Causa e Efeito em Marx - Eleutério Prado

February 13, 2019 | Author: Gustavo Lopes Machado | Category: Causality, Georg Wilhelm Friedrich Hegel, Ciência, Aristotle, Dialectic
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Texto de eleutério sobre causa e efeito...

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Causa e efeito? Ou causa-efeito?  Eleutério Prado1 Introdução

 Nessa nota de aula, pretende-se mostrar de um modo didático, primeiro, como a causalida causalidade de é conce concebida bida na na dialétic dialéticaa de Hegel para pode poderr expo expor, r, depois, depois, como a concepçã concepçãoo de causalida causalidade de por ele sustentad sustentadaa é nece necessár ssária ia para para resolver resolver paradoxos paradoxos que aparece aparecem m nos proces processos sos dinâmicos dinâmicos não-linea não-lineares. res. Para cumpri cumprirr essa tarefa, tarefa, será será preciso preciso apresentar, de de início, como o entendimento entendimento – ou seja, o pensamento pensamento que que se guia pela pela lógica da identidade identidade e nela se fia para enfrentar enfrentar o mundo – trata a relação de causa causa e efeito. Para fazê-lo, diante de um conjunto de concepções que tem uma história e que,  postas em paralelo, paralelo, mantém diferenças importantes importantes entre si, não restará outra alternativa do que escolhe escolherr as mais significa significativas tivas para para aprese apresentá-la ntá-lass tópica, tópica, sumária sumária e seqüencialmente. seqüencialmente. É o que se faz faz no que se segue. Esta nota de aula tem, por isso, quatro quatro partes bem demarcadas. demarcadas.  Na primeira parte, apresenta-se a concepção de causalidade de Aristóteles, com  base em lições de Giovanni Reale sobre sobre este grande pensador pensador grego (2007). Se na época época moderna vai prevalecer prevalecer uma concepção concepção instrumental de ciência ciência – esta se torna um saber  saber   pragmático que visa, em última instância, dominar o mundo e se apossar de seus modos de funcionam funcionamento ento –, na antiguidad antiguidadee predominava predominava uma uma visão contemp contemplativa lativa do conhecimento conhecimento – eis que a filosofia procurava procurava chegar chegar a uma compreensão compreensão do cosmos como um todo com base em princípios fundantes e unificadores. E isto se mostrava tamb também ém na conc concep epçã çãoo de de caus causal alid idad adee aí aí surg surgid ido, o, o qua quall bus busca cava va apre apreen ende der  r  abstratamente a lógica da produção de tudo o que existe, distinguindo já, por um lado, a causa e, por outro, o efeito.  Na segunda, apoiando-se em exposição de Mario Bunge, apresentam-se algumas algumas formulações modernas do que ele mesmo denomina de princípio da causalidade causalidade (Bunge, 2008, 200 8, capít capítulo ulo 2). 2). E por princ princípi ípioo de causa causalid lidade ade se se esten estenda da aqui aqui uma prop proposi osição ção condicional que estabelece estabelece uma lei de causação, causação, ou seja, seja, uma sentença sentença a respeito do modo de relacio relacioname namento nto entre as coisas coisas (ou meramente meramente entre entre os fenômeno fenômenos) s) que vale univocame univocamente nte e de modo universa universal.l. Essas Essas formulaçõe formulações, s, em conjunto, conjunto, aparecem aparecem nesta nesta nota nota como como repres represent entant antes es do modo modo median mediante te o qual o entendi entendimen mento to – que, agor agora, a, tende tende a se tornar tornar formalist formalistaa – pensa pensa a causal causalidade idade.. Eis que que esse esse modo constante constante será questionado. O texto de Bunge é empregado especialmente para apresentar a concepção de causalidade tal como como ela se configura na época moderna. moderna.  Na terceira, faz-se um esforço para expor a compreensão compreensão da relação de causação encontrad encontradaa em Hegel Hegel de um modo modo compreens compreensível ível para muitos. muitos. Note-se Note-se já aqui que a concepção concepção desenvolvida por esse pensador pensador alemão, notoriamente tão difícil de ler e de compreender, parte de uma crítica das noções correspondentes elaboradas pelo entendimento no no curso da história história da filosofia iniciado na Grécia Antiga. Hegel, Hegel, em suma, contesta a clara distinção e, assim, a separação entre causa e efeito, propondo que a causalida causalidade de deve ser compree compreendid ndidaa como ação ação recípr recíproca. oca. A expo exposiçã siçãoo contida contida nessa nessa  parte é dependente de uma detalhada explicação de Stephen Houlgate sobre os  parágrafos da Ciência da Lógica  – mais especificamente, especificamente, da lógica da essência –, os quais quais tratam tratam das categoria categoriass de substânc substância ia e causalida causalidade de (Houlgat (Houlgate, e, 2007). 2007). Aqui, entretanto, se lerá a Enciclopédia a  Enciclopédia (1995).  (1995). 1

 Professor da USP. Correio Correio eletrônico: [email protected]; sitio: http://eleuterioprado.wordpress.com. http://eleuterioprado.wordpress.com.

