[Ciência Política] Ciência Política & Teoria do Estado (5ª ed. 2006). Lenio Luiz Streck & José Luis Bolzan de Morais
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Lenio Luiz Streck José Luis Bolzan de Morais
Ciência Política &
Teoria do Estado Quinta edição Revista e Atualizada
A livraria// 1)0 A D V O G A D O
//editora
1
I
S9 1 4 c
Streck, Lenio Luiz C iê n c ia política e teoria do estad o / L e n io L u iz S treck ; Jo s é L u is B olzan de M orais. 5. ed. rev. a t u a l.- P o rto A legre: L iv ra ria d o A dvogado Ed., 2006. 211 p .; 23 cm.
tSBN 85-7348-446-2 1. C iê n cia política. 2. T eoria do E stad o. 3. E stad o m o d e rn o . 1. M o rais, Jo sé L uis Bolzan de. II. T ítu lo . CD U 3 4 2 .2
ín d ic e s para o catálog o sistem ático C iê n c ia p o lítica T e o ria d o E stado E sta d o m o d em o
(B ib lio te cá ria responsável: M arta R o b erto , C R B -1 0 / 6 5 2 )
* ORIGINAL DATA ____ .____ PASTA_____________ N.° FOLHAS
^
LENTO LUIZ STRECK J O S É L U IS B O L Z A N DE M O RA IS
Ciência Política &
Teoria do Estado Q U IN TA ED IÇÃ O Revista e Atualizada
A livraria/ DO ADVOGADO / editora Porto Alegre 2006
Sum ário Notas preliminares à quinta e d iç ã o ..................................................................................
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['ARTE I Elem entos que caracterizam o Estado: a importância da Ciência Política 1. A aptidão da Ciôncia Política para a compreensão do nascimento do Estado M o d e r n o ............................................................................................................... 1.1. Considerações g e ra is............................................................................................... 1.2. A tradição das formas estatais pré-m od ernas................................................ 1.2.1. Principal forma estatal pré-moderna: o m ed iev o......................................
19 19 23 24
2. O EsLado na Teoria Política M o d e rn a ...................................................................... 2.1. Considerações g e r a i s .......................................................................................... 2.2. A visão positiva do Estado: o modelo co n tra tu a lista ................................ 2.2.1. O Estado de n a tu re z a ......................................................................................... 2.2.2. Contrato s o c ia l..................................................................................................... 2.2.3. Estado c i v i l ............................................................................................................ 2.3. O Estado Moderno .............................................................................................. 2.4. A primeira versão do listado Moderno: o Estado a b so iu tista ................ 2.5. A visão negativa sobre o E s t a d o ......................................................................
28 28 29 30 31 33 39 4.r» 46
3. A segunda versão do Estado Moderno: o modelo liberal e o triunfo da b u rg u e sia ............................................................................................................................ 3.1. Considerações g e r a i s ............................................................................................ 3.2. O contra Lualísmo e o Estado Iibera 1-burguês................................................ 3.2.1. Definições de lib e r a lis m o ............................................................................... 3.2.2. Os diversos núcleos do lib e r a lis m o ............................................................. 3.2.3. O (não) Estado L ib e r a l...................................................................................... 3.2.1. O início da tran sfo rm ação...............................................................................
51 51 55 56 58 61 63
4. QWclfare State e a transformação do lib e r a lis m o ................................................ 4.1. Considerações g e r a i s .......................................................................................... 4.2. A mutaçào dos papeis do Estado - do absenteísmo ao intervencionismo .................................................................................................. 4.2.1. Função(oes) da In te rv e n ç ã o ............................................................................ 4.3. A idéia do Estado do bem-estar so c ia l............................................................
68 68 69 76 78
5. A peculiarieda-de do intervencionismo do Estado no Brasil: a crônica de um simulacro e a crise da m od ern id ad e........................................................
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6. O Estado de D ire ito ...................................................................................................... 91 6.1. Considerações g e r a i s ........................................................- .............................. 91 6.2. A apresentação do Estado de Direito . . , , , ............................................ 92 6.2.1. ü Estado Liberal de D ir e ito .......................................................................... 94 6.2.2. O Estado Social de D ire ito ............................................................................. 96 6.2.3. O Estado Democrático de Direito .............................................................. 97 6.2.3.1. Ü listado Democrático dc Direito e a Constituição "Dirigente" . . 106 7. A questão dem ocrática........................................- .................................................... 109 7.1. Considerações g e r a i s ............ ............................................................. , . . 109 7.2. A democracia (liberal) representativa: seus modelos e incertezas . . . 110 7.3. Democracia: o jogo das regras e as regras do j o g o ............................ ... . 112 7.4. Propostas rirão c ljm p r id a s ............................................................................... 113 7.5. Obst ác ulos ã concretização dem ocrá tica ....................................................116 7.6. Representação versus Delegação: o problema da democracia no Brasil (e na América Latina) ........................................................ ................................ H 7 7.7. Uma "n o v a" democracia. Ü sujeito democràLico .................................... 123 7.8. Democracia, Cidadania o G lo b a liz a ç ã o .......................................................131 7.9. A antítese da democracia: o totalitarismo....................................................133 8. As crises do E s ta d o ...................................................................................................... 136 8.1. Considerações g e r a i s .......................................................................................... 136 8.2. Crise conceitual do E sta d o ............................................................................. * 137 8.2.1. A questão da soberania ............................................................. .................. 138 8.2.2. A questão dos direitos h u m a n o s ................................................................. 143 8.3. Crise estruturai............................................................... .................. .................. 148 8.3.1. O Estado do b e m -e s ta r................................................................................... 148 8.3.2. As crises de um m o d e lo ................................................................................ 150 8.4. Crise constitucional {institucional}................................................................. 153 8.5. Crise fu n cio n a l...................................................................................................... 155 8.6. Crise política (o da re p re sen a çã o )................................................................. 156 PAR TF II Elementos que caracterizam o Estado: a importância da Teoria Geral do Estado 9. Elementos constitutivos do Estado ....................................................................... 163 9.1. Considerações iniciais .......................................................................................163 9.2. A visualização d Ver F. Scaff, A Responsabilidade do Estado Intcrvcncionista, ibidem .
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l.enio Ju iz Streck José Luis Boízan de Morais
tiiiuiiiN históricas que lhe im pulsionaram , podendo ser reunida, re sum idam ente, nos seguintes aspectos: 1
A liberdade de m ercado que propiciou o surgim ento de econom ias de escala que favoreciam posições m onopolísticas. Com isso, os próprios pressup ostos liberais viam -se constrangidos, uma vez que estas posições iam de encontro aos pressupostos da econom ia liberal com o espaço da liber dade de organização c desenvolvim ento da econom ia. Como reação, surgiram duas posições diversas, com o forma de enfrentam ento à desestruturação do m ercado. De um lado, da perspectiva do legislador, "leis an titru ste" foram aprova das com o objetivo de com batê-los. Dc outro, a jurispru d ên cia consagrou que a form ação oligopolista era lícita, e daí defluía uma concorrência perfeita. A ssim , na solução am e ricana - leis antitruste - , m odificou-se a ordem juríd ica para m anter o m ercado liberal. Na Alem anha, através da ju risd i ção, o ordenam ento jurídico foi m antido intacto, mas a o r dem natural do m ercado foi quebrada.77 2 - As Crises Cíclicas do m ercado capitalista, ocorrendo em p e ríodos decenais, levavam à desestruturação dos fatores eco nôm icos e aprofundavam as diferenças sociais, cm virtude do desemprego, ou promoviam um enfraquecim ento profun do dos agentes econômicos, advindos, m uitas vezes dc fatores naturais, com o variações clim áticas dc grande envergadura, secas, inundações ctc. 3 - O utro m otivo diz respeito à presença de efeitos externos à produção, e que não podem ser apurados pelo m ercado, denom inados com o dcscconom ias externas - poluição, con gestionam ento, esgotam ento dos recursos n atu rais, etc.78 4 - As teorias socialistas são outro fator im portante a ser con si derado, diante da repercussão produzida pelos estudos eco nôm icos que negavam o m ercado e viam o liberalism o como um sistem a fadado à destruição. Esses estudos teóricos o ca sionaram a m itigação dc im im eros institutos do liberalism o, surgindo daí uma proposta alternativa ao m odelo liberal, o que conduziu, em uma espécie de síntese, a um a m aior par ticipação do Estado na/sobre a econom ia, no que se pode nom ear com o um regim e intervencionista. Em n ível teórico, poder-se-ia falar em tese liberal, antítese coletivista e síntese /VDesse m odo, àquela época, a Alemanha necessitava fortalecer-se econom icam en te, incentivando os conglom erados de em presas, para fazer face ao poderio inglês. /h y er p Scaff, op. cit. < iência Política c Troria do Estado
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intervencionista ou de iniciativa dual. O que deu origem , em m uitos países europeus, a um tipo de Estado com propostas socialistas m itigadas, onde a preocu p ação com o bem -estar da população é acentuada, não sen do prim ordial a eliminação das classes sociais. 5 - N a tradição socialista, p rod u z-sc um a crítica profunda ao projeto liberal que considerava a venda d a força de trabalho com o a v end a de um a qualquer m ercadoria. O trabalhador não vende sua força de trabalho porque quer, m as p or ter de utilizá-la para sua sobrevivência, tendo que aceitar as cond ições (de trabalho) im postas pelo poder econôm ico. Adem ais, com o a quantidade de m ão-de-obra 6 m ais num e rosa e pulverizada no m ercado do que o cap ital, este levava vantagem no ato de contratar. Esta postu ra irá contribuir, tam bém ela, para este processo de transform ação do perfil e caráter do Estad o Liberal. 6 - A transform ação do regim e foi acelerada pela I G uerra M un dial, que transform ou a face do m undo e iniciou novo cap í tulo nas relações econôm icas. Surgiu a necessidade de o E stad o atuar para organizar as necessidades produtivas, direcionando-as para o esforço de guerra, o que abriu cam inho p ara um a experiência intervencionista concreta. A guerra p ro v o co u a destru ição do m ercad o n atu ral e ocasionou enorm es perdas, requerendo a ação do Estado no sentido de evitá-las, além de p rovocar o aum ento n um érico e o surgi m ento de um a consciência de classe entre os operários, cuja organização se intensificou nesta época, e cujo poder políti co passou a ser mais respeitado, possibilitando o enfrentam ento dos proprietários dos m eios de produção. Em conseqüência disso, a concepção da separação entre o eco nôm ico e o político não tem com o subsistir. C om o já dito, a própria existência do Estado e da ordem jurídica significa uma intervenção: o Estado e a ordem jurídica são pressupostos inerentes à econom ia. O que caracterizaria o Estado com o intervencionista, já que ele o 6 desde sem pre, desde que tom em os a própria ocorrên cia do E sta do com o tal, um a v ez que toda ação estatal p rom ove algum tipo e de algum nível de intervenção na sociedade? A intervenção estatal no dom ínio econôm ico não cum pre papel socializante; antes, m uito pelo contrário, cum pre, den tre outros, o papel de m itigar os conflitos do Estado Liberal, através da atenuação de suas características - a liberdade contratual e a propried ad e pri-
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Lenio Luiz Streck José l.uia ftolzan de Morais
Vfldfl tio s m eio» d c p r o d u ç ã o n fim d e q u e h a ja a s e p a r a ç ã o e n tre or tra b a lh a d o r e s e o s m e io s d e p ro d u ç ã o .
