Cauquelin, Anne - Frequentar Os Incorporais

January 15, 2017 | Author: Tristao da Silva | Category: N/A
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FREQÜEN os INcoRP CONTRIBUIÇÃO A UMA TEORIA DA ARTE CONTEMPORÂNEA

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propõe um série de respostas tomando por objeto a arte contemporânea e suas modalidades, como a desmaterialização, o vazio, o in temporal, o conceitual, o conte,..::tual, o virtual, a interface etc., ate o ciberesp ,0, e abordando a não pelas reli iões orienta is do vazio, do silêncio, da sombr- (o beat :::( 11 ou o sqvare :::en, c (Imo foram chamadas nos Es Lriido I as pu algo q COTlh( m c '(Ir a d stói s co P er tC surpr n :i I t • Ia romen s ssa quan l Matrn mente as se aJu nifest I o

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OrJTEMPORÂNEA

o original desta obra foi publicado em francês com o título Fréquenter lesincorporeIs

suMÁRIo

© 2006, Presses Universitaires de France © 2008, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição.

Produção editorial Eliane deAbreu Santoro Preparação Huendel Viana Revisão DinarteZorzanelli da Silva MarianaEchalar Produção gráfica Demétrio Zanin Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, Sp, Brasil)

Cauquelin, Anne Freqüentar os incorporais: contribuição a uma teoria da arte contemporânea I Anne Cauquelin; tradução Marcos Marcionilo.São Paulo: Martins, 2008. - (Coleção Todas as Artes) Título original: Préquentcr Ics incorporeIs: contribution à une théoric de 1'art contemporain. ISBN 978-85-99102-74-9 1. Arte - Filosofia 2. Arte - Teoria 3. Arte contemporânea 4. Arte moderna - Século 20 I. Título

08-05757

PREFÁCIO

9

Nós freqüentamos os incorporais Motivos e expectativas Buscas

10 14 16

Como fazer?

17

CDD-701

índices para catálogo sistemático: 1. Arte contemporânea: Teoria 701 2. Arte contemporânea: Filosofia 701

Todos os direitos desta edição para o Brasilreservados à Martins Editora Livraria Ltda. Rua Pro!Laerte Ramosde Carvalho, 163 01325-030 SãoPaulo SP Brasil Tel. (11) 3116.0000 Fax (11) 3115.1072 [email protected] www.martinseditora.com.br

PRIMEIRA PARTE

OS INCORPORAIS DOS ESTÓICOS O uno-todo Lugares dos incorporais O vazio Os dois tudo Como o incorporai salva a diferença

19 23 28 29 30 32

O incorporai e o vazio no âmbito da física O lugar é tributário do vazio incorporai

37

O incorporai no âmbito da lógica O incorpora] no âmbito da ética

39 47

Indiferença e preferíveis

33

48

SEGUNDA PARTE

OS INCORPORAIS NA ARTE CONTEMPORÂNEA.......

53

A arte desmaterializada

61

Capítulo do vazio e do lugar

64

The Big Nothing

64

Formas do vazio 1: o buraco

66

Do deslocamento como obra

70

Vazio, lugar e sítio specific

73

Formas do vazio 2: o imaterial sob o signo do branco O zeroforme como matéria-prima

Formas do vazio 3: a retirada ou o deslocamento

76 84 85

Capítulo do tempo e do exprimível: a arte imaterializada

89

Da intemporalidade do tempo Tempo incorporai e acontecimento Dificuldades: o destino, a repetição Do exprimível

89 93 97 103

O exprimível-linguagem

104

O conceitual

109

O exp rimível-extensão

112

Uma opção para a aura

113

O contextual

119

Expressão e exprimível ................................................ 121 TERCEIRA PARTE

OS INCORPORAIS NO CIBERESPAÇO Um vazio teórico Uma tentativa de estabelecimento: os imateriais Um conjunto fragmentável

127 131 136 141

O inseparável Formas do invisível Primeiras recensões Capítulo do tempo, do lugar e do vazio O tempo Nova configuração do tempo Incorporeidade do tempo

143 145 148 152 152 154 156

O lugar 158 A perspectiva d igital .................................................... 160 162 O vazio Capítulo do exprimível e do virtu al: a interatividade .... 166 Co-autor ou figurante 172 174 A ilusão da partilha ..

O espaço do virtual segundo o exprimível Uma gramática de links:a interface Poética da interface Uma poética ampliada O virtual como arte Revisitar a ficção O elo "artista" A arte do virtual como região da arte

178 182 183 185 187 188 191 194

PROPOSIÇÃO FINAL

PENSAR SEGUNDO OS INCORPORAIS

197

Modelos e miniaturas de mundo O motor

200 202

A distância O momento estóico A indiferença, o impreferível

205 207 208

O momento estóico na artecontemporânea

211

PREFÁCIO

o

que olha o João Batista de Ticiano na direção esquerda do quadro, com um ar simultaneamente perplexo e calmo? Para onde se dirige o olhar do João Batista de Leonardo, enquanto seu dedo aponta, atrás de seu ombro, para uma paisagem brumosa de rochedos e colinas? Todos olham obliquamente, levemente atravessado, ao longe, não se sabe para onde, ao passo que, em Giorgione, a mulher que amamenta e o soldado montando guarda olham o vazio, um fosso que os deixa congelados, sem emoção . Os pastores da Arcádia meio que nos dão as costas, o olhar de viés, o dedo sobre uma inscrição indecifrável - não se sabe quem é "ego" e a Arcádia é um país mítico -, a estela - ou a tumba - está fechada, confinada. O grupo atento a sua decifração parece evocar perfeitamente o momento delicado em que o sentido, prestes a se dar, vacila, para finalmente se esvair e escapar definitivamente. Mas ali, à beira da estela, inclinados para diante, não o sabemos ainda ; achamos, co-

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ANNE CAUQUELIN

mo eles, que o selo vai ceder. E, também como eles, não sabemos a língua e, como eles, balbuciamos desvalidamente. Nós freqüentamos os incorporais Freqüentamos os incorporais, na maior parte do tempo, sem o saber. Quando tento me lembrar de um momento de existên cia, de um fragmento de temp o vivido, misturamse nessa reminiscência lugares, pessoas, temp o que passou e tem po que é, falas trocad as: um tecido frágil, que tend e a se desfazer se for auscultado de muito perto e cuja consistência decorre exatamente da fluidez. O que se depreend e dessa exploração é um a atm osfera, um a aparência, um invólucro de odores, de sabores e, aqui e ali, alguns elementos distintos, dotados de um a form a mais nítida . Peço às crianças para não se afastarem: "Não vão muito longe". Essa recomendação não quer dizer estritamente nada. Muito longe de quê? E o que é esse "muito" que não é quantificado, e não é quantificável, diríamos, visto que nenhuma medida que pudesse serv ir de referência foi explicitada? Não obstante, a advertência é compreendida, não segundo as palavras em si, átomos no meio de um invólucro de sentidos, mas segundo esse invólucro que "exprime" muito mais que as palavras. As crianças sabem o que significa "muito longe", tanto quanto sabem perfeitamente que devem não ficar muito perto. Elas não levam em conta as palavras em si, simples indicações em torno das quais se trama a significação. Na recordação de um encontro, dá-se o mesmo: formas - um rosto, um gesto, uma conversa, o pedaço do jardim onde o

I'I~ E. Mas é que se trata, nesses dois autor es, da ressurgên cia ou da persistência de uma das característ icas mais renitentes no habitue do historiador ou do estético: a característica da originalidade, da unicidade, da primeira vez inovadora carac teriza ndo a obra de arte. Um trabalho artístico que 22. Paul Arde nn e, Un art coniextuel (Paris, Flammarion. 2004), pp. 201ss.

FREQÜENTAR O S INCORPORAIS

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repete ou imita é con siderado falso ou malfeito. É bem verdad e que é muito difícil não fazer referên cia à definição tradicional de obra qu ando come ntamos as obras contemporâneas, mesm o que, por outro lado, bem saibamos que são justa mente ess as características as que são postas em dúvida ou claramente torp edeadas pelos artistas dos dias de hoje. Reexposição, falsificação, plágio são as man ifestações artísticas atuais de incorporalidade do temp o. O mesmo se pode diz er das repetições ou das redupl icações, ou aind a da famosa reprodutíbílídade benjaminiana, que nunca se cessa de comentar nem de estigmatiza r>. Aparecer de man eira repetida, insistente, para acabar aniquilando-se na própria repetição, é um dos traços do tempo intemporal apreendido por reprodutibilidade por arti stas como Roman Opalka ou Om Kawara. Os números que se sucedem nas telas de Op alka dão ritm o a uma vida cujos conteúdos todo s desapareceram, deixando lugar, não a pegada s que sejam ainda a sombra de um a realidade que teria tido lugar no tempo, mas simplesmente a signos que caem, um depois do outro, no vazio íncorporal». O signo faz sina l indi ferentemente para o ant es e o dep ois; o dia passado e o dia por vir são indi stintos, só o movimento que leva a inscri ção (para a direita) constitui uma orientação ritual.

23. Mais adia nte, surg irá a quest ão, junt o com o exprimível, da reprod utibilídade e da allra, apreendi das segundo o incorporal , 24. Não é indiferen te que Husserl fale de "recaída no vazio", de ret enções que se tornaram "imperceptíveis".

102

ANNE CAUQUELIN

Os escritores de diá rios íntimos conhecem bem essa vertigem do tempo que os mantém em alerta, fazendo de sua vida os signos de uma intemporalidade radical.

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objeto preservando a ambigüidade entre o corpo (é o corpo que, ao se esvanecer, const itui signo) e o incorp oraI do vazio e do tempo.

Com menor obstinação e sem ter realmente essa int enção consciente, eles perse gu em a mesma imaterializa ção dos

Do exprimível

conteúdos de sua vida cotidiana, por acreditarem poder pres ervá-los na memória com as mesma s técnicas rituais dos artistas>. Tanto o rito como a repetição mostram a fragilidade do tempo que essas dua s operações têm a missão de manter em sua vacuidade. Esvaz iado de todo objeto de mem ória, o ritu al gira no vazio, e sua persistência só faz aument ar o movimento pendular - o deslocamento - que já constatamos com o lugar e com o vazio; aqui, é o tempo que um gesto, um signo repetido, seg ura à beira do vazio ond e ele cai e de onde se reergue incessantemente. O efeito (o signo inscrito) se mantém só, sem que ha ja necessidade de ir buscar causas ou prolongamentos: o temp o não é causa, mu ito meno s propósito. Ele é, propriamente dizendo, "nada". Então, não se trata de mostrar a presença do invisível, tornando visível o invisível, mas de assinalar a intemp oralidade do tempo com o auxílio de signos visíveis, levados ao limite do apagamento. Desse mod o, as obras buscam seu própr io encaminhamento para o imaterial e buscam abandonar o regime do

25. Cf. Ann e Cauq uelin, L'exposition de sai: du journal intime aux webcams (Paris. Eschel, 2DD4).

Essa concep ção do temp o incorpora I como submetido ao sign o para apar ecer e assumir corpo nos leva diretamente à teoria do exprimível, ao lekton. Uma submissão dessas à aparê ncia faz de todo acontecimento temp oral um "caso" entre todos os casos possíveis de existência. Todo acontecimento qu e deixa um signo part icipou da natureza atemp oral/temporal do tempo: ele a exprimiu, ou, pa ra ser mais precisa, ele o exprim e no momento em que aparece. Entend o que ele exprime, simultanea mente, a inexistência do temp o e sua breve ocupação moment ân ea que lhe confere existência. Em outras pal avras, o tempo é "expri mível", não mais que isso. Ele permanece no indefinido intemporal e incorporaI até o miniacontecimento que o faz sair de sua indife rença e, ao mesmo tempo, exprime-o apaga ndo-se imed iatamente depois. Desse modo, o temp o e o exprimível estã o ligados, assim como esta vam o lugar e o vazio. A mesma vacilação, a mesma passagem do vazio ao lugar, pensada em termos de tempo, e a mesma rep et ição dess e movimento que vale como "natureza" das coisas. Como é que esse movimento é levado em cont a e explora do na art e contemporânea e em que ele manifesta a potência do incor poraI?

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ANNE CAUQUELIN

Uma interpretação habitual do term o "exprimível" chega a fazer dele um sinônimo de "lingua gem", ou seja, de "palavras". Trata-se de uma interpretação laxista, que os próprios Ant igos introduziram, tanto que o term o lekton leva a asso ciar a si lagos. Mas, se se tratar mesmo da região do lagos, da região do sentido, não se tratará, portanto, de palavras. Com efeito, as palavras são corpos, não incorporais, e o meio de onde elas nascem, de ond e vêm à luz e que vêm preencher é o espaço do exprimível, um espaço de possibilidade para as palavras encontrarem um lugar e serem expressas; mas é tamb ém e simultaneamente um espaço de possibilidade vazia, que não é necessário preencher. Por assim dizer, o exprim ível é um espaço de proposições; proposições de dizer, proposições de exprim ir, prop osições de vir a ser corpos. Tais proposições podem permanecer sem resposta, assim como também podem ser tomadas literalmente. Há, entre essas du as int erpretações do termo "exprimível" - aquela que faz o pe so do exprimíve l incid ir sobre as palavras, ou sobr e a linguagem considerada como seqü ên cia de pal avras ligadas por uma gramática lógica, e a opçã o que con siste em ass inalar ao exprimível um espaço de po ssibilidades, uma ár ea de exten são para o se ntido - , uma divergência cujos efeitos podem ser vistos na arte conte mporânea.