2  Na quarta, finalmente, discutem-se as idéias de Lucien Sève que incidem criticamente sobre certas questões lógicas aportadas pela consideração das dinâmicas não-lineares nas chamadas ciências da complexidade (Sève, 2005). Esse autor procura mostrar que a dinâmica do caos determinista, quando vista sob o foco analítico do entendimento, produz paradoxos nas determinações da causalidade, os quais não são elimináveis pelo poder de discriminação do próprio entendimento. Por trazer em si mesmo contradições que se afiguram insuperáveis, esse autor passa então a sustentar  que tais paradoxos vêm a ser propriamente antinomias 2. E que estas, assim concebidas, reclamam necessariamente, para a sanidade do próprio pensamento, a intervenção da razão dialética. Ao acolher a contradição – sem, entretanto, contraditar a lógica formal  –, a dialética que vem de Hegel permite, segundo ele, enfrentar a processualidade complexa do real de modo inteiramente racional. Causalidade Antiga

A primeira concepção de causalidade que vale mencionar é a de Aristóteles. Segundo esse filósofo, tudo aquilo que funda, condiciona ou determina as coisas existentes no mundo sublunar vem a ser uma causa. Tudo aquilo que é ou devém nesse mundo é um efeito. Para explicar as coisas em sua existência e seu movimento, ele  julgava necessário considerar quatro causas: a causa material e a causa formal (ou essencial) elucidam tudo aquilo que está presente no mundo como coisa determinada; a causa eficiente (ou motora) e a causa final explicam como o existente veio ou virá a ser, ou seja, move-se, desenvolve-se, produz-se, corrompe-se etc. Aristóteles era um pensador metafísico que concebia a realidade não só como aquilo que se manifesta empírica, física e sensivelmente, mas também como substrato que tem uma natureza supra-empírica e supra-sensível – subjacente à realidade física. Ademais, como se sabe, a ontologia aristotélica está centrada no conceito de substância, a qual, segundo ele, caracteriza justamente o ser enquanto ser. Aquilo, pois, que foi referido na sentença precedente como “substrato” vem a ser, precisamente, a substância  – a qual é também entendida por ele como fundamento primeiro do ser. Mas o que é, afinal, a substância para Aristóteles? O ser, para Aristóteles, pode ser apreendido de múltiplos modos e estes lhe  pertencem enquanto tal. Dito de outra maneira, o ser não é unívoco, mas polívoco. Mesmo contendo múltiplos aspectos, o ser tem uma identidade própria e esta é dada por  aquilo que ele é essencialmente. Eis que, portanto, que o ser é, ao mesmo tempo, plural e uno – pois contém em si uma fonte de unidade. E aquilo que responde por essa unidade é a substância. Entretanto, por ser múltiplo, tem acidentes, ou seja,  propriedades fortuitas, não-essenciais. Assim, por exemplo, no que se refere à substância, o homem é um ser racional; mas, no que se refere aos acidentes, ele pode ser   branco, negro, amarelo, etc. A racionalidade é o atributo formal que define o homem como homem, ainda que ele possa pensar como grego ou como moderno. Conforme Reale, ademais, para esse filósofo a substância é o composto da matéria e da forma, não tanto, porém, a matéria em si mesma, mas principalmente a forma3. Para que isto fique mais claro, considere-se o exemplo da estátua em que o 2

 Kant, na Crítica da Razão Pura, apresenta algumas antinomias que se tornaram famosas. Eis aqui duas delas: aí ele mostra, primeiro, que o mundo tem um começo no tempo e, depois, que ele não tem começo algum; mostra também, primeiro, que a matéria é composta de partes finitas e, em seqüência, que ela é infinitamente divisível. 3   Note-se que “forma” não indica aqui a figura exterior das coisas, mas a sua natureza interior, a sua essência íntima.

