (polytrotõs ), por meio de visões e sonhos, por inspiração imediata e secreta e de vários outros modos, aos quais ou dormindo ou acorda­ dos ele se manifestava; ou aos sentidos internos pela imaginação ou aos olhos externos ou aos ouvidos e à própria mente, por uma representação intelectual, em rapto ou êxtase. Cristo, porém, conhecia todas as coisas perfeitamente; não o que recebia de outras fontes, mas o que ele mesmo viu ou ouviu no seio do Pai (Jo 1.18). Daí a revelação feita por Cristo nestes últimos dias (como perfei­ tíssima e por isso mesmo final) opõe-se às demais revelações feitas por meio dos profetas (Hb 1.2). Cristo, porém, era não só superior aos demais profetasatore, Pt. 1. 1 [1594], pp. 1­ 11). Segunda, a daqueles que fazem distinção entre necessidade absoluta e hipotética; quanto a esta [hipotética], mantêm constantemente (em oposição aos socinianos) a necessidade de uma satisfação, porque Deus assim o decre­ tou. Acrescentam ainda a necessidade de adequação a esta, porque é mui ade­ quado que se faça satisfação à justiça divina para que não se diga que seus mandamentos foram violados impunemente. Quanto àquela [absoluta], negam que fosse assim necessária absolutamente, porque, se Deus quisesse, haveria E stabelecim ento da qu estã o • concernente à sua necessidade

outros modos de libertação possíveis a ele. Tudo indica que esta foi a opinião de Agostinho ( The Trinity 13.10 [FC 45:388-390]) e de alguns dos reformadores, especialmente aqueles que escreveram antes dos tempos de Socino. Terceira, a daqueles que defendem sua necessidade absoluta, de modo que Deus não só não quis remitir nossos pecados sem uma satisfação, mas não podia fazer isso em virtude de sua justiça. Esta é a opinião comum dos ortodoxos (a qual seguimos). V. Não obstante, visto que nossos adversários nos afrontam de muitas ma­ neiras por sua perversa explanação de nossa opinião, certos princípios devem ser antes estabelecidos, com base nos quais toda a doutrina acerca da satisfa­ ção de Cristo pode ser mais facilmente percebida e muita luz se pode lançar sobre esta questão e sobre as que a seguem. Estas têm referência ou ao pecado, pelo qual se requer satisfação; ou à satisfação propriamente dita, a qual deve ser prestada; ou a Deus, a quem ela tem de ser apresentada; ou a Cristo, por quem a satisfação tem de ser prestada. VI. Primeiro, o pecado, que nos toma culpados e odiados por Deus e nos obriga à punição como devedores, é considerado sob uma tríplice relação (schesei), ou como uma dívida, a qual somos obrigados a pagar à justiça divina, sentido no qual a lei é chamada “o escrito de dívida” (Cl 2.14); ou como um inimigo, razão pela qual somos não só inimigos de Deus (theostygeis ), mas Deus mesmo nos olha com aversão e indignação; ou como um crime, pelo qual diante de Deus, o supremo Governante e Juiz do mundo, nos tornamos dignos de morte e maldição eternas. Daí os pecadores às vezes são chamados “devedo­ res” (Mt 6.12), também “inimigos [echthroi\ de Deus” (seja ativa ou passiva­ mente, Cl 1.21), e ainda “culpados diante de Deus” (hypodikoi tõ Theõ, Rm 3.19). Disso inferimos que foram requeridas três coisas para nossa redençãoo pagamento da dívida contraída pelo pecado, o apaziguamento do ódio e da ira divinos e a expiação da culpa. VII. E daí, em segundo lugar, pode-se perceber facilmente a natureza da satisfação a ser feita pelo pecado (ou seja, em que essas três relações [schese/s] concorrem ao mesmo tempo): o pagamento da dívida, o apaziguamento da ira divina (reconciliando-nos com ele) e a expiação da culpa (suportando a punição). Mas, como a relação principal a ser percebida no pecado é sua crimi­ nalidade, assim a satisfação tem relação (schesis ) com a punição imposta pelo supremo Juiz. VIII. Não obstante, aqui se deve distinguir acuradamente um duplo paga­ mento (notado pelos juristas). Um, “pelo próprio ato de pagamento põe em liberdade” o culpado e o devedor, quando é paga precisamente a coisa que é de obrigação, quer o pagamento seja feito pelo próprio devedor, quer por um fia­ dor em seu nome. Outro, em que “o mero ato de pagamento não é suficiente para libertar o devedor”. Pois o pagamento não é precisamente a mesma coisa demandada na obrigação, mas um equivalente, o qual, embora pelo ato não remova a obrigação, contudo, sendo aceido (quando pode ser recusado), é con­

siderado como satisfação. Numa dívida pecuniária e numa dívida penal, isto é evidente. Numa dívida pecuniária, o pagamento da dívida pelo próprio ato isenta o devedor (não importa quem faz o pagamento), porque a pessoa que paga não está em pauta aqui, mas somente o que é pago. Daí não lermos que o credor (uma vez recebido o pagamento) tratou o devedor com indulgência ou que perdoou a dívida, porque ele recebeu justamente o quanto lhe era devido. Numa dívida penal, porém, o caso é diferente, porque a obrigação leva em conta não só coisas, mas pessoas (i.e., não só o que é pago, mas também aquele que paga, de modo que a punição é sofrida pelo transgressor). Pois, assim como a lei demanda obediência pessoal e individual, assim também ela exerce uma punição semelhante. Portanto, a fim de que a pessoa culpada seja liberta­ da por outra, ou por uma satisfação vicária, o ato do juiz e governante deve entrar em cena. Esse ato é chamado “relaxamento” (em relação à lei). O rela­ xamento da dívida ou da pessoa culpada é chamado perdão, porque sua puni­ ção pessoal é dispensada com uma punição vicária admitida e aceita em seu lugar. Entretanto, visto que o sujeito em discussão (o pecado) não tem apenas uma relação de dívida, mas também de criminalidade, a satisfação não é desse tipo (isto é, não é a que pelo próprio ato livra o devedor), a menos que entrem em cena a tolerância (epieikeia ) e a remissão do Juiz. A coisa propriamente dita, que está na obrigação, não é paga (qual seja, a sujeição pessoal à punição), o que demanda a lei segundo a estrita justiça (akribodikaion), mas apenas um sofri­ mento vicário. Daí transparece quão bem concordam aqui, entre si, a remissão e a satisfação, não importa quanto clamem contra elas nossos oponentes. Pois, na sujeição ao castigo sofrido por Cristo há satisfação; porém, na admissão e acei­ tação de um substituto, há remissão. Aquela diz respeito a Cristo, de quem Deus demanda castigo, não numérica mas especificamente o mesmo que nos é devido. Mas esta diz respeito aos crentes, a quem Deus isenta de castigo em suas própri­ as pessoas, enquanto admite um substituto. E assim notamos quão admiravel­ mente a misericórdia é temperada com a justiça - justiça, visto ser exercida contra o pecado, e misericórdia exercida em prol do pecador. Faz-se satisfação à justiça de Deus mediante um fiador, e a remissão nos é dada por Deus. IX. Terceiro, este raciocínio é corroborado por uma consideração das rela­ ções (schesis) de Deus, a quem se deve prestar satisfação. Assim como temos aqui uma tríplice relação de pecado (como já dissemos), assim também Deus pode ser considerado ou como o credor, ou como o Senhor e a parte ofendida, ou como o Juiz e Governante. Neste caso, porém, embora as duas primeiras fun­ ções tenham seu lugar próprio aqui, contudo a terceira merece maior atenção. Isso porque Deus não é meramente um credor aqui (o qual poderia a seu belprazer remitir o que é devido), nem meramente a parte ofendida e o Senhor (podendo fazer o que bem lhe aprouver com o que lhe pertence sem prejuízo de ninguém), mas o Juiz e Governante do universo, a quem unicamente pertence a aplicação do castigo ou o livramento dele, porque (como todos os juristas reconhecem) isto pertence somente ao supremo magistrado e ao poder supre­

mo (fês hyperechousês exousias). Pois embora o credor possa exigir, como credor e a parte ofendida, que haja restituição e compensação das perdas, con­ tudo ninguém tem o poder de impor pagamento ou aplicar o castigo senão o juiz (que é estabelecido em autoridade). Aqui se deve sustentar isso, correta­ mente, contra nossos adversários, cujo erro capital (prõton pseudos) está nisto - que o pecado deve ser aqui considerado como uma simples dívida, e Deus como um mero crcdor, que pode à vontade ou aplicar ou remitir o castigo sem cobrar satisfação. O certo é que aqui Deus mantém o caráter de Juiz e Gover­ nante do mundo. Ele tem os direitos de majestade de manter suas leis e se declara guardião e vindicador delas. Portanto, ele tem as reivindicações não só de credor ou Senhor (que pode confirmar ou remitir à vontade), mas também o direito de governo e de punição (direito que lhe é natural e indispensável). X. Aqui, porém, uma vez mais, deve-se distinguir acuradamente entre a punição (que o juiz aplica) da maneira e circunstâncias da sua execução (pois diferem amplamente). Pois, quanto à punição em geral, o direito de Deus neste aspecto é claramente indispensável, estando fundado na própria justiça de Deus. Mas quanto à maneira e às circunstâncias da punição que possa ser exigida de tal ou qual pessoa e de tal ou qual maneira, não é igualmente do direito natural, mas do direito positivo e livre. Pois aqui se pode admitir certa tolerância (epieikeia) da bondade de um Deus sapientíssimo, seja em relação ao tempo pela delonga do castigo, ou em relação ao grau por mitigação, ou em relação a pes­ soas por substituição. Pois embora a pessoa pecadora mereça plenamente o castigo e possa ser castigada com justiça, contudo não é tão necessário e indis­ pensável que, por razões de suprema importância, o seu castigo não possa ser transferido para um fiador. E, neste sentido, os teólogos afirmam que o castigo deve ser necessariamente infligido, impessoalmente, sobre todo pecado, mas nem por isso pessoalmente sobre todo pecador (visto que Deus deveras pode, por meio de sua graça singular, isentar dele alguns colocando em seu lugar um fiador como substituto). XI. Mas, para que concebamos ser possível que Deus faça isto, ele tem de ser considerado não como um Juiz inferior e subalterno, designado pela lei (que não pode prescindir de seu rigor fazendo transferência do castigo para outro), mas como o Juiz supremo e anypeuthynos (“não sujeito a prestar contas ao homem”), o qual, assim como lhe apraz que se dê satisfação à sua justiça medi­ ante o castigo do pecado, assim também, mediante sua infinita sabedoria e indi­ zível misericórdia, pode relaxar algo do extremo rigor (akribodikaio) da lei, isentando os pecadores do devido castigo e transferindo este para um substituto. E daí descobrirmos a quem a satisfação é prestada - se ao Diabo, que os retém (como indaga Socino com escárnio), ou a Deus como o supremo Juiz. Pois, visto que o Diabo aqui é apenas um servo de Deus, o auxiliar de prisào (que não tem poder sobre os pecadores a não ser pelo justo juízo de Deus), a satisfação não deve ser prestada a ele, mas a Deus, o Juiz, que primária e principalmente os mantém. Podemos acrescentar que aqui se presume falsamente que no so­

frimento do castigo deve haver alguma pessoa a quem o castigo renderá seu fruto; como numa dívida pecuniária, o dinheiro é lançado na conta do credor. E suficiente que haja um juiz que possa aplicar o castigo a fim de preservar incó­ lume a majestade das leis. XII. Quarto, é preciso considerar aqui a própria pessoa que presta satisfa­ ção. Pois, assim como o pecado deve ser visto na relação tríplice de dívida, inimizade e crime (e Deus na relação de credor, parte ofendida e Juiz), assim também Cristo deve ser posto numa relação tríplice: um Fiador que pode pagar a dívida por nós; um Mediador e pacificador (eiriênopoiou ), a remover a inimi­ zade e reconciliar-nos com Deus; e um Sacerdote e Vítima, tomando nosso lugar por meio de uma satisfação penal. Além disso, a satisfação aplicada pela justiça de Deus demandava principalmente duas coisas: (1) que fosse paga pela mesma natureza que pecara; (2) que, não obstante, fosse de valor e dignidade infinitos para eliminar o demérito infinito do pecado. Duas naturezas se fizeram necessárias em Cristo para que a satisfação fosse feita: uma natureza humana, para sofrer; e uma natureza divina, para imprimir um preço e um valor infinitos aos seus sofrimentos. XIII. Finalmente, visto ser necessário que Cristo fizesse substituição por nós, sua justiça tinha de ser demonstrada para que ficasse evidente em que caso e sob que condições tal substituição do inocente pelo culpado poderia ser legíti­ ma (o que à primeira vista parece não só incomum, mas também injusto). Em­ bora numa dívida penal uma substituição (que com frequência é feita numa dívida pecuniária) ocorra mais raramente, sim, às vezes é até proibida (como entre os romanos se proibiam fiadores na punição capital, porque ninguém é senhor de seus próprios membros, e porque em tais casos a comunidade sofreria detrimento), contudo não era absolutamente desconhecida entre os pagãos. Os exemplos dos amigos - Damon e Pythias, um dos quais, numa causa capital, voluntariamente se fez fiança pelo outro a Dionísio, e de (M.) Curtius, Codrus e (Publius) Decius, devotando-se em prol de seu país - provam este fato sufici­ entemente (como também o direito, praticado pela maioria dos seres humanos, de matar os reféns [quando os príncipes fracassavam em suas promessas], os quais por isso eram chamados substitutos [antipsychoi]). Paulo faz alusão a isso quando diz: “pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer” (Rm 5.7). As Escrituras com frequência corroboram nisto, não só com base na im­ putação do pecado (pelo qual alguém sofre a punição devida a outro), mas também no uso público de sacrifícios, nos quais a vítima era posta no lugar do pecador e sofria a morte em seu lugar. Daí a imposição das mãos e a confissão dos pecados sobre a cabeça da vítima. XIV. Mas para que tal substituição seja feita legitimamente e sem qualquer aparência de injustiça, são requeridas várias condições da parte do fiador, to­ das elas encontradas perfeitas em Cristo. (1) Uma natureza comum, para que o pecado fosse punido na mesma natureza do culpado (Hb 2.14). (2) O consen­

timento da vontade, para que espontânea e voluntariamente (sem compulsão) aquele fardo fosse tomado sobre si: “Eis aqui estou para fazer, ó Deus, a tua vontade” (Hb 10.9). (3) Poder e domínio sobre sua própria vida, de modo que pudesse determiná-lo corretamente a seu respeito: “Ninguém a tira de mim; pelo contrário, eu espontaneamente a dou. Tenho autoridade para a entregar e tam­ bém para reavê-la. Este mandato recebi de meu Pai” (Jo 10.18). (4) O poder de suportar todo o castigo devido a nós e de removê-lo de si próprio e de nós. Do contrário, se ele pudesse ser retido pela morte, então a ninguém livraria dela. Que Cristo, o Deus-homem (theanthrõpõ), possui este poder, ninguém põe em dúvida. (5) Santidade e pureza imaculadas, para que, não sendo corrompido por nenhum pecado, não tivesse que oferecer um sacrifício por si próprio, mas so­ mente por nós (Hb 7.25-27). XV. Sobre as bases destas condições, não era injusto que Cristo, o justo, fosse nosso substituto, os injustos. Pois assim não se faz nenhuma injúria a ninguém. Nem a Cristo mesmo, tanto porque ele voluntariamente tomou sobre si a punição, como porque ele tinha o poder de determiná-la acerca de si mes­ mo e o poder de ressuscitar a si próprio dentre os mortos. Nem a Deus, o Juiz, porque ele o quis e o ordenou; nem à sua justiça natural, pois esta foi satisfeita pela punição do fiador. Nem ao império do universo, privado de seu melhor cidadão pela morte de uma pessoa inocente; pois Cristo, livre da morte, vive para todo o sempre. Nem pela vida do pecador sobrevivente que injuria o reino de Deus, porque ele é convertido e feito uma nova criatura por Cristo. Nem à lei divina, pois o perfeitíssimo cumprimento de todas as suas demandas feito por Cristo foi previsto, e nossa dupla união com Cristo (natural e forense ou mística) pela qual, quando se tomou um conosco e nós um com ele, assim pôde com justiça tomar sobre si nossos pecados e nossos males e comunicar-nos sua retidão e suas bênçãos. E assim não há uma ab-rogação, nem uma derrogação da lei, mas uma explicação segundo a clemência (k a t' epieikeian), de modo que o que nos era devido em estrita justiça é transferido para Cristo pela graça especial de Deus. XVI. Estas coisas foram estabelecidas como premissas a fim de lucida­ mente discutirmos a questão proposta, ou seja, se era necessário que Cristo prestasse satisfação por nós (absolutamente da parte da justiça, bem como hi­ poteticamente em virtude de um decreto de Deus). Se não era totalmente ne­ cessário que Cristo prestasse satisfação por nós, dispondo-se Deus em remitir gratuitamente o pecado e sem qualquer satisfação; ou se veio a ser necessário apenas hipoteticamente em razão do decreto de Deus. Os socinianos não reco­ nhecem nenhum tipo de necessidade aqui. Alguns dos teólogos antigos, e al­ guns membros da igreja reformada, insistem só na necessidade hipotética. Pen­ sam ser ela suficiente para a refutação de hereges. Nós, porém (com muitos), retemos ambas e afirmamos que a satisfação de Cristo era necessária tanto por parte da justiça quanto da vontade de Deus. Não obstante, não impomos uma necessidade meramente natural, a qual não é voluntária nem admite qualquer

modificação em seu exercício. Antes, insistimos numa necessidade moral bem como racional que, como flui da santidade e da justiça de Deus e não pode ser exercida exceto pela intervenção do livre-arbítrio, assim admite várias modifi­ cações em virtude da sabedoria e da clemência (epieikeia) de Deus (contanto que não haja nenhuma violação dos direitos naturais da deidade). XVII. Muitos argumentos evidenciam que de fato há necessidade da satisfação de Cristo. Primeiro, a justiça vindicativa de Deus; porque, visto que este atributo é natural em Deus e essencial a ele (como já se provou no Volume I, Tópico III, Pergunta 19), sobre o qual se funda o direito natural e eterno de Deus, o Juiz (o qual ele não pode dis­ pensar mais que negar a si mesmo), seu exercício deve ser necessário sobre a suposição de pecado, embora se tome livre por uma intervenção da vontade. Isto é especialmente verdadeiro já que não consiste em um ato meramente gratuito e não devido, como a misericórdia (pela qual, se é exercida ou não, não se faz injustiça a ninguém), mas no ato devido de dar a cada um o que é propriamente seu, ato do qual Deus não pode abster-se sem detrimento de sua justiça. Visto, porém, que esta justiça nada mais é senão a constante vontade de punir os peca­ dores, a qual em Deus não pode ser ineficiente (a quem pertence majestade su­ prema e poder infinito), ela demanda necessariamente a aplicação de punição, seja no próprio pecador ou no fiador que assume seu lugar. Tampouco se pode objetar contra este direito, quer pela relação da liberdade de Deus (que é exerci­ da somente em questões de direito positivo, não naquelas que são de direito natural), quer pela relação de misericórdia porque, embora esta possa liberar o pecador do castigo, não exige que o próprio pecado permaneça sem ser vingado. Prova-se a necessidade de satisfação: (1) p ela ju stiça de Deus.

XVIII. Segundo, a natureza do pecado; porque, visto ser e*e um ma*mora*diferindo intrínseca e essencialmente da ’ santidade (como já se mostrou no Tópico XI, sobre a lei, Pergunta 2), há também uma relação natural e necessária entre o pecado e o mal físico (pois ambos seguem um ao outro necessariamente, e visto que o mal físico e penal não pode existir sem o mal moral, quer pessoal quer imputado, assim o mal moral não pode existir sem atrair após si o mal físico). O bem moral e físico, a santidade e a felicidade estão indissoluvelmente enfeixadas, não só em razão da sabedoria divina (à qual é próprio que andem juntas aque­ las coisas que pertencem à classe do bem ou à do mal), mas também em razão da bondade e da justiça. Porque, quanto às primeiras, ele não pode deixar de ser favoravelmente disposto para com os bons, uma vez que ele é bom e bon­ doso para com sua própria imagem; assim os perversos não podem senão ser miseravelmente infelizes, uma vez que ele é justo. E assim é porque, se ele dá alguma bênção à santidade da criatura, então o faz por pura liberalidade, sem qualquer mérito da parte dela; mas, quando pune o pecador, dá-lhe o que deve dar-lhe e o que o pecador mereceu por seu pecado. 2 Pela natureza do pecado

3p ,

XIX. Terceiro, a sanção da lei, porque ela ameaça o pecador d a te i San('a0 com m orte(G n2.17; D t27.26; Ez 18.20; Rm 1.18,32;6.23). " Visto que Deus é verdadeiro e não pode mentir, tais ameaças devem necessariamente ser executadas ou sobre o próprio pecador ou sobre um fiador. Nossos oponentes replicam em vão, dizendo que a ameaça é hipoté­ tica e não absoluta (i.e., pode ser dispensada mediante arrependimento), por­ que toma por admitido o que deve ser provado —que existe alguma condição desse gênero, seja subentendida ou expressa. Mais ainda, como a sanção penal da lei é uma parte da própria lei, visto que a própria lei é natural e indispensá­ vel (como já se provou no devido lugar), esta sanção também deve ser imutá­ vel. Não devemos confundir aqui ameaças particulares e econômicas, nem aque­ las que são paternais e evangélicas, denunciadas contra os homens por uma dispensação particular lembrando-os do arrependimento. Tais ameaças podem ser revogadas em caso de arrependimento. Desse gênero eram aquelas anuncia­ das contra Ezequias (Is 38) e contra os ninivitas (Jn 3). As primeiras não devem ser confundidas com ameaças judiciais e a sanção imovivel da lei, o que se funda na própria natureza de Deus e reajusta as consciências dos homens. 4 n , , XX. Quarto, a proclamação do evangelho (a qual anun4. Pela proclamaçao . ’ , Y r-- j , „ cia a morte cruel e sangrenta do Mediador e Fiador do evangelho. _ . , b . . . que sofreu por nos) prova as mesmas coisas mui pode­ rosamente com base no evento a posteriori. Pois visto que Deus não multiplica desnecessariamente as coisas (nem sua sabedoria e bondade nos permitem crer que o Pai pudesse expor seu inocente e bem-amado Filho a uma morte tão hedionda e ignominiosa sem qualquer necessidade importante e indispensá­ vel; nem se pode conceber qualquer razão para a necessidade de uma dispensa­ ção tão inusitada e feita além da satisfação que seria paga à sua justiça por nós), é preciso que se perceba que era absolutamente necessária. Sei que ou­ tras causas daquela morte maldita são aqui evocadas por nossos oponentes, com vistas a confirmar a doutrina de Cristo e apresentar um exemplo de todos os tipos de virtudes, especialmente de amor e constância. Mas, visto que ele confirmara suas doutrinas por meio de numerosos milagres e por toda sua vida deu os mais gloriosos exemplos de todas essas virtudes, quem teria crido que Deus por essa única causa expusesse seu Filho unigénito a tão terríveis tor­ mentos? Portanto (fora de toda dúvida), houve outra causa para essa dispensação (ou seja, a relação da própria justiça à qual ele tinha de prestar satisfação). A isto Paulo dá testemunho quando afirma: “a quem Deus propôs, em seu sangue, como propiciação, mediante a fé, para manifestar sua justiça” (eis endeixin fês dikaiosym s autou , Rm 3.25), a qual era tão inexorável que não permitia que nossos pecados fossem remitidos, exceto pela intervenção da morte de Cristo. XXI. Além disso, se Deus, unicamente por meio de sua palavra, pudesse e quisesse remitir nossos pecados sem a intervenção de uma satisfação, como Paulo tão frequentemente aponta nossa salvação e justificação para o sangue

de Cristo, isto é, quando declara que “somos justificados pela redenção que está em seu sangue” (Rm 3.24), que “temos a redenção em seu sangue, a saber, a remissão dos pecados” (Ef 1.7) e que “ele reconciliou todas as coisas com Deus pelo sangue de sua cruz” (Cl 1.20)? Pois não haveria necessidade do derramamento de sangue se a remissão dependesse unicamente da vontade de Deus. Assim o apóstolo diria falsamente o que tão frequentemente afirma na epístola aos Hebreus - que o sangue de touros c bodes (i.e., sacrifícios legais) não podiam remover pecados (i.e., abolir sua culpa e obter seu perdão), c que unicamente a oblação de Cristo foi suficiente para remover a culpa sem ne­ nhum [outro] sacrifício. Pois o que podia ser removido facilmente sem qual­ quer sacrifício seguramente podia ser removido pelo sangue de vítimas legais. E se unicamente a vontade de Deus é necessária, por que Paulo nunca a menci­ ona, porém sempre recorre à natureza da própria coisa (como quando assevera que era impossível que o sangue de touros removesse pecados [a saber, porque o pecado é em extremo abominável e odioso a Deus], que sua mancha não podia ser lavada por nenhum sangue, exceto o do próprio Filho de Deus)? 5 Pela g r a n d c a

XXII. Quinto, se não houvesse necessidade de que Crist0 morresse a fim de satisfazer a justiça, a grandeza do ' amor de Deus em não poupar a seu próprio Filho, mas o entregando por todos nós (o que o apóstolo tão fortemente recomenda, Rm 5 e 8), seria muitíssimo diminuída. Pois, se não houvesse obstáculo para nossa salvação por parte da justiça, de fato teria havido grande graça em Deus haver perdoado nossos pecados, porém teria descido muito abaixo daquele estupen­ do (hyperbotên ) amor que, embora a punição do pecado exigisse justiça inexo­ rável, contudo o desejo de nossa salvação predominou (encontrando um equi­ líbrio de justiça e misericórdia para este propósito no depósito de sua espanto­ sa sabedoria). Tampouco se pode dizer que Cristo apaziguaria a ira de Deus se ele (sem efetuar qualquer satisfação), por mera volição, pudesse ter apazigua­ do sua própria ira. do am or de D eus

6 Pela sló ria dos atributos divinos

XXIII. Finalmente, (1) nossa opinião concernente à necessi^ac^e sat'sfaa satisfação de Cristo deve estender-se a tudo 0 Q116 nos era devido, e que ele tinha que pagar para nos °bter a vida. Contudo, para isso se exigia a obediência de sua vida, não menos que o sofrimento de morte; não só porque a criatura pecadora é obrigada a ambos, mas também porque ambos eram necessários para a remissão de pecados e para o direito à vida. Pois me­ diante a lei promete-se vida, não àquele que sofre, mas àquele que pratica “Faze isto e viverás”. Portanto, não seria suficiente ter suportado castigos até a morte, a menos que fosse adicionada a guarda dos mandamentos. Tampouco devemos confiar aqui na afirmação de “que o método da justificação legal e o da evangélica são diferentes. Na primeira, certamente se requeria a observação da lei como a causa da vida, porém não assim na segunda”. A diferença de nossa justificação não é posta na própria coisa (que é a mesma em cada caso, ou seja, uma justiça perfeita e numericamente absoluta, correspondendo exatamente às condições da lei concernentes ao modo de obter a vida eterna e às reivindicações eternas e imutáveis de Deus sobre as criaturas - as quais Cristo não podia derro­ gar, porque ele não veio abolir a lei, mas cumpri-la, Mt 5.17; Rm 3.31), mas somente no modo, porque o que nos era devido e era exigido sob a lei por meio de obediência pessoal, isso foi exigido de Cristo pela obediência de outro. 4 Porque Cristo cum priu o que nos era devido.

Qu'nto>a satisfação de Cristo deve ser buscada em sua justiça (como transparece de Rm 1.17; 3.21; 5.18; Fp 9-24). Daí a justificação ser descrita pela imputa­ ’ ’ ção da justiça (Rm 4). Mas a justiça de Cristo não consiste em seus sofrimentos, mas em suas ações; não por meio de sofrimento, mas por

5 Com base em R om anos 1 1 7 ' 3 21' 5 18 '

fazer com que obtivéssemos a justiça da lei (como ao pecar contraímos a culpa de injustiça). Neste sentido, Cristo testifica que “toda a justiça foi cumprida” por ele (Mt 3.15, ou seja, fazendo a vontade do Pai quanto a todas as suas partes). E Paulo diz: “Cristo foi feito pecado por nós, para que nele nos tomás­ semos justiça de Deus” (2Co 5.21, i.e., da mesma maneira como aqueles peca­ dos pelos quais violamos a lei foram imputados a Cristo, assim as ações justas pelas quais ele a cumpriu nos são imputadas). 6 Porque a XXII. Sexto, Cristo não está dividido (memeristai, ICo 1.13), e ju stiça de assim nem sua justiça deve ser dividida, e sim deve ser-nos Cristo não é outorgada, íntegra (holoklêros) e indivisa. O cordeiro pascal dividida era com'd° todo. De igual modo, Cristo todo deve ser recebido * por nós, tanto quanto ao que fez como quanto ao que sofr Isto tende à maior glória de Cristo e à nossa mais rica consolação, o que obscu­ rece e diminui não pouco quem deduz do preço de nossa salvação uma parte de sua perfeitíssima justiça e obediência e assim rasga sua túnica inconsútil. XXIII. Se nossa salvação e nossa redenção são atribuídas ao sangue e à morte de Cristo, isto não é feito à exclusão da obedi­ ência de sua vida, porque em parte alguma se encontra tal res­ trição. Em outras partes (como já vimos) ela se estende a toda a obediência e justiça de Cristo. Antes, isto deve ser entendido como sinédoque, pela qual o que pertence ao todo é atribuído à melhor parte, porque ela [a morte] foi o último grau dc sua humilhação, a coroa e o término de sua obediência (o que pressupõe todas as demais partes e sem a qual teriam sido inúteis). Pois nenhuma justiça tem mérito a não ser que seja preservada até às últimas consequências, nem pode qualquer pagamento ser perfeito, a menos que o escrito seja apagado. XXIV. Embora o apóstolo atribua a bem-aventurança dos santos à remis­ são de pecados que flui do derramamento de sangue (Rm 4.6,7), não se segue que nossa justiça e a justiça plena e total de Cristo estejam fundadas exclusiva­ mente em sua paixão. Paulo não argumenta com base numa equivalência, como se fossem a mesma coisa imputar justiça e perdoar pecados, mas com base numa junção (allêlouchia ) e na indissolúvel relação das bênçãos na aliança da graça pela qual sucede que os pecados de ninguém são perdoados sem que a pessoa obtenha imediatamente o direito à vida e se tome herdeira do reino do céu. De igual modo, Paulo fala do amor ao nosso próximo e do cumprimento da lei como sendo a mesma coisa (G1 5.14), porque onde existe o primeiro o outro segue necessariamente. XXV. Embora cada obediência de Cristo (a de sua vida bem como a de sua morte) tenha sido perfeita em seu gênero, contudo nem uma nem a outra sozinha podia ser suficiente para uma satisfação, a qual requeria tanto a observância dos mandamentos quanto a sujeição aos castigos (pelas quais a libertação da morte e o direito à vida podiam ser granjeados). A admissão de uma não cons­ titui exclusão da outra, mas a sua inclusão. Resposta a objeções

XXVI. O que uma pessoa deve não pode pagar por outra, se for uma pes­ soa privada. Mas não é assim se for uma pessoa pública, a qual pode agir seja em seu próprio nome, seja no nome daqueles a quem representa. Além disso, aquele que paga o que pessoalmente deve não pode fazer satisfação por outros pela mesma coisa, a menos que se tenha constituído devedor por eles. Pois embora ele seja devedor, contudo, porque se fez voluntariamente devedor a fim de livrar outro, enquanto paga o que deve, faz satisfação por outro. Assim Cristo, que se fez homem não em causa própria, mas por nossa causa, deve cumprir a lei não por si próprio, mas por nós, a fim de merecer a vida (que ele criou). Terceiro, embora Cristo (quanto a si mesmo, por uma sujeição natural) como criatura tenha estado sob a lei, contudo não o fez por uma sujeição fede­ ral e econômica, a fim de poder obter a vida pela lei e colocar-se como fiador no lugar dos pecadores. Esta foi uma obra de acordo voluntário, e quanto a si mesmo não devia tal coisa, nem quanto à pessoa (porquanto ele é o Filho teantrópico [theanthrõpos] de Deus e o Senhor da lei), nem quanto à sua natureza humana (seja absolutamente ou respectivamente). Absolutamente não, (1) por­ que sua natureza humana estava jungida à pessoa do Logos (Logou ), e como esta não estava sujeita à lei, assim nem podia a natureza assumida por ela estar sujeita nesse sentido; e (2) porque, como na apropriação da natureza humana consiste a humilhação de Cristo, assim também naquelas coisas que resultam desta apropriação. Tal é a sujeição à lei, não respectivamente, porque Cristo (como homem) não estava obrigado à aliança legal, a qual pertencia somente àqueles a quem Adão representava naquela aliança (ou seja, aos que descendiam naturalmente dele). Finalmente, ele não tinha necessidade de adquirir para si o direito à vida por sua própria obediência - esta necessariamente era resultante da união com o Verbo (Logo). Daí se segue que Cristo devia toda sua obediência federal por nós (como fiador), porque ele representava nossas pessoas. XXVII. Embora Cristo tenha cumprido a lei por nós quanto à obediência, não se pode inferir que não mais somos obrigados a prestar obediência a Deus. Certamente se segue que não mais somos obrigados a obedecer pelo mesmo fim e com base na mesma causa (ou seja, para que pudéssemos viver por ela, com base em nossa sujeição federal). Mas isso não impede de estarmos obriga­ dos por um dever natural a prestar a mesma obediência a Deus, não para que vivamos, mas porque vivemos; não para que adquiramos o direito à vida, mas para que tenhamos ingresso na possessão do direito já adquirido. Justamente como (ainda que Cristo tenha morrido por nós) não cessamos de estar sujeitos à morte - não para castigo, mas para salvação. XXVIII. Uma justiça de inocência (quando a pessoa não é acusada de falta alguma) difere de uma justiça de perseverança (à qual se deve recompensa pelo dever cumprido). A remissão de pecado vem na primeira justiça ao remover a culpa de pecados cometidos, porém não por acarretar a justiça de perseveran­ ça, como se aquele que a obtém tivesse realmente cumprido todos os deveres. Uma coisa é livrar urna pessoa do castigo devido à omissão do dever; outra é

considerá-la realmente justa com a justiça de perseverança à qual se promete vida (como se não tivesse omitido nenhum bem ou cometido nenhum mal). A primeira é obtida por remissão, porém não a segunda (o que seria contrário à veracidade e ao justo juízo de Deus). A remissão de pecado não anula o peca­ do, porém previne sua imputação. Ela só remove a culpa do pecado e, conse­ quentemente, seu castigo, porém não remove sua corrupção. E, portanto, ser considerado como “não tendo cometido nenhum mal e como não tendo omitido nenhum bem” pode ser entendido de duas maneiras: ou quanto ao castigo, de modo que não podemos ser mais punidos do que se não tivéssemos realmente cometido nenhum pecado nem omitido nenhum dever (e nesse sentido é verdade que pela remissão de todos os pecados somos postos naquele estado pelo qual somos isentados de todo o castigo em decorrência dela); ou quanto ao galardão, de modo que, aquele que é considerado como não tendo omitido nenhum dever e não tendo cometido nenhum pecado será julgado por Deus como tendo feito todas as coisas necessárias para a obtenção da vida. Assim é falso dizer que aquele cujos pecados são remitidos deve ser visto naquela situação, porque a remissão causa a remoção da punição, porém não significa que Deus determina que o pecador está livre de toda delinquência, tem cumprido todas as partes de seu dever e é justo (o que seria contrário à verdade - como se o culpado devesse ser estimado justo só porque o juiz o perdoou: um suplicante e confessor). XXIX. Deus não pode ser acusado de demandar um duplo pagamento da mesma dívida porque, visto que a lei obriga os pecadores à obediência e a cas­ tigos (como há pouco se declarou), as ações e os sofrimentos de Cristo não constituem um duplo pagamento, mas somente uma única justiça (dikaiõma ) singular pela qual se adquiriu para nós libertação da morte e o direito à vida. XXX. Não se pode dizer que a lei tem sido cumprida sumariamente (kat ’ epitomêrí) no sofrimento voluntário de Cristo. Ela exige obediência perfeita, não só sumariamente (kat ’ epitomêrí), mas também quanto a cada particular (k a th ' hekasta); não só quanto ao grau e intensidade, mas também quanto à duração e extensivamente - do início ao fim da vida, o que não pode ser consu­ mado numa ou noutra ação. XXXI. Tão longe está a justiça geral de Cristo (que nos é imputada) de ser bem situada em seus sofrimentos (e por esta razão sendo corretamente chama­ da ativa), que nenhuma justiça deve ser posta propriamente no sofrimento, mas somente na ação. Nem pode alguém ser chamado justo porque sofre, visto que a dor não é uma virtude. Além disso, os sofrimentos não rendem obediência àqueles mandamentos da lei aos quais está anexa a promessa de vida, mas ape­ nas satisfazem suas sanções. Daí não poderem ser chamados justiça. Se há algu­ ma justiça no castigo, então ela é a justiça do algoz, não daquele que é punido. XXXII. Em muitas partes de suas obras, Calvino ensina a opinião aceita, especialmente no que segue: “Quando se indaga como, uma vez removido o pecado, Cristo removeu a inimizade entre nós e Deus e adquiriu uma justiça

que o fez favorável a nós e nosso amigo, é possível responder de modo geral que ele fez isso ao longo de todo o curso de sua obediência. Isto se prova pelo testemunho de Paulo: ‘Como pela transgressão de um, muitos se tomaram pe­ cadores, assim pela obediência de um, muitos se tomaram justos’. E de fato, cm outro lugar ele estende a causa do perdão, a qual nos livra da maldição da lei a toda a vida de Cristo: ‘Quando veio a plenitude do tempo, Deus enviou seu Filho, nascido sob a lei, para redimir aqueles que estavam sob a lei.’ E assim ele declara que mesmo em seu batismo Cristo cumpriu uma parte desta justiça, porque ele obedientemente cumpriu o mandamento de seu Pai. Final­ mente, desde o tempo em que ‘ele tomou sobre si a forma de servo’, começou a pagar o preço da libertação a fim de nos redimir. Não obstante, para que a Escritura defina mais precisamente o modo de salvação, ela atribui isto à mor­ te de Cristo como próprio e peculiar a esta” (ICR, 2.16.5, p. 507). Mais adiante ele acrescenta: “Nem mesmo se exclui a parte restante de sua obediência, a qual ele realizou durante sua vida, como Paulo compreende bem, desde o prin­ cípio até o fim de sua vida, quando diz que ‘ele a si mesmo se humilhou e tomou sobre si a forma de servo, e foi obediente a seu Pai até a morte, sim, morte de cruz’. E de fato sua sujeição voluntária ocupa o primeiro grau em sua morte também, porque um sacrifício de nada valeria a menos que fosse ofere­ cido livremente” (ICR, 2.16.5, p. 508). “Respondo que aceitar a graça nada mais é do que aceitar sua bondade gratuita pela qual o Pai nos abraça em Cristo, nos veste com sua inocência e nos leva a aceitá-la, para que por isso mesmo ele nos estimasse como santos, puros e inocentes. Pois cabe à justiça de Cristo, a qual, como a única perfeita, bem como a única que pode permane­ cer na presença de Deus, ser apresentada por nós e ser lançada em nossa conta no juízo como oferecida por nosso Fiador. Munidos disto, nós, mediante a fé, obtemos perpétua remissão de pecado. Por meio de sua pureza, nossas mazelas e manchas de imperfeição são lavadas. Elas não nos são imputadas, mas, como que sepultadas, ocultam-se da vista, não se apresentarão contra nós em juízo” (ICR, 3.14.12, p. 779). Ele confirma a mesma coisa comentando a Epístola aos Romanos e a Epístola aos Gálatas ( The Epistles o f Paul ...to the Romans [trans. R. Mackenzie, 1961], p. 118 sobre Rm 5.19; e The Epistles o f P a u l... to the Galatians [trad. T. H. L. Parker, 1965], pp. 73,74 sobre G1 4.4). XXXIII. Os sínodos franceses têm declarado reiteradamente que a mesma verdade deve ser mantida inviolável, como fez o Privatensiano (no ano de 1612) e o Tonneinsiano (no ano de 1614), cujas palavras são: “Visto que o homem não pode achar em si mesmo, nem antes nem depois de seu chamamento, nenhuma justiça pela qual possa permanecer diante do tribunal de Deus, ele não pode ser justificado exceto em nosso Senhor Jesus Cristo, o qual foi obediente a Deus o Pai, desde seu ingresso no mundo até sua ignominiosa morte na cruz: em sua vida e em sua morte, toda a lei dada ao homem sendo perfeitamente cumprida, bem como o mandamento para sofrer e de dar sua vida como preço de reden­ ção por muitos; por esta obediência perfeita somos feitos justos, visto que a

graça de Deus nos é imputada e é recebida pela fé, a qual ele nos deu; por isso nos é assegurado que, pelo mérito de toda esta obediência, temos a remissão de nossos pecados e somos feitos dignos da vida eterna” (cf. Quick, Synodicon irt Gallia Reformata [ 1692], p. 401). D

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Cristo morreu em favor de cada um e de todos os homens, universalmente, ou somente pelos eleitos? Negamos a primeira hipótese e afirmamos a segunda.

I. A questão acerca do objeto da morte de Cristo ou da universalidade da satisfação e redenção foi (e ainda é) agitada por várias pessoas. Isto nos impõe a necessidade de discuti-la também, a fim de que nada pareça estar faltando neste tratado acerca da satisfação de Cristo. ^ ntre os ant>g°s>transparece que a universalidade da redenção foi disputada pelos pelagianos e semipelagianos. Daí * Prosper (acerca dos resquícios da heresia pelagiana) “Esta é sua definição c confissão: que Cristo morreu por toda a raça humana e que ninguém foi excluído da redenção oferecida por seu sangue” (Letter to Augustine 6 [ACW 32:43; PL 33.1005]). E entre os erros detestáveis que se vangloriavam de haver encontrado em Agostinho estava também este: “O Salva­ dor não foi crucificado pela redenção do mundo inteiro”. Faustus (Rhegiensis) diz: “Afasta-se para longe da vereda da piedade quem afirma que o Salvador não morreu por todos” (D e Gratia Dei et Libero Arbítrio 1.4 [PL 58.789]). E Hincmar o enumera como um dos erros de Gottschalk, o qual proclamava que Cristo não derramou seu precioso sangue a Deus o Pai para a redenção e salvação de todos os homens, mas somente por aqueles que são salvos, ou por todos os elei­ tos (cf. Flodoard, H istoriae Ecclesiae Rememis 3.15* [PL 135.180,181]). Vi­ sando o mesmo propósito são os anátemas do pretenso Concílio de Aries, regis­ trados na carta de Faustus, o mentor do concílio semipelagiano. Mas, como Agos­ tinho em seu tempo se opôs a estes, assim fez Prosper e Fulgentius (seus discípu­ los) e outros pregadores da graça de Cristo (seguindo seus passos) que defende­ ram a verdade brava e sinceramente. O mesmo foi mais tarde confirmado por Remigius, bispo de Lião (De Tribus Epistolis Liber [PL 121.985.1068])eoconcílio valentiniano III reunido no ano de 855 (Canon 4, Mansi, 15.5).

