Charutos, o Cristão e a Glória de Deus - Joe Thorn

April 20, 2019 | Author: Patrick Re | Category: Sin, First Epistle To The Corinthians, Paul The Apostle, Faith, Nicotine
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Os charutos, o cristão e a glória de Deus Joe Thorn

Dedico a tradução deste livreto l ivreto a todos os meus amigos amigos presbiteri pres biterianos anos que que desfru des frutam tam de um charuto charuto para a glória de Deus. FSAN

Todos os direitos direitos em língua portug uesa reservados po r

EDITORA MONERGISMO Caixa Postal P ostal 2416 Brasília, DF, Brasil - CEP 70.842-970 Telefone: (61) 8116-7481 — Sítio: www.editoramonergismo.com.br 1a edição, 2015 1000 exemplares Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto  Revisão : Marcelo Herberts Capa : Márcio Santana Sobrinho

■ P ROIBIDA A REPRODUÇÃO P OR QUAISQUER MEIOS, SALVO EM BREVES CITAÇÕES, COM INDICAÇÃO DA FONTE. Todas as citações bíblicas foram extraídas da  Almeida Revista e Atualizad a (ARA), Versão  Almeida salvo indicação em contrário. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara (Câmara Brasile ira do do Livro, Liv ro, SP, Brasil)

Thorn, Joe Os charutos, o cristão e a glória de Deus / Joe Thorn, tradução Felipe Sabino de Araújo Neto ― Brasília, DF: Editora Monergismo, 2015. p.; 21cm. Título original: Cigars, The Christian, and the Glory of God ISBN 1. Vida Vida cristã

2. Ética cristã

3. Bíblia Bíblia CDD 230

Sumário Prefácio Capítulo 1 Capítulo 2 Capítulo 3 Capítulo 4 Capítulo 5 Apêndice 1: Sobre o autor

Prefácio Bebida alcoólica e fumo. Talvez os dois maiores tabus no meio cristão, ao menos no meio evangélico.[1]  Dos dois, a questão do fumo é nitidamente mais complexa, pois não envolve exegese bíblica de determinados textos, mas um entendimento da teologia bíblica sobre liberdade cristã e liberdade de consciência. Afinal, todo cristão, abstêmio ou não, facilmente reconhecerá que Cristo instituiu a Santa Ceia com vinho. Tanto é que em 1 Coríntios 11 Paulo trata de casos de embriaguez,[2] em que irmãos estavam bebendo na Ceia mais do que convinha. E não só isso. Antes de partir, Cristo afirmou a seus discípulos que ansiava pelo dia em que beberia novamente vinho com eles, na consumação de todas as coisas (Mateus 26.29; Lucas 22.18). Nesse dia, nas gloriosas Bodas do Cordeiro, ninguém se queixará de Cristo nem o repreenderá por causa do vinho, pois teremos nossa mente plenamente renovada e livre dos efeitos noéticos do pecado. Assim, devo repetir: a questão do fumo é complexa e controversa. Tanto é que vários amigos questionaram minha sabedoria em publicar este livro, não obstante concordarem com a relevância do assunto. Contudo, vale lembrar que isso nem sempre foi assim. O tabu quanto à bebida alcoólica e ao fumo é um fenômeno recente. Se analisarmos a história do cristianismo protestante, veremos algo impressionante e constrangedor para muitos. Peguemos o exemplo dos puritanos, os grandes teólogos protestantes dos séculos 16 e 17. A partir da década de 1950[3] houve um ressurgimento da literatura sobre os puritanos. Não apenas obras desses homens passaram a ser reeditadas, como também muitos de seus livros sobre teologia e vida cristã foram republicados. Dentre eles, merecem destaque  Meet the  Puritans e  A Puritan Theology: Doctrine for Life , ambos de Joel R. Beeke.[4]  Nestes livros nós tomamos conhecimento da vida desses gigantes da fé, bem como da sua visão sobre todos os aspectos da vida — família, igreja, sociedade, Estado, etc. No opúsculo Why Read the Puritans Today? Don Kistler apresenta dez razões por que devemos ler os escritos puritanos. Por causa da triste e comum aversão aos puritanos em nossos dias, muitos livros e artigos tentam responder essencialmente a mesma pergunta: o que podemos aprender com os puritanos? Kistler e outros especialistas em teologia e história puritana, como Joel Beeke, J. I. Packer e Leland Ryken, diriam o seguinte: aprendemos a ter um conceito elevado de Deus, a apreciar a beleza de Cristo e entender a suficiência de sua obra em nosso favor, a crer na suficiência da Escritura para uma vida piedosa e vibrante, etc. — a lista é quase infindável. Sem desconsiderar, mas reafirmar com vigor o que esses eruditos elencaram, eu acrescentaria o seguinte: com os puritanos aprendemos que ser cristão não é deixar de beber ou fumar; afinal, até um ímpio pode fazer isso, sobretudo aquele que tem o Ministério da Saúde como seu deus-profeta. Ao contrário, ser cristão é não só beber e comer, mas até mesmo poder beber cerveja e fumar tabaco para a glória de Deus (1Co 10.31). Se lermos as obras dos puritanos, analisando tanto a vida como a teologia deles, constataremos a veracidade das palavras de C. S. Lewis: Devemos imaginar esses puritanos como sendo o exato oposto daqueles que se dizem puritanos hoje; imaginemo-los jovens, vorazes, progressistas intelectuais, muito elegantes e atualizados. Eles não eram abstêmios; os bispos, não a cerveja, eram sua aversão. Os puritanos amavam fumar; bebiam, caçavam, praticavam esportes, usavam roupas coloridas, faziam amor com suas esposas, tudo isso para a

glória de Deus, que os colocou em posição de liberdade.[5] Porém eu gostaria de deixar algo bem claro: não publico este livro como uma apologia ao tabaco, nem tampouco é minha intenção que todo leitor venha a se tornar um fumante. Em primeiro lugar, publico este livro por amor ao Evangelho, pois não poucos confundem as gloriosas boas novas do Evangelho com uma determinada atitude para com as bebidas alcoólicas e o fumo. Nada poderia ser mais trágico para o nosso testemunho à presente geração. O Evangelho é o que Paulo resumiu em 1 Coríntios 15.3-4: Antes de tudo, vos entreguei o que também recebi: que Cristo morreu pelos nossos pecados, segundo as Escrituras, e que foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Esse é o verdadeiro Evangelho, um Evangelho quase ausente nas igrejas de hoje e nos lábios de inúmeros cristãos. O Evangelho não é “eu tomo Coca-Cola, mas não cerveja”, “eu tomo café, mas não uísque”, “eu fofoco, mas não fumo”. Não! O Evangelho é a mensagem gloriosa de que Cristo morre pelos pecados do seu povo, segundo as Escrituras, e foi sepultado e ressuscitou ao terceiro dia, segundo as Escrituras. Em segundo lugar, tenho em vista as almas que sofrem e que ainda não encontraram descanso em Cristo. Em Lucas 11, Jesus repreende os escribas e fariseus dizendo o seguinte: Mas ele respondeu: Ai de vós também, intérpretes da Lei! Porque sobrecarregais os homens com fardos superiores às suas forças, mas vós mesmos nem com um dedo os tocais. (Lucas 11.46) O que seria um fardo pesado e difícil de carregar (Mateus 23.3)? Qualquer mandamento o tradição dos homens! Afinal, o apóstolo João, tendo asseverado que amar a Deus é obedecer aos seus mandamentos, adiciona: “ora, os seus mandamentos não são pesados” (1 João 5.3, ARC). Assim, sempre que instarmos nosso próximo a obedecer aos mandamentos de Deus, não estaremos incorrendo no erro dos fariseus. O problema é que muitas vezes gostamos de ver as pessoas seguindo os nossos mandamentos, não os de Deus. Infelizmente, as igrejas de hoje são uma encarnação vívida daquilo contra o qual Cristo adverti em Lucas 11. Não existe um mandamento “Não fumarás!”. Apesar disso, pessoas que se achegam à igreja não são consideradas cristãs até que tenham abandonado o fumo. Em vez de seguir Cristo e seus apóstolos, que exigiam fé e arrependimento de seus ouvintes, nós exigimos o abandono do fumo e da bebida. Não é de estranhar, assim, que nossas igrejas estejam abarrotadas de falsos cristãos. Afinal, não é necessária a regeneração do coração pelo Espírito Santo para alguém abandonar o fumo. Muitos têm abandonado o cigarro por motivos não religiosos os mais diversos. Ser cristão não é abandonar o fumo, mas amar a Cristo, reconhecer que ele é o Senhor. O que Deus exige do homem? O profeta Miqueias já nos disse há muito tempo: Ele te declarou, ó homem, o que é bom e que é o que o SENHOR  pede de ti: que pratiques a justiça, e ames a misericórdia, e andes humildemente com o teu Deus. (Miqueias 6.8) É claro que amar a Cristo, praticar a justiça, amar a misericórdia e andar humildemente implicam ações e comportamentos exteriores. Mas é Deus quem estabelece o que é certo ou errado, não os homens, e tampouco a cultura de uma determinada  época. Ora, para muitas pessoas castigar fisicamente um filho não é algo que demonstra justiça e misericórdia; contudo é isso o que repetidas vezes a Escritura exige

