CASO 181 - H. H. Costa
June 3, 2016 | Author: Luciane Dambroso | Category: N/A
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CASO 181
H. H. Costa
CASO 181
H. H. Costa
Para meu filho, que mesmo trazendo consigo momentos difíceis, me transformou em um homem.
Um homem de conhecimento é aquele que seguiu honestamente as dificuldades da aprendizagem. Um homem que, sem se precipitar nem hesitar, foi tão longe quanto pôde para desvendar os segredos do poder e da sabedoria. Dom Juan à Carlos Castaneda (Carlos Castaneda)
PREFÁCIO Ipatinga era como uma adolescente em crise existencial, perdida, procurando se encontrar. Este era meu playground, as possibilidades de uma cidade emergente a caminho do mundo moderno, sem história ou tradição, apenas a certeza de estar ocupando um lugar no espaço/tempo. Escrevo para aqueles que buscam um algo a mais, os inquietos, os que amam e que sofrem, e para aqueles que não se sentem parte deste mundo, aqueles que procuram o sentido da vida e não fecham os olhos para a realidade, os raros, quase extintos. Para os indiferentes que não se posicionam diante o certo ou errado, para os corajosos que discursam sobre questões na qual hoje ninguém tem coragem, para os que têm sede de mudança, que sem medo, se perdem, na esperança de poder se encontrar. Para os solitários, aqueles que têm ouvidos para o novo e olhos para o que está além do alcance, para os que se mantêm conscientes para verdades até então adormecidas. Para os que se amam e se respeitam, para os espíritos livres. Como diria um grande pensador: “que importa o resto? O resto é somente a humanidade. É preciso ser superior à humanidade pela força, pela altura da alma – pelo desprezo...” (Friedrich Nietzsche).
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“culpado até provarem o contrário” Baseado em Fatos Reais - Planet Hemp
Nunca soube responder ao certo porque a Psicologia, esta era uma pergunta muito frequente em minha vida, apesar de uma grande parte de colegas e amigos não entenderem minha escolha, principalmente aqueles colegas com quem não tinha um contato frequente. Quando dizia que estava fazendo psicologia, era quase como um susto, não me viam com este perfil, “você, psicólogo?!”, soava sempre com ar de surpresa, acompanhado daquela risadinha. Mas sentia como se tivesse nascido pra aquilo, foi uma identificação quase que imediata e nunca tive dúvidas sobre minha escolha durante toda minha formação. No primeiro dia de aula, cheguei na faculdade e fui me situar, sabia o bloco e o número da sala, sempre o primeiro dia é o mais complicado, pedi informação sobre o bloco e parti a caminho, encontrei a sala e fiquei ali próximo parado esperando o horário de início. Enquanto estava ali, pensava sobre minhas expectativas, via todas aquelas pessoas passarem e sentia meio que envergonhado sendo calouro, não fazia ideia de como me comportar neste ambiente, era tudo novo para mim. Comecei a ver as pessoas entrando pra dentro de suas respectivas salas e parti de encontro à minha, entrei, já havia muitas pessoas lá dentro, quase todos reparando detalhadamente um por um que atravessava a porta. Procurei um lugar mais no fundo, que estava com menos pessoas ao redor, sentei e fiquei esperando a professora e claro reparando os outros também. Do lado de fora da sala, já não se via qualquer movimentação, todos pareciam muito ansiosos, aquele silêncio total, foi quando do fundo da sala, na última carteira da fila do meio, ouviu-se uma voz: - Pessoal, vamos fazer um círculo. Disse a professora, que estava com as pernas cruzadas, com alguns papéis e um livro sobre a mesa, debaixo de sua bolsa. Começamos a movimentar, arrastando as carteiras, se ajeitando até formarmos um grande círculo. Ela continuou, a partir de agora vou ser sua professora de Introdução à Psicologia e gostaria que todos me dissessem os seus nomes, de onde são e por que escolheram a Psicologia como profissão, pode começar, disse, apontando uma menina que estava sentada próximo da porta. Ela começou, os outros foram se apresentando até que chegou em mim e eu disse:
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- Não sei ao certo o porquê, nunca tive nenhum contato com a Psicologia antes, não conheço nenhum Psicólogo, mas quero ajudar as pessoas, gosto de ajudar e sou muito questionador, principalmente quando se trata de questões que envolvem o ser humano. O ciclo continuou até que todos se apresentassem e após a apresentação a professora distribuiu o cronograma do semestre, discutimos um pouco sobre o que era o campo de atuação e outros detalhes, assim se seguiu com os demais professores. O primeiro dia de faculdade foi bom demais, afinal de contas, eram aproximadamente setenta alunos, e se somassem os homens da sala, acho que não daria dez. Setenta mulheres de todas as cores, de vários tamanhos e muitos sabores, eu estava no paraíso. Nesta época eu estava namorando, era uma pessoa muito especial, e além da minha família, foi uma das grandes incentivadoras a me ingressar na faculdade. Nosso namoro tinha ficado meio “balançado”, pois como estávamos na idade do vestibular, ela havia passado na federal a uns quatrocentos e cinquenta quilômetros de distância, a distância nos separou, literalmente. Foi muito difícil para ela, mais do que para mim, ela estava sozinha lá, em fase de adaptação, ligava e chorava, a saudade era muito grande de ambas as partes, não queria terminar o namoro, mas não via outra alternativa, éramos muito novos e à mercê de um mundo novo também, precisávamos desfrutá-lo, isso também fazia parte da nossa formação. Depois de alguns meses dando uma força para ela por telefone, eu resolvi ligar para dar um ultimato, a situação estava ficando complicada, terminar parecia ser a forma mais racional de dar continuidade aos nossos objetivos, a faculdade representava para mim, liberdade e criatividade, seria meu processo de construção a partir da desconstrução, ali estaria como um caderno em branco, conhecendo um novo mundo, a ter um novo olhar e principalmente disposto a explorá-lo. Subi para o terraço de casa e liguei, começamos a conversar, ela me contando as novidades, as vivências dela na Federal, as histórias, ficamos conversando por horas, o DDD de lá era 31, o mesmo daqui, como tínhamos aquela promoção 31 anos, nos finais de semana sempre nos falávamos, muito, e depois de horas conversando ela virou para mim, do nada e disse: - Pode falar. - Falar o que? Perguntei sem querer escutar a resposta.
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- O que você ligou para dizer, pode falar, eu já sei, já sabia desde quando atendi sua ligação. Ela disse aos prantos. Fiquei alguns minutos calado, sem palavras, nem sei o que me passou pela cabeça naquela hora, e do outro lado, silêncio também, respirei fundo, na esperança de que me ajudaria a tomar coragem de fazer algo que eu não queria, mas que era preciso, assim como o técnico que tem que substituir o homem do jogo, por causa de uma lesão. Comecei a falar, dizer que o tempo que ficamos juntos foi tudo que esperava de um grande amor, o quanto ela me fazia bem, o quanto significou cada momento que passamos, cada beijo, carinho, olhares e abraços, e quanto mais eu falava, mais ela chorava, tentava acalmá-la dizendo que não precisava chorar, que nossa história havia sido linda, que tínhamos que estar felizes por ter vivenciado mesmo que por um tempo menor do que imaginávamos, foi real. Quando desliguei o telefone, desci para o meu quarto, senti um nó na garganta e me faltou ar, e de repente, a menos do que dois metros da porta do meu quarto, pronto, foi a primeira vez que chorei por uma mulher. Tínhamos o costume de nos comunicarmos através de cartas, ela mandava algumas cartas e eu respondia e mandava algumas também, ela me mandava várias cartas através de uma amiga, que era vizinha dela e estudava na mesma faculdade que eu, por coincidência a amiga dela fazia Psicologia, segundo período, a sala dela era do lado da minha. Ela sempre fazia questão de me entregar as cartas em horário de aula, abria a porta pedia quem estava sentado mais próximo a mesma para me chamar, então eu saía e entrava com aquele envelope na mão e todo mundo ficava muito curioso, era um modo de mostrar que “esse” já tinha dona. Logo depois que terminamos, ainda mandei uma última carta para ela, uma música do Bob Marley, cantada pela Tribo de Jah – Me Satisfaz a Alma. “Eu gosto de você assim, você sabe o quanto gosto, o quanto sou a fim. Você me satisfaz a alma e a cada leve toque provoca em mim um choque, não vê o bem que pode me fazer, feliz eu fico por dentro, todo, todo o tempo. Então eu te abraço forte, você é toda minha sorte, eu me sinto tão bem, você me faz ficar tão zen, quantas emoções intensas irão naufragar na lembrança pela vastidão imensa, sem palavras para contar o que o coração abriga, que persistem em marcar, cada momento, sentimento, que não se cansam de jorrar, só a solidão tranquila e o silêncio do lugar, que não querem se apagar, lembranças e momentos, desfilando no olhar, que persistem em ficar em um lugar onde alguém jamais conseguirá tirar.”
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O tempo foi passando e os meus dias de glória chegando, ainda não conhecia muitas pessoas, mas isso estava próximo de se tornar outra realidade. A calourada do nosso curso estava se aproximando e como sempre gostei de festa, não poderia ficar de fora, o pessoal do CAP (Centro Acadêmico de Psicologia) estava divulgando a calourada, principalmente entre nós calouros, afinal a festa era uma desculpa para interagirmos, como uma recepção informal. Havia muitas pessoas empolgadas com tal situação, e era chegado o grande dia, a festa estava marcada numa sexta-feira, às vinte horas, como estudávamos de manhã a ansiedade e a euforia tomou conta de nós, na sala de aula na parte da manhã, o comentário era geral, só se falava da calourada. Sexta à noite, fomos eu e um colega de sala, quando chegamos lá, por volta de vinte e quarenta, o pessoal estava começando a chegar. Como a festa era estilo Sarau, havia uma mesa de frutas e muita cerveja, mas o ambiente era de interação, vários grupos conversando, professores participando e cerveja rolando. Quando o álcool começou a subir, escutei uma menina da minha sala gritando e xingando, olhei, algumas pessoas estavam segurando ela, parecia como uma fera selvagem, tentando se soltar e a cada palavra que ela gritava as veias do pescoço dela pulsavam parecendo que iam explodir. Quando percebi que ela estava brigando com um professor, não tínhamos assistido nem quinze aulas dele e ela já estava soltando os bichos no cara. Ele sem dizer uma palavra, foi embora, muitas pessoas ainda não sabem o que realmente aconteceu. Com os ânimos exaltados, o evento continuou, após algum tempo a festa ganhou ares de festa novamente. Alguém de dentro do balcão, um veterano, gritou que era chegada a hora dos calouros servirem a cerveja, um trote sadio, começamos então a servir cerveja para todas as pessoas que ali estavam. Eu já havia tomado muita cerveja e como passei a servir, estava tomando o dobro, afinal, eu estava sempre com uma garrafa cheia nas mãos. Subi em cima do balcão e comecei a dançar, escutei algumas meninas gritarem, tira! tira!, comecei a simular um strip-tease, em tempo de cair daquele balcão de mármore todo molhado de cerveja, mais eu estava doidão e caí na pilha. Na segunda-feira, passando pelos corredores da faculdade, as pessoas me olhavam e riam, e todos (da Psicologia) pareciam saber do fato, não me recordo muito bem de algumas coisas, mas lembro-me que meu colega havia sumido lá, sem me dizer nada. Já estava indo embora, a festa acabando e nada dele, ninguém sabia onde ele estava, desci para o carro e o encontrei dormindo dentro do carro, com a porta aberta e uma poça de
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vômito ao lado. A partir de então comecei a conhecer as pessoas do curso e em pouco tempo, já estava interagindo com quase todos. Tinha uma amiga na sala, Eufrásia, que era muito alto astral, meio maluquinha também, adorava o jeito dela, já tinha feito alguns semestres de Filosofia na PUC-MG e resolveu mudar para Psicologia por algum motivo em particular. Era muito inteligente e ousada, aprendi muito com ela, em fim, um certo dia, o professor de Filosofia passou um trabalho em que teríamos que apresentar alguns Mitos da Filosofia Grega, a sala foi dividida em grupos, montamos o nosso grupo e recebemos o Mito de Er, de Platão. Começamos a discutir em sala a forma de interpretação, pois o professor queria que fosse interpretado como uma peça teatral, e praticamente nenhuma ideia boa surgiu, nem todos queriam participar da peça, por vergonha, timidez, a aula acabou e ficamos de nos reunir novamente. No dia seguinte, como Eufrásia era muito ligada à Filosofia e Poesia, voltou com algumas ideias, ela me chamou para matar a primeira aula, Informática Aplicada à Psicologia, quando estávamos indo para a biblioteca ela avistou uma árvore no meio da área onde ficavam dois campos de futebol, no campus, e me chamou para ir pra lá discutir sobre o Mito. Sentamos debaixo da árvore e ela abriu a bolsa e começou a mexer como se estivesse procurando algo lá dentro, então eu disse: - Não precisa procurar não, eu tenho o mito aqui comigo. Disse pegando o papel que estava dentro do meu caderno. - Pode pegar também. Ela disse, continuando a procurar em sua bolsa. Sem dizer nada, Eufrásia pegou um estojo e pediu para mim ler o mito, comecei a ler e enquanto lia, ela retirou uma seda e um dichavador com um pouco de erva já dichavada e perguntou: - Você sabe apertar? Porque eu sei mais ou menos. Peguei os artefatos e dei início ao processo, sempre foi uma especialidade apertar um baseado, não que fizesse questão, mas gostava do artesanal, preferia nem usar um dichavador. Fumamos enquanto liamos e discutíamos o Mito, depois de alguns minutos, que pareciam horas, voilá, a peça estava pronta, o que faltava ao restante do grupo era apenas o arrumar figurino. O Mito representava a vida pós-morte, onde Er era um guerreiro morto em batalha que fora escolhido o mensageiro dos homens, para contar-lhes as coisas daquele lugar, na 10
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representação eu interpretava o Guerreiro, esta amiga a Narradora. Todos apresentaram seus Mitos dentro de sala, mas essa amiga teve a ideia de apresentar em um local de frente ao nosso Bloco, que tinha uma grama com árvores em volta, o cenário era inspirado no Mito, onde o rio Lete e Amelas era envolto por jardim e árvores. Quando estávamos pronto para dar início à apresentação, havia um monte de pessoas, da nossa sala, de outros cursos, todas vendo nossa apresentação, que resultou em uma nota dez. Empolgados ainda com as aulas de Filosofia, amor à sabedoria, e sob a influência de Eufrásia, fizemos algumas noites da Poesia em sua casa, quando próximo à faculdade. Uma das últimas foi quando aconteceu um evento de comemoração aos 150 anos de Sigmund Freud, foi uma noite de palestras com o tema Psicanálise e depois das palestras tinha um evento festivo, com vinho, água, refrigerante e salgadinhos, muita música também. Depois da festa, algumas pessoas tinham combinado de ir para a casa da Eufrásia falar sobre Psicanálise, Poesia, Sociedade e Questões Contemporâneas. Acho que fui o último a chegar, subi as escadas e dei de cara com a porta aberta, entrei e me deparei com Simão (um amigo de curso – Calouro) deitado sobre o tapete da sala, que por sinal estava escura, batendo os pés e os braços, nadando, quase que emplacando um ritmo Trainspotting como se estivesse em mar aberto. Pulei-o e segui para o quarto, e Simão continuou com suas braçadas e nem percebeu minha chegada, quando entrei no quarto estavam todos sentados em círculo e um baseado rodando, comentei da viajem do Simão e disseram que ele havia tomado meio LSD. Enquanto conversávamos sobre diversos assuntos eis que surge Simão, já numa boa, comentei com ele sobre o episódio, e ele: - Nossa estava em uma viajem, nóoooo, muito louca! Respondeu rindo. As letras LSD não me eram estranhas, mas eu conhecia muito pouco sobre a substância, nunca havia experimentado, comecei a perguntar sobre a trip, e conversamos por um bom tempo, me deu uma aula sobre o “doce”. - É praticamente impossível de descrever o que se sente, o LSD tem a capacidade de inspirar a genialidade ou te levar para uma experiência de loucura, isso depende de cada um, do momento emocional que a pessoa se encontra ou dos traumas que habitam seu inconsciente. Você tem que estar consciente do que está fazendo e focar em um objetivo, procurar manter a calma, pois quando o LSD faz o efeito, você perde as rédeas da situação,