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pintura para bu scar outros supor tes - , está vinculada de modo mu ito íntimo à lingu agem, e isso de uma maneira muit o concreta: o título, formado por uma seqüência de palavra s, indica o tema rep resentado, ao passo que a assinatura - que é uma palavra - serve de referên cia ao aficionado ou ao historiador, assim como a data - que pode ser inscrita com todas as letras. A narração, que é solicitada para explicitar o assunto pintado, serve-lhe de pano de fundo, de uma espécie de subtexto. É impossível ver A fuga para o Egito, de Poussin, sem conhecer o episódio do Novo Testamento que narr a o acontecimento, o mesmo valendo para todas as cenas religiosas. Desvinculado da narração, o quadro suscita um enigma, como A tempestade, de Giorgione, do qual tem os 28 int erpretações e o mesmo tanto de perguntas>. Os comentá rios tent am ligar a narração ao que é rep resentado, e os críticos visa m à boa aprese ntação da ima gem com relação ao texto, a sua credibilida de. A linguagem, seja ela narração, texto sacro ou poesia, envolve e até mesmo cerca estreitamente as obras como o lugar onde elas adquirem sentido. "Leia a história e o quad ro, a fim de saber se cada coisa é aprop riada ao tema ", escreve Poussin em uma carta a Cha ntelou" , Já evocamo s su fici ent emente o ut pictura poesis, em todas as suas reversões possíveis (quem imita quem? Não há vínculo reversível?), para que

o EXPRIMÍVEL-LINGUAGEM A pintura, que foi desde o Renasciment o o lugar da s experimentações artísticas - antes que elas desertassem da

26. Cf. Sa lvato re Se ttis, l.i nuenti on d'un tableau: La Tem p ête, de Giorgione (Pa ris, Édil ion s de Minuit, 1'187). 27. Nicolas Pou ssin . Lettres et propos sI/r l'art (Pa ris, Herrnann, 1964); an a lisa do por Lou is Mari n em Suolime POIIS S;II (Paris, Éditions du Seuil, 19'1~), pp . 11 ~ 3 4 .

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ANN E CAUQU ELIN

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haja necessidade de voltar ao assunto: o fato é que a lin -

da do espectador, que é encarado pela palavra gravada, ego?

guagem está lá, com sua carga de interpretações diversas:

Não será esse espectador (vocês, eu, agora), que está na si-

sua exprimibilidade.

tuação dos pastores, tentando decifrar a frase inscrita, que

Mas, enquanto título e assinatura, narração e poesia

ressoa sob as frondes dos carvalhos e para os quais esse ego

permanecem fisicamente exteriores à obra pintada, outros

é um irmão? Ou bem interpretando esse "ei" que introduz o

vínculos, dessa vez internos, desempenham um papel que

verso como um "até" (até mesmo no túmulo, ego está na Ar-

não se pode negligenciar: a linguagem, sob a forma de pa-

c ádia), pensando então na promessa de um acordo elegíaco

lavras ou de simples letras, é introduzida na materialidade

entre a pintura e a morte nesse país mítico, ou utópico, da

da pintura, em sua massa, e isso abertamente ou de ma-

Arcádia? O que equivale a dizer em parte alguma, com o to-

neira oculta>. Aqui, a linguagem deixa de ser um auxílio

do - ego, a morte, a pintura e o pintor - aniquilando-se com

para compreender o assunto representado, para se tornar

graça em uma paisagem serena, alheio a todo pathos? O mesmo pode ser dito dos dois auto-retratos de

um desafio para a própria representação. Louis Marin perseguiu durante muito tempo, e sutil-

Poussin, nos quais a assinatura - o nome, com suas qua-

mente, essa contradição que habita a pintura e anula sua

lificações - é redundante quando comparada à represen-

picturalidade por meio da própria pintura, pintando palavras nela. Citemos Poussin: "ei in Arcadia ego.. .", palavras

tação dos in strumentos de sua profissão - lápis, livro em que se pode ler o título, De lumineet colore, e telas viradas,

gravadas em um túmulo - ou em uma estela -, enquanto

não pintadas, onde estão escritas as palavras-efígie: Nícolaí

são interrogados os pastores e os comentadores (os pastores

Poussini andelyensís píctorís.. . Como se o pintor assinasse

da Arcádia). Esses termos que permanecem suspensos indi-

enquanto auto-retrato o vazio de sua pintura, seu próprio

cam ao espectador pistas divergentes, a ponto de perturbar o comentário de Panofsky e de obrigá-lo a se corrigir duas

aniquilamento no traço deixado sobre o quadro" . Porque as palavras inscritas na pintura estão ali para

vezes antes de chegar a uma leitura satisfatória. Recusando,

denunciá-la: o sentido deve ser buscado noutro lugar, di-

de início, o superficial "e eu também vivi na Arc ádia" (o que

zem elas, em uma no man's land onde as negações se suce-

não interessa, na verdade, a ninguém), ele propõe: "A morte

dem vertiginosamente. Isso não é um cachimbo. A pintura

está até mesmo na Arc ádia", Mas e esse ego gravado no tú-

mente. Mas ela diz a verdade quando diz que mente. De

mulo? Trata-se do pintor, da pintura ou da morte? Ou ain-

todo modo, é bom não confiar muito nela . 29. Cf. Lou is Marin, op. cil. Cf. tamb ém Lou is Marin, Détruire la peinture

28. Cf. M ichel Butor, Les mots dans la peinture (Pari s, Flarnmarion, 1%9 ).

(Paris, Galiléc, 1977).

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ANNE CAUQUELIN

Contudo, o paradoxo das palavras escondidas na pintura nã o é percebido pelo público como uma contradição: é algo normal ao qual quase não se dá atenção. É preciso esperar sinais mai s fortes - por exemplo, as tela s de [aspers Jone s - para que tomemos con sciência de que a pintura é algo difer ente do que est á pintado, de que ela é tecida de linguagem. É quando vemos o que até então não tínhamos visto, mas que, contudo, existia: as palavras tecidas na matéria pictórica. Nós nos ap ercebemos de que uma parte da pintura escapa ao pintado, que até mesmo em sua materialidade se encontra aquilo que aqu i chamamos o exprimível (isto é, o incorp oraI) so b a forma de um espaço pa ra as palavras: espaço de palavras que põ em em risco o que elas nomeiam, fazend o desse modo vacilar todo o aparato pre ciso, concreto, do material a ser pintad o no es paço vago, indeterminad o, ind efinid o, do interp retável. Tudo aqui se passa como se as obras dos artistas mais próximos de nós no tempo trouxessem à luz, diante de um grande público, os implícitos de um a disciplin a antiga, que só os sábios críticos tivess em até então desvendado. Um mesm o fenômeno se passa com a ar te cha mada "conceitual". É certo qu e não tivemos de esperar a arte conceitual para saber que a arte pictórica é cosa mentale ao mesmo temp o que uma superfície pintada e de cores as sociad as. Mas não resta dúvida de que é a visão das obras conceituais que nos revela mais adiante a parte do conceito nos empre endi mentos da ar te. Com efeito, cosa mentale é um term o tão vago que po ~emos encaixar nele, um por vez ou até mesmo simultanea -

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mente, o espírito, a alma, o sentimento, a memória ou a inteligência. Só quando esclar ecemo s e definimos o termo mentale como aquilo que deriva, na compreensão das coisas, de seu s aspectos proposiciona is é que a art e conceitua l se dá a conhecer como tal.

o CONCEITUAL Destruindo-se umas à outra, palavras e pintura se mantêm em um enfrentamento irresoluto, mas justame nte por isso comparáveis em sua presença e força. Com a arte conceitual, os dois antagonis tas mudam, ao mesmo temp o, de funç ão e de conteúdo. Suas relações são perturbadas, a ponto de se poder supor que um dos termos foi aniquilado pelo outro. Não se trat a mais de semâ ntica, não se trata mai s de interpreta r as palavra s, ou até mesmo o relato, incluídas na textu ra do que é pintado, mas de oper ações intelectuais distintas de toda opticidade . De certa forma, o visível é excluído da antiga dupla legível/visível, sem que, contudo, o legível fique sozinho: uma du pla se recon stitui em torn o da linguagem, compreendendo dessa vez o legível-visível em uma ún ica entidade - porque sempre há palavras a ser lidas, isto é, a ser vistas - e o gramatical. Entenda-se por "gramática" o conjunto de ligações dispon íveis para con struir proposições. Trata-se de um a gramá tica ampliada, ou lógica, a gra mática dos encadea ment os válidos . Tudo está vincu lado. Como é que tal ló-

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g íca, livre do peso das palavras, portanto, dos corpos, da própria materialidade do sentido das palavras, pode conduzir à obra de arte? Não rest a dúvida de que é um artista como [oseph Kossuth que nos ensina o que significa tal gênero de atividad e artística. Um quadro, uma peça, uma obra só são tais, afirma ele, porque levam em si a definiç ão com a qual se ide ntificam. Eles são o que dizem ser : definição como identificação de si con sigo mesmo. Ao retomar a proposição estóica: "Se está claro, então é dia", Kossuth diz (e mostra): "Se há uma cadeira, então se trata de uma cadei ra"; onde uma cadeira é uma cadeira é uma cade ira, por tanto. Não se sai disso: a proposição gramatical constrói o objeto satisfazendo à proposição que o enuncia como objeto. Geralmente se diz de Kossuth (ele mesm o chegou a dizer de si mesm o) qu e ele se inspira va em Wittgens tein. Contudo, parece que muitas das caracter ísticas de sua concepção de arte es tariam especialmente vinculadas ao lekton estóico, ao expr imível incorporai tal qual apre sen tado por Zen ão. É necessário compreender que as palavras e as palavra s de objetos, os títulos ou as palavras tecidas no que é pintado permanecem com o corpos. Sua interpretação, se u sentido, mesmo múltiplo, dep ende ainda mu ito intimamente do qu e é apresentado à visão para ter uma vida aut ônoma. É claro que eles dão testemunho de uma extensão do objet o, de sua propensão a passar dos limi tes físicos da obra indo bu scar o se ntido fora, reenviando

l'I{ \'(.,lÜENTAR os IN CORPO RAIS

111

i1 história ou até me sm o às gra ndes narrativas, instalan-

do um a nã o-pintura na pintura, um a não -obra na própria obra, ma s eles convocam , justamente por isso, saberes, fantasias, até mesm o sentimentos que não são puramente "ar tísticos". Ap enas as sentenças tautológicas, que se resolvem em si mesmas, como "x. é uma cadeira é uma cadeira", e que não levam nem aos sen timentos nem às emoções, nem a subjetivida de superior algu ma, assim como certamente não levam a nenhuma sens ibilidade pict órica, nem qu e ela fosse imaterial, podem ter pretensão ao conceitu al. E ao con ceitual em sua nudez porque, em vez de se ocultar, à maneira de um esboço que se põe de lado quando vem o dia (u ma vez acabada a obra), a elaboração conceitua l, a forma lização de uma prop osição ar tística, é exibida como tot alid ade , sem que haja necessidade de realização. A atividade propo sicional se define como a capacidad e de se cons titu ir em obra por si me sm a; é, como diz Kossuth, "uma ver ificação da ar te por si mesm a". Ou seja, um a tautologia. Não obstante, o fato de ter de mostrar essa elabora ção proposicional como um objeto, afixando -o em um lugar, enfraquece bastante, chega até mesm o a des naturar seu caráter de incorpo reida de. É como se, apesa r de toda s as atenuações conferidas a sua materialidade, a atividade artística parec esse ter de supor ta r decididamente um resto de corporalidade - parecesse não poder escap ar dele.

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ANNE CAUQUELIN

o EXPRIMÍVEL-EXTENSÃO

Nesse sen tido, a exposição se torna um fen ôm eno primordial, o próprio acontecimento da existência da obra, de

Com o conceitual e as "palavras na pintura", continuamos no regime do objeto, do corpo. A partir de agora, tentarei propor uma versão completamente distinta. Reportando -me ao es paço que cerca o mundo e qu e não existe, a menos que seja preenchido por um corpo, ou ao tempo intemporal que só vem a ser tem po com a condição de ser ocupado durante um momento, eu gostaria de examina r o invólucro do corpo da obra como um espaço possível pa ra uma extensão, ela mesma possível, mas não necess ariamente ligad a à obra. Ao permanecer no campo do sentido, pod eríamos então d izer qu e se trata de um campo de interpretações; tud o o que cerca a obra de um halo de com entários - d izeres, escritos, ilust rações ou imagens, publicidades de quaisquer tipos, da ord em da comunicação e de seus diversos canais - participa do esp aço em qu e a obra se estende tão longe quanto pos sa, ou se esforça para ta nto ». Em suma, a obra tenta ocupa r um esp aço para fazer dele um lugar, ela tenta pre encher esse espaço, até então vazio e incorporaI, para ali se exprimir. Nessa tentativa, a periferia da obra, tud o aquilo qu e a cerca, adqu ire um novo estatuto: é aquilo qu e leva a carga do sentido e permite à obra tomar corpo, mesmo sendo invi sível, incor poraI.

su a instalação - breve, mas rep et ível- no incorporaI invisível do tempo e do vazio. A proposição de extensão fezse segu ir por uma realização: a obra se expõe no espaço de possibilid ade ofe recido. E essa pos sibilidade se renova durante um tempo indefinido. U MA

orcxo

PARA A AURA

Desse mod o, é fora dela, de sua circunscrição est rita, qu e a obra adquire sua existência: ela se põe do lado de fora, posic iona-se. Pod emos imaginar qu e qu anto mais ela se rep etir, mais freqü entem ente se mostrará e mais terá "corpo". Sendo assim, expo sição e reexposição, repetição - até mesm o imitação - atuam na á rea de extensão de uma presença: de um presente que se sabe ilimitado. Qu e se passa, então, com a fam osa aura da obra de a rte, ca ra aos aficion ad os de obras que se emoc iona m com a un icidade de uma obra rar a? A aura, no se ntido qu e geralmente lhe dam os, é () halo lum inoso que en volve um corpo, exp rime seu pod er, afir}

ma sua existência no seio do mundo e se oferece à contemplação. Tomada no sentido de ut1na presen ça inefável, aura

30. O esforço pa ra perseverar em seu ser sp inozista passa por essa exten são do campo de existê ncia. Cf. Spinoza, Ética, livro rn, proposição VI : "Cada coisa, seg undo sua potência de se r, esforça-se para perseverar em se u ser"; e, mais ad iante, na proposição VII I: "O esforço pelo qual toda coisa se esforça para perseverar em seu ser não envolve nenhum tempo finito, ma s um tem po indefinido". Spinoza, CElIl'res completes (trad. Rolland Caillois, MadeIeine Fra ncês & Robe rt Misra hi, Par is, Ga llima rd, 1954), p. 421.