dos pais na criação dos filhos (vide, por exemplo, Provérbios 13.24, 19.18, 22.15, 23.13-14, 29.15, Hebreus 12.7-10). Diferente disso, a Escritura não condena o fumo explicitamente nem por dedução lógica e clara (CFW I.VI).[6] Assim, se afirmamos a suficiência da Escritura para guiar nossa vida, não podemos aceitar a classificação do fumo como pecado. Somos protestantes justamente por sustentar que a Escritura é suficiente para nossa salvação e santificação e que todas as tradições humanas devem ser ulgadas pela Palavra de Deus. Em terceiro e último lugar, publico este livro como auxílio àqueles que têm liberdade em Cristo para fumar. Que Joe Thorn seja útil para um entendimento mais completo do assunto e um auxílio à mão sempre que objeções ou indagações forem levantadas. Pensando nisso, adicionei dois apêndices à versão brasileira deste livreto. No prefácio de um livro de Gordon Clark, John Robbins diz que houve um tempo em que as controvérsias eram resolvidas com um “Assim diz o Senhor”, mas hoje o são com um confiante “foi provado cientificamente”. Infelizmente é exatamente essa a estratégia de alguns cristãos ao lidar com o assunto do tabaco. De minha parte, digo o seguinte: Assim diz o Senhor: Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus. (1 Coríntios 10.31)

 ― Felipe Sabino de Araújo Neto Brasília, 26 de julho de 2015

Capítulo 1 Eu fumo charuto. Os que me conhecem sabem disso. Tem sido há muito algo de que gosto, e nunca algo que escondi daqueles que me conhecem. Com o desenvolvimento da mídia social, meus charutos, como tantos outros aspectos da minha vida, acabaram no mundo online. Algumas pessoas compartilham fotos do que estão comendo, escrevendo, lendo (ou fingindo ler), e eu frequentemente compartilho uma foto do charuto que escolhi fumar num dado momento. Isso nunca foi uma questão de ostentar liberdade, mas de compartilhar um prazer. Porque sou um conhecido fumante de charutos, sou ocasionalmente questionado por cristãos acerca desse hábito. Como me sinto sobre os riscos à saúde? Fumar não é viciante ou mesmo pecaminoso? A maioria das vezes recebo perguntas de outros crentes que gostam de um bom charuto e são duramente criticados por outros cristãos. Eles querem saber como eu respondo. Honestamente, hoje em dia não enfrento nenhuma resistência dos cristãos locais, seja dentro ou fora da igreja que pastoreio. Mas tive algumas décadas para refletir sobre isso, e pensei em oferecer minhas ideias sobre os charutos, o cristão e a glória de Deus. Antes de mergulhar de cabeça nas séries, deixe-me responder duas questões básicas.

Por que escrever sobre charutos? Não estou escrevendo por isso ser um fardo no meu coração. E tampouco estou escrevendo por pensar que outros deveriam fumar. Esta é, em termos simples, a resposta a muitas das perguntas que recebo dos outros. Isso me permitirá voltar a atenção para este material em vez de me repetir extensivamente aos amigos online.

Por que você fuma charutos? Essa pergunta soa como alguém me perguntando por que assisto à televisão ou gosto de esportes de combate. A resposta honesta é: porque eu gosto. Eu não fumo charutos por ser legal. Eu não fumo para provar uma ideia. Não é para demonstrar minha liberdade em Cristo. Não é para ser missional. Não é para me identificar com o grande C. H. Spurgeon ─ embora venhamos a falar dele neste livreto. Eu fumo charutos porque acho isso uma experiência prazerosa. O ritual, o aroma e os sabores são um deleite. Fumar charuto acalma a pessoa, dando-lhe tempo para pensar, meditar e desfrutar de uma das muitas dádivas terrenas de Deus. Pessoalmente, acho que o charuto me ajuda a escrever. Fumar charuto é, também, uma maravilhosa experiência compartilhada que promove diálogo e amizade. Mas, traduzindo em miúdos, eu fumo porque eu gosto. É claro, gostar de uma coisa não justifica o seu uso. Tentarei, assim, responder as perguntas mais comuns que me são feitas sobre o ato de fumar. Fumar não é perigoso e, portanto, um abuso do corpo lhe dado por Deus? Fumar não polui o “templo” em que o Espírito Santo habita? Em linguagem franca, fumar não é pecado? Fumar não é um mau testemunho aos incrédulos? Fumar não é um mau exemplo aos nossos (ou, talvez mais especificamente, meus) filhos? Como posso honrar a Deus fumando charutos? Então, aguente firme aí enquanto buscarei dar o melhor de mim para responder essas questões nos próximos capítulos.

Capítulo 2

Fumar não lhe faz mal? Fumar charuto não é bom para você. Não deixe seu amigo vizinho, aficionado por charutos, dizerlhe o contrário. Como muitas outras coisas que fazemos nesta vida, há um risco real em fumar charutos. Embora estudos tenham demonstrado que fumar charuto (sem inalar) é muito menos provável de causar vários tipos de câncer, o risco ainda existe. Assim, deixe-me registrar que fumar, em todas as suas formas, não é saudável. É prejudicial a você. As pessoas podem morrer por causa do fumo. Quando alguém me questiona sobre isso ou aponta os riscos à saúde por causa dos charutos, está sugerindo que o risco potencial de fumar torna o ato inapropriado, se não pecaminoso. Assim, ampliemos nosso escopo e consideremos, para ajudar na reflexão, algo que é um risco ainda maior à saúde: asas de frango. Ó, sim, asas de frango são um problema muito sério para as pessoas que buscam cuidar do corpo. Hipérboles à parte, a verdade é que mais pessoas morrerão este ano por seguirem uma dieta pobre e por problemas correlatos do que por fumar o que quer que seja. Na verdade, a obesidade já está batendo os cigarros como o maior risco à saúde nos dias de hoje. Inale isso. Cachorros-quentes cheios de nitrato, câncer causado por pipocas de micro-ondas, frango frito gorduroso, entupimento de artérias por  Fettuccine Alfredo, refrigerante saturado de açúcar e todas aquelas coisas dos fast-food são repletos de riscos significativos à saúde. Esses riscos, embora ainda maiores do que fumar, são vistos como aceitáveis pela vasta maioria das pessoas. É claro, colocar um risco contra outro não é muito útil; permita-me assim ir direto ao ponto.

A realidade do risco Na verdade, estamos lidando com a questão do risco. Risco é errado? Paraquedismo é potencialmente mortal. Espeleologia e alpinismo também são muito arriscados. O cristão deveria evitar essas atividades, ciente da possibilidade de que a vida chegasse abruptamente ao fim? E não é só recreação e atletismo que trazem riscos. Algumas vocações são muito perigosas. Pescadores, madeireiros, pilotos de aeronaves e empregados na indústria do aço assumem riscos maiores até que os bombeiros. Como um cristão deveria avaliar os riscos envolvidos em sua profissão? Sem falar que o dia a dia está repleto de riscos, em diferentes graus, para homens e mulheres. Não tenho todas as respostas aqui, mas deixe-me dizer duas coisas. Uma: tolice é algo errado, risco não. O tolo se esconde da verdade, não dá ouvido a advertências e ignora o perigo. Risco não é algo pecaminoso, mas deve ser ponderado de maneira responsável e gerido com cautela. Na vocação e na recreação isso significa prática, preparação e treinamento. Com dieta (ou fumando) isso significa autocontrole.  Donuts são ruins para mim. Eu gostaria de comer donuts  todos os dias. Às vezes me pergunto se haverá donuts   nos novos céus e na nova terra e, então, quantos donuts  serei capaz de comer? Mas sabendo dos riscos à saúde nesta vida, decidi comer meus donuts  apenas ocasionalmente. Não sou louco o bastante para me entregar a esse deleite terreno. Charutos são ruins para mim. Decidi não inalar, e manter um autocontrole no meu desfrute deles. Eu sei dos riscos, mas acho que o prazer de desfrutar um charuto vale a pena. Devemos levar à sério nossa saúde. O corpo que temos é dado por nosso Criador. Ele quer que o usemos piedosamente e de maneira frutífera, desfrutando da criação divina com consideração e cuidado. Algumas coisas que desfrutamos são arriscadas, e devemos buscar sabedoria nos riscos que assumimos. Com relação aos charutos, autocontrole é o aspecto chave. Mas há muito mais a ser dito. No próximo capítulo, lidarei com argumentos bíblicos que são normalmente usados contra fumar charuto.  Links relevantes

