Chaui - Marx e a Democracia b
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tivos” tivos” numa maquina auto-regulada da produgao e a taxa de juros no Deus-ex-machina do movimento da produgao capitalista
MARX E A DEMOCRACIA
Um “deus menor ” concebido para regular uma Vmaquina desregulada*' e que se revela impotente ante a forga destruidora de um sistema em expansao esquizofrSnica. O lucro com origem na maisvalia que requer a “unidade das orbitas” orbitas” torna-se uma ficgao porque o movimento real do capital as separa. O jure como prego do capicapi“fetiche” que nao pode medir-se nem regutal e-a manifestagao do “fetiche” lar-se a si mesmo. O real (do capitalismo contemporSneo) nao e racional, e apenas inteligivel, negando a sua “razao” teorica e historica. O irracional emerge e faz valer outro poder. O poder do Estado. Nao o Estado-Razao de Hegel, mas o seu contrario: a Razao de Estado.
(O JOVEM MARX LEITOR LEITOR DE ESPINOSA)
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RELAgAO DO PENSAMENTO
de Marx com a democracia 6 con-
tro^rtido, como atestam as divergencias entre os interpretes da obra
23. Em materia de modelos formats prefiro os que tomam a taxa de juros” juros” como Deus-ex-mach Deus-ex-machina, ina, ja que pelo menos sao passiveis de uma inter pretagao ironica como a que Ricardo Tolipan acaba de fazer em seu ensaio Capital C'Taxa de Juros em Sraffa”, a ser publicado em Pesquisa e Plane jamento Econdmico, margo de 1979. Naturalmente que em mat6ria de economia poli'tica” prefiro Schumpeter, Keynes e Kalecki que nunca tomaram a taxa de juros como centra de andlise mas, pelo contrario, a submeteram & determinagao de movimento do capital na concorrSneia intercapitalista. ‘
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marxiana nesse assunto. Para alguns, Marx abandona a perspectiva democratica a partir do momento em que abandona as questSes poli'ticas pelas sociais, de sorte que a democracia, na qualidade de abstragao poHtica, cede lugar ao tema e a pratica do comunismo revoluciondrio; para outros, o mesmo abandon© deve ocorrer a partir do momento em que Marx passa da filosofia para a crftica da economia politjca e particularmente quando descobre o segredo da sociedade civil (burguesa), isto e, o modo de produgao capitalista. Alguns consideram nao haver propriamente abandono das preocupagoes democrdticas, mas transigao delas, enquanto exclusivamente politicas, para as comunistas, enquanto concregao social que subordina a esfera politica como um de seus momentos' particulares. particulares. Enfim, para outros, ha continuidade entre as teses democr^ticas do
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* Professora de Historia da Filosofia e Filosofia Politica da Faculdade de Filosofia, Letras e CiSneias Humanaa da Universidade de SP.
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jpvem,Mai* e as comunistas do velho Marx, pa inedida em que b inetrca decisiva das primeiras, pelo metios desde a Critica da Filoso jia do Dirfdfo de Hegel, e a critioa de duas abstra^oes gdmeas — o estado 'soci^ade civil — em nome da socializag&o da pblltica. Mudari^m os sujeitos da democracia — no joyeiri Marx da Cntida, o “ povd rbal”, no Marx do Manifesto, o profetariado como classe i^iversal revolu^on^a — ) nao mudaria a finalidade — ultra-* passw o formafismo .juridico da democracia burp;pesa pelo materia|i^o social da'democracia comunista^. ,
A -hipdtese 'de continuidade 6 tentadora pelb mcnos por dois Piotivos. Em primeiro lugar, porque se considerarmos como sintese ■'das pieodupa^des do jovem Marx na Critica da Filosofia do Direito de Hegel e na QuestSo Judaica, a concepgao apresentada na Tese nP 10 Contra Feuerbach — “O ponto de vista do materialismo antigo '• e a sociedade civil, p do materidismo modemo, a sociedade humana ou humanidade social” — , entao, a id6ia desenvolvida na maturidade sobre o tcino da liberdade e da igualdade concretas como advento da histdria humana, isto 6, depois que o sujeito “o capital” e seus predicados ‘*o capitalista” e “o oper^io” tiverem 'desenvoMdo todos os seus pressupostos para que em seu lugar suija o yerdadeiro su; jeitb, o homem social, por mais que iniplique uma reviravblta coippleta face ao comunismb tiumanista da juveii tude guarda urn jjonto que ]i era nuclear neste Tiltimo, qual seja, o do homem como 1. Cf. Maximilien Rubel — Marx critique du Marxisme, Paris, Payot, 1974; Michel Lowy — La Tkiorie de la Rivoluthn chet.le feune Marx, Paris, M^spero, 1970; Shlomo Avineri, — The Social and Political Thought of Karl Mari, Cambridge, The University Press, 1968; Jean Hyppolite — Etudes^sur Marx et Hegel, Paris, Marcel RiviSrc et Cie., 1965;' G. Mende — Karl Marx Erifwicklung von Revolutionaren .Demokraten zum Komuniste, Berlim, Dietz yeriag, 1960; piaude Lefort — As Formas da Histdria, SSo Paulo,. Editora Brasiliense, 1981; Claude Lefort — ^Invention Dimocratique, Paris, Fayard, .^1980; Herbeit Marcuse — Reason arid Revolution-Hegel and the Rise df Social-Theory, Boston, Beacon Press, 1960; Bert Andreas — Marx, Engles et .la gauche hegelienne, Milao, Giaccomo'Feltrinelli, 1964. 2. Stobre as,abstrafSes — o homem a liberdade, a igualdade, a.prpprie — do modo de produ$ao capitalista, sua reflexSo, nega$ao da negagSo e passagem ao reino da liberdade — o comunismo como histdria e como. humanismo real, vcja-se Rny Faiisto -r Dialitica marxista, antropologismo e antiantropologismo, in Revista- Discurso, n.° 8, SSo Paulo, 1978.
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agente-padente de^sua prbpria histdria e, portantp, da exjstfincia social e da pr^tica politi ca. Em outras palavras, a afinnagao da CHtica da Filosofia do Direito de Hegel, segundo a qual “6 o povo quern cria a.-lejc nao a lei que cria-o povo”, a,do Terceiro Manus^ crito Ec,ondrrdco-Filosdfico de 1844, segundo a qual *‘um scr s6 se considera autbnomo quando d ^nhor si mesmo e s6 6 senhor d^ si quando deve a->i mesmo -seu modo de existincia** ®, e a afirma^So do fragmento (Ja se^ao VII do livro III de O Capital, segundo. a qual “na verdade, o reino da liberdade comega somente a partir do mometito em que cessa b trabalho ditado pela necessi,dade e ps fins exteraos; situa-s.e, portanto,, por sua'prbpria natureza, para al6m da esfera material propriamente dita (-..)■ Nesse dommio, a libero daite s6 pode consistir no seguinte; os produ tor'es as^ciados homem socializado.regulam de maneira racional suas trocas org&nicas com a-natureza e as submet^ ao seu contrple comum, em lug^ de serem dominados pela pot^cia'‘cega dessas -trocas (...). Mas o imp6rio da hecessidade nao deixa-de subsistir. fi para alem que comega o des^brochar da potfinc ia humana que e seu. prbprib ^ Isao afiimagoes cuiog fim, o verdadeiro reino da liberdade pressupostos sao diferentes e cuio d^envolvimento conceitu^ e tam b^m diferente, mas que possuem Ta mesma finalidade: a autonomia oq auto-emancipagao pela critica e supressao prdtica da .heterononiia (teglogia, alienagao, propriedade privada e dinheiro, nq jovem Mar^; modo de prbdugao capitalista, fetichismo da mercadoria, luta de classes, no velho Marx).. Em segundo lugar,, a continuidade 6 tentadora porque, em 1869, o Programa de Eisenach (dos marxistas no partido sOcial-deniocrata alemao)' e, em 1875, B.CrUicaido.PTograma de Gotha recolocam a democracia em discussao e neles 6 possive l perceber .a presenga dos temas da Questdo Judaica. particulannente .Critica'do Programa ’
de Gotha. O item 4 do Programa de Eisenach declara: “A liberdade politica e a condigao mais indispensAvel da . emancifiagao econbimca Murx __ Manuscritos Economicos-Filos'dficos, Terceiro Manuscrito — 3 sao Paulo, Abril Cultural, 1974, p. 20. Tradu^ao Ios6 Carlos Bruni. 4. Marx — Le Capital, in Oeuvres de Karl Marx. Economxe, vol. 11, fragmcnto “En mani^re de conclusiori", Paris. Pldiade, 1968, p. 1486.