é outra palavra para charisma e sb ap roxima de auréola , al-

go de m ístico e, port anto, de inexplicável, de irra ciona l uma efu são de luz, ga rantia de uma integridade pura e de autenticida de.

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ANNE CAUQUELIN

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Contudo, mesmo que a aura, a presença, permaneça

explicitamente, como é o caso de Jean Clair) tanto por críti-

para mu itos como um traço característico da obra, na "era de

cos e aficionados -colecionadores como por críticos de arte.

sua reprodução técnica", essa autenticidade e essa integrida-

Essa opção, algumas vezes, desponta mesmo em meio a tex-

de parecem ter sido varridas e, com elas, a interpretação carism ática da aura. O declínio da aura existe, é o que assegura Benjamin em seu texto c élebre», e esse enunciado assume

tos resolutamente modernistas. Então, o declínio da aura é interpretado como um fenômeno ne gativo, como uma perda

valor de ve rdade indi scutível, com as conseqüências que dele

da arte, bem como da sociedade em seu todos, A outra opção - que leva em conta o texto de Benja-

podem os tirar para o comentário e a prática da arte. Não obs ta nte, essa afirmação sofre o destino daqui-

irreparável, decorrente da tecnici zação cad a vez mai s efetiva

min, e não un icamente o trecho de proposição relativo ao

lo que é muito con hecido: ela é interpretada a contra-senso

declín io da aur a - faz desse declíni o um fenô meno positi-

ou, mais exa tamente, no sentido convencionado por aque -

vo, porque ele libera a obra de seu s víncu los cultuais e per-

les que dela se apoderam. É de sse mod o que o declínio da aura serve de escudo contra a arte tecnológica (ou simples-

mit e sua disseminação entre um públic o popular. O valor de exposição ocupa o lugar do valor cultuaI, e a função ar-

mente mecanizada, tecnicizada), ao passo que, de outro la-

tístic a passa para segundo plano: "A partir do momento

do, ele ser ve de constatação de base pa ra uma arte liberada da unicidad e, da originalidade e da raridade de uma pre -

em que a autenticidade não é mais aplicá vel à produção artística, tod a a função da arte se en contra alt erada. Em vez

sença e desencadeia a virada de uma arte para si, não mui -

de repo usa r so bre o ritual, ela passa a se fundar so bre ou -

to distanciad a de uma arte pela arte (que Walter Benjamin trata de "teologia negativa"), ru mo a um a arte para os ou -

tra prática : o pol ítico">.

tros, voltada para a comunicação. A primeira opção se declara em favor de uma arte tradi-

- completam ente elitista - que afasta va o público da obra

cionalmente apegada à pess oa, no caso, ao gên io do artista e ao caráter sagrado da obra. Trata -se de uma interpretação ri-

O declín io da aura é também a abolição da distância sac ra; ele favorece a apro ximaç ão da arte e do cotidiano das pessoas. A utopia política de um a arte de massas faz

da hoje im plicita me nte apoiada (e, algumas vezes, bastante

o restante, e, a seg uir, vem a desilus ão. A con statação desse declín io deriva de outra constataç ão, a da mudança das modal idad es de produção da obra, ou seja, da s técnicas de

31. Walter Benjamin, L'CEuvre d'art à l' êre de sa reproduction iechnique (t rad , Maurice de Gandillac, Raine r Rach litz & Pierr e Rusch, Pari s, Gallimard, 2000), toma m.

32. Essa o pção é re prese ntad a po r, entre outros, [acqu es Ellu l em su a criti ca contra a técn ica, Eempire du non-sens (Par is, f' UF, 1980). 33. Walt er Benja min, L'CEuv rc d'art, op . cit., p. 282.

tual, qu e confe re ao rito um valor de culto e qu e vemos ain-

ANNE CAUQ UELIN

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sua valorização, que repousam sobre a produção do origi nal, sua exposiçã o e disseminação. Como é que podemos compreender isso hoje? E, por nossa vez, como interpretar que haja simultaneamente uma aura, ou seja, uma presença em pessoa da obra, com seu peso de carisma, e, na ponta oposta, sua repetição quase indefinidamente reprodutível? Um vapor, um véu irradiante para um a concepção da arte tradi cion al, que ali encontra sua espiritualidade, seu imaterialismo e, de outro lado, condiç ões completamente técnicas de fabricação, "que emancipam a obra do ritual e lhe fornecem ocasiões ma is numerosas de se expor">? Com a primeira opção, a da interpretação da aura como halo místico, invisível, vem o-nos diante das tentativas art ísticas de alcançar o imaterial e de manifest ar o invisível: é justamente uma aura a sens ibilidade pictórica imaterial de Klein . Um apo sento vazio é sens ibilizado pela presença em pessoa do arti sta entre suas paredes. É essa presença que perceberã o, ou qu e se pensa qu e perceberão, os visitantes da galeria vazia. A sensibilida de pictór ica imaterial de Klein pode ser traduzida em termos de aura (versão que é, aliás, a sustentada por Denys Riout). Nesse caso, é a export ação para o exterior de uma qualidade inerente (e invisível) da obra, sua qualidade est ética, que é avaliada. Tamb ém podemos defender, para mati za r a rad icalidade dessa posição e fazer justiça à mudança da s práticas de produção, que essa qualidade está pre sente tod a 34. Ibidem, p. 284.

FREQÜENTAR OS INCORPORAIS

.~

117

vez que o esp ectad or se enc ontra diante da obra, que ela é no vamente percebida a cada vez, apesar da repetição, mecân ica ou nã o, e ape sar de sua exposição externa e de sua reexposição; desse modo, en contram-se ligadas a aura em presença e a aura em repetição, mas ainda estamos mais no dispositivo tradicional, só que ligeiramente perturbado. É um comp romi sso árduo, que torna o entendimento e, port anto, a discussão difíceis. Um trabalho - texto e ima gem - de [ulien Audebert e Sandr ine Bernard joga ironicamente com essas confusões e ques tiona um resultado no mín imo paradoxal: Para Walter Benjamin, a obra de arte na época de sua reprodução mecanizada é a reescrita integral desse famoso texto em uma única página. Se esse trabalho questiona a reprodutibilidade, empurrando os me ios de impressão para seus limites (tanto a fotogra vura quanto a utilização de papel fotográfico), ele tamb ém transforma o texto em "signo". Sem a limitação da paginação, o texto é proposto em sua forma "orgânica", respeitando pontuações e pará grafos. A estrutura da escrita é, des de então, visível, como se tivesse sido "desdobrada" [... ]. Os caracteres, da ordem de algun s mícron s, situam -se no limite da visibilidade, e a leitur a exige um a "prótese" do olhar. Essa prática remete evide ntemente à tradição de micrografia, comum na Idade Média, utilizada para a retranscrição de várias passage ns da Bíblia."

35. .

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ANNE CAUQUELIN

Temos então, juntos em u ma mesma obra, o anúncio do decl ín io da aura e a próp ria obra a reivindicar a origina lidade - portanto, sua aura -, ao me smo tempo em que ela reprodu z mecan icamente (e aqui, até me smo digit almente) o texto que anu ncia seu declínio e promove a rep rodução. À so mbra desse de clín io da aura, a situação da obra é, com efeito, completa me nte clara. Contudo, outra int erpretaç ão da aur a con flui para o incor pora i segu ndo outro regime. Com efeito, a aura bem que pod er ia con sistir na superfície de possibilidad e que cerca, qu e env olve a obr a, assim como o espaço de sentido envolve tod a fala. A fala é corporal - as palavras são realm ente corpos, segundo Zen ã0 36 - ; ora lmente enunciad a ou transcrita em um sistema de signos como a escrita alfab ética , ela subs iste como corpo . Mas ela se banha em um mundo que é incorporai, o mundo da significação ou das sig nificações, um mundo sem limites, sem orientação, infinito. O mesmo va le para a obra: trata-se de um cor po estri ta me nte definido, circunscrito, cercado por um invó lucro : u m espaço vazio que pod e ass umir sentido e que podemos tr aduzir como aura , só que aqu i a aura não tem nada de sag rado, nad a de ritual: trata -se sim plesmente da ma n ifestação de uma lei física qu e diz respeito a tod os os corpos e, em primei ro lugar, ao corpo do mundo e a seu invólucro. É um es paço de exposição e de d isseminação possíveis. Desse mod o, o declíni o da aura espiritual coincide com o estabelecime nto de outra espécie de aur a: destacad a do 36. Dióge nes Laércio, Vies, doetrines et sentences des phiJosoph es illustres (trad. Robert G rena ille, Paris, Ga rnier/Flam mari on, 1965), livro VII, p. 67.

FREQ üE NTAR O S INCORPORAIS

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conteúdo da obra, e da próp ria obra enquanto objeto, en qu an to corpo, trata-se de u ma aura da qu al se pode dizer que é "comunicacion al?», Com esse espaço, tão próxim o da supe rfície qu anto do ar e qu e Benjamin anunciou magistralmente, nó s entramos em um universo que podem os ch ama r "sem objeto", o espaço dos fluxos e dos cana is de transmi ssão de info rmações : o mundo da s red es. Aqui, nós freqüentamos diutu rnamente os incor porais e aquilo que até então os esco ndia de nós: os cor pos - as obras e sua aura sagrada - se dissolvem bruscamente no vapor atmos férico. Periferia ou contexto: ess as são as novas palavras de orde m da atividade a rtística - qu e exclue m o cor po circu ns crito, delimitado, da obra, para prom over o espaço qu e ela habita, suas cercan ias . Como qu alifica r e defin ir esse movimen to de passagem dos corpos pa ra sua habitação, essa transmissão da aura em prese nça a um a area em extens ão c disseminação?

O CON TEXTUAL A expressão artecontextual, avançada por Paul Ard enne», poderia ser mu ito conveniente para o tran sporte da obra para seu exterior, quand o a arte aba ndona sua pretensão de produ37. Mesm o assi m, não se tra ta de um a "a rte comun icaciona l", como a des crevem Mario Cos ta ou Frcd Fores t, mas simpl esmente de um a atividade a rt ís tica cuja ma ior parte se passa no exte rior, nas relações ma ntidas em torno da obra, em sum a, na periferi a. Para a a rte com unicaciona l propria mente d ita, é pre ciso sair da técni ca, ou da mecani zação, e tomar o rumo da tecn ologia. 38. Paul Arde nne, op. cit.

120

ANNE CAUQUELIN

zir objetos específicos, definidos por critérios internos que os tornam consistentes; em suma, quando ela renuncia a produzir corpos e se recompõe no ar ambiente segundo os diversos elementos com os qua is a atividade artística se confronta. Mes-

FREQüENTAROS INCORPORAIS

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te "alogr áfica", ou ai nda "transcendente". Existi r fora de si, assumir corpo fora de seu próprio corpo, exportar- se, equivale a se ex-por. Com efeito, a não-consistência interna da

no à realidade? Que essa arte contextua l busca se introduzir

obra exige o exte rior pa ra tom ar corpo . A arte contextual é uma arte qu e se expõe, qu e se transporta, qu e se situa fora, em uma palavra , que se exprime.

na realidade pa ra subvertê-la ou transformá-la? Ser incidente t'personalidade incidente", como esclarece [ohn Latham»)

E XPRESSÃO E EXPRIMÍVEL

mo assim, é preciso dizer, com Arden ne, que se trata de retor-

também é ser acidente, acontecimento entre out ros incident es ou aconteciment os. Mas também equ ivale a dizer que a rea-

Contrariamente à idéia comumente aceita de que a ex-

lidade não consiste, que ela não pod e ser um suporte estável, que ela é propriam ente um composto instável de elementos

pressão man ifesta a interioridade de um sujeito, seu ponto de vista sobre o mundo a partir de sua exper iência pessoal e

no eixo dos corpos que são suas constelações efêmeras. Qu em

segundo os meios de que ele dispõe - e, desse modo, a obra exprimiria o "ser" profundo do artista - , uma tradi ção filo-

qu iser pôr sob um mesmo anteparo a preocupação com a realidade, ou seja, a grande diversidade de atividades que ocupam

sófica refletid a por Giorg io Colli assinala à expressão o campo das interpretações, o da multiplicidad e dos possíveis". A

o campo artístico da arte contemporânea, arrisca-se a dizer

partir desse ponto, trata -se de deixar a psicologia dos ind i-

nada do tudo e, sobretudo, a esquecer aquilo que o termo pro-

víduos, se us mod os de recepção dos objetos visíveis ou le-

missor de contextualidade encerra. Com efeito, con text ua l é a ativ idade viva da arte de

gíveis, assim como o campo das emoções - sentimentos ou

hoje, não porque ela se aprox ima ria de uma rea lidade da qual n ão se sabe gra nde coisa (exceto em qu e ela nã o "con -

indi ferente. A expressão, termo cuja form ação parece ind icar qu e algo foi ou est á para ser espremido par a dali ser extraí-

siste"), mas porque ela assume tod o o se u sentido fora daquilo em que ela consiste. Poderíamos dizer, então, que o

da sua qu intessên cia, é um conceito insatisfatório, para não

em mut ações contínuas, tant o no eixo espaciotemporal quanto

paixõ es -, da vontade e da intenção, para abarcar um espaço

contextual envolve o que Gérard Gen ette ch am ava de ar -

diz er decepcionante, a partir do momento em qu e se busca circunscrevê-lo um pouco melhor. Sua própria expres-

39. [oh n Lath arn, Event struc!ure: approach to a basic contmdiction (Calga ry, Scartissue, 1981), apud Paul Arde nne, op. cit., p. 20.

