Cinema e Literatura, A Adaptacao Como Digest

November 2, 2017 | Author: argo | Category: Fyodor Dostoyevsky, Aesthetics, Novels, Adaptation, Books
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A Adaptacao Como Digest...

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A presente tradução se baseou no artigo original em francês publicado na Revista Esprit de julho de 1948, 16º ano, número 146, e numa tradução inglesa do artigo presente no livro norte-americano Film Adaptation, editado por James Naremore, que, por sua vez, usou a tradução de Alain Pierre e Bert Cardullo feita em 1997 para o livro Bazin at Work, de Bert Cardullo.

Adaptação, ou o cinema como digest (fácil assimilação) 1. De André Bazin / Tradução: Maria Cristina Homem de Melo e Cesar Zamberlan

Coloca-se, de uma maneira simplista, o problema das adaptações no âmbito da literatura. Mas ainda que faça parte da literatura, a literatura tem uma amplitude muito maior. Tomemos a pintura, como exemplo. Pode-se considerar o museu como um digest (síntese), pois lá encontramos reunida uma seleção de quadros cuja existência configura outro contexto arquitetônico e decorativo. Mas, são ainda quadros originais, mas o que pensar do “Museu Imaginário” proposto por Malraux e que, graças à reprodução fotográfica, retrata o original em milhões de cópias. Ele substitui as imagens de dimensões e de cores diferentes por uma foto do quadro, tornando esta obra muito mais acessível. A fotografia, no entanto, continua sendo uma

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Nota dos tradutores: Digest – Uma palavra de difícil tradução no português. Bazin usa o termo proveniente do inglês. O dicionário de língua Inglesa Longman afirma que numa primeira acepção o termo refere-se à digestão; numa segunda, a uma história curta que dá os fatos mais importantes sobre um livro, reportagem etc; e, numa terceira acepção, forma de entender novas informações, especialmente quando há muitas delas ou é difícil de entendê-las. Segundo o dicionário francês Larousse, digest é uma coisa de fácil digestão, assimilação; de um outro modo, poderia se pensar em resumo, síntese, simplificação. O termo serve de título a Revista Esprit, de julho de 1948, a qual este artigo está inserido, cujo tema é justamente: “A Civilização do Digest”. Quem explica melhor o termo e a ideia da revista é Chris Marker, num artigo intitulado “Sauvages blancs seulement confondre”, que numa tradução literal seria, “Os brancos selvagens somente confundem” e tanto o texto dele quanto o de John Bainbridge, “Le Petit Magazine” que antecedem o texto de Bazin, citam e se detém bastante na revista norte-americana Readers Digest.

sucessora da gravura, se torna uma “adaptação” aproximada para o uso dos amantes da arte2. Não se pode esquecer que a “adaptação” e o “resumo” das obras originais já há muito tempo faz parte dos costumes e com tal amplitude que seguramente não há como colocar sua existência em discussão. Usemos o exemplo do cinema. Mais que um escritor, mais que um crítico e, veja, mais que um cineasta contestam a justificativa estética das adaptações de romances para a tela, mas existem poucos exemplos dos que se opõem a esta prática, dos que se recusam a vender seus livros, a adaptar o dos outros, ou mesmo, colocá-los em cena quando um produtor insiste com bons argumentos. Não me parece que tal contestação seja, em geral, bem fundada. Eles invocam a especificidade única de toda obra literária original. Um romance é uma sintese única cujo equilibrio molecular é fatalmente comprometido quando se atinge a forma. Essencialmente, nenhum detalhe da narrativa pode ser considerado secundário, nenhuma particularidade sintática, nada que seja expressão da matéria psicológica, moral ou metafisica da obra. É verdade que Andre Gidé, quando usa os passados simpless (passé simple)3, tal tempo verbal é imanente aos eventos de Sinfonia Pastoral, o mesmo ocorre quando Albert Camus usa o tempo verbal dos passados compostos (passé composé) no drama metafísico de O Estrangeiro. 2