das classes trabalhadoras. A questao social i, pois, insepar^vel da questao politica, a solu9ao da primeira esti ligada a da segunda e nao e possivel senao num Estado democritico” Comparado a Critica da Filosofia do Direito de Hegel e a Questao Judaica, evidentemente o Programa de Eisenach apresenta duas grandes diferen?as: por um lado, seu sujeito riao e o povo da CFDH nem o homem generico da QJ, mas os trabalhadores, c estes nao aparecem, como na Introdugdo a CFDH, recebendo passivamente a teoria liberadora, mas como autores de sua prdpria emancipafao; por outro lado, e, sobretudo, no PE a emancipa 9ao politica nao 6 a finalidade, como na CFDH, nem e descartada como ilusoria, como na QJ, mas e posta como condigao para a emancipa 9ao economica. Sem duvida, numa perspectiva marxista, o que e posto como condigao ope ra como pressuposto e o desenvolvimento histdrico e supressao do pressupostb, gramas h. sua reflexSo. Nesse sentido, o lugar ocupado pela democracia na CFDH e no PE e semelhante, pois o segundo, tendo como horizonte um alem do Estado democratico, posto apenas como condigao politica da emancipa^ao economica e social, reencontra a tese da primeira, isto e, a supressao do Estado politico pela democracia. £, todavia, na Critica do Programa de Gotha que a situa^ao da democracia melhor se oferece. Em primeiro lugar, alem da cri tica ao lassallismo do PG, Marx o critica de tal modo que a critica alcanna tambdm o PE, pois o considera a expressao “questao social” um eufemisnio burgu^s para a luta de classes e analisa os itens do PG considerando-os “ladainhas democraticas” no melhor estilo dos partidos populates burgueses Csufrdgio universal, direito do povo, millcias populates, legislagao direta, instrugao dada pelo Estado), e que eram exatamente as reivindicagoes de 1869 (cablveis apenas num pals como a Alemanha, em atraso face aos demais palses capitalistas). Porem, os pontos mais altos da Critica do Programa de Gotha sao as discussoes sobre a natureza do direito (I, 3) e do democratismo (III e IV).
mem” e o “cidadao” sob a figura do burguis (isto 6, da pessoa como proprietdrio egolsta e da sociedade como civil, aglomerado monddico), comandava a analise, marcando, como na CFDH, o vinculo necess^io entre direito e propriedade privada. Em contrapartida, na Critica do PG, e o vinculo entre direito e trabalho que e discutido, Marx afirmando que tomar o direito do ponto de vista determinado do trabalhador e uma abstra§ao que recai no direito burguis. Em outras palavras, uma emancipagao social e politica' que tome o tra balhador enquanto trabalhador (do modo de produgao capitalista, proletdrio) conserva a divisao burguesa constitutiva da sociedade civil: “o direito igual e, pois, aqui, em seu princlpio, o direito bur guis'' e, pior ainda, na sua forma anacronica, pois 6 tornado a partir do trabalho como medida, quando o modo de produgao capitalista fez da mercadoria o criterio da medida. Os aspqctos mais interessantes da critica de Marx estao na retomada da questao politica cldssica da igualdade como devendo ser posta por um metron social ou pela medida dos equivalentes, sendo o direito a igualizagao dos desiguais por meio de uma nova desigualdade, por6m justa, mas que para se-lo exige aquilo que o Programa d^ Gotha nao percebe, isto 6, que o trabalho tenha mudado inteiramente de forma, de conteudo e de sentido para conv ter-se em medida de justiga numa palavra, o que propoe o fragmento da segao VII do livro lH de O Capital. Assim, um elemento decisive das discussoes demoerdticas, desde a antiguidade, — a liberdade politica como medida da igualdade dos cidadaos — e retomado por Marx sob a perspectiva social do comunismp, isto 6, a emancipagao do trabalho € condigao e nao finalidade do reino da liberdade (o que toma radical sua cri tica a Lasalle, como na juventude fora radical a critica ao comunismo grosseiro).
A critica k concepgao burguesa do direito, mantida pelo PG, ultrapassa a que fora feita na QJ. Nesta, a divisao entre o “ho-
A critica ao democratismo do PG nao se limita a mostrar que as reivindicagoes estacionam nos limites burgueses do “estado demo cratico” e do que “6 permitido pela pollcia e proibido pela Idgica” mas atinge o cerne do problema porque critica a concepgao de “li berdade” presente no Programa. Com efeito, este invoca o “livre
5. Programe des marxistes, Eisenach 1869i in Marx, Engels — Critique des Programes de Gotha et Erfurt, Paris, Editions Sociales, 1972, p. 145.
6. Marx, Engels — Critique du Programe du Gotha, in Marx Engels — Critique des Programes de Gotha et Erfurt, op. cit., p. 45.
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fundamento do Estado” -e Marx cpmenta essa expressao mostrando que ela reafirma a ideologia burguesa- do Estado como organismo separado da- spcied^de civil e a ideologia alema do Estado tutelar e demitirgico, pois o Programa reivindica o que J»iarx considera- uma atrocidade extremamente prejudicial prdxis proletdri^: a educa^ao •pelo Estado e as cooperativas de trabalhadores sustentadas pelo Es tado. *0 PG 6 incapaz de perceber que “ a liberdade consiste em tfansformar o Estado,'organismo-posto acima da sociedade, em Um organismo inteiramente subordinado a ela (...), em lugar de.^atar a sociedade presente (e isto vale para toda sociedade futura) como jundaniehto do Estado presente (ou futuro para a sociedade futura), tf Programa tlaia o Estado como redidade independente possuindo A conseus pfdpribs fundamento^ iht'electuais, morais e livre^ clusap d^ Criticti do PG serd a afirma§ao-da necessidade de uma fase de trarisigdo ha qual sd instala a ditadura revoluciondria do proleta■riado, encarregada de subordinar o' Estado as necessidades socials, no momentd em que o novo ainda est^ emergindp dos escpinbros dov'Velhp. Essa cbnclusao, que marca a distincia definitiva enti^ o jovem e, o yelhb Marx, no entanto, prpvdm de uma andlise 'que fo'fa efetuada com todos os detalhes na CFDH, isto 6, a dndlise da inversao Wistica-mistificadora Ppferada. por Hegel, que atribuira ao Estado “fun^mehtos intelectUais, morais e livres”' (restando saber o que Marx'pensaria dds'atuais regimes socialistas,...) Na CFDH_,, a fesposta de MarX k- transcenddiicia ou univers^idade abstrata do ^Estado era a deinocracia. Na Critica do PG, a crftica do democratisqio reencontra, por outras vias, o problema anterior que^ democracia'enfrentava no texto de juventude, isto €, tendo demonstrado a. ficcao da uniyersalidade poUtica tentada por Hegel, mostrando os particplarismos que defini^ cada um dos “m.ediadores ” hegelianos (mona^a, burocracia, aristocrada fundiaria, coipora9oes), o jovem ’
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Mani wnbima qiie o “o Estado constitucional € o Estado^ da pro priedade privada ’, mas sua definipao da democracia como verdade da relagao entre sociedade e .polftica retomava apenas pelo angulo da autocqnsciencia a questao posta pelo Estado constitucional, critkado agora no democratismo de Gotha, k luz da luta de classes. 7.
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Idem, ibidem, p. 43.