AACR Cancer Progress Report 2014[7] Top Ten Causes of Death in The US[8] Obesity To Overtake Smoking as Leading Cause of Death[9]

Capítulo 3

Seu corpo é um templo Muitos pastores bons e piedosos (alguns bem conhecidos) já analisaram a questão do tabagismo e concluíram que se trata de um pecado. No último capítulo, argumentei que um risco à saúde não é sinônimo de pecado. Aqui eu gostaria de abordar a passagem da Escritura mais comumente usada contra o tabagismo, 1 Coríntios 6.19. Segue ela no contexto. Todas as coisas me são lícitas, mas nem todas convêm. Todas as coisas me são lícitas, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma delas. Os alimentos são para o estômago, e o estômago, para os alimentos; mas Deus destruirá tanto estes como aquele. Porém o corpo não é para a impureza, mas, para o Senhor, e o Senhor, para o corpo. Deus ressuscitou o Senhor e também nos ressuscitará a nós pelo seu poder. Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo? E eu, porventura, tomaria os membros de Cristo e os faria membros de meretriz? Absolutamente, não. Ou não sabeis que o homem que se une à prostituta forma um só corpo com ela? Porque, como se diz, serão os dois uma só carne. Mas aquele que se une ao Senhor é um espírito com ele. Fugi da impureza. Qualquer outro pecado que uma pessoa cometer é fora do corpo; mas aquele que pratica a imoralidade peca contra o próprio corpo. Acaso, não sabeis que o vosso corpo é santuário do Espírito Santo, que está em vós, o qual tendes da parte de Deus, e que não sois de vós mesmos? Porque fostes comprados por preço. Agora, pois, glorificai a Deus no vosso corpo. (1 Coríntios 6.12-20) O argumento é que como o corpo do cristão é templo do Espírito Santo, não devemos polui-lo com o tabagismo. Mas há alguns problemas imediatos com esse tipo de argumento. Primeiro, trata-se de uma petição de princípio, pois ignora se fumar é pecado, ou não. O argumento simplesmente assume que fumar é errado e necessariamente polui o que foi separado para Deus. Segundo, o contexto mostra que Paulo não está lidando com questões de saúde ou higiene, mas de imoralidade sexual. Como faz frequentemente, Paulo está chamando a igreja para uma vida de pureza (veja 1Tm 4.12; 5.2). Como motivação para manter a pureza, ele nos lembra que, como crentes, somos o lugar de habitação de Deus. O Espírito Santo faz morada em cada crente, tornando cada um de nós um tipo de templo. O templo é um lugar sagrado separado para Deus. Seu propósito é a glória e o prazer de Deus. Muitos na cidade de Corinto estavam argumentando que o corpo era feito para o sexo — assim, vá em frente! Se envolva nisso. Não negue aquilo para o que seu corpo foi feito. O apóstolo repreende a ideia. “O corpo não foi feito para a imoralidade sexual.” O sexo tem um lugar na vida dado por Deus, mas na segurança feliz do casamento. Seu corpo é onde o Espírito Santo reside de uma forma especial. Usar seu corpo para imoralidade sexual profana o templo. A questão aqui é de fornicação/adultério. Tentar aplicar isso ao ato de fumar charutos é um tipo de hermenêutica “ou vai ou racha”. É eisegesis, e de fato minimiza o verdadeiro ponto de Paulo acerca da natureza hedionda da imoralidade sexual. É uma distração do perigo real do pecado e da tentação. Se quisermos entrar no jogo bobo da eisegesis, eu começaria apontando como Deus desceu no Monte Sinai numa fumaça, que se deleitava com a fumaça dos sacrifícios oferecidos com fé, e como havia sempre fumaça de incenso no templo. Quando Isaías viu o Senhor no templo, o lugar estava cheio de fumaça (Isaías 6). Em Apocalipse 15.8 a glória do Senhor foi derramada em fumaça. O ponto é que precisamos deixar que a Escritura fale em seus próprios termos, e devemos entender cada passagem no seu próprio contexto.

Fumar um charuto não pode poluir o templo. Não nos torna impuros, e tampouco ofende a Deus. No próximo capítulo, analisaremos o perigo real em tudo isso: chamar de pecaminoso algo que nem o próprio Deus chamou de pecado.

Capítulo 4

Confundindo charutos com pecado Se você está familiarizado com o pastor de Londres do século 19, Charles Haddon Spurgeon, deve saber que ele era um pregador talentoso, um teólogo afiado, um evangelista ardoroso, tendo inclusive iniciado um Colégio para pastores para aqueles que estavam entrando no ministério.[10] Talvez também saiba que Spurgeon gostava muito de charutos. Ele era bem conhecido como fumante de charutos e, ocasionalmente, questionado por isso. Suas respostas eram tipicamente simples, bemhumoradas e bíblicas. Em certa ocasião, surgiu uma controvérsia. Spurgeon e outro contemporâneo seu bem conhecido, G.F. Pentecost, estavam dividindo o púlpito no Metropolitan Tabernacle . Spurgeon pregou contra o perigo do pecado, e Pentecost foi convidado a tratar da aplicação prática. Na sua vez de falar, Pentecost pregou de forma veemente contra fumar tabaco  — charutos, em particular. Tendo concluído sua fala, Spurgeon ficou de pé diante da congregação e disse: Bem, caros amigos, vocês sabem que alguns homens podem fazer para a glória de Deus o que para outros seria pecado. E, apesar do que o irmão Pentecost disse, pretendo fumar um bom charuto para a glória de Deus esta noite antes de ir para cama. Se alguém puder me mostrar na Bíblia o mandamento “Não fumarás”, estarei pronto a guardá-lo; mas ainda não o encontrei. Encontrei dez mandamentos e faço tudo quanto posso para guardá-los; e não tenho desejo algum de transformá-los em onze ou doze. O fato é que estive lhes falando sobre pecados reais, não sobre ouvir meros sofismas e escrúpulos. Ao mesmo tempo, sei que o que um homem crê ser pecado se torna pecado para ele, e ele deve renunciar ao mesmo. “Tudo o que não provém de fé é pecado” (Rm 14.23), e este é o verdadeiro ponto do que meu irmão Pentecost vem dizendo. Ora, um homem pode achar que é pecado ter suas botas engraxadas. Bem, neste caso que ele desista e deixe de engraxá-las. Gostaria de dizer que não tenho vergonha de nada do que faço, e não sinto que fumar me envergonhe; assim, pretendo fumar para a glória de Deus. Os jornais alegremente chamaram atenção para o aparente conflito de ideias e registraram os detalhes daquela noite. O que perturbou alguns foram as considerações de Spurgeon de que ele pretendia “fumar um bom charuto para a glória de Deus”. Esse se tornou o assunto nas rodas de conversa de Londres. Spurgeon foi abençoado por viver antes da era da mídia social, mas a controvérsia o levou a escrever uma carta ao Daily Telegraph  para se explicar. Naquela carta, escreveu: Está crescendo na sociedade um sistema farisaico que acrescenta aos mandamentos de Deus os preceitos dos homens; a esse sistema não me renderei nem um só segundo. A preservação da minha liberdade pode trazer-me a censura de muitos homens bons e o escárnio do fariseu; mas aguentarei ambos com serenidade enquanto sentir minha consciência limpa perante Deus.

Identificando o verdadeiro pecado Em toda essa controvérsia, o problema de Spurgeon é o meu problema, e deveria ser o problema de todos os cristãos. Só podemos chamar de pecado aquilo que Deus chama de pecado. Como cristãos, levamos a Palavra de Deus muito a sério. Ela não é só um livro sagrado, mas a própria palavra de Deus, totalmente inspirada, inerrante e nossa única regra infalível de fé e prática. Como diz A.A. Hodge em seu clássico Esboços de teologia, Tudo quanto Deus ensina ou ordena é de autoridade soberana. Tudo quanto nos comunica o conhecimento infalível daquilo que ele ensina e ordena, é uma regra infalível. As Escrituras do Velho e Novo Testamentos são os únicos meios pelos quais Deus, durante a dispensação atual, comunica-nos o conhecimento da sua vontade quanto àquilo que devemos crer a seu respeito, e diz-nos quais os deveres que ele de nós exige.[11] Assim, quando se trata de entender justiça e injustiça, o caminho de Deus e o do pecado, devemos deixar a Palavra de Deus falar. Nós confessamos que a lei de Deus é boa e que o pecado é um mal terrível. O que é pecado? Símbolos confessionais como o Breve catecismo de Westminster e o Catecismo batista dizem que pecado “é qualquer falta de conformidade com a lei de Deus, ou qualquer transgressão desta lei (1 João 3.4)”. Significa que para chamar alguma coisa de pecado devemos encontrar uma proibição contra isso ou o mandamento do seu oposto na Escritura. Em lugar algum a Escritura diz que o ato em si de fumar é pecaminoso, e tampouco que hábitos não saudáveis são em si pecaminosos. Contudo, isso não resolve totalmente a questão.