40. Em l'h ilosoph ie de l'expre ssion (trad. Marie-José Tramuta, Paris, Éditions de l' Éclat, 1988). Giorgio Colli defin e a expressã o como uma hipótese, em relação à repr ese ntação, que é um dado.

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ANNE CAUQU ELIN

sividade o desvia do campo - o das hipót eses, das idéias, das proposições - onde ele deve - segundo alguns - desempenhar seu papel, opondo-se à representação. Essa própria oposição lhe causa prejuízo, na medida em que a oposição põe a expressão na mesma superfície de inscrição que sua rival e, então, a define negativam ente. Diríamos que a metáfora de objeto vinculado ao termo (o gesto de espremer o suco de uma fruta) faz a expressão deslizar incessantemente para o mimético, põe incessantemente a expressão na obrigação de "representar" o gesto que seu termo evoca. Ora, se seguirmos a pista do exprimível, do lekton estóico, como o fez Gilles Deleuz e«, a expressão é de natureza conjuntural, não substantiva. Nem substrato, nem suporte, de nenhum mod o qualificada, ela também não qu alifica uma ação, um gesto, um pen samento, nem se vincula a eles de modo algum; sendo assim, um objeto, uma obra, um pen samento não são mais ou menos expressivos que outros. Eles não possuem um caráter, mais ou menos marcado, de exprimibilidade. Só se diz que um pen samento é "expressivo" unicamente quando ele foi expresso; antes de ele ser expre sso, não se pode dizer que um pensamento é "exprimível", ele só o é na breve passagem do não-expresso ao expres so. Unicamente nesse instante, percebemos que aquilo que acaba de ser express o era exprimível e que o pensamento expresso é realmente uma expressão, mas uma expressão sem outro sujeito além de si mesma como

41. Gilles Deleu ze, Logique du sens (Pa ris, Éditio ns d e Min uit, 1969), especialme nte pp . 11-34 fedobr.: Lógica do sentido (São Paulo, Perspect iva, 2000)].

FREQ ÜENTAR OS INCORPO RAIS

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pensamento, e não a expressão de algo ou de algu ém que lhe seria exterior. Da mesma maneira, antes de ser ocu pado por um corpo, o vazio não é nem um lugar, nem um "exprimível". Ele só o é na ação de se tornar vazio. Vista desse modo, segundo o lekion estóico, a expressão de uma obra é sua extensão para fora de si mesma e não a expressão de seu autor querendo "significar algo". Contudo, essa interpretação da obra como exposição de si, se ela corresp onder parcialmente ao conceito de exprimível, apre senta paradoxalmente a falha de encerrar a obra no círculo restrito da arte pela arte: a obra se diz a si mesma e só se diz a si, enquanto faz sua definição depend er daquil o que a cerca. A vizinhança de um a obra é, ao mesm o tempo, aquilo que a exprim e e aquilo que a condena ao isolamento. É aqui que se vê o paradoxo no qual se fecham deliberadamente os artist as conceituai s. Se se qu iser manter a idéia de uma expressão como exterioridade, de uma exposição que se nega a si mesma e, desse modo, faz obra, sem dúvida, é preciso aban donar a idéia de obra tal qual era considerada até então e se inte ressar pelos meios que ela teria para ser apenas um a exterioridade: momento do "princípio extensão", isto é, do "princípio comunicação". Nesse princípi o, inscreve-se uma estética da comunicação, tal como a apresentam e defendem Mario Costa e Fred Forestv. Ao levar em con42. De Mario Costa, cf. especia lmente Le sublime iechnologiquc (Lausa nne, lderive, 1994) e seu últim o ensaio , Dimenticare farte (Nápoles, Fra nco An geli, 2005). De Fred Forest, cf. " L'esth étique de la com rnuni cation", RevlIe +0 (Bruxelas, n. 43, 1985) e seu último livro, Uceuore, systeme inoisibíe (Paris, L' Harrn att an, 2005). Nessas obras, é a ar te tra diciona l, com suas ca racterís ticas clássica s (obra

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ANNE CAUQUE LIN

ta a transformação tecnológica dos meios de comunicação, de seus modos de ação, os defensores dessa "nova estética" tentam domesticar a relação da arte com a sociedade, fazer dela o terreno, movediço, das trocas artísticas. As técnicas elétricas, eletrônicas, informáticas nos in-

troduziram a partir de então na sociedade da comunicação. Essas técnicas estão no centro das mudanças ocorridas na vida social de um século para cá, modificando nosso meio físico, mas também nossas representações mentais.Hoje, a eletricidade, a eletrônicae a informática fornecem aos artistas novos instrumentos de criação [...l. Freqüentemente, os suportes dessa estéticasão imateriais, sua substânciaderiva de materiais intangíveis que pertencem às tecnologias da informação. Informação cujos sinais elétricos riscam acima de nossas cabeças, no céu, configurações invisíveis, fulgurantes e mágicas." Trata-se justamente de uma estética "em que a noção de relação antecede o conceito de objeto, cuja linha de horizonte se situa além do visível, não fabrica objetos e não trabalha a partir das formas, mas tematiza o espaço-tempo?". Estamos precisamente no mundo da extensão; a obra se deslocou, ela se tornou troca, ligação. Apesar disso, se original, peça única, mercado de arte ), que é criticada. Mas o estabelecimento de uma estética de sub st ituição en fren ta dificuldades para se constituir. 43. Fred Foresj, Manifeste pour une esthétique de la communication (1984); texto disponível no site do autor: . 44. Mario Cos ta, Le sublime technologique, op. cito

FI, Contudo, é porque ele existe, mesmo em se tratando de uma existência alternada, que é possível o modo de existência dos objetos no espaço cibernético. Os objetos que transitam no ciberespaço são, com efeito, fugazes, evolutivos, instáveis. Trata-se de impulsos, mensagens em formação ou em vias de se decompor para se recompor. O vazio não lhes impõe nenhuma limitação, porque é sem forma, desprovido de corpo e incapaz de admitir algum grau no preenchimento. Sejam poucos ou muitos os objetos, isso não faz diferença. Não podemos dizer, por exemplo, que o espaço cibernético está meio vazio ou meio cheio, como dizemos de uma garrafa que está meio vazia e, ao mesmo tempo, meio cheia. Isso porque, no vazio infinito, sem alto nem baixo, nem horizontal- como é o caso do espaço da geometria -, nem vertical- como é o caso do espaço "vivido" do lugar, com suas raízes lançadas em profundidade -, é impossível introduzir medidas. Mesmo assim, quando falamos das infinitas possibilidades de conexões que se entrelaçam no seio desse espaço, é ao vazio infinito que ele faz referência. A incorporeidade do vazio torna possível a infinidade de ligações que ele acolhe. O vazio surge, então, não como uma perspectiva negativa (o nada ou o infinito como espaço onde se perder), mas 25. Não podemos falar de perspectiva nos estóicos, porque ela dá - a nós, agora - a imagem de uma direção rumo ao longínquo e ao desconhecido, dado que se trata de um tempo cíclicoque retoma sobre si mesmo, voltando sobre os próprios passos, renovando paradoxalmente o mesmo mundo, uma vez completado o "grande ano".

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ANNE CAUQUELIN

como condição de possibilidade para o apagamento de toda perspectiva. O vazio assume um papel positivo, porque permite renunciar à idéia de lugar tal qual a utilizamos habitualmente: lugares de lembranças enraizadas, da profundidade do tempo e das culturas, lugares indeslocáveis, aos quais estamos presos, territórios reivindicados como singulares e portadores de identidade. Se renunciamos a tal lugar, a tal ancoragem, essa renúncia leva então a redefinir o que é o tempo e a introduzir um tipo de infinito que não deve nada à extensão. No que diz respeito ao vazio, percebemos que os possíveis não lhe convêm: o mundo que ele dispõe é um mundo do infinito inteiramente presente a si mesmo, sem vetor. Com efeito, a perspectiva temporal que freqüentemente imaginamos faz o infinito surgir como uma interminável adição de momentos disjuntos. Ora, o espaço cibernético, que compreende o vazio como seu lugar natural, oferecenos outra versão do infinito, a de uma presença a si mesma. Os momentos do vazio não são adicionados nem adicionáveis em sucessão, mas estão simplesmente todos presentes ao mesmo tempo. É o modo de existência do vazio que permite essa apresentaçãoou presentificação. Pornão privilegiardireçãoalguma, por não impor nenhum vetor, por sua própria indiferença, o vazio deixa àquele que age no espaço cibernético o cuidado de introduzir um objeto ou - como é o caso mais freqüente um programa. Aqui não se tem nem a escolha entre possíveis que já estariam no espaço vazio - o que é contraditório em si -, nem o acaso de uma disponibilização de um entre

FREQÜENTAR

os INCORPORAIS

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os possíveis; apesar de a idéia de um acaso mestre do jogo ser muito tentadora, ela em nada corresponde à construção desse espaço: o vazio apresenta todas as direções ao mesmo tempo, isto é, nenhuma em particular, assim como não privilegia nenhuma delas, mesmo que elas sejam tomadas ao acaso! Não há nenhuma definição outra a acolher. Em outras palavras, trata-se de um exprimível, de um lekton. Desse modo, o vazio exemplifica o elo que une todos os incorporais entre si: sua indiferença, sua não-determinação, que os faz existir unicamente no instante em que eles tomam corpo, na ação de acolher um corpo. Por isso os possíveis não preexistem às escolhas que se possam fazer: eles se desenham apenas como o pano de fundo de uma ação em vias de se fazer, no momento exato em que a ação se realiza, como se, ao fazer um gesto, imaginássemos ou projetássemos, como num filme, os outros gestos que poderíamos ter feito. Sua sombra>. E a sombra, seja o que for que se faça dela, não é uma virtualidade, ela é projeção mental do não-advindo que circunda o ato com um halo. Ao encontrar um caminho, no momento de bifurcação, podemos pensar em todos os caminhos pelos quais não enveredamos. Essas projeções não são em número infinito; elas desaparecem tão logo o ato seja executado, porque são exprimíveis incorporais: sem consistência, sonhos evanescentes. Certamente, é difícil contornar o termo e a noção de "possíveis". Nossa vida cotidiana está revestida pelo verbo 26. Ken Goldberg serviu sombras aos internautas com seu Shadow Server em 1997.

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"poder" e suas declinações; com efeito, uma moral da escolha governa nossas atitudes na vida, e nós medimos nossas capacidades pelo metro do possível: temos de tentar tudo o que seja possível, o possível é o que devemos e podemos poder. Nada de semelhante há na concepção antiga do mundo e dos incorporais. O vazio subsiste vazio, ele persiste no vazio, e o infinito que o acompanha nã o é uma propriedade que lhe seria anexada enquanto atributo, mas um verbo: o vazio não finda de se infinitizar, furtando-se assim a toda determinação, mesmo que ela estivesse em germe nos possíveis. Capítulo do exprimível e do virtual: a interatividade Se estou juntando o exprimível e o virtual neste capítulo, é para entender como a interatividade - noção eminentemente computacional - pode se unir, simultaneamente, ao exprimível incorp oral e às artes do virtual. É sempre uma dificuldad e passar do regim e das noções ao das práticas, sobretudo quando os dois se prevalecem de uma noção comum e a interpretam, cada qual a sua maneira. A desconfiança se impõe, tanto ma is que o vocabulário comum usa e abusa do term o "virtual" assim como do termo "interatividade", O primeiro serve, nas conversas comuns, para designar tudo o que é fictício, imaginário, ou da ordem da ausência: desse modo, alguém que esteja aus ente a uma reunião pa ra a qual foi convidado é chamado de "virtualmente" presente. Em uma língua um pouc o mais precisa, "virtual" design a o que ainda não se realizou, ma s que bem pode-

FREQüENTAR OS INCORPORAIS

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ria ter se realizado; um livro está virtualmente concluído, um projeto também está, de momento, em estado ou na etapa virtual. Por fim, na linguagem dos internautas e da queles que teorizam as prátic as computaciona is, o termo "virtual" quase sempre sofre o contragolpe da utili zação comum, mesmo que designe mai s precis amente um modo de operação próprio da informática. Desse modo, "virtual" é, no mais das vezes , tomado como sin ônimo de "possível", formando então uma dupla com "realização" ou "atualização", que lhe são cont rár ios e carregam sempre a noção de au sência, de fictício, que parece vinculada a ele. Quanto à "ínteratividade", apesar de ser ela uma noção recente - ela tem a idade dos computadores e não carrega o peso de sucessivos usos em outros campos -, ela sofre, contudo, o contragolp e do termo "interação", que lhe é bem próximo e remete à conversação, ou à reciprocid ade de uma causa à qual Schopenhauer se referia dizendo qu e ela não passava de uma dupla causalidade sem propriedade particular, uma falsa boa id éia",

27. Esse tipo de dificuldade não é típico do conf ronto atual de dois uni versos. um, costum eiro, cotidiano, o universo do "vivido", e o outro, especializado, técnico, que requer outras comp etências . Emba raço semelhant e também acompanhava o emprego do exprimível (lekton) entre os es t óicos, Trata -se, sem dúvida , da mesma ques tão - a dis tinção do real e do fictício - que causa problema no nível da linguagem, refleti ndo a dificuldade de distinguir os dois regimes, e a realida de de sua proximidade . O lekton era, para os estóicos, o senti do incorporai de palavras que eram corporais - a mais comum das soluções - ou aind a uma espécie de vazio que per mitia ao sentido instalar -se (momen tanea mente), uma espécie de medi ll m - o que os alqu imistas chamariam, na seqüência, de "veículo"? O segundo se ntido do termo parece se conjuga r melhor com a teoria dos incorpor ais, e sobretudo com um entre eles, o vazio; cont udo, os textos não esclarecem se havia uma preferência de terminada por um ou outro .