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Em resumo, a tenta^ao de estabelecer uma continuidade entre o humanismo democrdtico e comunismo humanista juvenis eocomunismo revoluciondno da matimdade ^dv6m das duas descobertas principals, do'jovem Mar^ no-campo da, polftica: a da determinapao; spcial do poder (que,o levava a declarar a democracia “o enijhia.. resolvido de todas as constituipoes) e a da polftica .como .esfera particular da vida social genbrica (que o levava. a declarar o co munismo “o enigma resolvido da histdria que se .conhece como. essa solupSp”). Sem "^dlavida; sao ponderdveis os argumentos sobre a r-yptura na obra de Marx — seja a ruptura polftica- no contato com os movimentos proletdrios, a partir de, 1844, seja a ruptura tedrica.com a descoberta do modo de produoao capitalista, seja a passagem do papel iiberador da iilosofia para o da praxis revoluciondria --r- e Critica da. Filosofia seria ingenuo considerar que 6 simples fato do Direito de Hegel discutir a necessidade da democracia como poIftica transformada em atividade social e da. Questdo Judaica di^ cutir a auto-emancipa^ao do homem gendrico^pela passagem da sociedade civil k condigao. de sociedade. seria suficiente para desfazer a enorme disttocia que separa as primeiras idbfas de, Marx das liltimas. Essa discussao, que nao € nosso- intentd reali^ar aqui, poderia, entretanto, coriduzir a certos temas inesperadoS) freqiientemente negligenciados pelbs exegetas do marxismo. A.'tftulo de exeniplo, mencionaremos apenas um texto que ainda nao vimos suficientemente comentado pelos intbrpretes. Sabemos que Marx_ criticard, a partiV do 1844,'as vdrias modalidades de comunismo existentes nos movimentos pperdrios: o' co munismo grosseiro (baseado na inveja e no desejo de le^essao ap “homem pobre”, ampliando a categoria de opefdno para todos', em lugar de suprimi-la, uma “forma fenom6nica. da infdmia da pfopriedade privada, que se quer instaurar como 'coletividade posidva”, diz 6 Terceirb Manifesto Ecofidniicd-Filosdfico) , o comunismo de natureza'^polftica, democrd^ca ou despdtica (que pretende superar o Es-' tado,. mas ainda preso k aliena^ao da propriedade privada, nao ten do ainda compreendido a natureza humhna do carOcimehto, apreendendo seu conceito, mas nao sua essSncia), o comunismo filosdfico (suficiente para abolir a idSiq da propriedade privada, mds nap sua realidade) e o comunismo utdpico (que b nostilgico-e nao procura ’
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a superagao da propriedade privada a partir de suas contradi^oes presentes). Essas criticas operam a partir das analises sobre a aliena?ao, a essSncia da propriedade privada, do dinheiro e de seus resultados, a sociedade civil ou burguesa, assim como sobre a passagem da abstragao alienadora — “a sociedade” — para a ess6ncia humana concreta — o homem como ser e vida socials — , de sorte que o comunismo e “superagao positiva da propriedade^ privada enquanto auto-alienagao do homem, e por isso apropriagao efetiva da essencia humana atraves do homem e para ele; retomo acabado, consciente e que veio a ser no interior de toda a riqueza do desenvolvimento at6 o presente. Este comunismo 6, como acabado, naturalismo = humanismo, como acabado humanismo = naturalismo; 6 a verdadeira sOlugao do antagonismo entre o homem e a natureza, entre o homem e o homem, a resolugao definitiva do conflito entre essdncia e exist^ncia, entre objetivagao e auto-afirmagao, entre necessidade e liberdade, entre individuo e gSnero ” Numa palavra, enquanto acabado, isto e, desenvolvido, o comunismo 6 reconciliagao entre o ind;viduo e o ser generico (Gattungswesen) e entre os proprios individuos como seres comunitarios (Gemeinwesen), gragas a realizagao da essencia social do homem que, agora, se sabe produtor e produzido pela Vida social. Ora, o surpreendente e raramente analisado pelos comentadores e que o comunismo assim apresentado pelo jovem Marx nao e ainda o reino da liberdade. fi uma etapa ate ele. “O comunismo e a posigao como negagao da negagao e, pois, o momento da emancipagao e recuperagao humanas, momento ejetivo e necessdrio para o movimento histdrico seguinte. O comunismo 6 a configuragao necess^ria e o principio energetico do futuro prdximo, mas o comu nismo nao d, como tal, o objetivo do desenvolvimento humano, a configuragao da sociedade humana ®. ”
Sem duvida, pode-se argumentar que esse texto pertence ainda a fase ,do humanismo filosdfico, que Marx ainda nao elaborou o ^conceito de praxis revolucionaria e nem, muito menos, o de modo de produgao capitalista. Que sua analise estando ainda presa & da 8. 9.
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Marx — Manuscritos. Idem, ibidem, p. 22.
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op. cit., p. 14.
alienagao, .a da propriedade privada e do dinheiro, ^ id6ia de emancipagao do genero humano pela parte “sofredora” desse genero (o proletariado como base material passiva que recebe a consciSncia vinda de fora, trazida pela atividade espiritual ou pela teoria), o conceito de comunismo ainda nao poderia ser claramente compreendido como resultado do desenvolvimento e da supressao do capitalismo, permanecendo apenas como negagao da negagao e ainda nao sendo plena afirmagao de uma nova ordem.
No entanto, quando levamos em conta a critica do economicismo presente na concepgao do direito no Programa de Gotha e sobretudo o- fragmento da secgao VII do livro III de O Capital podemos indagar se esses textos, al6m de serem a resposta para os pro blemas da superagao do homem abstrato como zoon politikon {CFDH, QJ) e como animal laborans (Manuscritos de 44), nao reafirmariam o texto paradoxal do Terceiro Manuscrito. Afinal, a segao VII declara que o reino da liberdade comega depots que os produtores associados regularam as trocas sem fetichismo e sem alienagao, isto e, sem heteronomia. Ou, se se quiser, depois que se cumpre a reflexdo capitalista, fazendo o homem atravessar a negagao de si (na existSncia parti cular contr^ria a si; burgues, operdrio) porque ele 6 apenas pressuposto pelo modo de produgao capitalista que o faz passar nos seus contrdrios determinados (nao homem, nao cidadao, nao livre, nao igual, nao pensante ), a revolugao comunista o faria negar essa negagao e o comunismo seria, agora, o pressuposto para que o ho mem, como essincia humana, seja posto com determinagoes positivas, e portanto, como livre, igual, pensante, cidadao etc. Neste caso, ainda que nao fosse possfvel retomar a tese juvenil do comu nismo como etapa para o reino da liberdade e da igualdade, porquanto, agora, ele seria o pressuposto delas, no entanto, o que se poderia retomar 6 uma outra tese da juventude, qual seja: assim como no modo de produgao capitalista a sociedade 6 sociedade civil (portanto, burguesa ou nao sociedade) e a democracia 4 estado democrdtico (portanto, juridico-formal, nao democracia), no comunisnio a sociedade seria social e a democracia, democrdtica, os predicados e os sujeitos finalmente identificados numa realizagao histdrica concreta da liberdade e da igualdade humanas que o jovem
Marx buscara e que o fizera considerar o comiinismo a mediagao e nao o'fim. Por6]ji, mais sigi^cativas. para essa discus'sSo politica seriaim as andlises da revotu9ao 'de 1-848'e Sbbfetudo da Conmna de Paris. A primeifa, como limite da rfepdbUca biurguesa ou como verdade do Estado doristitucional^enquajltd “maquifia de guerr^ do capital con tra'd.trabalho”,-levando ks ultimas conseqiiSricias, na pi^ica, aquilo que, na teoria, a CFDH expusera. A segunda, c6mo ^assalto ao c^u” que, no entanto,-trouxe .uma altera^ao profunda ,ap isto 6, a certeza de que nao basta tomar o Estado burguSs constitjifdd, mas 6. preciso destrui-lo como “condigao primeira de toda revoluglo gopidar real” ’
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A .Comuria, criagao de uma republica que nao visava apenas a abolir'^ a fonna m'ondrquica da dominagao de classe, mas a pf6 pria dominagao de classe, comegahdo pela aboligao desse imenso drgao parasita e^ repressive — o Estado centtalizado, burocratico e militarizado — se realiza como revolugao politica e ibstauragao demoerdtjea. As ^crfticas de Marx ao fomaUsmo do estado democratico. enconltam-se efetixadas pela prdtica^ dos ..“communards : su pres^p do ;ex4rcitb permanente, supressao do parlamentarisipo pelo estabelecimento da elegibilidade, do mandate imperative e revog^vel dos repfesentantes e, Sbbretudo, desti^gao da “republique pr^tre” istp a, da .burocracia, pela ^eigao" dos administi’adores e por seu saiarjo, no nlwl do “salarip operario”. A Comima, na interpretagao de Mara, des.trdi a democracia burg u^a pela instauragao da demobrgeia tout court, isto a, tal como a definita a CFDH, poder real :do,povo red que faz e executa a lei. ’
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Mais do que isso. Se nos lembrarmos de que na CFDH Mara criticava a jmpossibilidade de Hegel para resolver ’o probleina da representagao politica (representagao inexistente na CImara Alta, “medieval”, encamagao de si'niesma;-representagao invi^vel.^para a Gamara Baixa, ‘’modema”, porque a mobilidade, a particularidade dos’interesses e o nlimero impossibilitam k “classe formal” represen tor tpdo o povo e a si mesma), a Comima 6 a resposta democrdtica (prol^tOija popular) a, essa impossibilidade burguesa, na medida em que “nao era um orgaijismo parlamentar, mas o corpo ativo, executivo.e legislative ao mesmb tempo” Govemo dos homens e .