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não tem como voltar atrás, tem que se deixar levar e não se impressionar tanto com as experiências. Relatou Simão. - Nossa o LSD é tão forte assim? Perguntei. - É uma das substâncias mais poderosas do mundo, ela te proporciona tal efeito com apenas alguns microgramas, você pode ter uma viajem que dure horas. O LSD oferece uma viagem psicosensorial te levando ao seu inconsciente trazendo fatos do passado, muitas vezes esquecidos ou mal elaborados, de volta à tona, fazendo com que você reviva esses fatos com sensações de realidade, é uma segunda chance, é todo o universo dentro de você. Mas não é a mesma coisa se por exemplo, o LSD for usado de forma recreativa, o ambiente influência tanto quanto o emocional e a finalidade do uso, por assim dizer. Fiquei muito curioso com toda explicação, comecei a ler vários artigos, estudos, livros, tudo que encontrava que estava relacionado com o tema. Tive a oportunidade de experimentar em um Congresso da área da Educação, na UFSJ (Universidade Federal de São João Del ReiMG), lá conhecemos um grupo de pessoas de Montes Claros-MG. Estávamos todos na mesma república, algumas meninas da minha sala tinham conhecido os caras da república em um Congresso da área Social, esses caras estudavam em São João e se comunicando por redes sociais, as meninas combinaram com eles de ficarmos na república deles. Tinha a nossa galera e o pessoal de Montes Claros na república, todos os dias rolava luau, a gente fez passeios em Tiradentes-MG (cidade muito bonita), e tomamos umas cervejas com o pessoal da República Forte Quebec, galera nota 10, fez uma carne de panela no fogão a lenha e rodou um bagulho bom, isso em 2006. Foi a maior pegação, acho que só eu não peguei ninguém, na época, um pouco antes do congresso, estava ficando com uma menina da minha sala, ela era demais, muito especial, não me recordo por qual motivo, a gente se desentendeu e às vésperas do congresso nos distanciamos. Ela viajou para o congresso e ficou na mesma república que eu, tinha um carinho muito grande com ela, gostava muito dela também e resolvi ficar na minha, mas ela acabou ficando com um dos caras da república, e eu, com ninguém. No penúltimo dia de Congresso, iria rolar uma festa de encerramento do evento e ficamos de fazer o aquecimento da festa, em um bar tradicional de São João, um camarada de Montes Claros retirou do bolso dois quadrados de LSD e dividiu em oito pedaços pra quem quisesse, peguei um quarto e coloquei debaixo da língua, algumas meninas também fizeram o mesmo e saímos a pé, sentido o bar. Como a caminhada era um pouco longa, no caminho 12
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mesmo começou a fazer efeito, e as meninas iam fazendo aquela bagunça, pulando nas calçadas da cidade como se estivessem brincando de amarelinha, todos rindo muito. Chegamos no bar, olhando o bar pelo lado de fora, havia só um portão de entrada, um muro enorme, todo coberto por planta trepadeira, a entrada estava escura e o portão fechado. O portão era todo fechado, havia somente uma abertura, um quadrado na altura da cabeça, então uma das meninas se aproximou, viu um reflexo e perguntou se o bar estava fechado e não obteve nenhuma resposta, insistiu, continuou sem resposta. Me aproximei e perguntei também, e nada, foi quando percebi que se tratava de um espelho, era nosso reflexo em um espelho dentro do bar, posicionado exatamente para criar essa falsa impressão, todos riram muito, zuando que a gente estava falando com o espelho. Seguimos para a boate onde estava acontecendo o evento, nessa hora o efeito ainda estava no auge, mas nada de muita viajem, somente o corpo quente e uma euforia inexplicável. Entramos na boate, para ter acesso à pista, tínhamos que subir uma escada, quando terminei de subir a escada dei de cara com um salão, cheio de luzes e o som muito alto, o piso era de azulejos preto e branco, combinando como se fossem um tabuleiro de xadrez, algumas meninas saíram pulando, alegando que o chão estava se mexendo. Comigo aconteceu com as pilastras da boate, elas pareciam que tocavam o céu, tentava olhar para o final das pilastras e perdia de vista. Foi minha primeira experiência com LSD, não achei nada demais, esperava algo diferente, não sei bem o que, mas por ser a primeira experiência eu não soube explorar bem as potencialidades, foi uma trip muito prazerosa, mas não me surpreendeu. Na faculdade, fui cada vez mais me interessando pelos mistérios da mente humana, respirava Psicologia, fazia muitas leituras, muitos textos, pesquisas sobre o ser biopsicossocial, estudava desde as sinapses, passando pela consciência, até o comportamento, tudo parecia fazer sentido e muitas coisas eram claras como água. Comecei a ler bastante teorias da Filosofia, principalmente as que seguiam a linha Existencialista, essa que na qual era a minha base de pensamento. Muitas delas, bastante interessante por sinal, começou a me fazer questionar a existência de Deus, com tantos embasamentos teóricos bem estruturados, como a visão de Sartre (1943) em sua obra O Ser e o Nada, onde ele diz que “a existência precede a essência” , a existência é algo do real, do biológico, palpável, já a essência é algo do divino, um conceito. Sartre via a crença em Deus e na religião algo que anulava a responsabilidade do homem, como por exemplo, alguém que morreu por imprudência e as 13
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pessoas dizem: “Fazer o que, Deus quis assim” ou alguém que tenha uma conquista importante e diz: “se não fosse Deus, eu não conseguiria” ou até mesmo “Deus lhe pague”. O homem tende a projetar o seu melhor/pior à Deus, e tal projeção o isenta da culpa de suas ações ou mesmo do mérito de tais. Talvez no nítido (ou não) desejo de ser Deus, o homem o mantém como uma fuga da própria condição humana. A existência de várias obras questionando de forma racional, lógica e polêmica me fez desacreditar na existência de Deus, Nietzsche (1888) em sua obra O Anticristo relata que “no cristianismo, nem a moral nem a religião têm qualquer ponto em comum com a realidade. Nada além de causas imaginárias (“Deus”, “alma”, “eu”, “espírito”, “vontade livre” – ou até mesmo a “vontade não-livre”); nada além de efeitos imaginários (“pecado”, “redenção”, “graça”, “punição”, “remissão de pecados”). Um intercurso entre seres imaginários (“Deus”, “espíritos”, “almas”); uma ciência da natureza imaginária (antropocêntrica; ausência completa da noção de causas naturais); uma psicologia imaginária (nada além dos malentendidos sobre si, das interpretações de sentimentos gerais agradáveis ou desagradáveis, por exemplo, os estados do nervus sympathicus, por meio da semiótica da idiossincrasia religiosa e moral – “arrependimento”, “remorso”, “tentação do maligno”, “a proximidade de Deus”); uma teologia imaginária (o “reino de Deus”, “o juízo final”, a “vida eterna”) – Esse universo de pura ficção se distingue com total desvantagem daquele dos sonhos, no fato de que este reflete a realidade, enquanto que aquele falsifica, desvaloriza e nega a realidade.” Venho de família Católica, meus avós eram Católicos praticantes, minha avó por parte de pai, é muito fiel às práticas de Deus, sempre teve a esperança de que algum filho fosse padre, esperança que vem passando pelas gerações, agora netos, e assim sucessivamente (já que ainda tal evento não ocorreu). Fui criado na doutrina Católica, batizado, cresci frequentando a igreja, fiz cinco anos de catecismo até minha primeira comunhão, e depois mais quatro anos até a crisma, apesar do longo tempo estudando a bíblia, confesso que não sou um conhecedor das palavras. Não me sentia muito interessado nas doutrinas da igreja, talvez por ser muito jovem, por não conseguir interpretar as palavras e associá-las um sentido que me fosse compreensível. Com o passar dos anos, ir à igreja para ver e paquerar as meninas do bairro, já estava ficando desinteressante, pois haviam festas com um maior número de meninas e coisas do tipo. Na faculdade comecei a questionar a existência de Deus e as ações religiosas, havia um amigo que fazia aulas comigo que se chamava Cordeiro, nós costumávamos passar horas 14
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discutindo qualquer tipo de assunto que se enquadrava na Psicologia (todos, acho) e um dia começamos a falar de Deus, passamos dias, meses, sempre com a certeza e a dúvida como companhia. Deus criou o homem, ou será o homem que criou Deus, um aforismo de Voltaire (filósofo francês 1694-1778), assim como o homem que procurava Deus com uma lanterna em pleno dia, de Nietzsche em Zaratustra. A religião desde os tempos de colonização do Brasil vem se mostrando uma grande opressora, com a chegada dos Jesuítas, os índios eram catequisados de forma obrigatória, não respeitando suas crenças e culturas, era um batalhão de padres que por causa da recente Reforma Protestante, foram recrutados para difundir o catolicismo pelo mundo. Eram enviados em conjunto às caravanas para converter o máximo de fiéis, sem preocuparem com a importância histórica e cultural de um povo, com a finalidade de evitar o avanço do protestantismo no mundo. Toda a questão do catolicismo não passava de uma guerra de interesses próprios, travada pelo domínio de territórios e pela conquista do poder, consequência da extensão de patrimônios. A igreja era vista como algo inquestionável, uma vez que defendia os interesses de Deus, e em todas as instâncias de maior poder havia um representante da igreja, na política, nos conselhos, nenhuma pedra era levantada sem o aval da igreja, toda manifestação cultural que pudesse ameaçar tal poder, não era tolerada e punida com a morte. Como a igreja, manifestação divina na terra, poderia tolerar a expulsão dos índios e sua cultura de suas terras e a posse de seus bens materiais, a ação voltada somente para seus interesses, e a miséria alheia. Acho que o Catolicismo nos deu uma grande demonstração de poder com a introdução do estilo Barroco, Sec. XVII, as igrejas históricas de Minas Gerais são esplêndidas, todo o poder convertido em ouro e esculturas dignas de serem obras de arte, detalhes de imponência. Mas como não ter poder quando se tem o ser humano sobre controle, afinal eles padronizaram a conduta do ser, impondo o que pode ou não fazer, nos fizeram acreditar que todos somos eternos pecadores e para o perdão seria preciso confessar todos os nossos atos, nos inibem de qualquer ação e sabiam tudo o que acontecia no âmbito social, os mais variados segredos e nos mantinham como reféns de nós mesmos. Imagine o que se pode conseguir sabendo o segredo de todos, mantinham todos comendo em suas mãos, era uma coibição individual, discreta, pois anulava qualquer movimento contra, uma vez que ninguém tivesse a intenção de se afirmar pecador, um projeto de controle engenhoso, admirável, com máxima margem de sucesso, porém mal intencionado e hostil ao que se esperava dos que se diziam homens de 15
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Deus. Os prejuízos da igreja são evidentes aos olhos de quem quer ver, e inimagináveis aos olhos cristãos, pois a religião Católica é a religião dos sofredores, do homem celibatário, castrado do gozo da vida, para os sofredores, homens pecadores, eterno devedor a Deus. O cristianismo tem como estratégia enfraquecer, para domesticar, tornar o ser do-ente, ele despreza o intelecto e a cultura, despreza o que lhe apresenta como diferente, contra aqueles que pensam de modo diverso. A esperança é a maior arma do cristianismo, ela alimenta a dependência dos cristãos, é necessário manter os sofredores por uma esperança á qual não se possa contrariar nenhuma realidade, ser desfeita por nenhuma realização, uma esperança no além. Ame Deus sobre todas as coisas, é a religião do amor incondicional, onde você ama de forma irracional, ama o que não vê, toca o que não se sente. A sensação de Deus é totalmente subjetiva, é uma construção consciente do imaginário, do que se acredita e aos estímulos que se é submetido, o amor, como diz Nietzsche, é o estado no qual o homem vê as coisas quase que totalmente como não são, é o auge da ilusão, é a sua construção sob um sentimento, um ideal, não compartilha de razão. No amor, tudo supera, tolera-se mais que de costume, a junção de fé, caridade e esperança, faz com que suporte o que há de pior na vida, mas este pior não te deixa fora de suas consequências, ele existe e é visto erroneamente de forma impessoal. O meu maior desprezo para com a religião, o cristianismo principalmente, é que pela sua grandeza, ele permanece de forma imparcial com o que vem acontecendo no mundo, toda esta desordem, ordenada pelos interesses dos detentores do poder, a igreja, a mídia e a política, parecem agir somente em seu benefício. Não vemos uma mobilização da igreja, um apoio a um projeto social, uma vontade de fazer algo pela humanidade, até mesmo aquela fiel às suas palavras, tudo que a igreja faz é se opor a tudo aquilo que traga um desconforto, que ameace seu poder. Vejo tanta fome, desonestidade, injustiça, será que este é o posicionamento certo, se mostrar indiferente, não seria certo pensar na igreja como uma salvação das injustiças, como uma líder de um movimento para um mundo melhor e não só como uma alimentadora de almas. Acho que os três poderes, a roda viva, a igreja, a televisão e a política, são grandes responsáveis por todo este momento que estamos atravessando, juros altíssimos, distribuição de bens de maior inequidade do mundo, sistema jurídico que atende somente aos interesses dos ricos e poderosos, altas tachas de domínio do poder público, desvios de verba pública, superfaturamento de indústrias farmacêuticas e empreiteiras de construção civil. É o Comando Delta brasileiro, detentores do poder, que espalham a desigualdade por ganância e 16
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covardia, que tiram o prato da mesa dos trabalhadores honestos e escravizam suas mentes com seus processos persuasivos muito inteligentes, com o apoio dos veículos de comunicação em massa, e a coesão do corpo administrativo brasileiro. Pergunte a procedência, como dizia os caras do Planet. “Vem ver um novo parque de diversão Andar em brinquedos que aumentam a percepção Visão privilegiada, aumento da consciência, E o nome disso aqui é: Pergunte a Procedência: Dinheiro do patrão, Armas e Munição, Tortura da Programação, Concessão de Rádio e Televisão” Procedência C. D. - Planet Hemp
O interesse nunca foi tornar o Brasil um país de primeiro mundo, uma vez que nossas condições climáticas, nossa terra, os minerais, a rica biodiversidade, o pré-sal, a cultura, a comunidade cientifica, o povo brasileiro, a beleza do país, nós temos mais do que qualquer país de primeiro mundo, temos as condições ideais para o desenvolvimento. Mas somos forçados a viver na miséria, na dependência daqueles que dependem de nós, que nos exploram sem dó e nem piedade, que nos pagam um salário mínimo vergonhoso e ainda tiram 8% para o bolso deles. A televisão, maior veículo de comunicação do mundo, também não faz nada para mudar essa realidade, ela seleciona aquilo que é de seu interesse para noticiar às casas de todo Brasil, enchendo este povo humilde e pobre de falsas esperanças e meias verdades, não se noticia nada de construtivo nos canais abertos brasileiros, você liga no jornal e não vê uma notícia que alguém ajudou alguém, não estimulam a caridade entre os telespectadores, somente morte e tragédia, é o que impressiona. Existem tantas pessoas batalhando por um mundo melhor e elas não tem atenção nenhuma, a culpa não é contudo somente nossa, cidadãos, mas da falta de estímulos daqueles que podem fazer a diferença, estes que hoje produzem estímulos de total ilusão, carros de ultima geração, casas de luxo, roupas de grife, quanto mais caro, melhor, melhor? Melhor para nossa eterna insatisfação, deste modo, quando vamos alcançar algo que nos realize, e mais, algo que esteja dentro da nossa realidade, é como se eles dissessem, gaste tudo que tem e o que não tem, e ainda sim não pare. Eles criaram no homem uma fonte de lucros para toda e além da vida, uma máquina de consumo que age na
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velocidade da luz e mesmo depois da morte deixam suas dívidas, que é passada de geração em geração, essa é a herança dos homens do século XXI. Me tornei um agente da contracultura, por questões de identidade e de busca de informação em outros lugares menos comuns, na história mais precisamente. Nunca fui muito ligado na televisão, sempre percebi a hipocrisia por detrás, acho que fui muito influenciado pela música, pelas bandas de rock dos anos 90, que tinham uma alma de protesto muito forte. Não consigo esclarecer a origem do meu lado Anarquista e como fui me interessando cada vez mais por essa filosofia de ser do contra. Claro que como qualquer ser humano eu não era perfeito, sempre tem algum objeto que desperta um interesse em você, mais isso comigo não era uma frequente, é muito difícil lutar contra o sistema, ele esta espalhado por todos os lugares, outdoors, pelas ruas desfilando, estampados nos outros, pela janela, dentro da sua casa, saindo da boca de seus amigos, estão em todo lugar, é uma batalha de tempo integral. Sempre busquei não me iludir, procurava seguir um caminho diferente, que me fazia sentir bem e me era mais conveniente. Procurava da minha forma, despertar um lado mais autêntico nas pessoas, buscava o íntimo e não o papel, gostava de saber como as pessoas pensavam em relação a certos assuntos, e não o que ela queria que os outros pensassem que ela pensava. Existe um grande muro entre o ser e o ser social, é o que podemos chamar de papéis sociais, a aceitação faz com que o ser se comporte em certas situações que contradizem suas próprias concepções. Acredito que a mídia contemporânea exerce grande influência na construção da identidade do indivíduo, ela expõe estilos de vida, bombardeando as mentes em construção com informações muitas vezes supérfluas. A banalização dos conceitos de sexo é um exemplo disso, quase todo programa de TV tem uma assistente de palco seminua, mais isso é só mais um detalhe, as exposições à violência, o exagero com os novos modelos de piadas, é absorvido por crianças e adolescentes como sendo normal, mal interpretados, se transformam nessa violência que presenciamos todos os dias e no Bullying. As noções de senso não parecem estar presentes nas salas de aula e nos lares de modelos de família mais modernos, pais separados ou pais ocupados demais. Quanto à política, essa é um caso a parte, na verdade nem sei o que falar, como algo como a política no Brasil consegue se sustentar? Por todos os lados você só escuta críticas à política. Pelas ruas, não acha um que rasgue elogios, mesmo assim não conseguimos acabar com essa porra, essa corrupção, essa força que puxa o Brasil pra baixo. Que doença é essa, 18
