Comicidade e Riso - Vladimir Propp
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'O capote' de Gógol", afirmou • o d o s somos filhos de Dostoiévski. Qual o significado dessa obra para que tal colocação se justifique? Na tentativa de resposta, poder-se-ia dizer que s e trata de uma narrativa fantástica de uma personagem ao mesmo tempo trágica e ridiculamente engraçada; e, ainda, da coexistência de dois gêneros considerados incomparáveis, do ponto de vista dos valores estéticos, até a modernidade. Na análise do cômico, Propp recusa qualquer definição abstrata ou o enquadramento deste gênero como problema estético ou filosófico. A partir da coleta e da sistematização de um material totalmente heterogêneo, e servindo-se do método indutivo, o Autor procura compreender a natureza do cômico, a psicologia do riso e sua percepção.
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Vladimir Propp
COMICIDADE ERISO Tradução de Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade
editora
Atira
Editor N e l s o n d o s Reis Preparação de t e x t o Ivany P i c a s s o B a t i s t a Revisão Luiza Elena L u c h i n i Arte Edição de arte (mioio) Milton Takeda Coordenação gráfica Jorge Okura Composição/Diagramação e m vídeo Carla N a r v a e s Ricci Eliana A p a r e c i d a F e r n a n d e s S a n t o s Capa Ary N o r m a n h a
T í t u l o o r i g i n a l Probliémi Komisma i © 1976 I s k u s s t v o , M o s c o u
smiekha
ISBN 85 08 04085 7
1992 T o d o s o s d i r e i t o s reservados Editora Ática S.A. Rua Barão de Iguape, 110 — CEP 01507 Tel.: PABX (011) 278-9322 — C a i x a Postal 8656 End. T e l e g r á f i c o " B o m l i v r o " — Fax: (011) 277-4146 São P a u l o (SP)
Sumário
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Prefácio ' ! Nota dos tradutores Nota dos editores soviéticos 1. Um pouco de metodologia O riso de zombaria 2. Os diferentes aspectos do riso e o riso de zombaria 3. Onem ri e quem não ri 4. O cômico na nature7a 5. Observações iniciais 6. A nátiiima física do homem 7. A cnmicidade da semelhança 8. A cnmicidade das diferenças 9. 0 homem com aparência de animal 10. O homem-coisa 11. A ridicularização das profissões
27 31 37 .
41 45 55 59 66 73 79
12. 13. 14. 15. 16. 17. 18. 19. 20.
A paródia O exagero cômico O malogro da vontade O fazer alguém de bobo Os alogismos A mentira Os instrumentos lingüísticos da comicidade-_ Os caracteres cômicos Um no papel do outro. Muito barulho por nada Outros tipos de riso 21. O riso bom 22. O riso maldoso. O riso cínico 23. O riso alegre 24. O riso ritual . 25. O riso imoderado — 26. Considerações finais. Complementações e conclusões 27. Problemas de domínio da técnica artística Bibliografia -
84 88 93 99 107 115 119 134 144 151 159 162 164 166 170 184 212
Prefácio
Boris S c h n a i d e r m a n E s t e l i v r o d e V . I . P r o p p ( 1 8 9 5 - 1 9 7 0 ) , q u e n o s t r a z t a n t o s elementos de reflexão e nos põe em c o n t a t o com t o d o u m universo d e c u l t u r a c o m f r o n t e i r a s b e m d i f e r e n t e s d a s n o s s a s , é, a o m e s m o t e m p o , u m a o b r a m a r c a d a p e l a s c i r c u n s t â n c i a s e m q u e foi e s c r i t a . M u i t o s l e i t o r e s , p r o v a v e l m e n t e , se s e n t i r ã o r e p e l i d o s p o r c e r t a s r e f e rências a "estéticas b u r g u e s a s " , pelas citações freqüentes de L ê n i n o u p e l a d e c l a r a ç ã o e x p l í c i t a d e q u e a " a r m a d o r i s o " d e v e r i a ser colocada " a serviço do c o m u n i s m o " . Depois dos últimos acontecim e n t o s , c o m o fim d a p r ó p r i a U n i ã o S o v i é t i c a , tais e x p r e s s õ e s s o a m c o m o algo simplesmente pré-diluviano. Q u e fazer n e s t e c a s o ? N u m a n o t a p r é v i a à s e g u n d a e d i ç ã o r u s s a d a s Raízes históricas do conto de magia d e P r o p p , q u e s a i u d e p o i s d o início d a glasnost, a f o l c l o r i s t a V. I . I e r i ô m i n a , r e s p o n s á vel p e l a p u b l i c a ç ã o , e s c r e v e u : " O s r e d a t o r e s se e s f o r ç a r a m p a r a t r a tar c o m o m á x i m o de escrúpulo o texto d a primeira edição: uns p o u c o s e i n s i g n i f i c a n t e s c o r t e s f o r a m feitos u n i c a m e n t e n a q u e l a s partes d o livro q u e e r a m u m t r i b u t o à época em q u e a pesquisa veio 1
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V. I. Propp, Istorítcheskie Kórni volchébnoi grado, 1986. A primeira edição é de 1946.
skázki,
Ed. da Universidade de Lcnin-
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COMICIDADE E RISO
à l u z " . S e m d ú v i d a a l g u m a , esses c o r t e s t o r n a m a l e i t u r a m a i s s i m ples e a g r a d á v e l , m a s t e r á o e d i t o r o d i r e i t o d e i n t e r f e r i r a s s i m n o t e x t o ? A d e m a i s , às v e z e s , t o r n a - s e difícil p r e c i s a r o l i m i t e e n t r e u m a i n t e r f e r ê n c i a e x t e r n a , d e c o a ç ã o , e as c o n v i c ç õ e s d o p r ó p r i o a u t o r . P o r isto m e s m o , n a p r e s e n t e e d i ç ã o , os e d i t o r e s e a t r a d u t o r a s e g u i r a m o critéj/io d e a c o m p a n h a r p a s s o a p a s s o o o r i g i n a l . N a m i n h a o p i n i ã o , d e v e ser e s t e o c a m i n h o e m r e l a ç ã o a t o d o u m a c e r v o r i q u í s s i m o d e o b r a s t e ó r i c a s , p r o d u z i d a s e m p l e n o stalin i s m o . Se u m R o m a n J a k o b s o n p ô d e , g r a ç a s à r e s i d ê n c i a n o e x t e r i o r , ficar livre d e s s a s i n j u n ç õ e s , e l a s e s t ã o p r e s e n t e s n o s t r a b a l h o s d e M i k h a i l B a k h t i n , V i c t o r J i r m ú n s k i , B o r i s E i c h e n b a u m , V . V. V i n o g r a d o v , V i c t o r C h k l ó v s k i , S. M . E i s e n s t e i n e t a n t o s o u t r o s . E m c a d a c a s o , c a b e a o leitor s e p a r a r o j o i o d o t r i g o e s a b e r a p r e ciar a o b r a , e m b o r a ela t r a g a a m a r c a d a é p o c a e m q u e foi e l a b o r a d a . Esta posição torna-se a i n d a mais a d e q u a d a , a m e u ver, em r e l a ç ã o a P r o p p , p o i s se t r a t a d e u m p e n s a d o r m a r x i s t a . C o n f o r m e j á tive o c a s i ã o d e f r i s a r , ele f i c o u m u i t o m a r c a d o p o r u m d u p l o estigma: pertencia a o g r u p o de estudiosos que constituíram o assim c h a m a d o F o r m a l í s m o R u s s o e, a o m e s m o t e m p o , t i n h a m u i t a ligaç ã o c o m o s t r a b a l h o s d e N . I. M a r r , l i n g ü i s t a q u e p r e s s u p u n h a u m a vinculação m u i t o estreita entre o estádio de desenvolvimento d a s o c i e d a d e e a s f o r m a s q u e a s s u m i a m a l í n g u a e as d e m a i s m o d a l i d a d e s d e v i d a c u l t u r a l . P o r m a i s e s t r a n h o q u e p a r e ç a h o j e , as disc u s s õ e s e n t r e m a r r i s t a s e a n t i m a r r i s t a s f o r a m e n c e r r a d a s e m 1950, c o m a publicação de dois t r a b a l h o s assinados pelo p r ó p r i o Stálin, d e p o i s d o s q u a i s o m a r r i s m o p a s s o u a ser m a i s u m t a b u e o s m a r r i s tas caíram em desgraça. 2
Nessa é p o c a , p o r é m , a situação de P r o p p j á era m u i t o precária. Depois da interdição pura e simples d o F o r m a l i s m o Russo, os seus i n t e g r a n t e s c o n t i n u a r a m p a r t i c i p a n d o d a v i d a i n t e l e c t u a l , e m b o r a i m p e d i d o s d e p u b l i c a r t e x t o s t e ó r i c o s , a n ã o ser q u a n d o r e n e g a v a m o q u e h a v i a m r e a l i z a d o . U n s se d e d i c a r a m a e d i ç õ e s d e o b r a s clássicas, o u t r o s p u d e r a m prosseguir n a atividade d i d á t i c a , e m b o r a s o b s e v e r o c o n t r o l e . V . I. P r o p p c o n t i n u o u e n t ã o e x e r c e n d o o seu cargo de professor da Universidade de Leningrado. N o e n t a n t o , provações maiores lhe estavam reservadas. Depois q u e , e m a g o s t o d e 1946, o d i r i g e n t e p o l í t i c o A . A . J d a n o v a p r e s e n tou a o P a r t i d o u m informe em q u e atacava a orientação " l i b e r a l " de d u a s revistas de cultura de L e n i n g r a d o , desencadeou-se em t o d a
:
Prefácio de Boris Schnaidcrman a V. I. Propp, Morfologia do conto maravilhoso, tradução de Jasna Paravich Sarhan, Rio de Janeiro, Forense Universitária, 1984.
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a U n i ã o Soviética u m a c a m p a n h a c o n t r a os " d e s v i o s ideológicos", o " c o s m o p o l i t i s m o " e t c . , e q u e foi o sinal p a r a o e n d u r e c i m e n t o d o r e g i m e , u m a v o l t a a o c l i m a q u e se v i v e r a d u r a n t e o s P r o c e s s o s de M o s c o u d a d é c a d a de 30. A grande mitóloga Olga Freidenberg c o n t a e m seu d i á r i o ( p u b l i c a d o e m i n g l ê s e p r o v a v e l m e n t e i n é d i t o e m r u s s o ) q u e , e m 1948, o c o r r e u u m a s e s s ã o n o D e p a r t a m e n t o d e Filologia daquela Universidade, na qual alguns d o s n o m e s gloriosos d o s e s t u d o s soviéticos d e l i n g u a g e m f o r a m a t a c a d o s p e l o s seus " e r r o s " , isto d e p o i s d e u m a c a m p a n h a i m p l a c á v e l p e l a i m p r e n s a . Se h o u v e q u e m se p o r t a s s e c o m d i g n i d a d e , c o m o foi o c a s o d e V i c t o r J i r m ú n s k i , se B o r i s T o m a c h é v s k i sofreu e n t ã o u m a s í n c o p e , o m e s m o a c o n t e c e n d o c o m o folclorista A z a d ó v s k i , q u e foi r e t i r a d o d e m a c a , P r o p p , depois de c o n t i n u a m e n t e agredido, " p e r d e u o senso de dignid a d e q u e ele d e f e n d e r a p o r t a n t o t e m p o " . 3
T o r n a - s e difícil r e c o n s t i t u i r o q u e r e a l m e n t e a c o n t e c e u c o m ele, m a s a crise m o r a l q u e v i v e u p o d e ser c o n s t a t a d a a t é p e l o t o m d e s e u s e s c r i t o s . Se a t é 1946 h á neles m u i t a s v e z e s u m a a r g u m e n t a ç ã o m a r x i s t a e m nível e l e v a d o , a p a r t i r d a í p a s s a m a a p a r e c e r , a p a rentemente, p o b r e s concessões a u m a m b i e n t e c o r r o m p i d o e servil. E o m e s m o t o m p e r s i s t e d e p o i s q u e se i n i c i o u o " d e g e l o " d o p e r í o d o de K h r u s c h ó v . 4
É i m p r e s s i o n a n t e q u e , e m m e i o ao s o m b r i o e terrível d a vida r u s s a , e s o f r e n d o n a p e l e as v i c i s s i t u d e s d a é p o c a , ele se t e n h a d e d i c a d o a o e s t u d o d o riso e d o c ô m i c o . A s s i m c o m o M i k h a i l B a k h t i n soube erguer — em pleno terror stalinista, q u a n d o sofria perseguições t r e m e n d a s — u m verdadeiro hino à alegria, à soltura, c o m o seu e s t u d o s o b r e o " m u n d o d o r i s o " n a I d a d e M é d i a e n o R e n a s c i m e n t o , v i s t o a t r a v é s d a o b r a d e R a b e l a i s , P r o p p se d e b r u ç a s o b r e os m e s m o s p r o b l e m a s , e m b o r a c o m e s p í r i t o b e m d i f e r e n t e . 5
S e n d o e s s e n c i a l m e n t e u m e t n ó l o g o e u m l ó g i c o (pelo m e n o s n o m o d o d e a g r u p a r o s d a d o s e a r g u m e n t a r ) , ele c o n d u z a s u a p e s quisa n o sentido de estabelecer u m a tipologia d o cômico, n a base de materiais fornecidos pela literatura e pelo folclore, mas t a m b é m c o m u m b a l a n ç o c r í t i c o d o q u e j á se e s c r e v e u s o b r e esse t e m a . A p r e -
' Incluído no livro organizado por Elliott Mossman e traduzido pelo organizador e por Margaret Wettlin, The correspondence of Boris Pasternak & Olga Freidenberg, 1910-1954, San D i e g o / N e w Y o r k / L o n d o n , edição de Harcourt Brace Jovanovich, 1983. Um exemplo disso pode ser encontrado em meu prefácio citado na nota 2. Tradução brasileira de Yara Frateschi Vieira a Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de Francois Rabelais, São P a u l o , Hucitec, 1987.
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s e n t a n d o u m q u a d r o a b r a n g e n t e , ele n ã o n o s d á , p o r é m , u m e s t u d o exaustivo. Sua vasta erudição não o desviou de alguns parâmetros c l a r a m e n t e t r a ç a d o s . O s seus m a t e r i a i s s ã o p r i n c i p a l m e n t e r u s s o s , m a s há t a m b é m u m e m p r e g o sistemático de fontes a l e m ã s (aliás, P r o p p j á tinha sido professor de alemão e em sua bibliografia aparecem estudos sobre a língua alemã, m e s m o nos períodos em que se d e d i c a v a i n t e n s a m e n t e a o f o l c l o r e r u s s o ) . H á certo orgulho de pesquisador em suas afirmações de que partiu de elementos concretos e n ã o de abstrações, c o m o fizeram o u t r o s t e ó r i c o s . E , a o m e s m o t e m p o , t o r n a - s e fascinante este seu apego aos d a d o s empíricos. Chega a tratar da "terrível e total abst r a ç ã o " e dos "filosofemas m o r t o s " , encontradiços principalmente n a s f o n t e s a l e m ã s q u e ele c o n s u l t o u , e isso t r a z i n e v i t a v e l m e n t e à l e m b r a n ç a a c o n t r a p o s i ç ã o q u e M e f i s t ó f e l e s f a z , n o Fausto d e G o e t h e , e n t r e a v e r d e á r v o r e d a v i d a e o c i n z e n t o d a t e o r i a . E e s t á certamente de a c o r d o com a afirmação de P r o p p , na discussão com Lévi-Strauss, n o s e n t i d o d e q u e este p a r t i a de p r e s s u p o s t o s teóricos, e n q u a n t o ele t r a b a l h a v a s e m p r e c o m a e m p i r i a . 6
Esta fundamentação nos exemplos concretos permite-lhe muit a s vezes t r a z e r m a i s c l a r e z a à d i s c u s s ã o d e c e r t o s c o n c e i t o s d e á r e a s dificilmente delimitáveis. É o caso, entre o u t r o s , do q u e escreveu sobre a diferença entre comicidade e h u m o r (capítulo 21). S u a f a m i l i a r i d a d e c o m a b i b l i o g r a f i a a l e m ã p e r c e b e - s e facilm e n t e n a a b o r d a g e m q u e faz d e s s e t e m a n a o b r a d o s g r a n d e s f i l ó s o fos. À s vezes, até p a r a defender d e t e r m i n a d a s posições de m o m e n t o , e m f u n ç ã o d e f a t o s d o c o t i d i a n o r u s s o , vai b u s c a r s u a f u n d a m e n t a ç ã o e m K a n t , H e g e l o u G o e t h e . A s s i m , ele g a s t a m u i t a s p á g i n a s p a r a d e f e n d e r o h u m o r tout court, c o n t r a o s q u e a f i r m a v a m q u e t o d o riso d e v e r i a ser d i r i g i d o p a r a u m a f i n a l i d a d e s o c i a l . S e m d ú v i d a , neste caso, sua posição é perfeitamente correta, m a s parece estran h o q u e fosse necessário gastar t a n t a vela c o m d e f u n t o t ã o p r e c á r i o . E m t o d o c a s o , o t o m elevado p e r m i t i u a P r o p p dirigir a l g u m a s farpas, muito discretas e quase dissimuladas, contra a burocracia, perto d o final d o l i v r o , e i s t o , d e p o i s d e l e m b r a r q u e o p r ó p r i o L ê n i n se divertia c o m os p a l h a ç o s . E s e m d ú v i d a e n r i q u e c e d o r a a l e i t u r a q u e ele f a z d e m u i t a s obras literárias. A s s i m , os textos de G ó g o l são i n t e r p r e t a d o s mais de u m a vez e m função d o c ô m i c o e d o riso. Ele o vê c o m o u m e s c r i t o r e s s e n c i a l m e n t e r e a l i s t a , e m b o r a n u m livro d e 1906 V . V .
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A resposta de Propp a Lévi-Strauss está incluída no livro citado na nota 2.
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R ó z a n o v j á se t e n h a v o l t a d o c o n t r a e s t a l e i t u r a , d e f i n i d a p o r ele c o m o ingênua, apesar de plenamente consagrada, e Vladimir N a b o k o v , em seu livro s o b r e G ó g o l , t a m b é m t e n h a e s g r i m i d o c o n t r a ela ( a p r o p ó s i t o d e O capote, escreveu: " D ê e m - m e o leitor criativo; esta é u m a história p a r a e l e " ) . M a s , realista o u n ã o , f u n d a d o r o u n ã o d a "escola n a t u r a l " russa, Gógol continua desafiando o leitor, e o s flashes que P r o p p nos d á de sua obra trazem, sem dúvida, u m a contribuição valiosa. Veja-se, por exemplo, a seguinte observaç ã o : " G ó g o l n ã o foi a p e n a s u m m e s t r e d o h u m o r i s m o , m a s t a m b é m u m g r a n d e teórico, e m b o r a sejam raros os casos em q u e expõe suas t e o r i a s " ( p . 116), a p o i a d a a s e g u i r e m v á r i o s e x e m p l o s . É i n t e r e s s a n tíssimo, t a m b é m , o q u e n o s diz s o b r e os seus c a d e r n o s de n o t a s . 8
N ã o s ã o m e n o s p e n e t r a n t e s suas observações (p. 203-4) s o b r e as c o r r e ç õ e s feitas p o r O s t r ó v s k i n a p e ç a d e u m d r a m a t u r g o m e n o r , e que a transformaram n u m a comédia interessante, apenas por meio d e a l t e r a ç õ e s estilísticas. Outras afirmações do autor dão m a r g e m a muita controvérsia. P a r e c e m u i t o e s t r a n h a a s u a o b s e r v a ç ã o ( p . 35) d e q u e o r i s o e o cômico estariam "totalmente ausentes" da literatura russa antiga. É interessante observar que, n o m e s m o a n o d a publicação deste l i v r o , a p a r e c e u u m a o b r a i m p o r t a n t e , "O mundo do riso" na Rússia antiga, d e D . S. L i k h a t c h ó v e A . M . P â n t c h e n k o , n a q u a l se e s t u d a esse t e m a , n a b a s e d e u m c o n c e i t o b a k h t i n i a n o q u e se e n c o n tra n o livro sobre Rabelais e a cultura p o p u l a r n a Idade M é d i a e no Renascimento, dando-se muitos exemplos neste sentido. E m 1984, o s m e s m o s a u t o r e s p u b l i c a r a m , e m c o l a b o r a ç ã o c o m N . V . P o n i r k o , u m a ampliação do l i v r o , com o acréscimo de u m a coletânea de textos cômicos d a Rússia antiga. Seria u m a resposta àquelas afirmações de P r o p p ? 9
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Outras asserções, e m b o r a n ã o derivem diretamente de imposiç õ e s p o l í t i c a s , r e s u l t a m c l a r a m e n t e d o c l i m a q u e se c r i o u n a R ú s s i a no período stalinista. Assim, c o m freqüência aparece u m moralisrno q u e s o a e s t r a n h o n o O c i d e n t e , c o m o a a f i r m a ç ã o , n o final d o c a p í -
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V. V. Rózanov, O Gógole [Sobre Gógol], republicado em fac-símile por Prideaux Press', Letch Worth, Herts, 1970. Vladimir Nabokov, Nikolai Gogol, Norfolk, Connecticut, New Directions B o o k s , 1944. D. S. Likhatchóv e A . M. Pântchenko, "Smiekhovói mir" driévniei Russi, Leningrado, Ed. Naúka (Ciência), 1976. D. S. Likhatchóv, A . M. Pântchenko e N . V. Ponirko, Smiekh v driévniei Russi [O riso na Rússia antiga], Leningrado, Ed. Naúka, 1984.
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tulo 22, de q u e o cômico ligado à maldade " n ã o tem n a d a em c o m u m c o m a a r t e " . N e s t e c a s o , c o m o fica o f a m o s o c o n t o Max e Moritz d e W i l h e l m B u s c h , c i t a d o a n t e s p e l o a u t o r , s e m n e n h u m a r e s s a l v a n e s t e s e n t i d o ? E o m e s m o t i p o d e m o r a l i s m o faz c o m q u e a f i r m e n o c a p í t u l o 2 5 s e r difícil, h o j e e m d i a , " p e r c e b e r R a b e l a i s de m o d o totalmente positivo". M u i t a s outras afirmações d o livro m e parecem c o m p l e t a m e n t e discutíveis, p a r t i c u l a r m e n t e a sua a b o r d a g e m d a p a r ó d i a (capítulo 12), q u e é v i s t a s e m p r e p o r ele c o m o u m a o b r a q u e r e b a i x a o t o m d a q u e l a q u e é p a r o d i a d a . O r a , neste caso, o que dizer de Doutor Fausto de T h o m a s M a n n , que é claramente a paródia trágica de uma tragédia ? 1 1
A p e s a r d e t u d o isso, trata-se d e u m livro i m p o r t a n t e e q u e n o s f a z i a f a l t a . Se a s u a Morfologia do conto maravilhoso deu marg e m , n a d é c a d a d e 1960, a u m a v a s t a d i s c u s s ã o n o O c i d e n t e , e q u e r e p e r c u t i u e m n o s s o m e i o ; se a l g u n s c o n h e c e m , e m t r a d u ç õ e s o c i d e n t a i s , a s Raízes históricas dos contos de magia; se Édipo à luz do folclore e As transformações dos contos de magia j á e x i s t e m t a m b é m e m p o r t u g u ê s , falta a i n d a c o n h e c e r m e l h o r o c o n j u n t o d a o b r a d e s t e i m p o r t a n t e t e ó r i c o . N a R ú s s i a , os seus t r a b a l h o s s ó c o m e ç a r a m a s a i r d o o s t r a c i s m o a p a r t i r d e fins d a d é c a d a d e 1 9 6 0 . E isto c e r t a m e n t e explica o a t r a s o c o m q u e estão s e n d o divulgados no Ocidente. 1 2
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N o prefácio à seleção de textos de Oswald de Andrade, da coleção "Nossos Clássicos", Rio de Janeiro, Agir, 1967, Haroldo de Campos trata da paródia em sua acepção etimológica de "canto paralelo" e não apenas no sentido de imitação burlesca. V. I. Propp, Édipo à luz do folclore, Porto Alegre, Mercado Aberto; e V. I. Propp, " A s transformações dos contos de magia", in Dionísio de Oliveira Toledo, org. Teoria da literatura — formalistas russos, Porto Alegre, G l o b o , 1973.
Nota dos tradutores
A presente t r a d u ç ã o baseia-se n o texto original em russo de V . I . P r o p p Probliémi Komisma i smiekha (Moscou, Ed. Iskusstvo, 1976) e c o n t o u c o m a c o l a b o r a ç ã o d o s s e g u i n t e s a l u n o s d o C u r s o de Especialização em R u s s o da F a c u l d a d e d e Filosofia, Letras e Ciências H u m a n a s da Universidade de São P a u l o : Áurea Maria Corsi, Jaqueline Ramos, Lenina Pomeranz, Paula C. Lapolla, Lucy E i k o S o n o k i , José R o b e r t o M . d a Silva, Luiz Baggio N e t o . O sistema utilizado para a transliteração de nomes e palavras r u s s o s o b e d e c e às r e g r a s g e r a i s d e p r o n ú n c i a d a l í n g u a o r i g i n a l . N ã o se o p t o u p e l o s i s t e m a d e t r a n s l i t e r a ç ã o i n t e r n a c i o n a l , u m a v e z que m u i t a s dessas palavras, n o m e s principalmente, j á possuem u m a forma consagrada em português por outras traduções do russo. A t r a d u ç ã o das passagens citadas pelo A u t o r é da responsabil i d a d e d o s t r a d u t o r e s , e x c e ç ã o feita a o s c a s o s e m q u e as o b r a s r u s sas e m q u e s t ã o j á t e n h a m s i d o t r a d u z i d a s p a r a o p o r t u g u ê s . Q u a n d o isso o c o r r e , a s i n d i c a ç õ e s b i b l i o g r á f i c a s c o r r e s p o n d e n t e s s ã o f o r n e cidas em n o t a s . F i n a l m e n t e , as n o t a s d o s t r a d u t o r e s e n c o n t r a m - s e n u m e r a d a s , a o p a s s o q u e as d o A u t o r s ã o a s s i n a l a d a s p o r a s t e r i s c o s .
Nota dos editores soviéticos
Vladimir Iákovlevitch P r o p p (29/4/1895-22/8/1970), famoso f i l ó l o g o s o v i é t i c o , l e c i o n o u n a U n i v e r s i d a d e d e L e n i n g r a d o d e 1938 a t é o final d e s u a v i d a . O s t r a b a l h o s m a i s i m p o r t a n t e s d e V . I . P r o p p são dedicados aos problemas de teoria e história d o folclore. E m o b r a s c o m o Morfologia do conto maravilhoso (1928, 2 . ed. 1969) e As raízes históricas dos contos maravilhosos (1946) ele e s t u d o u a e s t r u t u r a , a g ê n e s e e as p r i m e i r a s e t a p a s d a h i s t ó r i a d o l e g a d o i n d o - e u r o p e u r e f e r e n t e a o c o n t o m a r a v i l h o s o . A Morfologia do conto maravilhoso, q u e a b r i a perspectivas a m p l a s n a análise desse g ê n e r o e, e m g e r a l , d a a r t e n a r r a t i v a , a d i a n t o u - s e m u i t o às i n d a g a ções análogas realizadas no Ocidente e constituiu o p o n t o de partida p a r a u m a n o v a orientação no estudo do folclore n a r r a t i v o . São d a a u t o r i a d e P r o p p t a m b é m as p e s q u i s a s h i s t ó r i c o - c o m p a r a t i v a s f u n d a m e n t a i s s o b r e a s bilinas , o folclore ritual e o u t r o s a s p e c t o s d o g ê n e r o f o l c l ó r i c o (O epos heróico russo, 1 9 5 5 , 2 . e d . 1958; Festas agrárias russas, 1 9 6 3 , e o u t r o s ) . V . I. P r o p p i n t e r e s s o u - s e t a m b é m pela análise do folclore especificamente literário e n q u a n t o arte e pelas particularidades de sua relação com a realidade. 1
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Existe tradução brasileira, de Jasna P. Sarhan, publicada pela Ed. Forense Universitária. Cantos épicos russos, em geral sobre as gestas dos bogatíri, heróis tradicionais do folclore russo.
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Este n o v o t r a b a l h o de P r o p p sobre o cômico, q u e levamos agora ao c o n h e c i m e n t o dos leitores, constitui a última o b r a , em muitos aspectos inacabada, d a p r o d u ç ã o d o A u t o r . Ele concentra aqui sua atenção sobre a definição da especificidade d o cômico, d a psicologia d o riso e a percepção d o c ô m i c o . É p r e c i s o l e v a r e m c o n t a q u e V . I. P r o p p d e s e n v o l v e s u a a n á lise b a s e a d o e m g r a n d e q u a n t i d a d e d e m a t e r i a l l i t e r á r i o e f o l c l ó r i c o p r ó x i m o d o â m b i t o d e seus interesses, sem atribuir u m a a t e n ç ã o especial à c a t e g o r i a d o c ô m i c o e n q u a n t o c a t e g o r i a f i l o s ó f i c a e s t é t i c a . M e s m o assim, o editor achou necessário publicar o último trabalho desse eminente filólogo soviético. O p r o b l e m a d o c ô m i c o tal c o m o ele se a p r e s e n t a h o j e e m d i a à l u z d a e s t é t i c a m a r x i s t a - l e n i n i s t a exige u m e s t u d o ulterior e a r t i c u l a d o , p a r a o q u a l esta o b r a de P r o p p parece-nos fornecer u m a contribuição fundamental.
1 Um pouco de metodologia
À primeira vista, u m l e v a n t a m e n t o s u m á r i o das teorias correntes s o b r e a c o m i c i d a d e o f e r e c e u m q u a d r o n ã o m u i t o s a t i s f a t ó r i o . Involuntariamente surge a questão: é realmente necessária u m a teor i a ? H o u v e m u i t a s t e o r i a s . V a l e a p e n a a c r e s c e n t a r m a i s u m a às i n ú m e r a s j á existentes? Q u e m sabe tal teoria n ã o passe de u m j o g o d o intelecto, u m a escolástica m o r t a , u m filosofema inútil p a r a a vida? À p r i m e i r a vista, o ceticismo pareceria ter certo f u n d a m e n t o . C o m efeito, g r a n d e s h u m o r i s t a s e satíricos saíram-se m u i t o b e m s e m qualquer teoria. Dispensam-na t a m b é m humoristas profissionais c o n t e m p o r â n e o s , escritores, h o m e n s d e t e a t r o , d e c i n e m a , de t e a t r o d e v a r i e d a d e s , d e c i r c o . E n t r e t a n t o , i s t o a i n d a n ã o significa q u e a teoria n ã o seja necessária. A t e o r i a é necessária em q u a l q u e r c a m p o d o c o n h e c i m e n t o h u m a n o . N e n h u m a ciência p o d e dispensá-la e m nossos dias. A teoria tem antes de mais n a d a u m a importância cognoscitiva e o c o n h e c i m e n t o dela constitui, de u m m o d o geral, u m dos elementos d a c o n c e p ç ã o científica d o m u n d o . A falha primeira e f u n d a m e n t a l de t o d a s as teorias existentes ( p a r t i c u l a r m e n t e as a l e m ã s ) é s u a t e r r í v e l e t o t a l a b s t r a ç ã o . C r i a m se t e o r i a s s e m q u a l q u e r r e l a ç ã o c o m a r e a l i d a d e . N a m a i o r i a d o s c a s o s e l a s r e a l m e n t e r e p r e s e n t a m f i l o s o f e m a s m o r t o s , e, a l é m d o m a i s , expostas de f o r m a t ã o c o m p l e x a q u e às vezes torna-se sim-
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plesmente impossível entendê-las. Esses t r a b a l h o s n ã o p a s s a m de m e r o s r a c i o c í n i o s , o n d e às v e z e s e m p á g i n a s i n t e i r a s o u e m a l g u m a s d e z e n a s d e l a s n ã o se a p r e s e n t a f a t o a l g u m . O s f a t o s s ã o r a r a mente introduzidos, apenas c o m o ilustrações das teorias abstratas q u e e s t ã o s e n d o e x p o s t a s ; e, a l é m d i s s o , e s c o l h e m - s e f a t o s q u e p a r e c e m c o n f i r m a r as t e s e s a p r e s e n t a d a s ; p o r é m , s o b r e o s f a t o s q u e n ã o as c o n f i r m a m , guarda-se silêncio, os autores n e m sequer os n o t a m . D e v e m o s r e s o l v e r a q u e s t ã o d a s r e l a ç õ e s e n t r e a t e o r i a e os f a t o s d e m o d o d i f e r e n t e d o q u e t e m s i d o feito a t é a q u i . S u a b a s e d e v e ser u m e s t u d o s é r i o e i m p a r c i a l d o s f a t o s e n ã o e l u c u b r a ç õ e s a b s t r a t a s , p o r m a i s i n t e r e s s a n t e s e a t r a e n t e s q u e eles v e n h a m a ser enquanto tais. E m q u a l q u e r pesquisa, o m é t o d o p o d e ter u m a i m p o r t â n c i a decisiva. N a história de nosso a r g u m e n t o , o m é t o d o , n a m a i o r i a a b s o l u t a d o s c a s o s , c o n s i s t i a e m d e f i n i r a priori a natureza do c ô m i c o n o q u a d r o d o s s i s t e m a s f i l o s ó f i c o s a q u é se a t i n h a m s e u s autores. Estes p a r t i a m de algumas hipóteses p a r a as quais colhiam e x e m p l o s , q u e d e v e r i a m i l u s t r a r e d e m o n s t r a r as p r ó p r i a s h i p ó t e s e s . E s t e é o m é t o d o d e d u t i v o . E l e é p o s s í v e l e se j u s t i f i c a n o s c a s o s e m que os fatos são insuficientes, e m q u e são p o u c o s p o r sua natur e z a , q u a n d o n ã o se p o d e o b s e r v á - l o s d i r e t a m e n t e e q u a n d o n ã o são passíveis de explicação p o r o u t r o c a m i n h o . M a s h á o u t r o m é t o d o q u e n ã o p a r t e de hipóteses, e sim de u m cuidadoso estudo c o m p a r a t i v o e de u m a análise dos fatos p a r a chegar a conclusões apoiadas nos próprios fatos. Este é o m é t o d o i n d u t i v o . A m a i o r i a d a s c i ê n c i a s c o n t e m p o r â n e a s n ã o p o d e ser c o n s truída apenas c o m base na f o r m u l a ç ã o de hipóteses. O n d e os fatos o p e r m i t e m , d e v e - s e a d o t a r o m é t o d o i n d u t i v o . S o m e n t e ele p e r mite u m estabelecimento confiável de verdades. A n t e s d e t u d o , foi n e c e s s á r i o , s e m d e s p r e z a r n a d a , s e m realizar qualquer seleção, reunir e sistematizar o material. Foi necessário levar em c o n t a t u d o aquilo q u e p r o v o c a o riso o u o s o r r i s o , t u d o o q u e , a i n d a q u e r e m o t a m e n t e , se r e l a c i o n a a o domínio da comicidade. O presente t r a b a l h o é b a s i c a m e n t e u m t r a b a l h o de ciência da literatura. P o r isso, e m primeiro lugar estudou-se a o b r a de escritores. C o m e ç a m o s o estudo c o m as mais conhecidas e talentosas expressões d o h u m o r e da c o m i c i d a d e , m a s t a m b é m tivemos que levar em c o n s i d e r a ç ã o manifestações menores e de p o u c o sucesso. F o r a m e s t u d a d o s sobretudo os clássicos russos. A s o b r a s d e Gógol revelaram-se u m grande tesouro. Gógol surgiu aos nossos olhos
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c o m o o m a i o r dos h u m o r i s t a s e satíricos de t o d o s os t e m p o s , deix a n d o b e m p a r a t r á s t o d o s os d e m a i s m e s t r e s r u s s o s e n ã o r u s s o s . P o r isso o l e i t o r n ã o d e v e s u r p r e e n d e r - s e c o m o f a t o d e t a n t o s e x e m plos terem sido extraídos das obras de Gógol. M a s n ã o nos limitam o s a G ó g o l . F o i n e c e s s á r i o e x a m i n a r a o b r a d e u m a série d e o u t r o s escritores do passado e do presente. Atraiu-nos t a m b é m a criação p o p u l a r , o folclore. E m alguns casos, o h u m o r d o folclore envolve a l g u m a s particularidades específicas que o d i s t i n g u e m d o h u m o r dos escritores profissionais. C o m maior freqüência, entretanto, é j u s t a m e n t e a arte p o p u l a r q u e oferece u m m a t e r i a l evidente e signif i c a t i v o q u e n ã o p o d e d e m o d o a l g u m ser i g n o r a d o . P a r a resolver o p r o b l e m a d a comicidade n ã o p o d e m o s nos limitar à o b r a d o s clássicos e aos m e l h o r e s e x e m p l o s d o folclore. Foi necessário conhecer a p r o d u ç ã o corrente d a s revistas h u m o r í s t i cas e satíricas, incluindo-se os folhetins p u b l i c a d o s em j o r n a i s . A s revistas e a i m p r e n s a refletem a vida cotidiana, q u e , c o m o a arte, está d e n t r o d o â m b i t o de nossa a t e n t a pesquisa. Foi indispensável l e v a r e m c o n s i d e r a ç ã o n ã o a p e n a s as o b r a s e s t r i t a m e n t e l i t e r á r i a s c o m o t a m b é m o circo, o teatro de variedades, a c o m é d i a cinematográfica e as conversas ouvidas em diferentes lugares... U m teórico experiente perceberá de i m e d i a t o q u e n ã o dividim o s os fatos em fatos referentes e n ã o referentes à estética. U t i l i z a m o s o m a t e r i a l r e u n i d o t a l c o m o ele se a p r e s e n t a : a relaç ã o e n t r e os f e n ô m e n o s d a e s t é t i c a e os f e n ô m e n o s d a v i d a foi e x a minada posteriormente, após o estudo do material. O m é t o d o da pesquisa indutiva, baseado na elaboração dos fatos, permite evitar a a b s t r a ç ã o e suas conseqüências, t ã o características d a m a i o r i a d a s e s t é t i c a s d o s é c u l o X I X e i n í c i o d o X X . O p r o b l e m a d o s d i f e r e n t e s a s p e c t o s d o r i s o e d e c o m o seja p o s s í v e l r e a l m e n t e classificá-los s e r á c o l o c a d o m a i s a d i a n t e (veja-se a s e g u n d a parte d o livro). É b a s t a n t e evidente a impossibilidade de a p r e s e n t a r neste livro t o d o o m a t e r i a l e x a m i n a d o , m a s isso n e m sequer é necessário. A s c a t e g o r i a s r e s u l t a n t e s p o d e m ser i l u s t r a d a s a p e n a s p o r e x e m p l o s escolhidos. N o q u e diz respeito à e x p o s i ç ã o , o m é t o d o a seguir será s e m e l h a n t e a o s q u e f o r a m a d o t a d o s p o r o u t r e m , m a s n o q u e se refere à e s s ê n c i a d a p e s q u i s a ele é c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n t e . S ã o os exemplos que m o s t r a m quais fatos e quais categorias de fatos levam a uma determinada conclusão. A a b s t r a ç ã o n ã o é o único defeito das teorias existentes. H á o u t r a s f a l h a s q u e é p r e c i s o e s c l a r e c e r p a r a q u e p o s s a m ser e v i t a d a s .
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U m a delas consiste n o fato de q u e os princípios básicos t o m a d o s c o m o v e r d a d e i r o s p e l o s a u t o r e s p r e c e d e n t e s c o n t i n u a m s e n d o aceitos c o m o verdadeiros sem serem s u b m e t i d o s a n e n h u m a verificação. U m desses p r i n c í p i o s é a j u s t a p o s i ç ã o d e c ô m i c o , t r á g i c o e s u b l i m e , s e n d o q u e as c o n c l u s õ e s o b t i d a s a p a r t i r d o e s t u d o d o t r á g i c o o u d o sublime são aplicadas inversamente ao cômico, c o m o que com sinal t r o c a d o . P a r a Aristóteles era n a t u r a l , a o t r a t a r da definição d a essência d a c o m é d i a , p a r t i r d a t r a g é d i a c o m o seu o p o s t o , p o i s , n a p r á t i c a e na consciência dos antigos gregos, justamente a tragédia tinha um significado prioritário. Q u a n d o , p o r é m , esta c o n t r a p o s i ç ã o contin u a a ser l e v a d a a d i a n t e n a s e s t é t i c a s d o s s é c u l o s X I X - X X , ela se revela m o r t a e a b s t r a t a . P a r a a estética d o idealismo r o m â n t i c o era n a t u r a l f u n d a m e n t a r q u a l q u e r teoria estética n o sublime e n o belo e opor-lhe o cômico c o m o algo baixo e contrário ao sublime. Cont r a essa i n t e r p r e t a ç ã o j á se i n s u r g i r a B e l í n s k i , q u e , c o n f o r m e v i m o s , tivera ocasião de m o s t r a r , c o m o exemplo de Gógol, a g r a n d e import â n c i a q u e j u s t a m e n t e o c ô m i c o p o d e vir a t e r n a a r t e e n a v i d a s o c i a l . P o r é m , essa i n t u i ç ã o d e B e l í n s k i n ã o foi r e t o m a d a p o r o u t r o s ; c o n t i n u o u - s e a a c r e d i t a r n o f a t o d e q u e o c ô m i c o se o p õ e a o elev a d o e a o trágico c o m o um princípio sem necessidade de demonstraç ã o . Dúvidas q u a n t o à verdade desta c o n t r a p o s i ç ã o já h a v i a m sido expressas pela estética positivista a l e m ã d o século X I X . A s s i m , Volkelt escrevia: " O c ô m i c o é e x a m i n a d o n o â m b i t o d a estética, s e g u n d o u m p o n t o de vista c o m p l e t a m e n t e diferente d a q u e l e d o t r á g i c o " ; " O cômico n ã o é absolutamente u m elemento o p o s t o a o trágico, e m b o r a n ã o p o s s a ser i n s e r i d o n a m e s m a série d e f e n ô m e n o s a o s q u a i s p e r t e n c e t a m b é m o t r á g i c o [...] Se existe a l g o o p o s t o a o c ô m i c o , é o n ã o - c ô m i c o , o s é r i o " ( 5 5 , 3 4 1 , 343)*. E l e diz o m e s m o d o sublime. E s t a idéia, q u e o u t r o s t a m b é m e x p r e s s a r a m , é sem d ú v i d a c o r r e t a e p r o f í c u a . O c ô m i c o d e v e ser e s t u d a d o , a n t e s d e m a i s n a d a , por si e enquanto tal. E m q u e , d e f a t o , a s d i v e r t i d a s novelas d e B o c c a c c i o , o u A carruagem d e G ó g o l , o u Sobrenome cavalar d e T c h é k h o v s ã o o c o n t r á r i o d o t r á g i c o ? E l a s s i m p l e s m e n t e n a d a t ê m a ver c o m o t r á g i c o , e s t ã o f o r a d e seu d o m í n i o . E m a i s a i n d a : h á casos de o b r a s q u e , a p e s a r d e c ô m i c a s pelo estilo e pelo 1
* Aqui e adiante o primeiro número entre parênteses corresponde à obra citada na bibliografia final, o algarismo romano, quando houver, indica o volume da obra em questão, e os últimos números, as páginas. Há tradução brasileira de Tatiana Belinky em Contos da velha Rússia. Rio de Janeiro, Edições de Ouro, 1966. p. 117-22. 1
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m o d o c o m o são elaboradas, são trágicas p o r seu c o n t e ú d o . U m exemplo disso s ã o o Diário de um louco o u O capote de Gógol. A contraposição d o c ô m i c o a o trágico e a o sublime n ã o revela a n a t u r e z a d a c o m i c i d a d e e m s u a especificidade, s e n d o q u e é este justamente o nosso objetivo. T e n t a r e m o s d a r u m a definição d a comicidade sem n o s preocuparmos c o m o trágico o u c o m o sublime, mas p r o c u r a n d o c o m p r e e n d e r e definir o c ô m i c o e n q u a n t o tal. N o s c a s o s e m q u e , p o r u m a r a z ã o o u o u t r a , o c ô m i c o tiver r e l a ç ã o c o m o t r á g i c o , isso s e r á l e v a d o e m c o n s i d e r a ç ã o , m a s n ã o s e r á e s t e o nosso p o n t o de partida. 2
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A falta d e c o n c e i t u a ç ã o d a especificidade d o cômico constitui o o u t r o d e f e i t o , p o r a s s i m d i z e r quase constante d a maioria dos trat a d o s . Diz-se, p o r e x e m p l o , q u e s ã o c ô m i c o s os defeitos d a s pess o a s . C l a r o e s t á , c o n t u d o , q u e esses d e f e i t o s p o d e m ser o u n ã o s e r a b s o l u t a m e n t e c ô m i c o s . D e v e a i n d a ser e s t a b e l e c i d o e m q u e c o n d i ções e e m q u e casos quais defeitos serão o u n ã o ridículos. A exigência p o d e s e r g e n e r a l i z a d a , d i z e n d o - s e : d i a n t e d e q u a l q u e r f a t o o u caso q u e suscite o riso, o p e s q u i s a d o r deve, a c a d a vez, colocar-se a q u e s t ã o d o caráter específico o u n ã o específico d o f e n ô m e n o e m e x a m e , e d e s u a s c a u s a s . E m a l g u n s c a s o s esse p r o b l e m a foi c o l o c a d o t a m b é m n o p a s s a d o , m a s n ã o n a g r a n d e m a i o r i a d a s vezes. J á foi r e f e r i d o a n t e r i o r m e n t e o e x e m p l o d e d e f i n i ç õ e s d o c ô m i c o q u e se d e m o n s t r a r a m d e m a s i a d o a m p l a s : e l a s a b a r c a m t a m b é m fenômenos q u e nada têm a ver c o m o cômico. Filósofos dos mais i m p o r t a n t e s i n c o r r e r a m nesse e r r o . Assim, p o r e x e m p l o , S c h o p e n hauer afirmava q u e o riso surge q u a n d o , de repente, descobrimos q u e o s o b j e t o s reais d o m u n d o à n o s s a v o l t a n ã o c o r r e s p o n d e m a o s c o n c e i t o s e à s r e p r e s e n t a ç õ e s q u e deles f a z e m o s . E l e t i n h a e m m e n t e , é c l a r o , casos e m q u e esta falta d e c o r r e s p o n d ê n c i a p r o v o c a v a realm e n t e o riso. Deixa de dizer, p o r é m , q u e n e m s e m p r e essa falta de c o r r e s p o n d ê n c i a é c ô m i c a : q u a n d o , p o r e x e m p l o , u m cientista realiza u m a d e s c o b e r t a q u e m u d a c o m p l e t a m e n t e a i d é i a q u e t e m d e seu o b j e t o d e e s t u d o s , q u a n d o ele se d á c o n t a d o e r r o e m q u e i n c o r r e r a a t é e n t ã o , a d e s c o b e r t a d e s s e e q u í v o c o (a " f a l t a d e c o r r e s p o n dência entre o m u n d o à n o s s a volta e os conceitos q u e t e m o s d e l e " ) l o c a l i z a - s e fora d o d o m í n i o d o c ô m i c o . N ã o r e c o r r e r e m o s a o u t r o s e x e m p l o s . D i s s o d e c o r r e p a r a n ó s u m p o s t u l a d o m e t o d o l ó g i c o : em
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T r a d u ç ã o brasileira ( i n d i r e t a ) c m Contos russos. S ã o P a u l o , l í d i m a ! ' , s.cl. p . M 5 2 . (Col. Primores d o ('onto l Iniveisal, l \ ) . H á t r n d u ç A o b n i s i l e i i a ( i n d i r e t a ) d e ViiuVius d e M o i n e s e m O livro de holsO ttúí contos
rifv.viM
K m d e l a n e i i o , I diçOes d e < l i n o , s >l |> *>f> HO
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C Q M 1 C I D A D 1 [ RISO
cada caso isolado é p r e c i s o e s t a b e l e c e r a e s p e c i f i c i d a d e d o c ô m i c o , c p r e c i s o verificar e m q u e g r a u e e m q u e c o n d i ç õ e s u m m e s m o f e n ô m e n o possui,.sempre ou n ã o , os traços d a comicidade. H á outros d e f e i t o s a i n d a c o n t r a o s q u a i s c p r e c i s o se p r e c a v e r , p a r a n ã o repeti-los. A n a l i s a n d o o s t r a b a l h o s s o b r e e s t é t i c a , é possível verificar que eles s ã o p e r p a s s a d o s p e l a idéia d e q u e o c ô m i c o se baseia na contradição entre forma e conteúdo. O problema da forma e d o c o n t e ú d o t a m b é m d e v e ser c o l o c a d o , m a s isso s ó p o d e ser resolv i d o depois do e s t u d o d e fato d o m a t e r i a l e não antes. U m a vez a n a l i s a d o o material, será n e c e s s á r i o v o l t a r a este p r o b l e m a e e n c o n t r a r u m a s a í d a para a q u e l a c o n f u s ã o t ã o c a r a c t e r í s t i c a d a s estéticas d e n o s s o s d i a s . S o m e n t e à luz d e m a t e r i a i s c o n c r e t o s e n ã o c o m b a s e e m c o n s t r u ç õ e s a p r i o r í s t i c a s s e r á possível decidir se r e a l m e n t e existe a l g u m t i p o dç c o n t r a d i ç ã o n a b a s e d o c ô m i c o . E , c a s o se d e s c u b r a q u e assim é, se d e v e r á e n t ã o e s t a b e l e c e r se essa c o n t r a d i ç ã o q u e existe se d á e n t r e forma e c o n t e ú d o o u e m o u t r a coisa q u a l q u e r . Até agora falamos principalmente de u m único p r o b l e m a , ou seja, d a definição d a essência d a c o m i c i d a d e . Pois b e m , este p r o blema é fundamental, mas não é d e m o d o algum o único. H á muit o s o u t r o s p r o b l e m a s l i g a d o s à q u e s t ã o d o riso e d a c o m i c i d a d e . P o r e n q u a n t o , c o m e ç a r e m o s p o r destacar e analisar u m deles, porq u e nos parece indispensável verificar a própria m e t o d o l o g i a antes de nos a p r o f u n d a r m o s no exame d o material. Trata-se d a teoria, ainda n ã o a b o r d a d a aqui mas muito import a n t e , dos dois aspectos diversos e opostos da comicidade. M u i t a s estéticas b u r g u e s a s a f i r m a m que existem dois aspectos d e c o m i c i d a d e ; a c o m i c i d a d e d e o r d e m s u p e r i o r c a d e o r d e m inferior. N a definição d o cômico figuram exclusivamente conceitos negativos: o cômico é algo baixo, insignificante, infinitamente p e q u e n o , m a t e r i a l , é o c o r p o , é a l e t r a , é a f o r m a , é a falta d e i d é i a s , é a a p a rência em sus falta de c o r r e s p o n d ê n c i a , é a c o n t r a d i ç ã o , é o cont r a s t e , é o conflito, é a o p o s i ç ã o a o sublime, a o e l e v a d o , a o ideal, a o e s p i r i t u a l Qtc. e t c . A e s c o l h a d o s e p í t e t o s n e g a t i v o s q u e e n v o l v e m o c o n c e i t o d e c ô m i c o , a o p o s i ç ã o d o c ô m i c o e d o s u b l i m e , d o elev a d o , d o b e l o , d o ideal e t c , expressa certa a t i t u d e negativa p a r a c o m o riso e p a r a c o m o c ô m i c o e m geral e até certo desprezo. Tal a t i t u d e d e p r e c i a t i v a m a n i f e s t a - s e m u i t o c l a r a m e n t e e m filósofos idea/ - t t s f a ^ e m n o S c h o p e n h a u e r , Hegel, Vischer e o u t r o s . f ^ A q u i n ã o se t r a t a a i n d a d a t e o r i a d o s d o i s a s p e c t o s d o c ô m i c o : t r a t a - s e t a o - s o m e n t e de unia a t i t u d e n e g a t i v a p a r a c o m a c o m i c i d a d e em^gerai, e n q u a n t o tal. A teoria dos dois aspectos d o c ô m i c o
UM POUCO DE METODOLOGIA
— alto e baixo — surge n o século X I X . Nas poéticas daquele século afirma-se c o m freqüência q u e n e m todo o â m b i t o do cômico repres e n t a o b r i g a t o r i a m e n t e a l g o d e b a i x o , m a s q u e é c o m o se ele tivesse d o i s a s p e c t o s : u m deles r e l a c i o n a d o c o m o d o m í n i o d a e s t é t i c a , e n t e n d i d a c o m o a c i ê n c i a d o b e l o , e o o u t r o , q u e fica f o r a d o d o m í n i o d a e s t é t i c a e d o b e l o e se a p r e s e n t a c o m o a l g o d e m u i t o b a i x o . D e f i n i ç õ e s t e ó r i c a s d a q u i l o q u e se e n t e n d e p o r " c ô m i c o b a i x o " n ã o costuma haver, mas q u a n d o existem são m u i t o insatisfatór i a s . U m d o s d e f e n s o r e s d e s s a t e o r i a foi K i r c h m a n n . E l e d i v i d e todo o domínio do cômico em "cômico-fino" e "cômico-grosseiro". A comicidade, segundo sua teoria, tem sempre c o m o causa alguma a ç ã o i n s e n s a t a o u a b s u r d a . " S e o a b s u r d o c o m p a r e c e e m g r a u elev a d o [...] e n t ã o o c ô m i c o é g r o s s e i r o , se o a b s u r d o for m e n o s e x p l í c i t o [...] e n t ã o o c ô m i c o é f i n o " ( 5 0 , I I , 4 6 - 7 ) . O c a r á t e r i l ó g i c o e a i n c o n s i s t ê n c i a d e tal d e f i n i ç ã o s ã o m a i s do que patentes. E m lugar de distinções precisas é d a d a u m a gradação indefinida. Mais freqüentemente a natureza da comicidade "grosseira" n ã o é nem sequer definida. E m lugar da definição são dados tãos o m e n t e e x e m p l o s . A s s i m , V o l k e l t r e c o n d u z a esse c o n c e i t o t u d o o q u e está ligado ao c o r p o h u m a n o e às suas tendências n a t u r a i s . " A g u l a , a b e b e d e i r a , o s u o r , a e x p e c t o r a ç ã o , a e r u e t a ç ã o [...] t u d o a q u i l o q u e se r e f e r e à e x p u l s ã o d a u r i n a e d a s f e z e s " e t c . E l e n ã o reflete s o b r e e m q u e c a s o s t u d o isso é c ô m i c o o u n ã o . T a l c o m i c i d a d e — pensa Volkelt — é setor preferencial d a literatura p o p u l a r , e m b o r a se e n c o n t r e t a m b é m e m o u t r o s e s c r i t o r e s . S h a k e s p e a r e , p o r e x e m p l o , é m u i t o rico neste tipo de comicidade: " D e u m a m a n e i r a geral, Shakespeare, mais do que qualquer o u t r o poeta, reúne uma dissolução animalesca a u m a licenciosidade repleta de h u m o r " (55, I, 4 0 9 - 1 0 ) . D o o u t r o l a d o e s t ã o as c o m é d i a s finas r e q u i n t a d a s , r e b u s c a d a s . C o m o e x e m p l o d e c o m é d i a s d o t i p o ele se r e f e r e à p e ç a d e S c r i b e , Um copo de água, o n d e se e n t u s i a s m a p e l o d i á l o g o r e f i n a d o e espirituoso e n t r e o d u q u e B o l i n g b r o k e e a d u q u e s a de M a r l b o r o u g h . U m a comicidade desse tipo n ã o suscita u m riso vulgar, m a s u m sorriso sutil. O u t r o s t e ó r i c o s e s t a b e l e c e m as f o r m a s d o " c ô m i c o - b a i x o " e r e m e t e m a e s t e a s p e c t o d a c o m i c i d a d e t o d o s o s t i p o s de f a r s a , d e p a l h a ç a d a , d e e s p e t á c u l o c i r c e n s e e t c . E m seu l i v r o d e c o n t o s h u m o r í s t i c o s , L e a c o c k e s c r e v e : " N ã o se t r a t a d e u m r i s o p a r o x í s t i c o p r o v o c a d o pelas caretas de u m p a l h a ç o salpicado de farinha o u sujo d e f u l i g e m q u e se a p r e s e n t a n o p a l c o d e u m m i s e r á v e l t e a t r o d e
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C O M I C I D A D E E RISO
variedades, mas de u m h u m o r i s m o realmente grande, que ilumina e eleva n o s s a l i t e r a t u r a , n o m e l h o r d o s c a s o s u m a v e z , o u n o m á x i m o d u a s vezes a c a d a s é c u l o " . A o s t i p o s d e c o m i c i d a d e " v u l g a r " , " b a i x a " ou " e x t e r i o r " atribuem-se, n a m a i o r i a dos casos, elementos b u r l e s c o s c o m o n a r i z e s v e r m e l h o s , b a r r i g a s g r a n d e s , c o n t o r ç õ e s verbais, brigas e pelejas, vigarices e t c . Será que p o d e m o s nos ater a essa teoria, p o d e m o s começar p o r aí p a r a o r g a n i z a r e e s t u d a r n o s s o m a t e r i a l ? N ã o p a r t i r e m o s d e s s a teoria, pois teríamos q u e descartar c o m o " c ô m i c o - b a i x o " u m a parte significativa d o p a t r i m ô n i o d e n o s s o s c l á s s i c o s . Se e x a m i n a r m o s c o m a t e n ç ã o as c o m é d i a s clássicas r e c o n h e c i d a s c o m o " e l e v a d a s " , verific a r e m o s f a c i l m e n t e q u e os e l e m e n t o s d e f a r s a p e r m e i a m t o d a s . A s comédias de Aristófanes têm u m forte c o n t e ú d o político, m a s é preciso, a o nosso ver, remetê-las ao domínio da comicidade " b a i x a " , " v u l g a r " , o u c o m o se c o s t u m a d i z e r às vezes, " e x t e r i o r " . P a r a serm o s rigorosos, p o r é m , será necessário colocar nessa m e s m a categor i a t a m b é m M o l i è r e , G ó g o l e, a f i n a l , t o d o s os c l á s s i c o s . Q u a n d o a o beijar a m ã o d e M a r i a A n t ó n o v n a , B ó b t c h i n s k i e D ó b t c h i n s k i b a t e m a c a b e ç a d e u m n a d o o u t r o , d e q u e t i p o d e c o m i c i d a d e se t r a t a , alta o u baixa? E x a m i n a n d o - s e o caso c o m c u i d a d o , ver-se-á q u e a o b r a d e G ó g o l e n c o n t r a - s e t o d a ela i m p r e g n a d a d e c o m i c i dade " b a i x a " ou " v u l g a r " . Os contemporâneos de Gógol, por sinal, a c u s a v a m - n o j u s t a m e n t e de ser trivial, n ã o c o m p r e e n d e n d o a i m p o r t â n c i a d e seu h u m o r . E s s e g ê n e r o d e a c u s a ç õ e s p o d e ser encontrado t a m b é m mais recentemente. H o u v e estudiosos e histor i a d o r e s d a l i t e r a t u r a q u e se e s c a n d a l i z a v a m c o m as v u l g a r i d a d e s d e G ó g o l . E n t r e esses, I . M a n d e l s t a m , q u e e s c r e v e u u m v o l u m o s o e n s a i o s o b r e o e s t i l o g o g o l i a n o . E l e a c h a , p o r e x e m p l o , q u e as q u a l i d a d e s a r t í s t i c a s d e O casamento t e r i a m g a n h o m u i t o se G ó g o l tivesse t i r a d o , a s s e g u i n t e s e x p r e s s õ e s , q u e ele r e f e r e t e x t u a l m e n t e : " M a s , você n ã o t e m u m a gota de juízo? P o r acaso e n d o i d o u ? Digam e , p o r f a v o r , se v o c ê n ã o é u m p o r c o d e p o i s d e t u d o i s s o ? " 4
" E s s a s p a l a v r a s " , escreve M a n d e l s t a m , " s ã o dirigidas a u m público de espetáculos de f e i r a " . G ó g o l , s e g u n d o o professor, deveria ter e x p u r g a d o s u a s o b r a s d e " s e m e l h a n t e s e x c e s s o s " ( 2 6 , 53). A o bem-educado professor i n c o m o d a t a m b é m a sortida quantidade de xingamentos encontrados em Gógol.
Personagens de O inspetor geral, de N . Gógol. Há tradução brasileira (indireta) de Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri publicada pela Ed. Brasiliense (São Paulo, 1966) e depois pela Abril Cultural (São Paulo, 1976. Col. Teatro Vivo).
UM POUCO DE METODOLOGIA
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Isso p o r é m não é t u d o . N a teoria dos dois aspectos da comicidade, a " f i n a "
e a "vulgar",
entra também u m a
diferenciação
s o c i a l . O a s p e c t o r e f i n a d o d a c o m i c i d a d e existe p a r a as p e s s o a s c u l tas, p a r a os aristocratas de espírito e de origem. O segundo aspecto é r e s e r v a d o à plebe, a o vulgo, à m u l t i d ã o . E. Beyer escreve: c ô m i c o - b a i x o é a d e q u a d o a o t e a t r o p o p u l a r (Volksstücke),
"O onde
os conceitos de decência, de d e c o r o e de c o m p o r t a m e n t o civilizado p o s s u e m limites m a i s a m p l o s " (42, I, 106). R e f e r i n d o - s e à d e m a s i a d o a m p l a d i f u s ã o d o " c ô m i c o - b a i x o " ele e s c r e v e q u e " i s s o é s a b i d o por todos aqueles que conhecem a literatura p o p u l a r " e reporta-se a o s livros p o p u l a r e s a l e m ã e s , a o t e a t r o p o p u l a r d e m a r i o n e t e s , a a l g u n s c o n t o s m a r a v i l h o s o s e t c . ( 4 2 , I, 4 0 9 ) . A f i r m a ç õ e s desse t i p o n ã o são raras nas estéticas alemãs e isso é sintomático. O desprezo pelos bufões, pelos atores do teatro de feira, p e l o s clowns
e o s p a l h a ç o s e, e m g e r a l , p o r q u a l q u e r t i p o d e
alegria desenfreada é o desprezo pelas fontes e pelas formas p o p u l a res d e r i s o . P ú c h k i n , p o r e x e m p l o , c o m p o r t a - s e d e m o d o c o m p l e t a m e n t e d i f e r e n t e a esse r e s p e i t o . " O d r a m a s u r g i u n a p r a ç a e t o r n o u se u m d i v e r t i m e n t o p o p u l a r " — d i z i a , s e m o m e n o r d e s p r e z o p o r esse d i v e r t i m e n t o d e r u a . O c a r á t e r p a r t i c u l a r d o h u m o r i s m o p o p u l a r foi n o t a d o t a m b é m p o r T c h e r n i c h é v s k i , s e m a m e n o r
atitude
depreciativa, porém: O v e r d a d e i r o reino d a f a r s a — diz ele — é o d i v e r t i m e n t o , por e x e m p l o , n e s s a s r e p r e s e n t a ç õ e s de feira. M a s os g r a n d e s e s c r i t o r e s não d e s p r e z a m a farsa: e m R a b e l a i s ela d o m i n a a b s o l u t a e em Cervantes nós a e n c o n t r a m o s c o m e x t r e m a f r e q ü ê n c i a (34, II, 187).
N i n g u é m p o d e r á negar a existência de brincadeiras d e m a u g o s t o , de farsas triviais, de a n e d o t a s equívocas, de variedades vazias e de burlas idiotas. M a s a vulgaridade é e n c o n t r a d a em t o d o s os setores da p r o d u ç ã o literária. Mal nos a p r o f u n d a m o s
na análise
d o m a t e r i a l , logo verificamos a a b s o l u t a impossibilidade de subdividir o c ô m i c o em vulgar e elevado. D u r a n t e n o s s o e s t u d o n ã o levarem o s e m c o n s i d e r a ç ã o essa t e o r i a , s e n d o q u e , a p ó s o e x a m e d o s f a t o s , no e n t a n t o , será indispensável entrar no mérito d a questão do valor artístico e m o r a l o u , a o c o n t r á r i o , d o c a r á t e r nocivo de a l g u m a s f o r m a s de c o m i c i d a d e . Esse p r o b l e m a é e x t r e m a m e n t e atual e exige u m a s o l u ç ã o a r t i c u l a d a e f u n d a m e n t a d a . D o p o n t o d e vista m e t o d o l ó g i c o , p a r a n ó s é n e c e s s á r i o p r o c u r a r r e s o l v e r esse p r o b l e m a t a m bém, c o m o outros importantes, após o exame dos fatos.
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COMICIDADE E RISO
U m a d a s q u e s t õ e s m a i s difíceis e c o n t r o v e r s a s d a estética é j u s t a m e n t e a d o c a r á t e r estético o u e x t r a - e s t é t i c o d a c o m i c i d a d e . Esse problema aparece freqüentemente ligado ao das formas " b a i x a s " , "primárias" ou "exteriores" da comicidade e a o das formas " d e o r d e m mais e l e v a d a " . A s assim c h a m a d a s formas " e x t e r i o r e s " ou " b a i x a s " de comicidade não são habitualmente consideradas como p e r t e n c e n t e s a o d o m í n i o d a e s t é t i c a . T r a t a - s e , p o r a s s i m dizer, d e u m a c a t e g o r i a e x t r a - e s t é t i c a . A f a l s i d a d e d e tal t e o r i a t o r n a - s e l o g o e v i d e n t e se l e m b r a r m o s A r i s t ó f a n e s o u o s t r e c h o s d o s clássicos q u e têm caráter de farsa. Categoria extra-estética é considerado t a m b é m q u a l q u e r t i p o d e r i s o q u e n ã o se o r i g i n e d e o b r a s d e a r t e . I s t o talvez a t é p o d e ser v e r d a d e i r o . P o r é m , c o n f o r m e j á t i v e m o s o c a s i ã o d e dizer, q u a l q u e r estética q u e se a f a s t e d a v i d a t e r á i n e v i t a v e l m e n t e u m c a r á t e r a b s t r a t o e i n a d e q u a d o a o s fins d e u m v e r d a d e i r o c o n h e c i m e n t o . E m m u i t o s casos, para diferenciar a categoria estética ("super i o r " ) d a categoria cômica e extra-estética ( " i n f e r i o r " ) , cria-se u m a t e r m i n o l o g i a diversa. N o p r i m e i r o c a s o fala-se d e " c ô m i c o " e n o s e g u n d o de " r i d í c u l o " . N ó s n ã o f a r e m o s esta distinção; são os fatos, n a v e r d a d e , q u e d e v e m n o s m o s t r a r se e s t a d i v i s ã o é l e g í t i m a o u n ã o . Nós reunimos sob a única denominação e conceito de "comicid a d e " t a n t o o " c ô m i c o " q u a n t o o " r i d í c u l o " . A m b o s os t e r m o s , p o r e n q u a n t o , s i g n i f i c a r ã o a m e s m a c o i s a . Isso n ã o q u e r d i z e r q u e a c o m i c i d a d e seja algo c o m p l e t a m e n t e n ã o diferençado. (Diferentes aspectos de comicidade levam a diferentes tipos de riso e nisso, principalmente, será concentrada nossa atenção. 5
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A tradução dos termos russos orientou-se no seguinte sentido: komism foi sempre traduzido por "comicidade"; komítcheskoe por "cômico" (adj. ou subst.) e smechnoe por "engraçado", "ridículo" ou "risível" e, como pede o autor, às vezes por "cômic o " , conforme exigência do contexto. A acepção do termo "ridículo" não é necessariamente pejorativa: significa apenas "que suscita o riso".