A opinião dos pelagian os

^ mesrna controvérsia foi mais tarde renovada entre os ' romanistas, dentre os quais alguns defendiam a universalida­ de da redenção (com os semipelagianos); outros, sua particularidade (com Agos­ tinho e seus genuínos discípulos). Esta controvérsia se situa principalmente entre os jesuítas e os jansenistas, dos quais os primeiros (um rebento dos pela­ gianos) disputam ardorosamente em prol da universalidade da morte de Cris­ to; enquanto os últimos, com grande firmeza, defendem sua particularidade, seguindo seu fundador, Jansen, o qual defendeu este tema amplamente e com

Dos jesu íta s

grande solidez em seus escritos, Augustinus (“De Gratia Christi Salvatoris”, 3.20 [1640/1964], pp. 369-80) e A pologia Jansenii, publicada em 1644, Art. 17,19,20+ , e no Catechismo de Gratia, c. 7, de Predesti. q. 65+. ^ ^ controvérsia passou então dos romanistas para os pro­ testantes, não só por causa dos luteranos, os quais com os jesuítas retêm a crença numa satisfação universal e contendem por ela (como Eckhard, Fasciculus controversiarum Theologicarum 15.6 [1631], pp. 322­ 333; Brochmand, “De Gratia Dei”, 2, Q. 17,18,19 em Universae theologicae system a [1638], 1:595-597 e outros); mas principalmente por causa dos armi­ nianos (conhecidos pela alcunha de remonstrantes), os quais, por lembrar o papado indiretamente e disputar em prol do ídolo do livre-arbítrio, extraíram muitos de seus erros de Molinus, Lessius, Suarez e outros jesuítas. Isto está entre os pontos que restam sobre a universalidade da morte de Cristo, e está colocado entre os que foram rejeitados e condenados pelo Sínodo de Dort, como se pode ver no segundo capítulo da sua “Rejection of errors concerning the Death of Christ” (Acta Synodi N ationalis... Dordrechti [1619-1620], 2:139). Dos luteranos

® art'6° em seu protesto contra o Sínodo de Dort é este: “O preço da redenção que Cristo ofereceu a seu Pai foi não só em si e por si só suficiente para a redenção de toda a raça humana; mas foi inclusive pago em favor de todos os homens e de cada homem pelo decreto, pela vontade e pela graça de Deus o Pai; e por isso ninguém é particu­ larmente excluído, por um decreto antecedente de Deus, de uma participação dos frutos da morte de Cristo. 2. Cristo, pelo mérito de sua morte, de tal modo reconciliou toda a raça humana com Deus o Pai que o Pai, em virtude de seu mérito, sua justiça e sua verdade sendo preservadas, pode entrar e quer entrar numa nova aliança de graça com os homens pecadores expostos à condenação, dispondo-se a sancioná-la” (Acta Synodi N ationalis... Dordrechti [1619-1620], 1:129). Portanto afirmam (I) que Cristo, pelo conselho de Deus, de tal modo morreu em favor de cada um e de todos, que sua morte não só é suficiente em si mesma em virtude de seu próprio valor intrínseco, mas foi também oferecida suficientemente em favor de todos e de cada um, porque Deus quis que o que era em si suficiente para todos fosse pago ou em lugar ou para o bem de cada um e de todos (ou de toda a raça humana), de modo que sua intervenção faz com que Deus mais tarde quisesse tratar toda a raça humana graciosamente, e daí sucede que a morte de Cristo foi, não uma promessa da nova aliança, mas sua causa e seu fundamento. (2) Que Cristo, por sua própria intenção e a de seu Pai, obteve uma restituição no estado de graça e salvação em favor de todos os homens e de cada homem (os ignorados e igualmente os que são salvos), de modo que ninguém (em virtude do pecado original) é passível de condenação ou será condenado, mas todos estão livres da culpa daquele pecado. (3) Que Cristo, segundo o conselho de seu Pai, sujeitou-se à morte por todos sem um desígnio certo e definido de salvar alguém em particular. Assim a necessidade

Dos arm inianos.

e a utilidade da expiação feita pela morte de Cristo podem ser, em todos os aspectos, preservadas, mesmo que a redenção adquirida jamais seja realmente aplicada a qualquer indivíduo. (4) Que Cristo, por sua satisfação, por ninguém mereceu a salvação e a fé com tal certeza que a satisfação deva ser aplicada a eles eficazmente para a salvação, mas meramente adquiriu, quanto ao Pai, uma vontade e um poder plenários para tratar de novo com os homens, entrar em aliança ou de graça ou de obras, e prescrever quaisquer condições que porven­ tura escolha. A realização disto depende inteiramente do livre-arbítrio do ho­ mem, e por isso poderia suceder que ou todos ou ninguém as cumprisse. (5) Que a aquisição se estende para além da aplicação (como a salvação foi obtida por todos, a qual é aplicada a uns poucos). Tudo isso pode ser deduzido da coleção publicada no Hague (Collatio scripto habita H agae [Hague] Comitis [1615] e do Protesto [“Remonstrance”] contra o Sínodo de Dort (na declara­ ção de sua opinião acerca do segundo artigo). Aqueles dentre nossos ministros que defendem a gra­ ça universal rendem-se a esta opinião, se não inteira­ mente, pelo menos em grande medida. Pois como afirmam uma universal fi­ lantropia (j)hilanthrõpian) e amor de Deus para com a raça humana, assim crêem que Cristo foi enviado pelo Pai ao mundo por esse amor (como um remédio universal para granjear a salvação para cada um e para todos sob a condição de fé); e que Cristo, com essa intenção, morreu por todos sob a mes­ ma condição (embora o fruto e a eficácia de sua morte sejam desfrutados so­ mente por uns poucos, aos quais Deus, por um decreto especial, determinou dar a fé). E assim ensinam que o decreto da morte de Cristo precedeu ao decre­ to da eleição, e que Deus, ao enviar Cristo, não considerou alguns acima dos demais, porém designou Cristo como o Salvador igualmente de todos; sim. que ele não pretendia absolutamente tanto a salvação nele quanto a possibili­ dade de salvação (ou seja, a remoção dos impedimentos que a justiça opôs à sua salvação) por meio de uma satisfação feita a ele, e assim abriu a porta da salvação, para que Deus (uma vez apaziguado) fizesse uma nova aliança com eles cm consonância com as reivindicações de sua justiça, e pensasse em darlhes salvação. Para este fim ele providenciou um chamado universal, para que Cristo, assim dado e assim morrendo por todos, fosse oferecido a cada um e a todos. Mas, visto que ele previu que ninguém creria (em virtude da depravação inata do coração), eles afirmam que Deus (por algum decreto especial) deter­ minou dar fé a alguns pela qual pudessem crer em Cristo e com certeza vies­ sem a ser participantes da salvação, sendo o resto deixado na incredulidade e por esta causa sendo com toda justiça condenados. Nisto diferem corretamente dos arminianos. Tudo isso pode ser claramente deduzido de seus escritos. E assim diz Cameron: “A morte de Cristo pertence, sob a condição de fé, igual­ mente a todos os homens” (O pera [1659], p. 389 sobre Hb 2.9). Testard afir­ ma: “O desígnio de dar Cristo para uma propiciação em seu sangue era o de fazer uma nova aliança com toda a raça humana e o possível chamado à salvaDos universalistas

çâo e a salvação de todos os homens, a justiça não mais resistindo” (Eirenikon seu Synopsis D octrinae de Nature et Gratia, Th. 77* [1633], p. 54). E: “Neste sentido, de fato ninguém pode negar que Cristo morreu em favor de cada um e de todos, para que sua fé permanecesse na Palavra de Deus” (Th. 79, ibid., p. 56). Amyrald afirma: “A redenção de Cristo deve ser considerada por dois prismas: ou como absoluta, visto que alguns realmente a abraçam; e também como afetada por uma condição, visto que é oferecida nestes termos - que, se alguém a abraçar, ele se fará participante dela. Conforme o primeiro modo, ela é particular; conforme o segundo, universal. De igual modo, sua destinação é dupla: particular, porque tem ligado a ela um decreto para dádiva da fé; univer­ sal, porque esse decreto é separado dela” (“Doctrinae de gratia universali”, em Mosis Am yradi ... D issertationes Theologicae Quatuor [1645], pp. 37,38). Anteriormente ele já havia ensinado isto mais expressamente: “Visto que a miséria do homem é igual e universal, e o desejo que Deus tem de livrá-lo dela por tão grande Redentor procede da misericórdia que ele tem para conosco como suas próprias criaturas decaídas a uma tão grande ruína, na qual suas criaturas igualmente jazem, a graça da redenção, a qual ele granjeou para nós e no-la oferece, deve ser igual e universal, contanto que estejamos igualmente dispostos a recebê-la” (B riefTraitte de la Predestination 7 [1634], p. 77). VII. Se bem que todos concordam que Cristo morreu em favor de todos e de cada um, contudo não explicam seu significado da mesma maneira. Pois alguns afirmam que Cristo morreu condicionalmente em favor de todos e de cada um, e absolutamente só pelos eleitos (como transparece dos extratos su­ pra). Outros, contudo, vendo os grandes absurdos que permeiam este ponto de vista, se abstêm dessa fornia de expressão e preferem dizer que Cristo não morreu pelos homens sob a condição de que creiam, mas absolutamente, quer creiam quer não. E assim o acesso â salvação pode ser livre para todos os que crerem e a via para a nova aliança pode estar igualmente aberta para todos (evidentemente tendo sido removido, pela morte de Cristo, o obstáculo da jus­ tiça, um obstáculo que impedia Deus de reconciliar-se com os homens). Não obstante, todos chegam ao mesmo ponto quando dizem que Cristo prestou satisfação em favor de todos e de cada um e que obteve a reconciliação, a remissão de pecados e a salvação para eles; bênçãos das quais (se muitos são privados) a causa não deve ser buscada na insuficiência da morte de Cristo, ou num defeito de sua vontade e intenção, mas tão-somente na incredulidade dos que perversamente rejeitam a graça de Cristo oferecida. VIII. Mas a opinião comum dos reformados é que Cristo (com base no puro beneplácito [eudokia] do Pai) foi designado e dado como Redentor e cabeça, não a todos os homens, mas a um determinado número de seres huma­ nos. Pela eleição divina, estes compõem seu corpo místico. Tão-somente por estes, Cristo (perfeitamente ligado a seu chamado), a fim de cumprir o decreto de eleição e o conselho do Pai, se dispôs e determinou morrer; e também acres­

centar ao preço infinito de sua morte uma intenção mui eficaz e especial de ser seu substituto e adquirir-lhes fé e salvação. se deduz facilmente a questão. (1) Não se indaga com resPe*t0 30 valor e à suficiência da morte de Cristo se era em si mesma suficiente para a salvação de todos os homens. Porquanto todos confessam que, já que seu valor é infinito, ela teria sido inteiramente suficiente para a redenção de cada um e de todos, se Deus considerasse próprio estendê-la ao mundo inteiro. E aqui se encaixa a distin­ ção usada pelos pais e retida por muitos doutores —que Cristo “morreu sufici­ entemente por todos, porém eficientemente somente pelos eleitos”. Pois isto sendo inferido da dignidade da morte de Cristo, é perfeitamente veraz (embora a frase seja menos acurada se for uma referência à vontade e ao propósito de Cristo). Mas a questão propriamente diz respeito ao propósito do Pai de entre­ gar seu próprio Filho e a intenção de Cristo de morrer. O Pai designou seu Filho para cada um e para todos, e o Filho se rendeu à morte com o desígnio e a intenção de ser o substituto de cada um e de todos para fazer satisfação e adquirir salvação para os mesmos? Ou ele resolveu entregar-se somente pelos eleitos, os quais lhe foram dados pelo Pai para que sejam redimidos, e dos quais ele viria a ser a cabeça? Portanto, a questão gira sobre isto - não qual é a natureza e o poder da morte de Cristo em si mesma, mas qual foi o propósito do Pai em designá-lo e a intenção de Cristo de suportá-la. Daí ser suficiente­ mente evidente que aqui não se trata unicamente da vontade (euarestias ) reve­ lada de Deus, mas de sua vontade (eudokias ) secreta sob a qual se encaixam a morte e a missão de Cristo (como todos deveriam concordar). X. (2) A questão não diz respeito aos frutos e à eficácia da morte de Cristo - se cada um e todos serão realmente feitos participantes destes. Puccius (cf. De fid e natura hominibus universa im ita [1577]) e Huberus (cf. Christum esse mortuum p ro peccatis omnium hominum [ 1590]) outrora defendiam este ponto de vista. Nossos oponentes reconhecem que estes devem estender-se somente aos crentes. Antes, a questão tem a ver com o desígnio de Deus de enviar seu Filho ao mundo e com o propósito de Cristo em sua morte. Estes [desígnio e propósito] foram tais que Cristo, por se fazer substituto de todos e de cada um, prestou satisfação e obteve a remissão do pecado e a salvação em favor deles todos, ou somente pelos eleitos? Eles afirmam a primeira parte; nós, porém, afirmamos a segunda. XI. (3) Não inquirimos se a morte de Cristo dá ocasião à comunicação de muitas bênçãos até para os réprobos. Pois se deve à morte de Cristo que o evangelho é pregado a toda criatura, que a idolatria grosseira dos pagãos foi abolida em muitas partes do mundo, que a terrível impiedade dos homens é grandemente restringida pela Palavra de Deus, e que alguns às vezes obtêm muitos e excelentes (ainda que não salvíficos) dons do Espírito Santo. Todos estes inquestionavelmente fluem da morte de Cristo, visto que não haveria E stabelecim ento da questão

para eles nenhum lugar na igreja, a menos que Cristo morresse. Antes, a ques­ tão é se a fiança e satisfação de Cristo se destinavam (pelo conselho de Deus e pela vontade do próprio Cristo) a cada um e a todos (como afirmam); ou tãosomente aos eleitos (como afirmamos). Prova de que XII. As razões são: (1) a missão e a morte de Cristo são resCristo não tritas a certo grupo - a “seu povo”, “suas ovelhas”, “seus m orreu p o r amigos”, “sua igreja”, “seu corpo” - e nunca se estende a todos' (1) com todos os homens individual e coletivamente. Assim Cristo base na chamado Jesus, porque ele salvará o seu povo dos pecarestrição de dos deles” (Mt 1.21). Em outros textos ele é chamado “o sua m orte a Salvador de seu corpo” (Ef 5.23), “o bom Pastor [que] dá a certo gru po v’da Pe*as ovelhas” (Jo 10.[ 11 ] 15) e “em favor dos seus ami­ * gos” (Jo 15.13). Lemos que ele morreu “para reunir em um só corpo os filhos de Deus, que se andam dispersos” (Jo 11.52) e adquirir a igreja “com o seu próprio sangue” (At 20.28; Ef 5.25,26). Ora, se Cristo mor­ reu em favor de todos e de cada um, por que as Escrituras tão frequentemente restringem sua morte a uns poucos? Como é possível dizer que ele é o Salva­ dor de seu povo e de seu corpo simplesmente, se ele é o Salvador igualmente dc todos? Como é possível dizer que ele deu sua vida por suas ovelhas, pelos filhos de Deus e pela igreja, se (pelo conselho de Deus e pela intenção do próprio Cristo) ele morreu igualmente por todos? Seria esta uma prova maior de seu amor e um fundamento para uma consolação mais forte? XIII. São vãs as objeções que aqui se apresentam, em geral: (1) “Que a Escritura, que em alguns lugares restringe a morte de Cristo a uns poucos, em outras partes a estende a todos”. Que a universalidade (como se mostrará mais adiante) não é absoluta, mas limitada; a universalidade respeita as classes de indivíduos, não os indivíduos das classes. (2) “Que naquelas passagens não se faz referência somente à aquisição, a qual, considerada separadamente, é uni­ versal, porém à aplicação que é particular.” Aqueles títulos que a Santa Escritu­ ra usa nos textos supracitados (tais como “o Salvador”, “deu sua vida por al­ guns”, “dar-se por alguns” e salvar [peripoein] alguns) denotam propriamente a satisfação, a efetuação e a aquisição da salvação. Embora os atribuam à aplicação, [tais textos] não são menos eficazes, visto que a aquisição e a apli­ cação são inseparáveis como sendo da mesma extensão (como se provará em seguida). (3) “Que ao mesmo tempo é possível dizer que Cristo morreu por alguns absolutamente, e por todos condicionalmente”. Isso toma por admitido o que tem de ser provado - que houve uma dupla intenção na morte de Cristo: uma condicional, a qual se estendia a todos; a outra absoluta, a qual se restrin­ gia a uns poucos. A Escritura nunca menciona isto, porém fala da aplicação como condicional, contudo nunca da redenção. Nem a natureza da coisa admi­ tiria isto, já que (em sua hipótese) não havia ainda nenhuma consideração dos eleitos no decreto concernente à morte de Cristo, segundo a qual ele morreu (deveras com a mesma intenção com que o decreto foi emitido, visto que a

execução deve corresponder à destinação; nem podia haver qualquer outra afeição e intenção em Cristo que morre além da que havia no Pai que destina). Eles afirmam que os eleitos foram separados dos demais por um decreto poste­ rior. Novamente, quem pode crer que no ato realmente simples [não compos­ to] pelo qual Deus decretou todas as coisas (ainda que tenhamos de concebê-lo por partes), havia duas intenções tão diversas (para não dizer contrárias) que de um modo Cristo morreria por todos c de outro somente por alguns? Pior ainda, visto que Cristo não podia querer morrer absolutamente pelos eleitos sem envolver (pela lei dos contrários) o querer não morrer pelos réprobos, não se pode conceber como em um só ato ele quereria, respectivamente, morrer pelos réprobos e não morrer por eles. (4) “Embora estas passagens falem dos eleitos, contudo não devem ser entendidas sobre eles à exclusão de todos os demais; como quando Paulo diz que Cristo foi entregue por ele, com isso não exclui outros de uma comunhão no mesmo amor (G1 2.20)”. Todas as passa­ gens evocadas, se não explicitamente, contudo implicitamente, inclui uma ex­ clusão na descrição daqueles por quem Cristo morreu (o que não pode perten­ cer a outros). Embora a bênção seja prometida à semente de Abraão (sem adi­ cionar a partícula “exclusivo”), contudo isto pode inferir-se suficientemente da natureza da coisa. Assim todas estas passagens se inclinam para o mesmo ponto - ampliar o extraordinário amor de Cristo por suas ovelhas, pelas quais ele se entregou até a morte. Mas se elas não têm nada de peculiar neste caso acima de outras, que razão se pode dar pela qual aquele imenso amor de Cristo (que dá sua vida, derrama seu sangue e se entrega) seria aplicado especialmen­ te a eles? Tampouco se aplica aqui o exemplo de Paulo. Ele não fala disto como um privilégio peculiar a si mesmo, mas como um comum a si mesmo e aos demais eleitos ou pessoas crentes a quem ele se apresenta como um exem­ plo para que apliquem a mesma coisa acerca de si mesmos no mesmo estado. XIV. Nem mais sólida é a objeção em particular: (1) contra Mateus 1.21 — “Embora Cristo seja chamado o Salvador de seu povo num sentido particular, em virtude de a salvação lhes ser fatual e realmente outorgada, contudo não há razão para ele não ser o Salvador também de outros, porquanto obteve salvação para eles, apesar de que, em razão de sua descrença, nunca se farão participan­ tes dela; de igual modo Paulo afirma: ‘Deus é o Salvador de todos os homens, mas especialmente dos que crêem’, lTm 4.10)”. E infundado dizer que Cristo é o Salvador daqueles por quem a salvação é deveras adquirida, porém a quem ela jamais será aplicada. Inclusive a própria palavra “salvar” denota a comuni­ cação real da salvação, em Cristo Jesus, não só porque ele está disposto e é capaz de salvar, e porque ele remove todos os obstáculos da via de salvação, mas porque ele real e fatualmente salva seu povo, não só adquirindo por seu mérito salvação para eles, mas também aplicando-a eficazmente a eles, que era a intenção de Deus ao enviar Cristo e o objetivo de sua missão (como o anjo claramente notifica pela imposição do nome Jesus). Nem a passagem de Paulo prova o contrário (lTm 4.10). Ali a palavra Salvador (sõíêr), que na última

frase é tomada estrita e propriamente em relação aos crentes (como denotada pela palavra “especialmente” [malista]), na primeira frase é tomada em seu sentido mais amplo de “preservador” - “nele vivemos e nos movemos e temos nosso ser” (At 17.28); como no salmo 36.6 (passagem evocada por Paulo), lemos que Deus sõzein - “preserva os homens e os animais”. Daí dizerem Cri­ sóstomo, Oecumenius, Primasius e Ambrósio: “No presente ele é o Salvador de todos” (i.e., no que diz respeito à presente vida), mas somente dos crentes “no futuro” e no tocante à vida eterna; cf. Tomás de Aquino sobre esta passagem “que é o Salvador da vida presente e futura, porque ele salva a todos com salva­ ção física, e assim ele é chamado o Salvador de todos os homens. Ele salva também com salvação espiritual no tocante aos bons, e daí ser chamado o Sal­ vador especialmente daqueles que crêem” (Angelici D octoris Divi Thom ae ... Commentaria in Epistolas omnes D. Pauli, II/V [ 1856], p. 34 sobre 1Tm 4.10). XV. (2) No tocante à passagem de João 10.15, não se deve objetar dizendo que “as ovelhas pelas quais ele deu sua vida não eram somente os eleitos”. Pois a passagem claramente ensina que ela não pode aplicar-se a ninguém mais além dos eleitos. Cristo está falando das ovelhas que ouvem sua voz e o seguem, às quais ele conhece e ama ternamente, com as quais ele deveria for­ mar um só rebanho sob um só Pastor (vs. 15,16), às quais ele daria a vida eterna e ninguém as arrebataria de suas mãos. Não se pode dizer isto de outros além dos eleitos, os quais são chamados ovelhas, tanto antecedentemente (em virtu­ de dc sua eterna destinação à vida) como consequentemente (em virtude de seu chamado no tempo). Não se pode objetar dizendo “que ele deu sua vida por suas ovelhas, porque somente elas se beneficiam dos frutos de sua morte, en­ quanto esta é de nenhum proveito para os demais em virtude de sua increduli­ dade. E assim morrer por alguns significa morrer com esta intenção: para que sejam favorecidos, o que só é verdadeiro com respeito às ovelhas”. A frase “dar a vida por alguns” não pode referir-se à apreensão dos frutos da morte de Cristo mais do que quando lemos que ele deu-se a si mesmo em resgate (antilytrori) por todos (o que se estende a cada um e a todos). Não há razão por que o primeiro deva referir-se à intenção e ao efeito ao mesmo tempo, mas o segun­ do se restrinja unicamente à intenção e ao desejo de assistir. Tampouco se pode conceber que diferença há entre os dois. Pois aquele que quer morrer por al­ guém para que dele se beneficie, quer pelo mesmo fato que na realidade não se beneficie dele. Ele na realidade quer que o tal se beneficie dele, caso possa, do contrário seria preciso dar uma razão para Cristo obter o que pretendia para suas ovelhas, porém falhar cm sua intenção no que diz respeito ao resto. Ou “para que ele pudesse não morrer por suas ovelhas como tais, porque nesse caso elas teriam sido suas ovelhas antes de ele morrer por elas e de as adquirir para si. Daí ele deu sua vida por elas meramente como pecadores, sendo que caráter lhes pertence em comum com outras pessoas, e que por isso ele teria que dar sua vida também por outras”. Embora não fossem ainda realmente suas ovelhas, contudo já o eram por destinação. Foram dadas a Cristo para

serem redimidas e adquiridas por ele como o Bom Pastor, o qual as redimiria com seu próprio sangue; por isso foram dadas a Cristo pelo decreto de Deus, porquanto estavam em suas mãos (Jo 17.24). Mais que isso, a própria missão de Cristo estava fundamentada neste dom: “E a vontade de quem me enviou é esta”, diz ele: “que nenhum eu perca de todos os que me deu; pelo contrário, eu o ressuscitarei no último dia” (Jo 6.39). Aliás, a menos que um número fixo daqueles que seriam salvos fosse contemplado por Deus quando determinou enviar a Cristo, o efeito de sua morte teria sido incerto, e todo o mistério da redenção viria a ser totalmente infrutífero pela perversa obstinação do homem. XVI. (3) A objeção contra Efésios 5.25 e Tito 2.14 não é válida - “que, embora esteja escrito que Cristo se entregou por seu povo e por sua igreja, contudo não deve restringir-se somente a ela, com a inferência de que ele não se deu por nenhum outro”. Notifica-se uma exclusão com suficiente clareza medi­ ante as próprias palavras e a natureza da coisa, (a) Pois tal entrega está implí­ cita como oriunda do amor de Cristo por sua igreja, como seu esposo; mas tal amor necessariamente inclui uma exclusão. E assim, quando Paulo diz no versí­ culo precedente: “Maridos, amai vossas esposas”, embora não esteja expressa uma exclusão, ela está suficientemente implícita. Quem ouviria sem indignação o adúltero sair em defesa de seu c rim e -“de fãto lemos: ‘Maridos, amai vossas esposas’, porém não está escrito: amai somente essas”? (b) Essa auto-doação está aqui implícita quando tem por seu fim a santificação de sua igreja e sua salvação (i.e., a aplicação com a aquisição). Isto claramente não pertence a ninguém mais senão aos eleitos e tão-somente à igreja. E visto que ele não se entregou por nada mais senão para este fim, então é possível lermos que ele não se entregou por nada mais senão para a obtenção desse fim. XVII. (4) Fútil é a objeção lançada contra Mateus 20.28; 26.28 e Hebreus 9.28 - que “muitos aqui não se opõe a todos, mas a um, ou a uns poucos” (como se fãz em Rm 5.19 e em Dn 12.2*), e que “muitos às vezes é expresso por todos”. Os muitos tratados aqui são descritos por tais marcas que não po­ dem ser comuns a todos e a cada um: que ele se deu como resgate por muitos (lytron anti pollõn), e em lugar de muitos, por uma substituição real; que ele derramou seu sangue por muitos para a remissão de pecados; que ele se ofere­ ceu para carregar os pecados de muitos (eis to pollõn anenenkein hamartias), para a abolição real do pecado. Se muitos às vezes se opõe a um e a uns poucos (sim, c também é usado no sentido de todos), nem por isso é necessário enten­ dê-lo assim em outros textos. Mais ainda, às vezes é de tal modo estendido a tantos que chega a ser uma negação de todos. Daí Jerônimo dizer: “Ele não diz que deu sua vida por todos, mas por muitos, isto é, por todos aqueles que viriam a crer” (Commentariorum in Evangelium Matthaei [PL 26.150] sobre Mt 20.28) - os quais não são outros senão os eleitos, em quem Deus opera tanto o querer quanto o realizar. A glosa interlinear acrescenta “por muitos, não por todos, mas por aqueles que foram predestinados para a vida” (cf Bí­ blia sacra cum glossa ordinaria [1617], 5:339 sobre Mt 20.28).

XVIII. Segundo, Cristo não foi dado e não m nhum outro senão por aqueles que lhe foram dados pelo Pai. Não obstante, não foram dados todos os homens, uni­ versalmente, a Cristo, mas somente alguns. Portanto, a ver­ dade do maior não pode ser questionada. Pois, visto que no desígnio do Pai (segundo o qual Cristo morreria e realmen­ te morreu) Cristo foi não só designado como Redentor, mas também foi desig­ nado para aqueles por cuja redenção e salvação ele tinha de morrer. É evidente que ele não podia morrer por nenhum outro além daqueles que neste sentido lhe foram dados. Daí ser possível observar uma dupla doação: uma, de Cristo aos homens; a outra, dos homens a Cristo. Este foi dado aos homens com o propósito de salvá-los, e os homens foram dados a Cristo para que, por inter­ médio dele, fossem salvos. O primeiro caso é extraído de Isaías 9.6 e 49.6, e de todas as passagens em que lemos que Cristo foi enviado e foi dado por nós. O segundo é extraído de outras em que se faz menção dos que foram dados a Cristo (como em Jo 17.2,6,12; 6.37). Não obstante, visto que esta dupla doa­ ção é recíproca, cada uma das partes deve também ser da mesma extensão, de modo que Cristo não é dado em favor de ninguém mais senão por aqueles que lhe são dados, e são dados a Cristo todos aqueles em favor de quem ele é dado. Mas as Escrituras em muitos passos asseveram que nem todos os homens, mas somente alguns homens, lhe foram dados (o que se pressupõe no menor), quando elas os distinguem dos demais homens: “a fim de que ele conceda a vida eterna a todos os que lhe deste” (Jo 17.2); e “Manifestei teu nome aos homens que me deste do mundo. Eram teus, tu mos confiaste, e eles têm guardado tua palavra” (v. 6); quando os designa por “seu povo, a quem de antemão conheceu” (Rm 11.2); herdeiros e filhos da promessa (Rm 9.8); a semente de Abraão, não carnal, mas espiritual, tanto dentre os judeus como dentre os gentios (Rm 4.13; G1 3.8,16; Hb 2.16); seu povo e corpo ou a igreja de Cristo (Mt 1.21; Ef 5.23); vasos de misericórdia de antemão preparados para glória (Rm 9.23,24); esco­ lhidos nele e predestinados para a adoção e para conformidade com sua ima­ gem (Rm 8.30; Ef 1.4,5); e a posteridade do segundo Adão, todos quantos hão de ser vivificados em Cristo, em oposição à posteridade do primeiro Adão, em quem todos morrem (ICo 15.22,23). Com base em todas estas passagens, é evidente que o objeto da doação de Cristo restringe-se a um número tão limita­ do que não pode estender-se a todos e a cada um. XIX. Não leva a nada replicarem que “a doação de Cristo era condicional, não absoluta; que a lei e a condição eram que os homens receberiam pela fé o benefício que lhes era oferecido, e visto que isto não é feito pela parte maior, não surpreende que não derivem nenhuma vantagem dela”. Pressupõe-se gratuita­ mente que houve tal doação condicional, visto que a Escritura em parte alguma menciona esta condição. Pois embora se proponha fé como um meio e uma condição necessários para o recebimento e o desfruto deste benefício, contudo não se segue que ele fosse uma condição para doar Cristo (já que ela é em si 2. Com base na restrição de sua m orte aos que lhe fo ra m dados pelo Pai.

mesma um dom da graça e um fruto desta doação). Além do mais, se a doação de Cristo estivesse fundamentada em alguma condição, ou ela dependeria do homem ou de Deus. O primeiro termo só poderia ser dito por um pelagiano. Caso se assevere o segundo, então chegamos a isto - que Cristo nos foi dado por Deus no papel de Salvador sob esta condição: que ele no-lo daria pela produção da fé ou sob a condição da fé (fé esta, contudo, que o único que é capaz de dála não a dará - um chocante absurdo). XX. Nosso ponto de vista é ainda mais confirmado pela ligação da dupla relação (scheséõs ) que Cristo mantém conosco (qual seja, a relação de fiador e de cabeça). Ele é nosso fiador para que, ao prestar satisfação, nos adquirisse salvação. Ele não é dado como cabeça a todos os homens, mas somente a seus membros (i.e., aos eleitos, os quais se tomam participantes fatuais da salva­ ção). Ele não pode ser fiador ou despenseiro de nenhum outro senão destes, visto ser a mesma a razão para ambas as relações (scheseõs)\ nem deve haver uma extensão maior de uma sobre a outra. E possível provar a mesma coisa com base na ligação entre a morte e a ressurreição de Cristo, nas quais existe esta mesma dupla relação. Aliás, visto que ele morreu como fiador, então pode ressuscitar como cabeça. Não obstante, visto que há a mesma razão para sua morte e para sua ressurreição, não se pode dar nenhuma outra razão por que a primeira deva ser mais extensa do que a segunda. Daí Paulo colocar estas duas como sendo de igual eficácia (isodynamounta) e extensão: “Cristo morreu por nossos pecados e ressurgiu para nossa justificação” (Rm 4.25); “ele morreu por todos, para que os que vivem já não vivam para si, mas para aquele que morreu e ressurgiu por eles” (2Co 5.14,15). Não é possível dizer que ele mor­ reu por outros senão por aqueles por quem ressuscitou, porque ninguém se toma participante dos frutos da morte de Cristo exceto por meio de sua ressur­ reição. Ora, que ele não ressuscitou como cabeça (para conferir a todos a sal­ vação obtida por sua morte) é por si mesmo evidente. 3 n , XXI. verdade é_estabelecida 3. Com base na _ Terceiro, a_mesma _ . . _ . Jrpela . rela. rela •ão entre ^ao entre a satisfaçao e a intercessão de Cristo. Pois visto r . que são partes do mesmo ofício sacerdotal, também são da sua satisfaçao e ^ , . , mesma extensão. Ele so intercede por aqueles por quem sua intercessão. . c _ „ i< prestou satisfaçao; e nao presta satisfaçao por outros alem daqueles por quem intercede. A mesma coisa deve ser o objeto tanto de sua propiciação (hilasmou ) quanto de seu comparecimento à presença de Deus (emphanismou), como Paulo e João as entrelaçam indissoluvelmente (I Jo 2.1,2; Rm 8.34). Ora, Cristo mesmo declara expressamente que ele não intercede por todos, mas somente por aqueles que lhe foram dados pelo Pai: “Eu não oro pelo mundo, mas por aqueles que tu me deste” (Jo 17.9). Não obstante, visto que oferecer orações por alguém é muito mais fácil do que dar o sangue e a vida pelo mesmo, quem diria que ele morre por aqueles a quem nega suas orações? Ou que ele teria negado suas orações àqueles em favor de quem esta­ va para derramar seu sangue pouco antes de sua morte?

XXII. Tampouco se deve dizer aqui, com os remonstrantes, que “há uma dupla intercessão de Cristo, uma universal, a qual tem a ver com o mundo inteiro, sobre a qual Isaías fala (53.12), segundo a qual lemos que ele orou por seus perseguidores (Lc 23.34); e outra particular, a qual tem a ver com os crentes, e que se encontra em João 17 e Romanos 8”. Pressupõe-se gratuita­ mente que é possível admitir uma intercessão universal. Pois, como ele é sem­ pre ouvido pelo Pai (Jo 11.42), se intercedesse por todos, todos seriam real­ mente salvos. Tampouco se prova esta intercessão universal se considerarmos Isaías 53.12, onde lemos que ele intercederia pelos transgressores; não por todos, mas pelos muitos dos quais se faz menção ali e os quais lemos que ele justifica (v. 11). Tampouco se prova com base em Lucas 23.34. Ele não ora por todos aqueles que o crucificaram, mas por aqueles que pecaram por ignorância (como Cristo adiciona ali), os quais obtiveram também o fruto de sua oração (At 2,3). Se Cristo (por um afeto humano e um impulso de amor) orou também por aqueles que pereceram, não se segue que as orações intercessórias que ele ofereceu como Mediador (e nesse ofício especial) devam estender-se a outros além dos eleitos que lhe foram dados pelo Pai. A estes o próprio Cristo restrin­ ge suas orações intercessórias. XXIII. Não tem melhor escape quem afirma que só é excluído das orações de Cristo o mundo dos incrédulos, aqueles que são culpados de rejeitar o evan­ gelho e odeiam os crentes (Jo 10.14), porém não o mundo amado por Deus, pelo qual ele deu seu Filho (Jo 3.16). Mas essas orações não têm outro objetivo senão de obter o dom da perseverança para os crentes. Visto que o mundo se opõe àqueles que são dados por seu Pai na eleição, necessariamente ela teria que se estender a todos os réprobos, os quais não foram dados a Cristo (e isto antes mesmo de sua descrença), quer sejam descrentes no evangelho que lhes foi apresentado ou meramente culpados de violar a lei da natureza. E visto que a reprovação foi feita desde a eternidade, jamais poderiam ser vistos por Deus em qualquer outra luz. Nem o mundo (ao qual lemos que Deus amou de tal maneira que deu seu Filho) formula qualquer objeção a esta conclusão, porque (como se verá no lugar próprio) isto não se estende a todos os homens univer­ salmente, mas indiscriminadamente aos eleitos. Se ele ora pelos apóstolos, os quais eram então crentes e roga para que recebam o dom da perseverança, não se segue que ele ora pelos crentes apenas como tais e em consequência de sua fé. Não, ele ora por todos os que viriam a crer, “para que sejam santificados pela verdade e aperfeiçoados na unidade” (Jo 10.19,21). Visto que isto não pode ser efetuado sem o dom da fé, ele deve ter orado para que a fé lhes fosse dada. Além do mais, visto que ele declara que se santifica por eles, para que também eles fossem santificados por meio da verdade (e ninguém é santifica­ do senão os eleitos), devemos concluir que ele destinou aquelas orações so­ mente a eles, para que a fé e outros dons necessários à salvação e à perseveran­ ça lhes fossem outorgados.

XXIV. Quarto, com base na relação inseparável entre o ^om F'**10 e 0 Espírito Santo. Pois, visto que estes j j j E-/I dois dons (os mais excelentes de todos) nos são dados do dom do r ilh o ^ . _ _ ., _ . , , por ê o dom do r Deus para r a salvaçao e estao sempre r unidos na Escrir , .c tura como causa e efeito (Jo 16.7; G1 4.4,6; Rm 8.9; Uo E spirito Santo. _ . .„ , . . , J , . . , 3.24), devem ser de igual extensão e devem ir juntos, de modo que o Filho não é dado para adquirir a salvação para quaisquer outros além daqueles aos quais o Espírito foi dado para aplicá-la. Tampouco se pode evocar qualquer outra razão haver uma maior extensão do dom do Filho do que a do dom do Espírito. Ora, é evidente que o Espírito não é dado a todos, mas somente aos eleitos. Portanto, o Filho não deve colocar-se como fiador de outros para que a harmonia seja mantida entre a obra do Filho e a do Espírito. E aqui se encaixa o argumento de Paulo no qual, com base na doação de Cristo, ele infere a outorga de todos os benefícios salvíficos: “Aquele que não poupou seu próprio Filho, antes por todos nós o entregou, porventura não nos dará graciosamente com ele todas as coisas?” (Rm 8.32). O apóstolo raciocina do maior para o me­ nor (ou seja, aquele que deu seu Filho [que indubitavelmente era o dom maior], como não nos daria fé e todas as demais bênçãos salvíficas, que são dons meno­ res?). E isso é suficiente porque (como se provará presentemente) Cristo, ao entregar-se, mereceu para nós todos estes dons juntamente com a salvação. Daí concluirmos ou que todas as coisas serão dadas com Cristo aos réprobos, se ele morreu por eles, ou se não são dadas (o que todos admitem), nem Cristo foi dado por eles. Tampouco o nó pode ser desatado pela alegação de que o apóstolo está falando de uma entrega especial pelos crentes. Além do fato da pretensão gratui­ ta de que houve uma entrega universal de Cristo (como já ficou dito), visto que a fé é um fruto daquela morte, isto não pode ser levado avante como uma condição antecedente. Além do mais, visto que, segundo a ordem estabelecida por nossos próprios eruditos oponentes, o decreto concernente à morte de Cristo antecedeu o decreto concernente à outorga da fé, não se pode conceber como imediatamen­ te e ao mesmo tempo e no mesmíssimo e simplíssimo ato que ele pôde ser entre­ gue em favor de todos e somente em favor de alguns. 4 Com base na ■' A-/"/ d

XXV. Quinto, com base no supremo amor de Cristo. Ele amou tão ternamente àqueles por quem morreu, sendo impossível conceber-se um amor maior. “Ninguém”, diz ele, “tem maior amor do que este: de dar alguém a própria vida em favor dos seus amigos” (Jo 15.13). E Paulo recomenda de tal modo esse amor como realmente maravilhoso e inaudito entre os homens: “Dificilmente alguém morreria por um justo; pois poderá ser que pelo bom alguém se anime a morrer. Mas Deus prova seu próprio amor para conosco pelo fato de ter Cristo morrido por nós, sendo nós ainda pecadores” (Rm 5.7,8). Mas não é possível dizer isso de todos e de cada um, visto que todos podem ver que Pedro era mais amado por Cristo que Judas. E inconcebível que se possa dizer que ele amava àqueles a quem, como um inexorável Juiz, já havia entregue (ou

5 Com base no suprem o am or de Cristo

estava para entregar por um decreto irrevogável) a Satanás para que fossem eternamente atormentados. Não se pode dizer que aí se trata de um ato externo de amor. Além do fato de que atos externos pressupõem atos internos, se Cristo exerceu aquele ato externo com todos e com cada um (não se pode admitir um ato maior), segue-se que Cristo não poderia fazer pelos eleitos nada mais que pelos réprobos (o que é fácil ver quão absurdo é). Se ele ama alguns dos eleitos mais que outros quanto aos dons internos do Espírito (cuja diversidade se requer para a perfeição de seu corpo místico), deste fato não se segue que o maior grau de amor que nele influi para com ambos não seja a entrega de sua vida por eles. XXVI. Sexto, é possível derivar a mesma doutrina da natureza da fiança de Cristo. Pois visto que ela implica a nossa substituição por Cristo, de modo que ele morreu não só para nosso bem, mas também em nosso lugar (como já foi dito e provado inquestionavelmente contra os socinianos), desse mesmo modo ele transferiu para si, mediante sua fiança, toda a dívida daqueles cujas pessoas ele assumiu e a removeu deles e, como ele a cancelou plenamente como se fosse sua, não menos que se os próprios pecadores o tivessem feito, não se pode conceber como aqueles por quem ele morreu e prestou satisfação nesses termos poderiam ainda estar sujeitos a uma maldição eterna e novamente obri­ gados a sofrer os merecidos castigos. Não obstante, seria possível dizer isso caso tivesse ele morrido por outros além dos eleitos, visto que tal coisa anula­ ria publicamente a veracidade e a justiça de Deus. Pois se a dívida fosse trans­ ferida para Cristo em consequência de sua fiança, e quitada por ele, todos perceberiam que ela foi removida de tal maneira dos primeiros devedores, que já não se poderia mais exigir nenhum pagamento deles; antes, permaneceriam para sempre livres e absolvidos de toda obrigação de pagar. São pertinentes aqui todas as passagens da Escritura que asseveram que nossos pecados foram de tal maneira transferidos para Cristo, que o castigo que nos traz a paz estava sobre ele, e por suas pisaduras somos curados (Is 53.5,6); igualmente quando lemos que ele se fez pecado e maldição por nós, para que se nos tornasse justiça e bênção de Deus nele (2Co 5.21; G1 3.13). 6. Com base na natureza de sua fian ça.

7 Porque ele granjeia salvação som ente p a ra aqueles aos quais ele a aplica

XXVII. Sétimo, Cristo morreu somente por aqueles por 1uern ele obteve a salvação e aos quais ele a aplica. Mas e^e 8ranj eou salvação e a aplica somente aos eleitos. Portanto> e*e morreu somente por eles. A razão maior repousa sobre um duplo fundamento: (1) a morte de Cristo foi designada por Deus a fim de que ele pudesse obternos a salvação; (2) a obtenção não pode separar-se da aplicação. Pois o fim da aquisição não pode ser outro senão a aplicação, e não haveria qualquer propó­ sito em obter-se uma coisa se nunca pudesse ser aplicada. Daí se segue que, se a salvação é obtida para todos, ela tem de ser aplicada igualmente a todos. Se não é aplicada a todos, mas somente aos eleitos, então não foi obtida para

todos, mas somente para os eleitos. Em vão se objeta: (a) que a morte de Cristo não foi designada para a obtenção da salvação tanto quanto para a remoção do obstáculo que a justiça interpunha para impedir Deus de promover nossa sal­ vação. Pois se seguiria que Cristo não tanto nos adquiriu a redenção e salvação quanto apenas a possibilidade de salvação e pôs no poder do Pai fazer uma nova aliança de graça com os homens. Não levou muito tempo para que isso fosse condenado nos remonstrantes como injurioso à eficácia de sua mediação [de Cristo], Daí, como seria possível dizer que Cristo se deu como resgate (antilylron) por nós, que nos obteve eterna salvação e outras coisas do mesmo gênero (as quais denotam não só a possibilidade de salvação, mas a salvação realmente obtida por ele em nosso favor)? XXVIII. (b) Igualmente fútil é a objeção de “que Cristo obteve redenção para todos com esta intenção - para que fosse aplicada a todos, contanto que não a rejeitassem”. Isso não pode ser dito com respeito às multidões às quais Cristo não foi oferecido, e nem mesmo conhecido de nome. Então Cristo teria assim proposto a si mesmo um objetivo fútil acerca de uma coisa que não só jamais aconteceria, mas também não poderia acontecer sem seu dom (o qual, não obstante, ele determinou não lhes dar). Como se este fosse o desígnio de Cristo - quero obter redenção para todos com o fim de que lhes seja aplicada, contanto que creiam; e, no entanto, estou resolvido a não revelar esta redenção às multidões, nem dar àqueles a quem é revelada aquela condição sem a qual ela jamais poderá ser-lhes aplicada (i.e., desejo que aconteça o que não só sei que não acontecerá e não poderá acontecer, mas também o que não quero que aconteça, porque me recuso a comunicar aquilo sem o que tal coisa nunca poderá concretizar-se, pois isso depende exclusivamente de mim). Ora, se isso não seria conveniente em um homem sábio, quanto menos em Cristo, supre­ mamente sábio e bom? Se o defeito de sua aplicação não ocorre por culpa de Cristo, mas acidentalmente (ou seja, pela fraqueza e incredulidade dos ho­ mens), não deixa de ser menos injurioso à honra de Cristo; como se ele ou não pudesse conhecer de antemão, ou não pudesse remover aqueles impedimentos que obstruem a aplicação da salvação que ele obteve, e assim a tomasse infru­ tífera. Negamos, porém, que ela é vã, porque, embora deixe de ter sucesso, contudo não veio a ser irrefletida e destituída de intenção, porque, por mais que os homens ajam, Cristo por sua morte atingiu o que principalmente tenci­ onava (como perdão e salvação que agora estão preparados para cada pessoa se apenas crer e arrepender-se - o que o inexorável rigor da justiça divina anteriormente proibia). Tudo isso não remove o absurdo, porque, visto que nenhum outro pode ser o objetivo da aquisição senão a aplicação, tudo seria em vão se tal objetivo não se concretizasse. E Cristo necessitava morrer pelos homens, não só para que a salvação e o perdão lhes fossem granjeados sob uma condição (que não poderiam cumprir), mas para que realmente obtives­ sem o perdão e a salvação.