3 mármore é a matéria e a idéia do escultor já posta no mármore é a forma. A substância,  pois, consiste no que faz a estátua ser o que ela é. Note-se que a estátua é de mármore, mas o que faz dela uma estátua de Apolo vem a ser, sobretudo, a idéia desse deus da mitologia Grego-romana, a qual estivera presente na cabeça do escultor como projeto, quando este a produzira. De qualquer modo, vê-se que na concepção de Aristóteles de substância entra tanto as matérias sensíveis quanto as entidades supra-sensíveis – ainda que com prioridade ontológica para essas últimas. Já foi dito que a substância é substrato, ou seja, vem a ser algo inerente ao ser de que se trata e que, portanto, não pode aparecer como predicado de outro ser. Deve-se acrescentar, agora, que ela subsiste por si mesma e independe do resto, ou seja, é e  permanece autônoma. Ademais, para Aristóteles, a substância é uma característica determinada das coisas que existem no cosmos, subsistindo de maneira intrinsecamente unitária. Não é, pois, um atributo universal e abstrato das coisas; não é, também, algo  plural ou um agregado de partes. Finalmente, deve-se mencionar que a substância só existe em ato, ou seja, no modo da atualidade. Na esfera do sublunar 4, a substância coincide com sínolo (ou seja, com a união da forma com a matéria) e, portanto, ela está sempre presente no ser das coisas concretas individuais, coisas essas que habitam efetivamente esse mundo. Posto isto, é preciso voltar ao princípio de causalidade de Aristóteles para fazer  uma diferenciação importante. Pois, as quatro causas não se comportam simetricamente em relação às categorias de potência e ato, as quais atravessam toda a concepção de mundo de Aristóteles. Eis que esse pensador não quis apreender apenas o que aí está e  permanece, mas preocupou-se, sobretudo, em compreender sem aporias o movimento, a translação, o crescimento, a alteração, a geração e a corrupção dos corpos. Ele, como se sabe, combatia os eleatas que negavam toda mudança afirmando que “o ser é, o não-ser  não é”. Ora, como essas categorias permitem a apreensão do movimento? Isso se mostra usualmente por meio de exemplos: uma semente é uma árvore em potência; crescida, após ter germinado, será árvore em ato; o mármore é uma estátua em potência; a estátua vem a ser em ato a forma projetada pelo escultor. É preciso integrar agora as categorias de matéria e forma, ou seja, de substância, com as categorias de ato e potência. A matéria enquanto tal é sempre potência, ou seja, capacidade de receber a forma, tornando-se uma coisa efetivamente presente no mundo. A madeira, por exemplo, pode se transformar em vários objetos diferentes entre si: um cajado, uma cruz, um amuleto, etc. 5 A forma, por sua vez, tende a ser configurar sempre como atualidade. A forma estátua de Apolo só existe em ato na estátua de Apolo. Enquanto projeto é apenas uma forma ideal que ainda não foi concretizada. Segundo Reale, o ato tem prioridade sobre a potência: só se pode conhecer a potência examinando o ato de que é potência. “O ato (que é forma) é condição, regra e fim da  potencialidade” (Reale, 2007, p. 55). As categorias de ato e potência também se articulam com as categorias de causa eficiente e causa final. Eis que, para Aristóteles, o fim que se cristaliza nas coisas é ato e a motricidade que a produz é potência. Para compreender essa declaração do filósofo grego é preciso voltar à prioridade do ato em relação à potência, acima referida. Pois, não se pode conhecer a causa eficiente antes que esta tenha produzido o seu efeito, enquanto que a causa final se manifesta já naquilo que foi e está feito. Veja-se com o  próprio Aristóteles afirma isso: “o fim é ato, e graças a ele adquire-se também a 4

  Na esfera do supralunar, a substância pode existir só como forma, ou seja, como imaterial, suprasensível por excelência, Deus. 5  É importante, aqui, não confundir forma com formato. Este último ver a ser apenas o aspecto vulgar da forma.

4  potência: de fato, os animais não vêem com a finalidade de possuírem a vista, mas  possuem a vista com a finalidade de verem” (apud  Reale, 2007, p. 55).  Note-se, para finalizar essa seção, que Aristóteles, por meio das categoriais de  potência e ato, apreende o movimento como movimento de constituição, estabelecendo nexos internos entre as coisas e os acontecimentos. A semente (apreendida no registro da potência) e a árvore (apreendida no registro do ato) não são dois entes ontologicamente separados e, assim, meramente ligados pela atividade da razão subjetiva cuja lógica se orienta fortemente pela possibilidade de manipular tudo o que existe. Porém, mesmo tendo apreendido os nexos internos entre os fenômenos por meio das categorias de ato e potência, o Estagirita manteve separados a causa e o efeito. Causalidade moderna

A concepção aristotélica de causalidade teve um papel central no modo de  pensar o mundo até o auge do movimento renascentista, no curso do qual a cultura da civilização ocidental sofreu uma grande transformação No correr do século XVII, como se sabe, surgiu o movimento da ciência moderna que veio colocar as idéias antigas de causalidade – assim como muitas outras – em eclipse. No despontar desse movimento, o olhar humano desceu do céu e passou a se concentrar no mundo terreno. O saber  moderno desenvolveu-se pouco a pouco para tornar o homem senhor e dono da natureza.  Nessa nova perspectiva, a causa formal e a causa final foram abandonadas sob a alegação de que elas não geravam um conhecimento experimental. A causa material foi conservada numa forma bem modificada, pois se passou a compreender a matéria com simples objeto de manipulação. Das quatro causas de Aristóteles apenas uma delas, a causa eficiente, veio a ser considerada digna de permanecer como princípio de causalidade no novo espírito científico. A causa motora, nessa grande transformação,  porém, deixou de pensada ao modo antigo. Porque, ao se manter agora uma compreensão atomista da matéria, passou-se também a admitir que o princípio de causalidade não fosse outra coisa do que expressão de relação puramente externa entre eventos (manifestações da matéria). O termo causa passou, então, a indicar uma influência externa que era capaz de  produzir mudança. Ao se pensar o princípio de causalidade desse modo, concomitantemente se exigiu que ele tivesse expressão matemática, isto é, que pudesse retratar a produção de eventos por meio de eventos segundo regras fixas ou, o que é o mesmo, por meio de uma sucessão pré-estabelecida de passos lógicos. Desde cedo, pois, a ciência moderna confundiu a própria racionalidade como a lógica dos algoritmos, almejando representar por meio dela todos os funcionamentos do mundo. Ao mesmo tempo em que o conhecimento digno de crédito passou a se expressar por meio de  proposições formais, fórmulas e programas, instituiu-se como norma de cientificidade que ele deveria estar fundado empiricamente. Já Galileu, no começo do século XVII, procurou definir a causalidade eficiente como um princípio central da ciência dos tempos modernos. Segundo ele, algo apenas  poderia ser chamado de causa se, estando presente, viesse a ser necessariamente seguido  por determinado efeito. Removida fosse essa causa, o efeito não se manifestaria. Dito de outro modo, ele pensou a “causa eficiente como condição necessária e suficiente para o aparecimento de algo” (Bunge, 2008, p. 33). Posteriormente, como esse tipo de definição discursiva – outras semelhantes poderiam ser arroladas – foi considerado impreciso e vago, passou-se a procurar formulações formalmente rigorosas. Note-se que a demarcação de Galileu confunde causa com condições para o surgimento de um