O RISO DE ZOMBARIA
Os diferentes aspectos do riso e o riso de zombaria
F o r a m a p r e s e n t a d a s n o capítulo precedente as classificações p r o p o s t a s pela m a i o r p a r t e d a s estéticas e p o é t i c a s . P a r a n ó s é inaceitável q u e a i n d a seja necessário buscar n o v o s e o u t r o s c a m i n h o s de sistematização. P a r t i m o s d o fato de que o c ô m i c o e o riso n ã o são algo de abstrato. O h o m e m ri. N ã o é possível e s t u d a r o p r o b l e m a da c o m i c i d a d e fora da psicologia d o riso e d a p e r c e p ç ã o d o c ô m i c o . P o r isso c o m e ç a m o s p o r colocar o p r o b l e m a d o s diferentes tipos de riso. P o d e - s e p e r g u n t a r : certas formas de c o m i c i d a d e n ã o estar i a m l i g a d a s a c e r t o s a s p e c t o s d o r i s o ? P o r i s s o é p r e c i s o ver e d e c i d i r q u a n t o s a s p e c t o s d o r i s o p o d e m ser e s t a b e l e c i d o s d e u m m o d o g e r a l , e q u a i s deles s ã o m a i s i m p o r t a n t e s q u e o u t r o s p a r a os n o s s o s objetivos. E s t a q u e s t ã o j á foi c o l o c a d a n a b i b l i o g r a f i a à n o s s a d i s p o s i ção. A tentativa mais completa e interessante de e n u m e r a ç ã o dos d i f e r e n t e s a s p e c t o s d o r i s o foi r e a l i z a d a n ã o p o r f i l ó s o f o s o u p s i c ó logos, m a s pelo teórico e historiador soviético da c o m é d i a c i n e m a t o g r á f i c a R. I u r ê n i e v , q u e e s c r e v e : — , \ •\
O riso pode ser alegre ou t r i s t e , b o m e i n d i g n a d o , i n t e l i g e n t e e t o l o , soberbo e cordial, indulgente e insinuante, depreciativo e tímido, amigável e h o s t i l , i r ô n i c o e s i n c e r o , s a r c á s t i c o e i n g ê n u o , terno e grosseiro, s i g n i f i c a t i v o e g r a t u i t o , t r i u n f a n t e e j u s t i f i c a t i v o , d e s p u d o r a d o
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COMICIDADE E RISO
e e m b a r a ç a d o . Pode-se a i n d a a u m e n t a r e s t a lista: d i v e r t i d o , m e l a n c ó lico, nervoso, h i s t é r i c o , g o z a d o r , f i s i o l ó g i c o , a n i m a l e s c o . Pode ser até u m riso t é t r i c o ! ( 4 1 , 8).
E s t a lista é i n t e r e s s a n t e p o r s u a r i q u e z a , seu c o l o r i d o e s u a vital i d a d e . E l a n ã o foi o b t i d a a p a r t i r d e e l u c u b r a ç õ e s a b s t r a t a s , m a s de u m a o b s e r v a ç ã o efetiva. O a u t o r desenvolve e m seguida suas o b s e r v a ç õ e s e m o s t r a q u e c e r t o s a s p e c t o s d o riso l i g a j D ^ s e a d i f e r e n tes^atitudes d o s e r _ h u m a n o , e c o m o elas constituem u m d o s principais objetos d a s c o m é d i a s . G o s t a r í a m o s , principalmente, d e sublin h a r q u e , e m seu e s t u d o c o n s a g r a d o a o filme cômico soviéticOj__o__ a u t o r inicia e x a t a m e n t e com p e r g u n t a s s o b r e os a s p e c t o s d o r i s o . E s t a q u e s t ã o r e v e l o u - s e m u i t o i m p o r t a n t e p a r a ele. E l a é i m p o r t a n t e t a m b é m para os nossos objetivos. P a r a Iurêniev, a questão dos a s p e c t o s d o r i s o é i m p o r t a n t e p o r q u e v á r i o s deles s ã o c a r a c t e r í s t i c o s dos diferentes aspectos das t r a m a s d a s c o m é d i a s . P a r a n ó s , é o u t r a coisa q u e i m p o r t a . Devemos resolver a q u e s t ã o de saber se determin a d o s aspectos d o riso estão ligados a d e t e r m i n a d o s aspectos d o j c ô m i c o o u nãoy A lista d e I u r ê n i e v é b a s t a n t e d e t a l h a d a m a s n ã o é c o m p l e t a . F a l t a e m s u a c a t a l o g a ç ã o a q u e l e a s p e c t o d o riso q u e , d e a c o r d o c o m os resultados de nossa pesquisa, surge c o m o i m p o r t a n t í s s i m o para a c o m p r e e n s ã o d a s o b r a s l i t e r á r i a s , i s t o é, o riso de zombaria. Para dizer a v e r d a d e , este t i p o d e r i s o é c o n s i d e r a d o m a i s t a r d e , m a s n ã o a p a r e c e n a lista. D e s e n v o l v e n d o a i d é i a d e q u e o s d i f e r e n t e s a s p e c t o s d e riso c o r r e s p o n d e m a o s d i f e r e n t e s t i p o s d e r e l a ç õ e s h u m a n a s , o a u t o r escreve: " A s relações recíprocas entre as pessoas q u e surgem d u r a n t e o riso, ligadas a o riso, s ã o diferentes: as pessoas z o m b a m , ridicularizam, desfazem [...]" Desse m o d o , a zombaria é colocada e m p r i m e i r o l u g a r e essa o b s e r v a ç ã o é p a r a n ó s m u i t o v a l i o s a . J á L e s s i n g , e m Dramaturgia de Hamburgo, havia dito: " R i r e z o m b a r s ã o coisas bem diferentes". N ó s c o m e ç a r e m o s pelo estudo d a derrisãoK N ã o completaremos n e m classificaremos o elenco de Iurêniev. E n t r e t o d o s os possíveis aspectos d o riso n ó s escolherem o s a p e n a s u m , p a r a c o m e ç a r , e e s t e s e r á o riso d e z o m b a r i a . J u s t a m e n t e este e , c o n f o r m e foi v i s t o , a p e n a s este a s p e c t o d o r i s o e s t á p e r m a n e n t e m e n t e l i g a d o à esfera d o c ô m i c o . B a s t a n o t a r , p o r e x e m plo, q u e t o d o o vasto c a m p o d a sátira baseia-se n o riso d e z o m b a r i a . E é e x a t a m e n t e este t i p o d e r i s o o q u e m a i s se e n c o n t r a n a v i d a . \
Na Iradução, "derrisão", "ridicularização", "escárnio" ou "riso de zombaria" serão utilizados c o m o sinônimos do termo russo osmiéivanie.
O S D I F E R E N T E S A S P E C T O S D O RISO E O RISO DE ZOMHARIA
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Se o b s e r v a r m o s o q u a d r o d e R e p i n q u e r e p r e s e n t a os c o s s a c o s d e Zaporójie escrevendo u m a carta ao sultão turco, veremos c o m o é g r a n d e a variedade de n u a n ç a s d e riso expressa pelo pintor — desde a r i s a d a r u i d o s a e f r a g o r o s a a t é o e s g a r m a l d o s o e o s o r r i s o sutil q u e m a l se p e r c e b e . P o r é m , é fácil c o m p r e e n d e r q u e t o d o s o s c o s sacos r e p r e s e n t a d o s p o r Repin riem u m ú n i c o tipo de riso, precisam e n t e o iriso e s c a r n e c e d o r d e z o m b a r i a . ] A focalização deste primeiro e para nós importantíssimo tipo de riso leva-nos à exigência de u m estudo ulterior e mais d e t a l h a d o . D e a c o r d o c o m que princípio estabelecer subcategorias? O material d e m o n s t r a q u e o m é t o d o mais funcional é o de ordenar o p r ó p r i o m a t e r i a l d e a c o r d o c o m as c a u s a s q u e s u s c i t a m o r i s o . F a l a n d o m a i s s i m p l e s m e n t e , é p r e c i s o e s t a b e l e c e r do que, e m e s s ê n c i a , r i e m a s p e s soas e o que exatamente é ridículo para elas. E m poucas palavras, p o d e m o s sistematizar o material conforme o objeto da derrisão. ( A q u i v e r e m o s q u e é p o s s í v e l rir d o h o m e m e m q u a s e t o d a s a s s u a s m a n i f e s t a ç õ e s . E x c e ç ã o feita a o d o m í n i o d o s s o f r i m e n t o s , c o i s a q u e A r i s t ó t e l e s j á h a v i a n o t a d o . P o d e m ser r i d í c u l o s o a s p e c t o d a p e s s o a , seu r o s t o , s u a s i l h u e t a , seus m o v i m e n t o s . P o d e m ser c ô m i cos os raciocínios em q u e a pessoa a p a r e n t a p o u c o senso c o m u m ; u m c a m p o especial d e e s c á r n i o é c o n s t i t u í d o p e l o c a r á t e r d o h o m e m , p e l o â m b i t o d e s u a v i d a m o r a l , d e s u a s a s p i r a ç õ e s , d e seus d e s e j o s e d e s e u s o b j e t i v o s . P o d e ser r i d í c u l o o q u e o h o m e m diz, c o m o manifestação daquelas características que n ã o e r a m n o t a d a s e n q u a n t o ele p e r m a n e c i a c a l a d o . E m p o u c a s p a l a v r a s , t a n t o a v i d a física q u a n t o a vida moral e intelectual d o h o m e m p o d e m tornar-se objeto de riso.) Na arte temos exatamente o m e s m o : nas obras humorísticas de q u a l q u e r g ê n e r o o h o m e m nos é m o s t r a d o naqueles aspectos q u e s ã o o b j e t o de z o m b a r i a t a m b é m na vida. À s vezes é b a s t a n t e s i m p l e s m o s t r a r o ser h u m a n o tal q u a l ele é, r e p r e s e n t á - l o o u a p r e sentá-lo; m a s isto n e m s e m p r e é o b a s t a n t e . É preciso descobrir o q u e é e n g r a ç a d o e p a r a isso existem alguns p r o c e d i m e n t o s d e t e r m i n a d o s q u e d e v e m ser e s t u d a d o s . E s s e s p r o c e d i m e n t o s s ã o os m e s m o s n a v i d a e n a a r t e . À s vezes é o p r ó p r i o i n d i v í d u o q u e r e v e l a i n v o l u n t a r i a m e n t e os l a d o s c ô m i c o s d e s u a n a t u r e z a , d e s u a s a ç õ e s ; o u t r a s , a o c o n t r á r i o , q u e m o faz p r o p o s i t a l m e n t e é q u e m z o m b a . A q u e l e ^ u ^ ^ o n u 2 a _ x o m p o r t a - s c da mesma maneira Tinto na vida c o m o na a r t e . E x i s t e m p r o c e d i m e n t o s e s p e c i a i s p a r a m o s t r a r o q u e é ridículo n a a p a r ê n c i a , n a s idéias ou nas a t i t u d e s de u m i n d i v í d u o . Classificar em função dos objetos de escárnio é a o m e s m o t e m p o
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C O M I C I D A D E E RISO
classificar em função dos procedimentos artísticos com os quais se suscita o riso. A figura do homem, suas idéias, suas aspirações são ridicularizadas de modos diferentes. Existem, além disso, meios comuns para diferentes objetos de derrisão como, por exemplo, a paródia. Os meios de derrisão dividem-se assim em mais específicos e mais gerais. A possibilidade e a necessidade de uma classificação desse tipo já foram reconhecidas pelos cientistas soviéticos, embora elas ainda não tenham sido realmente empreendidas. São muito evidentes — escreve lu. Bóriev — a legitimidade e a necessidade de se classificarem os recursos artísticos da elaboração das comédias a partir do material oferecido pela vida (12, 317).
Quem ri e quem não ri
O riso o c o r r e e m presença de duas g r a n d e z a s : de u m o b j e t o r i d í c u l o e d e u m s u j e i t o q u e ri — o u seja, d o h o m e m . O s p e n s a d o res d o s s é c u l o s X I X e X X , v i a d e r e g r a , e s t u d a v a m u m a s p e c t o d o problema ou o outro. O objeto cômico era estudado nas obras de estética, o sujeito q u e ri, nas de psicologia. E n t r e t a n t o , a comicid a d e n ã o se d e f i n e n e m c o m u m n e m c o m o u t r o i s o l a d a m e n t e , m a s c o m a a ç ã o de d a d o s objetivos n o h o m e m . Escreveu-se mais de u m a vez nos t r a t a d o s de estética sobre a i m p o r t â n c i a d o fator psicológico. " É impossível c o m p r e e n d e r a essência d o cômico sem examinar a psicologia d o sentido cômico, d o sentido d o h u m o r " , afirma M . K a g a n ( 2 2 , I, 4 ) . O m e s m o d e c l a r a N . H a r t m a n n : " A c o m i c i d a d e n o s e n t i d o e s t r i t a m e n t e e s t é t i c o n ã o p o d e existir sem o h u m o r d o s u j e i t o " (16, 607). O s u r g i m e n t o d o riso constitui u m p r o c e s s o em q u e d e v e m ser e s t u d a d a s t o d a s as c o n d i ç õ e s e as c a u s a s q u e o p r o v o c a m . S e g u n d o B e r g s o n , o r i s o o c o r r e q u a s e c o m a p r e c i s ã o d e u m a lei d a n a t u r e z a : ele a c o n t e c e s e m p r e q u e h á u m a c a u s a p a r a i s s o . O e r r o d e tal afirmação é bem evidente: pode-se dar a causa d o riso, porém é p o s s í v e l e x i s t i r e m p e s s o a s q u e n ã o r i e m e q u e é i m p o s s í v e l fazer rir. A dificuldade está n o fato de q u e o nexo entre o o b j e t o c ô m i c o e a p e s s o a q u e ri n ã o é o b r i g a t ó r i o n e m n a t u r a l . L á , o n d e u m r i , o u t r o n ã o ri.
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COMICIDADE E RISO
A causa disso p o d e residir e m condições de o r d e m histórica, s o c i a l , n a c i o n a l e p e s s o a l . C a d a é p o c a e c a d a p o v o p o s s u i seu p r ó p r i o e e s p e c í f i c o s e n t i d o d e h u m o r e d e c ô m i c o , q u e às v e z e s é incompreensível e inacessível e m o u t r a s é p o c a s . " C o n t a r a história d o riso seria e x t r e m a m e n t e i n t e r e s s a n t e " , escrevia A . I. H e r t z e n . M a s n ã o é e s t a a n o s s a t a r e f a . N ó s n o s l i m i t a r e m o s , c o m o j á foi dito, a materiais dos séculos X I X e X X . A s s u m i n d o o problema da diferenciação histórica e dedicandonos a p e n a s a o s séculos X I X e X X , n ã o p o d e m o s deixar de falar d a existência de diversidades nacionais historicamente d e t e r m i n a d a s . Pode-se dizer q u e o riso francês distingue-se pelo r e f i n a m e n t o
e
p e l o e s p í r i t o ( A n a t o l e F r a n c e ) , o a l e m ã o , p o r u m c e r t o p e s o (as comédias de H a u p t m a n n ) , o inglês, pela z o m b a r i a ora b o n a c h o n a ora cáustica (Dickens, Bernard Shaw), o russo, pelo a m a r g o r e o s a r c a s m o ( G r i b o i é d o v , G ó g o l , S a l t i k ó v - S c h e d r i n ) . D e r e s t o , essas o b s e r v a ç õ e s n ã o t ê m i m p o r t â n c i a c i e n t í f i c a , e m b o r a e s t u d o s desse tipo não sejam desprovidos de interesse. É evidente que n o â m b i t o de cada cultura nacional diferentes c a m a d a s sociais p o s s l í í r ã õ ü m s e n t i d o diferente de h u m o r e difèrentes m e i o s p a r a e x p r e s s á - l o . N o â m b i t o d o s limites c i t a d o s , é i m p r e s c i n d í v e l
considerar,
p r i n c i p a l m e n t e , as d i f e r e n c i a ç õ e s d e c a r á t e r i n d i v i d u a l . T o d o s , p r o v a v e l m e n t e , p u d e r a m observar q u e há pessoas ou grupos de pessoas propensas ao riso e outras que n ã o o são. V a m o s nos limitar a alguns exemplos indicativos. S ã o p r o p e n s o s a o riso os j o v e n s e m e n o s p r o p e n s o s os velhos, e m b o r a , é preciso dizer, j o v e n s m a c a m b ú z i o s e velhotes e velhotas alegres n ã o c o n s t i t u a m a b s o l u t a m e n t e u m a r a r i d a d e . A s m o c i n h a s a d o l e s c e n t e s , q u a n d o j u n t a s , r i e m m u i t o e se d i v e r t e m p o r m o t i vos, ao que parece, insignificantes. H u m o r i s t a s n a t o s , p e s s o a s d o t a d a s d e e s p í r i t o 'e p r o p e n s a s a o r i s o e x i s t e m e m t o d a s a s c l a s s e s s o c i a i s . N ã o s ó eles p r ó p r i o s s a b e m rir, m a s t a m b é m divertir o s o u t r o s . E i s c o m o o s i r m ã o s S o k o lov d e s c r e v e m Vassíli V a s s í l i e v i t c h B o g d a n o v , e s t a r o s t e p a r o q u i a l de u m a aldeia d a região de Bielozersk: " H o m e m p e q u e n o , arruivado, passado dos trinta, um tanto tolo de aspecto, m a s que esconde s o b essa a p a r ê n c i a u m a g r a n d e p r e s e n ç a d e e s p í r i t o e p i c a r d i a . Vive d a n d o piscadelas e z o m b a n d o " . E l e conhecia b e m a v i d a e os segredos d o clero r u r a l e o d e m o n s t r a v a n a s histórias q u e c o n t a v a , de m o d o q u e o s o u v i n t e s e n t e n d i a m p o r si as a l u s õ e s i m p l í c i t a s . " A l é m
QUEM RI E QUEM NÃO RI
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d i s s o , Vassíli V a s s í l i e v i t c h n ã o d e i x a v a e s c a p a r a o p o r t u n i d a d e d e aludir até m e s m o aos presentes, o que p r o v o c a v a u m a
hilaridade
especial dos o u v i n t e s " (32, 78). É u m certo tipo m u i t o
difundido
de c o n t a d o r de histórias — galhofeiro e e n g r a ç a d o . N a M o s c o u de m e a d o s d o século p a s s a d o , era m u i t o f a m o s o o artista, escritor e n a r r a d o r Ivan Fiódorovitch G o r b u n ó v , que a qualquer h o r a podia improvisar pequenas cenas d a vida moscovita de tal m o d o q u e os presentes m o r r i a m de rir, deleitando-se c o m a precisão de suas observações e com a fidelidade de suas imitações. A l g u n s artistas t i n h a m u m talento especial p a r a a c o m i c i d a d e . B a s t a v a K. V a r l a m o v a b r i r a p o r t a e e n t r a r e m c e n a q u e o p ú b l i c o j á r i a a l e g r e m e n t e , s e m q u e ele p r e c i s a s s e a b r i r a b o c a . O m e s m o acontecia c o m o artista d o p o v o d a U R S S , Igor Ilinski. A presença de u m a veia humorística é u m dos sinais de t a l e n t o natural. Pelas reminiscências de Górki sobre Tolstói sabemos c o m o riam j u n t o s Tolstói, Górki e T c h é k h o v . Q u a n d o chegou a Nice e m visita a T c h é k h o v o p r o f e s s o r M a k s i m K o v a l i é v s k i , eles, s e n t a d o s à m e s a d e u m r e s t a u r a n t e , r i a m t a n t o q u e a t r a í a m p a r a si a a t e n ç ã o de t o d o s os presentes. O que d e m o n s t r a m os exemplos citados? Eles ilustram a observ a ç ã o d e q u e h á p e s s o a s n a s q u a i s a c o m i c i d a d e i n e r e n t e à v i d a estim u l a infalivelmente u m a r e a ç ã o de riso. A c a p a c i d a d e p a r a essa reação é n o conjunto um fenômeno de ordem positiva; é u m a manifest a ç ã o d e a m o r à v i d a e d e a l e g r i a d e viver. P o r é m , e x i s t e m p e s s o a s q u e n ã o s ã o p r o p e n s a s a o r i s o . A s c a u s a s d i s s o p o d e m ser v á r i a s . Se o r i s o é u m d o s s i n a i s d o t a l e n t o p r ó p r i o d o h o m e m , se as p e s soas d o t a d a s e geralmente n o r m a i s s ã o capazes de rir, a incapacid a d e d e r i r , às v e z e s , p o d e ser e x p l i c a d a c o m o s i n a l d e o b t u s i d a d e e d e i n s e n s i b i l i d a d e . A s p e s s o a s i n c a p a z e s d e rir s ã o d e f i c i e n t e s s o b t o d o s o s a s p e c t o s . S e r á q u e p o d e m rir a p e r s o n a g e m t c h e k h o v i a n a Prichibéiev, ou o h o m e m n o estojo, Bielikov, o u o coronel Skaloz u b ? E l e s s ã o r i d í c u l o s , n ó s r i m o s d e l e s , m a s , se o s i m a g i n a r m o s v i v o s , é c l a r o q u e essas p e s s o a s s ã o i n c a p a z e s d e r i r . \ A o q u e p a r e c e , há algumas profissões que privam pessoas medíocres d a capacidade de rir. E m particular, profissões que investem o h o m e m d e a l g u m a p a r c e l a d e p o d e r . P e r t e n c e m a e s s a c a t e g o r i a os f u n c i o n á r i o s e p e d a gogos à antigai " N o a r q u i v o d a cidade conservou-se até agora o retrato de Ugrium-Burtcheiev. É u m h o m e m de estatura mediana, d e r o s t o l e n h o s o q u e e v i d e n t e m e n t e n u n c a foi i l u m i n a d o p o r sorriso" — assim Saltikóv-Schedrin pinta u m
dos
um
governadores
34
COMICIDADE E RISO
e m s u a s Histórias
de uma
cidade.
Porém, Ugrium-Burtcheiev
é u m caráter único, mas um tipo. " S ã o criaturas
não
hermeticamente
fechadas p o r t o d o s os l a d o s " — assim Saltikóv-Schedrin
define
s e m e l h a n t e s p e s s o a s . I n f e l i z m e n t e , " a g u e l a s t e s " c o m o esses ( i s t o é, p e s s o a s i n c a p a z e s d e rir) s ã o e n c o n t r a d o s c o m f r e q ü ê n c i a n o m u n d o d o s p e d a g o g o s . O f a t o p o d e ser t o t a l m e n t e e x p l i c a d o p e l a dificuld a d e d a profissão, pela c o n t í n u a tensão nervosa etc., m a s a causa n ã o r e s i d e a p e n a s n i s s o , e s i m n u m a o r g a n i z a ç ã o p s í q u i c a específica q u e n o t r a b a l h o d o p e d a g o g o se m a n i f e s t a d e m o d o p a r t i c u l a r m e n t e c l a r o y N ã o foi à t o a q u e T c h é k h o v p a r a o seu h o m e m n o e s t o j o escol h e u u m p e d a g o g o . N o e n s a i o O pedante,
Belínski escreve: " S i m ,
q u e r o fazer n e c e s s a r i a m e n t e d o m e u p e d a n t e u m p r o f e s s o r d e l e t r a s " . í^Aos p r o f e s s o r e s
i n c a p a z e s d e c o m p r e e n d e r e d e p a r t i l h a r o riso
s a d i o d a s c r i a n ç a s , à q u e l e s q u e n ã o e n t e n d e m as b r i n c a d e i r a s , q u e n u n c a s a b e m s o r r i r e d a r u m a r i s a d a , seria r e c o m e n d á v e l
mudar
d e p r o f i s s ã o i; ^A i n c a p a c i d a d e d e rir p o d e ser sinal n ã o a p e n a s d e o b t u s i d a d e , m a s t a m b é m d e d e v a s s i d ã o ^ R e c o r d e - s e a q u i Mozart
e Salieri
de
Púchkin. Mozart T o q u e algo de Mozart para n ó s ! O velho toca uma ária de Don Giovanni; Mozart Salieri E você a i n d a ri? Mozart Ah, Salieri! E v o c ê , não ri? Salieri Não. N ã o rio q u a n d o u m p i n t o r i m p r e s t á v e l B o r r a a m a d o n a de Rafael, N ã o rio q u a n d o u m b u f ã o m i s e r á v e l Difama Alighieri com u m a paródia. Saia, v e l h o ! Mozart Espere: t o m e . B e b a à m i n h a saúde. O velho sai.
dá uma
gargalhada.
O M o z a r t de P ú c h k i n , genial e cheio de j o v i a l i d a d e , é capaz d e ser a l e g r e e d e rir; ele p o d e a t é m e s m o a c h a r d i v e r t i d a a p a r ó d i a d e u m a o b r a s u a . J á o i n v e j o s o , frio e e g o í s t a a s s a s s i n o Salieri é i n c a p a z d e r i r j u s t a m e n t e p o r c a u s a d a p r o f u n d a d e v a s s i d ã o d e seu
QUEM RI E QUEM NÃO RI
35
ser, a s s i m c o m o p e l o m e s m o m o t i v o n ã o é d a d o à a r t e , c o m o lhe diz M o z a r t : " G ê n i o e c r i m e — d u a s c o i s a s i n c o m p a t í v e i s " . i _ P o r é m , a i n c a p a c i d a d e d e r i r p o d e ser d e t e r m i n a d a t a m b é m por caujas_djferenles, aliás c o m p l e t a m e n t e o p o s t a s . H á u m a categoria de pessoas p r o f u n d a s e sérias q u e n ã o riem, não p o r insensibilidade interior, m a s , a o c o n t r á r i o , pela natureza e l e v a d a d e seu e s p í r i t o o u d e s e u s p e n s a m e n t o s ^ E m s u a s r e m i n i s c ê n cias s o b r e o p i n t o r A . I. I v a n o v , T u r g u ê n i e v c o n t a o s e g u i n t e : " A l i t e r a t u r a e a p o l í t i c a n ã o o i n t e r e s s a v a m : ele se o c u p a v a d e q u e s t õ e s r e l a t i v a s à a r t e , à m o r a l , à filosofia. U m a vez a l g u é m lhe t r o u x e u m c a d e r n i n h o de caricaturas d e sucesso; I v a n o v examinou-as d e m o r a d a m e n t e , e, d e r e p e n t e , l e v a n t a n d o a c a b e ç a , d i s s e : ' C r i s t o n u n c a r i u ' . N e s s a é p o c a , I v a n o v e s t a v a t e r m i n a n d o seu q u a d r o A de Cristo
ao povo".
T u r g u ê n i e v n ã o diz a q u e m e r a m
as c a r i c a t u r a s . M a s , d e q u a l q u e r
aparição dedicadas
m o d o , elas contradiziam
todo
a q u e l e m u n d o d e p r o f u n d a m o r a l i d a d e , d e e s t a d o d e e s p í r i t o elev a d o q u e cercava I v a n o v . O â m b i t o d a religião e o d o riso excluemse r e c i p r o c a m e n t e . D a a n t i g a l i t e r a t u r a r u s s a e s c r i t a o e l e m e n t o d o r i s o e d o c ô m i c o e s t á t o t a l m e n t e a u s e n t e . O r i s o n a igreja d u r a n t e o s e r v i ç o r e l i g i o s o seria c o n s i d e r a d o s a c r i l é g i o . E n t r e t a n t o , d e v e - s e fazer a r e s s a l v a d e q u e o r i s o e a a l e g r i a n ã o s ã o i n c o m p a t í v e i s c o m t o d a s a s r e l i g i õ e s ; essa i n c o m p a t i b i l i d a d e é c a r a c t e r í s t i c a d a a s c é t i c a religião cristã, m a s n ã o d a q u e l a s da A n t i g ü i d a d e , c o m suas saturnais e r i t o s d i o n i s í a c o s . I n d e p e n d e n t e m e n t e d a i g r e j a , o p o v o celeb r a v a s u a s v e l h a s e a l e g r e s f e s t a s d e o r i g e m p a g a — a s festas n a t a l i 1
n a s , a Máslienitsa ,
a noite de São J o ã o e o u t r a s . Vagavam 1
país b a n d o s d e a l e g r e s skomorókhi ,
pelo
o p o v o c o n t a v a histórias liber-
t i n a s e c a n t a v a c a n ç õ e s s a c r í l e g a s . Se é i m p o s s í v e l i m a g i n a r C r i s t o r i n d o , é m u i t o fácil, a o c o n t r á r i o , i m a g i n a r o d i a b o r i n d o . A s s i m G o e t h e r e p r e s e n t o u M e f i s t ó f e l e s . O riso d e l e é c í n i c o , m a s p o s s u i um p r o f u n d o caráter filosófico, e a figura de Mefistófeles
propor-
ciona a o leitor u m e n o r m e prazer e um deleite estético. y P r o s s e g u i n d o as o b s e r v a ç õ e s s o b r e as p e s s o a s q u e n ã o r i e m o u n ã o s ã o d a d a s a o r i s o , é fácil n o t a r q u e n ã o r i r ã o a q u e l a s t o t a l mente envolvidas por alguma paixão ou a r r o u b o , ou imersas em reflexões c o m p l e x a s e p r o f u n d a s . P o r que é assim, d e v e r e m o s expli-
1
2
Período de festas que precedem a Quaresma e a Páscoa ortodoxas c que corresponderiam ao Carnaval. Na Rússia antiga, músicos-cantores, comediantes ambulantes.
36
COMICIDADE E RISO
car, e é possível fazê-lo.'Está claro t a m b é m q u e o riso é incompatível c o m u m a g r a n d e e a u t ê n t i c a d o r . D o m e s m o m o d o , o r i s o t o r n a se i m p o s s í v e l q u a n d o p e r c e b e m o s n o p r ó x i m o u m s o f r i m e n t o v e r d a d e i r o . E se a p e s a r d i s s o a l g u é m r i , s e n t i m o s i n d i g n a ç ã o , esse riso atestaria a monstruosidade moral de q u e m
ri.j
Essas observações preliminares n ã o resolvem os
problemas
da psicologia d o riso, m a s a p e n a s servem p a r a colocá-los. A soluç ã o p o d e r á s e r d a d a q u a n d o se e s t u d a r a c a u s a q u e e s t i m u l a o r i s o e se e x a m i n a r e m essência.
os processos psicológicos q u e constituem
sua
4 O cômico na natureza
Começaremos nossa pesquisa examinando tudo aquilo que n u n c a p o d e ser o b j e t o d e r i s o . Isso n o s a j u d a r á l o g o a e s t a b e l e c e r o q u e n ã o p o d e ter q u a l q u e r c o n o t a ç ã o d e c o m i c i d a d e . É fácil p e r c e b e r q u e , n o g e r a l , a n a t u r e z a q u e n o s c e r c a n ã o p o d e ser r i d í c u l a . N ã o existem florestas, c a m p o s , m o n t a n h a s , m a r e s o u flores, ervas, gramíneas etc. que sejam ridículos; I s s o j á foi o b s e r v a d o faz t e m p o e é p o u c o p r o v á v e l q u e d e s p e r t e d ú v i d a s . B e r g s o n escreve: " U m a p a i s a g e m p o d e ser bela, a t r a e n t e , m a j e s t o s a , s e m g r a ç a o u a b o m i n á v e l ; m a s n u n c a s e r á risív e l " . E a t r i b u i a si p r ó p r i o e s t a d e s c o b e r t a : " A d m i r o - m e d e c o m o u m fato tão importante em t o d a a sua simplicidade jamais tenha c h a m a d o a a t e n ç ã o d o s p e n s a d o r e s " (9, 7 ) . E n t r e t a n t o , e s t e p e n s a m e n t o tinha sido expresso repetidas vezes. Q u a s e cinqüenta anos antes de Bergson, Tchernichévski , por exemplo, já o expressara: " N a natureza inorgânica e vegetal não há lugar para o c ô m i c o " . 1
D e v e m o s a t e n t a r p a r a o fato de q u e T c h e r n i c h é v s k i n ã o fala d a natureza em geral, m a s apenas da natureza inorgânica e vegetal; ele n ã o f a l a d o r e i n o a n i m a l . \ D i f e r e n t e m e n t e d o s o b j e t o s e d o s f e n ô m e n o s de n a t u r e z a i n o r g â n i c a e vegetal, o a n i m a l p o d e ser ridí-
Nikolai Gavrílovitch Tchernichévski (1828-1889). Escritor populista russo, colaborador da revista O Contemporâneo, famoso por seu romance Que fazer?, escrito na prisão (1863).
M
C O M I C I D A D E E RISO
c u l o y Tchernichévski explica isso c o m o fato de q u e os animais p o d e m ser p a r e c i d o s c o m o s h o m e n s . " N ó s r i m o s d o s a n i m a i s " , d i z ele, " p o r q u e eles n o s l e m b r a m o s h o m e n s e s e u s m o v i m e n t o s " . Isso, sem d ú v i d a , é v e r d a d e . O mais ridículo de t o d o s os a n i m a i s é o m a c a c o : ele, mais d o q u e t o d o s , l e m b r a o h o m e m . E x t r e m a m e n t e r i d í c u l o s p o r s u a a p a r ê n c i a e j e i t o d e a n d a r s ã o , p o r e x e m p l o , os p i n g ü i n s . N ã o foi à t o a q u e A n a t o l e F r a n c e i n t i t u l o u u m d e seus r o m a n c e s s a t í r i c o s d e A ilha dos pingüins. O u t r o s a n i m a i s s ã o risíveis p o r q u e n o s l e m b r a m q u a n d o n ã o a f o r m a , a e x p r e s s ã o d o s r o s tos h u m a n o s . Os olhos saltados de u m a rã, a testa franzida de rugas d e um filhote de c a c h o r r o , as orelhas salientes e os dentes arreganhados d o morcego fazem-nos sorrir. Para alguns animais a semel h a n ç a c o m o h o m e m p o d e ser r e f o r ç a d a p o r m e i o d e a d e s t r a m e n t o . O s c a c h o r r o s q u e d a n ç a m s e m p r e e n c a n t a m as c r i a n ç a s . A c o m i c i d a d e d o s a n i m a i s é r e f o r ç a d a se o s v e s t i r m o s c o m r o u p a s h u m a n a s : c a l ç a s , s a i o t e s o u c h a p é u s . O u r s o n a f l o r e s t a , p r o c u r a n d o seu alim e n t o , n ã o é d e p e r si r i d í c u l o . M a s u m u r s o q u e é c o n d u z i d o p e l a s a l d e i a s e q u e i m i t a o s m e n i n o s r o u b a n d o e r v i l h a s , o u as m o ç a s se e m p o a n d o e p a s s a n d o b a t o m , p r o v o c a o riso. O h u m o r de obras c o m o o r o m a n c e d e E . T . A . H o f f m a n n , A filosofia cotidiana do gato Murr, b a s e i a - s e n o f a t o d e q u e o e s c r i t o r - a r t i s t a a t r a v é s d o s h á b i t o s d o a n i m a l via o h o m e m . E m t o d o s os c a s o s a p r e s e n t a d o s , a semelhança entre o h o m e m e o animal é bem imediata e direta. M a s o p e n s a m e n t o e x p r e s s o p o r T c h e r n i c h é v s k i m a n t é m a s u a validade t a m b é m nos casos em q u e a semelhança é r e m o t a e indireta. P o r q u e s ã o r i d í c u l a s as g i r a f a s ? À p r i m e i r a vista n ã o se p a r e c e m c o m as p e s s o a s . P o r é m , o a s p e c t o d e p a u - d e - v i r a r - t r i p a , o p e s c o ç o c o m p r i d o e estreito são possíveis t a m b é m n o h o m e m . Essas características l e m b r a m - n o s v a g a m e n t e o h o m e m , e isso j á b a s t a p a r a d e s p e r t a r n o s s o s e n s o d e r i d í c u l o . Difícil d i z e r p o r q u e é r i d í c u l o , p o r exemplo, u m g a t i n h o que c a m i n h a l e n t a m e n t e p a r a seu alvo, c o m o r a b o e s p e t a d o p a r a c i m a . M a s t a m b é m a q u i se e s c o n d e a l g o d e h u m a n o , q u e nós n ã o conseguimos definir de imediato. Exige algum r e p a r o a a f i r m a ç ã o de Tchernichévski de que o r e i n o v e g e t a l n ã o p o d e s u s c i t a r o r i s o . N o c o n j u n t o isso é v e r d a d e . M a s , se a r r a n c a r m o s u m r á b a n o e ele r e p e n t i n a m e n t e n o s l e m b r a r c o m seu perfil u m r o s t o h u m a n o , s u r g e e n t ã o a p o s s i b i l i d a d e d e rir. Tais exceções n ã o d e s m e n t e m , m a s c o n f i r m a m a exatidão da teoria. ^ P o r e n q u a n t o , d e t u d o o q u e foi d i t o , é possível t i r a r a c o n c l u são preliminar de que o cômico, sempre, direta ou indiretamente, e s t á l i g a d o a o h o m e m . A n a t u r e z a i n o r g â n i c a não^põcTe ser r i d í c u l a porque não tem nada em c o m u m com o homem. s
O CÔMICO NA NATUREZA
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A q u i torna-se necessário colocar u m a questão: em que consiste a d i f e r e n ç a específica e n t r e a n a t u r e z a i n o r g â n i c a e o h o m e m ? P o d e se d a r u m a r e s p o s t a e x a t a : \ o h o m e m se d i s t i n g u e d a n a t u r e z a i n o r g â n i c a p e l a p r e s e n ç a nele d e u m p r i n c í p i o e s p i r i t u a l , e n t e n d e n d o c o m este t e r m o o intelecto, a v o n t a d e e as e m o ç õ e s ^ A s s i m , através de u m c a m i n h o puramente lógico, chegamos à hipótese de que o cômico está s e m p r e ligado de algum m o d o j u s t a m e n t e c o m a esfera espirit u a l d a v i d a d o h o m e m p À p r i m e i r a vista i s t o p o d e p a r e c e r d u v i d o s o . D e f a t o , o h o m e m f r e q ü e n t e m e n t e é r i d í c u l o p o r seu a s p e c t o e x t e r i o r ( a calvície e t c ) . N o e n t a n t o , o s f a t o s d e m o n s t r a m q u e i s t o n ã o é realmente assim. As observações apresentadas permitem introduzir um reparo n a s o b s e r v a ç õ e s a r e s p e i t o d a c o m i c i d a d e d o s a n i m a i s . iA c o m i c i d a d e n o â m b i t o d a vida intelectual é possível a p e n a s p a r a o h o m e m , m a s a comicidade nas manifestações de vida emocional e volitiva é p o s s í v e l t a m b é m n o m u n d o d o s a n i m a i s ^ J D e s s e m o d o , se d e r e p e n t e u m c ã o e n o r m e c f o r t e se p õ e a fugir d e u m g a t o p e q u e n o e v a l e n t e , q u e se v o l t a c o n t r a ele p o r e s t a r s e n d o p e r s e g u i d o , isto p r o v o c a o riso p o r q u e l e m b r a u m a s i t u a ç ã o p o s s í v e l t a m b é m e n t r e o s h o m e n s . Isso d e m o n s t r a , entre o u t r a s coisas, que a a f i r m a ç ã o de certos filósofos de q u e os a n i m a i s seriam ridículos p o r seu a u t o m a t i s m o é nitidamente incorreta. Afirmações c o m o esta constituem a transferência d a teoria de Bergson p a r a o m u n d o d o s a n i m a i s . u e a c o m i c i d a d e se ligue n e c e s s a r i a m e n t e à v i d a e s p i r i t u a l do h o m e m , serve-nos p o r e n q u a n t o de hipótese preliminar. D a í , s u r g e a q u e s t ã o : s e r á q u e as c o i s a s p o d e m ser r i d í c u l a s ? À p r i m e i r a v i s t a , a o q u e p a r e c e , as c o i s a s n ã o p o d e m a b s o l u t a m e n t e ser ridículas. A l g u n s p e n s a d o r e s t a m b é m fizeram essa o b s e r v a ç ã o . Desse m o d o , K i r c h m a n n , por exemplo, acha q u e na base do cômico e x i s t e s e m p r e u m a a ç ã o a b s u r d a q u a l q u e r . M a s , c o m o as c o i s a s n ã o p o d e m praticar ações, é impossível q u e sejam ridículas. Ele escreve: i " U m a vez q u e o c ô m i c o só p o d e se d e s e n v o l v e r a p a r t i r d e a ç õ e s a b s u r d a s , torna-se evidente que as coisas i n a n i m a d a s não p o d e m ser r i d í c u l a s ' ^ P a r a q u e u m a c o i s a se t o r n e r i d í c u l a , s e g u n d o Kirc h m a n n , o h o m e m , c o m o auxílio da fantasia, deve transformá-la em c r i a t u r a viva. " A s coisas i n a n i m a d a s só p o d e m p r o v o c a r o riso q u a n d o a f a n t a s i a lhes d á v i d a e p e r s o n a l i d a d e " ( 5 0 , I I , 4 4 ) . É fácil c o n v e n c e r - s e d e q u e i s s o n ã o é v e r d a d e . U m a c o i s a p o d e se r e v e l a r r i d í c u l a n o c a s o d e t e r s i d o feita p e l o h o m e m , e se o h o m e m q u e a fez, i n v o l u n t a r i a m e n t e , r e f l e t i u n e l a a l g u m d e f e i t o d e s u a p r ó p r i a natureza: u m móvel a b s u r d o , chapéus ou r o u p a s insólitos p o d e m
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s u s c i t a r o r i s o . I s s o o c o r r e p o r q u e n e l a fica g r a v a d o o g o s t o d e seu criador, o q u a l n ã o coincide c o m o n o s s o . A s s i m , t a m b é m o ridículo das coisas está ligado necessariamente a a l g u m a m a n i f e s t a ç ã o da atividade espiritual do h o m e m . O q u e v a l e p a r a as c o i s a s , v a l e t a m b é m p a r a as o b r a s d e a r q u i tetura. H á teóricos que negam totalmente a possibilidade do cômico n a a r q u i t e t u r a (57, 28). As pessoas simples n ã o p e n s a m assim. Eis u m a conversa ouvida no campo: — M e n i n o , o n d e você m o r a ? — Lá, atrás d o bosque, tem u m a casinha ridícula, é nela que nós m o r a m o s . A casa era baixinha, extremamente absurda em suas proporções. Havia nela a m a r c a de u m construtor-artesão desajeitado. É possível l e m b r a r aqui a casa de S o b a k é v i t c h : Era evidente que, ao construí-la, o arquiteto tinha lutado constantemente c o m o g o s t o do dono. O a r q u i t e t o era pedante e queria a simetria, o dono, a c o m o d i d a d e , e por isso, c o m o dava para ver, tapara de um lado todas as janelas que a iluminavam e no lugar delas abrira u m a só, pequena, provavelmente necessária para uma escura despensa. Também o frontão não c o i n c i d i u c o m o meio da casa, por mais que o arquiteto se empenhasse, porque o dono m a n d a r a tirar uma c o l u n a lateral, e por isso ficaram não quatro, c o m o fora estabelecido, mas apenas t r ê s . 2
À o b s e r v a ç ã o d e q u e s o m e n t e o h o m e m o u a q u i l o q u e o lemb r a p o d e m ser r i d í c u l o s , d e v e m o s a c r e s c e n t a r m a i s u m a : a p e n a s o h o m e m p o d e rir. J á A r i s t ó t e l e s o n o t a r a . " D e t o d o s os seres vivos s o m e n t e a o h o m e m é d a d o r i r " — d i z ele e m s e u t r a t a d o s o b r e a a l m a (III, c a p . 10). E s s a idéia t e m s i d o r e p e t i d a i n ú m e r a s v e z e s . B r a n des, por e x e m p l o , expressou-a m u i t o clara e categoricamente: " S o m e n t e o h o m e m ri e s o m e n t e d e a l g u m a c o i s a d e h u m a n o " ( 4 3 , 278). cPor q u e s o m e n t e o h o m e m p o d e rir, n ó s n ã o v a m o s explicar d e t a l h a d a m e n t e agora. O animal p o d e alegrar-se, regozijar-se, até m e s m o m a n i f e s t a r s u a a l e g r i a c o m b a s t a n t e i m p e t u o s i d a d e , m a s ele n ã o p o d e rir. P a r a rir é p r e c i s o s a b e r v e r o r i d í c u l o ; e m o u t r o s c a s o s é p r e c i s o a t r i b u i r às a ç õ e s a l g u m v a l o r m o r a l (a c o m i c i d a d e d a a v a reza, da covardia e t c ) . Finalmente, p a r a apreciar u m trocadilho ou u m a a n e d o t a , é preciso realizar alguma operação mental. De t u d o isso o s a n i m a i s n ã o s ã o c a p a z e s , e t o d a s as t e n t a t i v a s ( d o s a p r e ciadores dos cães, por exemplo) de demonstrar o contrário estão de a n t e m ã o c o n d e n a d a s a o fracasso.)
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Trecho de Almas
mortas
de Gógol.
5 Observações iniciais
[O h o m e m e x p r e s s a d e m o d o m u i t o d i f e r e n ç a d o as e m o ç õ e s que lhe são suscitadas pelas impressões d o m u n d o exterior . j Q u a n d o nos assustamos, estremecemos; de medo, nós empalidecemos e c o m e ç a m o s a t r e m e r ; q u a n d o se d e s c o n c e r t a , o h o m e m e n r u b e s c e , b a i x a o s o l h o s ; d e s u r p r e s a , a o c o n t r á r i o , ele a r r e g a l a o s o l h o s e ergue os b r a ç o s . Nós c h o r a m o s de dor e c h o r a m o s t a m b é m q u a n d o c o m o v i d o s . i j v l a s d o q u e o h o m e m ri? Ri d o q u e é r i d í c u l o , d i r e m o s . Existem, certamente, outras causas t a m b é m , m a s esta é a mais c o m u m e natural/)No entanto, a afirmação de que " o h o m e m ri d o r i d í c u l o " é u m a t a u t o l o g i a q u e n ã o e s c l a r e c e n a d a . S ã o n e c e s sárias aqui explicações mais detalhadas. A n t e s de tentar d a r e f u n d a m e n t a r essas explicações, v a m o s n o s d e t e r e m d o i s o u t r ê s c a s o s e fazer a l g u m a s o b s e r v a ç õ e s p r e l i m i n a r e s , p r o c u r a n d o ser o m a i s e x a t o s p o s s í v e l . T o m e m o s o seguinte exemplo. U m o r a d o r faz u m discurso. P a r a n ó s n ã o i m p o r t a se ele é u m p r o f e s s o r f a z e n d o u m a c o n f e r ê n c i a , u m líder s o c i a l f a l a n d o n u m c o m í c i o , u m p r o f e s s o r e x p l i c a n d o a l i ç ã o , o u o u t r o q u a l q u e r . O h o m e m fala c o m a n i m a ç ã o , g e s t i c u l a e p r o c u r a ser c o n v i n c e n t e . D e r e p e n t e , p o u s a - l h e n o n a r i z u m a m o s c a . Ele a e s p a n t a . M a s , a m o s c a insiste. Ele a e s p a n t a de n o v o . F i n a l m e n t e , n a t e r c e i r a v e z , ele a a p a n h a , e x a m i n a - a p o r u m i n s -
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COMICIDADE E RISO
tante e depois a j o g a fora. Neste m o m e n t o , o efeito do discurso e s t a r á a n u l a d o , t o d o s o s o u v i n t e s c o m e ç a r ã o a rir. T o m e m o s o u t r o caso. N o c o n t o de Gógol sobre c o m o Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch brigaram, Ivan Nikíforovitch chega a o tribunal c o m u m a queixa c o n t r a Ivan Ivánovitch, m a s entala-se n a s p o r t a s d e t ã o g o r d o q u e é, ele n ã o c o n s e g u e se m o v e r n e m p a r a frente n e m p a r a trás. E n t ã o , u m d o s funcionários pressiona-lhe a barriga c o m o joelho e o e m p u r r a p a r a trás, depois disso abrem a outra metade da porta e Ivan Nikíforovitch entra. Terceiro caso. Imaginemos u m circo. Aparece u m palhaço. E s t á vestido c o m o alguém d a cidade, u s a n d o calças n o r m a i s , mas q u e lhe c a e m m a l , p a l e t ó , c h a p é u , b o t i n a s d e m a s i a d a m e n t e g r a n d e s . N o rosto, o sorriso largo de a l g u é m satisfeito consigo m e s m o . T r a z n o o m b r o algo e s t r a n h o , que a u m olhar mais a t e n t o revela-se u m a c a n c e l a d e j a r d i m . N o m e i o d a a r e n a , ele p o u s a c o m c u i d a d o a c a n c e l a n o c h ã o , l i m p a d i l i g e n t e m e n t e os p é s , d e p o i s a b r e a c a n c e l a , p a s s a a t r a v é s d e l a e c u i d a d o s a m e n t e ele t o r n a a f e c h á - l a . T e n d o f e i t o t u d o i s s o , v o l t a a c o l o c a r a c a n c e l a n o o m b r o e vai e m b o r a . O p ú b l i c o t o d o ri e a p l a u d e d e m o r a d a m e n t e . O q u e a c o n t e c e u e o q u e t ê m e m c o m u m estes t r ê s c a s o s ? N o p r i m e i r o c a s o , de início os presentes o u v e m a t e n t a m e n t e o o r a d o r . M a s q u a n d o a p a r e c e a m o s c a a \ a t e n ç ã o d o s o u v i n t e s se d i s p e r s a , m a i s p r e c i s a m e n t e , se d e s l o c a / E l e s j á n ã o ouvem o orad o r , m a s olham p a r a ele. NA a t e n ç ã o se t r a n s f e r e d e u m f e n ô m e n o de o r d e m espiritual p a r a u m f e n ô m e n o de o r d e m f í s i c a / N a percepção dos ouvintes o conteúdo d o discurso, u m princípio espiritual, é o b s c u r e c i d o p o r a q u i l o q u e o o r a d o r faz c o m a m o s c a , i s t o é, p o r u m f e n ô m e n o d e o r d e m física, e é d e s l o c a d o . E s t e d e s l o c a m e n t o , ou obscurecimento, ocorre de m o d o inesperado, mas ao m e s m o t e m p o é p r e p a r a d o ainda que m u i t o imperceptivelmente. N a consc i ê n c i a v e r i f i c a - s e u m a espécie d e s a l t o . P o r é m , o s a l t o é u m a m a n i festação súbita n o exterior de u m processo, que inadvertidamente se p r e p a r a v a n o i n t e r i o r . ^ N o c a s o e m q u e s t ã o , os o u v i n t e s j á v i n h a m sendo p r e p a r a d o s p o r alguns p o r m e n o r e s , alguns detalhes p o u c o perceptíveis, de m o d o a predispô-los a o riso, m a s a i n d a insuficient e s p a r a p r o v o c á - l o . O o r a d o r g e s t i c u l a e n f a t i c a m e n t e , e e s s a gestic u l a ç ã o j á é c ô m i c a , p o r q u e d e m o n s t r a q u e ele t e n t a c o n v e n c e r os ouvintes n ã o t a n t o c o m a força de seus a r g u m e n t o s q u a n t o c o m a f o r ç a d e seu c o n v e n c i m e n t o p e s s o a l . O e p i s ó d i o c o m a m o s c a r e m a t a a e x p l o s ã o q u e v i n h a se p r e p a r a n d o ^ M a s esse repentino o b s c u r e c i m e n t o , ou d e s l o c a m e n t o , n ã o é a única c o n d i ç ã o do riso. O riso d e m o n s t r a que o discurso d o ora-
OBSERVAÇÕES INICIAIS
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d o r n ã o era sério, sólido, consistente ou p r o f u n d o o bastante p a r a a r r e b a t a r r e a l m e n t e o s o u v i n t e s . C a s o c o n t r á r i o , eles n ã o r i r i a m t o d o s j u n t o s , ou a p e n a s sorririam, s i m p a t i z a n d o c o m o célebre erudito o u c o m o político famoso e p e r d o a n d o - l h e o p e q u e n o revés. A q u i n ã o p e r d o a m o revés. O episódio da mosca revelou algum defeito oculto nas ações o u n a natureza d o o r a d o r . N a história de G ó g o l o caso já é diferente, m a s n a essência é parecido c o m o primeiro. Ivan Nikíforovitch quer atravessar a porta, m a s s e u p r ó p r i o c o r p o o i m p e d e : ele é g o r d o d e m a i s . v o n t a d e d o h o m e m é atingida por circunstâncias de caráter absolutamente e x t e r i o r . N e s s e m o m e n t o , q u a n d o d e r e p e n t e se v e r i f i c a q u e a circunstância exterior é mais forte que o desejo d a pessoa, o espectad o r o u o l e i t o r d e s a n d a a r i r ) ' E l e vê s o m e n t e o c o r p o d e I v a n N i k í f o r o v i t c h , t o d o o r e s t o é m o m e n t a n e a m e n t e e s q u e c i d o . Se n o p r i meiro caso frustra-se u m a intenção intelectual, neste é frustrada uma intenção da vontade. E m Gógol, o riso é exteriormente p r o v o c a d o pelo fato de I v a n N i k í f o r o v i t c h se e n t a l a r n a p o r t a , m a s esse r i s o foi p r e p a r a d o p e l o a n d a m e n t o da narrativa e é parte orgânica dela. Ivan Nikíforovitch vai ao t r i b u n a l n ã o c o m a finalidade de d e n u n c i a r a l g u m crime trág i c o q u e exige p u n i ç ã o . E l e vai m o v i d o p o r u m " i m p u l s o " f a l s o e c a l u n i o s o c o n t r a seu e x - a m i g o . E s s e " i m p u l s o " t r a i a t o t a l i n s i g n i ficância e m e s q u i n h e z de suas intenções. N e m m e s m o sua corpulênc i a é f o r t u i t a : ele é g o r d o p o r c a u s a d e seu m o d o p r e g u i ç o s o d e viver, de s u a gulodice. A explosão d o riso o c o r r e n o instante e m q u e , p o r v o n t a d e d o a u t o r , o leitor n ã o vê o h o m e m c o m o u m t o d o , m a s a p e n a s s u a n a t u r e z a física. N o primeiro caso, a intenção anulada pelo orador possuía até certo p o n t o u m caráter elevado. E m Gógol, as intenções do h o m e m s ã o m e s q u i n h a s . É isso q u e d e t e r m i n a o c a r á t e r satírico d o riso gogoliano. N o terceiro caso, t a m b é m t e m o s em certo sentido u m a intenção d a vontade, mas esta n ã o implica q u a l q u e r revés. O h o m e m atravessa livremente a cancela. E n t ã o , o n d e está a comicidade? E m b o r a atravessar a cancela n ã o requeira u m esforço especial d a m e n t e ou d a v o n t a d e , isso n a vida é u m a t o s e n s a t o e indispensável. P a r a entrar n u m jardim ou n u m quintal, é preciso atravessar a canc e l a . M a s n e s t a p a l h a ç a d a , o a t o , d e p e r si r a c i o n a l , é i n s e n s a t o . E x i s t e a q u i t u d o o q u e n e s t e c a s o é possível n a v i d a : l i m p a r o s p é s , abrir c u i d a d o s a m e n t e a cancela, atravessá-la e fechá-la com c u i d a d o , m a s n ã o e x i s t e o p r i n c i p a l : n ã o existe a c a n c e l a c o m o e n t r a d a o u
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C O M I C I D A D E E RISO
p a s s a g e m r e a l , existe a p e n a s a a p a r ê n c i a d e t u d o i s s o , apenas a forma. Falta a cerca através da qual a cancela permitiria passar. Aqui não ocorre nenhum obscurecimento, porque não há nada p a r a e n c o b r i r . P o r t r á s d a m a n i f e s t a ç ã o d e v i d a d o c o r p o existe apenas o vazio. L i m i t e m o - n o s p o r e n q u a n t o a esses c a s o s . E l e s p e r t e n c e m a d i f e r e n t e s séries d e f a t o s . P o r é m , a o m e s m o t e m p o , eles m o s t r a m q u e tais séries d i f e r e n t e s e s c o n d e m u m p r i n c í p i o ú n i c o , q u e e n t r e elas p o d e - s e e n c o n t r a r a l g o d e c o m u m . N o e n t a n t o , é p o s s í v e l estabelecer q u e o r i s o nesses t r ê s c a s o s s u r g i a d a m a n i f e s t a ç ã o r e p e n tina de defeitos ocultos e de início t o t a l m e n t e imperceptíveis. \Daí, pode-se concluir q u e o riso é a p u n i ç ã o q u e nos d á a n a t u r e z a p o r u m d e f e i t o q u a l q u e r o c u l t o a o h o m e m , d e f e i t o q u e se n o s revela repentinamente) N e s s e s t r ê s c a s o s os d e f e i t o s se r e v e l a m d e m o d o s e m e l h a n t e : por meio de u m deslocamento instintivo ou intencional d a atenção d a s a ç õ e s i n t e r i o r e s p a r a as f o r m a s e x t e r i o r e s d e s u a m a n i f e s t a ç ã o , as q u a i s r e v e l a m esse d e f e i t o e o t o r n a m e v i d e n t e p a r a t o d o s . P o r o r a , a f i r m a m o s t u d o i s s o a t í t u l o d e h i p ó t e s e que" n u m e x a m e p o s t e r i o r p o d e ser c o r r o b o r a d a o u e x p o s t a c o m p r e c i s ã o e a d e n d o s . Essa hipótese surgiu c o m o conclusão d o e x a m e de u m g r a n d e n ú m e r o d e f a t o s , m a s p a r a fins d e c l a r e z a e d e s i s t e m a t i c i d a d e d e e x p o s i ç ã o foi o p o r t u n o a n t e c i p á - l a . U m a d e f i n i ç ã o , m u i t o p r e l i m i n a r e p o r e n q u a n t o t a m b é m h i p o t é t i c a , p r e c i s a ser feita d e s d e já: nem t o d o s os defeitos p r o v o c a m o riso, somente os m e s q u i n h o s . O s vícios n ã o p o d e m e m c a s o a l g u m ser o b j e t o d e c o m é d i a s : eles s ã o a t r i b u t o d e a l g u n s t i p o s d e t r a g é d i a s . A q u i , p o d e m ser t o m a d o s c o m o e x e m p l o o Boris Godunóv d e P ú c h k i n , o u Ricardo III d e S h a k e s p e a r e . E s s a o b s e r v a ç ã o j á foi feita p o r A r i s t ó t e l e s e essas mesmas idéias foram expressas p o r o u t r o s pensadores. " A comicid a d e r e p o u s a nas fraquezas e nas misérias h u m a n a s " , diz H a r t m a n n (16, 610), p o r e x e m p l o . E s s a s reflexões e o b s e r v a ç õ e s p r e l i m i n a r e s n o s a j u d a r ã o a a n a l i sar a q u e l e e n o r m e e v a r i a d o m a t e r i a l l i g a d o a o e s t u d o d o riso e d a c o m i c i d a d e , e n o s p e r m i t i r ã o e n c o n t r a r a s c o n s t a n t e s nele c o n t i d a s .
6 A natureza física do homem
(Se é v e r d a d e q u e n ó s r i m o s q u a n d o as m a n i f e s t a ç õ e s e x t e r i o r e s e físicas d a s a ç õ e s e d a s a s p i r a ç õ e s d o s h o m e n s e n c o b r e m seu s e n t i d o e s u a s i g n i f i c a ç ã o i n t e r i o r e se a p r e s e n t a m c o m o t r i v i a i s o u m e s q u i n h a s , é preciso e n t ã o começar p o r e x a m i n a r os casos mais s i m p l e s d e s t e p r i n c í p i o físicoy O c a s o m a i s s i m p l e s o c o r r e q u a n d o q u e m ri vê n a p e s s o a , a n t e s d e m a i s n a d a , s e u ser físico, o u s e j a , n o s e n t i d o literal d o t e r m o , seu c o r p o . É sabido por todos que os gorduchos c o s t u m a m parecer ridícul o s . A n t e s , p o r é m , d e t e n t a r d a r u m a e x p l i c a ç ã o p a r a este f a t o , é p r e c i s o v e r e m q u a i s c i r c u n s t â n c i a s isso é o u n ã o v e r d a d e . B e r g s o n d i z : " É c ô m i c a q u a l q u e r m a n i f e s t a ç ã o d o a s p e c t o físico d a p e r s o n a lidade, q u a n d o o p r o b l e m a diz respeito a seu aspecto e s p i r i t u a l ^ ( 9 , 5 1 ) . ( É fácil c o n v e n c e r - s e d e q u e n ã o é a b s o l u t a m e n t e i s s o , q u e n e m t o d a s as m a n i f e s t a ç õ e s d a n a t u r e z a física d a p e s s o a s ã o e n g r a ç a d a s , m e s m o q u a n d o revelam certas facetas espirituais. Existem g o r d o s que n ã o fazem rir. Balzac, por e x e m p l o , era h o m e m de cons i d e r á v e l o b e s i d a d e . S ó q u e seu p o d e r i n t e r i o r , s u a f o r ç a e s p i r i t u a l são t ã o evidentes, desde o primeiro olhar a t o d a a sua figura, que sua corpulência n ã o nos p a r e c e ridícula. H á u m a escultura de R o d i n q u e representa Balzac n u , c o m u m a barriga e n o r m e e pernas finas.
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COMICIDADE E RISO
É u m a figura d e f o r m a d a , m a s n ã o suscita o riso. É realizada c o m talento i n c o m u m : o escultor r o m p e c o m a tradição que vem desde a A n t i g ü i d a d e a t é a e s t é t i c a d o s é c u l o X V I I I , q u e exigia d a e s c u l t u r a , antes de mais n a d a , a representação d a beleza d o c o r p o h u m a n o . R o d i n expressa a força espiritual e a beleza interior de u m h o m e m d e c o r p o d e f o r m a d o . E n t r e o s escritores e o s p o e t a s r u s s o s , p o r e x e m p l o , d e s t a c a v a m - s e pela c o r p u l ê n c i a G o n t c h a r ó v e A p ú k h t i n , m a s isto n ã o o s t o r n a v a r i d í c u l o s . Q u a n d o o p r i n c í p i o e s p i r i t u a l p r e v a l e c e s o b r e o físico, n ã o o c o r r e o r i s o . M a s o r i s o n ã o a p a r e c e n e m n o caso o p o s t o , q u a n d o nossa a t e n ç ã o é atraída inteiramente pelo a s p e c t o físico d o h o m e m , s e m n a d a d e e s p i r i t u a l q u e a r e t e n h a . E s t e c a s o o c o r r e , p o r e x e m p l o , q u a n d o u m o b e s o vai a o m é d i c o , se c o n sultar. A obesidade, em sentido restrito, é u m a doença o u u m a anom a l i a . U m g o r d o q u e sofre c o m s u a d o e n ç a n ã o é r i d í c u l o d e m o d o a l g u m . O r i s o , n e s t e c a s o , é i m p o s s í v e l , p o i s o a s p e c t o e x t e r i o r é percebido fora de q u a l q u e r relação c o m a n a t u r e z a espiritual d o doente. A c o m i c i d a d e , p o r t a n t o , n ã o está n e m n a n a t u r e z a física n e m n a n a t u r e z a e s p i r i t u a l d o d o e n t e . E l a se e n c o n t r a n u m a c o r r e l a ç ã o d a s d u a s , o n d e a n a t u r e z a física p õ e a n u o s d e f e i t o s d a n a t u r e z a e s p i r i t u a l . Os gordos são ridículos q u a n d o seu aspecto, na percepção de q u e m o l h a p a r a eles, c o m o q u e e x p r e s s a a s u a essência. C o m o , n a v e r d a d e , é r a r o que e n c o n t r e m o s g o r d o s n a a n t e c â m a r a dos médicos e é igualm e n t e r a r o q u e os o b e s o s n o s i m p r e s s i o n e m p r i n c i p a l m e n t e p o r s u a força espiritual, p a r a o h o m e m m é d i o c o m u m e n o r m a l os gordos d a v i d a c o t i d i a n a s ã o t i d o s c o m o c ô m i c o s e n q u a n t o t a i s . O riso a u m e n t a se d e p a r a r m o s , d e r e p e n t e e i n e s p e r a d a m e n t e , c o m u m g o r d ã o , e, a o c o n t r á r i o , os g o r d o s q u e j á c o n h e c e m o s e q u e e n c o n t r a m o s t o d o d i a n ã o n o s fazem rir. N o s p r i m e i r o s a n o s d a r e v o l u ç ã o o s p o p e s , o s b u r g u e s e s , os proprietários de terra e os policiais e r a m sempre representados por g o r d o s . A o b e s i d a d e r e p r e s e n t a v a a i n s i g n i f i c â n c i a d e q u e m se a c h a v a p a i e s p i r i t u a l , d e q u e m se c o n s i d e r a v a a c i m a d e t o d o s os o u t r o s . N e s t e c a s o o e f e i t o c ô m i c o é u s a d o p a r a fins s a t í r i c o s : u m a barriga a v a n t a j a d a decorrente de u m a vida preguiçosa e forte às custas daqueles q u e t i n h a m q u e passar fome e t r a b a l h a r p a r a os o u t r o s . ^ O p r a z e r d o r i s o é i n t e n s i f i c a d o p e l o f a t o d e q u e esse p a r a s i t i s m o c h e g o u a o f i m . O r i s o é u m a a r m a d e d e s t r u i ç ã o : ele d e s t r ó i a falsa a u t o r i d a d e e a falsa g r a n d e z a d a q u e l e s q u e s ã o s u b m e t i dos ao escárnioJ P o r o u t r o l a d o , a s á t i r a p o d e t e r u m o u t r o c a r á t e r , m e n o s vistoso e evidente. A galeria dos g o r d o s gogolianos é bastante i m p o -
A NATUREZA FÍSICA DO HOMEM
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nente. A obesidade de Ivan Nikíforovitch torna-se repentinamente visível a o l e i t o r q u a n d o ele e s b a r r a n u m o b s t á c u l o — n a p o r t a , c o m o j á foi v i s t o a n t e r i o r m e n t e . T c h í t c h i k o v e M a n i l o v , e m b o r a n ã o sejam m u i t o gordos, m e s m o assim n ã o conseguem passar pela p o r t a j u n t o s : s u a g o r d u r a c o m o q u e se m u l t i p l i c a p o r d o i s . C a d a u m deles c e d e o p a s s o a o o u t r o e n e n h u m d o s d o i s q u e r e n t r a r p r i meiro. Bóbtchinski e Dóbtchinski t a m b é m têm sua barriguinha. Cabe lembrar, a propósito, Piotr Petróvitch Petukh, que Tchítchikov, a o entrar e m s u a p r o p r i e d a d e , vê n a á g u a , o n d e , j u n t o c o m os mujiques, está entretido e m puxar a rede: " [ . . . ] u m h o m e m cuja altura era quase igual à largura, c o m p l e t a m e n t e r e d o n d o , c o m o u m a m e l a n c i a . D e v i d o a s u a g o r d u r a ele n ã o c o n s e g u i r i a j a m a i s ir a t é o f u n d o " . " A h , c o m o ele é g o r d o ! " , e x c l a m a A g á f i a T í k h o n o v n a a o ver I a í t c h n i t s a , e m O casamento, de Gógol. U m a d a s p a r t i c u l a r i d a d e s d o estilo d e G ó g o l e s t á n o u s o d e certo m o d o comedido dos procedimentos da comicidade. Os gordos de G ó g o l n ã o são m u i t o g o r d o s , m a s n ã o é p o r isso q u e o efeito c ô m i c o d i m i n u i — a o c o n t r á r i o , ele se i n t e n s i f i c a . T u d o o q u e se disse d o c ô m i c o d a o b e s i d a d e v a l e t a m b é m para a impressão que, e m certas condições, p o d e produzir o corpo h u m a n o n u . Q u e condições são essas? P o r si s ó o c o r p o h u m a n o n u n a d a t e m d e r i d í c u l o . Q u a n d o a s f o r m a s s ã o h a r m o n i o s a s ele p o d e ser b e l í s s i m o , c o m o d e m o n s t r a m t o d a a escultura antiga e a e n o r m e q u a n t i d a d e de o b r a s de arte. Assim c o m o não é engraçado u m corpo gordo na antecâmara de u m m é d i c o , i g u a l m e n t e n ã o é u m c o r p o nu n a m e s a de o p e r a ções o u sob o estetoscópio. Basta p o r é m q u e u m h o m e m d e s n u d o ou m e s m o u m h o m e m e m cujo traje haja algo de e r r a d o apareça n o m e i o de pessoas c o r r e t a m e n t e vestidas, e q u e n ã o p e n s a m em seu p r ó p r i o c o r p o , q u e l o g o s u r g e a p o s s i b i l i d a d e d o r i s o . A c a u s a d o r i s o a q u i é a m e s m a q u e n o s c a s o s p r e c e d e n t e s : \ ) p r i n c í p i o físico que obscurece o princípio espiritual^ Piotr Petróvitch Petukh é retratado por Gógol não apenas c o m o gordo, mas t a m b é m desnudo. Avistando a carruagem de T c h í t c h i k o v ele sai d a á g u a " c o m u m a d a s m ã o s e m p a l a , e a o u t r a mais abaixo, c o m o a Vênus de Mediei, emergindo d o b a n h o " . 1
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Almas mortas. Trad, de Tatiana Belinky. São Paulo, Abril Cultural, 1972. p. 350. Esta passagem encontra-se ligeiramente modificada na tradução publicada, motivo pelo qual a citação foi traduzida a partir do texto de Propp. Literalmente, "omelete". Almas mortas, cit., p. 351.