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administragao das coisas; a Comuna^ e a “forma politica enfim encontrada” pela revolugao pfoletOria. Se a democracia € o “enigma resolvido de todas as constituigoes”, a. Comuna e o enigma resolvido da prbpria democracia’ o Gemeinwesen 'que revolugao burguesa alguma f*oderia realizar. Como supressao do Estado, a Comuna efetiva uma-forma social da politica na qual esta illtima ociipa o lugar que Mara Ihe atribuira: esfera particular da atividade social gen^rica.
Nao 6 nosso intuito discutir a diferenga entire as id6ias da juventude e da maturidade de Marx. Nossa preocupagao, bastante limitada, estarO voltada apenas para alguns aspectos do 'conceito de democracia na Critica da Filosofia do Direito de Hegel e, mesmo aqui, nossa an^ise tamb6m seri limitada, buscando apenas acompanhar a presenga de algumas iddias de Espinosa nessa elaborqgao. do jbvem Mara.
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Entire os marxistas, costuma-se invocar Espinosa contra Hegel quando se pretende encontrar um predecessor ilustre para o pensamento de Mara, seja porque o espinosismo funcionaria como um antidotb contra b misticismo dialetico, seja porque a defesa da de mocracia por Espinosa iluminaria, a critica de Mmit k filosofia politica he^liana^^. Embora essa segunda hipbtese nao seja descabida, 10. Essa hipdtese 6 levantada por .Maximilien Rubel, op. cit. “Marx encontrou em Espinosa o que havia verdadeiramente. pedido a Hegel, ou ao Rousseau do Contrat Social: .a possibilidade para o individuo de reconciliar' a existencia social e o direito natural, possibilidade que-a carta dos direitos do homem e do cidadao nao concedia senao em virtude de uma fic^ao juridica. O Traiado de Espinosa 6, a esse respeito, inequivoco: “A democracia nasce da uniao de homens gozando, enquanto sociedade organizada, de um direito soberano sobre tudo o que estd em seu-poder”.” p. 173. Quanto ao ‘espino sismo de 'Marx, Althusser foi, depois de *Plekhanbv, quern levoU mais ,longe a identificagao (cf. Pour Marx e Lire le ^Capital), embora acabasse numa Autocritica a esse respeito. Althusser interessou-se particularmente pela concepgao espinosana da verdade como index sui et falsi (o que, na realidade, nao 6 anti-hegeliano, pois Hegel desenvolve- essa concepgSo espinosana), pe)a
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cremos que a busca de uma tradi^ao de pensamento nao-hegeliana para a obra de Marx pode ter como conseqU^ncia a anulaqao do papel decisive da dial6tica de e em ^arx podendo levar, por cxem plo, a abandonar a contradigao pela oposi?ao real ^antiana (como em Colletti) ou pela “causalidade estrutural ' supostamente espinosana (como em Althusser). A16m disso, tal procedimento arri^ase a neutralizar o trabalho do pensamento de Marx conquistando seu campo proprio de expressao, substituindo-o por um mosaico mec^nico de “influfincias” variadas. pelo menos duas objepoes de vulto ^ tentativa de encontrar iddias espinosanas na obra de Marx — ainda que do jovem Marx, na dpoca em que realizava a critica filosdfica da religiao e da politica e em que passava gradativamente, no conlato com os movimentos oper^rios, do humanismo democrStico para um comunismo filosdfico e deste para o comunismo propriamente dito. ’
A primeira objegao, mais imediata, 6 a de que o espinosismo 6 uma filosofia da afirma^ao absoluta, recusando qualquer estatuto ontoldgico e epistemologico k negagao — coisa que Marx nao ignorava, pois era o leitmotiv da critica hegeliana a Espinosa e porque conhecia a carta 21 de Espinosa a Blyenbergh, dedicada k critica da causalidade eficiente imanente, por ele chamada de “causalidade estrutural” e que teria a vantagem de eliminar o expressionismo da totalidade hegeliana (embora o termo “estrutural" nSo seja muito adequado para a imanfencia espinosana)> e pelo fato de a filosofia de Espinosa nao scr uma filosofia da subjetividade ou do sujeito (o que 6 verdade, mas Althusser nao considerou as peculiaridades da antropologia espinosana, o que Ihe teria permitido, se n§o estivesse tao empenhado em negar o humanismo de Marx, perceber que a essSneia humana, em Espinosa, encontra seu ponto real de concresao apenas no final da £iica, depois da dedugao das paixdes e da razSo como abstragoes, 0 homem estando localizado, exatamente como em Marx, ap6s a passagem pela servidSo). De qualquer modo, 6 grande a tentagao de comparar Espinosa e Marx: os prefScios do TTP e do livro IV da £tica, bem como o ApSndice do livro lea Ideologia Alemd; as cartas a Albert Burgh e a Luis Meijer assim como os capitulos XTV, XV, XVI do TTP e a Introdugao d Critica da Filosofia do Direito de Hegel; os livros I e V da Fiica e os textos esparsos de Marx sobre a liberdade e a necessidade; o capitulo X do Tratado Politico t as andlises sobre o 18 Brumdrio e a Comuna de Paris etc. Mas uma comparagao, como diz Espinosa, i um conhecimento inadequado, imaginativo e abstrato que apanha semelhangas e diferengas imediatas, sem alcangar a essSneia da coisa.
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negagao como realidade em si ou para o pensamento Nao hadial6tica em Espinosa — nele, como dissera vendo negagao, nao Hegel, o positivo € intrinsecamente indestrutlvel, a contradi^ao i considerada imposslvel e a substEncia ainda nao 6 s\ijeito, desconhecendo a reflexao e o desenvolvimento. No limiar entre a Idgica do ser e a da essencia, prisioneiro do entendimento abstrato, o espinosismo i inerte. Nao cabe aqui examinarmos a corregao ou incorregSo das inter pretagoes hegelianas,, embora possamos, brevemente,. lembrar que Espinosa nao recusa a negagao e a contradigao, mas^as pensa como agao reclproca de contr^rios' cuja forga 6 desigual> acarretando a destruigao de um dos termos, al6m de considerd-las um acontecimento vindo do exterior e nao prOduzido pela prdpria essSneia singular, ou. melhor, como aquilo que adv6m a, essencia e que ela nao Queremos, por6m, observar que nao sendo nossa pode tolerar intengao transformar Marx num espinosano, a objegao nao .impede a -presenga de algumas id6ias espinosanas na elaboragao da critica polltica feita pelo jovem Marx. Pelo contrdrio, num pensador que estava, na ocasiao, interessado em apanhar o lastro teoldgico do poder 11. Essa carta foi transcrita por Marx num caderno de notas de 1841, sobre o qual falaremos adiante. O trecho sobre a negagao € o seguinte: "A privagao nao consiste no ato de privar, mas pura e simplesmente numa carSneia (simpUcem et meram carentiam), que nada 6 em si mesma; nao se trata senao de um ser de razao (ens rationis), de um modo de pensar (modus edgitandi) que formamos quando comparamos as coisas umas com as outras. Dizemos, por ' exemplo, que um cego € um homem privado da visa© porque o imaginamos sem esforgo vidente por comparagao com outros homens que v8em ou com o tempo passado, quando via (...), Mas, se em troca, tomamos sua essSneia atual, a visao nao Ihe pertence como nao pertence & .pedra e seria contraditdrio que Ihe pertencesse como h. pedra (...) neste caso nao hi a nSo-visao deste homem, como hao hd a nSo-visSo da pedra e 6 precise falar. aqui em negagao pura e simples (mera est negatio) (...) Em suma, hd privagao quando o que cremos pertencer k natureza de uma coisa & negado dessa coisa e negagao quando 6 negado de uma coisa o que nSo per tence k sua natureza”. B. de S. Opera quotquot reperta sunt, Haia, Van Vloten e Land, Martinus Nijhoff, 1923, T. Ill, pp. 87, 88. 12. A esse respeito tomo a liberdade de enviar o leitor a Marilena Chaui — Maumdtica, Experiincia e Politica, in Almanaque, revista de literatdra e ensaios, n.° 9, Sao Paulo; e A -Nervura do ReaUEspinosa e a questdo da Liberdade, tese de livre-docencia, mimeo., USP 1976, cap. Ill, T. II.