Fumar charuto pode ser pecaminoso se não for feito com fé Como disse Spurgeon, o que não pode ser feito com fé é pecado (Rm 14.23). Se a consciência de uma pessoa proíbe algo, ela deve evitá-lo (veja 1 Coríntios 10 e “Ética e a consciência”, de R.C. Sproul[12]). Assim, para algumas pessoas fumar pode ser uma prática pecaminosa, mas para aqueles que podem desfrutar de um bom charuto com consciência limpa, é algo bom.

Fumar charuto pode ser pecaminoso se alguém for dominado por isso Vício é a perda problemática do autocontrole, e o pecado sempre está envolvido nisso. Devemos ter somente um Mestre, e tudo o mais em nossa vida deve estar a serviço dele. Se você é governado por comida, trabalho, recreação ou charutos, é necessário arrependimento. Essas coisas boas podem se tornar ídolos. Autocontrole é a marca da disciplina conduzida pelo Espírito. Muitos alegam que no fim Spurgeon parou de fumar. Toda a evidência histórica sugere o contrário. Ele continuou a fumar charutos por toda a sua vida. No entanto ele podia deixar, e de fato deixou, o charuto de lado por longos períodos de tempo.

Fumar charuto pode ser pecaminoso se alguém fuma para frustrar os outros Nunca encontrei tal pessoa, embora alguns aparentemente pensem que é isso o que impulsiona muitos jovens cristãos a fumar. Acredita-se que eles acendem seus charutos para cegar os outros com sua liberdade, e usam sua liberdade para constranger os outros. Então, podemos simplesmente dizer que se alguém fuma para provocar os outros sem necessidade, isso é pecado. Porém, assim como Spurgeon, fumarei um charuto esta noite para a glória de Deus. O que isso realmente significa? Significa que o que quer que venhamos a fazer legitimamente como povo de Deus, façamos de consciência limpa, com um coração alegre e grato a Deus por suas excelentes dádivas. “Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo para a glória de Deus.” [1Co 10.31]

Capítulo 5 P&R sobre charutos Enquanto escrevia este livreto, recebi perguntas via mídia social com a hashtag #cigarQ4joe. Reuni todas as perguntas que pude encontrar e que não haviam sido respondidas ao longo dos capítulos.

Você não inala? Garanto que não estou bancando um Clinton ao dizer que não inalo. A maioria dos fumantes de charuto e cachimbo não inala a fumaça do tabaco. Isto é, embora puxem a fumaça do charuto pela boca, eles a exalam sem inalá-la até os pulmões. Pense nisso como beber com um canudo. Se você está bebendo um refrigerante com canudo, primeiro extrai o líquido para sua boca e então o engole. Fumar um charuto sem inalar é como extrair o refrigerante para sua boca e então cuspi-lo antes de o engolir. Essa é uma das razões por que o câncer de pulmão entre fumantes de charuto que não inalam é muito menor que entre fumantes de cigarro (que geralmente inalam).

O que você diz aos seus filhos? Ao discipular nossos filhos, sempre temos sido abertos sobre quem somos e o que fazemos como seguidores de Jesus. Não deixamos cerveja, vinho ou os meus charutos escondidos da vista deles. Já tivemos, e continuamos a ter, conversas sobre o fruto do Espírito e sobre o autocontrole em particular, na medida em que este se relaciona com esse e outros assuntos. Nossos filhos sabem do perigo e o pecado de se envolver com drogas ilícitas, vício e embriaguez. Eles sabem que cigarros são altamente viciantes e que o charuto do papai é algo recreativo e não um vício.

Você não se preocupa em ser uma pedra de tropeço? Todos os cristãos deveriam se preocupar com o bem-estar dos seus irmãos e irmãs, e deveríamos ter cuidado ao lidar com aqueles que o apóstolo Paulo chama de “mais fracos”. Em Romanos 14 (veja também 1 Coríntios 8) o irmão mais fraco é aquele que não entende totalmente sua liberdade e é levado por sua consciência a se abster de algo que Deus não proíbe. Uma nota: irmão mais fraco não é o mesmo que alguém exigindo que outros cristãos guardem uma lei que não é de Deus. Esta pessoa está mais próxima de um fariseu ou judaizante que de um irmão mais fraco, restringindo erroneamente a consciência de outras pessoas. Pessoas assim deveriam ser corrigidas com a verdade da palavra de Deus. Cristãos mais fortes são aqueles que têm uma melhor compreensão teológica de sua liberdade e uma consciência não restringida por escrúpulos extrabíblicos. Os crentes mais fortes não devem olhar com desdém nem desprezar os mais fracos. Os cristãos mais fracos não devem julgar os mais fortes por estes fazerem o que eles não se sentem livres para fazer. Ambos são chamados a amar, compreender e aceitar um ao outro. Paulo insta que o mais forte cuide do mais fraco, não fazendo com que este tropece. Fazer um cristão tropeçar não é o mesmo que frustrá-lo. Um cristão não está “tropeçando” por simplesmente discordar de ou argumentar com outro crente. Um cristão tropeça quando é compelido a fazer algo contra a sua consciência, mesmo que não seja algo proibido pela Escritura. Jamais deveríamos encorajar alguém a ir contra a sua própria consciência, embora não seja errado discutir a questão com a pessoa. Para ajudá-lo a ver a diferença entre um irmão mais fraco e o que domina os outros com sua consciência, ouça o sermão de R.C. Sproul sobre o assunto, na Ligonier , ou leia a transcrição do mesmo no final deste livreto.[13]

Fumar charutos o ajudou a se conectar missionalmente com a comunidade? Com certeza! A tabacaria local é um lugar fantástico para se conhecer outros homens na cidade e ter grandes conversas. Escrevi sobre isso no passado. Veja o meu texto Where Everyone Knows Your  Name e a série em 5 partes Lessons from the Cigar Shop.[14]

Qual a visão da sua esposa sobre fumar charutos? Bem, Jen definitivamente não é entusiasmada com isso. De fato, ela entrou numa discussão esta semana no Facebook  enquanto respondia às perguntas de uma mulher. A mulher havia perguntado: “Qual é a sua visão sobre maridos fumantes com uma esposa que realmente não gosta do cheiro de charuto, o sobre o ato em si de fumar em torno de pessoas que não gostam do cheiro?”. Eu respondi e, em seguida, minha esposa acrescentou: Embora ame o cheiro de um cachimbo, não gosto do cheiro do charuto. Na verdade, me sentimento é que eu ODEIO o cheiro de charuto. Mas também estou aprendendo que casamento não é antes de tudo algo centrado em mim. Queremos ver o outro se tornar mais santo e feliz. E sei que fumar charuto com seus amigos ouvindo música ou lendo (na garagem) é uma forma de Joe relaxar e se divertir.

Você já leu a Bíblia enquanto fuma? Minha Bíblia cheira a couro de pele de cabra e charuto. É maravilhoso!

É possível contra-atacar o impacto negativo do tabagismo? Não, embora não inalar seja muito mais seguro que inalar. E todos nós estamos mais propensos hoje a viver por mais tempo, com mais saúde e uma vida mais agradável, com uma boa dieta e exercício.

Seus argumentos não poderiam ser usados para a maconha legalizada? Essa é uma questão à parte, que espero abordar futuramente. Mas digo que, embora creia que a maconha tem grandes benefícios médicos e terapêuticos que seria bom entendermos completamente, é melhor as pessoas evitarem usá-la como droga recreativa. Mas não vou analisar tudo isso agora.