XXIX. Isto pode ser mais solidamente estabelecido pelo modo da aquisi­ ção. Pois se ela se estende a todos e a cada um, então tem de ser ou absoluta ou condicional. A primeira hipótese não pode ser afirmada, porque nesse caso todos e cada um indubitavelmente seriam salvos. Também não é válida a se­ gunda: (1) porque uma aquisição condicional não seria propriamente uma aqui­ sição, mas apenas a mera possibilidade de aquisição, contanto que a condição seja cumprida. (2) Ele adquiriu essa condição ou para todos ou apenas para alguns. Se a adquiriu para todos, então todos serão realmente feitos participan­ tes da salvação, porque tal condição não poderia ser adquirida exceto absoluta e incondicionalmente (e assim seria conferida a todos). Pois uma condição de uma condição é inadmissível, pois, do contrário, decorreria numa cadeia inter­ minável de condições. Nem é possível admitir qualquer condição que não co­ incida com a coisa a ser adquirida. Se é apenas para alguns, a aquisição não é plenária e suficiente, e é especialmente destituída de uma parte necessária de si mesma. Além disso, seria vã e ilusória (ou seja, feita sob uma condição, imprati­ cável e nunca concretizável, e a qual Deus não só previu que nunca se cumpriria, mas a qual ele, o único capaz de concedê-la, decretara não admitir). Finalmente, assim se imaginaria Cristo como tendo uma dupla intenção em sua satisfação: primeiro, condicional para todos; depois, absoluta para os eleitos (dupla inten­ ção que nunca pode ser nem provada com base na Escritura, nem conciliada com a unidade e a simplicidade do decreto concernente à morte de Cristo). XXX. Oitavo, Cristo morreu somente por aqueles por quem mereceu salvação, e com a salvação todos os meios necessá­ rios à sua obtenção - especialmente a fé, o arrependimento e o Espírito Santo, o autor de ambos (sem os quais a salvação é inatingível). Ora, não se pode conceder isso a todos e a cada um, pois então todos indubitavelmente seriam salvos; antes, tem referência somente aos elei­ tos. Portanto ... etc. Que Cristo por sua morte mereceu fé pelos homens, prova­ se por meio de muitos argumentos. (1) Ele é chamado “o autor e consumador da fé” (archêgos kai teleiõtêspisleõs, Hb 12.2; At 5.31). Ora, se ele é o autor de nossa fé, então deve ser o adquirente dela, pois ele não nos dá nada que por seu mérito não nos tenha adquirido. (2) Ele é a causa meritória da salvação; por isso também de todas as partes das quais a salvação consiste. Mas a fé e a vida espiritual (as quais ele opera em nós) constituem a parte principal de nossa salvação. (3) Cristo é a causa e o fundamento de todas as bênçãos espirituais (Ef 1.3), entre as quais a primeira e especialíssima é a fé. Daí lermos em outras partes que crer nele e sofrer por amor a ele são conferidos por Cristo (Fp 1.29). (4) Como Cristo havia de enviar-nos o Espírito, assim ele também o havia de merecer; daí o Espírito nos ser proposto como um dos frutos da morte de Cris­ to (Jo 16.7) - portanto também todos os seus dons e especialmente a fé. Tam­ pouco o Espírito (como santificador e consolador) deve ser aqui distinguido dele como iluminador, como se Cristo merecesse somente o primeiro, e não o segundo. Pois visto que todas essas operações procedem do mesmo Espírito, o

mesmo que nos adquiriu o Espírito (o autor desses dons) também teria adqui­ rido com ele todos seus dons. Como a fé é o princípio e a raiz de nossa santifi­ cação, o mesmo que mereceu o Espírito santificador também teria merecido a própria fé, a qual purifica o coração. (5) Cristo não poderia ser um verdadeiro e pleno Salvador a menos que nos tivesse adquirido a fé (sem a qual é impos­ sível obter a salvação). E esta era a doutrina constante nas igrejas reformadas - que Cristo nos mereceu fé não menos que salvação, e que ele é a causa de todos os dons que nos são outorgados pelo Pai. Dai afirmarem os veneráveis pais do Sínodo de Dort, em sua demonstração da doutrina genuína: “Cristo por sua morte nos adquiriu a fé e todos os demais dons salvíficos do Espírito San­ to” (“Secundum Caput: De Morte Christi”, 8 em A cta Synodi Nationalis ... Dordrechti[ 1619-1620], 1:290). Em seu documento Rejeição de Erros, eles con­ denam “aqueles que ensinam que Cristo, por sua satisfação, certamente não me­ receu para ninguém a salvação e a fé, pelas quais sua satisfação é eficazmente aplicada para a salvação, mas que ele apenas adquiriu do Pai o poder, ou uma plena disposição para efetuar uma nova aliança com o homem, bem como pres­ crever todas as novas condições que porventura quisesse, cuja realização depen­ de do livre-arbítrio do homem; e, para que isso pudesse suceder, ou que nin­ guém, ou que todos podiam cumpri-la. Pois consideram demasiado mesquinha­ mente a morte de Cristo, de modo algum reconhecendo o fruto primário do bene­ fício obtido por ela, e lembram a heresia pelagiana das sombras de Orcus”2(“Se­ cundum Caput: De Morte Christi”, Reiectio Errorum, 3 em ibid., 1:291). XXXI. Mas aqui alguns distinguem, sem qualquer objetividade, o decreto de entregar Cristo à morte do decreto desta mesma morte (a qual se deu no tempo), de modo que o primeiro foi antecedente à eleição de determinadas pessoas, porém não o segundo (que segue o decreto de eleição especial). Pois o próprio Amyrald, falando da morte de Cristo no tempo, diz: “A redenção deve ser igual, porque todos devem arrepender-se, como criaturas igualmente miseráveis de Deus” (B rief Traitte de la Predestination [1634], p. 77). E a própria natureza da coisa prova isto. Pois, desde que o sentimento e o afeto do Filho só podem ser iguais aos do Pai para com todos (como o mesmo autor afirma, ibid., Part 2, p. 356), a morte de Cristo no tempo deve conformar-se à eterna destinação do Pai, pois ele não prestaria nenhuma satisfação, exceto segundo a prescrição paterna. Portanto, visto que o decreto do Pai concernente à entrega de Cristo à morte se originou de um afeto comum para com todos os homens antes de qualquer consideração da eleição de alguns à fé, Cristo mes­ mo, em sua morte, não poderia ter nenhuma outra intenção e fim senão seguir o desígnio do Pai. Além disso, segundo esta concepção, necessário é que Cris­ to, em sua morte, tenha considerado alguns como eleitos, outros como répro­ bos. Pois já que a eleição não existe sem reprovação, Cristo não poderia pensar 2. Orcus: Na mitologia romana, um dos nomes do mundo inferior e do seu deus. correspondendo respectiva­ m ente ao Hades c a Plutào. [N. do E.]

na eleição de alguns sem ao mesmo tempo pensar na preterição e reprovação de outros. Se, pois, ele quis com especial afeto morrer por aqueles a quem bem sabia terem sido eleitos (considerados como tais), ele também só pode ter-se recusado, por algum outro afeto, a morrer por outros, que ele bem sabia que eram réprobos como tais. [E nossos oponentes] nem se ajudariam dizendo que Cristo não morreu pelos réprobos num sentido composto e formalmente (visto que são réprobos), mas num sentido dividido e materialmente (por aqueles que em outro momento do decreto são reprovados). Porque, além de nossa incapa­ cidade de conceber como tais abstrações podem pertencer a um ato único e simples do decreto divino, assim se seguiria que Cristo não poderia morrer pelos eleitos como tais (aqui arrazoamos pela regra dos contrários). E parece inexplicável como Cristo, em sua morte, pôde ter levado em conta um primei­ ro e um quarto decreto no tocante aos eleitos (i.e., teria desejado morrer por eles, considerados tanto materialmente como homens, quanto formalmente como eleitos); ao passo que, no que diz respeito aos réprobos, ele os teria tratado abstratamente e os teria considerado somente como homens, não como répro­ bos (pois eleição e reprovação andam de mãos dadas e têm implicações mútuas). XXXII. Visto, porém, que certos eruditos têm observado que sua hipótese (que faz da fé não um fruto do mérito da morte de Cristo, mas um dom do Pai) sofre de várias inconveniências, é uma indignidade a Cristo e injuriosa à salva­ ção, têm buscado outro meio de escape, às vezes ensinando que “Cristo obteve fé e arrependimento para todos, condicionalmente; para os eleitos, absoluta­ mente”. Outras vezes dizem “que ele não obteve estes à guisa de satisfação e de causa meritória, mas à guisa de causa final, para que a fé fosse dada aos eleitos para trazê-los a Cristo”. Mas nada disso pode ser dito com verdade. Nem no primeiro caso, porque não se pode conceber sob que condição a fé nos poderia ser obtida, visto que ela é em si uma condição. Mas embora a fé seja geralmente proposta à guisa de condição (sob a qual a salvação é prometida em Cristo), contudo é também proposta à guisa de benefício decorrente da aliança da graça, benefício que Cristo obteve para nós mediante sua morte. Daí Cristo deve ser considerado como nos tendo adquirido não só a salvação se crermos, mas também a fé para que creiamos. Não a segunda, porque uma aquisição à guisa de causa final, e não à guisa de satisfação e de causa meritó­ ria, é até agora uma distinção desconhecida nas escolas teológicas. Pois que a própria aquisição propriamente assim chamada se fundamenta na satisfação e no mérito do adquirente. Então, se Cristo não nos obteve a fé à guisa de causa meritória, então ele não mereceu fé. Mas não se pode dizer que ele obteve fé para alguns à guisa de causa final, já que nenhum eleito era ainda assistido por Cristo quando Deus decretou essa aquisição (a qual ele iria efetuar por sua morte). Além disso, não é para todos (pelos quais a salvação é obtida à guisa de satisfação) que a fé é ou não obtida à guisa de causa final. No primeiro caso, todos serão salvos; no segundo, a que propósito se adquire a salvação para eles à guisa de satisfação, sendo que para eles a fé não é adquirida à guisa de causa

final (sem a qual não se pode obter a salvação)? Uma vez mais, ou ele obteve aquela fé para todos à guisa de causa final, ou somente para os eleitos. Se for para todos, todos a obterão; se for para os eleitos, Cristo, ao morrer, teria feito algo mais para estes do que para aqueles, visto que, não obstante, no momento do decreto concernente à sua morte ele teve igual consideração para com todos. E assim, seja qual for o modo como esta hipótese for considerada, as dificulda­ des sempre permanecerão. Como é possível que a fé seja igualmente adquirida para todos e para cada um, quando nem todos a obtêm igualmente? Ou, se ela não foi adquirida para todos, quão vã e ilusória é essa a aquisição da salvação, a qual só é feita sob a condição de fé (a qual, no entanto, aquele que obteve a salvação sabia não ser possível ao pecador exercer sem sua graça, e que ele, o único que pode conceder, decretou não conceder)? Devemos, pois, chegar a esta conclusão - ou dizer que a fé está cm nosso poder (como defendem os pelagianos), ou dizer que ela já foi obtida por Cristo (para que nos seja dada pelo Pai). XXXIII. Tampouco a dificuldade é diminuída pelo exemplo que apresen­ tam de um príncipe que paga o preço (lytron) de redenção por todos os cativos, ainda que com isso ele não consiga que todos queiram estar livres do cativeiro. Uma comparação não deveria ser omissa numa circunstância de tão grande importância; pois é evidente que o príncipe, ainda que o deseje ardentemente, contudo não é capaz de dar ao cativo a vontade de aplicar a si mesmo o preço (lytron). No entanto Cristo pode fazer isso. Mas se é possível presumir que um príncipe, capaz não só de pagar o resgate (lytron) pelos cativos, mas também de dar-lhes a vontade de se beneficiar dele (ainda mais, presumindo-se que o príncipe sabia que não tinham e nem poderiam ter essa vontade, a menos que lhes fosse outorgada, o que no entanto não quis fazer), quem diria que ele seriamente quis libertar aqueles cativos, e que pagou o resgate (lytron) com a intenção e o desígnio de emancipá-los? Por algo mais, se tal comparação for apresentada, pode ser facilmente repelida. Porque, quanto à libertação física de um cativo, não é suficiente pagar um resgate (lytron), mas é também neces­ sário quebrar as cadeias que o prendem na prisão; do contrário, o pagamento do preço ficará sem efeito. E assim, para a libertação da alma do cativeiro espiritual do pecado não basta pagar um resgate (lytron) à justiça divina, mas as cadeias do pecado e da incredulidade (pelas quais as almas são impedidas de poder ou mesmo de querer desfrutar da liberdade adquirida) têm também de ser afrouxadas e arrebentadas. XXXIV. Nono, se Cristo morreu por todos, então ele expiou 9. Com base todos os seus pecados, e portanto terá prestado satisfação pela na expiação incredulidade e pela impenitência final (as quais impedem o de iodos os homem de aplicar a si mesmo a redenção), e assim não haveria pecados mais impedimento para tal aplicação; pois, na suposição de ter daqueles p o r sido prestada satisfação por eles, eles estariam perdoados. Não quem ele é possível fazer objeção dizendo que “a bênção será aplicada, morreu. caso se cumpra a condição sob a qual a redenção foi granjea-

da”. Envolve contradição dizer que se deve cumprir esta condição onde se pressupõe que a incredulidade e impenitência são finais. E assim absurdamen­ te se presume que Cristo morreu para expiar a incredulidade de uma pessoa, contanto que ela não seja incrédula, mas crente (como se eu dissesse: encon­ trei um remédio infalível para a cura de uma pessoa cega ou leprosa para o aplicar com esta condição - que ela não seja nem cega nem leprosa). Além do mais, a ausência da condição não pode impedir a aplicação da redenção a in­ crédulos, visto presumir-se que Cristo, por sua morte, prestou satisfação por essa incredulidade, e portanto expiou esse mesmo mal. Visto, porém, que to­ dos necessariamente vêem que não se pode dizer tal coisa dos réprobos, inferese claramente que Cristo não morreu por eles. XXXV. Finalmente, se Cristo morreu em favor de todos e de cac*a um’ se8ue' se; 0 ) quc Cristo morreu por multidões sob a condição que cressem, às quais nem Cristo nem sua morte ' ’ jamais se fizeram conhecidos e as quais, portanto, não pode­ riam crer. (2) Que ele morreu por todos quantos ele bem sabia viriam a ser filhos da perdição (aos quais Deus passou por alto) e que jamais, por toda a eternidade, receberiam qualquer dos frutos de sua morte, e assim exerceu o supremo amor para com aqueles por quem ele e o Pai (por uma preterição e uma reprovação eternas) nutriam intolerável aversão. (3) Que ele morreu por aqueles que já estavam atormentados no inferno e atualmente condenados, sem qualquer esperança de salvação, e assim sofreu o castigo como fiador cm seu lugar, os quais já sofriam o castigo por si próprios e sofreriam intermina­ velmente. (4) Cristo seria considerado o Salvador e Redentor dos que não só nunca seriam salvos, mas que nunca, de modo algum, poderão ser salvos. Ou seria considerado um Salvador imperfeito e parcial, que pela satisfação é de fato o autor da aquisição, porém não da aplicação; visto que, não obstante, ele não pode realmente ser chamado o Salvador de nenhum outro senão daqueles aos quais fez participantes da salvação e que realmente são salvos. F ontes de XXXVI. Em parte alguma da Escritura lemos que Cristo morreu Por tod °s’ a menos que no mesmo lugar se acrescente uma explanação ’ ‘ limitação da qual se possa inferir que ela deve ser entendida não universalmente para cada um e para todos, mas restritamente, em confor­ midade com o tema. As vezes ela se refere à multidão dos eleitos, a qual tem sua própria universalidade. Quando lemos “que ele morreu por todos” (2Co 5.15), só estão em pauta “quem está também morto”, não com uma morte “em pecados”, mas “em pecado” espiritual. O objetivo do apóstolo não é provar a corrupção de indivíduos, mas demonstrar com que obrigação os crentes estão presos a seus deveres - seja quanto à justificação pela imputação do mérito da morte de Cristo (como se tivessem prestado satisfação em suas próprias pesso­ as), ou quanto à santificação pela crucifixão do velho homem pela eficácia da cruz de Cristo, os quais já não vivem para si mesmos, mas para Cristo; por quem Cristo não só morreu, mas também ressuscitou, e a quem “o amor de 10 Com base em vários absurdos

Cristo constrange”. Expressões dessa natureza indicam que não podem referirse a nenhum outro senão aos eleitos e crentes (unicamente aos quais cabe mor­ rer em Cristo e com ele, Rm 6.6,8). Assim, em 2 Coríntios 5.19, onde lemos que Deus “está em Cristo, reconciliando o mundo consigo mesmo, não lhes imputando suas transgressões”, não pode significar nenhum outro mundo se­ não o daqueles que são realmente reconciliados com Deus e aos quais real­ mente não imputa seus pecados. E evidente que isto não se harmoniza com nenhuma outra classe além dos eleitos. Daí serem declarados bem-aventura­ dos aqueles sobre quem o Senhor não imputa pecado (SI 32.2). No mesmo sentido, “por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para condena­ ção, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque, como pela desobediência de um só homem, muitos se tomaram pecadores, assim também por meio da obediência de um só muitos se tornarão justos” (Rm 5.18,19). Indubitavelmente, todos os que “recebem abundância de graça e do dom da justiça” ((ên perisseian fês charitos kai lês dikaiosyríês, v. 17) e que são realmente justificados (v. 19) não são outros senão os eleitos e crentes, que pertencem e compõem o corpo de Cristo. Pois Adão se contrapõe a Cristo, cabeça a cabeça; ou seja, como o pecado e a morte passaram a toda a descendência de Adão, assim a justiça e a vida passaram a todos os que pertencem ao segundo Adão. Noutras passagens isso é expresso pelo apóstolo com frases que denotam morrer e ser vivificado: “em Adão todos morrem” (1 Co 15.22), isto é, todos os que morrem, morrem em Adão e em decorrência de seu pecado; e “e em Cristo todos serão vivificados”, isto é, todos os que forem vivificados, seja em graça seja em glória, não serão vivificados de outra forma senão em Cristo e por causa de Cristo. Lemos que todos aqueles por quem Cristo provou a morte (Hb 2.9) são “filhos”. Eles são ou serão conduzidos à glória, o “capitão” de cuja “salvação” é Cristo. São “santifi­ cados”, aos quais ele chama “meus irmãos” e os quais “Deus lhe deu” (vs. 10,11). XXXVII. As vezes se usa um sincategorema, “todos”, indefinida e indis­ criminadamente sem distinção (diastolên) de nações, condições, sexo, caracte­ res e outros particulares. Por esse meio os homens são distinguidos entre si, porém não sem qualquer exceção. Paulo o expressa assim: “Todo aquele que nele crê não será confundido. Pois não há distinção [diástole] entre judeu e grego, uma vez que o mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam” (Rm 10.11,12*). Assim se entende a passagem que diz: “No qual não pode haver grego nem judeu, circunciso nem incircunciso, bárbaro, cita, escravo, livre; porém Cristo é tudo em todos” (Cl 3.11), isto é, nenhuma dife­ rença de nação ou condição promove ou impede a salvação, porém Cristo é tudo, isto é, outorga todas as coisas necessárias à salvação a todos os crentes, sem qualquer consideração por nação ou condição. Isto é explicado em Apoca­ lipse 5.9, quando os vinte e quatro anciãos declaram em seu cântico: “porque foste morto e com teu sangue compraste para Deus os que procedem de toda tribo, língua, povo e nação”, isto é, de todas as tribos de Israel e de homens de

todas as línguas, se forem civilizados [isto é, se receberem instrução, educa­ ção] (os quais geralmente são chamados laoi ou bárbaros, aos quais a palavra ethnous é frequentemente aplicada). XXXVIII. O mesmo significado se anexa à passagem (com muita frequên­ cia nos lábios de nossos oponentes), onde lemos que Cristo “se entregou em resgate por muitos” (polyíhryllêtou , lTm 2.6). Pois todos esses foram substitu­ ídos por Cristo, o qual levou os castigos que lhes eram devidos e pagou o preço de sua redenção; pois todos os ortodoxos têm afirmado, contra os socinianos, que esta é a essência da palavra antilytron. Ora, não se pode dizer que ele fez isto em favor de todos e de cada um; pois assim ninguém poderia ser condenado e levar o castigo de seus próprios pecados. (2) Paulo fala de todos aqueles de quem Cristo é o Mediador c por quem faz intercessão e presta satisfação, pois já vimos que estas constituem duas partes inseparáveis de seu ofício sacerdo­ tal. E, no entanto, os remonstrantes reconhecem que ele não intercede por to­ dos. (3) São denotados todos aqueles que “Deus quis que fossem salvos e chegassem ao pleno conhecimento da verdade”. Mas a experiência nos ensina que não é possível afirmar tal coisa de todos e de cada um, e isso já ficou provado por nós (Volume I, Tópico IV, Pergunta 17, Seções 34ss, onde o tema é examinado minuciosamente). Assim, não se pode estender universalmente essa frase como indicação de indivíduos de classes, mas indiscriminada e in­ definidamente de classes de indivíduos (i.e., de algumas pessoas, como Beza corretamente traduz tons pantas aqui por quosvis - “alguns” de quaisquer na­ ções, estados e condições que sejam; cf. Annotationes maiores in Novum ... Testamentnm: Pars Altera [1594], p. 444 sobre lTm 2.4). Calvino (sobre a passagem) prova isso mediante um raciocínio muito sólido: “O apóstolo sim­ plesmente quer dizer que nenhum povo do mundo nem nenhuma ordem [ou classe] de homens é excluída da salvação, porque Deus quer que o evangelho seja oferecido a todos, sem exceção” (The Second Epistle o f Paul . .. t o the Corinthians a n d ... Timothy [trad. T. A. Smail, 1964], pp. 208,209 sobre lTm 2.4). E mais adiante: “A partícula universal deve referir-se sempre aos tipos de homens, e não a pessoas; como se quisesse dizer: não somente judeus, mas também gentios, não só plebeus, mas igualmente príncipes, são todos redimi­ dos pela morte de Cristo” (ibid., p. 210 sobre lTm 2.5). XXXIX. O mundo ao qual lemos que Cristo foi enviado e pelo qual mor­ reu (Jo 3.16,17; 4.42; 6.33) não pode estender-se universalmente a toda a raça humana, visto que inúmeras pessoas desse mundo perecem. Antes, denota ou a universalidade dos eleitos ou (indefinida e indiscriminadamente) todos os po­ vos, judeus bem como gentios (como já se provou extensamente no Tópico IV, Pergunta 17). Daí haver uma alusão à promessa feita a Abraão, de que em sua semente (i.e., Cristo) todas as famílias da terra seriam abençoadas (Gn 12.3; 26.4; 22.18); também uma alusão às nações, das quais lemos que ele foi feito pai (Rm 4.16). Ora, isto pertence não a todos os homens, universalmente, que

estão no mundo, mas a toda a semente prometida sem distinção nacional. Na verdade isto transparece tanto do fato de que nem todos são justificados e salvos pela fé (já que sua bênção é explicada em G1 3.8,16), bem como do fato dc que Paulo explica toda a semente como sendo aquela que é “da fé” (Rm 4.16) e que “é chamada em Isaque” (Rm 9.7). Assim o mundo por cuja vida Cristo deu sua carne para morrer (Jo 6.51) nada mais é do que o mundo ao qual lemos que ele deu a vida (v. 33). O pão de Deus é aquele que desccu do céu e dá vida ao mundo. Isto não pode estender-se a todos os homens universal e individualmente, visto que a doação da vida implica sua real aplicação e co­ municação, o que pertence somente aos eleitos. Neste sentido, ele promete dar vida eterna às suas ovelhas (Jo 10.28). Tampouco (a não ser como absurdo) se pode dizer que ele dá só o que é obtido para alguém ou lhe é oferecido, porém nunca realmente comunicado. Neste sentido, lemos que Cristo é “o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo” (Jo 1.29). Visto que a palavra airein significa não só uma simples tomada, mas também uma remoção, lemos que os pecados dos réprobos não podem ser inteiramente removidos (os quais ainda permanecem neles). Nem pode significar outro mundo, senão o dos eleitos, o mundo composto de judeus e gentios, indiscriminadamente, cujos pecados le­ mos que ele carregou em seu próprio corpo no madeiro, para que, estando mortos em pecados, vivam para a justiça (1 Pe 2.24). Lemos que estes são aben­ çoados, porque sua transgressão foi removida (SI 32.1). XL. Quando João diz: “Cristo é a propiciação por nossos pecados, não só pelos nossos próprios, mas pelos pecados do mundo inteiro” (Uo 2.2), ele não deseja estender esta a todos e a cada um, mas somente àqueles que podem conso­ lar-se com a intercessão de Cristo e com a remissão obtida por intermédio dele (os quais não outros senão os eleitos). Pois somente para esses Cristo pode ser expiação (hilasmos ) e propiciação, sendo ele o seu Consolador (paraklêtos) e Advogado junto ao Pai (porque estas duas funções são enfeixadas pelos após­ tolos como sendo iguais e inseparáveis). Cristo, porém, não é Advogado de todos (como aqueles doutos teólogos confessam sobre Jo 17.9). Além disso, Deus deve ser realmente propiciado e reconciliado com aqueles por quem Cristo se fez propiciação (a menos que presumamos que Cristo fracassou em seu propósito e derramou seu sangue em vão - contrariando o que diz o apóstolo, o qual assevera que aquele por quem morreu não pode ser condenado [Rm 8.34]; não se pode dizer isso daqueles que estão excluídos da aliança e sobre quem a ira de Deus permanece). Finalmente, o objetivo do apóstolo (que é consolar os crentes contra os restos de pecado) prova que isto não pode esten­ der-se a todos. Pois, que lenitivo poderia o homem receber dessa graça comum aos eleitos e aos réprobos, se soubesse que Cristo, ao morrer, nada mais fez por ele além do que fez pelos incrédulos e réprobos? Portanto, a frase de João não tem outra referência senão aos crentes habitantes do mundo inteiro; ou, como diz Calvino: “Os filhos de Deus dispersos pelo mundo inteiro” (The G ospel according to J o h n ... and the First Epistle ofJohn [trad. T. H. L. Parker, 1961 ],

p. 244 sobre lJo 2.2). Assim é para que ninguém pense que esta bênção deve restringir-se somente aos apóstolos, ou somente aos judeus, ou somente àque­ les crentes a quem João escreveu sua epístola. Mas ela é muito mais extensa tão extensa quanto o mundo, abrangendo os crentes redimidos de toda tribo, língua, povo e nação (i.e., gente do mundo inteiro). Faz pouca diferença se por “nossos pecados” se entendem os pecados dos apóstolos ou daqueles crentes dentre os judeus da dispersão que viviam então (a quem indubitavelmente esta epístola foi dirigida com as epístolas de Pedro e Tiago, e as quais justamente por isso são denominadas católicas , visto que não são endereçadas a alguma cidade ou pessoa particular) como distintos daqueles que já criam antes do tempo de Cristo; ou que mais tarde creriam até o fim do mundo. Pois a questão ainda chega ao mesmo ponto - é suficiente [entender] que o mundo inteiro não designa a universalidade de todos os homens, já que se faz distinção entre o mundo, por um lado, e João e aqueles a quem ele escreve, por outro (os quais, não obstante, estão incluídos na universalidade dos homens). Esta era a opi­ nião de Calvino sobre esta passagem: ‘“ Não somente por nossos pecados’ se acrescenta somente à guisa de ampliação, para que os crentes sejam firmemen­ te persuadidos de que a expiação feita por Cristo se estende a todos quantos abraçarem o evangelho pela fé” (ibid.). E mais adiante: “O objetivo de João outro não era senão tomar esta bênção comum a toda a igreja; portanto, sob ‘todos’ ele não compreende os réprobos, porém designa aqueles que mais tarde creriam e que em seu tempo se achavam espalhados por várias regiões do mun­ do. Pois realmente então, como é próprio, a graça de Cristo é ilustrada, quando este é pregado como a única salvação do mundo” (ibid.). XLI. Embora Cristo tenha vindo salvar “aquele que estava perdido” (to apolõlos, Mt 18.11) e a ninguém mais salve senão pecadores perdidos e miserá­ veis, contudo nem por isso é necessário dizer que ele salva a todos quantos estão perdidos e são pecadores. Mais ainda, ele expressamente testifica que não veio chamar aqueles dentre os perdidos que (ignorantes de seu próprio estado de perdição) se deixam absorver pela elevada opinião de sua justiça pessoal, mas somente aqueles que labutam sob o fardo dos pecados e sentem sua miséria (Mt 11.28). Daí ele dizer que de fato veio salvar “aquele que estava perdido” (to apolõlos) a fim de assinalar o caráter e a condição dos que serão salvos, mas não “todos quantos estão perdidos” (j>an to apolõlos) para designar seu número. XLII. Uma coisa é perecer fatual e definitivamente; outra, ocasionalmente e em razão do dever quando ele dá ocasião a que alguém se destrua e pela qual ele, se entregue a si, pereceria. Paulo, que fala acerca do perecimento de um irmão por quem Cristo morreu (Rm 14.15; 1Co 8.10,11), não tem em mente perdição concreta (como se alguém por quem Cristo morreu pudesse realmen­ te perecer), visto que ninguém pode arrebatar suas ovelhas de suas mãos (Jo 10.28). Nem pode perecer nenhum daqueles que o Pai lhe deu para que fossem redimidos (Jo 17.12), porque são guardados pelo poder de Deus por meio da fé

( IPe 1.5), especialmente desde que ele fala de “um irmão” que, embora fraco (Rm 14.1), contudo Deus é poderoso para mantê-lo firme (v. 4). Antes, Paulo tem em mente perdição ocasional, quando, pelo uso imponderado e despropo­ sitado da liberdade cristã em coisas indiferentes, a consciência de um irmão fraco é ferida e ofendida, e assim ele fica exposto ao perigo de perecer, até onde nos cabe. Assim a Escritura com frequência usa palavras que denotam um efeito e uma ação para com elas designar a ocasião ou o motivo pelo qual a coisa poderia ser concretizada. Assim lemos que é culpado de adultério (até onde está em seu poder) quem olha para a esposa de outro com intenção luxuriosa (Mt 5.28); e lemos que “faz Deus mentiroso” (i.e., caso pudesse) aquele que não quer crer na palavra do evangelho (U o 5.10). Daí dizer-se que um irmão perece mediante nosso conhecimento quando não fazemos nada para preservá-lo. Isto [na tradução do autor] é expresso em termos de destruição: “Não destruas com a tua comida o irmão mais fraco” (Rm 14.15). XL111. Ao lermos que os falsos profetas agem “até ao ponto de renegarem o Soberano Senhor que os resgatou” (ton autous agorasanta despoíên, 2Pe 2.1), ele não pode ter em mente a redenção (propriamente assim chamada) da maldição de Deus e da morte etcma. Ninguém é redimido a não ser aquele que foi dado pelo Pai a Cristo para que seja redimido, e que, consequentemente, será guardado por ele e para sempre salvo como membro de sua igreja e per­ tencente a seu povo peculiar. Antes, ele quer dizer uma libertação do erro e da idolatria mediante um chamado externo do Cristianismo e uma separação para a obra do ministério pela qual foram, em certa medida, conduzidos por Cristo (como o Senhor) que os adquirira e os tomara como seus, chamando-os para sua casa (como os senhores outrora compravam servos e os empregavam nas atividades domésticas). Que esta é a intenção do apóstolo, pode-se coligir de várias considerações: (1) ele faz menção de um despotou, palavra que signifi­ ca um senhor e proprietário, em vez de um salvador (a quem pertence a reden­ ção propriamente assim chamada). (2) A palavra agorazein, tomada simples­ mente, é usada no sentido de um tipo de livramento e de aquisição. (3) O tipo de redenção aqui em vista é aquele por meio do qual se declara que os que foram adquiridos escaparam “das contaminações do mundo mediante o conhecimento do Senhor e Salvador Jesus Cristo”, mediante o qual conheceram “o caminho da justiça” (vs. 20,21 *). Isso não se encaixa em nada mais senão no livramento dos erros e idolatrias do paganismo e no chamado à verdade, de cujo afastamento, por meio da apostasia e da introdução de heresias mui perniciosas, lemos que renegaram seu Senhor que os trouxera e os chamara para seu serviço. XL1V. A santificação pelo sangue da aliança é interior, espiritual e real, pertencente aos que são concretamente redimidos e regenerados por Cristo; a outra é uma profissão externa e aparente. A primeira pressupõe necessariamen­ te que Cristo morreu por aqueles que são assim santificados; mas a segunda não é assim, porque muitos hipócritas obtêm santificação em razão de um chama­

do externo ou por receberem os sacramentos (aos quais, não obstante, Cristo e seus benefícios não pertencem, visto que são destituídos de fé). Quando Paulo fala dos que considera profanadores do sangue da aliança mediante o qual foram santificados (Hb 10.29), ele não tem em mente a primeira santificação, o que na hipótese dos reformadores é inadmissível, mas a segunda - tal como acontece com os que (professando o evangelho, aspergidos no sacramento do batismo) o renunciaram mediante a negação de Cristo e a apostasia do evange­ lho -justam ente como sobre aquele que toma o pão da eucaristia indignamen­ te lemos que é culpado do corpo e do sangue de Cristo (ICo 11.27,29). Além disso, visto que a expressão do apóstolo é hipotética, não absoluta, ela realça de fato a relação do antecedente com o consequente, ou o que aconteceria se um crime tão grande fosse cometido. No entanto, na realidade ela não estabe­ lece nada com respeito aos que são redimidos e crentes verdadeiros, não mais que aquilo ele assevera em Gálatas 1.8. XLV. Admito o que cada um é obrigado a crer absoluta e simplesmente, desde logo e imediatamente sem coisa alguma pressuposta, que é verdadeiro. Mas não da mesma maneira o que alguém é obrigado a crer com certa limita­ ção, mediatamente e sobre a suposição de vários atos. No entanto, é falso que todos os homens sejam obrigados a crer que Cristo morreu por eles simples e absolutamente. Em primeiro lugar, todos aqueles a quem o evangelho nunca foi pregado, a quem Cristo nunca se fez conhecido, não são obrigados a crer nisto, mas somente os chamados: “Como, porém, invocarão aquele em quem não cre­ ram? E como crerão naquele de quem nada ouviram? E como ouvirão, se não há quem pregue?” (Rm 10.14). Segundo, nem ainda todos os chamados são obri­ gados a crer absoluta e imediatamente que Cristo morreu por eles, mas media­ tamente (sendo pressupostos os atos de arrependimento e fé), porque a nin­ guém, senão àquele que crê e se arrepende, pertence este mandamento. E tão longe está isto de ser verdadeiro com respeito aos incrédulos e impenitentes, que aquele que lhes ordena que creiam nisto zomba deles miseravelmente, visto que a ira de Deus permanece sobre eles e eles mesmos são obrigados a crer que já estão condenados (Jo 3.36). Se são obrigados a crer que Cristo morreu por eles sob a suposição de que realmente se arrependam e busquem nele refúgio, nem por isso se segue que isto seja absoluta e simplesmente verdadeiro, quer crei­ am, quer não. Daí, aqueles que recebem a ordem de crer não são todos os homens simplesmente, mas relativamente (ou seja, “os cansados” e sobrecar­ regados com o fardo do pecado, Mt 11.28; “os sedentos” e que sentem a neces­ sidade de água, ls 55.1, i.e., os que são penitentes e sentem sua miséria). XLV1. Não é satisfatória aqui a réplica de que “de todos os chamados se demanda fé em Cristo; não uma fé de qualquer gênero, mas uma fé genuína e justificadora, a qual não existe a menos que termine em Cristo que morreu por mim”. Embora se exija fé em Cristo (e certamente uma fé genuína e justificadora), não se segue imediatamente que ela seja requerida quanto ao exercício de

todos os seus atos, imediatamente e ao mesmo tempo, e especialmente quanto ao ato especial e último de crer em Cristo como havendo morrido por mim. Pois, ainda que ela esteja inclusa nos atos da fé justificadora, contudo a princí­ pio não é um ato que imediatamente e no primeiro caso é exigida dos chama­ dos; antes, ela é o ato último que pressupõe muitos outros. Para que isso seja entendido mais claramente, é prcciso distinguir os vários atos da fé acima de todas as coisas. Primeiro, um é direto, o qual tem por seu objeto a palavra do evangelho e Cristo proposto nela, pela qual eu fujo para Cristo e abraço suas promessas; outro é reflexo, o qual tem por seu objeto o ato direto da fé pelo qual sou persuadido de que realmente creio, e que assim as promessas do evan­ gelho me pertencem. Tambcm o ato direto é duplo: um consiste no assentimen­ to que a fé dá à Palavra de Deus e às promessas do evangelho como verdadei­ ras em relação à dádiva da salvação a todos os que se arrependem e por meio de uma fé viva que busca asilo em Cristo e o abraça; o outro consiste no refú­ gio e na confiança pelos quais (reconhecendo Cristo como o único e todosuficiente Salvador) buscamos nele asilo e descansamos nele para que dele obtenhamos, respectivamente, o perdão de nossos pecados e a posse da salva­ ção. Ora, a fé que se exige no evangelho é exigida no tocante ao primeiro e ao segundo atos (que são diretos), antes de ser exigido o terceiro ato (o qual é o reflexo) e pressupõe necessariamente os dois primeiros, pois não pode existir, a menos que seja precedido por eles. Daí deduzirmos que no argumento supra­ citado há quatro termos: o maior fala do ato direto da fé que é ordenado na Palavra (a saber, quanto ao assentimento e refúgio); o último, porém, diz res­ peito ao ato reflexo quanto ao senso [quanto ao sentir] e à segurança {pepoithêsin) da fé. Pois Cristo não é revelado e prometido no evangelho como ha­ vendo morrido por mim em particular, mas somente em geral pelos crentes e penitentes. Daí, por consequência, estabelecido o ato fíducial em Cristo, posso e devo inferir que ele morreu por mim quando pelo ato reflexo sei e sinto com base no ato fíducial de que real e sinceramente busquei nele asilo. Ora, que a fé que nos é ordenada no evangelho não é uma crença mediata de que Cristo morreu por mim em particular transparece com suficiente clareza mesmo deste fato - que quando ela é ordenada, seja por Cristo, seja pelos apóstolos, não se faz nenhuma menção de sua aplicação particular a esta ou àquela pessoa, mas somente de uma relação geral seja ao dever ou às bênçãos prometidas aos crentes; como Pedro, em sua memorável declaração de fé (Mt 16.16), nada mais professa senão que crê que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo: “Nós temos crido e conhecido que tu és o Cristo, o Filho de Deus vivente” [ARC]” (Jo 6.69). Assim Paulo nada mais demanda dos que crêem para a salvação do que: “Se, com tua boca, confessares Jesus como Senhor e, em teu coração, creres que Deus o ressuscitou dentre os mortos, serás salvo” (Rm 10.9). As­ sim, quando os santos recebem a ordem de crer no nome do Filho de Deus (Jo 3.18; 1Jo 5.13), de fato são obrigados a crer que Cristo é o verdadeiro Messias e a fugir para ele como o único autor da salvação dos que, por meio da fé e

arrependimento, recorrem a ele, mas não que ele morreu por eles imediata­ mente (salvo depois que os atos precedentes tenham sido exercidos). XLVI1. Daí ser evidente que a ordem de crer em Cristo abarca muitas coi­ sas antes que cheguemos ao último ato consolador pelo qual cremos que ele morreu por nós. Primeiro, temos a ordem de crer em tudo quanto a Escritura nos revela concernente à nossa miséria e incapacidade de garantir nossa salva­ ção. Daí surgir um desespero salutar de nossa parte e o reconhecimento da necessidade de um antídoto. Segundo, aqueles que assim se desesperam de si mesmos têm a ordem de crer que Cristo, o Filho de Deus, é o único Salvador todo-sufíciente dado por Deus aos homens, em quem podem obter perfeita salvação e remissão dos pecados, os quais sinceramente buscam nele asilo e são guiados a um sério arrependimento de seus pecados. Terceiro, aqueles que são assim contritos e penitentes e que, perdendo a esperança em si mesmos, recebem a ordem de fugir e buscar refúgio em Cristo como a rocha da salva­ ção, os quais percebem que estão arrependidos e ora descansam em Cristo verdadeira e exclusivamente, por fim são obrigados a crer que Cristo morreu por eles e que justamente por causa de sua morte seus pecados estão remitidos. A luz de tudo isso fica bem claro que a fé em Cristo primeiramente pressupõe o senso da miséria e o anseio por livramento, e que a ordem de crer não se refere a todos indiferentemente, mas a todos os que sentem sua miséria e an­ seio por livrar-se dela, os quais têm fome e sede, que labutam e têm sobre si um fardo pesado, que estão quebrantados de espírito e contritos de coração (Mt 11.28; Is 61.1). Segundo, que esta ordem não demanda de nós, imediatamente e no primeiro caso, a fé pela qual cremos que Cristo morreu por nós, mas a fé pela qual buscamos em Cristo refúgio, o abraçamos e descansamos nele (o que nada mais é senão aquele movimento pelo qual o pecador arrependido, desa­ lentado sob o senso de sua miséria e despertado pelo chamado do evangelho, renunciando a todos os demais remédios e a toda e qualquer confiança, foge para Cristo como a rocha da salvação e de todo o coração deseja e busca arden­ temente a graça oferecida no evangelho). Ou, para expressá-lo mais concisamente, “a fuga do pecador arrependido para o abrigo de Deus como a fonte de toda graça e para Cristo como a arca da segurança franqueada no evangelho”. Se estou cônscio de que tenho feito isto (que é o ato formal da fé), então posso e devo evocar o outro ato da fé pelo qual creio que Cristo morreu por mim (quebrantado e refugiado nele), o qual é chamado o ato consequente, porque decorre do ato direto pelo qual creio em Cristo e me valho dele como o único e todo-suficiente Salvador; e o ato consolador, porque ele derrama na alma crente alegria indizível e consolação. Portanto, visto que ninguém pode ter este ato especial e reflexo da fé a menos que os demais atos precedentes te­ nham sido exercidos em consonância com o desejo de arrependimento genuí­ no, tudo indica que nem todos são obrigados a crer que Cristo morreu por eles, mas somente os crentes e penitentes (i.e., todos quantos, mediante o conheci­ mento do pecado e do senso da ira divina, estão de coração contrito, fogem

para Cristo e buscam nele a remissão dos pecados e a confiança unicamente em seu mérito para a salvação). XLVI1I. Em vão replicará alguém: (1) “que o mandamento da fé em Cristo abarca todos os seus graus e atos; e portanto todos aqueles atos, e entre eles o último, pelos quais cremos que Cristo morreu por nós, são requeridos de todos a quem o mandamento de crer é proclamado”. Tal é a natureza e a dependência destes atos, entre si, que não há lugar para o último sem o primeiro; nem para o tcrceiro sem o segundo; nem para o segundo sem o primeiro. Portanto, quan­ do a ordem de crer é anunciada, exige-se do pecador o primeiro ato, não para que estacione aí, mas para que, uma vez concretizado, avance para o segundo (sem realizar isso, nada feito). Pois não pode nem deve crer que Cristo é seu Redentor aquele que não quer crer que Cristo é o Filho de Deus e o Redentor dos homens; nem deve crer que ele é o Redentor hipoteticamente quem não crê que ele é o Redentor de todos os que crêem nele em tese; mas quem encontra em si mesmo os atos precedentes (que são o fundamento deste último), então, e somente então, pode e deve também exercer aquele último. XLIX. (2) “Que a tantos quantos é ordenado que creiam em Cristo é orde­ nado que recebam a fé justificadora, visto que de fato nenhum outro pode ser salvo; mas a fé justificadora implica necessariamente uma aplicação particular de que cremos, não só que Cristo morreu pelos homens em comum, mas tam­ bém por nós em particular, porque de outro modo ela não diferiria da fé histó­ rica dos réprobos; mais ainda, nem da fé dos demônios, os quais podem crer na mesma coisa”. Respondo que a fé justificadora ordenada no evangelho de fato abarca aqueles vários atos dos quais temos falado, mas cada um em sua própria ordem. Primeiro, o ato direto e formal chamado justificador, que consiste no juízo prático do intelecto concernente a Cristo como o único e perfeitíssimo Redentor dos que crêem, que se arrependem e seriamente buscam nele asilo; também no refúgio da vontade que foge para Cristo e descansa somente nele. Segundo, o ato reflexo e consolador, que decorre de si mesmo quando o pri­ meiro é realizado. Pois desde o momento em que me sinto persuadido pela promessa evangélica, seriamente busco refugio em Cristo, espero somente dele a justiça e a vida e repouso nele, posso e certamente devo inferir que Cristo morreu por mim, visto que, com base no evangelho, estou seguro de que ele morreu por todos quantos crêem e se arrependem. Daí ser fácil a resposta ao argumento segundo o qual - todos quantos são obrigados a ter fé justificadora são obrigados a crer que Cristo morreu por eles. Nego que isto seja verídico do ato imediato e direto da fé; contudo admito ser verídico do ato reflexo e secun­ dário ou no sentido composto (e sendo pressuposto o primeiro ato), mas não no sentido dividido (e em que o primeiro ato é excluído). Nem por isso a fé dos crentes concorda com a dos réprobos e dos demônios. Pois embora os réprobos possam teoricamente crer que Cristo é o Filho de Deus e o Redentor dos ho­ mens, contudo realmente nunca ficam tão veraz e praticamente persuadidos disso, mediante um assentimento fíducial à Palavra de Deus que fujam para ele

e descansem somente nele. Pois se fossem realmente persuadidos de que Cris­ to é o único e perfeito Salvador dos crentes e penitentes (e que fora dele não há salvação), visto que necessariamente seguirá os ditames do intelecto prático de que todos naturalmente buscam a felicidade, seria impossível que não fu­ gissem para Cristo, abraçando-o de todo o seu coração para salvação. Daí tam­ bém se vê que a fé dos demônios nada tem em comum com a dos eleitos, visto que eles sabem que Cristo só é dado aos homens (e nem podem obter nenhuma confiança fiducial em referência a ele). L. (3) “Que ninguém pode depositar sua confiança em Cristo se não sabe de antemão que ele morreu por ele ou é seu Salvador. Pois o homem nem sempre anseia por sua salvação até que conheça a intenção de Deus e a vontade de Cristo, se a morte de Cristo foi designada para ele segundo o propósito de Deus”. Minha resposta é que há duas partes ou dois atos da confiança cristã: o primeiro está na fuga para Cristo e em recebê-lo; o segundo está na aquiescên­ cia e alegria que emanam do senso de haver recebido a Cristo. O primeiro é o ato da fé pelo qual fugimos para Cristo como o único Salvador, aderimos a ele e nos apropriamos dele para a salvação. O segundo é o ato pelo qual, ao fugir­ mos para Cristo e descansarmos nele, confiamos que temos (e eternamente teremos) comunhão com ele em sua morte e em seus benefícios, bem como aquiescemos a ele, ficando firmemente persuadidos de que ele morreu por nós, e de que por sua morte nos reconciliamos com Deus. O primeiro é por alguns chamado “fé em Cristo”; o segundo, “fé acerca de Cristo”. O segundo diz respeito a Cristo como tendo morrido por nós, porém não o primeiro. Pois ninguém pode saber que Cristo morreu por ele a menos que primeiramente creia nele. Pois, visto que ele é prometido somente aos crentes e penitentes, antes tenho que fugir para Cristo e apreender seu mérito com o desejo de real arrependimento antes de poder determinar que sua morte me pertence pelo decreto de Deus e pela intenção de Cristo. Não que minha fé faça Cristo ter morrido por mim (pois sua morte ocorreu antes de toda fé na qualidade de causa meritória e na graça da fé ser um fruto e um efeito da morte de Cristo), mas porque é um sinal e uma condição dos quais reconheço um a posteriori de que a morte de Cristo me foi destinada desde a eternidade. Se ainda não posso determinar que Cristo morreu por mim, não devo por isso viver sempre ansioso e minha fé não deve ser sempre oscilante e inconstante. Ela pode repousar firme­ mente nas promessas gerais do evangelho feitas aos crentes e penitentes. Daí mediante certa consequência posso deduzir a posteriori se encontro em mim mesmo a fé e o arrependimento que me dizem que tais promessas me pertencem. Ll. (4) “Que, mediante nossa hipótese, o fundamento da consolação do pecador é subvertido, porque somos obrigados a proceder de um particular para um universal: Cristo morreu por alguns; portanto ele morreu por mim. Segundo as leis do bom raciocínio, devemos proceder de um universal para um particular: Cristo morreu em favor de todos e de cada um; portanto, também

cm meu favor”. Mas (a) é uma suposição gratuita dizer que procedemos aqui de um particular para um universal (o que todos vêem que é um absurdo). Pois partimos inteiramente de um universal (porém numa certa ordem e num certo aspecto) para um particular: Cristo morreu por todos os que crêem e se arre­ pendem; ora, eu creio e me arrependo; logo, ele morreu também por mim. (b) É falso dizer que se pode extrair uma base de consolação da universalidade absoluta da morte de Cristo, porque não se pode extrair nenhuma consolação sólida daquilo que é comum a crentes e a incrédulos (mais ainda, às inumerá­ veis multidões que têm estado e estarão condenadas igualmente com aqueles que serão salvos). Pois, visto ser possível presumir que ele morreu inclusive por Judas e pelo Faraó (os quais não obstante pereceram), como é possível que por isso o medo da condenação seja removido de mim? Se você diz que esse medo pode ser removido pela fé, devemos partir para outro silogismo em rela­ ção a todos os crentes (não em relação a todos os homens): Cristo morreu em favor de todos e de cada um dos que crêem; ora, eu creio; logo, ele morreu por mim, pois todos quantos crêem no Filho jamais perecerão, mas terão a vida eterna. Este é precisamente nosso método, (c) Não é possível derivar nenhuma paz sólida daquilo que é insuficiente para a salvação, sendo que isso não impe­ de nem pode, somente isso, impedir a preterição ou condenação de inumerá­ veis multidões (como acontece com a graça universal e objetiva sem a subjeti­ va). O que adiantará ao pecador saber que ninguém pode ser participante da­ quela morte sem a fé? Ele não estará sempre ansioso em saber se pertence ao número daqueles a quem Deus quer conceder fé, visto que a mesma não é dada a todos? Porventura todas as dificuldades (scrupu/us) que podem ser contra­ postas à misericórdia e à redenção particulares não podem ser igualmente apre­ sentadas contra um decreto particular de outorgar fé? Portanto, se a consciên­ cia não puder firmar-se solidamente (exceto sobre a suposição da misericórdia universal do Pai e da redenção universal do Filho), ela nunca poderá firmar-se, exceto sobre a suposição de um chamado e de uma graça universais do Espíri­ to. Se daí surgir a dificuldade - quem pode saber se Cristo morreu por mim, porque ele não morreu por todos? - quem dera não surja também daí - quem pode saber se Deus quer dar-me fé e se eu pertenço ao número dos eleitos ou daqueles que são preteridos? Além do fato de que todas essas dificuldades provêm do desejo de saber o que não é dado ao homem saber (visto que não cabe a nenhum mortal sondar a p rio ri os segredos da eleição e da reprovação), o homem deve aqui proceder a posteriori e examinar-se para ver se realmente se arrependeu ou não de seus pecados. Se a resposta é sim, então ele deve nutrir uma sólida confiança na graça de Deus e sua eleição pessoal. Se a res­ posta é não, então deve usar os meios prescritos por Deus para ouvir, ler, pon­ derar a Palavra e derramar orações ardentes diante de Deus pela obtenção dos dons do arrependimento e da fé. Tampouco se pode apresentar qualquer difi­ culdade sobre este tema, cuja solução não repouse em nossos doutos oponen­ tes juntamente conosco (a menos que, com os anninianos, eles queiram reco­