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COMICIDADE E RISO
C o n f o r m e o caso, G ó g o l m o s t r a t a m b é m o u t r o s d e seus personagens sem qualquer r o u p a . Sempre, p o r é m , em cada situação, c o m o senso d a m e d i d a e o tato q u e lhe são próprios. Ele n u n c a chega à p o r n o g r a f i a , q u e n ã o seria a b s o l u t a m e n t e e n g r a ç a d a . E n g r a ç a d a é a semi-indecência. Q u a n d o T c h í t c h i k o v , de m a n h ã c e d o , a c o r d a n a casa d e K o r ó b o t c h k a , de q u e m é h ó s p e d e , " p e l a fresta da p o r t a e s p i o u u m r o s t o d e m u l h e r , q u e se e s c o n d e u i n c o n t i n e n t i , p o r q u e T c h í t c h i k o v , n a ânsia de d o r m i r m e l h o r , havia t i r a d o d o c o r p o toda a r o u p a " . 4
T a m b é m Ivan Nikíforovitch tira t o d a a r o u p a , devido ao g r a n d e calor, e nesse estado senta-se n o q u a r t o s o m b r e a d o pelas venezianas. "Desculpe-me por estar ao natural diante do s e n h o r " , d i z ele a I v a n I v á n o v i t c h q u e e s t á e n t r a n d o , m a s I v a n I v á n o v i t c h n ã o se p e r t u r b a e r e s p o n d e : " N ã o faz m a l " . N o z d r i ó v x i n g a seu c u n h a d o d e " f e t i n k " , e G ó g o l , a r e s p e i t o dessa passagem, fornece a seguinte n o t a : " ' F e t i n k ' é u m a palavra ofensiva p a r a u m h o m e m , p r o v é m d a letra 0 , considerada p o r alguns indecente". P o d e - s e r e p a r a r a q u i q u e a c o m i c i d a d e de G ó g o l só r a r a m e n t e se e x p l i c a p o r u m a c a u s a ú n i c a , e n q u a n t o , n a m a i o r i a d o s c a s o s , ela tem s e m p r e mais d o q u e u m a , a o m e s m o t e m p o . A s s i m , neste caso, a n o t a de Gógol é u m a paródia das notas eruditas, próprias dos artigos científicos. Desse m e s m o p r o c e d i m e n t o vale-se t a m b é m K o z m á P r u t k ó v . E n t r e seus " a f o r i s m o s m i l i t a r e s " h á u m q u e d i z : A Europa i n t e i r a se a d m i r a do t a m a n h ã o d o c h a p é u d o g e n e r a l .
O a f o r i s m o r e m e t e a u m a n o t a q u e d i z n ã o h a v e r ali n a d a d i g n o d e n o t a m a s q u e , " q u a n t o à r i m a e r r a d a , q u e seja e n v i a d a a o p r o c u r a d o r m i l i t a r p a r a q u e ele m e s m o p r o c u r e o u t r a " . O u t r o s e x e m p l o s c o m o esse d e s e m i - i n d e c ê n c i a p o d e r i a m ser reportados e m grande número. Vale a pena lembrar aqui mais u m a c e n a d e O inspetor geral, o m i t i d a p o r G ó g o l . A m u l h e r d o s u b o f i cial q u e i x a - s e a K h l e s t a k ó v d e q u e o p r e f e i t o m a n d o u c h i c o t e á - l a . " S e o s e n h o r n ã o a c r e d i t a , b e n f e i t o r , eu lhe m o s t r o a s m a r c a s . " E ele r e s p o n d e : " N ã o p r e c i s a , m ã e z i n h a . M e s m o s e m isso e u a c r e d i t o " . À l u z d o q u e foi d i t o p o d e - s e a p r e c i a r a m e s t r i a d e T c h é k h o v e m seu c o n t o A filha de Albion. O proprietário G r i a b o v está pesc a n d o n a c o m p a n h i a de u m a inglesa, g o v e r n a n t a de seus filhos. 4
Ibidem, p. 57.
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U m amigo alcança-o na margem. De repente o anzol engancha e é preciso despir-se e e n t r a r na á g u a . Afastar a inglesa é impossível, visto q u e ela n ã o c o m p r e e n d e o russo e n ã o vai e m b o r a . Griabov tirou as botas, as calças, tirou a roupa de baixo e ficou em trajes de Adão. — É preciso refrescar-se um pouco — disse ele, batendo-se nas costelas. — Diga-me, por favor, Fiódor Andréitch, por que será que todo verão me sai essa irritação no peito? — Pois entre na água ou cubra-se com alguma coisa! Animal! — Se ao menos ela se confundisse um pouco, a velhaca! — disse Griabov, entrando na água e fazendo o sinal-da-cruz. — Brr... Como é fria a água... N ã o v a m o s nos d e m o r a r naqueles casos e m que são descritas pessoas gordas, altas, ou, m u i t o pelo contrário, baixas e miúdas e s o b r e p o r q u e e l a s f a z e m r i r . O s d o i s p r o c e d i m e n t o s p o d e m se a c o plar. Assim o c o m p r i d o e seco tio Mitiai p a r e c e u m
campanário
e n q u a n t o a barriga do p e q u e n o e atarracado tio Miniai parece u m s a m o v a r . N u m s a r a u n a c a s a d o g o v e r n a d o r t o d o s o s h ó s p e d e s dividem-se em magros e gordos. Os gordos é que têm sucesso. Tchítchik o v s e n t e s i m p a t i a j u s t a m e n t e p e l o s g o r d o s e é a eles q u e se j u n t a . ( U m a atenção mais circunstanciada é exigida pela comicidade n ã o apenas do corpo h u m a n o e n q u a n t o tal, m a s de certas ações e funções corporais. N a literatura satírica e humorística, o primeiro l u g a r é o c u p a d o p e l a comida.
D o p o n t o de vista teórico a comici-
d a d e d a c o m i d a se e x p l i c a d o m e s m o m o d o q u e t o d o s os c a s o s p r e c e d e n t e s . ) 0 a t o d e c o m e r n a d a t e m d e c ô m i c o e m si, m a s p a s s a a s e r c ô m i c o n a s m e s m a s c i r c u n s t â n c i a s e m q u e p a s s a m a sê-lo o s o u t r o s objetos d a comicidade, c o m base nas considerações j á feitas. G ó g o l n ã o p e r d e o c a s i ã o p a r a d e s c r e v e r a m e s a , q u e p o r isso m e s m o se a p r e s e n t a c o p i o s a e f a r t a . O s p r a t o s e a s i g u a r i a s s ã o d e s c r i t o s às vezes de relance, às vezes b e m d e t a l h a d a m e n t e . M u i t o freqüentem e n t e a c o m i d a caracteriza os comensais. Afanássi Ivánovitch e Pulkhéria Ivánovna comem não apenas nas horas
estabelecidas,
mas a qualquer hora do dia e d a noite. A p ó s o café c o m e m fogaças c o m t o u c i n h o , b o l i n h o s c o m sementes d e p a p o u l a ,
cogumelos
na salmoura; u m a hora antes do almoço Afanássi Ivánovitch bebe u m c o p o de v o d c a a c o m p a n h a n d o - o c o m c o g u m e l o s , peixinhos secos e a s s i m p o r d i a n t e . T u d o i s s o , c o m o os o u t r o s p r a t o s u c r a n i a n o s ou n ã o , caracteriza a economia d a casa, a m a n e i r a de vida, a configuração espiritual dos próprios d o n o s .
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E m Almas mortas T c h í t c h i k o v a l m o ç a c o m t o d o s o s p r o p r i e t á rios e c o m c a d a u m de m a n e i r a diferente. N a casa de Sobakévitch conversa-se sobre cada p r a t o . São servidos à mesa os seguintes prat o s : s o p a d e c o u v e , niânia, o u s e j a , e s t ô m a g o d e b o d e r e c h e a d o d e papa de trigo sarraceno, miolo e perninhas, l o m b o de bode c o m polenta, fogaças, cada uma grande c o m o um p r a t o , peru recheado d e o v o s , a r r o z , f i g a d i n h o s e " s ó D e u s s a b e o q u e m a i s , q u e se p o u sava c o m o u m a pedra no e s t ô m a g o " . T o d o o repasto caracteriza o sólido Sobakévitch. J á na casa do a v o a d o Nozdrióv, a comida é r u i m e o s v i n h o s a z e d o s , e n q u a n t o n a c a s a d e K o r ó b o t c h k a as t o r t a s s ã o feitas c o m m u i t a m e s t r i a . A t é m e s m o n a c a s a d e P l i ú c h k i n algo é oferecido a Tchítchikov; chá c o m bolachas m o f a d a s e u m licor c o m u m a m o s c a d e n t r o , o q u e se c o a d u n a p l e n a m e n t e c o m o c a r á t e r d o d o n o d a c a s a . O e s t o u v a m e n t o d e K h l e s t a k ó v se m a n i festa n a s s u a s p a l a v r a s d e p o i s d o a l m o ç o , n a i n s t i t u i ç ã o d e c a r i d a d e : " E u g o s t o d e c o m e r . P o r a c a s o n ã o se vive j u s t a m e n t e p a r a colher as flores d o p r a z e r ? " O t í m i d o Ivan F i ó d o r o v i t c h C h p o n k a é m o s t r a d o de m a n e i r a diferente: a i n d a r a p a z o t e , n a sala de aula, c o m e n d o u m a p a n q u e c a de m a n t e i g a , e s c o n d i d o a t r á s de u m livro, até o professor descobri-lo. Talvez n e n h u m o u t r o escritor tenha s a b i d o d e s c r e v e r a p e t i t e e i g u a r i a s c o m o o fez G ó g o l . B a s t a l e m b r a r c o m o , e m O inspetor geral, Ó s s i p e d e p o i s seu p a t r ã o e x p r e s s a m seu e n o r m e a p e t i t e e c o m o G ó g o l fala d o a p e t i t e d o s p r o p r i e t á rios d e m e i a - t i g e l a e m Almas mortas. Q u a n d o K o r ó b o t c h k a chega na cidade c o m seu estranho c a r r o " o pastelão de frango e o pastelão de pepinos d e s p o n t a v a m p a r a f o r a " . Bom garfo, convicto e coerente é Piotr Petróvitch Petukh. P a r a ele c o m i d a e i g u a r i a s s ã o o ú n i c o c o n t e ú d o d a v i d a . E n t r e os escritores russos que descreveram c o m i c a m e n t e a c o m i d a , p o d e m o s l e m b r a r T c h é k h o v e seu c o n t o " S e r e i a " , o n d e u m s e c r e t á r i o d e s creve os diferentes p r a t o s c o m t a m a n h o apetite q u e n i n g u é m consegue trabalhar. \ C o m motivações um p o u c o diferentes das d a comicidade do c o m e r n a s c e a c o m i c i d a d e d a bebida e d a embriaguez. A embriag u e z só é e n g r a ç a d a q u a n d o n ã o é t o t a l . N ã o s ã o e n g r a ç a d o s os b ê b a d o s , m a s o s " a l t o s " . A e m b r i a g u e z q u e c h e g a a o vício n u n c a p o d e ser r i d í c u l a ) K h l e s t a k ó v q u e volta de u m l a u t o j a n t a r sem l e m b r a r o n d e esteve e r e p e t e c o m p r a z e r a p a l a v r a n o v a p a r a ele " l a b a r d a n " é 5
Labardan
= bacalhau.
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u m exemplo típico de u m a f o r m a cômica de bebedeira. Gógol, entretanto, z o m b a com gosto t a m b é m das formas mais pesadas dessa condição. Cocheiros experimentados levam p a r a casa seus d o n o s embriagados e sabem, com u m a m ã o , segurar as rédeas e com a outra, v i r a d a p a r a t r á s , s u s t e n t a r os p a s s a g e i r o s . E m A carruagem lemos: Tchertokútski, apesar de todo seu aristocratismo, fazia reverências tão profundas e desviando tanto a cabeça dentro da carruagem onde estava sentado que, ao chegar em casa, tinha duas bardanas penduradas em suas orelhas. ( C o m o e m c e r t o s c a s o s p o d e ser r i d í c u l o o c o r p o h u m a n o , d a m e s m a f o r m a s ã o q u a s e s e m p r e ridículas as f u n ç õ e s fisiológicas i n v o l u n t á r i a s desse m e s m o c o r p o ^ D e T c h í t c h i k o v diz-se: " E m seus m o d o s d e s e n h o r ele t i n h a a l g o d e s ó l i d o e a s s o a v a o n a r i z d e m a n e i r a e x t r e mamente barulhenta". " O litígio" começa com arrotos prolongados e soluços do protagonista. E m suas anotações sobre Gógol, A k s á k o v c o n t a c o m o isso e r a r e c e b i d o p e l o s o u v i n t e s n a i n t e r p r e t a ç ã o n a t u r a l i s t a e m e s m o a s s i m a r t í s t i c a feita pelo p r ó p r i o G ó g o l . E m Ivan Fiódorovitch Chponka, Vassilissa K a c h p á r o v n a lemb r a a C h p o n k a s u a i n f â n c i a , q u a n d o ele, c o m seu c o m p o r t a m e n t o i n f a n t i l , l h e s u j a r a a r o u p a . U m a d a s p r o p r i e d a d e s físicas d o h o m e m está em seu cheiro específico. O cheiro q u e emite P é t r u c h k a o a c o m p a n h a p e l o r e l a t o i n t e i r o e m Almas mortas. A c o m i c i d a d e d o c h e i r o é u s a d a t a m b é m em o u t r o s episódios. A o beijar a m ã o de F r o d ú l i a Ivânovna, Tchítchikov tem o p o r t u n i d a d e de n o t a r " q u e as m ã o s t i n h a m sido lavadas c o m s a l m o u r a de p e p i n o s " . O u s o d e p e r f u m e s p o r p a r t e d a s s e n h o r a s p o d e ser a p r o v e i t a d o p a r a fins c ô m i c o s e s a t í r i c o s , q u a n d o eles e x p r i m e m d e m a s i a d o c l a r a m e n t e as i n t e n ç õ e s d e s s a s m e s m a s s e n h o r a s . " A s s e n h o r a s aqui o envolveram como u m a esplendorosa guirlanda e carregaram consigo inteiras nuvens de eflúvios de t o d a sorte: u m a cheirava a rosas, de outra depreendia-se primavera e violetas, u m a terceira estava completamente impregnada de resedá: Tchítchikov levantava a p e n a s o nariz e f a r e j a v a . " A n a l o g a m e n t e , diz-se de u m a linda senhora: " J a s m i n s adejaram pelo c ô m o d o inteirinho". J á c o m o s h o m e n s o c a s o é o u t r o , e s p e c i a l m e n t e q u a n d o se t r a t a d e f u n c i o n á r i o s p ú b l i c o s : u m f u n c i o n á r i o d a c h a n c e l a r i a e seu ajud a n t e " c o m o b a f o d e s u a b o c a d i f u n d i r a m u m c h e i r o t ã o forte q u e o e s c r i t ó r i o inteiro t r a n s f o r m o u - s e p o r u m m o m e n t o n u m a t a b e r n a " . T o d o s esses e x e m p l o s c o n s t i t u e m u m a c a t e g o r i a de m a n i f e s t a ções e n ã o há necessidade que nos d e m o r e m o s em c a d a u m deles, em particular.
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COMICIDADE E RISO
N o q u e se r e f e r e à c o m i c i d a d e s u s c i t a d a e m c e r t o s c a s o s p e l o corpo h u m a n o , é preciso notar que algumas personagens de Gógol se p r e o c u p a m a l é m d a m e d i d a c o m seu aspecto. O leitor presencia r e p e t i d a m e n t e a c e n a d e T c h í t c h i k o v q u e faz a b a r b a : " A p ó s u m c u r t o s o n o v e s p e r t i n o ele o r d e n o u q u e l h e t r o u x e s s e m o n e c e s s á r i o p a r a b a r b e a r - s e e d u r a n t e u m t e m p o e x t r e m a m e n t e l o n g o ficou e n s a b o a n d o as bochechas, esticando-as no interior da b o c a c o m a l í n g u a " . G ó g o l r e p a r a , d e leve, q u e a T c h í t c h i k o v a g r a d a seu q u e i x o , perfeitamente redondo. Vemos t a m b é m c o m o Tchítchikov aperta a b a r r i g a c h e i a c o m u m a fivela, p r e n d e os s u s p e n s ó r i o s , d á o n ó na gravata e borrifa-se com água de colônia. Algumas outras personagens de G ó g o l d e m o n s t r a m os m e s m o s c u i d a d o s . K h l e s t a k ó v prefere p a s s a r f o m e a v e n d e r s u a s c a l ç a s e l e g a n t e s . A l g u n s n o i v o s d e O casamento p r e o c u p a m - s e de m o d o especial c o m suas r o u p a s . " P o r f a v o r , b e n z i n h o , l i m p e u m p o u c o a q u i " , diz T e v á k i n , e n t r a n d o n a c a s a d e A g á f i a T í k h o n o v n a . E l e se p r e o c u p a c o n s t a n t e m e n t e que em sua j a q u e t a n ã o haja u m grão qualquer de poeira. U m a d a s p a r t i c u l a r i d a d e s d e s s e s e x e m p l o s é q u e os f e n ô m e n o s n e g a t i v o s n u n c a s ã o d e s c r i t o s c o m t o d o s os d e t a l h e s e a t é o f i m , p o i s isso j á n ã o s e r i a m a i s c ô m i c o . O e s c r i t o r - a r t i s t a c o m o q u e a d i v i n h a c o m o seu i n s t i n t o este l i m i t e d a a r t e . A p r e s e n ç a d e s s e l i m i t e é característica da literatura principalmente dos séculos X I X e X X , e n q u a n t o isso n ã o o c o r r e c o m a l i t e r a t u r a d o s s é c u l o s p r e c e d e n t e s (Rabelais) e d o folclore. O rosto h u m a n o p o d e ser c ô m i c o d e m u i t a s m a n e i r a s . O s o l h o s n ã o p o d e m s e r r i d í c u l o s — eles s ã o o e s p e l h o d a a l m a . O l h o s m a u s , c o m o expressão de certa alma, n ã o são ridículos, m a s suscitam u m s e n t i d o d e h o s t i l i d a d e . O l h o s p e q u e n o s e s u í n o s p o d e m ser e n g r a ç a d o s . N a v e r d a d e o e n g r a ç a d o a q u i n ã o s e r i a m os o l h o s , m a s a a u s ê n cia d e e x p r e s s ã o n e l e s . E n g r a ç a d o s p o d e m ser o s o l h o s u n t u o s o s : " O s olhos dele são untuosos até a náusea, parece q u e passaram neles ó l e o d e r í c i n o " ( T c h é k h o v , Sem lugar). A o contrário, o nariz, e n q u a n t o expressão de funções puram e n t e físicas, t o r n a - s e f r e q ü e n t e m e n t e o b j e t o e f a t o r d e z o m b a r i a . Nas expressões populares "fazê-lo por baixo do n a r i z " , "deixá-lo c o m u m p a l m o de n a r i z " , " m o s t r a r o n a r i z " , tem o significado d e e n g a n a r , e n g a b e l a r . G ó g o l faz d i s s o u s o a b u n d a n t e . " V o c ê viu c o m q u e n a r i z c o m p r i d o ele s a i u ? " p e r g u n t a K o t c h k á r i e v a P o d k o léssin a r e s p e i t o d e T e v á k i n e m O casamento. " E u , reconheço, não e n t e n d o c o m o as m u l h e r e s c o n s e g u e m n o s l e v a r p e l o n a r i z c o m t a n t a h a b i l i d a d e , c o m o se fosse a a l ç a d a c h a l e i r a : o u as m ã o s d e l a s
A NATUREZA FÍSICA DO HOMEM
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s ã o feitas e s p e c i a l m e n t e p a r a isso o u n o s s o s n a r i z e s n ã o v a l e m m a i s n a d a . . . " " E a p e s a r d o n a r i z d e I v a n N i k í f o r o v i t c h ser u m t a n t o p a r e cido c o m u m a ameixa, ela (ou seja, Agáfia Fedosséevna — V . P . ) o a g a r r o u j u s t a m e n t e p e l o n a r i z e o a r r a s t o u a t r á s d e si, c o m o u m c a c h o r r i n h o . " L e m b r a r o nariz de um h o m e m coloca-o n u m a posiç ã o r i d í c u l a , s u s c i t a a z o m b a r i a . " E i , v o c ê , n a r i g ã o " , diz d e si p r ó prio o prefeito. " S e u nariz t a m b é m é h o r r í v e l " , diz u m a s e n h o r a a r e s p e i t o d e T c h í t c h i k o v . E m O casamento e n c o n t r a m o s u m elogio do nariz: — — — —
E os c a b e l o s d e l e c o m o são? São bonitos. E o nariz? El... o nariz t a m b é m é b o n i t o ; t u d o n o d e v i d o lugar.
Este " E l . . . " deixa entender q u e K o t c h k á r i e v está m e n t i n d o aqui e que o nariz, n a verdade, não é t ã o b o n i t o assim, m a s está a p e n a s " e m seu d e v i d o l u g a r " . A f i g u r a d o g u a r d a e m O capote é c ô m i c a g r a ç a s à m e n ç ã o d e seu n a r i z : " A p a l p o u s ó u m m i n u t i n h o a b o t a e t i r o u d e lá u m a t a b a q u e i r a c o m r a p é p a r a a l i v i a r seu n a r i z q u e j á h a v i a c o n g e l a d o seis v e z e s n a v i d a " . 6
E m A avenida Niévski , o sapateiro H o f f m a n n , bêbado, quer c o r t a r o nariz de Schiller. N o c o n t o " O n a r i z " este p r o c e d i m e n t o é c o l o c a d o n a b a s e d a h i s t ó r i a . O n a r i z p o d e d e i x a r seu l u g a r e ir p a s s e a r p e l a a v e n i d a N i é v s k i c o m o se fosse u m c o n s e l h e i r o d e E s t a d o . M a s n ã o é u m conselheiro de Estado. É u m nariz. O m u n d o c o m o e n g a n o , c o m o alguém q u e é levado pelo nariz, p o d e v i r a r - s e d o l a d o c ô m i c o p a r a seu l a d o t r á g i c o . O Diário de um louco t e r m i n a c o m o g r i t o d a a l m a d o infeliz l o u c o P o p r í s c h i n , p a r a quem a vida é apenas tormento, p a r a quem não há lugar na t e r r a e a q u e m s ó p e r s e g u e m . M a s este g r i t o t r á g i c o c o n c l u i - s e c o m u m a risadinha d o louco. " V o c ê s s a b e m que o bei de Argel t e m u m a verruga b e m e m b a i x o d o n a r i z ? " Os p r o c e d i m e n t o s são os m e s m o s d o s o u t r o s c a s o s e m q u e se c r i a o e f e i t o c ô m i c o , m a s o l i m i t e i n d i s p e n s á v e l p a r a q u e se crie e s t e e f e i t o a q u i n ã o é r e s p e i t a d o d e p r o p ó s i t o e o r i s o d e G ó g o l se t r a n s f o r m a d i a n t e d e n o s s o s o l h o s e m seu reverso t r á g i c o . M a s desse reverso trágico d o riso de Gógol falaremos mais adiante. E m outros escritores russos a referência a o nariz para criar u m a i m p r e s s ã o c ô m i c a e s a t í r i c a se e n c o n t r a m u i t o m a i s r a r a m e n t e . E m Esboços da província ("O primeiro conto do escriba")
6
Trad, de Aríete O. Cavaliere. São Paulo, Livraria Escrita, 1981.
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COMICIDADE E RISO
S a l t i k ó v - S c h e d r i n c o n t a c o m o u m m é d i c o d e d i s t r i t o se p r e p a r a para "seccionar" um afogado e pede ajuda aos camponeses. Na v e r d a d e ele s ó q u e r g a n h a r a l g u m a c o i s a p a r a si e d e s p a c h á - l o s : " V o c ê , a í , G r i c h u k h a , vê se s e g u r a o d e f u n t o p e l o n a r i z , p a r a eu c o r t a r m a i s f á c i l " . O m u j i q u e , a t e r r o r i z a d o , p e d e p a r a ser l i b e r a d o . " B e m , p o s s o liberá-lo, claro, mas traga-me a l g u m a coisa em t r o c a . " Nas estampas populares as figuras cômicas (Petruchka) são freqüentemente representadas com um enorme nariz avermelhado. N o teatro de P e t r u c h k a u m c a c h o r r o agarra-o de repente pelo nariz e c o m isso a peça t e r m i n a . N a s e s t a m p a s p o p u l a r e s q u e se r e f e r e m à i n v a s ã o e à e x p u l s ã o d e N a p o l e ã o ele é r e p r e s e n t a d o s e n t a d o n a p o l t r o n a c o m u m g r a n d e n a r i z , e a l e g e n d a diz o s e g u i n t e : Embora t e n h a c h e g a d o e m c a s a d e s c a l ç o e d e s n u d o N ã o d e i x o u a s s i m m e s m o de ser o n a r i g u d o
U m n a r i z e n o r m e se e n c o n t r a m u i t o f r e q ü e n t e m e n t e n a s e s t a m pas populares e nas tchastúchkas : 1
T e n h o u m a m u l h e r m u i t o linda Sob o nariz é e m p o a d a Por t o d o o resto ela p i n g a (27, 322).
B i g o d e s e b a r b a s , q u a n d o se s o b r e p õ e m a o s o u t r o s t r a ç o s d o r o s t o p r o p r i a m e n t e e s p i r i t u a i s , p o d e m ser eles t a m b é m a l v o d e z o m b a r i a . Barba é a p e l i d o j o c o s o d e c o m e r c i a n t e s e b o i a r d o s . Não, n ã o — diz A g á f i a T i k h o n o v n a do noivo que lhe p r o p õ e a casam e n t e i r a . — Ele t e m barba e q u a n d o for c o m e r t u d o e s c o r r e r á pela barba. N ã o , não, não quero.
A b o c a p o d e p r o v o c a r o riso q u a n d o e x p r i m e sentimentos r e c ô n d i t o s h o s t i s o u q u a n d o o h o m e m p e r d e o c o n t r o l e s o b r e ela.
7
Tipo de refrão próprio da poesia popular oral. Versa sobre argumento jocoso ou lírico e é contado sobre um determinado motivo musical.
7 A comicidade da semelhança
A s o b s e r v a ç õ e s feitas a t é a q u i n o s p e r m i t e m resolver a q u e s t ã o c o l o c a d a p o r P a s c a l e m seus Pensamentos (Pensées): " P o r q u e duas p e s s o a s q u e se p a r e c e m , a o s e r e m vistas j u n t a s , s u s c i t a m e m n ó s o riso p e l o f a t o d e se a s s e m e l h a r e m ? " A o r e s p o n d e r a essa p e r g u n t a , antes de mais nada, e c o m o em outros casos de dificuldade teórica, t e m o s q u e n o s c o l o c a r a s e g u i n t e q u e s t ã o : " É s e m p r e isso q u e o c o r r e ? E m que condições a semelhança é cômica e e m quais não o é ? " A s e m e l h a n ç a n e m s e m p r e é cômica. O s pais de gêmeos n ã o a c h a r ã o c ô m i c a s u a s e m e l h a n ç a . D a m e s m a f o r m a g ê m e o s q u e se assemelham n ã o parecerão cômicos àqueles que os vêem t o d o s os d i a s e q u e e s t ã o a c o s t u m a d o s a e l e s . ('Disso d e c o r r e q u e a c o m i c i d a d e d a s e m e l h a n ç a se d e t e r m i n a e m f u n ç ã o d e c a u s a s p a r t i c u l a r e s que nem sempre ocorrem. (Observando mais atentamente, a semel h a n ç a p o d e r á ser c ô m i c a o u n ã o p e l a s m e s m a s c a u s a s p e l a s q u a i s n ó s , e m g e r a l , r i m o s . J á v i m o s q u e o r i s o é. p r o v o c a d o pela r e p e n t i n a d e s c o b e r t a d e a l g u m d e f e i t o o c u l t o . Q u a n d o este d e f e i t o n ã o existe o u q u a n d o nós n ã o o identificamos, n ã o rimos} E, neste c a s o , o n d e está o defeito? A premissa inconsciente de nossa avaliação d o h o m e m , d e n o s s a a p r e c i a ç ã o e d e n o s s a e s t i m a p o r ele r e s i d e n o fato de q u e cada h o m e m é u m a individualidade irrepetível. O c a r á t e r d a p e r s o n a l i d a d e se e x p r i m e n o r o s t o , n o s m o v i m e n t o s , e m
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COMICIDADE E RISO
sua m a n e i r a de p o r t a r - s e . A o d e s c o b r i r m o s de r e p e n t e q u e d u a s pess o a s s ã o a b s o l u t a m e n t e i d ê n t i c a s e m seu a s p e c t o físico, c o n c l u í m o s i n c o n s c i e n t e m e n t e q u e elas s ã o i d ê n t i c a s t a m b é m e m seu a s p e c t o e s p i r i t u a l , i s t o é, n ã o p o s s u e m d i f e r e n ç a s i n d i v i d u a i s i n t e r i o r e s . É j u s t a m e n t e a d e s c o b e r t a d e s t e d e f e i t o q u e n o s l e v a a r i r . O s pais d e g ê m e o s n ã o r i e m p o r q u e eles s a b e m d i s t i n g u i r p e r f e i t a m e n t e c a d a u m dos filhos, m e s m o sendo externamente idênticos. P a r a eles c a d a u m é u m a i n d i v i d u a l i d a d e i r r e p e t í v e l . A s o u t r a s p e s s o a s q u e os vêem t o d o s os dias n ã o riem p o r q u e o riso n ã o n a s c e apenas d a p r e s e n ç a d e d e f e i t o s , m a s d e s u a repentina e inesperada descob e r t a . P o d e ser q u e a q u e l a s m e s m a s p e s s o a s t e n h a m r i d o deles a p r i m e i r a vez q u e os v i r a m : a g o r a a c o s t u m a r a m - s e e n ã o r i e m m a i s . P o r é m , a semelhança entre gêmeos é apenas u m caso particular, aliás r e l a t i v a m e n t e r a r o , d e c o m i c i d a d e suscitada p e l a s e m e l h a n ç a , A s e m e l h a n ç a p o d e fazer rir n o s c a s o s m a i s diversos. E n c o n t r a m o s e x e m p l o s e m G ó g o l . " U m d o s p r o c e d i m e n t o s d a c o m é d i a clássica é a repet i ç ã o " — diz B e r g s o n . Seria m a i s e x a t o falar n ã o d e r e p e t i ç ã o , m a s d e d u p l i c a ç ã o . U m e x e m p l o clássico s ã o B ó b t c h i n s k i e D ó b t c h i n s k i . O s a t o r e s q u e r e p r e s e n t a r a m p e l a p r i m e i r a vez O inspetor geral n ã o entenderam a intenção de Gógol e procuraram torná-los cômicos e m si, r e p r e s e n t a n d o - o s s u j o s , d e s c a b e l a d o s , m o n s t r u o s o s , l e v a n d o G ó g o l a o d e s e s p e r o , u m a vez q u e n a s u a c o n c e p ç ã o ele o s v i a " r a zoavelmente limpos, g o r d i n h o s e c o m os cabelos d e c e n t e m e n t e pent e a d o s " . A c o m i c i d a d e está na s e m e l h a n ç a , n ã o e m algo maisy P e q u e n a s d i f e r e n ç a s c o n t r i b u e m p a r a r e f o r ç a r as s e m e l h a n ç a s . Bóbtchinski e Dóbtchinski n ã o são em absoluto o único caso d e d u p l i c a ç ã o d e p e r s o n a g e n s . O u t r o c a s o é o d o tio Mitiai e d o tio M i n i a i , T e m í s t o c l e s e Alcides, filhos d e M a n i l o v , a s e n h o r a simplesm e n t e a g r a d á v e l e a s e n h o r a a g r a d á v e l s o b t o d o s o s p o n t o s d e vista. Nessa m e s m a c a t e g o r i a d e v e m ser c o m p r e e n d i d o s p a d r e C a r p o e p a d r e Policarpo, que, conforme esperam os herdeiros, enterrarão Pliúchkin. O u t r o s escritores servem-se mais r a r a m e n t e deste p r o c e d i m e n t o . N a c o m é d i a d e O s t r ó v s k i O bonitão destacam-se dois desocupados, Pierre e G e o r g e . " S ã o dois boas-vidas q u e n ã o t e r m i n a r a m os estud o s , p a r e c i d o s c o m o d u a s g o t a s d e á g u a . " O m e s m o se d á n a c o m é d i a Os trapaceiros , N e d o n ó s k o v e N e d o r ó s t k o v , " j o v e n s vestidos na última m o d a " . S o m e n t e em certa m e d i d a p o d e m participar dessa c a t e g o r i a S t c h a s t l i v t s e v e N i e s t c h a s l i v t s e v n a c o m é d i a A floresta , 1
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[Krassavets Muchtchina]. [Chútniki]. Lies, no original.
A COMICIDADE DA SEMELHANÇA
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d e O s t r ó v s k i . S u a c o m i c i d a d e n ã o se b a s e i a a p e n a s n a s e m e l h a n ç a , mas igualmente no contraste. A comicidade aumenta à medida que figuras a b s o l u t a m e n t e parecidas c o m e ç a m a brigar e a xingar-se. Bóbtchinski e Dóbtchinski brigam freqüentemente um com o outro. E l e s se c h o c a m i n c l u s i v e f i s i c a m e n t e . C o n g r a t u l a n d o - s e c o m A n n a A n d r é i e v n a " a m b o s se a p r o x i m a m a o m e s m o t e m p o e se c h o c a m c o m a t e s t a " . D u a s s e n h o r a s e m Almas mortas brigam o tempo t o d o . O exemplo mais evidente de antagonistas c o m p l e t a m e n t e semel h a n t e s e n t r e si s ã o I v a n I v á n o v i t c h e I v a n N i k í f o r o v i t c h . A p e s a r d e s u a s d i f e r e n ç a s , eles s ã o c o m p l e t a m e n t e i d ê n t i c o s . A c a b e ç a d e Ivan Ivánovitch parece-se com u m rabanete c o m o rabicho p a r a b a i x o , e n q u a n t o a de I v a n Nikíforovitch tem o r a b i c h o p a r a cima. I v a n I v á n o v i t c h b a r b e i a - s e d u a s vezes p o r s e m a n a e I v a n N i k í f o r o vitch u m a vez só; Ivan Ivánovitch tem olhos expressivos cor de t a b a c o ; I v a n N i k í f o r o v i t c h , a m a r e l o s , e a s s i m p o r d i a n t e . Só q u e esses p o n t o s d e d i f e r e n ç a s ó c o n t r i b u e m p a r a r e f o r ç a r a s e m e l h a n ç a f u n d a m e n t a l . À s v e z e s a d u p l i c a ç ã o n ã o se d á n a s u p e r f í c i e , m a s é latente. Isso ocorre c o m A n n a A n d r é i e v n a e M a r i a A n t ó n o v n a . E m b o r a d i f e r e n t e s p e l a i d a d e e p e l o f a t o d e u m a ser a m ã e e a o u t r a ser a f i l h a , elas s ã o , e n t r e t a n t o , c o m p l e t a m e n t e i d ê n t i c a s . Se K h l e s t a k ó v v a i - s e e m b o r a a m ã e d i z : " A h , c o m o ele é a g r a d á v e l ! " e a filha: " A h , é u m a m o r ! " , m a s a d i f e r e n ç a d e p a l a v r a s é c o m p l e t a m e n t e i r r e l e v a n t e . " A h , q u e s u r p r e s a ! " , e x c l a m a a m ã e , e, d e p o i s ( c o m u m a e n t o a ç ã o u m p o u c o d i f e r e n t e ) , a f i l h a . C o m o as o u t r a s p e r s o n a g e n s a n á l o g a s , elas só fazem é brigar e n t r e si. Este procedimento é bastante conhecido dos bons palhaços: eles se a p r e s e n t a m e m d u p l a , n u m a c e r t a m e d i d a s ã o i d ê n t i c o s e e m o u t r a s ã o d i f e r e n t e s , m a s s ó b r i g a m , se x i n g a m e a t é se a g a r r a m por bobagens. N o f o l c l o r e r u s s o e x e m p l o clássico d e p e r s o n a g e n s d u p l o s ( d o b r a d o s ) são os irmãos F o m á e E r e m á , a m b o s desajeitados, absurd o s , d e s o c u p a d o s ; s o b r e eles f o r a m feitos i n ú m e r o s c o n t o s e c a n ç õ e s s a t í r i c a s . A s a v e n t u r a s d e a m b o s t e r m i n a m s e m p r e c o m eles morrendo afogados. A semelhança oculta ou manifesta p o d e estender-se n ã o a d u a s m a s a mais pessoas. Isso ocorre c o m os noivos de O casamento. E l e s p a r e c e m ser t o d o s d i f e r e n t e s , m a s e s t ã o u n i d o s p e l a s s u a s idênticas aspirações. U m a vez q u e u m a q u á d r u p l a r e p e t i ç ã o o u s e m e l h a n ç a t r a n s f o r m a r - s e - i a e m p u r o e s q u e m a t i s m o , d e s t r u i n d o c o m isso q u a l q u e r possível c o m i c i d a d e , e s t a s p e r s o n a g e n s m a n i f e s t a m seu c a r á t e r c ô m i c o
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COMICIDADE E RISO
a g i n d o t o d a s a o m e s m o t e m p o . D e v e m ser l e m b r a d a s a q u i as seis filhas d o p r í n c i p e T r i g o n k h ó v s k i n a c o m é d i a Os males da inteligência , q u e se a t i r a m t o d a s j u n t a s s o b r e R e p e t i l o v , q u a n d o este n ã o acredita que Tchátski tenha ficado louco. Elas gritam em coro: " M e siê R e p e t i l o v , m a s o q u e o s e n h o r e s t á d i z e n d o ? C o m o p o d e dizer i s s o ? " , d e tal f o r m a q u e ele f e c h a o s o u v i d o s e a c r e d i t a l o g o e m tudo o que convém que acredite. 4
E m G ó g o l p o d e ocorrer a s e m e l h a n ç a de d u a s gerações: dos p a i s e d o s f i l h o s . B ó b t c h i n s k i n a r r a c o m o se d e u o e n c o n t r o e n t r e o d o n o da t a v e r n a e o inspetor geral. " A m u l h e r dele (do d o n o da t a v e r n a — V . P . ) d e r a à luz t r ê s s e m a n a s a n t e s e e s t e m e n i n o a s s a n h a d o será, c o m o o pai, o d o n o d a t a v e r n a . " Kotchkáriev tenta convencer Podkoléssin a casar-se, seduzind o - o c o m a i d é i a , p o r e x e m p l o , d e q u e ele t e r á seis f i l h o s " q u e se parecerão contigo c o m o duas gotas de á g u a " . O diálogo continua da seguinte m a n e i r a : — Pois sim, mas eles não passarão de moleques, vão estragar tudo, vão desarrumar meus papéis. — Deixe-os, eles serão todos iguaizinhos a você, aí é que está a beleza. — Mas é realmente engraçado, que o diabo o leve: um bolinho desses, um filhotezinho desses, e parecido com você. — Como não é engraçado? — É engraçado, e como. — Então, vamos? — Vamos. Podkoléssin consente em casar-se. A q u i p o d e - s e a c r e s c e n t a r que\gualquer repetição de qualquer ato espiritual priva este ato de seu caráter criativo ou de qualquer caráter significativo em geral. R e d u z s u a i m p o r t â n c i a e p o r isso m e s m o p o d e torná-lo ridículoj O professor ou o conferencista q u e de a n o em ano repete sua a u l a c o m as m e s m a s b r i n c a d e i r a s , c o m as m e s m a s express õ e s , c o m a m e s m a m í m i c a e c o m a m e s m a e n t o a ç ã o , t o r n a - s e ridíc u l o aos o l h o s d o s e s t u d a n t e s , se eles p e r c e b e m o q u e se p a s s a . " E a d é c i m a o i t a v a vez q u e i s s o se p a s s a c o m i g o , e s e m p r e d e m o d o q u a s e i d ê n t i c o . " É a s s i m q u e J e v á k i n se q u e i x a e m O casamento d o insucesso de sua i n t e r m e d i a ç ã o m a t r i m o n i a l .
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Gore ot umá, famosa peça satírica de A . S. Griboiedov (1795-1829).
8 A comicidade das diferenças
N ó s esclarecemos por que e em que casos a semelhança p o d e ser c ô m i c a . M a s a e x p l i c a ç ã o a i n d a n ã o e s t á c o m p l e t a . A semelhança dos gêmeos na vida, a semelhança das personagens duplicadas ou plurinominais nas o b r a s literárias constituem a o m e s m o t e m p o a s u a d e s s e m e l h a n ç a d e t o d a s as o u t r a s p e s s o a s . Tal o b s e r v a ç ã o p o d e ser generalizada e expressa d o seguinte m o d o : t o d a particularidade o u estranheza que distingue uma pessoa do meio que a circunda p o d e torná-la ridícula. Qual a causa disto? C h e g a m o s a q u i a u m d o s c a s o s m a i s c o m p l e x o s e difíceis n a e x p l i c a ç ã o d o cômico.f D e A r i s t ó t e l e s até h o j e o s e s t u d i o s o s d e estética r e p e t e m q u e o d i s f o r m e é c ô m i c o , m a s n ã o e x p l i c a m e n ã o defin e m q u e t i p o d e d e f o r m i d a d e é risível e q u a l n ã o é j ( 0 d i s f o r m e é o o p õ s T õ ^ d õ ^ u b l i m e ^ N a d a q u e seja s u b l i m e p o d e ser r i d í c u l o , r i d í c u l a é a transgressão disso. O h o m e m possui certo instinto d o devido, d o q u e ele c o n s i d e r a n o r m a . E s s a s n o r m a s r e f e r e m - s e t a n t o a o a s p e c t o exterior d o h o m e m q u a n t o à n o r m a da vida m o r a l e intelectual. O i d e a l d e beleza e x t e r i o r , a o q u e p a r e c e , d e f i n e - s e c o m o n e c e s s i d a d e d a n a t u r e z a . É exteriormente bela a pessoa de compleição p r o p o r c i o nal e h a r m o n i o s a , o u seja, d e c o m p l e i ç ã o q u e c o r r e s p o n d e a o s a t r i b u tos d a saúde h u m a n a — de força, de agilidade, de destreza, de capa-
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COMICIDADE E RISO
cidade para u m a atividade completa. T ê m razão Iurêniev e muitos o u t r o s q u a n d o a f i r m a m q u e " p r o v o c a m o riso a s faltas d e x o r r e s p o n . d ê n c i a , q u e r e v e l a m d e s v i o s d a n o r m a " . O h o m e m d e t e r m i n a instintiv a m e n t e esta n o r m a e m r e l a ç ã o a p e n a s a si m e s m o . O p e s c o ç o l o n g o e as p e r n a s c o m p r i d a s d a g i r a f a s ã o d e t o t a l u t i l i d a d e p a r a a girafa: a j u d a m - n a a a l c a n ç a r as folhas d a s p a l m e i r a s e d a s á r v o r e s a l t a s . P o r é m , o p e s c o ç o l o n g o n o h o m e m é d e f e i t o : revela a l g u m a debilidade do organismo, representa alguma transgressão da n o r m a .
Já
s a b e m o s q u e c ô m i c o s j u s t a m e n t e s ã o os d e f e i t o s , m a s s o m e n t e a q u e les c u j a existência e a s p e c t o n ã o n o s o f e n d a m e n ã o n o s r e v o l t e m , e a o m e s m o t e m p o n ã o suscitem p i e d a d e e c o m p a i x ã o . D e s s e m o d o , u m c o r c u n d a só p r o v o c a o riso n u m a pessoa m o r a l m e n t e imatura. O m e s m o é v á l i d o , p o r e x e m p l o , p a r a a s m a n i f e s t a ç õ e s físicas d a velhice o u d a d o e n ç a . P o r t a n t o , n e m t o d a d e f o r m i d a d e é c ô m i c a . A l i m i t a ç ã o a r i s t o t é l i c a c o n t i n u a v e r d a d e i r a n o s dias d e h o j e . Os casos citados baseiam-se na transgressão de n o r m a s
de
o r d e m b i o l ó g i c a . É o c a s o d e t o d o s o s d e f e i t o s físicos d o s q u a i s se tratou nos capítulos precedentes. M a s em certas circunstâncias p o d e se t o r n a r c ô m i c a a t r a n s g r e s s ã o d e n o r m a s d e o r d e m p ú b l i c a , social e política. H á n o r m a s d e c o n d u t a s o c i a l q u e se d e f i n e m e m
oposição
à q u i l o q u e se r e c o n h e c e c o m o i n a d m i s s í v e l e i n a c e i t á v e l . E s s a s n o r m a s são diferentes para diferentes é p o c a s , diferentes p o v o s e ambientes s o c i a i s d i v e r s o s . T o d a c o l e t i v i d a d e , n ã o s ó as g r a n d e s c o m o o povo n o todo, m a s também coletividades menores ou
pequenas
— os habitantes de u m a cidade, de u m lugarejo, de u m a aldeia, até m e s m o o s a l u n o s d e u m a classe — p o s s u e m a l g u m c ó d i g o n ã o escrito q u e a b a r c a t a n t o o s i d e a i s m o r a i s c o m o os e x t e r i o r e s e a o s q u a i s todos seguem e s p o n t a n e a m e n t e . A transgressão desse código
não
escrito é ao m e s m o t e m p o a transgressão de certos ideais coletivos o u n o r m a s d e v i d a , o u seja, é p e r c e b i d a c o m o d e f e i t o , e a d e s c o berta dele, c o m o t a m b é m n o s o u t r o s c a s o s , suscita o riso. Q u e essa t r a n s g r e s s ã o , essa falta de c o r r e s p o n d ê n c i a o u c o n t r a d i ç ã o , suscite o r i s o j á foi o b s e r v a d o h á t e m p o . A s s i m , e s c r e v e Z . P o d s k á l s k i : A c o n t r a d i ç ã o s o c i a l c ô m i c a f u n d a m e n t a l (nas s o c i e d a d e s c l a s s i s t a s — a c o n t r a d i ç ã o de classe) é a i n d a s e g u i d a de u m a c o n t r a d i ç ã o onde o s c a r a c t e r e s e as a ç õ e s d o s h o m e n s e n c o n t r a m - s e e m contraste c o m o ideal geral d a d i g n i d a d e h u m a n a , e l a b o r a d a pelo d e s e n v o l v i m e n t o d a s o c i e d a d e e d e r i v a d o das regras b á s i c a s d e t o d a c o n vivência h u m a n a (30, 14).
A COMICIDADE DAS DIFERENÇAS
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N a s revoluções sociais p o d e tornar-se c ô m i c o o que pertence irremediavelmente ao passado e n ã o corresponde às novas n o r m a s criadas pela o r d e m ou regime social q u e venceu. M a r x n o t o u isso. O p e n s a m e n t o d e M a r x a esse r e s p e i t o é f r e q ü e n t e m e n t e c i t a d o , sendo exposto do seguinte m o d o : " R i n d o , a h u m a n i d a d e separa-se d e seu p a s s a d o " . M a r x n u n c a disse t a i s p a l a v r a s e s e m e l h a n t e fórm u l a é u m a d e t u r p a ç ã o s i m p l i f i c a d a d e seu p e n s a m e n t o . Eis e x a t a m e n t e as p a l a v r a s d e M a r x : A h i s t ó r i a age a f u n d o e atravessa várias fases q u a n d o leva à s e p u l t u r a u m a f o r m a a n t i q u a d a de vida. A ú l t i m a f a s e de sua f o r m a h i s t ó rica universal é a s u a c o m é d i a . A o s d e u s e s d a G r é c i a , que já t i n h a m — e m f o r m a de t r a g é d i a — s i d o feridos de m o r t e no Prometeu acorrentado de Esquilo, c o u b e u m a s e g u n d a vez — e m f o r m a de c o m é d i a — morrer nos Diálogos de L u c i a n o . Por que a m a r c h a da h i s t ó r i a é a s s i m ? Isso é n e c e s s á r i o para que a h u m a n i d a d e se separe alegrem e n t e de seu p a s s a d o (2, 418).
E s s a s p a l a v r a s d e f i n e m a lei e a r a c i o n a l i d a d e h i s t ó r i c a ( " p a r a q u ê " ) . A morte dos heróis q u e deram sua vida na luta pela justiça h i s t ó r i c a é u m a m o r t e t r á g i c a . E s t a é a p r i m e i r a fase. N ã o é r i n d o q u e a h u m a n i d a d e se d e s l i g a d e seu p a s s a d o . Q u a n d o a l u t a t e r m i n a , os r e s t o s d o p a s s a d o n o p r e s e n t e e s t ã o sujeitos à r i d i c u l a r i z a ç ã o . P o r é m , o t r á g i c o e o c ô m i c o n ã o se d i v i d e m m e c a n i c a m e n t e . As sobrevivências do passado n o presente n e m sempre são cômicas d e p e r si. S ã o s e m p r e c ô m i c a s a s s o b r e v i v ê n c i a s r e l i g i o s a s ? P o r e l a s certamente n e m sempre, m a s c o m os meios artísticos da c o m é d i a e l a s p o d e m ser r e p r e s e n t a d a s s a t i r i c a m e n t e . Q u a n t o m a i s f o r t e e séria é e s s a s o b r e v i v ê n c i a (a i n f l u ê n c i a e s t é t i c a s o b r e o s c r e n t e s a t r a vés d a m ú s i c a e d a p i n t u r a ) , m a i s difícil é s u a r e p r e s e n t a ç ã o e m t e r m o s s a t í r i c o s ; q u a n t o m a i s b a n a l é essa s o b r e v i v ê n c i a (a v e l h o t a q u e c o n s i d e r a p e c a d o o s v ô o s e s p a c i a i s ) , m a i s fácil é a c r i a ç ã o d a s á t i r a . N e m t o d a s as s o b r e v i v ê n c i a s s ã o d e s s e t i p o . M u i t a s d e l a s dizem respeito não t a n t o à competência d o satírico, q u a n t o à d o p r o m o t o r . M a s , na maioria dos casos, o satírico e o p r o m o t o r p o d e m se a j u d a r r e c i p r o c a m e n t e . A comicidade nos casos apresentados baseia-se na divergência entre as n o r m a s de dois m o d o s sociais de vida d o p o v o , historicamente determinados. P o r é m , a c o m i c i d a d e p o d e ter c o m o causa diferenças n ã o apenas sociais, m a s de costumes, por exemplo, entre dois povos diferentes n u m a m e s m a é p o c a . Se t o d o p o v o p o s s u i s u a s p r ó p r i a s n o r m a s exteriores e interiores de vida, elaboradas no decorrer do desenvol-
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COMICIDADE E RISO
v i m e n t o de s u a cultura, será c ô m i c a a m a n i f e s t a ç ã o de t u d o aquilo q u e n ã o c o r r e s p o n d e a essas n o r m a s . É p o r c a u s a d i s s o q u e o s estrangeiros, t ã o freqüentemente, parecem ridículos. Eles parecem c ô m i c o s a p e n a s q u a n d o se d e s t a c a m e se d i f e r e n c i a m p o r s u a s e s t r a nhezas daqueles d o lugar p a r a o n d e vieram. Q u a n t o mais ressaltad a s as d i f e r e n ç a s , m a i s p r o v á v e l é a c o m i c i d a d e . A s p e s s o a s i n e x p e rientes e ingênuas p a r e c e r ã o nfliculos o~còstume o u os gestos dos e s t r a n g e i r o s , e s t r a n h o s p a r a o s n o s s o s o u v i d o s o s s o n s d e s u a fala q u a n d o f a l a m a l í n g u a m a t e r n a , o u a p r o n ú n c i a i n c r í v e l q u a n d o se põem a estropiar a língua russa. 1
E m O inspetor geral , G u i b n e r é e n g r a ç a d o n ã o só p o r s u a o b t u s i d a d e , m a s p o r ser u m a l e m ã o n o m e i o d e r u s s o s . T e m a ver c o m isso t a m b é m a s u a l í n g u a p r e s a . E m A avenida Niévski o s alem ã e s s ã o r i d i c u l a r i z a d o s n a f i g u r a d e Schiller. " S c h i l l e r e r a u m a l e m ã o perfeito, n o sentido c o m p l e t o d a p a l a v r a " — e segue-se a desc r i ç ã o d e S c h i l l e r , q u e e m n a d a se p a r e c e c o m os r u s s o s . N o f o l c l o r e é possível e n c o n t r a r a n e d o t a s referentes aos vizinhos n ã o russos. Essas a n e d o t a s , a o c o n t r á r i o , p o s s u e m u m caráter benevolo e de m o d o algum refletem qualquer hostilidade. O m e s m o pode-se dizer das numerosas chacotas, z o m b a d a s e adágios endereçados aos habitantes dos lugarejos e cidades vizinhas. Eis alguns exemplos: " O s d o / l a g o / L a d o g a enxotaram o lúcio que chocava os o v o s " ; " O s starorussos c o m e r a m o cavalo e escreveram a N o v g o r o d para que lhes m a n d a s s e m m a i s " ; " O s d e T v i e r s ã o c o m e n a b o s " ; " O s d e Kachin são aguapães (passam a p ã o e á g u a ) " . U m conjunto muito interessante de expressões deste t i p o , com preciosos comentários h i s t ó r i c o s , p o d e ser e n c o n t r a d o n o s t r a b a l h o s d e D a l ' . 2
M a s p o d e m ser c ô m i c a s n ã o a p e n a s as p e s s o a s d e u m a c o m u n i d a d e d i f e r e n t e , g r a n d e o u p e q u e n a , m a s t a m b é m as d a q u e l a m e s m a à q u a l p e r t e n c e m , se se d i s t i n g u e m d o s o u t r o s c l a r a m e n t e e m a l g o . T o d o povo e toda época têm costumes próprios e normas próprias de conduta exterior. A o m e s m o t e m p o , essas n o r m a s p o d e m m u d a r à s v e z e s , e m u d a m b e m r a p i d a m e n t e . D e i n í c i o , a s m u d a n ç a s d e v e m ser c o n s i d e r a d a s c o m o transgressões de u m c o m p o r t a m e n t o c o m u m e p r o v o c a m o riso. E s t a é a r a z ã o pela q u a l suscitam o riso as m o d a s vistosas e i n s ó l i t a s . É m u i t o fácil a p r e s e n t a r a h i s t ó r i a d a m o d a d e maneira satírica. N o âmbito de u m a m e s m a geração p o d e m m u d a r ,
1
Op. cit.
2
Em A avenida Niévski,
cit., p. 36.
A COMICIDADE DAS DIFERENÇAS
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p o r e x e m p l o , os feitios d o s c h a p é u s f e m i n i n o s . O u t r o r a u s a v a m c h a péus enormes. E r a m a d o r n a d o s c o m penas de avestruz, prendiam neles c o l i b r i s , p a p a g a i o s e m p a l h a d o s o u o u t r o s p á s s a r o s v i s t o s o s . N o s c h a p é u s e r a m fixadas flores artificiais, frutas e b a g a s — cerejas de v i d r o o u c a c h o s de uva. Essas m o d a s p e n e t r a v a m n o c a m p o , e a i s s o se r e f e r e a s e g u i n t e tchastúchka: A moça de Petersburgo Parece um quadro pintado. O chapéu — como uma horta, Faz dela uma senhorita. A j s i m , é c ô m i c a n ã o s ó a ú l t i m a m o d a , m a s .em g e r a l q u a l q u e r r o u p a e x t r a v a g a n t e q u e d e s t a q u e o h o m e m d e seu m e i o . D o m e s m o m o d o q u e se ri d a s m o d a s n o v a s , a o c o n t r á r i o , s ã o r i d í c u las as r o u p a s f o r a d e m o d a q u e à s vezes as v e l h a s v e s t e m d e a c o r d o c o m o uso de seu t e m p o . P ú c h k i n descreve c o m h u m o r b o n a c h ã o e s s a p r e f e r ê n c i a p e l o s t e m p o s d e a n t a n h o n a c e n a d a festa e m O negro de Pedro, o Grande: " A s s e n h o r a s d e i d a d e p r o c u r a v a m a s t u t a m e n t e a l i a r o v e s t u á r i o m o d e r n o às v e l h a s m o d a s p e r s e g u i d a s : as t o u c a s l e m b r a v a m os c h a p e u z i n h o s d e m a r t a d a t z a r i n a N a t á l i a K i r í l o v n a , as s a i a s - b a l ã o e a s m a n t i l h a s p o u c o se d i f e r e n ç a v a m d o sarafã e da d u c h e g r é i k a " . E m c o m p e n s a ç ã o , P ú c h k i n descreve as n o v a s m o d a s d o s t e m p o s de P e d r o c o m evidente s i m p a t i a . O s trajes d a q u e l a é p o c a revelavam a o r i e n t a ç ã o política: a tendência p a r a o v e l h o t e m p o d o s b o i a r d o s , o u p a r a as i n o v a ç õ e s d e P e d r o . 3
A predileção cômica t a n t o pelas m o d a s novas, c o m o t a m b é m a tendência ao antigo são apresentadas por Gógol na descrição de a l g u n s t r a j e s f e m i n i n o s n o b a i l e d o g o v e r n a d o r e m Almas mortas. D e s c r i t a s as m o d a s m a i s r e c e n t e s , G ó g o l e x c l a m a : " N ã o , i s t o a q u i n ã o é u m a província, isto é u m a capital, é a p r ó p r i a P a r i s ! " M a s l o g o o b s e r v a : " A p e n a s a q u i e ali s u r g i a a l g u m a t o u c a i n é d i t a n o m u n d o ou até m e s m o alguma p l u m a quase de p a v ã o , contrariando t o d a s as m o d a s , a o g o s t o d a p o r t a d o r a " . M a i s f o r t e a i n d a é a s á t i r a d o s t r a j e s d a a l t a s o c i e d a d e e m A avenida Niévski: " E que mangas de vestido você encontra n a avenida Niévski! Ai, que encanto! Elas p a r e c e m u m p o u c o c o m d o i s b a l õ e s d e a r , c o m o se u m a d a m a d e 4
Em A dama de 1981. p. 15. A s tido comprido casaco forrado Almas mortas,
espadas. Trad, de Boris Schnaiderman. São Paulo, Max Limonad, explicações que seguem foram retiradas desta edição: sarafã = vesque se usava com uma blusa de mangas largas; duchegréika = de algodão. cit., cap. VIII, p. 195.
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COMICIDADE E RISO
r e p e n t e p u d e s s e elevar-se n o a r , c a s o n ã o estivesse a m p a r a d a p e l o c a v a l h e i r o " . E x e m p l o s e m q u e a p e s s o a (e j u n t o c o m e l a a classe a que pertence) caracteriza-se pelo traje são muitos em G ó g o l . Podese r e c o r d a r a q u i a o m e n o s o f r a q u e c o r d e m i r t i l o o u " c o r d e f u m a ç a c o m c h a m a s d e N a v a r i n o " q u e T c h í t c h i k o v e n c o m e n d a p a r a si. 5
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D o m e s m o m o d o q u e s ã o r i d í c u l a s as m o d a s o u a s r o u p a s a n t i q u a d a s , t a m b é m é ridículo o vestuário dos estrangeiros. Assim, até hoje na Inglaterra os corretores d a bolsa de valores u s a m chapéuc o c o . M a s , se esses ingleses d e c h a p é u - c o c o n a c a b e ç a a p a r e c e s s e m h o j e n a a v e n i d a N i é v s k i , eles f a r i a m rir. E s t e c a s o m o s t r a m u i t o clar a m e n t e q u e u m v e s t u á r i o i n s ó l i t o s u s c i t a o rigp n ã o p e l o f a t o d e ser i n s ó l i t o , m a s p o r q u e esse i n s ó l i t o r e v e l a u m a f a l t a d e c o r r e s p o n d ê n c i a c o m as n o ç õ e s i n c o n s c i e n t e s s o b r e a v u l n e r a b i l i d a d e q u e esse v e s t u á r i o e x p r e s s a . Se falta i s s o , u m a r o u p a e s q u i s i t a , i n s ó l i t a , e s t r a n h a , n ã o n o s faz rir. Desse m o d o , é possível ver e m n o s s a s r u a s visit a n t e s d a í n d i a e d e o u t r o s p a í s e s e m seus m a g n í f i c o s e v i s t o s o s t r a jes nacionais. É o caso, por exemplo, dos longos vestidos de seda d a s m u l h e r e s h i n d u s — eles s u s c i t a m o e n c a n t o e a a d m i r a ç ã o g e r a l . Os casos apresentados nos explicam por que e em que circunstâncias u m a diferença é percebida c o m o elemento c ô m i c o . N o s últim o s exemplos citados tratava-se de u m a diferença p r o v o c a d a pelo c o m p o r t a m e n t o d a p r ó p r i a p e s s o a . P o r é m , e m e s s ê n c i a , esses c a s o s n ã o se d i s t i n g u e m d a q u e l e s e m q u e as d i f e r e n ç a s se d e v e m n ã o a p e s s o a s , m a s à n a t u r e z a . A c o r r e s p o n d ê n c i a geral d e c a r á t e r b i o l ó gico foi d e f i n i d a a c i m a . A s d i f e r e n ç a s b i o l ó g i c a s i n d i v i d u a i s s ã o r i d í culas q u a n d o percebidas c o m o deformidades que transgridem a h a r m o n i a d a n a t u r e z a . J á se f a l o u , a c i m a , d o s g o r d o s . N e s t e c a s o u m d e f e i t o físico e r a c ô m i c o p o r q u e a t r á s dele r e c o n h e c i a - s e u m d e f e i t o d e o u t r a o r d e m . E n t r e t a n t o , o s d e f e i t o s físicos s ã o t a m b é m d e o u t r o g ê n e r o . A s c r i a n ç a s e as p e s s o a s i n g ê n u a s e m g e r a l c o n s i d e r a m r i d í c u l o s o s d e f e i t o s físicos d e q u a l q u e r g ê n e r o , t a i s c o m o grandes pintas peludas, olhos estrábicos ou saltados, lábios caídos, p a p o grande, b o c a torta, narizes vermelhos ou a z u l a d o s etc. P o r q u e s ã o r i d í c u l o s os c a l v o s , os q u e t ê m p e r n a s c u r t a s o u , a o c o n t r á rio, os pernalongas? Esses defeitos n ã o revelam n e n h u m a imperfeiç ã o pessoal interior. Eles c o n s t i t u e m u m a d e f o r m i d a d e n a t u r a l e
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A avenida Niévski, cit., p. 6. Almas mortas, cit. Alusão à batalha de Navarino n o Peloponeso (1827), onde a esquadra anglo-russo-francesa derrotou a turco-egípcia. O choque desencadeou a guerra russo-turca.
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c o n t r a r i a m n o s s a s n o ç õ e s d e h a r m o n i a e d e p r o p o r ç ã o , as q u a i s s ã o r a c i o n a i s d o p o n t o d e v i s t a d a s leis g e r a i s d a n a t u r e z a . N e s t e s e n t i d o , t ê m r a z ã o os t e ó r i c o s q u e , a c o m e ç a r d e A r i s t ó t e l e s , a f i r m a ram a identidade entre o cômico e o disforme. I s s o e s c l a r e c e p o r q u e s ã o r i d í c u l a s as d e f o r m a ç õ e s d o s r o s t o s h u m a n o s nos espelhos curvos. Narizes exagerados e proeminentes, bochechas extremamente gorduchas, enormes orelhas de a b a n o , u m a expressão do rosto completamente inusitada, sobretudo q u a n d o ri d e m o d o q u e a b o c a c h e g u e a t é as o r e l h a s — t u d o isso c o n s t i t u i u m a d e f o r m i d a d e q u e suscita o riso c o m o t a m b é m os o u t r o s tipos de deformidade e desproporção.
9 O homem com aparência de animal
E x a m i n a m o s até agora aqueles casos em que a comicidade surge d o c o n f r o n t o de algumas qualidades interiores d o espírito ou d a a l m a d o h o m e m c o m as f o r m a s e x t e r i o r e s d e s u a m a n i f e s t a ç ã o , s e n d o q u e essa c o m p a r a ç ã o era tal d e m o d o a p ô r a n u as q u a l i d a des negativas d a pessoa r e p r e s e n t a d a ou o b s e r v a d a . C o n f r o n t a r a m se a l g u n s d a d o s i n t e r i o r e s e e x t e r i o r e s p r ó p r i o s d e u m a m e s m a p e s soa. M a s é possível t a m b é m u m a c o m p a r a ç ã o de c a r á t e r diferente: o o b j e t o de c o n f r o n t o é t o m a d o d o m u n d o c i r c u n s t a n t e . N a literat u r a humorística e satírica, assim c o m o nas artes figurativas, o h o m e m , n a m a i o r i a d a s vezes, é c o m p a r a d o a a n i m a i s o u a o b j e t o s , e e s s a c o m p a r a ç ã o p r o v o c a o r i s o . É fácil n o t a r q u e a a p r o x i m a ç ã o d o h o m e m c o m a n i m a i s , o u a c o m p a r a ç ã o e n t r e eles, n e m s e m p r e s u s c i t a o r i s o , m a s a p e n a s em determinadas condições. H á animais cuja aparência, ou aspecto exterior, fazem-nos lembrar certas qualid a d e s negativas d o s h o m e n s . P o r isso a r e p r e s e n t a ç ã o de u m a pessoa com o aspecto de porco, m a c a c o , gralha ou urso indica as qualidades negativas correspondentes d o h o m e m . A similitude c o m anim a i s a o s q u a i s n ã o s ã o a t r i b u í d a s q u a l i d a d e s n e g a t i v a s (a á g u i a , o falcão, o cisne, o rouxinol) n ã o p r o v o c a o riso. Daí a conclusão d e q u e p a r a (as c o m p a r a ç õ e s h u m o r í s t i c a s e s a t í r i c a s s ã o ú t e i s a p e n a s os a n i m a i s a q u e se a t r i b u e m c e r t a s q u a l i d a d e s n e g a t i v a s q u e
O HOMEM COM APARÊNCIA DE ANIMAL
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l e m b r a m qualidades a n á l o g a s d o ser h u m a n o ^ C h a m a r u m a pessoa com o n o m e de um animal qualquer é a forma mais difundida de injúria cômica tanto n a vida c o m o nas obras literárias. P o r c o , asno, camelo, gralha, cobra etc. são xingamentos c o m u n s que suscitam o r i s o d o s e s p e c t a d o r e s . S ã o . p o s s í v e i s a q u i a s s o c i a ç õ e s as m a i s d i v e r sas e insólitas. " U m m é d i c o zeloso é c o m o u m p e l i c a n o " , " T o d o almofadinha é c o m o u m a lavadeira" são alguns aforismos de K o z m á P r u t k ó v . " S o m e n t e p o r c a u s a d a s crianças eu m a n t e n h o este trit ã o " — diz em Tchékhov u m proprietário de terras sobre a govern a n t a i n g l e s a (A filha de Albion). " M u l h e r e s autênticas hoje em dia n ã o existem, m a s , c o m o p e r d ã o de D e u s , s o m e n t e lavadeiras e a n c h o v a s " , diz-se n o c o n t o No pensionato de Tchékhov. A comp a r a ç ã o c o m animais é c ô m i c a a p e n a s q u a n d o serve p a r a d e s v e n d a r u m defeito q u a l q u e r . O n d e isso n ã o o c o r r e , a c o m p a r a ç ã o n ã o só n ã o é o f e n s i v a , m a s p o d e a t é servir c o m o m a n i f e s t a ç ã o d e e l o g i o ou de afeto. N a poesia p o p u l a r o falcão brilhante é símbolo do j o v e m b o m , o c u c o d a m o ç a s a u d o s a . U m a m u l h e r j o v e m , infeliz n o c a s a m e n t o , q u e r se t r a n s f o r m a r n u m p á s s a r o e s o b e s s a a p a r ê n cia v o a r de volta p a r a casa etc. N a vida c o t i d i a n a t r a t a m e n t o s c o m o " g a t i n h a " , " c a n a r i n h a " , " c o e l h i n h a " e outros servem c o m o expressões de a f e t o . C o m o em outros casos, sobretudo em Gógol encontramos u m m a t e r i a l rico e v a r i a d o . A p a r t i c u l a r i d a d e d o estilo g o g o l i a n o n e s t e c a s o r e s i d e n o f a t o d e q u e as p e s s o a s n ã o s ã o n u n c a r e p r e s e n tadas em forma de animais (como acontece, por exemplo, na fábul a ) , m a s s o m e n t e os q u e o s l e m b r a m e m s u a s f o r m a s v a r i a d a s a s s e m e l h a m - s e a eles. R e p r e s e n t a r u m h o m e m d e m o d o q u e e m seu a s p e c t o h u m a n o se d e s e n h e a i m a g e m d e u m a n i m a l é u m p r o c e d i m e n t o u t i l i z a d o d o m o d o mais c o n s e q ü e n t e n a descrição de S o b a k é v i t c h , q u e é c o m p a r a d o a um u r s o : " Q u a n d o Tchítchikov olhou de esguelha para S o b a k é v i t c h , este p a r e c e u - l h e e x t r e m a m e n t e c o m u m urso de t a m a n h o m é d i o " . Ele é desajeitado, a n d a c o m os pés virados p a r a dent r o , u s a u m f r a q u e m a r r o m e se c h a m a M i k h a i l S e m i ô n o v i t c h . P o r é m , n ã o ele a p e n a s , m a s t o d o o m o b i l i á r i o q u e o c i r c u n d a p o s s u i a l g o u r s i n o : " T u d o [...] t i n h a u m a e s t r a n h a s e m e l h a n ç a c o m 1
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Em Almas mortas, cit. O nome da personagem, ainda que comparada a um urso, remete à palavra sobaka (cachorro). Nas fábulas e contos populares russos os animais geralmente recebem nome e patronímico próprios. O urso aparece freqüentemente com o nome de Mikhail (Micha, Michka) Semiônovitch.