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politico e em defender uma perspectiva democratica, a companhia das id6ias espinosanas nao $ impossivel. A segunda objegao, mais especifica, 6 a de que a filosofia.poUtica espinosana 4 jusnaturaliSta e, pdrtantp, alvo das criticas de Hegel e Maix ao jusnafuralismo. Alem disso, Espinosa concebe o direito de marieira bastante djferente da de Hobbes, pois julga nao haver ruptura entre direito natural e direito civil, aquele considerado uma abstragad tedrica enquanto pensado ^m a sociedade e a politica, e o dltimo pensado ‘como- forma sdcio-politica do primeiro. Assim, tanto face a 'Hegel e Marx como face a Ifdbbes, Espinosa^parece pennanecer aqu4m da moderhidade, .uma vez que- tiao trabalha com a separagao sociedade civil-Estado,.como os dois primeiros, nem cpm a Qposigao direito natural — .-;4iieito civil, cdmo o segunda. ,
Tambem aqui nao* cabe. nos alongarmos sobre as concepgoes espiriosafa&s do direito e da sociedade civil (para'ele, socie4ade poli tica), xonsiderada o momento no qual os hdinens passam’a ter'uiha vida vefdadeiramente humana, “nao d6finida apbnas pela digestao e pela circutagao do sangue ”. Entretanto, seria conveniente lembiar q'iie'Espinosa define o direito (natural e civil) como podQt-(potentia individual e potestas coletiva), o estado de natureza como impotSncia ou abstragao (a potentia individual temerosa e vitima de todas as outras que a rodeiam), ,o^tS3o civil como racionalidade operante' no seio das paixoes ou car^ncias naturals e nao como ^roduto de um pacto social racional entre homens livres porque os homens nao nascem liVres, mas se toimam livres, e porque em estado de natureza nao hA libe^dade, uma vez que esta (exatamente como a definira o jovem Marx no Xerceiro Manuscrito Econdtnico-Filosofi co) e ser autdnomo, senhor de si, autodeterminado e apto para o multiple simult^eo, impossiveis em estado natural. Nao distingue os regimes politicos pelo numero de govemantes nem pelo cardter eletivo ou nao dos dirigentes, mas pela proporcionalidade interna estabelecida entre a potentia dos cidadaos e a potestas politica, de tal modo que a tirania € ausencia de proporgao, a monarquia, despro porgao, e a democracia, plena proporcionalidade, nela ningu6m podendo identificar-se com o prdprio poder, que e incomensur^vel a potentia de cada Tim e de todos somados, cada um “'penhan^cendo livre e, igual, tal como era antes da constituigao da soberania” Enfim, seja qual for o regiihe politico, o momento de sua fundagao .
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tern como sujeito o povo, que pode alienar seu prdprio poder para um ou para alguns, ou conservd-lo como poder social coletivo ou democratico, as variagoes dependendo das condigoes, historicas determinadas nas quais a fuftdagao. polidca tem lugar, a Cidade podendo nascer do desejo da'vida (fazendo-se livre) ou do temor da morte (fazendo-se escrava de um ou de alguns). Dado, o sentido muito peculiar que possui a Natureza np pensamento espinosano (forga infinita imanente autoprodutora e produtora dc diferengas fisicas e animicas ou- de individualidades e singularidades finitas corporal^ e psiquica^ que agem por causalidade eficiente- im^ente e padecem por fraqueza para realizar essa agao) e a ‘ peciiliaridade de seu “ jusnaturalismo ” (a realidade do direito natural dependendo da constituigao da sociedade politica na qual opera simultaneamentg como medida do direito civibe, paradoxalmente, como guardiao da liberdade politica e como ameaga para ela), seria dificil enquadrar Espinosa iniediatamente nas criticas de Marx ao jusna; turalismo. ‘
Enfim, um dltimo aspecto que conviria lembrar diz respeito a, duas caracteristicas da democracia espinosana. Espinosa a define como 0 “mais natural dos regimes politicos” (e ]k vimos- como 6 peculiar o “natural” em sua filosofia), pois aldm de' conservar os homens livres e iguais, atendendo os motivos pelos quais’instituem a vida politica, sobretudo e o linico regime que atende ao principal desejo do direito 'natural ou da essencia humana enquanto potentia agendi: o desejo de governar e nao ser governado. Em se^ndo lugar, a democracia 4 o unico regime politico dO qual a natureza especifica da politica se realiza, isto e, ela evidencra que a politica e realizagao humana sem qualquer fundamento transcendente (este sendo sempre uma superstigao ou uma mistificagad de origem teologica), de sorte que nela a-liberdade se realiza nao so como algo garantido pelo- regime politico, mas sobretudo como causa da funda gao politica. Na democracia, contrariamente aos outros regimes politicos, os cidadaos nao- sdo parte da sociedade politica, mas tomam parte nela. Por isso Espinosa a define -como dbsolutum imperium, poder absoluto. Esses dpis aspeetos da democracia — ipstituigao humana sem fundamento imaginario transcendente e absolutum imperium — reaparecem na analise feita por Marx.na Critica da Filosofia do Direito de Hegel: a lei como criagao real do povo
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real e o poder como poder real; a “constituigao do povo” e nao o “ povo da constituigao,' ’.
Tamb6m vale a pena recordar duas teses que perpassam toda a filosofia politica de Espinosa. A primeira delas, e a de que. os homens frequentemente nao sabem a quern cabe a soberania, nao por falha intelectual, mas porque a teia das relagoes sociais e politicas sendo tecida com os fios da paixao e da imaginagao, os homens tendem a identificar os ocupantes do poder com a prdpria soberania. Na CFDH, Marx indaga: “soberania do monarca ou soberania do povo?”, e na Ideologia Alema o tema da dissimulagao da origem do poder € uma constante. A segunda tese e a de que um regime poli tico nao deScamba para a tirania, nao se torna, por acidente ou por desvio, tiranico, mas jd nasce dessa maneira. A filosofia espinosana recusa a causalidade eficiente transitiva ou mec&nica (para a qual causa e efeito sao termos positives independentes e autosubsistentes ), pois opera com a causalidade eficiente imanente (a causa se modifica num efeito particula» ou se exprime num efeito determinado que a manifesta como seu desdobramento interne necess^rio, a causa persiste e existe no efeito). Sendo a causa instituinte de uma forma politica uma causa imanente, cada uma das instituigoes e cada um dos acontecimentos a exprimem de modo deter minado. Por isso um re^me politico nao se toma tir^ico ou autoritario, mas e assim instituido, ainda que no inicio os efeitos da tirania nao sejam visiveis. Donde a critica espinosana ao reformismo politico, uma vez que nao basta agir sobre os efeitos para modificar a natureza da forma politica e social, sendo necessario, para muda-la, destruir sua causa originaria. Porque os homens costumam • ignorar a quern cabe o poder e porque a tirania fica dissimulada apenas em seus efeitos, diz Espinosa, sempre se considera mais f^cil trocar um tirano por outro do que eliminar a causa da tirania. A economia politica burguesa, diria Marx, nao vai alem da substituigao de um tirano por outro. A revolugao proletdria, dird ele analisando a Comuna de Paris, nao pode apenas tomar o Estado burgues constituido: tern que destrui-lo. Nao sendo nosso intuito fazer de Marx um espinosano, esses poucos indicios justificam que busquemos algumas ideias de Espinosa em sua obra, mormente quando nos lembramos do lugar central ocupado pelo pensamento espinosano na filosofia alema, sobretudo a 272