Conselho sobre charutos Meu conselho às pessoas que estão pensando em fumar um charuto pela primeira vez é primeiro terem claro para si por que querem fumar charuto. Se você está tentando abandonar o cigarro, fazer uma transição para o charuto é, provavelmente, uma má ideia. Provavelmente você continuará inalando a fumaça. Se é porque você quer tentar algo novo e potencialmente prazeroso, comece com um charuto leve, talvez um Perdomo Reserve Champaign. Simplesmente peça em sua tabacaria local ou verifique a descrição ao comprá-lo online. Não tenho certeza se posso dizer quais os meus charutos TOP 5, mas cinco dos meus favoritos são Tatuaje's 10 Yr Anniversary, a linha de charutos Caldwell  (esp. The King is Dead, Long Live the  King), AVO's XO e Padron's Anniversary 1964. Pessoas com orçamento apertado (como eu) estão sempre buscando um bom charuto a preço baixo. Certo leitor pediu sugestões para charutos abaixo de 10 dólares. Dê uma olhada no  Room 101  Payback (550), o novo  Punch Signature, Tatuaje's Tattoo,  Leccia's Luchador e no  Drew Estate's Nica  Rustica . Você economiza bastante comprando pela internet . E para conseguir bons charutos a preço muito baixo, tente JR Cigars “Alternatives”.[15]

Apêndice 1: O irmão mais fraco John Murray (1898-1975) foi um dos maiores teólogos presbiterianos do século XX. Enquanto vivo já era tido como um dos principais teólogos reformados no mundo de fala inglesa. Nascido na Escócia, serviu na França durante a Primeira Guerra Mundial antes de se mudar para os Estados Unidos da América. Foi professor de Teologia sistemática no Seminário Teológico de Princeton e no Seminário Teológico de Westminster . Em Westminster , onde permaneceu até 1966, ano de sua aposentadoria, foi colega de líderes cristãos como J. Greshan Machen e Cornelius Van Til. A melhor biografia disponível sobre sua vida foi escrita por Ian Murray, com o título The Life o John Murray, e publicada pela The Banner of Truth Trust . Murray escreveu vários livros, entre os quais merecem destaque o clássico “Redenção Consumada e Aplicada”[16]  e o excelente comentário sobre a carta aos Romanos.[17]  Deste último extraímos seu comentário sobre a passagem bíblica mais utilizada nas questões de liberdade cristã. Não poucos insistem que devemos nos abster de beber ou fumar por amor ao irmão mais fraco. Estranhamente, pouco se fala da necessidade desses irmãos de se tornarem mais fortes. Afinal, todos nós devemos crescer na graça e no conhecimento. Todos nós precisamos amadurecer. Mas deixemos isso de lado e ouçamos o que o grande teólogo escocês tem a nos ensinar.  ― Felipe Sabino de Araújo Neto

Comentário sobre Romanos 14 Tornou-se comum, em nosso contexto moderno, aplicar o ensino de Paulo, em Romanos 14, à situação que se origina do excesso no uso de certas coisas, especialmente o excesso de bebidas alcoólicas. A pessoa viciada nestes excessos é chamada de “irmão fraco”, e os não viciados são exortados a se absterem dessas bebidas, em deferência à fraqueza dos intemperantes. Alega-se que os moderados são culpados de colocar pedra de tropeço no caminho dos viciados, pois, devido ao uso que fazem da bebida, praticam algo que induz e serve de tentação para o irmão fraco se entregar ao seu vício. Logo se tornará evidente que esta aplicação é uma completa mudança do ensino de Paulo, constituindo um exemplo do relaxamento com o qual as Escrituras são interpretadas e aplicadas. (1) Paulo não estava falando a respeito do assunto de excesso no uso de certas qualidades de alimentos e bebidas. Este tipo de abuso não se enquadra na abrangência do assunto abordado pelo apóstolo nesta ou em outras passagens, tal como 1 Coríntios. Os crentes fracos, mencionados em Romanos 14, não eram aqueles que se davam a excesso, mas o oposto. Eram pessoas que se abstinham de certos tipos de alimentos. Os “fracos” acostumados ao excesso não se abstêm; consomem em demasia. (2) A “fraqueza” daqueles que se entregam a excessos pertence a uma categoria inteiramente diferente daquela abordada por Paulo nesta instância. A “fraqueza” que consiste em excessos é

iniquidade; e a respeito dos que são culpados deste pecado Paulo fala em termos completamente diversos. Os beberrões, por exemplo, jamais herdarão o reino de Deus (1Co 6.10); e Paulo exorta os crentes a que não mantenham companhia, nem mesmo comam juntamente, com alguém que, declarando-se irmão, costuma dar-se à bebida (1Co 5.11). Isto é muitíssimo diferente da exortação de Romanos 14.1 —  “Acolhei ao que é débil na fé”. Não se torna evidente o prejuízo causado à interpretação das Escrituras e ao critério pelo qual a pureza e a unidade da Igreja devem ser mantidos quando os “fracos” em Romanos 14 são confundidos com os intemperantes e alcoólatras? (3) Mesmo quando consideramos o caso de alguém que se converteu de uma vida de excessos e continua afligido pela tentação de seu antigo vício, não temos uma situação correspondente à de Romanos 14. É verdade que, às vezes, para tal pessoa o custo da sobriedade é a abstinência completa. Os crentes fortes devem manifestar todo o respeito e cautela apropriados, a fim de apoiar e fortalecer tal pessoa em sua luta contra a tentação diante da qual ela tende a sucumbir. Sua “fraqueza”, entretanto, não se assemelha à dos crentes fracos, nas circunstâncias abordadas pelo apóstolo. Estes demonstram a fraqueza dos escrúpulos de consciência; aqueles manifestam a fraqueza da tendência ao excesso; e os escrúpulos religiosos de consciência não descrevem ou definem a sua situação. (4) Imaginemos o caso de alguém que se converteu de algum tipo particular de excesso. Ocasionalmente, acontece que tal pessoa vem a entreter certo escrúpulo religioso contra o uso daquele tipo de excesso, que antes lhe servira de motivo de vício e, talvez, devassidão. Assim, por motivos religiosos, ela pratica a abstinência completa. Tal pessoa fez um juízo errôneo, tendo falhado em analisar de maneira apropriada a responsabilidade por seus anteriores excessos. No entanto, permanece o fato de que, alicerçado em escrúpulos religiosos, ela se abstém do uso daquela coisa em particular. É um crente fraco na fé e, deste modo, enquadra-se na categoria dos crentes fracos mencionados em Romanos 14. Por conseguinte, as exortações dirigidas aos crentes fortes aplicam-se nesta instância. Entretanto, os excessos anteriores penetram nesta situação somente como elemento que esclarece seus escrúpulos religiosos. Não existe motivo para imaginarmos que a origem dos escrúpulos entretidos pelos crentes fracos de Roma possuía esta natureza. Mas, na ilustração oferecida, a fraqueza continua sendo a de escrúpulos nutridos de maneira errônea. Os fortes devem levar em conta esse escrúpulo religioso, em seu relacionamento com tal pessoa, e não suas tendências ao excesso, sob hipótese alguma. Pois, no caso abordado pelo apóstolo não há qualquer tendência ao excesso. É óbvio, por conseguinte, que o ensino de Paulo neste capítulo refere-se a escrúpulos originados de convicções religiosas. Este é o princípio sobre o qual repousa a interpretação do trecho e em termos do qual a aplicação se torna relevante. Aplicar os ensinos de Paulo a situações em que tal escrúpulo religioso está ausente é ampliar as exortações além de sua referência e intenção, constituindo, portanto, uma distorção do ensino a respeito desta fraqueza.

Apêndice 2 Thornwell, o grande conselheiro James Henley Thornwell (1812-1862) foi um eminente pastor e educador, ministro da Igreja Presbiteriana dos Estados Unidos da América (PCUSA) e um dos fundadores da Igreja Presbiteriana nos Estados Confederados da América (1861). Foi um dos teólogos e intelectuais mais influentes dos EUA no século 19,[18] contemporâneo de outro famoso teólogo presbiteriano do sul, Robert Lewis Dabney.[19] Serviu no ministério pastoral em três ocasiões separadas[20]  e duas vezes como professor no South Carolina College. Foi presidente desta instituição de 1852 a 1855. De 1855 a 1862, ano de sua morte, Thornwell ocupou a cadeira de teologia didática e polêmica no Theological Seminary em Colúmbia, Carolina do Sul. Sinclair Fergunson afirma que “Thornwell era um forte e eficiente defensor dos padrões de Westminster . Sua veia polêmica se devia mais à sua paixão pela verdade do que propriamente a um espírito combativo por natureza”.[21] Faleceu com apenas 49 anos, mas deixou um grande legado escrito. Seu Collected Writings, 1871-1882,[22] editado por John B. Adger e John L. Giradeau, foi republicado na sua totalidade pela The Banner of Truth Trust . Sua principal biografia foi escrita por B. M. Palmer no livro The Life and Letters of James  Henley Thornwell . Além de conter uma excelente narrativa da vida de Thornwell, o livro está recheado de belas cartas escritas pelo teólogo. As cartas selecionadas por Palmer são das mais diversas, mostrando a seriedade de Thornwell em diferentes questões: na vida piedosa dos filhos, na preocupação com companheiros de ministério e com a Guerra Civil. Porém, em meio a essas cartas, encontramos algumas em que seu bom humor, tão característico nele, é revelado. Em algumas das seleções vemos um Thornwell brincalhão fazendo gracejos com seu hábito favorito: fumar. É uma dessas cartas que traduzi e transcrevo abaixo. Deleitem-se!  ― Felipe Sabino de Araújo Neto

Theological Seminary, 24 de setembro de 1861.