5 evento, permitindo que um número indefinido de fatores possa estar operando nos fenômenos em consideração. Antes de apresentar sumariamente duas definições formais do princípio de causação, é preciso mencionar a tese Hume. Segundo esse autor, a noção de causação está intimamente ligada ao problema da indução. Para ele, não existem idéias inatas,  pois todas elas surgem da experiência de um modo imediato. Como os homens raciocinam indutivamente apreendendo na própria mente, no processo da experiência, os encontros constantes de eventos, considerou o ato mental de associação de eventos como base do conceito de causação. Para ele, portanto, causação é mera hipótese sobre conjunção de eventos; não expressa o que acontece, mas o que vai acontecer se certas condições forem satisfeitas. Ora, a formulação de Hume fornece uma base geral para muitas das formalizações propostas na literatura analítica do princípio de causação. Mas ela contém, pelo menos para o filósofo da ciência realista, um problema bem conhecido: confunde, nessa perspectiva, correlação de eventos com efetiva causação. Respeitando a formulação empirista original e indicando a causa e o efeito, respectivamente, pelas letras C e E, esse princípio pode ser expresso do seguinte modo: se ocorre o evento C, então, e somente então, o evento E sempre ocorre. Caso se deseje introduzir o requisito de que esse princípio deve expressar uma conexão realmente existente, ele pode passar a ser expresso da seguinte maneira: se ocorre o evento C, então, e somente então, o evento E é sempre produzido. Note-se, então, que a diferença entre essas duas formulação é dada pela distinção existente entre “meramente ocorrer” e “ser efetivamente produzido”.  Na segunda delas, “o efeito não acompanha meramente a causa, mas é engendrada por  ela” (Bunge, 2007, p. 47). A primeira formulação contém implicitamente três exigências, indicadas aqui em seqüência: A) o nexo externo entre C e E é incondicional, ou seja, C é necessário  para que E ocorra; dito de outro modo, E não é um acontecimento arbitrário. B) a  prioridade da causa em relação ao efeito é meramente existencial, isto é, não implica em antecedência temporal entre uma e a outra. C) o nexo entre C e E é constante, não admite exceções: sempre que C ocorre, E sempre ocorre. A segunda formulação, além de demandar também essas três, põe uma exigência adicional – que a cláusula de  produtividade seja observada: E não apenas acompanha C, mas é produzido por C. O principio de causalidade, em sua formulação moderna, está conectado por fios esgarçados ao mesmo princípio tal como aparece em Aristóteles. Ao se abandonar quase tudo da formulação antiga, abandonou-se também a visão cósmica do mundo e, assim, a herança mitológica, apropriada e transformada por meio da razão, de que esse mundo é um produto divino, intrinsecamente harmonioso. É preciso saudar aqui a virada materialista da ciência moderna; porém, como o materialismo que passou a dominar  configurou-se como mecanicista, ele deixou ainda um lugar importante para um deus relojoeiro. À medida que esse materialismo passa a pensar a causa como atuação extrínseca sobre a matéria, isto é, como relação mecânica, reforça a separação herdada da causa em relação ao efeito. Causalidade em Hegel

É interessante partir nessa seção do próprio Hegel. 6 Na Pequena Lógica, ele diz: “no sentido ordinário da relação causal (...) causa e efeito são representados como duas 6

 É preciso afirmar neste momento que este escrito só se interessa pelo “miolo racional” das idéias de Hegel – e não por seu “invólucro místico”.