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que não tem cura, que problema é esse que não se vê solução, passa-se ano e não muda nada, será que alguém, um dia, vai conseguir reverter esse quadro? O Brasil, democraticamente falando é um país muito jovem, nós sofremos com a ditadura militar até o ano de 1985, e sinceramente ainda acho que não saímos dela, politicamente não temos tradição, não temos envolvimento político, talvez pelo medo e sofrimento causados ao povo brasileiro, que preferiu deixar a política de lado. Agora vivemos outros tempos, conquistamos apenas uma batalha, mas a guerra continua e não podemos parar de lutar, devemos respeito e luta à aqueles que deram a vida por dias melhores, que foram torturados, exilados, que abraçaram a causa, que se manterão à esquerda vivendo com dupla identidade e mesmo sobre o risco de morte, nunca deixaram de lutar por um bem de TODOS. A mancha de sangue não seca, Castelo Branco e seus sucessores não podem ser esquecidos e sim condenados pelos atos covardes, não é elegendo o Tiririca para deputado federal que vamos boicotar uma eleição. Hoje temos mais informação, talvez uma boa medida fosse se inteirar das fichas limpas, vamos exonerar os políticos com fichas sujas, é o mínimo que podemos fazer de imediato, uma ação deve ser tomada. Também não sou um entendido de política, mas procuro votar de forma consciente, tirei meu título de eleitor aos dezesseis anos e desde então voto, confesso que ultimamente venho anulando todos os meus votos como uma forma de protesto, um desânimo político também deve ser levado em conta, pois o Brasil parece sustentar ao pé da letra a premissa, ordem e progresso, ordem para o povo e progresso para a burguesia. Fico aqui pensando, quem poderá nos salvar, quantos sacrificaram suas vidas por uma nação mais equitária, mais justa, mais altruísta, quantos foram exilados, torturados, para que alcançássemos a democracia? Alguns “poucos” se sacrificaram por uma maioria covarde, que hoje desfrutam de um bem comum, sem ao menos esboçar um sentimento de gratidão. Onde está o povo brasileiro, o filho que não foges à luta. Os amores na mente As flores no chão A certeza na frente A história na mão Caminhando e cantando E seguindo a canção Aprendendo e ensinando Uma nova lição Vem, vamos embora Que esperar não é saber Quem sabe faz a hora Não espera acontecer Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores - Geraldo Vandré
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Este é o nosso país, ele confiamos às mãos dos políticos, a eles confiamos nossos votos e nossos sonhos de um futuro melhor, será que isso não é o bastante para comover um coração humano? A aposta, a credibilidade, a esperança em pessoas melhores, com diplomas e conhecimento para construir uma pátria de todos, quando vamos receber a atenção que merecemos, quando um homem, independente de sua raça, credo ou posição social, vai ser tratado como homem, como cidadão, com respeito. Até quando vamos acreditar em tudo que esses canalhas nos falam, em promessas, em meias verdades? Até quando vamos deixar que nossa ignorância seja alimentada por conspirações políticas, nós não precisamos de alguém que nos diga a verdade, precisamos nos levantar e ir em busca da verdade, mobilize-se, saia do seu conforto e recomece sua busca, não tente enxergar somente o muro, mas o que está atrás dele, pois o que parece óbvio, pode não ser. Surpreenda-se, se permita surpreender. Como podemos deixar de ser objetos do sistema? Não sei, gostaria de ter as respostas, de poder salvar o mundo, mas cada um de nós é uma estrela, todos têm o seu brilho, somos únicos, insubstituíveis. Vai continuar acreditando que seu emprego te faz melhor do que os outros, então seu carro novo, talvez sua casa grande, deve ser as roupas que você usa, por que não os restaurantes que frequenta, ou os trocados que você dá para o menino no semáforo, isso sim, faz de você um ser humano exemplar. Não seja um hipócrita, seu burguês capitalista, procure olhar para o mundo de maneira mais simples, olhe à sua volta, e me diz o que vê, olhe para dentro de si, busque aquele vazio, que nem todo dinheiro do mundo vai fazer desaparecer e me diz o que sente, como se sente. Nascemos para brilhar e acabamos aprendendo a ofuscar todo o brilho do outro, com pequenas coisas, às vezes, coisas que nem percebemos como ruins, com isso vamos perdendo o nosso brilho também, por que uma estrela brilha para todos e todas tem seu brilho. Tantas questões começaram a me deixar uma grande angústia, não me conformava com tamanho desprezo do homem à vida, sempre acreditei nas potencialidades do ser, no amor e na paz. Tudo parecia ser tão fácil para mim, somente gestos simples era preciso para mudar o mundo, um sorriso alegre e sincero, um olhar acolhedor e solidário, um bom dia carregado de positividade bastava, para fazer do mundo um lugar melhor, não era nenhuma missão impossível. Engano meu, onde havia um sorriso, havia uma segunda intenção, onde havia um olhar, havia uma maldade por traz e onde havia um bom dia, seguia-se uma arrogância imensurável, pronto, era tudo que as pessoas conseguiam ver. Já ouviu aquele ditado, a maldade está nos olhos de quem há vê, as pessoas são mais complexas do que 20
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podemos imaginar, muito mais, e isso me causava uma enorme angústia, uma grande tristeza que me fazia perguntar dia e noite, por que o ser humano é assim, sempre tem que procurar algo ruim na mais pura boa vontade. A herança paranoica interiorizada pela experiência vivida por Jesus, traído por Judas, nos persegue por gerações, sendo que toda a história do homem afeta nosso comportamento e modo de pensar e vão continuar afetando por gerações. Sentia um leve desânimo quando andava pelas ruas e via todas aquelas pessoas, sendo mantidas sobre o poder do sistema, sem nem sequer ter noção disso, eram reféns dos engenhosos planos de controle em massa. Como funciona esse controle? O controle das massas no século XXI é monitorado em prol do grande consumismo contemporâneo e pelo desenvolvimento tecnológico. A sensação de liberdade está inserida na política de mundo moderno, mas a verdadeira sensação que temos é somente uma falsa liberdade, somos monitorados constantemente, em rodoviárias, aeroportos, locais públicos (olho vivo), celulares, cartões de credito, no trabalho, nos bares, hoje qualquer lojinha possui uma câmera que filma toda movimentação. Eles sabem o que comemos, o que compramos, onde gostamos de ir, com quem falamos, e se baseiam nestas estatísticas para manter o ser humano sobre controle. Meu cunhado me contou uma história, de imediato a relacionei com nossa condição de homens do sistema, ele disse que tinha um colega que adestrava Pitbull‟s, e às vezes pegava alguns muito bravos, difíceis de serem adestrados, então ele acorrentava e trancava o cachorro em um quarto escuro, totalmente escuro e o deixava lá por alguns dias, sem água e comida, depois de perceber que o cachorro estava muito fraco, ele abria a porta com uma vasilha de água e outra de comida nas mãos, neste instante criava-se um laço afetivo entre o homem e o animal, pois o adestrador era um “salvador” para o cachorro. Assim vejo a nossa relação com o sistema, eles se concentram em tirar tudo que temos, em não deixar que ninguém consiga o acúmulo de riqueza, riqueza é poder, detém todo o poder, cobram impostos por tudo, estipulam um salário mínimo vergonhoso, deixa o brasileiro na miséria e depois liberam o crédito, dizem que para comprar algo não precisão ter o valor total em mãos, parcela-se em dívidas “eternas” e cobram o dobro ou até mesmo o triplo do valor do produto. Ainda sim há aqueles que dizem que está melhor do que antes, que antes pobre não tinha televisão de 42 polegadas em casa, nem geladeira frostfree, que era coisa de rico e hoje toda casa tem, mas antes não tinham por que não podiam, hoje ainda não podendo tem, o que se resume em tolerar todo e qualquer tipo de humilhação no trabalho, trabalhar para pagar dívidas, acúmulo de dívidas, pois se financia mais de um produto ao 21
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mesmo tempo. Podemos ver o reflexo nos altos índices de depressão e estresse da população, há algumas décadas tínhamos a figura do pobre sempre acompanhada de um enorme sorriso, parece clichê, sou pobre mais sou feliz, a felicidade do morro, do samba, do espírito guerreiro e da personalidade forte, era a realidade, hoje ser pobre parece ter se tornado sinônimo de tristeza, lamentação. É isso que o sistema faz, te enfraquece, pois se alimenta do seu sofrimento para se manter forte. Comecei a perceber que precisava ter um olhar diferente sobre as coisas, apesar de estar um tanto satisfeito com minha visão de mundo, era preciso buscar mais informações, tinha medo de cair no fanatismo e que essa questão da minha angústia se tornasse algo muito pessoal, eu posso até querer, mas não tenho o direito de intervir na vida dos outros, não gostaria de ser um formador de opiniões (já sendo), mas queria expressar minha opinião e se as pessoas quisessem acatar algo de seu interesse, tudo bem. Muitas vezes a gente fica obcecado com esse jargão: “mudar o mundo”, isso poderia estar se transformando em algo patológico, que direito tenho eu de mudar o mundo, isso é o mundo, sempre foi, é assim que as coisas funcionam, uns nascem para chorar, enquanto outros riem. Em Ipatinga estava começando acontecer um movimento contra cultural muito interessante, tinha inaugurado um bar onde toda a galera universitária se encontrava, lá rolava bandas de rock, reggae e som alternativo. Este bar acabou se tornando uma referência contra cultural, pois o pessoal que frequentava o bar gostava de fumar maconha e não se interessava por estereótipos sociais. Comecei a ir ao bar, as pessoas se sentavam no chão, em grupos grandes, discutindo sobre os mais diversos assuntos, desde música até filosofia, estava acontecendo um movimento que iria mexer com a cidade. O bar estava situado em uma área pouco movimentada, apesar de ser em um bairro residencial, nesta rua não havia casas, somente uma oficina e um clube para associados, como ficava de esquina, a galera se reunia do lado de dentro/fora e ficava bem à vontade, acendia um baseado na calçada do bar e fumava por ali mesmo, esta ação se estendia pelos grupos. Na época as universidades de Ipatinga estavam a todo vapor, uma em destaque, tinha muitas pessoas de cidades vizinhas estudando aqui e o Bom Retiro havia se tornado um bairro “universitário”, então tudo estava acontecendo por lá. O movimento no bar começou a crescer, mas somente a juventude alternativa frequentava e eu tinha uma grande identificação com este grupo, por questões pessoais, pelo modo que se comportavam, que se vestiam, pelo modo com que se relacionavam com o mundo e com as pessoas, em fim, por diversas 22
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questões. Como eu havia me ingressado na faculdade de Psicologia, senti que poderia iniciar uma observação participante, por interesse pessoal, como uma forma de aula de campo, praticar para aprender mais. Tudo que precisava estava ali, um grupo, em sua grande maioria, universitários, com faixa etária entre 18 e 30 anos, homens e mulheres, que partilhavam de muitas coisas em comum, inclusive o uso da Cannabis Sativa (cultuado por quase todos). Passei a frequentar o bar, como já estava inserido em um contexto social favorável (universidade), já havia fumado maconha algumas vezes e encontrara com conhecidos que também frequentavam este mesmo ambiente, me senti bem à vontade rapidamente e comecei a me interagir com as pessoas que ali frequentavam. Como o grupo se tratava de um local aberto ao público, um bar, não era necessária a aprovação daqueles que frequentavam o local, mas claro que esta aceitação era um ponto chave da minha pesquisa, mesmo que uma aceitação totalmente simbólica, pois não poderia perceber aquele contexto em sua realidade se os colaboradores não me acolhessem como um membro do mesmo. O que poderia ser uma dificuldade, para mim era apenas uma questão a mais, já que aquele era também o meu contexto, a minha realidade, não precisava interpretar nenhum papel ou mesmo adquirir um novo repertório de ações, bastava agir naturalmente, ser espontâneo, que o resto aconteceria por assim dizer, salvo em certas situações. O bar era como um espaço de autenticidade, as pessoas se vestiam da forma que achavam mais conveniente, da maneira que se sentiam bem, vestimenta alternativa, uma moda eclética, subjetiva, individual. Apesar dos frequentadores apresentarem uma característica grupal, roupas, músicas, pensamentos, comportamentos, existia e era claramente perceptível uma singularidade dentre todos os frequentadores, apesar de terem bastante coisas em comum se expressavam socialmente de maneira distinta e isso foi a primeira coisa que me chamou atenção, comecei a observar as pessoas ao redor e podia ver claramente a diferença entre todas elas, não falo de características físicas, nem de cores ou formas da vestimenta, mais de uma singularidade que vinha de dentro para fora, algo da subjetividade, da personalidade, do eu. A maneira como se interagiam, a forma como expressavam suas opiniões, a postura social, a individualidade no meio social, tudo era muito espontâneo, percebia-se que não havia um esforço em querer ser algo, se tornar algo, era uma relação verdadeira, estavam ali se interagindo por que queriam, se sentiam bem juntos, dividindo o mesmo espaço social. O espaço era compartilhado por todos, não existia uma liderança, um momento especifico para nada, tudo acontecia no desenrolar da noite, nada era programado, simplesmente acontecia, 23
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não havia indícios de relações fabricadas, relações por interesse, parecia que estava em um outro mundo, não tinha preconceito, não havia confusão, nem divergência, todo mundo falava, todo mundo opinava e todo mundo escutava, estava impressionado com tudo, com o respeito, cumplicidade e com o comportamento daquelas pessoas. Comecei a frequentar o bar com mais assiduidade, afinal era um ótimo ambiente cultural e proporcionava sempre uma boa viagem, gostava muito de ir lá fumar um baseado e conversar com as pessoas, escutar boas músicas, conhecer gente nova, não havia lugar melhor, era como uma comunidade, jovens cansados de toda a hipocrisia da sociedade, de ver tanta coisa errada e ser classificados como errantes por fumar um baseado. De acordar todos os dias, ler o jornal e só ouvir falar de mortes e tragédias, de verem o poder público acabar com o nosso país, de ver tanta desigualdade, ligar a TV e ver tanta futilidade, perceber o desinteresse dos brasileiros nas questões sociais, e o pior, saber que fazemos parte disso tudo. Era ali que os jovens verbalizavam sua revolta e desfrutavam um pouco de sua liberdade, agindo espontaneamente, agindo feito loucos, dançando e cantando sem se importar com nada e contagiando os que estavam ao redor, era onde ganhávamos força e nos transformávamos em um, contra tudo. Cada dia que se passava me identificava mais com aquele grupo de pessoas. Com a globalização emergente, no início do século XXI, o Brasil estava a caminho do consumismo e as pessoas pareciam ainda mais insensíveis socialmente, o consumismo despertara nas pessoas uma grande obsessão pelo capital. Passei a observar dois grupos, aqueles Cannabinóides que vou chamar por diante de Sativos e respectivamente os grupos Não Sativos, e passei então a compará-los enquanto ativos sociais. O que houve foi um conflito de valores, tradicionalmente instituídos como de grande relevância social, como por exemplo: o contato interpessoal, nos grupos Sativos este contato não parece ter sofrido tanta influência negativa, a meu ver este contato se mantém fiel, pois a proposta dos grupos Sativos eram muito simples, partia do principio da socialização, a Cannabis é por sua natureza provocadora da socialização, no Brasil dos tempos de escravidão. A Cannabis era fumada nas senzalas, pós-labuta, no momento em que os escravos estavam em conjunto, dividindo o mesmo espaço e degustando a mesma Cannabis, esta que rodava de mãos em mãos, para todos aqueles que assim quisessem fazer seu uso, era um processo de cumplicidade que os fortalecia enquanto grupo, era um momento de interação tanto no uso, quanto no pós uso, onde era cantado