D ecorre daí a necessidade de im por uma função social a estes Institutos c a transform ação de tantos outros. Da propriedade com direito de pleno uso, gozo e disposição, passam os a um a exigência funcional da propried ad e, sendo determ i nante sua utilização produtiva, e não mais seu título form al.79 Igual sentido perpassa pela liberdade con tratu al, hoje condicio nada por um dirigism o econôm ico estatal, im plicando tam bém uma idéia de função social do contrato.30 O Princípio d a Legalidade e o ila Separação de Poderes foram m antidos tão-som en te sob o aspecto form al, tendo sido, na prática, ab-rogados em razâo da intensa ati vidade legislativa praticada pelo Executivo e um a ce rta prática imeiliatista que lhe caracteriza. Da propried ad e p rivad a dos meios de p rod u ção passou a viger ,t função social da propriedade, e da liberdade contratual passou-se ao dirigism o contratual. Contudo, o prim ado básico do Estado Libe ral se m antém , a despeito de o Estado ter-se tran sform ad o em Intervencionista, qual seja: a separação entre os trabalhadores e os meios de produção, gerando m ais-valia, d c apropriação p rivad a pelos de tentores do cap ital.81 O utro exem plo desta transform ação no ca rá te r e no perfil do Estado Mínimo é a legislação econôm ica oriunda d o P od er E xecu ti vo, casuística e com força vinculativa ou não - o q ue Scaff nomina C apacidade N orm ativa de Conjuntura - que não condiz com os tipos formais construídos no regime liberal, destinados exclusivam ente à produção de leis gerais e abstratas com a finalidade de assegu rar o reconhecim ento d as liberdades individuais form ais e lim itativas à ação da autorid ade pública.*2 Sobre o assunto, ver também Slreck, Lenio Luiz. E que o texto constitucional nâo se transforme em um latifúndio improdutivo. - uma crítica à ineficácia do Direito. In: O Direito Público cm tempos de crise. Estudos ern homenagem a Ru)' Ruben Ruschel. Ingo Sarlet (org). Porto Alegro, Livraria do Advogado, 1999, p. 175 e segs. ^ Ver, c g-, para o caso brasileiro, o Código do C onsum idor, L oi 8.079.
Hl Aqui é de se referir o problema contemporâneo do capital financeiro e sua vola tilidade, transformando o capitalismo de produção em capitalismo de e.speculaçSo. Veja-se, sobre este debate, na literatura jurídica, a obra de 15A_K1A, Jose Eduardo. /)ireito e Globalização Econômica e Direito na Economia Globalizada. 82 Ver, e g., a atividade legislativa exercida pela função executiva no Brasil através tias medidas provisórias previstas no texto constitucional de 198.8, o que para alguns configura exercício compatível com o perfil intervencionisla da Estado Contempo râneo - ver a seguir - e, para outros, caracteriza abuso incompatível com o próprio Estado de Direito. Ciência Política c leo ria do Estado
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fi preciso salientar, ainda, que o voto ccnsitârio foi derrogndo pela pressão das m assas excluídas desse processo. O voto universal foi m esm o uma válvula dc cscap c para a revolução pregada por alguns socialistas, uma vez que possibilitou às m assas excluídas a participação no processo político e a inclusão no debate político de tem as que lhes são peculiares - particularm ente aqueles com ponen tes da questão social. Contudo, tam bém isto fez com que o Estado Liberal cam inhasse para uma transform ação, uma vez que foi neces sário aum entar o elenco das propostas políticas a fim de alcançar todo este novo eleitorado num ericam ente superior. Isto determ inou o surgim ento das norm as program aticas/1 que visam a tratar dos tem as econôm ico-sociais, mas que possuem - para alguns doutrinadores - eficácia lim itada. Surge daí a concepção dessas norm as como p olíticas/ 1 não com o jurídicas.
4.2.1. Função(ões) du Intervenção A partir do exposto, pode-se questionar: Por que o listado Libe ral com eçou a intervir? Duas razões são explicitadas por Fernando Facuri Scaff, em seu A R esponsabilidade do Estado Intervencionista. Em prim eiro lugar, a burguesia se sentiu am eaçada pelas tensões sociais existentes e, em razão delas, possibilitou m aior flexibilização do regim e liberal. Da m esm a form a, a própria burguesia se beneficiou desta intervenção, pois possibilitou que a infra-estrutura básica necessária para o de53 A s ditas norm as program áticas são de dúbia configuração, passando d c sim ples instituidoras de program as a serem desenvolvidos e dependentes dc posterior colo cação em prática até a conteúdos passíveis de usufruição pelo cidadão, im plicando intrincado debate teórico constitucional. Cabe registrar que o constitucionalism o do Estado D em ocrático de Direito adota a posição de que a C onstituição é dirigente c vinculativa, de onde exsurge que todas as norm as possuem eficácia, não tendo mais sentid o falar em "no rm as program áticas", cm sua acepção negativa. D aí que, preo cupado com a problem ática relacionada à ineficácia histórica das norm as program áticas, Ingo Sarlct, em percucicnte abordagem , prefere cham á-las de '"normas de cunho program ático", asseverando, desde logo, que todas as norm as consagradoras de direitos fundam entais são dotadas de eficácia. Cfe. Sarlet, Ingo. A eficácia dos direitos fu n dam en tais. 5* cd. rcv. e atualizada. Porto Alegre, Livraria do A dvogado, 2001, p. 271 e segs. Já M arcelo Neves, em bora reconheça o forte com ponente ideo lógico e a profunda im precisão sem ântica (vagueza e am bigüidade) das norm as program áticas, deixa claro seu entendim ento no sentido de que "p o r desctim prim enlo de norm a program atica, sem pre é possível, nos sistem as de Constituição rígida, o questionam ento jurídico da inconstitucionalidade de le i". In: Teoria üa inconstitucionalidade das leis. São Paulo, Saraiva, 1988, p. 103. 54 Sobre essa discussão, consultar Streck, H erm enêutica, op. cit., p. 224 a 239. 76
I/m io Luiz Slreck José Luis Boizan de M orais
atmvolvlmento das atividades de acum ulação e expansão do capital íoMtu' gerada com verbas públicas constituídas pela poupança e taxnçfto generallzndas. lal processo gerou uma tripla vantagem para a burguesia: A - a flexibilização do sistem a, possibilitando sua m anutenção de forma m itigada; U .1 divisão por todo o povo dos custos da infra-estrutura básica necessária para o desenvolvim ento do capital; e C - o benefício decorrente da concessão de obras e serviços públl COS.
Por óbvio que o processo intervencionista não se dâ u niform e mente, sendo necessário diferenciá-lo em razão de sua extensão o prolundidade. Assim, temos: A - Intervencionismo - fase inicial da decadência do regim e liberal. Caracterizou-se por medidas esporádicas e sem pre circu n s critas a ocasiões específicas. V isava a solu cionar problem as concretos que surgiam e podiam colocar cm risco a m anu tenção do regim e. ü - D irigism o - nesta segunda fase, a atuação estatal passa a ser m ais firme e coerente, com atos sistem áticos de ajuda e re forço à iniciativa privada, inclusive com objetivos políticoeconôm icos predeterm inados. C - Planificação - representa o últim o e m ais acabado estágio de atuação do Estado, inclusive com previsões que abrangem largo período tem poral, e com análise econôm ica global. Ainda com Scaff, é im portante frisar que a intervenção pode-se dar de diversas m aneiras, podendo-se classificá-la de m últiplas for mas. Em prim eiro lugar, a intervenção pode ser direta ou indireta. A primeira se dá quando o Estado exerce atividade econôm ica, as sumindo a condição de parceiro cios agentes privados econôm icos. I sta intervenção pode ocorrer para regulam entação do m ercado, ou no capital das em presas. Tal forma de intervenção pode ocorrer por meio de assunção total ou parcial de atividades. É o Estad o enquanto Instituição que intervém . Já a Intervenção Indireta ocorre quando o Estado age dirigindo ou controlando as atividades econôm icas privadas. N ão com o partí cipe, m as com o legislador. É o Estado enquanto ordenam ento que tlua, podendo fazê-lo no âm bito do fom ento econôm ico, da polícia econôm ica ou através da criação de infra-estruturas.85 " Op. cit., passim . A leitura desta obra 6 elucidativa sobre o tema, perm itindo-nos com preender o fenôm eno característico do listado Contem porâneo. i 'iência Política e Teoria do Estado
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T o d av ia, é m ister que nflo sojfl m rn n sp rr/m lo ou esquecido que esta est:ratégia b u rguesa nfto se dá apenas por força d estas circu n s tâncias; há, por o u tro lado, o tensionam ento p rom ovid o por outros fatores e setores, com o, aliás, já ap resen tad o an teriorm en te, que im pulsionam esta m u dança. Em p articu lar, as ditas classes operárias, com su a s reivindicações e conquistas, se ap resen taram com o agente fundam ental para que isso ocorresse, sendo, então, fundam ental que se ag regu em às d u as razõ es inaugurais ap resen tad as acim a as co n quistas p roletárias e o s direitos daí advin d os - d ireitos sociais com o um a terceira razào para o crescim en to, ap rofu nd am en to e di recio n am en to do p rocesso intervencionista.