nhecer a graça suficiente subjetiva e universal, dogma evidentemente pelagiano que, pela graça de Deus, até agora eles têm constantemente professado rejeitar). Portanto, é possível buscar um sólido fundamento de consolação, não da universalidade da morte de Cristo, mas da universalidade das promessas com respeito aos que crêem e se arrependem. LII. Dado que os réprobos, que não crêem no evangelho, serão merecidamente condenados por sua descrença, não se segue que tenham recebido a ordem de crer que Cristo morreu por eles. Há vários atos de incredulidade além desse: por exemplo, aquele que não crê que Jesus é o Filho do Deus vivo e o Messias enviado por Deus, mas sim um falso profeta e impostor, ou que não acredita que a fé nele é uma condição necessária para a salvação, é merecidamente julgado culpado de incredulidade, embora seja possível que nunca tenha imaginado que Cristo morreu por ele. Pois a confiança nele (o que Cristo tão frequentemente demanda e por cuja ausência ele repreende os judeus) abarca muitas coisas; tampouco se creu imediatamente entre os judeus que Cristo era seu Mediador e Redentor; e mais, não se poderia crer nisso, a menos que mui­ tas outras coisas o precedessem. Pois primeiramente tinham de crer que a sal­ vação não se radicava na lei, ou nas cerimônias e nas obras legais; que a salva­ ção tinha de ser buscada somente no Messias prometido pelos profetas; que Jesus de Nazaré era aquele Messias e que todos quantos cressem nele seriam salvos. Todos esses atos de fé um tanto gerais tinham de preceder a confiança em que Cristo morreu por ele. Não se pode dizer que todos esses atos estejam compreendidos na ordem de crer cm Cristo e, principalmente, no ato especial e de apropriação. Como dissemos acima, embora todos esses atos estejam in­ clusos, contudo são ordenados numa certa ordem, alguns antes, outros depois; não os últimos sem os primeiros, mas somente depois que os primeiros fossem exercidos; e na suposição de que os primeiros atos não tenham sido realizados, não poderá haver lugar para os últimos. L1I1. Ainda que, pela pregação do evangelho, Deus ofereça Cristo aos cha­ mados, com seus benefícios, não se segue que ele teria morrido por eles a fim de que a oferta não fosse insincera. Ele não é oferecido absoluta e simplesmen­ te, mas sob a condição de fé e arrependimento; não como uma verdade narrada que, quer seja crida quer não, sempre permanece veraz, mas como uma verda­ de prometida, a qual só se certifica ser verdadeira quando sua condição é cum­ prida (como declarou Cameron). Deste fato segue-se que há uma relação indis­ solúvel entre fé e salvação, e que estão obrigados à fé todos os que desejam desfrutar de Cristo e seus benefícios e que são chamados a Cristo; mas de modo algum se pode inferir deste chamado que Deus, por seu decreto eterno e imutável, destinou Cristo como o Salvador de todos os que são chamados ou que teve a intenção de que Cristo, por sua morte, adquirisse salvação eterna para todos e para cada um. Pois a palavra do evangelho proclamada aos cha­ mados não declara seu decreto eterno concernente a cada um dos chamados isto é, que nele ele destinou a redenção por meio de Cristo e a salvação de

todos e de cada um. Antes, indica a ordem divina dirigida a eles com uma promessa anexa; ou qual é o dever dos que desejam ser participantes da reden­ ção e salvação granjeadas por ele. Não devemos presumir que por isso mesmo tal oferta seja adversa ao seu decreto. Embora não corresponda ao decreto concernente às pessoas pelas quais ele destinou Cristo como o Salvador exclu­ sivamente dos eleitos, e sua morte como o preço de sua redenção, e tenha decretado outorgar-lhes a fé (visto que a expressão e a execução deste decreto não consistem no chamado externo por intermédio da Palavra, mas no intemo, do Espírito, que por isso é chamado vocação segundo um propósito [kataproíhesin]), contudo corresponde mui plenamente ao decreto em referência às coisas ou à ordem e aos meios da salvação pelos quais agradou a Deus entrela­ çar Cristo e a fé e oferecê-lo a todos os chamados. Cristo fala deste decreto em João 6.40: “E esta é a vontade daquele que me enviou, que todo aquele que vir o Filho e crer nele tenha a vida eterna”. E assim as promessas condicionais feitas aos que crêem e se arrependem mostram a todos os chamados a relação da fé com a salvação em conformidade com a ordenação de Deus, e quais deles obterão a remissão dos pecados e a salvação (a saber, os crentes e penitentes). Mas elas não fazem mais conhecido que Cristo morreu por todos os ouvintes do evangelho do que o fazem de que todos crerão e obterão o perdão do peca­ do. Contudo, da remissão que obtêm os que crêem e se arrependem, certamen­ te decorre que Cristo morreu por eles. Também decorreria quanto aos demais, se porventura cressem e se arrependessem. Mas arrazoa falsamente quem infe­ rir daí que Cristo morreu por todos, sob a condição de que cressem, porque ele arrazoaria incorretamente partindo do condicional para o absoluto. LIV. Temos prazer em compor aqui um arremate com o parecer de Diodati e Tronchin, os mui eminentes teólogos representantes no Sínodo de Dort, os quais, em nome de toda a igreja genebrina, apresentaram ao egrégio Sínodo esta como sendo a fé comum da igreja, que jamais será rejeitada: “Cristo, com base no puro beneplácito (eudokia ) de seu Pai, foi designado e dado para ser o Mediador e a Cabeça de certo número de homens, constituindo seu corpo mís­ tico mediante a eleição divina” {Acta Synodi N ationalis... Dordrechti, Head 11, Th. 1 [1619-1620], 2:130). “Por estes Cristo, plenamente cônscio de sua voca­ ção, quis e decretou morrer e acrescentar ao valor infinito de sua morte uma intenção sumamente eficaz e especial de sua vontade” (Head II, Th. 2, ibid.). E: “As proposições universais, que se encontram nas Escrituras, não signifi­ cam que Cristo morreu em favor de todos e de cada um, e que prestou satisfa­ ção por eles segundo o propósito de seu Pai e por sua intenção pessoal. Mas necessariamente se restringem à totalidade do corpo de Cristo; ou apontam para a economia da nova aliança, pela qual, sem levar em conta qualquer dis­ tinção externa de pessoas, o Filho recebe como sua herança todas as nações, isto é, a todos os povos e em comum, por seu beneplácito, ele revela e envia a graça da pregação, e dentre eles congrega sua igreja, a qual é o fundamento do chamado geral do evangelho” (Head II, Th. 6, ibid., p. 132). Quanto a outras

questões pertinentes a este tema, ver Tópico IV, Pergunta 17 e Tópico XII, Pergunta 6. D

é c im a

Q

u in t a

P erg u nta: A I n terc essão

de

C r is t o

Por que e como Cristo intercede por nós?

I. A outra parte do oficio sacerdotal de Cristo consiste na intercessão. Con­ cernente a esta, três coisas podem-se observar: (1) sua necessidade; (2) sua unidade; (3) seu modo e natureza. De sua unidade, tratamos sob a unidade do Mediador (Pergunta 4). Devemos agora discutir sucintamente sua necessidade e sua natureza ou modo. Vários argumentos provam a necessidade de sua intercessão. (1) A instituição de Deus, o qual quis que no sacerdóeio houvesse duas partes - satisfação e intercessão; justamente como se fazia sob o Antigo Testamento o sumo sa­ cerdote era obrigado a fazer duas coisas em virtude de seu °fício - primeiro, oferecer uma vítima sobre o altar de todos os holocaustos; segundo, levar o sangue da vítima ofe­ recida ao Lugar Santo e queimar incenso sobre o altar do incenso. Uma vez concluído seu sacrifício na terra, sobre a cruz, Cristo inter­ cederia no céu. Daí Paulo testificar que, se ele estivesse na terra, nem mesmo seria sacerdote (Hb 8.4), porque ele não deve exercer seu serviço (leitoargian) num templo terreno (feito por mãos humanas), mas no celestial. Prova-se a necessidade da intercessão de Cristo: (I) com base em sua instituição p o r j ) euSm

® método de nossa salvação; não era suficiente obter sa*vaÇao uma vez>a menos que ela pudesse ser perpetuamente preservada e aplicada. Cristo obteve o primeiro por sua satisfação, porém o segundo ele granjearia por sua in­ tercessão. Pelo primeiro, ele obteve a salvação; pelo segundo, ele a preserva. Pelo primeiro, ele adquiriu o direito à vida e nos reconciliou com Deus; pelo segundo, ele atualmente nos admite à participação da vida e nos ajuda continu­ amente quando uma vez estabelecidos na graça de Deus. 2. Com base no m étodo de nossa salvação

& ) A consideração de nossa indignidade; visto que nossa indignidade é tal que não poderíamos achegar-nos a Deus pessoalmente (o qual é fogo consumidor), era necessário que um Mediador se interpusesse para nosso auxílio e nos assegurasse acesso a Deus, de modo que pudéssemos aproximar-nos confiantes do trono da graça. E visto que ofendemos a Deus a cada dia, necessitamos de um Advoga­ do que interceda por nós diariamente. 3. Com base em nossa indignidade.

4 Com base



na acusaçao do D iabo



^ ^ acusação do Diabo; pois, como ele nos incrimina e nos acusa continuamente diante de Deus, temos necessidade , . , , . . . . . , um Advogado muito eficaz a pleitear nossa causa diante de Deus, contra as acusações de um adversário extremamente in-

justo - a fim de fechar sua boca (Zc 3.2) c eliminar a culpa dos crimes lançados em nossa responsabilidade (Rm 8.33). O que é VI. Concernente à natureza de sua intercessão, os socinianos intercessão? erram 30 afirmar que ela deve ser entendida figuradamente c como pertencendo propriamente ao seu ofício real, e que nada mais significa senão que “Cristo, munido com poder divino, zelosamente cum­ pre todas as coisas pertencentes ao método de nossa salvação”, como o expres­ sa Volkelius (D e vera Religione 3.38 [1630],p. 149). Seu intuito é que isto seja designado pelo termo “intercessão” para que transpareça que Cristo tem o po­ der de governar-nos e de granjear nossa salvação, de modo algum com base em si mesmo, mas em seu Pai. Assim subvertem todo o sacerdócio de Cristo, fazen­ do dele apenas Rei. Os ortodoxos, porém, crêem que é preciso sustentar uma intercessão real como parte de seu oficio sacerdotal, distinto do ofício real. razões sao: ( ') Cristo é por toda parte apresenta­ do como 3 realizar o ofício de intercessão, não como Rei, de Sacerdote mas como Sacerdote: “Porque Cristo não entrou em san­ tuário feito por mãos, figura do verdadeiro, porém no mesmo céu, para comparecer agora por nós diante de Deus; nem ainda para se oferecer a si mesmo muitas vezes, como o sumo sacerdote cada ano entra no Santo dos Santos com sangue alheio” (Hb 9.24,25). O apóstolo manifestamen­ te faz alusão ao sumo sacerdote veterotestamentário, o qual, uma vez ofereci­ do o sacrifício, entrava no Santo dos Santos com o sangue da vítima com o fim de interceder pelo povo. Daí ser ele descrito como comparecendo (emphanismori) diante da face de Deus, o que não pode ser uma referência ao exercício de seu poder régio, mas propriamente a uma intercessão sacerdotal. VIII. (2) No mesmo sentido, ele é chamado nosso Advogado (paraklêtos ) junto a Deus (Uo 2.1) com o fim de fazer súplicas pelo perdão de nossos pecados e pleitear nossa causa como Advogado e Defensor junto a Deus contra as calúnias impostas por Satanás, “o acusador [kafêgorou] de nossos irmãos” (Ap 12.10). O Espírito Santo deveras se distingue pelo mesmo nome (Jo 14.26), mas com um significado distinto. Pois como a palavra às vezes significa um conselheiro ou mestre e senhor, às vezes um advogado, então também consola­ dor, Cristo é chamado propriamente um paraklêtos sob a segunda noção cm virtude de sua intercessão. O Espírito Santo, porém, é assim chamado sob a primeira e a terceira, já que lhe pertencem no caráter de mestre e senhor (o qual nos guia a toda a verdade) e como consolador para encorajar-nos pelas promessas da graça e incitar em nós gemidos que não podem ser exprimidos, por meio dos quais podemos clamar diante de Deus. IX. (3) Em Apocalipse 8.3, a intercessão de Cristo nos é representada pelo anjo junto ao incensário de ouro, a quem foi dado muito incenso a ser ofereci­ do com as orações dos santos sobre o altar de ouro que fica diante do trono. Todos estes são realmente atos de sacerdote, não dc rei. Porque por toda parte Cristo intercede

da qualidade

prova-se que isto só pode referir-se a Cristo, sendo refutadas as objeções de nossos oponentes. X. (4) Se sua intercessão nada mais fosse do que o emprego do poder real, estes dois ofícios (cuidadosamente distinguidos na Escritura) seriam confun­ didos. Nem Cristo teria sido prefigurado pelos sacerdotes e comparado com eles, mas somente com os reis. Fontes de XI. A intercessão atribuída a Cristo não derroga sua glória, porexnlana -ão ^ue e*a nao ® caratcr suplicatório c segundo o modelo de ' ’ pedido (como a dos santos na terra e dos homens que oram por si mesmos); mas um discurso eficaz segundo o modelo de jurisdição (como comumente é chamada) pela qual Cristo reiteradamente apresenta a Deus seu sangue uma vez derramado para que por sua virtude e eficácia nossos pecados sejam perdoados e o dom da perseverança nos seja outorgado. Isto prova uma economia de oficio, porém não diminui sua glória. Justamente por isso, Paulo reivindica distinta e respectivamente para Cristo, seu assentar-se à destra [de Deus] e sua intercessão por nós (Rm 8.34), com o fim de indicar que ambos lhe pertencem propriamente: o primeiro lhe pertence no caráter de Rei; a segunda lhe pertence no caráter de Sacerdote. XII. Como a humanidade de Cristo não nos impede de invocá-lo e adorá-lo como o Rei supremo e onipotente, visto que ele não é meramente homem, mas o Deus eterno em pé de igualdade com o Pai, assim seu poder divino e régio não o impede de interceder por nós, visto que ele é Deus-homem (theanthrõpos ), e como tal o Mediador entre Deus e os homens. Quanto 30 m°do de sua intercessão: (1) as circunstâncias oraÇã° nao devem ser consideradas como pertencentes a e*a’ corno se e*e se ajoelhasse como fazem os suplicantes, er­ guesse suas mãos ou olhos ao céu e se prostrasse diante de Deus (o que seria inconsistente com a glória que ele obteve ao assentar-se à destra de Deus); mas tão-somente a substância da oração, pela qual ele declara e solicita as bênçãos que nos são necessárias. (2) Esta intercessão é feita ou em palavras expressas ou interpretativamente; mais com coisas do que com pala­ vras mediante uma representação de sua morte no céu, no que se diz que o sangue de Cristo fala (Hb 12.24). (3) Seja feita deste ou daquele modo, não devemos presumir que ela é feita para a obtenção de algo à guisa de novo mérito, porque Cristo, em sua morte, já consumou todas as coisas (como ele mesmo testifica, Jo 17.4; 19.30, como o faz Paulo, Hb 7.28; 10.14). Antes, devemos ter em mente que o que ele adquiriu para nós, mediante o mérito de sua morte, pode ser-nos fatual e eficazmente aplicado para a salvação. XIV. Esta intercessão consiste de vários atos. ( 1 ) 0 comparecimento de Cristo em nosso favor, pelo qual ele se põe diante de Deus o Pai como o único que prestou satisfação por nossos pecados, apresentando o sangue uma vez derramado (i.e., o mérito de sua morte) e rogando à vista dele que nossos peca­

Q ual é o m odo de sua in tercessão9

dos sejam perdoados e todas as bênçãos necessárias para a salvação nos sejam outorgadas, ate que ele nos tenha introduzido na posse da plena felicidade: “Pai, minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam minha glória que me conferiste, porque me amaste antes da fundação do mundo” (Jo 17.24). Daí o Cordeiro ser visto em pé no céu, como tendo sido morto (hõs esphagmenos, Ap 5.6), porque seu sangue é sem­ pre novo e vivo (i.e., de virtude e eficácia eternas). (2) Nossa defesa e proteção contra os raios fulminantes da lei e as acusações de Satanás, pleiteando nossa causa ante o tribunal de Deus. (3) Sua fiança por nós pela qual, como ele demanda a graça do Pai e os dons do Espírito necessários para nossa perseve­ rança, assim, por sua vez, em nosso nome ele promete a Deus obediência e fidelidade. (4) A oferenda de nossas pessoas e a santificação de nossas orações e de todo o nosso culto, visto que ele apresenta todas nossas orações a Deus como sacrifícios espirituais, perfumados com o mui fragrante odor de seu pró­ prio sacrifício, de modo que nele e por meio dele sejam agradáveis e aceitas (IPe 2.5). Daí ser ele representado como um anjo com um incensário aceso (Ap 8.3) a quem é dado muito incenso, para que o ofereça com as orações dos santos. Em outro lugar ele é descrito como um altar sobre o qual devem ser depositados nossos sacrifícios, e somente sobre o qual devemos oferecer a Deus nosso culto racional, para que o mesmo lhe seja agradável. XV. Transparece daí quão ampla e grandemente as orações que os crentes oferecem uns pelos outros diferem da intercessão de Cristo. Pois somente Cristo intercede por nós contando com seu próprio mérito e justiça, por si só e em virtude de si mesmo obtém o que busca, achega-se a Deus por si mesmo imedi­ atamente e sem qualquer outro intercessor, pessoalmente se põe em nosso lu­ gar e comparece diante de Deus, pessoalmente oferece a Deus nossas pessoas, orações e ações. Os crentes, porém, não contam com seu próprio mérito, nem buscam nem obtêm algo por si sós e em virtude de si mesmos, mas somente em nome de Cristo. Não ousam aproximar-se imediatamente de Deus sem Cristo, nem presumem pôr-se em nosso lugar diante de Deus, nem podem apresentarlhe nossas pessoas e orações. Daí os romanistas associarem a intercessão de Cristo com intercessores secundários com não menos sacrilégio do que quan­ do associam seu sacrifício com sacerdotes secundários; nem suavizado é este crime pela distinção que fazem entre mediadores de intercessão e mediadores de redenção (como já vimos). XVI. Mas quando se atribui intercessão a Cristo, é preciso não restringi-la à sua natureza humana ao ponto de removê-la totalmente da divina, considera­ da em união pessoal com ela. Embora ela não possa pertencer à segunda com respeito à essência absolutamente (visto ser um com o Pai sob esta relação [scheseí \ ), a oração não pode ser predicado dela (pela qual ele demanda algo do Pai). Não obstante, nada nos impede de lhe atribuir intercessão segundo a economia da graça, porque orar é tão coerente com ela como tomar a forma de servo e empreender a obra medianeira.

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S exta P e r g u n t a : O R

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C r is t o

Se o reino econômico de Cristo é temporal e terreno, ou espiritual e celestial Negamos a primeira hipótese e afirmamos a segunda contra osjudeus.

I. A terceira parte do ofício medianeiro é seu reino (ou seja, aquela digni­ dade e autoridade com que ele governa a igreja por meio de sua Palavra e de seu Espírito, e a defende e preserva contra todos os inimigos). É preciso consi­ derar sua necessidade, veracidade e natureza. ^*as’ antes tQdas as coisas, devemos distinguir o reino duplo, pertencente a Cristo: um natural ou essencial; o outr0, med*aneiro e econômico. Cristo possui o primeiro so­ , , „ ., bre todas as criaturas com glória e majestade iguais às do ' Pai e do Espírito Santo. O segundo (conforme a economia da graça) ele administra de maneira peculiar como Deus-homem (theanthrõpos ). O primeiro se estende igualmente sobre todas as criaturas; o segundo culmina especialmente na igreja. Aquele está fundado no decreto da providência; este, no decreto da eleição. Aquele é exercido por Cristo, uma vez que ele é Deus ( Theos) e o Logos (Logos); este, porque ele é Deus-homem (theanthrõpos ). Daí seu reino ser chamado “reino medianeiro e econômico”, porque ele cons­ titui um domínio peculiar do Mediador e como se fosse propriamente seu, conforme a dispensação da graça. O outro lhe pertence por natureza e por isso mesmo é chamado “natural”. O medianeiro lhe pertence com base na institui­ ção soberana de Deus, porque o constituiu Rei sobre a igreja (SI 2.6). O reino de Cristo é d u n l)• natural e '

^ necessidade do reino medianeiro de Cristo depende de tr^s particulares: ( 1) 0 decreto de Deus, que o elegeu desde a eternidade; (2) o método de nossa salvação, que requer não só a anunciação dele por Cristo como Profeta e a aquisição dele ’ por ele como Sacerdote, mas também a aplicação e conserva­ ção dele para sempre por ele como Rei; (3) os inimigos mais perigosos (mais poderosos que o mundo c o inferno), contra os quais necessitamos de proteção e a guarda de um Rei; isto somente Cristo pode ser, como o Senhor do céu e da terra, o Rei dos reis e o Senhor dos senhores (Ap 17.14). D e d ir-se sua ^ ue Cristo deve ser o verdadeiro Rei transparece não só veracidade Pr'me'ra promessa, concernente à semente da mulher que das profecias um ^ 'a esma8ar'a a cabeça da seipente, ou concernente à vi­ ráf'a a ser 8an^a Por Cristo sobre Satanás (o que evidente­ e dos tipos ’ mente pertencia particularmente ao ofício real de Cristo); transparece também das várias e notáveis profecias que atribuem esta dignida­ de ao Messias (SI 2; 45; 72; 89; 110; Dn 2; Jr 23.5,6; Zc 6; 9; Is 11). Transpa­ rece igualmente dos muitos e notáveis tipos dados concernentes a ele, mas especialmente nos reinos de Davi e Salomão que (todos confessam), acima de todos os demais, prefiguravam a Cristo: o primeiro, Cristo sofrendo e lutando; o segundo, Cristo vitorioso e reinando em paz.

Prova-se a necessidade do reino m edianeiro

. . Eie consiste de duas )artes. “ destinaçao e _

V. Como a constituição do reino se decompoe em duas par. • ~ . ~ l. • ~ - destinaçao eterna e vocaçao, bem como ínauguraçao no tempo assim sua administração e seu exercício con. . . . „ . .,, _ sistcm principalmente em quatro coisas: (1) na vocaçao e vocaçao. y ^ ' Y reunião da igreja; (2) em sua conservaçao e governo; (3) em sua proteção e defesa contra todos os seus inimigos; (4) em sua plena e perfeita glorificação, a concretizar-se no último dia. As primeiras três perten­ cem a esta vida por meio da graça; a quarta pertence à vida futura na glória. VI. A questão aqui não é: Cristo, o Messias, deveria ser um ^ e' ,>^°*s os judeus concordam conosco que isto é as­ ' sim. Antes, a questão diz respeito ao sistema daquele rei­ no - se ele seria deste mundo ou terreno, ou espiritual e celestial. A primeira hipótese é mantida pelos judeus, que, com base num ponto de vista errôneo das profecias concernentes à glória do Messias, esperam um Rei temporal e terre­ no. Ele os conduzirá (ora exilados) de volta à sua terra natal com grande mor­ ticínio de seus inimigos, e lhes concederá todo gênero de felicidade. Esta opi­ nião prevaleceu entre os judeus até o tempo de Cristo, não só entre seus própri­ os líderes, mas também entre os próprios apóstolos, os quais anteciparam es­ perançosamente as administrações terrenas e contenderam pela supremacia; sim, mesmo depois de sua ressurreição ainda indagaram dele: “Senhor, será este o tempo em que restaures o reino a Israel?” (At 1.6). Não obstante, em razão das várias alusões veterotestamentárias dos sofrimentos do Messias (in­ coerentes com a glória de tal reino), os judeus mais modernos inventaram um duplo Messias - um cujo pai será José, humilde e pobre, exposto a várias perseguições; o outro, o filho de Davi, forte e poderoso, que reinará com mag­ nificência no mundo. Este delírio é facilmente refutado com base no consenso dos antigos (que reconheciam somente um Messias), bem como da própria Escritura, que fala somente de um, a quem pertenceriam dois estados - humil­ dade e glória. Daí os ortodoxos inferirem que seu reino não é deste mundo e terreno, mas espiritual e celestial.

E stabelecim ento da auestão

VII. Primeiro, com base nas profecias veterotestamentárias, 0 Messias viria quando o cetro fosse removido de Judá e o P°der legislativo fosse afastado (Gn 49.10); como de fato se deu no tempo de Cristo, estando os judeus sob o poder dos romanos. Daí ele não poderia ser um Rei temporal, porque nao há coerência em ser um Rei e estar em sujeição a outro. Daniel fala de seu aparecimento no tempo em que a cidade e 0 templo estariam subvertidos e não restaria mais nenhum vestígio deles (Dn 9.26). 2. Porque ele f o i VIII. Segundo, o reino de Cristo foi prefigurado por váriprefigurado p o r os reinos temporais. Ora, as coisas corporais e terrenas reinos terrenos. não são tipos de coisas corporais e mundanas homogêneas Prova de que o reino de Cristo não é terreno m as espiritual(1) com base em Gênesis 49.10 e em D aniel 9.26.

com elas, mas dc coisas melhores e mais excelentes (i.e., espirituais). A figura deve ser inferior à coisa figurada por ela; a sombra, à substância. Visto que o governo veterotestamentário (prefigurando o reino de Cristo) era físico, o rei­ no de Cristo teria de ser espiritual. Terceiro, tl'd° 0 pertence a este reino é espiritua*’ na0 ^este munc'0 e terreno: (a) o Rei humilde e pobre (Zc 9.9), que viria sem forma nem formosura como uma vara do tronco de Jessé (Is 11.1); que veio na f°rma de servo para ministrar, não para ser ministrat*° 20.28); que se sujeitou à autoridade dos ro­ ’ manos e lhes pagou tributo (o que todos percebem ser incompatível [asvstata] com um reino terreno), (b) Seu trono não é terreno e visível, mas divino e celestial; à destra de Deus onde se assentaria (SI 110.1). (c) Seu cetro não é material, mas místico (ou seja, a palavra do evangelho, ls 2.3). Este é realmente chamado “cetro de seu poder” (SI 110.2), porque é o poder de Deus para a salvação e o braço do Senhor (Rm 1.16; Is 53.1). (d) Seus súditos não são terrenos e carnais, mas espirituais e celestiais; regenerados pelo Espírito, nascidos não da carne, mas de Deus (Jo 1.13*), cuja cidadania (politeum a) está no céu (Fp 3.20); um povo de boa vontade (ndhbhvth , SI 110.3), que nasceria do ventre da manhã (i.e., da luz do evangelho) e espiritualmente adornado com as belezas da santidade, (e) O modo de administração é inteira­ is m odo de sua mente espiritual, não por força nem por poder, mas por

3 Porque as coisas pertin en tes a este reino são espiritu ais • o R ei' seu tro n o ’ seu ’ ce tro • seus súditos

seu EsPírit0 (Zc 4 6 ; 0 s 2 1 8 ; 2Co 10'4>- ^ As leis espirituais são aquelas que regulam não so os atos extemos, mas também os atos internos de um homem e o transferem das coisas terrenas e físicas para as celestiais e divinas - um serviço não carnal e físico, composto de cerimônias externas, mas espiritual, em Espírito e em verdade (Jo , 4.24; Rm 12.1; IPe 2.5). (g) As bênçãos prometidas não são tem‘ porais (embora às vezes sejam representadas por figuras delas), mas espirituais e celestiais: remissão de pecados, justiça eterna, dom do Espí­ rito, salvação e vida eterna.

adm inistração; leis

Quart0’ 0 Messias havia de vir com o propósito de abolir 0 t'r3n'C0 reino de Satanás (introduzido pelo pecado), expiar 0 Pecad° e introduzir a justiça eterna (Dn 9.24). Ora, estas ’ coisas só poderiam ser feitas espiritualmente; pois como Sata­ nás, o príncipe deste mundo, reinou entre os homens mediante seus erros e pecados, assim Cristo é o Rei da igreja (Satanás tendo sido vencido pela morte na cruz, Cl 2.15) e reina espiritualmente nos corações dos crentes mediante a fé, o amor e a prática de boas obras. 5. Porque XI. Quinto, o reino do Messias é o reino do céu (como em outras é o reino partes da Escritura é distinguido por este título e reconhecido do céu. pelos próprios judeus), o qual, pois, não pertence ao mundo, mas

4 Com base no ro ósito do reino

ao céu. É celestial (a) na origem, porque não foi inaugurado por poder e sabe­ doria humanos, mas somente pela providência divina; (b) no estado, porque consiste inteiramente das coisas celestiais, místicas e divinas, e não de coisas terrenas e físicas; (c) na ação, porque se ocupa totalmente da distribuição das bênçãos celestiais (Rm 14.17). Sexto, o reino de Cristo não é deste mundo (Jo 18.36). Cristo não nega que seu reino esteja neste inundo, porque ele fora designado por Deus para governar no meio de seus inimigos (SI 110.2); porém nega que seu reino seja “deste mundo” e (como adiciona no final do versículo) “meu reino não é daqui” (enteuthen ). Ele não diz: “Meu reino não está aqui”, mas “ele não é daqui”; “ele está no mundo”, porém “não é do mundo”, como diz Agostinho (“Tractate 115”, On lhe G ospel o f St. John [NPNF1, 7:424; PL 35.1939]). Ele não é do mundo no tocante à origem, porque não é constituído pelo mundo e pelos homens que vivem no mundo como os reinos do mundo. Antes, ele tem Deus como seu único e ime­ diato fundador, por cuja autoridade foi erigido e por cujo poder é fortalecido. Ele não é do mundo no tocante ao modo, porque os reinos do mundo são com­ postos e defendidos por uma multidão de súditos, inúmeras províncias, agru­ pamentos de cidades, abundância de riquezas, fortes bem protegidos, guarni­ ções armadas e outros meios externos, sem os quais cairiam facilmente. Mas o reino de Cristo (como já dissemos) é conduzido de uma forma espiritual, não reconhece outras honras e recursos além da justiça, da santidade, da paz de consciência, da salvação e da vida eterna; nenhuma outra arma senão a Palavra e o Espírito; nenhuma outra fortificação além da proteção de Deus. Pi latos nutria esta compreensão dele; percebia claramente que não se poderia criar dele nenhum prejuízo contra o império de César; de outro modo, ele não só teria concordado com a acusação dos judeus lançada a Cristo de rebelião contra Cé­ sar, mas teria sido o primeiro a pensar em removê-lo do caminho. Não obstante, visto que, tendo descartado esta acusação dos judeus, e a própria confissão de Cristo concernente a seu ofício real, ele o declara justo e inocente, e deseja que ele seja absolvido da condenação (pois bem sabia que por inveja o tinham entre­ gado, Mt 27.18), demonstra suficientemente que não cria que ele fosse um reino temporal, oposto ao domínio de César, o qual Cristo atribuía a si mesmo. 6 Porque não é deste m undo

Quar,do 0 arU0 diz: “O Senhor Deus lhe dará o trono de Davi, e de seu reino não haverá fim” (Lc 1.32), ele não quer ensinar que o reino de Cristo é temporal como o de Davi; mas que o reino de Cristo é tipificado pelo reino de Davi, de modo que o reino deste deve ser aperfeiçoado e consumado pelo reino de Cristo, não temporal­ mente (porque é evidente que ele teria que ser desfeito com a vinda de Cristo), mas de uma maneira espiritual e mística (pois Cristo mesmo é chamado “Davi”). E assim o que é dito acerca da eternidade de seu reino deve ser entendido não quanto à letra e ao tipo, mas quanto ao antítipo e à própria verdade (que have­ ria de cumprir-se em Cristo de uma forma muito mais excelente).

Fontes de explanação

XIV. Embora os reinos temporais estejam sujeitos a Cristo, seu reino não deve por isso ser temporal. Não estão sujeitos a ele e administrados por ele temporalmente e de uma forma terrena, mas espiritual e divinamente; mesmo ocorrendo que a terra está debaixo do céu e é governada por ele, nem por isso esse governo é feito de forma terrena, mas de forma celestial. Aliás, ele reina sobre os santos de maneira diferente de como reina sobre os ímpios; sobre aqueles, pela influência suave e salutar do Espírito, como cabeça; sobre estes, por sua própria e poderosa virtude, como Senhor; mas sobre ambos ele exerce um domínio espiritual, não terreno. XV. Os vários oráculos concernentes à restituição e à duração perpétua do governo e do reino dos judeus, evocados pelos judeus para provarem o reino temporal do Messias (tais como Dt 30.3-5; Ez 37.24,25; Dn 7.27; Mq 4.6-8), não podem nem devem ser entendidos literalmente (kata to rheton), mas mís­ tica e espiritualmente. (1) E usual os profetas falarem das coisas neotestamentárias em termos legais e sob a cobertura de coisas físicas como figuras de coisas espirituais e celestiais. Se tais oráculos fossem compreendidos ao pé da letra, não fariam sentido ou revelariam um absurdo. (2) As promessas dadas ali acerca das bênçãos espirituais não podem ser cumpridas no Israel carnal, mas no espiritual. (3) Se Cristo tivesse erigido um reino temporal na Judéia, não teria permitido que Jerusalém fosse lançada ao chão, que o templo fosse des­ truído e que tudo o que pertencia ao estado judaico e à sua política fosse abo­ lido. (4) As razões para a instituição da política judaica cessam com o advento de Cristo e com a vocação dos gentios. XVI. Apesar de o Messias ser oposto aos reis terrenos (SI 2.6) e de nos ser dito que ele os regerá com vara de ferro (v. 9), não se segue que seu reino seria terreno. Embora ele não seja terreno, nada o impede de subjugar os reis terre­ nos de uma forma espiritual (como Deus é o vencedor sobre todos os monarcas de uma forma espiritual). E o que se acrescenta acerca da vara de ferro deve ser entendido metaforicamente com este significado, justamente como o vaso do oleiro é feito em pedaços quando atingido por uma vara de ferro. Assim tam­ bém estas nações serão atingidas pela palavra do evangelho, que é o cetro ou a vara de seu poder. Isto é assim confirmado - que as coisas ditas do Messias no salmo 2 são prometidas em Apocalipse 2.26,27 a todos os vencedores para denotarem seu poder espiritual no outro mundo. XVII. O salmo 72 deve ser entendido imediata e literalmente como se refe­ rindo a Salomão, um tipo de Cristo; não obstante, mediata e misticamente como se referindo a Cristo, seu antítipo. Portanto, na explicação devemos con­ siderar quais coisas são coerentes e se harmonizam com o tipo, e quais concor­ dam com o antítipo. Quanto ao primeiro, são designadas coisas físicas e terre­ nas (justamente como ele mesmo era); mas, quanto ao segundo, são designa­ das coisas espirituais e divinas.

O reino medianeiro de Cristo continuará para sempre? Isso afim/amos.

I. A segunda condição do reino de Cristo é sua eternidade, acerca da qual mantemos controvérsia com os socinianos. A fim de empanar a dignidade e a divindade de nosso Mediador, eles afirmam que este reino virá e terminará no último dia, e seu ato último será o julgamento do mundo inteiro; então seu reino e sua autoridade legal serão entregues ao Pai. Com eles concordam (embo­ ra com um sentimento e intenção diferentes) aqueles dentre os ortodoxos que crêem que o reino medianeiro de Cristo terminará com o mundo a fim de que se dê lugar somente ao seu reino essencial, pelo qual Deus será tudo em todos. II. E embora esta questão (como movida entre os ortodoxos) seja proble­ mática (sobre a qual ambos os lados podem ser assumidos sem destruir o fun­ damento da fé, contanto que seja firmemente mantido contra os socinianos que Cristo será para sempre o Rei de sua igreja - seja como Mediador, seja como Deus), contudo a afirmativa nos parece a mais adequada aos oráculos da Escri­ tura, e a mais autêntica. E stabelecim ento da questão

Sobre o estado da questão, observamos primeiramente ~ 0 re'no medianeiro de Cristo pode ser visto, ou quanto à

sua própria substância, ou quanto à forma e ao modo de administração. Esta pode ser ou imediata e interna ou externa e mediata, con­ cretizada pela intervenção do ministério dos anjos e dos homens e ocupada em proteger a igreja contra os inimigos (por quem é continuamente assaltada na terra) e em fazê-los em pedaços e destruí-los totalmente. O modo de adminis­ tração pode ser mudado e cancelado, permanecendo sempre a substância do reino. Desta forma (costuma-se dizer) a fé será mudada tomando-se visão, não quanto à substância do conhecimento (que permanece sempre a mesma; sim, será ainda mais perfeita), mas quanto ao modo, visto que a fé não mais repou­ sará na Palavra e não mais será assistida obscuramente, mas contemplará a Deus pessoalmente, face a face. A questão aqui não diz respeito ao modo de sua administração (o qual todos confessam que será mudado), mas diz respeito somente à substância do reino (a qual alguns afirmam que cessará). Nós afir­ mamos que ela permanecerá para sempre. IV. Segundo, a mediação inclui três partes principais: (1) a aquisição da salvação; (2) sua aplicação quando adquirida; (3) sua conservação quando apli­ cada. Não estamos tratando da primeira nem da segunda, pois Cristo as realiza de tal modo nesta vida que não mais haverá lugar para elas na vida por vir. Neste sentido, admitimos de bom grado que a mediação de Cristo cessará, porque não mais haverá necessidade de aquisição ou de qualquer nova aplica­ ção. Mas tratamos de sua conservação, em cuja referência afirmamos que Cristo conservará perpetuamente as bênçãos obtidas para nós, e assim reinará para todo o sempre sobre sua igreja.

V. As razões são: (1) as Escrituras com frequência pressupõem a eternidade desse reino (como em 2Sm 7.12,13, onde lemos que “o trono de Cristo será estabelecido para sempre”; ao que correspondem estas palavras de Lc 1.33, “e seu reino não terá fim”; em Dn 7.14 lemos que “seu domínio é domínio eterno, que não passará, e seu reino jamais será destruído”). Não se pode objetar: (a) que o sentido não é de uma eternidade absoluta, mas definida, porque ela se refere a Salomão, cujo reino cessou. Embora seja pos­ sível dizer isso do tipo (ou seja, de Salomão, que era figura de Cristo), não se pode aplicar a Cristo, o antítipo, a quem pertence a eternidade propriamente assim chamada (à qual se referem as palavras em Samuel e em Lucas), (b) Que Cristo reinará como Deus, mas não como Mediador. Cristo é mencionado não como Deus simplesmente, mas como Mediador, visto que ele deve assentar-se no trono de Davi (i.e., para cumprir num mistério o que Davi tinha numa figu­ ra, o que pertence não ao seu reino essencial, mas ao medianeiro).

Prova-se a eternidade do reino de Cristo: (1) com base em 2 S am u el 7.12,13; Lucas 1.33; D aniel 7.14.

Segundo, “um reino que não será jamais destruído; este reino não passará a outro povo” (Dn 2.44). Pois aqui se faz ’ ’ referência ao reino de Cristo, o qual ele manteria depois da destruição das quatro monarquias c seus reinos representados pela estátua de Daniel. Todos os cristãos concordam sobre isto, quer se entenda pelo quarto reino o Império Romano, quer o reino dos selêucidas e dos lagides (i.e., de Lagos, pai de Ptolomeu 1), sucessores de Alexandre (ponto sobre o qual nem todos estão de acordo). Lemos que ele jamais será destruído, em oposição aos reinos terrenos que (seja qual for a natureza ou a dignidade prefigurada pelo ouro, pela prata, pelo bronze e pelo ferro [i.e., por metais de diferentes valores e preços]) tinham de ser subvertidos, quer por violência externa ou por discór­ dia interna e suas próprias fraquezas (pelas quais nega-se permanência às coi­ sas terrenas). Mas este é um reino de tal natureza, que não pode ser subvertido nem do lado de dentro nem de fora, sendo fixo (asaleuton) e inabalável (Hb 12.28). 3. Com base VII. Terceiro, as várias funções do ofício medianeiro tinham nas funções de ser perpétuas, (a) Quanto à profecia, porque lemos que ele da m ediação iluminará os santos para sempre; a cidade não necessitará do sol nem da lua, pois “Nela não vi santuário, porque seu san­ tuário é o Senhor, o Deus Todo-Poderoso, e o Cordeiro. A cidade não precisa nem do sol, nem da lua, para lhe darem claridade, pois a glória de Deus a iluminou, e o Cordeiro é sua lâmpada” (Ap 21.22,23); e o Cordeiro os apas­ centará e os guiará às fontes de água viva (Ap 7.17). (b) Quanto ao sacerdócio, mediante uma representação perpétua de seu sacrifício como o fundamento da glória que possuiremos, a qual não só seria adquirida, mas também conservada para sempre. As coisas são conservadas para sempre porque são conservadas pelos mesmos meios e métodos pelos quais são adquiridas. Daí ser chamado 2 Com base em D aniel 2 44

sacerdócio “imutável” (aparabaton , Hb 7.24). Quanto ao seu reino, ele reinará sobre a igreja como sua cabeça e fiador mediante uma união indissolúvel (adialyton)\ fiador não só como Deus, mas também como Mediador. Daí ele é distintamente apresentado como “o reino de nosso Senhor e de seu Cristo” (Ap 11.15; 12.10) e a consumação do casamento é representada pelo casamento do Cordeiro com a igreja (Ap 19.7). Já que este deve ser eterno e indissolúvel, ele envolve também a eternidade da operação e da relação de Cristo como Media­ dor (como de um esposo para com a igreja, sua esposa). Quarto’ Cristo é o vínculo de nossa união perpétua com Deus. P°*s’ v*st0 a criatura por si só não pode achegar-se a Deus nem continuar cm comunhão com ele, era necessário que, como por meio de Cristo ele uma vez teve acesso a Deus, assim pelo mesmo se ligue a ele para sempre a ele median­ te seu poder e sua eficácia. Não podem os membros do corpo místico de Cristo derivar vida e glória de qualquer outra fonte senão do influxo da cabeça, com a qual devem permanecer unidos para sempre. Tampouco 1 Coríntios 15.28 (“Deus será tudo em todos”) se opõe a isto, porque tal fato deve ser entendido com respeito aos meios externos que estão disponíveis nesta vida (ou seja, a Palavra, os sacramentos e daí por diante), pelos quais vemos a Deus como num espelho e apenas enigmaticamente, e nos apegamos a ele pela fé; notificando que Deus quer imediatamente e por si mesmo fazer-nos plenamente partici­ pantes de sua própria bem-aventurança, porém não à exclusão de Cristo, a cabeça da igreja, de quem emanam todas as bênçãos para ela. 4 Com base no vínculo de união com D eus

Quand° se declara que Cristo se assentará à destra do atdo é o assentimento (assensus) teórico, pelo clua* recet)cmos como verdadeiro e divino o que conhece­ " mos. Este é chamado “histórico”, não a partir do objeto (porque este só é das histórias) ou a partir da causa (ou seja, história sacra), mas do modo em que algo é crido. Como de fato os filósofos observam três graus de perfeição no assentimento (ou seja, firmeza, certeza e evidência); firmeza, para que ele seja sem hesitação; certeza, para que repouse num funda­ mento seguro e sólido; evidência, para que não repouse em outro testemunho, senão naquele que pode ser provado ou pelos sentidos ou pela razão (como na ciência). O assentimento da fé tem de fato firmeza e certeza, porque está fun­ dado na Palavra divina e infalível; porém não a evidência, porque ela está fundada no testemunho, não da razão (o que o apóstolo realça quando afirma que a fé é a substância [hvpostusin] e a evidência [elenchon], para designar sua firmeza e certeza; porém das coisas não vistas [ton ou blepomeriõn ], para notifi­ car sua falta de evidência, Hb 11.1). 2 A ssentim ento teórico

^ tercc'ro ato é o assentimento fiducial e prático, ou a persuasão do intelecto prático pela qual julgamos o evangelho como sendo não só verdadeiro, mas também bom e, portanto, mui digno de nosso amor e aspiração; também as promessas infalíveis da graça acerca da remissão dos pecados e a concessão da salvação a todos os crentes e penitentes, e assim também a mim, se eu crer e arrepender-me. Neste sentido, atribui-se plêrophoria à fé (i.e., plena persuasão do poder e da vontade de Deus que nos são conhecidos em sua Palavra [Rm 4.21 ], sendo a metáfora tomada de navios que partem do porto para uma via­ gem completa). E assim se faz menção de “plena certeza do entendimento” (ptêrophorias syneseõs, Cl 2.2), por hipálage quanto à “forte convicção do entendimento” (syneseõs peplêrophorêmeríês). Em Hebreus 10.22, o apóstolo quer que nos aproximemos com um coração verdadeiro (i.e., íntegro e sinccro) “em plena certeza de fé” (enplêroph oriapisteõs, i.e., com uma segura persua­ são mental e uma firme confiança do coração fundamentadas na Palavra de Deus). Ora, esta persuasão não deve ser apenas incipiente e pela metade) (o que às vezes também existe nos réprobos que recebem a Palavra com alegria),

3 A ssentim ento fid u cia l e prático

mas plena e absoluta, determinando e arrastando após si a vontade e visuali­ zando o objeto evangélico e a promessa da graça, não só como verdadeiros e imbuídos dc certo bem, mas também como o supremo bem proposto a nós em Deus e propiciando o único e mais que suficiente meio de salvação em Cristo. ^ - j c­ re-se se a confiança esta inclusa na concepção de te; ou se ‘ ' ‘ aquela difere desta. Os romanistas (a fim de estabelecer seu comentário acerca da fé implícita e o assentimento cego e desprovido) susten­ tam a segunda idéia, afirmando que fé nada mais é que um mero assentimento que não tem por seu objeto a misericórdia especial de Deus, mas toda a Palavra de Deus (como Belarmino o declara, “De Justificatione”, 1.5-6 O pera [ 1858], 4:465-468). Ao contrário, os ortodoxos crêem que a confiança é de tal modo da essência da fé que não pode ser chamada fé a que é destituída dessa confiança. 2. E ntre nos e ., os ronititiistüs.