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cantigas de redenção, compartilhando o apoio emocional, o que pode ter influenciado na luta pela liberdade. Já nos grupos contemporâneos esta característica se mantém como herança, a Cannabis continua sendo compartilhada, e ao compartilhar um baseado com outro grupo ou pessoa, enquanto se fuma, existe um diálogo acontecendo neste processo, enquanto se prepara a erva para o consumo, enquanto se debulha, enrola e fuma, esse diálogo, muitas vezes se estende ao ato de fumar, o que cria um vínculo, uma relação. Eu particularmente como Sativo, desconheço algum caso em que ocorreu o contrário, a pessoa fumar um baseado com alguém e não trocar nenhuma palavra, em fim, talvez isso se dê pelo fato de descobrir uma característica tão pessoal em comum, por mais que pareça banal, o vínculo é forte, mesmo entre pessoas que não se conhecem. Este vínculo pode ser compreendido pelo fato do preconceito social existente, pela condenação do social, quando o Sativo se depara com alguém que possui uma ação em comum (uso da Cannabis), eles tendem a se relacionar por uma variável de laços e interesses sócio afetivos. Os Sativos, pela adesão ao modelo contra cultural, não se deixam influenciar pelos meios de comunicação convencionais na busca da realização dos seus desejos, iludidos por símbolos de felicidade, amor e outros que ganharam e vem ganhando um novo significado no século XXI, diferente daqueles que vem cada vez mais se individualizando, se concentrando em conseguir o bem material e estabelecem relações frágeis no âmbito social. O cotidiano se transformou em um campo de guerra, onde o capital está acima de qualquer ética ou moral, o outro não é visto mais como próximo e sim como rival, passamos por cima de tudo e de todos para conseguir conquistar nossos objetivos, deixamos até nós mesmos de lado, ocorre um culto ao capital, a relação interpessoal é carregada de interesse. É contra este “novo modelo social” que lutamos, mas esta é uma luta talvez imperceptível até aos próprios Sativos, pois torna-se uma coisa mais natural daquele que se identifica com a cultura Cannábica, isso faz parte da representação coletiva da Cannabis Sativa, dentre aqueles que a cultuam, os que fazem o uso dela com algum propósito pessoal, seja espiritual, recreativo, transcendente. Estava conhecendo uma nova Cannabis, minha relação antes era de rebeldia, me postar contra o sistema, agredir os padrões sociais. Naquele meio ela era vista como uma filosofia de vida, algo que está além do convencional, nas muitas pessoas que faziam seu uso, percebia um propósito consciente que superava todas as especulações recreativas. Sentia uma forte energia em todo o lugar, conseguia-se conversar olhando nos olhos e dificilmente se via um 25
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rosto que não tivesse um grande sorriso estampado, comecei a perceber que ali as pessoas não falavam mal dos outros, não reclamavam de suas vidas, não usavam máscaras, nem tentavam ser perfeitas ou superficiais. No início o bar foi tachado de “lugar de maconheiro”, somente o pessoal Sativo frequentava o bar, estávamos num ambiente social onde era possível compartilhar nossas opiniões com pessoas que tinham muitas características em comum, não só o pessoal de Ipatinga, mas também das cidades arredores e de outras cidades, no caso, os universitários que vinham estudar aqui. Universitários era o maior público, ia também alguns hippies ambulantes expor e vender seus trabalhos e curtir de tabela. Estava surgindo uma nova demanda, como no bar havia começado a rolar música ao vivo, o dono tinha colocado um palco tão pequeno que cabiam no máximo uma banda com três integrantes em cima. A juventude que frequentava, despertou o interesse de tocar no bar, a final público igual dificilmente se via, todos cantando e dançando, se divertindo com uma enorme empolgação, bandas e bandas começaram a surgir, agora no vale do aço tinha onde tocar e se expressar com o microfone na mão. A resistência social, contudo, parecia acompanhar o ritmo do crescimento do bar, mas a polícia parecia fazer um pouco de vista grossa, lá não havia brigas nem violência, era só uma geração se divertindo sem fazer mal há ninguém. As pessoas iam para lá a pé, já que a maioria dos frequentadores morava ali por perto, iam de bicicleta e ficavam do lado de fora sentados no quadro da bike conversando, iam de carro, em fim, quando me refiro à grupo, falo pois os frequentadores eram basicamente os mesmos, ora ou outra aparecia alguém diferente, ainda sim muitas vezes acompanhado de um “veterano” do bar, todos sempre bem recebidos. Não que todos fossem amigos, pois muita gente frequentava o bar, mais o clima no ambiente era de amizade, existia alguns subgrupos, claro, como em qualquer grupo, impossível de fazer um círculo com oitenta pessoas todas no mesmo assunto, existia maior afinidade entre algumas pessoas, o que é totalmente admissível. Uma vez estava na porta do bar com uma latinha de cerveja na mão, tomando numa boa, um hippie, parecia ser andarilho também, aproximou-se e começou a conversar comigo, enquanto conversávamos lembro que ele me disse algo muito interessante, disse que o ser humano tem o dom de enganar as pessoas, olha para estes políticos, policiais, o homem que é mau por natureza ele pode se colocar sob o respaldo do poder, fazer do poder um aliado para cometer crimes e injustiça. Um bandido pode fazer uma prova da polícia ou se candidatar ao poder público e se aproveitar da sua situação enquanto detentor do poder, quem vai contra 26
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essa pessoa, nós que somos meros cidadãos, e digo mais, um homem bom que entra no poder pode ser facilmente corrompido por ele, pode-se deixar seduzir pela superioridade que o poder o dá, e pior, pode se revoltar com aquele que o trata de forma comum, que não o reverência como poderoso, o que nós podemos fazer? Ser ou não ser, eis a questão. Há dias em que torcemos por um mundo melhor, mais tem tanta coisa errada que não sabemos nem por onde começar, é frustrante você olhar para a humanidade, saber que só nós podemos mudar o mundo, e ver o capitalismo dominar as pessoas. O ser humano é autodestrutivo, destruímos tudo aquilo que necessitamos para nossa existência, os que têm a força para poder mudar, só se preocupam em aumentar o número de zeros em suas contas. É difícil recordar uma ação humana que não tenha se voltado contra nós, enquanto continuar pensando somente em nós mesmos, nunca se criará uma sociedade altruísta e equitária, algo digno e justo, um lugar para se viver, não só para nós, mas para gerações e gerações. Este mundo não tem dono, ele é nosso e tem que ser compartilhado, pelos homens, plantas e animais, temos que zelar por ele. Por muito tempo senti nojo de ser humano, sentia uma angústia imensa em sair pela cidade e ver fome, pobreza, sofrimento, pessoas com muito, explorando e tirando o pouco de pessoas que não tinham quase nada, para que? Por quê? Para andar de carro importado? Para comer um enlatado que custa dez vezes mais que o convencional? Para mostrar a todos que você tem mais eles? Para pagar mais caro em um frango, só por que é servido em um restaurante chique e tem nome de prato francês? Para comprar uma garrafa de vinho de custo elevadíssimo só por que no rótulo possui a palavra cabernet sauvignon? É por isso que você passa por cima de tudo que é vivo na terra, desrespeita todos, para ostentar futilidades? Vou morar no mato, pelo menos lá não tenho que ver tanta opressão, embora sabendo que ela exista. Sempre frequentando o bar, passei a observar a preocupação social dos frequentadores, o tempo todo alguém indagava sobre o posicionamento do governo ou de algum individuo sobre alguma situação que se encontrava alguém ou algum lugar, a solidariedade era uma característica marcante, mas não uma solidariedade material, e sim afetiva, um tratamento digno e respeitável. Buscava-se relacionar, interagir, com o outro não pela posição social, e sim pela condição de ser humano, que merece ser tratado com respeito. Um simples olhar pode fazer uma enorme diferença, é um mendigo na rua que vem te pedir esmola e você o olha como pessoa, não precisa dar esmola, basta tratá-lo com indiferença, 27
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isso é ser autêntico. As pessoas ali não demonstravam repulsa diante do novo, quando chegava alguém diferente, nem tampouco existia um sentimento de atenção em causar uma boa impressão, era visto apenas como mais um, e era o que realmente era, nada mais que isso. Acho que lá no fundo é assim que a maioria das pessoas querem ser tratadas, sem frescuras demais, bajulação, também sem arrogância, preconceito ou descriminalização, apenas com a boa e velha educação. O que a gente precisa é praticar o amor, amor pela vida, é com amor que podemos enxergar um mundo novo, que podemos nos enxergar, é o cuidar do outro, do planeta, daquilo que é importante para nossa sobrevivência, que a torna menos conturbada, se não sabemos amar, temos muito a aprender. “Outro dia, um cabeludo falou: "Não importam os motivos da guerra A paz ainda é mais importante que eles." Esta frase vive nos cabelos encaracolados Das cucas maravilhosas Mas se perdeu no labirinto Dos pensamentos poluídos pela falta de amor. Muita gente não ouviu porque não quis ouvir Eles estão surdos!” Todos Estão Surdos - Roberto Carlos
O bar estava começando ganhar uma maior projeção no senário do Vale do Aço, embora tivesse conquistado uma má fama, decorrente de olhos preconceituosos, algumas pessoas pareciam querer tirar suas próprias conclusões. Frequentadores Não Sativos começaram a aparecer, pessoas que gostavam de rock, reggae e músicas alternativas, mas que não faziam o uso da Cannabis sentiram-se à vontade e passaram a compor o quadro de adeptos ao movimento. Aquele espaço representava muito mais do que um ponto de encontro de Sativos, representava um lugar de expressão jovem, um ambiente de liberdade, contra cultural, de construção de ideias e valorização do subjetivo e das diferenças, estas pessoas enriqueceram a cultura do bar. Comecei a perceber que a questão do preconceito, o preconceito inquestionável, moral, na nossa geração vem se comportando de uma forma diferente, os dois grupos se relacionavam diretamente com muita harmonia, poderia até haver uma discordância de ideais, mas era nítido que não passava de algo relativo e que era apenas uma questão de escolha, essa sim, teria que ser respeitada enquanto do próprio sujeito. Apesar da grande exposição à grupos e pessoas Sativas, não se fazia uma apologia ao uso da Cannabis, muitos Não Sativos tiveram o primeiro contato íntimo, experimentaram, com a Cannabis ali, nos arredores do bar, mas foi uma manifestação que partiu de um interesse e 28
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curiosidade deles, a final que coisa era essa que todos diziam ser um sem fim de coisas ruins, mas que faziam os que ali estavam demonstrar totalmente o contrário. Acho, quase que com certeza, que as informações que temos sobre a Cannabis, as mais acessíveis do âmbito social, senso comum, são baseadas em falsas ideologias, são argumentos antigos de uma civilização pouco desenvolvida, à mercê de homens que dominavam e que faziam o que bem entendiam no comando. Hoje a juventude busca uma nova forma de pensamento, pelo menos alguns jovens, um pensamento mais questionador, que necessite de provas mais concretas, que não seja facilmente internalizado como verdade, esta busca se dá pelo grande acesso a informações e pelo aumento no nível intelectual do povo brasileiro, por meio de universidades espalhadas por todo país. Muitas vezes este interesse pela Cannabis é decorrente das meias verdades que se falam sobre seus efeitos, essa falsa ideologia desperta uma curiosidade naqueles que entram em contato visual, ou mesmo através de modelos sociais, grandes personalidades ou pessoas do mesmo círculo social, toda essa repressão política parece causar um efeito contrário, dá mais força à própria Cannabis e faz com que ela seja um grande ícone da luta contra cultural, não que seja preciso fazer seu uso para atestar seu protesto. Após alguns anos o bar sofreu uma reforma e com as mudanças do bar, o público também estava mudando, daquele movimento que havia se iniciado, aqueles que frequentavam o bar, presenciaram uma grande migração de pessoas Não Sativas e agora o ambiente estava dividido meio a meio. Com a reforma não foi somente o público que aumentou, aumentou o preço da cerveja e começou a cobrar entrada, o que antes era sem ônus, iniciava-se uma nova era. Os novos frequentadores começaram a surgir e mudar o cenário do bar, o que antes era “imune” ao capitalismo começou a ganhar tais aspectos, estava icando caro frequentar assiduamente, nesta altura eu já havia criado um vínculo com aquele lugar. Como na época só estudava, arrumar um emprego passou a ser uma necessidade, a menos de dois anos para me formar, resolvi que teria que arrumar um emprego para poder continuar frequentando aquele lugar, tinha uma empatia muito forte, pelos momentos de alegria, histórias, amizades e, contudo, pela forma como me sentia dentro daquele lugar. Era onde eu me entendia, onde encontrava com outros que pensavam mais ou menos como eu, era onde eu podia entrar com os olhos vermelhos e não deparar com uma cara de desaprovação, onde podia pular e gritar, olhar para o lado e ver que tinha mais uns dez fazendo a mesma coisa, era o lugar. 29
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Havia um grande amigo meu, de sala, que trabalhava na faculdade concorrente, conversei com ele para me arrumar um emprego lá, que estava precisando trabalhar e ele ficou de olhar para mim. Antes de ingressar na faculdade eu havia rejeitado duas oportunidades de emprego, em uma siderúrgica de grande porte instalada em Ipatinga, estava decidido a estudar e me dedicar somente aos estudos, havia conversado com meu pai e ele me apoiou, desde então arcava com meus custos acadêmicos e de lazer. Passado pouco tempo, surgira uma vaga na concorrente e fui convocado para participar do processo seletivo, por indicação desse meu amigo, participei do processo e consegui a vaga. No meu primeiro dia de rabalho, fui orientado a evitar o envolvimento com alunas, já que ali havia muitas, uma mais bonita que a outra. Com seus sorrisos e corpos de dar água na boca, mas eu estava concentrado em ser um bom profissional, afinal não poderia quebrar a confiança que meu amigo depositara em mim. Nos finais de semana estava religiosamente no bar, tomando uma e observando o movimento, pegava algumas garotas de vez em quanto, mas estava ali para explorar o universo Cannábico. Na maioria das vezes ia para lá sozinho e sempre encontrava com a rapaziada lá, sempre havia alguém conhecido, grupos conhecidos, mas agora em menor escala do que antes. Haviam cercado o bar, deixando um espaço do lado de fora como se fosse uma varanda em L, para o pessoal pegar um ar, pois lá dentro fazia muito calor. Numa noite paguei a entrada e segui direto para o caixa comprar uma ficha de cerveja, estava com a boca seca, tinha praticamente acabado de fumar um e estava morrendo de sede, quando adentrei no bar, vi uma garota com uma faixa amarrada na cabeça, com as duas pontas caindo sobre seus ombros e aquele sorriso enorme no rosto, parei meio admirado e pensei, é esta! Eu não era aquele cara que tinha sempre que estar pegando uma mulher toda vez que saía para curtir, o físico não era suficiente para despertar aquele interesse em querer chegar naquela ou nessa mulher, tinha um algo a mais, algo difícil de explicar, mas que eu sabia bem o que era, e esta tinha. Comprei a ficha, peguei uma lata e comecei a admirá-la, era uma gata, um estilo meio Janis, espontânea, alegre, transmitia uma energia sem igual, percebi que ela estava com uma galera e nessa turma havia umas duas pessoas que eu conhecia, resolvi me aproximar como quem não quer nada. Chegando perto do grupo uma colega veio me cumprimentar, peguei uma carona e acabei cumprimentando todo o grupo, ela ficou por último, parei de frente para ela e fui perguntando: 30
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- E você, como é seu nome? - Hindiara, respondeu sorrindo. - Gostei dessa faixa, combinou com você. - Ah, obrigada, respondeu com um sorriso maior ainda. Conversei com o pessoal durante algum tempo e sai para ver o movimento e fumar um cigarro do lado de fora, estava muito louco, queria gastar a onda um pouco antes de começar a investida. Fumei o cigarro, encontrei com amigos, admirei as outras mulheres que ali estavam, só beldade pra lá e pra cá, e depois de um bom tempo a vi fumando um cigarro com uma amiga e me aproximei. Acendi um cigarro e começamos a conversar, nós três, o papo fluindo, agradável, após uns minutos estávamos só eu e ela, não conseguia me concentrar na conversar, só nos olhos e naquele sorriso convidativo, como se estivesse pedindo a minha boca. Enquanto ela falava eu percebia que já estava sob o seu domínio, estava encantado pela sua expressão social, era sedutora, autêntica e humildemente onipotente, além de ter uma enorme expressão corporal, tinha uma postura sexy única, corpo totalmente proporcional, tinha um equilíbrio, quando assustei estávamos nos beijando com um enorme desejo. A noite foi passando e ficamos juntos, conversando e se conhecendo melhor, descobrindo afinidades, curtindo as músicas e o show das bandas, conversando com pessoas, se divertindo. Quando a noite já estava acabando alguns amigos dela tiveram a ideia de ir para a república de um amigo deles, matar a noite, tocar violão e fumar um baseado. Ela me fez o convite e seguimos para lá, foi umas oito pessoas, fumamos um baseado lá e ficamos conversando por um tempo no quintal, comecei a dar uns beijos nela e acabamos parando no banheiro. Não me lembro como o clima esquentou, os beijos se tornaram mais ardentes e as minhas mãos corriam por todo o seu corpo, o inevitável aconteceu, como quem diz sim, ela enfiou a mão dentro da minha bermuda, pronto, este era o sinal verde, enquanto a festa rolava no quintal, estávamos fazendo nossa festa particular dentro do banheiro, selvagem. Quando saímos do banheiro, a casa estava escura e o dono estava sentado na sala vendo televisão, sozinho, com uma cara de sono, esperando nossa festa acabar, fiquei sem graça com a situação, o cara estava lá, esperando a gente terminar de transar para ir dormir.