4 .3 . A idéia do Estad o de b em -e sta r social A con seq ü ên cia gorai que advem desse p rocesso até a g o ra deli nead o se concretiza n o Welfare State, na n om enclatu ra am erican a. A regu lam en tação, em especial a da denom inada genericam en te ques tão so cial, envolvendo os tem as m ediata e im ed iatam en te relacion a d os ao processo p ro d u tiv o (relações d c trabalho, previdência, san eam en to , saú d e, ed u ca çã o etc.) d elin eiam os tra ço s característi co s d o E stad o d o Bem -Estar, ou seja, seu papel interven tivo e p ro m ocional. O que irá diferen ciar substancialm ente o m odelo d o Estado in terv en tivo con tem porâneo à form a d e E stad o do B em -E star dos E stad os assistenciaís an teriores é o fato d e a regu lação n ão significar a troca d a s garantias pela liberdade pessoal, um a vez que o benefi ciado, n o últim o caso, era considerado p erigo so à ordem pública e na p ersp ectiv a d a caritas protestante, eram vistos com o não ilum i n ad os p elas bênçãos divinas, enquanto no m odelo d c B em -E star as p restaçõ es públicas sao percebidas e con stru ídas co m o u m /u m a di reito /co n q u ista da cid adania. Além do que há uma diferença subs tancial en tre as políticas de b em -estar p ropostas num q u ad ro de assistencialisnio daquelas de um m odelo d em o crático que tem cm seu in terior o com prom isso com con cretização de sua função social. R esum idam ente, p od e-se dizer que o Welfare State, com o já d e m o n strad o anteriorm ente, em erge definitivam ente com o conseqüên cia g era l d as políticas definidas a p artir d as g ran d es guerras, das crises dei décaíla de 1930, em bora sua form ulação constitucional te nha se d ad o originalm ente n a segunda d écad a do século X X (M éxico, 1917, e VVeimar, 1919). O nete deal am ericano de R oosevelt, o keynesian ism o e a política social do p ós-Segunda G uerra na In glaterra 78
Lenio Luiz Streck Joaé Lu is Bolzan de Morais
mlAo entre os fatores relevantes que dem onstram a estru tu ra que enlri se m ontando. C om a I G uerra M undial, tem -se a inserção defi nitiva d o Estado na p ro d u ção (indústria bélica) e d istribuição (ali m entos etc.); com a crise de 1929, há um aum ento d as despesas públicas para a su sten tação do em p rego e d as con d ições d e vid a dos trabalhadores; nos an os 1940, há a co n firm ação desta atitu d e interventiva, instaurand o-se a b ase d e que tod os os cid ad ãos com o tais Iflm direito a ser p rotegidos contra dependências de cu rta ou longa d u ração. O desenvolvim ento d o État Providence o u E stad o d e B em -Estar pode ser creditad o a du as razões: A - Uma d e o rd em política, através da luta pelos d ireitos indi viduais (Terceira G eração), pelos d ireitos políticos e, final m ente, p elos direitos sociais, e B - O utra de n atu reza econôm ica, em razâo da transform ação da socicd ad c ag rária em industrial, pois "o desenvolvim ento industrial p arece a única constante cap az de ocasionar o surgim ento do problem a da segu ran ça so cial..." À vista disso, p od e-se caracterizar este m odelo de E stad o com o aquele que garan te tipos mínim os d c ren d a, alim en tação, saúde, habitação, ed u cação , assegu rad o s a todo cid ad ão , n ão com o ca rid a de, m as com o direito político.80 O cerne da diferença, além da crescente atitude interventiva estatal, se coloca exatam ente neste asp ecto de direito p róprio do cid ad ão a ter garan tid o o seu bem -estar pela ação p ositiva do Estad o com o afian çad or da qualidade de vida do povo. C om l^aulo Bonavides, pode-se enten d er que o E stad o C on tem porâneo, ao estilo do Estado do Bem -Estar, adota com p rep on d erân cia a idéia social na sua constituição com , com o diz, a exp ectativ a de que este princípio generoso e h um ano de justiça (deva) se com p ad eça(cer) d r tese n ão m enos nobre e verídica da independência da personalidade. Na tentativa de realizar este equilíbrio, estabelece-se, segundo Bobbio,87 um n o v o co n trato social, que nom ina de socialism o liberal, no qual, partindo-se da m esma concepção individualista da sociedade e adotando os m esm os instrum entos liberais, se incluem princípios de justiça distributiva, onde o governo das leis - em co n trap o sição ao H6 Ver Bobbio, Norberto d alL Dicionário dc Polílica, verbete Eslado do bem-estar. H7Ver deste autor: O Futiiro da Democracia. Uma defesa das regras do jogo: São Paulo: RT, 1986, p. 128 e 171. C iência P o lílica e Teoria d o Estado
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governo d o s h om ens - b u sq ue a im plem entação d a-d e m o cra cia com um caráter igualitário. A ssim , ao E stad o C on tem p orân eo é atribuída, um a fu n ção so cial, a qual p o d e ser ca racteriz a d a , com Pasold, co m o " ... açõ es que - por d ev er p ara co m a socied ad e - o E stad o execu te, resp eitan d o , valo rizan d o e en vo lven d o o seu SUJEITO, atendendo ao seu OBJETO e realizan d o os seu s OBJETIVOS, sem pre co m a p revalên cia do social e p rivilegiand o os v alo res fundam entais do ser h u m an o". Tal "fu n ç ã o " co m p a ctu a , em ab strato, com u m a co n d ição ins trum ental do E stad o, co m p ro m isso com o bem co m u m e com a d ig nidade d o ser h u m an o , consolid an d o-se, co n cretam en te, con form e as con d ições (ex)p o stas em ca d a Sociedade e E stad o e, tendo com o conteú d o finalístico, a idéia de justiça social e, p or con segu in te, de socialização d as relaçõ es interpessoais. N esta p ersp ectiv a, Pasold p ropõe u m conceito operacional para o Estado C on tem p orân eo , d izen do que ao estad o cab e asseg u rar e p ro m ov er ações que d êem ao h om em -trab alh ad o r g aran tias para a obtenção, m an u ten ção e e x e cu ção de seu trabalh o em co n d ições d ign as.88 Esta fu n ção social, to d av ia, não se ap resenta u n iform em en te, p od en d o co n stitu ir-se em segm entos, através de "... á re a s de atu ação nas quais o E stad o e xerce ou deva e x e rce r a função so cia l".89
88 Cfe. Pasold, op. cit., p. 60. 89 Idem, ibidem, p. 63. Ver, ainda, Bolzan de Morais, José Luis e Cademartori, Sergio U. de. "Liberalismo e Função do Estado nas Relações de Produção". Revista Seqüên cia, Florianópolis, n. 24, 1992, p. 81-91. _
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5. A peculiariedade do intervencionismo do Estado no Brasil: a crônica de um simulacro e a crise da modernidade René A ntonio M ayorga, estudioso da "m od ern id ad e" latinoam ericana, é co n tu n den te ao afirm ar que "(...) a A m érica Latina, onde o E stad o de Bem -E star jam ais chegou a estabelecer-se e co n so lidar-se com o na Europa social dem ocrática, tem agora m enos p e rs p ectivas de desenvolvim ento do que há décadas atrás e os p rocessos de red em o cratização em andam ento encontram -se num con texto de crise econôm ica gen eralizad a, não havendo capacidade p ara resolver os problem as da acu m u lação, a distribuição equitativa dos benefí cios econôm icos e, sim ultaneam ente, dem ocratizar o E stad o ".90 A s p ecu aliarid ad es do desenvolvim ento dos países d a A m érica Latina - processo de colonização, séculos de governos au toritários, ind u strialização tard ia e dependência periférica - não perm itiram a gestação e o florescim ento de um Estado de Bem -Estar Social ou algo que a ele se assim ilasse. O intervencionism o estatal confunde-se his toricam ente com a p rática au to ritária/d itato rial, con stru ind o-se o avesso da idéia de Estado Providência, aum entando as distâncias sociais e o p rocesso de em pobrecim ento das populações. A ssim , a tese de que em países periféricos, de desenvolvimento tardio, o p a pel do Estado d everia ser o de intervenção para a correção das d esigu ald ad es, n ão encontrou terreno fértil em terras latin o-am eri canas. Ao co n trário , a tese intervencionista sem pre esteve ligad a ao patrim onialism o d as elites herdeiras do colonialismo. Isso é perfeitam ente aplicável ao caso brasileiro, onde o inter vencionism o estatal, con d ição de possibilidade para a realização da função social do E stad o, serviu tão-som ente p ara a acu m u lação de capital e ren d a em favor de um a pequena parcela da população. De todo m od o, em bora o E stad o intervencionista represente um a esp é cie de am álgam a cap italista, com o projsto salvacionista em face do 90 Cfe. Mayorga, René Antonio. "Las paradojas e insuficiências de la modemización y democratización". In: Imagenes desconocídas, Buenos Aires, Clacso. C iên cia Política e T eoria d o Estado
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crescim en to d os m ovim entos de m assa, to m o u -s e , na verdade, o em b rião d a co n stru ção das condições d a e ta p a que o sucedeu nos p aíses d esen v olvid os, o E stad o D em ocrático d e D ireito. E isso não o co rreu no Brasil. N essa linha, vem bem a p rop ósito o d iz e r de B oaventura de S ou sa S an tos, p a ra quem esse E stad o, tam b ém ch a m a d o de Estado P ro vid ên cia ou Social, foi a instituição p olítica in v en tad a nas socie d ad e s cap italistas p ara com patibilizar as p ro m e ssa s da M odernidade co m o d esen v olvim en to capitalista. E ste tip o d e E sta d o , segundo os n eoliberais, foi algo que p assou , d e sa p a re ce u , e o E stad o sim ples m en te tem , ag o ra , de se en xu gar cad a v e z m ais. P a ra os neoliberais, co m p lem en ta o m estre p ortu guês, ele (o E sta d o ) é, a g o ra , uma insti tu ição an acrô n ica , porque é um a en tid ad e n acion al, e tud o o m ais está glo b alizad o. A g lo b alização n eoliberal-p ós-m od ern a co lo ca -se justam ente co m o o co n tra p o n to das políticas do Welfare state. A p arece com o a n o v a fa c e /ro u p a g e m do capitalism o in tern acio n al: a lógica geral da co m p etição globalizan te é ineq u ivocam en te co n ce n tra d o ra . Daí não ap en as fusões, m as, sobretudo, a ex clu sã o d e g ra n d e s m assas de trab alh ad o res d a possibilidade de in serção a p ta n o m u n d o econôm i co , o d esem p reg o e a precarização do trab alh o , a d esigu ald ad e social crescen te m esm o nos países em que o d e se m p re g o é co m p arativ a m en te re d u zid o , e os indicadores exibem sa ú d e e p u jan ça econôm ica - em su m a, aquilo que alguns têm ch a m a d o de "b ra silia n iz a çã o " do cap italism o a v an çad o . N o caso b rasileiro, a cre sc e o fato de que nos in serim os m ais p recariam en te no jogo, n ã o só p orq u e já som os o Brasil da p esad a heran ça escravista e d o fosso social, m as tam bém p o rq u e n o ssas fragilid ades nos to m a m v ítim as p referen ciais, sem pre p ro n ta s a su rg ir co m o "bola da vez'' n as p e rv e rsid a d e s da dinâm ica tran sn acio n al.91 P a ra este p erig o tam bém alerta A n d ré -N o é l R oth,92 ao d en u n cia r que a g lo b alização nos em purra ru m o a u m m o d elo d e regu lação so cial n eofeu d al, através da con statação do d eb ilitam en to das esp ecificid ad es que diferenciam o E stad o M o d ern o d o feudalism o: a) a d istin ção en tre esfera p rivad a e esfera p ú b lica; b ) a d issociação en tre o p o d e rio p o lítico e o econôm ico; e c) a se p a ra ç ã o en tre as funções 91 Cfe. Reis, Fábio Wanderlei. "As reformas e o mandato". In Folha de São Paulo, 28 mar 98, p. 1-3. Sobre globalização, ver, também, "Metáforas de la globalización", de Otávio Ianni, in Revista de Ciências Sociales. Quilmes, Universidad Nacional, Mayo de 1995, p. 9-19. 