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o p r ó p r i o d o n o da c a s a " , " N u m c a n t o ficava u m a escrivaninha b a r r i g u d a d e n o g u e i r a , s o b r e q u a t r o p e r n a s d e s e l e g a n t e s — u m verdadeiro u r s o " . E m Ivan Fiódorovitch Chponka, Vassilissa K a c h p á r o v n a q u e r c a s a r seu s o b r i n h o . E l e se vê e m s o n h o j á c a s a d o , e o s o n h o t o m a a f o r m a d e p e s a d e l o . " É e s t r a n h o p a r a ele: n ã o s a b e c o m o se a p r o x i m a r d e l a , o q u e d i z e r - l h e , e n o t a q u e ela t e m u m a c a r a d e g a n s o . " E m s e g u i d a ele " v ê o u t r a e s p o s a , t a m b é m c o m c a r a d e g a n s o " . Mais freqüentemente, a semelhança com u m animal ocorre de passagem, o que não diminui a comicidade, mas, ao contrário, r e f o r ç a - a . E m O inspetor geral, K h l e s t a k ó v i m a g i n a - s e e m t r a j e s d a capital a p a r e c e n d o na casa de vizinhos provincianos e m a n d a n d o s e u c r i a d o a v i s á - l o s : " I v a n A l i e k s â n d r o v i t c h K h l e s t a k ó v d e s e j a ser r e c e b i d o " . " E s s e s p o b r e s d i a b o s p r o v i n c i a n o s aí n ã o s a b e m n e m a o m e n o s o q u e q u e r dizer ' d e s e j a ser r e c e b i d o ' . Q u a n d o a l g u m r i c o f a z e n d e i r o faz u m a v i s i t a , esses u r s o s v ã o se e s c o n d e r n o q u a r t o . " N a c e n a d a g a b o l i c e K h l e s t a k ó v d i z : " E lá o e s c r e v e n t e d e c a r t a s , t r e m e n d a r a t a z a n a , c o m a p e n a s ó t r . . . t r . . . foi e s c r e v e n d o " . P o r o u t r o l a d o , o governador tem a seguinte opinião sobre Khlestak ó v : " [ . . . ] m a s ele v e m v e s t i n d o f r a q u e . P a r e c e u m a m o s c a d e a s a t o r t a " . N a carta de Khlestakóv a T r i á p i t c h k i n l e m o s : " O diretor d o hospital, u m certo Z e m l i a n i k a , é u m v e r d a d e i r o p o r c o enfeitad o ! " ; " E m p r i m e i r o l u g a r v e m o g o v e r n a d o r : ele é m a i s i m b e c i l do que u m capão na e n g o r d a " . 3
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E m t o d o s esses c a s o s a p e s s o a é r e b a i x a d a a o n í v e l d o a n i m a l . M a s e m G ó g o l e n c o n t r a - s e t a m b é m o c a s o o p o s t o : o a n i m a l se h u m a n i z a . O s c ã e s d e K o r ó b o t c h k a p õ e m - s e a latir e m t o d o s o s d i a pasões possíveis, e G ó g o l descreve isso c o m o u m c o n c e r t o n o qual se d e s t a c a m s o b r e t u d o as v o z e s d e t e m o r . O s c ã e s d e N o z d r i ó v c o m p o r t a m - s e d e m o d o f a m i l i a r c o m as p e s s o a s : " T o d o s eles, a r r e b i t a n d o as c a u d a s , q u e o s c a ç a d o r e s e n t e n d i d o s e m c ã e s c h a m a m d e lemes, d i s p a r a r a m a o encontro dos visitantes e puseram-se a cump r i m e n t á - l o s " . Esse c u m p r i m e n t o consiste n o fato de que " U m a d e z e n a deles c o l o c o u as p a t a s n o s o m b r o s d e N o z d r i ó v " . U m 7
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Em O inspetor geral, cit., p. 45. Ibidem, ato III, cena VI. Ibidem, p. 89. Ibidem, p. 166 e 163, respectivamente. Almas mortas, cit., p. 52-3. Ibidem, p. 88. Ibidem, p. 88.
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deles, O b r u g a i , em vez de u m beijo, d á u m a l a m b i d a n a b o c a de T c h í t c h i k o v . ( A h u m a n i z a ç ã o d o s a n i m a i s às vezes é l e v a d a a o a b s u r d o , e esse a b s u r d o r e f o r ç a o e f e i t o cômico.;) N o Diário de um louco a i n v e r o s s i m i l h a n ç a j u s t i f i c a - s e p e l o f a t o d e q u e o m u n d o é m o s t r a d o através do prisma das percepções de u m maluco: " L i t a m bém nos jornais acerca de duas vacas q u e e n t r a r a m n u m a loja e p e d i r a m p a r a si u m a l i b r a d e c h á " . A c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e os dois cães, Medji e Fidel, é a p r e s e n t a d a c o m o v e r d a d e i r a m e n t e real e t e n d o lugar na realidade. Ela consiste n u m a sátira aos representantes d a s classes s u p e r i o r e s e a o c í r c u l o d e s e u s i n t e r e s s e s . E s s e m e i o Popríschin n ã o p o d e atingir, e m b o r a o deseje a r d e n t e m e n t e . S ã o ridicularizados n ã o a p e n a s os defeitos sociais, m a s t a m b é m os sentimentos autenticamente humanos como, por exemplo, o amor: " A h , m i n h a querida, c o m o é evidente a aproximação da primavera! Batem e o c o r a ç ã o , c o m o se e s p e r a s s e a l g u m a c o i s a " . E s t a s p a l a v r a s têm u m sentido poético, mas na interpretação canina adquirem u m matiz completamente diferente. O fato de Gógol alternar a sátira social c o m a sátira individual-psicológica n ã o a t e n u a o sentido satírico de sua o b r a , aliás, pelo c o n t r á r i o : u m a sátira social contínua, sem estratos p u r a m e n t e cômicos, criaria m o n o t o n i a e tendenciosidade didática e causaria tédio n o leitor. 1 0
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N a sátira e n a h u m o r í s t i c a soviéticas a c o m p a r a ç ã o c o m animais raramente é encontrada. Aparece c o m mais freqüência nas artes figurativas. Várias revistas satíricas p o s s u e m o u p o s s u í a m títul o s p i n ç a d o s d o m u n d o a n i m a l . N o m e s c o m o Beguemot, Nossorog, Krokodil, Ioj, Iorch, Juk, Komar, Ossá, Skorpion, Chmiel, Moskil, Krissodáv e m u i t o s o u t r o s . E m c a d a u m d o s casos é possível explic a r p o r q u e foi e s c o l h i d o e s t e o u a q u e l e n o m e . 1 2
O a n i m a l d e s e m p e n h a u m p a p e l especial n a s f á b u l a s e n o s c o n t o s m a r a v i l h o s o s p o p u l a r e s . R e c o r r e n d o às f á b u l a s d e K r i l o v , é p o s s í v e l v e r q u e ali o a n i m a l às v e z e s s u s c i t a o r i s o e à s vezes n ã o . E m f á b u l a s c o m o O lobo e o cordeiro, O leão e o rato, O lobo 1 3
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Nikolai Gógol, Diário de um louco, cit., p. 33. O s contos desta coletânea não foram traduzidos diretamente do russo e apresentam problemas de tradução. A referência serve ao leitor para dar uma pálida idéia d o original gogoliano. N o entanto, quando citado, só nos remeteremos a ele se o trecho se prestar à exemplificação exigida. " Op. cit., p . 40-1. Em português, hipopótamo, rinoceronte, crocodilo, ouriço, acerina, besouro, pernilongo, vespa, escorpião, zangão, mosquito, mata-ratos. Fabulista russo (1768-1844). 1 2
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no canil e e m t o d a u m a série d e o u t r a s o s a n i m a i s n ã o s ã o r i d í c u l o s . ( U m a c a r a c t e r í s t i c a específica d a f á b u l a é o a l e g o r i s m o . ' ! A t r a v é s d o s a n i m a i s s u b e n t e n d e m - s e os h o m e n s . . P o r t a n t o , o a l e g o r i s m o e n q u a n t o tal n ã o a s s e g u r a o r i s o ^ P o r é m , se t o m a r m o s a s f á b u l a s A macaca e os óculos, A rã e o boi, O quarteto e v á r i a s o u t r a s , f i c a r e m o s p r o p e n sos a o riso. N a figura d a macaca buliçosa, d a rã i n c h a d a de arrogância, n a s figuras s i m p l ó r i a s d a m a c a c a , d o a s n o , d a c a b r a e d o u r s o é fácil p a r a n ó s r e c o n h e c e r as p e s s o a s c o m t o d o s o s s e u s d e f e i t o s . É v e r d a d e , t a m b é m n a s f á b u l a s O lobo e o cordeiro, O leão e o rato e t c . o s d e f e i t o s a p a r e c e m . M a s n o p r i m e i r o c a s o a p a r e c e m o s defeit o s terríveis, n o s e g u n d o o s m e s q u i n h o s . O l o b o q u e d e v o r a o cordeiro inocente n ã o é cômico, m a s odioso. ( É diferente a c o r r e l a ç ã o e n t r e seres h u m a n o s e a n i m a i s n o c o n t o m a r a v i l h o s o . Difundiu-se a m p l a m e n t e a idéia de q u e nos contos m a r a v i l h o s o s através dos animais subentendem-se os h o m e n s , c o m o ocorre na fábula*/)Tal idéia é sem dúvida e r r ô n e a . Diferentemente da fábula, no conto maravilhoso o alegorismo é completam e n t e e s t r a n h o . N o s contos m a r a v i l h o s o s os costumes dos bichos, a d i f e r e n ç a d e s e u s c a r a c t e r e s l e m b r a m o s h o m e n s , e p o r isso f a z e m s o r r i r , m a s as f i g u r a s d o s a n i m a i s n ã o r e p r e s e n t a m a s f i g u r a s d o s seres h u m a n o s e m geral, c o m o o c o r r e n a fábula. O s c o n t o s m a r a v i lhosos s o b r e a n i m a i s e n q u a n t o g ê n e r o n ã o p e r s e g u e m objetivos satír i c o s , n ã o se p r e s t a m p a r a fins d e z o m b a r i a . O s p r o t a g o n i s t a s n ã o personificam os defeitos h u m a n o s . N o c o n t o m a r a v i l h o s o a atitude e m r e l a ç ã o a o s a n i m a i s p o d e ser a f e t u o s a . jEles s ã o c h a m a d o s d e modo carinhoso e com diminutivos: "leorezinha", " g a l i n h o " , " o u r i c i n h o " , " c a b r i t i n h o " , e assim por diante. Até m e s m o a astuta raposa é c h a m a d a de " r a p o s i n h a - i r m ã z i n h a " . A p e r s o n a g e m negat i v a d o c o n t o m a r a v i l h o s o , o l o b o , p o d e ser o b j e t o d e z o m b a r i a , m a s nesse c a s o ela n ã o é p r o v o c a d a p e l a f i g u r a d o a n i m a l (a f i g u r a do lobo não é cômica), mas pela t r a m a ^ S e , por exemplo, num conto maravilhoso sobre o lobo e a raposa, o lobo b o b ã o , seguindo o c o n s e l h o p é r f i d o d a r a p o s a , e n f i a o r a b o n u m b u r a c o d o gelo d e m o d o q u e este congela e q u a n d o o a t a c a m a r r a n c a o p r ó p r i o r a b o , f u g i n d o s e m e l e , o c ô m i c o aí n ã o é a f i g u r a d o l o b o , m a s a a ç ã o , a trama. Sobre a comicidade da ação trataremos mais adiante. Os contos maravilhosos populares sobre animais n ã o perseguem objetivos s a t í r i c o s . N o s c a s o s e m q u e isso o c o r r e , o c o n t o m a r a v i l h o s o
* Cf., por exemplo: V. P. Anikin, Rússkie naródnie skázki populares russos}. Moscou, Utchniedguiz, 1959. p. 67.
[Contos
maravilhosos
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é p o p u l a r , m a s p o s s u i o r i g e m literária. N o f o l c l o r e r u s s o e x i s t e m a p e n a s d o i s desses c o n t o s m a r a v i l h o s o s . É a h i s t ó r i a d e I o r c h I ó r c h o v i t c h e a da raposa-confessora. A m b o s os contos maravilhosos não têm o r i g e m folclórica. A h i s t ó r i a d e I o r c h é d o s é c u l o X V I I e r e p r e s e n t a u m a sátira cortante a o processo judiciário moscovita de então e o c o n t o maravilhoso sobre a raposa-confessora é u m a sátira a o clero. A m b o s p a s s a r a m d a l i t e r a t u r a a o folclore*. N o s casos em que o p o v o pretende retratar o m u n d o satiricam e n t e , ele n ã o r e c o r r e às i m a g e n s d e a n i m a i s . O s c o n t o s m a r a v i l h o sos s a t í r i c o s s ã o c o n t o s s o b r e p o p e s , s o b r e p r o p r i e t á r i o s d e t e r r a s , e não sobre animais. N ã o perseguem objetivos satíricos n e m de travestimento. P a r a os festejos n a t a l i n o s , e e m p a r t e t a m b é m p a r a a Máslenitsa, pessoas f a n t a s i a v a m - s e d e a n i m a i s , u s a v a m m á s c a r a s e peles d e b i c h o s — d e urso, de cegonha, a r r e m e d a v a m a cabra. Vestidas de animais, faziam micagens e os espectadores p o u c o exigentes e s t o u r a v a m de rir. O p e s c o ç o c o m p r i d o d a c e g o n h a , o j e i t o c a n h e s t r o d o u r s o , os b a l i d o s d a s c a b r a s , t u d o isso p r o v o c a v a n o s p r e s e n t e s a l e g r e s r i s a d a s . E s t e é u m tipo diferente de riso, que examinaremos mais adiante. M e s m o se a q u i h á z o m b a r i a , e s t a é t o t a l m e n t e i n o c e n t e , b o n a c h o n a . Nesses casos o animal é representado pelo h o m e m . M a s c o m o m e s m o efeito é possível o c o n t r á r i o : n i s t o se b a s e i a a c o m i c i d a d e d o s animais amestrados. Elefantes que l a m b u z a m de e s p u m a de sabão a c a r a d o d o m a d o r p a r a b a r b e á - l o , ursos q u e a n d a m d e bicicleta, c a c h o r rinhos que d a n ç a m sobre duas pernas ou u i v a m a o s o m de bandolins, c o m o faz a K a c h t a n k a d e T c h é k h o v . A p e r c e p ç ã o c ô m i c a d o s a n i mais encontra-se já na Grécia Antiga. Aristófanes intitulou algumas d e s u a s c o m é d i a s c o m n o m e s d e a n i m a i s : As aves, As vespas, As rãs. N e l a s , e m vez d e p e s s o a s , s ã o a n i m a i s q u e a t u a m , e a t é h o j e isso d i v e r t e o s e s p e c t a d o r e s . Vê-se a q u e p o n t o s ã o vitais o s p r i n c í p i o s u t i lizados p o r Aristófanes pelo c o n t o maravilhoso de Saltikóv-Schedrin A águia-mecenas. A l i , a á g u i a a r r a n j a p a r a si u m p a r a í s o d e p r o p r i e t á r i o s d e t e r r a s , o b r i g a n d o t o d o s os p á s s a r o s a servi-la: " O s f r a n g o s d ' a g u a e m e r g u l h õ e s f o r m a r a m u m a b a n d a d e m ú s i c a , os p a p a g a i o s f o r a m n o m e a d o s t r o v a d o r e s , à g r a l h a d e f l a n c o b r a n c o p o r ser l a d r a 1 4
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Cf. V. P. Adriánova-Peretz, Ótcherki po istórii satirítcheskoi literatúri XVII vieka [Ensaios de história da literatura satírica do século XVII]. Moscou-Leningrado, A N SSSP, 1937. p. 124-224. Existe tradução brasileira de Boris Schnaiderman em O beijo e outras histórias. São Paulo, Círculo do Livro, s. d. p. 39-60; e em As três irmãs — Contos. São Paulo, Abril Cultural, 1982. p. 177-98.
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confiaram as chaves d o tesouro, a coruja e o m o c h o foram obrigad o s a v o a r d e n o i t e p a r a fazer a r o n d a " . C o m o s p á s s a r o s cria-se a t é u m a a c a d e m i a d e c i ê n c i a s , m a s t o d o esse i n t e n t o a c a b a d a n d o em n a d a , pois todos investem u m c o n t r a o outro e t u d o vem abaixo. Saltikóv-Schedrin em seus c o n t o s m a r a v i l h o s o s r e c o r r e repetidas v e z e s às f i g u r a s d e a n i m a i s (o g o b i ã o s á b i o , a l e b r e a l t r u í s t a , a v o b l a s e c a e o u t r o s ) . T o d o s esses s ã o c o n t o s m a r a v i l h o s o s - a l e g o r i a s e s á t i r a s , e n i s s o r e s i d e a d i f e r e n ç a deles e m r e l a ç ã o a o s c o n t o s m a r a vilhosos populares. A p r o x i m a r alguns aspectos da o b r a de Saltikóv-Schedrin d o folclore é u m e q u í v o c o . M a s , e m c o m p e n s a ç ã o , ela t e m p o n t o s e m c o m u m c o m o s c o n t o s m a r a v i l h o s o s - n o v e l a s s a t í r i c o s d o s é c u l o X V I I . N o Idüio contemporâneo h á u m a c e n a intit u l a d a " O g o b i ã o desditoso, o u u m D r a m a n o t r i b u n a l p o p u l a r de K á c h i n " ( c a p . X X I V ) , q u e l e m b r a m u i t o a Novela sobre Iorch Iórchovitch, filho de Schetínnikov ( o u A demanda da Carpa contra a Acerind). Os. m a t e r i a i s c i t a d o s s ã o s u f i c i e n t e s p a r a m o s t r a r e m q u e c o n siste a c o m i c i d a d e a p a r t i r d a c o m p a r a ç ã o d o h o m e m c o m a n i m a i s .
10 O homem-coisa
\A r e p r e s e n t a ç ã o d o h o m e m c o m o c o i s a é c ô m i c a p e l a s m e s mas razões e nas mesmas condições em que é cômica sua representaç ã o e m vestes d e a n i m a l . : " G r a l h a s d e c a u d a c u r t a " , " b a r r e t e s " , " c o g u m e l o s d e p o u c a p a n ç a " — c o m essas e o u t r a s p a l a v r a s o governador xinga Bóbtchinski e D ó b t c h i n s k i . A n i m a i s (gralhas) e coisas (barretes, cogumelos) são n o m e a d o s aqui a o m e s m o t e m p o . 1
E m Talentos e admiradores, de O s t r ó v s k i , o v e l h o a r t i s t a N a r o k o v fala d o empresário: " E l e é u m a árvore que t e m o s aqui, u m a á r v o r e , u m c a r v a l h o , u m a b e s t a " . " P o s t e ! " , diz n o c o n t o de T c h é k h o v o pai d a noiva à sua esposa q u a n d o ela, p a r a a b e n ç o a r os j o v e n s , n a pressa, a o invés d o ícone, t i r a d a p a r e d e o r e t r a t o do escritor Lajétchnikov. 2
Insultos e c o m p a r a ç õ e s de t o d o tipo são geralmente m u i t o coloridos t a n t o n a vida c o m o nas o b r a s literárias. A s c o m a d r e s de W i n d sor c h a m a m F a l s t a f f d e " a b ó b o r a a g u a d a " . N a c o m é d i a d e O s t r ó v s k i A verdade vai bem, a felicidade melhor ainda, F i l i t s a t a diz d o c o m e r ciante que é totalmente submisso à mãe: "Balalaica sem c o r d a s " , definindo à perfeição sua natureza. G e r a l m e n t e , u m c a r á t e r p o d e ser b e m d e f i n i d o a t r a v é s d a c o m p a r a ç ã o c o m u m a coisa. Tchékhov tem u m conto intitulado " U m
1
Personagens de O inspetor geral, de N . Gógol, cit.
2
N o original russo: frade-de-pedra, fradépio, eápécie de marco de pedra.
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tronco intelectual". "Vosso caráter é semelhante à groselha a z e d a " — escreve T c h é k h o v à M i z í n o v a ; e s o b r e si m e s m o a S u v ó r i n : " N ã o t e n h o u m c a r á t e r , m a s u m a b u c h a " . E x p r e s s õ e s b r i n c a l h o n a s desse tipo encontram-se freqüentemente nas cartas de T c h é k h o v ao irmão A l e k s a n d r : " N ã o seja u m p a r d e c a l ç a s , v e n h a " ; " N u m a p a l a v r a , v o c ê é u m b o t ã o " . M u i t o expressivas s ã o a l g u m a s c o m p a r a ç õ e s d e K o z m á P r u t k ó v : " E u c o m p a r a r e i s e m h e s i t a r u m v e l h o q u e passeia a u m a clepsidra". C o m o sempre, são particularmente coloridos os exemplos análogos em Gógol. " S e u torrada q u e i m a d a " , " b u r r o c o m o u m a p o r t a " — é a s s i m q u e n o c o n t o O nariz a mulher do barbeiro x i n g a o m a r i d o . " P a r e c e q u e viu p a s s a r i n h o v e r d e , seu p e d a ç o d e p a u " — fala P o d k o l é s s i n d e K o t c h k á r i e v e m O casamento, e ele m e s m o acrescenta: " N ã o passa de u m s a p a t o de mulher, n ã o é g e n t e " . 3
" Q u e d i r e t o r é ele? É u m a r o l h a e n ã o u m d i r e t o r , u m a s i m ples r o l h a d e s s a s q u e s e r v e m p a r a t a p a r g a r r a f a s " — a s s i m e m Diário de um louco refere-se P o p r í s c h i n a o chefe. 4
U m rosto h u m a n o , representado através de u m objeto, perde o s e n t i d o . " E r a u m a c a r a d e s s a s q u e e m s o c i e d a d e c h a m a m d e focin h o d e c â n t a r o " (Almas mortas, c a p . V I ) . N o Diário de um louco o rosto d o chefe de seção parece u m frasco d e farmácia. A boca d e I v a n I v á n o v i t c h é m e i o p a r e c i d a c o m a l e t r a íjitsa , Ivan Nikíforovitch t e m u m nariz semelhante a u m a ameixa m a d u r a . 5
E m t o d o s esses c a s o s , c o m o é c o m u m e m G ó g o l , é c o m o se n ã o h o u v e s s e s á t i r a s o c i a l . O c a r á t e r social define-se n o t o d o d a n a r r a t i v a . M a s a r e p r e s e n t a ç ã o d o r o s t o p o r m e i o d e u m o b j e t o t a m b é m é possível c o m o s á t i r a política d i r e t a . N a é p o c a d e L u í s X V I I I , a r e p r e s e n t a ç ã o d e seu r o s t o s o b a f o r m a d e u m a p ê r a m a d u r a — a s s i m e r a m r e p r e s e n t a d a s s u a s b o c h e c h a s flácidas e o r o s t o q u e se e s t r e i t a v a n a p a r t e s u p e r i o r — circulou a m p l a m e n t e n a s revistas satíricas francesas. P o r é m n ã o a p e n a s o r o s t o , t o d a a figura h u m a n a descrita a t r a vés d o m u n d o d a s coisas p o d e se t o r n a r c ô m i c a . " A g á f i a F e d o s s é e v n a t i n h a n a c a b e ç a u m a t o u c a , t r ê s v e r r u g a s n o n a r i z e u m r o u p ã o cor d e café c o m flores a m a r e l i n h a s . T o d o seu t a l h e p a r e c i a u m b a r r i l , e p o r isso e n c o n t r a r s u a c i n t u r a e r a t ã o difícil c o m o e n x e r g a r o p r ó p r i o nariz sem u m espelho. Suas pernas eram curtinhas, m o l d a d a s à imag e m d e d u a s a l m o f a d a s . " A p e s a r d a fofura e d a r o t u n d i d a d e d o talhe, Agáfia Fedosséevna é representada c o m o mulher m u i t o ambi-
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Em O nariz & A terrível vingança. Trad, de Aríete Cavaliere. São Paulo, Max Limonad, 1986. p. 15. Op. cit., p. 45. Última letra do eslavo eclesiástico e do russo antigo, com a grafia semelhante ao V do alfabeto latino e o som de I.
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ciosa. E m Almas mortas, u m v e n d e d o r d e sbítien é descrito c o m o " u m s a m o v a r d e c o b r e v e r m e l h o e c o m u m r o s t o t ã o vermelho q u a n t o o s a m o v a r , d e m o d o q u e d e l o n g e se p o d e r i a p e n s a r q u e à j a n e l a estiv e s s e m d o i s s a m o v a r e s , se u m deles n ã o tivesse u m a b a r b a n e g r a c o r n o a z e v i c h e " . G r i g ó r i G r i g ó r i e v i t c h e m Ivan Fiódorovitch Chponka é representado d o seguinte m o d o : " G r i g ó r i Grigórievitch recostou-se na c a m a e parecia u m e n o r m e colchão deitado sobre o o u t r o " . É inter e s s a n t e c o m p a r a r c o m essa a r e p r e s e n t a ç ã o d e u m h o m e m , feita p o r S a l t i k ó v - S c h e d r i n e m Idílio contemporâneo: " E r a u m h o m e m de uns c i n q ü e n t a a n o s e x t r a o r d i n a r i a m e n t e ágil e p e r f e i t a m e n t e o v a l . C o m o se ele t o d o fosse c o n s t i t u í d o d e v á r i o s o v a i s l i g a d o s e n t r e si p o r u m fio, p o s t o e m m o v i m e n t o p o r u m m e c a n i s m o o c u l t o . N o m e i o ficava o o v a l b á s i c o — a b a r r i g a , e q u a n d o ele c o m e ç a v a a se m e x e r , os o v a i s e o v a i z i n h o s r e s t a n t e s t a m b é m se p u n h a m e m m o v i m e n t o " . E s t a d e s c r i ç ã o , n u m c e r t o s e n t i d o , serve d e i l u s t r a ç ã o à t e o r i a d e B e r g s o n . " N ó s r i m o s " , diz B e r g s o n , " t o d a vez q u e u m a p e s s o a p r o d u z e m n ó s a i m p r e s s ã o q u e u m a c o i s a p r o d u z " . M a s este m e s m o e x e m p l o r e v e l a t a m b é m a insuficiência d a t e o r i a d e B e r g s o n . A r e p r e s e n t a ç ã o d o ser h u m a n o a t r a v é s d e u m a coisa n e m s e m p r e é c ô m i c a c o m o a f i r m a Bergs o n , m a s s o m e n t e q u a n d o a coisa é i n t r i n s e c a m e n t e c o m p a r á v e l à p e s s o a e e x p r e s s a a l g u m defeito s e u . N a d e s c r i ç ã o d e S a l t i k ó v - S c h e d r i n v e m o s s ó u m a coisa q u e j á p e r d e u s u a l i g a ç ã o c o m o h o m e m , e p o r isso, n o f u n d o , j á n ã o p r o d u z u m a i m p r e s s ã o c ô m i c a . Se as p e s s o a s g o r d a s s ã o d e s c r i t a s a t r a v é s d e a l m o f a d a s , b a r ris, colchões, a m a g r e z a suscita o u t r a s associações: " U m m a g r e l a é algo s e m e l h a n t e a u m a escova de d e n t e s " ( G ó g o l ) . D o magricela J e v á k i n Kotchkáriev diz: " É c o m o u m a bolsinha d a qual t i r a m o s o t a b a c o " . A v e l h o t a e m Chponka é caracterizada do seguinte m o d o : " N e s s e ínterim entrou a velhota, m i u d i n h a , a própria cafet e i r a d e t o u c a " . O ser h u m a n o p o d e ser r i d í c u l o t a m b é m e m s e u s m o v i m e n t o s : " A q u i vai p a r a v o c ê s m a i s u m s i n a l : q u a n d o a n d a , ele s e m p r e a g i t a os b r a ç o s . J á o f a l e c i d o a s s e s s o r l o c a l D e n i s P e t r ó v i t c h , s e m p r e q u e c a l h a v a d e vê-lo p o r d e t r á s , d i z i a : ' O l h e m , o l h e m , lá v a i o m o i n h o d e v e n t o ' " ( G ó g o l ) . E m G ó g o l é possível e n c o n t r a r c o m p a r a ç õ e s m u i t o e s t r a n h a s , m a s extremamente a d e q u a d a s . C h p o n k a s o n h a c o m sua futura m u l h e r , m a s ele n ã o c o n s e g u e c a p t a r seus t r a ç o s : " E d e r e p e n t e ele s o n h o u q u e a m u l h e r n ã o era a b s o l u t a m e n t e u m ser h u m a n o , m a s u m a espécie d e t e c i d o d e l ã " . É c a r a c t e r í s t i c o q u e e m G ó g o l essas a p r o x i m a ç õ e s a p a r e n t e m e n t e i n v e r o s s í m e i s s e j a m feitas a t r a v é s d a
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Bebida quente consumida antigamente na Rússia, à base de especiarias e mel.
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COMICIDADE E RISO
d e s c r i ç ã o d e u m s o n h o (Chponka, O retrato) o u d a s a l u c i n a ç õ e s d e u m l o u c o o u d e u m d o e n t e (A avenida Niévski, Diário de um louco). D e m o d o q u e se esse m u n d o i l u s ó r i o é r e p r e s e n t a d o c o m o r e a l , o m u n d o r e a l e m G ó g o l a s s u m e à s vezes u m c a r á t e r d e a b s o l u t a inverossimilhança. Essa mistura de dois planos n o exemplo citado é e m p r e g a d a p a r a fins c ô m i c o s , m a s e m G ó g o l ela a d q u i r e c o m m u i t a f r e q ü ê n c i a u m c a r á t e r t r á g i c o , c o m o e m O capote , onde Akáki Akákievitch se t r a n s f o r m a e m f a n t a s m a . É possível q u e exista a l g u m a relaç ã o c o m isso n o f a t o d e q u e e m G ó g o l n ã o s ó as p e s s o a s se a s s e m e l h a m à s c o i s a s , m a s t a m b é m a s coisas se h u m a n i z a m . L e m b r a m - s e a p r o p ó s i t o a s p o r t a s q u e r a n g e m n a s casas d o s p r o p r i e t á r i o s d e terr a s d o s t e m p o s d e a n t a n h o : " N ã o p o s s o d i z e r p o r q u e elas c a n t a v a m : m a s é e x t r a o r d i n á r i o q u e t o d a p o r t a tivesse u m a v o z p r ó p r i a : a p o r t a que dava para o quarto cantava no mais agudo soprano; a porta da s a l a d e j a n t a r r o u q u e j a v a c o m v o z d e b a i x o ; m a s a q u e ficava n a entrada emitia u m s o m estranho, tremulante e a o m e s m o t e m p o lamuriento, t a n t o q u e , a o escutá-la c o m atenção, acabava-se ouvindo muito claramente: 'Meu Deus, q u e frio' " . O u t r o exemplo semelhante é o r e a l e j o d e N o z d r i ó v c o m u m p í f a r o m u i t o v i v o q u e n ã o q u e r se aquietar d e jeito n e n h u m , e continua assobiando sozinho q u a n d o os outros j á n ã o t o c a m . O chiado d o relógio na casa de K o r ó b o t c h k a l e m b r a a T c h í t c h i k o v o sibilar d a s e r p e n t e , " m a s o l h a n d o p a r a c i m a , t r a n q ü i l i z o u - s e , p o i s p e r c e b e u q u e e r a o relógio d e p a r e d e q u e e s t a v a c o m v o n t a d e de bater h o r a s " . 1
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(A c o m i c i d a d e a u m e n t a se a c o i s a se a s s e m e l h a n ã o c o m o s e r h u m a n o e m g e r a l , m a s c o m u m a p e s s o a determinada.jNa horta de K o r ó b o t c h k a as árvores frutíferas t i n h a m sido cobertas c o m redes p a r a p r o t e g ê - l a s c o n t r a as g r a l h a s e o u t r o s p á s s a r o s . " C o m a m e s m a f i n a l i d a d e , e s t a v a m ali e r i g i d o s d i v e r s o s e s p a n t a l h o s e m h a s t e s c o m pridas e d e b r a ç o s abertos; u m deles ostentava a t o u c a d a p r ó p r i a patroa." 9
E m t o d o s os casos citados examinou-se a aparência d o h o m e m . A aparência expressa a essência das pessoas representadas. E m G ó g o l , Tchítchikov, Sobakévitch, Nozdrióv, P l i ú c h k i n e t o d o s os o u t r o s c r i a d o s c o m o imagens visuais vivas n ã o são a p e n a s retratos, m a s tipos q u e v e m o s c o m o seres vivos; são r e p r e s e n t a n t e s de categorias s o c i a i s e p s i c o l ó g i c a s d o s h o m e n s d a q u e l a é p o c a . R a c i o c i n a n d o
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Traduzido por Vinícius de Moraes em O livro de bolso dos contos p. 56-80. Almas mortas, cit., p. 54. Ibidem, p. 57.
russos,
cit.,
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e m a b s t r a t o , as p e s s o a s m u i t o g o r d a s o u m u i t o m a g r a s , v e s t i d a s de m o d o insólito ou semelhantes a m o i n h o s de vento, a s a m o v a r e s o u a p o r c o s , e n q u a n t o pessoas p o d e r i a m ser e x t r e m a m e n t e respeitáveis. U m r a c i o c í n i o d e s s e s e s t a r á c o r r e t o p a r a a v i d a r e a l , m a s n ã o p a r a a s o b r a s d e a r t e o n d e essas c a r a c t e r í s t i c a s e x t e r i o r e s a t e s t a m a d e f i c i ê n c i a d a s f i g u r a s r e p r e s e n t a d a s p e l o a u t o r . R e s i d e aí o p r o fundo sentido satírico deste tipo de c o m i c i d a d e . Se u m h o m e m i m ó v e l é r e p r e s e n t a d o c o m o c o i s a , o h o m e m em movimento é representado como autômato. A propósito, novam e n t e , p o d e m o s c i t a r u m a c o n s i d e r a ç ã o d e B e r g s o n : " P o s e s , gestos e m o v i m e n t o s d o c o r p o h u m a n o são ridículos n a medida e m q u e o referido corpo desperta em n ó s a representação de u m a simples m á q u i n a " . Tal consideração é equivocada. O coração bate e os pulm õ e s r e s p i r a m c o m a p r e c i s ã o d e u m m e c a n i s m o , m a s isso n ã o é ridíc u l o . N ã o s ã o a b s o l u t a m e n t e r i d í c u l a s , e e s t ã o m a i s p a r a terríveis, as c o n v u l s õ e s p e r f e i t a m e n t e r í t m i c a s d e u m e p i l é p t i c o . U m a u t ô m a t o e m m o v i m e n t o p o d e n ã o ser r i d í c u l o , m a s t e r r í v e l . N a g a l e r i a d e P e d r o , o G r a n d e , q u e a n t i g a m e n t e ficava n o M u s e u d e E t n o g r a f i a , h a v i a u m a figura s e n t a d a d o m o n a r c a c o m o r o s t o d e c e r a e c o m u m m e c a n i s m o o c u l t o n o i n t e r i o r . Q u a n d o os v i s i t a n t e s d a g a l e r i a p a r a v a m diante dessa figura, u m funcionário pressionava u m pedal e P e d r o erguia-se e m t o d a a s u a e s t a t u r a . Isso p r o v o c a v a t a m a n h o pavor e susto que a c a b a r a m suspendendo a apresentação. O homem-mecanismo não é sempre ridículo, mas somente nas m e s m a s condições e m que u m a coisa é ridícula. U m dos g o v e r n a d o res d e História de uma cidade é d e s c r i t o a s s i m : " A p a s s i o n a l i d a d e fora riscada do n ú m e r o de elementos que c o m p u n h a m sua natureza, e substituída pela inflexibilidade que funcionava c o m a regularidade d o mais preciso m e c a n i s m o " . Neste caso a representação de u m h o m e m s o b o aspecto d e u m m e c a n i s m o é ridícula p o r q u e revela sua natureza íntima. T u d o o q u e foi d i t o s e r v e p a r a e v i d e n c i a r a q u e l e a s p e c t o e s p e cífico d e c o m i c i d a d e q u e é p r ó p r i o d o t e a t r o d e m a r i o n e t e s . A m a r i o n e t e e m si é u m a c o i s a . M a s n o t e a t r o ela é u m a c o i s a q u e se m e x e , p o r t r á s d a q u a l se p r e s s u p õ e u m a a l m a h u m a n a q u e n a r e a lidade n ã o existe. O princípio d o t e a t r o d e m a r i o n e t e s reside na a u t o m a t i z a ç ã o de m o v i m e n t o s q u e i m i t a m , e p o r isso m e s m o p a r o d i a m , os m o v i m e n t o s h u m a n o s . P o r essa r a z ã o , n o t e a t r o de m a r i o n e t e s p r o p r i a m e n t e dito é impossível representar as tragédias h u m a n a s . É verdade que h o u v e t e n t a t i v a s n e s t e s e n t i d o . G o e t h e , p o r e x e m p l o , n o r o m a n c e Os anos
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C O M I C I D A D E E RISO
de peregrinação de Wilhelm Meister, descreve u m teatro de marionetes e m q u e e r a m r e p r e s e n t a d a s c e n a s b í b l i c a s ( o d u e l o e n t r e D a v i e Golias, por exemplo). Tais cenas, c o m o diríamos hoje, criavam u m a impressão de grotesco, m a s sem perseguir objetivos cômicos. N a c e n a d o t e a t r o d e m a r i o n e t e s l e v a v a m o Fausto, e Goethe assistia a e s p e t á c u l o s d e s s e t i p o , q u e n ã o t e n d i a m à c o m i c i d a d e , p r e tendiam antes estimular u m certo horror não desprovido de prazer e a o m e s m o t e m p o a satisfação pelo triunfo d a virtude e pela punição do vício. P a r a o h o m e m atual a tragédia n u m palco de teatro d e m a r i o n e t e s j á n ã o seria p o s s í v e l , seria fruída a p e n a s c o m o c ô m i c a . U m p u n h a l c r a v a d o no peito d o adversário no teatro de marionetes p r o v o c a a p e n a s o riso d o e s p e c t a d o r de hoje. É impossível imaginar O b r a z t s ó v ou D e m i é n n i e m seus teatros de m a r i o n e t e s , apresentando tragédias de Racine, de Shakespeare ou de quem quer que seja. O t e a t r o p o p u l a r russo d e m a r i o n e t e s é s e m p r e e s o m e n t e cômico, e cômico não por acaso, mas deliberadamente. A comicid a d e d o t e a t r o p o p u l a r de m a r i o n e t e s , p o r é m , n ã o é suscitada apenas pelo a u t o m a t i s m o d o s m o v i m e n t o s , mas t a m b é m pela t r a m a , pelo decorrer da a ç ã o . As ações das marionetes são mecânicas. Os b o n e c o s t r o c a m e n t r e si p a u l a d a s n a c a b e ç a c o m a p r e c i s ã o d e u m m e c a n i s m o . N o efeito c ô m i c o s u s c i t a d o pelas m a r i o n e t e s baseia-se u m d o s c o n t o s m a r a v i l h o s o s d e S a l t i k ó v - S c h e d r i n — Os pequenos titereteiros. N e l e é d e s c r i t o u m t i t e r e t e i r o q u e faz b o n e c o s e os u t i liza i m e d i a t a m e n t e e m s u a s a p r e s e n t a ç õ e s . U m a d a s m a r i o n e t e s representa u m assessor de c o l e g i a d o que aceita p r o p i n a . " A p o i o u u m a das m ã o s no quadril, enfiou a o u t r a no bolso das calças c o m o se c o l o c a s s e a l g o a l i . C r u z o u a s p e r n a s [ . . . ] " O u t r a f i g u r a é a d e u m m u j i q u e " q u e lhe t r a z u m a r e c o m p e n s a " : " D e d e n t r o d e seu paletó sobressaíam galinhas, g a n s o s , p a t o s , perus, leitões, e de u m dos bolsos despontava até m e s m o u m a vaca i n t e i r a " . A vaca muge. O a s s e s s o r a t i r a - s e s o b r e o m u j i q u e e n u m i n s t a n t e se a p o s s a d e t u d o . O b r i g a - o a t é a t i r a r a s m e i a s e o s lápti e encontra escondido ali o d i n h e i r o . 1 0
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A q u i l o q u e n a vida real n ã o é a b s o l u t a m e n t e c ô m i c o — a exaç ã o d o s c a m p o n e s e s — t o r n a - s e risível n o p a l c o d e t e a t r o d e m a r i o netes, cujos instrumentos são utilizados com finalidades satíricas.
Serguei V. Obraztsóv, diretor russo, fundador em Moscou (1931) do Teatro Estatal de Marionetes e autor de espetáculos, livros e artigos sobre o assunto. Icvguiéni S. Demiénni, ator e diretor, é um dos fundadores do teatro soviético de marionetes com sede em Leningrado. Tipo de calçado de fibra de tília usado pelos camponeses pobres.
11 A ridicularização das profissões
T e n d o e x a m i n a d o o h o m e m d o p o n t o d e vista d e seu a s p e c t o e x t e r i o r , d e v e m o s e x a m i n á - l o n o q u e se r e f e r e à s u a a t i v i d a d e . A l g u m a s p r o f i s s õ e s p o d e m ser r e p r e s e n t a d a s s a t i r i c a m e n t e . N e s s e s c a s o s a a t i v i d a d e é r e p r e s e n t a d a a p e n a s d o p o n t o d e vista d e s u a s m a n i f e s t a ç õ e s e x t e r i o r e s , p r i v a n d o - s e d e s e n t i d o c o m isso o s e u c o n t e ú d o . j O s mais evidentes exemplos disso podem-se encontrar em G ó g o l . A s s i m é descrito A k á k i A k á k i e v i t c h B a c h m á t c h k i n . Ele é u m copista, sendo que o próprio processo da cópia, independentemente d o sentido e d o conteúdo do texto, absorve toda a sua atenç ã o . O l e i t o r s ó o vê d e s s e p r i s m a . A p a r t i r d i s s o ele c a u s a p e n a e a o m e s m o t e m p o é r i d í c u l o . O m e s m o p r i n c í p i o d e r e p r e s e n t a ç ã o se a p l i c a q u a n d o se d e s c r e v e o t r a b a l h o n ã o d e u m a ú n i c a p e s s o a , m a s o da repartição t o d a : " O barulho das penas era grande e parecia q u e a l g u m a s c a r r o ç a s c h e i a s d e r a m a g e m a t r a v e s s a v a m u m a floresta coberta por q u a t r o p a l m o s de folhas s e c a s " . Neste caso G ó g o l acrescenta u m a hipérbole, coisa que, f a l a n d o n o geral, n ã o é c a r a c t e r í s t i c a d e seu e s t i l o c ô m i c o . A t a r e f a d e r e p r e s e n t a r u m a a t i v i d a d e q u a l q u e r d o p o n t o d e v i s t a c ô m i c o o u s a t í r i c o é m a i s fácil se e s s a . m e s m a a t i v i d a d e e m si n ã o r e q u e r u m a t e n s ã o m e n t a l e s p e c i a l , e 1
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Personagem do conto O capote,
cit.
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COMICIDADE E RISO
t o d a a a t e n ç ã o se d i r i g e a p e n a s às s u a s f o r m a s e x t e r i o r e s . A s s i m , p o r exemplo, é representado o barbeiro Ivan Iákovlievitch no conto O nariz. A l i d e s c r e v e - s e m i n u c i o s a m e n t e c o m o ele faz a b a r b a d o major Kovalióv. É descrito todo o processo d o barbear, sendo que se m o s t r a o p r a z e r q u e tal p r o c e s s o c a u s a t a n t o n o b a r b e i r o c o m o no freguês: " K o v a l i ó v sentou-se, Ivan Iákovlievitch cobriu-o c o m u m g u a r d a n a p o e, n u m i n s t a n t e , c o m o a u x í l i o d o p i n c e l , t r a n s f o r m o u toda a sua barba e parte das bochechas num creme semelhante a o q u e é s e r v i d o n a s festas d e a n i v e r s á r i o d o s c o m e r c i a n t e s " . S e g u e se a d e s c r i ç ã o d e c o m o o m a j o r n ã o p e r m i t e q u e lhe s e j a t o c a d o o nariz r e c é m - r e a d q u i r i d o e de c o m o Ivan Iákovlievitch, a p e s a r de s e r " a t é difícil b a r b e a r s e m s e g u r a r o ó r g ã o d o o l f a t o " , s u p e r a t o d o s os o b s t á c u l o s e b a r b e i a c o m s u c e s s o a t é o f i m . 2
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H á a l g u m a s p r o f i s s õ e s q u e s ã o e s p e c i a l m e n t e p o p u l a r e s n a literatura humorística e nas artes figurativas. A profissão de cozinheiro é u m a d e l a s , q u e se liga c o m o q u e j á d i s s e m o s a n t e s s o b r e c o m i d a . A r e p r e s e n t a ç ã o d e s s a p r o f i s s ã o é feita e m t o n s d e u m a c o m i c i d a d e u m t a n t o l a u d a t i v a . E m A carruagem é descrito o t r a b a l h o d o cozin h e i r o d e u m g e n e r a l , e m O capote aparece a descrição de c o m o cozinha certa dona-de-casa: Encontrou a porta do alfaiate aberta, e isso porque sua honrada e s p o s a , no ato de fritar nâo sei que p e i x e , t i n h a d e i x a d o escapar u m a f u m a ç a t ã o e s p e s s a q u e se t o r n a v a i m p o s s í v e l d i s t i n g u i r m e s m o as b a r a t a s d o a p o s e n t o . 4
Nos casos em que a atividade tem p o r base apenas o aspecto físico, ela n ã o p o d e ser p r i v a d a d e s e n t i d o p o r c o n t a d e seu c o n t e ú d o . A a t e n ç ã o c o n c e n t r a d a n o processo d a atividade leva, nesses casos, à descrição d a extraordinária técnica e d o excepcional virtuosism o em sua execução. C o m o n o caso j á l e m b r a d o d o b a r b e i r o Ivan I á k o v l i e v i t c h . C o m o t a m b é m , p o r e x e m p l o , n o d o v e n d e d o r d e tecid o s n a s e g u n d a p a r t e d e Almas mortas. E l e se a g i t a c o m p r a z e r , a p o i a n d o - s e c o m a m b a s as m ã o s n o b a l c ã o . J o g a c o m d e s t r e z a u m a peça de tecido n a m e s a e a p r o x i m a o p a n o d o nariz de T c h í t c h i k o v . O preço foi c o m b i n a d o , e m b o r a f o s s e c o m prifix, c o m o a f i r m a v a o c o m e r c i a n t e . O corte foi d e s t a c a d o por m e i o de u m á g i l r a s g ã o exec u t a d o c o m a m b a s as mãos, e m b r u l h a d o em papel c o m rapidez feno-
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O nariz, cit., p. 41. Ibidem, p. 42. O capote, cit., p. 61.
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m e n a l , à russa, a t a d o c o m um leve c o r d ã o , a m a r r a d o c o m nó i n s t a n t â n e o , c o r t a d o à t e s o u r a , e, u m m o m e n t o d e p o i s , t u d o já se e n c o n trava na s e g e . 5
U m t r a b a l h o q u e i n c l u a a i n d a q u e u m a p a r t e insignificante d e c r i a t i v i d a d e n ã o p o d e ser r e p r e s e n t a d o d e m o d o c ô m i c o e n q u a n t o t a l . D e a c o r d o c o m isso é r e p r e s e n t a d o o alfaiate P e t r ó v i t c h n o c o n t o O capote. É u m excelente a r t e s ã o , e G ó g o l n o s m o s t r a , a p e l a n d o à c o m i c i d a d e , n ã o t a n t o o seu t r a b a l h o , q u a n t o s u a p e r s o n a l i d a d e e f i g u r a , a l é m d e a l g u n s t r a ç o s exteriores d a p r o f i s s ã o q u e s ã o específicos d o s alfaiates: " A k á k i A k á k i e v i t c h c o m p r e e n d e u a n e c e s s i d a d e d e levar o seu c a p o t e a o alfaiate P e t r ó v i t c h , q u e se a c h a v a i n s t a l a d o n o q u a r t o p a v i m e n t o d e u m a e s c a d a d e serviço e q u e , a p e s a r d e z a r o l h o e e n g e l h a d o , c o n s e r t a v a c o m c e r t a h a b i l i d a d e calças e f r a q u e s d e f u n c i o n á rios e m e s m o d e civis, s o b a c o n d i ç ã o , b e m e n t e n d i d o , d e q u e estivesse e m a b s t e n ç ã o a l c o ó l i c a " . A p e r s o n a g e m é r i d í c u l a q u a n d o , c o m os pés descalços c r u z a d o s , s e n t a s o b r e a m e s a e m o s t r a a o leitor o e n o r m e d e d ã o d o p é ; ele n ã o c o n s e g u e enfiar o fio n a a g u l h a , pois n o d i a a n t e rior, n a expressão d a mulher, "este diabo zarolho estava c o m a lamparina c h e i a " . M a s q u a n d o , solicitamente, entrega a A k á k i Akákievitch o c a p o t e c o s t u r a d o à p e r f e i ç ã o e m b r u l h a d o n u m l e n ç o , ele j á n ã o é r i d í c u l o , m a s a t r a i p a r a si a s i m p a t i a d o leitor. 6
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O t r a b a l h o do alfaiate n ã o é nem u m p o u c o apreciado pelos c a m p o n e s e s q u e r e c o n h e c e m a p e n a s o t r a b a l h o físico b r u t o d a t e r r a . O c a m p o n ê s t e m c o n s i d e r a ç ã o p e l a f o r ç a física. P o r i s s o a f i g u r a d e s c a r n a d a e leve d o a l f a i a t e f r a c o é a l v o d e z o m b a r i a e m t o d o o f o l c l o r e e u r o p e u . É t ã o leve q u e o v e n t o leva. O s l o b o s o p e r s e g u e m , m a s ele é v e l o z e ágil e se p õ e a s a l v o e m c i m a d e u m a á r v o r e . M e s m o c o m t o d o s os s e u s d e f e i t o s ele é e n g e n h o s o e às vezes é r e p r e s e n t a d o c o m o corajoso. Q u a n d o os lobos s o b e m u m em cima d o o u t r o p a r a a l c a n ç á - l o n a á r v o r e , ele g r i t a : " O d e b a i x o vai c o n s e g u i r m a i s d o q u e t o d o s " . O l o b o d a b a s e se a s s u s t a , sai c o r r e n d o e t o d a a pirâmide de lobos desmorona. O conto maravilhoso dos G r i m m O alfaiate valente p e r t e n c e a o rol d o s c o n t o s m a r a v i l h o s o s mais populares e preferidos dessa coletânea. Existe a estampa de u m lubók russo " D e c o m o u m alfaiate p r o c e d e u c o m os d i a b o s , %
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O presente trecho na tradução brasileira (op. cit., p. 414) apresenta algumas pequenas diferenças em relação à variante original citada por Propp, que no entanto não comprometem a validade do exemplo. O capote, cit., p. 61. Ibidem, p. 62. Antiga estampa russa em xilografia, com motivos populares, geralmente acompanhada de textos explicativos.
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COMICIDADE E RISO
lutou à sua m a n e i r a , l o t o u a isbá de o u r o e deu c a b o d e t o d o s e l e s " . N a p a r t e inferior d a ilustração h á u m c o n t o m a r a v i l h o s o e m versos s o b r e c o m o o alfaiate venceu os d i a b i n h o s . Aí n ã o existe p r o p r i a mente u m a sátira da profissão. A comicidade surge do contraste e n t r e a d e b i l i d a d e física d o a l f a i a t e e s u a e n g e n h o s i d a d e e s a g a c i d a d e , q u e lhe substituem a força. U m a das figuras preferidas pelos escritores satíricos d o m u n d o inteiro é a figura do médico, s o b r e t u d o n o teatro p o p u l a r e nas primeiras comédias européias. O d o u t o r juntamente c o m Arlequim e P a n t a l o n e e r a u m a d a s f i g u r a s p e r m a n e n t e s d a commedia deli'arte italiana. Os pacientes ignorantes daqueles tempos enxergavam apenas os p r o c e d i m e n t o s e os atos exteriores do m é d i c o , m a s n ã o viam e n ã o e n t e n d i a m o sentido deles, n ã o acreditavam nele. N o d r a m a p o p u l a r O tzar Maksimilian aos espectadores d a seguinte m a n e i r a :
o médico apresenta-se
[...] Eu c u r o c o m arte, Dos m o r t o s o s a n g u e tiro [...] Arranco dentes, escarafuncho olhos, M a n d o para o o u t r o m u n d o [...]
Esse médico t r a t a os velhos c o m p a n c a d a s , prescreve-lhes u m a a l i m e n t a ç ã o à b a s e d e e s t r u m e e t c . E x i s t e m lubki, n o s q u a i s é r e p r e sentado " o médico holandês e b o m boticário". Ele é elogiado porque t r a n s f o r m a os velhos em j o v e n s . 9
N o t e a t r o de P e t r u c h k a o m é d i c o a p a r e c e t o d o vestido de preto, com óculos enormes. Petruchka bate na cabeça do doutor. A figura c ô m i c a d o m é d i c o é e n c o n t r a d a repetidas vezes e m M o lière ( O médico volante, Médico à força, O doente imaginário). N o Médico à força, Sganarelle, obrigado a representar u m médico, recorre a t o d a espécie de m a n i g â n c i a , recheada d e p a l a v r a s latinas. E m O doente imaginário, o médico a r r a n c a c o m perícia o dinheiro do doente hipocondríaco. A comédia termina com u m balé n o qual d a n ç a m o i t o e n f e r m e i r o s c o m c l i s t e r , seis f a r m a c ê u t i c o s , u m p a d i o leiro e o i t o c i r u r g i õ e s . O s m o d o s c o m q u e se o b t é m o e f e i t o c ô m i c o s ã o b a s t a n t e evidentes e n ã o d e m a n d a m esclarecimentos teóricos. O h u m o r d e G ó g o l p o s s u i o u t r o c a r á t e r . Se e m M o l i è r e o s m é d i c o s a n d a m e m t r a j e s e s p e c i a i s , c o m e n o r m e s clisteres e t c , o u
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Espécie de polichinelo do teatro de bonecos russo.
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seja, s ã o m o s t r a d o s p o r m e i o d e m a n i f e s t a ç õ e s d a p r ó p r i a p r o f i s s ã o , e x t e r i o r e s o u r e p e t i d a s c o n t i n u a m e n t e ( b a l é ) , e m G ó g o l o q u e se r i d i c u l a r i z a é a r o t i n a d a a r t e m é d i c a . N o c o n t o O nariz, p o d e m o s l e m brar o médico ao qual recorre o major, mostrando-lhe o lugar comp l e t a m e n t e p l a n o o n d e f i c a v a o n a r i z , e a q u e m ele a c o n s e l h a : " L a v e c o m mais freqüência c o m água f r i a " . 1 0
Tolstói, que n ã o gostava de médicos, representa a arte médica e m a l g u m a s o b r a s (a d o e n ç a d e N a t a c h a e m Guerra e paz, A morte de Ivan Hitch e t c . ) c o m o c h a r l a t a n i s m o , c u j a f i n a l i d a d e é e m b o l s a r d i s c r e t a m e n t e o h o n o r á r i o q u e lhes c o n f i a m . A c o m i c i d a d e d e s s a s d e s c r i ç õ e s é i n v o l u n t á r i a . T o l s t ó i n ã o p r e t e n d i a d a r a isso u m a r e p r e sentação cômica, m a s é o que ocorre à sua revelia. Gógol tratou com desenvoltura t a m b é m a profissão de profess o r . T o r n o u - s e p r o v e r b i a l o p r o f e s s o r d e h i s t ó r i a d e O inspetor geral, que, discorrendo sobre Alexandre M a g n o , deixou-se arrebatar de tal m o d o q u e " D e s c e u c o r r e n d o da sua m e s a e c o m e ç o u a bater f u r i o s a m e n t e c o m as c a r t e i r a s n o c h ã o " . G ó g o l t a m b é m n ã o se esqueceu dos cientistas. A partir d a conversa de d u a s senhoras e m Almas mortas, G ó g o l m o s t r a c o m o nas ciências d e u m a hipótese a c a n h a d a , r e c h e a d a d e p o i s até a i n v e r o s s i m i l h a n ç a , n a s c e m falsas v e r d a d e s q u e d e u m a c á t e d r a se e s p a l h a m p e l o m u n d o . G ó g o l r i d i cularizou t a m b é m o ambiente dos cientistas, a n o t a n d o com precisão a l g u n s d e s e u s a s p e c t o s n e g a t i v o s . " T r i s t e f a t a l i d a d e servir n o s e t o r d o e n s i n o . T o d o s se m e t e m . T o d o s q u e r e m m o s t r a r q u e t a m b é m são i n t e l i g e n t e s " — diz L u k á Lukitch K h l o p o v , inspetor de escol a s , n o p r i m e i r o a t o d e O inspetor geral. 1 1
1 2
Ç P e l o e x p o s t o , v ê - s e q u e (p m o d o d e r i d i c u l a r i z a r as p r o f i s s õ e s n ã o se d i f e r e n c i a e m p r i n c í p i o d a r i d i c u l a r i z a ç ã o d e o u t r o s a s p e c t o s quaisquer da vida h u m a n a ^ É significativo q u e G ó g o l , b e m c o m o o u t r o s escritores s a t í r i c o s russos, n ã o tenha em parte alguma abordado o trabalho do c a m p o nês d a l a v o u r a . O t r a b a l h o p e s a d o d o c a m p o n ê s s e r v o d e g l e b a , o b s e r v a d o a i n d a q u e a p e n a s d o p o n t o d e vista d o s a t o s e x t e r i o r e s , n ã o p o d e ser e n c a r a d o c o m o c ô m i c o p o r u m a p e s s o a d e b o m s e n s o .
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O nariz, cit., p . 37. Op. cit., p . 16. O original russo traz "com a cadeira no c h ã o " . Ibidem, p. 17. N o original russo: "Deus nos livre de servir no setor da ciência".
12 A paródia
R e a l m e n t e , os casos expostos até a g o r a p o d e m ser considerados como paródia latente. T o d o s s a b e m o q u e é p a r ó d i a , m a s definir c i e n t i f i c a m e n t e e c o m p r e c i s ã o s u a essência n ã o é t ã o s i m p l e s . Eis c o m o a d e f i n e Bóriev e m seu livro d e d i c a d o a o c ô m i c o : A paródia c o n s i s t e num exagero c ô m i c o na imitação, n u m a reprodução exageradamente irônica das peculiaridades características individuais da forma deste ou daquele f e n ô m e n o que revela sua c o m i c i d a d e e reduz seu c o n t e ú d o (12, 208). ^
[Se refletirmos s o b r e essa d e f i n i ç ã o , v e r e m o s q u e ela se b a s e i a n u m a t a u t o l o g i a . " A p a r ó d i a c o n s i s t e n u m e x a g e r o c ô m i c o [...] q u e revela a c o m i c i d a d e . " M a s , e m q u e consiste p r o p r i a m e n t e a comicid a d e , o q u e suscita o riso, n ã o é d i t o . A p a r ó d i a é c o n s i d e r a d a c o m o u m exagero d a s p e c u l i a r i d a d e s i n d i v i d u a i s . E n t r e t a n t o , a p a r ó d i a n e m sempre contém u m exagero. O exagero é próprio da caricatura, não d a p a r ó d i a . Diz-se q u e a p a r ó d i a a b a r c a as p e c u l i a r i d a d e s i n d i v i d u a i s . N o s s a s o b s e r v a ç õ e s n ã o o c o n f i r m a m . P o d e m ser p a r o d i a d o s t a m b é m os f e n ô m e n o s n e g a t i v o s d e o r d e m social. P a r a resolver esta q u e s t ã o , examinaremos alguns materiais e daí tiraremos nossas conclusões. ( A p a r ó d i a c o n s i s t e n a i m i t a ç ã o d a s características exteriores d e u m f e n ô m e n o q u a l q u e r de vida (das m a n e i r a s d e u m a p e s s o a , d o s p r o c e d i m e n t o s artísticos e t c ) , d e m o d o a o c u l t a r o u n e g a r o s e n t i d o inte-
A PARÓDIA
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rior d a q u i l o q u e é s u b m e t i d o à p a r o d i z a ç ã o . É possível, a rigor, p a r o diar t u d o : os m o v i m e n t o s e as a ç õ e s d e u m a p e s s o a , seus gestos, o a n d a r , a m í m i c a , a fala, os h á b i t o s d e s u a p r o f i s s ã o e o j a r g ã o p r o f i s s i o n a l ; é possível p a r o d i a r n ã o só u m a p e s s o a , m a s t a m b é m o q u e é c r i a d o p o r ela n o c a m p o d o m u n d o m a t e r i a l . A p a r ó d i a t e n d e a d e m o n s t r a r q u e p o r t r á s d a s f o r m a s exteriores d e u m a m a n i f e s t a ç ã o espiritual n ã o h á n a d a , q u e p o r trás delas existe o v a z i o . A i m i t a ç ã o d o s m o v i m e n t o s graciosos d e u m a a m a z o n a d e circo p o r u m p a l h a ç o s e m p r e p r o v o c a o riso: h á t o d a a a p a r ê n c i a d e elegância e d e graciosid a d e , m a s a elegância e m si n ã o h á , o q u e existe é o c o n t r á r i o d i s s o , a falta d e d e s e n v o l t u r a . Desse m o d o , a p a r ó d i a r e p r e s e n t a um meio de desvendamento da inconsistência interior d o q u e é p a r o d i a d o } A p a r ó d i a d o p a l h a ç o , n o e n t a n t o , revela n ã o o v a z i o d o q u e é p a r o d i a d o , m a s a a u s ê n c i a nele d a s características positivas q u e i m i t a . E i s c o m o T c h é k h o v n o c o n t o A noite antes do julgamento p a s s a u m a r e c e i t a , q u e b e m p o d e ser c o n s i d e r a d a c o m o u m a p a r ó dia. A receita é escrita por u m h o m e m que, p e r n o i t a n d o n u m a estaç ã o d e p o s t a a o l a d o d e u m a b e l a m u l h e r a d o e n t a d a , faz-se p a s s a r p o r m é d i c o e c o m o tal a e x a m i n a . A receita é a seguinte: Rp. Sic t r a n s i t 0,05 G l o r i a m u n d i 1,0 Aquaa destillatas 0,1 uma colher de mesa de duas em duas PI a sra. Siélova Dr. Záitsev.
horas
E d a d a a q u i t o d a a a p a r ê n c i a de u m a receita c o m t o d o s os seus d a d o s e x t e r i o r e s . H á a f ó r m u l a s a c r a m e n t a i Rp. (isto é, recipe, tome), há denominações latinas e números fracionários que indicam a q u a n t i d a d e e as p r o p o r ç õ e s , existe a dose, está dito q u e é necessário diluir o remédio em á g u a destilada e q u a n t o t o m a r , aparece indic a d o t a m b é m p a r a q u e m a r e c e i t a foi p r e s c r i t a e q u e m a p r e s c r e v e u ; só e s t á f a l t a n d o o p r i n c i p a l , o u s e j a , e m q u e c o n s i s t e o c o n t e ú d o da receita, n ã o h á indicação de remédios. A s palavras latinas n ã o m e n c i o n a m u m r e m é d i o , m a s c o n s t i t u e m u m d i t a d o l a t i n o : Sic transit — a s s i m p a s s a , gloria mundi — a g l ó r i a d o m u n d o . Se e x i s t e r e a l m e n t e p a r ó d i a a q u i , ela e s t á n o f a t o d e q u e s ã o repetidos ou citados traços exteriores d o f e n ô m e n o na ausência de c o n t e ú d o i n t e r i o r . C o m o j á s a b e m o s , reside j u s t a m e n t e n i s s o a e s s ê n cia d a q u e l e a s p e c t o d a c o m i c i d a d e q u e o r a e s t u d a m o s . N o c a s o e m q u e s t ã o , a c o m i c i d a d e é r e f o r ç a d a pela c o n t i n u a ç ã o d o c o n t o ; o a u t o r d a r e c e i t a vai a o t r i b u n a l p o r a c u s a ç ã o d e b i g a m i a , e a
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COMICIDADE E RISO
m u l h e r q u e ele e x a m i n o u c o m o m é d i c o é e s p o s a d o p r o m o t o r q u e c o n d u z i r á o p r o c e s s o , e isso s e r á e s c l a r e c i d o . O d i t a d o Sic transit... revela-se e x t r e m a m e n t e o p o r t u n o p a r a o a u t o r d a receita, cujo s o b r e n o m e , Z á i t s e v , foi e s c o l h i d o a d e d o p o r T c h é k h o v , a s s i m c o m o o sobrenome da doente — sra. Siélova . 1
2
P o r é m , q u e m s a b e , e s t e c a s o n ã o seja c a r a c t e r í s t i c o ? T o m e m o s o u t r o : o professor explica a lição, gesticulando a n i m a d a m e n t e . U m d o s a l u n o s foi p o s t o d e c a s t i g o e e s t á p e r t o d a l o u s a às c o s t a s d o p r o f e s s o r e d e f r e n t e p a r a a c l a s s e . Às c o s t a s d o p r o f e s s o r ele r e p e t e t o d o s o s s e u s g e s t o s : c o m o o p r o f e s s o r , ele a g i t a o s b r a ç o s e repete s u a m í m i c a , a c e r t a n d o - a às mil m a r a v i l h a s , pois c o n h e c e m u i t o b e m o p r o f e s s o r e t o d a s as e x p r e s s õ e s d e seu r o s t o . O s a l u nos deixarão de ouvir o professor, irão olhar apenas para o traquinas perto d a lousa, que o p a r o d i a . O a l u n o , repetindo t o d o s os m o v i m e n t o s exteriores d o p r o f e s s o r , priva de c o n t e ú d o a sua fala. Neste c a s o a p a r ó d i a reside n a repetição d o s t r a ç o s exteriores d o fenômeno q u e aos olhos d o s presentes e n c o b r e m seu sentido. Este c a s o d i f e r e d o p r e c e d e n t e p e l o f a t o d e q u e n o ú l t i m o s e r v e d e inst r u m e n t o de p a r ó d i a o m o v i m e n t o , m a s a essência n ã o m u d a . N a c o m é d i a c i n e m a t o g r á f i c a inglesa As aventuras de Mr. Pitkin no hospital u m artista t r a v e s t i d o d e e n f e r m e i r a p e n e t r a n o h o s p i t a l . P a r a e s c o n d e r q u e é h o m e m , ele i m i t a c o m m u i t a h a b i l i d a d e o a n d a r f e m i n i n o . Ele a n d a d e saltos altos e r e b o l a c o m c e r t o e x a g e r o . O s espect a d o r e s v ê e m s u a figura p o r t r á s e e x p l o d e m n u m a g a r g a l h a d a geral. 71
N o s diversos cursos d e p o é t i c a fala-se c o m m u i t a freqüência d e p a r ó d i a s literárias e s ã o d a d a s as respectivas definições. O aparecim e n t o d e u m a p a r ó d i a em l i t e r a t u r a d e m o n s t r a q u e a c o r r e n t e literária p a r o d i a d a c o m e ç a a ser s u p e r a d a . M a s a p a r ó d i a literária é a p e n a s u m c a s o p a r t i c u l a r d e p a r ó d i a . P a r ó d i a s literárias j á existiam n a A n t i g ü i d a d e : A guerra dos ratos e das rãs é u m a p a r ó d i a d a Ilíada. S o b r e o q u a n t o e r a d i f u n d i d a a p a r ó d i a literária n a I d a d e M é d i a , escreve m i n u c i o s a m e n t e M . B a k h t i n (7, 34). K o z m á P r u t k ó v ridiculariza a paix ã o p e l o c o l o r i d o e s p a n h o l e m v o g a n a poesia r u s s a d a d é c a d a d e 4 0 . U m m e s t r e i n s u p e r á v e l d a p a r ó d i a foi T c h é k h o v * . R e a l i s t a c o n victo, T c h é k h o v p a r o d i a o estilo r o m â n t i c o a r r e b a t a d o d e Victor H u g o , o f a n t á s t i c o d e Júlio V e r n e , p a r o d i a os r o m a n c e s policiais e t c .