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Saímos da casa dele, entramos no carro, perguntei onde ela morava, pois a deixaria em casa, seguimos para sua casa, parei em frente ao seu prédio, demos um beijo de despedida, mas nesse beijo, o clima esquentou novamente e desta vez ela estava com muito tesão. Ela parou de me beijar e pediu para sair dali, da porta de sua casa, liguei o carro e quando comecei a andar ela me mandou seguir em frente, segui em frente e ela me guiou até uma praça, parei o carro debaixo de uma árvore e começamos a nos beijar de novo, ela começou a se despir e aproveitei o embalo para tirar minha roupa também, ficou só com a blusinha, acima do umbigo, e mais nada, montou em cima de mim, que estava só de cueca e começou a me beijar. Podia sentir o calor dela, estava pegando fogo, quando comecei a tirar a cueca ela então olhou para a praça e voltou com um olhar de quem acabara de ter uma ideia, e me intimou: - Vamos transar no banco da praça?! Não acreditei que ela tinha falado aquilo, como uma resposta imediata: - O que? - Vamos, vamo lá. Ela insistiu, com uma cara de quem queria muito. - Você está louca, já são cinco da manhã... E antes que eu terminasse de falar ela abriu a porta do carro e desceu, nua, só com uma blusa apertada de barriguinha de fora, aquela proposta era tudo que eu queria, mas sabe quando você não está esperando, me pegou de surpresa, mais nem pensei duas vezes, fui descendo logo em seguida, pelado, afinal eu adorava uma aventura sexual, me excitava o fato do inusitado. Sentei no banco e ela veio por cima, devassa, a sensação de tesão e prazer veio em dobro, após alguns minutos, parecíamos que estávamos entre quatro paredes, o banco era aqueles de cimento, conjunto de mesa e quatro bancos com um tabuleiro de xadrez e ficava embaixo de um quiosque, este fazia uma boa sombra na mesa, mas se alguém passasse obviamente veria aquela movimentação e perceberia que estávamos nus, ela veio por cima, veio de costas e cada minuto que passava mais tesão dava, toda aquela situação. Ela olhou para o escorregador e chamou para ir pra lá, nessa altura eu já não me importava com mais nada, cruzamos toda a praça e paramos no escorregador, que por sinal era muito bem iluminado, ela se deitou no escorregador, passei uma das pernas por cima e encaixei gostoso, 32
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eu fiquei em uma posição muito confortável, de pé e segurando suas pernas e ela ficava deslizando para cima/baixo a cada socada. Deixei-a em casa, voltamos rindo bastante, falando que ela era louca, cumplices de nós mesmos, continuamos a nos ver algumas vezes, mas do jeito que nosso lance começou , acabou, do nada. Nesta altura minhas observações já não tinham tanta fidelidade como a de um pesquisador, eu era parte daquele grupo, tinha encontrado ali pessoas na qual me identifiquei. Era um ambiente onde não existia maldade, onde as pessoas não julgavam umas às outras, todos tinham espaço para opinar e mesmo que sua opinião não fosse a mesma da maioria era respeitada ou discutida de forma civilizada, até que se chegasse a um consentimento em comum, ao mesmo tempo que algumas ideias se construíam, outras eram descontruídas e cada um absorvia o que achasse de positivo daquilo que o outro trazia, como um processo de construção do ser, de identidade, gerada pela socialização e garantida pela individualização. Tinham o amor como princípio, mas não o amor no sentido generalista, no sentido que muitos o entendem, mas o amor em viver, em estar em harmonia com o mundo, nas coisas simples, em respeitar a natureza como sendo parte da mãe terra e detentoras do direito de seu espaço, seu lugar, assim como os animais, dividindo o mesmo espaço, respeitando e não se julgando superior a ela. Possuíam uma maior tendência à felicidade, aos momentos felizes, por que se aceitavam as diferenças e se posicionavam naturalmente como diferentes, tinham uma maior aceitação às suas condições biopsicossociais. Hoje podemos ver uma sociedade que luta para se enquadrar em padrões da era pósmoderna, hoje o que se valoriza é o corpo perfeito, o carro mais moderno, o status social, aquilo que a mídia nos impõe como necessário para ser feliz, com isso, vemos uma sociedade que busca cada vez mais o inacessível, este é o Marketing do capitalismo, é um círculo sem rotas alternativas. Te estimulam com um modelo de corpo ideal ao mesmo tempo que te “educam” uma dieta de má alimentação (ex.: os fastfood‟s), te mostram o carro top e no próximo ano lançam outro modelo mais top ainda, e assim sucessivamente, tendências da última moda que não ficam mais do que dois anos em evidência, e assim continuam por todos os segmentos, da construção civil, utensílios domésticos, tecnologia, em fim, estão sempre ofertando algo onde o social se manifesta de forma a acompanhar o ritmo, ninguém quer ficar para traz, todos estão buscando as mesmas coisas, o que acaba causando uma “igualdade subjetiva”. Quanto mais igual ficamos, mais queremos nos tornar diferentes, ninguém quer ser igual, nós buscamos essa diferença exatamente naquilo que o sistema nos oferece, criando 33
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um vínculo cada vez mais escravizador. O que nos define como ser humano é esta diferença, não só física, mas também subjetiva, é através dela que conhecemos o mundo da forma que o vemos hoje, é ela que nos proporciona toda esta riqueza cultural, esta diferença que é a base da criatividade humana. “Esqueça já como que anda o ritmo O ritmo daí Esqueça já como que anda o ritmo O ritmo daí Vamos, saia Vamos, saia Desprenda-se daí Pode parecer que não Que não Mas você já se esqueceu que respira Que respira!” Ritmo – Cultivo
Os grupos Sativos tem como cartão de visita esta impessoalidade à cultura pósmoderna, capitalista, sem deixar de lado exceções, mas esta prevalece em sua grande maioria. Buscam uma vida mais centrada no homem, em suas decisões e possibilidades, procuram ter um olhar mais realista e uma preocupação maior nas suas ações. Atuam na sociedade sobre uma perspectiva holística, abrangendo o todo na construção de seus conceitos à cerca das questões humanas, transcendendo com espiritualidade, adotando um significado na qual traga uma utilidade para nossas vidas, isso é espiritualidade, não nos tornarmos medíocres, servir a um propósito. É a percepção de zelo sobre algo, um exemplo é a preservação do meio ambiente e dos relacionamentos sociais, cabe a nós, se sentirmos que nossa vida tem algum valor, precisamos fazer com que ela tenha valor, que não seja inútil, então temos que cuidar, cuidar daquilo que nos permite à vida, assim estaremos cuidando de nós mesmos, espiritualidade. Culturalmente aprendemos a seguir modelos bem sucedidos, é uma herança herdada talvez desde os primórdios e passada por séculos, o modelo contemporâneo em maior evidência hoje indiscutivelmente é o modelo americano, por ter se tornado uma potência mundial e estar se mantendo enquanto tal já por um bom período, cada povo tem sua cultura, cultura deriva do latim colere que significa cultivar. O Brasil provém de uma cultura indígena, esta extinta por interesses coloniais e religiosos, sendo introduzida uma cultura portuguesa, mas que sofreu influências africanas e posteriormente de diversas regiões do 34
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mundo. Nosso país é culturalmente mestiço, a cultura é um conjunto de manifestações humanas que se opõe à natureza humana e o comportamento natural, são padrões apreendidos e desenvolvidos pelo homem, é o que nos determina como cidadãos. O modelo cultural americano vem se difundido no Brasil, isso é inquestionável, sofremos estímulos americanos por todas as partes e em quase tudo aquilo que temos contato, somos influenciados por uma cultura narcisista, onde os americanos não estabelecem uma relação de troca e sim de imposição de sua onipotência. Com a tendência em se espelhar naqueles que obtém sucesso, nos vencedores por assim dizer, tiramos a possibilidade do autoconhecimento, da percepção de nossos limites, buscamos copiar aqueles que tem maior visibilidade a fim de almejarmos suas respectivas conquistas, esquecendo do processo de adaptação e subjetividade, ou seja, cada um tem a sua maneira de executar e construir algo, por mais que tentemos uma execução fiel, é impossível tal feito, até mesmo para aquele que o originou. Não se pode executar duas (ou mais) tarefas com a mesma precisão, os mesmos detalhes, para o homem a perfeição não passa de uma utopia. A prática que leva as pessoas a copiar um modelo, seguir seus passos, reduz o homem, faz com que ele se torne apenas um coadjuvante de sua própria criação, o que consequentemente causa, talvez imperceptível para a maioria por se tratar de um processo inconsciente, uma noção de inferioridade onde na angústia percebemos que o homem se coloca como centro das limitações. À medida que eu ia me relacionando com as pessoas, ia descobrindo mais sobre o ser, seus comportamentos e forma de pensar, ali estava o que eu não iria aprender em nenhuma sala de aula e que não teria acesso em nenhum livro de Psicologia, era como diria Nietzsche, humano, demasiado humano. A minha fome de aprendizado fez com que sentisse necessidade e vontade de frequentar ambientes diversos, para ter contato com públicos diferentes, que se comportavam e pensavam de outra maneira, como havia começado a trabalhar, resolvi investir o meu salário em prol da minha especialização e assim comecei a fazer. Comecei a pensar sobre este novo campo de atuação, como que eu faria? O que eu faria? De que iria precisar? Então comecei pela imagem, comprei algumas roupas, pois teria que me adequar com o ambiente que passaria a frequentar, o meu guarda roupas já me favorecia bastante, as minhas roupas eram distintas, cores fortes, com estampas singulares, tinha um estilo peculiar, sem ser arrojado. Era discreto, porém tinha um certo destaque, escolhia muito bem minhas roupas quando ia sair, tinha que ter uma harmonia, a bermuda ou calça com o tênis ou 35
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sapatênis e a camisa, meu cabelo era cuidadosamente penteado para ficar com um ar de despenteado, sem gel e sempre com barba baixa, mesmo que pouca, avacalhada e cheia de falha. Estava em Sabará, nas férias, e um amigo me chamou para ir numa boate em Belo Horizonte, alguns minutos de Sabará, ele ia encontrar com uns colegas de trabalho dele e fomos para lá. A boate estava lotada e encontramos com os caras, tinha cinco colegas, ficamos próximo ao balcão curtindo, todos estavam bebendo tequila, menos eu, que preferia uma cervejinha gelada, e as rodadas de tequila descendo, uma atrás da outra. No palco tocava uma banda de axé e tinha muitas gatas dançando na pista, comecei a reparar as mulheres que ali estavam, procurando alguma que fosse interessante, foi quando o vocalista chamou algumas ao palco para dançar, subiu seis meninas e uma delas fez meu coração bater mais forte, elas começaram a dançar e essa tinha um jeitinho tão gostoso de se mexer que eu pirei, queria ela. Os caras lá bebendo tequila, fazendo uma bagunça e eu parecia estar em outro mundo, só queria ver ela dançar, estava admirado com tanta beleza e sensualidade, elas estavam disputando quem dançava melhor e a cada música uma era eliminada. A que eu queria tinha ficado por último, disputando com uma menina, ela ganhou e dançou mais uma música sozinha, eu lá embaixo, já não aguentava esperar a hora dela descer do palco para tentar uma aproximação. Quando a música acabou, comecei a andar para o lado do palco, mas assim que ela desceu, parecia uma avalanche, aquele monte de homem partiu para cima da menina, cada passo que ela dava era uma cantada recebida, aquilo me desanimou, como iria chegar nela depois dela ter sido cantada por mais da metade da boate. Acho que ela nem queria ver homem mais, uns puxam ela, outros entravam em sua frente tentando agarrá-la, pegavam em seus cabelos quando passava, ela já estava até irritada, com tanto cara em cima. Tinha uma amiga dela sentada na outra ponta do balcão e depois de muito tempo ela conseguiu chegar até a amiga, de longe podia perceber o quanto estava reclamando com a amiga de todo aquele assédio, mas não queria desistir, quando empolgava com uma mulher, ficava viajando nela a noite inteira e se desperdiçasse a chance de chegar me lamentava por semanas, tinha que conseguir um modo de conversar com ela, mas como, depois de tudo que havia acontecido. Fiquei observando ela, ainda não havia desistido, mas tinha que ter uma abordagem diferente daquelas, algo que a surpreendesse, ela estava tomando cerveja com a amiga, vi que havia virado as ultimas gotas da lata em seu copo e
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quando estava quase vazio, chamei o garçom e pedi que ele entregasse uma lata para ela, o garçom anotou a lata na minha comanda e foi lá entregar para ela, entregou e disse: - Aquele rapaz mandou para você. Apontando o dedo para mim. Eu, que estava do outro lado do balcão, levantei meu copo, dei um sorriso e balancei a cabeça, fazendo um sinal de sim, ela respondeu com outro sorriso, era tudo que precisava para me aproximar dela, parti em direção da gata, com apenas uma frase pré-definida na minha cabeça, esta que seria o primeiro passo da conversa, o que viesse depois seria improviso. Quando me aproximei fui dizendo um oi! Sorridente, e ela: - Obrigado pela cerveja. - De nada, é que depois de dançar aquele monte de música, parecia que estava com sede. Eu disse, com um tom de brincadeira. - Você me viu dançando? Que vergonha... - Vergonha nada, você mandou bem no palco. Até perguntei o garçom se tinha chuveiro no banheiro, estava precisando de um banho de água fria. Ela riu bastante e continuamos a conversar, nós três. Depois de algum tempo conversando, pedi licença para ir ao banheiro, afinal sabia que a opinião da amiga era importante e por tratá-la tão bem, interagindo e incluindo-a no papo, ela não teria como falar mal de mim. Quando saí do banheiro o meu amigo me parou e perguntou sobre a menina, falei que estava conversando com ela, que ainda não tinha cantado, mas que pretendia assim que tivesse oportunidade, eles ficaram muito curiosos, pois não tinham percebido o lance, estavam muito ocupados bebendo e quando assustaram eu estava lá, conversando com as meninas, queriam saber o que eu tinha falado, o que ela tinha falado e foi quando do nada, o garçom chegou e disse para mim: - O rapaz, a menina tá perguntando se você vai voltar, tá te chamando lá. Quando escutei o garçom dizendo aquelas palavras, já sabia que ela era minha, que estava a fim, então voltei para ela e na primeira oportunidade que tive a beijei, que beijo gostoso, que mulher gostosa, ficamos a noite toda juntos trocando beijos com um tesão... 37
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libidinosa. No fim da noite elas foram embora com a gente, eu naquele sarro no banco de trás e meu amigo na frente já convicto que não ia pegar a colega dela, que era ruim. Paramos pra ele fazer um lanche, aproveitei pra tomar a saideira com a gata e implorar para meu chegado partir pro 5 letras (motel) pra mim comer a gata e ela queria muito, mas ele não topou, falando que a amiga era ruim. Se fosse o contrário eu comeria, pro brother comer. Combinamos então de deixá-las no centro de BH pra elas pegarem um taxi, e no banco de traz, com meu colega dirigindo e a amiga do lado, ela foi me chupando até entrar no táxi, no centro. Neste momento passei a me interessar pelas técnicas de sedução, assim como os animais usam seus recursos para seduzir, passaria dali para frente dar uma atenção maior a produzir meios de sedução, sejam eles comportamentais, intelectuais, simbólicos. Numa quinta-feira recebi a ligação de um amigo, Rato, chamando para fumar um baseado, perguntou se eu tinha, que estava querendo dar uma bolinha, mas eu também não tinha e ele ficou de arrumar pra nós e me ligar. Passado alguns minutos ele ligou dizendo que tinha conseguido e falando pra mim passar lá na casa dele, então fui para casa dele, assim que me atendeu, falou que estava esperando a ligação do cara pra gente passar lá e pegar, quando ele nem havia terminado de falar direito o telefone dele tocou, e ele atendeu: - Oi...eaí beleza!?! - Pois é, tô querendo pegar pra levar...é... - Pra hoje a noite...é... E eu parado do lado, escutando a conversa dele no celular. - Então, tô querendo o cento...quanto que tá? - O preço tá bom! Mas e o tamanho...? É... - Não, é isso mesmo... - Não, mas meu colega falou que é bom...é... - É, ele comprou com você outro dia, falou que é muito bom...
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- E que horas eu posso pegar aí? - Tá bom então...então tá, tchau! Desligou o celular e ficou calado, eu esperando ele falar alguma coisa, sei lá, e ele tocou em outro assunto, futebol, aí perguntei: - Você está doido, cem gramas? É muito, o que a gente vai fazer com isso? - Cem gramas? O que? Ele disse, sem entender nada. - Você, combinando de pegar cem gramas com o cara aí, tá loco?! O Rato começou a rir, eu sem entender nada, pensei que ele tinha ficado louco, aí me explicou que estava encomendando um cento de salgado para levar pra casa da sogra mais tarde, que tinha combinado com o cunhado da namorada dele de levar e que da última vez o cunhado tinha levado uns tira gosto. Nisso o cara ligou, passamos lá, pegamos a parada, e fomos queimando a caminho do buteco do Maldonado, jogar sinuca. No caminho enquanto o baseadinho já estava pela metade, percebi um carro, pelo retrovisor, colado na traseira e piscando farol igual um louco, olhei para o Rato e disse: - Olha que cara abafado, querendo correr numa avenida estreita dessa. Na hora não tinha como encostar para ele passar, ele piscando o farol e jogando o carro da esquerda para a direita e vice-versa, me deixou meio desconfortável, quando deu uma oportunidade, encostei e o cara passou buzinando em alta velocidade, eu disse pro Rato: - Que cara louco, esse trânsito hoje em dia tá foda, se der mole, cara passa por cima de você e num quer nem saber. Rindo o Rato respondeu: - Olha só o velocímetro, você está a vinte quilômetros por hora, tá querendo o que, a velocidade aqui é sessenta quilômetros. Falou rachando de rir. - Você sabe como é né Rato, velocidade de maluco é no máximo quarenta por hora. 39