partir da ^lustragao Goethe assinando vdrios de seus textos como “um espinosista nao-kantiano” e Hegel escrevendo: “ou Espinosa ou nenhuma filosofia ”, propondo-se a transforraar a substincia espinosana em sujeito e faze-la desenvolver-se. Heine chegard mesmo a escrever que “todos os nossos fildsofos contemporineos olham, talvez sem o saber, atrav6s das lentes que um dia Espinosa poliu” e, mais significativamente, Feuerbach: “Mas o carater, a verdade e a religiao so existem sob ■ a condigao de que a teoria nao negue a pratica, nem a pratica aiiteoria. Espinosa e o Moists dos livres pensadores e dos materiaiistas. O panteismo e a negagao da teologia teorica, o empirismo, a negagao da teologia pratica; o panteismo nega o principio, o empirismo, as conseqiiincias da teologia” 13. A discussao que atravessa todo o idealismo alemao sobre a liberdade como autonomia e autodetermina^ao. levando & separaflo entre homem e natureza, consciencia e mundo, sujeito e objeto para garantir a independSneia do primeiro termo face ao segundo, colOcou Espinosa no centre das querelas entre ilustrados e entusiastas e rominticos, os primeiros afirmando o dogmatismo pre-critico do espinosismo, ateu e filosdfico da necessidade natural absoluta, incompativel com a liberdade, e os segundos enfatizando o “mergulho” mistico do homem em Deus e na Natureza, o panteismo como integragSo totalizadora cuja expressao mais alta seria o espinosismo. De todo modo, a polemica do Atheismus e o Pantheismusstreit, os combates entre Aufklarung e Schwdrmerei nao sao filosoficos apenas, mas politicos, desde que nao-nos esquejamos de que a Alemanha e um pais teologico-politico. Os combates Jacobi-Mendelsohn, Jacobi-Lessing, Kant-Jacobi, Kant-Svhelling, Hegel-kantianos transcorrem num clima semelhante ao que a obra espinosana conhecera na Holanda do s6culo XVII e na Franga do s6cuIo XVIII, suscitando era todos esses casos “uma oposigao passional, comparavel ^uela que pode suscitar o comunismo 'em certas nagoes ocidentais modernas” — Jean-Louis Bruch — introdugao a Kant-Lettres sur la Morale et la Religion, Paris, AubierMontaigne, 1969. No swulo XVII', Leibniz dissera ser Espinosa “Sata encarnado”, merecendo ser posto a ferros e vergastado at6 Ji morte. No s6culo XVIII, Mendelsohn chamard Espinosa “cao morto”. Ser considerado “espi nosista” era crime e foi para livrar-se dessa acusagao que Kant escreveu O que i orientar-se pelo pensamento? Seria interessante observar que'a obra espinosana passa por tres . representagoes sucessivas: ateia (s^ulo XVII e Ilustragao), mistico-panteista (Romantismo — Espinosa, “o homem 6brio de Deus”), racionalista absoluta (Hegel, s6culo XX). 14. Citado por Maximilien Rubel', in Marx d la Rencontre de Spinoza, Cahiers Spinoza, n.° I, Paris, Editions' Replique, 1977. 15. Ludwig Feuerbach — Principes de la Philosophic de I Avenir (1843), Paris, Presses Universitaires de France, 1973, p. 148. £ possivel avaliar o peso dessa afirmagao quando a confrontamos com um texto de 1839, CrU ’
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Mapc menciona Espinosa poucas vezes,. as referencias mais conheddas sendo “a ignorSncia nao argumento” (inspirada no ApSndice do Livro I da jS’f/co que critica as causas finais imaginativas e o fecursoi vontade divina para explicar o inexplicdvel porque mal conhecido) er o c61ebre dmnis determinatio negatio est (retirado.da cart^ 35 da Espinosa a Hudde), embora interpretado por Marx num seritido muito mais hegeliano do que espinosano ^
tica da Filosofia de Hegel'. “A Nature za se ergue apenas'contra a liberdade do imagin^rio, mas nao contradiz a liberdade racional. Todo copo de vinho que tomamos em demasia 6 uma prova pat^tica e mesmo “ peripatfitica” que a sujeifSo a paixao revolta o sangue; prova que a sophrosyne grega vai inteiramente no rumo da Natureza. Sabe>se que mesmo os estdicos, os rigbrosos estdicos, esses espantalhos dos moralistas cristSos, tinham por princfpio: viver conforme a natureza”. PUF, op. cit., p. 56. A iddia de que a libwdade. so contraria a natureza para a imagina$ao e jamais para a razao 6 a tese central de Espinosa. Para ele, a oposi$ao liberdade-natureza - desliza para a pposifSo liberdade-necessidade e esse deslizamento ocorre porque a imagem da-liberdade,-a imagem da natureza e a imagem da. necessidade possuem conteddos 'precisos contrdrios ks suas essencias: liberdade, para a imagina^So, significa “ter poder sobre outrem” e “escolher voluntariamente”; natureza! para a imaginasao, significa “sucessacy mecanica de causas e efeitos por semeIhanga e 'contiguidade*'; necessidade, para a imagina?ao, significa “decreto riecessirib. de origem desconhecida”, “autoridade”. fi o deslizamento da liber dade para-a dominasSo e d a necessidade para a autoridade o-que as opoe. Para Espinosa a Natureza 6 forga infinita imanente que se autoproduz ap produzir todos os seres; a necessidade 6 o desdobramento interno de u ma forpa ou causa imanente; a liberdade,, .forpa interna de autodeterminagSo para realizar o/desdobramento necess^io da essSncia de um ser singular e, sobretudo, ^ liberdade do corpo e da alma (e nao apenas desta), definindorse como aptidao para o mdltiplp simultaneo ou para o plural. Nesse sentido, ela- 6 a definipao da prbpria democracia como pluralidade simultanea. 16. A? principals citapoes de Espinosa- por Marx encontram-se em: Cadernos soFre a filosofia de Epicuro, in Marx-Engels Werke, volume suplementqr, Berlim, 1968^, pp. 219, 225, 286; Notas sobre a recente ordem prussiana sobre a censura. publicada , Anedokt a..., por Ruge, in Karl Marx•Friedrich Engels Werke Dietz Verlag, Berlim, 1969, Band 1, pp. 7, 9.; O Artigo de Fundo do nP 179 -da Gazeta de Coldnia na Gazeta Renana (Der leitende* Artikep, in Werke, op. cjt;, p. 103; A Sagrada Pamilia. 'm Werke, Rand II, op. cit., pp. 131,135, 139, -141; A. Ideologic Alema, in Werke, Band nl op/ cit., .p. 82, ,132 304; Carta de Marx a Adolf Cluss de 30 de julho de 1852 e Carta de Marx a Lassalle de 31 de maio de 1858, ainbas citadas por Maximilien Rubel, op. cit., pp. 24, 25. A expnsslo omnis determinaiio est negatio encontra-se 'na- Critica d Economic Politico, Introdugao: A produfa o, enquanto e • imediatamente idSntica ao consumo, o consume, ’
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todavia, uma razao ponderavel pwa- acompanharmos a presenga de-Espinosa no .pensamento-de Marx. Em novembro de 1,841, aparece a primeira edigao de A Essincia 4o Cristianismo, de Feuerbach. Em abril desse mesmo ano, Marx recebera o titulo de doutor em filosofia pela universidade de lena com uma tese que infelizmente nao chegou at6 n6s por inteiro, A diferenga entre as jilosoOra, e ainda desse fias dq Natureza de, Demdefito e Epicuro mesmo ano de 1841 um’ ciirioso caderno de Marx eni cuja capa se IS: Spinoza Thtologisch-PjoUtischer Tratakt von Karl Heinrich Marx. O “von Karl Heinrich Marx” 6 bastante significativo, pois de fato enquanto coincide imediatamente com a produgao, chamam de consumo produtivo. Esta identidade de prodii$ao e coii^umo nos leva & 'proposifao de Espinosa: determinatio est negatio”. Abril Cultural, op. cit., p.- 115; 'Werke, Band Xin, op.-cit., p. 622. E em 0 Capital'. ”0 economista vulgar nunca fez essa simples reflexao; que toda- apao humana.pode ser encarada como uma “abstengao” de seu contrdrio. Comer e abster-se de jejuar; andar 6 abster-se de ficar no lugar; trabalhar, abster-se da ociosidade; ficar bcioso 6 abster-se de trabalhar etc. Estes senhores bem poderiam raeditar sobre esta proposigao de Espinosa: determinatio est- negatio”. Oeuvres, Plliade, bp. cit., T. I, p. 1103. Essa expressao e mencionada por Hegel nas Ligdes de Histdria da Filosofia, no capitulo Espinosa como “a grande fra^se dfc ^pinosa”, mas para logo em seguida comentar: “O entendimento possui determinafSes que nao se contradizem: A negagao da negacao 6 contradigao; ela nega a negaffao; assim ela e afirmagao e, no entanto, ek tamb6m 6 negajao em geral. Essa contradigao o entendimento nao pode suportar, ela e o racional. Esse ponto falta em Espinosa, e nisto estS sua cardneia”. Coment^io retomado na E'dgica: “Espinosa perman ece'na negapao como determina?ao ou qualidade;' nao vai at6 o conhecimento dessa mesma negagao como negajao absoluta, isto 6, negagao se negando; assim, sua subst^ncia nao cont^m ela propria sua forga absoluta e o conhbeer dessa mesma' subst&ncia nSo um conhecer imanente”. E ainda: “A determinagao 6 a negagao considerada do ponto de vista da afirmagao. £ a prbposigao de Espinosa: omnis determinatio est negatio”. E tamb6m na Enciclopidia I, § 91. £ essa interpretagao hegeliana que encontramos nas citagSes de Marx. Sobre a interpretagao- hegeliana da negagao espinosana veja-se: G6rard Lebrun — La Patience du Concept, Paris, Gallimard, 1972; Kant et la fin de la Mitaphysique, Paris, Armand Colin, 1970; Paulo 'Eduardo Arantes — IJegel:' a Ordem do Tempo, Sao Paulo, Pblis, 1981; Martial -Gu6roult — Spinoza, Paris, Aubier Montaigne, 1968, ■f. L; Pierre Machefay — Hegel ou Spinoza, Paris,'Masp6ro, 1979; Marilena Chaui — A Nervura do Real. ., op. cit. 17. Veja-se a bela edigSo brasileira organizada por Jos^ Am6rico Pessanha. Global Editora, Sao Paulo, 1979. .