6 existências autônomas diversas; o que somente são, porém, quando nelas se abstrai da sua relação de causalidade” (Hegel, 1995, p. 283). O que ele quer dizer por meio dessas frases tão surpreendentes? Para encontrar a resposta é preciso notar que diz algo mais sobre esse ponto: afirma que, no sentido ordinário, a causa é finita e que, igualmente, o efeito é finito. Logo se vê, por isso, que ele quer mostrar, em primeiro lugar, que causa e efeito são compreendidos usualmente como noções distintas, fechadas em si mesmas, as quais são postas em relação apenas externamente 7. Ademais, se ele diz que assim se abstrai a relação de causalidade é porque compreende essa relação como nexo interno e substantivo entre a causa e o efeito. E isto se confirma quando afirma, em seqüência, que “o entendimento costuma resistir à substancialidade” (Hegel, 1995, p. 283), pois, em seu léxico, esse termo capital (entendimento) indica o modo de pensar analítico que distingue e separa, tendendo a não apreender os nexos internos. A explicação apresentada, no entanto, deixou outra questão em aberto: o que é, afinal, substância para Hegel? Que se observe desde logo que a cientificidade moderna,  pautada no positivismo e no pragmatismo, não suporta qualquer categoria de substância. Teria esse termo o mesmo significado que tinha na metafísica de Aristóteles? Como o Estagirita vincula internamente, mas ainda assim separa causa e efeito, desde logo se deve notar que a sua concepção de substância não pode ser a mesma de Hegel. Eis que essa noção, assim como, em geral, todas as outras do filósofo grego, respeitam, em última análise, às limitações do entendimento. Apenas com Hegel, essas limitações serão ultrapassadas vigorosamente. Antes de examinar a categoria hegeliana de substância, note-se que ele, por  assim dizer, substitui “causa e efeito” por “causa-efeito”; eis que afirma que “esse dois termos não são apenas diferentes, mas também são igualmente idênticos” (Hegel, 1995,  p. 284). Porém, não se entenda por isso que, ao dizer “causa é efeito” ou que “efeito é causa”, esteja ele afirmando que causa é exatamente igual e o mesmo que efeito. Pois, o “é” não significa aí um simples “igual” ou a identidade matemática, mas indica isto sim uma espécie de passagem reflexiva. O “é” hegeliano aponta para uma reflexão (ontológica) da causa no efeito e do efeito na causa. Falou-se em passagem; mas de que passagem se trata, propriamente? A seguinte sentença esclarece esse ponto: “causa e efeito são ambos um só e o mesmo conteúdo, e sua diferença é, antes de tudo, somente a do  pôr e do ser posto” (Hegel, 1995, p. 284). A causa é o pôr; e o efeito é o ser posto; o mesmo conteúdo se apresenta, assim, em dois registros diferentes que permanecem inseparáveis. Note-se, ademais, que há uma contradição dialética entre o ser pressuposto e o ser posto – eis que um deles nega o outro, sem excluí-lo, no entanto. Em Hegel, a substância não é substrato que define o ser enquanto ser e, em conseqüência, não é sínolo e, em particular, forma. Também não é suporte de  propriedades. Houlgate acentua que, para Hegel, substância “não é o ser enquanto tal, mas o ser que é porque é, o ser como absoluta mediação de si por si mesmo” ( apud  Houlgate, 2007, p. 234). A frase pode parecer arrevesada, mas ela diz que substância é a atividade inerente ao ser, a capacidade de ser por a si mesmo, de passar da potência para a efetividade. Eis que essa atividade põe os acidentes, os eventos e as ocorrências. Segundo o próprio Hegel, enquanto expressão de potencialidade interior, “substância é propriamente relação” (Hegel, 1995, p. 282), ou melhor, relação possível. E, numa primeira forma, enquanto expressão de necessidade, substância é relação 7

  Hegel faz aqui, especifica e diretamente, uma crítica à cientificidade moderna. Ele não se opõe frontalmente a Aristóteles já que este filósofo integra a causa e o efeito como momentos, ainda que analiticamente separados, dos processos do ser e do vir a ser. Ao contrário, é possível dizer que ele desenvolve e aperfeiçoa o pensamento desse autor.

7 causal. A substância, mediante reflexão sobre si mesma, passa nos acidentes – e, nesse sentido, manifesta-se como capacidade de originar, ou seja, como causa. Na negação de si mesma como possibilidade, supera-se para produzir efetividades, manifestando-se como efeito. Ora, essa capacidade de originar não produz apenas os acidentes, mas também conforma a relação causal propriamente dita. A relação de causa-efeito, a passagem do pôr ao ser posto, requer o encontro de duas substâncias: no contato, em uma delas se encontra a causa como imediata e na outra, igualmente de modo imediato, está o efeito. Dessa maneira, a primeira delas figura como ativa e a segunda dela figura como passiva. Mas a relação de causalidade vem a ser justamente a superação desse caráter imediato, ou seja, a reflexão da causa no efeito. Ora, esse processo de mediação de um pelo outro revela existir, também, unidade entre ambos; a superação da diferença revela-se como unidade de contrários. Examine-se, agora, para prosseguir, o seguinte exemplo: a faca corta a manteiga e é, por isso, causa ativa; a manteiga cortada é efeito passivo. Mas a manteiga permite o corte da faca e, por isso, é também causa ativa, de tal modo que a faca cortante figura agora como passiva. O que se vê nesse exemplo? Vê-se por meio dele que a substância que parece passiva reage, torna-se também ativa; e que a primeira substância passa, então, a figurar como passiva. Eis que, portanto, a reflexão da causa no efeito implica também, ao mesmo tempo, a reflexão do efeito na causa – uma espécie de via de mão dupla. Tem-se, assim, a segunda forma da relação causal: eis que “a causalidade passou, com isso, para a relação de ação recíproca” (Hegel, 1995, p. 284). E aqui vale citar um longo trecho do próprio Hegel. Antes disso, porém, é  preciso compreender a expressão “progressão infinita” aí empregada. Com esse termo, ele quer se referir ao círculo fechado das causas para os efeitos e dos efeitos para as causas que se nota, por exemplo, num sistema orgânico ou num sistema social. Eis,  pois, o que ele diz: “A ação recíproca é a relação de causalidade posta em seu desenvolvimento completo e é também a essa relação que a reflexão costuma recorrer quando se lhe mostra, como satisfatória, a consideração das coisas sob o ponto de vista da causalidade, por motivo da progressão infinita anteriormente mencionada. Assim, por exemplo, quando se trata de estudos históricos, discute-se primeiro a questão de ‘se o caráter e os costumes de um povo são a causa de suas constituição e de suas leis, ou se, ao contrário, são seus efeitos’. Depois se avança até compreender a ambos – caráter e costume de um lado, constituição e leis de outro – sob o ponto de vista da ação recíproca, de sorte que a causa, na mesma relação em que é causa, é ao mesmo tempo efeito; e o efeito, na mesma relação que é efeito, é ao mesmo tempo causa.” (Hegel, 1995, p. 286). Havendo chegado à categoria de ação recíproca, torna-se possível passar a discutir os paradoxos referidos na “introdução”, os quais, como lá se havia informado, aparecem na compreensão dos sistemas dinâmicos não-lineares, mais especificamente, do chamado “caos determinista”. Causalidade em sistemas caóticos