1
Formado a partir de záiais, lebre. Formado a partir do verbo siesl' (comer), no passado. O título indicado por Propp não está correto. The square peg, filme realizado em 1958 por John P. Carstairs e protagonizado por Norman Wisdom, recebeu na URSS o título Mr. Pitkin na retaguarda do inimigo. ' Cf., por exemplo: As ilhas volantes, O fósforo sueco, Mil e uma paixões, O que se encontra sempre nos romances etc. 2
3
A PARÓDIA
87
Nesses casos p a r o d i a - s e , n a v e r d a d e , o estilo individual de u m escritor, m a s esse estilo individual é p o r o u t r o l a d o a m a n i f e s t a ç ã o d e u m a c o r r e n t e d e t e r m i n a d a à q u a l p e r t e n c e o escritor e j u s t a m e n t e essa c o r r e n t e é r i d i c u l a r i z a d a d o p o n t o d e vista d a estética d e u m a n o v a t e n d ê n c i a * . S ã o r i d i c u l a r i z a d o s t a m b é m os defeitos d a l i t e r a t u r a e m c u r s o . ( A paródia é u m dos instrumentos mais poderosos de sátira social. Exemplos m u i t o evidentes disso são fornecidos pelo folclore. N o folclore m u n d i a l e n o russo existe u m a q u a n t i d a d e de p a r ó d i a s da missa, da catequese, das orações. (A p a r ó d i a é c ô m i c a s o m e n t e q u a n d o r e v e l a a f r a g i l i d a d e i n t e rior d o q u e é p a r o d i a d o . D a p a r ó d i a é preciso distinguir a utilização p a r a objetivos satíricos de f o r m a s de o b r a s c o m u m e n t e c o n h e c i d a s , dirigida n ã o contra os autores dessas o b r a s , m a s contra f e n ô m e n o s de caráter sociopolítico. Assim, por exemplo, " U m m o n u m e n t o " de Púchkin ou " C a n ç ã o de n i n a r " de L i é r m o n t o v n ã o p o d e m ser ridicularizados. E m 1905 e r a m d i v u l g a d a s m u i t a s s á t i r a s v a r i a d a s , q u e n a f o r m a imitavam Púchkin ou Liérmontov. Mas n ã o eram sátiras de a m b o s , e r e s i d e n i s t o s u a d i f e r e n ç a d a s p a r ó d i a s l i t e r á r i a s . N a r e v i s t a Signal d e 1905 foi p u b l i c a d o u m s o n e t o q u e c o m e ç a v a a s s i m : C a r r a s c o , não p r o c u r e s o favor p o p u l a r !
4
O soneto é precedido da dedicatória: " D e d i c a d o a T r e p o v " (Trepov era governador-geral de Petersburgo c o m poderes extraordin á r i o s ) . C o n t r a ele, e n ã o c o n t r a P ú c h k i n , é dirigida a sátira. O p o e m a d e N . Chebuiev " A o j o r n a l i s t a " (sobre o m o t i v o de " E i n G l e i c h e s " ) fala d a falsa p r o m e s s a d e l i b e r d a d e d e e x p r e s s ã o n o m a n i f e s t o d o C z a r e a d v e r t e o s j o r n a l i s t a s p a r a q u e n ã o a c r e d i t e m nele. 5
Espera um p o u c o , Tu t a m b é m ficarás!... (27, 403)
(Esses c a s o s n ã o r e p r e s e n t a m e m si u m a p a r ó d i a . D e p r e f e r ê n c i a , é possível c h a m á - l o s d e investimentos, e n t e n d e n d o c o m isso a utilizaç ã o d e u m a f o r m a l i t e r á r i a j á a c a b a d a p a r a fins d i f e r e n t e s d a q u e l e s q u e o a u t o r tinha em vista. O travestimento persegue sempre objetivos d e comicidade, e m u i t o freqüentemente é utilizado com objetivos satíricos^
• Cf. P. Berkov, Iz istórii rússkoi paródii XVIll-XX vv. [Da história da paródia russa nos séculos XVII-XX.] Vopróssi Literalúri [Questões de Literatura], 5 : 220-68, 1957. Paródia do primeiro verso d o poema de Púchkin " P o é t u " [Ao poeta], que diz: " P o e t a ! não procures o favor popular". Poema de Goethe, considerado o modelo máximo da lírica alemã. 4
5
13 O exagero cômico
À p a r ó d i a e s t ã o i n t i m a m e n t e l i g a d o s os d i v e r s o s p r o c e d i m e n t o s d o e x a g e r o . A l g u n s t e ó r i c o s c o n f e r e m a esses p r o c e d i m e n t o s u m significado excepcional e decisivo. ^ " A questão d o exagero cômico — afirma Z . Podskálski — é a q u e s t ã o - c h a v e p a r a c a r a c t e r i z a r t a n t o as r e p r e s e n t a ç õ e s d a i m a g e m c ô m i c a q u a n t o a s i t u a ç ã o c ô m i c a " ( 3 0 , 19). I u . B ó r i e v e x p r e s s a u m p e n s a m e n t o semelhante: " N a sátira, o exagero e a ênfase const i t u e m a m a n i f e s t a ç ã o d e u m a lei m a i s g e r a l : a d e f o r m a ç ã o t e n d e n ciosa d o m a t e r i a l d a vida, q u e serve p a r a revelar o vício mais essencial e n t r e o s f e n ô m e n o s d i g n o s d e r i d i c u l a r i z a ç ã o s a t í r i c a " ( 1 2 , 363). N . H a r t m a n n afirma m u i t o c a t e g o r i c a m e n t e : " A c o m i c i d a d e t e m s e m p r e a ver com o e x a g e r o " (16, 646). Essas definições são corretas, m a s n ã o suficientes. O exagero é c ô m i c o a p e n a s q u a n d o d e s n u d a u m d e f e i t o . Se e s t e n ã o e x i s t e , o e x a g e r o j á n ã o se e n q u a d r a n o d o m í n i o d a c o m i c i d a d e . É possível d e m o n s t r á - l o através d o e x a m e d a s três f o r m a s f u n d a m e n t a i s de exagero: a caricatura, a hipérbole e o grotesco.) A e s s ê n c i a d a c a r i c a t u r a foi r e i t e r a d a m e n t e d e f i n i d a d e m o d o c o n v i n c e n t e e c o r r e t o . T o m a - s e u m p o r m e n o r , u m d e t a l h e ; esse d e t a lhe é e x a g e r a d o d e m o d o a a t r a i r p a r a si u m a a t e n ç ã o e x c l u s i v a , e n q u a n t o t o d a s as d e m a i s c a r a c t e r í s t i c a s d e q u e m o u d a q u i l o q u e é s u b m e t i d o à c a r i c a t u r i z a ç ã o a partir desse m o m e n t o s ã o cancela-
O EXAGERO CÔMICO
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d a s e d e i x a m d e existir . ( A c a r i c a t u r a d e f e n ô m e n o s d e o r d e m física ( u m n a r i z g r a n d e , u m a b a r r i g a a v a n t a j a d a , a calvície) n ã o se d i f e rencia em n a d a da caricatura de fenômenos de ordem espiritual, d a caricatura dos caracteres. A representação cômica, caricatural, de u m caráter está em t o m a r u m a particularidade qualquer d a pessoa e em representá-la c o m o única, o u seja, em exagerá-la.) A m e l h o r d e f i n i ç ã o d a essência d a c a r i c a t u r a foi d a d a p o r P ú c h kin. G ó g o l informa a respeito: " E l e sempre m e dizia q u e n e n h u m escritor tinha revelado a i n d a o d o m de saber p ô r a n u a trivialidade d a vida de m o d o t ã o evidente, de saber descrever c o m tal força o h o m e m c o m u m de m o d o que todos aqueles detalhes q u e escapam a o s o l h o s s u r g i s s e m c l a r a m e n t e à vista d e t o d o s " . P ú c h k i n a n t e c i p o u a q u i , c o m genialidade, o q u e mais tarde a f i r m a r a m os filósofos p r o fissionais. A f o r m u l a ç ã o de Bergson reza: " A arte d o caricaturista c o n s i s t e e m c a p t a r u m p o r m e n o r , à s vezes i m p e r c e p t í v e l , e t o r n á - l o evidente a t o d o s através d a a m p l i a ç ã o de suas d i m e n s õ e s " (9, 28). A definição d a d a aqui é u m a definição n o sentido restrito d a p a l a v r a . N o s e n t i d o m a i s a m p l o , tal p r o c e d i m e n t o , c o m o a r e p r e s e n t a ç ã o de u m a pessoa através de u m a n i m a l o u de u m a coisa, a respeito d o que j á t r a t a m o s antes, e t a m b é m t o d o s os tipos de p a r ó d i a p o d e m ser e n q u a d r a d o s n o d o m í n i o d a c a r i c a t u r a . N ã o d a r e m o s e x e m p l o s de c a r i c a t u r a . B a s t a a b r i r q u a l q u e r revista satírica p a r a verificar a v e r d a d e d a definição p u c h k i n i a n a s o b r e a essência d a c a r i c a t u r a .(A c a r i c a t u r a s e m p r e d e f o r m a u m p o u c o (e à s vezes d e m o d o s u b s t a n c i a l ) o q u e é r e p r e s e n t a d o ^ P o r isso Belínski c o n s i d e r a v a q u e as figuras g o g o l i a n a s e m O inspetor geral e e m Almas mortas n ã o s ã o a b s o l u t a m e n t e c a r i c a t u r a s . S ã o f i g u r a s v e r d a d e i r a s , p i n ç a d a s d i r e t a m e n t e d a v i d a . Belínski refere-se d e m o d o n e g a t i v o à c a r i c a t u r a e n q u a n t o tal. E n t r e t a n t o , e m sua referência negativa à caricatura, Belínski t e m r a z ã o a p e n a s n o s c a s o s e m q u e p e r a n t e n ó s a c a r i c a t u r a é g r o s s e i r a , g r a t u i t a e p o r isso n ã o a r t í s t i c a . P ú c h k i n t a m b é m se referiu n e g a t i v a m e n t e à c a r i c a t u r a , m a s p o r m o t i v o s diferentes d a q u e l e s d e B e l í n s k i . L e m b r e m o s o a p a r e c i m e n t o d e O n i é g u i n n o b a i l e d o s L a r i n : " O e x c ê n t r i c o , a o ser a d m i tido n o banquete, j á estava i r r i t a d o " . N a d a lhe agradava ali. " F i c o u a m u a d o " e j u r a v a v i n g a r - s e d e L i ê n s k i p o r ter i n s i s t i d o n o c o n v i t e . 1
Daí, c e l e b r a n d o de a n t e m ã o , Pôs-se a traçar no í n t i m o A c a r i c a t u r a de t o d o s os c o m e n s a i s .
Personagem principal do romance em versos Ievguêni
Oniéguin
de A. S. Púchkin.
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COMICIDADE E RISO
A caricaturização desmerecida de algo é um ato a m o r a l . P ú c h k i n descreve o baile dos L a r i n , z o m b a n d o b e n e v o l a m e n t e , m a s s e m d e f o r m a r a v e r d a d e a nível d e c a r i c a t u r a . O u t r o t i p o d e e x a g e r o é a h i p é r b o l e . (^A h i p é r b o l e , n a r e a l i d a d e , é u m a variedade da caricatura. Na caricatura o c o r r e o exag e r o de u m p o r m e n o r , n a h i p é r b o l e , d o t o d o . A h i p é r b o l e é ridíc u l a s o m e n t e q u a n d o r e s s a l t a a s c a r a c t e r í s t i c a s n e g a t i v a s e n ã o as positivas.ylsso é evidente s o b r e t u d o n o epos popular. No epos p r i m e v o de vários povos o exagero é u m dos instrumentos da h e r o i z a ç ã o . Eis c o m o é descrito u m herói no epos iacuto: " O t a l h e d a c i n t u r a d e l e t i n h a c i n c o b r a ç a s . E r a c o r p u l e n t o d e seis b r a ç a s n o s o m b r o s . T r ê s b r a ç a s t i n h a m as c o x a s r o l i ç a s " . N o epos russo n ã o é hiperbolizado o aspecto exterior, mas a força d o h e r ó i , q u e se m a n i f e s t a n a h o r a d a b a t a l h a . Iliá M ú r o m i e t s s o z i n h o , b r a n d i n d o a clava o u p e g a n d o pelos pés u m t á r t a r o q u e ele b r a n d e c o m o u m a a r m a , d e r r o t a t o d o o exército i n i m i g o . A q u i o exag e r o possui u m a n u a n ç a d e h u m o r i s m o , m a s n ã o visa o b j e t i v o s d e c o m i c i d a d e . U m h u m o r a i n d a m a i s forte é e n c o n t r a d o n a d e s c r i ç ã o d e c o m o Vassíli Busláievitch r e c r u t a u m a t r o p a p a r a si. P a r a escolher os m a i s d i g n o s , ele c o l o c a n o p á t i o u m a t i n a d e v i n h o d e q u a r e n t a barris e u m a t a ç a d e u m b a l d e e m e i o . S ã o a d m i t i d o s n a t r o p a s o m e n t e aqueles que conseguem beber a taça de u m único t r a g o . Além disso, j u n t o d a tina está o p r ó p r i o Vassíli Busláievitch c o m u m e n o r m e o l m o . A q u e l e s q u e d e s e j a m ingressar e m s u a t r o p a d e v e m a g ü e n t a r u m a p a n c a d a desse o l m o n a c a b e ç a . E v a l e n t õ e s p a r a isso n ã o f a l t a m . 2
3
A força s o b r e n a t u r a l d o herói positivo p o d e suscitar u m sorr i s o d e a p r o v a ç ã o , m a s e s s a f i g u r a n ã o leva a o r i s o . É diferente o exagero utilizado na descrição das personagens negativas. O gigantesco e desajeitado antagonista do herói, que ronca t ã o f o r t e q u e a t e r r a t r e m e o u q u e se e m p a n t u r r a , c o l o c a n d o n a b o c a d e u m a s ó vez t o d o u m cisne o u u m a r o s c a i n t e i r a d e p ã o , c o n s titui u m a a m o s t r a d e h i p e r b o l i z a ç ã o s a t í r i c a . N o e p o s r u s s o a h i p e r b o l i z a ç ã o é e m p r e g a d a p a r a d e s c r e v e r os i n i m i g o s e s e r v e c o m o inst r u m e n t o d e d e p r e c i a ç ã o . A s s i m , p o r e x e m p l o , n a bilina s o b r e A l i o c h a e T u g á r i n , este último é descrito hiperbolicamente c o m o u m m o n s t r o q u e s e n t a n u m festim a o l a d o d e V l a d i m i r : Tem de a l t u r a T u g á r i n três b r a ç a s , De o m b r o a o m b r o outra braça, Entre os o l h o s u m a f l e c h a em brasa.
2
N o original, sájen,
3
Antiga medida para líquidos, correspondente a 12,3 litros.
antiga medida linear russa correspondente a 2,134 m.
O EXAGERO CÔMICO
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Ele é t ã o g o r d o q u e a n d a c o m dificuldade. Sua cabeça é c o m o u m c a l d e i r ã o d e c e r v e j a . N o b a n q u e t e ele a g a r r a d e u m a s ó vez t o d o u m cisne o u u m a rosca inteira de p ã o e os a b o c a n h a . A hipérbole aqui tem objetivos satíricos. D a l i t e r a t u r a d o s é c u l o X I X a h i p é r b o l e vai d e s a p a r e c e n d o a o s p o u c o s . E l a é u t i l i z a d a à s vezes n a p i l h é r i a . G ó g o l , p o r e x e m p l o , n ã o a e m p r e g a c o m o b j e t i v o s d i r e t a m e n t e s a t í r i c o s . Seu estilo é d e m a s i a d a m e n t e realista p a r a isso, m a s d e vez e m q u a n d o ele a utiliza p a r a reforçar a comicidade: " I v a n Nikíforovitch usa calças largas c o m pregas t ã o a m p l a s q u e , se a s inflasse, seria possível a l o j a r nelas t o d o o p á t i o c o m os celeiros e as c o n s t r u ç õ e s " ; " O e s c r e v e n t e c o m i a d e u m a s ó vez n o v e p a s t e l õ e s e g u a r d a v a o d é c i m o n o b o l s o " . D e vez e m q u a n d o e n c o n t r a - s e h i p é r b o l e n a p r o s a o r n a m e n t a l d e G ó g o l c o m o , p o r e x e m p l o , na descrição d o rio Dniepr: " R a r o é o p á s s a r o q u e v o a a t é o m e i o d e l e " — m a s a q u i esse p r o c e d i m e n t o n ã o representa u m êxito artístico de G ó g o l . A hipérbole — tanto heroizante c o m o depreciativa — ressurge na poética de Maiakóvski, onde há inúmeros exemplos. (O g r a u m a i s e l e v a d o e e x t r e m o d o e x a g e r o é o g r o t e s c o . S o b r e o g r o t e s c o existe u m a b i b l i o g r a f i a * b a s t a n t e s i g n i f i c a t i v a , e h á t e n t a tivas m u i t o complexas ( d e s l o c a m e n t o de planos) de definir sua essênc i a . E s s a c o m p l e x i d a d e n ã o se j u s t i f i c a a b s o l u t a m e n t e . ( N o g r o t e s c o o e x a g e r o a t i n g e tais d i m e n s õ e s q u e a q u i l o q u e é a u m e n t a d o j á se t r a n s f o r m a e m m o n s t r u o s o . E l e e x t r a p o l a c o m p l e t a m e n t e os l i m i t e s d a r e a l i d a d e e p e n e t r a n o d o m í n i o d o f a n t á s t i c o . P o r isso o g r o t e s c o delimita-se j á c o m o terrível. U m a definição correta e simples d o grotesco é d a d a por Bóriev: " O grotesco é a forma suprema d o exagero e da ênfase cômica. É o exagero q u e confere u m caráter fant á s t i c o a u m a d e t e r m i n a d a i m a g e m o u o b r a " ( 1 2 , 2 2 ) . A . S. B u c h min considera que o exagero não é obrigatório. Sua definição: " O g r o t e s c o é u m a c o n s t r u ç ã o artificial e f a n t á s t i c a d e c o m b i n a ç õ e s q u e n ã o s ã o e n c o n t r a d a s n a n a t u r e z a e n a s o c i e d a d e " ^ 14, 50). O limite entre a simples hipérbole e o grotesco é convencional. Desse m o d o , a supracitada descrição d o herói no epos iacuto é em igual m e d i d a hiperbólica e grotesca. A v o r a c i d a d e de T u g á r i n p o d e i g u a l m e n t e ser d e f i n i d a c o m o g r o t e s c a . N a l i t e r a t u r a e u r o p é i a t í p i c o e t o t a l m e n t e g r o t e s c o é o r o m a n c e d e R a b e l a i s Gargântua e Paníagruel c o m a descrição de excessos h i p e r b o l i z a d o s de t o d o s o s tipos.
" Um dos livros mais ricos em material é K. F. Flógel, Die Geschiehte Komischen (há várias edições: 1788, 1862, 1914).
des
Grotesk-
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COMICIDADI I. RISO
O g r o t e s c o é a f o r m a de c o m i c i d a d e preferida pela arte p o p u lar d e s d e a A n t i g ü i d a d e . A s m á s c a r a s d a c o m é d i a g r e g a a n t i g a s ã o grotescas. O descomedimento violento na comédia contrapõe-se ao comedimento e ao majestoso na tragédia. P o r é m , o exagero não é a característica única d o grotesco. O g r o t e s c o n o s faz sair d o s limites d e u m m u n d o r e a l m e n t e p o s s í v e l . A s s i m , o c o n t o d e G ó g o l O nariz c o n s t i t u i p e l a t r a m a u m c a s o d e grotesco: u m nariz passeia livremente pela avenida Niévski. A partir d o m o m e n t o e m q u e A k á k i A k á k i e v i t c h , n o c o n t o O capote, se transforma em fantasma, a narrativa adquire um caráter grotesco. (.O g r o t e s c o é c ô m i c o q u a n d o , c o m o t u d o o q u e é c ô m i c o , e n c o b r e o p r i n c í p i o e s p i r i t u a l e r e v e l a o s d e f e i t o s . E l e se t o r n a t e r r í vel q u a n d o o p r i n c í p i o e s p i r i t u a l se a n u l a n o h o m e m . É p o r isso q u e p o d e m ser t e r r i v e l m e n t e c ô m i c a s as r e p r e s e n t a ç õ e s d e l o u c o s ^ H á um quadro atribuído a Chevtchenko que representa u m a quadrilha n u m m a n i c ô m i o . A l g u n s h o m e n s de b r a n c o , c o m g o r r o s de dormir na cabeça, a p a r e n t a n d o alegria e fazendo gestos amplos, d a n ç a m u m a q u a d r i l h a n a p a s s a g e m e n t r e as c a m a s . E s s e q u a d r o distingue-se pelo grau elevado de artisticidade e expressividade e causa u m a impressão de horror. F i n a l m e n t e , t a m b é m o q u e é i n t e n c i o n a l m e n t e terrível p o d e ter u m caráter de grotesco fora d o d o m í n i o d o c ô m i c o . A essa categ o r i a , p o r e x e m p l o , p e r t e n c e m A terrível vingança e as ú l t i m a s p á g i n a s d o c o n t o d e G ó g o l K/7, o n d e u m c a i x ã o n a i g r e j a se a l ç a e v o a pelo ar. N o c a m p o d a p i n t u r a a t í t u l o d e e x e m p l o d e g r o t e s c o terrível é possível a p o n t a r a s g r a v u r a s d e G o y a , o n d e s ã o r e t r a t a d o s , o r a c o m desenhos fantásticos ora c o m desenhos naturalistas, os h o r r o res d o t e r r o r n a p o l e ô n i c o n a E s p a n h a r e b e l d e . O g r o t e s c o é possível a p e n a s n a a r t e e i m p o s s í v e l n a v i d a . S u a c o n d i ç ã o sine qua non é u m a certa relação estética c o m o s h o r r o r e s r e p r e s e n t a d o s . j O s h o r r o r e s d a g u e r r a , f o t o g r a f a d o s p a r a fins d o c u m e n t a i s , n ã o t ê m e n ã o p o d e m ter c a r á t e r d e g r o t e s c o .
O malogro da vontade
A t é a g o r a o d i s c u r s o v e r s o u s o b r e as f i g u r a s c ô m i c a s e a l g u n s i n s t r u m e n t o s c o m o a u x í l i o d o s q u a i s a f i g u r a p o d e ser r e p r e s e n tada n u m a perspectiva cômica. Mais adiante o discurso versará sobre algumas situações, t r a m a s e ações cômicas. Estamos e n t r a n d o n u m c a m p o de estudos novo e muito a m p l o . Existem tramas cômicas na d r a m a t u r g i a , n o cinema, n o circo e n o teatro de variedades; sobre elas sustenta-se u m a vasta e v a r i a d a literatura h u m o r í s t i c a e satírica, além de u m a parte considerável d o folclore n a r r a t i v o . N ã o h á q u a l q u e r e s p e r a n ç a de exaurir o material disponível, q u a n t o mais de elencar, ainda que por a p r o x i m a ç ã o , os casos encontrados com maior freqüência. Mas t a m b é m n ã o é necessário. Basta c i t a r e x e m p l o s c l a r o s e s i g n i f i c a t i v o s p a r a ver d o q u e se t r a t a . Q u a n d o à s p e s s o a s a c o n t e c e m p e q u e n o s r e v e s e s , q u a n d o elas d e r e p e n t e a p a n h a m u m a c h u v a f o r t e , o u d e i x a m c a i r seus p a c o t e s , ou o vento carrega o chapéu, o u tropeçam e c a e m , os presentes riem. E s s e r i s o é u m t a n t o c r u e l . Seu c a r á t e r d e p e n d e d o g r a u d a d e s g r a ç a , e a q u i p e s s o a s d i f e r e n t e s v ã o ter r e a ç õ e s d i f e r e n t e s . L á , o n d e u n s v ã o r i r , o u t r o vai c o r r e r p a r a a j u d a r . S ã o p o s s í v e i s t a m b é m a m b a s as c o i s a s a o m e s m o t e m p o : é p o s s í v e l rir e a j u d a r c o n c o mitantemente. O humorista canadense Leacock achava semelhante riso g e r a l m e n t e inadmissível. Ele d a v a o seguinte exemplo: u m pati-
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COMICIDADE E RISO
nador d u r a n t e u m a exibição de patinação artística afunda no gelo. D e f a t o , o c a s o e m si n ã o é r i d í c u l o p o r q u e a f u n d a r n o g e l o t r a z risco de vida. M a s , a despeito d o q u e possa afirmar Leacock, até u m c a s o c o m o e s t e p o d e r e v e l a r - s e r i s í v e l . E m As aventuras do Sr. Pickwick, Dickens conta c o m o o Sr. Pickwick, p a t i n a n d o no gelo d e u m l a g o g e l a d o , d e s a p a r e c e d e r e p e n t e . À s u p e r f í c i e fica a p e n a s o seu c h a p é u . P o r é m , n a d a d e t e r r í v e l a c o n t e c e . O m o l h a d o e a s s u s t a d o Sr. P i c k w i c k , resfolegando c o m dificuldade, surge à t o n a d ' á g u a , a c o m p a n h a m - n o à c a s a e o a j u d a m a se a q u e c e r e a se r e c u p e r a r . N ã o a c o n t e c e u n e n h u m a d e s g r a ç a . N e s s e s c a s o s , as p e s s o a s se d e p a r a m c o m a l g o d e s a g r a d á v e l p e l o q u a l n ã o e s p e r a v a m e q u e a l t e r a o c u r s o t r a n q ü i l o d e s u a s v i d a s . ( A c o n t e c e um inesperado malogro de uma vontade humana devido a motivos perfeitamente casuais e imprevistos. Nem toda frustração de propósitos é cômica. O naufrágio de iniciativas g r a n d e s o u heróicas n ã o é c ô m i c o , m a s t r á g i c o . S e r á c ô m i c o u m revés n a s c o i s a s m i ú d a s d o d i a - a - d i a d o h o m e m , provocado por circunstâncias igualmente banais.) Esse p r i n c í p i o é u t i l i z a d o c o m f r e q ü ê n c i a n o c i n e m a , s e n d o q u e nesses c a s o s g e r a l m e n t e é d e s t a c a d a a p r e s e n ç a d e d e t e r m i n a d a s a s p i r a ç õ e s o u d e s e j o s . A s p e s s o a s se v ã o a p é o u d e c o n d u ç ã o , o u se d i s t r a e m , e q u e r e m , f a z e m o u e m p r e e n d e m a l g o , m a s u m o b s táculo inesperado interrompe t o d o s os seus planos. N u m d o s filmes d e C h a p l i n , o h e r ó i j u n t o c o m u m a m o ç a t ã o p o b r e c o m o cie c o n s t r ó i n o s u b ú r b i o d a c i d a d e u m b a r r a c o d e c a i xotes e t á b u a s . D e m a n h ã , de ceroulas e com u m a toalha a tiracolo, d a n d o p a l m a d a s n a b a r r i g a , ele sai d e c a s a p a r a t o m a r b a n h o . P e r t o d a c a s a p a s s a u m c ó r r e g o q u e f o r m a ali u m a p e q u e n a r e p r e s a . H á t a m b é m u m a pequena ponte. Ele, correndo, joga-se na água, mas o r i a c h o é m u i t o r a s o . F e r i d o e m o l h a d o , m a n c a n d o , ele r e t o r n a a o b a r r a c o . A q u i o riso n ã o d e s t r ó i a s i m p a t i a p e l o h o m e n z i n h o s i m ples q u e s u p o r t a r e v e s e s p o r t o d a p a r t e . O c a s o é c ô m i c o e t r i s t e a o m e s m o t e m p o , característica esta p r ó p r i a d o s filmes de C h a p l i n . ( C o m i c i d a d e sem q u a l q u e r mescla de tristeza, antes até c o m u m a certa parcela de alegria m a l d o s a , o c o r r e nos casos em q u e a pessoa é g u i a d a n ã o por p e q u e n a s coisas d o dia-a-dia, m a s p o r impulsos e tendências egoístas e m e s q u i n h a s ; o revés, p r o v o c a d o p o r circunstâncias externas, revela nesses casos a m e s q u i n h e z de intenções, a mediocridade da pessoa e possui um caráter de punição m e r e c i d a . A c o m i c i d a d e é r e f o r ç a d a , se esse m a l o g r o a c o n t e c e brusca e i n e s p e r a d a m e n t e para os protagonistas, ou p a r a os espectadores e leitores.)
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U m c a s o clássico d o m a l o g r o d a v o n t a d e é a q u e d a d e B ó b t chinski j u n t o d a p o r t a n o s e g u n d o a t o d e O inspetor geral. B ó b t c h i n s k i quer escutar o q u e vão conversar o governador e Khlestakóv. P o r é m , ele se a p o i a c o m d e m a s i a d a força à p o r t a , a p o r t a se a b r e d e r e p e n t e . "Bóbtchinski voa para o palco j u n t o com a p o r t a " — assim descreve Gógol. A tentativa fracassou. E m a l g u n s c a s o s a p e s s o a é c o m o se n ã o fosse c u l p a d a d e seus reveses. M a s é a p e n a s o q u e p a r e c e . D e f a t o , o revés é p r o v o c a d o j u s t a m e n t e p o r u m a falha d e p r e v i s ã o e d e e s p í r i t o d e o b s e r v a ç ã o , p e l a i n c a p a c i d a d e d e o r i e n t a r - s e n a s i t u a ç ã o , o q u e leva a o riso i n d e p e n dentemente das intenções. O desejo de t o m a r u m b a n h o n ã o é d e m o d o a l g u m r i d í c u l o . N o c a s o d o filme d e C h a p l i n a c o m i c i d a d e é r e f o r ç a d a p e l o realce d a fisiologia (as p a l m a d a s n a b a r r i g a ) e p e l a ó t i m a d i s p o s i ç ã o q u e e n t ã o s e r á i n t e r r o m p i d a . N ã o o b s t a n t e , o espect a d o r ri b e m i n s t i n t i v a m e n t e . N o c a s o d a q u e d a d e B ó b t c h i n s k i t e m o s t a m b é m imprevidência e o b t u s i d a d e . Bóbtchinski n ã o calculava q u e a p o r t a n ã o fosse a g ü e n t a r . M a s a o m e s m o t e m p o n e s t e c a s o o revés revela c l a r a m e n t e t o d a a falta d e h o n e s t i d a d e d a s i n t e n ç õ e s s e c r e t a s de Bóbtchinski. O caso é duplamente cômico. Bóbtchinski é punido t a n t o p o r sua imprevidência c o m o pela intenção de bisbilhotar. ^Nos c a s o s c i t a d o s o m a l o g r o é p r o v o c a d o p o r c a u s a s q u e se encontram fora da pessoa, m a s ao m e s m o t e m p o t a m b é m por causas p u r a m e n t e i n t e r i o r e s , i n e r e n t e s à p e s s o a . O m a l o g r o d a v o n t a d e p o d e se v e r i f i c a r a i n d a p o r c a u s a s p u r a m e n t e i n t e r i o r e s . O m a i s e x a t o é q u e as c a u s a s i n t e r i o r e s c o n s t i t u e m a b a s e , e as e x t e r i o r e s serviriam de fundo ou de pretexto para sua manifestação fora. E n t r a aqui a revelação d a distração h u m a n a sobre a qual existem inúmeras anedotas. U s a n d o u m a expressão u m tanto paradoxal, é p o s s í v e l d i z e r q u e a distração é conseqüência de alguma concentração. E n t r e g a n d o - s e c o m e x c l u s i v i d a d e a u m p e n s a m e n t o o u p r e o c u p a ç ã o , a pessoa n ã o presta atenção em seus atos, executa-os a u t o m a t i c a m e n t e , o q u e leva às conseqüências mais inesperadas. É c o n h e cida de todos a distração dos professores. Tal distração decorre d o fato d e q u e os h o m e n s d e ciência, m e r g u l h a d o s t o t a l m e n t e e m seus p e n s a m e n t o s , n ã o r e p a r a m n o q u e a c o n t e c e a o seu r e d o r . I s s o , s e m d ú v i d a , é u m d e f e i t o , e s u b c o n s c i e n t e m e n t e é o q u e p r o v o c a o riso.^ Pode-se lembrar, a propósito, da anedota que aconteceu pouco a n t e s d a r e v o l u ç ã o c o m o professor universitário Ivan I. L a p c h i n , p o p u l a r n o meio estudantil pela b o n d a d e , g r a n d e especialista e m filosofia e psicologia. Ele fora e n v i a d o a V i e n a p a r a u m c o n g r e s s o . De m a n h ã , e m Viena, n o hotel, q u e r e n d o vestir o traje de gala, as
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calças de a n t e m ã o b e m p a s s a d a s , q u e , à noite, c o m o estava lemb r a d o , ele p e n d u r a r a n a c a b e c e i r a d a c a m a , d e s c o b r i u q u e as c a l ç a s n ã o e s t a v a m ali. A c r i a d a g e m j u r a v a inocência e teve origem u m c o n t r a t e m p o . T e r m i n a d o o congresso, o professor voltou a Petersb u r g o , c h e g o u e m c a s a t a r d e d a n o i t e e foi d o r m i r i m e d i a t a m e n t e . A o a c o r d a r d e m a n h ã , ele viu s u a s c a l ç a s r e c é m - p a s s a d a s p e n d u r a das n a cabeceira da c a m a . Foi e n v i a d o a o hotel u m t e l e g r a m a de desculpas. N a v i d a , c a s o s s e m e l h a n t e s s ã o b a s t a n t e h a b i t u a i s , m a s n a liter a t u r a d e f i c ç ã o s ã o p o u c o u s a d o s , p o i s o r i s o q u e eles s u s c i t a m , apesar de agradável, é u m t a n t o superficial. E m G ó g o l os casos d e distração o c o r r e m c o m mais freqüência d o q u e e m o u t r o s e s c r i t o r e s . E m s u a s o b r a s eles s e m p r e r e v e l a m a m e s q u i n h e z , e à s vezes t a m b é m a sordidez da preocupação q u e conduz à distração, O prefeito q u e r pôr o c h a p é u , m a s a o invés dele pega sua e m b a l a g e m d e p a p e l ã o . Isso a c o n t e c e p o r q u e ele e s t a v a t o d o e n t r e gue à p r e o c u p a ç ã o de c o m o melhor enganar o inspetor geral. Neste c a s o o p r ó p r i o g o v e r n a d o r p e r c e b e seu e r r o , j o g a f u r i o s o a c a i x a n o c h ã o , e o espectador ri. N a s p r i m e i r a s o b r a s de G ó g o l c a s o s s e m e l h a n t e s n ã o t ê m u m caráter t ã o evidente de sátira social e referem-se m a i s a o d o m í n i o da psicologia h u m a n a em geral. T a m b é m o d e s m a s c a r a m e n t o dá-se d e m o d o d i f e r e n t e . A p e s s o a n ã o se d á c o n t a d o p r ó p r i o e r r o , m a s o e s p e c t a d o r o u o o b s e r v a d o r l o g o o vê e a n t e g o z a a c o n f u s ã o inevit á v e l . N o c o n t o Ivan Fiódorovitch Chponka e sua tia h á o s e g u i n t e e p i s ó d i o : Vassilissa K a c h p á r o v n a q u e r c a s a r C h p o n k a e s o n h a c o m n e t o s , e m b o r a o c a s a m e n t o seja a i n d a coisa m u i t o r e m o t a . M u i t a s vezes, ao fazer a l g u m d o c e , o q u e g e r a l m e n t e n u n c a deixava a c a r g o d a c o z i n h e i r a , ela se d e s l i g a v a e i m a g i n a v a q u e a s e u pé estava u m n e t i n h o p e d i n d o u m b o c a d o , daí, d i s t r a i d a m e n t e e s t e n d i a para ele a m ã o c o m o m e l h o r p e d a ç o , e o c a c h o r r o d o q u i n t a l , aprov e i t a n d o - s e , a b o c a n h a v a o a p e t i t o s o p e d a ç o e, a o m a s t i g á - l o ruidos a m e n t e , tirava-a de s e u d e v a n e i o , d e p o i s do que s e m p r e a c a b a v a apanhando c o m o atiçador.
( A d i s t r a ç ã o e s t á l o n g e d e ser a c a u s a ú n i c a d o m a l o g r o d a v o n t a d e . 1Em m u i t a s c o m é d i a s o h o m e m é o b r i g a d o a a g i r c o n t r a s u a v o n t a d e p o r q u e as c i r c u n s t â n c i a s se m o s t r a m m a i s f o r t e s d o q u e ele. Mas a força das circunstâncias atesta a debilidade e a inconstância d a q u e l e s q u e se d e i x a m v e n c e r p o r essas m e s m a s c i r c u n s t â n c i a s . N a c o m é d i a d e S h a k e s p e a r e Muito barulho por nada B e a t r i z r e f e r e -
O MALOGRO DA VONTADE
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se a o s h o m e n s a p e n a s c o m p a l a v r õ e s , e m u i t o s o r t i d o s , m a s a p e ç a a c a b a c o m e l a se c a s a n d o . N a c o m é d i a d e O s t r ó v s k i Os lobos e as ovelhas o r i c o g r ã o s e n h o r e c e l i b a t á r i o c o n v i c t o L i n i á i e v cai n a r e d e d a r a p i n a n t e a v e n t u r e i r a A n f i s s a , q u e o o b r i g a a c o r t e j á - l a : ela se p e n d u r a n o p e s coço dele fechando os olhos n o m o m e n t o em q u e alguém entra n a sala. Liniáiev, quase c h o r a n d o , admite entre lágrimas que, agora, v a i se c a s a r . T e m o s u m c a s o s e m e l h a n t e n o scherzo dramático de T c h é k h o v O urso. O misógino r e m a t a d o , que ostenta seu desprezo pelo sexo feminino, acaba fazendo já no primeiro encontro u m a declaração à m u l h e r , à q u a l ele se d i r i g i a c o m o c r e d o r e a q u e m d e s a f i a p a r a u m duelo com o objetivo de matá-la. O m a l o g r o da v o n t a d e n o caso d o c h a p é u d o prefeito m a n i festa-se e x t e r n a m e n t e n u m certo a u t o m a t i s m o de m o v i m e n t o s . Aqui a palavra " m a q u i n a l m e n t e " assinala c o m muita precisão o e s s e n c i a l . P o r é m , o a u t o m a t i s m o é p o s s í v e l n ã o só n o s m o v i m e n t o s , m a s t a m b é m em muitas o u t r a s esferas d a vida e das ações h u m a n a s . Desse m o d o , u m a das esferas de m a n i f e s t a ç ã o d o a u t o m a t i s m o é o a u t o m a t i s m o do discurso. Devido à pressa, a o a ç o d a m e n t o , à agitação o u à p r e o c u p a ç ã o , a pessoa n ã o diz o q u e p r e t e n d i a e p o r isso p r o v o c a o riso. O s e x e m p l o s s ã o n u m e r o s o s . S e g u e m - s e a l g u n s p i n çados em Gógol. Das ordens d o prefeito: " Q u e cada u m pegue na m ã o u m a r u a [...] o d i a b o q u e p e g u e , u m a r u a — u m a v a s s o u r a ! e v a r r a t o d a a rua q u e vai dar na estalagem, e que varra d i r e i t i n h o ! " 1
E n c o n t r a m o s este m e s m o p r o c e d i m e n t o e m T c h é k h o v n o c o n t o A gralha. N e l e , u m e s c r i v ã o m i l i t a r e n c o n t r a seu oficial n a c o m p a n h i a d e m u l h e r e s d e c o n d u t a a i r o s a ; ele fica a s s u s t a d o e p e r d e o d o m d a fala. E m lugar de dizer: " D a d o o serviço militar obrigatór i o " , ele fala: " D a d o o m i l i t i ç o s e r v i l i t a r o b r i g a t ó r i o . . . D a d o o servilitar o b r i g a t ó r i o . . . o o b r i g a t i ç o m i l i t ó r i o " . N o s c a s o s c i t a d o s ( o m a l o g r o d a v o n t a d e é resultado de alguma inferioridade oculta na pessoa, q u e d e r e p e n t e se r e v e l a e a c a b a s u s c i t a n d o o riso. N u m a certa m e d i d a a c u l p a d a desses defeitos é a própria pessoaJ P o r é m , o r i s o p o d e ser s u s c i t a d o t a m b é m p o r d e f e i t o s d o s quais o próprio h o m e m não é absolutamente culpado, mas que do
Na tradução brasileira de O inspetor este recurso é desprezado.
geral (cit., p. 29), adaptada para o palco,
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p o n t o de vista de u m a r a c i o n a l i d a d e superior n a n a t u r e z a são de qualquer m o d o indesejáveis. S ã o d e f e i t o s d e c a r á t e r físico o u p s i c o l ó g i c o , c o m o , p o r e x e m p l o , a s u r d e z , a m i o p i a , p r o b l e m a s n a fala e t c . T a i s d e f e i t o s l e v a m a diversos reveses e m a l - e n t e n d i d o s . T c h é k h o v t e m u m c o n t o : u m h o m e m quer fazer u m a declaração de a m o r , m a s é assaltado p o r u m a t a q u e de soluços e p o r causa disso n ã o consegue n a d a . E m l i t e r a t u r a esse p r o c e d i m e n t o é r e l a t i v a m e n t e r a r o . A p r o p ó s i t o l e m b r a m o s o p r í n c i p e T u g o ú k h o v s k i e m Os males da inteligência. A c o n d e s s a - a v ó t e n t a f a l a r c o m ele s o b r e T c h á t s k i , m a s isso é impossível, o príncipe não ouve e responde apenas p o r mugidos inarticulados. 2
A mesma função da surdez pode ocasionar u m mal-entendido. Em O casamento: Jevákin. P e r m i t a - m e de m i n h a parte perguntar t a m b é m c o m q u e m t e n h o a h o n r a de falar? Ivan Pávlovitch. C o m o e x e c u t o r o f i c i a l , Ivan P á v l o v i t c h l a í t c h n i t s a . Jevákin (que não ouviu bem). S i m , eu t a m b é m a c a b e i de fazer um lanche. 3
N o folclore existem anedotas famosas sobre casais ou velhotes q u e , p o r ouvir m a l , incorrem e m diversos m a l - e n t e n d i d o s . Defeit o s p s i c o f í s i c o s p o d e m t o r n a r - s e r i d í c u l o s n ã o só p o r si, m a s t a m bém por desdobramentos inesperados. N o repertório russo de contos maravilhosos existem a n e d o t a s s o b r e as t r ê s m o ç a s g a g a s q u e n a a p r e s e n t a ç ã o a o f u t u r o n o i v o e s u a f a m í l i a d e v e m , a c o n s e l h o d a m ã e , se c a l a r . M a s e l a s n ã o se c o n t ê m e r e v e l a m seu d e f e i t o , d e m o d o q u e o s p r e t e n d e n t e s f o g e m delas. O m e s m o a c o n t e c e c o m a n o i v a m í o p e . E l a finge ter a vista m u i t o boa — n o t a u m a agulha n a soleira que fora c o l o c a d a previam e n t e ali, m a s d e p o i s , d u r a n t e a r e f e i ç ã o , b a t e n u m g a t o q u e p u l a r a e m c i m a d a m e s a , e esse g a t o e r a a m a n t e i g u e i r a .
2
Sobrenome formado a partir do adjetivo tugoúkhii,
3
Literalmente, " o m e l e t e " , "fritada de o v o s " .
duro de ouvido.
15 O fazer alguém de bobo
( E m t o d o s os c a s o s a p r e s e n t a d o s a c a u s a d o r i s o é i n e r e n t e à s características d a q u e l e q u e é objeto d o riso. O revés é p r o v o c a d o p o r ele m e s m o . A t u a u m a ú n i c a p e s s o a . M a s o r e v é s o u o m a l o g r o d a v o n t a d e p o d e ser i n t e n c i o n a l m e n t e s u s c i t a d o p o r o u t r e m ; n e s s e s c a s o s a g e m d u a s p e s s o a s . P a r a i n d i c a r a ç õ e s d e s s e t i p o existe n a líng u a r u s s a u m a palavra m u i t o expressiva, intraduzível e m o u t r a s línguas — odurátchivanie .) 1
N a literatura satírica e h u m o r í s t i c a o a t o de fazer a l g u é m d e ; \bobo é m u i t o comum., A presença de duas personagens possibilita o d e s e n v o l v i m e n t o de u m conflito, de u m a l u t a , d e u m a intriga. C a d a u m a dessas personagens p o d e ter a seu r e d o r u m g r u p o de a d e p t o s o u d e p a r c e i r o s . A l u t a p o d e ser t r a v a d a e n t r e p e r s o n a g e n s c e n t r a i s p o s i t i v a s e n e g a t i v a s , o u e n t r e d u a s f i g u r a s n e g a t i v a s . Se nos casos precedentes a comicidade é p r o v o c a d a por impressões r e p e n t i n a s e i n e s p e r a d a s , o p r o c e d i m e n t o d o odurátchivanie pode constituir a base de comédias em muitos atos e de narrativas mais
1
A palavra em russo, que também dá título ao capítulo, é a substantivação do verbo odurátchivaf (deixar alguém com cara de bobo, engabelar). Por aproximação se poderia traduzir por enganação, logro, engabelo, que não abarcam o sentido da palavra no original. A vítima de odurátchivanie manifesta no ato sua própria imbecilidade (durák = bobo, imbecil). Em virtude disso, optou-se por manter a palavra russa sempre que necessário para a devida compreensão d o texto.
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o u m e n o s l o n g a s . A v í t i m a d e odurátchivanie p o d e t o r n a r - s e tal p o r sua p r ó p r i a culpa. O a n t a g o n i s t a vale-se de a l g u m defeito o u descuido d a p e r s o n a g e m para desmascará-la para o escárnio geral. H á c a s o s , e n t r e t a n t o , e m q u e a q u e l e q u e é feito d e b o b o p a r e c e n ã o ser c u l p a d o , e m b o r a t o d o s r i a m d e l e . A n a l i s a n d o as t r a m a s d a s c o m é d i a s é possível e s t a b e l e c e r q u e o fazer a l g u é m d e b o b o c o n s t i t u i u m d o s s u s t e n t á c u l o s f u n d a m e n t a i s . Isso d o m i n a n o t e a t r o p o p u l a r d e m a r i o n e t e s , n o t e a t r o d e Petruchka, que n ã o tem m e d o de n i n g u é m e vence a t o d o s . É amplam e n t e d i f u n d i d o n a commedia dell'arte italiana e nas antigas coméd i a s clássicas d a E u r o p a O c i d e n t a l . É e n c o n t r a d o n a s c o m é d i a s d e S h a k e s p e a r e . D o p o n t o d e vista d r a m á t i c o o odurátchivanie representa u m procedimento muito proveitoso. N ã o é à toa q u e nos grandes c o m e d i ó g r a f o s russos — em G ó g o l e Ostróvski — há u m extraordinário interesse pela assim c h a m a d a c o m é d i a de intriga. G ó g o l participou ativamente da t r a d u ç ã o de u m a comédia de G i o v a n n i Giraud, O preceptor em situação embaraçosa. Ostróvski traduziu comédias d e S h a k e s p e a r e , G o l d o n i , intermezzi de Cervantes. T u d o isso n ã o possuía n e n h u m a relação c o m a vida russa, mas o q u e os atraía era a maestria d a técnica teatral. Se e s t u d a r m o s s i s t e m a t i c a m e n t e a c o m p o s i ç ã o d a s c o m é d i a s d e M o l i è r e , s e r á p o s s í v e l e s t a b e l e c e r q u e a l g u m a s d e l a s se b a s e i a m n o p r i n c í p i o q u e e s t a m o s e x a m i n a n d o a q u i . Isso é m u i t o e v i d e n t e , p o r e x e m p l o , n a c o m é d i a George Dandin, ou o marido enganado, o n d e a e s p o s a - c o r t e s ã e seus p a r e n t e s e m b r o m a v a m o b o n d o s o , m a s m e d í o c r e c a m p o n ê s , q u e p o r a m b i ç ã o q u i s se c a s a r c o m a filha de u m n o b r e p r o p r i e t á r i o de t e r r a s . A s últimas palavras desta c o m é dia, " T u l'as v o u l u , George D a n d i n ! " ( " T u quiseste isso, G e o r g e D a n d i n ! " ) , t o r n a r a m - s e u m d i t a d o n ã o só na F r a n ç a , c o m o n o m u n d o i n t e i r o . N e l a , o p r i n c í p i o d o odurátchivanie é perfeitamente c l a r o , m a s e m f o r m a l a t e n t e ele e s t á n a b a s e d e q u a s e t o d a s as c o m é d i a s d e M o l i è r e . E m t e r m o s g e r a i s , o odurátchivanie constitui u m dos fundamentos não somente da comédia antiga, mas também da m a i s t a r d i a . E l e e s t á n a b a s e d e O simplório de F o n v í z i n : a s e n h o r a P r o s t a k o v a v ê f r a c a s s a r e m t o d a s as s u a s i n i c i a t i v a s . S o b r e o m e s m o p r i n c í p i o f u n d a m e n t a m - s e t o d a s a s c o m é d i a s d e G ó g o l . E m O inspetor geral, o p r e f e i t o r e v e l a - s e u m b o b o , s e n d o ele p r ó p r i o o c u l p a d o . "Vejam, vejam todos! T o d o o m u n d o ! T o d a a cristandade! Vejam t o d o s c o m o o g o v e r n a d o r foi f e i t o d e b e s t a ! " — e x c l a m a ele n a 2
2
Op. cit., p. 169.
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cena final. E b a s t a n t e clara t a m b é m é a aplicação desse procedim e n t o e m O casamento; e m Os jogadores ele é e v i d e n t e . A c r i a ç ã o desta c o m é d i a , d e s p r o v i d a d a sátira social q u e t a n t a p r o f u n d i d a d e c o n f e r e a O inspetor geral, p o d e ser e x p l i c a d a p e l o f a t o d e ela c o n s tituir u m simples caso clássico de p r o c e d i m e n t o c ô m i c o d o tipo " o trapaceiro t r a p a c e a d o " . U m trapaceiro profissional é ludibriado p o r t r a p a c e i r o s mais espertos d o q u e ele. É possível m o s t r a r q u e s o b r e o princípio d o odurátchivanie baseiam-se t a m b é m muitas comédias de Ostróvski. Assim, na coméd i a Gente que combina com a gente u m t r a t a n t e b e m - a p e s s o a d o , o c o m e r c i a n t e S a m s o n Sílitch B o l c h ó v , p a r a e n g a n a r seus c r e d o r e s , declara-se insolvente. Ele passa seus bens p a r a o n o m e d o g e n r o . Mas o genro mostra-se mais tratante ainda que Bolchóv, permite que trancafiem o sogro n a p r i s ã o , e usufrui a seu bel-prazer d o s b e n s d e l e . O d e s t i n o d e B o l c h ó v seria t r á g i c o , n ã o fosse t r a ç a d o por sua própria culpa. Bolchóv é u m enganador enganado. Aqui, feito d e b o b o p o r s u a p r ó p r i a c u l p a , ele é u m h e r ó i n e g a t i v o . P o r é m , n a m e s m a s i t u a ç ã o p o d e c a i r t a m b é m u m h e r ó i p o s i t i v o a o se ver e m m e i o a p e s s o a s q u e lhe s ã o o p o s t a s p o r c a r á t e r , c o s t u m e s e c o n v i c ç õ e s . C o n s i s t e n i s s o a i n t r i g a d a c o m é d i a Os males da inteligência. C h e g a n d o a M o s c o u c h e i o d e ideais e c o m u m a m o r n o c o r a ç ã o , T c h á t s k i vê d e s m o r o n a r e m t o d a s as s u a s i l u s õ e s . " A s s i m , e u m e r e c u p e r e i p l e n a m e n t e ! " — e x c l a m a ele n o final d a c o m é d i a . U m a p e r s o n a g e m p o s i t i v a foi feita d e b o b a , m a s n ã o f o r a m r e v e l a d o s o s seus d e f e i t o s e s i m o s d a q u e l e s q u e a e n g a n a r a m . I r í a m o s m u i t o l o n g e , se q u i s é s s e m o s a p r o f u n d a r a a n á l i s e d a s i n t r i g a s d a s c o m é d i a s r u s s a s . O odurátchivanie não é o único tipo d e t r a m a , m a s é o tipo fundamental. O u t r o d o m í n i o n o q u a l o fazer a l g u é m d e b o b o c o n s t i t u i o sustentáculo principal da t r a m a é o do folclore cômico e narrativo. Este c o m p r e e n d e todas as a n e d o t a s populares, facécias, Schwanke, fabliaux , a s s i m c o m o os c o n t o s m a r a v i l h o s o s d e a n i m a i s e o s s a t í ricos. D e a c o r d o c o m a f o r m a e o tipo de aplicação desse princípio, seria possível s i s t e m a t i z a r u m r e p e r t ó r i o d a s t r a m a s d o s c o n t o s m a r a vilhosos, separando-os n u m a categoria especial. Tal sistcmatização p o d e r i a servir d e b a s e p a r a u m í n d i c e c i e n t í f i c o d a s t r a m a s , m a s aqui n ã o é o lugar p a r a nos o c u p a r m o s disso. É indispensável ape2
O termo refere-se a um gênero literário da Idade Média, de origem italiana. Consistia num conto humorístico curto com um final espirituoso. Na Alemanha difundiuse com o nome de Schwanke e penetrou na Rússia em meados do século XVII, sendo denominado fatsétsia (facécia).
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nas salientar q u e n o s contos m a r a v i l h o s o s os m o r a l m e n t e absolvidos são, sempre e sem qualquer exceção, o espertalhão e o gozador, e t o d a a s i m p a t i a d o ouvinte o u d o leitor está d o l a d o deles, e n ã o do lado d o enganado. Fazer alguém de b o b o é o principal procedim e n t o d a sátira folclórica. Nos contos maravilhosos de animais dos povos da E u r o p a o principal herói é a r a p o s a astuciosa. O u t r o s povos p o d e m ter o u t r o animal que, necessariamente, é considerado ladino, como o corvo, o macaco, a marta etc. Nos contos maravilhosos russos sobre a raposa, a narrativa reduz-se a o f a t o de q u e a r a p o s a e n g a n a t o d o s a seu r e d o r . Ela r o u b a o peixe d a carroça d o m u j i q u e , fingindo-se d e m o r t a . A c o n selha o lobo a enfiar o r a b o n u m b u r a c o d o gelo p a r a pescar os peixes. O r a b o c o n g e l a , o m u j i q u e m a t a o l o b o . C a i n d o n u m fosso c o m outros a n i m a i s , ela c o n v e n c e o u r s o a c o m e r as p r ó p r i a s entranhas. O urso rasga sua barriga e morre, a raposa o devora e escapa d o f o s s o . N ó s n ã o v a m o s e l e n c a r t o d a s as m a r o t i c e s d a r a p o s a . C e r t a m e n t e existem c o n t o s m a r a v i l h o s o s n o s q u a i s a e n g a n a d a ou castig a d a é a p r ó p r i a r a p o s a . A r a p o s a i n t i m a o g a l o a c o n f e s s a r - l h e seu pecado principal — a poligamia. O galo desce, a r a p o s a o agarra e l e v a e m b o r a . O g a l o p r o m e t e à r a p o s a t o r n á - l a u m a prosvírnia e levá-la a o b a n q u e t e d o b i s p o . A r a p o s a o s o l t a , ele v o a p a r a u m a árvore e caçoa dela. Esse conto maravilhoso, c o m o já lembramos, tem origem literária, e n ã o folclórica, e r e m o n t a ao século X V I I . M a s o p r i n c í p i o d o odurátchivanie se c o n f i r m a , o f a z e r a l g u é m d e b o b o aqui é até r e d o b r a d o . 4
O raposa, temem, animais
papel de e m b u s t e i r o p o d e ser d e s e m p e n h a d o n ã o só pela mas t a m b é m por outros animais, como o gato que todos o u o g a l o q u e n a d a t e m e e c o m seu c a n t o i n c u t e m e d o a o s mais fortes.
Esses c o n t o s m a r a v i l h o s o s n ã o s ã o p r o p r i a m e n t e c ô m i c o s n o s e n t i d o e s t r i t o d a p a l a v r a : eles n ã o p r o v o c a m g a r g a l h a d a s . M a s s ã o permeados por u m h u m o r popular incontestável. O ouvinte permanece d o l a d o d o e n g a n a d o r n ã o p o r q u e o p o v o a p r o v e o e n g o d o , mas porque o enganado é b o b o , medíocre, pouco esperto e merece ser e n g a n a d o . B a s e i a m - s e n o p r i n c í p i o d o odurátchivanie as tramas do i m e n s o ciclo d e c o n t o s m a r a v i l h o s o s s o b r e o s l a d r õ e s e s p e r t o s . O l a d r ã o desses c o n t o s n ã o é a b s o l u t a m e n t e r e p r e s e n t a d o c o m o u m
4
Mulher que faz hóstias.
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criminoso. É o divertido artista de sua arte. Ele consegue r o u b a r os ovos de baixo d a ave, m a s usa sua arte apenas para engabelar o p a t r ã o . Conhecendo sua arte e para pô-lo à prova, o patrão propõelhe t a r e f a s q u e a seu v e r s ã o i n e x e q ü í v e i s . O l a d r ã o r o u b a d e n o i t e o lençol sobre o qual d o r m e m o p a t r ã o e sua m u l h e r ; r o u b a do estáb u l o s e u p o t r o p r e f e r i d o ; e n g a n a n d o t o d o s o s g u a r d a s , ele r o u b a até m e s m o " o preceptor do K é r j e n i e t s " , ou o p a d r e , mete-o n u m saco e o p e n d u r a nos portões. 5
H á t a m b é m l a d r õ e s d e o u t r o t i p o . S ã o os s o l d a d o s q u e r o u b a m as velhotas comerciantes. A v e n d e d o r a vai l e v a n d o m a n t e i g a a o m e r c a d o . O s s o l d a d o s e s t ã o e m d o i s . U m deles d e t é m a m u l h e r e põe-se a tagarelar c o m ela, e n q u a n t o o o u t r o r o u b a a m a n t e i g a d a c a r r o ç a . A m u l h e r se d á c o n t a d o f u r t o s o m e n t e a p ó s c h e g a r a o m e r c a d o . Os e n g a n a d o r e s são soldados q u e a serviço d o czar suportam durante anos rigorosas privações, a enganada é u m a mulher rica e estúpida, u m a v e n d e d o r a d o m e r c a d o . O p o v o acha q u e os s o l d a d o s é q u e e s t ã o c e r t o s . O u t r o g r u p o de contos maravilhosos é o dos contos sobre os bufões. U m deles é o c o n t o m a r a v i l h o s o s o b r e u m b u f ã o q u e e n g a b e l a v a o u t r o s s e t e . O b u f ã o f a l a , p o r e x e m p l o , q u e ele t e m u m c h i cote-que-dá-vida, que ressuscita os m o r t o s . T e n d o c o m b i n a d o antes c o m a e s p o s a , ele f i n g e b r i g a r c o m ela, d a r - l h e u m a f a c a d a — n a r e a l i d a d e ele f u r a u m a b e x i g a c h e i a d e s a n g u e p r e v i a m e n t e e s c o n d i d a — , d e p o i s d á - l h e c h i c o t a d a s e ela r e s s u s c i t a . D a í , v e n d e o c h i cote por m u i t o dinheiro. O c o m p r a d o r m a t a a própria mulher e tenta ressuscitá-la a chicotadas. O tratante caçoa dele. O c o n t o m a r a vilhoso consiste n u m a série de peças s e m e l h a n t e s . O s inimigos tent a m v i n g a r - s e d e l e e e l i m i n á - l o , m a s e m v ã o — ele s e m p r e c o n s e g u e escapar impune. C o n t o s m a r a v i l h o s o s c o m o esses r e p r e s e n t a m p a r a o h o m e m atual u m certo mistério. O riso surge aqui cínico e c o m o q u e d e s p r o v i d o d e s e n t i d o . M a s o f o l c l o r e t e m s u a s p r ó p r i a s leis: o o u v i n t e n ã o as relaciona com a realidade; trata-se de u m c o n t o m a r a v i l h o s o , n ã o de histórias verídicas. O vencedor tem r a z ã o só pelo fato d e venc e r , e e s t e g ê n e r o d e c o n t o n ã o se c o n d ó i n e m u m p o u c o d o s c r é d u los b o b a l h õ e s q u e s ã o v í t i m a s d e p e ç a p r e g a d a p e l o b u f ã o . E s s e s c o n t o s m a r a v i l h o s o s a s s u m e m facilmente o c a r á t e r de sátira social.
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Referência a um afluente do Volga, às margens do qual viviam os Velhos Crentes, seguidores do cisma religioso ocorrido na Rússia a partir das reformas executadas pelo patriarca Nikon na segunda metade do século XVII.