92 Roth, André-Noél. "O direito em crise: fim do Estado Moderno?" In: Direito e globalização econômica - implicações e perspectivas. José Eduardo Faria (org). São Paulo, Malheiros, 1996, p. 16 e segs. 82
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ad m inistrativas, políticas e ai sociedade civil. Para R oth, o caráter neofeudal da regulam entação social reside em parte nessa evolução e em parte em um a leitura pessim ista da forma decisória - a infini d ad e de foros de negociações descentralizados - su gerida pelo direi to reflexivo (de cunho autopoiético). E videntem ente, a m inim ização do Estado em p aíses que p assa ram pela etapa do Estado Providência ou Welfare State tem con se qüências absolutam ente diversas da minim ização do Estado em países com o o Brasil, onde não houve o Estado Social.93 O E stad o interventor-desenvolvim entista-regulador, que d eve ria fazer esta função social, foi - especialmente no Brasil - pródigo (som ente) p ara com as elites,94 enfim, para as cam adas m éd io-su p eriores da sociedade, que se ap ro p riaram /ap rov eitaram de tudo d es se E stad o, p rivatizan d o -o , d ividin do/lotean d o co m o capital internacional, os m onopólios e os oligopólios da econ om ia. A ssim , com o alerta Touraine, as sociedades exigem que o p od er retom e as fu n ções de árbitro na solução das injustiças.Para tanto, o E stad o d eve (re)assum ir a sua capacidade de tran sform ação da so ciedade, questão para a qual aponta claram ente o art. 3° d a C on sti tuição b rasileira, ao im por a construção de um E stad o Social, sob a fórm ula do E stad o D em ocrático de Direito. N ão se trata m ais de livrar a econom ia de vínculos paralisantes, m as ao co n trário , de rein teg rar a ativid ad e econôm ica ao conjunto da v id a social e refor ça r as interven ções do poder político.95
93 Segundo Bonavides, baseado em Kaegi, in Die Verfassungsals Rechtliche Grundordnurtg des Slaates, 1948, p. 94 e segs., "sendo o Estado social a expressão política por excelência da sociedade industrial e do mesmo passo a configuração da sobrevivên cia democrática na crise entre o Estado e a antecedente forma de sociedade (a do liberalismo), observa-se que nas sociedades em desenvolvimento, porfiando ainda por implantá-lo, sua moldura jurídica fica exposta a toda ordem de contestações, pela dificuldade em harmonizá-la com as correntes copiosas de interesses sociais antagônicos, arvorados por grupos e classes, em busca de afirmação e eficácia. Interesses ordinariamente rebeldes, transbordam eles do leito da Constituição, até fazer inevitável o conflito e a tensão entre o estado social e o Estado de Direito, entre a Constituição dos textos e a Constituição da realidade, entre a forma jurídica e o seu conteúdo material. Disso nasce não raro a desintegração da Constituição, com o sacrifício das normas a uma dinâmica de relações políticas instáveis e cambiantes". Cfe. Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo, Malheiros, 1996, p. 435. 94 Sobre a caracterização das elites, ver: Houaisst Antonio e Amaral, Roberto. Mo dernidade no Brasil: conciliação ou ruptura. Petrópolis, Vozes, 1995, p. 56. 95 Cfe. Touraine, Alain. "Ecos da ausência do Estado". In Folha de São Paulo, 17.11.96, p. 5-11. C iên cia P o lítica e T eoria d o E stado
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Repita-se, pois, que no Brasil a m od ern id ad e é ta rd ia e a rcaica. O que houve (h á ) é um sim u lacro de m o d ern id ad e.96 C om o m u ito bem assinala E ric H obsbaw n, o Brasil é "u m m o n u m en to à n e g lig ê n cia so cial", fican d o atrás de m u ito s países p eriférico s em v á rio s in d icad ores so ciais, com o m o rta lid a d e infantil e alfa b e tiz a çã o , tudo porque estes E stad o s se em p en h aram na re d u çã o d a s d e sig u a ld a des.97 Ou seja, em nosso país, as prom essas d a m o d e rn id a d e ainda não se realizaram . E, já que tais p rom essas não se re a liz a ra m , a solução que o establishment ap resen ta, por p a ra d o x a l que p ossa p a recer, é o reto rn o ao E stad o (neo)liberal. Daí que a p ó s-m o d e rn id a d e é vista com o a v isão neoliberal. Só que existe u m im en so déficit social em nosso p aís, e, p or isso, tem os que defen d er a s in stitu ições da m odernidade co n tra esse neoliberalism o p ó s-m o d ern o . Daí vir a p ro p ó sito o d ize r d e B oaven tu ra S a n to s,98 p a ra quem o Estado não p o d e p reten d er ser fraco: "P re cisa m o s d e u m E stad o cad a vez m ais fo rte p ara g a ran tir os direitos n u m co n te x to h ostil de globalização n eo lib eral". E acrescen ta: "F ica e v id e n te que o co n ceito de um E stad o fraco é um co n ceito fraco. (...) H oje, fo rça s p olíticas se confrontam c o m diferentes co n cep çõ es de re fo rm a ". P o r isso, co n clui, não é p o ssív el, ag o ra, o rg a n iz a r p oliticam en te a m iséria e a exclu são, p ro d u zid as d e m o d o d eso rg an izad o e d e sig u a l ta n to g lo balm ente q u an to nos co n texto s nacionais: "N u n ca os in clu íd os esti veram tão inclu íd os e os exclu íd o s, tão ex clu íd o s". É evid en te, p ois, que em p aíses com o o Brasil, em que o E stad o Social não existiu , o agente p rincipal de toda p o lítica so cial d e v e ser o Estad o. As p o líticas n eoliberais, que visam a m in im izar o E sta d o , não ap on tarão p a ra a realização de tarefas an tité tica s a su a n a tu re z a . Veja-se o exem p lo o co rrid o n a F ran ça, onde, a p ó s u m a v a n ç o d os neoliberais, na d écad a de 1990, a p ressão p o p u lar e x ig iu a v o lta das políticas típicas d o E stad o P ro vid ên cia. É este, p o is, o dilem a: q u an to m ais n e cessitam o s d e p o líticas públicas, em face da m iséria que se avolu m a, m ais o E sta d o , ú nico agente que p o d eria errad icar as d esigu ald ad es so cia is, se en colh e! T udo isso aco n tece na co n tra m ã o do q u e estab elece o o rd e n a m ento co n stitu cio n al brasileiro, que aponta p a ra u m E sta d o forte, in tervencion ista e reg u lad o r, n a esteira daquilo q u e, co n te m p o ra n e a 96 A expressão é de Vieira, José Ribas. Teoria do Estado. Rio de Janeiro, Lumen Juris, 1995. 97 Consultar Hobsbawn, Eric. A era dos extremos. Trad. de Marcos Santarrita. Cia das Letras, 1995. 98 Cfe. Sousa Santos, Boaventura. "Boaventura defende o Estado forte". Ln: Correio do Povo. Secção Geral. Porto Alegre, 6 de abril de 1998, p. 9. 84
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m ente, se entende com o Estado D em ocrático de D ireito. O D ireito recu p era, pois, sua especificidade. No Estad o D em ocrático d e D irei to, o co rre a secularização do Direito. D esse m odo, é razo ável afirm ar que o D ireito, enquanto legado da m odernidade - até p orqu e tem os um a Constituição dem ocrática - deve ser visto, hoje, com o u m ca m po necessário de luta para im plantação das prom essas m od ern as. A tod a evidência, não se está, com isto, abrindo m ão d as lutas políticas, via Executivo e Legislativo, e dos m ovim entos sociais. É im portante observar, no meio de tudo isto, que, em nosso p aís, há até m esm o uma crise de legalidade, um a vez que nem sequer esta é cu m p rid a, bastando, para tanto, ver a inefetividade d os dispositivos da C onstituição. Daí a pergunta: como pode o E stad o, nesse co n texto , atuar, intervir, para (com eçar a) resgatar essa imensa dívida social? O q u a dro é desolador. Com efeito, nossas classes dirigentes con tin u am na m od ern id ade arcaica. Com uma indústria que só dispõe de m ercad o se a renda for concentrada para viabilizar a dem anda; um a ag ricu l tura eficiente, m as voltada para a exp ortação, em u m p aís onde m ilhares de crianças morrem de fom e a cada ano; m egalóp olis que são incapazes de oferecer os serviços p ara os quais elas d everiam existir; estrutura de transporte urbano nos m oldes d os países ricos, m as que condena, p or falta de dinheiro, milhões de p essoas a cam i nhar, com o andarilhos medievais, os quilôm etros entre su as pobres casas e o trabalho; e obriga aqueles que têm acesso à m od ern id ad e, ao d esp erd ício de tem po em engarrafam entos que seriam d esn eces sários em um sistema de transporte eficiente. Enfim , a m o d ern ização é v ista independentem ente do b em -estar coletivo. O btém -se um im enso poder econôm ico, mas ele não consegue resolver os p roble m as da qualidade de vida. C on stroem -se estru tu ras sociais que, ao se fazerem m odernas, mantêm tod as as características d o que há de m ais injusto e estú p id o ." A s prom essas d a m odernidade só são ap roveitad as p or u m cer to tipo de brasileiros. Para os dem ais, o atraso! O apartheid social! Pesquisas recorrentes m ostram que os excluídos são cerca de 60% da p op u lação d o país. N essa categoria "exclu íd o s" estão as p essoas que estão à m argem de qualquer m eio de ascensão social. N a escola, a esm agad o ra m aioria dessas pessoas não foi além da 8 a série do I o grau . De tod os os segm entos sociais, são os que m ais so frem com o d esem p reg o e a precarização do trabalho: g ran de p a rte v iv e de "b ico ", e m uitos são assalariados sem registro algum . C om o co n tra 99 Buarque, Cristovam. O colapso da modernidade brasileira. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1991, p. 19 e 20. C iên cia Política e T eoria d o E stad o