 Na matemática, chamam-se de caóticos os sistemas dinâmicos cujas trajetórias são reguladas por atratores ditos estranhos. Tais atratores são assim chamados porque não são claramente identificáveis como os atratores pontuais e cíclicos finitos que caracterizam os sistemas bem ordenados. Ao invés, o termo designa uma região do

8 espaço de fase em que as trajetórias circulam de forma inesperada para um observador  científico que as contempla na tela de um computador. Quando são representadas por  seqüências de pontos, mesmo estando rigorosamente determinadas a partir das condições iniciais e dos parâmetros, afiguram-se como indeterminadas. Essas trajetórias são estritamente reguladas por lógicas deterministas (por exemplo, equações diferenciais ou a diferenças finitas), mas elas não têm um comportamento que pode ser  dito previsível. Pois, dependem de maneira hipersensível das condições iniciais, sejam quais forem elas. Se uma segunda trajetória é gerada a partir de uma pequena alteração,  por menor que esta o seja, da condição inicial de uma primeira, ela vai se afastar mais e mais da trajetória dessa primeira, até um ponto em que as duas passam a parecer  totalmente incongruentes entre si. Os sistemas matemáticos enquanto tais são ideais e, nessas condições, sempre se pode supor que uma inteligência laplaciana opera com eles de forma perfeita. Frente a um dado sistema dinâmico, por mais complicado que este o seja, essa inteligência mostra-se sempre capaz de determinar o correto ponto de partida, assim como o exato  percurso de qualquer trajetória em particular. Um paradoxo surge aqui, no entanto,  porque, ao se imaginar a existência de uma inteligência perfeita, assume-se implicitamente que ela computa o que não pode ser computado. Pois, depois de Gödel e Turing ficou demonstrado que há limites insuperáveis à computação. Em conseqüência, é preciso baixar, também aqui, os olhos do céu da idealização em direção a terra da computação real. E, para fazê-lo, é preciso examinar sistemas materiais em que o comportamento caótico se manifesta fisicamente. Aqui se trabalha com uma variação do  bilhar de Sinai (assim chamado em homenagem ao matemático russo Yakov G. Sinai) (Ruelle, 1993, p. 57-62). Imagine-se uma espécie de mesa de bilhar que está posicionada num plano inclinado suave, mas suficiente, para que as bolas corram sozinhas da parte mais alta  para a parte mais baixa, devido à ação da gravidade. Essa mesa é plana, mas não é vazia como as mesas usuais de bilhar, pois contém em seu espaço delimitado pelas bordas uma coleção bem grande de obstáculos convexos (pinos). As bolas entram na mesa por  meio de uma caneleta de largura e comprimento adequados, situada na parte mais alta da mesa. Quando se põem bolas no ponto inicial da caneleta, esta corre, entra na mesa e, depois de bater em diversos pinos, chega à borda da mesa situada na parte inferior do  plano inclinado. Quando se observa o que acontece com sucessivas bolas postas na  parte superior da caneleta, vê-se que elas chegam a pontos diferentes dessa borda inferior, permanecendo aí, então, estacionadas. As bolas caem, mas o seu ponto de caída varia e não pode ser previsto de antemão. Ora, isto que é observado reflete, desde logo, duas características do movimento das bolas antecipada pela teoria dos sistemas dinâmicos: a) há certamente  pequenas diferenças nas condições iniciais de partida de uma bola para outra; b) a reflexão das bolas nos obstáculos convexos amplia as divergências inicialmente existentes em suas trajetórias. Como as trajetórias das bolas que aí correm divergem, a mesa de bilhar em consideração figura como um exemplo de sistema caótico real. Ora, o  próprio modo de funcionamento desse sistema revelado pelo experimento acima relatado suscita conjecturas paradoxais. Como no percurso seguido pelas bolas atua uma infinidade de pequenas causas e como estas se encontram entrelaçadas, contribuindo  para o resultado final, isto não rebaixa a própria noção de causalidade na esfera da ciência? Como a freqüência com que as bolas caem em segmentos determinados da  borda inferior parece aleatória, seria possível pensar que o curso seguido por elas estaria ainda regido por leis deterministas?