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Os e n g a n a d o s são o p o p e ou o p a t r ã o e o e n g a n a d o r é o p e ã o da roça. O p e ã o arruina e até m a t a o p o p e , estropia e corta em pedacin h o s o s s e u s f i l h o s , d e s o n r a - l h e a m u l h e r e a filha o u a t i r a a m u l h e r n o p r e c i p í c i o — e t u d o i s s o s e m a m e n o r p i e d a d e , p o r q u e n o folclore o p o v o n ã o sente n e n h u m a c o m p a i x ã o p a r a c o m os próprios i n i m i g o s , s e j a m estes o s t á r t a r o s d o e p o s , o s f r a n c e s e s d a s c a n ç õ e s históricas sobre N a p o l e ã o ou os proprietários de terras e os popes dos contos maravilhosos. N o s c o n t o s m a r a v i l h o s o s d o t i p o d e O tolo, d e P ú c h k i n , o t r a b a l h a d o r e n g a b e l a n ã o só o p o p e , o p a t r ã o , m a s a t é o s p r ó p r i o s d i a b o s . A l i á s , a r i g o r , o p o p e ele n ã o e n g a n a . E l e é c o n t r a t a d o e o p a g a m e n t o é o d i r e i t o d e d a r t r ê s p i p a r o t e s n o p o p e . E o p o p e leva os p i p a r o t e s . O i n e s p e r a d o consiste a p e n a s n a força desses p i p a r o tes — o p o p e é c a s t i g a d o p o r s u a s o v i n i c e . N a f o r m a c o m o o odurátchivanie é a p l i c a d o n o folclore d o c o n t o m a r a v i l h o s o , ele n ã o é u m p r o c e d i m e n t o m u i t o a p r o p r i a d o para a sátira. Sua aplicação mostra u m a atitude negativa do narrad o r p a r a c o m a q u e l e q u e foi feito d e b o b o , m a s s o b r e as c a u s a s d e s s a a t i t u d e p o d e m - s e fazer a p e n a s s u p o s i ç õ e s : o p r ó p r i o n a r r a d o r n ã o acha necessário estender-se sobre o assunto. Tais causas são e v i d e n t e s s o m e n t e n o s c a s o s e m q u e a q u e l e q u e foi feito d e b o b o é odioso a o p o v o pela posição social q u e o c u p a . P o r é m , aqui n ã o existe p r o p r i a m e n t e u m a s á t i r a n o s e n t i d o e x a t o d a p a l a v r a . G ó g o l a g e d e m o d o d i f e r e n t e n o s c a s o s e m q u e u t i l i z a tal p r o c e d i m e n t o e m suas o b r a s n a r r a t i v a s . Ele revela c l a r a m e n t e , a i n d a q u e de m o d o breve, o caráter negativo d o tipo r e p r e s e n t a d o . O procedimento, q u e constitui o sustentáculo da comédia de intriga, aparece m u i t o r a r a m e n t e n a a r t e n a r r a t i v a d e G ó g o l , e q u a n d o a p a r e c e , está ligado a o folclore. É possível indicar o c o n t o " A noite d e m a i o " , onde rapazes z o m b a m do chefe: atiram-lhe u m a pedra n a janela, c a n t a m embaixo dela canções escandalosas e zombeteiras, m a s q u a n d o ele q u e r a g a r r a r o r e s p o n s á v e l , q u e m l h e cai n a s m ã o s é a própria c u n h a d a . Essas brincadeiras têm u m caráter de vingança: o chefe é o d i o s o p o r q u e a b u s a d e s e u p o d e r , a s s o b e r b a o t r a b a l h o c o m imposições arbitrárias. T e m a i n d a outras c u l p a s . " O chefe é z a r o l h o , m a s e m c o m p e n s a ç ã o seu ú n i c o o l h o é f a c í n o r a e p o d e enxergar de longe u m a colona b o n i t i n h a . " G ó g o l era u m excelente etnógrafo e sabia muito b e m q u e semelhantes travessuras eram perm i t i d a s o u t r o r a n a s festas d e N a t a l , e m q u e o s r a p a z e s a c e r t a v a m c o n t a s c o m o s q u e lhes e r a m a n t i p á t i c o s , e s o b r e t u d o c o m as a u t o ridades locais d a geração m a i s velha. " U m a dessas brincadeiras,
O FAZER ALGUÉM DE BOBO
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p o r e x e m p l o , consistia em arranjar u m caldo de estrume d e cavalo, d e p o i s ir b a t e r à p o r t a o u à j a n e l a d e u m d o s c a m p o n e s e s e-, q u a n d o o d o n o d a casa p u n h a a cabeça para fora, o rapaz molhava u m a vassoura n o caldo e a esfregava na cara do d o n o [...]."* Ou então, a t r a v a n c a v a m o s p o r t õ e s d e tal m o d o q u e se t o r n a v a i m p o s s í v e l abri-los, despejavam do telhado á g u a n a chaminé ou t a p a v a m - n a c o m feno e gelo de m o d o q u e o fogão c o m e ç a v a a fumegar e assim p o r d i a n t e . Este c o s t u m e é m u i t o antigo e é possível q u e t e n h a desempenhado algum papel na origem da comédia ática antiga. Orig e m r i t u a l p o s s u e m a i n d a as b r i n c a d e i r a s d e a b r i l , m u i t o d i f u n d i d a s a n t i g a m e n t e , q u a n d o n ã o se p o d i a d e i x a r d e p r e g a r p e ç a s n a s p e s s o a s e d e p o i s rir d e l a s . É indispensável m e n c i o n a r a propósito as brincadeiras e as p e ç a s , às v e z e s c r u é i s , p r e g a d a s e m p e s s o a s a b s o l u t a m e n t e i n o c e n tes e às vezes a t é m u i t o b o a s , m a s q u e , n ã o o b s t a n t e , s u s c i t a m o r i s o . U m e x e m p l o t í p i c o e e x p r e s s i v o é Max e Moritz de Wilhelm Busch. M a x e Moritz serram u m a pequena ponte por onde deve p a s s a r o a l f a i a t e , e se r e g o z i j a m q u a n d o ele cai n a á g u a ; e n c h e m de p ó l v o r a o c a c h i m b o d o professor, c h e g a n d o a c h a m u s c a r gravem e n t e seu r o s t o e t c . A a l e g r i a m a l d o s a q u e e m o u t r o s t i p o s d e h u m o r m a l se n o t a a p a r e c e a q u i s e m d i s f a r c e s . P o r isso este t i p o de h u m o r não é atraente; mas é próprio da natureza h u m a n a , que n e m s e m p r e tende a o b e m . O leitor, sem querer, solidariza-se c o m M a x e M o r i t z e m t o d o s os seus a p r o n t o s . P a r a isso c o n t r i b u i o fato de q u e a v í t i m a d a s brincadeiras pertence à classe dos burgueses alem ã e s c h e i o s d e si, o b t u s o s e l i m i t a d o s , q u e , e m b o r a t r a b a l h e m h o n e s t a m e n t e (o a l f a i a t e , o p a d e i r o , o p r o f e s s o r ) , v i v e m n o m u n d o s u f o c a n t e e b o l o r e n t o d a p e q u e n a b u r g u e s i a a l e m ã , e t ê m seu s o s s e g o p e r t u r b a d o p e l a s p e ç a s q u e o s g a r o t o s t r a v e s s o s lhes p r e g a m . M a s e m s e g u i d a , m e s m o d e p o i s d e c a s t i g a d a p o r eles, a v í t i m a r e c u pera o sossego perdido. N a língua inglesa brincadeiras desse g ê n e r o recebem a d e n o m i n a ç ã o d e practical jokes. P o u c o em voga entre n ó s , elas e n c o n t r a m a m p l a aceitação n o m o d o de vida dos a m e r i c a n o s pela i n c a p a c i d a d e q u e t ê m d e se d i v e r t i r e m d e m a n e i r a m a i s i n t e l i g e n t e . O e s c r i t o r c a n a d e n s e L e a c o c k e m seus Contos humorísticos fala de u m desses brincalhões, que, tendo chegado a u m a pensão, " o r a coloca breu n a s o p a de t o m a t e , o r a passa cera o u espeta alfinetes n o s a s s e n t o s "
* Cf. V. Propp, Rússkie agrárnieprázdniki p. 122, e bibliografia anexa.
[Festas agrárias russas]. Leningrado, 1963.
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e assim por diante. E r a considerado espirituoso t a m b é m encher u m travesseiro de espinhos o u esconder na botina do vizinho u m a cobra v i v a . O tal b r i n c a l h ã o " u m a n o i t e e s t e n d e u u m a c o r d a d e t r a v é s n o c o r r e d o r e fez s o a r o g o n g o , c h a m a n d o os h ó s p e d e s p a r a o j a n tar. U m velhote, na pressa, quebrou a perna. Nós quase m o r r e m o s d e r i r " . P e l a ú l t i m a frase d á p a r a ver q u e L e a c o c k c o n d e n a p r o f u n d a m e n t e esse t i p o d e h u m o r . N o e n t a n t o , a c o n c l u s ã o q u e ele t i r a , d e q u e o h u m o r só p o d e ser b o m , é s e m d ú v i d a a l g u m a e r r a d a . A q u e les q u e e s t u d a r a m n o s g i n á s i o s e s t a d u a i s p o d e r i a m p r o v a v e l m e n t e c o n t a r m u i t a c o i s a s o b r e as p e ç a s q u e os a l u n o s p r e g a v a m e m a l g u n s professores. P o r o u t r o lado, os culpados dessas travessuras e r a m , n o f u n d o , o s p r ó p r i o s p r o f e s s o r e s , j á q u e n ã o s a b i a m l i d a r c o m as crianças. P a r a a guerra entre professores e alunos contribuía todo o sistema escolar daqueles a n o s . Peças d o tipo são explicáveis c o m o reação natural d e a n i m a ç ã o , de vivacidade, de desprezo pela obtusid a d e e p e l a i n j u s t i ç a , p e l o t é d i o e p e l a a m o r a l i d a d e d e t o d a espécie n o meio pedagógico, coisas que n ã o escapavam aos estudantes perspicazes. Os professores dos quais g o s t a v a m e que respeitavam nunca eram vítimas dessas brincadeiras. Atualmente nossa avaliação moral de semelhantes procediment o s n ã o c o i n c i d e s e m p r e c o m a q u e l h e f a z e m as v í t i m a s d e odurátchivanie. Nos casos c o n t a d o s p o r L e a c o c k , os brincalhões são detest á v e i s p a r a n ó s p o r q u e o s q u e f o r a m feitos d e b o b o s s o f r e m m i s é rias sem ter culpa n e n h u m a . E n t r e t a n t o , nos casos em q u e n a vida o u n a l i t e r a t u r a o s feitos d e b o b o s s ã o p e s s o a s o u t i p o s d e s a g r a d á veis p a r a n ó s , p e r i g o s o s o u n e g a t i v o s d e u m m o d o g e r a l , n o s s a t e n d ê n c i a é s i m p a t i z a r c o m o s b r i n c a l h õ e s . M u i t o i n t e r e s s a n t e s o b este a s p e c t o é o c o n t o O prêmio, d e N . C h e v t s o v ( 3 6 ) . U m m a r i d o diz b r i n c a n d o à m u l h e r e à s o g r a q u e g a n h o u c i n c o m i l r u b l o s . N o iníc i o ele l a m e n t a a b r i n c a d e i r a , m a s b e m d e p r e s s a a m u l h e r , a s o g r a e outros parentes demonstram t a m a n h a cobiça, que somente então ele a b r e o s o l h o s s o b r e o c a r á t e r d e s e u s f a m i l i a r e s .
16 Os alogismos
A o l a d o d o f r a c a s s o d a q u i l o q u e se d e s e j a p o r c a u s a s e x t e r n a s o u i n t e r n a s , h á c a s o s e m q u e o f r a c a s s o se d e v e à f a l t a d e i n t e l i g ê n cia. A estultice, a i n c a p a c i d a d e mais elementar de o b s e r v a r corretam e n t e , d e ligar c a u s a s e e f e i t o s , d e s p e r t a o r i s o . ) [ N a s o b r a s literárias, a s s i m c o m o n a v i d a , o a l o g i s m o p o d e t e r d u p l a n a t u r e z a ; o s h o m e n s d i z e m coisas a b s u r d a s o u r e a l i z a m a ç õ e s i n s e n s a t a s . P o r é m , o l h a n d o - s e c o m m a i o r a t e n ç ã o , ver-se-á q u e tal s u b d i v i s ã o t e m i m p o r t â n c i a a p e n a s a p a r e n t e . A m b o s o s casos p o d e m ser r e d u z i d o s a u m s ó . N o p r i m e i r o e s t a m o s d i a n t e d e u m a c o n c e n t r a ç ã o e r r a d a d e idéias q u e se e x p r e s s a m e m p a l a v r a s e estas p a l a v r a s f a z e m rir. N o s e g u n d o , u m a c o n c l u s ã o e r r a d a q u e n ã o se e x p r e s s a p o r p a l a v r a s , m a s se m a n i f e s t a e m a ç õ e s q u e s ã o m o t i v o d e riso} O a l o g i s m o p o d e ser m a n i f e s t o o u l a t e n t e . N o p r i m e i r o c a s o o a l o g i s m o é c ô m i c o e m si m e s m o p a r a a q u e l e s q u e v ê e m o u s e n t e m s u a m a n i f e s t a ç ã o . N o s e g u n d o c a s o exige u m d e s m a s c a r a m e n t o e o riso surge n o m o m e n t o desse d e s n u d a m e n t o . P a r a o sujeito agente o d e s m a s c a r a m e n t o i n t e r v é m h a b i t u a l m e n t e s o m e n t e q u a n d o ele sente as c o n s e q ü ê n c i a s de sua estupidez n a p r ó p r i a pele. P a r a o o b s e r v a d o r , o espectador o u o leitor, o d e s m a s c a r a m e n t o d e u m alogismo escondido pode ocorrer graças a u m a tirada espirituosa e inesperada d o interlocutor, q u e com sua resposta manifesta a inconsistência do juízo de quem age.
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N a v i d a o a l o g i s m o é, q u e m s a b e , a f o r m a m a i s c o m u m d e c o m i c i d a d e . A i n c a p a c i d a d e de j u n t a r u m a c o n s e q ü ê n c i a c o m suas c a u s a s é m u i t o d i f u n d i d a e se e n c o n t r a m a i s f r e q ü e n t e m e n t e d o q u e se i m a g i n a . V a l e a p e n a r e c o r d a r a q u i a s p a l a v r a s j á c i t a d a s d e Tchernichévski: " A estupidez é o objeto principal de nossa z o m b a ria, a maior fonte do c ô m i c o " . H á outros estudiosos t a m b é m que s u b l i n h a m a i m p o r t â n c i a d a estupidez p a r a a definição d a essência d a comicidade. Kant achava q u e t u d o o que suscita u m a s o n o r a risada " d e v e ser algo c o n t r á r i o à r a z ã o " . J e a n P a u l , j u n t a m e n t e c o m o u t r o s esclarecimentos, define o c ô m i c o c o m o " a l g o d e infinitamente insensato percebido sensorialmente". Dobroliubov considerava a estupidez das personagens a propriedade fundamental da c o m é d i a . Se o p r e f e i t o e K h l e s t a k ó v t i v e s s e m s i d o m a i s i n t e l i g e n t e s , n ã o t e r i a e x i s t i d o a c o m é d i a : " A c o m é d i a [...] l e v a a o f r a c a s s o as tentativas do indivíduo de escapar às dificuldades que criou e sustentou por sua própria estupidez". D. Nikoláiev acha que Dobroliubov e s t á e q u i v o c a d o , a q u i , e q u e n ã o se t r a t a d e e s t u p i d e z b i o l ó g i c a , m a s s i m d o f a t o d e o p r e f e i t o ser u m t i p o s o c i a l m e n t e n e g a t i v o . S ó q u e a estupidez é u m m e i o p a r a suscitar o riso e G ó g o l escreveu u m a c o m é d i a e n ã o u m t r a t a d o . A estupidez e a n o c i v i d a d e social n ã o se e x c l u e m u m a à o u t r a : a e s t u p i d e z é u m m e i o p a r a d e s m a s c a rar a n o c i v i d a d e . Vulis escreveu a este p r o p ó s i t o q u e , " e m essência, u m a risada alegre e espirituosa é u m a defesa original c o n t r a o t o l o , u m fator social q u e s u p e r a aqueles erros e vícios a p a r e n t e m e n t e s e c u n d á r i o s m a s q u e , c a s o se t o r n a s s e m u m a n o r m a , s e r i a m u m a v e r d a d e i r a d e s g r a ç a " . É c l a r o q u e u m a e s t u p i d e z t o t a l seria u m a desgraça, mas Gógol luta não contra a estupidez, mas contra aquele sistema social q u e cria prefeitos c o m o A n t o n A n t ó n o v i t c h e funcion á r i o s e filhos de p r o p r i e t á r i o s c o m o K h l e s t a k ó v : s u a estupidez é u m meio cômico-satírico de derrisão. A m a n i f e s t a ç ã o d o a l o g i s m o s u b m e t e - s e às m e s m a s leis p r ó p r i a s às o u t r a s m a n i f e s t a ç õ e s d o c ô m i c o . N . H a r t m a n n a s s i m escreve n a Estética: " N ã o é a simples ignorância q u e é cômica, m a s aquela q u e a i n d a n ã o foi d e m o n s t r a d a " . I s s o , p o r é m , n ã o é v e r d a d e . U m a i g n o r â n c i a o c u l t a , a i n d a n ã o n o t a d a p o r n i n g u é m , n ã o p o d e ser c ô m i c a . ( O r i s o s u r g e n o m o m e n t o e m q u e a i g n o r â n c i a o c u l t a se m a n i f e s t a r e p e n t i n a m e n t e n a s p a l a v r a s o u n a s a ç õ e s d o t o l o , i s t o é, torna-se evidente p a r a todos, e n c o n t r a n d o sua expressão em formas perceptíveis sensorialmente. É possível dar-se t a m b é m o u t r a definição: pode-se entender o alogismo cômico c o m o um mecanismo de p e n s a m e n t o q u e prevalece sobre seu c o n t e ú d o .
OS ALOGISMOS
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E s t a c o n d i ç ã o n ã o existe, p o r exemplo, q u a n d o u m cientista c o m e t e u m e r r o d e c á l c u l o o u u m m é d i c o faz u m d i a g n ó s t i c o e r r a d o . E r r o s c o m o estes n ã o s ã o c ô m i c o s p o r q u e n ã o c o n s t i t u e m u m a l o gismo mecânico. N ã o nos orientaremos aqui para u m a sistematização rigorosa, p o r q u e , n e s t e c a s o , ela n ã o e l u c i d a a e s s ê n c i a d a q u e s t ã o , m a s t r a t a remos a p e n a s de alguns exemplos significativos de caráter diverso. E m G ó g o l esse a s p e c t o d e c o m i c i d a d e e n c o n t r a - s e c o m b a s t a n t e f r e q ü ê n c i a . K o r ó b o t c h k a , j á d i s p o s t a a ceder a T c h í t c h i k o v as a l m a s m o r t a s , o b s e r v a t i m i d a m e n t e : " N u n c a se s a b e , às vezes p o d e m ser aproveitados em alguma coisa, n a economia rural [ . . . ] " , esgotando c o m isso a p a c i ê n c i a d e T c h í t c h i k o v . P o d e - s e n o t a r q u e m u i t a s p e r s o nagens gogolianas — Khlestakóv, Bóbtchinski, Dóbtchinski, Nozdrióv, Koróbotchka e outras — n ã o conseguem juntar duas palavras que f a ç a m s e n t i d o e r e l a t a r u m f a t o c o m o m í n i m o d e lógica. B ó b t c h i n s k i , a o c o n t a r c o m o viu K h l e s t a k ó v p e l a p r i m e i r a v e z , i n t r o d u z n a h i s t ó r i a Rastakóvski e Koróbkin, e u m certo Potchetchuev, que tem " t r e m e deira n a b a r r i g a " e descreve e m p a r t i c u l a r e s o n d e e c o m o e n c o n t r o u Dóbtchinski ("perto do boteco onde vendem bolinhos") que nada tem a ver c o m o a s s u n t o . E l e j u n t a t o d a u m a c a d e i a d e d e d u ç õ e s pelas q u a i s se deveria ver c o m c l a r e z a q u e o r e c é m - c h e g a d o n ã o é u m i n s p e tor. O relato de Bóbtchinski sobre a chegada d e Khlestakóv é u m m o d e l o d e d e s c o n e x ã o e d e falta d e b o m s e n s o . E l e n ã o s a b e distinguir o que é m a i s i m p o r t a n t e . D e u m a m a n e i r a geral, o r u m o dos raciocínios d a s p e r s o n a g e n s g o g o l i a n a s é o m a i s i n e s p e r a d o possível. D u a s s e n h o r a s p e n s a m q u e as a l m a s m o r t a s significam q u e T c h í t c h i k o v t e m e m m e n t e r a p t a r a filha d o g o v e r n a d o r ; o oficial d o c o r r e i o e s t á c o n v e n c i d o d e q u e T c h í t c h i k o v é o c a p i t ã o K o p é i k i n e só m a i s t a r d e l e m b r a - s e d e q u e K o p é i k i n é u m i n v á l i d o s e m u m b r a ç o e sem u m a p e r n a , e n q u a n t o T c h í t c h i k o v é s a u d á v e l . O a l o g i s m o s u r g e c o m evid ê n c i a t o d a especial q u a n d o é a p l i c a d o c o m o t e n t a t i v a d e justificar ações n ã o c o m p l e t a m e n t e irrepreensíveis. !
D o m e s m o t i p o s ã o as p a l a v r a s d o p r e f e i t o a p r o p ó s i t o d a v i ú v a d o s u b o f i c i a l : " e l a se c h i c o t e o u a si m e s m a " , o u as p a l a v r a s d o j u i z e m O inspetor geral, q u e c h e i r a s e m p r e a v o d c a , c o i s a q u e ele t e n t a e x p l i c a r d i z e n d o q u e " q u a n d o e r a c r i a n ç a a a m a o h a v i a m a c h u c a d o e desde então cheirava sempre a v o d c a " . Q u a n d o , n o conto sobre a disputa entre Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch, u m a c a m p o n e s a l e v a a o a r livre p a r a v e n t i l a r n ã o a p e n a s a s b o m b a -
Almas mortas,
cit., p. 65.
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COMICIDADE E RISO
chas cor n a n q u i m de Ivan Nikíforovitch e outros trapos, c o m o tamb é m a e s p i n g a r d a , trata-se de u m c a s o típico de alogismo de ações, baseado n u m a conclusão subconsciente por analogia. À s velhas ridículas d a s c o m é d i a s atribui-se f r e q ü e n t e m e n t e a estup i d e z . N a c o m é d i a d e O s t r ó v s k i A verdade é boa, mas a felicidade é melhor, M a v r a T a r á s s o v n a fala d o s e g u i n t e m o d o d e u m h o m e m q u e a c r e d i t a m o r t o , m a s q u e , a o c o n t r á r i o , lhe d i z e m e s t a r v i v o : Não pode a b s o l u t a m e n t e estar vivo, p o r q u e já são v i n t e a n o s que f a ç o o f e r e n d a s p a r a a paz de s u a a l m a : por a c a s o d á para a g ü e n t a r u m a c o i s a .dessas?
E m b o r a a lógica ensine q u e as conclusões tiradas p o r analogia n ã o t ê m v a l o r d e c o n h e c i m e n t o , n a v i d a e n c o n t r a m - s e m u i t a s vezes raciocínios dessa natureza. A criança pensa antes de mais n a d a por a n a l o g i a s e s ó m u i t o m a i s t a r d e a p r e n d e a refletir s o b r e o s f e n ô m e n o s q u e e s t ã o à s u a v o l t a . Eis u m e x e m p l o : a v o v ó d á s a l a d a p a r a o netinho comer e tempera-a com óleo. O menino pergunta: — V o v ó , v o c ê vai m e t e m p e r a r c o m ó l e o t a m b é m ? E m seu l i v r o De dois a cinco T c h u k ó v s k i r e u n i u m a t e r i a l s o b r e a c r i a t i v i d a d e v e r b a l d a s c r i a n ç a s . N ã o m e n o s i n t e r e s s a n t e seria r e c o lher fatos r e l a c i o n a d o s c o m a lógica infantil. M a s a q u i l o q u e na lógica d a s crianças é p r o v a de suas p r i m e i r a s e ingênuas i n d a g a ç õ e s m e n t a i s , d e s u a s t e n t a t i v a s d e ligar u m f e n ô m e n o c o m o u t r o e d e orientar-se n o m u n d o , n a lógica d o s a d u l t o s torna-se a p e n a s u m engano ridículo. O s a l o g i s m o s e n c o n t r a m a m p l a a p l i c a ç ã o n o s sketches dos palhaços. Boris Viátkin entrava n o picadeiro c o m s u a cadelinha Maniúnetchka, segurando-a com u m a corda curta e grossa, fato que provocava imediatamente u m a alegre risada dos espectadores. Este exemplo parece c o n f i r m a r diretamente a teoria de Hegel: " C ô m i c o [...] p o d e t o r n a r - s e q u a l q u e r c o n t r a s t e [...] d o fim e d o s m e i o s " . U m a cordona é u m meio absolutamente inadequado para conduzir u m c a c h o r r i n h o . O contraste entre m e i o e finalidade suscita o riso. E m t o d o s o s c a s o s desse g ê n e r o o a l o g i s m o fica, p o r a s s i m dizer, n a superfície e se r e v e l a s o z i n h o a o e s p e c t a d o r , a o o u v i n t e o u a o leitor p o r meio de ações o u palavras c l a r a m e n t e tolas. M a s o alogismo p o d e estar t a m b é m e s c o n d i d o e ser c o m p l e t a m e n t e i m p e r c e p t í v e l à p r i m e i r a vista. A p e n a s a l g u n s o n o t a m e o d e s m a s c a r a m c o m a l g u m a t i r a d a q u e revela d e r e p e n t e a estultice e suscita o r i s o . Tiradas d o gênero exigem espírito de observação e t a l e n t o . Elas são a resposta de u m espírito a r g u t o à manifestação d a tolice.
OS AI.OGISMOS
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A c a p a c i d a d e de d a r respostas desse tipo é u m dos aspectos d a a r g ú cia. É a m p l a m e n t e c o n h e c i d a a a n e d o t a d a vida de B e r n a r d S h a w , q u e se c o n s i d e r a r e a l m e n t e o c o r r i d a . E l e t e r i a r e c e b i d o u m a c a r t a com o seguinte teor: Eu s o u a m u l h e r m a i s b o n i t a d a Inglaterra, o s e n h o r é o h o m e m m a i s i n t e l i g e n t e . A c h o que d e v e r í a m o s ter u m f i l h o .
A o q u e seguiu a resposta: E q u e tal se n o s s o rebento h e r d a s s e a minha gência?
beleza e a vossa
inteli-
S e m e l h a n t e , e m b o r a u m p o u c o d i f e r e n t e , é a a n e d o t a q u e se e n c o n t r a n a r e v i s t a Ciência e Vida ( 1 9 6 6 , n . 3 ) . U m a lady i n d i g n a d a : — Pois f i q u e s a b e n d o que se eu f o s s e sua m u l h e r eu c o l o c a r i a v e n e n o e m seu c a f é d a m a n h ã ! O gentleman: — Se eu f o s s e seu m a r i d o , beberia esse v e n e n o c o m prazer!
O a l o g i s m o c o m o p r o c e d i m e n t o artificial p a r a i n d u z i r a c o m i cidade é p a r t i c u l a r m e n t e freqüente n o folclore, o n d e , pode-se dizer, ele f u n c i o n a c o m o s i s t e m a . A partir da Idade Média e da época da Renascença e do H u m a n i s m o , q u a n d o na E u r o p a inteira começou-se a publicar colet â n e a s d e fabliaux, járti , facécias e Schwanke, que, em parte, entrav a m n a l i t e r a t u r a clássica ( C h a u c e r , B o c c a c c i o ) , a t é as e x p e d i ç õ e s (científicas) q u e , m e s m o h o j e e m d i a , r e ú n e m u m m a t e r i a l e x t r e m a m e n t e r i c o , e s t e t i p o d e f o l c l o r e c o n t i n u a a v i v e r e se r e v e l a i m o r t a l . N o O r i e n t e s u r g i u a figura d e N a s r i e d d i n , h o m e m a l e g r e e a r g u t o , q u e f i n g e ser u m s i m p l ó r i o . E s t a f i g u r a e s p a l h o u - s e e m t o d o s o s p a í s e s d o O r i e n t e M é d i o e p e r m a n e c e u viva a t é h o j e . N e m t o d o folc l o r e é i g u a l m e n t e c ô m i c o e e s p i r i t u o s o , m a s a q u i p o d e m ser e n c o n tradas verdadeiras jóias. 2
D e t e r - n o s - e m o s b r e v e m e n t e n o folclore r u s s o . A q u a n t i d a d e de diferentes contos sobre tolos, bobos ou simplórios é extraordinar i a m e n t e g r a n d e . Isso a c o n t e c e , p o r é m , n ã o p o r q u e n a v i d a e x i s t a m muitos tolos e o p o v o q u e i r a z o m b a r deles, m a s p o r q u e a estultice evidente o u disfarçada s u s c i t a u m riso s a u d á v e l e s a b o r o s o . E s t e riso z o m b a dos tolos, m a s n ã o p o d e m o s c o n c o r d a r c o m a o p i n i ã o
J a r t (do polonês zart) é a designação de um tipo de conto humorístico curto, que se desenvolveu na Rússia no século XVII.
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COMICIDADE E RISO
d e a l g u n s e s t u d i o s o s q u e a c h a m q u e estes c o n t o s t e r i a m u m a d e t e r m i n a d a função satírica e perseguiriam o objetivo de u m a luta ativa c o n t r a a estupidez. Existem alguns tipos de folclore m á g i c o o n d e os heróis s ã o os tolos. U m deles é c e n t r a d o nos h a b i t a n t e s de urna localidade qualquer. N a Grécia Antiga e r a m os habitantes de Abdera, os abderitas; os alemães a c h a m que os habitantes d a Suábia, os suevos, são p o u c o espertos. O livro p o p u l a r sobre os sete suevos é u m d o s m a i s d i v e r t i d o s d e s s e g ê n e r o . S o b r e esses l i v r o s o j o v e m Engels escrevia: Este e s p í r i t o , e s t a n a t u r a l i d a d e de d e s e n h o e de e x e c u ç ã o , este h u m o r b o n a c h ã o , que a c o m p a n h a s e m p r e o e s c á r n i o m o r d a z , para que se n ã o t o r n e por d e m a i s m a l d o s o , a e x t r a o r d i n á r i a c o m i c i d a d e das s i t u a ç õ e s — t u d o isso, para dizer a verdade, é c a p a z de colocarse a c i m a de g r a n d e parte de n o s s a literatura (3, 26, 35).
N a R ú s s i a , c o n s i d e r a d o s p o u c o e s p e r t o s , sabe-se lá p o r q u e , são os habitantes d o velho distrito de Pochekhônie na província de I a r o s l a v l . É possível p o r é m q u e esta f a m a n ã o lhes v e n h a d o folclore, m a s d o livro d e V . Berezáiski Anedotas sobre os antigos habitantes de Pochekhônie, acompanhadas de um divertido dicionário (1798). E m n e n h u m a coletânea de contos p o p u l a r e s russos h á habitantes de P o c h e k h ô n i e , n e m deles se fala. O n ú c l e o dessas h i s t ó r i a s d e s i m p l ó rios r e d u z - s e a r e l a t o s d e a ç õ e s t o l a s . T a i s s i m p l ó r i o s s e m e i a m sal, t e n t a m t i r a r leite d a s g a l i n h a s , l e v a m a luz e m s a c o s , f a z e m o c a v a l o e n t r a r n a c o l h e r a , e m lugar d e a j o u j á - l a d e v i d a m e n t e n o p e s c o ç o dele, p u l a m d e n t r o das calças, s e r r a m o galho sobre o q u a l estão sent a d o s e a s s i m p o r d i a n t e . Eles c o m p r a m u m a e s p i n g a r d a n a feira, c a r r e g a m - n a p a r a ver c o m o ela a t i r a e u m deles o l h a n o c a n o — p a r a ver c o m o sai a b a l a . T u d o isso refere-se à q u e l a série d e c a s o s q u e mais acima c h a m a m o s de alogismos de ação. Nos casos que analisamos, a estupidez é u m fenômeno, por assim dizer, coletivo. Ela a b a r c a t o d o s os h a b i t a n t e s de u m a localid a d e ou alguns indivíduos ao m e s m o t e m p o . O u t r o s tipos de contos p o p u l a r e s dizem respeito às a ç õ e s tolas de u m a única p e r s o n a g e m . U m a c a m p o n e s a piedosa, m a s tola, está sentada n a c a r r o ç a e c o l o c a s o b r e os j o e l h o s p a r t e d a c a r g a , p a r a a l i v i a r o e s f o r ç o d o c a v a l o . C o n t o s c o m o e s t e p o d e m ser r e c o n d u z i d o s às a n e d o t a s p o p u lares. M a s h á enredos mais desenvolvidos. N u m d o s c o n t o s os i r m ã o s m a n d a m o b o b o f a z e r c o m p r a s n a cidade. " I v á n u c h k a c o m p r o u d e t u d o : u m a mesa, colheres, xícaras e sal; e n c h e u o c a r r o c o m c a d a tipo de c o i s a . " A t é a q u i , t u d o b e m . Mas os b o b o s dos contos populares têm u m a característica:
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eles têm pena. E s t a c o m p a i x ã o o s l e v a a a ç õ e s d e t o d o i n s e n s a t a s . Neste caso o cavalo é m a g r o e a c a b a d o . " Q u e tal, pensa consigo m e s m o I v á n u c h k a , se o c a v a l o t e m q u a t r o p a t a s e a m e s a t a m b é m , ela p o d e n o s a l c a n ç a r s o z i n h a ! " P e g a a m e s a e a c o l o c a n a e s t r a d a . Mais adiante dá toda a comida para os corvos comerem, põe todas as p a n e l a s s o b r e os t r o n c o s d a s á r v o r e s p a r a q u e n ã o s i n t a m frio etc. Os irmãos o enchem de p a n c a d a s . Este conto é muito interessante por diversas razões. O b o b o vê o m u n d o d i s t o r c i d o , t i r a c o n c l u s õ e s e r r a d a s e c o m isso os o u v i n tes se d i v e r t e m . M a s as s u a s m o t i v a ç õ e s i n t e r n a s s ã o as m e l h o r e s p o s s í v e i s . T o d o s lhe d e s p e r t a m c o m p a i x ã o e e s t á p r o n t o a s a c r i f i c a r t u d o o q u e t e m ; p o r i s s o m e s m o ele s u s c i t a s i m p a t i a . E s t e t o l o é melhor do que muitos sábios. O m e s m o , p o r é m , n ã o p o d e ser d i t o d o c o n t o O bobo integral. A m ã e diz a o f i l h o : " V o c ê d e v e r i a ir, m e u f i l h o , se e n f r o n h a r n a s p e s s o a s , p a r a ver se v o c ê c o n s e g u e ficar m a i s e s p e r t o " . E l e p a s s a p o r d o i s m u j i q u e s q u e m o e m e r v i l h a s e c o m e ç a a se e s f r e g a r n e l e s . E l e s e n c h e m - n o d e p a n c a d a s . A m ã e lhe e n s i n a : " Q u e D e u s lhe a j u d e , g e n t e b o a ! D e u s l h e d ê b a s t a n t e , q u e n ã o d ê p a r a l e v a r " . O tolo e n c o n t r a u m e n t e r r o e p r o n u n c i a o a u g ú r i o que a m ã e lhe e n s i n o u . B a t e m nele n o v a m e n t e . O u t r o e n s i n a m e n t o d a m ã e , q u e lhe d i s s e r a p a r a d e s e j a r " v i g í l i a e i n c e n s o " , ele o p r o n u n c i a n u m c a s a m e n t o (vigília = v e l ó r i o ) , e b a t e m n e l e d e n o v o . E s t e c o n t o é m u i t o p o p u l a r e conhecido em muitas variantes. O b o b o deste c o n t o é servil, b e n e v o l e n t e e d e s e j o s o d e s a t i s f a z e r a t o d o s . M a s está s e m p r e a t r a s a d o , a p l i c a o p a s s a d o a o p r e s e n t e , e, a p e s a r d e ser p r e s t a tivo, desperta a cólera de t o d o s e recebe s o m e n t e p a n c a d a s . A este conto refere-se Lênin q u a n d o quer caracterizar aqueles que n ã o s a b e m se o r i e n t a r n o p r e s e n t e , e, d e i x a n d o - s e g u i a r p o r a q u i l o q u e j á passou, fazem t u d o e r r a d o . O u t r o e x e m p l o . U m a m o ç a vai a o r i o l a v a r u m a v a s s o u r a . N a m a r g e m fica a a l d e i a o n d e m o r a o n o i v o . E l a i m a g i n a q u e d á à l u z u m filho q u e v a i a n d a r n o g e l o , cai n o r i o e se a f o g a . A m o ç a c o m e ç a a chorar alto e a lamentar-se. Chegam o pai, a mãe, o a v ô , a avó e o u t r o s q u e , a o o u v i r o r e l a t o , c o m e ç a m eles t a m b é m a c h o r a r a l t o . A o e s c u t a r a c h o r a d e i r a , o n o i v o vai até o local e, t o m a n d o c o n h e c i m e n t o d o o c o r r i d o , r e s o l v e ir e m b o r a p a r a ver se e n c o n t r a a l g u é m n o m u n d o mais tolo que sua noiva — e habitualmente o encontra. M u i t o s enredos de contos sobre tolos c o n t ê m t a m b é m o motivo d a tolice. Os c o n t o s sobre tolos são inseparáveis d o s contos s o b r e os e s p e r t a l h õ e s a s t u c i o s o s . U m a v e l h a p e r d e u o f i l h o . U m s o l d a d o
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COMICIDADE E RISO
q u e se faz c h a m a r d e " N i c o , d o a l é m " i n s i s t e e m p a s s a r a n o i t e c o m e l a . E l e se e n c a r r e g a d e l e v a r a o f a l e c i d o , n o o u t r o m u n d o , u m a c a m i s a , p a n o e u m a série d e p r o v i s õ e s . A v e l h a a c r e d i t a nele e o s o l d a d o c a r r e g a c o n s i g o os p r e s e n t e s p a r a o f i l h o . U m outro fenômeno é constituído por João — b o b o , protagonista de c o n t o s de m a g i a . Ele é b o b o apenas no c o m e ç o : senta-se n a estufa , " n a fuligem e nas c i n z a s " , e t o d o s riem dele. J u s t a m e n t e o b o b o , e n t r e t a n t o , revela-se mais esperto q u e seus i r m ã o s e r e a l i z a d i f e r e n t e s e m p r e s a s h e r ó i c o - m á g i c a s . N i s t o r e s i d e u m a filosofia t o d a e s p e c i a l . N o h e r ó i d o s c o n t o s d e m a g i a e x i s t e o q u e m a i s i m p o r t a : a beleza espiritual e a força m o r a l . 3
M e s m o o s c o n t o s s o b r e o s t o l o s , p o r é m , t ê m s u a p r ó p r i a filosofia. O s t o l o s , n o final d a s c o n t a s , s u s c i t a m a s i m p a t i a e a c o m p r e e n s ã o d o s o u v i n t e s . O bobo dos contos russos tem qualidades morais e isto é mais importante que aquilo que se chama inteligência.
3
A estufa russa tem uma prateleira, n o alto, própria para as pessoas se deitarem.
17 A mentira
O estudo das condições em que a impressão de comicidade p o d e o r i g i n a r - s e d o a l o g i s m o e d a tolice n o s a j u d a r á a r e s o l v e r u m o u t r o p r o b l e m a : p o r q u e e e m q u e c o n d i ç õ e s é cômica a mentira dos homens? P a r a r e s p o n d e r a e s t a p e r g u n t a é p r e c i s o ter e m m e n t e q u e ( e x i s t e m , p o r a s s i m dizer, d o i s t i p o s d e m e n t i r a c ô m i c a . N o p r i m e i r o , o impostor procura enganar o interlocutor, fazendo passar a mentira p o r v e r d a d e ) T e m o s u m e x e m p l o disso n a c e n a d a s m e n t i r a s d e K h l e s t a k ó v e m O inspetor geral. ( N o s e g u n d o t i p o o i m p o s t o r n ã o se p r o p õ e a e n g a n a r q u e m o o u v e , p o i s s u a f i n a l i d a d e é o u t r a : ele p r e t e n d e d i v e r t i r ) A esse t i p o p e r t e n c e m , p o r e x e m p l o , os c o n t o s d e M ü n c h h a u sen e, e m g e r a l , q u a l q u e r g ê n e r o d e balelas d i v e r t i d a s . E x a m i n e m o s o primeiro caso.(A_mentira_en^ pre é c ô m i c a . P a r a sê-lo, tal c o m o os o u t r o s vícios h u m a n o s , ela d e v e ser d e p e q u e n a m o n t a e n ã o l e v a r a c o n s e q ü ê n c i a s t r á g i c a s . A l é m d i s s o e l a d e v e ser d e s m a s c a r a d a . A q u e n ã o o f o r n ã o p o d e ser c ô m i c a ) A o se c o n t a r u m a m e n t i r a h á s e m p r e a l g u é m q u e a c o n t a e alguém que a ouve. E m alguns casos o desmascaramento e o reconhecimento d a mentira dizem respeito apenas ao ouvinte e n ã o a o impost o r , q u e c o n t i n u a n a p l e n a c e r t e z a d e q u e seu e n g a n o v i n g o u . N e s t e c a s o os q u e e s t ã o à sua v o l t a o u v e m - n o c o m p r a z e r e a l e g r a m - s e c o m
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COMICIDADE E RISO
o fato d e ele p e n s a r q u e t o d o s a c r e d i t a m nele, q u a n d o , n a v e r d a d e , o s o u v i n t e s d e s c o b r i r a m sua m e n t i r a . A c o m i c i d a d e d e u m a s i t u a ç ã o c o m o esta n ã o se d e s c a r r e g a d e r e p e n t e , ela p o d e p e r d u r a r a l g u n s m i n u t o s , m a s n ã o p r o v o c a o e s t r o n d o d o r i s o . O i m p o s t o r faz p a p e l d e b o b o , m a s ele n ã o o p e r c e b e e p e r m a n e c e sem p u n i ç ã o . N o s e g u n d o caso a situação tem c o m o que u m prolongamento. Algum ouvinte faz u m a i n t e r v e n ç ã o q u e d e s m a s c a r a i m e d i a t a m e n t e o m e n t i r o s o e isso p r o v o c a ( o u p o d e p r o v o c a r ) u m s u r t o d e riso e m t o d o s o s p r e s e n tes. N e s t e c a s o o i m p o s t o r é d e s m a s c a r a d o e s u a m e n t i r a é p u n i d a . O riso a c o n t e c e n o m o m e n t o d o d e s m a s c a r a m c n t o , q u a n d o o o c u l t o d e r e p e n t e se t o r n a m a n i f e s t o , tal c o m o o c o r r e t a m b é m e m o u t r o s casos de comicidade. V a m o s d a r apenas alguns exemplos. N a cena das gabolices de Khlestakóv, os ouvintes são de duas espécies. U n s estão n o palco, c o m o o prefeito e seus c o m p a d r e s . E l e s e s t ã o p r o n t o s a a c r e d i t a r , p o r isso a m e n t i r a d o i m p o s t o r p a r a eles n ã o é e n g r a ç a d a . Se a q u i l o q u e ele d i z for v e r d a d e , e s t a verd a d e s e r á p e r i g o s a p a r a eles. O s d e m a i s o u v i n t e s s ã o o p ú b l i c o q u e assiste a o e s p e t á c u l o . P a r a eles a m e n t i r a d e K h l e s t a k ó v é p a t e n t e e p o r isso m e s m o e n g r a ç a d a . A s m e n t i r a s d e K h l e s t a k ó v d e s m a s c a r a m - s e s o z i n h a s , d e v i d o a seu a b s u r d o , m a s a o m e s m o t e m p o d e s m a s c a r a m t a m b é m o i m p o s t o r . U m a melancia de setecentos rublos, u m a s o p a c h e g a n d o d i r e t a m e n t e d e P a r i s , t r i n t a e c i n c o mil e n t r e g a d o r e s e c o i s a s d e s s e e s t i l o s ã o e n g r a ç a d a s n ã o a p e n a s d e v i d o a seu a b s u r d o , mas t a m b é m porque deste m o d o Khlestakóv m o s t r a q u e m é de fato, revelando sua identidade. A o m e s m o tipo d e mentirosos pertence t a m b é m N o z d r i ó v , c o m seus relatos de cavalos d e capa d e lã a z u l e c o r - d e - r o s a q u e t e r i a m e s t a d o e m s u a c a d e i r a . A l é m disso, tanto u m q u a n t o o o u t r o m e n t e m a u t o m a t i c a m e n t e p o r q u e , u m a vez q u e c o m e ç a m , n ã o c o n s e g u e m m a i s p a r a r . A s s i m é u m d o s n a m o r a d o s d e A g á f i a T í k h o n o v n a , e m O casamento, q u e foi r e c u s a d o p o r q u e , c o m o diz d e l e a c a s a m e n t e i r a F i o k l a , " q u a l q u e r c o i s a q u e ele d i z é m e n t i r a , isso d á p r a ver l o g o d e c a r a " . G ó g o l n ã o foi a p e n a s u m m e s t r e d o h u m o r i s m o , m a s t a m b é m u m g r a n d e t e ó r i c o , e m b o r a s e j a m r a r o s os casos e m q u e e x p õ e suas t e o r i a s . F a l a n d o d e K h l e s t a k ó v , G ó g o l escreve q u e ele, " a o c o n t a r u m a m e n t i r a , revela a si p r ó p r i o n e l a , tal q u a l ele é " . E s t a s p a l a v r a s s ã o m a i s e x a t a s d o q u e m u i t a s l o n g a s reflexões de e s t u d i o s o s d e estética. O i m p o s t o r , e x p r e s s a n d o a si p r ó p r i o , m a n i f e s t a s u a n a t u r e z a , t o r n a n d o a t o d o s e v i d e n t e sua i m p o s t u r a , m a s n ã o se a p e r c e b e d i s s o , assim c o m o a c r e d i t o q u e os o u t r o s t a m b é m n ã o p e r c e b a m . T u d o isso p o d e ser d e f i n i d o c o m o u m caso p a r t i c u l a r d e u m a lei geral d o c ô m i c o .
A MENTIRA
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M a s h á a l g o m a i s . A c o m i c i d a d e d a m e n t i r a d e K h l e s t a k ó v n ã o se e n c o n t r a a p e n a s n o a u t o d e s m a s c a r a m e n t o i n v o l u n t á r i o . G ó g o l prosseg u e : " M e n t i r significa dizer u m a m e n t i r a c o m u m t o m t ã o p r ó x i m o d a v e r d a d e , t ã o n a t u r a l , t ã o i n g ê n u o c o m o se p o d e a p e n a s c o n t a r u m a v e r d a d e — e j u s t a m e n t e nisso e s t á t o d o o c ô m i c o d a m e n t i r a " ( f r a g m e n t o d e u m a c a r t a escrita p e l o a u t o r a p ó s a p r i m e i r a r e p r e s e n t a ç ã o d e O inspetor geral). C o m isso G ó g o l d e f i n e a e s s ê n c i a específica d a c o m i c i d a d e d a mentira.^ U m a m e n t i r a i n t e r e s s e i r a , s e g u n d o G ó g o l , n ã o é e n g r a ç a d a . Q u a n t o m a i s interesseira, t a n t o m e n o s e n g r a ç a d a . P o r isso, o g r a u m á x i m o d a c o m i c i d a d e d e u m a m e n t i r a é a o m e s m o tempo a mentira completamente gratuita graças à qual, porém, o m e n t i r o s o se d e s m a s c a r a ( " r e v e l a a si p r ó p r i o , tal q u a l ele é " ) . j C a s o esta última c o n d i ç ã o seja satisfeita (sempre p o r é m q u e n ã o s e j a m p r e v i s t a s sérias c o n s e q ü ê n c i a s ) , p o d e ser c ô m i c a t a m b é m u m a m e n t i r a interesseira. Assim, Sobakévitch afirma sem pestanejar q u e s ã o vivos os c a m p o n e s e s m o r t o s v e n d i d o s p o r ele. O prefeito e x p õ e a o f a l s o i n s p e t o r c o m o ele c u i d a d a a d m i n i s t r a ç ã o d a c i d a d e . Kotchkáriev mente aos noivos quanto a Agáfia Tíkhonovna e a A g á f i a T í k h o n o v n a q u a n t o a o s n o i v o s , l i v r a n d o - s e deles d e s s e m o d o e conquistando o c a m p o de batalha. Em olhos das das obras mentiroso
t o d o s esses c a s o s o m e n t i r o s o n ã o é d e s m a s c a r a d o a o s p e r s o n a g e n s q u e t o m a m p a r t e n a a ç ã o . Isso é específico de arte. O narrador ou o d r a m a t u r g o desmascaram o diante d o espectador n o teatro o u d o leitor.
N a vida o c o r r e m a i s f r e q ü e n t e m e n t e o u t r a c o i s a : o m e n t i r o s o é d e s m a s c a r a d o e se riem dele e m s u a p r ó p r i a p r e s e n ç a . O riso s u r g e no m o m e n t o d o desmascaramento. Casos semelhantes podem ocorrer t a m b é m n a s o b r a s d e a r t e . U m e x e m p l o p o d e ser o c o n t o d e L e ã o Tolstói sobre o menino que havia comido escondido u m a ameixa. À p e r g u n t a d o p a i s o b r e q u e m t i n h a c o m i d o a a m e i x a ele c a l a , n e g a n d o c o m isso s u a c u l p a . O p a i d i z q u e q u e m tiver c o m i d o a a m e i x a c o m o c a r o ç o , m o r r e r á . E n t ã o o m e n i n o e x c l a m a : " M a s o c a r o ç o , eu c u s p i " . T o d o s d ã o r i s a d a , m a s o m e n i n o c h o r a . C a s o s c o m o este dificilm e n t e n e c e s s i t a m de explicações teóricas. É m a i s difícil explicar a c o m i c i d a d e d e c o n t o s c o m o as a v e n t u r a s d o b a r ã o d e M ü n c h h a u s e n . S c h o p e n h a u e r o s r e c o n d u z à s u a t e o r i a d a " e v i d e n t e falta d e c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e o q u e se p o d e ver e o q u e se p o d e p e n s a r " . O q u e é visível s ã o o s c o n t o s d o b a r ã o , a q u i l o q u e a c o n t e c e . O q u e é p e n s á v e l é a c o n s c i ê n c i a d e s u a i m p o s s i b i l i d a d e . E s s a falta d e c o r r e s p o n d ê n c i a , diz S c h o p e n h a u e r , é q u e s u s c i t a o r i s o . N ó s j á s a b e m o s , e n t r e t a n t o , q u e n e m s e m p r e u m a falta d e c o r r e s p o n d ê n c i a d e s s e t i p o é c ô m i c a
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COMICIDADE E RISO
e m si, m a s , n o q u e c o n s i s t e p r o p r i a m e n t e a c o m i c i d a d e , S c h o p e n h a u e r n ã o é capaz d e explicar. O riso s u s c i t a d o p e l o s r e l a t o s d o b a r ã o de M ü n c h h a u s e n n ã o pertence ao tipo d o riso de z o m b a r i a . A s m e n t i r a s d e K h l e s t a k ó v p e r m i t e m ver o l a d o n e g a t i v o d o i m p o s t o r , a t r a v é s d o d e s m a s c a r a m e n t o ; as d e M ü n c h h a u s e n , a o c o n t r á r i o , s u s c i t a m a s i m p a t i a p a r a c o m o p r o t a g o n i s t a , g r a ç a s a seu c a r á t e r engenhoso. A comicidade de M ü n c h h a u s e n pertence à comicidade d a s p e r s o n a g e n s ( c a r a c t e r e s ) d e q u e t e r e m o s o c a s i ã o d e falar m a i s a d i a n t e . M a s a q u i n ã o se t r a t a a p e n a s d i s s o . N ã o é a p e n a s o t i p o d e M ü n c h h a u s e n q u e é e n g r a ç a d o : seus c o n t o s t a m b é m o s ã o . A m a i o ria d a s b a l e l a s c o n t a d a s p o r ele t e m s u a o r i g e m n o f o l c l o r e . N e l a s o herói surpreende os ouvintes p o r sua capacidade de encontrar u m a s a í d a n a s s i t u a ç õ e s m a i s críticas, M ü n c h h a u s e n , p o r e x e m p l o , r e l a t a ter s a í d o d e u m p â n t a n o p u x a n d o - s e p e l o s c a b e l o s e diz isso c o m t o d a a s e r i e d a d e ( a q u i c o n f i r m a - s e m a i s u m a vez a t e o r i a d e G ó g o l ) . A l g o de parecido encontra-se n o c o n t o maravilhoso russo. U m h o m e m está a f u n d a d o n u m p â n t a n o até o pescoço. Conta-se e m seguida que u m p a t o c o n s t r ó i o n i n h o n a c a b e ç a dele e b o t a os o v o s n o n i n h o . V e m u m lobo e come os ovos. O n a r r a d o r enrola o r a b o do lobo e m seu b r a ç o e o a s s u s t a a o s g r i t o s . O l o b o a s s u s t a d o a t i r a - s e p a r a a frente e o a r r a n c a d o p â n t a n o . Existem p o r é m invencionices de o u t r a o r d e m : nelas n ã o há n e m s o r t e n e m a c h a d o s ; c o n t a - s e , p o r e x e m p l o , d e r i o s d e leite e de m a r g e n s de gelatina, de e n o r m e s legumes crescidos n a h o r t a , de saltos atravessando o m a r r u m o a o o u t r o m u n d o etc. A mentira, nesses c a s o s , n ã o t e m e m vista fins s a t í r i c o s o u d e d e s m a s c a r a m e n t o . N ã o é o mentiroso quem interessa ao n a r r a d o r ou ao ouvinte. O q u e i n t e r e s s a a q u i é a h i s t ó r i a . A h i s t ó r i a (a f á b u l a ) e s t á c o n s t r u í d a sobre um alogismo perfeitamente evidente e manifesto e isto, juntam e n t e c o m o u t r a s causas, é mais d o que suficiente p a r a despertar n o ouvinte u m sorriso de alegria e u m riso de satisfação.
18 Os instrumentos lingüísticos da comicidade
U m a vez d i s p o s t o o m a t e r i a l d e a c o r d o c o m as c a u s a s q u e s u s c i t a m o r i s o , o q u e e m ú l t i m a i n s t â n c i a significa e s t u d a r o s i n s t r u m e n tos d a c o m i c i d a d e , t e m o s a g o r a q u e a m p l i a r o círculo d e n o s s a s o b s e r v a ç õ e s e o c u p a r m o - n o s d o s i n s t r u m e n t o s q u e se e n c o n t r a m n a l í n g u a . É b a s t a n t e e v i d e n t e q u e se t r a t a d e u m c a m p o e n o r m e q u e exigiria pesquisas especiais. C o m o n o s o u t r o s casos, p o r é m , n o s limitar e m o s a m a t e r i a i s r e l a c i o n a d o s , p a r t i c u l a r m e n t e s i g n i f i c a t i v o s . A líng u a n ã o é c ô m i c a p o r si s ó m a s p o r q u e reflete a l g u n s t r a ç o s d a v i d a e s p i r i t u a l d e q u e m f a l a , a i m p e r f e i ç ã o d e seu r a c i o c í n i o . J á v i m o s a n t e r i o r m e n t e c o m o o a l o g i s m o se m a n i f e s t a n o s m o d o s de e x p r e s s ã o . A língua constitui u m arsenal m u i t o rico de instrumentos d e comicidade e de z o m b a r i a . V a m o s examinar r a p i d a m e n t e os mais i m p o r t a n t e s . Deles fazem p a r t e p s trocadilhos (ou c a l e m b u r e s ) , os p a r a d o x o s e a s t i r a d a s d e t o d o t i p o , a eles r e l a c i o n a d a s , b e m c o m o a l g u m a s f o r m a s d e i r o n i a . A l é m d i s s o , t o d a s as q u e s t õ e s d e t i p o lingüístico exigem u m estudo cuidadoso e especial. 1
S o b r e os trocadilhos há m u i t a coisa escrita. N a s estéticas alem ã s eles a p a r e c e m s o b a d e n o m i n a ç ã o d e Witz. E n t r e t a n t o , o t e r m o a l e m ã o t e m a l c a n c e m a i s v a s t o q u e o r u s s o kalambur, proveniente
Traduzimos por "tirada" o termo russo ostrotá, literalmente "agudeza", "argúcia", ou seja, le bon mot dos franceses. Por extensão, também, "chiste", "pilhéria".
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COMICIDADE E RISO
d o f r a n c ê s calembour. C o m a p a l a v r a Witz e n t e n d e - s e a r g ú c i a e m geral. O calembur, p o r sua vez, representa u m caso particular de argúcia. Apesar d a existência de bibliografia considerável, n ã o p o d e m o s dizer q u e o c o n c e i t o d e c a l e m b u r t e n h a sido e x p l i c a d o c o m p l e t a m e n t e . Ibergost, e m seu livro s o b r e o c ô m i c o , traz dele cinco definições diferentes. D e s d e e n t ã o s a í r a m t r a b a l h o s especiais s o b r e a argúcia e s o b r e o c a l e m b u r ( K u n o V i s c h e r , F r e u d , J o l l e s ) , e o b r a s g e r a i s em que são d a d a s igualmente definições desse conceito. N ã o elencar e m o s essas d e f i n i ç õ e s , m a s n o s d e t e r e m o s a p e n a s n a s s o v i é t i c a s mais recentes. Eis a definição d a d a por Bóriev: " O c a l e m b u r é u m j o g o de p a l a v r a s . O c a l e m b u r é u m dos tipos de a r g ú c i a . É u m a argúcia que nasce d o e m p r e g o de i n s t r u m e n t o s p r o p r i a m e n t e lingüíst i c o s " (13, 225). E s t a definição p r o v é m de u m a e l a b o r a ç ã o insufic i e n t e d o p r o b l e m a . É fácil n o t a r q u e o q u e se d á a q u i é m a i s u m a característica q u e u m a definição. O conceito de calembur é reconduz i d o a o m a i s g e r a l d e a r g ú c i a ; isso é c o r r e t o , m a s o p r ó p r i o c o n c e i t o d e a r g ú c i a p e r m a n e c e s e m e x p l i c a ç ã o , tal c o m o o c o n c e i t o d e c a l e m b u r . O c a l e m b u r s u r g e d o e m p r e g o d e m e i o s p r o p r i a m e n t e lingüístic o s , m a s d e q u a i s d e l e s se t r a t a n ã o f i c a m o s s a b e n d o . Schérbina acha q u e a característica fundamental d o calembur é a n a t u r a l i d a d e e a clareza da i n t e n ç ã o . Os traços mais gerais d o c a l e m b u r , s e g u n d o ele, s e r i a m os s e g u i n t e s : " O p r i n c í p i o d o c o n traste, a naturalidade e clareza da intenção, a agudeza e sinceridade d a p r ó p r i a i d é i a " (37, 25). E s t a definição é d e m a s i a d o hábil p a r a p o d e r ser a c e i t a . T u d o isso n o s o b r i g a , a n t e s d e p a s s a r p a r a a a n á l i s e d o m a t e rial, a definir o q u e nós e n t e n d e m o s p o r c a l e m b u r . Além das o b r a s teóricas existem t a m b é m os dicionários em que o conceito de calembur é definido com simplicidade e sem rebusc a m e n t o s . N o Dicionário da língua russa d e S. I. Ó j e g o v e n c o n t r a se a s e g u i n t e d e f i n i ç ã o : " O c a l e m b u r é u m a b r i n c a d e i r a b a s e a d a n o emprego cômico de palavras semelhantes quanto ao som, mas diferentes q u a n t o a o significado". 2
N o Dicionário de palavras estrangeiras* d e I. V . L i ó k h i n e F . N . P e t r ó v p o d e - s e ler: " O c a l e m b u r é u m j o g o d e p a l a v r a s , b a s e a d o em sua semelhança fônica e na diferença de s e n t i d o " . A q u i n ã o é dito t u d o , m a s a idéia básica aparece claramente expressa. Essencial-
2
[Slovar rússkovo
3
[Slover inostránmkh
iazikd]. slov].
I
OS INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS DA COMICIDADE
mente, a definição reduz-se à c o m p r e e n s ã o d o calembur c o m o
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o
u s o d o s e n t i d o p r ó p r i o d e u m a p a l a v r a , e m l u g a r d e seu s e n t i d o figur a d o . E s t a c o m p r e e n s ã o , p o r é m , n ã o é aceita p o r alguns teóricos. " O limite entre significado p r ó p r i o e figurado das palavras é conv e n c i o n a l e m ó v e l " , d i z S c h é r b i n a ( 3 7 , 2 8 ) . S e g u n d o ele, é difícil aceitar " a contraposição do significado p r ó p r i o e do f i g u r a d o " das p a l a v r a s , c o m o f u n d a m e n t o d o c a l e m b u r ( 3 7 , 2 9 ) . E l e critica V. V. V i n o g r í d o v , q u e , em seu artigo s o b r e G ó g o l , vale-se j u s t a m e n t e desta contraposição. /o
fato de q u e o limite e n t r e significado p r ó p r i o e figurado
( t r a n s p o s t o ) n e m s e m p r e é n í t i d o é v e r d a d e , m a s este n ã o é u m a r g u m e n t o decisivo c o n t r a a definição c o s t u m e i r a
do
calembur.
E m n o s s a o p i n i ã o tal d e f i n i ç ã o é v á l i d a e r e s i s t e à p r o v a d o m a t e r i a l . D o p o n t o d e vista d e n o s s a t e o r i a d o c ô m i c o , e s s a d e f i n i ç ã o do calembur permite explicá-lo. Existem palavras que possuem dois ou mais significados. A l g u n s significados t ê m u m sentido a m p l o , de c e r t o m o d o geral, a b s t r a t o , e o u t r o s o t ê m m a i s restrito, concret o , a p l i c a d o . E s t e ú l t i m o c o s t u m a ser d e f i n i d o , d e m o d o n ã o m u i t o feliz, c o m o s i g n i f i c a d o " l i t e r a l " d a p a l a v r a . T O c a l e m b u r , o u j o g o de p a l a v r a s / ocorre q u a n d o u m interlocutor compreende a palayra e m seu s e n t i d o a m p l o o u g e r a l e o o u t r o s u b s t i t u i esse s i g n i f i c a d o p o r a q u e l e m a i s r e s t r i t o o u l i t e r a l ; c o m isso ele s u s c i t a o r i s o , n a medida em que anula o argumento d o interlocutor e mostra sua inconsistência. D o p o n t o de vista de nossa teoria d o c ô m i c o , ' a c o m i c i d a d e d o j o g o d e p a l a v r a s se d i f e r e n c i a , e m p r i n c í p i o , d e t o d o s o s outros aspectos da comicidade, m a s dela constitui a p e n a s u m caso p a r t i c u l a r ^ ( A n a l o g a m e n t e a o fato de que a i m p r e s s ã o c ô m i c a , nos o u t r o s casos, o c o r r e devido à transferência d o a t o espiritual d a ativ i d a d e h u m a n a p a r a as f o r m a s e x t e r n a s d e s u a m a n i f e s t a ç ã o , a s s i m n o c a l e m b u r o r i s o é d e s p e r t a d o q u a n d o e m n o s s a c o n s c i ê n c i a o sign i f i c a d o m a i s g e r a l d a p a l a v r a p a s s a a ser s u b s t i t u í d o p e l o significado exterior, "literal".) (o
calembur pode ocorrer involuntariamente,; mas pode tam-
b é m ser c r i a d o d e p r o p ó s i t o e, n e s t e c a s o , r e q u e r u m t a l e n t o p a r t i c u l a r . D a r e m o s d o i s o u t r ê s e x e m p l o s s e m f a z e r deles u m a a n á l i s e teórica, n e m tentar classificá-los. Os tipos de c a l e m b u r são n u m e r o sos e v a r i a d o s . Conversação ouvida casualmente: — I s t o , o q u e é? — Caviar de taverna.
122
COMICIDADE E RISO
— H u m . . . E desde q u a n d o as a b o b r i n h a s d ã o c a v i a r ? O filho d e u m j o r n a l i s t a d i z d o p r ó p r i o p a i :
4
— D i z e m q u e m e u p a i t e m a p e n a ligeira. Q u a n d o o pai c o m p r a u m a m á q u i n a d e e s c r e v e r ele p e r g u n t a : — E a g o r a v ã o d i z e r q u e p a p a i t e m u m a m á q u i n a ligeira? N o l i v r o d e S r e t ê n s k i (33) m o s t r a - s e c o m o as c r i a n ç a s r e p r o d u z e m e i n t e r p r e t a m a c o n v e r s a ç ã o d o s a d u l t o s : " O p a p a i vai a t r á s d e q u a l q u e r r a b o d e s a i a " e " m a m ã e a g o r a s e r r a ele t o d o d i a " . N o d i t o : " v o c ê vê o m u n d o c o m ó c u l o s c o r - d e - r o s a " a p a l a vra " ó c u l o s " é u s a d a em sentido figurado e não p r o v o c a o riso. C a s o , p o r é m , se d i g a : " v o c ê vê o m u n d o c o m u m p i n c e n ê c o r - d e r o s a " , isso s o a r á c ô m i c o p e l o s m o t i v o s e x p o s t o s h á p o u c o . 5
A capacidade de encontrar e de aplicar rapidamente o sentido e s t r i t o e c o n c r e t a m e n t e literal d a p a l a v r a e d e s u b s t i t u i r p o r ele o mais a m p l o e geral q u e está n a m e n t e d o interlocutor constitui u m tipo de a r g ú c i a . A argúcia r e q u e r certo t a l e n t o . Tchernichévski define a argúcia c o m o sendo u m a a p r o x i m a ç ã o r á p i d a e inesperada de dois objetos. Essa capacidade requer esperteza. Sabe-se q u e Byron foi m u i t o e s p i r i t u o s o . N u m a c a r t a a T h o m a s M o o r e d a t a d a d e 28 d e a b r i l d e 1821 ele a s s i m e s c r e v e : " L a d y N o e l e s t e v e d e f a t o g r a v e m e n t e d o e n t e , m a s , c o n s o l e - s e , a g o r a ela e s t á d e n o v o g r a v e m e n t e b e m " (6, 2 0 3 ) . U m j o v e m a l u n o dirige-se a o C e n t r o d e S e r v i ç o s e d i z : " T i t i a , f a ç a m i n h a l i ç ã o d e c a s a " (Krokodil, 3 0 / V , 1965). E m t o d o s esses casos, o c a l e m b u r n ã o tem a finalidade de expor n e n h u m defeito, é a p e n a s u m a b r i n c a d e i r a i n o c e n t e . Se e x a m i n a r m o s , p o r é m , c o m atenção cada caso isolado, veremos que os defeitos existem, e m b o r a p o u c o perceptíveis à primeira vista.j A s s i m , n o t r o c a d i l h o de Byron " L a d y N o e l e s t á d e n o v o g r a v e m e n t e b e m " existe u m a a l u s ã o a o caráter agressivo dessa senhora, q u e , p o r sinal, era a sogra do próprio B y r o n . A c o m i c i d a d e e a i n t e n ç ã o satírica s u b e n t e n d i d a s desse calembur são claras, mesmo sem comentário. Além de brincadeira inocente e b e m - h u m o r a d a , o calembur | p o d e tornar-se u m a a r m a afiada e e x t r e m a m e n t e eficiente. C o m o o u t r o s a s p e c t o s d o u s o d e z o m b a r i a , ele é c a p a z d e " p o d a r " u m a p e s s o a . Se for d i r i g i d o c o n t r a a l g o q u e n ã o m e r e c e o e s c á r n i o ele é d e s l o c a d o e a d q u i r e u m caráter ofensivo. P o r este m o t i v o alguns
4
5
O trocadilho baseia-se na palavra kabatchók, que significa ao mesmo tempo "taverna" e "abobrinha". O verbo "serrar", em russopilit', também significa "repreender continuamente".
9
OS INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS DA COMICIDADE
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teóricos e estudiosos t ê m visto o c a l e m b u r c o m o algo negativo e m e s m o depreciativo. A s s i m , o filósofo K u n o Fischer diz q u e
ao
calembur "falta o órgão do respeito". Hecker acha que o calembur carece da participação no sentido moral. M e s m o Goethe
afirma
em seus aforismos: " S e r espirituoso n ã o é absolutamente u m a arte se n ã o s e n t e s r e s p e i t o p o r c o i s a a l g u m a " . O calembur, c o n f o r m e indicam os materiais q u e r e u n i m o s , n ã o p o d e s e r , e n t r e t a n t o , n e m m o r a l n e m i m o r a l e m si m e s m o : t u d o d e p e n d e d o m o d o c o m o ele é e m p r e g a d o , d o a l v o q u e ele v i s a .
(
O c a l e m b u r dirigido contra os aspectos negativos da vida torna-se u m a a r m a de sátira afiada e precisa. Cita-se freqüentemente o episódio acontecido com Maiakóvski que, de fato, é muito significativo. Uma
vez, antes d a
Revolução,
durante uma
apresentação
p ú b l i c a d o p o e t a , u m o u v i n t e l e v a n t o u - s e e s a i u e m sinal d e p r o t e s t o . Maiakóvski i n t e r r o m p e u sua leitura e disse: — Q u e m é a q u e l e q u e e s t á s a i n d o d a fila? A e x p r e s s ã o " q u e e s t á s a i n d o d a f i l a " significa " q u e se s o b r e s s a i " , " q u e é melhor d o que os o u t r o s " . P o r é m , n a intervenção de Maiakóvski, a palavra " f i l a " é usada no sentido próprio e restrito d o t e r m o : a fila d e c a d e i r a s d e u m a u d i t ó r i o . O c a l e m b u r c o s t u m a aniquilar, demolir o a r g u m e n t o do interlocutor. A pessoa que saiu d u r a n t e a apresentação n ã o havia dito n a d a , m a s seu gesto pretend i a ser d e r e p u l s a e m r e l a ç ã o a M a i a k ó v s k i . C h a m a n d o a a t e n ç ã o p a r a a f o r m a e x t e r i o r d e s s a h o s t i l i d a d e , M a i a k ó v s k i d e m o l i u seu sentido intrínseco. Ficou realçada a v a c u i d a d e interior e insignificância d o o p o s i t o r . P a r a t a n t o c o n t r i b u i u a i r o n i a c o n t i d a n o j u í z o d e M a i a k ó v s k i , l o u v a n d o - o c o m as p a l a v r a s ( " a q u e l e q u e está s a i n d o d a fila") e atribuiu-lhes o significado o p o s t o . A p ó s esperar dois o u três s e g u n d o s , M a i a k ó v s k i acrescentou: " f o i fazer a b a r b a " , d a n d o - l h e o golpe de misericórdia por colocar e m evidência certo d e f e i t o e x t e r i o r d e seu a d v e r s á r i o ( n ã o e s t a v a b a r b e a d o ) , q u e r e p e n t i n a m e n t e se t o r n a p a t e n t e a t o d o s e r e f o r ç a a a v a l i a ç ã o n e g a t i v a . "Nem
t o d o s o s g e n e r a i s s ã o c h e i o s (polni)
por
natureza"
( K o z m á P r u t k ó v ) . E s t e c a l e m b u r de K o z m á P r u t k ó v baseia-se n o f a t o d e q u e polni
general,
de a c o r d o c o m os graus da hierarquia
militar czarista, indicava o grau m á x i m o de g e n e r a l . Só que t a m b é m significa " g o r d o " , e a s u b s t i t u i ç ã o d e u m c o n c e i t o
polni por
o u t r o a d q u i r e u m matiz cômico e satírico: o leitor imagina imediat a m e n t e u m g e n e r a l c z a r i s t a g o r d o , i m p o n e n t e e c h e i o d e si.