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Chegamos no Maldonado pegamos três fichas e uma gelada, e começamos a jogar, o Rato ganhou a primeira e estava jogando muito na segunda, comecei a botar uma pressão nele, falando que ele estava jogando muito na vez dele jogar, brincava limpando a mesa na direção da caçapa, nas bolas fáceis dizia que nunca tinha visto ele errar uma jogada daquela, e a pressão funcionou, ganhei a segunda. Me senti um pouco culpado e na terceira resolvi motivar ele, mas sem entregar o jogo, ainda sim ele ganhou, com alguma dificuldade. Ficava impressionado com o buteco do Maldonado, ali dava gente de tudo quanto é lugar, maluco, cachaceiro, trabalhador, bandido, tudo quanto é raça, e o Maldonado de tão calmo parecia mais uma moça, quase não se ouvia a voz dele no bar, ele sempre estava com aquela cara de sossegado, mais para bobo, e com um sorriso meio tímido no rosto, Mas no buteco dele não tinha gritaria nem confusão, mantinha-se a ordem e o respeito, por mais que a figura do Maldonado não passasse isso, sabe ditador, como ele conseguia manter aquele lugar longe do caos? Será que sua imagem pacifista era o que fazia daquele buteco um lugar pacífico, ele como o líder daquele espaço fazia com que as pessoas se sentissem inibidas de demonstrar raiva, descontrole ou emoções afins? Uma vez ouvi uma história de Gandhi onde uma mãe levará o filho até ele, o menino comia muito açúcar e a mãe desesperada, já sem saber o que fazer, pois havia tentado de tudo para que o filho parasse de comer tanto açúcar, resolveu recorrer a Gandhi, na qual seu filho admirava muito, para ajudá-la na questão de seu filho. Chegando lá ela apresentou o problema de seu filho a Gandhi e pediu com todas as suas forças que a ajudasse, Gandhi olhou para a mulher e pediu que ela voltasse em quinze dias, pois naquele momento não poderia ajudar. A mulher foi embora muito decepcionada, pois achava que Gandhi com sua inteligência e boa vontade a ajudaria, passados quinze dias ela retornou, Gandhi sentou-se ao lado do menino e disse a ele que não comece tanto açúcar, o menino olhou para Gandhi e prometeu que não comeria mais açúcar em excesso. A mãe vendo a simplicidade da ação de Gandhi, perguntou por que teve que voltar após quinze dias, para somente dizer-lhe que não comesse mais açúcar, e ele falou, é que quando a senhora veio pela primeira vez eu também comia muito açúcar. Essa era a lição de Gandhi, não podemos dizer para as pessoas fazer aquilo que também não fazemos, se queremos mudar algo nas pessoas, temos que começar mudando em nós mesmos. Os dias se passavam e a cada dia que passava eu via o mundo de uma forma diferente, em tudo buscava um sentido, mais de um ponto de vista, para mim uma moeda tinha mais do 40
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que dois lados e eu queria ver os outros lados da moeda. Lembro de um fato que aconteceu, algo corriqueiro e que causa um falso juízo, estava ficando com uma garota devia ter menos de dois meses, combinamos de sair à noite, lá pelas nove, tinha falado com ela que iria jogar bola das seis ás sete da noite, que oito e meia pegaria ela. Saí para o futebol e deixei o celular em casa, pois ela estava enchendo saco por causa da bola, avisei que não levaria o celular, joguei bola e depois da pelada, parei pra tomar uma com a rapaziada, só pra matar a sede, e fui embora. Cheguei em casa umas dez pras oito e minha mãe já veio falando que uma fulana tinha ligado me procurando umas três vezes, achei meio estranho, ela ligar lá pra casa, mas tudo bem. Peguei a toalha e fui tomar banho, quando estava terminando de tomar banho o telefone lá de casa tocou, minha mãe bateu na porta do banheiro dizendo que era para mim abrir a porta, atendi o telefone e adivinha quem era? Era ela, puta de raiva, me xingando igual uma louca, ela falava tanto que eu pensei que ela fosse morrer sufocada e eu calado escutando sem saber o porque daquilo, quando ela terminou, perguntei: - Por que você tá gritando comigo? - Por que você não atende esse celular... - Mas eu não te falei que ia deixar o celular em casa? - Então por que você desligou o celular se ele estava em casa? - Eu? Deliguei o celular? Mais eu nem levei... - É... eu liguei uma vez você não atendeu, daí quando liguei de novo, chamou duas vezes e desligou na minha cara, por que você desligou? E antes de ligar pra sua casa liguei para ele e está desligado até agora, por quê? - Que desligado, o celular ficou aqui em casa... - Que você está aprontando em? Falou que ia jogar até sete horas, liguei sete e meia e você não tinha chegado ainda, tava jogando bola onde? Jogando com quem... Antes que ela terminasse desliguei o telefone, com raiva, ela estava me xingando a toa, não tinha desligado celular nenhum. Saí do banheiro e fui direto no meu celular, que estava no meu quarto em cima da cômoda, quando cheguei lá, vi meu celular caído no chão, bateria para 41
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um lado, celular para outro. Montei meu celular e resolvi ligar para ela explicando que quando ela ligou meu celular vibrou em cima da cômoda e deve ter parado na beiradinha, ao ligar novamente ele voltou a vibrar e caiu no chão, desmontando-se. Quando liguei ela atendeu com um oi, achei estranho me atender daquele jeito, tinha desligado o telefone na cara dela e ela me atende com um oi, então falei: - Oi, encontrei meu celular no chão todo desmon... - É você? Por que você tá me ligando de número confidencial? Tava com treta né, eu sabia, você num vale nada... Desliguei o celular na cara dela de novo, tinha esquecido que meu celular quando solta a bateria, desconfigura tudo e não envia o id de chamada, tem que configurar e colocar para enviar o id de chamada, mas nessa hora, num queria ver a cara daquela garota nem pintada de ouro, ela não dava tempo para explicações e fazia tempestade em copo d‟água, num tinha jeito de ter uma conversa racional com ela. As suas vivências e os estereótipos sociais, sempre vinham em primeiro plano, eu não tinha feito nada do que ela estava me acusando, não tinha como provar que ela estava errada, ainda por cima, dificilmente ela acreditaria na minha história, fiz o que muita gente faria, nunca mais liguei ou atendi ligação dela. Este é o campo das probabilidades, é um fato verídico? É. Poderia ser mentira? Poderia. Como descobrir? Não sei, mas se a gente não puder dar a oportunidade das pessoas se explicarem, sem fazer um julgamento premeditado, deixar nossas vivências de fora, deixar o óbvio de lado, e escutar, somente escutar o que o outro tem a dizer, poderíamos fazer uma grande evolução no campo das relações. Este é o terceiro lado da moeda, o lado do não sei, na qual está posicionado entre o lado da mentira e o lado da verdade, sendo que esta dualidade de conceitos (verdade/mentira) possuem lados que dizem respeito ao subjetivo, ou seja, o que é verdade e o que é mentira? Como estava trabalhando havia sobrado menos tempo para os estudos, mas tudo ia bem, na faculdade e no trabalho, aprendia muitas coisas, principalmente o funcionamento de uma instituição. Pude perceber de perto as falhas no ambiente de trabalho e por fazer parte do quadro operacional, pude ver e analisar todo o trabalho de liderança, de chefia e constatei que ser chefe é muito mais do que ordenar tarefas, um líder é o termômetro de um grupo, ele que conduz o grupo ao sucesso. É o papel do chefe motivar e garantir que as tarefas sejam 42
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executadas com sucesso e com o mínimo de impacto possível, é ele quem assegura o melhor para sua equipe, quem discute as melhores formas de execução de uma tarefa em conjunto com a equipe, que transmite os valores e a cultura da instituição à sua equipe, que não dá ordens, estabelece um padrão de produção onde os próprios funcionários tomem as devidas iniciativas relacionadas ao trabalho, zelar pela integridade física e mental é um dever do líder, ensinar e fazer-se compartilhar o aprendizado assim como buscar o desenvolvimento de todo o grupo. Um bom líder conhece sua equipe, suas capacidades e limitações e designa as tarefas de modo a adequar-se com as habilidades de todos, ele conversa e acolhe quando necessário, dando apoio moral e/ou físico, mantém um bom ambiente de trabalho, atendendo as demandas da equipe quando necessário e quando isso não se torna possível, dá um feedback, explicando com clareza as questões hierárquicas. Tudo que via em sala sobre Psicologia Organizacional, toda ênfase dada à liderança, ao gestor, tudo que se via na teoria, nunca presenciei na prática, nunca vi uma empresa que tivesse um modelo exemplar de liderança, era pura utopia, a cultura do líder nas organizações não passava de meras demonstrações de poder, que vinha de cima para baixo, hierarquicamente inquestionáveis, donos da verdade. Essa ainda é a visão de líder no século XXI, uma visão limitada e totalmente incoerente para os padrões de sociedade contemporânea, uma visão ultrapassadíssima O ser humano parou no tempo. Vemos hoje o mercado de trabalho falar muito em falta de profissionais qualificados, mais que desqualificação é esta? Vemos os jovens lutando para conquistar seu espaço no mercado de trabalho, cursos técnicos, faculdades, cursos de línguas, especializações, todos em busca de uma oportunidade. O mercado de trabalho a cada ano vem sendo mais exigente, nós fazemos um curso técnico e eles exigem faculdade, fazemos faculdade e eles exigem um idioma, aprendemos um novo idioma e eles exigem especialização, fazemos a especialização e o que nos exigem? Experiência, quanto mais buscamos a competência, mais novas demandas organizacionais surgem, cria-se frustação. Há uma busca por títulos e não por um conhecimento agregado, que é construído por um plano de carreira, adequando-se à filosofia de cada instituição, fundamentado nos desafios cotidianos que surgem naquele lugar específico, tudo no seu tempo. Vivemos uma nova era, a era da competitividade do mercado, do extremismo capitalista, novas medidas são necessárias, mas não há espaço para o novo, o novo já vem contaminado pelo velho, o jovem não consegue ter voz ativa, pela incapacidade desses, Conservadores (para não chamar de burros), que estão nos topos das organizações e que fecham a porta para o novo. Buscam uma solução imediata, pois não há tempo para se pensar, passam por cima de valores e desrespeitam aqueles que realmente fazem acontecer, 43
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aqueles que produzem, priorizando a produção sob pressão, sem se preocupar com os que são responsáveis por ela. O empregado é usado e abusado, como um objeto, os padrões organizacionais são impostos como obrigação, limitando-os a trabalhar da forma como a empresa pensa ser compatível com seus ideais e não da forma com que o empregado se adeque melhor, da forma com que expresse suas habilidades em prol da produtividade, o que causaria uma maior identificação com a tarefa executada e consequentemente um fazer íntimo, uma realização pessoal, uma noção de participação na produção, orgulho, ao invés de um trabalho sem sentido, como no modelo de linha de produção, onde o que se faz não passa de uma tarefa repetitiva, sem sentido algum, impessoal, executada por qualquer pessoa que se disponha a tal ação. Gera-se uma falta de empatia, uma irresponsabilidade profissional, onde os empregados não vestem a camisa da empresa e não se comprometem com a mesma, podemos perceber pelos grandes índices de evasão e pela busca constante de algo melhor, ou seja, outro ambiente de trabalho, outra empresa ou até mesmo outra profissão. O empregado se sente desvalorizado, abandonado, desvalorização esta causada pela própria visão organizacional, onde o empregado é descartável, substituível, isso pela alta taxa de desemprego, por um vasto banco de dados curriculares, a empresa apresenta uma postura como se o empregado dependesse dela e não o contrário, como se fosse o ganha pão do empregado, onde na verdade o empregado é o ganha pão da empresa. Não importa quantas pessoas queiram entrar numa empresa, o quanto uma vaga seja concorrida, se não cuidarmos e valorizarmos nossos empregados, este efeito evasivo será sempre uma constante, temos que atender às necessidades dos empregados, dando o apoio e a oportunidade de crescer, de participar, se identificar com o trabalho desenvolvido, temos que ser mais humanos, mais justos e mais altruístas. Navegar é Preciso (Fernando Pessoa, 1888 – 1935) Navegadores antigos tinham uma frase gloriosa: "Navegar é preciso; viver não é preciso". Quero para mim o espírito desta frase, transformada a forma para a casar como eu sou: Viver não é necessário; o que é necessário é criar. Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo
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e a minha alma a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho da essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. É a forma que em mim tomou o misticismo da nossa Raça.
Vivemos um momento complexo na educação, nas escolas de ensino fundamental, talvez pela facilidade com que se tem a informação nos dias atuais, consequência da internet, os alunos parecem ter se desmotivado pelo aprendizado em sala de aula. O processo escolar por ser um processo metodológico causa no aluno um certo desinteresse, uma vez que o conhecimento está ao seu alcance por dois simples cliques de mouse, a questão do cronograma de ensino, as etapas do aprendizado, tornaram-se um ponto a se considerar dentro núcleo docente. O aluno tem a quem recorrer (internet) para complementar seu aprendizado e isto parece ter ganhado grande destaque no meio discente, onde o contexto escolar virou ambiente de socialização, nada mais que isso, é cada vez mais frequente e comum ouvir falar de bullying e violência escolar, está ficando difícil de educar. Este papel de educador, é um papel que no meu ponto de vista vem sendo tratado com muito descaso, seja por parte do governo, professores e pais, parece que um vem passando esta responsabilidade para o outro, de mãos em mãos, e ninguém quer se responsabilizar por nada, mas quem poderia se responsabilizar? Numa ação em que todos estão errados, ora o governo, ora professores, ora os pais e até mesmo os alunos, não há como colocar a culpa em ninguém, suas próprias atitudes, de passar a responsabilidade adiante, os isenta de culpa, onde se torna claro que são todos culpados. Os pais, por motivos pessoais, seja pela falta de tempo, que é uma realidade constante nas famílias contemporâneas, seja pela falta de paciência, ou até mesmo por não exercer um acompanhamento em conjunto do filho, passam esta responsabilidade para os professores, estes que por sua vez, por culpa do governo, apresentam uma proposta de ensino ultrapassada, que não atendem o interesse dos alunos da era tecnológica, que vem sendo desvalorizado quanto aos encargos da profissão, que por motivos mil não recebem a atenção do governo, que está muito ocupado desviando verbas da educação e dos cofres públicos em seu beneficio 45
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próprio. Temos que agir coletivamente, a começar pelo governo, dando o suporte necessário à educação, pois esta sim é uma necessidade básica enquanto governo, investir na formação e especialização de professores, trazendo para a comunidade docente cursos de capacitação para que acompanhe o dinamismo e linguagem dos adolescentes, proporcionar condições de trabalho adequadas e salários mais justos, acompanhar o desenvolvimento educacional inserindo melhorias através das possíveis falhas detectadas. Os professores precisam ter um contato maior com o universo teen, conhecer seus comportamentos e linguagem, para assim desenvolver técnicas que prendam a atenção dos alunos e que desperte o interesse no aprendizado, faz parte do trabalho, desenvolver-se continuamente é um sinal de profissionalismo e amor à profissão, tem que levar para a sala de aula dinamismo e abordar os temas de forma lúdica e interacionista. O papel mais importante seria talvez o papel dos pais, que é o de acompanhar o desempenho dos filhos na escola e o desenvolvimento social neste mesmo contexto, é buscar desde cedo a interação social e a aceitação das diferenças, para que não se crie um adolescente praticante de bullying e/ou violência escolar, é muito importante que os pais tenham esse cuidado e que tome as medidas certas caso algum destes fatos venha acontecer, procurar um apoio psicológico e conversar mais com seu filho, procurar entender seu ponto de vista e dar-lhe atenção. Tais problemas educacionais não são apenas privilégio do ensino fundamental e médio, no ensino superior existem problemas facilmente detectáveis, começando pelo fato de que a educação superior tornou-se um grande negócio, altamente lucrativo, chegando a proporções de grandes instituições com cotas altíssimas na bolsa de valores. A preocupação deixou de ser qualitativa e passou a ser quantitativa, sendo prioridade a captação de alunos, deixa-se a grade curricular de lado, de investir em professores qualificados didaticamente e promove-se uma guerra entre as instituições de ensino, onde o diferencial são os preços accessíveis, e a negociação das mensalidades, bem como programas de financiamento. Estes que apesar de tornarem o conhecimento ao alcance daqueles menos favoráveis, abrem brechas para condições menos qualificadas, por favorecer o crescimento da demanda, da procura. O MEC ao invés de fazer avaliações periódicas, deveria introduzir uma avaliação constante, não só baseadas em notas, mas considerando-se a opinião discente, constatando o que está relacionado no cronograma de ensino, como o conteúdo pragmático que está sendo apresentado aos alunos em sala de aula.