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p o n to , tais lev an tam en to s m ostram que a elite se resu m e a uma p eq u en a p a rce la d os brasileiros, m ajoritariam en te co m p o sta por b ra n co s - ce rca d e 80% . É a elite, em conseqüência, o seg m en to onde há m en o s n e g ro s e pardos. N ão há, p o is, co m o não d ar razão a L e o n a rd o Boff, quando a firm a que (essas) n ossas elites construíram u m tipo de socied ad e "o rg a n iz a d a n a esp oliação violenta da p lu svalia d o trab alh o e na e x clu sã o de g ra n d e p arte da p o p u lação ".100 D aí a e x istên cia no Brasil de d u a s esp écies de pessoas: o sobreintegrado ou sobrecidadão, que d is p õ e do siste m a , m as a ele n ão se subord in a, e o subm tegrado ou su b cid a d ã o , q u e d epen de d o sistem a, m as a ele n ão tem a ce s so .101 O sistem a eco n ôm ico-so cial "co n stru íd o " ao lon g o d e cin co sé cu lo s ap resen ta o s seguintes "resu ltad os": os 20% m ais rico s co n cen tram 32 vezes m ais renda do que os 20% m ais p ob res. C e rca d e 40% das fam ílias b rasileiras viv em co m renda anual inferior a U S$ 1,5 mil. Ao m esm o te m p o , as p rincipais instituições fin an ceiras d o país têm m an tid o g a n h o s financeiros incom patíveis co m as d isp a rid a d e s so ciais, m o rm en te se co n sid erarm o s que os 10% m ais rico s p ossu em m ais d a m etad e d a renda nacion al, enquanto os 20% m ais p ob res têm m en o s de 3% d a renda nacional. N o Japão, o cap ital e as g ran des riq u e z a s têm u m a trib u tação m édia de 4 4 ,0 9 % . N a In g laterra, 6 4 ,1 2 % ; nos E U A , 42,1% . Já no Brasil o capital p a g a m en o s de 9% de im p osto s. O u tro d a d o relevante que desnuda a insu ficiên cia total do sistem a eco n ô m ico vem da questão fundiária. C o m efeito, 4 2 m ilhões de h e cta re s d a s terras para ag ricu ltu ra são d e p ro p rie d a d e d e apen as 512 p ro p rie tá rio s . En q uan to isso 4,5 milhões d e a g ricu lto re s n ão têm terra p ara trab alh ar. E ste q u a d ro de insuficiência do sistem a e co n ô m ico é fru to das e rra d a s p o líticas eco n ôm icas im plem entadas no p aís. H isto rica m e n te, c a d a v ez q u e o p aís se vê na necessidade d e m u d a n ça s, fru to de p re ssão p o p u la r e / o u da conjuntura social, e co n ô m ica e p olítica, p ro d u z e m -se alia n ça s co n serv ad oras, visando à co n se rv a çã o d o p o der. A co n seq ü ên cia de tais "a c o rd o s" (p. e x ., In d e p e n d ê n cia , A b o lição d a E s c ra v a tu ra , República etc.) foi a in to cab ilid ad e d a e stru tu ra de d o m in a çã o . O u isso, ou o Brasil, em bora a b oa v o n ta d e d e seu p ov o e de su a elite d irigen te, tem sido "in feliz" n a c o n d u çã o d a res publica no d e c o rre r d o s sécu lo s...102 100 Cfe. Boff, Leonardo. "A violência contra os oprimidos. Seis tipos de análise". In. Discursos sediciosos. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1996, p. 96. 101 Cfe. Neves, Marcelo. "Teoria do direito na modernidade tardia". In. Direito e democracia. Kátie Arguello (Org). Florianópolis, Letras Contemporâneas, 1996, p. 110. 102 Já em edições anteriores deste livro apontávamos que: A irresponsabilidade dos governantes colabora para a continuidade do quadro. A Prefeitura do Rio de Janeiro 86
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O sistem a social, em conseqüência, só poderia estar d esin teg ra do. C onseqüência disso é que também nos presídios essa so cied ad e díspar é rep rod u zid a. Daí por que o estereótipo do delin q ü ente b ra sileiro se fixa na figura do favelado. Pouco im porta, p ois, que, a m aioria das m ortes violentas estejam associadas a acid en tes de trân sito, e não a outros delitos com maior repercussão so cia l.103 N ossa figura do m atad or não é um homem de classe m édia sen tad o no seu carro, e sim o assaltante arm ado, entrevistado pela im p ren sa sen sa cionalista.104 promoveu uma festa para comemorar a passagem do ano novo de 1996, contratan do, para tal, vários artistas. Somando os gastos com cachê, fogos de artifício e demais encargos, os cofres públicos foram aliviados em cerca de US$ 1 milhão. Na mesma noite, em vários hospitais da rede pública do Estado do Rio de Janeiro (e no resto do país também), várias pessoas morreram por falta de atendimento médico. Como consertar o quadro de insuficiência econômica se os governantes elegem prioridades dessa maneira? Do teratológico ao tragicômico, os jornais noticiaram que quinze funcionários do INSS, com idades entre 37 e 40 anos, requereram apo sentadoria (que foram deferidas!). Três tinham apenas 37 anos. Um, 38. Outros três, 39. Os demais, 40 anos. Em Goiás, uma Juíza de Direito computou como tempo de serviço 7 anos e 5 meses de serviço como empregada doméstica de seu próprio pai, um juiz de direito aposentado. E o INSS forneceu a respectiva certidão. Segundo a Juíza, seu trabalho como empregada doméstica consistia em "olhar as três fazendas" do seu pai. Em contrapartida, um camponês, via de regra, morre antes de atingir o tempo para se aposentar ... Enfim, disse muito bem a jornalista Marilene Feiinto, ironizando a situação da distribuição de renda no país: O país que o Brasil mais inveja no mundo é Botsuana, que fica no sul da África, tem cerca de 1 milhão e 300 mil habitantes e cuja capital é Gaborone. Tá lá, na rede, pra não deixar dúvida, pra calar a boca de qualquer adversário: relatório do Banco Mundial informou que o Brasil aparece em primeiríssimo lugar como o país onde há pior distribuição de renda do mundo. É jogada de mestre, não teve braço nem mão no lance. O tira-teima esclarece, a superioridade brasileira é indiscutível: o levantamento do Banco Mun dial mostra que 51,3% da renda brasileira está concentrada nas mãos de apenas 10% da população. E conclui o jornalista: agradecemos por nossos 26 milhões de analfa betos, pelos nossos quase 3 milhões de crianças que vivem em favelas, por nossos meninos de rua, nossos sem-teto, nossos sem-terra, pelos 60% de famílias brasileiras que vivem à custa de um salário mínimo (golaço). 103 Ibidem. 104 Paulo Sérgio Pinheiro, analisando a crise do sistema penitenciário brasileiro, diz que é fácil apontar os usuários habituais das prisões no país: os clientes das prisões, dos internatos, dos orfanatos, dos reformatórios. dos manicômios são as classes populares, o proletariado e o subproletariado. E acentua: "Para um observador que de repente desembarcasse no Brasil, poderia parecer que, exceto raríssimas exceções de alguns pequeno-burgueses ou burgueses encarcerados, a delinqüência é o atri buto de uma só classe. E mesmo diante dos crimes mais bárbaros cometidos pelas outras classes, há uma enorme tolerância, existe t*m conceito de recuperação dife rente, que não precisa ser realizado dentro do sistema penitenciário. Não se afirma aqui a usual identificação entre as classes pobres e as classes perigosas, como se os oprimidos tivessem uma vocação irresistível e automática para o crime. Ao contrá C iên cia Política e T eoria d o Estado
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C on fo rm e M arilena C h auí,105 " o a u to rita rism o social e as d esi g u ald ad es eco n ôm icas fazem com que a so cied ad e brasileira esteja p o la riz a d a entre as carências das ca m a d a s p o p u lares e os interesses d as classes ab astad as e dom in an tes, sem co n se g u ir u ltrap assar ca rên cias e interesses e alcan çar a esfera d o s d ireitos. O s interesses, porqu e n ão se tran sform am em d ireito s, to rn a m -se privilégios de algu ns, d e sorte que a p olarização so cia l se efetua en tre os despossu íd os (o s carentes) e os p rivilegiados. E ste s, p orq u e são p ortad ores d o s co n h ecim en to s técnicos e científicos, são os 'co m p o n e n te s', ca b en d o-lh es a d ireção da so cied ad e". P or isso, assevera C h auí,106 a so cie d a d e b rasileira, colocada en tre dois p ólo s (carên cia e p rivilégio), n ão co n seg u e ser d em ocrática, p o r não en co n trar m eios p ara isso. A s leis, p o r su sten tarem os p ri v ilégios d as elites, n ão são vistas co m o e x p re ssã o nem de direitos n em de v o n tad es p roven ientes de d ecisõ es p ú b licas e coletivas. O P o d er Ju d iciário ap arece, desse m o d o, co m o m isterioso, d eten tor de u m a au to rid a d e q u ase m ística. P o r isso a so cied ad e aceita que a leg alid ad e seja, p o r um lado, in com p reen sível, e , p o r outro, inefi cien te (a im p u n id ad e não reina livre e so lta?) e qu e a única relação p ossível co m ela seja a da tran sg ressão (o fam oso "jeitin h o ").107 rio, o que prevalece no Brasil é a opção preferencial da ação policial e da intervenção do judiciário em relação aos pobres. As penas recaem mais fortemente sobre os transgressores das classes populares. (...) Muitos crimes praticados por classes com mais recursos econômicos e políticos não chegam a ser contemplados pelo código penal. O foco é generosamente jogado sobre os crimes contra o patrimônio e contra a pessoa individualizada, cometidos igualmente no interior das próprias classes populares, deixando fora do debate os crimes com conseqüências em escala muito maior, mesmo no que diz respeito à vida humana." In "Crise do sistema penitenciá rio e crise institucional". In Folhetim, FSP, 18.11.84, p. 4. A pergunta que não quer calar é a seguinte: do período em que o cientista político Paulo Sergio Pinheiro fez a pesquisa, até os dias atuais, mudou alguma coisa? 105 Cfe. Chauí, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ática, 1995, p. 436 106 id em , ib id em .