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Marx nao copia ou simplesrflente transcreve o Tratado -Teologico Politico, mas o reescreve: muda a ordem dos capitulos, corta trechos, encadeia outros com novos conectivos. A16m do TTP, o cademo traz uma sele5§io de cartas de Espinosa relativas a religiao, k polftica e ao infinito Se considerarmos que, na Questao Judaica, Marx leva as dltimas consegii^ncias ideias expostas na Critica d Filosofia do Direito de Hegel e na Introdugdo de 1844, entre as quais predomina a criti ca do carater teoldgico-polltico da pr^tica e da teoria pollticas na Alemanha (que sequer conseguira alcangar a constituigao plenamente polltica do Estado, mantendo-o fundado nos pilares do cristianismo), a leitura do Tratado Teoldgico-PolUico e sua reescrita passam a ter um significado importante para a elaboragao do pensamento politico de Marx, nessa epoca. Ousarlamos dizer que, assim como Feuerbach oferece a Marx a possibilidade da critica filosdfica a religiao, Espinosa Ihe oferece a possibilidade da critica filosdfica ^ polltica. 18. O Tratado Teoldgico-PolUico e reescrito na seguinte ordem: cap. VI, sobre os milagres; XIV, sobre a fe; XV, sobre a razao e a teologia; XX sobre a liberdade de expressao; XIX, sobre o direito no dominio do sagrado; XVIII, sobre alguns ensinamentos politicos derivados da organizagao do estado dos hebreus; XVII, sobre o estado hebraico; XVI, sobre os fundamentos do Estado; VII, sobre a interpretagao da Sagrada Escritura; VIII, sobre os autores do Penlateuco; IX, sobre o trabalho de Esdras e a ligao das notas mar ginals; X, sobre os outros livros do A.T.; XI, sgbre o papel dos apdsfolos nas epistolas; XII, sobre a Escritura Sagrada como palavra de Deus; XIII, sobre a simplicidade dos ensinamentos da Escritura Sagrada; I, sobre a profecia; II, sobre os profetas; II, sobre a vocagao prof^tica dos hebreus; V, sobre as cerimonias religiosas e a f6 nos relatos. Um estudo dessa prova ordem nos daria resultados extraordinarios, pois toma o texto segundo um ,fio condutor no qual historia e interpretagao da historia se cruzam como metodo logico e critico a partir da politica. As cartas transcritas por Marx sao em ndmero de 15: 1 a Blyenbergh, 9 a Oldenburg, 2 a Simon de Vries, 1 a Pieter Balling, 1 a Albert Burgh, 1 a Luis Meijer. Essa selegao mostra que Marx escolheu as cartas de critica a teologia judaico-crista e a metafisica cartesiana, todas elas com implicagoes na sua teoria politica. Nao vamos comentar essas cartas, mas um comentario revelaria que Marx selecionou aquelas nas quais Espinosa critica o cristianismo como suporte do poder teoldgico-politico, excegao para a carta a Meijer, a celebre carta 12 sobre o infinito, uma das mais importantes da correspondencia espinosana. .
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Ainda no perlodo de jornalismo da Gazeta Renana, pelo menos ties artigos 'sobre a liberdade de imprensa e contra a censura mencionam o nome' de Espinosa, que escrevera o TTP, como atestam p subtltulo da obra e uma das cartas a Oldenburg (transcrita no caderno de Marx), para demonstrar que a liberdade de pensamento e de expressao 6 essencial para a paz e seguranga pollticas, pois as leis da censura, nasddas da “sanha dos tedlogos”, longe de garantirem esses dois valores, eilcaminham a repdblica para a violeneia e a irracionalidade e, portanto, para a autodestruigao. Nos artigos de Marx, al6m da' mengao expllcita de Espinosa, “ para quern, a moral repousa sobre a autonomia e a religiao sobre a heteronomia do esplrito humano” e para o qual, como para Marx, “filosofar e agao da livre razao” encontramos uma id6ia do Tratado Teoldgico-PolUico que, em seu •caderno, Marx redige isoladamente, quase como se fora um aforisma: “A verdadeira finalidade da republica e, pois, a liber dade”. 6u, como ’lemos na Gazeta Renana: “tereis que reconhecer que o Estado deve ser construldo nao segundo a religiao, mas segundo a livre razao ®®. E, no caderno de 1841, Espinosa-Marx: “Admitamos que seja posslvel abafar a liberdade dos homens e Ihes impor o jugo a tal ponto que nao ousem sequer murmurar algumas palavras sem o consentimento da autoridade suprema, mesmo assim serd imposslvel impedi-los de pensar o que qudram e como o queiram (...) conseqiientemente, as leis que concernem as opinioes sao dirigidas nao contra celerados (noutro trecho, escreve Espinosa: “os que querem ter a panga e o bau empanturrados ”), mas contra homens livres e, em lugar de punir os malignos, irritam aos honestos, nao podendo ser defendidas senao com grande dano e perigo para a republica” ”
Essa ideia, que servira a Espinosa para argumentar contra a violencia e irracionalidade da censura (pois a marca essencial da polltica e a visibilidade do 'espago social, de sorte que os governados, cidadaos, possam julgar, aprovar, condenar e opinar sobre as agoes 19. Nota sobre a recente. op. cit., loc. cit. 20. Der Leitende Artikel... op. cit.,. loc. cit. 21. Caderno de 1841 — Espinosa Tratado Teoldgico' Politico por Karl Heinrich Marx, in Cahiers Spinoza, nP 1, op. cit., p. 45. Marx reescreve em latira de onde fizemos a tradugao, porquanto a versao francesa “moderniza” o texto espinosano levando a vdrios contra-sensos.
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dos governantes, sendo a polftica incompativel com a invisibilidade do poder ), tinha como alvo uma forma hibrida da poHtica, ou melhor, a impossibilidade da politica como ^fera aut6noma da prdtica, pois subordinada ao poder teol6gico, cujo suporte e for?a repousam,justameate, na invisibilidade sagrada da autoridade. A critica de. Marx aos censores, k. tibieza dos libeirais,- k subservi&icia dos intelectuais, assim como a critica geral k politica .alema e a filosofia pol;tica hegeliana, retoma o problema da heteronomia politica, t&nto m^or quando nos lembramos do significadq que.os tedricos alemaes haviam dado k revolugao francesa, at6 mesmo quando, como Hegel, lamentavam que nao houvesse cumprido sua finalidade, isto 6, o advento da politica como atividade racional humana sem suportes transoendentes. No.jovem Marx, a critica a heteronomia tinha como pressuposto- a confianja que depositava numa politica entendida como exercicio prdtico da razao e, conseqiientemente, na aboli^ao de toda referencia externa e transcendente ao poder. Em resumo, o ataque de Marx, como jomalista e como fildsofo, k monarquia constitucional alema retoma a afirmagao que abre o Teoldgico-PolUico: nao hd meio mais eficaz para dominar a massa do que- a supemtigao amparada pelo aparelho da religiao e cuja expressao politica 6 a monar quia, na qual os cidadaos, transformados em suditos, sao levados a “adorar os reis como se fossem deuses’\ Na Critica d Filosofia do Direito de Hegel: “Outra conseqUSncia dessa especulagao mistica consiste no fato de uma unica existencia particular, empirica, oposta ^s outras, ser conoebida como existencia da ideia. Uma vez mais se sente a profunda impressao mistica que resulta de se ver a id6ia dar origem a uma existencia particutar e de encontrar uma encamagao de Deus (...) Hegel estd interessado em apresentar o monarca como “Homem-Deus”, como verdadeira encamagao da id6ia” Nessa perspectiva critica, 6 possivel compreender a peculiar modificagao impressa por Marx na ordem dos capitulos do Teologico Politico, fazendo-o comegar pelo capitulo VI, sobre os milagres. Na transcrigao de Marx lemos: ‘‘nada prova melhor aos olbos do vulgo a ^istSncia de Deus do que, subitamente, a natureza nao seguir sua ordem prdpria. Em outras palavras, enquanto a natureza segue sua 22. Kritik des Hegelschen Staatsrechts, in Werke Band I, op. cit., p. 225; Critique of Hegel's Philosophy of Right, Cambridge, University Press, 1977, p. 24; Critica da Filosofia do Direito de Hegel, Editorial Presenga, s.p., p. 37.