CARA E AMADA IRMÃ ADGER : Comoveram-me muito os relatos tocantes que recebi dos seus múltiplos e agudos sofrimentos, nesse mais importante de todos os órgãos de uma mulher, “a divina face humana”. Sei como me solidarizar com o sofredor, em especial quando quem sofre é a mulher de um amigo sem

igual no meu coração. Minha experiência me levou a reconhecer o fato de que um efeito de nossas aflições é nos desarmar das ideias preconcebidas, caprichosas e inúteis, e nos reconciliar com o que antes abominávamos. No me caso, o princípio foi ilustrado de maneira muito notável. Num momento da minha vida, carne de ovelhas, amoras e chá eram o que eu mais abominava; e ficava maravilhado como qualquer ser humano podia consentir com o uso desses artigos de dieta monstruosos. Mas fui humilhado. Ou morreria de fome, ou me alimentaria de ovelhas com a voracidade de um antigo patriarca ou judeu; e por fim passei a acreditar que mesmo o cristão pode fazer delícias dos frutos selvagens, da prole do rebanho e da folha da China. Meus conceitos anteriores se foram; e me sentei diante dessas abominações com a mesma serenidade que me depararia com um presunto, pudim de ameixa ou carne assada. Depois de desistir das ideias preconcebidas, comecei a me emendar. Ora, ocorreu-me que há um ponto de orgulho em seu coração que precisa ser humilhado. Você sustenta algumas ideias preconcebidas inexplicáveis, das quais cabe a você se libertar; e meu interesse em se conforto físico me leva a lidar de modo muito livre com você nesse assunto delicadíssimo. Não tenho dúvidas que, se você abrir sua mente para visões generosas daquela mais prazerosa de todas as ervas, a planta do tabaco, seus sofrimentos poderiam ser bastante aliviados, e em muito abrandados. Apenas reflita sobre ela como um bálsamo que a natureza gentilmente cedeu às dores de dente ou às mandíbulas doloridas. Deixe-me aconselhá-la, assim como você preza seu conforto, a que obtenha para si mesma um cachimbo limpo de haste curta, e que se dedique ao processo piedoso de inalar a fragrância deliciosa. Não há visão mais verdadeiramente venerável que a de uma mãe em Israel, no canto da chaminé, com seus filhos sobre ela, refrescando os seus sentidos com lufadas de incenso tão doces e divertidas quanto os sons procedentes de sua boca. É a própria imagem da paz digna. A própria ideia de nevralgia a essa matrona seria inconcebível. Apenas experimente. Eu nunca sinto dor de dente, mandíbula, ou qualquer dor no rosto. O motivo, talvez, seja que não tenho ideias preconcebidas e absurdas contra “o mais agradável e doce restaurador da natureza”, um genuíno artigo de tabaco. Quão deleitoso seria se você pudesse sobrepujar suas antipatias, visitar sua irmã Adger, numa noite de luar, em sua mansão hospitaleira, e unir-se a ela na branda, calma e digna serenidade que os vapores mesclados do cachimbo e charuto tão livre e completamente sinalizariam! Minha cara e sofredora irmã: fume, fume, e digo de novo, fume. Fará bem a você. Tão logo comece, você não precisará de nenhum argumento para dar continuidade. O aroma da boa conversa e do tabaco se harmonizam de forma agradável, e formam um incenso requintado. Considero o suficiente. Todos nós queremos muito vê-la. […][23] Mas meu papel acabou. Certifique-se de fumar, e não ouçamos mais sobre a nevralgia. Como sempre, JAMES H. THORNWELL

Apêndice 3 A ética e a consciência R. C. Sproul

A função da consciência em tomarmos decisões éticas tende a complicar as coisas para nós. Os mandamentos de Deus são eternos, mas, para obedecer-lhes, temos primeiramente de nos apropriar deles interiormente. O “órgão” dessa interiorização tem sido chamado classicamente de a consciência. Alguns descrevem esta voz interior nebulosa como a voz de Deus em nosso íntimo. Dentro da consciência, em um recesso secreto, está a personalidade, tão escondida que, às vezes, ela funciona sem estarmos imediatamente conscientes dela. Quando Sigmund Freud trouxe a hipnose ao lugar de inquirição científica respeitável, os homens começaram a explorar o subconsciente e a examinar os recessos íntimos da personalidade. Deparar-se com a consciência pode ser uma experiência impressionante. A descoberta da voz interior pode ser como “olhar para o próprio inferno”, como disse um psiquiatra. No entanto, somos tendentes a pensar na consciência como uma coisa celestial, um ponto de contato com Deus, e não um órgão infernal. Pensamos no personagem de desenho animado que está diante de uma decisão ética, enquanto um anjo está sentado num dos ombros, e um demônio, no outro, brincando de cabo de guerra com a cabeça do pobre homem. A consciência pode ser a voz do céu ou do inferno; ela pode mentir, bem como impelir-nos à verdade. Pode falar de ambos os lados de sua boca, tendo a capacidade tanto de acusar como de desculpar. No filme Pinóquio, Walt Disney nos apresentou a canção “Tente um assobio”, que nos instava: “Sempre deixe a sua consciência ser o seu guia”. Isto é a legítima “teologia do Grilo Falante”. Quanto ao cristão, a consciência não é a corte de apelação suprema quanto à conduta correta. A consciência é importante, mas não é normativa. Ela é capaz de distorção e de má orientação. É mencionada cerca de 34 vezes no Novo Testamento, com indicação abundante de sua capacidade de mudança. A consciência pode ser cauterizada e corrompida, tornando-se insensível por causa do pecado repetido. Jeremias descreve Israel como um povo que tinha “a fronte de prostituta” e não queria “ter vergonha” (Jr 3.3). Por causa de transgressões repetidas, Israel tinha, como uma prostituta, perdido a capacidade de envergonhar-se. Com uma cerviz endurecida e um coração empedernido, veio a consciência cauterizada. O sociopata pode matar sem remorsos, sendo imune às aflições normais da consciência. Embora a consciência não seja o tribunal supremo de ética, é perigoso agir contra ela. Martinho Lutero tremeu de agonia perante Dieta de Worms por causa da enorme pressão moral que ele enfrentava. Quando lhe pediram que se retratasse de seus escritos, ele incluiu estas apalavras na sua resposta: “Minha consciência é cativa pela Palavra de Deus. Agir contra a consciência não é certo, nem é seguro”. O uso descrito da palavra “cativo”, por parte de Lutero, ilustra o poder instintivo que a compulsão da consciência pode exercer sobre uma pessoa. Uma vez que uma pessoa é dominada pela voz da consciência, mobiliza-se um poder do qual podem resultar atos de coragem heroica. Uma consciência cativa pela Palavra de Deus tento é nobre como poderosa. Lutero estava correto ao dizer: “Agir conta a consciência não é certo, nem é seguro”? Aqui temos de ser cuidadosos para não tropeçarmos na aplicação da consciência à ética. Se a consciência pode ser mal orientada ou distorcida, por que não devemos agir contra ela? Devemos seguir nossa consciência e

pecar? Aqui, temos um dilema do duplo risco. Se seguirmos nossa consciência e pecarmos, somos culpados de pecado, porque precisamos ter nossa consciência instruída corretamente pela Palavra de Deus. Contudo, se agirmos contra a nossa consciência, somos também culpados de pecado. O pecado pode estar localizado não no que fazemos, e sim no fato de que cometemos um ato que cremos ser mau. Aqui se aplica o princípio bíblico de Romanos 14.23: “Tudo o que não provém de fé é pecado”. Por exemplo, se uma pessoa é ensina a crer que usar batom é pecado, e ela usa batom, essa pessoa está pecando. O pecado está não no batom, e sim na intenção de agir contra o que a pessoa crê ser uma ordem de Deus. O dilema do duplo risco exige que nos esforcemos diligentemente para mantermos nossa consciência em harmonia com a mente de Cristo, para que uma consciência carnal não nos leve à desobediência. Precisamos de uma consciência redimida, uma consciência do espírito, e não da carne. A manipulação da consciência pode ser uma força destrutiva na comunidade cristã. Os legalistas são frequentemente mestres em manipulação de culpa, enquanto os antinomianos são mestres na arte de negação silenciosa. A consciência é um instrumento delicado que tem de ser respeitado. Aquele que procura influenciar a consciência de outros tem uma grande responsabilidade para manter a integridade da personalidade da outra pessoa conforme criada por Deus. Quando impomos falsas culpas nos outros, paralisamos nossos semelhantes e os prendemos em cadeias onde Deus os deixou livres. Quando estimulamos falsa inocência, contribuímos para a delinquência deles, expondo-os ao juízo de Deus.