107 A Revista Veja fez uma reportagem intitulada "O brasileiro segundo ele mesmo", mostrando uma pesquisa feita pelo instituto Vox Populi. Pela pesquisa, os atributos do tipo "jeitinho", "cordial", "malandro", "preguiçoso" etc., são deixados de lado pela população brasileira. A matéria dev“ ser questionada na origem, uma vez que é impossível, em uma sociedade tão díspar, conceituar o que é "o brasileiro" ou quais as "características" do "brasileiro". Tais características, negativas ou positivas, nada mais são do que estereótipos. Dante Moreira Leite cravou um marco histórico no processo de desmi(s)tificação das noções estereotipadas. Não foi, todavia, sufi ciente para acabar com essa panacéia ideológica que se encontra, ainda hoje, pro fundamente enraizada/materializada no imaginário social. Com efeito, Moreira Leite, na obra O caráter nacional brasileiro - história de uma ideologia -, acusa a noção de "caráter nacional" de preconceito, equívoco e obstáculo. Afinal, cabem várias indagações: de qual brasileiro falam os que afirmam, por exemplo, a sua cordialida 88
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Dito de outro m odo, na feliz síntese do historiador Luiz Roberto Lopez, num tecido social descosturado, m antém -se a alienação e quem sai ganhando são as elites, já vitoriosas, num conflito travado ao longo de todo um século. A o que parece, a nossa Belíndia - um a m istura de uma pequena p orção Bélgica com uma imensa m aioria indiana expressão cunha da na década de 1980, aprofunda-se com a insistência em não enfren tarm os a nossa questão social com o caso de política - políticas públicas de inclusão social - e não com o caso de polícia e de direito penal. P ara bem dem onstrar essa problem ática, cham am os a atenção para o sim bolism o representado pelas idiossincrasias constantes na legislação penal brasileira, na qual "ad u lterar chassi de autom óvel" tem pena m aior que "sonegação de tribu tos", e "fu rto de botijão de g ás" p raticad o p or duas pessoas recebe um a pena (bem) m aior do que o crim e de "caixa dois". Mais, se alguém sonega tributos, tem a seu fav or um longo e generoso REFIS;108 já na hipótese do ladrão de de, a sua acomodação, etc.? De qual carioca falam os que pregam a malandragem e a preguiça deste habitante do Rio de Janeiro? Seria o operário que mora na favela da Rocinha ou o rico que mora na zona sul e que toma scotch às três horas da tarde? A qual gaúcho se referem os que o apregoam como sendo trabalhador, viril, sizudo? Seria o fazendeiro, com milhares de vacas pastando no latifúndio ou, quem sabe, o operário da Vila Restinga, em Porto Alegre, com cmco filhos e um mísero salário para sobreviver? Cabe que se indague, por fim, se as características atribuídas ao brasileiro ou aos brasileiros de diferentes estados têm alguma relação com a reali dade, em uma sociedade como a nossa, em que a miséria (con)vive com a opulência. Afinal, se os traços característicos dos brasileiros são todos os elencados por Gilberto Freyre, Buarque de Holanda, Vianna, Chico Anísio, Revista Veja, Jornal Nacional, Alexandre Garcia (e tantos outros, cotidiana mente), já não há mais caraterísticas, pois, logicamente, se ele (o brasileiro!) é tudo isso que dizem (e a pesquisa da Revista Isto É "demonstrou" (sic), ele é, também, nada disso.. Ou seja, como se diz na filosofia, se tudo é, nada é. 108 No ano de 2003 foi promulgada a Lei n° 10.684, que, seguindo a tradição inau gurada pela Lei n° 9.249/95 (que, no seu art. 34, estabelecia a extinção de punibilidade dos crimes fiscais pelo ressarcimento do montante sonegado antes do recebimento da denúncia), estabeleceu a suspensão da pretensão punitiva do Estado referentemente aos crimes previstos nos arts. Io e 2° da Lei n° 8.137/90 e nos arts. 168-A e 337-A do Código Penal, durante o período em que a pessoa jurídica relacio nada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no regime de parcelamento (art. 9o). Mais ainda, estabeleceu a nova lei a extinção da punibilidade dos crimes antes referidos quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o paga mento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios. De pronto, cabe referir que inexiste semelhante favor legal aos agentes acusados da prática dos delitos dos arts. 155, 168, caput, e 171, do Código Penal, igualmente crimes de feição patrimonial não diretamente violentos. Fica claro, as sim, que, para o establishmenl, é mais grave furtar e praticar estelionato do que sonegar tributos e contribuições sociais. Daí a pergunta: tinha o legislador discricionariedade (liberdade de conformação) para, de forma indireta, descriminalizar os C iên cia P olítica e T eoria d o E stado
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b otijõ es, m esm o que ele d evolva o m aterial su b traíd o , n ão terá a seu fa v o r o s ben efícios con ced idos aos son egad ores. D o m esm o m odo, a crise p a ra d ig m á tica conseguiu escon d er m u ito bem (não esqueçam os q ue o d iscu rso ideológico tem eficácia na m ed id a em que não é p erceb id o ) o fato de que, co m o advento da Lei n° 1 0 .2 5 9 /0 1 , os crim e s d e ab u so de au torid ad e, m au s-trato s em crian ças, sonegação d e trib u to s, frau d e em licitações, dentre m u itos o u tro s, foram trans fo rm a d o s em soft crimes, isto é, em crim es de "m e n o r potencial ofen s iv o " (sic), tu d o sob o silêncio eloqüente d a co m u n id ad e jurídica.
crimes fiscais (lato sensu, na medida em que estão incluídos todos os crimes de sonegação de contribuições sociais da previdência social)? Poderia o legislador reti rar da órbita da proteção penal as condutas dessa espécie? Creio que a resposta a tais perguntas deve ser negativa. No caso presente, não há qualquer justificativa de cunho empírico que aponte para a desnecessidade da utilização do direito penal para a proteção dos bens jurídicos que estão abarcados pelo recolhimento de tribu tos, mormente quando examinamos o grau de sonegação no Brasil. No fundo, a previsão do art. 9o da Lei n° 10.684/03 nada mais faz do que estabelecer a possibi lidade de converter a conduta criminosa - prenhe de danosidade social - em pecúnia, favor que é negado a outras condutas. Também aqui - com raríssimas exceções - não tem havido qualquer resistência constitucional no plano da operacionalidade do Direito. A respeito do tema, ver STRECK, Lenio Luiz. "Da proibição de excesso (Übermassverbot) à proibição de proteção deficiente (Untermassverbot): de como não há blindagem contra normas penais inconstitucionais". Revista do Instituto de Hermenêutica Jurídica, (Neo)constitucionalismo, n. 2, Porto Alegre, 2004, p. 243-284.
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6. O Estado de Direito 6.1. C on sid erações gerais Se o E stad o se configura com o instituição, o p od er d e m an d o em d ad o território não prescinde do Direito p ara fazer co m que os d em ais elem entos que com põem a sua ossatura sejam im p le m e n ta dos. E stad o e D ireito, pois, na perspectiva clássica, p a ssa m a ser com p lem en tares e interdependentes, aquele m on op olizan d o - ou pretend en d o - a pro d u ção e aplicação deste. C om efeito, no plano teórico, o Estado de Direito e m e rg e co m o um a con stru ção p rópria à segunda m etade do século XIX, n a sce n d o na A lem anha - com o Rechtstaat - e, posteriorm ente, sen d o in co rp o rad o à dou trina francesa, em am bos com o um debate a p ro p ria d o pelos juristas e vinculado a uma percepção de hierarquia d a s re g ra s juríd icas, com o objetivo de enquadrar e limitar o p o d e r d o E sta d o pelo D ireito. O d evir histórico, entretanto, recupera tal conceito, a ssu m in d o o D ireito com o um ponto de referência estável e a p ro fu n d a n d o o m odelo através d e seu con teú d o, fazendo suplantar a idéia d e E stad o de D ireito com o de uma pura legalidade. P od em -se, en tão , apon tar três visões próprias a este fen ô m en o: A - Visão Formal, onde se vincula a ação do E stad o ao D ireito, ou seja, a atu ação estatal é jurídica, exercitan n d o -se a tra v é s de regras jurídicas. B - Visão Hierárquica, na qual a estruturação e sca lo n a d a d a o r dem jurídica im põe ao Estado sua sujeição ao D ireito. C - Visão Material, que implica a imposição de atributos intrínsecos ao Direito, ou seja, aqui, a ordem jurídica estatal p ro d u z -se tendo certa substancialidade com o própria. H á u m a qu alifi cação d o E stad o pelo Direito e deste p or seu co n te ú d o . O E stad o de Direito su rge desde logo com o o E sta d o que, n as suas relações com os indivíduos, se submete a um regim e de direito q u an d o , então, a ativ id ad e estatal apenas pode d e sen v o lv er-se u tili C iên cia P olítica e T eo ria do E stado
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zando um instrum ental regulado e autorizado pela ordem jurídica, assim com o, os indivíduos - cidadãos - têm a seu dispor mecanismos jurídicos aptos a salvaguardar-lhes de uma ação abusiva do Estado.10* A idéia de Estado de Direito carrega em si a prescrição da su prem acia da lei sobre a autoridade pública. Na sua origem germ â nica, está em bãsada na autolim itação do Estado pelo Direito, pois é o Estad o a única fonte deste, atribuindo-lhe força coercitiva, e é o D ireito criação daquele. A doutrina francesa, já no século XX, irá Duguit, H auriou,110 C arré de M alberg etc. - questionar tal form ula ção, agregando-lhe novas perspectivas. C ontudo, o F.stado de Direito d iferend ar-sc-á tanto do Estado Polícia — no qual o D ireito é apenas um instrum ento sob plena dis ponibilid ad e do Estado - quanto do Estado Legal, onde, mesmo sendo a lei lim ite e condição da atividade adm inistrativa, não há o privilegiam ento hierárquico da ordem jurídica, cristalizando-se uma suprem acia parlam entar, sequer uma vinculação de conteúdos que lhe são inerentes. D eve-se ter presente que esta perquirição referenda, no quadro de nosso trabalho, a perspectiva de elaboração de uma leitura acerca da estatalidade do Direito, a qual é apropriada por uma pretensão de conteúdo. Embora a intenção de montagem de uma teoria jurídica do Estado de D ireito, isenta de vinculações, devem os ter presente alguns aspectos encontrados na elaboração histórica do mesnio. 6.2. A apresentação do Estado de D ireito E ste Estado que se juridiciza/legaliza é, todavia, m ais e não apenas um Estado jurídico/legal. Não basta, para cie, assum ir-se e apresentar-se sob uma roupagem institucional norm ativa. Para além da legalidade estatal, o Estado de D ireito representa e referenda um algo m ais que irá se explicitar em seu conteúdo. Ou seja: não é apenas a forma jurídica que caracteriza o Estado mas, e sobretudo, a ela agregam -se conteúdos. 109 Ver: Ctievallier, Jacqucs. L 'tla l de Droit. 2 ' ed. Paris: M ontchrcstien. 1994, p. 12 e ss. un E stes autores, entre outros, irão recolocar o debate acerca da exclusividade estatal de produção jurídica. Para eles, há um Direito superior àquele do Estado consubs tanciado, p . ex., na Declaração de Direitos. Duguit crê em uma juridicidade produ zida através da solidariedade, enquanto Hauriou fala de uma constituição social. Ambos, jun tam ente com Gurvitch, apontam para a idéia de um direito social. Ver, ainda: M orais, José Luis Bolzan de. A Idéia de Direito Social. O pluralism o jurídico de G eorges G urvitch. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1997. 92