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ANNE CAUQ UELIN

A conversação é a relação reivindicada pela estética da comunicação como seu protótipo. Presença real dos interlocutores, rapidez da troca e valor do vínculo estabelecido, posteriormente negociado e sempre aberto, caracterizam a conversação ("entre pessoas de boa fé", acrescentaria Aristóteles). Mas há interatividade nisso? Não, porque o que falta é o espaço de transação artificial do computador, que não pertence aos indivíduos em presença e subverte a noção de sujeito, tão valorizada pelos que conversam. Do mesmo modo, "interação" não é suficiente o bastante para caracterizar a operação que a interatividade supõe. A interação é algo próprio de todo indivíduo vivo que reage a seu meio e age em retorno sobre ele. Aqui também faz falta a especificidade computacional que tornaria essa interação interativa: uma mediação digital tecnicamente programada. Desse modo, se a relação é justamente um traço comum à conversação, à interação e à interatividade, é um traço genérico demais para poder servir de guia à compreensão dos links singulares que se dão no espaço cibernético. A conversação e a interação são, efetivamente, desses tipos de imagem que, para facilitar a abordagem de uma noção, dão dela um sucedâneo de tal modo simplificado que acabam por representar obstáculo a sua apreensão. Precisamos, então, contornar, ao mesmo tempo, a imagem da conversação e a da interação para entender o que pode ser a interatividade. Assim como, a todo momento, precisamos contornar a imagem da perspectiva. Comecemos, então, por situar a interatividade ali onde ela adquire sentido, no espaço cibernético. O espaço ci-

FREQÜENTAR OS INCORP ORAIS

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bernético é um espaço de ligações, atravessado de fluxos que transportam mensagens, palavras, imagens e sons com a rapidez cujo nome em linguagem computacional é "tempo real ". Ligações instantâneas, nunca estáveis, evoluindo sem parar, projetadas em uma espécie de vazio, do qual elas seriam, de algum modo, a textura. O que é preciso compreender, então, é que "virtual" não é um adjetivo que viria se acrescentar a um objeto como a dizer, por exemplo, "um corpo virtual" -, mas um substantivo: o virtual, fazendo referência a um sistema. Desse modo, "realidade virtual", que parece ser uma contradição em termos se não se tomar a precaução de definir virtual como um sistema, torna-se perfeitamente compreensível quando designamos com isso um objeto produzido no e pelo sistema virtual. A realidade virtual é o tipo de realidade produzida pelo sistema digital. Se voltarmos ao vazio incorporal, fica certo, então, que as mensagens que transitam no espaço que compreendemos como "vazio" não são propriamente virtuais: é o modo de transmissão próprio a esse espaço e que o constitui enquanto tal que é virtual. É verdade que a tendência ao realismo é particularmente renitente, é verdade que temos dificuldade em pensar a não ser por objetos e imagens de objetos e que, por isso, dificilmente pensamos que a realidade não é feita de objetos, mas das relações que os conectam e os produzem. Fazer o esforço de despojar os objetos percebidos de sua realidade para transpô-la ao espaço que os liga, essa é a tarefa reser-

170

ANNE CAUQU ELIN

vada àquele que freqüenta os incorporais, aos artistas da ci-

FREQüENTAR OS INCORPORAIS

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cess idade de um quadro bastante amplo, de um ambiente

berarte e, em certa medida, ao s internautas. Esforço m ais

que permita ao visitante se de slocar em diversas direções

sonhado que efetivamente realizado.. . Continuamos a dizer

e de slocar objetos. Ninguém imerge em um menu rolan-

comumente que os corpos, o do internauta ou o de seu ava-

te, nem em uma obra qualquer de ciberartista. Há neces-

tar, são corpos virtuais, que os museus apresentados na web

sidade da imagem de uma realidade natural, ou que tenha

são museus virtuais etc., ignorando com constância e deter-

su a aparência, como aquela que encontramo s nos oideogames: paisagem, a nim ais e, inclus ive, inacreditáveis dra-

minação que se trata de corpos apreendidos pelo virtual>. Mas se che garmos a concebe r que o virt ua l é um siste-

gões, monstros de tod os os tipos. Antes de tudo, tem -se ne -

m a ou caracteriza um sistema como produtor de conexões,

cessidade do ambiente 3-D. Se a impressão de mergulhar e

pod emos imaginar mais facilmente e, sobretudo, mais cor-

de ser engolido acompan ha as experiências dos visitantes,

retamente, a interatividade. Uma definição aproxim ada se-

ela deri va so bretudo da estranheza da visita, de sua raridade,

ria a seguinte: é cham ado interativo o trab alho efetuad o

talvez também do efeito "boião", típico de recipientes boju-

pa ra captar, formalizar essas relações, modificá-las, de sfru-

dos, que esses ambientes mani festam, por serem freqüente -

tá-las e lhes dar uma presença sensível. Em suma, nesse ca-

mente verdes e m arrons, muitas vezes glaucos. As metáforas

so, a interativid ad e revela as relações virtuais que ocupa m o

aquát icas invo cadas como exemplo das operações na rede

es paço cibernético e que não são perceptíveis se m um tra -

são, aliás, numerosas, ela s dom esticam o desconhecido, cor-

balho de formali zaç ão>.

relato da cor famili ar das féria s, exóticas ap en as o su ficien -

A interatividade, ou trabalho entre e sobre relações que

te para marcar a diferença. Desse modo, o termo "imersão"

são elas mesmas "entrevários", é portanto um trabalho de

evoca o batismo, a in iciação no novo mundo subaquá tico e

fu ndo. Ela se d ist ingue daquilo que, parad oxalmente, se

su rreal que é o cibermu ndo da interatividade .

poderia chamar de um trabalho de superfície: a imersão.

Considerar a imersão com o o elemento mais sign ifica-

"Imersão" designa a entrada de um visitante no es-

tivo e praticamente determinante do que é a interatividade

paço virtual que constitui uma obra interativa e a ação que

é um en 0 30, ainda mais porque, além desses aspectos pro-

ele pode reali zar nesse espaço. Em geral, a ime rsão tem ne 28. A "apreen são" é a noção - e a ação - esse ncial de toda operação empreendida no espaço ciberné tico. [ean-Lou is Boissier insiste nisso em todos os se us textos. 29. É assi m que [ean-Lou is Boissier a define em La relatlon comme forme: l'interactioiteen art (Genebra, Ma rnco, 2004).

30. Cont udo, trata-se de um erro com força de lei. Des se modo. Louise Passant (org.), Dictionnaire des arts médiatiques (Montre al, Presse s Universitaires du Qu ébec, 1997), remet e o termo "imersão" a "realidade virtual" e "realidade virtual" reme te a... "imersão". Tem-se, entã o, a seguinte definiçã o: "a KV [real idade virtual] é uma experiên cia de imersão na qual os usu ár ios usam capacetes de rea lidad e virtua l mu nidos de sensores de posição, vêem imagens etc.".

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ANNE CAUQUELlN

vocadores, a imersão traz cons igo dois efeitos perturbadores: primeiro, ela introduz no campo da prática a tem ível noção de co-autor; dep ois, ela restab elece a noção de perspectiva espaciotemporaI, mesmo tend o sido visto que o ciberespaço é desprovido de tal noção. Abor daremos esses dois exemplos na seqüência. C O-AUTOR OU FIGURANTE

A noção de co-autor transformou -se em um lugar- comum na arte contemporânea. No teat ro da arte contemporânea, espectador e expositor (gale rista, agente, curador) reclamam para si esse estatuto. Produzir, expor obras faz parte do trabalho de criação, portanto, merece o mesmo est atuto qu e o do artista expo sto e produzido. É claro que um esp aço de relações nece ssária s envolve a criação, ou, como o descreve muito bem [ érôme Clicens tein-', um dispositivo fora do qual nenhuma obra pod e nem ao men os ser con cebida. Paralelamente a essa reivindicação de estatuto por parte dos produtores, os artistas contemporâ ne os, já vimos isso, têm uma atitude de recuo, um gosto pelo an on imato, uma vontade de desap arecer, praticando com isso um a crítica interna do sistema da ar te e de seus atributos tais com o peça única, autor ún ico e or iginal. Temos, então, tod as as cond ições de um lado e de outro pa ra o em basamento da idéia de co-autor.

FREQüENTAR OS INCO RPO RAIS

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Mas esse será o caso da obra interativa, na qual o internauta imerge? Parece que não. Ao sus tentar a idéia de co-autor no caso de uma pe ça interativa, com eter-se-ia o mesm o erro de quando se comp ara a interatividade à con versação e a interação à interatividade . Claro que, nos dois casos, conversação ou interação, pod e- se defend er a idéia de que há co- aut or, porque os prot agoni st as reagem mu tuamen te e se encarrega m da relação, um por vez. Mas o fato de o internauta entrar no mundo qu e sua intervenção pode - ou não - transform ar não faz dele um co-autor, porque a obra é construída de modo a compreender essa entrada (e o efeito que ela pod e ter) como um elemento de seu dispositivo. Nesse sentido, o internauta se torna uma parte da criação continuada qu e con stitui a obra, que de algum modo aumenta com as contribuições que lhe são feitas. Olivier Aub er, para retomar esse exemplo, é, portanto, o verdad eiro autor do Génerateur potétique, mesm o que os pa rticipa ntes do jogo contribuam para rea lizar o estado mom en tân eo no qu al a obra se encontra no ins tante x. Contudo, como o esclar ece Maurice Ben ayoun, "d izer qu e os participantes são co-autores não é compreender o qu e é a obra. Trata-se de 'visitantes "', acresce nta ele. "A obra é o conjunto do dispositivo, incluindo a participação da s pessoas, as regras que determin am o processo de evolução [.. .] O lan ce do espectador co-autor é um a mist ificação pseudod emagógica lament ável.">

31. [ ér ôrne Glicenstein, "D ispos itif(s)", em Michela Marzano (org.), Dictio-

nnaire du corps (Par is, r UF, 2006).

32. Ent rev ista realizada em 25 de junho de 2004 por Anol ga Rodia noff.

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ANNE CAUQUELIN

Tendo eu mesma consentido, e várias vezes>, nessa mistificação "libertária", eu me dou perfeitamente conta, ao trabalhar com o espaço cibernético, de que ela é válida exclusivamente (e talvez ocorra aqui também uma espécie de mistificação) para as obras não-digitais. Desse modo, não há co-autor no espaço de liberdade que a obra interativa representa para a maioria. Visitantes, participantes, jogadores talvez. Mas é unicamente o autor que tece os fios onde os visitantes se enredam. A

ILUSÃO DA PARTILHA

Quanto à perspectiva aberta pela imersão no mundo criado por uma obra digital, ela é freqüentemente considerada como visão compreensiva de um horizonte, no seio da qual o visitante se inclui, se incorpora e, poderíamos dizer, interage. Imaginamos, então, que ao se deslocar, ao agir de uma ou de outra maneira, ele é causa dos acontecimentos que se produzem. Mais uma vez, mostra-se a ideologia da igualdade e da partilha da authorshíp. Talvez estejam fazendo falta aqui os esclarecimentos teológicos que os filósofos do século XVII (Malebranche, por exemplo) introduziam em suas reflexões sobre a causa primeira e as causas adjacentes, ou ocasionais... Na realidade, o programa do autor faz o papel de providência, ele tece o desígnio geral e as variações de que o visitante se serve ou não, a depender do caso. 33. Cf.• entre outros, os meus Petit traité d'art contemporain (2. ed., Paris, Éditions du Seuil, 1998) e Eart contemporain (6. ed., Paris, rUF, 2001).

FREQÜENTAR OS INCORPORAlS

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A imersão que se pretende compartilhadora ilude, e essa ilusão oculta a verdadeira natureza da relação do usuário com a obra. É desse modo que o horizonte proposto, o ambiente no qual se situa a ação empreendida pelo internauta, é semelhante à perspectiva espacial habitual que ele simula. A perspectiva espacial e o horizonte da expectativa temporal continuam sendo a imagem principal pela qual convocamos uma resposta, sempre pensada e sentida como remota, mesmo que ela seja instantaneamente entregue. Ao emprestar som e imagem à perspectiva espacial e temporal habitual valendo-se das imagens 3-D dos vídeogames, a perspectiva proposta nas peças interativas trava a compreensão de uma perspectiva digital, inteiramente situada na ação formal das relações virtuais. Ao se encontrar em um espaço que lhe parece natural, o visitante também assume de modo completamente natural seu modo de proceder habitual - por causalidades sucessivas. Ele pensa que um gesto de sua parte vai realmente causar o movimento de um objeto no espaço cibernético, como é o caso no espaço comum. Ao fazer isso, ele restitui uma perspectiva temporal e causal ali onde justamente isso não existe e deixa de lado a verdadeira natureza da obra interativa. Mas a ilusão está ali e parece que tudo é feito para desviar a atenção, provocar erros, disfarçar a natureza hierárquica, autoritária, do espaço cibernético. A representação da distância e da sucessão está ali para dar ao visitante a impressão de uma continuidade sem falha com seu mundo familiar: ele é sempre, acredita, o dono do jogo.

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AN N E CAUQUELIN

Um a das falh as de nosso sistema cu ltur al, legado muito antigo, é a de redu zir todas as coisas à visão e de não poder pen sar a abstração sem recur so a imagens. O próprio Descartes já not ava essa deficiência comum" , utilizando ele mesmo aquilo que condenava - o mesmo, aliás, que Platão fazia usando mitos. Pensar diretamente a relação enquanto tal, sem lhe acresce ntar a imagem dos objetos que ela conecta, não é algo de espont ân eo. Para tanto, é preciso aplicação, isto é, aprendizagem. Éverdade que adotar o ponto de vista impessoal do computador e do digital não é exatamente um empreendimento fácil: como representar mentalmente uma "perspectiva temporal" sem recorrer a uma visada? O que é uma perspe ctiva da qual o lugar está ausente?» É extremamente difícil abrir mão da metáfora do lugar, da distân cia e, paralelamente, da intenção ou do desejo: em um a palavra, de uma subjetividade trabalhada e formalizada por séculos de cultura européia. Para chegar a dispen sar esses costumes, precisam os fazer o desvio por sua crítica e nos lembrar bem de que nos sos sensedata estão longe de ser "dados". Precisam os pen sar, então, na percepção chamada "natural" como em um dispositivo extremamente construído e engenhoso, que formaliz a o mundo e seus objetos. Três dimensões no espaço isomorfo,

34. Desca rt es, Regulae ad directionem ingen íi (trad . Georges Ler oy, Pari s, Gallimard, 1952), regra XII. 35. São qu est ões das quais se ocupam, por exemplo, jean -Lou is Boissier e a livier Au ber em textos q ue estão em int erlocu ção: jea n-Lo uis Boiss ier, La relation commeforme, op. cit., pp . 26355; e O livier Aub er, " Ou gén érate ur poi étiqu e à la persp ective nu rn érique", op. cit.