9 Segundo Sève, ao se procurar compreender, com base no entendimento, os experimentos levados a efeito no bilhar de Sinai – notoriamente uma máquina simples, mas muito especial – aparecem dois paradoxos: o paradoxo da interação e o paradoxo do indeterminismo (Sève, 2005, p. 59-69), os quais abalam a crença não só na analiticidade das relações causais, mas também na pertinência teórica da própria causalidade. Essa máquina, ainda que especial, funciona como um despertador que acorda o pensamento para certas características gerais da causalidade complexa. Paradoxos da causalidade

É preciso retomar aqui, pois, o princípio de causalidade. Como se viu anteriormente, segundo o raciocínio mecânico, a cada causa corresponde um efeito, ou seja, se uma dada causa aparece, ela é invariavelmente seguida de seu efeito. Ademais, esse requisito é usualmente acompanhado pelo postulado que afirma a  proporcionalidade entre cada causa e o seu efeito (o qual, diferentemente do princípio de univocidade aludido, não se apresenta como exigência lógica, mas metodológica). Dito de modo mais sintético, a causalidade é normalmente apreendida como determinação unilinear. E esses supostos se situam na base da formulação de leis, as quais consistem na identificação de determinadas relações de causa e efeito relevantes que operam nos  processos reais; para tanto, como se sabe, faz-se sempre abstração de uma infinidade de  pequenas causas que também aí atuam, mas são pouco importantes. Ora, um dos resultados mais espetaculares da teoria da dinâmica não-linear pura e aplicada vem a ser  a descoberta dos sistemas caóticos, em que pequenas causas geram efeitos significativos. E essa constatação obriga a pensar, em geral, que as causas pequenas também podem ser relevantes – ou melhor, altamente relevantes na produção de certos efeitos. Se este é o caso, o esforço de discriminação do raciocínio mecânico tradicional não fica incólume. Pois, em princípio, “é preciso ter em conta absolutamente tudo; influência alguma, por mínima que seja, pode ser negligenciada a priori” (apud   Sève, 1995, p. 60). Mais do que isso, se as pequenas causas podem ser relevantes na produção de certos efeitos importantes não se pode mais tomar por certo o caráter unilinear e a analiticidade da causalidade que vigora no mundo real. O primeiro, porque a  proporcionalidade entre causa e efeito não vale aí em geral, nem aproximadamente; mas também porque a univocidade entre uma e outro torna-se bem problemática. O segundo,  porque não se pode confiar sempre na possibilidade de isolar as causas que atuam nos  processos reais, já que são inumeráveis e se encontram profundamente emaranhadas entre si mesmas. Os processos não-lineares em geral envolvem circuitos de retroalimentação de várias ordens, sejam eles negativos ou positivos, os quais contribuem para tornar a realidade intrincada e para desacreditar a adequação da concepção usual de causalidade. Havendo aceitado que pequenas causas podem gerar grandes efeitos, também se torna necessário acolher a idéia de que todo efeito, mesmo sendo diminuto e pouco importante, pode ter um conjunto muito grande de causas. Este é, justamente, o caso do  biliar de Sinai, pois, o resultado final do movimento das bolas aí depende de uma quantidade imensa de pequenos fatores, os quais atuam em seu percurso. Quando há muitas ou mesmo uma multidão de causas, ocorre uma negação do princípio da causalidade unilinear, o que, para o entendimento, se afigura como um colapso. É assim que ele passa a por em questão, erroneamente, a própria categoria de causalidade: “a

10 noção de causa” – afirma Ruelle – “apresenta-se nesse ponto de uma forma tão diluída que perde toda a sua significação” ( apud  Sève, 1995, p. 61). Ora, é isto o que gera paradoxo da interação complexa, o qual não se dissolve  por meio de distinções apropriadas: o nexo causal, contraditando a univocidade, figura como plurívoco. Como conservar a causalidade, aceitando a complexidade do mundo e se pondo em questão, ao mesmo tempo, a simplificação analítica da ciência moderna? Ora, isto exige um esforço lógico para ultrapassar as dicotomias do entendimento: em particular, aqui, aquela estabelecida entre causa e efeito, assim como aquela entre simplicidade e complexidade na determinação dos processos naturais e sociais. Reclama, pois,  propriamente, que se passe a pensar os processos reais como dinâmicas de interação altamente complexas em que as causas são, ao mesmo tempo, efeitos e os efeitos, ao mesmo tempo, causas. E isto só pode ser feito aceitando a lógica da ação recíproca tal como foi formulada por Hegel. As causalidades descobertas pelo entendimento, nessa  perspectiva, figuram como abstrações razoáveis em muitas circunstâncias, mas não dão conta adequadamente – ao contrário – da complexidade do mundo real. Como enfrentar, agora, o paradoxo do indeterminismo. Como se sabe, o mecanicismo fornece o paradigma em que se baseia o determinismo, pois ele suscita a crença de que os estados futuros de um sistema são dedutíveis do conhecimento do estado presente desse sistema, assim como das leis que regem o seu movimento. Ora, o  biliar de Sinai mostra que um sistema mecânico é capaz de comportamento imprevisível, de tal modo que o movimento das bolas parece conter elementos de indeterminação. E esse paradoxo configura-se já no nome matemático do processo dinâmico aí materializado, pois este é designado, como foi visto, pelo termo “caos determinístico”. Sabendo que por “caos” se entende normalmente a ausência de ordem, vê-se logo que essa designação é um oximoro: ela faz pensar que a desordem é consistente com a ordem. A contradição, porém, é insuportável para o entendimento. Uma forma de superá-la nesse caso consiste em apelar à metafísica muitas vezes consagrada na compreensão da matemática. Esta, em sua perfeição lógica, apreende a verdade oculta na realidade que se mostra imperfeita. Nessa perspectiva, lendo o ideal no real, a contradição entre ordem e desordem acima apontada desaparece. A ordem é afirmada como verdadeira realidade e a desordem é tida como aparente. O fenômeno em consideração – por exemplo, a queda das bolas no bilhar de Sinai – parece imprevisível  porque o observador não conhece com exatidão todas as condições que afetam suas trajetórias. O acaso observado no comportamento das bolas torna-se aparente, passando a figurar, então, como produto da fraqueza cognitiva do observador científico. Ora, isto dá suporte a uma idéia subjetiva de complexidade como aquilo que é difícil de entender   porque exige muitíssima minúcia. Outra forma de superar o paradoxo acima indicado vem a ser admitir de partida o caráter intrinsecamente aleatório dos sistemas dinâmicos não-lineares reais. Nesse caso, as trajetórias das bolas no biliar de Sinai são percebidas como manifestações de um processo estocástico que opera na dimensão microscópica do sistema. Agora, ao contrário do caso anterior, a contradição é afastada porque o determinismo é despedido da ciência como se fosse, em última análise, simplesmente falso. Se ele parece valer no nível macroscópico de funcionamento de certos sistemas, isto é uma ilusão que aí surge devido à sobreposição e ao cancelamento mútuo de muitas pequenas causas aleatórias. Ora, por sua vez, isto funda outra idéia de complexidade, agora objetivista, segundo a qual a própria matéria está constituída por flutuações microscópicas inerentemente aleatórias.