Prova de aue a razões são: (1) com base no objeto. Os objetos da fé f é é confiança- j ust'ficadora, próprios e específicos (como se provará mais (1) com base * adiante), são as promessas do evangelho, que não podem ser no obieto recebidas exceto mediante a confiança, porquanto são pro­

" postas não só como genuínas, mas também como boas. O evan­ gelho é não só objeto de contemplação do intelecto, mas também objeto de con­ solação do coração (o que a fé não pode apreender exceto confiantemente). Daí, assim como o evangelho é representado por bebida e comida e pelos mais doces deleites, assim também a fé (que diz respeito a ele) é apropriadamente compara­ da com comida, bebida e sabor espiritual (o que não pode ocorrer sem confiança). ^ ^'om ^ase nos atos Ponlue’ v'st0 (corno Ja se Provou acima) na concepção da fé está incluso um ato " de persuasão e o ato de fuga para Cristo e sua recepção (o que não pode existir sem confiança), desta mesma coisa fica evidente que a confiança não pode separar-se da fé, porém pertence à sua essência. E mesmo a palavra plêrophoria (que lhe é atribuída) indiscutivelmente prova isto. Aqui se encaixam as passagens nas quais a fé é descrita como uma apreensão fiduci­ al de Cristo e sua satisfação: “Mas, a todos quantos o receberam, deu-lhes o poder de serem feitos filhos de Deus, a saber, aos que crêem em seu nome” (Jo 1.12); “a fim de que recebam a remissão de pccados e herança entre os que são santificados pela fé em mim” (isto é, em Cristo, At 26.18). Em outras partes a fé é expressa nestes termos - “o qual foi entregue por causa de nossas transgres­ sões e ressuscitou por causa da nossa justificação” (Rm 4.25); e o apreendemos “como propiciação, mediante a fé, para manifestar sua justiça... em seu sangue” (Rm 3.25). Por este ato, ela se distingue dos demais tipos de fé que, ou não têm relação com a promessa de Deus, ou essa relação não sc dá da mesma maneira.

2 Com base nos atos da fé

^ ^ orn ^asc cm seus e^"e‘tos- propriedades e os efeitos atr'buídos à fé não podem ser mero assentimento, mas ne­ ' ' cessariamente pressupõem confiança antecedente como a cau­ sa: tal como a paz de consciência (Rm 5.1); acesso a Deus e ao trono da graça (Ef 2.18; Hb 4.16); ousadia (parrêsia) pela qual nos dirigimos a Deus como nosso Pai (Rm 8.15; G14.6); confiança (pepoithêsis) quanto ao fato de que ele ouve nossas orações (Ef 3.12); uma santa ousadia (tharsos) pela qual vivemos

3 Com base nos efeitos

confiantes em meio a todos os inales, gloriando-nos (kauchêsis) no Senhor (Rin 5.11) e na adversidade (Rin 5.3). Nada disso pode estar presente no cren­ te, a não ser na pressuposição da confiança da qual emana. ^X- (4) Com base cm seus opostos. Desconfiança, hesitação, temor, pusilanimidade (que são propriamente contrários à confiança) são-lhe opostos: “Homem de pequena fé [oligopiste], por que duvidaste?” (Mt 14.31); “se tiverdes fé, e não duvidar­ des” (Mt 21.21). Lemos concernente a Abraão que “não duvidou, por incredu­ lidade [apistian], da promessa de Deus; mas, pela fé, se fortaleceu” (Rin 4.20). Cristo disse aos apóstolos temerosos no meio da tempestade: “Onde está vossa fé?” (Lc 8.25). Tiago deseja que aquele que busca algo, peça-o com fé, em nada duvidando (Tg 1.6). Aqui hesitação manifestamente se opõe a confiança, que é requerida na fé. Em outra parte, Cristo, ao repreender os discípulos por sua falta de fé, não os censura por não assentirem aos artigos de fé, mas por sua falta de confiança e medo. 4 Com base em seus opostos.

5 Com base

X. (5) Com base nos exemplos dos crentes cuja fé é recomendada por sua confiança; tal como a da mulher cananéia: “Oh, mulher, grande é tua fé” (Mt 15.28), a saber, a fé pela qual ela confiou na promessa de Cristo; a de Abraão que, sendo plenamente persuadido (pisteiplêrophorêtheis), lemos que creu em esperança contra espe­ rança (Rm 4.18*); a dos discípulos, que deixaram tudo para seguir a Cristo, porque sabiam que nele estavam as palavras de vida (Jo 6.68); a de Paulo, que creu na misericórdia que lhe foi revelada (lTm 1.16). Fontes de XI. A fé é chamada “a substância de coisas que se esperam e a demonstração de coisas que não se vêem” (h ypostasis tõn explanação, elpizom em n , kai elenchos tõn niê blepomeriõn , Hb 11.1), não só porque faz as coisas futuras subsistirem especulativamente no intelecto, por assentimento, mas, de modo especial, praticamente no coração, mediante a confiança e a esperança. Daí Paulo explicar a hypostasin da fé como sendo ousadia (parrêsiari) e confiança (Hb 3.6,14). Assim ela é chamada elenchos das coisas invisíveis, porque, por uma apreensão fiducial, ela põe diante dos olhos da fé, como presentes, as coisas que são invisíveis aos olhos físicos. E assim ele aqui não fala de uma demonstração meramente lógica e teórica (tal como a ciência gera), mas de uma que é prática e fiducial, que prepara o acesso a Deus (Rm 5.2; Hb 11.6). Se entre os atos da fé, mencionados por Paulo, é posto um conhecimento da criação (Hb 11.3), não se segue que se exclui a confiança, porque a pressuposição de uma não equivale à exclusão da outra. Isto prontamente se deduz dos exemplos da fé dos patriarcas evocados pelo apóstolo, os quais não são só especulativos da mente, mas também fíduciais do coração, visto que os patriarcas certamente não só assentiram às promessas de Deus, mas também firmemente confiaram nelas (como provam os exemplos de Noé, Abraão, Moisés e outros). nos exem plos

XII. O que tem por seu objeto toda a Palavra de Deus, tanto genérica quan­ to especificamente - isso não é confiança, confesso. Mas o que tem por seu objeto comum e genérico toda a Palavra de Deus pode ter as promessas da graça como seu objeto próprio e específico. O que vem sob o primeiro é crido por assentimento, e o que vem sob o segundo é crido por assentimento e confi­ ança, juntamente. XIII. Embora crer às vezes seja tomado por assentimento simples, não se segue que seja tomado sempre assim, ou que toda a natureza da fé esteja con­ tida só no assentimento, porque em outras inúmeras passagens crença abarca assentimento e confiança. XIV. Tão longe está o exemplo de Abraão (Rm 4) de provar que a fé não é confiança, que inquestionavelmente demonstra que uma está necessariamente inclusa na outra, porque não se poderia dizer que ele foi “plenamente persuadi­ do” [plêrophorêtheis] e “creu em esperança contra a esperança”, a não ser pela confiança (visto que ele concebeu em seu coração uma firme confiança na veracidade e no poder de Deus, embora todas as coisas aparentassem estar contra ela). Não se poderia, pois, dizer que ele “não duvidou, por incredulida­ de” (v. 20), a menos que, em vista da confiança que lhe era oposta c por meio dela, ele tenha se fortalecido contra todas as coisas que pareciam opostas à promessa divina. XV. Se a confiança é chamada pelos escolásticos “esperança fortalecida”, isto deve ser inferido da confiança da esperança, que difere da confiança que é peculiar à fé em várias particularidades. A primeira é apenas de um bem futu­ ro, porém a segunda de um bem presente; ou, como se presente, também do passado. A primeira tem por seu objeto mais a “coisa da palavra” (i.e., os bens prometidos); a segunda, antes, a “palavra da coisa”, ou as promessas dela embora difiram de tal modo que uma depende da outra, e não podem ser sepa­ radas uma da outra. D écima P rim eira P erg u n ta : O O bjeto

da



O na! é o objeto da fé, em geral, e o que é falso pode vir sob ela? Negamo-lo.

I. Visto que várias questões são agitadas sobre o objeto da fé, devemos discuti-las distintamente. Formulamos então quatro proposições. \>rimeira proposição: “O objeto da fé deve ser verconcernente ao objeto dade,r0’ c nada falso Pode vir sob ela ' A razao e ^ue da fé - que ele deve ser a Palavra de Deus (que é veracíssima) é o úmeo obverdadeiro, não falso. Jet0 da fé’ e esta não Podc ser exP0Sta a nenhum erro ’ ou falsidade, não mais que o próprio Deus (seu au­ tor, que é a própria verdade, e que, como não pode ser enganado, assim ele a ninguém pode enganar e nem sabe mentir). E, no entanto, se uma falsidade pudesse vir sob a fé, a Palavra de Deus poderia ser falsa, a lei nos obrigaria a Prim eira proposição,

crermos numa mentira e a fé divina seria um princípio enganoso (o que é ab­ surdo). Daí Paulo dizer que a fé dos coríntios seria vã e os apóstolos achados como falsas testemunhas, se Cristo não ressuscitou e se se deveria crer no que é falso (ICo 15.14,15*). III. Os vários exemplos evocados como prova de que a falsidade pode vir sob a fé nada provam do gênero. Os ninivitas se viram obrigados a crer que sua cidade seria subvertida, não absoluta e simplesmente, mas apenas condicional­ mente - a menos que se arrependessem (como é evidente à luz do edito do rei que proclama um jejum: “Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor de sua ira, de sorte que não pereçamos?” (Jn 3.9). Ezcquias não teria crido numa falsidade quando Isaías o ameaçou de morte, porque esta palavra não era tanto a predição profética de uma coisa que se concretizaria absolutamente, mas uma ameaça condicional a incitar sua humilde deprecação dela. Ele percebe isto suficientemente quando, volvendo seu rosto para a pare­ de, orou a Yahweh, que também ouviu sua oração, acrescentando quinze anos à sua vida (Is 38.2,5). Ou era uma declaração da severidade da doença, a qual, segundo a ordem natural das coisas, teria resultado num fato desse gênero (a menos que Deus o livrasse miraculosamente). IV. Adão não foi obrigado a crer absolutamente que em seu estado de inte­ gridade possuiria a vida eterna; mas apenas condicionalmente, se ele continu­ asse em obediência. Esta condição não era que ele cresse porque ela foi pro­ metida, mas que seria concretizada porque fora ordenada. Se depois de sua queda ele foi obrigado a crer absolutamente que morreria, não deve ter igual­ mente crido antes de sua queda que viveria. Os casos não são os mesmos. Pois em seu estado de inocência a condição ainda estava por cumprir-se; enquanto que, depois da queda, a condição foi de fato violada, e assim a ameaça poderia realmente ser posta em vigor. Entrementes, embora depois da queda fosse obri­ gado a crer absolutamente que estava à mercê da morte, ele não era obrigado a crer em nada distintamente acerca do evento, porque ele não lhe fora revelado. V. Segundo a ordem de Deus acerca do sacrifício de seu filho (Gn 22.2), Abraão era obrigado a crer no que era estritamente verdadeiro - que Deus lhe ordenara matar seu filho, e confiar o resultado a Deus. Mas não era obrigado a crer que Isaque seria morto por ele (o que era falso; embora talvez tivesse chegado a essa conclusão por não perceber suficientemente o significado e o propósito da ordem que lhe fora dada); contudo esta era apenas fé humana, não divina. Embora pela fé divina Abraão cresse que Deus era capaz de ressuscitar seu filho, caso morresse, não se segue que ele deveria igualmente, mediante a fé divina, crer em sua morte; tampouco isto teria diminuído sua alegria em cumprir seu dever, porque não era obrigado a atentar para o resultado, mas apenas para o dever que lhe estava anexo; nem podia impedir a prova de sua fé, a qual era suficientemente evidente nisto, quando, não obstante todos os obstá­ culos no caminho do cumprimento daquela ordem, ele ainda se preparou para obedecer a ela, confiando no resultado divino.

VI. Os israelitas não eram obrigados a crer absolutamente, com base na promessa de Deus, que todos os indivíduos e cada um deles entrariam na terra de Canaã sem qualquer condição; pois o resultado ensinou que a condição de fé (embora tácita) estava sempre implícita, e visto que muitos estavam destitu­ ídos dela, não é estranho que fossem excluídos desta bênção. VII. Embora sejamos obrigados a crer que Deus quis preceptiva e aprobativamente o que nunca realmente aconteceria em virtude da obstinação do ho­ mem, não se segue que sejamos obrigados a crer numa falsidade. Pois não somos obrigados a crer que isto realmente acontecerá ou que Deus o decretou, mas apenas que Deus quis prescrevê-lo para o homem, e que este é seu dever (o que é perfeitamente verdadeiro). VIII. Em Jeremias 4.10, não lemos que Deus enganasse o povo efetiva­ mente, obrigando-o a crer numa falsidade, mas permissivamente (como as pa­ lavras às vezes são ativas em som, porém são permissivas em significado ou declarativas) permitindo que fossem seduzidos e enganados pela boca de fal­ sos profetas, ou judicialmente entregando-os a um espírito de erro. As palavras podem ser entendidas também interrogativamente (embora o ponto de interro­ gação não esteja presente, como frequentemente está em outros lugares) com o significado - Tu enganaste o povo? E possível que tenhas ludibriado o povo com a vã esperança e promessa de paz, quando não pretendias fazer tal coisa? IX' ScSunda Proposição; “O objeto da fé outro não, é senão a PaIavra escrita de Deus, segundo a medida da revelação”. Fé (pistis) é uma coisa; conhecimento ^ õ s i s ) , outra. Este é granjeado até mesmo da natu­ " reza, mediante a contemplação das obras de Deus; aquela, porém, somente da graça e da revelação sobrenaturais, mediante o ou­ vir da Palavra (que é o único objeto da fé [pistori]). Daí lermos que a fé “vem do ouvir” (Rm 10.17). Em 1 Coríntios 1.21, Paulo testifica: “visto que, na sabedoria de Deus [i.e., pela contemplação da estrutura do mundo na qual resplandece a maravilhosa sabedoria de Deus], o mundo [i.e., a raça humana] não o conheceu por sua própria sabedoria [ou seja, para a salvação], aprouve a Deus salvar os que crêem pela loucura da pregação [i.e., pelo evangelho]”. Isto, no juízo humano, parece loucura: substituir unicamente pela fé, mediante a qual cremos na Palavra, pelo conhecimento que provém de suas obras. X. Afirmamos que esta Palavra escrita é o objeto da fé, contra os romanistas, que mantêm que há uma palavra não-escrita (cigraphon), na voz da igreja, que pode estabelecer nossa fé. Não reconhecemos nenhuma outra palavra ins­ pirada por Deus (theopneuston ) além da composta (engraphon) e escrita; à qual, pois, somos estritamente proibidos de acrescentar ou tirar algo. Ora, ain­ da que a Palavra, quanto à substância, seja sempre a mesma (a qual deve ser apreendida pela fé), contudo não igualmente segundo o grau, porque Deus quis revelá-la em tempos oportunos (pulym erõs) e de diversas maneiras

Segunda proposição: não há outro objeto da f é além da Palavra escrita de Deus.

(polytmpõs)', ora obscuramente, como sob o Antigo Testamento, ora mais clara­ mente, sob o Novo. Daí o objeto da fé não ser simplesmente a Palavra, mas a Palavra revelada desta ou daquela maneira. Assim a medida da revelação é tam­ bém a medida da fé, e deveras não neste sentido - que a fé sempre vê claramente quais coisas são declaradas no objeto e conforme são declaradas; mas sim que ela vê ou é obrigada ou é capaz de ver não mais que aquilo que está revelado. Terceira proposição: *1- Terce'ra proposição: “O objeto da fé é ou materio objeto é ou m aterial a* ou formal”. O material constitui as coisas cridas ou fo rm a l ^ e'’ toda a f>alavra de Deus e todas as suas proposi­

ções, sejam pertinentes à lei ou ao evangelho). Elas se nos tomam conhecidas mediante uma revelação divina e sobrenatural; se não quanto ao porquê (to dioti), ou ao modo e à razão, pelo menos quanto ao fato (to hoti)\ ou explicitamente em muitas palavras, ou implicitamente e por consequências necessárias e evidentes (o que já provamos pertencer à Palavra de Deus, Tópico I, Pergunta 12). XII. Um objeto formal implica uma razão ou causa sob a qual se crê em coisas (ou seja, o próprio princípio de crer). Este não é a autoridade da igreja, como os romanistas sustentam (porque, embora a igreja seja o motivo para a fé naqueles que virão a crer e o instrumento e meios humanos dela, contudo ela nunca pode ser chamada seu princípio, como já vimos no lugar próprio), mas a autoridade de Deus, a única de si mesmo crível (autopistou) como a primeira e infalível verdade, revelando-se na Palavra, na qual se concede a análise última da fé (como em seu próprio objeto formal, o único que pode estabelecer a fé divina, porque não repousa em nenhum outro senão unicamente em Deus, Jr 17.5,7). XHI Quarta proposição: “O objeto da fé é ou geral e comum ou é próprio e especial”. O geral é toda a Palavra de Deus’ clue nos é Proposta para que seja crida, seja com respeito às histórias (que narram coisas reali­ zadas), ou às profecias (que predizem coisas futuras), ou às doutrinas e precei­ tos (que não consideram diferenças de tempo), ou às promessas e ameaças (que são feitas aos pios e aos ímpios). Tudo isso se encaixa no objeto da fé, embora de diferentes maneiras, segundo a natureza e a condição de cada um. XIV. Embora primariamente e de si mesmas todas as coisas contidas na Pa­ lavra de Deus não sejam da fé (não sendo pertinentes às doutrinas e artigos da fé e ao conhecimento de todas as coisas necessárias à salvação), contudo é da fé e necessário à salvação crer que todas as coisas foram confiadas à escrita pela inspiração (theopneustõs) de Deus para a plenitude do conhecimento da igreja. XV. O objeto próprio e específico da fé justificadora, não como uma virtu­ de teológica (sob cujo aspccto a única e inteira Palavra de Deus é abraçada igualmente como verdadeira e infalível), mas como uma condição evangélica, é a doutrina concernente a Jesus Cristo e à promessa da remissão dos pecados Quarta proposição: o objeto é ou com um ou próprio.

e da salvação cm seu sangue. Esta propõe Deus como seu objeto, não simples­ mente como Criador e Senhor, mas como Redentor e Pai em Cristo; e este, como pactuado e nosso, deseja ser nosso Deus para conceder-nos a salvação. E aqui Deus e Cristo devem estar indissoluvelmente unidos. Deus, como o su­ premo bem, em quem devemos encontrar a felicidade; Cristo, como o meio único e infalível pelo qual devemos ser guiados a Deus. Cristo quis significar isto quando disse que a vida eterna está situada no conhecimento (i.e., na fé) de Deus, o Pai, e de Jesus Cristo, a quem ele enviara (Jo 17.3). Isto indubitavel­ mente é assim porque o Pai não pode ser conhecido salvifícamente, a não ser pelo Filho, que também nos tem manifestado o Pai e por seu próprio sangue nos preparou o caminho para ele (Mt 11.27; Jo 14.6). XVI. °bstante’ quando dizemos que Deus e Cristo s^° ° °bjeto da fé, devemos tomar especial cuidado de nao tomar 'st0 num sent'do sociniano. Com o fim de sub­ verter a divindade de Cristo, distinguem o objeto da fé em primário e secundário: o Pai, sendo o objeto primário, que é a causa primá­ ria e suprema de nossa salvação; o Filho, o objeto secundário, que é a única e secundária causa intermédia e instrumental de nossa salvação. A fé no Pai tem seu ponto final nele como o objeto último, mas a fé em Cristo não tem seu ponto final nele, mas por intermédio dele é direcionada para Deus e por fim repousa nele. A primeira constitui o culto divino supremo, próprio somente a Deus; a segunda constitui o culto divino subordinado, mediato, proveniente da graça. Assim Socino fala contra Wujek (“Responsio ad libellum Jacobi Wuieki Jesuitae”, 4 Opera omnia [1656], 2:557-567; cf. “O f the Person of Christ”, Sect. IV, chap. 1, Racovian Catechism [1818], pp. 154,155). XVII. Cremos que realmente devemos distinguir Cristo do Pai no que se refere à fé e a seu objeto, de duas maneiras: tanto na pessoa, pois ele foi eterna­ mente gerado do Pai, quanto no ofício, pois ele foi feito Mediador entre Deus e os homens. Mas, assim como nem a ordem de subsistência das pessoas divinas, nem o ofício que ele exerce, destroem a mútua igualdade das pessoas (visto que permanecem sempre mutuamente iguais em essência [homoousioi]), assim tam­ bém afirmamos que não se introduz disparidade aí, seja do objeto, seja do culto religioso em referência a ela. Assim a fé é uma só, pela qual cremos em Deus, o Pai, e em Deus o Filho, o Deus-homem (theanthrõpon). A confiança é uma só, a qual repousa em cada um, não diversa; uma é suprema, a outra é intermediária e apenas subordinada. XVIII. As razões são: (1) Cristo é o verdadeiro e etemo Deus com o Pai, como já ficou sobejamente provado no lugar próprio. (2) Atribui-se a ele igual­ dade de honra e culto com relação ao Pai: “Quem não honra o Filho não honra o Pai que o enviou” (Jo 5.23), isto é, com igual culto, porque ele se declarou igual a Deus (v. 18) e pessoalmente o comprovou mediante suas obras (vs. 19,21). E assim, “Credes em Deus, crede também em mim” (Jo 14.1), para que

Cristo é apenas o objeto secundário da fé ?

o vosso coração não se turbe. Por que é assim? Porque eu sou uno com Deus, o Pai. Se não fosse assim, ele nem mesmo teria reivindicado ser Deus, nem teria exortado seus discípulos a confiarem nele, não menos que no Pai. E assim, com frequência em outras partes, requer-se fé em Cristo da mesma forma que no Pai, e no Credo dos Apóstolos as três Pessoas da Santíssima Trindade, no objeto da fé, são distinguidas quanto à ordem, porém não quanto ao grau. Tam­ pouco se requer uma fé no Pai, outra no Filho e outra no Espírito Santo, mas uma e a mesma fé nas três Pessoas da Deidade única. (3) Fé num mero homem (tal como os socinianos imaginam ser Cristo) não pode ser exercida sem sacri­ légio (Jo 17.5). XIX. Quando Cristo diz: “Aquele que crê em mim, crê não em mim, mas naquele que me enviou” (Jo 12.44), ele não pretende excluir a si próprio do objeto primário da fé, mas ou fala hipoteticametne (i.e., segundo a falsa opinião dos judeus, os quais criam que ele não passava de mero homem e ensinava sem a autoridade de Deus, como lemos em Jo 7.16), ou não deve ser entendido abso­ lutamente, mas comparativamente (i.e., não tanto ou somente em mim, mas também naquele que me enviou, como lemos em Mc 9.37). XX. Quando Pedro diz: “por meio dele, tendes fé em Deus” (1 Pe 1.21), ele não remove Cristo da abrangência do mesmo objeto, mas em parte ensina a causa e o autor da fé, em parte realça a ordem segundo a qual a fé ascende a Deus; não imediata, mas mediatamente por meio de Cristo o Mediador. Mas esta ordem (estabelecida pelo conselho perfeitamente sábio de Deus) nada derroga da igual­ dade das Pessoas. XXI. Lemos que se deve prestar honra e glória a Cristo exaltado pelo Pai (Fp 2.9-11) quanto ao culto, não como se antes lhe faltasse a glória (porque a fé nele e a adoração a ele já haviam sido ordenadas [SI 2.12]; aliás, ele tinha a glória desde a eternidade, Jo 17.5), mas porque na carne e com esta ele foi declarado e reconhecido como o Filho de Deus, que antes estava oculto sob o véu da carne como mero homem. D

é c im a

S e c u n d a P erg u nta

Se o objeto próprio e específico da féjustficadora é a promessa especial de misericórdia em Cristo. A firm am os isso contra os row attis tas.

I. Embora do que ficou dito sobre a confiança na Pergunta 10 possa pare­ cer que a fé em seu objeto leva em conta principalmente a misericórdia especi­ al; contudo, visto que os romanistas contestam isso severamente (a fim de impugnar a ccrteza da fé com mais sucesso, e referem sua concepção formal a um assentimento rude e simples), é preciso formular umas poucas palavras também sobre essa questão. E stabelecim ento Visto que o estado da questão com frequência é envolda questão. vido, observemos (1) que ela não diz respeito ao objeto

comum e adequado da fé, o qual é certamente toda a Palavra de Deus (como já se observou), mas diz respeito ao objeto especial e próprio, e como ele se distingue dos demais tipos de fé. Afirmamos que esta é a promessa evangélica concernente a Cristo, o Mediador, e a misericórdia especial concedida nele aos crentes e penitentes. Pois ela tão propriamente justifica e salva quanto apreen­ de e abraça o mérito de Cristo que lhe é revelado na Palavra do evangelho; e o crente firmemente crê que a remissão de pecados é obtida pelo mérito de Cris­ to, não só para outros crentes, mas também para aquele que crê privativamente. III. A questão não é se a promessa especial de misericórdia diz respeito a cada ser humano individualmente, a quem o evangelho é proposto; mas se diz respeito a cada crente a quem ele é apresentado. Para isso várias pessoas não atentam suficientemente, as quais, com base no fato de que nossos teólogos disputam contra os romanistas, afirmando que a fé tem por seu objeto a miseri­ córdia especial, inferem que essa misericórdia especial pertence a todos os indi­ víduos e que cada um pode aplicar a si tal promessa como sendo propriamente sua. Uma coisa é o crente ser capaz e ser obrigado a aplicar a si essa promessa; outra o homem [em geral] fazê-lo. Pois, visto que as promessas evangélicas não são dadas aos homens simplesmente como tais, mas aos homens que crêem e se arrependem, ninguém, senão o crente e penitente, pode realmente aplicá-las a si. Tampouco tal fé a p rio ri faz com que tais promessas lhes pertençam (visto que tal coisa depende antecedentemente da eleição divina), mas sucede isso porque esta é a condição e o instrumento a posteriori pelos quais, segundo a ordem divina, eles devem ser feitos participantes das promessas, e o argumento do qual deduzem que realmente elas lhes pertencem. IV. A misericórdia especial pode ser vista de três maneiras: ou como é pro­ metida na Palavra a todos os crentes e penitentes e como deve ser apreendida por eles; ou como é realmente conferida aos crentes que a apreendem e resoluta­ mente buscam refúgio em Cristo; ou como já tendo sido outorgada, de fato, aos que a têm apreendido pela fé. A esta tríplice relação (schesei) corresponde o ato tríplice da fé que a ela está ligado. Primeiro, aquele que crê que a remissão de pecados será outorgada pela misericórdia especial de Deus, em virtude de Cristo, a todos os que crerem e se arrependerem, bem como também a mim, se eu crer. Segundo, aquele que crê que a remissão de pecados é real e presentemente outorgada a mim, que creio e me arrependo. Terceiro, aquele que a contempla como já tendo sido outorgada no passado, pela qual eu creio que meus pecados já foram perdoados em virtude de Cristo, em quem bem sei que creio. O pri­ meiro é chamado “ato de disposição” para justificação, porque ele nos dispõe a recebê-la; o segundo é um “ato de justificação”, porque a sentença absolven­ te de nossa justificação o acompanha; o terceiro é um “ato de consolação”, porque a segue. Os dois primeiros são diretos, os quais introduzem a promes­ sa; o terceiro é um ato reflexo, o qual introduz o ato direto. O primeiro precede a justificação, se não na ordem do tempo, pelo menos na ordem da natureza

como sua causa; entretanto, o segundo a segue como efeito. Ora, ainda que todos pertençam à fê justificadora, contudo não são igualmente essenciais a ela ou inseparáveis dela. Pois os dois primeiros são tão essenciais à fé, que ninguém pode ser um crente genuíno ou obter a justificação sem eles; mas o terceiro não é de igual necessidade (pelo menos ao seu exercício) e pertence mais à perfeição da fé do que à sua essência (visto ser indubitável que o crente às vezes pode viver sem esse sentimento). V. Transparece daí que a aplicação especial das promessas seja dupla: uma que diz respeito à remissão de pecados como um bem a ser certamente obtido; a outra que a visualiza como um bem já outorgado. Cada uma distingue fé justificadora de fé histórica; mas só a primeira é o ato principal da fé que nos justifica, enquanto a segunda a segue como seu fruto. A fé histórica se relacio­ na com a promessa do evangelho meramente em termos teóricos, sem qualquer aplicação. Mas a fé justificadora vai além, levando o homem crente a conside­ rar as promessas como destinadas aos penitentes (de cujo número ele faz par­ te). Esta aplicação, nem os demônios, nem os impenitentes fazem. A outra segue esta aplicação por um ato reflexo pelo qual o crente, percebendo que já creu, é seguramente persuadido de que seus pecados já foram perdoados. A primeira aplicação é a confiança de adesão, pela qual sucede que o homem, fugindo para Cristo, repousa nele e adere a ele. A outra é a “confiança de senso”, a qual repousa no senso de Cristo recebido e da remissão obtida nele. VI. E daí é fácil a resposta à indagação movida aqui - se o objeto da fé salvífica é a remissão de pecados, ou já obtida, ou ainda a ser obtida. Disso nossos oponentes lançam mão da ocasião para infamarem nossa doutrina como absurda (nos envolvendo num círculo ridículo)-com o se disséssemos que a fé justificadora (pela qual obtemos o perdão de pecados) consiste nisto: que cre­ mos que nossos pecados já foram perdoados - como Amaldus, seguindo Belarmino, o discute sobejamente (Le Renversement de la M orale deJesus-C hrist 2*.9 [1672], pp. 183-189). Mas é fácil nos desvencilharmos dessas más inter­ pretações e calúnias. Primeiro, é possível dizer que a remissão já foi obtida por direito por meio da morte de Cristo, em cujo sangue temos remissão (Ef 1.7); ou de fato pela aplicação eficaz dela ao coração. No primeiro sentido, é possí­ vel dizer que o objeto da fé é propriamente a remissão de pecados já obtida (i.e., pelo mérito de Cristo). Mas, no segundo sentido, é somente a remissão a ser obtida, porque, uma vez que a fé é a causa instrumental da justificação, ela deve preceder a justificação. E, no entanto, a confiança na remissão obtida necessariamente a segue, porque a persuasão acerca de algo feito é sempre posterior à coisa feita (que é seu objeto e não pode ser sua causa). Segundo, o ato fiducial (como já dissemos) é duplo: um que precede a justificação como sua causa; o outro que o segue como seu efeito. O primeiro (que consiste numa persuasão da mais plena satisfação de Cristo feita pelos pecados de todos os que crêem, fogem para ele e o recebem) diz respeito à remissão já obtida pelo

mérito de Cristo, porém a ser realmente aplicado a mim que creio. O segundo (que consiste no ato reflexo da fé e no senso da justificação) diz respeito à remissão já aplicada a mim. Por aquele, eu creio que meus pecados serão per­ doados no futuro ou são remitidos aqui e agora no presente. Por este, no entan­ to, eu creio que meus pecados já foram perdoados no passado. Daí, para obter a remissão de pecados, não devo crer que meus pecados já foram perdoados (como falsamente somos acusados); mas devo crer que meus pecados com toda certeza serão perdoados (crendo e me arrependendo), segundo a promes­ sa feita aos que crêem e se arrependem (sendo que posteriormente, com base no ato secundário e reflexo pelo senso da fé, creio que já fui perdoado). Estas coisas uma vez estabelecidas, a questão volve a 'st0 - se 0 °bjeto próprio e específico da fé é a promessa da misericórdia especial de Deus em Cristo. Os romanistas negam isto; nós, porém, o afirmamos. As razões sao: ( ^ 0 °bjct0 da fé é o mesmo do evangelho, visto que estes relação mútua entre si. Ora, o objeto próprio e específico do evangelho é a promessa de misericórdia es­ pecial em Cristo (Rm 1.16; Jo 3.16), visto não ter ele outro objeto senão aquele que apresenta Cristo crucificado como o autor da salvação a todos os que se arrependem e crêem, e assim, como nosso Messias e Redentor, se crermos.

Prova de que o objeto próprio da f é é a prom essa de m isericórdia especial • / porqu e

(2) A fé leva em conta a promessa da graça. Ora, toda promessa 'mP''ca uma aplicação especial com respeito àqueles a quem ela é feita. Pois embora em geral ela é proposta a todos os que crêem, contudo, porque todos os indivíduos estão contidos sob o gênero, quem quer que apreenda como verdadeira a promessa geral concernente à salvação de todos os que crêem, deve aplicá-la também a si em particular, caso sinta que faz parte do número dos que crêem. Não obstante, visto ser certo que o crente pode estar certo de sua própria fé (como se provará mais adiante), nada o im­ pede de aplicar a si, correta e licitamente, a promessa geral como pertinente a si. Sim, uma vez que as promessas foram feitas para nenhum outro senão para os que as recebem, cada pessoa, individualmente, deve aplicá-las a si. 2 Com base n a jé

^ ^ ^ dos santos sempre e principalmente levou em conta a misericórdia especial de Cristo. Paulo testifica que e^e cr® 9ue Cristo o amou e que morreu por ele (G1 2.20); que Cristo veio salvar pecadores, dos quais ele era o princi­ pal (1 Tm 1.15). Ele indica a mesma coisa quanto aos crentes, em outras partes (Rm 8.16,32,33; Ef 1.3-5; 2Co 5.1; Cl 1.5; IPe 1.2; 1Co 2.12; Uo 3.2). Tam­ pouco devemos aqui recorrer a uma revelação definida e extraordinária, perti­ nente a alguns e não a todos. Essa persuasão não se fundamenta em algum privilégio de determinados crentes, mas depende dos fundamentos gerais co­ muns a todos os crentes (a saber, a natureza da aliança; a morte e ressurreição de Cristo; a fidelidade de Deus e assim por diante). 3 Com base nos exem plos dos santos

^ sacramentos’ 9ue sao os selos das promessas, implicam essa aplicação particular, visto que foram instisacram entos. ., *_ T * ^ , tuidos para este tim - para que as promessas gerais e inde­ finidas pudessem ser aplicadas e seladas a cada indivíduo em particular. Daí elas são propostas não só em geral, mas são administradas e propostas em particular a este ou àquele indivíduo, que se supõe ter fé. Ora, a razão dos sacramentos é também a mesma das promessas. Nâo ajuda muito dizer com Belannino que os sacramentos são sinais infalíveis da salvação, não absoluta­ mente, mas de sua própria parte, se o homem não interpuser um obstáculo. Como já dissemos, falamos aqui dos crentes verdadeiros, não dos hipócritas que fecham a porta e para quem, portanto, os sacramentos nada selam. 4 Com base nos

*



^ ^ue sao se*ad°s pelo Espírito Santo e já receberam 0 Pen*lor da herança podem aplicar a si as promessas; pois ninguém é selado para uma esperança indefinida, mas somen’ te aquele a quem a promessa é peculiarmente aplicada. Ora, o penhor é dado não só para que se saiba que a salvação a ser obtida por uns poucos foi prometida a todos e sem qualquer escolha, mas também para que o crente entenda que foi escolhido entre todos e de todos, a quem a promessa seria feita infalível. E isto em outras partes se aplica aos crentes (2Co 1.21,22; Ef 1.13; 4.30; Rm 8.I6). XI. (6) A fé justificadora sem a misericórdia especial não diferiria da fé dos demônios e dos réprobos (a quem podem pertencer o conhecimento e o assentimento, porém não a confiança nas promessas divinas). XII. Embora a promessa da misericórdia especial, com respeito aos crentes individuais e particulares, não esteja contida expressa e explicitamente na Pala­ vra, contudo pode ser deduzida dela implicitamente e por consequência neces­ sária. Pois aquele que diz: “Quem crê será salvo”, diz também que Pedro e João, crendo, serão salvos. E na lei preceitos especiais estão contidos sob os gerais, e o que em geral é proibido a todos deve também ser aplicado em particular a indivíduos; assim, o que é prometido a todos em alguma classe pode e deve ser aplicado a indivíduos contidos nessa classe. Além disso, visto que Cristo apli­ cou a várias pessoas as promessas em particular (como ao paralítico, ao ladrão, à adúltera), assim o Espírito Santo as aplica em particular aos que crêem (Rm 8.16); como fazem os ministros do evangelho (Jo 20.23), que são embaixadores de Cristo (2Co 5.20). XIII. O que o apóstolo diz (“A fé é a prova de coisas que não se vêem”, Hb 11.1 [cf. NVI]) deveras prova que na fé se requer o conhecimento e a firme persuasão da veracidade das coisas propostas à convicção; porém não nega que a confiança na misericórdia especial pertence a ela. Sim, ele presume necessari­ amente isto quando diz que ela “é a substância de coisas que se esperam” (hypostasin tõn elpizomenõn). O que ele acrescenta concernente à criação do mundo (v. 3) e à construção da arca tem a mesma substância. Pois, como re5 Com base na selaeem do E spírito

denção pressupõe criação, assim o conhecimento da primeira pressupõe o co­ nhecimento da segunda (como a fé justifícadora pressupõe a fé histórica). Não obstante é falso no que tange a Noé, dizer que na construção da arca ele nada tinha em vista senão o terrível juízo de Deus para destruição da raça humana, e não pensava no livramento de si mesmo e dos seus mediante misericórdia especial. Aliás, por nenhuma outra razão ele construiu a arca, senão para pro­ ver [proteção] para si e sua família. Quando lemos que o objeto da fé é crer que Deus existe e que é o galardoador dos que o buscam (v. 6), é evidente que duas coisas se enfeixam necessariamente (as quais são concedidas gratuitamente por misericórdia especial): conhecimento e assentimento acerca da existência de Deus; e confiança nas recompensas. XIV. Visto que Cristo se apresenta a seus ouvintes como o objeto da fé, não é possível dizer que ele requer apenas uma crença em sua onipotência ou em sua divindade sem a misericórdia especial (a qual não se revelará em outro senão nele). Isto transparece do exemplo dos cegos que imploraram sua misericórdia: “O Filho de Davi, tem misericórdia de nós” (Mt 9.27*); de Pedro e os apóstolos, que professavam crer que Jesus é o Cristo, o Filho do Deus vivo (i.e., o Media­ dor que haveria de conciliar o favor de Deus para nós, como o explicam eni outra parte, Jo 6.69); do centurião que não só creu que Cristo podia, por seu poder, curar seu servo, mas também creu que ele queria fazê-lo, por sua graça (Lc 7.9); e de Marta, que asseverou que cria que Cristo era o Messias que havia de vir para a salvação dos homens (Jo 11.27). XV. Embora Cristo tenha curado o leproso (não plenamente persuadido de sua vontade, Mc 1.40), não se segue que a graça justifícadora não leva em conta a misericórdia especial. Pois o caso relacionado com uma bênção tempo­ ral difere amplamente do que se relaciona com uma bênção eterna. Se foi per­ mitido ao leproso nutrir dúvida acerca da restauração da saúde (acerca da qual ele não recebera promessa peculiar), não nos é lícito também, sem uma refle­ xão sobre Deus, nutrir dúvida acerca de uma participação na graça e na salva­ ção prometidas a todos os que crêem. Além disso, embora Cristo, acomodan­ do-se à debilidade humana, cordialmente passa por alto e cobre os defeitos, nem por isso ele as aprova, visto que em outras partes ele frequentemente repreende seus discípulos por suas dúvidas acerca de sua benevolência e da pequenez da fé deles (oligopistian , Mt 8.26; 14.31). XVI. A fé na ressurreição e na divindade de Cristo (exigida dos apóstolos, Rm4; 10.9; ICo 15; At 2.24; 4.10; 10.40) não exclui, porém pressupõe a mise­ ricórdia especial, porque nesta está o fundamento de nossa salvação e consola­ ção - que Deus enviou seu Filho ao mundo para morrer por nossos pecados e ressuscitar para nossa justificação. XVII. Embora o Credo dos Apóstolos nada contenha explícito sobre a mi­ sericórdia especial, contudo ele a envolve expressa e suficientemente, não só no artigo sobre a remissão de pecados e a vida eterna, mas principalmente

onde a fé em Deus - o Pai, o Filho e o Espírito Santo - é descrita (o que necessariamente implica a apreensão fiducial da misericórdia especial). XVIII. Embora a fé que justifica considera como seu objeto toda a Palavra de Deus, e inclui muitas coisas que são meramente históricas e dogmáticas, contudo, quando ela justifica, seu objeto próprio é a misericórdia especial, porque ela não pode justificar exceto quando leva em conta a misericórdia de Deus em Cristo. XIX. Tão longe está a fé na misericórdia especial de suprimir a pregação, os sacramentos e as boas obras, que na verdade ela pressupõe sua necessidade, porque são os meios pelos quais ela é selada e confirmada e aumentada em nós. Nem é a graça de Deus uma almofada de segurança ou uma causa de licencio­ sidade, mas a mãe da vigilância e um incentivo à santidade (2Co 5.14; G1 2.20; SI 130.4). XX. Embora a fé dos crentes tenha sido segundo a medida da revelação, ou mais obscura, ou mais clara no Antigo e no Novo Testamento, contudo ela sem­ pre teve por seu objeto a misericórdia especial de Deus em Cristo. Sob o Novo Testamento, Cristo se proclamou nitidamente como sendo o Messias, o Salvador do mundo (Jo 4.26), pelo mérito de sua morte (Mt 20.28; 26.28) e pela eficácia do Espírito (Jo 4.14; 7.37), deveras aos que crêem em seu nome (Jo 3; 6). E se os apóstolos não entenderam suficientemente o que ele disse acerca de sua paixão e morte (Lc 18.32-34), isso deve ser atribuído à sua fraqueza e à sua opinião preconcebida sobre o reino temporal de Cristo, o que mais tarde foi corrigido por ele; mas não a um defeito na revelação, a qual era suficientemen­ te clara. Quanto aos crentes do Antigo Testamento, sua fé (embora mais obscu­ ra) tinha também por seu objeto Cristo e as promessas da graça nele (como é evidente à luz de Jo 8.56; Lc 10.24; At 10.43; Hb 11; 1Pe 1.10,11). E mesmo a única pequena cláusula da aliança prova isto. Ela não poderia ser recebida por eles com fé, a menos que também cressem no Messias, sobre quem aquela aliança foi fundada e em quem todas as promessas de Deus são Sim e Amém (2Co 1.20). D é c im a T e r c e ir a P e r g u n t a Se a form a da fé justificadora é o am or ou a obediência aos mandamentos de Deus. Negamos isso contra os romanistas e os socinianos.

Dupla questão acerca da fo rm a da fé . 1 Com os

'

. ‘

rom anistas

'

Uma dupla questão se agita aqui: (1) contra os romanistas, que afirmam ser o amor a forma da fé; (2) contra os socinianos’ tluc fazem sua forma consistir em obediência aos man­ damentos de Deus. Temos que tratar estas posições claramente. roman'stas (Para provar que a fé considerada em si mes­ ma não justifica, porém toma emprestado do amor todo o seu poder de justificar) distinguem a fc em formada e não-forma-

da. Afirmam que a não-formada é separada do amor, e que a formada é aperfei­ çoada pelo amor como a forma (o que os escolásticos tentam laboriosamente estabelecer; cf. Pedro Lombardo, Sentem iarum, III, Dist. 23 [PL 192/2.805­ 807]). De fato afirmam que há nela tudo quanto é necessário para a crença, porém que o amor também deve estar nela e concorrer com ela para nossa vivificação e justificação diante de Deus. Mas, uma vez que percebem que isso pode ser-lhes contrários (que a fé tem sua própria forma interna pela qual é constituída e se toma fé genuína e se distingue de outras e assim não pode ser informada pelo amor, o qual é uma virtude distinta dela), respondem que o amor não é a forma essencial da fé. Antes, visto que ele adiciona alguma per­ feição à fé, pode metaforicamente ser chamado forma em virtude de sua analo­ gia com uma forma propriamente assim chamada, a qual à sua própria maneira aperfeiçoa o sujeito (como Gregório de Valença o expressa, Commentariorwn theologiconim , Disp. 1, Q. 4 [1603-9], 3:329-346). Durandus explana que o amor não é a fornia da fé segundo sua existência natural; sim, ele pode ser separado dela. Mas é a forma da fé quanto à sua existência meritória, visto que ele merece vida eterna, porque o ato de fé não é meritório, exceto até onde ela é imposta pelo amor (sem o qual ela não tem a relação de mérito e pelo qual o homem agrada a Deus); cf. Sententias theologicas Pelri Lombardi Commenlariorum , Bk. 3, Dist. 23, Q. 8 (1556), pp. 220,221. III. Mas tal opinião repousa sobre um fundamento duplamente falso. O pri­ meiro é se há alguma verdadeira fé não-formada. Pois visto que a forma dá exis­ tência a uma coisa, é absurdo (asyslalon ) dizer que haja uma fé não-formada. O outro diz respeito ao mérito da fé e das obras (como se provará no lugar pró­ prio), de modo que o mesmo é merecidamente rejeitado como falso e absurdo. Nem pode ser confirmado pela passagem onde o apóstolo diz que a fé “opera pelo amor” (di ’agapes eneigoum em , G1 5.6), porque isto não deve ser entendi­ do passivamente, como afirmam nossos oponentes (de modo a poder-se dizer que a fé é operada pelo amor [como que recebendo do amor sua eficácia uni­ versal]; porque ela outorga mais aos outros como sua causa e raiz do que rece­ be deles), mas ativamente, como a palavra original enetgeisthai é, com frequên­ cia, tomada em outras partes (Rin 7.5; 2Co 1.6; 4.12; Cl 1.29; Tg 5.16), visto que ele é aquilo que é produzido pela fé como o termo, não o que produz a fé como o princípio (i.e., a fé atrai o amor após si e, ao produzir este, exercita-se e se mani­ festa). Assim Paulo deseja provar, não que qualquer fé em Cristo é válida, mas somente a verdadeira e viva, que opera pelo amor e pelas boas obras. Portanto, as ações do amor são da fé imperativamente, não dedutivamente. IV. A opinião de nossos oponentes não recebe melhor apoio de Tiago 2.26, onde lemos que “a fé sem obras” é “morta”, porque isto não deve ser inferido da causalidade das obras para a vida de fé a priori, como se as obras tomassem viva a fé, mas de uma declaração a posteriori, porque as obras demonstram uma fé viva; como se afirma que um corpo sem o espírito está morto (i.e., sabe-

se que está morto com base na ausência de respiração e fôlego; pois aqui prteitma é usado para pnoê ou “respiração”).