FREQ ÜENTAR O S IN CORPORA IS

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horizonte reto e não curvo, distinção de volumes, distinção de plan os e de pan os de fund o, enquadramento, retificação das paralela s verticais, tud o isso se deve ao trabalh o dos arquitetos e dos matemático s, mas tamb ém do pensamento "reto", que analisa e compõe utilmente. Vemos, sentimos e experimentamos através dessas mediações e graças a elas. A percepção natural é, portanto, bem formada - se é que não se deveria dize r formatada , na lingu agem ciber -, mesmo se acredita mos que ela é natura!. E se nós nos lem brarm os disso, poderemos considerar os dispositivos eletrôn icos como formadores de percep ção de outro tip o>, eles nos dão a combinação de um mundo que não é mai s o do movimento local que per corremos etapa por etapa, em uma perspectiva dada. Eles nos dão um tempo encur tado e um lugar revisto pela simultan eidade. A diferença entre os dispositivos que formaram nossas percep ções habituais e nos pare cem naturais e os dispositivos ciberné ticos é que un s são tomados na consciência interior dos seres, como se fossem inatos e imediatos nos cérebros, e os outros estão no exterior e mostram com evidência, de maneira marcante, o que eles são e como funcionam . Eles nos parecem, portanto, estrangeiros, para não dizer estranhos. Contudo, o obstáculo que opõe o realismo à justa percepção do espaço virtual e do que ali se trama poderia ser le36. Assim como, no Renascime nto, a invenção da perspectiva leg ítima lite ralmente "inve ntou" a paisage m e form ou nossa maneira de percebera dis tância, a suce ssão de pla nos, o en quadramento, isto é, um a m aneira de ver que aind a hoje é a nossa.

Cf. Annc Ca uquclin, Eimxntion du paysage (4. cd ., Pa ris, I'UP, 200 2, col. Qu ad rige) IA inix nção da paisagem (trad . Marcos Marcion ilo, São Pau lo, Martins. 2007)).

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FREQüENTAR os INCO RPO RAIS

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vantado se se tentasse o desvio pela noção de exprimível tal

homem, vir, tem mais virtus do que qu alquer outro ser vivo

qual a encontramos nos estóicos e tal como tentei apresentá-la

- plantas ou anima is - , visto que ele partilha a raiz etimo-

aqui. Para tanto, é preciso abandonar todo um modo de pen-

lógica de seu nome com a virtude, isto é, a força interior. O recur so à etimologia, mesmo qu e poét ico, afirma, contudo,

samento que conecta a realidade à presença, as men sagens às palavras, o espaço e o tempo à visão e à perspectiva visual.

a opin ião em su a crença, mais do qu e explicita os seus fundamentos. Contudo, trata-se do argumento comumente in-

o espaço do virtual segundo o exprimível Vim os que o exprimível não é nem as palavras que pronunciamos, nem me smo a sign ificação que a elas se atribu i.

vocado e que estabelece qu e a natureza essencial das coisas precede sua existência. Ar gumento que o exist encialismo acreditava ter erradicado, ma s que, não obstante, retoma

entrar na classe dos incorporais, e as significações, mesm o

fôlego por meio da s novas tecnologias e esp ecificam ente por meio do virtual. Contudo, trata- se de um argumento, ou, melhor dizendo, crença, um pouc o m ágica" , Existi ria m

invisíveis e freqüentemente mutantes, afetam os corpos e são afetadas por eles. Ora, o incorporai não padece nem age

forças (ou potências) invisíveis, font es de movim entos que são sua expressão manifesta. Compartilhamento entre vi-

sobre os corpos. O exprimíve l, o lekton, é, portanto, uma es-

sível e in visível; a alma, ou força, ou virtude. Ao apro ximar

pécie de va zio e só sai desse vazio qu ando é expresso; em

o virtual dessa s potência s, che gamos mu ito rapid am ente a

outros termos, ele não preexiste a sua expres são.

fazer da tecnologia digital- pois é disso que se trata - um

A preexistência: eis a noção que serve de bas e às definições mais comuns do virtual. Ela é também o obstáculo

avatar da teologia ou do m ist icism o. As tribos de internau-

Porque as palavras, "carregadas de sentido", não podem

maior a sua compreensão. Com essa idéia de preexistência, imagina mo s o virtua l com o uma esp écie de reservatório pleno de possíveis ainda não atu alizad os qu e aguardaria, adormecido, qu e um acontecime nto o de spertasse, tirando-o de seu torpor e elegesse um entre os po ssíveis que ele cont ém . Trata- se de uma idéia ancorada na metafísica que ali-

tas glorificam uma força da qual nada se sabe, uma potência que permanece subterrâ nea, a virtude do virtual - por sinal, vir tude de qu e se zomba quando ela toma a form a de uma propriedade como a da "virtude dormitiva" de algu mas plantas e out ras fantasias a ristotélico- medievais. É desse modo que, pa radoxalmente, o instrumento mais racional, o mais calculado, o mais engenhosamente

menta essa imagem do virtua l: uma potência ou força (a

virtus lat ina) esta ria oculta nas profundezas da s coisas: plantas, animais, pedras, se res humanos. Daí decorre qu e o

37. Cf. Ph ilippe Q u éau, La ptanête des espriis (Paris, O dil e [aco b, 2(J(J1); e Alai n M ilon, La réaliténirtuelle:avec 011 sans corps? (Pa ris, Aut rernent, 2005).

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FREQÜ ENrAR os INCORPO RAIS

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piritualismo ampliado, ou seja, ao animismo... O mesmo

ta de um par. O virtual é tão vazio de oposição quanto de semelha nça, sem nenhuma afinidade nem contato com o

surpreendente paradoxo de quando vemos um pensamento bas eado na cultura do efêmero, da ficção, dos mundos para-

ferença, e diferenças, semelhanças, relações de quantida-

lelos, do nomadismo e do acaso, como o pensamento dos in-

des e de qualidades . Orientações mentais e físicas, um alto

ternautas, vincular-se a um a filosofia essencialista...

e um baixo, o superior e o inferior. Preferências. Uma for-

Mas se nós nos fiarmos no s incorporais físico s do s estóicos, evitaremos esses de svio s: com efeito, com o expri-

O virtual, por sua vez, é "a atualização furtiva na consulta,

disposto, leva, se não se tomar o devido cuidado, a um es-

mível, não se trata nem de alma, nem de força, nem de potência oculta . Sua única propriedade é poder acolher o

real. A realidade con siste, de sde o início, em distinção, di-

ma. O ind ividual. O concreto. Corpos, qu e sofrem e agem. na programação e na memorização na concepção, memorização do efêmero, dissolução das formas em suas reitera-

qu e elas sejam programadas como se fossem de antemão

ções e variações infinitas, pegada de um inatual, simulação, temporalidades múl tiplas e variáveis, inst áveis">.

"possíveis " nos quais o intérprete escolheria o melhor se-

Quanto à "realidade virtual" ("RV", para os iniciados),

sentido, logo, estar aberto a todas as interpretações. Não

gundo sua própria opin ião, como se estivesse no superme r-

casamento improvável de duas entidades contrárias, sua

cad o (impr essão que, às vezes, se tem na internet). Tamb ém nã o que o exprimível esteja carregado da realidade expres-

definição é um verda deiro quebra- cabeças, e ela só pod e ser con siderada de maneira mai s ou men os estável, pela

siva que advirá, nem qu e o virtual, nesse me smo esque-

med iação daquilo que a ela conduz: a interface.

ma, esteja carregado de uma realização quase instantânea. Essas duas imagens destinadas a fazer entender o qu e são

Com efeito, a cibe rlinguagem ba tizou com o interface o línk que une realidade e virtua lidade . O substantivo já

o exprimível ou o virtual são engodos. Eles repetem pela

deu até um verbo: "interfacia r". Que se quer di zer com in-

en ésima vez as mesmas divisões: para um, o exprim ível, a divisão se faria en tre fictício e rea l; para o segundo, acres-

de uma pen eira? O que é que interface acrescenta à idéia de

centar-se -ia a divi são entre natureza e artifício. O virtual

uma ponte entre duas entidades heterogêneas? O termo,

se ria fictício porque, ao mesmo tempo, conteria promessas

com seu prefi xo inter, remete muito naturalmente a intera-

terface e interfaciar? Trata-se de uma ponte, de uma porta,

ainda não realizadas e porque ele derivaria do ar tifício (subentendido: o que é n atural é real). Ora, o real nã o está em op osição com o virtual. Eles não têm por que se confrontar um com o outro. Não se tra-

38. O dile Blin, "I nt roduction la matiêrc numériqu e: la product ion et J'in ven tion des formes. Uno nouvelle csth étiq uc ", Solaris (Grupo Inte runi vcr sit ário de Pesquis a em Ciências da Docu men tação e da Inform ação, , n. 7, dez . 2000). à

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tividade. É, pois, com os instrumentos lógicos do sistema virtual que é preciso apreendê-lo, é nesse universo que ele é eficiente, que ele tem seu lugar e significa algo . Ao se fazer dele um substantivo comum, válido para tudo o que é da ordem da pas sagem, como é freqüente, arriscamo-nos a mascarar sua especificidade.

Uma gramática de links: a interface É necessário comp reender o tempo, o lugar, o vazi o e agora o virtual e o exprimível como ligados entre si, porque eles são, cada qual, condição para os outros. Desse modo, o exprimível não pode ser pensado exteriormente ao vazio, que permite a extensão. O virtual, se nos ativermos ao sentido que lhe é atribuído no universo cibernético, só pode existir em um espaço sem lugares, sem perspectiva e em um tempo abolido, como aquele que acabamos de descrever. Essa coerência pertence, de pleno dir eito, aos incorporais. Aquilo que os vincula entre si é um link abstrato, que a gramática traduz por um modo: a condição. Se cada qual é condição de possibilidade do outro, estamos em um sistema entrelaçado; ora, essas condições entrelaçada s não são da ordem da realidade, onde rein am a ocasião, a mudança, o movimento descontínuo. Ao constituírem sistema, elas passam a pertencer à ordem da necessidade, que as tolhe . Vincular os incorporais - submetidos ao regime do necessário - às realidades que vivemos passa então a parecer uma verdadeira aposta. É a invenção da interface que res-

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ponde a esse desafio». E isso, de diversas maneiras, em diferente s níveis, segundo diferentes planos. No campo da s artes midiáticas, geralmente definimos a interface como um instrumento - computacional ou material- que estabelece o contato entre o usuário e o computador ou entre dois ou vários computadores. É o instrumento de passagem, que favorece a tradução de um sistema para outro . Toda obra interativa utiliza interfaces, por exemplo, capacetes de visão, luvas, ou um traje completo para captar os movimentos de um corpo e traduzi-los para a máqu ina, que os processa e os retransmite, seja di retamente para os sensores corporais, seja para uma tela . A captura e a tradução são as etapas técnicas da interatividade, e a interface é um momento delicado disso, do qual depende o resultado: não apenas o resultado bruto (o fato de que isso funciona) , o que seria o primeiro grau da utilidade, mas também sua poética, que se situa em um outro nível.

Pomo, DA INTERFACE Ora, existem várias maneiras de considerar uma poética. Inicialmente, enquanto atributo: um texto é chamado poéti co quando evoca imagens poéticas: a flor, a neve, o amor, a morte ... e existe todo um léxico dessa s imagens, por perío dos literários; o atributo "poético " é concebido, então, como

39. Cf., nesse sen tido. Louise Poissant (or g.), Interfaces et sensorialité (Montreal, Presses de l'Universit é du Q uéb ec, 2003).

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adorno, complemento ou acréscimo. Desse modo, a interface pode ser considerada como poética quando, por seu intermédio, a obra interativa evoca tais imagens. A pena de Couchot é poética em si, poderíamos dizer, mesmo sem que o sopro do visitante a faça flutuar. A dançarina em equilíbri o sobre um fio que o movimento do visitante faz balançar perigosamente evoca o funâ mbulo que sempre e de todo s os modos faz sonha r. Contudo, essa interpretação do poético prioriza nossos hábito s culturais, as ima gens convencionadas de um léxico já estabelecido, muito mais do que leva a pensar um a nova relação entre realidade e ficção, relação que seria, a meu ver, o que há de próprio em uma poética. Eu me atrever ia a dizer que os atributos poéticos, com seu poder de evocação, ocultam a estru tura de uma obra e representam um obstáculo para sua compreensão. Nesse nível, a simulação digital , longe de inverter a relação do real com a ficção, desempenha o mesmo tradicional papel da semelha nça ou da representação em pintura: ela repete o que já foi visto. Outra maneira de conceber, não mais o que é poético, ma s uma poética: a arte po ética, isto é, um conjunto de regras qu e circunscrevem um território sing ular, cujos princípios estão postos e devem ser seguidos. Essa poética const rói e revela a estrutura do campo con siderado. Des se mod o, para ret omar um exemplo já utilizado, o G én érateur poiétique (o termo poiético indi ca justamente uma arte do fazer) produz claramente as reg ras de seu próprio funcio namento, sem recorrer minimamente a imagens pretensamente poéticas. O mesm o se pod e dizer do Click de Closky

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os INCORPORAIS

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ou de seu +1. O simples fato de entrar em contato com seu programa me faz entrar no universo dos visitantes; dessa vez, cada clique acrescenta um número à lista. Só isso . Podemos, então, conceber desde logo que a interface revela muito mais que uma subjetividade criadora: uma prática que subverte as prioridades, uma poética. Ainda se faz necessário precisamente que essa transformação seja mostrada, que ela não seja ocultada atrás de histórias, e é por isso que eu acabei de dizer que prefiro as obras nuas, que se aplicam unicamente ao desvelamento da interface in processo A interface está aqui, agora, de imediato. É exatamente no momento em que eu entro em contato com a obra virtual que o tempo, o vazio e o lugar oscilam, porque, de repente, eles se tornam corp orais. Mas essa oscilação não acres centa nem subtrai nada a sua natureza incorporal. Bem ao contrário, essa inversão ou oscilação é o seu sign o; é pelo fato de o tempo, o lugar, o vazio e o exprim ível serem incorporais que eles podem admitir corp os e colocá-los à disposição do internauta quando ele "se interfaceia". Em síntese, a interface faz o corp oral oscilar para o incorporai e é nisso que se situa sua poética própria.