Apêndice 4 A tirania do irmão mais fraco R. C. Sproul Santificação Os reformadores protestantes estavam unidos na sua afirmação de que a Bíblia ensina a justificação pela fé somente, mas não por uma fé que está sozinha. A fé salvadora imediata, necessária e inevitavelmente mostra evidência de si mesma nas boas obras que produzimos no processo de santificação. Paulo nos ordena a desenvolver nossa salvação com temor e tremor à medida que Deus opera em nós o querer e o realizar (Fp 2.12-13). Não devemos ficar à vontade em Sião, nem ser quietistas que “deixam a vida rolar e Deus cuidar de tudo”. A vida cristã requer labor com temor piedoso, que chamamos reverência, e com adoração sempre presente no coração daqueles que temem o Deus vivo. A santificação não deve ser tomada como uma questão casual. Há, contudo, várias armadilhas que minam nossa santificação. Predominantes entre elas estão o antinomismo e o legalismo. Antinomismo quer dizer anti-lei. Ele traz a ideia de que uma vez salvo pela graça, eu não devo mais me preocupar em viver uma vida de obediência e não preciso mais prestar atenção à lei de Deus. O refrão favorito do antinomista é “livre da lei, ó bendita condição, posso pecar quanto quiser e ainda ter remissão”. Um dos temores do catolicismo romano durante a Reforma Protestante era que a doutrina da justificação pela fé produziria apenas antinomismo. Havia, de fato, alguns reformadores radicais que entenderam erroneamente a doutrina e seguiram essa direção. Mas a ala reformada da Reforma estava convencida de que, conquanto a lei cerimonial fora cumprida e ab-rogada, as leis morais fundadas no caráter de Deus continuavam relevantes, mas para mostrar aos cristãos como agradar a Deus e não para obter a salvação. Hoje o antinomismo é epidêmico. Alguns dizem que a lei do Antigo Testamento não tem mais importância para a vida do cristão. Um dos exemplos mais notórios disso é a ideia epidêmica destrutiva do cristão carnal. Essa é uma contradição de termos, quando entendemos o que se quer dizer com “crente carnal”; mas há um sentido em que a expressão tem uma aplicação para nós. Todos nós que estamos em Cristo continuamos em algum grau carnais, pois nossa carne — nossa vontade e natureza em oposição a Deus — não será erradicada até que sejamos glorificados. Não é isso, no entanto, o que os defensores do cristianismo carnal querem dizer quando chamam alguns crentes de carnais. A ideia do cristão carnal diz que é possível chegarmos a uma fé salvífica verdadeira e receber a Jesus como Salvador, mas não como Senhor. De acordo com esse ensino, uma pessoa verdadeiramente convertida pode nunca produzir o fruto de uma vida santificada, mas permanecer extremamente carnal e despreocupada com a lei de Deus até a morte. Cristo está na vida do cristão carnal, mas não no trono dela. O “eu” se assenta no trono e define como a pessoa irá viver. De onde veio essa ideia do cristianismo carnal? Má teologia é uma resposta. Mas também pode vir de uma forma de se buscar explicar por que tantos que professam Cristo não mostram nenhuma evidência disso. Conheci um jovem que vivia com sua namorada e vendia drogas, mas justificava seus pecados chamando a si mesmo de cristão carnal. Ele tinha vindo à frente num altar, mas não fazia qualquer esforço para seguir a Jesus. Ele era um exemplo escancarado de antinomianismo. A outra principal ameaça à nossa santificação é o legalismo. O que é legalismo? Essa não é uma pergunta fácil de responder, pois não existe uma forma monolítica de legalismo. O pior legalismo diz que por nossas obras nós podemos satisfazer as exigências da lei de Deus e obter a salvação por nossas boas ações. Essa é a visão de salvação mantida por todas as pessoas que não afirmam o cristianismo bíblico. Mas se ela realmente fosse o caminho da salvação, só nos poderia levar à desgraça eterna, pois ninguém cumpre a lei de modo perfeito. Outras formas de legalismo foram aperfeiçoadas pelos fariseus. Os fariseus se especializaram nos pequenos detalhes. Essa forma de legalismo concede grande atenção a questões menores da lei em detrimento das questões mais importantes nela. Jesus castigou os fariseus, porque só observavam o dízimo. As pessoas deveriam sim dar o dízimo, disse ele, mas não em detrimento de outras questões. Não podemos pinçar e escolher quais mandamentos seguir (Mateus 23.23-24). Todos nós conhecemos pessoas que são escrupulosas sobre coisas menores, mas que não se importam se exibem ou não o fruto do Espírito (Gálatas 5.22-24). Os fariseus também violaram o espírito da lei ao contornarem a lei sobre viajar no dia de sábado. Digamos que eles calculassem uma viagem como tendo cerca de uma milha, o que significaria que eles não viajariam mais de uma milha do seu lar no dia de sábado. No entanto, eles criariam uma brecha na lei dizendo que uma casa poderia ser considerada seu lar se deixassem em algum lugar dela um item pessoal, como uma escova de dentes. Se quisessem, portanto, fazer uma viagem no sábado que fosse de 15 milhas, poderiam deixar uma escova de dentes ou outro item pessoal a cada milha ao longo da rota desejada. Desta forma eles nunca viajariam mais de uma milha do seu lar. Partindo do verdadeiro lar, eles chegariam ao local em que deixaram seu primeiro item pessoal depois de viajar apenas uma milha; estariam em sua nova “casa” quando encontrassem sua escova de dentes, e tudo começaria de novo. Eles poderiam então viajar outra milha até seu próximo lar, então até o próximo, fazendo todo o caminho até o destino final. Uma das formas mais destrutivas de legalismo naquela época, e mesmo hoje, e aquele mais seriamente praticado pelos fariseus, era a tendência de fazer acréscimos na lei de Deus. Eles prendiam a consciência dos homens onde Deus a libertara para fazer o que quisesse.