Nota de André Bazin: Durante um recente programa de rádio do “French Cancan”, no qual os senhores Pierre Benoît, Labarthe e alguns outros falavam amenidades, nos ouvimos Curzio Malaparte perguntar ao locutor o que ele pensaria, por exemplo, sobre a versão condensada do Parthenon; na sua mente isso supostamente seria um argumento contra o “digeste”. Ninguém de lá respondeu que uma versão condensada foi feita muito tempo atrás com o modelo das frisas e, sobretudo, a partir dos álbuns de fotografia da acrópole que a gente pode encontrar por um preço módico em qualquer vendedor de reprodução de arte. Na nota da tradução inglesa, explica-se que: Pierre Benoit (1876-1962) foi um novelista francês membro da Academia Francesa, autor de "Koenigsmark and L´Atlantide”; que Labarthe foi uma figura literária obscura do tempo de Bazin, co-autor com Marcel Brion, Jean Cocteau, Fred Bérence, Emmanuel Berle, Danielle Hunebelle, Robert Lebel, Jean-lucas Dubreton e Jean-jaques Salomon um volume intitulado Leonardo da Vinci, 1959; e que Curzio Malaparte (1898-1957) foi novelista italiano, célebre autor de Kaputt, entre muito outros trabalhos, e que contribuiu com um filme para o cinema italiano, “Cristo Proibido”, 1950, o qual escreveu, dirigiu e fez a trilha sonora. 3

Nota da tradução inglesa: Bazin usa o termo “passé simple” em francês. O “passé simple” é um tipo de tempo verbal no passado que não tem similar no português e nem no inglês. Este tempo do imperfeito no francês é um tipo de passado simples, mas não é usado na linguagem usual, é um tempo verbal empregado apenas na linguagem escrita e, por consequência, literária. Atualmente, para expressar a mesma ideia se usa o “passé composé” ou imperfeito.

Mesmo se colocado em termos tão complexos, o problema da adaptação cinematográfica não é essencialmente insolúvel, e a história do cinema já prova que ele foi muitas vezes resolvido e de várias maneiras. Como exemplos incontestáveis, citaria Serra de Taruel, de Malraux; Um dia no Campo, de Jean Renoir, a partir de Maupassant; e o recente Vinhas da Ira de Steinbeck. Mas não me sinto à vontade para defender um êxito mais duvidoso como o de Sinfonia Pastoral. É verdade que nem tudo nas adaptações é bem sucedido, mas também não é certo que as pessoas a considerem como a mais inefável, tendo em vista a obra original. Eu não gosto muito da atuação de Pierre Blanchard, mas, ao contrário, eu acredito que os olhos de Michelle Morgan e o leitmotiv, sempre presente, da neve, suprem fortemente o tempo verbal do passado simples de Gide. Basta que o diretor tenha bastante imaginação para inventar os equivalentes cinematográficos relativos ao estilo do texto original e ao crítico que tenha olhos para ver isso. É verdade que tal tese implica no cuidado de não confundir o estilo com as particularidades gramaticais e mais geralmente ainda com as constantes formais. Esta é uma heresia generalizada que não atinge somente, e infelizmente, os professores de françês. A forma não é nada além que um signo, uma aparência sensível do estilo, sendo que o estilo é totalmente insepáravel do fundo do qual se constitui, de alguma forma, como aponta Sartre, da metafísica. Nessas condições, a fidelidade a uma forma literária ou outra é ilusória, o que conta e a equivalência do sentido das formas4. O estilo do filme de Malraux é rigorosamente idêntico ao do seu livro, Serra de Taruel, ainda que um seja um filme e o outro um livro. Mais sútil é o caso de Um dia no Campo no qual a fidelidade ao espírito da obra de Maupassant beneficia todo o gênio de Renoir. E aí que encontramos a refração (réfraction) de uma obra no espírito de outro criador. Ninguém contestará a beleza do resultado. Era necessário sem dúvida Maupassant, mas também Renoir (e os dois, Jean e August). Os mais instransigentes responderam que os exemplos citados provam somente que é impossível, metafisicamente, realizar uma obra cinematográfica inspirada numa obra literária, com uma fidelidade suficiente ao espírito da original e uma inteligência estética 4

Nota de André Bazin: Podemos encontrar algumas transferências no estilo, tais como o tempo verbal “passé simple” que não encontro na decupagem técnica da Pastoral, isto é na sintaxe do filme, mas vejo nos olhos da atriz e no símbolo da neve.