UMA PornCA AMPLIADA Aquil o que, então, poderíamos chamar de "po ética do espaço virtual", ou de "arte" do virtual, compreenderia regras de composição para que uma obra fosse - se podemos assim nos exprimir - realmente virtual, ou seja, para que

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usufruísse plenamente as características da virtualidade e apresentasse as suas características. Ela também deveria ao menos esboçar os princípios elementares sobre os quais repousam essas regras, isto é, a natureza e as características do ciberespaço e do cybertime. Ora, uma "arte do virtual" assim começa a se estabelecer a partir dos trabalhos teóricos e práticos dos artistas. Com efeito, parece que a apresentação de listas e de classificações de obras interativas - mesmo que ela seja necessá ria para permitir vir a se saber que essa arte existe e mesmo que as obras sejam descritas com entusiasmo - não basta para formar o núcleo de uma verdadeira estética do virtual. Uma estética do virtual exige muito mais, ela convoca uma reflexão que não seja nem preditiva e autoritária, como pode sê-lo a estética clássica, nem, por outro lado, isenta de certa visão de conjunto do mundo da arte, melhor dizendo, do mundo como tal. Tal estética se dedicaria a iluminar os dados essenciais que entram em jogo no ciberespaço, que é o espaço de trabalho de uma artedo virtual. Isso só é possível quando alguém está pessoalmente envolvido em um trabalho nesse espaço. Aqui, mais que nunca, os autores são levados a teorizar no proces so de seus trabalhos". É do in40. Em his tória da art e, geralmen te esquecemos a impor tâ ncia da reflexão teórica dos artistas. Trata -se de um ponto que vem se ndo contem plado pelos recentes estudos sobre os diários, as cadernetas e os d iferen tes escritos dos pintores. Veja-se o Centre d'Études d'Arl Contemporain (Paris )- Sorbonne), dirigido por Ann e Moeglin, cujos trabalh os se concentram sobre as leorias de arti sta. Cf. tamb ém o ~Itimo capílulo de Ann e Cauquelin, Théories derart (Paris, rUF, 2001) [Teo:ws daarte, Sao Paulo, Mar tins, 2005]. E mais, trata-se de um pont o que não pode mais ser neghgencmdo ne~ relegado ao silêncio quando nos ocup amos de arte digital"dad o que o t:a~alho artístico nesse campo consiste exatamente em pôr à prova um a sene de proposiçoes abstr atas.

FREQÜENTAROS INCORPORAIS

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terior de uma espécie de laboratório de obras virtuais que se constroem e se afinam as condições de sua existência, e não desde o exterior do campo, com não sei que considerações gerais sobre o estado da sociedade na era das multimídias e da globalização. Essa maneira de ir construindo gradualmente a lógica das interpretações para um campo, lógica sempre retomada, inacabada por essência , corresponde à composição de obras que reivindicam pertencer ao aberto, ao inacabado, ao processo em vias de se realizar. O que se configura, então, pedaço por pedaço, parece uma miniatura cujas peças se juntam ao sabor dos acontecimentos que são, a cada instante, as novas criações digitais, e o que elas acrescentam à tela já esboçada. Não se trata mais de introduzir atributos poéticos (da arte!) nas obras virtuais, mas de legitimar a expressão do virtual como arte.

o virtual como arte É claro que há uma estética em formação no mundo das comunicações cibernéticas. Já o desvelamos: há uma poética da interface, uma ação estética e sobre a estética da virtualidade digital. Mas como ela se posiciona em relação às definições habituais da arte e qual é o papel reservado à atividade artística nesse espaço? Quaisquer que sejam as diferentes maneiras de apresentar a arte, de lhe dar um conteúdo ou de teorizar a partir dela - e vejam que elas são numerosas - , uma característica permanece constante nessas

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tentativas de definição: a arte é uma atividade que se situa entre realidade e ficção. Definição mínima, que está aí para ser reconsiderada. Com efeito, trata-se da divisão entre real e imaginário, entre virtual e real, entre realidade e abstração? Parece que, à luz da arte do virtual, essa definição pre -

FREQÜENTAR

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Sendo assim, o fato de a terra ser redonda escapa a nossa experiência presente, ele não é dado pelos nossos sentidos. Para nós, a terra é plana porque caminhamos sobre o solo sem que ele escorregue. Husserl fazia a distinção entre a evidência presente da planura e a crença verificada, haurida no estoque dos conhecimentos apreendidos, de sua esferic ídade-'. Nesse exemplo, o real vivido no erro está em

cisa ser reformulada. REVISITAR A FICÇÃO

contradição com a ficção verdadeira. E agora? Onde se situa o fictício? O exemplo é banal, mas se aplica a outras

Separamos ficção e realidade, geralmente pondo de um lado o que é próprio da ficção: imagens, imaginário, apresentação in absentia, verossímil e inverossímil, possíveis, e, do outro lado, o que é próprio da realidade; realidades pertinentes ao vivido, à presença, à trama do cotidiano, ao que é rotineiro e não configura objeto nem de dúvida, nem de incerteza, ao menos naquele momento. Nesse esquema, a fantasia e a leveza são o apanágio da ficção, ao passo que a densidade, o peso, a certeza afligem a realidade; a atividade artística, que lança raízes no modo da ficção, viria aliviar o peso das realidades, em um jogo de distanciamento e de ilusões. Mas , nesse caso, que fazer das idéias que são chamadas abstrações e que decidem a trama das realidades cotidianas? Quero falar da estrutura do espaço e do tempo, por exemplo, da relatividade geral, da composição dos átomos: trata-se de hipóteses, de expr essões ideais, em suma, de ficções. Porque o campo da ficção, contrariamente aos lugares-comuns que o transformam em um mundo de sonhos, é também o mundo dos modelos, dos cálculos, das formas que escapam à apreensão direta - isto é, sensorial.

evidências sensoriais contrariadas pela abstração científica ou "ficção". A realidade da ficção e a realidade vivida se mantêm assim, lado a lado, em uma espécie de mútua indiferença. Isso também nos indica que vivemos simultaneamente em dois mundos separados, aquele que chamamos de realidade vivida, presente, concreta, e o das realidades, não presentes e não concretas para nós, das ficções nacionais. Geralmente, lidamos muito bem com esses dois mundos mais apostos que opostos, e vivemos essa justaposição sem problemas. Sabemos utilizar máquinas das quais não conhecemos nem a estrutura, nem o modo de alimentação. Andamos de bicicleta sem conhecer as leis do equilíbrio e escrevemos nossos e-mails sem pensar na rede planetária. Tudo aquilo que se refere à estrutura do espaço e do tempo atuante em nossas comunicações eletrônicas faz parte do mundo ficcional: não há dúvida de que esse mundo é presente, contudo, ele nos parece remoto, como um 41. Edmund Hu sserl, "L'arche originaire: La Terre ne se meul pas ' (tra d, Didier Franck , Philosophie, Paris, Éditions de Minuit , n. 1. 1~84 ) .

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invólucro cuja textura é desconhecida, mas sem o qual não se pode passar. Mesmo que nos suponhamos capazes de levantar a hipótese do dispositivo de um tempo sem perspectiva, de um espaço sem lugares e do vazio exprimível, ele continua a escapar da percepção corrente. Utilizamos apenas os dispositivos gerados por essas estruturas em certas condições, para determinadas tarefas especializadas, sem nos questionar do que eles são feitos; vagamente conscientes de que eles dependem de princípios diferentes daqueles aos quais concedemos nossa fé, continuamos a lançar mão, comumente e sem resistência de alma, de imagens espaciais do tempo, da distância entre os objetos do mundo e das intenções que nos levam a agir em vista de metas. Com efeito, há uma distância considerável entre aquilo que nós vivemos - nossas crenças e meias-certezas - e os modelos científicos que tomamos por verdadeiros. Essa distância aumenta sem cessar com o desenvolvimento das especializações e de suas linguagens, que vão se tornando cada vez mais esotéricas. A compreensão dos fenômenos físicos escapa à boa vontade comum. Mesmo uma coisa tão banal quanto a situação do tempo, traduzida na linguagem dos meteorologistas, torna-se um enigma para o espectador comum diante da previsão do tempo do noticiário da tevê. E assim vamos nós, como cegos, em meio a blocos técnicos intransponíveis, aferrados a nossos modos de ver e de pensar, que, mesmo anacrônicos, têm ao menos a vantagem de existirem para nós . Nessa divisão entre uma prática singular, tecnicamente aparelhada e cuja fundamentação nos parece estranha, e

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outra prática familiar e que classificamos como natural, seguimos um princípio estabelecido: o familiar, o íntimo, o natural é o sentimento profundo, a consciência, é o "interior", ao passo que a técnica, o artificial, o aparelhado está no exterior. O interior é também o imaginário, o sonho, a fantasia, a interpretação, ao passo que o exterior é o cálculo frio da matéria programada, as deduções sem surpresa. É desse modo que encaramos, na maior parte do tempo, os campos respectivos das máquinas e de nossa sensibilidade de todo humana. Nesse esquema, a ficção, essa aura simpática que cerca os objetos sensíveis e os desvia levemente para o mundo do sonho e da imagem, é um atributo especificamente humano. Nós fazemos ficção naturalmente, e nisso estaria nossa superioridade sobre os outros seres vivos, presos a seus instintos. Em contrapartida, o espírito geométrico animaria certo número de dispositivos mais ou menos maquínicos e rígidos. Ora, disso se conclui que, se algo pode ser invocado em favor do modelo cibernético, trata-se do desvelamenta desse esquema, de sua crítica. O ELO "ARTISTA" Com efeito, com a interatividade e a entrada em cena da interface, os dois campos, realidade e ficção, deixam de poder ser nitidamente separados. E, ainda mais, eles se interpenetram, e a ficção - a capacidade de imaginar na ausência do objeto - talvez já não se situe no lugar em que se esperava que ela estivesse. Ela não está mais do lado do sujeito,

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que se acreditava autorizado a criar formas (quando artista) ou a interpretar (quando espectador) segundo sua própria subjetividade, e a comunicação entre o criador e o espectador não se faz mais de sujeito a sujeito. Com a interface que liga o mundo das realidades vividas pelo sujeito ao mundo do ciberespaço, a capacidade de fazer ficção passa para o lado do abstrato, do dispositivo calculado. Do lado do artista, é o programa que carrega a função poética - abstração e simplicidade são seus atributos. Do lado do visitante, ao entrar no espaço virtual por uma interface, ele é levado a abandonar sua pretensão à interpretação poética, para seguir as injunções ficcionais do dispositivo abstrato do sistema. Porque, uma vez mais, trata-se de uma transformação derivada do dispositivo, não das disposições particulares dos sujeitos. O espaço interior do sujeito - íntimo, natural, real-, com suas percepções particulares, é então reportado ao interior de outro espaço - o espaço virtual- no qual ele se converte, e a função verdadeiramente poética da interface é revelar essa conversão dando acesso a seu próprio funcionamento. Percebemos então que, no espaço digital, a interface provoca a reversão da relação entre realidade e ficção. Uma realidade fictícia ... é sem dúvida nisso que desemboca o dispositivo, a meio caminho entre o programa (e seus parâmetros calculados, que permanecem invisíveis) e sua aplicação por meio das interfaces. O visitante faz parte daquele dispositivo enquanto ajuda a materializar a ficção, a fazê-la passar para o lado de um concreto sensível. Desse modo, o ficcional está sempre em estado de passagem, e nossa realidade (o íntimo, o interior, a subjetividade) é apenas uma parte do

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mecanismo dessa passagem - penso no parteiro da verdade que Sócrates dá como exemplo. O mestre em sua maiêutica é apenas o instrumento de passagem entre o oculto e o descoberto; a dialética é concebida, não como interface entre o mestre e o discípulo, mas entre o oculto, o in-sabido, e o trazer à luz. O desconhecimento do discípulo atua como o vazio, quando ele acolhe um corpo; ele acolhe o saber que emerge, dando-lhe lugar. Ao incorporá-lo, ele mesmo se torna corporal. No sistema computacional, quando o visitante procede a uma interface, não se trata nem de saber, nem de verdade, como é o caso da maiêutica, mas da realiza-

ção. Prevalece aqui outra espécie de parto: a interface do visitante conclui a artev, ele faz a ficção entrar no real. Porque, para o visitante, não se trata de "fazer o quadro", segundo a celebérrima fórmula de Duchamp, que punha o visitante completamente à vontade ao inquietá-lo um pouco, nem, para o artista, de tornar visível o invisível, segundo outra fórmula também muito célebre. O invisível aqui não é da ordem do espiritual, que uma epifania viria revelar, \

ele simplesmente caracteriza o estado de um sistema em determinado momento de seu desenvolvimento. E o visitante é a passagem obrigatória para outra etapa: sua realização. Desse modo, o espaço que se estende entre realidade e ficção é percorrido em todos os sentidos por uma atividade de artista que joga com os dois, mistura-os, inverte-os e os põe em movimento. A ilusão de um é a verdade do outro. 42. Assim como a arte, em Aristóteles, "completa" a natureza.