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C) século XX irá dem onstrar claram ente esta assertiva. A dim en são de conteúdo do listado de Direito aproxim a os m odelos alem ão c francês do seu vizinho insular, o modelo britânico do rtilc o f law. Assim, o Estado de Direito não se apresenta apenas sob unia forma jurídica calcada na hierarquia das leis, ou seja, ele não estó limitado apenas a uma concepção formal de ordem jurídica mas, também, a um conjunto de direitos fundam entais próprios de uma determ inada tradição.1" D eve-se atentar, ainda, para algum as críticas. Em especial para a construção de uma concepção idealizada do Direito, legitim adora da autoridade estatal, produzindo um valor m ítico para a ordem jurídica através do fetichism o da regra, quando a norm a jurídica tende a estar form atada pela realidade mesma, capaz de fazer advir aquilo que enuncia; e a passagem para a forma jurídica vem a cons tituir a garantia suprem a.112 Feita esta ressalva, im porta, aqui, ressaltar que a m aterialidade do Estado de Direito se subslancializa sob os contornos da forma jurídica, mas com ela não se identifica. Ao contrário, à form alidade jurídica são incorporados conteúdos que se juridicizam sob o Direito do Estado. Diz J. Chevallier: A construção da teoria do Estado de Direito não pode ser feita no acaso ou como produto de uma lógica puram ente interna ao cam po jurídico: a teoria é dissolvida sobre um certo terreno ideológico, enraizado num a certa realidade social e política, afastada de suas referências, ela não aparece m ais do que como uma concha vazia, um quadro form al, podendo-se dizê-la in significante.113 O u, ainda o Estado de Direito não é m ais considerado somente como um dispositivo técnico de lim itação de poder, resultante do enquadram ento do processo dc produção de norm as jurídicas; ó também uma concepção que funda liberdades públicas, de dem ocra cia, e o Estado de D ireito não é mais considerado apenas com o um dispositivo técnico de lim itação do poder resultante do enquadra mento do processo de produção de norm as jurídicas. O Estado de Direito é, tam bém, uma concepção de fundo acerca das liberdades públicas, da dem ocracia e do papel do Estado, o que constitui o hm dam cnto subjacente da ordem juríd ica.114 I I Chevallier, op. cit., p. 73. Apesar disso, nâo se pode esquecer que, também sob o aspecto form al, o Hstado de Direito teve desdobram entos através do aprofunda mento dos m étodos de controle da atuação adm inistrativa estatal, bem com o da sun .ituação legislativa, por m eio do controle de constitucionalidade da leis. 112 Idem, ibidem, p. 64. III Idem, ibidem, p. 54. 114 Idem, ibidem , p. 74. C iência Política e Teoria do Fstado
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Assim , o Estado de D ireito irá se apresentar ora com o liberal em sen tid o e strito , ora com o so cial e, por fim , com o d em ocrático. C ada um d eles m olda o D ireito com seu conteúdo, com o verem os a seguir, sem que, no entanto, haja uma ruptura radical nestas trans form ações.
6.2.1. O Estado Liberal de Direito
Portanto, im põe-se que façam os uma construção partindo da form ulação da idéia de Estado dc Direito que em erge com o expressão ju rídica da dem ocracia liberal.115 N esta tradição, pode-se definir o Estado L iberal de D ireito como sendo "um Estado cuja função principal é estabelecer e m anter o D ireito cujos lim ites de ação estão rigorosam ente definid os por esle, bem entendido que D ireito não se identifica com qualquer lei ou conjunto de leis com indiferença sobre seu conteúdo (...) O Estado de D ireito significa, assim , uma lim itação do pod er do Estado pelo D ireito, porém não a possibilidade de legitim ar qualquer critério concedendo-lhe form a dc le i...".116 PoTtanto, não basta que um Estado possua uma qualquer lega lidade. Ind ispensável será que seu conteúdo reflita um determ inado ideário. O u seja, para o Estado ser de D ireito, não é suficiente que seja um Estado Legal. O que sc observa, portanto, é que no seu nascedouro o concei de Estado dc D ireito em erge aliado ao conteúdo próprio do libera lism o ,117 im pondo, assim , aos liam es juríd icos do Estado a concreção do id eário liberal no que diz com o princípio da legalidade - ou seja, a subm issão da soberania estatal à lei - a divisão de poderes ou funções e, a nota central, garantia dos direitos individuais.
11s C fe. S ilva, Jo se A fo n so d a . "O H stado D e m o c rá tic o d e D ire ilo " , Revista da PCE/SP, p. 61. 116 C fe. G a rc ia -P e la y o , M a n u e l. Ias Transfortnaciones dei Estado Contemporâneo. M ad rid : A lia n z a . 19N2, p. 52. 117 P a ra u m a p e rc e p ç ã o cla ra , e m b o ra lim ita d a , d e s te te m a , v er: M a c rid is , K oy, o p. cit. E ste a u to r faz u m a in te re s s a n te d iv isã o d o lib e ra lis m o ern 3 n ú cleo s: u m m o ra l, q u e r e p r e s e n ta o s d i r e ito s n a tu r a i s d o in d iv íd u o e a s lib e r d a d e s n e g a tiv a s ; u m e c o n ô m ic o c a r a c te r iz a d o p e lo in d iv id u a lis m o e c o n ô m ic o , o liv re m e r c a d o , o i n d iv id u a lis m o e c o n ô m ic o e os d ire ito s c o r re s p o n d e n te s e u m n ú c le o p o lític o - o u p o lític o -ju ríd ic o - o n d e e sta ria m p re se n te s a s c o n q u is ta s in c o r p o ra d a s ao c o n stitu c io n a lism o , c m e s p e c ia l o s d ire ito s p o lítico s p ró p rio s à d e m o c ra c ia re p re s e n ta tiv a . 94
i.ftün Luiz Streck Josá Luis Dolzan de Morais
Pode-se apontar com o características deste tipo de Estado de I Jlrelto: A - Separação entre Estado e Sociedade Civil mediada pelo Direi to, este visto com o ideal de justiça. B • A garantia das liberdades individuais; os d ireitos do homem aparecendo com o m ediadores das relações entre os indiví duos e o Fstado. C - A d em ocracia su rge vincu lad a ao id eário da soberania da nação produzido pela R evolução Francesa, im plicand o a aceitação da origem consensual do Estado, o que aponta para a idéia de representação, posteriorm ente m atizada por m ecan ism os d e d em o cra cia sem id ireta - referendum e plebiscito - bem com o, pela im posição de um controle hie rárquico da produção legislativa através do controle de constitucionalidade. D - O Estado tem um papel reduzido, apresentando-se com o Es tado M ínim o, assegurando, assim , a liberdade de atuação dos indivíduos. Não se trata, com o se quer m uitas vezes, de um total alheam en to do conteúdo juríd ico do Estado, com o bem aponta G arcia-Pelayo. F.m realidade, tem -se a consubstanciação do conteúdo político do liberalism o na form a juríd ica do Estado ou Estado Liberal de Direito. Não é correto, pois, identificar o Estado dc D ireito ao "E stad o Le gal". Há um forte conteúdo político sustentado em uma juridicidade, im plem entada fundam entalm ente nas diversas form as de positivis mo jurídico, que nunca foi íieutro. Por outro lado, devem os ter claro que a legalidade não contém in totum a idéia de Estado de Direito, m uito em bora sua origem alem ã com o Rechtstaat esteja ligada à idéia de hierarquia das norm as e nutolim itação, com o já apontado anteriorm ente. E nesta trajetória que se biparte este conceito em form al - relativo ao m ecanism o dc atuação estatal, restrito à legalidade (lei) - e material - que diz com o conteúdo da ação estatal e da relação listado-cidadão. Portanto, Estado de D ireito, m esmo cm sua acepção liberal ori ginária, não c conceito a ser utilizado d escontextualizado de seus vínculos m ateriais, para não cair-se na deform ação do Estad o Legal. Deve-se tratá-lo nos seus vínculos externos e, aqui, vem os que, desde os prim órdios, ele se confunde com o conteúdo global do liberalis mo, com o dito acima. O que se impõe é que à própria id éia de Estado de D ireito está adscrito um conteúdo específico, sob pena de perderse a própria idéia do m esmo. Ciência Política c Teoria do Estado
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A nota central deste Hstado Liberal de D ireito apresentei-sc com o uma lim itação jurídico-legal negativa, ou seja, com o garantia dos ind ivídu os-cid ad ãos frente à eventual atuação do Estado, im pe ditiva ou constrangedora de sua atuação cotidiana. Ou seja: a este cabia o estabelecim ento dc instrum entos jurídicos que assegurassem o livre desenvolvim ento das pretensões individuais, ao lado das restrições im postas à sua atuação positiva. Em razão disso é que o D ireito, próprio a este Hstado, terá com o característica central e como m etodologia eficacial a coerção das atitudes, tendo com o m ecanism o fundam ental a sanção. 6.2.2. O E slado Social dc Direito Apesar de sustentado o conteúdo próprio do Estado de D ireito no individualism o liberal, faz-se m ister a sua revisão frente à própria disfunção ou desenvolvim ento do m odelo clássico do liberalism o. Assim , ao D ireito antepõe-sc um conteúdo social. Sem renegar as conquistas e os valores im postos pelo liberalism o burguês, dá-selhe um novo conteúdo axiológico-político. D essarte, o Estado "a co lhe os valores jurídico-p olíticos clássicos; por?fn7~de acordo com o sentido que vem tom ando através do curso histórico e com as de m andas c condições da sociedade do presente (...). Por conseguinte, não som ente inclui direitos para lim itar o Estado, senão tam bém direitos às prestações do Estado (...). O Estado, por conscgu inte, não som ente deve om itir tudo o que seja contrário ao D ireito, isto c, a legalidade inspirada em uma idéia de D ireito, senão que deve exercer uma ação constante através da legislação e da adm inistração que realize a idéia social de D ireito".lw A adjetivação pelo social pretende a correção do individualism o liberal por interm édio de garantias coletivas. C orrige-se o liberalis m o clássico pela reunião do capitalism o com a busca do bem -estar social, fórm ula geradora do welfare State neocapitalista no pós-Segunda G uerra M undial. — ----- Com o Estado Social de Direito, projeta-se um m odelo onde o bem -estar e o desenvolvilm ento social pautam as ações do ente pú blico. Para M anuel G arcia-Pelayo, o Estado Social de D ireito significa um Estado sujeito à lei legitim am ente estabelecida com respeito ao texto e às práticas constitucionais, indiferentem ente de seu caráter form al ou m aterial, abstrato ou concreto, constitutivo ou ativo, à 118 C fe. G a rc ia -P e la y o , o p. cit., p . 56.