2 Com os socinianos

soc'n'anos’ Para ma's facilmente subverterem a apreensao ^lc*uc'aI da satisfação de Cristo (na qual os ortodoxos esta­ ' belecem a essência da fé), e assim reterem a justiça das obras (quando esta é tão expressamente distinta da justiça da fé na Escritura), afir­ mam que a fé nada mais é do que obediência aos mandamentos de Deus. As­ sim, as boas obras não são tanto o fruto da fé, quanto sua forma, como o ex­ pressa Ostorodt ( Unterrichtimg ... hauptpunclen der Christlichen Religion 2 [1612], p. 22). Volkelius situa o terceiro grau da fé na obediência aos manda­ mentos de Deus: “O terceiro”, diz ele, “é confiar cm Cristo e, por meio dele, cm Deus, e assim fiar-se na esperança da imortalidade, para acomodar-se intei­ ramente ao desejo de Deus (i.e., de Cristo) e assim também obedecer aos man­ damentos de Deus” (De vera Re/igione 4.3 [1630], p. 178). VI. Mas, em contrapartida, a fé não pode ser obediência aos mandamentos, porque assim duas virtudes seriam confundidas, as quais são mutuamente distin­ tas - “a fé e o amor” (ICo 13.13). Aquela se preocupa com as promessas do evangelho; este, com os preceitos da lei (que justamente por isso se diz ser o fim ou o “cumprimento da lei”, Rin 13.10). Aquela é a causa; este, o efeito: “Ora, o intuito da presente admoestação visa ao amor que procede de coração puro, e de consciência boa, e de fé sem hipocrisia” (lTm 1.5). Aquela é o instrumento da justificação, enquanto que este é seu fruto consequente. Daí, na questão da justi­ ficação, fé e obras se impugnam como opostos e contrários (Rm 3.28). VII. Tampouco se pode replicar que as obras (não de qualquer tipo, mas perfeitas e em todos os aspectos em harmonia com a lei) podem opor-se à fé na justificação. E evidente, com base em Paulo, que todas as obras, sejam ou não perfeitas, são inteiramente opostas à fé na justificação, e que a fé não justifica como uma obra (sendo este o erro fundamental [prõton pseu dos ] de nossos oponentes, que assim confundem a lei com o evangelho e a condição da alian­ ça da graça com uma condição legal, como se provará no lugar próprio). VIII. Embora crer seja obedecer à ordem de crer prescrita no evangelho (1 Jo 3.23), nem por isso se diz corretamente que a fé é obediência aos manda­ mentos de Deus no sentido de nossos oponentes (que aqui entendem por man­ damentos os preceitos da lei que devem ser praticados e cumpridos de nossa parte pelas boas obras; não os mandamentos do evangelho, que nos ordenam fé nas promessas da graça). E se a fé é chamada “a obra de Deus” (Jo 6.29), isto é feito antes imitativamente (m imêtikõs ), levando em conta a petição da multidão, que rogava: “Que faremos para realizar as obras de Deus?”. A fé era apta a dar-lhes o que inutilmente haviam buscado nas obras da lei; como em outra parte o evangelho recebe o nome de lei, e as obras de amor e de benefi­ cência são chamadas jejum (Is 58.6,7), porque realmente realizavam o que os judeus em vão buscavam por meio de seus jejuns hipócritas.

IX. A fé pela qual Abraão foi justificado não pode ser chamada obediência aos mandamentos (embora a obediência lhe fosse prescrita como uma condi­ ção, Gn 17.1), pois o que nos é ensinado claramente é que ela é fé na promessa (Gn 15.5,6; Rm 4.11,13,16). Andar diante de Deus, mencionado em Gênesis 17.1, não é uma condição da justificação da fé, mas seu efeito. Tampouco se pode dizer que o oferecimento de seu filho é também sua causa, porque ele havia sido justificado havia trinta anos (Gn 15.6). Portanto, a partícula causal “desde que” ou “visto que” (que ocorre em Gn 22.16) é uma causa ou sinal de consequência, não de um consequente. O am or é Embora o amor não seja a forma da fé, porém pode ser distinsepurável gu'do dela. nem por isso se pode dizer que seja separável dela da fé? Isso (corno afirmam os romanistas; cf. Belarmino, “De Justificationegam os ne”' * ^ O pera [1858], 4:483-487). Ele é o efeito próprio e imediato da fé, não podendo ser separada de sua causa. Daí di­ zer-se que ela opera pelo amor (G1 5.6) e que sem as obras está morta (Tg 2.20). Daí João asseverar que conhecer a Deus sem servi-lo é falso e enganoso: “Aquele que diz: Eu o conheço e não guarda seus mandamentos é mentiroso, e nele não está a verdade” (1 Jo 2.4). Ele se refere ao mandamento evangélico em relação à fé e ao amor como duas marcas dos verdadeiros crentes mutuamente inseparáveis (1 Jo 3.23). XI. Não se pode provar o contrário com base em 1 Coríntios 13.2, porque o sujeito é a fé em milagres, e não a fé justificadora. como já dissemos. Não é válida a objeção de que no versículo 13 o sujeito é a fé salvífica, porque não é uma conclusão oriunda da discussão precedente, mas um novo argumento. Fi­ nalmente, deduzido de coisas relacionadas (ou seja, da cessação da fé e a dura­ ção do amor). Não se pode provar com base em João 12.43, onde se fala dos líderes que crêem em Cristo. Não poderia ser uma genuína fé justificadora, visto lermos “porque amaram mais a glória dos homens do que a glória de Deus” (o que não se harmoniza com os crentes). Daí, ela era apenas um assen­ timento teórico oriundo da evidência da doutrina de Cristo e do poder de seus milagres, não fiducial e prática. Se no mesmo capítulo crença em Cristo for entendida como fé genuína, então aqui não deve ser entendida no mesmo sen­ tido, porque as circunstâncias diferem. Ou do fato dc que alguém pode dizer que “tem fé”, a qual é sem obras (Tg 2.14). Uma coisa é a pessoa realmente possuir fé; outra é ela “dizer que a possui” (o que fazem os hipócritas, orgu­ lhando-se de uma vã profissão de fé). Se a fé deve cessar no céu, enquanto o amor permanece (ICo 13.8), isto deve ser entendido formalmente quanto ao modo de cognição que cessará, não materialmente quanto à substância do co­ nhecimento que será a mesma. Pois o conhecimento que tem início aqui medi­ ante o ouvir da Palavra na luz da graça será consumado pela vista na luz da glória.

A s crianças têm fé ? Faremos distinção.

Concernente ao sujeito da fé, move-se uma questão no c|ue tan8c às crianças. Há dois extremos: (1) um pelo que falta, que se vê nos anabatistas, que negam a presença toda e qualquer fé nas crianças, e sob este pretexto as ex­ cluem do batismo; (2) em excesso, pelos luteranos que, opondo-se aos anabatistas, caíram no outro extremo, mantendo que as crianças são regeneradas no batismo e realmente munidas de fé, como transparece do Mompeldardensi Colloquy (Acta Colloquij Montis Belligartensis [ 1588], p. 459). “A franca afir­ mação de nossos teólogos é que se atribui fé ativa às crianças com o mais justo direito” (Brochmann, “De Fide Justificante”, 2, Q. 10 em Universae theologicae system a [1638], 2:429). E stabelecim ento da questão: a f é das crianças

II. Os ortodoxos ocupam o termo médio entre os dois extremos. Negam fé ativa às crianças contra os luteranos, e mantem que se deve atribuir-lhes uma fé seminal ou radical e habitual contra os anabatistas. Aqui se deve observar antes de todas as coisas: (1) que não estamos falando das crianças de quaisquer pais sem importar quem sejam eles (mesmo de infiéis e pagãos), mas somente dos crentes ou cristãos que abraçaram o pacto. (2) Nem estamos falando de toda e qualquer criança como se tal fé fosse dada a todos sem qualquer exce­ ção; pois embora a caridade cristã nos ordene nutrir boa esperança acerca da salvação delas, contudo não podemos determinar com certeza que a cada uma delas pertence a eleição divina, mas devemos deixar isso com o conselho se­ creto e a suprema liberdade de Deus. Visto que de fato a predestinação divina faz diferença entre crianças (Rin 9.11) e que a promessa pactuai foi ratificada (v. 8) não nos filhos da carne, mas nos filhos da promessa, por isso aqui trata­ mos indefinidamente das crianças de toda ordem e condição (pertencentes à eleição divina, o que não cabe ao juízo humano distinguir). Abarcamos nossa opinião em duas proposições. A prime*ra se °PÕe aos luteranos: “As crianças não possuem fé at'va”- As razões são, primeiramente, porque não têm nenhum conhecimento ativo. Daí lermos que não conhecem ° ^em ou ° ma'>nem P°dem discernir entre a mão direita e a mao esquerda (Dt 1.39; Is 7.16; Jn 4.11). Tampouco se ^eve suscitar a objeção (a) “No entanto, o conhecimento mu'tas coisas nasce conosco”. Uma coisa é ter os princípios e sementes do conhecimento nas noções comuns implantadas em nós (o que admitimos); outra é ter conhe­ cimento ativo (o que negamos), (b) “A fé não depende do uso da razão; aliás, deve trazer a razão à obediência a ela” (2Co 10.5). Uma coisa é a fé depender do uso da razão como um princípio; outra é a fé pressupor a razão como seu

Prova contra os luteranos de que as crianças não possuem fé ativa: (1) po rq u e não professam o conhecim ento ativo de algo.

sujeito. Negamos a primeira parte com Paulo, que por isso mesmo deseja que a razão esteja cativa à obediência da fé. Sustentamos a segunda com ele, o qual deseja que nosso culto espiritual seja racional (logikon , Rm 12.1). Portanto, onde o uso da razão não está presente, tampouco pode estar o uso ou o exercício da fé. Segundo, as crianças não são capazes de atos de fé, ou de conhecimento, porque o intelecto não existe sem ação; sao capazes de „ , . .. ,• atos de f ' nem sao caPazes de assentir, o que conduziria ao objeto co­ ' nhecido; nem de confiar, o que diz respeito à aplicação es­ pecial da promessa da graça. Portanto, não são aptos a possuir fé, a qual con­ siste destes três atos. Aliás, seria realmente absurdo (asystaton) que houvesse um movimento do intelecto ou da vontade sem conhecimento (o que é sempre pressuposto por eles). , D . V. Terceiro, nào são capazes de ouvir a Palavra e meditar 3. Porque nao . , . . .„ são ca a~es da ne ^ se concc‘,c a *e: Pols a *e vem Pe*° ouvir S p aIavra r*tua* Çue é gerada em nós pelo Espírito. Ela não é passível esniritual ‘ ’ de destruição ou de extinção (como a vida animal), mas é perpé­ tua e eterna. Por isso mesmo lemos que os crentes, em graça, já possuem a vida eterna: “Aquele que crê em mim tem a vida eterna” (Jo 5.24; 6.40). Ele não diz: terá no futuro, mas já a possui agora no presente. “Estas coisas vos escre­ vi, a fim de saberdes que tendes a vida eterna, a vós outros que credes em o nome do Filho de Deus” (Uo 5.13). E, no entanto, se a vida que temos aqui, pela graça, é eterna, como pode ser extinta ou fracassar? E possível, pois, suce­ der que venhamos a cair definitivamente da vida eterna (à qual somos traslada­ dos pela fé) para a morte eterna da qual fomos trasladados? “Bem-aventurado e santo é aquele que tem parte na primeira ressurreição; sobre esses a segunda morte não tem autoridade” (Ap 20.6). Ora, ainda que esta vida espiritual (não menos que a animal) sofra quedas em graves falhas dos santos e nem sempre tenha a mesma qualidade e vigor, às vezes se enfraqueça e pareça sufocada, contudo de modo algum é inteiramente sufocada e extinta; mas, mediante atos

subsequentes de arrependimento e fé, ela é renovada sempre que o pecador lute, e daquela queda (como que com espírito recobrado) se inflama com mais profundo ódio ao mal e mais ardente amor ao bem. XXIII. Não devemos omitir aqui a importante passagem na qual o apóstolo mui claramente prova nossa proposição (da qual, esquivando-se, ou corrom­ pendo-a, nossos oponentes labutam com surpreendente afa). “Todo aquele que é nascido de Deus não vive na prática do pecado; pois o que permanece nele é a divina semente; ora, esse não pode viver pecando, porque é nascido de Deus” (Uo 3.9). Se alguém é nascido de Deus, esse não peca; quem peca, não é nascido de Deus; sim, esse não o vê nem o conhece (v. 6). Ele não diz simples­ mente que aquele que nasce de Deus não peca (i.e., o crente genuíno), pois o apóstolo reconhece pecado nos santos e não excetua nem mesmo a si próprio (1 Jo 1.8); mas “não comete pecado” (i.e., de tal modo que o pecado o domine e pelo qual ele se submete totalmente ao poder de Satanás) na forma como o não-regenerado peca (com o desejo e hábito de pecar, com o pecado imperan­ do). Ainda quando lemos que ele “faz justiça”, não aquele que faz alguma obra de justiça, mas quem se empenha num exercício contínuo dela; como lemos que “faz medicina” quem a professa e se engaja em sua prática; “faz comér­ cio”, “faz arte” quem os pratica. Nem apenas lemos que “não peca”, mas que “não pode” nem mesmo “praticá-lo”; não apenas porque “não deve” com base em seu dever, pois assim se poderia dizer do não-regenerado que ele não é capaz de pecar, porque não deve pecar; ou porque ele não pode fazê-lo moral­ mente (i.e., ele o faz com dificuldade), porque assim se removeria a gradação do apóstolo do menor para o maior. Ele não peca, e não pode pecar, porque não pecar é maior que pecar com dificuldade. Antes, afirma-se absolutamente quanto ao fato concreto, porque isto não pode ser feito com base numa causa dupla. Primeiro, em razão do próprio princípio interno, porque a “semente de Deus” (ou seja, a Palavra implantada [emphyton] e o Espírito Santo, por cujo poder nascemos de novo) não é só por um momento, mas “permanece nele” (i.e., está nele permanentemente). Pois é evidente que não está implícita aqui a mera existência, mas a permanência constante, porque se trata de uma semente in­ corruptível, de regeneração para a vida eterna, de permanência (a qual não permite que os renovados pequem e pela qual o Espírito Santo permanece neles para sempre, Jo 14.16). O crente permanece perpetuamente na casa e jamais é lançado fora dela (Jo 8.35). Segundo, em virtude da própria geração realizada por essa semente, visto que um nascimento da parte de Deus tem a causa e o efeito de preservar a perseverança daquele que de Deus é nascido; pois a semente de Deus permanece nele e ajuda a defendê-lo do pecado. Esse ato de regeneração, no qual está o fundamento da relação, visto que não pode ter sido, não pode senão ser; pois sua semente que permanece nele faz um eterno vínculo de relação, como o Filho de Deus é sempre o que uma vez foi. E embora essa semente nem sempre produza fruto no crente quanto ao segundo ato, não se segue que ela não permaneça quanto ao primeiro (como a vida

permanece numa árvore durante o inverno, quando não pode produzir folhas nem fruto). XXIV. Não se deve dizer aqui que a opinião de João é verdadeira no senti­ do composto, ou seja, que aquele que é nascido de Deus não pode pecar (por­ quanto é nascido de Deus), mas que ele pode pecar no sentido dividido, caso negligencie a semente de Deus. Pois assim um fator causal é transformado num condicional. Não lemos que João tenha dito que aquele que é nascido de Deus não pode pecar, uma vez que ele nasceu de Deus, mas “porque ele é nascido” e porque a semente permanece nele (i.e., sempre persevera c perma­ nece nele), por isso ele c nascido filho de Deus. De outro modo, a declaração do apóstolo viria a ser sem sentido, afirmando o que ninguém poderia pôr em dúvida. Pois nem o próprio Diabo, nem qualquer homem ímpio comete pecado de acordo com o qual ele foi feito por Deus. Contudo, mais absurda é a expla­ nação de Belarmino: “Aquele que é nascido de Deus não peca, enquanto con­ tinuar filho de Deus” (i.e., ele não peca enquanto não pecar) (“De Justificatione”, 3.15 Opera [ 1858], 4:564). Assim, não poderia Adão ter pecado enquanto perseverasse. João, porém, tinha em mente outra coisa - que os crentes, evitan­ do o pecado (pelo menos o pecado dominante), dessa forma podem saber que são nascidos de Deus (sobre quem o pecado não recai); não no sentido em que nossos oponentes nos acusam (“Não pequeis, porque não podeis pecar” - o que é claramente ridículo); mas em outro, que é o melhor (“Cuidado, irmãos, não transijais no pecado, porque, se algucm fizer isso e crer que é nascido de Deus, evidentemente se engana; pois aquele que é nascido de Deus não costu­ ma agir assim, nem de fato o pode”). Além do mais, esta impossibilidade não existe da parte do homem, mas da parte da semente que preserva o crente de tal deslize, e da parte do nascimento espiritual (que é a causa dessa perseverança e que exclui a apostasia). E, portanto, ser incapaz de pecar e ser nascido de Deus estão mutuamente relacionados entre si, como a causa com o efeito. Daí a proposição do apóstolo não pode ser idêntica; como se ele dissesse que aque­ le que não peca, não peca; não mais que isto, aquele que é nascido do homem usa a razão. Pois o crente, no sujeito da proposição, é descrito por sua origem; no predicado, porém, por uma propriedade essencial. Com base XXV. Aqui se encaixam os vários símiles usados pelo Espírito em vários Santo para figurar a natureza perene daquela vida; como quando sím iles ®comparada com “uma semente incorruptível” (1 Pe 1.23), não ’ só nela formalmente, mas também em nós efetivamente, porque ela produz vida eterna e permanece sempre no crente (1 Jo 3.9). E “uma fonte de água que jorra para a vida eterna, da qual todo o que bebe nunca mais terá sede” (Jo 4.14); uma vinha que nunca mais será arrancada (Am 9.15); “uma árvore plantada junto a ribeiros de água, cuja folha não murcha” (SI 1.3; 92.14). Ele não diz meramente que esta água permanece, mas que é multiplicada e vem a ser uma fonte perene que jorra para a vida eterna (i.e., que emana da terra para o céu, para Deus e para a vida eterna e nos leva consigo, como tinha

descido de Deus para nós), como geralmente as águas sobem ao nível de sua própria fonte; “uma casa construída na rocha” que permanece inamovível con­ tra os ventos, tempestades e inundações (Mt 7.25) e contra a qual as portas do inferno não podem prevalecer (Mt 16.18). Ora, se o crente que é nascido de Deus pudesse tomar-se filho do Diabo; se a água da graça salvífica pudesse secar inteiramente; se os piedosos que são construídos sobre a rocha dos sécu­ los pudessem cair de vez, como poderia ser chamada semente incorruptível e água que emana para a vida eterna e uma casa edificada sobre a rocha? XXVI. A objeção a João 4.14 é infrutífera. Primeiro, que o texto trata da vida eterna, em que a sede é perfeitamente satisfeita, não da vida na graça, em que ela é bendita quando se tem sede” (Mt 5.6); “sim, podemos deixar de beber”. O desígnio de Cristo é mostrar a prerrogativa da água espiritual que ele dá acima da água elementar. Primeiramente, nisto: que água de poço não miti­ ga inteiramente a sede, mas a água de Cristo de tal modo elimina a sede, que aquele que uma vez a tenha sorvido, nunca mais sente sede, para sempre (a saber, a sede de uma total indigência, o que pertence aos perversos [ls 65.13], embora ele possa ainda sentir sede, mas uma sede de aspiração e total fruição, a qual está sempre presente nos crentes [que ainda não estão aperfeiçoados, IPe 2.2,3] nesta vida). Segundo, que a água de poço não permanece naquele que bebe, mas passa e desaparece, daí ser ele novamente compelido à sede. Mas a água de Cristo é uma fonte permanente e perene, não só com respeito à glória (onde se dará a plenitude desta água), mas também nesta vida (onde começamos já a bebê-la). Daí, ele não diz que esta fonte é a vida eterna, mas que emana para a vida eterna, para notificar que esta fonte perene já teve início no coração do crente em graça, até que ela o conduza à vida eterna; como em outro lugar Cristo diz que “quem crê em mim ... do seu interior fluirão rios de água viva” (Jo 7.38), falando dos dons do Espírito Santo que estavam para ser dados aos crentes. Segundo, “a palavra ‘beber’ é intensiva, isto é, denota um ato contínuo ou pelo menos final, de modo que Cristo não quis dizer daquele que bebeu uma vez e creu uma vez, mas sim que aquele que contínua e perse­ verantemente aje assim, esse viverá eternamente”. Mas as palavras dc Cristo não comportam essa interpretação. Ele não diz: aquele que tenha bebido conti­ nuamente, mas que tenha bebido (i.e., que uma vez tenha realmente bebido, porque, tendo uma vez tomado dessa corrente, ele sempre o faz beber, e porque a água que Cristo dá se converte numa fonte). Cristo dá esta água quando ela é sorvida uma vez. Portanto, onde ela é sorvida uma vez, ali se converte numa fonte de água que jorra para o refrigério etemo. Do contrário, se Cristo quises­ se dizer apenas isto - que enquanto o homem beber dessa água ele não terá sede o mesmo se poderia dizer de qualquer outra bebida - que enquanto alguém beber dela, esse mesmo não terá sede. 6. Com base no XXV11. (6) O juízo lavrado na Escritura concernente aos ju ízo concernente apóstatas, que é totalmente diferente daquele exercido aos apóstatas. sobre os verdadeiros crentes, aponta para este tema. “Eles

saíram dc nosso meio [diz João]; entretanto, não eram dos nossos; porque, se tivessem sido dos nossos, teriam permanecido conosco; todavia, eles se foram para que ficasse manifesto que nenhum deles é dos nossos” (1 Jo 2.19). Como Agostinho observa oportunamente: “Esse não é realmente o corpo de Cristo, o qual não estará com ele para sempre” (Cl 3.32* [45] [FC 2:153; PL 34.82]). Em outro lugar: “Não eram filhos mesmo quando professavam ser e portavam o nome de filhos” (Admonition and G race 9 [20] [FC 2:269; PL 44.928]). Assim o apóstolo distingue entre “estar na igreja”, quanto à profissão externa e ao corpo eclesiástico e “ser da igreja”, quanto à comunhão interior e ao corpo místico de Cristo (o qual pertence exclusivamente aos eleitos). Ora, os apósta­ tas e os anticristos (dos quais fala João) de fato estiveram entre eles na assem­ bléia cristã e na igreja visível dos crentes mediante profissão de fé e comunhão dos sacramentos; e apostataram dessa comunhão, não tanto mediante uma mu­ dança dc lugar, quanto a uma mudança de doutrina e afeição (como lemos que saíram do mundo, não que se separaram dele fisicamente, mas mentalmente e nos afetos). E porque um grande escândalo poderia ter surgido daí (como se a igreja tivesse gerado tais pestes ou os verdadeiros crentes pudesse fracassar), João elucida o caso quando acrescenta que não pertenciam ao número dos verdadeiros crentes, porque, se tivessem pertencido a estes, de igual modo teriam permanecido constantemente com eles; mas isso sucedeu a fim dc que fosse manifesto que nem todos os que estão na igreja e que fazem profissão de fé são realmente crentes e membros do corpo de Cristo. O apóstolo não pode­ ria ter afirmado isto, a menos que presumisse como certo e indubitável que aqueles que uma vez foram introduzidos no corpo místico de Cristo e da igreja invisível jamais poderiam ser eliminados dele. Pois o que é objetado por al­ guns - que o fato de saírem denota a missão apostólica (como se eles preten­ dessem que tinham sido enviados pelos apóstolos, o que não aconteceu) - é tão absurdo que não requer refutação. Ora, ainda que não neguemos que os crentes genuínos podem, por algum tempo, desistir de sua profissão de fé externa e insinuar uma negação de Cristo (seja por temor e fraqueza, ou por um erro mental ou pela esperança de lucro, podendo cair e levantar-se), nem por isso pode suceder que fracassem irremediavelmente e abracem a perversidade com um propósito mental deliberado, por ódio e desprezo pela verdade, de modo que se tornem perseguidores e sedutores; sim, inclusive anticristos (tais como foram aqueles apóstatas de quem o apóstolo fala). 7 Com base XXVIII. (7) Com base em absurdos. A apostasia dos santos, em absurdos uma vez estabelecida, (a) os decretos e dons de Deus sem arrependimento (am eíam etêía) ficam na dependência da von­ tade incerta do homem, (b) Quebra-se a cadeia dos meios de salvação que Deus elaborou para a infalível consolação de seu povo. (c) A doutrina do evan­ gelho se converte em mera conjetura, e a confiança e certeza da salvação é imediatamente arrebatada da consciência atormentada, (d) A distinção entre réprobos e eleitos é destruída, enquanto estes e aqueles promiscuamente são

ou admitidos aleatoriamente à condição daqueles a serem salvos ou excluídos, (e) Todo o plano da salvação vem a ser sem qualquer efeito. Pois, se é possível que todo crente caia da fé, sucederia que não existe ninguém eleito. Pois se um cai, por que não outro? E, pela mesma razão, por que não todos? Assim, não poderia haver igreja, e Cristo teria morrido em vão. XXIX. Os exemplos evocados daqueles que, afirma-se, caíram ^ nao Provam a apostasia dos santos. E ou defecção da fé temporária, não da fé salvífica (como os mencionados em Mt 13.21); ou da comunhão externa e da igreja visível, não da igreja interna e mística. Isto está implícito nas passagens onde se faz menção dos israelitas que quebraram o pacto, que foram eliminados em virtude de incredulidade (Rm 11.20), que são contradistinguidos dos eleitos para a glória e que obtiveram a salvação (Rm 11.7) e os ramos improdutivos que não permanecem em Cristo, porém são cortados e queimados (Jo 15.2,6). Lemos que estão em Cristo por­ que estão na sociedade da igreja e, mediante o batismo, são iniciados para Cristo e, tanto em sua própria opinião como na opinião de outros, parecem estar plantados em Cristo, mas que aderem a ele mais por contiguidade da comunhão externa do que inerem por continuidade da comunhão interna e pelo vivificante influxo do Espírito. Ou lemos que estão em Cristo com base numa santificação federal e sacramental - externa, não íntima e real (mencio­ nada em Hb 10.29); ou “da fé na qual se crê”, ou da doutrina do evangelho e sua profissão; contudo, não “da fé pela qual se crê [no evangelho]”, ou o hábi­ to uma vez dado aos verdadeiros crentes (como lemos acerca dos últimos dias quando alguns “apostatarão da fé” [1 Tm 4.1], ou seja, da verdade do evange­ lho, atendendo a espíritos enganadores; e de Himeneu e Fileto [lTm 1.19,20; 2Tm 2.17] que “vieram a naufragar na fé” [peri tên pistin], ou seja, apartandose da pura e sincera pregação do evangelho, a qual retiveram por algum tem­ po). Neste sentido, lemos que “não mantiveram uma boa consciência” (ou seja, a sinceridade límpida e a afeição mental em reter a pureza do evangelho, o qual abandonaram, hasteando a vela da ambição e de outros afetos, interpolan­ do a genuína doutrina com vários erros letais - tais como a negação da ressur­ reição final, dizendo que ela já aconteceu). Lemos que eles descartaram a boa consciência, não por rejeitarem o que já tinham, mas por não aceitá-lo (pois a palavra to apõsasthai, usada aqui, primariamente significa repulsão ou rejei­ ção de uma coisa que não se tem [como em At 13.46], não por desvencilhar-se de uma coisa já possuída). E possível observar também que não se afirma que naufragaram na fé, mas “acerca da fé” (peri (ên pistin , ou circa fidem ,1 como a Vulgata traduz a expressão), de modo que a metáfora é tomada de marinheiros, e a fé é aqui apresentada como um porto rumo ao qual se dirigem; a doutrina do evangelho, uma vez recebida, os teria guiado, de modo que teriam enconFontes d e explanação

2. Lem brando que a preposição peri, com acusativo. como é o presente caso, inclui o sentido de "ao redor de", “perto de", “cerca de", o que sc coaduna com a m etáfora m encionada a seguir, dos marinheiros e o porto. [N. do E.] "

trado paz dc consciência e salvação (como Teofilato observa sobre esta passa­ gem, Commentarius in prim am epistolam a d Timotheum [PG 125.27 sobre 1Tm 1.19]). Para chegar ao porto o curso de navegação tem de ser governado por uma boa consciência; uma vez descartada esta. não é possível alcançá-lo. E assim naufragam com relação a ela, não só deixando de apelar para ela mas também indo de encontro às terríveis rochas do erro, onde realmente naufra­ gam (i.e., precipitando-se na destruição). Em outra parte, a fé é comparada a uma meta que almejamos e a um alvo rumo ao qual corremos, e acerca do qual lemos que “erram acerca da fé” (astochein p eri len pistin, 1Tm 6.21), os quais seguem a ciência falsamente assim chamada (pseuitonymon gnõsin). XXX. Os exemplos dos santos que caíram em pecados graves e hediondos não provam que caíram da fé total e finalmente. Uma coisa é escorregar na lama; outra é lançar-se alguém nela e rolar nela com prazer) - numa há o acidente e a fraqueza de pecar; na outra, há um propósito de vida e uma resolução da vonta­ de. Os santos pecam na primeira hipótese, não na segunda. Se por algum tempo se desviam da vereda da fé e da verdade, não perdem totalmente seu propósito. Num naufrágio, eles se mantêm firmes numa prancha; no inverno, na semente; num paroxismo, mantêm o princípio da razão; tampouco com o ato o hábito perece, nem com a sedução do afeto se elimina o propósito de retomo. XXXI. Davi pecou gravemente e contra sua consciência; sim. em seu du­ plo pecado de adultério e homicídio, por algum tempo ele viveu estupefato. Daí sua fé foi não apenas e indubitavelmente enfraquecida, mas até mesmo esteve dormente, de modo que não pôde por algum tempo sentir a graça. No entanto, ele não caiu totalmente, porque ele pecou não tanto movido por fra­ queza deliberada e pelo hábito, como por veemente desejo e sedução da carne; foi vencido, isto é, por sua concupiscência (2Sm 11.2-4). Daí, uma vez repre­ endido por Natã, imediatamente reconheceu c confessou seu pecado e buscou refúgio na graça de Deus, e em razão disso o profeta anunciou o perdão de seu pecado. Por isso ele busca tão ardentemente, não que o Espírito lhe seja restau­ rado, mas que “o Espírito Santo não se afaste dele” e que “a alegria da salva­ ção lhe seja restaurada” (SI 51.11,12). Isto prova que o senso da graça de fato fora interrompido, porém não que a graça fora removida inteiramente. Se Davi reconhece que ele é “um homem de morte” (2Sm 12.5)3(i.e., exposto à morte, que realmente merecia tal punição em decorrência de seu pecado), não se segue imediatamente que ele tivesse caído totalmente da fé e da graça, porque, do demérito e culpa do pecado para o evento, a consequência não é válida. De fato se segue que ele viveu naquele estado em que fora digno de ser ferido de morte e separado de Deus; porém não se segue que ele fosse realmente e de fato sepa­ rado (em virtude da intervenção da misericórdia de Deus). Deveras é certo que se pode dizer que Davi permaneceu na morte quanto à sua culpa (enquanto permaneceu em pecado e não se converteu), mas acresce que não é certo dizer 3. Literalmente no hebraico: “um homem filho da morte". |N . do E.]

que ele caiu absolutamente da graça da adoção e de seu direito à vida, o que lhe pertencia como filho de Deus. Portanto, o que João diz, que um homicida “per­ manece na morte” e “não tem a vida eterna permanente nele” ( lJo 3.14*, 15), deve ser inferido de um homicida impenitente e inconverso (e isso Davi não foi). XXXII. Salomão foi um doloroso exemplo de fragilidade humana naqueles graves pecados pelos quais ele se contaminara, por sua desenfreada licenciosi­ dade da poligamia e insano amor pelas mulheres estrangeiras. Enquanto rei ele foi o mais sábio dentre os mortais, amado de Deus, de tão grande valor que lhe foram confiados os negócios da construção da casa de Deus, um tipo de Cristo, que nos dias de sua juventude foi considerado um padrão de sabedoria e de justiça. Agora, envelhecido, ele afasta seu coração de Deus e vai após os ído­ los, e se toma um arquiteto de ídolos e templos do Diabo; sendo que ele fora o principal artífice (dêm iourgos ) do templo de Deus (o que aumenta de tal modo a hediondez de seu pecado, que raramente algo do gênero se encontra entre os santos). Entrementes, se for bem examinado, não chega a ser algo que nos com­ pila a crer que ele caiu totalmente da fé, de modo que seus hábitos fossem não só enfraquecidos e em grande medida diminuídos e insensibilizados, porém total­ mente extintos. Sim, há muitas coisas das quais se pode inferir sua penitência e sua perseverança. (1) Da memorável promessa feita a Davi acerca dele (2Sm 7.14,15), como o tipo de Cristo, que o ameaça brandindo o azorrague, porém não lhe retira a graça (ao contrário do que foi feito a Saul). “Eu serei seu pai, e ele será meu filho. Se cometer iniquidade, o castigarei com vara de homens, porém minha misericórdia não se apartará dele”. Concede-se aqui uma promes­ sa federal, não só de um reino (como afirma Kimchi; cf. Johannis Buxtorf, Biblia Sacra H ebraica et Chahkúca [1619] sobre 2Sm 7.14), mas de todas as graças com que o pai acompanha seu filho (o que é incompatível [asystatos] com deserção). (2) Isto é confirmado por aquele amor especial com que Deus o abraçou (2Sm 12.25). Daí o nome Jedidias (“amado do Senhor”) lhe ser dado, pois o amor de Deus por seu povo é eterno (Jr 31.3). (3) Ele era um tipo eminen­ te de Cristo, o que não seria possível se fosse posto no número dos apóstatas e réprobos. (4) Em 1 Reis 11.4,6, onde seus pecados são enumerados, lemos: “Sendo já velho, suas mulheres lhe perverteram o coração para seguir outros deuses; e seu coração não era de todo fiel para com o S e n h o r , seu Deus, como fora o de Davi, seu pai. Assim, fez Salomão o que era mau perante o S e n h o r e não perseverou em seguir ao S e n h o r , como Davi, seu pai”. Daí podermos dedu­ zir que, ainda que um homem excessivamente dominado pelo amor e indulgên­ cia para com suas esposas, tenha se afastado do Deus verdadeiro, seja por tole­ rar o culto dos ídolos e edificar-lhes templos para a prática da idolatria, só participativa e indiretamente (como pensam não poucos judeus e cristãos); ou por pessoalmente os adorar ou trazer ídolos para o templo (no qual o verdadeiro culto divino continuava mesmo quando se encheu de idolatria); no entanto, ele não renegou totalmente o culto divino. Daí Agostinho o associar com Arão, dizendo que ele foi “induzido a não consentir com o povo errado em fazer o

ídolo, porém foi obrigado a interrompê-lo” (CG 14.11 [FC 14:378; PL41.419]). (5) Salomão é enaltecido depois de sua morte, quando se faz referência a Roboão: “Por três anos ele andou no caminho de Davi e Salomão” (2Cr 11.17). Aqui se trata da imitação da piedade, o que o Espírito Santo não teria dito se ele tivesse fracassado totalmente em sua fé. (6) Prova-se a mesma coisa mediante seu arrependimento, do qual dão testemunho não só a reforma da igreja, insti­ tuída nos últimos anos de sua vida (2Cr 11.17), mas especialmente seu Eclesiastes que (segundo a opinião constante dos judeus) foi não só escrito por ele (como se pode deduzir do título do livro ao ser denominado “Palavras do Prega­ dor, filho de Davi, rei de Jerusalém”, 1.1), mas também que foi escrito depois de sua queda no fim de sua vida (como se deduz da súmula do livro, que nada mais é do que uma profunda humilhação diante de Deus; uma descrição gráfi­ ca das vaidades e prazeres de todas as espécies a que ele se entregara; confis­ são expressa de seu pecado; abnegação de sua própria sabedoria, da qual abu­ sara (Ec 7.23); da mulher por quem se viu fascinado e seduzido ao pecado detestável (v. 26); e a recondução de todo o desejo exclusivamente ao temor de Deus, em oposição à nulidade (oudeneian ) e falsidade dos idolos, quanto à única coisa necessária; e “o princípio e o fim” (archên kai te/os) da verdadeira sabedo­ ria (Ec 3*.l 1*,12). Tampouco as seguintes objeçõcs ao arrependimento de Salo­ mão logra alguma força - seja que a Escritura não o menciona expressamente, porquanto não temos menção explícita do arrependimento de Adão, de Ló, de Sansão e de outros (o que, não obstante, ninguém põe em dúvida e os argumen­ tos evocados são suficientes para prová-lo); ou que ele não removeu os ídolos, porque lemos que “Josias profanou os lugares altos que Salomão havia constru­ ído para Astarote, para Quemos e para Milcom” (2Rs 23.13). Ele teria deixado esses lugares altos para servirem depois para o culto, não idólatra, mas do verda­ deiro Deus de Israel; como lemos do povo após a destruição do culto idólatra instituído por Manassés que “o povo ainda sacrificava nos lugares altos, contudo somente ao S e n h o r seu Deus” (2Cr 33.17). Josias quis destruir esses lugares a fim de purgar mais plenamente o culto divino de toda c qualquer superstição. XXXIII. Não se pode ter dúvida de que Pedro pecou gravemente ao negar Cristo, e ainda confirmando sua negação com perjúrio. No entanto, a sólida dedução é que a fé em seu coração não foi totalmente removida (embora esti­ vesse ausente a confissão de seus lábios): (1) com base na oração de Cristo, que orou por ele “para que sua fé não desfalecesse” (ekleipê , Lc 22.32), oração que todos crêem foi ouvida pelo Pai. Tampouco isto pode ser entendido como sendo uma defecção sumariamente final, porque as palavras de Cristo não po­ dem referir-se ao tempo, mas ao fato do fracasso, não importa em que tempo suceda (para que a fé não seja inteiramente extinta, mas que permaneça nele). Do contrário, Cristo não teria obtido seu desejo e Satanás teria assegurado seu propósito. (2) A maneira como Pedro pecou mostra que a defecção não foi total, porque seu pecado não proveio de depravação e de um propósito delibe­ rado da mente, mas proveniente da fraqueza e medo carnal (que dominou sua

mente de tal modo que nem na primeira, nem na segunda, e dificilmente na terceira negação pôde ele recompor sua mente ou imaginar que realmente ha­ via pecado). (3) A tristeza e as lágrimas amargas que seguiram sua queda, no olhar de Cristo e no cantar do galo, mostram que a fé não fracassara totalmente nele. Daí o Salvador, olhando para ele, não infundiu um novo hábito, porém o ressuscitou (preservado que fora pelo poder secreto do Espírito). “E Pedro lembrou”, como o texto o expressa (i.e., caiu em si, a quem o medo antes havia distraído). Assim “o vigor de sua fé fora abalado”, como diz Tertuliano (lib. de Fug. In Persec.+); porém não eliminado; a fé foi movida, porém não removida; debilitada, porém não destruída; obscurecida, porém não extinta. “O amor não foi banido, mas a consciência foi perturbada” (como diz Leão o Grande, Serm. 9, de Passi.+); “No íntimo ele amava àquele a quem negava no exterior” (ainda que a afeição, agrilhoada pelo medo, tenha ficado entorpecida, a fé permane­ ceu no primeiro ato, o medo do perigo a interceptou o segundo). Daí Teofilato dizer, sobre estas palavras de Cristo; “Orei por ti, diz ele, para que tua fé não desfaleça. Pois ainda que por algum tempo ficarás abalado, contudo tu tens ocul­ tas as sementes da fé; mesmo que o espírito agressor arranque as folhas, contudo a raiz viverá e tua fé não desfalecerá. Eu não te deixarei totalmente” (Enarratio in Evangeliwn Lucae [PG 123.1074] sobre Lc 22.32). Ora, ainda que a confissão seja um efeito da fé (que a segue), não se segue que onde a fé esteja ela sempre e em toda parte estará ativa; ou que a fé é diretamente extinta cuja confissão foi, não voluntariamente, rejeitada, mas apenas oprimida pelo medo. XXXIV. Aqueles que fazem as obras da carne de bom grado e solicitude, e perseveram nelas, afirma-se com razão que já caíram inteiramente da fé. Quanto aos crentes, porém, não se pode dizer que pecam neste sentido (com base em 1Jo 3.19; 5.18), porque não pecam tanto movidos pela depravação e pelo pleno consenso da vontade sem relutância, quanto movidos pela fraqueza e pela im­ potência dos afetos. E embora tais pecados sejam cometidos não raramente movidos por alguma deliberação prévia contra suas consciências; contudo, visto que o propósito (proairesis) provém não tanto do hábito quanto de um vee­ mente distúrbio das afeições (nas quais sempre há ou uma luta antecedente ou uma tristeza subsequente, e certa resistência da consciência), é evidente que não podem ser chamados pecados do mau hábito e do orgulho (que são come­ tidos com mão erguida e esvaziam toda a graça do coração). Se ocorre resistên­ cia da consciência algumas vezes mesmo nos não-renovados, não se deve pen­ sar o mesmo dos pecados dos crentes, porque naqueles a luta é apenas entre o apetite e a razão (que reprime o pecado, porém não o destrói, e são induzidos pelo medo do castigo, não pela repulsa pelo pecado); nestes, porém, a luta é entre a carne e o espírito (a qual sempre pressupõe alguma fé e graça no cora­ ção). Daí Agostinho dizer; “Os filhos de Deus, uma vez que vivem mortalmen­ te, lutam com a morte, e embora se diga deles com razão, ‘todos quantos são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus’, como também pelo Espírito de Deus são incitados, e como filhos fazem progresso em direção a Deus, as-

sim também, por seu espírito, o corpo corruptível exercendo principalmente sua influência, como filhos dos homens, por certos impulsos humanos, entre­ gam-se a si mesmos, e por isso pecam” (Enchiridion 17 [64] [FC 2:423; PL 40.262]). Daí, assim como em razão da má vontade da carne as ações que seguem o Espírito nunca são de tal modo purgadas de todas as manchas que não tenham falhas e defeitos, assim também aqueles em quem a carne predo­ mina nunca são totalmente abandonados ao pccado neles presente, mas sem­ pre graças à oposição (quer simultânea quer subsequente) do Espírito e expost facto, sua tirania e seu domínio são obstruídos e destruídos. XXXV. A perseverança é ou física e ignorante de si mesma, oriunda ou da dureza do material ou da natureza da forma (tal como existe no ouro ou no céu). Ou é moral, oriunda de uin propósito da mente e uma constância da vontade em reter o objeto. Quanto à primeira, exortações e promessas são totalmente inú­ teis; mas não assim quanto à segunda, porque elas são o meio pelo qual ela é promovida e cumprida. Daí tão longe está nossa doutrina de anular o uso de exortações e promessas, bem como de ameaças concernentes à perseverança, que sua necessidade é ainda mais solidamente estabelecida. Pois elas são o meio designado por Deus para sua obtenção, visto que por elas Deus opera a fé, o temor dele, o desejo de evitar quedas e, após sua ocorrência, de erguer-se delas. Se Deus prometeu perseverança aos crentes, ele não a prometeu absolu­ tamente e sem os meios, mas por intermédio de meios a serem usados pelo próprio homem; para que sejam outorgados, de modo que Deus, preservando o homem, este é também obrigado a preservar-se pela graça do Espírito (Uo 5.18). Daí os crentes viverem certos de sua perseverança pela fé nas promes­ sas, não por qualquer força externa (que os manteria no caminho da salvação, querendo eles ou não, e mesmo permanecendo no pecado), mas pelo uso dos meios na prática da piedade; enquanto desenvolvem sua própria salvação com temor e tremor, confiantes em que Deus é aquele que opera neles tanto o que­ rer como o fazer, e que graciosamente aperfeiçoa as boas obras que ele mesmo começou. De modo que se deduz falsamente desta doutrina ocasião para licenci­ osidade e impiedade, visto que se entregar à perversidade e manter a graça efeti­ va da perseverança são incompatíveis (asystaton ). Aliás, aquele que tem esta esperança se purifica (1 Jo 3.3) e deve persuadir-se plenamente de que ninguém, sem santidade, verá a Deus, e que a vida não pode ser alcançada de nenhuma outra forma senão pelo caminho da piedade. Portanto, nenhuma outra segurança provém da certeza da perseverança no homem além da certeza espiritual. Isto não exclui, porém pressupõe, o uso de meios e gera em nossa mente temor não de desconfiança, mas de solicitude e zelo no uso constante desses meios. XXXVI. A justiça da primeira instituição na natureza difere da justiça da restituição fundada na graça. Baseado na primeira, Adão podia fracassar, por­ que era mutável; porém não podemos fracassar baseados na segunda, a qual é imutável e sem arrependimento (ametamelêtos).