que permita considerar que o filme vale o livro, mas que não se trata mais de uma “adaptação” no sentido que nós entendíamos no começo deste texto. Um dia no campo, na tela, é outra obra, igual ou superior a seu modelo, porque Jean Renoir, é, na sua arte, um criador do tipo de Maupassant, mas ele se beneficiou do trabalho anterior do escritor? Se temos agora inumeráveis romances norteamericanos ou europeus adaptados a cada mês para a tela, a gente vê que se trata de uma outra coisa e, precisamente, de um condensado, de um resumo, de um “digest” cinematográfico, como um ad usum delphini5, algo esteticamente indefensável, tais como O Idiota, Por quem os sinos dobram, e essas eternas adaptações de Balzac, que parecem ter demonstrado que o autor da Comédia Humana é o menos cinematográfico dos romancistas. É verdade que é preciso primeiro saber para quem se adapta, se é para o cinema ou se é para o público, e que a maioria das adaptações se preocupou muito mais com o segundo do que com o primeiro. O problema da adapatação para o público aparece mais claramente ainda no caso do rádio. Este efetivamente não é uma arte como o cinema, mas a princípio e, sobretudo, um meio de reprodução e de difusão. O fenomeno da síntese (digest) não reside na condensação ou na simplificação das obras, mas na sua forma de consumo. O interesse cultural do rádio tem precisamente aquilo que espanta Georges Duhamel6: ele permite ao homem moderno viver num meio sonoro algo comparável ao calor fornecido pelo aquecimento central. Da minha parte, há um ano sinto a necessidade de ligar o rádio logo que chego a minha casa. Sempre escrevo e trabalho com o rádio ligado. Neste exato momento, escrevo este artigo, escutando um excelente programa diário e matinal de Jean Vittold7 sobre os grandes músicos. Agora há pouco, enquanto me barbeava, Jean

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Nota da presente tradução Literalmente seria “para o uso do delfim”, ou seja, eram as obras clássica latinas especialmente preparadas, com passagens expurgadas, para o uso do filho de Luís XIV, o delfim. 6

Nota da tradução inglesa (1884 – 1966) Atualmente uma figura esquecida. Famoso antes da 2ª Guerra Mundial, foi eleito pela Academia Francesa em 1935. Lembrado por dois ciclos de romances: o primeiro Vie et aventures de Salavin (1920 – 1932) e a popular Chronique des Pasquier (1933 – 1945). Escrevendo de forma caloroso e cheia de humor, Duhamel usou a saga de Pasquier para atacar o materialismo e defender os direitos do indivíduo contra forças coletivas da sociedade. 7

Nota da tradução inglesa Vitold foi um famoso musicólogo francês.

Rostand8 me ensinou porque somente as gatas têm o privilégio de ser simultaneamente de três cores (algo que os gatos não podem) e eu não sei mais quem me explicou, enquanto eu tomava meu café, como os Aztecas esculpiam as extraordinárias máscaras de quartzo polido que a gente pode ver no Museu do Homem9. A sinistra farsa de Jules Romain10 sobre a visão extraocular se encontra seriamente realizada pelo rádio. A rádio criou uma cultura atmosférica, onipresente como a umidade do ar. Para aqueles que acham que a cultura pode ser conseguida somente com grande esforço, a facilidade de acesso físico às obras, permitida pelo rádio, não é menos contrária à sua natureza quanto à sua forma. Mesmo que bem e integralmente executada no rádio, a 5ª Sinfonia escutada tomando seu banho não é mais a obra de Beethoven; seria necessário à música o ritual do concerto, o sacramento do recolhimento. É verdade que a gente pode ver nisso uma forma de todos terem acesso à cultura – um contato físico com a cultura, contato físico que é a princípio a condição que o outro dispõe. O rádio confortavelmente oferece, com a conveniência moderna, cultura para todos. Ele representa um ganho de tempo e de esforço que é o simbolo mesmo da nossa época, Duhamel deve pensar no rádio da mesma forma como o taxi que o leva ao concerto. O preconceito que não separa esforço intelectual da cultura deriva de um reflexo intelectualista e burguês, ele é o equivalente numa cultura racionalista aos privilégios iniciáticos das civilizações primitivas. É certo que o esoterismo é uma das grandes tradições da nossa cultura, a Deus não agrada que nos o pretendamos banir da nossa cultura, mas que o coloquemos no seu lugar porque não há nenhuma razão dele ser absoluto. Existe um prazer especifico diante da dificuldade vencida que é o refinamento supremo da relação que temos com a obra. Mas o alpinismo ainda não substitui a caminhada num terreno plano. Os modos de comunicação cultural clássicos são tanto uma defesa da cultura quanto uma defesa da afixação da cultura, as técnicas e as condições da vida moderna se opõem cada 8

Nota da tradução inglesa Rostand foi um conhecido biólogo francês que fez muito para popularizar o estudo da ciência. 9

Nota da tradução inglesa Famoso Museu de Antropologia em Paris.