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Lenio Luiz Slreck Jo sé l.iiis B ohati de Morais
qual, de qualquer m aneira, não pode colidir com os preceitos sociais i-Nl.ihelccidos pela C onstituição e reconhecidos pela práxis co n stitu cional com o norm atização dc valores por e para os quais se constitui o üstado Social e que, portanto, fundam entam a sua legalid ad e.119 N este quadro, esvai-se a noção de legalidade própria do ideário liberal, pois a lei passa a ser utilizada não m ais, apenas, com o ordem geral e abstrata, m as, cada vez m ais, apresenta-se esp ecífica e com destinação concreta - a generalidade da lei era considerada fulcro do Estado de D ireito - m as, sim com o instrum ento de ação, muitas vives, com caráter esp ecífico e concreto, atendendo critérios circuns tanciais. A transform ação do Estado Liberal de D ireito não se dá, assim , a penas no seu conteúdo íinalístico, mas, tam bém , na reconceituali/ação de seu m ecanism o básico de atuação, a lei. Todavia, o conteú do social adrede ao Estado não abre perspectiva a que se concretize uma cabal reform ulação dos poderes vigentes à época do m odelo clássico. Precisa ser referido que, mesmo sob o Estado Social de Direito, .1 questão da igualdade não obtém solução, em bora sobrepuje a sua percepção puram ente form al, sem base m aterial. 6.2.3. O Estado D em ocrático de Direito É por essas, entre outras, razões que se desenvolve um novo conceito, na tentativa de conjugar o ideal dem ocrático ao Estado de I )ireito, não com o um a aposição de conceitos, mas sob um conteúdo próprio onde estão presentes as conquistas dem ocráticas, as garanlias juríd ico-legais e a preocupação social. Tudo constituindo um novo conjunto onde a preocupação básica c a transform ação do status l / I I O.
O conteúdo da legalidade - princípio ao qual perm anece vincu lado -"assu m eiT íõ rm a de busca efetiva da concretização da igualda de, não pela generalidade do com ando norm ativo, m as pela realização, através dele, de intervenções que im pliquem diretam ente uma alteração na situação da com unidade. O Estado D em ocrático de D ireito tem um conteúdo transform a dor da realidade, não se restringindo, como o Estado Social de Direito, .i uma adaptação m elhorada das condições sociais de existência. Assim, o seu conteúdo ultrapassa o aspecto m aterial de concretiza ção de uma vida digna ao homem e passa a agir sim bolicam ente 119 C fe. G a rc ia -P e la y o , o p. cit., p . 64. < iôneia Política e I coria do Estado
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com » fom entador da participação pública no processo dc construçAo e reconstrução de um projeto de sociedade, apropriando-se do cará ter incerto da dem ocracia para veicular uma perspectiva de futuro voltada à produção de uma nova sociedade, onde a questão da de m ocracia contém e im plica, necessariam ente, a solução do problem a das condições m ateriais de existência. Com efeito, são princípios do Estado D em ocrático de Direito: A - C onstitucionalidade: vinculação do Estado D em ocrático dc D ireito a uma C onstituição com o instrum ento básico dc ga rantia ju ríd ica;120 120 O fe n ô m e n o d a c o n s titu c io n a l id a d e (o u d o c o n s titu c io n a lis m o ) im p lica o e n fre n ta m e n to d e u m p a ra d o x o , r e p re s e n ta d o p elo m o d o co m o esse fe n ô m e n o é e n g e n d r a d o na h is tó ria m o d e rn a . C o m efeito , a C o n stitu iç ã o n asce c o m o u m p a ra d o x o p o r q u e , d o m e s m o m o d o q u e s u rg e co m o ex ig ên cia p a r a c o n te r o p o d e r a b s o lu to d o re i, e s ta b e le c e -se ta m b é m co m o m ecan ism o d e c o n te n ç ã o d o p o d e r d a s m aio ria s. T a lv e z n e s te a s p e c to - a ex istê n cia d e u m a re g ra co n tra m a jo ritá riii - é q u e re sid a o g r a n d e d ile m a d a d e m o c ra c ia n a q u ilo q u e e la d e ita ra íz e s h is tó ric a s n o d ire ito (c o n stitu c io n a l) e c o m ele tem u m p r o fu n d o d é b ito . É n e s te p o n to , aliás, q u e L aure n c e T rib e co m eça se u in flu e n te tra ta d o so b re d ire ito c o n s titu c io n a l (Cfe. T ribe, L a u re n c e . American Constitutional Law. F o u n d a tio n P re ss, M e n e o la , 1978), p r o c u ra n d o e n f re n ta r esse d ile m a fu n d a m e n ta l re p re s e n ta d o p e la d is c ó rd ia e n tre a p o lílica m a jo ritá ria e os a n te p a r o s p re v isto s n o te x to c o n s titu c io n a l: e m su a fo rm a m ais b á sic a , a p e r g u n ta é p o r q u e u m a n a ç ã o q u e fu n d a m e n ta a le g a lid a d e so b re o c o n s e n tim e n to d o s g o v e r n a d o s d e c id iria c o n s titu ir su a v id a p o lític a m e d ia n te u m c o m p ro m is so co m u m p a c lo /a c o r d o o rig in a l e s tr u tu r a d o d e lib e r a d a m e n te p a r a d i f ic u lta r m u d a n ç a s . D e d iv e rs a s m a n e ira s, este p ro b le m a tem s id o a p re s e n ta d o , a d u z T rib e , in d a g a n d o : c o m o sc p o d e re c o n c ilia r o c o n s e n tim e n to d o s g o v e rn a d o s co m a g a ra n tia d e u m c o n s e n tim e n to u lte rio r m e d ia n te u m a c o n v e n ç ã o c o n stitu c io n a l? P or q u e u m m a rc o c o n s titu c io n a l, ra tific a d o h á d o is sé cu lo s, d e v e ex ercer tã o g ra n d e p o d e r so b re n o s s a s v id a s atu a is? P o r q u e so m e n te a lg u n s d e n o sso s c o n c id a d ã o s p o ss u e m a f a c u ld a d e p a r a im p e d ir q u e se façam e m e n d a s à C o n s titu iç ã o ? A re v isã o ju d ic ia l, q u a n d o e s tá b a s e a d a em u m a le a ld a d e su p e rs tic io sa e m re la ç á o à in te n ç ã o d e s e u s c ria d o re s , é c o m p a tív e l com a so b e ra n ia p o p u la r? (C fe. T ribe, o p .cit.; H o lm es, S te p h e n . "K l p re c o m p ro m is o y la p a ra d o ja d e la d e m o c ra c ia " . In: C onstitucio nal istno y Democracia. Jo n E lster y R u n e S la g sta d (org). M éxico, F o n d o d e C u ltu ra E conôm ica, 2003, p . 217 e segs). Se se c o m p re e n d e s se a d e m o c ra c ia c o m o a p r e v a lê n c ia d a re g ra d a m a io ria , p o d e r-se -ia a firm a r q u e o c o n s titu c io n a lis m o c a n tid e m o c rá tic o , n a m e d id a c m q u e este " s u b tra i" d a m aio ria a p o s s ib ilid a d e d e d e c id ir d e te r m in a d a s m a té ria s , r e s e rv a d a s e p ro te g id a s p o r d is p o s itiv o s c o n tra m a jo ritá rio s (Cfe. E lster, Jon. Introducción a obra Constitucionalismn y Democracia. Jon E lster y R u n e S la g sta d (org). M éxico, C o lé g io N a c io n a l d e C iên c ia s P o lític a s y A d m in istra c ió n P ú b lica, A . C.; F o n d o d c C u ltu ra E conôm ica., 2001, p. 34 e 35). O d e b a te se a lo n g a e p a re c c in te rm in á v e l, a p o n to de a lg u n s teó rico s d e m o n s tr a r e m p re o c u p a ç ã o com o fa to d e q u e a d e m o c ra c ia p o s s a ficar p a ra lis a d a p elo c o n tra m a jo rita ris m o c o n s ti tu c io n a l, e, d e o u tr o , o firm e te m o r d e q u e , em n o m e d a s m a io ria s, sc ro m p a o d iq u e c o n s titu c io n a l, a r ra s ta d o p o r u m a esp écie d e re to rn o a R o u sse a u . A í q u e, d e s d e logo, c o n s id e ro n e c e s sá rio d e ix a r c laro q u e a c o n tra p o siç ã o e n tr e d e m o c ra c ia e c o n s titu c io n a lism o é u m p e rig o so re d u c io n ism o . N ã o fosse p o r o u tr a s ra z õ e s , n ã o se p o d e 98
Lenio Luiz Streck José I.ui8 Holzati de Morais
U - O rg a n iz a çã o D em o crática da S o cie d a d e ;
C - Sistem a de direitos fundamentais individuais e coletivos, seja com o Estado de distância, porque os direitos fundam entais asseguram ao homem uma autonom ia perante os poderes públicos, seja com o um Estado antropologicam ente amigo, pois respeita a dignidade da pessoa hum ana e em penha-se na defesa e garantia da liberdade, da justiça e da solid arie d ad e;121 D - Justiça Social com o m ecanism os corretivos das desigu ald a des; E - Igualdade não apenas como possibilidade form al, m as, tam bém , com o articulação dc uma socied ad e justa; F - D ivisão de Poderes ou de Funções; G - Legalidade que aparece como medida do direito, isto é, através dc um meio de ordenação racional, vinculativam ente prescritivo, de regras, form as e procedim entos que excluem o arbítrio e a p repotência;122 H - Segurança e C erteza Jurídicas. A ssim , o Estado D em ocrático de D ireito teria a característica de ultrapassar não só a form ulação do Estado Liberal de D ireito, como também a do Estado Social de Direito - vinculado ao W elfare slate neocapitalista - im pondo à ordem jurídica e à atividade estatal um conteúdo u tópico d c transform ação da realidade. D ito de outro modo, o Estado D em ocrático é plus norm ativo em relação às form u lações anteriores. V ê-se que a novidade que apresenta o Estado D em ocrático de Direito é m uito m ais em um sentido teleológico de sua norm atividade do que nos instrum entos utilizados ou m esm o na m aioria de seus conteúdos, os quais vêm sendo construídos de algum a data. p e r d e r d e v ista o m ín im o , isto é, q u e o E sta d o C o n s titu c io n a l só ex iste
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