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o artista que propõe o programa e o visitante que pratica a interface estão ligados em um espaço que mescla realidades vividas e ficção abstrata. Eu veria tranqüilamente esse link como a réplica do fogo artista que percorre o mundo, segundo os estóicos, instruindo a ligação por simpatia e tensão. Com efeito, o que precisamos reter desse fogo artista não é a espiritualidade de um fogo que proviria da alma, mas a ma terialidade desse fogo, indicada pelo adjetivo technikon. No texto de Diógenes Laércio, o acréscimo da seguinte frase : "É um sopro capaz de sensação [aisthetiken]" marca a passagem do técnico, que parece pertencer ao artifício, ao sentir que pertence ao ser vivo». Essa mescla impressionante situa a arte sob o duplo regime do técnico e da sensação«. A ARTE DO VIRTIJAL CO MO REGIÃ O

DA ARTE

Havíamos visto, na segunda parte, que alvos tinham sido visados pelos artistas contemporâneos: a rejeição do sistema das galerias, do mercado, da museificacão, e havíamos visto também que destino estava reservado a essa atitude. Ao se dobrar ao mercado, alguns artistas haviam tentado suprimir o seu conteúdo e jogar com o espaço oferecido abortando-o. Klein expõe o vazio, ou a invisibilidade tornada espírito. Mas aqui também o jogo zombador vira celebração. 43. Diógenes Laércio, Vies, doctrines et senterzces des philosophes iIIustres (trad. RobertGrena ille,. Paris, Garnier/Flam ma rion, 1~65), livro VII, pp. 156-8. . 44. Ibidem fedomgl.: trad. Robert Drew Hicks , Cambridge, Har vard Universíty Pressl Loeb Classical Library]. A traduçã o inglesa leva em conta essas duas características e prop õe: "artistically working fire".

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Outro alvo: o partilhar de um domínio cultural quase sempre elitista com um público ampliado. É o abandono da aura e a reprodução generalizada. Mais uma vez, essa tentativa está destinada ao fracasso porque o público se prende, justamente, à inacessibilidade da arte e não adere a sua versão cheap: "Isso não é mais arte", é o que se diz . Tanto de um lado como de outro, invisível ou excessivamente visível, a atividade artística gira em torno de suas próprias marcas. Ora, a miniatura digital parece oferecer uma resposta à maioria dessas aspirações: o não-mercado, a desmaterialização versão americana anos 1960 e o partilhar. Livre acesso e disseminação em todas as direções estão no programa da interatividade e, com ele, a ação do espectador sobre o espetáculo, sua entrada livre no mundo dos criadores. A miniatura, ou dispositivo digital, parece atender às demandasela chegou até a suscitar o entusiasmo em seus inícios - , mesmo que essa liberdade de acesso seja ilusória, mesmo que, ao final das contas, suscite-se sempre a questão do reconhecimento dos autores e de seus direitos, mesmo que as questões de mercado, de divisão (copyright ou "copyieft"?) estejam longe de ser regulamentadas. A despeito também das questões de pirataria e de manipulações diversas, da falta de recursos para a compra e conservação das peças, da dificuldade de reconhecimento e de exposição. Para além dos primeiros atrativos, muito conhecidos, que continuam a ser apregoados, também é preciso pensar que o imaterial ou o que assume seu lugar atrai os artistas para a miniatura digital? Fazer o invisível advir à visibilida-

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de, mostrar o que se esconde, evocar o que não pode ser dito, tentar o indizível ou calá-lo: essas são dimensões da arte freqüentemente reivindicadas e vinculadas às noções mais ou menos obscuras de mistério, de profundidade, de interioridade, de espiritualidade. Podemos imaginar que essa busca está parcialmente esgotada quando o suporte artístico se torna ciberespacial, isto é, "imaterial"; esse material imaterial pode ser pensado, então, como espiritual - essa é uma alternativa que agrada a alguns - a menos que, outra alternativa, ele seja tomado exatamente por aquilo que é: um suporte físico, um vazio atravessado por impulsos, sem nenhuma conotação humanista. O que importa é que, nos dois casos, o caráter de elo está no centro do trabalho. É sobre esse elo e com elos que o ciberartista trabalha: atividade de ligação, não apenas entre os objetos que circulam no mundo artificial, entre sites e internautas, mas também entre realidade e ficção, entre vários modelos de mundo, entre artifício e natureza. E talvez seja por esse traço que o caracteriza que a arte do virtual, longe de ser o parente pobre da arte com A maiúsculo, possa ser pensada como uma espécie de modelo para a atividade artística em geral. Poderíamos até mesmo nos arriscar a levantar a hipótese de que a atividade que se desenvolve no ciberespaço é, ela própria, uma atividade artista, qualquer que seja o conteúdo daquilo que é conectado». 45. A estetização da sociedade, da qual atualmente tanto se fala, de maneira tão ambígua, não teria sua fonte na extensão dos links, no trabalho sobre esses links, trabalho que se revelaria, finalmente, como verdadeiramente artista?

PROPOSIÇÃO FINAL

PENSAR SEGUNDO OS INCORPORAIS

Teríamos, então, freqüentado os incorporais dos estóicos ao longo deste trabalho... Os incorporais? Não fantasmas, sombras fugazes, nem mesmo as memórias vacilantes daquilo que nunca foi: todas as imagens que poderíamos esboçar, e que nos encantariam, cedem diante da dura condição que eles impõem ao pensamento. De nada adianta exemplificá-los, eles não têm imagem; de nada adianta descrevê-los, eles não têm forma - e nisso eles são exatamente invisíveis; inútil estabelecer-lhes residência, eles não têm nada que possa fixá-los. Mesmo assim, tendo aqui acompanhado seus movimentos e interceptado suas manifestações fugazes - e isso especialmente na arte contemporânea -, poderíamos ter a impressão de ter passado a conhecê-los melhor; conhecer, isto é, usá-los, pô-los a trabalhar, deles nos utilizar. Claro que a filosofia é justamente uma atualização de concepções recebidas; recompor o quadro, pintá-lo de novo, mesmo que com cores antigas, essa é sua tarefa.

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,'""."

Se eu questionar o conjunto de traços que pareciam corresponder à antiga definição dos quatro incorporais, acho que posso indicar duas direções nas quais poderíamos encontrar ensinamentos. A primeira é a das expressões artísticas contemporâ-

\

que, em mais de uma correspondência, haja uma espécie de desdobramento ou de explicação que a miniatura digital opera: a visualização de um cosmos antigo, que teríamos esquecido desde muito tempo, aquele que é sugerido pela teoria dos incorporais. Nesse sentido, se a hipótese que ve-

neas que, como vimos, apoderam-se do incorporal para o

nho defendendo é confiável, o ciberespaço e o cosmos es-

pôr à prova de sua atividade, a das artes do virtual, que re-

tóico se analisam mutuamente. Enquanto o modelo antigo permite compreender melhor a miniatura digital, a minia-

convertem noções usuais do espaço e do tempo e convocam novas definições. O modelo de universo oferecido pelos in-

tura digital lança luz sobre o modelo do universo antigo;

corporais estóicos e a miniatura do oferecem dialogariam,

ela o revela, não como uma antigüidade saborosa, fanta-

dessa forma, no decorrer dos séculos, interpretando-se mu-

siosa e levemente ridícula, mas como um padrão (pattern)

tuamente. Trataremos de juntá-los uma vez mais aqui, em um primeiro tempo ("Modelos e miniaturas de mundo").

talhado quase sob medida para as operações virtuais das

A segunda via, mais meditativa, levar-nos-ia a uma reflexão sobre o impessoal e a indiferença. Eis aí um in-

Desse modo, para garantir a coesão do conjunto-mundo, os estóicos haviam recorrido a um princípio de fusão in-

corporal com nossa dimensão, que freqüentamos assidua-

terna que percorria a totalidade dos seres, um fogo artista

mente sem, contudo, apreendê-lo como tal. Implícito e

que punha os seres vivos em simpatia. Os vínculos entre

fragmento são nosso quinhão cotidiano, que cingem com suas franjas nossas palavras mínimas e os mais ordinários de nossos gestos; em seus interstícios, percebem-se os in-

quais nossa modernidade se orgulha.

humanos (por exemplo) não dependem de sua boa ou má vontade, mas da energia que os atravessa. Uma espécie de vontade anônima - muito próxima da de Schopenhauer' -

desordem. Um simples esboço me permitirá evocar a sua

limita as subjetividades, em um desígnio comum de ligação. A ligação está no centro do sistema, é seu princípio fundador.

presença ("0 momento estóico").

Não, uma vez mais, vínculos de sujeito a sujeito, mas víncu-

corporais sob a forma do vazio, da perda, para não falar da

los entre os elementos de um dispositivo, apesar de que talModelos e miniaturas de mundo Parecem múltiplas as correspondências entre os elementos da física estóica e a miniatura digital. Parece até

vez fosse melhor falar de uma gramática ou de uma lógica, 1. Cf. Arthur Schopenhauer, "L'objectivation de la volonté", em Lemondecommevolonté et comme représentation (trad. Auguste Burdeau, Paris, PUF, 1966). [O mundo como vontade ecomo representação, trad. Jair Barboza, São Paulo, Unesp, 2005].

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mais que de uma moral. A abstração está no centro do sistema , ela é disposição, vínculo entre os signos, sem lugar algum para os sentimentos ou emoções: o fogo artista suscita uma única paixão, a admiração, para a ordem do mundo.

o MOTOR

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de percepção é que são diferentes. A vida humana biológica mede o tempo segundo uma escala brevíssima em comparação com os dois extremos: os ato-segundos, que medem a estrutura do átomo, e os bilhões de anos, que medem a estrutura do universo. O mesmo se daria na Antigüidade com a separação do movimento sublunar, aquele que mede e de fine a duração de nossas vidas e nos permite apreender tanto

A miniatura do sistema ciberespaço produz o mesmo desenho produzido pelo modelo do mundo estóico, quase a ponto de, por ser puramente artificial, o ciberespaço não ter necessidade do primeiro motor - isto é, de Deus - para funcionar. Trata-se de um sistema perfeitamente leigo, no qual a engenharia substitui o papel reservado, pelos Antigos, ao princípio divino. Desse modo, a miniatura do digital completa o modelo; ela o finaliza, até mesmo na medida em que, pondo de lado o divino, ela realiza e mantém os paradoxos que representavam dificuldade para os estóicos: por exemplo, aliar a necessidade incontornável do vínculo à indiferença dos sujeitos, ou ainda a materialidade hard de um mundo pleno de corpos com a necessidade de situar os in corporais ao lado desse corpo pleno. Realmente, ao se situar ao lado daquilo que chamamos "realidade", o modelo computacional faz justiça à separação antiga entre mundo e vazio, entre corpo e incorporais, e mesmo assim mantendo sua unidade. Corpo real e incorporais ficções são inseparáveis nas operações digitais. Para as duas versões, antiga e contemporânea, do esquema cósmico, o mundo é Uno e um só. Tanto para a ciência contemporânea como para o pensamento antigo, apenas os graus

as distâncias temporais quanto as espaciais, do movimento da esfera celeste, eterno, cíclico, sempre reiniciado (teoria que encontramos em Arist óteles'), ou do "grande ano" estóico, que explode em uma conflagração final (ekpyrosis) antes do retorno do ciclo. Separados desse modo, como podemos fazer a junção entre os mundos eternamente em movimento, situados para além dos dados sensoriais, e aqueles cujo movimento podemos perceber? Se a ciência e a arte permitem essa junção, nos Antigos', a teoria dos incorporais pode descrever a passagem entre os dois mundos de maneira mais preci sa: é a oscilação pontual, instantânea, do vaz io para o lugar quando um corpo entra nele, ou do tempo incorporal para

2. O movimento local é o primeiro entre os movimentos que percebem os. Seu modelo é o movimen to de rotação un iforme, que imita o movime nto circular unif orme da esfera das estrelas fixas . Os orbes se enca ixam un s nos outros, cada qual se ndo definit ivamente medido pelo movimento que serve de mode lo, o do primeiro motor. Desse modo, diz o filósofo (Aristó teles, Physique, trad . Henri Car teron, Paris, Les BeIJes Letres, 1926, IV, XIV): "O temp o parece ser o movimento da esfera, é por esse movimento que são medid os tod os os outros movim entos". 3. Por isso podemos ler na Metafísica, na tradu ção de Jean Tricot para o fran cês (Paris, Librair ie Ph ilosophique Vrin, 1940), as proposições ar istotélicas so bre o inteligível: a ciência forma um vínculo entre aquil o que podem os compreender e viver e aquilo que a int eligência suprema vive e compre ende (livro L, 7 e 8).

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o tempo vivido quando ele é percebido como momento, que desempenha a ligação necessária entre os tempos disjuntos dos movimentos locais e celestes. Os dispositivos de ligação situados no ciberespaço respondem à mesma questão de maneira mais precisa: o vínculo entre as diferentes escalas e modelos de mundo é muito mais explícito porque, no nível do tempo local, a interface é um ato que vincula as duas escalas de tempo, a escala do que é vivido pelo internauta e a escala do tempo micro do sistema eletrônico. Situamo-nos na física do universo e não vamos procurar o ciclo do eterno retorno: a ligação é um ato pontual, que põe os dois tempos em contato - todos os dois reais mas em escalas diferentes - tempo local e tempo atomizado - e os faz existir simultaneamente. A freqüentação dos incorporais - porque não podemos fazer nada além de freqüentá-los - nos levou a rever o que se passa nessas ligações e fusões - como a de um real fictício: tempo intemporal, ou lugar sem lugar, cuja réplica concreta temos nos sites eletrônicos' . Mesmo que seja uma simu-

4. Diant e disso, só posso apoia r as definições que Edm ond Couchot avança em um ar tigo de 1985 na revista Traverses: "O temp o digital é um tempo simul~ ­ do, sintet izado a part ir de microdurações, assim como a ima gem dIgItal ~o ~oraçao da qual ele bate e cujas matrizes ele ordena é co~nposta de elementos at
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