XXXVII. A passagem que d i z - “Mas, desviando-se o justo de sua justiça e cometendo iniquidade, fazendo segundo todas as abominações que faz o per­ verso, acaso viverá? De todos os atos de justiça que tiver praticado não se fará memória; em sua transgressão com que transgrediu, e em seu pecado que co­ meteu, neles morrerá” (Ez 18.24) - não favorece a crença na apostasia dos santos. (1) E hipotética, não absoluta; (bhshvhh tsdyq) “quando o justo se des­ viar” (i.e., “se ele se desviar”). No entanto, sabe-se bem que nenhuma condi­ ção está sendo interposta, senão que apenas denota uma relação necessária do antecedente com o consequente. Se alguma possibilidade de defecção se deno­ ta da parte do homem (quando vista num sentido dividido), não se pode inferir imediatamente que existe uma possibilidade no sentido composto da parte da graça de Deus e quanto ao evento. Pois o que é possível com respeito à causa mais próxima e conhecida é impossível com respeito à causa remota e oculta (que está no decreto de Deus). Aqui, pois, onde Deus prescreve ao homem seu dever e seus atos na qualidade de legislador, ele não revela a concretização das coisas por ele decretadas. Como Senhor do mundo e administrador do bem e do mal, ele nada mais tenciona do que passar as regras de sua atividade e declarar as recompensas e punições que pendem sobre os homens, com base na obediência ou negligência a tais regras (sem qualquer referência à possibilidade ou impossibilidade da coisa). (2) Ali se trata da justiça da lei e das obras, não da justiça do evangelho e da fé (ou seja, o profeta fala a d hominem e segundo a opinião daqueles a quem se dirige aqui, os quais, como viviam sob a lei, busca­ vam uma justiça legal da lei e desejavam ser justificados pelas obras da lei). O Senhor (a fim de expor a futilidade de tal erro e ao mesmo tempo defender a justiça de sua providência contra suas calúnias) declara que a justiça do justo de nada lhe aproveita, a menos que ela seja constante e perpétua. Do contrário, se o justo se desviar, todas as suas obras precedentes terão sido inúteis; ele morrerá em sua iniquidade, porque, quando os justos olham para si mesmos, não deve ser-lhes surpreendente se porventura tiverem que sofrer os castigos infligidos pela justiça de Deus. Ora, tal justiça, baseado na qual ninguém cai (embora não seja cega e hipotética, e não somente quanto à aparência externa, mas também verdadeira em seu gênero), contudo não pode ser considerada como justiça salvífica e vivificante (que é agradável a Deus), porque por sua defecção sua futili­ dade é demonstrada. Se a vida é prometida ao justo, não se segue que ele fala da justiça perfeita, porque a vida é prometida ao justo que persevera (i.e., a alguém que age com justiça), não apenas como o justo que falha no exercício de sua justiça, mas que a exerce sincera, leal e constantemente ( lTm 1.5; Mt 22.37). XXXVIII. Lemos que Judas não pertencia ao número daqueles que foram dados a Cristo para que fossem salvos, porque ele era “filho da perdição” (hyios apõleias , Jo 17.12) (i.e., então totalmente perdido c assim digno da perdição, tendo-a trazido sobre si por seu próprio crime, e foi destinado à perdição e destruição pelo justo e eterno castigo divino [At 1.16; 4.27,28]; este é, pois, oposto aos filhos eleitos de Deus, que foram dados a Cristo para que fossem

salvos). Portanto, aqui e/me4 não é uma partícula exceptiva, mas adversativa, significando “porém” - “Dos que me deste nenhum se perdeu, porém (somen­ te) o filho da perdição” está perdido. Ele não pertencia ao número dos que foram dados, mas dos réprobos dedicados à destruição (como frequentemente é empregada em outros lugares, G1 2.16; 1Co 7.17; G1 1.7; Ap 21.27). XXXIX. Uma coisa é cair da graça positivamente por uma real privação da graça já recebida; outra, porém, é cair dela negativamente por não havê-la obti­ do. Aqueles de quem Paulo fala que “caíram da graça” (G1 5.4) é no segundo sentido, não no primeiro, visto que desejavam miseravelmente o judaísmo junto com o Cristianismo, e a lei junto com o evangelho, sua justiça pessoal junto com a justiça de Cristo, privando-se dela e assim apostatando dela (como ele diz em outro lugar sobre os judeus, Rm 9.31). Visto que a graça [divina] e o mérito [humano] são incompatíveis (asystaía), quem quer que busque sua justiça na lei, seja de todo o coração ou em parte, não pode deixar de cair da graça. XL. Uma coisa é ser entregue a Satanás com o banqueteador (Epulone [i.e., o homem rico de Lc 16.19]) para o tormento eterno; outra é ser entregue com o incestuoso coríntio para a destruição da carne para que o Espírito o possa salvar no dia do Senhor (1 Co 5.5). O crente pode ser entregue no segun­ do sentido, não no primeiro. A excomunhão não exclui simplesmente do reino do céu os que caíram, mas com esta condição - que se ergam novamente medi­ ante arrependimento (o que aquela censura, como salutar medicina, opera nos crentes genuínos por meio da graça de Deus, 2Co 7.11). Daí o excomungado não deixa de ser secretamente membro de Cristo, embora quanto à disciplina externa, por algum tempo, possa estar eliminado do corpo externo da igreja e da comunhão das coisas sacras (a saber, a excomunhão é a vara de uma mãe piedosa brandida contra um filho mau, a quem ela nem por isso considera como não sendo filho por açoitá-lo, porém o disciplina com severidade para que se corrija e não deixe de vez de ser filho). XLI. Embora os santos, em virtude dos pecados graves em que incorrem, mereçam exclusão do reino do céu e o cancelamento de sua justificação e adoção, contudo sucede, pela misericórdia de Deus, que, por isso mesmo, o seu direito ao reino do céu não é cancelado, nem a justificação ou a adoção é cancelada, nem o seu estado de regeneração é efetivamente destruído. O direito ao reino não se acha fundado em nossas ações, mas na adoção gratuita de Deus e em nossa indissolúvel união com Cristo. Também a culpa deste ou daquele pecado não anula a justificação universal dos pecados precedentes e o estado da pessoa reconciliada com Deus por Cristo. O privilégio da adoção não de­ pende de nós, mas unicamente da misericórdia de Deus o Pai. A graça da rege­ neração flui do Espírito que, como uma vez implantou em nossos corações aquela semente vivificante, ele imprime nela uma força celestial e incorruptí­ vel, e esta ele nutre e preserva perpetuamente. E assim, embora o homem peca4.

Ei mv e ean me. [N. do E.]

dor possa (pelo menos por algum tempo) perder o uso deste direito e o senso da justificação, contudo não pode cair desse direito. Mesmo que ele se visse privado do conforto da adoção, contudo não é imediatamente despido dessa adoção, de modo que, de filho de Deus, viesse a ser filho do Diabo e servo do pecado. E se a semente está latente no coração e não se manifesta na produção de fruto, contudo não está morta - a vida está sempre na raiz. O ato da fé pode ser interceptado, porém o hábito propriamente dito não pode ser erradicado (como o fogo que está escondido sob as cinzas; como decai a vida que o sofre; como uma planta no inverno que não floresce nem produz fruto). XLII. Uma coisa é o crente pecar gravemente e ser condenado por seu próprio mérito (se considerado quanto a si mesmo e num sentido dividido); outra, se considerado no sentido composto e quanto ao decreto de Deus. No primeiro sentido, é verdade que ele é exposto à morte, e se continuar nesse estado certamente será condenado. No segundo sentido, porém, afirma-se cor­ retamente que serão absolvidos e salvos (Deus dispõe de tal maneira a matéria, por seu imenso amor e sabedoria, que o crente nem pode morrer nesse estado, mas será restaurado e voltará ao caminho por um ato renovado de fé e arrepen­ dimento antes de alcançar a meta). Daí, segundo uma dupla relação (schesin ), estas duas proposições (embora aparentemente contrárias) podem, ao mesmo tempo, ser verdadeiras. E impossível que Davi (eleito e homem segundo o coração de Deus) pereça. E impossível que Davi, adúltero e homicida (se a morte o arrebatasse em sua impenitência), fosse salvo. O primeiro caso, em razão do decreto de Deus; o segundo, em razão da hediondez e do demérito de seu pecado. Esta dificuldade, porém, a providência e a graça divinas resolvem, tomando cuidado para que Davi (ou qualquer um dos eleitos) não morresse naquele estado em que, em virtude da impenitência, fosse excluído da salvação. XLI1I. Mas caso se pergunte como a fé pode subsistir no crente lado a lado com pecados tão graves, a resposta é fácil - justamente como contrários po­ dem permanecer no mesmo sujeito, porém em grau inferior. Como a carne e o Espírito, embora sempre se digladiando entre si, contudo não podem eliminarse mutuamente enquanto continuarmos neste estado moral; e como o Espírito, embora prevaleça na disputa, de fato reprime a carne, porém não a destrói totalmente; assim, quando a carne luta contra o Espírito e leva o homem a ficar cativo sob a lei do pecado, ela reprime o poder do Espírito, porém não o destrói diretamente nem o elimina. E verdade que os atos altamente pecaminosos não podem subsistir com os opostos atos de justiça. Por exemplo, o ato de adulté­ rio com um ato de castidade; um ato de descrença com um ato de fé; um ato de ódio com um ato de amor; no entanto, eles não podem destruir o hábito propri­ amente dito. Assim, nada impede a fé e o amor de permanecerem numa pessoa pecadora, porém no tocante ao primeiro ato, não ao segundo; quanto à semen­ te, não quanto ao fruto; quanto ao hábito (mesmo enfraquecido e decrescido), não quanto a seu exercício e a suas operações.

XLIV. Tampouco desta forma (como cavilam nossos oponentes) a idéia das virtudes é totalmente corrompida, porquanto se diz que elas subsistem com pecados atrozes; de modo que aqueles que também caem em descrença devem ser chamados crentes em virtude da incapacidade de se perder a fé; devem ser chamados justos e santos os que se poluem com várias contamina­ ções de injustiça e impureza; castos quem é adúltero etc. Visto que há sempre dois princípios no crente (a carne c o Espírito), nada o impede de obter diferen­ tes nomes em conformidade com estes diferentes princípios, de modo que ele pode ser chamado crente c justo da parte de Deus, que o elegeu e redimiu, e com respeito ao Espírito; porém pode ser chamado incrédulo e injusto de sua própria parte e com respeito á carne. Além disso, visto que um hábito é aperfei­ çoado por um ato e uma virtude toma sua denominação não tanto de um hábito latente quanto do ato em exercício, é absurdo chamar casto ou clemente um crente que cai em adultério ou homicídio porque ele expressa atos opostos à castidade e ao amor (embora o hábito de amor, porém fraco e lânguido, possa ainda persistir nele). E isto deve ser dito mais em virtude do fato de que, embo­ ra aquelas sementes e hábitos das virtudes cristãs que permanecem nele este­ jam enfraquecidos, são genuínos em seu próprio gênero. No entanto, não po­ dem ser chamados salvíficos c agradáveis a Deus (que concilia ao máximo a sua aptidão para entrarem no céu), porquanto obtêm isto só em razão de seus atos, não cm razão de seus hábitos; tampouco a fé justifica, a não ser mediante o ato; nem o amor é aprazível a Deus, a não ser quando em exercício. XLV. Uma coisa é cair de um estado de graça, tendo-se em conta que ele denota uma bênção de Deus ou a condição de filhos e um direito à vida (o que Deus lhes outorga pela vocação eficaz e pela adoção); outra, tendo-se em con­ ta que denota o dever do homem ou a aptidão e disposição ao reino do céu pela prática da fé e o exercício do arrependimento, pelos quais o crente é posto naquele estado que, morrendo nele, necessariamente será salvo. Neste sentido, os romanistas falam tanto do estado de graça. Não negamos que neste último sentido o crente, por seus pecados e, especialmente, por seus pecados mais hediondos, cai de um estado de graça, visto que ele perde a disposição para o reino do céu (pois nada que seja impuro pode entrar ali) e entra num estado de condenação em conformidade com o justíssimo juízo de Deus, pelo qual os injustos, os ladrões, os fornicadores, os adúlteros são mantidos fora do reino do céu e são entregues ao castigo eterno. No primeiro sentido, porém, afirmase corretamente que o crente não cai do estado de graça, porque o direito de filhos uma vez que lhe seja dado nunca é removido da parte de Deus (embora seu uso e o senso dele possam ser interrompidos por algum tempo) e as semen­ tes da graça e da virtude nunca são removidas dele. XLVI. O reino do pecado pode ser considerado ou quanto ao estado, uni­ versalmente, ou quanto ao ato, parcialmente. Não negamos que o crente às vezes possa viver sob o domínio parcial do pecado (i.e., quanto ao ato e quanto a certos pecados aos quais se sujeita). Negamos, porém, que ele possa viver

sob o domínio universal do pecado quanto ao estado, ao ponto de viver absolu­ tamente sob seu poder, e que reine nele sem qualquer luta contra ele ou resis­ tência a ele. A carne é vitoriosa em vários aspectos, porém não totalmente, de modo que não haja no homem nada mais que a ela resista, nem finalmente, quanto a ser perpetuamente superior. Aliás, como o Espírito sempre preserva nele a semente da graça, pelo menos esta sai vitoriosa sobre a carne e faz com que o crente logre outra vez vitória (hypernikan). Neste sentido, o que previa­ mente se disse dos romanos pode dizer-se propriamente do crente: “Realmente foram vencidos algumas vezes em combates, nunca porém numa guerra”. Pois embora haja nele algo de ambos os reinos (do pecado e da graça, em virtude da carne e do Espírito que habitam em nós), afirma-se que ali reina nele não a carne (que é pouco a pouco ferida e por fim destruída), mas o Espírito da graça (que é dia a dia confirmado e aperfeiçoado). XLVII. Uma coisa é ceder em alguma medida ou retroceder da graça (i.e., do favor gratuito de Deus em Cristo, e de um influxo salvífico); outra é cair e ser descartado inteiramente dela. Uma coisa é pecar; outra é perecer totalmen­ te. Uma coisa é remitir um ato de fé ou este intermitir; outra é abolir o próprio hábito. Uma coisa é privar-se do senso da justificação; outra é ter interrompido o estado. Admitimos a primeira, porém não a segunda. Nem sempre que a ação é pervertida a fé é imediatamente arruinada; ou nem sempre que o amor é abandonado ela sucumbe na luta com as tentações. O fruto e as folhas caem, enquanto a seiva da árvore geradora de fruto permanece nas raízes. Tampouco aquele que algumas vezes, com Nabucodonosor, perde a posse do reino, ou, como o leproso, é impedido de viver em sua própria casa, perde imediatamente o direito a ela. Sempre que um pai fica irado com seu filho pródigo, nem sem­ pre ele o lança fora e o destitui do número de seus filhos; nem quando começa a castigá-lo severamente deixa de amá-lo sinceramente. D écim a S êtiku P erg u n ta : A C erteza

da



Se o crente pode e deve estar seguro de sua fé e justificação po r uma certeza divina, e não meramente por uma certeza conjeturai Afirm am os isso contra os romanistas e os remonstrantes.

I. Após ter provado a perseverança da fé contra a apostasia dos santos, é preciso demonstrar também sua certeza contra a hesitação (epochên) e a dúvi­ da dos oponentes da graça. Não obstante, geralmente se atribui à fé uma dupla certeza: primeiro, acerca de si própria - pela qual cada crente sabe e está certo de que possui a fé justificadora; segundo, acerca da graça da justificação e salvação - pela qual o crente está certo de que seus pecados pessoais já foram perdoados, e por isso ele é participante da salvação. Discutiremos ambos os pontos ao mesmo tempo. II. Nossa controvérsia, aqui, é com os mesmos adversários A opinião dos que se opõem à perseverança. Os romanistas ensinam que o rom anistas. crente não tem certeza de sua própria fé, salvo uma certeza

conjetural; e nenhum crente pode ter certeza de que crê em Cristo com uma fé verdadeira e não hipotética, com uma fé viva e não uma fé morta, visto que todos podem de modo variado tanto ser enganados quanto enganar-se a si mes­ mo (e às vezes isso ocorre). Belarmino sustenta isto onde se propõe provar estas quatro coisas: ( I ) que uma certeza de fé não pode ser mantida acerca da retidão pessoal deste ou daquele; (2) que ninguém é obrigado a tê-la, mesmo que, porventura, pudesse tê-la; (3) que ordinariamente é inconveniente possuíla; (4) que de fato não há quem a possua, exceto por uns poucos, aos quais sua justificação é especialmente revelada por Deus (“De Justificatione”, 3.6, 8 O pera [1858], 4:541,542, 542-44). Quanto à certeza da graça, o Concílio de Trento nega “que alguém possa saber com certeza de fé, sob a qual nada falso pode enquadrar-se, que ele já obteve a graça de Deus” (Session 6.9, Schroeder, p. 35). Ele nega “que aqueles que são realmente justificados devam deter­ minar consigo mesmos, sem qualquer dúvida, que estão justificados” (Session 6, Canons 13.14, Schroeder, p. 44). III. Ora, ainda que nossos oponentes questionem quanto ao significado do decreto do Concílio, cada partido (aqueles que defendem a certeza, tais como Catarinus e Marinarus, bem como aqueles que acusam de intolerável arrogân­ cia a presumida opinião da certeza da graça), delineia a versátil opinião do Concílio para adequar seu próprio ponto de vista (como foi feito por Soto e Vega). Estes estavam no Concílio e lutaram para provar opiniões discrepantes do Concílio. No entanto, é certo que a opinião mais comum dos romanistas é a de incerteza, especialmente entre os jesuítas, os quais ensinam que ninguém, sem uma revelação especial, pode estar certo (com a certeza da fé divina) de que seus pecados foram perdoados, porque pressupõem perpetuamente que esta certeza repousa na fragilidade e indisposição da pessoa. Daí concluem que a certeza da justificação é apenas conjetural, opinável e enganosa (i.e., realmente não existe qualquer certeza). Aliás, distinguem entre a certeza da fé e a certeza da esperança ou da confiança. A certeza da fé, dizem eles, é aquela que depende exclusivamente da Palavra e da promessa de Deus e não repousa em nenhum outro fundamento. E assim, por seu próprio gênero, ela é absoluta e infalível e exclui, nào só toda e qualquer dúvida, mas também o temor. A certeza da esperança ou da confiança, contudo, repousa num duplo fundamen­ to; em parte na promessa divina da parte de Deus, em parte em sua própria disposição da parte do homem. Neste aspecto, ela não exclui inteiramente o temor, nem é certeza simplesmente, mas relativa e conjeturalmente (visto que a pessoa, examinando-se diligentemente, colige dos vários sinais e movimen­ tos da mente que ele é atraído por um genuíno arrependimento dos pecados e sinceramente ama a Deus, contudo isso [não] é tão grande ao ponto de ser suficiente para produzir certeza, como o explica Belarmino, “De Justificatio­ ne”, 3.2 O pera [1858], 4:533-535; e Stapleton, “De universa iustificationis: De certitudine gratiae”. Opera [1620], 2:317-319). Ora, mesmo quando res­ pondem aos nossos argumentos, eles negam que eliminam toda a certeza de

alguém acerca da graça e admitem que os crentes podem ser persuadidos e ter ccrteza de sua própria justificação aos olhos de Deus; e não é necessário que nutram dúvidas continuamente acerca da remissão de seus pecados. Entretan­ to, quando discutem contra nós ou falam ao povo, esforçam-se para provar, mediante muitos argumentos, que os crentes vivem em dúvida c incerteza acerca de sua própria retidão, não sabendo se de fato estão na graça de Deus, nem (exceto temerariamente) podem determinar com certeza e sem hesitação que por intermédio de Cristo já obtiveram o perdão do pecado. Dai se deduz que, ou falam absurdos (asystata), ou toda aquela certeza que aparentemente reco­ nhecem nada mais é do que uma mera conjetura, que não pode eliminar da mente nem a dúvida nem o temor. IV. Não obstante, não é por nada que os romanistas tão ferozmente se es­ forçam pela retenção de sua hesitação (epochê) e dúvida. Eles entendem que nessa crença todo o negócio do tráfico papal repousa, e, uma vez estabelecida a certeza da fé (e também, ao mesmo tempo, a constância da fé salvífica) - as taxas, os votos, as peregrinações, as fraternidades, as obras de supererrogação, o purgatório, a venda de indulgências, o tráfico da missa e outros vis mercantilismos (aischrokerdeias) do reino papal - , imediatamente caem. Pois aquele que estiver certo de sua própria salvação não recorrerá ao patrocínio dos san­ tos, nem aos méritos dos mártires, nem à absolvição dos sacerdotes (que é o executor da vontade do tirano romano). ^ Aqui, os arminianos não diferem amplamente dos romanistas. Os membros da Conferência de Haia acham “que a dúvida é louvável e útil, se sempre formos o que somos ago­ ra”^ Aliás, visto que temem, como em outra parte se explicam, que tal certeza seja como um divã sobre o qual os crentes se deitem suavemente em doce sono. “E suficiente, pois”, como Corvinus diz contra Molinaeus, “a certeza pela qual os crentes sabem que, se perseverarem na fé, permanecerão na graça de Deus e obterão a vida eterna, certeza esta apenas condicional, não absoluta” (Petri Molinaei novi anatom ici [1622], p. 690). 4 opinião dos arm inianos

A opinião ortodoxa é que os crentes podem não só ter certeza de sua fé e de sua confiança e certeza, com uma cer­ teza não humana e falível, mas divina e infalível (que é mai­ or ou menor conforme a fé se veja mais forte ou mais fraca); mas tanto podem como devem estar certos da graça de Deus e da remissão dos pecados, visto que, em sincera contrição por seus pecados mediante fé genuína, apreendem a promessa da misericordiosa graça em Cristo, repousam nele fiducialmente e assim tornam seguros seus corações. No entanto, esta segurança não induz confiança carnal nem exclui temor filial e solicitude piedosa, nem é sempre posta além ou fora dos riscos da tentação ou do medo do contrário. Seu funda­ mento em parte está na promessa infalível do evangelho (Jo 3.14-16; lTm 1.15), em parte no testemunho infalível do Espírito Santo na consciência de

A opinião dos ortodoxos

cada uin (Rm 8.16). Contudo, para que esta opinião seja mais claramente apre­ endida e libertada de calúnias e sofismas pelos quais nossos oponentes costu­ mam atacá-la como sofá da impiedade e mãe da segurança, é preciso observar: (1) que a certeza de que falamos tem de levar em conta especialmente três coisas - a eleição pregressa para que saibamos que pertencemos ao número dos eleitos; a graça presente para que possamos estar conscientes da graça de Deus e de nossa fé (ou seja, que realmente cremos e vivemos na graça de Deus); e a glória futura para que sejamos persuadidos da posse da glória e da felicidade prometidas por Deus. (2) Que a certeza da eleição pregressa e da glorificação futura depende da certeza da graça presente. Visto que esta é o vínculo da eleição com a glorificação (ou seja, o fruto da primeira c o meio para a segun­ da), quem quer que tenha certeza de que está na graça de Deus e na fé pode decidir que foi eleito e que certamente será glorificado. (3) Que a certeza da graça presente não está imediatamente contida na Palavra, mas depende do testemunho do Espírito Santo e da visão do coração; no sério exame de si mesmo c da percepção experimental das marcas c efeitos peculiares da graça (tais como tristeza pelo pecado, aspiração da graça, arrependimento c anseio por santidade, abnegação de si mesmo e amor por Deus acima de todas as coisas, e assim por diante). Pois, visto que tais efeitos não podem ser produzi­ dos pela carne, mas sim pelo Espírito, disto pode-se evidenciar que aquele que encontra estes em si está em estado de graça. (4) Estes efeitos nem sempre têm um igual grau de perfeição, mas é ora maior, ora menor (quando o crente está ou nos primórdios de sua vocação ou exposto a graves tentações, resultando daí que o ato desta persuasão nem sempre tem o mesmo grau de certeza, mas é ora mais forte ora mais fraco; sim, algumas vezes está totalmente ausente). Não obstante, o crente, emergindo das ondas de opressoras tentações, não apenas readquire a mesma confiança e a plena convicção (plêrophorian) (que foram quase sufocadas), mas também adquire um maior grau delas, emanando a virtu­ de da prova mais forte e mais exercitada (como quando as nuvens são dispersas, o dia é mais claro; e depois de uma enfermidade, a energia é mais estabelecida). ^ ai se P°de deduzir facilmente o estado da questão. (1) A questão não diz respeito a uma ccrteza moral e con­ ’ jetural (o que nossos oponentes admitem); nem a uma cer­ teza extraordinária dada a uns poucos mediante revelação (o que também ad­ mitem). Antes, a questão diz respeito a uma certeza divina e infalível, a qual existe ou pode ordinariamente existir em cada crente; não com base em sua disposição pessoal ou luz natural, mas na graça do Espírito pela energia (energeian) da fé, a qual, repousando nas promessas externas da Palavra e no teste­ munho íntimo do Espírito Santo, age em todos, mais em alguns, menos em outros, mas o suficiente para a verdadeira consolação. (2) A questão não é se tal certeza pode estar no crente sem o uso de meios (i.e., sem a aspiração por santidade, o exercício do arrependimento e o propósito positivo do viver pie­ doso); muito menos a questão é se ela pode harmonizar-sc com um propósito E stabelecim ento da auestão

positivo e direto de pecar, de modo que o crente possa determinar que ele está na graça e com toda certeza quer ser salvo, embora se proponha a viver em pecado e nas concupiscências da carne. Pois mantemos que estas coisas não podem ser dominadas isoladamente umas das outras, e que a persuasão não pode passar ao ato sem a aspiração de santidade. Pois ele deu suas promessas àqueles que andam somente nessa vereda, e há os efeitos e sinais indubitáveis (gnõrism ata) da fé e da justificação genuínas. VIII. (3) Não se inquire se esta certeza sempre pode demonstrar-se em ato ou sempre se manifesta no mesmo grau. Pois, já que ela não existe em nós (como já dissemos) sem o uso de meios, é certo que quando esses meios não estão em uso ou quando se usam os contrários, o ato em si não pode manifes­ tar-se. Além disso, visto que o estado do crente não é equânime quanto ao desejo de santidade, mas ora mais fraco, ora mais forte, e a fé num momento é débil e instável, noutro é saudável e vívida; ora em provas e lutas, ora livre delas; também a persuasão que emana dela nem sempre existe no mesmo grau, mas ora é vívida, ora fraca; noutro momento, como nas provas mais severas, é como se não existisse. Não devemos imaginar que ela está em toda parte com a veracidade da fé. Embora um ato deduzido dessa certeza seja necessário à consolação do crente, contudo não é requerida para a veracidade da fé (como pode ser deduzida em momentos singulares, e deve-se dizer imediatamente que a fé está ausente de quem se acha destituído de persuasão); pois o fogo nem sempre emite chama, nem a fonte sempre jorra água, nem a mãe sempre sente o movimento do feto. Assim, embora esta persuasão surge da natureza da fé, nem sempre (como pode e deveria) exerce seu ato, mas algumas vezes é suprimida - seja cm virtude da fragilidade da fé e sua imperfeição, ou da severi­ dade das provações. Mas isto não impede que o fundamento esteja sempre no crente e o princípio (se corretamente considera seu próprio estado e a promessa divina) do qual ele pode deduzir esta confiança (plêrophorian) positiva e plena. IX. (4) A questão não é se a certeza que o crente tem de sua própria fé e justificação é sempre e inteiramente da mesma razão daquela certeza que te­ mos acerca daqueles artigos e doutrinas de fé contidos expressamente na Pala­ vra de Deus; de modo que, inteiramente pela mesma fé, pela qual as doutrinas de fé sào cridas, cada crente é obrigado a crer que ele está na graça de Deus. Pois ainda que cada uma seja verdadeira e indubitável, fundamentada no duplo e infalível testemunho da promessa presente na Palavra e do Espírito no cora­ ção, contudo não ocorre que cada uma seja de igual necessidade. Pois a pri­ meira certeza é plenamente necessária no crente e conduz à veracidade da fé; nem pode alguém permanecer crente e ser considerado como tal e nutrir dúvi­ da acerca dos artigos de fé - por exemplo, se Cristo é o verdadeiro Messias e o Filho de Deus, e assim por diante. Antes, somente a segunda conduz à sua perfeição; pois aquele que duvida se é justificado, nem por isso deve ser con­ siderado como falto da fé genuína, nem como estando na graça de Deus. A

primeira é oposta à dúvida, pela qual alguém duvida das promessas de Deus, se são ou não verdadeiras; a outra, oposta à dúvida que diz respeito à salvação e à remissão dos pecados da pessoa, dúvida baseada no senso de sua própria fragi­ lidade. Portanto, a questão é se esta última certeza (como difere da primeira) é divina e infalível ou meramente conjetural. X. (5) A questão não é se esta certeza contém um grau de certeza tal que exclui continuamente todo medo do contrário, mas que afinal o vence e se comprova superior a ele. Pois reconhecemos que esta confiança (com respeito à imbecilidade inata), algumas vezes é agitada e flutua, especialmente no pe­ ríodo inicial da vocação, quando os crentes são neófitos (neophytoi) ou de fé diminuta (oligopisfoi ) ou se encontram sob a cruz e as aflições (especialmente se são fortes e duradouras), ou na luta contra a tentação, e em deserções espi­ rituais, quando o Espírito de consolação está às vezes tão afastado e a luz do semblante divino tão oculta, que no excesso da tristeza mental, com frequência queixas prorrompem do crente: “Estou excluído da tua presença" (SI 31.22); “os terrores de Deus se arregimentam contra mim” (Jó 6.4). Embora o senso da graça presente e da confiança futura possa, por algum tempo, adormecer nos filhos de Deus, contudo afirmamos que a alma crente certamente luta para sair daquele abismo de tentações baseada na graça de Deus que elege, redime, guarda e ressuscita (que lhe restaura a alegria de sua salvação e a faz afinal [mais lenta ou mais rapidamente] suscitar aquele senso para sua consolação). XI. Daí o estado da questão retoma a isto - se o crente genuíno pode (não pelo prisma de sua própria dignidade e disposição, mas pela estima e proteção divinas) estar certo (não com uma certeza apenas do objeto, mas do sujeito; não uma opinião e esperança morais conjeturais, mas da fé genuína e justificadora, pelo espírito de adoção movido em seu coração a partir do legítimo exa­ me de si mesmo; não só acerca de sua fé e justificação presentes, mas também quanto ao futuro, acerca de sua própria salvação e glorificação). Os oponentes o negam; nós, porém, o afirmamos. Xll. As razões são: (1) com base na natureza da Prova-se a ela tem um duplo ato (como já vimos acima): um direto e um certeza da J'é: reflexo. Pelo direto ela se inclina para a própria promessa; (I) com base mas, pelo reflexo, para sua própria apreensão, e assim não só na natureza crê, mas também sabe que crê (justamente como na vida na­ da fé. tural, a alma não só entende, mas também está cônscia de sua própria operação, e sabe que entende - o que é o privilégio peculiar da alma racional). Assim, na vida espiritual, a alma regenerada tem esta peculiaridade - que pode não só suscitar atos da fé e do amor, mas também, atentando para si própria, sabe que os suscita e se persuade totalmente deles. Não se deve buscar uma razão para esta persuasão além daquela pela qual o homem sabe que vive e entende. Não obstante, visto que a falsa presunção da carne pode fingir a verdadeira persuasão dada pela fé, a veracidade daquela persuasão pode ser

obtida ainda mais dos efeitos e frutos da fé genuína a posteriori (a saber, tanto da doçura da consolação espiritual como da alegria e da aspiração pela santifi­ cação e pelo arrependimento). Pois, aquele que descobre em si mesmo ambos esses efeitos da fé não deve nutrir dúvida da veracidade de sua fé. “Ora, sabe­ mos que o temos conhecido por isto: se guardamos os seus mandamentos” (1 Jo 2.3). Se estas marcas não são bastante sensíveis, ao ponto de sempre se­ rem claramente percebidas por nós; se a aspiração pela santificação vem a esfriar-se; se a alegria é perturbada por uma dúvida oposta, a alma nem por isso deve perder a coragem e desesperar-se da salvação, mas deve erguer-se para os princípios rudimentares da santificação. São estes: (a) sentir a corrupção interi­ or; (b) sentir-se desgostoso consigo mesmo por sua presença; (c) nutrir ódio pelo pecado; (d) sentir tristeza sempre que cairmos e ofendermos a Deus; (e) fugir das ocasiões de pecar e usar os meios prescritos por Deus para incitar o dom de Deus, a saber, a oração, a meditação na Palavra, e práticas semnelhantes. XIII. Além do mais, não só a natureza da fé, mas também a Escritura, provam este conhecimento e este senso da fé. Paulo, falando de si mesmo, diz: “Sei em quem tenho crido, e estou certo de que ele é poderoso para guardar o meu depósito até aquele Dia” (2Tm 1.12). E João: “Ora. sabemos que o temos conhecido [ginõskomen hoti egnõkamen auton]", 1Jo 2.3); “Aquele que crê no Filho de Deus tem em si o testemunho” (1 Jo 5.10). Em razão disso, os apósto­ los confessam que crêem: “Cremos e sabemos que és o Cristo, o Filho do Deus vivo” (Jo 6.69). Cristo reivindica para eles esse conhecimento: “Naquele dia sabereis que eu estou em meu Pai, e vós em mim, e eu cm vós” (Jo 14.20). Ora, Cristo habita em nós pela fé, e não estamos em Cristo senão pela fé. Portanto, não se pode saber que Cristo está em nós a não ser que saibamos que temos fé. E para que ninguém pense que este é um privilégio peculiar aos apóstolos, Paulo o estende a todos: “Ora, não temos recebido o espírito do mundo, e sim o Espírito que vem de Deus, para que conheçamos o que por Deus nos foi dado gratuita­ mente” ( I Co 2.12). E outra coisa Cristo não quer dizer quando promete inscre­ ver um "novo nome” na pedra branca a ser dada ao vitorioso, “o qual ninguém conhece, senão aquele que o recebe” (Ap 2.17). Mas, como se poderia dizer que esse notável nome dos filhos de Deus (o qual o Espírito Santo escreve em nossos corações renovados como que numa pedra branca - a marca certíssima de nossa absolvição e glorificação) só é conhecido pelo crente, se ele fosse mantido em dúvida (epochê) perpétua e não pudesse saber nada definido acerca de seu estado? XIV. Esta mesma coisa é ainda mais fortemente confirmada com base na descrição da fé dada nas Escrituras, descrição que necessariamente implica esta certeza, como quando lemos ser ela “a substância de coisas que se espe­ ram e a evidência de coisas que não se vêem” (hypostasis tõn elpizomeriõn elenchos fõn ou h/epomenõn, Hb 11.1). Aqui os “scholiastas gregos”5 obser5. Anligos gram áticos, em geral anônimos, que faziam observações (schnlia) sobre os textos clássicos, ano­ tando sua m aior parte na margem. [N. do F..]

vam que se afirma isto porque [a fé] faz com que coisas não presentes se mani­ festem de alguma maneira, e que coisas invisíveis saiam à luz; não dos olhos, mas da mente. Pois, visto que as coisas que estão na esperança não são substan­ ciais (anvpostata) e não têm subsistência (como coisas que ainda não se acham diante de nós), a fé lhes imprime certa subsistência para que sejam conhecidas, levando-as, em alguma medida, à existência e a estarem presentes mediante esta mesma coisa - porque ela crê que existem; e faz presentes a si própria as coisas invisíveis e as vê diante de si por demonstração (elenchon) (o que Crisóstomo diz “concernente às coisas que são bem manifestas” —epi lõn lian dêtõn, “Ser­ mon 21”, Sobre Hebreus [NPNF1, 14:462; PG 63.151]). Mas, como pode ela ser chamada substância (hvposíasis ) ou uma demonstração (elenchos ), se os crentes devem flutuar em perpétua dúvida e suspense (epochê )? Sim, aqui ele realça uma maravilhosa certeza - pois ambos os seus graus variam, e o mais elevado é o que existe no presente. Daí a confiança (pepoithêsis , Ef 3.12), a ousadia (parrêsia , 2Co 3.12; Hb 3.6; 4.16), a plena certeza (plêrophoria, lTs 1.5; Hb 6.11) são atribuídas à fé, o que ou pressupõe, ou necessariamente os induz à confiança, e se opõe à dúvida e à desconfiança (Mt 21.21; Tg 1.6). E não se deve replicar “que estas de fato se inferem acerca da coisa, porém não acerca da pessoa”. Como a fé tem estas coisas em si mesmas, necessariamente as outorga àqueles em quem ela está diversamente. Portanto, não somente são verdadeiras in thesi, mas também in hypothesi. Aliás, isto não pode ser atribu­ ído à fé senão com relação ao sujeito a quem é inerente e em que se adapta para produzir tal certeza. XV. A menos que o crente possa conhecer sua própria fé, em vão um exa­ me de sua fé lhe seria prescrito, como frequentemente ocorre: “Examine-se, pois, o homem a si mesmo” (1 Co 11.28) antes de se aproximar da ceia (a saber, se realmente crê em Cristo e se está como realmente deve estar quem trata de tão grande mistério). “Examinai-vos a vós mesmos se realmente estais na fé; provai-vos a vós mesmos. Ou não reconheceis que Jesus Cristo está em vós?” (2Co 13.5). Aqui ele se refere ao que dissera no versículo 3 - que os coríntios buscavam uma prova (dokimên) ou evidência de que Cristo falava nele; como se quisesse dizer: vós desejais descobrir se Cristo fala em mim, porém vos exorto e vos admoesto a que, antes de buscardes isto em nós, buscai antes em vós mesmos e disponde-vos a provar a vós mesmos, se realmente estais na fé. E também se sabeis que Cristo está cm vós (a saber, pela fé que vedes que está em vós); pois, quanto a mim, por cujo ministério tendes recebido a fé, não deveis ter dúvida de que Cristo fala em mim (a saber, com base no fruto de meu apostolado entre vós e da mútua relação entre a fé do povo e a pregação do ministro). Mas, por que o apóstolo os exortaria quanto a este exame da sua fé e ao conhecimento de Cristo residente e operante neles, se não se pudesse adquirir nenhuma certeza acerca dessa fé? Tampouco se pode replicar aqui “que ele trata da presença de Cristo entre eles mediante milagres, e não de sua presença neles mediante a justificação”. As próprias palavras provam a falsi-

dadc dessa interpretação. Paulo não os orienta a olharem ao redor de si em busca de provas do poder e dos milagres de Cristo, mas que provem a si própri­ os se estão na fé e se pela fé sentem Cristo habitando neles. Nem as palavras seguintes indicam um significado diferente (“a não ser que estais reprovados”), porque não se pode dizer tal coisa da fé em milagres, visto que o crente que se vê privado dela não deve ser imediatamente considerado como réprobo e como rejeitado; antes, a referência é à fé justificadora. XVI. A mesma coisa se deduz disto - que os indivíduos são obrigados a fazer confissão de sua fé (1 Pe 3.15; Rm 10.9). Pois como poderiam confessá-la since­ ra e constantemente, se não podem ter certeza dela? Confesso que não uns pou­ cos mentem e agem hipocritamente confessando uma fé que não possuem. Mas isto não impede os crentes de fazerem essa confissão verdadeira e consequente­ mente, tendo sua fé clara, o que de outro modo não poderiam confessar. XVII. O segundo argumento é extraído do testemunho e do se^° Espírito Santo. Não seria suficiente que Deus nos preservasse para sua glória, a menos que ele nos assegu" rasse dessa preservação, para que lhe rendamos graças por ela. Nem é suficiente para nossa consolação que estejamos na graça de Deus, a menos que sintamos o senso dela, visto que, para a felicidade, requer-se não só a posse do bem, mas também do conhecimento dessa posse. Portanto, ele quis dar-nos a certeza de ambos: primeiro, em sua Palavra, a qual fornece o teste­ munho da veracidade das promessas; segundo, no coração, pelo Espírito testi­ ficando da veracidade da aplicação delas. Entretanto, visto que esse testemu­ nho não pode ser incerto e enganoso (uma vez que procede do mestre da verda­ de), também a certeza que ele gera no ser interior não é meramente conjetural e provável, mas divina e infalível. Para demonstrar isto mais eficientemente, as Escrituras empregam não só uma, mas muitas similitudes que têm certa ênfase maravilhosa; especialmente se forem consideradas não singular mas coletivamente (athroõs ) e todas ao mesmo tempo. Aqui se encaixa o fato de que o Espírito numa ocasião se apresenta como “um Espírito da verdade” que, como um “mestre”, nos guia a toda a verdade e nos faz “instruídos de Deus” (theodiílaktous , Jo 6.45; 14.17; 16.13), e noutra como “uma testemunha” que nos dá testemunho infalível da graça de Deus e de Cristo (Jo 15.26; 16.14), como também concernente ao nosso estado quando “testifica com nosso espí­ rito que somos filhos de Deus” (Rm 8.16); não só para confirmar a certeza do objeto, mas especialmente para produzir uma certeza do sujeito, que é o desíg­ nio de uma testemunha. Daí Crisóstomo corretamente dizer: “Que dúvida é deixada aqui? Se um homem, ou um anjo, fizesse uma promessa, talvez al­ guém pudesse nutrir dúvida; mas se a suprema Essência, o Espírito de Deus, que nos leva a orar, faz uma promessa aos que oram, concede a promessa, dando testemunho em nosso interior, que lugar ainda resta à dúvida?” (“Homi­ ly 14”, Sobre Romanos [NPNF1, 11:442; PG 60.527]). Então agindo como “um escriba” que escreve a lei e a aliança de Deus em nossos corações (Jr 2 Com base no testem unho do Esnírito Santo

31.33; 2Co 3.3), para notificar que seu testemunho não é momentâneo e mutá­ vel, mas um ato constante e perpétuo pelo qual, como um chanceler celestial, ele registra em nossos corações o diploma de nossa justificação, pelo qual a eleição do Pai e a redenção do Filho são confirmadas cm nós. Além disso, como “um selo” pelo qual os crentes são selados para o dia da redenção (Ef 1.13; 4.30), não só para confirmar a veracidade das promessas da graça e sua certeza em nossos corações, como os diplomas e as cartas régias costumam ser fortalecidas com selos, para que forte e indubitável autoridade lhes seja gran­ jeada; mas também para que os próprios crentes sejam selados, tanto para que se distingam dos demais e saibam que são declarados como participantes do número daqueles a quem cabe o direito à vida, como para que saibam que estão sob o selo de Deus (que mui seguramente serão guardados por ele até que cheguem lá). Então, finalmente, como “um penhor” (2Co 1.22; 5.5; Ef 1.14) pelo qual Deus não só sela em nós a certeza das promessas, mas também nos dá uma segura garantia de seu constante e eterno amor (a garantia de que o crente agora faz parte da herança futura e da felicidade consumada que nos aguarda no céu, em íntima comunhão com nosso fiador celestial). Indubitavel­ mente, ele não teria feito isto a menos que quisesse fazer-nos certos da posse plena e completa da herança; como Crisóstomo observa sobre esta passagem: “Pois a menos que ele pretendesse outorgar o todo, não quereria inconsidera­ damente deixar a garantia, e causar a perda dela” (ou g a r ei niê em elle to pan didonai, eileto auton airabõna parapheinai, kai apolesai eikê kai maíên, “Ho­ mily 3”, On SecondCorinthians [NPNF1, 12:290; PG 61.411 ]). Além do mais, para que esta certeza seja confirmada mais e mais em nossas mentes, Deus quis que ela fosse um mútuo penhor entre ele e os crentes. Pois assim como ele deu aos nossos corações um penhor divino, assim também ele quis que esse penhor fosse mútuo entre ele e os crentes (2Tm 1.12). Ambos esses penhores são dados não para a certeza e confirmação de ambos, mas apenas de uma parte (ou seja, de nós); embora possuídos por ambas as partes, ambos são con­ servados pela fidelidade de apenas uma parte (ou seja. Deus). XVIII. As objeções de nossos oponentes equivalem a isto: (1) “O testemu­ nho do Espírito é de fato certo e indubitável, porém ninguém pode estar certo no tocante à fé divina, mas somente com base em conjeturas, as quais podem ser enganosas, se o que ele sente em si é realmente o testemunho do Espírito Santo, visto que muitos costumam aqui enganar-se; e pode suceder que seja uma pessoa perversa que nutre certeza para a destruição” (como Gregório de Valência nos admoesta). Respondemos que os que assim falam traem suficien­ temente o fato de que nunca de fato sentiram em seus corações este testemu­ nho do Espírito. Ele fornece tais indicações de si mesmo que não permitem que os verdadeiros crentes duvidem de sua presença (embora os hipócritas com frequência se enganem aqui, tomando uma vã presunção da carne por uma persuasão genuína do Espírito Santo). E de fato só os efeitos do Espírito em nós, tanto de consolação quanto de santificação (o que de modo algum

pode originar-se da carne, G1 5.19-22), já comprovam suficientemente, e mais que suficientemente, sua causa (como o fogo se comprova pelo calor; a vida pelo movimento e pelo sentir, e as causas são mui certamente conhecidas por seus efeitos peculiares). (2) “Que este testemunho c apenas uma experiência de uma certa doçura e paz interiores que não podem produzir certeza, senão conjetural.” Respondemos que, embora este testemunho seja experimental (fun­ damentado na visão do coração e no senso da graça), contudo não é menos certo por depender de um princípio infalível. E não é um prazer leviano e momentâneo (que pode enganar o homem), mas de uma doçura mui eficaz (que é chamada por Agostinho “conquistadora”, porquanto cativa a mente para a obediência da fé e gera no interior uma plena persuasão em nossas almas). (3) “Que os dons acerca dos quais Paulo diz que o Espírito dá testemunho ( ICo 2.12) são tais que nunca poderiam penetrar no coração do homem; por isso não se pode obter a certeza deles.” Respondemos que, sendo assim, não se poderia obter nenhum conhecimento deles, e, não obstante, Paulo testifica que são dados aos crentes pela graça especial de Deus. Portanto, o apóstolo nada mais quis dizer senão mostrar a divindade e a excelência dos mistérios do evangelho e dos dons que Deus outorga aos seus (mistérios tão grandes que a nenhum homem ou anjo poderia conhecer, a menos que Deus os revelasse - os quais nem a agudeza dos olhos [embora esse sentido tenha grande valor para a obtenção do conhecimento das coisas], nem a atenção dos ouvidos, nem a sagacidade do coração ou a luz natural jamais poderiam alcançar). (4) “O tes­ temunho do Espírito é condicional, desde que não os negligenciemos para nós mesmos, e é por isso mesmo que Paulo exorta os efésios a que não entristeçam o Espírito, por meio de quem foram selados, o que não seria necessário se este testemunho não fosse duvidoso.” Respondemos que, embora o testemunho do Espírito não nos possa ser outorgado sem o uso de meios (i.e., a aspiração pela santidade), não se segue que ele seja duvidoso e incerto, porque mesmo estes meios nos são prometidos por Deus e nos são proporcionados pelo Espírito. XIX- Terceiro, com base nos exemplos dos santos. Como “Abraão, esperando contra a esperança, creu. para vir a ser Pa' mu'tas naÇ°es ... estando plenamente convicto [ptêro" phorê/heis) de que ele era poderoso para cumprir o que pro­ metera” (Rm 4.18,21). Ora, estas coisas concordam com a dúvida (epochê) dos romanistas ou denotam apenas uma certeza conjetural? Não transpiram uma certeza divina e infalível? O mesmo se prova pelas palavras de Jacó que, ane­ lando pela salvação do Senhor e esperando-a com confiança, disse: “A tua salvação espero, ó S e n h o r !” (Gn 49.18). Não era Davi menos confiante,como se vê em vários Salmos. “O S e n h o r , tenho-o sempre à minha presença; estando ele à minha direita, não serei abalado. Alegra-se, pois, o meu coração, e o meu espírito exulta; até o meu corpo repousará seguro. Pois não deixarás minha alma na morte, nem permitirás que teu santo veja corrupção” (SI 16.8-10). Pois embora este oráculo se refira direta e primariamente a Cristo (somente em

3 Com base nos exem plos dos santos

quem ele seria cumprido perfeitamente, como Pedro conclui, At 2.31), nada o impede de pertencer secundária e consequentemente ao próprio Davi, que lici­ tamente se promete imunidade da morte, porque Cristo, ao ressuscitar, gran­ jeou imortalidade não só para si mesmo, mas para todos os crentes. A mesma coisa ele confessa com frequência em outros lugares: “Certamente bondade e misericórdia me seguirão todos os dias de minha vida” (SI 23.6); “Nunca serei envergonhado” (SI 31.1; cf. SI 62.1,2; 118.5,6). Paulo frequentemente testifica a mesma coisa, mas especialmente em Romanos 8.38: “Porque eu estou bem certo de que nada nos poderá separar do amor de Deus em Cristo”. Aqui ele indica uma persuasão, não apenas moral e conjetural, mas definida e nem um pouco enganosa, visto fluir da eleição (vs. 29,33) e do poder do Espírito Santo (v. 26), e produz sólida consolação (v. 31), pela qual ele não se ludibria por mera opinião e esperança, mas se ergue com uma indubitável confiança contra todos os seus inimigos. Ele está certo não só de que nada separará os crentes, mas que nada nem mesmo será capaz de separá-los do amor de Deus. XX. Aqui em vão se replica: (1) “que estes poucos homens notáveis se en­ cheram de convicção talvez por uma revelação especial”. Mas isso é uma pre­ sunção gratuita e é refutada por Paulo mesmo, o qual atribui tal convicção à fé testificada por Abraão, e não a uma revelação (Rin 4; Hb 11.8-19). Não a atri­ bui somente a si, como peculiar, mas fala dela como comum a outros e a deriva do propósito imutável da eleição; do amor de Cristo; de sua morte e interces­ são (que não são bênçãos de crentes particulares, mas de todos eles). (2) “Que as palavras ‘sabemos e estamos certos’ não incluem necessariamente a neces­ sidade da fé divina, mas uma certa conjetura de sinais.” Respondemos que não negamos que mediante sinais e marcas internos somos levados a este conheci­ mento, porém o Espírito Santo sela nossas consciências para que estes sinais não sejam enganosos. João confirma isto: “Amados, se o coração não nos acu­ sa, temos confiança diante de Deus. E aquele que guarda seus mandamentos permanece em Deus, e Deus, nele. E nisto conhecemos que ele permanece em nós, pelo Espírito que nos deu” (1 Jo 3.21,24*). Entretanto, em vão diria João que conhecemos e entendemos que temos o Espírito de Deus, e que esse Espí­ rito é a prova de nossa comunhão com Cristo, se pudéssemos ter isto provindo de sinais enganosos e conjeturais. XXI. Com base nas orações dos santos. Ordena-se aos crentes c'ue busquem em Deus o perdão de seus pecados; portanto, podem estar certos dele, visto saberem que suas orações não são futeis diante de Deus, mas com certeza o obtêm em con­ formidade com a promessa de Deus de que terão tudo quanto pedirem com fé (Mc 11.24; Uo 5.14,15). Não vale como objeção dizer que as orações dos crentes nem sempre são ouvidas (como no caso de Paulo. 2Co 12.7-9), porque uma coisa é buscar de Deus coisas temporais; outra, coisas espirituais. Concer­ nente à primeira, a promessa não é definida, mas condicional, porque estão em 4 Com base tias orações dos santos

conjunção com a glória de Deus e nossa salvação. Todavia, concernente à se­ gunda. ela é absoluta: “Pedi, e dar-se-vos-á, tudo quanto pedirdes em meu nome eu o farei” (Mt 7.7; Jo 14.13). Ora, o apóstolo se depara com a recusa de um bem físico, e não de um bem espiritual. Inutilmente se adiciona que se pode deduzir da própria oração que não temos certeza da graça e salvação, porque ninguém que possua mente sã busca o que já possui. Pois embora já possuamos a salvação mediante a esperança, contudo ainda não a possuímos quanto à coisa concreta, e perfeitamente; daí a oração entra em cena como o meio principal de obtê-la. Tampouco, se certas circunstâncias negligenciadas na oração às vezes podem torná-la vazia, toda sua certeza é diretamente remo­ vida. Falamos de orações feitas de forma correta, não de orações defeituosas. A certeza não se fundamenta na perfeição das orações, mas na afeição do cora­ ção. Pois Deus não visa ao mérito, mas à sinceridade daquele que suplica. Confirma-se a mesma coisa com base nas ações de graças que os crentes são obrigados a apresentar em virtude das bênçãos a eles outorgadas em Cristo - a remissão de pecados, a regeneração etc. (Cl 1.12,13; lPe2.9). Pois quem pode adequadamente render graças a Deus pelo benefício do qual nada sabe e tem dúvida de que ele se destina a si (i.e., que ele é participante dele)? Pois aquele que rende graças por algo sobre o qual está incerto (se de fato lhe foi dado ou não) parece mais pilheriar do que testificar como uma alma agradecida. 5 Com base nos frutos do Espírito.