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Nota da tradução inglesa Jules Romain (pseudônimo de Louis Farrigoule, 1885 – 1972), foi um romancista francês, dramaturgo, poeta, ensaísta, eleito para Academia Francesa em 1946, escreveu La Vie Unanime, uma coleção de poemas publicado em 1908. Muitos dos seus versos e sua prosa foram influenciados por teorias unanimistas, tal teoria defendia que a obra literária deve exprimir e representar a vida e os sentimentos humanos coletivos.

vez mais a uma cultura extensiva às massas ascendentes. O lema da defesa intelectualista e inconscientemente aristocrática é: “Não há cultura sem esforço”, a civilização se opôe à ideia: “nos agarramos o que podemos”. Porém, um progresso existe e já é alguma coisa. No que concerne ao cinema, a minha intenção não é de defender o infensável, como as imundas vigarices que meramente usurpam o titulos dos romances que adaptam, ainda que um bom advogado diga que elas têm um valor indireto. É provado que a tiragem de um livro aumenta quando ele é adapatado ao cinema. A obra original só tem benefícios. Embora a adaptação não seja boa, O Idiota no cinema, por exemplo, só traz beneficios ao livro. É certo que os leitores virtuais de Dostoievski nesta psicologia e ação muito simplificada têm um tipo de contato preliminar que lhe terá facilitado o acesso ao romance que, de outra forma, o teria amedrontado. A operação é um pouco análoga à praticada anteriormente por M. De Vogué (o autor de “Abridged” clássico para os estudantes do século XIX); mal visto aos olhos dos familiarizados leitores do romance russo, (mas estes leitores não têm nada a perder, assim como Dostoiévski) e é ainda muito útil àqueles que ainda não são familiarizados com o romance russo e podem ganhar com isso. De qualquer forma, não vou me colocar neste terreno porque ele tem mais a ver com a pedagogia do que com a arte. Eu gostaria mais de me ater à concepção moderna e da qual a crítica é, em grande parte, responsável pela ideia de intocabilidade da obra de arte. O século XIX, mais que os outros, estabeleceu firmemente um tipo de idolatria da forma, principalmente literária, que nos fez relegar a um segundo plano nosso espírito crítico, ele que é, desde sempre, o essencial da criação: a invenção das personagens e das situações. Eu quero muito que os heróis e os acontecimentos de um romance só existam esteticamente através da forma que os exprime e que lhes faz viver no nosso espírito. Mas essa primazia é tão vã quanto àquela na qual regularmente colocamos os que querem ingressar na faculdade ao pedir que tratem da anterioridade da linguagem sobre o pensamento. É interessante notar que estes mesmos romancistas que defendem tão veemente a integridade de seus textos, sejam os mesmos que nos confidenciaram outro dia sobre as exigencias tirânicas de seus personagens. No entender deles, seus heróis são enfant terribles e não são mais controlados por seus mestres. O romancista é o escravo de seus caprichos, instrumento de seus