Esse problema tem atormentado a igreja por séculos. Em todo o caso, pode ser útil nos perguntarmos de que lado estamos nesse amplo espectro de legalismo, e que atmosfera temos em nossa igreja. Questões indiferentes Ligadas à questão do legalismo e do antinomianismo estão as ideias da adiáfora e liberdade cristã. Adiáfora são questões indiferentes — aquelas áreas em que a pessoa não é ordenada nem a fazer, nem a se abster de algo; áreas em que Deus não nos disse o que fazer, ou não fazer. Os cristãos têm liberdade em questões indiferentes; nós podemos escolher por nós mesmos qual curso de ação tomar. A liberdade cristã nunca nos dá liberdade para desobedecer a Deus. Ela não é um disfarce para a licenciosidade. Tive certa vez uma oportunidade de ensino para uma missão numa comunidade fora da cidade de Nova Iorque. Após a missão ter chegado ao fim, fui convidado a voltar para a casa de um dos líderes da missão para um encontro de oração com a equipe de liderança da mesma. Para meu espanto, tão logo a reunião começou as pessoas começaram a orar pelos seus parentes falecidos. Interrompi-lhes e disse que os cristãos não estão autorizados a orar pelos mortos, pois isso é proibido nas Escrituras e é uma ofensa capital no Antigo Testamento. Os líderes da missão responderam que a regra não tinha importância, pois se tratava de uma regra do Antigo Testamento. Eu lhes perguntei o que havia acontecido na história da redenção que faria uma prática anteriormente abominável a Deus aceitável para ele. Eles responderam que não estavam debaixo da lei e que eu não deveria promover um sentimento de culpa neles. Essa conversa refletiu, por parte deles, um sério mal-entendido sobre a liberdade cristã. Consultar bruxas e coisas assim não é adiáfora. Claramente, assuntos ocultistas não são questões indiferentes, e não há qualquer razão bíblica para pensar o contrário. Em algumas situações, entretanto, não podemos concordar com o que é indiferente. O verdadeiro conceito bíblico de liberdade cristã nos ajuda a coexistir quando não temos o mesmo entendimento do que entra na categoria de adiáfora. Onde é que nossa liberdade cristã começa e termina? Por séculos esse tem sido um problema na igreja. No corpo de Cristo em Roma havia alguns que comiam carne e alguns que só comiam vegetais, e os dois grupos não concordavam com o que era melhor (Romanos 14). A resposta de Paulo é que como Deus não estabeleceu uma lei específica neste caso, nenhum dos dois grupos deveria julgar o outro. O vegetariano e o carnívoro pertenciam ambos a Cristo; assim, como ousaríamos julgar uns aos outros? Como ousaríamos julgar os membros servos de Cristo nas coisas que Deus não os julgava? Devemos avaliar os outros somente de acordo com as normas explícitas da Escritura, e não com aquelas inventadas pelas tradições humanas. Cinquenta anos atrás, o evangelicalismo foi atormentado por um legalismo que dizia “não dance”, “não beba”, “não fume”, “não assista a filmes”, “não jogue cartas” e assim por diante. Embora as coisas tenham melhorado nesse aspecto, essa era uma questão tão importante para muitos evangélicos que toda a espiritualidade e profissão cristã de uma pessoa deveriam ser julgadas pela conformidade a essas estipulações. Mas você não pode encontrar nenhuma lei explícita na Escritura sobre essas coisas. Como exemplo desse legalismo, lembro-me de uma ocasião em que uma mulher convidou vários de nós para jantarmos. Éramos todos cristãos, e quando a garçonete apareceu para pegar nosso pedido de bebidas, nossa anfitriã imediatamente entrou na conversa e disse à garçonete que ninguém iria beber álcool, pois éramos cristãos, e cristãos não ingerem bebidas alcoólicas. Fiquei constrangido pela garçonete, por ter sido repreendida e porque sua visão doravante seria que o cristão é alguém que jamais ingere bebida forte. Mas Paulo disse que o reino de Deus não é uma questão de comer e beber. Quantos cristãos têm sido ensinados de que é pecaminoso fazer certas coisas, as quais Deus não declarou como sendo pecaminosas? Eles ouvem que algumas questões indiferentes não são de fato indiferentes. Lidando com irmãos mais fracos Eis a questão básica. Se eu acredito que é pecaminoso beber álcool, e mesmo assim bebo álcool, estou cometendo pecado. Não porque beber álcool seja em si pecaminoso, mas porque é errado fazer conscientemente o que consideramos pecado. Se voluntariamente agimos para quebrar o que pensamos ser uma lei de Deus, manifestamos um espírito de rebelião. Devemos, portanto, ser cuidadosos ao julgar o comportamento dos outros em questões indiferentes, pois nem todos estão no mesmo patamar de compreensão. Em Corinto alguns cristãos estavam preocupados com a compra de carne que fora oferecida a ídolos, mesmo sendo ela vendida como carne, e isso causou atrito na comunidade. Paulo disse que se tratava de carne e, portanto, que não era errado, em si mesmo, consumi-la se alguém a estivesse comprando mais tarde sem tomar parte na adoração dos ídolos (1 Coríntios 8). Aqueles que queriam evitar carne a todo custo estavam agindo como separatistas secundários. Eles não só estavam se recusando a comer carne oferecida a ídolos (separação primária), como também se recusando a se associar com os que comiam carne oferecida a ídolos. Claro, para serem consistentes os separatistas secundários teriam de se retirar do planeta, pois todas as pessoas que conhecemos e tudo o que fazemos pode ser conectado a algo contra o qual temos escrúpulos ou que é pecaminoso de alguma forma. Como você lida com os irmãos mais fracos? Ri deles? Cai sobre eles com críticas? Ou respeita a consciência deles e diz “Eu sei que você tem esse escrúpulo, e não quero fazê-lo tropeçar e seduzi-lo a fazer algo de que está convencido ser uma violação da lei de Deus”? É isto que Paulo estava disposto a fazer (1 Coríntios 8.9-13). Paulo estava disposto a renunciar totalmente à carne por causa de seu irmão mais fraco. Se uma pessoa tem um escrúpulo de que não compartilho, e é um escrúpulo em sujeição ao Senhor, devo dar o braço a torcer e não ficar ostentando a minha liberdade aos olhos da pessoa. Devo realizar o ato que é indiferente, mas ofensivo ao outro crente, em reservado. Nossa liberdade em Cristo não é uma autonomia para fazermos qualquer coisa que nos agrade. Ela sempre deve estar acompanhada de uma sensibilidade caridosa para com aqueles que têm escrúpulos. Mas o que acontece quando irmãos mais fracos querem elevar seus escrúpulos pessoais ao nível de um padrão moral para o cristianismo, ou querem exigi-lo de todos os que pretendem ser membros ou funcionários de uma igreja? Aqui o irmão mais fraco se torna o

irmão legislador e começa a tomar um escrúpulo pessoal e a prender a consciência das pessoas, destruindo a liberdade cristã. A questão é o que você faz e como discerne a identidade do irmão mais fraco. Devemos estar muito convictos de que os padrões que impomos aos outros na igreja são padrões bíblicos e não nossos próprios escrúpulos. Alguns ministros têm exigido de seus anciãos que assinem um compromisso de nunca consumir álcool, por qualquer motivo que seja, nem sequer vinho. Mas isso viola as qualificações de Paulo e Jesus, pois ambos consumiam bebida alcoólica. O mesmo ministro poderia dizer que eles criaram essa regra porque o vinho do primeiro século não era alcoólico, mas essa seria uma suposição falsa. Jesus não foi chamado de beberrão (Mateus 11.19) porque bebia suco de uva Del Valle®. Afirmar que o vinho do primeiro século não era alcoólico é a imposição de uma norma cultural norte-americana que surge do desespero de se manter uma posição não bíblica sobre o álcool. Não há dúvida de que existe uma proibição veemente à embriaguez na Escritura, mas não existe uma condenação ao consumo adequado de álcool. Pode um ministro ser um irmão mais fraco? Os ministros não deveriam ser irmãos mais fracos, e deveriam saber lidar com as Escrituras corretamente. Ainda assim, temos alguns ministros que são irmãos mais fracos, e não somos a primeira geração a experimentar tal realidade. Gálatas 2.11-14 mostra o conflito entre Pedro e Paulo, onde Pedro, um apóstolo que deveria ter sabido mais, era claramente o irmão mais fraco. No início Pedro comia com os gentios livremente, mas então se separou, passando a não jantar com eles, pois acabariam consumindo seus alimentos não kosher. Paulo não teve uma conversa privada com Pedro, mas se lhe opôs em público. Pedro deveria ter sabido mais, por conta do seu encontro com Cornélio em Atos 10. Aqui a fraqueza do irmão mais fraco se transformara na grave heresia udaizante da Galácia. A imposição da lei, para a qual muitos encontravam uma justificativa num momento de fraqueza de Pedro, estava ameaçando o próprio Evangelho, pois logo os gálatas estavam adicionando outras obras da lei como requisitos para a salvação, incluindo a circuncisão. Jesus não nos deu liberdade só por bondade, mas também por profundas questões teológicas relacionadas ao caminho da salvação. Se você impõe a circuncisão e outras leis após a consumação das mesmas, está se colocando simbolicamente debaixo dos mesmos termos da antiga aliança. Você está abandonando a nova aliança. O que era uma questão de escrúpulos de um irmão mais fraco se tornara uma ameaça à própria compreensão do Evangelho. Paulo estava disposto a adaptar seu comportamento aos escrúpulos dos irmãos mais fracos quando estes não impunham os mesmos aos outros. O exemplo da circuncisão de Tito em Gálatas 2.1-10, no entanto, mostra-nos que tão logo o irmão mais fraco tentou forçar sua fraqueza como sendo uma lei da igreja, o Evangelho foi ameaçado. Neste caso, ao invés de negar sua própria liberdade cristã para o bem do irmão mais fraco, Paulo lutou com unhas e dentes pelo Evangelho. Quando uma pessoa com um escrúpulo tenta fazer do seu escrúpulo a regra da igreja, ela não deve ser autorizada a forçar uma lei onde Deus nos tornou livres. Esses princípios de questões indiferentes e de irmão mais forte e irmão mais fraco são fáceis de se compreender, mas aplicá-los exige bastante sabedoria. Devemos aplicar o Evangelho com sabedoria e em amor, tal que sejamos pacientes com os que são novos na fé; mas ao mesmo tempo não devemos deixar o irmão mais fraco impor sua visão sobre os outros. Nós impomos em nossas igrejas regras e regulamentos onde Deus nos tornou livres? Devemos ter cuidado para não fazermos isso, pela causa de Cristo e pelo bem dos seus pequeninos.

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