XXII. (5) Com base nos frutos do Espírito e da fé. “Sendo justificados pela fé, temos paz com Deus” (Rm 5.1) e “O fruto do Espírito é amor, alegria, paz” (G1 5.22). Pedro diz: “a quem, não havendo visto, amais; no qual, não vendo agora, mas cren­ te, exultais com alegria indizível e cheia de glória” (IPe 1.8), o que Paulo afirma exceder a todo o entendimento (Fp 4.7). Ora, o que se pode conceber da paz e da alegria naqueles que não sabem se têm a Deus como um Juiz irado e hostil, ou apaziguado como um Pai misericordioso; se estão num estado de salvação ou de condenação eterna; e que agonizam em perpétua dúvida e des­ confiança? Daí, só é possível que tal alegria indizível seja oriunda de um senso íntimo e vívido do amor divino para com ele e uma confiança certa nas bên­ çãos e glórias eternas. XXIII. (6) Com base nos absurdos que acompanham a opi­ n'ao nossos oponentes. A doutrina concernente à descon­ ' fiança e incerteza atribui a Deus falsidade (1 Jo 5.10), lança fora o testemunho do Espírito Santo, contende com a paz da consciência e com a alegria do Espírito (que é peculiar aos crentes genuínos), obstrui a verdadeira invocação (que deve ser feita com fé) e leva ao desespero. Pois aquele que nunca está certo da graça de Deus não tem (quando surge a tentação) um lugar onde possa firmar seus pés e ao qual possa recorrer para que sua consciência ferida, extenuada e desalentada seja curada. Uma prova notável disto é forne­ cida por aquelas consciências miseráveis (a gemer sob a tirania do papado)

6 Com base nos absurdos

quando atingidas pelas garras da morte. Você as vê continuamente tremendo e ansiosas, nada tendo para seu apoio; sacudidas pelas ondas da dúvida e do temor, nunca podem alcançar o porto da paz e da tranquilidade, mas perecem miseravelmente num oceano de tentações. Mas justamente como (sendo pro­ posta certa consolação ao pecador na vida e na morte) a mesa (disposta no templo de Deus pelos cambistas romanos) é virada de ponta cabeça, assim também, sendo expulsa a mesma consolação, a mesma tentação se introduz e então uma consciência tremente e vacilante dá lugar à adoração da vontade e à venda de indulgências. Aliás, daí surgem os ricos despojos e o grande lucro do clero romano, enquanto as almas, tremendo em extrema agonia, são feitas pa­ gadoras de tributos a agentes, estabelecendo o comércio dos sonhados méritos e das vãs consolações do sacrifício da missa, destinando-se a serem ou mitiga­ das ou resgatadas pelas chamas imaginárias do purgatório. XXIV. Há uma certeza de perfeita retidão inerente; outra de fé e £ra?a 011 reconciliação com Deus por intermédio de Cristo e ’ ' da remissão de pecados. Uma coisa é sentir alguém ensoberbe­ cido com sua própria retidão; outra é nutrir a consciência de reconciliação gratuita. Salomão deve ser entendido no primeiro sentido, quando diz: “Quem pode dizer: Purifiquei meu coração, limpo estou de meu pecado?” (Pv 20.9). Não, porém, no segundo. Pois embora ninguém possa gloriar-se acerca da per­ feição de retidão inerente (como a Septuaginta traz: tis kauchêsetai agriên echein kardian), não se segue que o crente não possa gloriar-se acerca da graça de Cristo imputada e apreendida pela fé. Esta certeza não depende da perfeição de retidão inerente, mas da verdade do Espírito operando no interior. XXV. Os exemplos de Jó (Jó 9.12,15,28; 31.14), de Davi (SI 19.13), de Paulo ( ICo 4.4; 9.27), que não ousam arrogar a si nenhuma retidão inerente, de fato mostram que reconheciam a imperfeição de sua santidade (que não pode suportar o tribunal do juízo divino para sua justificação). Eles, porém, não pro­ vam sua incerteza acerca da graça divina e de sua própria fé, que em outras partes proclamam de forma tão magnífica: Jó (13.15; 19.25); Davi (SI 32.5; 103.1 3; 118.17); Paulo (Rm 8.38; 2Tm 1.12; G1 2.20), e em muitas outras passagens. XXVI. As sentenças que parecem implicar alguma dúvida ou incerteza da graça - “Convertei-vos a mim de todo o vosso coração ... quem sabe [Deus] se arrependerá e deixará após si uma bênção” (J1 2.12,14); “Talvez Deus perdoe teus pecados” (Dn 4.27); “Quem sabe se voltará Deus, e se arrependerá, e se apartará do furor de sua ira, de sorte que não pereçamos” (Jn 3.9); “Arrependete, pois, de tua maldade e roga ao Senhor, talvez te seja perdoado o intento do coração” (At 8.22) - ou não tratam propriamente da remissão de pecado quan­ to ao castigo eterno, mas de um relaxamento plenário do castigo temporal (o que nem sempre se concede mesmo àqueles que se arrependem); ou nem sem­ pre são as marcas dos que nutrem dúvida, mas, antes, dos que expressam a dificuldade da coisa em virtude da hediondez dos pecados e incitam o desejo Fontes de explanação

dos crentes de buscar a graça com muito maior zelo e os animam a obter o que desejam mediante a confiança. Exemplos deste tipo ocorrem com frequência (2 Rs 19.4; Pv 24.18; Ec 5.5; Jo 5.46; 8.19; Rin 11.21; Êx 32.30). Ou apresen­ tam a condição sob a qual se promete remissão; como Atos 8.22, onde o “se” (ei ara aphethêsetai) equivale a “para que (hina) ou “a fim de que (hopõs dê) te seja perdoado”; “se por algum meio (eipõs katanlêsõ) eu possa obter a ressur­ reição” (Fp 3.10,11), isto é, a fim de que eu possa alcançar (sentido no qual Eustathius observa que a expressão era empregada com frequência, Commentarii a dH om eri Iliadem [org. M. van der Valk, 1971]). XXVII. Uma coisa é falar da certeza objetiva da fé na qual se crê (i.e., a doutrina enunciada na Palavra); outra, da certeza subjetiva da fé pela qual se crê (i.e., o hábito que está nos crentes). A primeira deve sobressair e ser extraída das Escrituras imediata e expressamente; a segunda, porém, não deve estar nas Escrituras, mas no coração do crente com base nas Escrituras, e em concordân­ cia com elas é transcrita pelo dedo de Deus, porque ela surge da visão do cora­ ção ou do senso e da experiência do crente. Não obstante, a certeza da fé não deve ser considerada como algo de somenos. Porque, embora esta verdade não esteja contida expressamente nas Escrituras quanto à hipótese, contudo é de­ duzida dela e está fundamentada nela quanto à tese (conforme a norma geral dos lógicos segundo a qual proposições particulares estão inclusas nas univer­ sais). Portanto, visto que a Escritura diz que todos os crentes obterão perdão de pecado e salvação, por isso mesmo leva o crente à conclusão de que tal remis­ são e salvação estão destinadas àquele que crê (visto que sentimento e experi­ ência não mudam a regra em si, nem a torna humana se é divina, mas aplica in hypothesi a regra geral a um sujeito particular). Ora, ainda que não sustente­ mos que há igual necessidade ou grau de evidência desta dupla certeza (a reve­ lada bem como a experimental, como já vimos previamente), ambas não dei­ xam de ser da fé divina, visto que cada uma repousa no testemunho divino e infalível: a primeira de fato do Espírito falando na Palavra; a segunda do Espí­ rito falando no coração (sendo que ele é uma testemunha além de toda exceção [absolutamente excepcional]). XXVIII. Assim como nem todo medo é incompatível (asystatos) com a certeza da graça, assim também nem todo medo é imposto ao crente nem re­ movido dele. Uma coisa é o medo servil; outra, o medo filial. O primeiro leva em conta somente, ou o castigo, ou o pecado em virtude de seus castigos (o que é próprio dos escravos, que atentam só para sua vantagem ou desvantagem pessoal). Mas o segundo leva em conta, ou apenas o pecado ou o castigo em virtude do pecado (o que pertence aos filhos e corresponde à reverência e ao amor dos filhos para com seus pais). Aquele é incompatível (asystatos) com a certeza, e lemos que o amor, neste sentido, lança fora o medo (U o 4.18); e lemos que os crentes não receberam novamente o espírito de escravidão para temerem (Rm 8.15). Isto, porém, longe de ser incompatível com a certeza, é o meio pelo qual ela é produzida e confirmada em nós. Pois, visto que a certeza

da graça não pode existir em nós com o propósito de pecar e sem o uso de meios, este medo (que tem por seu objetivo evitar o pecado e promover a aspiração por santidade) não pode remover a certeza, mas, antes, a impõe, já que a certeza não exclui os fins, mas propõe a necessidade dos meios. Portan­ to, se algum temor nos é recomendado, não é aquele temor servil que traz consigo desconfiança e dúvida, mas um temor filial que consiste principal­ mente de três particularidades: (1) reverência e humildade filiais com respeito a Deus - oposto ao orgulho e à presunção farisaicos; (2) solicitude, prudência e vigilância com respeito ao Diabo, fugindo de todas as tentações do pecado e usando todos os meios que conduzam à santidade - oposto à segurança carnal dos epicureus; (3) um propósito constante de aderir a Deus mais e mais e andar nos caminhos do Senhor, bem longe dos caminhos da carne e do mundo - oposto à licenciosidade e à frivolidade dos perversos. Portanto, este temor remove o falso modo da certeza (que flui da segurança carnal e da licenciosidade profana), porém confirma e fomenta a verdadeira. Desta forma, quanto mais o crente (pela solicitude piedosa) cuida de não afastar-se das veredas da santidade e mais e mais adere ao seu Deus mediante constante obediência, tanto mais se persuadirá também da graça e do amor de Deus, e de sua salvação pessoal. XXIX. Sempre que o “temor” (phobos) e o “tremor” (tromos) estão juntos nas Escrituras (cf. ICo 2.3; 2Co 7.15; Ef 6.5; Fp 2.12), não indicam qualquer dúvida ou incerteza e desconfiança; mas denotam apenas humildade e abati­ mento (Jemissionem) da mente. Isto se deduz claramente mesmo da última passagem acima em que Paulo nos ordena, “desenvolvei vossa salvação com temor e tremor”, certamente não de desconfiança e dúvida, visto que ele acres­ centa imediatamente: “Deus opera em vós tanto o querer como o fazer” (o que o tomara totalmente seguro da graça), mas de reverência e solicitude, pelas quais a graça de Deus opera nossa salvação. Em decorrência disso é que esse temor é frequentemente associado com certeza e alegria. Quem era mais convicto que Paulo da graça de Deus e de sua salvação pessoal (nas quais ele exulta, Rm 8.38; 2Tm 4.6-8)? No entanto, e por isso mesmo, quem se mostrava mais ansi­ oso por evitar o pecado e promover sua santificação pessoal (ICo 9.27; Fp 3.13,14)? Assim temos a ordem de “servir o S e n h o r com temor e regozijar-nos nele com tremor” (SI 2.11), porque alegria sem temor equivale a orgulho; temor sem alegria equivale a desespero; ambos juntos acrescentam à mente confian­ ça sólida com profunda humildade. Dessa forma, o crente teme em virtude do pecado, regozija-se em virtude da graça; teme em virtude de sua própria fragi­ lidade e dos perigos ameaçadores, e se vale ansiosamente de todos os meios para não deslizar rumo à segurança carnal. No entanto, ele se regozija com confiança no auxílio divino prometido a ele para que não se precipite no deses­ pero. E se algumas passagens nos exortam ao temor e à apreensão (como Pv 28.14; IPe 1.17 e outras semelhantes), inculcam antes ansiedade acerca dos meios, e não dúvida acerca do fim. Tal temor não visa opor-se à confiança nas promessas de Cristo, mas à presunção carnal acerca de nossa própria força.

XXX. Embora a veracidade da fé dependa da condição de um coração puro (At 8.37; Rm 10.9,10), ela não pode ser menos certa porque Deus, que requer fé procedente de um coração puro (i.e., sincero e nem um pouco hipó­ crita, lTm 1.5), outorga e põe nos crentes tal coração pela graça da regenera­ ção (Ez 36.26). As citadas passagens de Jeremias 17.9 e Provérbios 20.9, as quais testificam que o coração humano é perverso e inescrutável, e que nin­ guém pode dizer que seu coração está limpo, apenas mostram o que o coração humano é por natureza, não o que ele pode vir a ser pela graça. A ccrteza do crente não deve, pois, ser acusada de temeridade e presunção, visto que ela não repousa num juízo natural e falível do coração, mas no juízo do coração reno­ vado, no testemunho do Espírito Santo (o que prova a veracidade e a sincerida­ de da fé com base em seus adjuntos e efeitos, segundo critérios [kritêria] apre­ sentados na Palavra). Isto é verdadeiro tanto em razão do sujeito, quando se vê que o coração é bom e honesto (Lc 8.15); não duro, mas quebrantado e contrito (Is 51.1; 66.2; SI 51.17); não hipócrita (que cobre, apaga e oculta o pecado), mas sincero (que confessa e ora súplice pelo perdão do pecado, SI 32.5); e quanto ao objeto e modo, quando a fé abraça o evangelho, não em virtude da novidade de sua doutrina ou de licença para pecar, mas da liberdade cristã e da justificação gratuita (Rm 6.2; IPe 2.15,16). Também em virtude de Deus, a fonte de todo bem, e de Cristo, em quem habita toda a plenitude da graça; também quanto aos seus atos, tais como contrição do coração e profunda tris­ teza pelo pecado, em virtude de Deus, fome e sede ou profundo anseio pela justiça, um senso permanente da graça, uma boa consciência, prudência para evitar queda e para ser aprovado diante de Deus, cada vez mais, pela prática da santidade, não por um momento, mas séria e constantemente. No entanto, não se deve esperar destes perfeição absoluta, mas a sinceridade deve ser buscada, porque Cristo não quebra a cana esmagada, nem extingue o pavio que fumega, e nem leva em conta propriamente a quantidade, mas muito mais a qualidade da fé. XXXI. O que temos a obrigação de crer com fé divina deve ser sempre crido como indubitável, quando se trata de verdades imediatamente reveladas e independentes de nós - tais como os artigos de fé, de cuja veracidade não podemos nutrir dúvida sob qualquer pretexto. Mas não é assim com a certeza que o crente tem sobre a remissão de seus pecados. Isto não é imediatamente revelado na Palavra, mas provém da experiência interior e do senso do cora­ ção. Depende de nós e às vezes pode ser duvidoso e incerto, não menos que o princípio sobre o qual ela repousa. Daí ser falso que o verdadeiro crente por certo tempo pode e deve estar certo da remissão de seus pecados, mesmo quan­ do esteja em pecado e se entregue às luxúrias da carne, porque (como já disse­ mos) a certeza não é outorgada sem o uso dc meios. XXXII. Certeza absoluta (que não depende de qualquer condição que pos­ sa torná-la incerta), tal como a certeza de que Deus existe e que a alma é imortal etc., difere da certeza condicional, que depende dc alguma condição,

tal como a certeza de Ezequias de que sua vida se prolongaria por quinze anos. Isto lhe foi prometido e assim ele pôde nutrir certeza sobre o fato, no entanto, sob a condição de que ele não se negaria o alimento necessário, mas que usaria os meios necessários para a preservação de sua vida. Tal é a certeza do crente (da qual já falamos), que pressupõe o uso de meios como uma condição, como já dissemos. A primeira certeza é incompatível (asystatos) com o medo, por­ que ela tem por seu objeto a verdade independente de nós; mas a segunda não só não exclui o medo, mas necessariamente o pressupõe como o meio de sua confirmação. XXXIII. O medo de um mal futuro (que deve necessariamente ocorrer) não pode ser consentâneo com a certeza. Mas o medo de um mal que poderia se concretizar (a menos que nos guardemos contra ele no tempo), não só não se põe em conflito com a certeza, mas serve para produzi-la, embora ele nos indu­ za à solicitude e à vigilância, pelas quais cuidamos para não cairmos nesse mal. Este é o medo que o Espírito Santo requer dos crentes. XXXIV. Visto que a certeza que defendemos deve estar sempre ligada ao uso de meios, em vão a buscamos no pecador impenitente. E se o crente, em algum tempo, foi capaz de exercer um ato genuíno dessa certeza, enquanto esteve no caminho e na prática da santidade, não pode igualmente exercê-la enquanto se entrega à carne ou se dedica a algum pecado grave. Ele não deve ser ignorante de que a perseverança no pecado é incoerente (asystaton) com essa certeza. Portanto, ele nunca é influenciado a dizer: uma vez eu tive certe­ za da graça de Deus, então devo ter certeza do futuro acerca dessa graça, faça eu o que fizer. Como ele não exibiu nenhum ato de certeza no passado (exceto pelo uso de meios), assim tampouco pode exibi-lo no presente, exceto se ele estiver no mesmo estado, e não em outro. E se o primeiro ato de certeza leva em conta também o futuro, leva-o em conta sob a mesma pressuposição (ou seja, se usa os meios e está no caminho da santidade). XXXV. A dúvida que os santos nutrem é sinal de fragilidade, não um su­ porte da incerteza. Mostra o que pode algumas vezes ser feito de fato, não o que deve ocorrer de direito. De modo que ela não deve ser louvada e atribuída à virtude da humildade (como afirmam os romanistas), mas deve ser combati­ da zelosamente e deve ser deplorada como uma fraqueza depravada pertencen­ te aos restos de pecado. XXXVI. Como a certeza de perseverança é a consolação do labor, não a mãe da segurança (que pode coadunar-se com a lascívia e com a indolência da carne), visto que ela só pode ser concedida aos que andam nas veredas da santidade; assim a ausência desta certeza não deve produzir imediatamente desespero (como se ela deitasse abaixo sua salvação, quando a fé nem sempre suscita esse ato da certeza). Este é propriamente o fruto da alma confirmada no Senhor e dos sentidos exercitados. Portanto, aqueles que ainda não estão con­ firmados devem avançar por degraus e perccptivamente nos caminhos do Se-

nhor, em vez de diligenciar a abraçar e antecipar com um vislumbre de fé aqueles imensos espaços de perseverança. E nesta prática da fé, algumas vezes prefiro ouvir os gemidos de quem pranteia à gargalhada de quem festeja (não tanto por fé quanto por opinião). Se com frequência sucede que presumam enganar-se, mas que suspiram e com o publicano temem erguer seus olhos, contudo têm a própria coisa que não vêem - contemplam aquele Jesus presente a quem buscam e não reconhecem. Os demais, contudo, após perceberem aquilo que pensam possuir, é arrebatado deles. XXXVII. A segurança da carne, que repousa e ama enganar a vida com o ócio tranquilo, difere da segurança do homem crente e piedoso que ora sempre e luta nas atividades da salvação. Como numa cidade, a segurança dos homens estúpidos (que dormitam e são capturados sem o saberem, enquanto se acham sepultados no sono e no vinho) difere da segurança dos vigilantes e despertos (que mantêm a guarda para que não sejam perturbados por um ataque inespera­ do; e não podem ser induzidos a abandonar seu posto por um terror de pânico ou por um temor insano). Tal é a santa segurança dos piedosos, que não apenas não exclui a vigilância e a aspiração pela piedade, mas necessariamente as supõem como os meios certos de sua própria preservação. As demais coisas que aqui se enquadram podem ser deduzidas do Tópico IV, Pergunta 13.

A J u s t if ic a ç ã o P

r im e ir a

P ergunta

A palavra “ j u stifica çã o ” é sempre usada num sentido forense, nesta discussão, ou é ta m b ém usada n u m sentido m o ra i e físico? A fir m a m o s a p rim e ira hipótese; negamos a segunda contra os rom anistas.

I. Como na cadeia da salvação a justificação segue a vocação (Rm 8.30) e, em outra parte, se apresenta como o efeito primário da fé, o tópico concernente à vocação e à fé gera o tópico concernente à justificação. Isso deve ser mane­ jado com o máximo cuidado e precisão, uma vez que esta doutrina salvífica é da máxima importância na religião. Ela é chamada por Lutero de “o artigo que faz uma igreja ficar de pé ou cair” (Articulus stantis, et cadentis Ecclesiae). Por outros cristãos, ela é designada como a característica e base do Cristianis­ mo - não sem razão - , a principal plataforma da religião cristã. Uma vez sendo adulterada ou subvertida, é impossível reter a pureza da doutrina em outras partes. Por isso Satanás, de todas as formas, tem tentado corromper esta dou­ trina em todas as eras, como tem sido feito especialmente no papado. Por esta razão, ela é merecidamcnte situada entre as causas primárias de nossa separa­ ção da igreja romana e da existência da Reforma. II. Entretanto, embora alguns dos mais cândidos romanistas (vencidos pela força da verdade) tenham sentido e se expressado mais solidamente do que ou­ tros acerca deste artigo (também não faltam aqueles, entre outros doutores, que, influenciados pelo desejo de diminuir as controvérsias, pensam que não há tão grande importância para polêmica sobre a doutrina, e que aqui há não pouco palavreado inútil), é indubitável que desde então há entre nós e os romanistas, neste argumento, controvérsias não só verbais, mas reais, e muitas que são de grande importância (como se verá a seguir). III. A partir de uma explanação falsa e contraditória do termo, a veracidade da coisa em si tem sido surpreendentemente obscurecida. Em primeiro lugar, seu sentido genuíno (e nesta questão mui especialmente) deve ser trazido a lume. Uma vez sendo este fato estabelecido, teremos condições de atingir mais facilmente a natureza da coisa concreta. H om ônim os do verbo ju stifica r

^ A palavra htsdyq, à qual correspondem o grego dikaioim e ° *atrm justlficare, é usada de duas maneiras nas Escrituras própria c impropriamente. Propriamente, o verbo é de cunho forense e expressa o ato de “absolver” alguém em um tribu-

nal, ou “aceitar” e declarar “justo”; como oposto aos verbos “condenar” e “acu­ sar” (Êx 23.7; Dt 25.1; Pv 17.15; Lc 18.14; Rin 3-5). Assim, à parte de um tribunal, ele é usado para reconhecer e louvar alguém como justo, e isso merccidamente (como quando determinado por Deus, em cujo sentido lemos que os homens justificam a Deus quando o celebram como justo [SI 51.4]; “sabedo­ ria” é mencionada como “justificada por seus filhos” [Mt 11.19*; Lc 7.35], i.e., é reconhecida e celebrada como tal); ou presunçosamente ([doxasíõs], como os fariseus, que sào mencionados como justificando a si mesmos, Lc 16.15). Impropriamente, ela é usada ministcrialmente, para promover a justiça (Dn 12.3, onde m tsdyqv parece ser exegético de [exêgêtikon tou] mskylym, porque, enquanto os pregadores do evangelho instruem e ensinam os crentes, justamente por isso eles os justificam ministerialmente [ou seja, ensinando-lhes a verdadei­ ra forma pela qual podem ser justificados] no mesmo sentido em que os salvam, lTm 4.16). Esta palavra também pode ser usada como sinédoque (sendo o an­ tecedente expresso pelo consequente) para “livrar”; “aquele que está morto está justificado do pecado” (Rm 6.7), isto é, está livre. Ela também pode ser usada comparativamente, onde, em virtude de uma comparação entre os peca­ dos de Israel e de Samaria, lemos que Israel “justifica Samaria” (Ez 16.51,52) e, com o aumento dos pecados de Judá. lemos que Judá “justificou Israel” (Jr 3.11) porque Israel era mais justo que Judá (i.e., seus pecados eram menores que os pecados de Judá). ^ai sur£e a questão com os romanistas sobre a aceita­ çào deste term o -se deve ser entendido precisamente num da questão. v ., _ , ' , . , sentido rorense, neste caso, ou se deve ser também enten­ dido em um sentido físico e moral para a infusão da justiça e da justificação, se isso for admissível (por assim dizer) ou pela aquisição ou pelo incremento delas. Eles não negam que a palavra justificatio e o verbo justijicare, às vezes, são entendidos em um sentido forense, mesmo nesta matéria, como fazem Belarmino (“De Justificatione”, 1.1 O pera [1858], 4:461,462), Tirinus ( Theologiae elenchticae ... controversarium fidei, Cont. 15, number 1 [1646], pp. 217­ 221) e Toletus (Com m entarii et annotationes in epistolam ... a d Romanos , Annot. 13 [1602], pp. 117-122) e não uns outros poucos. No entanto, não pre­ tendem que este seja o significado constante, mas que às vezes significa uma produção genuína, uma aquisição ou aumento da justiça, sendo este especial­ mente o caso quando empregado sobre a justificação do homem diante de Deus. Daí distinguirem a justificação em “primeira e segunda”. A primeira é aquela pela qual o homem que é injusto se torna justo; a segunda é aquela pela qual um homem justo se torna ainda mais justo. Daí Belamiino dizer: “A justificação, indubitavelmente, é um certo movimento do pecado para a retidão, e recebe seu nome do propósito ao qual ela leva, como todos os movimentos, iluminação e calefação semelhantes; essa é a verdadeira justificação, na qual se adquire algu­ ma retidão além da remissão de pecado”. Tomás de Aquino diz: “A justificação, entendida passivamente, implica uma moção para fazer justiça, justamente como E stabelecim ento

,

calefaçào é uma moção para o calor” (ST, 1-11, Q. 113, Art. 1, p. 1144). Ora, ainda que não neguemos que esta palavra possui mais de um significado e é usada em sentidos diferentes nas Escrituras (ora propriamente, então impropri­ amente, como já afirmamos), contudo mantemos que ela nunca é usada para significar uma infusão de retidão, e sempre que as Escrituras falam ostensiva­ mente de nossa justificação, o termo deve ser sempre explicado no sentido fo­ rense. As razões são: (1) as passagens que tratam da justificaÇã° não admitem nenhum outro sentido, senão forense (cf. Jó ^.3; SI 143.2; Rm 3.28; 4.1-3; At 13.39 e em outros lugares)- Apresenta-se um processo judicial e faz-se menção de uma “lei” que acusa, de “pessoas acusadas” que são culpa­ das (hvpodikoi, Rm 3.19), de um “manuscrito” que nos é contrário (Cl 2.14), de “justiça” divina que demanda punição (Rm 3.24,26), de um “advogado” que pleiteia a causa (1 Jo 2.1), de “satisfação” e justiça imputada (Rm 4 e 5), de um “trono da graça” diante do qual somos absolvidos (Hb4.16), de um “juiz” que pronuncia a sentença (Rm 3.20) e de pecadores absolvidos (Rm 4.5). VII. (2) Justificação é o oposto de condenação: “Quem intentará acusação contra os eleitos de Deus? É Deus quem os justifica. Quem os condenará?” (Rm 8.33,34*). Como, pois, acusação e condenação ocorrem somente ante um tribu­ nal, assim também se dá com a justificação. Não se pode conceber como se pode dizer que Deus condena ou justifica, a menos que administre punição ou nos absolva dela judicialmente. Toletus se vê compelido a confessar isso em Romanos 8.33: “A palavra justificação, nesta passagem, é entendida com esse sentido, que é oposto à sua antítese, ou seja, condenação, de modo que, neste lugar, significa o mesmo que justificar, equivalente a pronunciar justo, como um juiz que, por sua sentença, absolve e pronuncia inocente” (Com m entarii et annotationes in epistolam ... a d Romanos [1602], p. 441, sobre Rm 8.33). Comelius a Lapide, que se esforça energicamente para obscurecer a verdade, é vencido pela força da verdade e reconhece que Deus justifica (i.e., absolve da ação ameaçadora do pecado e do Diabo e declara justo). VIII. (3) São de caráter judicial as frases equivalentes pelas quais se descre­ ve nossa justificação: “não entra em juízo” (Jo 5.24); “não é julgado [condena­ do]” (Jo 3.18); “remitir pecados”, “imputar justiça” (Rm 4); “ser reconciliado” (Rm 5.10; 2Co 5.19), e termos semelhantes. (4) Esta palavra deve ser emprega­ da no sentido em que foi usada por Paulo nesta disputa contra os judeus. Não obstante, é certo que ele não falou ali de uma infusão de retidão (v/z., se, quer pela fé ou pelas obras da lei o hábito de retidão pudesse ser infuso no homem), mas de como o pecador poderia permanecer diante do trono de juízo de Deus e obter o direito à vida (seja pelas obras da lei, como imaginavam os judeus, ou pela fé em Cristo). E visto que o pensamento acerca da justificação suscita dúvidas provenientes do medo do juízo divino e da ira vindoura, ela não pode Prova de que a palavra "ju stifica çã o ” é forense.

ser usado em qualquer outro sentido senão o forense (como foi usado na ori­ gem daquelas questões que foram suscitadas numa época anterior à ocasião das indulgências, das satisfações e da remissão de pecados). (5) Finalmente, a menos que esta palavra seja entendida em um sentido forense, ela será confun­ dida com a santificação. Mas, que estas são distintas, tanto a natureza da coisa quanto a voz da Escritura, com frequência, provam. Embora a palavra “justificação”, cm certas passagens da Escritura, retroceda de sua significação própria e seja entendi­ da em um sentido diferente do forense, não se segue que ela seja entendida por nós falsamente em termos judiciais, porque o sentido próprio deve ser visualizado naquelas passagens em que se forma o fundamento desta doutrina. (2) Embora provavelmente o termo não seja entendido precisamente em um sentido forense para “declarar justo” e “absolver em um tribunal”, afir­ mamos que ele não pode ser entendido em um sentido físico para a infusão de retidão, como os romanistas afirmam (como se prova facilmente com base nas passagens apresentadas pelo próprio Belarmino). X. Em Isaías 53.11, onde lemos que Cristo “por seu conhecimento justifica­ rá a muitos”, é manifesto que se faz referência à causa meritória e instrumental de nossa absolvição junto a Deus (i . e Cristo e o conhecimento ou fé nele). O conhecimento de Cristo, aqui, não deve ser entendido subjetivamente, como o conhecimento pelo qual ele sabe o que foi acordado entre ele e o Pai (que nada tem a ver com nossa justificação), mas objetivamente, como o conhecimento pelo qual ele é conhecido por seu povo para a salvação (que nada mais é senão fé, à qual em outro lugar se atribui a justificação). As palavras seguintes mos­ tram que não se deve buscar nenhum outro sentido quando se adiciona “pois ele levará suas iniquidades”. Isso denota a satisfação de Cristo, a qual a fé deve abraçar a fim de podermos ser justificados. XI. Nem a passagem de Daniel 12.3 nos força. Como já dissemos, a justifi­ cação é atribuída aos ministros do evangelho, como em outros lugares se lhes atribui a salvação ( lTm 4.16; ICo 9.22). Com toda certeza, não por uma infu­ são de retidão habitual (o que não está em seu poder), mas pela instrução dos crentes, pela qual, como que abrindo-lhes a vereda da vida, assim lhes ensinam o modo pelo qual os pecadores podem obter a justificação em Cristo, mediante a fé. Daí a Vulgata não traduzir o termo por justifleantes, mas por erudientes Fontes de explanação

a d justitian.

XII. “Aquele que é justo, continue sendo justo” (Ap 22.11) não favorece nossos oponentes, como se denotasse uma infusão ou incremento de retidão. Nesse caso, o termo seria tautológico (tautologia) com as palavras seguintes, “aquele que é santo, continue sendo santo”, porque a justificação não diferiria da santificação. Mas é preferível atribuí-la à aplicação e à percepção da justifi­ cação pois, embora, da parte de Deus, a justificação não se concretize sucessi­ vamente, contudo, de nossa parte, ela é apreendida por nós pelas ações variadas

e reiteradas, enquanto pelos novos atos de fé aplicamos a nós mesmos, de tempo em tempo, o mérito de Cristo como um remédio para os pecados diários nos quais caímos. Aliás, embora se admita que esteja implícito aqui o exercí­ cio da justiça (como em um manuscrito temos dikaiosynên poiêsafõ), que pode ser oposto às palavras precedentes - “Aquele que é injusto, seja ainda mais injusto” - , nem por isso a opinião dos romanistas prevalecerá. XIII. “A justificação do ímpio” de que Paulo fala (Rm 4.5) não deve ser atribuída a uma infusão ou a um incremento de retidão habitual, porém pertence à remissão de pecados (como é explicado pelo apóstolo com base eni Davi). Aliás, ela não seria uma justificação do ímpio se fosse usada em qualquer outro sentido alem da absolvição judicial diante do trono da graça. Confesso que Deus, ao declarar justo, deve também, pela mesma razão, tomar justo para que seu julgamento seja em conformidade com a verdade. Mas o homem pode tomarse justo de duas maneiras: ou em si mesmo ou em outro; ou com base na lei ou com base no evangelho. Deus, portanto, faz justo aquele a quem justifica; não em si mesmo, como que, pelo prisma de sua justiça inerente, ele o declarasse justo, mas pelo prisma da justiça imputada - em Cristo. E deveras uma abomi­ nação a Yahweh justificar o ímpio sem uma devida satisfação, porém Deus, neste sentido, não justifica nenhum ímpio (Cristo foi dado como o fiador que recebeu em si a punição que nos era merecida). XIV. Embora certas palavras da mesma ordem que a justificação denotem uma impressão moral no sujeito, não há a mesma razão para isso, que de outro modo foi barbaramente admitido na latinidade para expressar a força de htsdyq e dikaioun (nenhum dos quais admite um sentido físico). Assim magnificamos e justificamos a Deus, não o tomando grande a partir do pequeno, ou o tomando justo a partir do injusto, mas apenas declarativamente, celebrando-o como tal. S eg u nd a P ergu nta A causa im p u lsiva e m eritória (em virtude da q u a l o hom em é ju s tific a d o no julgam ento divino) é a ju stiç a inerente infusa em nós ou as boas obras? Negam os isso contra os rom anistas.

I. Visto ser evidente, com base na questão precedente, que a palavra “justi­ ficação” é forense e é tomada judicialmente aqui por relacionar-se à maneira em que o homem pecador pode permanecer diante do tribunal divino e obter o per­ dão de pecado com o direito à vida, devemos inquirir, antes de tudo, qual é o fundamento desta justificação, ou qual é a causa meritória, verdadeira e pró­ pria, em vista da qual ele é absolvido por Deus, do pecado, e destinado à vida. Sobre isso devemos, primeiramente, tratar negativamente (kat' arsin ), em con­ formidade com o método paulino, a fim de podermos verem que ela não consis­ te; segundo, devemos tratar afirmativamente (kata thesin) para ver em que con­ siste.

Entretanto, devemos raciocinar aqui que Deus, o justo ^u'z (dikaiokrifên), não pode pronunciar alguém como sendo " ' justo e conceder-lhe o direito à vida, a não ser em virtude de alguma justiça perfeita, a qual tenha uma relação necessária com a vida, mas essa justiça não é de um gênero único. Pois como há duas alianças, as quais Deus quis fazer com os homens - uma da lei e outra da graça - , assim também há uma dupla justiça - legal e evangélica. Consequentemente, há também uma dupla justificação ou um duplo método de permanecer diante de Deus em juízo - legal e evangélico. O primeiro consiste na obediência pessoal de uma pessoa ou em uma perfeita conformidade com a lei, a qual está naquele que está para ser justificado; o segundo está na obediência de outro ou em uma perfeita obser­ vância da lei, a qual é assumida por um fiador no lugar daquele que deve ser justificado - o primeiro em nós, o segundo em Cristo. A respeito do primeiro, Paulo diz: “Porque os simples ouvidores da lei não são justos diante de Deus, mas os que praticam a lei há de ser justificados” (Rm 2.13); e “Moisés escreveu que o homem que praticar a justiça decorrente da lei viverá por ela” (Rm 10.5). A respeito do outro, ele diz: “Pois não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus para a salvação de todo aquele que crê, primeiro do judeu e também do grego; visto que a justiça de Deus se revela no evangelho, de fé em fé, como está escrito: O justo viverá por fé” (Rm 1.16,17); e “sendo justificados gratuitamente, por sua graça, mediante a redenção que há em Cristo Jesus” (Rm 3.24). A respeito de ambos, ele diz: “...e se achar nele, não tendo justiça própria, que procede da lei, senão a que é mediante a fé em Cristo, a justiça que procede de Deus, baseada na fé” (Fp 3.9; cf. também Rm 9.30,31). Daí flui uma dupla justificação: uma na aliança da lei, mediante uma justiça pessoal, de acordo com a sentença: “faze isto e viverás”; a outra na aliança da graça, mediante a justiça de outro (de Cristo), imputada a nós e apreendida pela fé, em conformi­ dade com a sentença: “Crê e serás salvo”. Cada uma requer uma justiça perfei­ ta. A primeira a requer no homem a ser justificado, porém a segunda admite a justiça vicária de um fiador. A primeira só poderia concretizar-se num estado de inocência, se Adão tivesse permanecido em inocência. Mas, visto que, após o pecado, isso tomou-se impossível ao homem, devemos buscar refúgio em outro (/.e., o evangelho), o qual se fundamenta na justiça de Cristo. III. Uma vez estabelecido este fato, a questão não diz respeito à justificação legal. Pois confessamos que, nela, a justiça inerente é sua causa meritória, e não só pode ser obtida pela obediência perfeita do homem. Visto que a lei veio a ser agora enfraquecida pelo pecado, este método de justificação é impossível (ek tõn adynatõn). Assim, tratemos da justificação evangélica que nos é proposta na aliança da graça, que negamos estar fundamentada na justiça inerente. IV. A questão não é se a justiça inerente nos é infusa mediante a graça de Cristo, por cuja intervenção nos tomamos participantes da natureza divina (2Pe 1.4) e obtemos uma santidade genuína e real, agradável e aceitável a Deus, pela E stabelecim ento da auestão

qual somos propriamente denominados justos e santos. Pois, seja qual for a acusação que os oponentes lancem sobre os ortodoxos (p.cx., que “não admiti­ mos a justiça inerente”, como Belarmino, “De Justificatione”, 2.1 Opera [ 1858], 4:502, e outros depois dele), seguramente é uma torpe calúnia. Prova-se sua falsidade com base nos escritos de nossos doutores, quer públicos ou privados, os quais, por toda parte e com o consenso de todos, ensinam que os benefícios da justificação e santificação estão tão indissoluvelmente relacionados entre si que Deus a ninguém justifica sem igualmente santificá-lo e conceder-lhe a jus­ tiça inerente mediante a criação de um novo homem em verdadeira justiça e santidade. Mas a questão é se essa justiça inerente (tal como existe nos crentes sobre a terra) se encaixa em nossa justificação, seja como sua causa ou como uma parte dela, de modo que constitua alguma parte de nossa justificação e seja a causa e o fundamento meritórios de nossa sentença absolvidora no julgamento divino. Os romanistas, como pretendem que a justificação consista de duas par­ tes - remissão de pecado e renovação interior da mente - , asseveram que a causa cm virtude da qual Deus nos justifica é a justiça de Deus, a qual (infusa em nós) nos constitui interiormente justos. Pois ainda que não pareçam excluir inteiramente a justiça de Cristo, uma vez que afirmam que, por ela, ele mereceu que Deus nos comunicasse, mediante o Espírito Santo, a justiça interior, c, assim, ela é a condição da causa formal (i.e., da justiça inerente para que fosse dada ao homem), contudo afirmam que o direito de buscar a vida depende da justiça ine­ rente, e justamente por isso Deus nos justifica. V. Isso fica evidente no Concílio de Trento, onde se lê que “a justificação do ímpio é a trasladação daquele estado em que o homem nasceu como filho do primeiro Adão, para um estado de graça e a adoção dos filhos de Deus mediante o segundo Adão, Jesus Cristo, nosso Salvador. Aliás, esta traslada­ ção, após a promulgação do evangelho, não pode ser feita sem a lavagem da regeneração ou a aspiração por ela” (Sessão 6.4, Schroeder, p. 31). E, mais adiante: “A justificação em si segue essa disposição ou preparação que não é somente a remissão do pecado, mas também a santificação e a renovação do homem interior por um recebimento voluntário de graça e dons, pelos quais uma pessoa que era injusta é feita justa e, em vez de inimiga, toma-se amiga, de forma a ser uma herdeira segundo a esperança da vida eterna” (Sessão 6.7, Schroeder, p. 33). E ainda: “A causa formal dela é a justiça de Deus, não aque­ la pela qual ele é em si mesmo justo, mas aquela pela qual ele nos faz justo e pela qual, a nós outorgada como seu dom, somos renovados no espírito de nossa mente e somos não apenas considerados, mas realmente chamados e somos justos, cada um de nós recebendo justiça em si mesmo, segundo nossa medida, a qual o Espírito distribui a todos como lhe apraz e segundo a disposi­ ção e cooperação peculiares de cada um” (ibici.). E no Cânone 11: “Se alguém disser que os homens são justificados unicamente pela remissão de pecados à exclusão da graça e caridade que são derramadas abundantemente em nosso coração pelo Espírito, e que é inerente nele, ou ainda que a graça pela qual

somos justificados é apenas o favor de Deus, seja anátema” (Sessão 6, Cânon 11, Schroeder, p. 43). Com base nessas declarações, é evidente que o Concilio declarou que a justiça inerente é a causa em virtude da qual somos justifica­ dos. Não devemos deixar-nos enganar por sua aparente distinção entre a causa formal e meritória: uma, de fato, estando em Cristo, mas a outra na justiça infusa. Visto que falam de justificação diante de Deus, a causa formal não pode ser distinta da causa meritória, porque, neste aspecto, a causa formal nada mais é do que aquela cm vista da qual Deus nos livra da condenação e nos recebe para a vida eterna. VI. Em contrapartida, os ortodoxos pensam de maneira muito distinta. Pois ainda que não neguem que a justiça inerente foi adquirida para nós pelo mérito de Cristo e por sua graça a nós conferida, de modo que, por ela, somos e pode­ mos ser denominados realmente justos e santos, contudo negam que ela, de alguma forma, se encaixe na justificação, seja como uma causa ou como uma parte dela, de modo que se possa dizer que a justificação está situada nela e, por ela e em virtude dela, o homem pode ser justificado diante de Deus. Pois somen­ te a justiça de Cristo, a nós imputada, é o fundamento e a causa meritória sobre a qual repousa nossa sentença de absolvição, de modo que por nenhuma outra razão Deus outorga o perdão do pecado e o direito à vida, senão em virtude da justiça perfeitíssima de Cristo a nós imputada e apreendida pela fé. Daí deduzirse prontamente que não temos aqui uma mera disputa sobre palavras (como alguns falsamente imaginam), mas uma controvérsia realíssima e deveras da máxima importância. Nela tratamos do principal fundamento de nossa salvação, o qual, uma vez subvertido ou mesmo enfraquecido, faria com que toda a nossa confiança e consolação, seja na vida seja na morte, necessariamente perecesse. VII. Isso transparece mais claramente quando nos aproximamos do pró­ prio fato e a controvérsia não transcorre tépida e insensivelmente na nuvem e no pó dos escolásticos (como que à distância), mas em luta e agonia - quando a consciência é posta diante de Deus e, terrificada pelo senso de pecado e da justiça divina, busca uma forma de permanecer de pé durante o julgamento e assim escapar à ira vindoura. E deveras fácil, à sombra das escolas, tagarelar à vontade sobre a dignidade da justiça inerente e das obras para a justificação dos homens; mas, quando chegamos à presença de Deus, é necessário abando­ nar tais ninharias, porque ali a matéria é conduzida seriamente e não se permi­ tem disputas ridículas sobre palavras (logomachia). Até aqui nossos olhos de­ vem erguer-se ao máximo, se quisermos inquirir proveitosamente acerca da verdadeira justiça; de que maneira podemos responder ao Juiz celestial, quan­ do ele nos tiver chamado à prestação de contas. Realmente, enquanto, entre os homens, a comparação seja válida, cada um supõe que possui o que é de algu­ ma objetividade e valor. Mas, quando subimos ao tribunal celestial e pomos nossos olhos naquele supremo Juiz (não tal como imagina espontaneamente nosso intelecto, mas como ele nos é descrito na Escritura [/.
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