desejos. Eu não duvido disso nem um minuto, mas é preciso admitir que a verdadeira realidade estética de um romance psicologico ou social é o personagem ou o meio antes de ser o que chamamos estilo. O estilo está a serviço da narrativa, se a gente quiser uma imagem, o corpo não é a alma. E não é impossível para a alma artística se manifestar em uma outra encarnação. Essa suposição, que o estilo está a serviço da narrativa, parece vã e sacrílega somente se você se recusar a ver os muitos exemplos que a história da arte nos deixou, isto permite proferir a priori imprecauções contra as adaptações cinematográficas. Com o tempo, nos vemos, acima dos grandes romances, o fantasma do personagem. Dom Quixote e Gargantua habitam familiarmente a consciência de milhões de homens que jamais tiveram contato direto ou completo com a obra de Cervantes e de Rabellais. Eu gostaria de estar certo que todos que invocam o espírito de Fabrice ou de Madame Bovary “leram” (ou releram para sermos honestos) Sthendal e Flaubert. Na medida em que o estilo da obra original soube criar e impor um personagem, este adquire uma autonomia maior que pode, em alguns casos, transcender a obra. Os romances, nos o sabemos, são criadores de mitos. Esta defesa feroz da obra literária é, em certa medida, esteticamente fundada, mas é preciso ver que ela se repousa também numa concepção individualista relativamente recente do “autor” e da “obra”, concepção que não era tão rigorosa no século XVII e que começou a ser juridicamente fixada no fim do século XVIII. Na Idade Média, a gente só conhecia temas comuns a muitas artes, como Adão e Eva, por exemplo, que a gente pode encontrar nos mistérios, na pintura, na escultura, no vitral, sem que ninguém contestasse o valor de suas diferentes adaptações. E quando a gente escolhe como tema para o Prêmio de Roma na área de pintura “Os Amores de Daphne e Chlóe11” o que é possível fazer a não ser adaptar? É certo que os direitos autorais não são reclamados. Para justificar a polivalência estética dos temas bíblicos e cristãos da Idade Média nos estaríamos errados se pretendessemos que eles contituissem um fundo comum, um tipo de domínio público da civilização cristã, as canções de gesta não foram muito respeitadas por diversos copistas. Além disso, a obra de arte não tinha um motivo nela mesma, seu conteúdo e a 11

Nota da tradução inglesa Daphne e Chlóe eram dois amantes num antigo romance pastoral grego com o mesmo nome, atribuido a Longus (sec III dC). Daphne era uma pastora siciliana que remonta ao mito grego como a inventora da poesia pastoral.

eficiência de sua mensagem eram os únicos critérios importantes. Mas, o equilibrio entre as necessidades do público e a criação era tal que garantia a excelência da forma. Poderíamos dizer, quem sabe, que tais tempos se foram e que a gente cometeria um contrasenso estético ao querer retornar, anacronicamente, as relações entre o criador, o público e a obra. A isso poderíamos responder que, ao contrário, é possível que artistas e críticos continuem cegos ao nascimento de uma nova idade média estética, cujas causas são a ascensão das massas ao poder (ou ao menos a participação ao poder) e o aparecimento de uma técnica artística correspondente: o cinema. Mas sem se aventurar numa tese que mereceria outros argumentos, o cinema foi bastante obrigado a refazer, por sua vez, e a um ritmo extraordinariamente acelerado sua evolução enquanto arte, algo como um feto que tem só alguns meses para evoluir no reino animal. Esta evolução paradoxal é contemporânea a um período já longamente decadente de uma literatura ligada a elites individualistas. A sua Idade Média estética busca os seus mitos onde ele pode os encontrar: na literatura dos séculos XIX e XX. Sem dúvida, ele poderia os criar, e isso ocorreu em particular nos filmes cômicos, desde os primeiros burlescos franceses até as comédias norte-americanas, passando por Mack Sennet e principalmente Charles Chaplin. Os defensores da pureza cinematográfica irão lembrar-se de exemplos como os das epopéias dos westerns, da revolução russa, ou das imagens inesqueciveis de Lírios Partidos (1919, Griffith) ou de Scarface (Howard Hanks, de 1932). Mas o que podemos fazer, a juventude se vai e com ela a grandeza, e outra grandeza lhe sucede e será conquistada mais lentamente. À espera disso, o cinema tomou como lhe convinha personagens já elaborados, já trabalhados, já adultos, polidos por vinte séculos de uma cultura literária já dada. O cinema os adotou e os fez entrar no seu jogo. Se a honestidade e o talento do roteirista e do diretor forem grandes, o personagem é integrado da melhor maneira possível a um novo contexto estético. Se não, nos temos esses filmes evidentemente medíocres e que a gente tem toda razão de condenar. Não se deve confundir a mediocridade com o princípio da adaptação que almeja a simplificação e a condensação de uma obra, obra da qual busca reter apenas o personsagem central e as principais situações onde o autor o havia colocado. Se o romancista não está contente, eu reconheço que ele tem o direito de defender a sua obra (ainda que ele tenha cometido no ato da venda um ato de proxenetismo que lhe retira