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■ordem, supoem que Deus nSo age e, em contrapartida, quando Deus age, supoem que as potSncias e causas naturals estao ociosas. Por isso o vulgo chama de milagres os acontecimentos insdlitos danatureza. Pois o dnico meio de adorar a Deus e referir todas as coisas k sua vontade e ao seu poder 6 suprimir as causas naturals, subyertendo imaginariamente a ordem natural; e a potencia de Deus i pelo vulgo tantq mais admirada quanto mais imagina a potdncia da natu reza acorfentada por Deus”'^. O milagre, invergao imagindria da ordem natural dos eventos, nao 6 contranatureza por ser um acontecimento extraordindrio; mas porque revela o pressuposto da imaginagao religiosa e teoldgica, isto 6, a admissao da passividade da natu reza submetida k atividade de uma vontade externa, transcendente, onipotente e sobretudo insonddyel. Tanto a iraagem est^ril da natu reza quanto a imagem volUntariosa da divindade desdenham o essencial, - ou seja, a necMsidade imanente da atividade natural e divina, pois Deus sive Nature. Se, por sua essSneia (os atributos pensamento'e extensao inodificados), a natureza 6 imanente ^ ^ubstancia infinitamente infinita, por sua potSneia ou causalidade eficiente, a substdneia infinitamente infinita 6 imanente k natureza — como demostram as proposigoes do livro I* da Ftica. Todavia, a crenga no milagre possui ainda outras dimensoes. Fundamentalmente antro pomdrfica, a imaginagao, isto 6, o conhecimento pdr meio de representagoes abstratas ou imagens, confunde atividade e arbitrariedade, passividade e necessidade, criando-obstdculos poderosos para a compreensao da autbnomia da natureza, da substdneia infinitamente infinita e do homem. Numa palavra, a imagjnagao, enquanto co nhecimento inadequado ou abstrato, 6 o lugar por excelfincia d^ heteronomia, confundindo necessidade e decreto, liberdade fe acaso ou capricho. Nada surpreendente, portanto, quando essas. ima^ns regressam ao ponto de onde partiram, isto 6, a imagem do poder, que a vontade do monarca aparega como tendo forga de lei, Na Critica da Filosofia do Direito de Hegel, denunciando as inversoes mistico-imagindrias do sujeito e dos predicados nas ideias hegelianas, Marx dird que Hegel, apos ter acompanhado o processo de separagao entre sociedade civil e Estado, os reunifica gragas k vontade do , monarca, sem contudo demonstrar. a necessidade deste ultimo senao 23. Caderno de 1^41, op. cit., loc, cit., p. 33.
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recorrendo a “natureza”, que, milagrosamente, faz algumas criaturas nascerem cavalos e outras, reis. Espinosa nao e iluminista — para ele a religiao nao 6 absurda — nem e especulativo — para ele a verdade e racionalidade da religiao nao se encontram nela mesma. A16m disso, diferindo profundamente de Feuerbach, nao considera, como este, a religiao forma da alienagao da essencia humana exteriorizada e projetada na essin cia fantdstica de Deus. Para ele, a religiao cristaliza os efeitos da su'perstigao, que projeta uma imagem do homem numa imdgem fantdstica de Deus; portanto, igualmente distante da essSncia de ambos. Por outro lado, a antropologia espinosana, pondo o homem como modificagao finita de atributos infinitos da subst^ncia, nao 6 um humanismo, como o 6 a filosofia feuerbachiana. A origem da superstigab nao e um erro do entendimento nem uma ampliagao desvairada da sensibilidade, mas a paixao: o medo (de males que advenham ou de que bens nao ocorram) e a esperanga (de bens que advenham e de que males nao ocorram), paixoes produzidas pela dispersao dos acontecimentos cujas causas permanecem ignoradas e pela fragmentagao temporal que os homens nao podem dominar. Essa passividade diante de forgas que nao compreendem e nao controlam os leva a invocar finalidades ocultas, a crer numa raciona lidade insondivel e numa atividade externa cujo suporte e a vontade transcendente de Deus, asylum ignorantiae. Inversao abstrata das causas e dos efeitos, do condicionante e do condicionado, ampliagao antropomorfica da imagem humana na divina, o suporte da superstigao e o finalisino: imagina os homens agindo' tendo em vista fins (e nao por agao de causas eficientes imanentes ao desejo), projeta essa forma de atividade na natureza, “fazendo-a delirar com os homens”, e, a seguir, langa essa dupla imagem para -a. divindade, arquiteto, juiz e monarca do universe. “Tanto e o medo que ensandece os homens”, transcreve Marx em seu caderno. A religiao tern origem heterdnoma — a paixao do medo e da esperanga — e tern uma finalidade heterdnoma — o poderio sdcio-politico. Eis porque, reescrevendo o TTP, Marx passa do capltulo VI ao capitulo XIV — a distingao entre fe e tazao — , ao capltulo XV — a diferenga entre filosofia e teologia — e dai ao capitulo XX — sobre a liberdade de pensamento e de expressao. A 16 ensina 280
uma unica coisa: a.obediencia a dogmas e verdades reveladas. Sendo obedidneia, e essencialmente heterdnoma, diferindo da razao, essencialmente autdnoma. A teologia, por seu turno, manipulando textos considerados revelados, ensina a manter a fe, enquanto a filo sofia desenvolve livremente a razao, gragas k forga nativa do intelecto (modo do atributo infinite pensamento). Portanto, toda tentativa para elaborar uma teologia racional e uma contradigao nos termos, fazendo com que “o teologo enlouquega sem a razao e o fildsofo com ela” — contradigao que, mostrard Marx, perpassa a filosofia politica hegeliana, a inversao do sujeito e dos predicados redundando em misticismo e mistificagao filosoficos. A diferenga entre f6 e saber, teologia e filosofia (diferenga que Hegel nao s6 conhecia perfeitamente, mas sobre a qual escrevera desde a juventude), sendo diferenga entre autonomia e heteronomia, faz com que uma politica fundada em pilares religiosos seja tiranica, dird Espino sa, e anacfonica, dira Marx. “A constituigao politica tern sido a esfera religiosa, a religiao, da vida popular e os cdus da sua universalidade tem-se oposto a existencia terrestre de sua realidade”, escreve Marx. Enfim, a diferenga entre teologia e politica mostra nao set casual que os regimes teoibgico-politicos pratiquem a censura, temam acima de tudo a liberdade de pensamento e de expressao e impegam a paz e seguranga dos cidadaos. Nao e impossivel compreender, portanto, a enorme dificuldade da Filosofia do Direito face k “opiniSo pdblica” que, segund.o Hegel, deve ser respeitada porque manifesta algo-essencial da politica, mas deve ser desprezada como barb^rie ou incultura politica daninha para o Estado. Enfim, compreende-se por que, na Questao Judaica, Marx discute a posigao de Bauer e considera ilusoria a luta dos judeus pela emancipagao religiosa num estado que e teolbgico-politico e, portanto, no qual sequer a politica emancipou-se, ainda que tal emancipagao seja, ela tambbm, problematica em decorrSneia da cisao “homem”-“cidadao” produzida pela sociedade burguesa. Somente apbs aquele percurso, Marx passa aos capitulos XIX — sobre o direito no campo do sagrado — , XVIII — sobre alguns ensinamentos da politica hebraica — , XVII — sobre o Estado hebraico — e ao capitulo XVI, destinado a demonstragao da origem e do significado da democracia. Percebe-se por essa seqtiSncia e pela seguinte que Marx coloca no centre de sua reescrita a democra281
fa-se'para retomar a si e ser exatametite o que realmenie i. Onde se' encontra o inisticismo? Onde a teologia 'dessa operagao? A relagao real, diz Marx, transfigurada pela especulagapj converte-se em. manifestagao da Ideia, isto-e, em fenomeno — a mediagao 'real se transfigura em fendmdno da mediagao que a'id6ia (o Estado)
cia, fazendo-a anteceder pelos capitulos gbrais sobre a relagao .entre teologia e polftica, que encontra-expressao-na teocracia hebraica, e suCeder pelos capitulos histdricos sobre a constituis§o politica dos hebreus. ^ interessante observar que, logo ap
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