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O ingresso nas faculdades é cada vez mais precoce, hoje, com dezessete anos e cumprindo as exigências necessárias, o jovem já está apto a iniciar seus estudos no nível superior. Com tantos jovens nas faculdades o conceito de universitário vem ganhando proporções diferentes, o termo universitário parece referir-se a diversão, a alguém que gosta de festa, parece também que é este tipo de situação que os jovens vêm buscando nas universidades, não que isso seja uma coisa abominável, pelo contrário, faz parte do desenvolvimento juvenil, esta forma de se relacionar, trocar experiências. Mas não devemos perder o foco, que é o conhecimento, aprender a profissão, pois no futuro seremos profissionais, estaremos a serviço da sociedade, sendo cuidando da saúde pública, projetando construções civis, fazendo pesquisas com tecnologia de ponta, proporcionando a justiça sobre amparo da lei, temos que fazer o certo e saber o que estamos fazendo, com responsabilidade e ética. Ser um universitário não é apenas diversão, é um compromisso pessoal e social, é contribuir para um mundo melhor, é mostrar que a educação e a razão são capazes de mudar o mundo. “Depois de 20 anos na escola Não é difícil aprender Todas as manhas do seu jogo sujo Não é assim que tem que ser Vamos fazer nosso dever de casa E aí então vocês vão ver Suas crianças derrubando reis Fazer comédia no cinema com as suas leis” Geração Coca-cola - Legião Urbana
A faculdade estava ficando apertada, como estudava na parte da manhã e trabalhava na parte da tarde/noite, não tinha tanta disponibilidade para estudar, afinal tudo tinha seu sacrifício, mas não podia sacrificar minha faculdade, infelizmente falar é mais fácil do que fazer. Como estava ganhando meu dinheiro e tinha como preocupação somente gastá-lo, não pensava em outra coisa, estava saindo muito e não conseguia acordar cedo para ir pra aula, mas como já estava na época de estágio curricular e TCC (trabalho de conclusão de curso), não tinha aula todos os dias. Os horários das minhas aulas eram diferentes, tinha montado minha grade de forma que conseguisse assistir as aulas sem problemas, a não ser aqueles que eu mesmo criasse. Nesta época tinha muita coisa acontecendo, muitas festas, tinha uma república de uns capixabas na minha rua, os caras eram muito sangue bom, amigos que levarei pro resto da vida, e nessa república rolava algumas festas que nós organizávamos, não tinha droga, mais tinha muita bebida, cerveja pra caramba, e muita mulher louca. A gente 47
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mesmo não sabia de onde aparecia tanta mulher louca, às vezes os caras marcavam uma patifaria numa terça, ou numa segunda, não tinha dia, como estudava de manhã não podia ir em todas, ficava a noite inteira escutando aquela gritaria, barulhada, louco pra estar lá. Geralmente as festas que a gente fazia, a galera ficava a mil por hora, a casa ficava cheia de mulher, pau quebrando, todo mundo no quintal, rolando um funk, a mulherada até o chão, rebolando, nego montado em cima, aquela putaria, cara agarrando e arrastando pro quarto pra comer, mulher ficava com um e dava pra outro, tudo no clima de amizade, tinha mulher pra todo mundo. A gente queria mudar o público feminino um pouco, chamar umas meninas mais responsa, mais bonitinhas, que escutasse outra coisa que não fosse funk, nada contra, mas é que a gente não curtia muito, queríamos colocar nossas músicas e fazer um social, uma festa menos quebra pau mesmo, que desse pra bater um papo legal, então cada um chamou umas colegas mais cabeça, mais gatinha e começamos a buscar as meninas, algumas vieram no seu carro mesmo, o que fazia diferença, pois a gente se comprometia em levá-las em casa, na hora que elas quisessem ir embora. As meninas foram chegando e a festa começando, aos poucos estava cheio de mulher, o clima ainda estava meio devagar, a gente brincava com um amigo nosso que ele estava tão acostumado com as meninas safadas, que quando encontrava com as certinhas, não sabia nem conversar, num tinha assunto. Tinha se acostumado tanto com a patifaria, chegar esfregando, agarrando, falando isso e aquilo, que quando viu aquele monte de gatinha, ficou sem reação, paralisado, nem parecia ele, ele que sempre foi a alma das festas, um cara sagaz, extrovertido, que agitava as festas, colocava as meninas pra dançar, estava ali, parado sem saber o que fazer ou como agir. Logo quando a gente precisava mais dele, ele tinha deixado a gente na mão, não por que ele queria atrapalhar, ou coisa parecida, ele realmente não sabia o que fazer, estava tão invernado na patifaria que não sabia ter um comportamento diferente daquele. A festa estava começando a ficar meio chata, grupos de mulheres de um lado, você sabe como é, mulher não mistura de jeito nenhum, grupo de homens do outro, de vez enquanto alguém tentava uma abordagem para criar um clima de festa, mais estava difícil. O som não parecia estar agradando muito, as meninas pedindo sertanejo e ninguém tinha sertanejo, aquele clima, foi quando um dos moradores da república chegou do serviço, o cara era louco, muito agitado, 220 volts, já chegou gritando, fazendo a maior bagunça, ao seu estilo, ele era assim mesmo. Já estávamos acostumados, ele foi em direção ao armário, pegou uma garrafa de cachaça, num 48
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só gole, deve ter tomado metade da garrafa e saiu gritando pra dentro da casa, as meninas ficaram sem saber o que estava acontecendo, com uma cara de espanto, perguntando quem era aquele cara, falamos que ele morava ali, que estávamos invadindo a casa dele, o comentário era geral, falando que ele era doido e coisas do tipo, assustadas. Após alguns minutos ele apareceu, do nada, passando pela porta da cozinha, que dava no quintal, nas mãos, carregava um monte de roupa suja, estava pelado, peladão, sem nenhuma roupa, caminhando em direção ao tanque, dizendo que ia lavar roupa, bêbado, cantando. Começou a lavar roupa, as meninas com aquela cara de espanto, olhando uma para as outras, começaram a rir, dizendo que ele era louco, então ele entrou dentro do tanque, sentou no bojo, abriu a torneira e disse: - Quem quer dar banhinho no bebê? Nesta hora teve um que colocou um cd de funk, aumentou o som, apagou a luz e aí meu irmão, aí a festa começou, aquela loucura, teve uma que levantou e foi lá dar banho no bebê, a música rolando, cerveja descendo, a mulherada ficou louca, acabei dormindo por lá mesmo. Um dos caras da casa estava de viajem trabalhando e estava para chegar, era a única cama disponível na casa, então pulei na cama. Quando o cara chegou, de manhazinha, cansado depois de passar a madrugada inteira trabalhando, eu estava lá, dormindo até babando, com duas mulheres na cama do cara, ele me acordou puto: - Pô bicho... chego cansadão do trampo, louco pra dormir, quando entro no meu quarto do de cara com você, dormindo com duas mulheres. Você mora aqui do lado cara, tinha que dormir na minha cama. Já terminou de falar rindo da situação. Eu era uma pessoa muito amigável, tinha contato com a rapaziada do bairro e um coleguismo com a maioria, nesse ano aconteceu a invasão do crack não só em Ipatinga, mais no cenário brasileiro, foi de repente, quando assustei já tinha um monte de gente fumando crack, não entendo o porquê do crack ter se espalhado com tanta rapidez, talvez por existir uma conduta pré-moldada daqueles que se julgam pesadelo da sociedade. Assim como um evangélico que acredita na sua ideologia de vida e segue os passos da sua religião, os caras que zelam pela sua reputação de louco, de maluco, passam por provações na qual ele tem que se afirmar enquanto tal. Um sujeito taxado de delinquente (não no termo literal), um garoto da classe média, que fuma um, ou cheira, gosta de beber em excesso, arruma confusão e briga na rua, ele tem seu ideal, tem que manter sua reputação, vive do respeito e este é posto a prova a 49
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todo o momento, seja por alguém que o desafie ou por alguma coisa que simboliza este estilo de vida, no caso o crack. Eu tinha um pouco disso na minha história, esse jeito rebelde, de resolver as coisas na rua, da forma que elas se apresentassem e nisso fui vendo muitos colegas se envolverem com o crack, talvez na tentativa de se manter enquanto tal. Eu sentia que não precisava provar nada a ninguém, pois eu não era somente aquilo, era um pouco de tudo, era maluco e careta, durão e sensível, agia de acordo com o momento, consciente de minhas limitações e possibilidades. Em um dos meus estágios curriculares tínhamos que fazer um trabalho numa casa de recuperação para drogatitos, quando chegamos nessa casa fomos apresentados a todos os internos, apresentados como doutores, seguido de uma ênfase muito grande, o apresentador exigiu que os internos nos agraciassem com uma salva de palmas, neste momento me senti mal, não merecia um tratamento daqueles, não tinha feito nada, era somente uma apresentação. Enquanto eles batiam palma, comecei a olhar para os internos, o grupo era enorme mais de quarenta, queria ver o entusiasmo ou não das palmas, claro que era uma ação longe de ser espontânea, muitos comprovaram isto pela forma com que batiam palma. As palmas possuem tanto o poder de recompensa quanto um poder punitivo, uma salva de palmas espontânea, forte, aplausos de pé, seria uma forma de reconhecimento, ou até mesmo admiração, o que a torna totalmente recompensadora, por outro lado, uma salva sem entusiasmo, fraca, com aplausos sem ritmo e com poucas batidas, evidência uma punição, uma não adesão ao que lhe foi apresentado, desinteresse. No entanto o que presenciei foi uma salva, mas uma salva de palmas que não se encaixava em nenhum dos dois padrões, nem o recompensador, nem punitivo, era uma salva condicionada, representada, sem sentido, carente de um processo de construção, como se fosse ensaiada, bate palma aí gente, e batia-se palma. Dentro desse grupo vi alguns conhecidos, de vista, mas me surpreendeu dois colegas do meu bairro, ali no meio daquele grupo de pessoas, colegas que conheci na adolescência, quando experimentei maconha pelas primeiras vezes eles estavam junto, éramos quatro colegas, estes dois que à grosso modo estavam com problemas com o crack e um outro que havia se tornado crente há tempos. Fiquei surpreso não só pelo fato de tê-los encontrado ali, tinha algum tempo, um bom tempo que não tinha notícias deles, mas como eles poderiam se tornar dependentes do crack, nós tínhamos fumado alguns baseados, ainda que poucos, mas nós já tínhamos fumado maconha juntos, agora eu estava num lugar de “solução” e eles no de “problema”. Fiquei pensando no que eles pensaram quando me viram ali diante daquela 50
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situação, sendo apresentado como Psicólogo, que iria fazer um trabalho com os internos, buscando ajudar e dar apoio a aqueles que ali estavam. Nessa hora pensava que estivessem pensando, o cara fuma um e vem aqui falar para gente não usar droga, ou que estivessem vendo como uma situação engraçada, ou com muita vergonha de mim, por verem eles naquela situação, ou qualquer outra visão. Mas eu, eu queria ajudar, talvez por me encontrar numa situação muito diferente, a gente se comove com toda aquela tristeza, um lugar triste, ditador, parecia uma prisão. A proposta de trabalho era formar um grupo de rapazes internos da casa e um grupo de apoio à família desses rapazes, o público alvo eram internos com sete meses ou mais de reabilitação, sendo que o tempo necessário para o processo de cura era internação durante nove meses, tempo estipulado pela OMS (Organização Mundial de Saúde), que se compara ao tempo necessário para a fecundação, o processo é encarado como uma nova vida, renascimento, daí vem os nove meses. Como havia muitos casos de reincidência, o que comprova uma margem de erro muito grande se tratando de eficácia do tratamento, pensei em desenvolver um trabalho que preparasse esse interno para sua saída da casa e que preparasse principalmente sua família para que essa soubesse lidar com a volta deste sujeito, como receber uma pessoa em processo de reabilitação, o que exigiria um outro contexto familiar, uma nova construção enquanto família. Inicialmente tive uma boa adesão por parte dos internos e consegui formar um grupo com dez pessoas, sendo que as famílias destes dez internos eram convidadas à prática grupal, mas esta prática com a família acontecia em horários diferentes, na regra da casa era permitido ver os familiares somente no dia da visita, aos domingos, ou seja, começaria a trabalhar com dois grupos. Dentro do grupo de internos, discutíamos questões relacionadas ás expectativas do sujeito quanto ao término do processo, suas ansiedades, perspectivas, medos, o contato e a reinserção social, e a volta ao contexto, tudo que pudesse se relacionar seja enquanto dúvida, enquanto opinião. No próprio discurso dos internos ia se construindo um bom material de trabalho, seus medos e insegurança eram compartilhados, o que facilitava a participação dos integrantes, era onde muitas vezes intervinha na tentativa de resgatar a segurança e principalmente a opinião dos participantes, o que se via era alguém que vinha sendo rotulado por tanto tempo, taxado de drogado, sofrendo preconceito, desprezo, sendo tratado como inferior pela sociedade.
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Mas de repente surgiu uma situação que me interessou bastante, o diretor da casa de reabilitação me propôs fazer um trabalho com um jovem reincidente, que havia saído da casa duas vezes, antes do processo de reabilitação acabar (nove meses), e estava retornando agora com os pais, tinha saído da casa de reabilitação a uns três dias antes e os pais estavam trazendo de volta. As outras duas vezes que saiu tinha acontecido a pouco tempo, a menos de dois meses, saiu e dentro de semanas os pais o trouxeram de volta, assim como estava acontecendo naquele momento, o diretor havia feito a proposta assim, do nada, na frente dos pais, quando chegaram trazendo o filho, se queixando e falando mal do comportamento do garoto. O pai chegou na casa de reabilitação, entrou com o filho, a mulher e duas malas na mão, falando do filho e a mãe também falando bastante, reclamando do filho. Eu estava próximo ao portão conversando com o diretor, tinha acabado de sair do primeiro encontro com o grupo, estávamos conversando sobre como havia sido o encontro, e o pai chegou dizendo: - Já não sei o que faço com esse menino... Olhando para o diretor. E continuou a se queixar, pediu desculpas pelo comportamento do filho e perguntou se aceitaria ele de novo, o diretor perguntou ao menino se ele queria ficar, o menino com um olhar meio desanimado, respondeu que queria e aquela conversa chata. Sermão no garoto, do pai, da mãe e do diretor, eu parado vendo aquela situação, fiquei sem graça e com receio de estar sendo inconveniente, pois a conversa era fechada, se referia somente ao diretor e família, não me encaixava na história. Esperei um momento mais propício para sair, e quando quem estava falando deu uma parada para respirar, dei um tapinha no ombro do diretor me despedindo, dizendo que “iria chegar lá”. Que arrependimento, ele pareceu ter se lembrado de mim e me apresentou como Psicólogo, completando que estava fazendo um trabalho com alguns internos, nisso a mãe nem esperou o diretor terminar e já foi logo dizendo: - Aí ó, você poderia fazer um trabalho com ele! O diretor foi logo fazendo o marketing da ideia: - Olha só! É mesmo, ia ser bom pros dois, você executaria mais um trabalho aqui na casa, ia ajudar a gente, por que ele sempre está querendo sair e a gente não pode segurar eles aqui dentro contra a vontade deles, o que você acha? 52
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Como eu falaria não naquela hora, não tinha como, o problema não era falar não para os pais, ou para o diretor, era dizer não para o garoto, não sabia como ele estava emocionalmente, talvez estivesse segurando uma barra, passando por um momento difícil. Achei que dizer um “sim” para aquele garoto, naquela situação, era uma questão além de tudo, de ética profissional, seria como se você estivesse em um ponto de ônibus, desse sinal para o motorista parar e ele passasse direto, fingindo que não te viu. Mas esta não era nem de perto a proposta e a intenção do trabalho que era para ser feito naquela instituição, o estágio era curricular, avaliativo, com supervisão dos casos, assessoradas pelo professor responsável pela disciplina. Resolvi aceitar o desafio, achei melhor não contar ao professor, caso ele viesse a ter uma objeção, estava me sentindo bem com o desafio, confiante, embasado, preparado, se por algum momento achasse que não estava fazendo um bom trabalho, ou algo do tipo, poderia pedir alguns conselhos ao professor ou interromper os atendimentos, iria depender do que aconteceria. Acabei combinando um primeiro encontro ali na hora mesmo, combinando com os pais e diretor um horário, ao diretor pedi uma exceção para marcar ainda naquela semana um horário para um encontro com os três, pai, mãe e filho. Aos pais perguntei sobre a disponibilidade de um horário que seria melhor para eles virem participar do encontro. Marcamos o dia e a hora do encontro, para discutirmos e procurar esclarecer o comportamento do garoto, em estar sempre abandonando a casa de reabilitação e mantendo essa relação viciosa com o crack. Na semana seguinte me dirigi à casa de recuperação para o encontro, havia pensado nesse encontro a semana inteira, principalmente pelo fato de que estaria fazendo estes atendimentos por conta própria, sem supervisão, mas isso não me assustava, pelo contrário, era o momento que estava esperando para fazer a minha Psicologia. Chegando na casa de reabilitação, já tinha pensado numa forma de intervenção, fui até a sala do diretor da casa, cumprimentei-o e perguntei se tinha como disponibilizar uma sala para realizar o atendimento, ele respondeu dizendo que poderia utilizar a sala dele mesmo, que assim participaria do encontro também, pronto, meu primeiro impasse. Virei para o diretor e disse que este seria um processo meu com o garoto, que na psicoterapia existe apenas um tipo de relação: terapeuta/paciente, expliquei que este primeiro encontro com os pais já fazia parte do processo terapêutico e que infelizmente ele não poderia participar, mas que caso ele quisesse acompanhar o processo, o colocaria por dentro do mesmo, respeitando os princípios éticos da Psicologia. Ele pareceu ter ficado um pouco 53
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decepcionado, mas entendeu a situação e disponibilizou uma sala para o encontro, os pais chegaram e o diretor pediu que trouxessem o filho para dar início ao atendimento e seguiu para sua sala. Convidei os pais a entrarem para a sala, conversamos um pouco sobre o garoto e enquanto falávamos dele, ou melhor, enquanto a mãe falava o quanto ele causava problemas. Ele havia chegado, meio tímido, cabisbaixo, pedi que ele se sentasse para darmos início, já me apresentando enquanto estudante de psicologia, oitavo período, e comecei: - Queria que vocês dois me contassem sobre essa decisão de trazer o Pedro para a casa de reabilitação? - Olha, o Pedro estava dando muito trabalho ultimamente, quando descobrimos que estava envolvido com drogas ficamos desesperados e resolvemos buscar ajuda, conversamos com algumas pessoas e uma delas nos contou sobre este lugar, resolvemos vir aqui para conhecer e o diretor da casa, que nos passou muita confiança e nos explicou o tratamento, conversamos com o Pedro e ele aceitou a se tratar. Trouxemos ele há dois meses atrás, internamos ele, conversamos com o diretor, o diretor conversou com ele, estava tudo certo, fomos embora, como os dias de visitas acontece aos domingos, viemos no primeiro domingo de visita, conversamos com ele, perguntamos como estava, ele disse que estava bem, parecia tudo normal, até que na quinta-feira ele apareceu lá em casa, dizendo que não queria mais ficar aqui, que já estava curado , que não precisava de casa de reabilitação. Decidimos que se ele não quisesse voltar poderia ficar em casa, mas com algumas restrições, coisas que eu e o pai dele iriamos impor no decorrer dos dias, a principal delas seria a obediência, que ele iria ter que fazer e concordar com aquilo que a gente pedisse, mas cinco dias depois, peguei ele mexendo na minha bolsa procurando dinheiro, quando tentei pegar minha bolsa de volta ficou muito agressivo, gritando, querendo dinheiro, chegou até me empurrar, me segurei e não dei, e resolvemos traze-lo de volta. Acabou acontecendo a mesma coisa, em menos de quinze dias retornou pra casa, então sentamos com ele e conversamos, desta vez sem dar escolhas para ele, afirmando que traríamos novamente para a casa de reabilitação, foi o que fizemos, foi até naquele dia que você estava conversando com o diretor, que mais uma vez abriu as portas para nós. Não sei mais o que faço com esse menino, já passei cada uma por causa dele, não aguento mais, nem consigo dormir mais, o médico me receitou alguns remédios para dormir, mas tenho medo de tomar e apagar e ele sair pegando as coisas em casa e ir para a rua trocar por crack, esse maldito crack está acabando com nossa família. Disse a mãe chorando.