muita dos seus privilégios paternos), mas o fará somente porque a não encontrou melhores pais para representar os direitos dos filhos até que atinjam a maioridade. Não deveríamos identificar este direito natural com uma infalibilidade necessária e a priori. Mais do que O Processo de Kafka, adaptado por André Gide, a partir de uma tradução de André Viallate, o exemplo que seria mais conveniente à defesa da adaptação condensada seria a adaptação dos Irmãos Karamazov por Jacques Copeau. Copeau não fez nada além, e teve mais habilidade que MM. Spaak12 com O Idiota, este extrapolou os personagens do romance de Dostoievski e condensou os principais acontecimentos desta história em algumas cenas dramáticas. Existe algo levemente diferente nestes exemplos relacionados ao teatro, visto que, o público atual do teatro é culto o suficiente para ter lido o romance, mas o trabalho de Copeau continuará válido mesmo se não for este o caso. Independentemente do seu interesse pedagógico e social, legitimidade da adaptação é então fundada esteticamente:

a

- porque a obra existe de uma certa maneira independentemente de como ela é chamada, do resto, é errado confundir o estilo do “original” com a sua forma. - porque há uma diferença em relação aos direitos sobre as artes no século XIX e a noção recente e subjetivista do autor, identificado à obra, não corresponde mais a uma sociologia estetética das massas, onde o cinema vem tomar a dianteira, como numa corrida de revezamento, com o teatro e o romance, mas sem suprimir ambos e mais ainda, os reforçando. Na realidade, os verdadeiros planos de clivagem estética não se desenham mais entre as artes, mas entre os gêneros: entre o romance psicológico e o romance de costumes, mais do que entre o romance piscológico e um filme que retrate esse romance psicológico. É claro, que a adaptação ao público é inseparável da adaptação ao cinema, no sentido que o cinema é “mais público” do que o romance. Meu conhecimento do livro de Radiget foi a causa do meu sofrimento vendo O Diabo no Corpo. O espírito e o estilo do livro são de uma certa forma traidos, mas isso não impediu que a adaptação fosse 12

Nota da tradução inglesa - Charles Spaak foi um roteirista belga que escreveu Carnavival in Flanders (1935) e A grande Ilusão (1937).

uma das mais perfeitas que poderia ter sido feita e ela é absolutamente justificada. Jean Vigo poderia ter sido mais fiel ao original, mas nos podemos pensar que o filme seria invísivel ao público porque a realidade do livro teria incendiado a tela. O trabalho de Aurenche e Bost consistiu de certa forma em “transformar” (no sentido que imaginamos um transformador elétrico) a voltagem do romance. A energia estética se encontra quase que inteiramente, mas diferentemente distribuida segundo as exigências de uma ótica cinematográfica, e mesmo que eles tenham conseguido transformar o amoralismo real do original numa moral quase que visivel demais, o público só o admitiu com dificuldade. A própria palavra, que numa primeira abordagem parece ignominiosa, “Digest”, pode ser entendida num bom sentido. “Como o nome o indica, escreveu Jean Paul-Sartre, isso é uma literatura provavelmente digerida, um chyle13 literário”. Mas a gente poderia compreender também que se trata de uma literatura que se tornou mais acessível pela adaptação cinematográfica, nem tanto pelas simplificações resultantes (na Sinfonia Pastoral, a narrativa para o cinema é mais complicada), mas principalmente pelo próprio modo de expressão, como se as gorduras estéticas diferentemente emulsionadas fossem mais toleradas pelo espírito do consumidor. Nós não pensamos da nossa parte que a dificuldade de assimilação seja um critério, a priori, de um valor cultural. Dentro destas perspectivas, não é proibido imaginar que nos íamos em direção ao reinado da adaptação que destruiria a noção do autor, ao menos esta relacionada à unicidade da obra. Se o filme extraído de Ratos e Homens (1940; dirigido por Lewis Milestone) tivesse sido bem sucedido (o que poderia ser muito mais fácil que a adaptação de As Vinhas da Ira), o crítica (literário?) do ano 2050 se encontraria na presença não de um romance que foi extraído de uma peça e um filme, mas de uma mesma obra em três formas artísticas, de um tipo de pirâmide artística de três lados, os quais nada autorizaria a preferência de uma a outra: a obra seria apenas um ponto ideal no topo desta figura, que é uma construção ideal. A anterioridade cronológica de um aspecto sobre outro não seria um critério mais estético que o que determina o direito de nascimento entre os gêmeos. Malraux fez seu filme (Serra de Taruel ou L´Espoir) antes de ter escrito A Esperança (L´Espoir, o livro); a obra: ele a trazia nele. 13

NT: Chyle é um liquido esbranquiçada da digestão que se forma no intestino grave.

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