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COMICIDADE E RISO
O e m p r e g o d o j o g o d e p a l a v r a s o u a c o m p r e e n s ã o literal d o s i g n i f i c a d o d a s p a l a v r a s p a r a f i n a l i d a d e s s a t í r i c a s e n c o n t r a - s e freq ü e n t e m e n t e n o f o l c l o r e . Q u a s e i n t e i r a m e n t e n i s s o se b a s e i a m o s e p i s ó d i o s d o l i v r o p o p u l a r a l e m ã o s o b r e Till E u l e n s p i e g e l
onde
encontramos, ao m e s m o tempo, o logro d o patrão. Assim, a ordem de " e n g r a x a r a c a r r u a g e m " é executada pelo e m p r e g a d o de forma c o m p l e t a m e n t e l i t e r a l . Till r e c o b r e d e g o r d u r a n ã o a p e n a s o s e i x o s , m a s t a m b é m o a s s e n t o d e s e d a o n d e irá s e n t a r o a m o . N o f o l c l o r e r u s s o t a m b é m e n c o n t r a m - s e m o t i v o s s e m e l h a n t e s , e m b o r a eles n ã o constituam u m ciclo, c o m o ocorreu na A l e m a n h a . P r ó x i m o d o s t r o c a d i l h o s s i t u a m - s e o s p a r a d o x o s , i s t o é, a q u e las s e n t e n ç a s e m q u e o p r e d i c a d o c o n t r a d i z o s u j e i t o , o u a d e f i n i ç ã o o q u e e s t á p a r a ser d e f i n i d o . E x e m p l o : " T o d o s o s i n t e l i g e n t e s s ã o t o l o s e a p e n a s o s t o l o s s ã o i n t e l i g e n t e s " . À p r i m e i r a vista tais sentenças parecem desprovidas de sentido, mas certo sentido pode ser a c h a d o . À s v e z e s p o d e - s e t e r a i m p r e s s ã o d e q u e o p a r a d o x o encerra p e n s a m e n t o s m u i t o sutis. O s c a r Wilde, por e x e m p l o , era m e s t r e n i s s o . Seu a r t i g o Sobre
a decadência
da mentira
é permeado
pelo p a r a d o x o de que cada verdade é mentirosa, e que apenas a m e n t i r a é v e r d a d e i r a . O q u a n t o às v e z e s s ã o p r ó x i m o s p a r a d o x o s e trocadilhos aparece no exemplo seguinte: — T o d o s dizem q u e Charles é u m terrível h i p o c o n d r í a c o . M a s o q u e significa i s t o , d e f a t o ? — H i p o c o n d r í a c o é o h o m e m q u e se sente b e m s o m e n t e q u a n d o se s e n t e m a l . S o b a f o r m a d e p a r a d o x o p o d e m ser e x p r e s s o s t a m b é m p e n s a m e n t o s sarcásticos e d e escárnio, c o m o o de T a l l e y r a n d : ' | A língua, nos é d a d a para esconder nossos p e n s a m e n t o s " . / H á p a r a d o x o s i n v o l u n t á r i o s , c u j a c o m i c i d a d e se b a s e i a n a l g u m alogismo implícito. N o c o n t o d e T c h é k h o v , Uma
tola,
ou o capitão
aposentado,
u m c a p i t ã o a p o s e n t a d o c h a m a a c a s a m e n t e i r a . O q u e ele n e c e s s i t a é u m a e s p o s a q u e n ã o seja b o n i t a , n e m r i c a , n e m s á b i a m a s s i m tola. " U m a tola o a m a r á , o respeitará e saberá c o m q u e m está lidando." "Tolas há muitas" — responde a casamenteira.
"Mas
t o d a s e l a s s ã o t o l a s i n t e l i g e n t e s [...] c a d a t o l a t e m seu t i n o . O s e n h o r q u e r u m a q u e seja t o l a , t o l a ? " U m p a r a d o x o p a r e c i d o c o m esse a p a r e c e n u m o u t r o c o n t o d e T c h é k h o v , A filha
do conselheiro
de comércio.
U m general e um
conselheiro de comércio estão b e b e n d o j u n t o s . O conselheiro começa
OS INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS DA COMICIDADE
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a falar c o i s a s s e m n e x o e o g e n e r a l lhe d i z : " P a r e ! Q u a l q u e r t o l i c e t e m seu d e c o r o " . E m c a s o s c o m o e s t e o s p a r a d o x o s s ã o i n v o l u n t á r i o s . O s p a r a d o x o s i n t e n c i o n a i s l e v a m a rir se a c o n t r a p o s i ç ã o é i n e s p e r a d a . Eles constituem u m dos tipos d a pilhéria: " E l e tem u m g r a n d e f u t u r o n a s c o s t a s " . E s t e p a r a d o x o e x p r i m e d e r r i s ã o e os p a r a d o x o s desse tipo p o d e m ter u m a função satírica. E n c o n t r a m o s u m e x e m p l o deles e m A história de uma cidade d e S a l t i k ó v - S c h e drin (no capítulo " G u e r r a p a r a a instrução"): " N e s t e m e s m o t e m p o , c o m o d e b r i n c a d e i r a , e s t o u r o u a r e v o l u ç ã o n a F r a n ç a e ficou c l a r o p a r a t o d o s q u e a ' i n s t r u ç ã o ' s ó é útil q u a n d o e l a n ã o t e m u m c a r á ter i n s t r u í d o " . 6
P r ó x i m a d o p a r a d o x o está a ironia. Sua definição n ã o apres e n t a m u i t a s d i f i c u l d a d e s . Se n o p a r a d o x o c o n c e i t o s q u e se e x c l u e m m u t u a m e n t e são reunidos apesar de sua incompatibilidade, na ironia e x p r e s s a - s e c o m as p a l a v r a s um c o n c e i t o m a s se s u b e n t e n d e ( s e m expressá-lo p o r palavras) u m o u t r o , c o n t r á r i o . E m p a l a v r a s diz-se algo positivo, p r e t e n d e n d o , ao contrário, expressar algo negativo, o p o s t o a o q u e foi d i t o . A i r o n i a r e v e l a a s s i m a l e g o r i c a m e n t e o s d e f e i t o s d a q u e l e ( o u d a q u i l o ) d e q u e se f a l a . E l a c o n s t i t u i u m d o s aspectos da z o m b a r i a e nisto está sua c o m i c i d a d e . O f a t o d e o d e f e i t o vir a ser d e f i n i d o p o r m e i o d a q u a l i d a d e q u e se lhe o p õ e , c o l o c a e m e v i d ê n c i a e r e a l ç a o p r ó p r i o d e f e i t o i A i r o n i a é p a r t i c u l a r m e n t e e x p r e s s i v a n a l i n g u a g e m falada^ q u a n d o faz u s o d e u m a p a r t i c u l a r e n t o a ç ã o e s c a r n e c e d o r a . A s formas d a ironia, na vida c o m o na literatura, são m u i t o v a r i a d a s . D a r e m o s aqui a p e n a s alguns e x e m p l o s . Ca^os clássicos d e l a p o d e m ser e n c o n t r a d o s e m G ó g o l . N a n o v e l a s o b r e a d i s p u t a de Ivan Ivánovitch c o m Ivan Nikíforovitch assim é descrita a praça de M í r g o r o d e suas poças: " P o ç a e x t r a o r d i n á r i a ! U m a d a q u e l a s q u e você n u n c a viu! Ela t o m a quase q u e a p r a ç a inteira. Belíssima p o ç a ! " É t í p i c o a q u i o t o m e x c l a m a t i v o , p r ó p r i o d a i r o n i a . E l a é, c o n t u d o , suficientemente clara m e s m o sem esta e n t o n a ç ã o . E m A avenida Niévski d e G ó g o l e n c o n t r a - s e e s t a f r a s e : " à s vezes a t r a v e s s a m - n a m u j i q u e s a p r e s s a d o s p a r a o t r a b a l h o , c o m as b o t a s t ã o s u j a s d e cal q u e n e m o c a n a l E k a t e r í n s k i , c o n h e c i d o p o r s u a l i m p e z a , seria c a p a z de l i m p á - l a s " . 7
U m a i r o n i a z o m b a d o r a p o d e ser e n c o n t r a d a f r e q ü e n t e m e n t e n a s c a r t a s d e T c h é k h o v . Eis u m e x e m p l o : " N o s s a o b r a e m p r o l d o s
6
7
Está implícito aqui o jogo com os dois significados d o termo prosveschênie, quer dizer, ao mesmo tempo, "instrução" e "iluminismo". Op. cit., p. 4.
que
126
COMICIDADE E RISO
esfomeados prossegue a d m i r a v e l m e n t e ; e m Voronej j a n t a m o s em casa do g o v e r n a d o r e cada noite fomos ao t e a t r o " . J á a u t i l i z a ç ã o s a t í r i c a d a i r o n i a verifica-se m u i t o n o f o l c l o r e . No diálogo " O patrão e A f o n k a " , o patrão interroga um mujique sobre sua aldeia: Patrão. C o m o é, s ã o ricos m e u s m u j i q u e s ? Afonka. R i c o s , s e n h o r ! Há um m a c h a d o a c a d a sete q u i n t a i s e m e s m o assim sem cabo.
Neste t o m continua o diálogo inteiro. A f o n k a z o m b a d o p a t r ã o e o faz d e b o b o . N o f o l c l o r e r u s s o h á v á r i a s c e n a s c o m o e s t a . F i n g i n d o dizer q u e " e s t á t u d o b e m " o s e r v o faz c o m q u e o p a t r ã o s a i b a q u e ele se e n c o n t r a e m e x t r e m a m i s é r i a * . E m todos os casos que reportamos de calembur, p a r a d o x o e ironia, a comicidade depende em igual m e d i d a t a n t o dos meios p r o p r i a m e n t e l i n g ü í s t i c o s q u a n t o d a q u i l o q u e eles e x p r i m e m . P o r é m , p a r a as f i n a l i d a d e s c ô m i c a s p o d e ser u t i l i z a d a t a m b é m a l í n g u a e n q u a n t o t a l , o u seja, s u a e s t r u t u r a f ô n i c a . Isso significa q u e a c o m i c i d a d e se r e a l i z a d e s v i a n d o - s e a a t e n ç ã o d o c o n t e ú d o d o d i s c u r s o p a r a as f o r m a s e x t e r i o r e s d e s u a e x p r e s s ã o . C o m isso a l í n g u a p e r d e o s i g n i f i c a d o . É p r e c i s o , a esse r e s p e i t o , m e n c i o n a r a q u e l e f e n ô m e n o q u e se p o d e r i a c h a m a r o " p r o c e d i m e n t o d a f i s i o l o g i z a ç ã o " d o d i s c u r s o ; ele c o n s i s t e n o f a t o d e q u e o d i s c u r s o d e q u e m fala é apresentado c o m o que desprovido de sentido e constituído apenas d e s o n s , p a r t í c u l a s o u p a l a v r a s d e s a r t i c u l a d a s . E m si, s ó e s t e f e n ô meno de extrema pobreza do discurso não é cômico, mas j u n t o com outros procedimentos reforça a comicidade d a descrição de personagens isoladas. A p e r d a de sentido d o discurso realiza-se intensific a n d o a a t e n ç ã o s o b r e o p r o c e s s o , a e x p e n s a s d e seu c o n t e ú d o . N a p e ç a O inspetor geral o m é d i c o d e d i s t r i t o K h r i s t i a n I v á n o v i t c h G i b n e r r e s p o n d e c o m u m m u g i d o a t o d a s as p a l a v r a s q u e lhe são dirigidas ( " E m i t e u m som e m parte parecido c o m a letra i e em parte c o m a letra / o " ) , p o r q u e n ã o conhece o russo. De A k á k i Akákievitch, G ó g o l diz: " É preciso saber que Akáki Akákievitch se e x p r e s s a p r i n c i p a l m e n t e p o r m e i o d e p r e p o s i ç õ e s , a d v é r b i o s e, e n f i m , c o m p a r t í c u l a s q u e d e c i d i d a m e n t e n ã o t ê m n e n h u m significad o " . U m a língua estropiada caracteriza o falante. P o d e m o s lembrar
" Cf. A . N. Afanássiev, Contos populares russos [Naródnie rússkie skázki], v. III, 1940 (1957), n. 414; veja-se também o comentário de P. N. Berkov em seu livro O drama popular russo dos séculos XVIII-XX [Rússkaia noródnaia drama XVIII-XX vekóv]. Moscou, 1953, p. 317-8.
OS INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS D A COMICIDADE
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a v e l h a A n f i s s a T í k h o n o v n a n a c o m é d i a d e O s t r ó v s k i Lobos e ovelhas, q u e n ã o c o n s e g u e n u n c a e x p l i c a r n a d a e se e x p r i m e a p e n a s c o m as p a l a v r a s " b e m , d e p o i s . . . e u , d e p o i s . . . " o u " o r a , d e p o i s . . . bastante d e p o i s " etc. A isto c o r r e s p o n d e a esqualidez e a p o b r e z a d o discurso q u e c a r a c t e r i z a m os falantes. O discurso, nestes casos, é completamente articulado e coeso, mas totalmente desprovido de conteúdo. " N o verão há m u i t a s m o s c a s , s e n h o r i t a " , diz C h p o n k a , q u e a t i t i a d e i x o u a sós c o m u m a s e n h o r i t a c o m a q u a l ela q u e r q u e ele se c a s e . " U m número e n o r m e " , responde a senhorita e já não conseg u e m dizer mais n a d a . U m a c e n a s e m e l h a n t e d e s e n r o l a - s e e m O casamento entre Agáfia Tíkhonovna e Podkoléssin, a quem Kotchkáriev quer casar. N e n h u m d o s d o i s s a b e o q u e d i z e r . A c o n v e r s a l i m i t a - s e a frases c o m o : " E a s e n h o r a , q u a l é a flor d e q u e m a i s g o s t a ? " ; " Q u e m s a b e c o m o s e r á o v e r ã o ? " e t c . M a s A g á f i a T í k h o n o v n a fica m u i t o satisfeita c o m o e n c o n t r o : " C o m o é a g r a d á v e l falar c o m e l e " ; " E u bem q u e gostaria de ouvi-lo por mais t e m p o " . N a l i t e r a t u r a s o v i é t i c a este p r o c e d i m e n t o d e c a r a c t e r i z a ç ã o é u t i l i z a d o c o m e f e i t o c e r t e i r o p o r Ilf e P e t r ó v n o r o m a n c e As doze cadeiras ( c a p . X I I ) . A l i é d e s c r i t a u m a m o c i n h a q u e se c o n s i d e r a irresistível e se c h a m a I ó l o t c h k a - l i n d o i é d k a . S e u v o c a b u l á r i o c o n siste e m a p e n a s t r i n t a p a l a v r a s e e x p r e s s õ e s q u e se a p l i c a m n o s c a s o s mais variados d a existência. 8
E n t r e essas palavras e expressões usadas a t o r t o e a direito, a propósito ou sem propósito, estão: " e n g r o s s e " , " o h , o h " , "céleb r e " , " s o m b r i a m e n t e " , " n ã o m e ensine a viver", " i m a g i n e ! " , " s u a s costas estão t o d a s b r a n c a s " , e outras. O o p o s t o deste f e n ô m e n o é a eloqüência vazia, em q u e a p o b r e z a d e c o n t e ú d o se e s c o n d e n ã o n a f a l t a d e p a l a v r a s , m a s e m seu e x c e s s o , o n d e o p e n s a m e n t o a f u n d a . E i s c o m o G ó g o l d e s c r e v e a e l o q ü ê n c i a de Ivan I v á n o v i t c h : " M e u D e u s , c o m o fala! Esta sens a ç ã o s ó p o d e ser c o m p a r a d a à q u e l a d e fazer c a f u n é o u de f a z e r cócegas c o m u m d e d o na planta d o p é " . A q u i , o processo d o disc u r s o p r o d u z , p a r a q u e m fala e q u e m o u v e , u m p r a z e r f i s i o l ó g i c o que prescinde do conteúdo. A e l o q ü ê n c i a d o t r a p a c e i r o U t c c h í t c l c m Os jogadores serve de c o r t i n a de f u m a ç a p a r a esconder sua safadeza.
Literalmente: Pinheirinho-comedor-de-gente.
1M
COMICIDADE E RISO
A o d o m í n i o d a c o m i c i d a d e r e a l i z a d a a t r a v é s d e m e i o s lingüísticos pertence a q u e l a q u e surge d o e m p r e g o dos mais v a r i a d o s jargões profissionais ou de casta. Nestes casos a comicidade n ã o é apenas l i n g ü í s t i c a . E l a é a c o m p a n h a d a , m u i t a s vezes, p o r a q u e l e t i p o q u e j á vimos no capítulo onde t r a t a m o s d a comicidade das diferenças. U m discurso e s t r a n h o ou insólito distingue u m a pessoa das outras, tal c o m o o f a z e m u m a r o u p a e s q u i s i t a o u u m j e i t o t o d o e s p e c i a l e t c . A língua ou o j a r g ã o de u m a casta, d o p o n t o de vista de q u e m n ã o p e r t e n c e a ela, s o a c o m o u m c o n j u n t o d e p a l a v r a s i n c o m p r e e n s í v e i s e d e s p r o v i d a s d e s e n t i d o e, às v e z e s ( n a s c o m é d i a s ) , e l a s s ã o realmente desprovidas de sentido. U m p r o c e d i m e n t o deste gênero tem f r e q ü e n t e m e n t e u m m a t i z s a t í r i c o . E l e j á se e n c o n t r a n o s p r i m e i r o s clássicos d a d r a m a t u r g i a e u r o p é i a . As alegres comadres de Windsor, de Shakespeare, c o m e ç a c o m a cena em que u m juiz de p a z e u m p a d r e se q u e i x a m u m a o o u t r o d e Falstaff, e o j u i z se e x p r e s s a n u m a l í n g u a j u r í d i c o - c a r t o r i a l , r e c h e a n d o a fala c o m t e r m o s j u r í d i c o s d o s q u a i s n e m ele m e s m o s a b e o s i g n i f i c a d o e q u e u s a a e s m o . J á o p a d r e t r a d u z t o d o s o s a c o n t e c i m e n t o s e m c o n c e i t o s religiosos e se e x p r e s s a n o j a r g ã o c o r r e s p o n d e n t e . M o l i è r e d e s c r e v e à s vezes o s m é d i c o s e o s o b r i g a a a d o t a r u m a língua incompreensível cheia de palavras latinas, c o m o no caso d o falso m é d i c o , u m c a m p o n ê s d i s f a r ç a d o d e d o u t o r , q u e d e m e d i c i n a n ã o e n t e n d e a b s o l u t a m e n t e n a d a (Médico à força). P o r trás d e seu l a t i m " d o u t o r a i " e s c o n d e - s e o v a z i o , a i g n o r â n c i a d a m e d i c i n a . U m a d a s m a i s b r i l h a n t e s p a r ó d i a s d a l i t e r a t u r a r u s s a d a linguagem burocrática é a denúncia que o Ivan Ivánovitch de Gógol apresenta a o tribunal do distrito de Mírgorod contra Ivan Nikíforov i t c h : a s i n t a x e e o e s t i l o c a r t o r i a l a l t e r n a m - s e a q u i c o m as p a l a v r a s i n j u r i o s a s q u e ele a c r e s c e n t a e r e v e l a m t o d o o a s p e c t o i n t r i g a n t e e m e s q u i n h o d o c a r á t e r de Ivan Nikíforovitch. U m a o u t r a a c e p ç ã o t e m a c r ô n i c a d e T c h é k h o v Muita papelada ( o u Pesquisa no arquivo). A q u i n ã o se t r a t a d a r i d i c u l a r i z a ç ã o d e u m a p e s s o a , m a s d a c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e o stdrosta d a aldeia, o p r e s i d e n t e d a a d m i n i s t r a ç ã o d i s t r i t a l d o zemstvo , o delegado d e p o l í c i a , o m é d i c o d o zemstvo, o mestre-escola e o inspetor das instituições escolares particulares sobre o f e c h a m e n t o da escola devido à escarlatina. Este esboço é u m a sátira da b u r o c r a c i a . C o m o o p r ó p r i o T c h é k h o v e r a m é d i c o e se o c u p a v a d e e s c o l a s r u r a i s , p o d e m o s crer q u e t u d o a q u i é real e v e r d a d e i r o . 9
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9
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Stárosta: " a n c i ã o " , também usado com o sentido de " o chefe do grupo". Zemstvo: conselho autônomo local com certos direitos próprios, na Rússia czarista.
OS INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS D A COMICIDADE
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T a m b é m a l í n g u a d o s á b i o p o d e ser p a r o d i a d a . E m Os frutos da instrução T o l s t ó i p a r o d i a u m p r o f e s s o r q u e , u t i l i z a n d o u m a ling u a g e m rebuscada e culta, justifica o espiritismo. N o c o n t o de Tchék h o v Ivan Matviéitch, u m conhecido cientista russo dita u m artigo a seu secretário: " A essência está n o fato de q u e , vírgula... de q u e a l g u m a s , c o m o d i z e r , f o r m a s b á s i c a s . . . e s c r e v e u ? as f o r m a s s ã o d e t e r m i n a d a s unicamente pela essência m e s m a daqueles princípios... vírgula... q u e e n c o n t r a m nelas sua p r ó p r i a expressão e s o m e n t e n e l a s p o d e m se e n c a r n a r " . O s e c r e t á r i o d e s t e c i e n t i s t a é u m r a p a z n o b r e e s i m p l e s , q u e , p o r é m , c o n t a c o m t a n t o i n t e r e s s e c o m o se caçam tarantulas e qualquer o u t r o caso de sua própria vida, que o estudioso esquece que está d i t a n d o : a vida é mais interessante e mais i m p o r t a n t e q u e a ciência q u e o sábio representa. N o c o n t o d e T c h é k h o v Um matrimônio com general (refeito m a i s t a r d e c o m o u m sketch p a r a o p a l c o c o m o n o m e d e O matrimônio), u m g e n e r a l c o n v i d a d o p a r a as n ú p c i a s r e s u l t a n ã o ser g e n e ral c o i s a a l g u m a , m a s m a r i n h e i r o a p o s e n t a d o d e n o m e R e v u n o v K a r a ú l o v . E l e e n s u r d e c e o s c o n v i d a d o s c o m as l e m b r a n ç a s d o s t e m pos em que era c o m a n d a n t e . O conto é salpicado de termos especiais i n c o m p r e e n s í v e i s p a r a o s p r e s e n t e s , d o t i p o " e s c o t a s d e m e s t r a " , " a d r i ç a s " , " b r a ç o s " , " t r o c h e s " , " m a n t e s " . O título " U m m a t r i m ô n i o c o m g e n e r a l " foi a t r i b u í d o p e l o e d i t o r a o c o n t o q u e Tchékhov havia c h a m a d o " U m a pequena c h a n t a g e m " . À"comicidade d a tecnologia profissional, às vezes c o r r e s p o n d e , em alguns casos, a comicidade involuntária d a terminologia científica. O s e s t u d i o s o s q u e r e p a r a m a p e n a s n o s e n t i d o d a s p a l a v r a s n ã o n o t a m o s o m delas. E m c o m p e n s a ç ã o , t o d o s os outros que n ã o e n t e n d e m seu s e n t i d o r e p a r a m a p e n a s n o s o m . C o m isso as p a l a v r a s t o r n a m - s e r i d í c u l a s . T a m b é m os e r r o s d e l í n g u a p o d e m ser c ô m i c o s , se eles d e s n u d a m u m d e f e i t o d o p e n s a m e n t o . N e s s e c a s o eles""se a p r o x i m a m d o s a l o g i s m o s . " Q u e m s o u e u , se m e o l h a r d e fora? U m solitário... U m sinônimo qualquer, e mais n a d a " — diz d e si o c a p i t ã o a p o s e n t a d o d o sketch d e T c h é k h o v Uma tola ou o capitão aposentado. Outros erros são cômicos q u a n d o expõem a grosseria e a falta de c u l t u r a de q u e m fala. N a peça h u m o r í s t i c a d e R í k l i n São todos gente conhecida l e m o s : " S e v o c ê visse q u e n a t u r e z a m o r t a t e n h o lá e m c a s a : u m l i m ã o e s p r e m i d o , o v o s d i e t é t i c o s e fruta s e c a " . D â m b i t o d a c o m i c i d a d e c o n s e g u i d a g r a ç a s a m e i o s lingüísticos é bastante rico e variado. A o tocar a questão d a comicidade de palav r a s i s o l a d a s n ã o é possível d e i x a r d e falar e m n o m e s p r ó p r i o s q u e os autores de comédias e de o b r a s cômicas d ã o a suas personagens.
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COMICIDADE E RISO
M e s t r e n a e s c o l h a desses n o m e s e r a S h a k e s p e a r e , m a s ele se vale desse p r o c e d i m e n t o r a r a m e n t e e c o m c u i d a d o . A s s i m , n a c o m é d i a A megera
domada
h á u m e n c a n a d o r b ê b a d o q u e se c h a m a Chris-
t o f e r Sly. S l y , q u e significa " e s p e r t o " , " a s t u t o " . E m o u t r a s c o m é d i a s h á n o m e s c o m o Shallow veling
( p r a t o ) , Simple
(simples, b o b o ) ,
Star-
( m o r t o de f o m e , esquelético) etc. N a c o m é d i a russa d o século
XVIII o princípio é aplicado c o m coerência por Fonvízin na coméd i a O menor
de idade.
Temos assim: Taras Skotínin, a senhora Pros1 1
takova, Kutéikin, Tsifírkin, V r a l h m a n . São engraçados
apenas
os n o m e s dos tipos negativos p o r q u e assim seus defeitos são reforçados. Os n o m e s dos protagonistas positivos (Právdin, M i l o n , e m O menor
de idade,
e Dobroliubov
1 2
Starodum,
em O
brigadeiro)
n ã o s ã o r i d í c u l o s . G ó g o l vale-se d e s s e s n o m e s d e m a n e i r a s ó b r i a e c a u t e l o s a . E m Chponka, for Timoféevitch
o p r o f e s s o r d e g r a m á t i c a se c h a m a N i k í 1 3
Deepritchástie .
E m G ó g o l , às v e z e s , a l u d e - s e
a o c a r á t e r p o r m e i o d o n o m e , c o m o faz F o n v í z i n . N o m e s Khlestakóv, Manílov
1 4
Skvozník-Dmukhánovski,
Derjimorda,
como
Sobakévitch,
e outros deixam de certo m o d o entrever o caráter de
q u e m os t e m . A s s i m c o m o n o s o b r e n o m e R a s t a k ó v s k i a s í l a b a ras é assimilada c o m o u m prefixo que reforça o significado (TakóvskiRastakóvski). Igualmente ridículo, e m b o r a apenas perceptível, é o sobrenome da mulher do coronel, Pelaguéia Grigórievna Podtótchina
1 5
(O nariz).
A comicidade d o contraste surge q u a n d o u m a perso-
nagem negativa tem u m nome que, ao contrário, exprime alguma q u a l i d a d e positiva. E m Os jogadores
u m d o s trapaceiros leva o
1 6
n o m e de Utechítelni . Outro tipo de nomes cômicos é aquele que se r e l a c i o n a c o m a n i m a i s e, p r i n c i p a l m e n t e , c o i s a s . O s m o t i v o s q u e explicam este t i p o d e c o m i c i d a d e s ã o os m e s m o s d e q u e j á f a l a m o s em capítulos anteriores. É possível e n c o n t r a r os n o m e s m a i s inesper a d o s . E m S h a k e s p e a r e h á p e r s o n a g e n s q u e se c h a m a m
Flauta,
C o t o v e l o , T r a s e i r o , E s p u m a d o V i n h o etc. G ó g o l r e c o r r e a este p r o cedimento muito freqüentemente. Lembramos apenas nomes como
1 1
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Respectivamente: skotina = animal; prostak = simplório; kutif = farrear; tsifir = aritmética; vraf = mentir. Respectivamente: pravda = verdade; stári = velho + dumat = pensar; dobroliubov = que ama bem. Gerúndio. Respectivamente: de chlestáV = chicotear; de skvozniák = sopro de ar; de dierját' = segurar + morda = forças; de sobaka = cão; de manit' = atrair. De podtotchit' = afiar, afunilar, enfraquecer. Consolador.
OS INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS DA COMICIDADE
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Koróbotchka, ou Piotr Petróvitch Petukh, Ivan Kolessó etc. Gógol tem t a m b é m personagens com n o m e de comidas c o m o Ivan Pávlovitch Iaítchnitsa ou A r t é m i i Filíppovitch Z e m l i a n i k a . À s vezes os n o m e s l e m b r a m as c o i s a s a p e n a s p o r a s s o n â n c i a , e p o r isso m e s m o s u a c o m i c i d a d e sai f o r t a l e c i d a . D e s t e t i p o s ã o o s n o m e s d o s s e r v o s da gleba c o m o Koróvii Kirpitch, N e u v a j a i - K o r i t o e outros. Finalm e n t e , a c o m i c i d a d e d e c e r t o s n o m e s se b a s e i a n o a c ú m u l o d e s o n s idênticos, principalmente de consoantes. O conjunto de sons é c ô m i c o e m si, i n d e p e n d e d o s i g n i f i c a d o q u e p o s s a t e r e t o r n a o s n o m e s r i d í c u l o s . A s s i m é, p o r e x e m p l o , T a r t a r i n d e T a r a s c o n , d e A l p h o n s e Daudet, ou Mr. Pickwick, de Dickens. E m Gógol, nomes assim são m u i t o freqüentes: A k á k i Akákievitch Bachmatchkin, Pável Ivánovitch Tchítchikov, Fiódor Andréevitch Liúliukov etc. 1 8
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As personagens duplas são chamadas de m o d o quase idêntico: Bóbtchiski e Dóbtchinski, Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch, Kifa Mokíevitch e M ó k i Kífovitch. E m Gógol é freqüente nos nomes a repetição d o patronímico. O prefeito chama-se A n t o n A n t ó n o v i t c h e s u a filha M a r i a A n t ó n o v n a . O s s o n s d o s n o m e s e d o s p a t r o n í m i c o s p o d e m refletir-se t a m b é m n o s s o b r e n o m e s : P i o t r Petróvitch Petukh. O aspecto fonético dos nomes é sublinhado pelo uso de termos estrangeiros ou muito raros em russo. Assim temos: B a l t a z a r B a l t a z á r o v i t c h J e v á k i n , e m O casamento. E m Almas mortas: " A p a r e c e u a i n d a c e r t o Sisói P a f n ú t i e v i t c h e M a c d o n a l d K á r l o v i t c h " (Almas mortas, c a p . V I I I ) . O efeito c ô m i c o d o s s o b r e n o m e s e s t r a n g e i r o s s u r g e s o b r e t u d o q u a n d o eles s ã o difíceis d e s e r e m p r o n u n c i a d o s e m r u s s o , c o m o p o r e x e m p l o os s o b r e n o m e s p o l o n e s e s , g e o r g i a n o s o u ingleses. E n t r e os q u e p a r t i c i p a r a m d o baile d o p r e feito s ã o l e m b r a d o s " o príncipe georgiano T c h i p k h a i k h i l i d z e v , o francês C o u c o u , Perkhernóvski, B e r e b e n d ó v s k i " (cap. VIII). E m O idílio contemporâneo de Saltikóv-Schedrin aparece o sobrenome K c h e p c h i t s i u l s k i . E m T c h é k h o v , n o c o n t o A filha de Albion é descrita u m a inglesa imperturbável q u e continua t r a n q ü i l a m e n t e a pescar sem reparar n o p a t r ã o que entra nu na á g u a p a r a soltar u m a n z o l q u e h a v i a f i c a d o p r e s o . " E s a b e c o m o se c h a m a ? W i l k a T c h á r l z o v n a Tf ais! P u d e r a . . . N e m sequer d á p a r a p r o n u n c i a r ! " O s n o m e s c ô m i c o s s ã o u m p r o c e d i m e n t o estilístico a u x i l i a r q u e se a p l i c a p a r a reforçar o efeito c ô m i c o d a situação, d o c a r á t e r ou d a t r a m a .
Respectivamente: caixinha, galo, roda. Respectivamente: omelete, morango. "Tijolo de vaca" — embora tenha o som de um patronímico; e "Não respeitar o cocho".
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COMICIDADE E RISO
E m G ó g o l n ã o é difícil e n c o n t r a r c a t á l o g o s i n t e i r o s d e n o m e s e m q u e o a u t o r se v a l e a o m e s m o t e m p o d e t o d a s as p o s s i b i l i d a d e s q u e u m n o m e p o d e o f e r e c e r p a r a s u s c i t a r efeitos c ô m i c o s . E s s e s c a t á l o g o s s ã o i n s e r i d o s n o c o n t o a p e n a s c o m essa f i n a l i d a d e . N a novela sobre a briga entre Ivan Ivánovitch e Ivan Nikíforovitch são l e m b r a d o s o s n o m e s d e t o d o s o s h ó s p e d e s d o g o v e r n a d o r e, e n t r e eles, T a r a s T a r á s s o v i t c h , Evpl A k í n f o v i t c h , Etíkhi Etíkhievitch, E l e v f é r i E l e v f é r i e v i t c h e o u t r o s . E m O capote p r o c u r a - s e e s c o l h e r o nome do recém-nascido consultando o calendário dos santos. N u m m e s m o dia r e c o r r e m : M ó k i , Sóssi e K h o z d a z á t , n o o u t r o : Trifíli, D u l a e V a r a k h á s s i . A p a r t u r i e n t e p r e f e r e q u e o r e c é m - n a s c i d o se c h a m e c o m o o p a i , d e m o d o q u e l h e é d a d o o n o m e d e A k á k i . E m Almas mortas, s ã o d a d o s o s n o m e s d o s a m i g o s d e N o z d r i ó v , e n t r e os q u a i s e s t á o d o c a p i t ã o d e c a v a l a r i a d o e s t a d o - m a i o r P o t s e luiev e o d o t e n e n t e K u v c h í n n i k o v . U m a a t e n ç ã o t o d a e s p e c i a l é d a d a p o r G ó g o l à lista d e a l m a s a d q u i r i d a s p o r T c h í t c h i k o v . N a cidade, antes d a realização da aquisição, Tchítchikov corre os olhos p e l a lista e fica e x t a s i a d o c o m o s n o m e s . N a e n u m e r a ç ã o desses n o m e s tresloucados pode-se até captar u m a certa ritmicidade. 2 0
E m T c h é k h o v o s n o m e s e s t ã o r e l a c i o n a d o s c o m as c a r a c t e r í s t i c a s e a p o s i ç ã o s o c i a l d e seus d o n o s , p o r e x e m p l o : o e s p o s o E p a m i nond Maksímovitch Aplombov, o capitão de segundo grau RevunovK a r a ú l o v , a p a r t e i r a Z m e i ú k h i n a , o m e r c a d o r P l e v k ó v , o d o n o de taverna Samopliúiev, os d o n o s de terra G a d i u k i n e C h i l o k h v o s t o v , o e m p r e s á r i o I n d i u k o v , os hóspedes n ã o c o n v i d a d o s , m a s c o m excelente apetite, D r o b i s k u l o v e P r e k r a s n o v k u s s o v e o u t r o s . 2 1
T o d o e s c r i t o r t e m t a m b é m n e s s e c a m p o seu e s t i l o p r ó p r i o . A comicidade dos nomes não tem sempre a mesma origem, mas pode ser b a s i c a m e n t e r e c o n d u z i d a às c a t e g o r i a s d o c ô m i c o q u e e x a m i n a m o s a n t e r i o r m e n t e . H a b i t u a l m e n t e o s n o m e s s ã o a p e n a s u m elem e n t o acessório, n ã o o f u n d a m e n t a l p a r a o efeito c ô m i c o . O instrum e n t o básico é a descrição dos p r o t a g o n i s t a s , da t r a m a , d o s conflit o s e t c . O c o n j u n t o d o s m e i o s a q u i e x p o s t o s está r e l a c i o n a d o c o m o estilo lingüístico de u m escritor/ O e s t u d o d o estilo p r ó p r i o a u m e s c r i t o r , m e s m o q u a n d o se t r a t a d e u m e s c r i t o r - h u m o r i s t a ^ n ã o e s t á
Respectivamente: potstelui = beijo; kuvchin = jarra. Respectivamente: do francês aplomb = postura desenvolta, rão e karaul = sentinela; de zmeiá = serpente; de plevók = auto e pliunut' = cuspir; de gadiuka = víbora; de chilo cauda; de indiuk = peru; de drobit' = esmagar e skula pekrasni = belíssimo e vkus =» gosto.
pose; de revun = chocusparada; de samo = = sovela e khvost = = maçã do rosto; de
OS INSTRUMENTOS LINGÜÍSTICOS DA COMICIDADE
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d e n t r o de nosso â m b i t o . Sua língua é parte e x t r e m a m e n t e essencial d e s u a c o m i c i d a d e / O g r a u d e seu t a l e n t o n ã o se d e f i n e a p e n a s p e l o s " p r o c e d i m e n t o s " que usa, m a s t a m b é m por sua língua. Assim, a g e n i a l i d a d e d e G ó g o l n ã o r e s i d e a p e n a s n o f a t o d e ele ser u m m e s t r e d o c ô m i c o , m a s t a m b é m n o f a t o d e p o s s u i r a l í n g u a q u e ele p o s sui — m e l h o r d i z e n d o — , o e s t i l o l i n g ü í s t i c o q u e s u s c i t a n o l e i t o r u m a c o n t í n u a s e n s a ç ã o d e a d m i r a ç ã o . U m a frase d e G ó g o l p o d e ser r e c o n h e c i d a sem e r r o . Seu estilo distingue-se a l é m d o m a i s p o r u m a extrema naturalidade, desenvoltura e simplicidade. Gógol não t e m p r e s s a q u e o l e i t o r r i a . E s t e é seu j e i t o d e c o n t a r , m a s n a s c o m é d i a s n ã o h á r e l a t o n e n h u m . S ã o a s p e r s o n a g e n s q u e f a l a m . Se e l a s t i v e s s e m q u e se e x p r e s s a r n u m a l í n g u a p á l i d a e i n c o l o r , a c o m é d i a p e r d e r i a q u a l q u e r possibilidade de efeito (força de a ç ã o ) . A s p e r s o n a g e n s d e v e m f a l a r a l í n g u a q u e lhes é c a r a c t e r í s t i c a e se e x p r e s s a r d e f o r m a s u g e s t i v a . Q u e r e n d o definir c o m p o u c a s palavras e m q u e c o n s i s t e a s u g e s t i v i d a d e d e u m a l í n g u a , d i r e m o s q u e as m a i o r e s e x i g ê n c i a s s ã o o c o l o r i d o e a e x p r e s s i v i d a d e . E s a b i d o q u e a intelligentsia n a v i d a c o t i d i a n a se e x p r e s s a , v i a d e r e g r a , d e m o d o b a s t a n t e i n c o l o r . I s t o se d e v e a o f a t o d e q u e a p e s s o a c u l t a p e n s a p o r c a t e g o r i a s a b s t r a t a s e se e x p r e s s a d e a c o r d o c o m e l a s . P e l o c o n t r á r i o , a c a m a d a m é d i a , a t é p o u c o t e m p o a t r á s , tal c o m o as p e s s o a s s i m p l e s q u e r e a l i z a m u m t r a b a l h o físico, m u i t a s v e z e s se e x p r e s s a de f o r m a figurada e expressiva. Seu discurso caracteriza-se por imagens visuais. P o d e m o s c h a m a r convencionalmente de " p o p u l a r " e s t e s e u d i s c u r s o e o h u m o r i s t a c o n s e g u i r á seu o b j e t i v o s o m e n t e q u a n d o tiver se a p r o p r i a d o d e t o d a s as p a r t i c u l a r i d a d e s e s u t i l e z a s deste discurso. Nas c o m é d i a s d o s séculos X I X - X X aparecem p r e d o m i n a n t e m e n t e p e s s o a s s i m p l e s e o s a u t o r e s s o u b e r a m e s c u t a r s u a fala. 2 2
22,
A l é m d e G ó g o l , O s t r ó v s k i t a m b é m foi m e s t r e e m r e p r o d u z i r a fala s a b o r o s a e c o l o r i d a d a s p e s s o a s s i m p l e s . E i s a q u i d o i s e x e m p l o s . L á o n d e u m a falante sem cor diria: " E l e n ã o é p a r p a r a v o c ê " , a v e l h i n h a d e O s t r ó v s k i d i z : " E l e n ã o serve p a r a d a n ç a r a q u a d r i l h a c o m v o c ê " . Q u a n d o o m a r i d o q u e r a f a s t a r a m u l h e r d o q u a r t o , ele n ã o diz " s a i a da p o r t a " , m a s " p r a fora da p o r t e i r a ! " . E x a m i n a n d o estes d o i s c a s o s é fácil p e r c e b e r q u e a e x p r e s s ã o i n c o l o r o p e r a p o r c o n c e i t o s , e n q u a n t o a c o l o r i d a p r o c e d e p o r i m a g e n s visuais. L i m i t a r - n o s - e m o s a estes b r e v e s r e p a r o s . A q u i l o q u e n o s i n t e ressava era d a r realce à expressividade d a língua, e n q u a n t o fator importante da comicidade.
D o russo iarko, que também significa "vivo", "vivido", "brilhante", "incomum". Hoje em dia usa-se o termo para indicar os intelectuais, em geral.
19 Os caracteres cômicos
Passemos agora a outro grande domínio da comicidade, ou seja, aos caracteres c ô m i c o s . É preciso considerar de imediato que, a p r o p ó s i t o , e m sentido e s t r i t o , c a r a c t e r e s c ô m i c o s e m si n ã o e x i s t e m . Q u a l q u e r t r a ç o d e c a r á ter n e g a t i v o p o d e ser r e p r e s e n t a d o c o m i c a m e n t e g r a ç a s a o s m e s m o s m e i o s c o m os q u a i s se c r i a , e m g e r a l , o efeito c ô m i c o . Q u a i s s e r ã o então os meios fundamentais p a r a descrever caracteres cômicos? J á A r i s t ó t e l e s d i z i a q u e a c o m é d i a r e p r e s e n t a as p e s s o a s " p i o res d o que elas s ã o " . E m o u t r a s p a l a v r a s , p a r a criar caracteres cômic o s é n e c e s s á r i o c e r t o exagero. E x a m i n a n d o os c a r a c t e r e s c ô m i c o s d a l i t e r a t u r a r u s s a d o s é c u l o X I X , n ã o é difícil v e r i f i c a r q u e eles são construídos de a c o r d o c o m o princípio d a caricatura. A caricatura, c o m o j á v i m o s , consiste e m tomar-se q u a l q u e r particularidade e a u m e n t á - l a a t é q u e ela se t o r n e visível p a r a t o d o s . N a d e s c r i ç ã o d o s c a r a c t e r e s c ô m i c o s se e s c o l h e u m a p r o p r i e d a d e n e g a t i v a d o c a r á t e r e se a m p l i f i c a , p e r m i t i n d o c o m i s s o q u e a a t e n ç ã o p r i n c i p a l d o leitor o u d o e s p e c t a d o r s e j a d i r i g i d a a e l a . H e g e l d e f i n e a c a r i c a t u r a de u m caráter nos seguintes termos: " N a caricatura, u m d a d o traço é e x t r a o r d i n a r i a m e n t e a u m e n t a d o e se a p r e s e n t a c o m o a l g o c a r a c t e rístico levado a o e x c e s s o " . C o m e s t e c r i t é r i o s ã o c o n s t r u í d a s as p e r s o n a g e n s c ô m i c a s d e Gógol. Manilov representa a encarnação da melosidade, Sobakévitch
OS CARACTERES CÔMICOS
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da grosseria, Nozdrióv d o desregramento, Pliúchkin da avareza e assim por diante. O exagero, porém, não é a única condição para a comicidade de u m caráter. Aristóteles n ã o disse a p e n a s q u e na c o m é d i a as p r o p r i e d a d e s negativas s ã o e x a g e r a d a s , m a s t a m b é m q u e este exagero requer limites certos e u m a m e d i d a t a m b é m certa. A s qualidades negativas n ã o p o d e m chegar à o b j e ç ã o ; elas n ã o p o d e m suscitar s o f r i m e n t o n o e s p e c t a d o r — d i z ele — e, a c r e s c e n t a r í a m o s n ó s , e l a s n ã o d e v e m p r o v o c a r r e p u g n â n c i a o u d e s g o s t o . S ó os p e q u e n o s d e f e i t o s s ã o c ô m i c o s . C ô m i c o s p o d e m ser o s c o v a r d e s n a v i d a d e c a d a d i a ( m a s n ã o n a g u e r r a ) , o s f a n f a r r õ e s , o s c a p a c h o s , os b a j u l a dores, os m a l a n d r i n h o s , os pedantes e os formalistas de t o d a espécie, o s u n h a s - d e - f o m e e o s e s g a n a d o s , o s v a i d o s o s e o s c o n v e n c i d o s , o s v e l h o s e as v e l h a s q u e p r e t e n d e m p a s s a r p o r j o v e n s , as e s p o s a s d e s p ó t i c a s e os m a r i d o s s u b m i s s o s e t c . e t c . C o n t i n u a n d o p o r esse c a m i n h o seria n e c e s s á r i o c o m p o r t o d o u m c a t á l o g o d o s defeitos h u m a n o s e ilustrá-los c o m exemplos retirados d a literatura. Tentativas dessa natureza, já tivemos ocasião de ver, f o r a m feitas. Vícios e d e f e i t o s l e v a d o s à d i m e n s ã o d e p a i x õ e s funestas, a o contrário, n ã o são objeto d a comédia, m a s d a tragédia. P o r s i n a l , o limite n e m s e m p r e é n í t i d o . D o m J u a n r e p r e s e n t a d o p o r Molière c o m o sendo cômico m o r r e tragicamente. A linha divisória entre a viciosidade q u e constitui o n ó d a tragédia e os defeitos, q u e s ã o p o s s í v e i s n a c o m é d i a , n ã o p o d e ser e s t a b e l e c i d a l o g i c a m e n t e : q u e m o decide é o talento e a sensibilidade d o escritor. U m a m e s m a p r o p r i e d a d e p o d e se t o r n a r c ô m i c a se for a m p l i a d a m o d e r a d a m e n t e . Se, a o c o n t r á r i o , for l e v a d a à d i m e n s ã o d o v í c i o , t o r n a r - s e - á t r á g i c a . Isso p o d e ser n o t a d o c o m p a r a n d o , p o r e x e m p l o , d o i s a v a r e n t o s : Pliú c h k i n d e Almas mortas d e G ó g o l e o b a r ã o d e O cavaleiro avaro d e P ú c h k i n . A a v a r e z a d o b a r ã o atinge d i m e n s õ e s g r a n d i o s a s : ft q u e n ã o se s u b m e t e a m i m ? / D a q u i , q u a l d e m o p o d e r o s o , p o s s o reger o m u n d o .
/ A l é m da avareza, h á no b a r ã o s o m b r i a filosofia d o p o d e r d o o u r o e a c o n s c i ê n c i a d e seu p r ó p r i o p o d e r i o p o t e n c i a l s o b r e o m u n d o . E l e t e m u m a e x t r a o r d i n á r i a a m b i ç ã o e é, a l é m d i s s o , u m g r a n d e c e l e r a d o . S u a a v a r e z a é u m vício ligado a crimes terríveis. É u m u s u r á r i o q u e l e v a as v í t i m a s a o d e s e s p e r o e à r u í n a . R e m e x e n d o em moedas de ouro particularmente preciosas, o barão r e m e m o r a c o m q u a i s m e i o s ele a s o b t e v e : S i m , se o s a n g u e , as l á g r i m a s e o suor, V e r t i d o s por t u d o que a q u i e s t á ,
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COMICIDADE E RISO
J o r r a s s e m d o s e i o da terra de r e p e n t e , Seria u m novo d i l ú v i o — eu a f o g a d o Nas e n t r a n h a s d a s r o c h a s q u e t ã o b e m c o n h e ç o .
Contrariamente ao barão, Pliúchkin é mesquinho. Gógol não lhe a t r i b u i o u t r a s p r o p r i e d a d e s , a l é m d a a v a r e z a . É u m t r i b u t o p a r a o exagero cômico n a descrição de u m caráter. Pliúchkin n ã o tem n e n h u m a filosofia, n e n h u m desejo de p o d e r n e m a m b i ç ã o , n ã o acumula ouro, m a s p r o d u t o s da agricultura, não j u n t a objetos prec i o s o s , m a s c o i s a s i n ú t e i s : s o b os a n d a i m e s r e c o l h e s o l a s u s a d a s , pregos enferrujados, cacos de cerâmica. Sua aparência coaduna-se c o m isso. À p r i m e i r a vista T c h í t c h i k o v t o m a - o pela g o v e r n a n t a , m a s d e p o i s d e s c o b r e q u e a g o v e r n a n t a se b a r b e i a , m e s m o q u e r a r a m e n t e , " p o r q u e o queixo inteiro, c o m a p a r t e inferior d a b o c h e c h a p a r e c i a m u m a a l m o f a d a d e fio d e a r a m e , c o m a q u a l se e s c o v a m os cavalos nas e s t a l a g e n s " . T u d o isso p r o v o c a o riso, m a s a figura d e P l i ú c h k i n n ã o é d e t o d o c ô m i c a . R e p a r a n d o - s e nele m a i s d e p e r t o v e r e m o s q u e , é v e r d a d e , ele n ã o p e r p e t r a c r i m e s s a n g r e n t o s , m a s s e u s c a m p o n e s e s se e n c o n t r a m e m t e r r í v e i s c o n d i ç õ e s d e m i s é r i a . N ã o há telhado nas isbás, das casas d e s p o n t a m a p e n a s p a u s e estac a s , a s j a n e l a s s ã o f e c h a d a s c o m t r a p o s e a s p e s s o a s se d i s p e r s a r a m d e t a n t a f o m e e n ã o r e t o r n a m . E n t r e t o d a s as p e r s o n a g e n s d e G ó g o l , P l i ú c h k i n é, q u e m s a b e , a m e n o s c ô m i c a e a m a i s m í s e r a . M a s G ó g o l p o s s u i o s e n t i d o d a m e d i d a . Se tivesse i d o u m p o u c o m a i s a l é m , e s t a f i g u r a t e r i a d e i x a d o d e ser c ô m i c a . É i n t e r e s s a n t e n o t a r q u e às v e z e s G ó g o l a t e n u a o q u a d r o c a r i c a t u r a l d a s f i g u r a s h u m a n a s q u e ele m e s m o d e s e n h o u . A s s i m , P i o t r Petróvitch P e t u k h é descrito c o m o um comilão. Esta é sua caracter í s t i c a f u n d a m e n t a l . M a s ele é h o s p i t a l e i r o , o q u e , e m b o r a n ã o a l t e r a n d o suas características negativas, constitui p a r a elas u m f u n d o de vida autêntico e verossímil. Isto vale t a m b é m para alguns protag o n i s t a s d e Almas mortas. Eis o q u e escreve Gógol a respeito dos f u n c i o n á r i o s q u e m o r a m n a c a p i t a l d a r e g i ã o , q u e ele t ã o c r u e l e justamente ridicularizou: " P a r a dizer a verdade, e r a m t o d o s gente b o a , viviam tranqüilamente e t r a t a v a m - s e c o m o amigos, e suas conversas t i n h a m a m a r c a de certa simplicidade e i n t i m i d a d e " . U m p o u c o m a i s a d i a n t e G ó g o l c o n t i n u a : " M a s e m geral eles e r a m b o a s p e s s o a s , c h e i o s d e e s p í r i t o h o s p i t a l e i r o e q u e m ficasse p a r a c o m e r e p a s s a s s e u m a n o i t e c o m eles j o g a n d o whist j á se t o r n a r i a , d e c e r t o m o d o , seu í n t i m o " . O m e s m o e s c r e v e K h l e s t a k ó v e m s u a c a r t a a T r i á p i t c h k i n s o b r e o s m o r a d o r e s d a c i d a d e . A p ó s ter d e s c r i t o c o m i c a m e n t e t o d a s a s p e r s o n a g e n s , ele a c r e s c e n t a : " P o r é m s ã o g e n t e hospitaleira e b o n a c h o n a " . Os historiadores da literatura (pelo que
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eu sei) n u n c a se r e f e r e m a e s t a s p a l a v r a s . P o r q u e será? Q u e m s a b e G ó g o l , q u e a c a b o u d e n o s m o s t r a r o e s q u á l i d o q u a d r o d a v i d a social d a v e l h a c i d a d e , sede d o g o v e r n o d a p r o v í n c i a , se c o n t r a d i g a a q u i e queira passar p o r cima de suas próprias afirmações? Claro que n ã o . E s t e n ã o é u m e r r o d e G ó g o l , m a s u m seu p r i n c í p i o : a p e s a r d e t o d o s os seus a s p e c t o s n e g a t i v o s , o s h o m e n s d e G ó g o l s ã o v i v o s . " E s t a s pessoas são m á s por educação e por ignorância, n ã o p o r n a t u r e z a " , diz d o s h e r ó i s g o g o l i a n o s Belínski ( 8 , V , 359). U m a i m a g e m a t e n u a d a r e d u z o nível c a r i c a t u r a l e t o r n a v e r o s s í m e i s o s t i p o s r e p r e s e n t a d o s . M e s m o e s t a a t e n u a ç ã o r e q u e r , p o r s u a vez, u m s e n t i d o d a m e d i d a , tal c o m o o e x a g e r o c ô m i c o . O s a s p e c t o s p o s i t i v o s d a s p e r s o n a g e n s c ô m i c a s s ã o m u i t o p o u c o l e m b r a d o s p o r G ó g o l e q u a n d o isso o c o r r e é sempre de passagem. Sobakévitch é u m ó t i m o p a t r ã o e seus c a m p o neses p r o s p e r a m ; o j e i t o d e M a n i l o v n ã o é d e s a g r a d á v e l ; P l i ú c h k i n era diferente, outrora. K o r ó b o t c h k a representa u m a mistura de traços d e c a r á t e r , ' m a n t i d o s j u n t o s p r i n c i p a l m e n t e p o r seu j e i t o e s t a b a n a d o e p o r s u a a v i d e z , m a s n ã o s ó p o r i s s o . A t é c n i c a p e l a q u a l ela n o s é a p r e s e n t a d a difere b a s t a n t e d a q u e l a c o m q u e s ã o e s b o ç a d o s o s o u t r o s p r o p r i e t á r i o s r u r a i s d e Almas mortas. Gógol n ã o elabora as qualidades positivas das personagens negativas, pois c o m isso lhes tiraria a c o m i c i d a d e . H á p o r é m u m a e x c e ç ã o : t r a t a - s e d a o b r a Proprietários rurais à moda antiga. Se P l i ú c h k i n r e p r e s e n t a , p o r a s s i m d i z e r , o l i m i t e i n f e r i o r d a comicidade, além da qual encontramos a aversão, Afanássi Ivánovitch e P u l k é r i a I v á n o v n a r e p r e s e n t a m c o m o q u e o superior, a c i m a do q u a l c o m e ç a o idílio. Esta representação de certa forma abrandada das personagens negativas n ã o é característica a p e n a s de Gógol. F á m u s s o v , por exemp l o , é o t i p o d o n o b r e r u s s o d e M o s c o u d o c o m e ç o d o século X I X , m a s d e p e r si n ã o seria, q u e m s a b e , u m c e l e r a d o ; p o r isso literariam e n t e ele c o n v e n c e e s u a figura n o s p a r e c e v e r d a d e i r a e cheia d e v i d a . N a q u e l e s c a s o s e m q u e , a o c o n t r á r i o , n ã o se vê n e n h u m a q u a l i d a d e p o s i t i v a n a d e s c r i ç ã o , t r a t a - s e d e figuras a r t i s t i c a m e n t e m e n o s c o n v i n centes q u e as descritas c o m t r a ç o s m a i s leves. É o c a s o , p o r e x e m p l o , d e S k a l o z u b q u e r e p r e s e n t a , p o r a s s i m dizer, c o m o q u e u m a a m o s t r a quimicamente p u r a d a caricatura. São assim muitas d a s personagens de Saltikóv-Schedrin. Trata-se de caricaturas m u i t o vividas, mas apesar disso u n i l a t e r a i s . E x i s t e m a i s u m a c o n d i ç ã o , m a i s u m a possibilidade de reforçar a comicidade de u m caráter. N a comédia todas as p e r s o n a g e n s e s t ã o s e m p r e e n v o l v i d a s n u m a trama e n o s g r a n d e s escrit o r e s j u s t a m e n t e ela p o d e servir c o m o i n s t r u m e n t o p a r a delinear o caráter. O Khlestakóv de Gógol não é apenas u m a personagem d e
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u m a comédia de intrigas, mas t a m b é m ú m caráter ou tipo psicológico e s b o ç a d o m u i t o v i v i d a m e n t e e b a s t a n t e d e f i n i d o , a s s i m c o m o o govern a d o r e as d e m a i s p e r s o n a g e n s . O m e s m o v a l e , d e m o d o b a s t a n t e evid e n t e , t a m b é m p a r a O casamento, onde a ação funda-se na contraposição de dois caracteres: o fraco, abúlico e indeciso Podkoléssin e o enérgico e e m p r e e n d e d o r Kotchkáriev. E n r e d o e caráter, neste caso, constituem u m todo coeso. ^ E s t a p o r é m n ã o é u m a p r o p r i e d a d e necessária d a c o m i c i d a d e , m a s a característica de u m grande talento. Pode-se observar que em M o l i è r e , p o r e x e m p l o , n ã o existe e s t a u n i d a d e . B e r g s o n r e p a r o u d e passagem que nas obras de Molière há sempre u m caráter cômico no centro e q u e , freqüentemente, os títulos de suas comédias definem o caráter d o p r o t a g o n i s t a . C o m efeito, títulos c o m o O avarento, O misantropo p r o v a m - n o c l a r a m e n t e . O u t r a s c o m é d i a s t ê m p o r t í t u l o os n o m e s d a s p e r s o n a g e n s p r i n c i p a i s , m a s estes n o m e s t o r n a r a m - s e p r o verbiais p o r t e r e m e n c a r n a d o a l g u m a s q u a l i d a d e s n e g a t i v a s . T a r t u f o é s i m u l a d o e g r o s s e i r o , D o m J u a n u m d i s s o l u t o , o b u r g u ê s fidalgo u m a m b i c i o s o , o d o e n t e i m a g i n á r i o u m h i p o c o n d r í a c o e assim p o r d i a n t e . Deste p o n t o d e vista as c o m é d i a s d e M o l i è r e s ã o t í p i c a s c o m é dias d e c a r á t e r e n ã o c o m é d i a s d e i n t r i g a . A divisão e m c o m é d i a s d e intriga e c o m é d i a s d e c a r á t e r n ã o é, e n t r e t a n t o , c o r r e t a , visto q u e e m t o d a s as c o m é d i a s h á intrigas e c a r a c t e r e s , se e n t e n d e r m o s p o r intriga a a ç ã o b a s e a d a e m u m conflito q u a l q u e r . T o d a a q u e s t ã o e s t á e m saber e m q u e r e l a ç ã o e s t ã o i n t r i g a e c a r á t e r d o s p r o t a g o n i s t a s . E m Gógol o nexo é completamente orgânico e enraizado. N e m sempre o m e s m o o c o r r e e m M o l i è r e . ' B e l í n s k i h a v i a j u s t a m e n t e n o t a d o q u e as t r a m a s d e M o l i è r e s ã o b a s t a n t e u n i f o r m e s . A intriga h a b i t u a l m e n t e consiste n o c o n t r a s t e e n t r e o p r o t a g o n i s t a e u m casal d e n a m o r a d o s , a c u j a u n i ã o se o p õ e a p e r s o n a g e m n e g a t i v a q u e d á o n o m e à c o m é d i a . Eles a e n g a n a m e c o r o a m a s s i m seu s o n h o . Só q u e q u e m a e n g a n a p o r eles, q u e n ã o s a b e m , n ã o q u e r e m o u n ã o p o d e m fazê-lo s o z i n h o s , s ã o o s s e r v o s , a s t u t o s , m a l a n d r o s e e m b r u l h õ e s , s o b r e cujas a ç õ e s f u n d a - s e t o d a a t r a m a . O e n g a n o , c o m o u m d o s m e i o s p a r a atingir o efeito c ô m i c o , j á foi p r e c e d e n t e m e n t e e x a m i n a d o . A s p e r s o n a g e n s negativas s ã o d e r r o t a d a s n a intriga e, a o m e s m o t e m p o , r e v e l a m d e m o d o visível e e x p r e s s i v o t o d a s as p r o p r i e d a d e s d e seu caráter,, N ã o d a r e m o s a q u i listas d e c a r a c t e r e s c ô m i c o s n a l i t e r a t u r a russa ou e u r o p é i a ocidental. O q u e nos interessa é u m a tipologia g e r a l e os p r i n c í p i o s q u e se e n c o n t r a m e m seu f u n d a m e n t o . O p r o b l e m a d o s c a r a c t e r e s c ô m i c o s , p o r é m , e s t á l o n g e d e ter sido c o m p l e t a m e n t e resolvido. T o d o s os tipos e x a m i n a d o s até agora eram negativos. U m p e q u e n o , m í n i m o acréscimo de qualidades posi-
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t i v a s t o r n a v a esses m e s m o s c a r a c t e r e s e x i s t e n c i a l m e n t e v e r o s s í m e i s , m a s isso n ã o m u d a v a a e s s ê n c i a . E n t r e t a n t o , ao o b s e r v a r m o s a vida, tal c o m o as o b r a s literárias de t a l e n t o , veremos q u e existem p e r s o n a g e n s cômicas q u e n ã o p a r e c e m ter características negativas, m a s n ã o d e i x a m p o r isso de ser c ô m i c a s . R i m o s d e l a s m a s t e m o s , m e s m o a s s i m , u m s e n t i m e n t o de s i m p a t i a . E m p o u c a s p a l a v r a s , existem p e r s o n a g e n s cômicas n ã o somente negativas mas positivas t a m b é m . O q u e aconteceu? P o r acaso isto n ã o c o n t r a d i z nossa teoria de q u e o riso nasce d o d e s n u d a m e n t o de q u a l i d a d e s negativas? O u , q u e m s a b e , se t r a t a a q u i d e u m o u t r o t i p o d e r i s o , d e u m r i s o q u e n ã o z o m b a ? À p r i m e i r a vista p o d e p a r e c e r q u e os t i p o s p o s i t i v o s n ã o p o d e m ser negativos nem d o p o n t o d e vista d o aspecto teórico n e m d a p r á t i c a a r t í s t i c a . E m F o n v í z i n t o d a s as p e r s o n a g e n s e s t ã o c l a r a m e n t e s e p a r a d a s e m p o s i t i v a s e n e g a t i v a s . E m O inspetor geral n ã o existe s e q u e r u m a p e r s o n a g e m p o s i t i v a . E m O s t r ó v s k i a m a i o r i a dos protagonistas é negativa. Existem, n a verdade, comerciantes q u e n o fim d a c o m é d i a r e t o m a m o b o m c a m i n h o e e l a c h e g a à q u e l a feliz c o n c l u s ã o à q u a l a s p i r a m a s p e r s o n a g e n s o p r i m i d a s e c o m e l a s os e s p e c t a d o r e s . P o r é m , a s o l u ç ã o nesses c a s o s é d e c e r t a f o r m a inesperada e não brota propriamente do caráter destas personagens n e g a t i v a s . N a c o m é d i a A pobreza não é vício o d é s p o t a f a m i l i a r G o r d i e i T o r t s ó v diz, n o f i m : " A g o r a s o u o u t r a p e s s o a " e d á s u a filha e m c a s a m e n t o a o v e n d e d o r a q u e m a n t e s e r a h o s t i l , r e a l i z a n d o c o m isso a expectativa dos j o v e n s a p a i x o n a d o s . N o m o m e n t o e m q u e o t i p o n e g a t i v o se t r a n s f o r m a e m p o s i t i v o significa q u e c h e g o u a hora de terminar. D e q u a l q u e r m a n e i r a , a p e r s o n a g e m c ô m i c a positiva ou o caráter c ô m i c o p o s i t i v o s ã o p o s s í v e i s . P a r a r e s o l v e r esta q u e s t ã o é p r e c i s o t e r e m m e n t e q u e n a v i d a n ã o existem pessoas a b s o l u t a m e n t e negativas n e m pessoas absolutamente positivas. Mesmo nos criminosos inveterados pode haver e s c o n d i d o s , n o f u n d o , e m b r i õ e s de h u m a n i d a d e e vice-versa: pessoas c o m p l e t a m e n t e c o r r e t a s d e s p e r t a m m u i t a s vezes em nós u m a a n t i p a t i a i n s t i n t i v a , e s p e c i a l m e n t e se elas t ê m t e n d ê n c i a a d a r lições d e m o r a l . C a d a ser h u m a n o é p r o d u t o d a s m a i s v a r i a d a s c a r a c t e r í s ticas t a n t o positivas q u a n t o negativas, em p r o p o r ç õ e s diferentes. A galeria dos tipos cômicos é bastante diferençada. H á , por exemplo, pessoas que, tão logo surgem, nos p õ e m de bom humor. U m a das qualidades positivas, q u e suscita i m e d i a t a m e n t e o sorriso e u m a b o a disposição é certa dose de o t i m i s m o , unido a u m a alegria e u m c o n t e n t a m e n t o habituais, que contagia a t o d o s . Essas pes-
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s o a s n u n c a s ã o t r i s t e s , t ê m s e m p r e u m a e x c e l e n t e d i s p o s i ç ã o d e espír i t o , s ã o b o n a c h o n a s , c o n t e n t a m - s e c o m p o u c o e, n ã o t e n d o n a d a de particular e m vista, b a s t a m - s e c o m o q u e têm n o m o m e n t o . Este t i p o d e p e s s o a p o d e ser c ô m i c o q u a s e i n d e p e n d e n t e d a p r e s e n ç a nele de qualquer defeito moral. Hegel achava que u m a " i n q u e b r a n t á v e l c o n f i a n ç a e m si m e s m o " fosse u m a p r o p r i e d a d e i m p o r t a n t í s s i m a d a p e r s o n a g e m cômica. F r e q ü e n t e m e n t e trata-se a p e n a s de u m riso de alegria, que t e r e m o s ocasião de analisar mais a d i a n t e . M a s o riso s u s c i t a d o p o r essas p e r s o n a g e n s n ã o se explica a p e n a s p o r i s s o . N e l a s o q u e n o s a l e g r a é o o t i m i s m o , m a s é j u s t a m e n t e ele q u e s u s c i t a o r i s o . C o m o t a m b é m o c o r r e n o s o u t r o s c a s o s , o o t i m i s m o e m si n ã o faz rir. B a s t a ler o s Estudos sobre o otimismo de Miétchnikov para c e r t i f i c a r - s e . U m o t i m i s m o c o n v i c t o c o n s t i t u i u m a filosofia d e v i d a QUQ a m a d u r e c e a p e s a r d a s g r a v e s c o n t r a r i e d a d e s q u e e n c o n t r a . U m o t i m i s m o desse tipo é a c o n s e q ü ê n c i a de certa força de caráter e n ã o faz rir. É fácil n o t a r q u e o o t i m i s m o e n g r a ç a d o é a q u e l e q u e se f u n d a s o b r e p r i n c í p i o s b e m d i f e r e n t e s , o u m e l h o r , n ã o se f u n d a s o b r e n a d a . É o o t i m i s m o q u e a j u d a a viver m u i t o f a c i l m e n t e . E l e , p o r a s s i m dizer, e s t á f e c h a d o e m si m e s m o , t e m u m c a r á t e r e x t r e m a m e n t e s u b j e t i v o e i n d i v i d u a l . Seu e l e m e n t o s ã o a s p e q u e n a s c o i s a s d a v i d a cotid i a n a , é útil e a g r a d á v e l e s u s c i t a e m n ó s u m s o r r i s o i n v o l u n t á r i o . A o m e s m o t e m p o , p o r é m , tal a u t o - s a t i s f a ç ã o b o n a c h o n a e tal aleg r i a d e viver i n g ê n u a é t a m b é m q u a l i d a d e m u i t o s u p e r f i c i a l e p r e c á r i a . N ã o d e i x a d e ser u m a f r a q u e z a . E t ã o l o g o se d e s c o b r e d e r e p e n t e e s t a f r a q u e z a , e ela é c a s t i g a d a , eis q u e i r r o m p e o r i s o . E s t a alegria b o n a c h o n a e satisfeita d e t u d o o q u e h á n o m u n d o (e, p o r t a n t o , inclusive d e si p r ó p r i a ) p r e d i s p õ e a o r i s o , m a s a i n d a n ã o b a s t a p a r a s u s c i t á - l o . O s p a l h a ç o s t a l e n t o s o s às vezes se d ã o c o n t a d i s s o : e n t r a m n o picadeiro b r i l h a n d o d e s a t i s f a ç ã o . K a r a n d á c h , p o r e x e m p l o , e n t r a v a n o p i c a d e i r o c o m o c h a p é u e a v a s s o u r a , m u i t o satisfeito d e si c o m o se fosse a o seu p r ó p r i o c a s a m e n t o . B o r i s V i á t k i n a p a r e c i a a s s o b i a n d o a l e g r e m e n t e o u e m a l t o s b r a d o s , e m p u r r a n d o seu l u l u p a r a a f r e n t e . E s t a a l e g r i a b o n a c h o n a e s a t i s f e i t a serve d e f u n d o a o s males inesperados que virão em seguida e q u e c a e m p o r c i m a d e s s e s s i m p l ó r i o s suscitando n ã o tanto o sorriso q u a n t o u m a risada fragorosa. Este t i p o é s e m d ú v i d a c ô m i c o m e s m o e m si s ó , i n d e p e n d e n t e d a q u i l o q u e lhe a c o n t e c e . A s d e s g r a ç a s q u e lhe a c o n t e c e m s ó f a z e m a c e n t u a r a c o m i c i d a d e j á existente n o p r ó p r i o t i p o . M a i s f r e q ü e n t e m e n t e t r a t a se d e u m a l o g i s m o q u e irá d e e n c o n t r o a u m a v e r g o n h o s a d e r r o t a , m a s isso n e m s e m p r e é o b r i g a t ó r i o . C h e g a m o s assim à conclusão de que a comicidade dos caracteres d e s t e t i p o n ã o s u r g e d a p r e s e n ç a d e q u a l i d a d e s p o s i t i v a s e n q u a n t o
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tais, m a s da precariedade e d a insuficiência dessas m e s m a s qualidad e s . E s t a i n s u f i c i ê n c i a se m a n i f e s t a n o m o d o p e l o q u a l e s t e s t i p o s se c o m p o r t a m , d e s c o b r i n d o a m e s q u i n h e z e a p r e o c u p a ç ã o e x c l u siva p o r si p r ó p r i o s , e p r o v o c a u m s u r t o d e r i s o q u a n d o e m e r g e r e p e n t i n a m e n t e em t o d a a sua evidência. A o falar d o tipo d o s otimistas cômicos, n ã o p o d e m o s deixar d e l e m b r a r Falstaff. E l e é s i g n i f i c a t i v a m e n t e m a i s c o m p l e x o q u e a q u e les p a l h a ç o s s i m p l ó r i o s q u e c o n s e g u e m f a z e r rir e d i v e r t i r o s e s p e c t a dores. À diferença daquelas personagens cômicas que e n c a r n a m alguma qualidade qualquer (Sobakévitch), o tipo ao qual pertence F a l s t a f f r e ú n e e m si u m g r a n d e n ú m e r o d e d i f e r e n t e s q u a l i d a d e s , e é j u s t a m e n t e isso q u e c o n s t i t u i s u a v i t a l i d a d e e s u a v e r d a d e . U m a d e s u a s q u a l i d a d e s m a i s i m p o r t a n t e s é a fé i n a b a l á v e l e m si m e s m o e a imperturbabilidade nas desgraças que lhe acontecem. Apesar de t u d o ele e s t á s e m p r e d e b e m c o m a v i d a e a l e g r e . S h a k e s p e a r e g o s t a v a m u i t o d e s t e t i p o e o r e p r o d u z i u d u a s v e z e s , n o Henrique IV ( p r i m e i r a e s e g u n d a p a r t e ) e e m As alegres comadres de Windsor. F a l s t a f f é u m c a r á t e r n e g a t i v o , m a s as p r o p r i e d a d e s n e g a t i v a s , nesse c a s o , s ã o a t r i b u í d a s à q u e l e t i p o d e p e s s o a c o m alegria d e viver q u e n u n c a d e s a n i m a e q u e p o r si s ó j á p r e d i s p õ e a o r i s o . P o r esse m o t i v o o tipo de Falstaff alcança u m colorido e u m a expressividade ú n i c o s n o g ê n e r o . N a l i t e r a t u r a s o b r e S h a k e s p e a r e e n c o n t r a m - s e freq ü e n t e s d e f i n i ç õ e s d a f i g u r a d e Falstaff. A m e l h o r delas é a d e P ú c h k i n , q u e e r a e n t u s i a s t a d e l e . E m s u a s conversações à mesa (table-talks) ele d i z : " É possível q u e e m n e n h u m o u t r o lugar o g ê n i o a m p l í s s i m o d e S h a k e s p e a r e t e n h a se e x p r e s s a d o c o m t a n t a v a r i e d a d e c o m o e m Falstaff, cujos vícios, u m ligado a o o u t r o , c o m p õ e m u m a cadeia divertida e monstruosa, semelhante a u m a antiga bacanal. A n a l i s a n d o o c a r á t e r d e F a l s t a f f v e m o s q u e seu t r a ç o p r i n c i p a l é a gula; j o v e m , é provável q u e t e n h a sido e m primeiro lugar u m vulgar e grosseiro cortejador de mulheres; agora, p o r é m , que j á passou dos cinqüenta, engordou e parece envelhecido, a gula e o vinho g a n h a r a m d e V ê n u s . E m s e g u n d o l u g a r , ele é u m p a t i f e , m a s , t e n d o p a s s a d o sua vida com jovens avoados, exposto sempre à zombaria e às peças q u e eles lhe p r e g a v a m , d i s s i m u l a a p r ó p r i a m i s é r i a s o b u m a o u s a d i a g o z a d o r a e elusiva. É a d u l a d o r por h á b i t o e p o r cálculo. Falstaff n ã o é a b s o l u t a m e n t e u m t o l o , a o c o n t r á r i o , ele t e m a l g u n s h á b i t o s d e q u e m freqüentou t a m b é m a b o a sociedade. N ã o possui n e n h u m a regra. É fraco c o m o u m a mulherzinha e necessita d e u m b o m vinho e s p a n h o l (the sack), d e u m r e p a s t o s u b s t a n c i a l e d e d i n h e i r o p a r a suas a m a n t e s . P a r a consegui-los está disposto a t u d o , c o n q u a n t o n ã o c o r r a s é r i o p e r i g o " . A isso p o d e m o s a c r e s c e n t a r q u e Falstaff à s vezes
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c o n f u n d e seus a d v e r s á r i o s c o m t i r a d a s e s p i r i t u o s a s ; e m o u t r a s , a o contrário, é derrotado e obrigado a passar por vexames, c o m o conv é m a u m c a r á t e r c ô m i c o . A m e a ç a m d e r r e t e r s u a g o r d u r a . E m As alegres comadres de Windsor ele escreve c a r t a s d e a m o r a d u a s s e n h o r a s c a s a d a s , a o m e s m o t e m p o . S ó q u e n ã o l o g r a ê x i t o : as m u l h e r e s p e r m a n e c e m fiéis a o s r e s p e c t i v o s m a r i d o s . N a p r i m e i r a vez ele se e s c o n d e n o c e s t o d a r o u p a s u j a q u e é j o g a d o n a á g u a c o m ele d e n t r o ; n a s e g u n d a , p r o c u r a fugir d i s f a r ç a d o d e m u l h e r g o r d a , m a s o a p a n h a m e b a t e m nele. É u m a r g u m e n t o folclórico, m a s Falstaff é u m tipo exclusivamente shakespeariano. É ao m e s m o t e m p o cômico e s a t í r i c o e se a p r o x i m a d o m o d e l o d e R a b e l a i s . P ú c h k i n , a o escrever s o b r e F a l s t a f f , c o n t r a p õ e S h a k e s p e a r e a Molière. O s caracteres de Molière s ã o unilaterais. " E m Molière o hipócrita corteja a mulher do p r ó p r i o benfeitor, fazendo o hipócrita; t o m a c o n t a d a p r o p r i e d a d e d e seu b e n f e i t o r , f a z e n d o o h i p ó c r i t a ; p e d e u m c o p o d e á g u a , f a z e n d o o h i p ó c r i t a . " I s t o se liga a o q u e foi d i t o antes, sobre a unilateralidade das caricaturas. Shakespeare é sempre v a r i a d o e r e p r e s e n t a c o m o q u e a c u l m i n a ç ã o n a c r i a ç ã o t a n t o d e figur a s vitais e c ô m i c a s q u a n t o de e n r e d o s n i t i d a m e n t e c ô m i c o s . O o t i m i s m o existencial n ã o é a ú n i c a q u a l i d a d e p o s i t i v a q u e p o d e ser t r a t a d a d e m o d o c ô m i c o . U m a o u t r a é a e n g e n h o s i d a d e e a esperteza, a capacidade de adaptar-se à vida e de orientar-se e m qualquer dificuldade e n c o n t r a n d o u m a saída. Destas qualidades são dotadas a l g u m a s p e r s o n a g e n s d a c o m é d i a que conseguem safar-se dos a n t a g o n i s t a s . O s a n t a g o n i s t a s s ã o s e m p r e t i p o s n e g a t i v o s e p o r isso a personagem sabida que os engana adquire u m caráter ao m e s m o t e m p o p o s i t i v o e c ô m i c o . U m a d a s v a r i e d a d e s d e s s e t i p o s ã o o s servos astutos d a s antigas comédias italianas e francesas. P e r t e n c e m a esta c a t e g o r i a , p o r e x e m p l o , o T r u f f a l d i n o d a c o m é d i a d e G o l d o n i Arlequim, servidor de dois amos e o F i g a r o d e O barbeiro de Sevilha de Beaumarchais. N a tragédia nós simpatizamos com o derrotado, n a comédia, c o m q u e m g a n h a . N a comédia a vitória d á prazer ao espectador m e s m o q u a n d o esta é obtida c o m meios d e luta n ã o prop r i a m e n t e irrepreensíveis, c o n q u a n t o eles s e j a m e n g e n h o s o s , a s t u t o s e a t e s t e m o c a r á t e r a l e g r e d e q u e m o s u s a . Estes s e r v o s a s t u t o s s ã o encontrados em muitíssimas comédias de Molière. E m Molière temos, habitualmente, personagens que pertencem a duas gerações: os jovens e os v e l h o s . O s m a i s velhos s ã o r e p r e s e n t a d o s p o r t i p o s n e g a t i v o s ( O avarenío, Tartufo, O misantropó), o s m a i s j o v e n s , p o r t i p o s positivos. Os jovens querem a m a r e casar-se, os velhos p r o c u r a m impedil o s . O s s e r v o s d o s j o v e n s , alegres e a s t u t o s , l e v a m - n o s a g a n h a r d o s v e l h o s , q u e s ã o d e r r o t a d o s j u n t a m e n t e c o m seus vícios.