11 Partiu-se de um paradoxo e se caiu numa antinomia: cada um dos raciocínios acima parece verdadeiro em seus próprios termos, notando-se, entretanto, que estão em conflito entre si. Segundo Sève, cada uma dessas teses não vem a ser apenas refutada  por sua oposta, mas elas se refutam a si mesmas. A tese determinista se contradita a si mesma, pois propõe uma tarefa – o conhecimento minucioso e perfeito das causas e de seus efeitos – impossível de ser realizada. E o faz porque postula metafisicamente a existência de um conhecimento perfeito atribuível, supostamente, a alguma divindade. A tese não-determinista depende de uma ontologia do que se encontra oculto; postula, assim, uma verdade primeira que não pode ser verificada e que não está confirmada minimamente, em suas conseqüências, pela história de sucesso da mecânica no campo da ciência e da tecnologia. Pondo essas duas teses em confronto, vê-se logo que se está diante de obras do entendimento que, segundo a sua própria norma, separa e opõe determinação e indeterminação causal como se fossem noções estranhas uma à outra. E, como se viu no curso da argumentação precedente, ao tentar expulsar a contradição do discurso científico, ele cai em contradição. É preciso, segundo Sève, encontrar uma relação entre causalidade e determinismo que seja compatível com a indeterminação e a imprevisibilidade de certos fenômenos. Nessa busca, descobre-se que é preciso acolher a contradição (dialética)  para não cair em contradição (formal). Descobre-se, em particular, que a inteligibilidade de certos mecanismos, como o  bilhar de Sinai, depende do acolhimento de uma compreensão de complexidade que remonta a Hegel: segundo esse autor, a infinidade dinâmica e combinatória das relações e das interações entre as coisas produz um mundo em constante renovação, sujeito a transformações irreversíveis, em que as determinações e as indeterminações causais estão presentes como momentos de todos os processos.  Nesse mundo, necessidade e contingência não se apresentam como pólos contraditórios que se excluem, mas como unidade de contrários. Nos processos que ocorrem nesse mundo, a necessidade se manifesta por meio de nexos causais que regem os fenômenos. A ciência então, como dimensão da práxis, cuida de apresentar esses nexos objetivos como leis. Como essas leis não operam em isolamento de outros nexos causais, elas se configuram como tendenciais. Ademais, nenhum processo do mundo ocorre sem que seja afetado por contingências, as quais se originam precisamente – não de uma aleatoriedade intrínseca do real – mas da própria complexidade combinatória, a qual não se oculta sob os fenômenos, mas, ao contrário, neles transparece, sendo então apreendida segundo a lógica da reflexão – não como fundamento primeiro. E assim se chega nessa nota de aula a uma conclusão: a complexidade solicita a dialética para não ficar em dívida com a razão. Ela, porém, não deveio para fechar as questões postas em discussão, mas para plantar uma semente que poderá vingar em futuras investigações. O esclarecimento da questão da complexidade nas ciências naturais e sociais é ainda incipiente e controverso.

12 Referências

Bunge, Mario – Causality and modern science. New Brunswick: Transaction Publisher, 2008 (4th edition). Hegel, Georg W. F. –  Enciclopédia das ciências filosóficas; I – A ciência da lógica. São Paulo: Edições Loyola, 1995. Houlgate, Stephen – Substance, causality and the question of method in Hegel’s Science of Logic. In: The reception of Kant’s Critical Philosophy – Fichte, Schelling &  Hegel. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. Reale, Giovanni –  Aristóteles – História da Filosofia Grega e Romana. São Paulo: Edições Loyola, 2007, vol. IV. Ruelle, David –  Acaso e caos. São Paulo: Editora da UNESP, 1993. Sève, Lucien – De quelle culture lógico-phisophique la pensée du non-linéaire a-t-elle  besoin ? In :  Émergence, complexité et dialectique – Sur les systèmes dynamiques non-linéaires. Paris : Odile Jacob, 2005.

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