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N ã o h á n e c e s s i d a d e d e se e n t r a r e m d e t a l h e s . É s u f i c i e n t e l e m b r a r q u e n a a r t e d a c o m é d i a c l á s s i c a existe u m t i p o d e s e r v o a l e g r e e a s t u t o q u e é, a o m e s m o t e m p o , c ô m i c o e p o s i t i v o . D e f o r m a u m t a n t o d i f e r e n t e , este t i p o a p a r e c e n ã o a p e n a s n a s c o m é d i a s , m a s t a m b é m n o s r o m a n c e s p i c a r e s c o s . O h e r ó i desses r o m a n c e s — u m s e r v o , u m v a g a b u n d o , u m s o l d a d o — e n g a n a s e u p a t r ã o e sai-se b e m , s e m p r e , n a s s i t u a ç õ e s difíceis. À d i f e r e n ç a d o s s e r v o s d a s c o m é d i a s d e M o l i è r e , ele l u t a a seu f a v o r c o n t r a o s p a t r õ e s e c o n t r a os p o d e r o s o s d e s s e m u n d o . E s t a l u t a a d q u i r e o c a r á t e r d e l u t a s o c i a l e p o r i s s o o s r o m a n c e s p i c a r e s c o s se a p r o x i m a m d o s c o n t o s p o p u l a res s o b r e os b u f õ e s . Os c a r a c t e r e s , nestes casos, fundem-se c o m a intriga que, substancialmente, reduz-se a u m logro. O p a í s o n d e n o s é c u l o X V I surgiu o r o m a n c e p i c a r e s c o c ô m i c o (Lazarillo de Tormes, 1554), e o n d e ele teve seu d e s e n v o l v i m e n t o , é a E s p a n h a . N a m e s m a E s p a n h a f o r a m c r i a d a s a s figuras d e D o m Q u i x o t e e S a n c h o P a n ç a . S o b r e D o m Q u i x o t e escreveu-se m u i t í s s i m o , e m m u i t a s estéticas e h i s t ó r i a s d a l i t e r a t u r a , d e m o d o q u e p o d e m o s ser b r e v e s e n ã o repetir o q u e j á foi d i t o . O q u e n o s i n t e r e s s a é o p r o b l e m a d a c o m i c i d a d e d a s p e r s o n a g e n s p o s i t i v a s . O s t i p o s dessas p e r s o nagens são variados, c o m o são variados os tipos h u m a n o s . Pela n o b r e z a d e s u a s a s p i r a ç õ e s e p e l a e l e v a ç ã o d e suas c o n s i d e r a ç õ e s , D o m Q u i x o t e é figura q u e s o b r e s s a i p o s i t i v a m e n t e . P o r é m é r i d í c u l o , devido à completa incapacidade de adaptar-se à vida. Deste p o n t o d e vista ele é d i a m e t r a l m e n t e o p o s t o à q u e l e s p i l a n t r a s e e s p e r t o s q u e s ã o b e m - s u c e d i d o s n a v i d a e l u t a m v i t o r i o s a m e n t e p a r a o seu p r o v e i t o e o p r o v e i t o d a q u e l e s a q u e m s ã o fiéis. D o m Q u i x o t e n ã o é c ô m i c o p o r s u a s q u a l i d a d e s p o s i t i v a s , m a s pelas n e g a t i v a s . S ã o essas q u a l i d a des e n ã o sua nobreza que o t o r n a r a m conhecido n o m u n d o inteiro. T o d a s as p r i n c i p a i s a v e n t u r a s d e D o m Q u i x o t e s ã o d e n a t u r e z a c ô m i c a . P a r a a c o m i c i d a d e d o r o m a n c e c o n t r i b u i t a m b é m a figura d e S a n c h o P a n ç a . A n o b r e z a c o n f e r e a t o d a s as a v e n t u r a s d e D o m Q u i x o t e u m caráter n ã o apenas cômico, mas de p r o f u n d o valor. E s t a c o m b i n a ç ã o é única e m toda a literatura universal. A comicidade adquire aqui em última instância u m caráter trágico. N ó s n o s l i m i t a m o s a essas p o u c a s o b s e r v a ç õ e s . P o d e r - s e - i a a i n d a falar d o Sr. P i c k w i c k e de o u t r a s p e r s o n a g e n s de Dickens, d e C h a r l i e C h a p l i n e d a s p e r s o n a g e n s c o m o v e n t e s q u e ele c r i o u , da figura do b o m soldado Chveik, criado p o r T c h a p e k , e de muitos o u t r o s . O discurso p o r é m nos levaria l o n g e d e m a i s . P a r a n ó s era i m p o r t a n t e estabelecer p o r que e em quais casos são cômicas as p e r s o n a g e n s p o s i t i v a s e, e m t r a ç o s g e r a i s , b a s e a d o s n o s e x e m p l o s q u e a p r e s e n t a m o s , i s t o foi f e i t o .
20 Um r0 papel do^©utro| Muit© barullíOjPor nada
E m Kant há u m pensamento f o r m u l a d o da seguinte maneira: " O riso é o e f e i t o ( q u e d e r i v a ) d e u m f r a c a s s o r e p e n t i n o d e u m a i n t e n s a e x p e c t a t i v a " . E s t a frase é c i t a d a m u i t a s vezes, s e m p r e e m sent i d o c r í t i c o . J e a n P a u l e x p r e s s o u s u a c r í t i c a d e m o d o leve e d e l i c a d o : " A nova definição kantiana do cômico, de acordo com a qual o c ô m i c o consiste n o repentino fracasso de u m a expectativa, oferece muitos motivos de discussão". Mais decidido, Schopenhauer, que se o p õ e t a n t o a K a n t q u a n t o a J e a n P a u l , a s s i m e s c r e v e : " A t e o r i a do cômico de Kant e Jean Paul é conhecida. Considero supérfluo a p o n t a r seus e r r o s " . E l e a c h a q u e q u e m t e n t a r a p l i c a r e s s a t e o r i a a o s fatos p a s s a i m e d i a t a m e n t e a c o n v e n c e r - s e d e s u a i n c o n s i s t ê n c i a . Outros autores manifestaram-se da mesma maneira sobre o assunto. Apesar disso t u d o , u m exame c o m p a r a t i v o dos fatos mostra q u e a t e o r i a d e K a n t n ã o e s t á e r r a d a , e m b o r a ela r e q u e i r a a l g u n s r e p a r o s e c o m p l e m e n t a ç õ e s . N ã o é e x a t o q u e o riso s o b r e v é m a p ó s " u m a intensa e x p e c t a t i v a " . O riso p o d e surgir de m o d o c o m p l e t a m e n t e inesperado. O q u e mais i m p o r t a , p o r é m , n ã o é isso. U m a e x p e c t a t i v a q u e n ã o d á e m n a d a , d a q u a l fala K a n t , p o d e ser c ô m i c a ou n ã o . K a n t n ã o definiu o c a r á t e r específico d o c ô m i c o . E m q u e condições u m a espera frustrada suscita o riso e em quais n ã o ? Se, por exemplo, u m a m o ç a casou-se a c h a n d o q u e o
UM NO PAPEL DO OUTRO. MUITO BARULHO POR NADA
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noivo era o h o m e m ideal, ou pelo menos honesto e b o m , e depois ele c o m e t e u m a a ç ã o b a i x a , d e s o n e s t a , v e r g o n h o s a , n i s s o n ã o h á realmente n a d a de cômico. U m a expectativa frustrada não
levou
ao riso. A teoria de K a n t precisa a p e n a s de u m r e p a r o : o riso surge s o m e n t e q u a n d o a e x p e c t a t i v a f r u s t r a d a não
leva
a conseqüências
sérias o u t r á g i c a s . A t e o r i a d e K a n t n ã o c o n t r a d i z
absolutamente
a q u i l o q u e foi d i t o n o s c a p í t u l o s p r e c e d e n t e s . Se c o n s i d e r a r m o s c o m a t e n ç ã o e s t a t e o r i a d e s c o b r i r e m o s q u e s u a e s s ê n c i a se r e d u z a certo desmascaramento.
um
O p e n s a m e n t o de K a n t a d m i t e u m a amplia-
ç ã o e p o d e ser e x p r e s s o d a s e g u i n t e f o r m a : " n ó s r i m o s q u a n d o e s p e ramos que haja alguma coisa, mas na realidade n ã o há n a d a " . Este " a l g u m a c o i s a " é u m a pessoa que é t o m a d a p o r algo de importante, d e s i g n i f i c a t i v o , d e p o s i t i v o . O " n a d a " é a q u i l o e m q u e ela r e a l m e n t e se t r a n s f o r m a . S o b r e i s s o e s t á f u n d a d o o e n r e d o d e O tor geral.
inspe-
"Extraordinário, senhores! O funcionário que t o m a m o s
p o r inspetor, n ã o era i n s p e t o r ! " Os funcionários, a c o m e ç a r pelo prefeito, pensam que Khlestakóv é u m a personagem
importante,
u m g e n e r a l , q u e t r a t a d e i g u a l p a r a igual c o m m i n i s t r o s e e m b a i x a d o res q u a n d o , de repente, descobre-se q u e n ã o é plenipotenciário e n e m sequer u m a personalidade, m a s um " f a j u t o " e u m
"aproveitador".
O b s e r v a n d o - s e c o m a t e n ç ã o ver-se-á q u e o e n r e d o d e Almas
mortas
baseia-se n o m e s m o princípio. Tchítchikov é t o m a d o por u m ricaço, p o r u m m i l i o n á r i o , t o d o s f i c a m e n c a n t a d o s c o m ele, e n q u a n t o n ã o passa de u m aventureiro, u m impostor que e n g a n o u a todos. As palav r a s d a m u l h e r d e K o r ó b k i n e m O inspetor
geral:
" É isso m e s m o ,
u m a v e r g o n h a n u n c a v i s t a " p o d e m ser a p l i c a d a s , e m igual m e d i d a , t a n t o a O inspetor
geral
q u a n t o a Almas
mortas.
D . P . Nikoláiev
está certo q u a n d o escreve: " J u s t a m e n t e o fato de querer
parecer
q u e m n ã o é c r i a a p o s s i b i l i d a d e d o r i s o " ( 2 9 , 5 6 ) . Vulis é a i n d a mais explícito: " ' I s s o e n a d a disso' é — q u e m sabe — o esquema mais geral de q u a l q u e r manifestação c ô m i c a " . O m e s m o conceito é e x p r e s s o p o r I u r ê n i e v : " O s a c o n t e c i m e n t o s n ã o se d e s e n r o l a m c o m o se e s p e r a v a e q u e m g a n h a n ã o é q u e m se e s p e r a v a " ( 4 0 , 9 7 ) . E s t e p r i n c í p i o é c o n h e c i d o h á m u i t o e foi c h a m a d o d e quó,
qüipro-
o q u e significa " u m e m l u g a r d o o u t r o " . S o b r e ele baseia-se o
m o t i v o , e x t r e m a m e n t e c o m u m nas antigas comédias, d o disfarce, d a a ç ã o e m l u g a r d e o u t r e m , o n d e u m é t r o c a d o p o r o u t r o . E nas a ç õ e s c o s t u m a m a c o m p a n h a r o e n g a n o . E m O inspetor
geral
Khlestakóv
t o r n a - s e i m p o s t o r sem q u e r e r , m a s isto n ã o m u d a a essência d a c o i s a .
146
COMICIDADE E RISO
N a c o m é d i a clássica antiga o i m p o s t o r e n g a n a intencionalm e n t e o a n t a g o n i s t a . E s t a f o r m a d e i m p o s t u r a p o d e ser c o n s i d e rada um caso particular de e n g o d o . D a r e m o s a p e n a s d o i s o u t r ê s e x e m p l o s . E r n O anfitrião de Molière, o deus Júpiter apaixona-se pela mulher d o chefe t e b a n o Anfitrião, A l c m e n a . E n q u a n t o A n f i t r i ã o está na g u e r r a , Júpiter vai p r o c u r á - l a , a s s u m i n d o o a s p e c t o d o m a r i d o d e l a . Q u a n d o o marido volta da guerra, o engano é descoberto. Júpiter procura cons o l a r A n f i t r i ã o , d i z e n d o - l h e q u e seu rival f o r a u m d e u s e q u e d e l a n a s c e r á u m f i l h o , H é r c u l e s . A s i t u a ç ã o e m si p o d e r i a n ã o ser c ô m i c a : p o d e se c o n s i d e r a r d e d i v e r s a s m a n e i r a s a u s u r p a ç ã o d o s d i r e i t o s c o n j u g a i s . T o d a a a ç ã o , p o r é m , n ã o se d e s e n r o l a n a r e a l i d a d e , m a s n a f a n t a s i a . O d e u s é o b r i g a d o a ir e m b o r a , fez u m p a p e l ã o , t r i u n f a a verdade, triunfa o marido, tudo acaba bem. E m A décima segunda noite, d e S h a k e s p e a r e , o s p r o t a g o n i s tas, gêmeos indistinguíveis p o r sua semelhança, são i r m ã o e irmã. A i r m ã se d i s f a r ç a d e h o m e m e e s t e é o i n í c i o d e m u i t í s s i m o s e q u í v o c o s q u e p r o v o c a m u m riso g e r a l n a p l a t é i a . O princípio d o q ü i p r o q u ó o c o r r e principalmente n a velha c o m é d i a c l á s s i c a d a E u r o p a O c i d e n t a l , m a s se e n c o n t r a t a m b é m n a l i t e r a t u r a r u s s a . A s s i m , e m A senhorita camponesa, de Púchkin, u m a s e n h o r i t a d e p r o v í n c i a se d i s f a r ç a d e c a m p o n e s a , e e n g a n a d e s s e j e i t o o filho d e u m p r o p r i e t á r i o v i z i n h o . O e q u í v o c o se esclarece e m s e g u i d a e t u d o a c a b a e m c a s a m e n t o . O e n r e d o o n d e a l g u é m se faz p a s s a r p o r o u t r e m , s u s c i t a n d o c o m isso o r i s o , é b a s t a n t e d i f u n d i d o e m t o d a s as l i t e r a t u r a s , m e s m o n a soviética, e p o d e r í a m o s d a r m u i t o s e x e m p l o s . U m e m a r a n h a d o de equívocos dessa natureza é a t r a m a da comédia de Zóschenko Uma bolsa de tela grossa. S o b r e o m e s m o p r i n c í p i o f u n d a - s e a c o m i c i d a d e d a i m p o s t u r a . E m As doze cadeiras d e Ilf e P e t r o v , O s t a p B e n d e r faz-se p a s s a r p o r u m g r a n d e e n x a d r i s t a , e m b o r a d e x a d r e z ele n ã o e n t e n d a p a t a v i n a . E m O vitelo de ouro, o c a r r o d e O s t a p Bend e r e d e s u a c o m p a n h e i r a é t o m a d o p e l o c a r r o e m pole position de u m a c o r r i d a d e a u t o m ó v e i s e e m t o d o l u g a r recebe h o n r a d a s e present e s . O s t a p vale-se d i s s o , a s t u t a m e n t e , p a r a se fazer p a s s a r p o r c a m p e ã o , a t é q u e se d e s c o b r e o e m b u s t e e o c a r r o t e m q u e s u m i r d e p r e s s a d e c e n a . N o s c a s o s a q u i a p r e s e n t a d o s o i m p o s t o r faz-se p a s s a r p o r a l g u é m s u p e r i o r e m a i s i m p o r t a n t e d o q u e ele é n a r e a l i d a d e . É p o s s í v e l , p o r é m , e m c a s o c o n t r á r i o , q u e u m a p e s s o a se faça t o m a r p o r a l g u é m inferior a ela. Alguns g r a n d e s h u m o r i s t a s russos g o s t a v a m d e encenar mistificações d e s t e g ê n e r o . Eis o q u e c o n t a M a r i a P a v l o v n a T c h é k h o v a ,
UM NO PAPEL DO OUTRO. MUITO BARULHO POR NADA
147
irmã de T c h é k h o v , a respeito dele: " N u n c a esquecerei q u a n t o A n t o n P á v l o v i t c h m e fez s o f r e r , a o r e g r e s s a r d e t r e m d e M o s c o u . V i a j a v a conosco no m e s m o trem o professor Storojenko, q u e fora meu professor e q u e m e e x a m i n a r a q u a n d o e u f r e q ü e n t a v a o s C u r s o s S u p e riores V. I. Guerié. Disse isso a A n t o n , suplicando-lhe que p a r a s s e d e b r i n c a r . M a s ele d e u d e i n v e n t a r , d e p r o p ó s i t o , u m m o n t ã o d e coisas absurdas, que m e faziam estremecer. D e repente c o m e ç o u a relatar, e m voz alta, q u e servira c o m o cozinheiro em casa de certa condessa, que preparara na cozinha u m sem-número de pratos e c o m o os p a t r õ e s o a c h a v a m u m ó t i m o c o z i n h e i r o e o l o u v a v a m p o r isso. O violoncelista M . P . S e m a c h k o , q u e viajava c o n o s c o , t o p a v a a p a r a d a , f i n g i n d o , p o r s u a v e z , ser u m m o r d o m o q u e p r e s t a v a serviço e m casa de alguns senhores. Eles c o n t a v a m u m a o o u t r o casos e x t r a o r d i n á r i o s q u e lhes t e r i a m a c o n t e c i d o , d u r a n t e s u a s a t i v i d a d e s " (35, 87). T a m b é m na vida de G ó g o l há u m a p o r ç ã o de casos assim. O p r i n c í p i o " a l g u é m n o l u g a r d e o u t r e m " p o d e ser e x p r e s s o d e f o r m a ainda mais geral por " u m a coisa n o lugar de o u t r a " .
A
isto a p r o x i m a - s e b a s t a n t e o f e n ô m e n o q u e p o d e ser f o r m u l a d o b r e v e m e n t e c o m o " o vazio e m lugar d o suposto c o n t e ú d o " . Este princípio está m u i t o próximo daquele que expressou Shakespeare q u a n d o cham o u u m a d e s u a s c o m é d i a s Muito
barulho
por
nada.
N ã o examina-
remos aqui o entrecho dessa c o m é d i a c o m p l i c a d a , p o r q u e poderia n o s d e s v i a r d e n o s s o r u m o . O p r i n c í p i o d e Muito
barulho
por
nada
desaparece na comédia de nosso tempo, justamente porque, em nossa v i d a , e s t e fato r a r a m e n t e se verifica. E l e o c o r r e q u a n d o
acontece
u m c l a m o r e x t r a o r d i n á r i o m o t i v a d o p o r c a u s a s insignificantes. nome
cavalar
Sobre-
de Tchékhov é um exemplo d o caso. Este mesmo prin-
c í p i o está n a b a s e d e a l g u m a s c o m é d i a s c i n e m a t o g r á f i c a s . i n t i t u l a d a Trinta
e três,
Naquela
u m dentista descobre q u e u m paciente n ã o
possui trinta e dois dentes, c o m o todos, m a s trinta e três. O fato t o r n a - s e c o n h e c i d o , o h o m e m se t o r n a célebre, s o b r e o a s s u n t o e s c r e v e m - s e teses d e d o u t o r a m e n t o , u m m u s e u reserva s u a caveira, recebem-no e m t o d o lugar com deferência, querem hospedálo e t c . A c o m é d i a sofre d e a l g u m e x a g e r o , m a s a s i t u a ç ã o b á s i c a é realmente cômica. A h i s t ó r i a t e r m i n a a s s i m : seu d e n t e e s t r a g a , t e m - s e q u e e x t r a í lo e d e s c o b r e - s e q u e s o b r e u m a ú n i c a r a i z h a v i a d u a s c ú s p i d e s . Isso é o q u e n o r m a l m e n t e o c o r r e n a r e a l i d a d e e, c o n s e q ü e n t e m e n t e ,
o
h o m e m sempre tivera apenas trinta e dois dentes, c o m o todos, e n ã o trinta e três.
148
COMICIDADE E RISO
Estes e n r e d o s p r e s t a m - s e m a i s a s e r e m classificados c o m o fantásticos q u e c o m o r e a l i s t a s . E n c o n t r a m - s e f r e q ü e n t e m e n t e n o s c o n t o s de fada. E m sua forma mais p u r a o princípio d o " m u i t o barulho p o r n a d a " encontra-se, provavelmente, em alguns contos de caráter cumul a t i v o . L e m b r e m o s m a i s u m d e l e s , o d e A jovem piedosa. Uma jovem vai a o rio l a v a r r o u p a . N a o u t r a m a r g e m e s t á a a l d e i a o n d e m o r a seu n a m o r a d o . I s s o l e v a a j o v e m a essas c o n s i d e r a ç õ e s : " F i c a r e i n o i v a n a q u e l a aldeia, terei u m filho. O filho i r á p a s s e a r s o b r e o gelo e, a i n d a c o m d o z e a n o s i n c o m p l e t o s , m o r r e r á a f o g a d o p e l o f a t o d e o gelo se q u e b r a r e ele a f u n d a r " . P e n s a n d o isso ela c o m e ç a a c h o r a r . C h e g a a avó que t a m b é m começa a chorar. Depois chega o vovô e todos j u n t o s c o m e ç a m a l a m e n t a r - s e . O n a m o r a d o (ou o u t r a p e r s o n a g e m ) , a p ó s s a b e r d o q u e se t r a t a , vai p e l o m u n d o a f o r a , p a r a ver se e n c o n tra alguém mais tolo d o que sua n a m o r a d a . E costuma encontrá-lo. Aqui o contraste entre a inconsistência da causa e a confusão q u e é o c a s i o n a d a serve p a r a p ô r e m evidência a estupidez da n a m o r a d a . E s t e c o n t r a s t e é c ô m i c o e m si, n ã o s e n d o i n d i s p e n s á v e l sublin h a r a tolice d a m o ç a . N o c o n t o Um ovo quebrado rompe-se u m o v o , o a v ô c o n t a p a r a a a v ó e e s t a se p õ e a c h o r a r . A n o t í c i a d o o v o q u e b r a d o corre a aldeia e nasce u m barulhão d o s diabos. O avô chora, a vovó grita, a galinha cacareja, o portão range, e os gansos g r a s n a m , o s a c r i s t ã o t o c a os s i n o s , o p o p e r a s g a o s l i v r o s . A c a b a c o m a aldeia sendo destruída pelo fogo. À s v e z e s , n a v e r d a d e , o f u á se d e v e a o f a t o d e q u e n ã o se t r a t a d e u m simples o v o , m a s sim de u m o v o de o u r o . Isto p o r é m n ã o m u d a a essência d a q u e s t ã o . A l g u n s teóricos p õ e m casos desta espécie e m r e l a ç ã o c o m a b o l h a q u e v a i i n c h a n d o , i n c h a n d o a t é e s t o u rar c o m fragor. A c o m p a r a ç ã o v e m m u i t o a propósito e expressa m e t a f o r i c a m e n t e a essência da q u e s t ã o .
I
i
OUTROS TIPOS DE RISO
21 O riso bom
P o r e n q u a n t o só t e m o s analisado u m ú n i c o tipo de riso: o q u e e n c e r r a d e n t r o d e si, d e c l a r a d o o u v e l a d o , u m m a t i z d e z o m b a r i a , s u s c i t a d o p o r a l g u n s d e f e i t o s d a q u i l o o u d e q u e m se r i . É o t i p o d e r i s o m a i s d i f u n d i d o q u e se e n c o n t r a f r e q ü e n t e m e n t e n a v i d a e n a a r t e . É c l a r o q u e n ã o e x i s t e a p e n a s ele e q u e , a n t e s d e t i r a r conclusões sobre a n a t u r e z a d o riso e da c o m i c i d a d e em geral, é necessário, q u a n d o possível, examinar t o d o s os tipos d e riso. É i g u a l m e n t e e v i d e n t e , p o r é m , q u e n ã o se ri a p e n a s p o r q u e se d e s c o b r e d e f e i t o s e m q u e m e s t á a n o s s a v o l t a , m a s t a m b é m p o r outros motivos que cabe, p o r t a n t o , estabelecer. H á p o u c o d e m o s o elenco dos tipos de riso l e v a n t a d o s p o r P . I u r ê n i e v . Ele é rico e interessante, m a s u m t a n t o d e s o r g a n i z a d o e s e m finalidades científicas. N ã o existe lá tentativa de classificação. P a r t i n d o - s e de o b s e r v a ç õ e s de o r d e m p u r a m e n t e q u a n t i t a t i v a , p o d e m o s afirmar que o riso de z o m b a r i a é o mais freqüente, q u e é o tipo fundamental de riso h u m a n o e q u e t o d o s os outros tipos e n c o n t r a m - s e m u i t o m a i s r a r a m e n t e . D o p o n t o d e vista d a l ó g i c a f o r m a l p o d e - s e chegar r a c i o n a l m e n t e à c o n c l u s ã o de q u e há d u a s g r a n d e s subdivisões de riso, ou dois g ê n e r o s . U m c o n t é m a derrisão, o o u t r o n ã o . A s u b d i v i s ã o é a o m e s m o t e m p o u m a classificaç ã o , c o n f o r m e a p r e s e n ç a o u n ã o d e u m f a t o r . N o c a s o d a d o ela
152
COMICIDADE E RISO
é correta não apenas formalmente, mas também substancialmente. A m e s m a subdivisão aparece t a m b é m em algumas estéticas. Lessing e s c r e v e n a Dramaturgia absolutamente
de Hamburgo:
a mesma coisa".
" R i s o e irrisão não
são
Deve-se p o r é m acrescentar
que
u m a delimitação nítida e precisa n ã o existe, que há casos p o r assim d i z e r i n t e r m e d i á r i o s , d e t r a n s i ç ã o , e é a eles q u e d e v e m o s d i r i g i r nossa atenção, agora. ( V i m o s h á p o u c o q u e o r i s o é p o s s í v e l a p e n a s q u a n d o o s defeit o s d e q u e m se ri n ã o a d q u i r e m o a s p e c t o d e vícios e n ã o p r o v o c a m repulsão. O problema, conseqüentemente, é um problema de gradaç ã o . P o d e a c o n t e c e r , p o r e x e m p l o , q u e o s d e f e i t o s s e j a m t ã o irrelevantes a p o n t o de suscitar em n ó s n ã o o riso, m a s o sorriso. O d e f e i t o p o d e ser p r ó p r i o d e u m a p e s s o a a q u e m a m a m o s e a p r e c i a m o s b a s t a n t e o u p o r q u e m sentimos s i m p a t i a . N o q u a d r o geral de u m a avaliação positiva e da a p r o v a ç ã o , um pequeno defeito
não
p r o v o c a c o n d e n a ç ã o , m a s p o d e , a o c o n t r á r i o , r e f o r ç a r u m sentim e n t o de afeto e s i m p a t i a . A pessoas assim p e r d o a m o s
facilmente
suas falhas. E s t a é a base psicológica d o riso b o m . É desse t i p o de riso q u e v a m o s t r a t a r a g o r a . À diferença dos elementos de sarcasmo e de prazer maldoso existentes n o riso de z o m b a r i a , nós l i d a m o s aqui c o m u m t i p o de h u m o r atenuado e inofensivo. " S o m e n t e o termo ' h u m o r ' " ,
diz
V u l i s , " p o d e ser e m p r e g a d o q u a n d o o a u t o r e s t á d o l a d o d o o b j e t o de r i s o " . O conceito de " h u m o r "
1
foi f r e q ü e n t e m e n t e d e f i n i d o p o r
d i f e r e n t e s e s t é t i c a s . (Em s e n t i d o l a t o p o d e m o s e n t e n d e r p o r h u m o r a c a p a c i d a d e d e p e r c e b e r e criar o c ô m i c o . ) M a s n e s t e c a s o se t r a t a d e o u t r a coisa. \ " ' C ô m i c o ' e ' h u m o r ' " , escreve N . H a r t m a n n ,
"estão
n a t u r a l m e n t e l i g a d o s e n t r e si, m a s n ã o c o i n c i d e m d e m a n e i r a a l g u m a , m e s m o q u e f o r m a l m e n t e sejam paralelos".^(O h u m o r é a q u e l a dispos i ç ã o d e e s p í r i t o q u e e m n o s s a s r e l a ç õ e s c o m os o u t r o s , p e l a m a n i festação exterior de p e q u e n o s defeitos, nos deixa entrever u m a natureza i n t e r n a m e n t e positiva. Este tipo de h u m o r nasce de u m a inclinação benevolente?) O riso b o m p o d e se m a n i f e s t a r c o m o s m a i s d i v e r s o s m a t i z e s . U m deles é o q u e c h a m a m o s d e " c h a r g e a m i g á v e l " . P a r a d i z e r a v e r d a d e , os q u e s ã o v i s a d o s p o r e l a n e m s e m p r e f i c a m Iósif í g u i n c o n t a u m c a s o i n t e r e s s a n t e :
Ou "humorismo".
satisfeitos.
O RISO BOM
| 153Í
Na maioria dos atores as charges suscitam sorrisos e brincadeiras. Só tia Katia (é assim que os leningradenses c h a m a v a m a Ekaterina P. Kortcháguina-Alexándrovskaia) secava as lágrimas, c o m um lenço. " N ã o pode s e r " , p e n s e i , " s e r á que ela se o f e n d e u ? " Mas ela me p u x o u pela m a n g a e, s o l u ç a n d o , d i s s e - m e : " N ã o repare, querido. A nós o espectador nos c o n h e c e e n q u a n t o e s t a m o s no palco, e n q u a n t o e s t a m o s vivos. Ele p r e c i s a de d e s e n h o s , de f o t o g r a f i a s para l e m b r a r d a g e n t e . D e s e n h e - n o s , q u e r i d o . Claro, seria m e l h o r se n ã o f o s s e m c h a r g e s . M a s , d e i x a para lá, se você n ã o sabe nos retratar c o m o r e a l m e n t e s o m o s ! " (21, 22). 2
A q u i a charge amigável limita com a caricatura. Verdadeira cordialidade nela não p o d e haver, é claro, e m b o r a o autor tenha as m e l h o r e s d a s i n t e n ç õ e s . N e s t e s e n t i d o o c a s o n ã o é t í p i c o . N a m a i o r i a dos casos o riso b o m é a c o m p a n h a d o j u s t a m e n t e p o r u m sentido de afetuosa cordialidade. G r a n d e s mestres d o h u m o rismo cordial e de sua e n c a r n a ç ã o literária e artística f o r a m P ú c h k i n , D i c k e n s , T c h é k h o v e, e m p a r t e , T o l s t ó i . N ã o i r e m o s a p r e s e n t a r aqui exemplos dentro da o r d e m d a história literária, m a s escolhem o s alguns casos significativos. T o d o s s a b e m q u e as c r i a n ç a s s ã o e n g r a ç a d a s n a i n f â n c i a , a t é a adolescência. Perceberam-no e expressaram-no artisticamente grandes escritores c o m o Leão Tolstói e — em outras formas — Tchékhov. Tolstói não é certamente u m humorista e não tem c o m o objetivo p r o v o c a r o riso d o leitor, m a s sabe suscitar nele u m sorriso i n v o l u n t á r i o , u m sorriso de s i m p a t i a e de a p r o v a ç ã o . A s c r i a n ç a s e m T c h é k h o v s ã o d o s t i p o s m a i s v a r i a d o s . A l g u n s deles são esboçados tragicamente, c o m o é o caso de V a n k a J u k o v , q u e foi d a d o a u m s a p a t e i r o p a r a a p r e n d e r o o f í c i o e q u e e s c r e v e p a r a s u a c a s a n a a l d e i a c o n t a n d o t o d a s as s u a s a m a r g u r a s . E s t e s d e s g o s t o s s ã o d e s c r i t o s e m l i n g u a g e m infantil e i n g ê n u a , e é p o r isso m e s m o que é t a m b é m um pouco cômica, m a s o c o n t e ú d o da carta choca o leitor devido à terrível v e r d a d e q u e c o n t é m . D e c a r á t e r t o t a l m e n t e d i v e r s o é o c o n t o Criançada*, o n d e são descritas crianças que j o g a m víspora. Eis c o m o é descrita u m a delas, o p e q u e n o Gricha: " É u m m e n i n o p e q u e n o de n o v e a n o s , cabelo c o r t a d o , d e i x a n d o n u a a c a b e ç a , faces r e c h o n c h u d a s e g o r d o s l á b i o s d e n e g r o " . U m a o u t r a , 4
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Ekaterina P. Kortcháguina-Alexándrovskaia (1874-1951). Artista de teatro muito popular na década de 30, especialmente representando papéis de mulher de meiaidade, simples e do povo. Tradução brasileira de Boris Schnaiderman, A dama do cachorrinho e outros contos. São Paulo, Max Limonad, 1985. p. 83-9. Ibidem, p. 84
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COMICIDADE E RISO
m e n o r , é assim descrita: "Aliocha, p i m p o l h o r e c h o n c h u d o , q u e lemb r a u m a b o l a , fica b u f a n d o e f u n g a n d o e a r r e g a l a o s o l h o s p a r a as c a r t a s " . S ó q u e T c h é k h o v n ã o d e s c r e v e a p e n a s a a p a r ê n c i a d a s crianças, m a s p e n e t r a sutilmente em sua psicologia e em seu caráter. O aspecto, neste caso, n ã o encobre s u a natureza, m a s revela-a e é u m a n a t u r e z a q u e n ã o suscita e m n ó s d e s a p r o v a ç ã o , m a s n o s leva a s o r r i r . I s s o se r e f e r e t a m b é m a o s d e f e i t o s . A s c r i a n ç a s d e s c r i t a s p o r T c h é k h o v n ã o são ideais. G r i c h a j o g a exclusivamente p o r dinheiro. " A o ganhar, agarra o dinheiro c o m sofreguidão e o esconde imediatamente no b o l s o . " Sua irmã, Ania, não joga por dinheiro, m a s pelo gosto de g a n h a r dos o u t r o s e sofre q u a n d o g a n h a alguém q u e n ã o seja e l a . O m e n o r d e t o d o s , A l i o c h a , g o s t a d e i n c i d e n t e s . " À primeira vista, parece fleumático, mas é b o a bisca, n o f u n d o . " A d o r a q u a n d o sai u m a b r i g a . D o p o n t o d e v i s t a d e u m a r í g i d a p e d a g o g i a , isto n ã o é a b s o l u t a m e n t e o i d e a l . R e p r e s e n t a n t e d e s s e t i p o d e p e d a g o g i a é, a o c o n t r á r i o , V á s s i a , e s t u d a n t e d o 5? a n o . E n t r a n d o n a s a l a d e j a n t a r , ele p e n s a c o n s i g o m e s m o : " É u m a i n d i g n i d a d e ! [...] c o m o se p o d e d a r d i n h e i r o a c r i a n ç a s ? C o m o se p o d e l h e s p e r mitir j o g o s de a z a r ? Bela p e d a g o g i a ! U m a i n d i g n i d a d e ! " L o g o , p o r é m , ele t a m b é m j u n t a - s e a o s j o g a d o r e s . D e l e T c h é k h o v ri d e u m riso diferente das o u t r a s c r i a n ç a s . Dessa f o r m a a p a r e c e diante de nós a n a t u r e z a d o riso b o m , d a q u e l e h u m o r a t e n u a d o de q u e T c h é k h o v foi u m m e s t r e t o d o e s p e c i a l . 5
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É p o s s í v e l , à l u z d o q u e foi e x p o s t o , d e c i d i r p o r q u e a s c r i a n ças, j u s t a m e n t e p o r serem c r i a n ç a s , s ã o t a n t a s vezes e n g r a ç a d a s ? Vimos que o riso surge q u a n d o d e p a r a m o s c o m manifestações exteriores de vida espiritual, que e s c o n d e m interiormente u m a substância q u e lhes é i n a d e q u a d a . A o c o n s i d e r a r m o s as c r i a n ç a s , o q u e s a l t a a o s o l h o s é j u s t a m e n t e a v i v i d e z d a forma exterior. Quanto mais colorida a forma, tanto mais forte é a comicidade q u e involunt a r i a m e n t e n a s c e d e l a , m a s as f o r m a s e x t e r i o r e s a q u i n ã o e s c o n d e m a substância interior. A o contrário, colocam-na em evidência. Ela c o n s t i t u i a p r ó p r i a s u b s t â n c i a d a n a t u r e z a i n f a n t i l . A q u i n ã o existe desarmonia, pelo contrário, trata-se de h a r m o n i a e esta integridade nos alegra. O u t r o exemplo clássico de h u m o r b o m é Queridinha , ainda de Tchékhov. A queridinha é u m a m o ç a que perde, u m após 8
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Ibidem, p. 84. Ibidem, p. 84. Ibidem, p. 87. Tradução brasileira de Boris Schnaiderman, em A dama do cachorrinho contos, cit., p. 293-306.
e
outros
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o o u t r o , t o d o s os h o m e n s q u e a m o u . Ela c o m o q u e n ã o possui interesses p r ó p r i o s , m a s a d e r e s e m p r e a o s d e q u e m a m a . E n q u a n t o e s p o s a d e u m e m p r e s á r i o t e a t r a l , a j u d a o m a r i d o e r e p e t e t o d a s as o p i n i õ e s d e l e . D e p o i s q u e ele m o r r e , c a s a - s e c o m o g e r e n t e d e u m d e p ó s i t o d e m a d e i r a e, d e n o v o , a j u d a o m a r i d o . A c o i s a m a i s i m p o r tante p a r a ela n a vida a g o r a são as tarifas. ' T i n h a os m e s m o s p e n s a m e n t o s que o m a r i d o . " S u a terceira devoção é p a r a c o m u m veter i n á r i o e, e n t ã o , m a i s d o q u e p o r q u a l q u e r o u t r a c o i s a n o m u n d o , interessa-se pelo g a d o . Q u a n d o o veterinário vai-se p a r a s e m p r e e é p r e c i s o q u e e l a se s e p a r e d e l e , ela fica c o m p l e t a m e n t e s ó . A g o r a " n ã o tinha mais opiniões". Q u a n d o , porém, depois de muitos anos, o v e t e r i n á r i o v o l t a a o p o v o a d o , ela t r a n s f e r e t o d o o seu a m o r a o filho d e l e d e n o v e a n o s : a j u d a - o a p r e p a r a r as l i ç õ e s , t o m a c o n t a d e l e e o m i m a , e a g o r a e l a p a r t i l h a d a s i d é i a s d o m e n i n o s o b r e as f á b u l a s q u e m a n d a m ele ler n a e s c o l a e s o b r e a g r a m á t i c a l a t i n a . 9
Q u e m é Q u e r i d i n h a ? É u m a figura positiva o u negativa? E qual é o tipo de riso de T c h é k h o v a q u i ? P e l o nível de s u a vida intel e c t u a l , p e l a t o t a l f a l t a d e i n d e p e n d ê n c i a n o s j u í z o s s o b r e a v i d a ela mereceria a derrisão. P o r é m , a o mesmo t e m p o que manifesta a i n c a p a c i d a d e de q u a l q u e r juízo i n d e p e n d e n t e , ela d á m o s t r a s de t a m a n h a força de a m o r e de ternura feminina, t a m a n h a capacidade d e r e n u n c i a r c o m p l e t a m e n t e a si m e s m a , t a m a n h o d e s i n t e r e s s e , q u e suas qualidades negativas empalidecem diante desta absoluta e contínua capacidade de amar profunda e sinceramente. É notável que, q u a n d o foi e s c r i t a , a Queridinha n ã o foi e n t e n d i d a . U . I. G o r b u n ó v - P o s s a d o v escreveu a T c h é k h o v e m 2 4 / 1 1 / 1 8 9 9 q u e " D ú c h e t c h k a é a l g o c o m p l e t a m e n t e g o g o l i a n o " (sic! V . P . ) . À l u z d o q u e d i s s e m o s a n t e s q u a n t o a G ó g o l , t e m o s q u e rejeitar t o t a l m e n t e este j u í z o . L e ã o T o l s t ó i g o s t o u m u i t o deste c o n t o . S u a filha T a t i a n a L v o v n a escrevia a T c h é k h o v e m 3 0 / 3 / 1 8 9 2 : " V o s s a q u e r i d i n h a é u m e n c a n t o [...] p a p a i l e u - a q u a t r o v e z e s s e g u i d a s e m v o z a l t a e d i z q u e d e l a tirou muita s a b e d o r i a " . P o r é m , m e s m o gostando do conto, o próp r i o T o l s t ó i n ã o e n t e n d e u a i d é i a d e T c h é k h o v . E m 1905 ele e s c r e veu u m a n o t a s o b r e este c o n t o , d i z e n d o q u e o ideal de T c h é k h o v era a mulher evoluída que trabalhasse p a r a o b e m d a sociedade e que Tchékhov tinha querido zombar da pobre queridinha, que não c o r r e s p o n d i a a esse i d e a l . F i c a , a o c o n t r á r i o , b a s t a n t e c l a r o q u e o 10
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Ibidem, p. 298. Em russo, Diíchetchka. Urban Ivánovitch Gorbunóv-Possadov (1864-1940), pedagogo e publicista russo, diretor da editora Posrednik, fundada por Leão Tolstói.
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COMICIDADE E RISO
ideal d a i g u a l d a d e dos direitos e a figura de q u e r i d i n h a , q u e é de t o t a l a b n e g a ç ã o , n ã o se e x c l u e m u m a o o u t r o e q u e T c h é k h o v , c o m t r a ç o s leves d e h u m o r , p o e t i z o u e s t a f i g u r a d e l i c i o s a m e n t e f e m i n i n a . T c h é k h o v , p e l o c o n t r á r i o , n ã o a m a v a m u i t o as m u l h e r e s e r u d i t a s . N o c o n t o A meia
vermelha
ele d e s c r e v e u m a j o v e m e s p o s a q u e , s e m
r e p a r a r m u i t o nas regras de p o n t u a ç ã o e de ortografia, escreve u m a l o n g a c a r t a . O m a r i d o vê e s t a c a r t a e c h a m a - l h e a a t e n ç ã o s o b r e os erros e sobre sua ignorância. A m u l h e r chora de m a n s i n h o e o m a r i d o se a r r e p e n d e d e s u a r e p r e e n s ã o e l e m b r a - s e d e t o d a s as q u a lidades d a mulher, tão afeiçoada, t ã o a m o r o s a e b o n d o s a ,
com
q u e m é t ã o fácil e t ã o b o n i t o v i v e r . " L e m b r o u - s e ele d i a n t e d i s s o d e c o m o c o s t u m a m ser p e s a d a s a s m u l h e r e s i n t e l i g e n t e s , c o m o elas s ã o e x i g e n t e s , s e v e r a s e i n t r a n s i g e n t e s [...] A o d i a b o c o m e l a s ! C o m as s i m p l e s i n h a s vive-se m e l h o r e m a i s t r a n q ü i l a m e n t e . " H á estudiosos que negam a possibilidade de u m riso
bom.
Bergson, por exemplo, diz: " A q u i l o que é cômico, p a r a que sua a ç ã o p l e n a se m a n i f e s t e , r e q u e r c o m o q u e u m a r á p i d a a n e s t e s i a d o c o r a ç ã o . I s s o q u e r d i z e r q u e s ó se p o d e rir t o r n a n d o - s e , a o m e n o s p o r u m m o m e n t o , c r u e l e i n s e n s í v e l à s d e s g r a ç a s a l h e i a s . E s t a afirm a ç ã o é verdadeira a p e n a s q u a n t o a o riso de z o m b a r i a , ligado à c o m i c i d a d e d o s d e f e i t o s h u m a n o s , m a s é falsa q u a n t o a o s o u t r o s tipos de riso. O u t r o s afirmaram exatamente o contrário: " P a r e c e u m e s e m p r e " , escreve o escritor c a n a d e n s e Leacock, " q u e o verdadeiro h u m o r , p o r s u a própria n a t u r e z a , n ã o p o d e ser m a u n e m cruel. E u n ã o t e n h o d i f i c u l d a d e e m a d m i t i r q u e e m c a d a u m d e n ó s existe u m a alegria m a l d o s a , primordial e diabólica, que n ã o custa n a d a p a r a a p a r e c e r , se a a l g u é m p r ó x i m o d e n ó s a c o n t e c e u m a d e s g r a ç a . É u m sentimento de certa f o r m a inseparável d a n a t u r e z a h u m a n a , c o m o o p e c a d o original. O q u e h á p a r a rir, façam o favor de dizerm e , se u m t r a n s e u n t e — e s p e c i a l m e n t e se f o r g o r d o e i m p o r t a n t e — d e r e p e n t e e s c o r r e g a s o b r e u m a c a s c a d e b a n a n a e se e s p a r r a m a no chão?
Pois para nós é e n g r a ç a d o " .
"Como
a maioria
dos
h o m e n s " , e s c r e v e m a i s a d i a n t e , " a c h o q u e o h u m o r d e v e ser, a n t e s d e m a i s n a d a , b e n i g n o e n ã o c r u e l " ( 2 3 , 199, 2 0 1 ) . A m b o s o s p o n tos de vista são errados e unilaterais. R e s p o n d e n d o a B e r g s o n p o d e se d i z e r q u e o r i s o b o m q u e n ã o r e q u e r n e n h u m a " a n e s t e s i a d o c o r a ç ã o " é possível, mas Leacock t a m p o u c o está certo a o achar que o riso b o m é o ú n i c o possível e m o r a l m e n t e justificado. A a f i r m a ç ã o d e q u e o r i s o é a m o r a l p o d e l e v a r a u m a p o s t u r a n e g a t i v a e m relaç ã o a o r i s o tout
court.
Essa e r a , p o r sinal, c o n f o r m e v i m o s , a ati-
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t u d e d e H e g e l d i a n t e d o r i s o e d a s á t i r a . M a s ele n ã o é o ú n i c o . A m e s m a i d é i a foi s u s t e n t a d a n a d a m e n o s q u e p o r G o e t h e . N u m a c o n v e r s a c o m o c h a n c e l e r M ü l l e r ele d i s s e : " S ó p o d e ser h u m o r i s t a aquele que não tem consciência ou responsabilidade"; " W i e l a n d , p o r e x e m p l o , t i n h a h u m o r i s m o p o r q u e era cético e o s céticos n ã o levam realmente n a d a a s é r i o " ; " Q u e m olha p a r a a vida seriamente n ã o p o d e ser u m h u m o r i s t a " . P o d e m o s respeitar a p o s t u r a p r o f u n d a m e n t e séria d o g r a n d e Goethe diante d a vida, e diante de suas obrigações. P ú c h k i n , n o f u n d o , t a m b é m era p r o f u n d a m e n t e sério e m u i t o b o m , m a s s a b i a rir c o m g o s t o : 1 2
Liênski e Olga estão jogando x a d r e z E L i ê n s k i , e n q u a n t o de a m o r e s morre C o m e c o m o peão s u a p r ó p r i a torre.
A c o m i c i d a d e d a d i s t r a ç ã o j á foi e x p l i c a d a a n t e s . S ó q u e n e s t e c a s o n ã o cai n a t e o r i a q u e a c a b a m o s d e e x p o r . E p o r q u ê ? P o r q u e o erro de Liênski n ã o nasce de pequenas ou mesquinhas preocupaç õ e s o u i m p u l s o s , m a s se t r a t a j u s t a m e n t e d o c o n t r á r i o : A h , ele a m a v a c o m o e m n o s s o s a n o s J á não se a m a ; c o m o u m a t r e s l o u c a d a a l m a de p o e t a Ainda é condenada a a m a r . 1 3
A p r o f u n d i d a d e e a f o r ç a d o a m o r — eis o q u e l e v a a q u i à distração e isso é r e a l ç a d o p o r P ú c h k i n . O b o m h u m o r de P ú c h k i n r e v e l a - s e d e f o r m a b a s t a n t e c l a r a se c o m p a r a r m o s a d e s c r i ç ã o d o b a i l e d o s L á r i n c o m o d o g o v e r n a d o r d e Almas mortas. A m b o s os bailes s ã o descritos de f o r m a h u m o r í s t i c a , a m b o s suscitam o riso, m a s o riso é diferente. " P u l i n h o s , saltinhos e b i g o d e s " n ã o imped e m P ú c h k i n de a m a r aquela nobreza de província que constitui o fundo d o s a c o n t e c i m e n t o s d o r o m a n c e , e n q u a n t o o baile d o govern a d o r descrito p o r Gógol revela t o d a a miséria e t o d a a esqualidez da vida d a burocracia de u m a capital de província sob o regime d o czar Nicolau. A i m p o r t â n c i a d o riso b o m e r a c o m p r e e n d i d a inclusive p o r G ó g o l , cujo riso t e m u m caráter t o t a l m e n t e diverso d o riso de P ú c h k i n . " S ó u m a a l m a p r o f u n d a m e n t e b o a p o d e rir d e u m r i s o b o m e r a d i a n t e " , e s c r e v e ele n u m a r t i g o a r e s p e i t o d a m o n t a g e m
2
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Personagens do romance de Púchkin em versos Eugênio guin], cap. IV, estrofe X X V I . Ievguêni Oniéguin, cap. II, estrofe X X .
Oneguin
[Ievguêni
Onié-
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COMICIDADE E RISO
d e O inspetor geral. E m Proprietários rurais à moda antiga G ó g o l chega m u i t o p e r t o d a q u i l o que definimos a q u i c o m o o riso b o m . Belínski assim escreve a este respeito: " V o c ê s riem deste a m o r b o n a c h ã o , consolidado pela força d o h á b i t o e t r a n s f o r m a d o depois em h á b i t o , m a s seu riso é alegre e benevolente, nele n a d a h á de m a l d o s o ou de o f e n s i v o " . J e a n P a u l , teórico da c o m i c i d a d e , p o u c o s a n o s a p ó s p u b l i c a r s u a Propedêutica à estética, escreveu u m breve artigo intitulado " O valor d o h u m o r i s m o " , em q u e diz q u e o h u m o rismo ajuda a viver: " A p ó s ter lido e g u a r d a d o u m livro h u m o r í s t i c o , n ã o o d i a r á s o m u n d o c n e m a ti m e s m o " . E q u e m e s c r e v e isso é o autor de muitas obras humorísticas nas quais quis expressar a alegria de viver. T u d o isso c a r a c t e r i z a a n a t u r e z a d o r i s o b o m e n t r e o s o u t r o s t i p o s d e r i s o , s e j a m eles i n s p i r a d o s p o r d e f e i t o s q u e i n d u z e m à z o m baria, sejam-no n ã o por defeitos h u m a n o s , m a s p o r outras causas e desprovidos, portanto, de qualquer intenção derrisória.
22 O riso maldoso. O riso cínico
A e x p l i c a ç ã o d o r i s o b o m a j u d a a c o m p r e e n d e r e a d e f i n i r seu o p o s t o : o riso m a u . N o riso b o m , os p e q u e n o s defeitos daqueles q u e n ó s a m a m o s s ó e m b a ç a m s e u s l a d o s p o s i t i v o s e a t r a e n t e s . Se esses d e f e i t o s e x i s t e m , n ó s o s d e s c u l p a m o s d e b o m g r a d o . N o r i s o m a u o s d e f e i t o s , às v e z e s m e s m o s ó a p a r e n t e s , i m a g i n a d o s o u i n v e n t a d o s , são a u m e n t a d o s , inflados, a l i m e n t a n d o assim os sentimentos m a l d o s o s , r u i n s e a m a l e d i c ê n c i a . D e s t e r i s o , c m g e r a l , r i e m as p e s soas q u e n ã o a c r e d i t a m e m n e n h u m i m p u l s o n o b r e , q u e vêem e m t o d o l u g a r a f a l s i d a d e e a. h i p o c r i s i a , o s m i s a n t r o p o s q u e n ã o c o m preendem c o m o por trás das manifestações exteriores das boas ações h a j a r e a l m e n t e a l g u m a l o u v á v e l m o t i v a ç ã o . N e s s a s m o t i v a ç õ e s eles n ã o a c r e d i t a m . O s h o m e n s g e n e r o s o s o u d o t a d o s d e u m a sensibilid a d e s u p e r i o r s ã o p a r a eles u n s t o l o s o u u n s i d e a l i s t a s s e n t i m e n t a i s q u e s ó m e r e c e m e s c á r n i o . À d i f e r e n ç a d o s o u t r o s t i p o s d e r i s o vistos até a g o r a , este n ã o está ligado n e m direta n e m i n d i r e t a m e n t e à c o m i c i d a d e . E s t e riso n ã o suscita simpatia. Deste riso riem m u i t a s vezes mulheres desiludidas pela vida o u q u e se c o n s i d e r a m i n f e l i z e s , m e s m o se n e m s e m p r e e s t a infelicid a d e t e m u m f u n d a m e n t o . E s t e r i s o é p s e u d o t r á g i c o , à s vezes t r a g i c ô m i c o . E m b o r a e s t e g ê n e r o d e r i s o n ã o s u r j a d a c o m i c i d a d e , ele p o d e ser p o r si s ó o b j e t o d e r i s o p o r a q u e l e m e s m o p r i n c í p i o p e l o
Ml
COMICIDADE E RISO
q u a l p o d e m s ê - l o , e m g e r a l , o s d e f e i t o s h u m a n o s . J u s t a m e n t e este g ê n e r o d e r i s o é r i d i c u l a r i z a d o p o r T c h é k h o v e m seu scherzo teat r a l O urso. A h e r o í n a d a p e ç a , u m a v i ú v a q u e c h o r a o m a r i d o , f e c h o u - s e e m c a s a e o d e i a e d e s p r e z a o m u n d o i n t e i r o e, e m p a r t i c u lar, os h o m e n s . A c o m i c i d a d e reside n o fato de q u e t o d a esta misantropia é fingida e q u e atrás dela n ã o há n e n h u m s e n t i m e n t o verdadeiro. E m sua casa irrompe um credor e nasce u m conflito. Entre eles o r i g i n a - s e u m a d i s c u s s ã o s o b r e a f i d e l i d a d e n o a m o r . Ela: Permita-me, entào, q u e m é, na sua opinião, fiel e c o n s t a n t e no amor? Não vai me dizer que é o h o m e m ! Ele: S i m , senhora, o h o m e m ! Ela: O h o m e m ! (com um riso maldoso) O h o m e m fiel e c o n s t a n t e no amor!... A r u b r i c a " c o m u m r i s o m a l d o s o " e n c o n t r a - s e m a i s u m a vez n e s t e scherzo. A d o n a d a c a s a a g r a d a a o h ó s p e d e e ele o d e c l a r a p a r a ela: Ele: A senhora... m e agrada. Ela (com um riso maldoso): Eu lhe agrado! Agora diz que lhe agrado! (mostrando-lhe a porta) Pode sair! O conflito t e r m i n a c o m u m longo beijo e c o m u m p e d i d o de c a s a m e n t o .
amoroso
T c h é k h o v z o m b o u d e u m r i s o d e s s e g ê n e r o , m a s n a v i d a ele é extremamente penoso porque não contagia ninguém e é patrimôn i o e x c l u s i v o d e q u e m se a b a n d o n a a ele p a r a r e c r u d e s c e r a s feridas de sua p r ó p r i a a l m a . Este tipo de riso p o d e t o r n a r - s e objeto d e t r a t a m e n t o c ô m i c o , m a s p o r si s ó ele p e r m a n e c e f o r a d o â m b i t o da c o m i c i d a d e . Psicologicamente o riso m a l d o s o a p r o x i m a - s e d o riso cínico. U m e o u t r o originam-se de s e n t i m e n t o s ruins e m a l d o sos, m a s sua s u b s t â n c i a é p r o f u n d a m e n t e diferente. O riso m a l d o s o e s t á l i g a d o a d e f e i t o s falsos e o r i s o c í n i c o p r e n d e - s e a o p r a z e r p e l a desgraça alheia. V i m o s , h á p o u c o , q u e , d e v i d o à d i s t r a ç ã o , à falta d e a t e n ç ã o ou à incapacidade de adaptar-se a u m a situação qualquer o u a orientar-se n e l a , m a s m u i t a s vezes t a m b é m p o r a c a s o , a c o n t e c e m p e q u e n o s reveses q u e f a z e m rir a q u e m o s assiste. O limite e n t r e a s p e q u e n a s d e s g r a ç a s , q u e f a z e m rir q u e m a s p r e s e n c i a , e as g r a n d e s , q u e j á n ã o p r o v o c a m o riso, n ã o p o d e ser e s t a b e l e c i d o s o b r e b a s e s lógicas. Ele só é percebido pelo sentido m o r a l . A desgraça dos o u t r o s , n ã o i m p o r t a se p e q u e n a o u g r a n d e , e a infelicidade alheia p o d e m levar u m ser h u m a n o á r i d o , i n c a p a z d e e n t e n d e r o s o f r i m e n t o d o s o u t r o s ,
O RISO MALDOSO. O RISO CÍNICO
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