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Esperei alguns minutos em silêncio, enquanto o pai consolava a mãe, o clima de repente havia ficado pesado, o pai com cara de decepção e o filho de cabeça baixa, enquanto a mãe, coitada, aos prantos. Então dei continuidade: - Sei que estão passando por um momento difícil, vocês já deram sua contribuição, agora gostaria de conversar com o Pedro em particular, podem ir lá para fora tomar um ar, pegar um copo d‟agua para ela e me esperem lá que depois a gente conversa. Eles saíram e continuei: - Então Pedro, que situação ein... me fala aí, que que está acontecendo? Por que você não quer ficar aqui para se tratar? - Ah, não sei, eu quero ficar, só que aqui é muito ruim, tem muitas regras, a gente não tem privacidade nenhuma, você deixa suas coisas no seu canto e nego mexe ne tudo, só falta usar sua escova de dente, por que o resto... até roupa minha já vi gente vestindo, tem horário para acordar, pra comer, pra rezar, pra dormir, pra tudo, é igual uma prisão e meus pais ainda pagam caro pra este pessoal tratar a gente assim, que nem cachorro. - Mas Pedro, as condições podem até não ser boas, mas toda casa de reabilitação é assim, com muitas regras, com muita palavra de Deus o dia todo, são todas iguais, é um desafio, uma condição que você vai ter que enfrentar, talvez vai ser bom para você, talvez aprenda alguma coisa, olha como seus pais estão, é a última esperança deles... - As coisas não são bem assim não, agora é todo mundo santo, meus pais, o diretor da casa, os funcionários e até mesmo os internos, mas aqui dentro é diferente e lá em casa também é diferente, não são mil maravilhas como você está pensando. Completou com um tom meio irônico. - Eu não estou dizendo que é, ainda não falei nada, vamos fazer o seguinte então, vamos combinar encontros quinzenais, ou seja, de quinze em quinze dias eu passo aqui pra gente bater um papo e você me conta como são as coisas aqui e dentro da sua casa, não estou preocupado com o que seus pais ou as pessoas daqui tem a dizer, quero ouvir você, quero tentar te ajudar, mas vai depender tanto de você quanto de mim, o que você acha? Naquele momento senti que havia despertado nele a vontade de falar, talvez poucas pessoas tivessem dado essa oportunidade de se expressar, de escutar sua versão, não como eu daria, escutando sem julgá-lo, sem interrompê-lo. Queria fazer desta vontade uma arma a meu 55
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favor, para que ao menos desta vez ele permanecesse na casa quinze dias, sendo que antes desses quinze dias iria vê-lo, pois na próxima semana tinha trabalho com um grupo de internos e poderia reforçar nosso encontro, conversando com ele um pouquinho, perguntando como que estava sendo na casa, um papo informal, para tentar criar um vínculo, ou melhor, transferência (termo usado pela Psicanálise). Ele topou realizar os encontros comigo, mais sem muita empolgação, parecia que estava topando só por causa de seus pais, para não assumir toda a culpa, para demonstrar um pouco de interesse em se reabilitar. Para mim isso não fazia a menor diferença, o que importava era que participasse do processo, uma vez dentro do processo, caberia a mim fazer a diferença, proporcionar uma situação que despertasse o interesse dele. Encerramos o primeiro encontro, voltamos para os pais dele e demos a notícia de que os encontros aconteceriam quinzenalmente a contar a partir deste encontro, os pais ficaram ainda mais esperançosos, continuei conversando um pouco com eles e ficou nisso. Agora restava descobrir um método para trabalhar com Pedro, algo que fosse dinâmico e que abordasse o envolvimento dele com as drogas de uma forma mais branda, menos agressiva o possível, que o deixasse confortável no processo, mais que induzisse a introspecção, um olhar para dentro, uma releitura de vida. Algo que pudesse tornar suas angústias mais acessíveis por ele próprio sem que sofresse algum tipo de pressão, mas a construção de tal processo se desenvolveria no decorrer dos encontros, uma vez que não tinha um grande conhecimento do seu caso, tornaria praticamente impossível implantar um método de trabalho. Sempre tratei o processo analítico com muita expectativa, pensava bastante nas possibilidades que do mesmo emergem, não existe uma receita de bolo dentro da terapia, existe o momento, o improviso, era baseado nisso que buscava desenvolver a minha terapia, nos meus instintos e principalmente na minha escuta. Me preparava sempre para uma escuta livre, neutra, não deixava que minha concepção atrapalhasse na interpretação ou no entendimento daquilo que me era confidenciado. O que mais me intrigava era o fato da religiosidade, na casa de reabilitação o nome de Deus é excessivamente dito, sem motivo específico, é Deus pra lá, Deus pra cá, o tempo todo, chega a soar com um ar superficial, sem sentido. Acho que a introdução de Deus no processo de reabilitação é muito positivo, torna-se um pilar nos momentos difíceis, um amor incondicional vindo daquele que perdoa, que dá uma nova chance. Vou mais além, proporciona um ideal de vigília constante, sendo que Deus
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tudo vê, de Deus não se pode esconder nada, causando um efeito de compromisso com Deus onde em resposta ao amor de Deus mantém-se a abstinência à droga. Embora todo esse mecanismo de controle parecesse ser muito engenhoso, a sua empregabilidade era um tanto errônea, no meu ponto de vista os excessos e a incoerência que se faziam com o nome de Deus acabava causando uma confusão e/ou uma adesão extremista de tal ideologia. No momento em que se tratava Deus como aquele que perdoa e que ama, eles puniam agressivamente aqueles que desrespeitavam e não aderiam às normas da casa, criavase uma dualidade, não sabiam lidar com situações adversas e não procuravam adequar o comportamento às necessidades de cada um. Sistematizavam as normas e as condutas, enquadrando todos os internos num mesmo patamar, descartando as diferenças, diferenças essas não relacionadas ao ser, mas ao sujeito, sua visão de mundo e sua relação com as drogas, o crack em si. Em um ambiente onde havia cerca de quarenta internos com problemas com as drogas, há de se considerar o envolvimento desse sujeito com a droga em questão, o tempo de uso, se possuía ficha criminal, se traficava, uma série de questões que teriam que ser analisadas para que então se chegasse a uma abordagem de reabilitação e não simplesmente misturar todo mundo e tratar todos da mesma forma. O que podemos estender aos métodos prisionais, que vem servindo como uma grande escola do crime, onde o meliante ao cometer um ato infracional, crime, por questões pessoais, é julgado como réu primário, penalizado e condenado a cumprir seus anos de prisão com verdadeiros phd do crime. Sendo que ao invés de se penitenciar, de refletir sobre seu ato infracional, de sentir culpa, é estimulado a proliferar o crime, por intermédio de reincidentes, com experiência e intenção de montar redes criminais, motivados a continuar no crime principalmente pelo fato da condenação social, pelo fato de carregar pro resto da vida a condição de (ex)criminoso. Como um sujeito pode deixar de ser criminoso quando todo o resto o nomeia enquanto tal, o que acontece com o exviciado. Esse era um dos aspectos que demonstravam a complexidade do processo de reabilitação, contudo, de um processo de análise, era com esses dados que eu como Psicólogo buscava trabalhar, com o todo, o que por sinal parece ser muito simples e óbvio, o outro como o causador do mal estar, do adoecimento psíquico, mas era justamente este papel que ninguém queria assumir, o que fazia desse processo, um processo complexo, sem isentar ninguém da responsabilidade de sua condição. O primeiro passo que teria que dar, seria uma maneira de trabalhar a Psicologia fora do contexto religioso, que era um dos cernes no tratamento da casa 57
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de reabilitação, era que se falava tanto o nome de Deus naquele lugar, que eu já estava me preparando para caso o Pedro viesse com um discurso religioso. Como reagiria para transferir a responsabilidade da reabilitação para ele e não como sendo uma graça divina, era nessa questão que não queria esbarrar, pois sabia que esta condição seria uma luta dele com ele e que Deus não poderia ajudá-lo. Na manhã seguinte na sala de aula, o Cordeiro veio comentando sobre uma religião chamada U.D.V. (União do Vegetal), falando que tinha sido convidado, por uma funcionária lá da faculdade onde a gente trabalhava, para participar de uma sessão, fiquei bastante curioso e ele me contou mais alguns detalhes, perguntou se eu tinha interesse de ir e falou que ia conversar com ela, pois só poderia ir se ela me convidasse, por que ela era membro da UDV. - Como que é esta religião? Perguntei. - Tem uma cerimônia e nessa cerimônia a gente toma um chá, ayahuasca, é um chá alucinógeno, a gente tem uma viagem, tem gente que vomita, mas é muito bacana. Ele colocou a maior pilha, me chamando para ir, me contou a experiência dele com o chá, me disse algumas pessoas que eram da UDV, inclusive um professor nosso e uma amiga de sala mais velha que a gente. Fiquei muito curioso e com medo também, pois parecia um pouco assustador, mas a curiosidade falou mais alto e pedi que ele conversasse com a Simone para me convidar também. Quando cheguei no trabalho, fui até a sala dele perguntar se já havia conversado com ela, disse que sim e que ela queria conversar comigo primeiro, falou que a Simone me chamaria, fiquei aguardando ansioso. Ela me chamou na sala dela, entrei e começamos a conversar. - É, o Cordeiro me disse que você ficou bastante interessado e que está querendo ir na sessão de adventícios também. - Pois é, ele me falou a respeito da UDV, do chá e eu fiquei muito curioso, querendo conhecer. - Já ouviu falar do chá ayahuasca? - Já, mas não conheço os efeitos nem nada, sei que é aquele do Daime. - Então, é o mesmo chá, mas a religião é diferente. Você já tomou LSD? Já tinha tomado, uma vez, mas respondi que não. E ela continuou. 58
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- É um pouco parecido, mas não tem como explicar ao certo, o que acontece é que a maioria das pessoas sentem muito frio e algumas fazem vômito, o que chamamos de limpeza, que é quando tem alguma coisa ruim, a gente coloca pra fora. Somos uma religião derivada do espiritismo, que acredita na energia, no poder da mente e da natureza. A gente vai sair daqui no sábado de manhã e volta no domingo a tarde, leva uma coberta e roupa que a gente vai dormir lá. Fiquei bastante empolgado com o convite e a semana toda ansioso pelo dia da sessão, meus pais ficaram meio receosos com a história do chá, mas eu já estava decidido e nada me faria mudar de opinião. Na sexta arrumei minhas coisas e deitei aguardando o sábado chegar, demorei a dormir, pensando na experiência, com um pouco de medo também, mas com muitas expectativas, queria experimentar e ver como era a viagem. No sábado de manhã seguimos rumo ao sítio da UDV, os núcleos ficam afastados das cidades, pois o contato com a natureza é a filosofia da UDV, ao chegarmos no sítio, um lugar muito gostoso, as pessoas nos receberam muito bem, super educadas, comunicativas, agradáveis, nos deixaram bastante a vontade. Esta sessão de adventícios acontece uma vez por ano, é uma sessão livre, para iniciantes ou pessoas que queiram conhecer a cultura da UDV, mas somente convidados podem participar, os sócios são de uma classe eclética, socialmente falando, de todas as profissões e das mais variadas condições sociais, e ainda todos iguais. Passamos a manhã conversando com outros adventícios, falando sobre as expectativas e coisas afins, almoçamos praticamente juntos, todos que estavam ali. Tinha que comprar uma ficha para o almoço, com um preço bem justo e a comida muito gostosa, chamou atenção era que cada um após terminar de almoçar tinha que lavar o prato, garfo e copo de refresco, num tanque grande que tinha na área do refeitório. O mestre nos falou que às dezessete horas iria fazer uma reunião com os adventícios para tirar dúvidas e explicar a filosofia da UDV e a sessão do chá seria às vinte horas, sempre é às vinte horas, durando até a meia noite. Passamos a tarde toda no sítio, conversando, para fumar um cigarro, apesar de estarmos em local aberto, tinha que se afastar dos demais, para não incomodar, pois os sócios da UDV pelo que percebi, nenhum deles fumava e arrisco-me a dizer até que não bebiam bebidas alcoólicas também, não sei. Nadamos no lago, ficamos à sombra das árvores conversando, fizemos uma trilha a pé no meio do mato, junto conosco tinha ido um outro rapaz que trabalhava com a gente também e era a primeira vez que estávamos indo, o Cordeiro era a segunda. Na medida em que o tempo passava, ficávamos mais ansiosos, até que a hora da reunião com o mestre chegou e 59
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nos dirigimos para o templo, o mestre explicou todo o processo, desde o colhimento da chacrona e do mariri que eram colhidos ali mesmo no sítio, até o modo de preparo. Mostrou os caldeirões na qual se fervia as folhas e o cipó, e começou a tirar dúvidas a respeito das sessões, efeitos, tudo que envolvia a UDV, quando a reunião acabou fomos tomar banho e aguardar o início da sessão. Como já estávamos acomodados no dormitório, que era dois quartos, um masculino e um feminino, cheios de camas, aguardávamos a fila do banho. Enquanto aguardávamos o banho, a Simone, que era nossa madrinha, pegou nossos cobertores e foi marcar lugar para a gente no templo, onde aconteceria a cerimônia, ela queria que sentássemos em lugares onde ela conseguisse ver a gente, para ficar mais tranquila, sei lá. Tomei banho, vesti uma calça, uma blusa de frio e calcei uma meia, não queria sentir frio, mas nem todo cobertor do mundo poderia impedir o frio, ele vinha de dentro, segundo alguns mais experientes. Pronto para a sessão, ficamos conversando até dar vinte horas, lembro que conversava com um sócio e mencionei a palavra tomar, me referindo ao chá, ele me corrigiu: - Não se deve falar tomar, tomar quer dizer tirar de alguém, a maneira certa é beber, temos que ter muito cuidado com nossas palavras, nossas palavras tem poder. Encarei aquelas palavras como aprendizado, estava ali para aprender, assim como em qualquer lugar, sempre busquei o aprendizado e guardei aquelas palavras como sábias. Naquele momento todos começaram a se dirigir para o templo, estava quase na hora, apesar do conforto dos sócios, dos mais experientes, sobre os efeitos do hoasca, ainda estava com um pouco de medo, sentei no meu lugar e esperei a sessão começar. O Mestre deu início à sessão, todos nós estávamos sentados em seus respectivos lugares, cerca de setenta pessoas, e ele foi chamando um por um, hierarquicamente, conselheiros, discípulos e adventícios, olhava atentamente para cada pessoa e media, no copo, a quantidade de chá que cada um necessitasse para a borracheira (nome dado para o efeito do hoasca). Todos esperam até que o último receba seu copo, para então beberem juntos, o Mestre autoriza que todos bebam e se dirige ao arco onde está escrito Estrela Divina Universal, UDV, e dali ele conduz a sessão, no início eles colocam uma música instrumental para que você fique mais calmo e relaxe à espera da borracheira. O Mestre veste uma camisa azul e os discípulos vestem uma camisa verde, iguais para homens e mulheres, o chá tem um sabor amargo, ruim, mas por enquanto tudo ia bem, a música estava boa e estava relaxado, com um pouco de medo ainda, mas pronto para a borracheira. Estava sentado bem confortavelmente, com a coberta por cima do corpo e de olhos fechados, depois de um tempo 60
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ainda não tinha sentido nada e o mestre começou a passar perguntando um por um, tem borracheira?, e as pessoas respondiam tem sim senhor ou ainda não. Quando ele estava começando a perguntar aos discípulos, eu de olhos fechados, comecei a enxergar uma luz, vindo lá do fundo, de muito longe, muito longe mesmo, um ponto de luz muito pequeno, vindo na minha direção, parecia que estava vindo muito rápido, mas estava ao mesmo tempo muito longe. Me concentrei no ponto de luz e ele se aproximava a cada momento, foi quando de repente ele veio de uma vez e bateu no meio da minha testa, senti aquela força do impacto, e a luz começou pressionar como se estivesse querendo entrar dentro da minha cabeça, sofrendo um pouco de resistência, até que passou pelo meu crânio e foi direto para minha mente, naquele momento me senti leve, como se estivesse no espaço, comecei a ver muitas cores, tudo muito colorido. Mesmo sentado na cadeira, sentia que cada parte do meu corpo estava dançando aquela música, cada fio de cabelo, cada veia, órgão, estava em harmonia com a música instrumental, no mesmo ritmo. Muitas cores no meu olhar, o mestre então começou a fazer uma chamada, canto que eles usam para ajudar a alcançar o estado espiritual, quando ele começou a chamada, eu vi como se fosse uma nuvem negra vindo do fundo do templo, passando por cima de todos, crescendo e estendendo-se até o altar. Estava na terceira fila, havia mais de dez, e vi aquela mancha escura passando sobre minha cabeça, crescendo, senti uma coisa ruim, uma sensação ruim, como se aquela nuvem fosse o mal que estava em todas aquelas pessoas do salão. Quando a nuvem negra estava quase chegando no altar, o Mestre, ainda cantando a chamada, começou a dizer Luz, fazendo um gesto como se dobrasse o braço colocando a mão na altura da orelha e esticasse o braço novamente (como um gesto de torcida de futebol), dizia Luz (luuuuuuuzzz) mais uma vez e repetiu o gesto, e ele foi direcionando este gesto seguido da palavra luz para cada canto do salão. Quando ele dobrava o braço, eu podia ver a luz se concentrando em sua mão, quando esticava o braço em direção à nuvem escura, saía de sua mão um feixe de luz que expulsava a mancha negra do templo, onde a luz pegava a mancha negra se desfazia e ele terminou dizendo Divina Luz e toda nuvem negra saiu do templo e sumiu. O Mestre continuou com as chamadas, neste momento estava sentindo uma energia muito negativa vindo de alguém que estava sentado atrás de mim, a energia era tão ruim, que chegava a doer minhas costas, estava incomodando muito. O Mestre abriu a sessão para perguntas e a pessoa que estava atrás de mim levantou e perguntou, Mestre, o que é viver?, o Mestre olhou para ele e disse que iria responder com uma música, e começou a tocar a música do Raul Seixas – Tente Outra Vez, 61
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aos poucos comecei a sentir um alívio e quando percebi, já não sentia mais aquela energia ruim vinda de trás, a Simone começou a fazer uma chamada do Sabiá, onde um homem escutava o canto do Sabiá e saía a sua procura, enquanto ela cantava a chamada, escutei o Sabiá cantando, um canto vivo, bonito. A sessão foi interrompida pelo mestre que perguntou se tinha alguém que queria repetir a dose, se tivesse, poderia se dirigir ao altar para beber novamente, me levantei, eu e mais oito rapazes aproximadamente e me dirigi ao altar. Fizemos uma fila indiana onde era o terceiro, o mestre pegou o copo, me olhou e calculou a minha dose, me entregou o copo e caminhei até os outros esperando que todos recebessem sua dose para então bebermos, todos juntos. Neste momento estava em pé ao lado do altar, de frente para as pessoas que não quiseram repetir a dose, comecei a reparar o comportamento delas, algumas com feição de alegria, outras com expressão de dor, as pessoas que caminhavam, pareciam caminhar em câmera lenta, com muita cautela, passo a passo lentamente. Foi quando eu senti um empurrão, um tranco muito forte e em meus ouvidos escutei alguém dizer “não beba”, foi tudo muito rápido, porém e me dei conta que nem sequer sai do lugar, parecia que tinham empurrado minha alma e não havia ninguém ao meu redor falando comigo, olhei para os lados e estavam todos concentrados na sua próxima dose, não havia ninguém conversando. Parei um pouco e pensei no que acontecera, na tentativa de extrair alguma lógica daquela situação, que eu tinha sentido esta força e escutado uma voz era fato, disso eu não tinha dúvida, olhei para o mestre e ele entregava a penúltima dose, me aproximei e aguardei ao seu lado, o Mestre olhou para mim e disse “pode falar filho”, perguntei bem baixinho se poderia devolver o chá, ele me olhou nos olhos meio surpreso e perguntou por que eu queria devolver, respondi “não sei”. O Mestre estendeu as mãos, pegou o copo de volta e despejou o chá dentro do filtro novamente, voltei para o meu lugar enquanto o mestre servia a última pessoa. A cerimonia continuou e eu continuei com as mirações (termo dado às visões que temos durante o efeito do chá), sentindo um bem estar inexplicável e que nunca havia sentido antes, era tudo muito bonito, andava por lugares muito bonitos, comtemplando a natureza, que se apresentava de forma surreal, como se eu e o universo fossemos um só, em outro momento me vi não como um ser humano, mas como uma energia, energia parecida com uma bolha de sabão, em contato com outras “bolhas”, fiquei na miração até o final da sessão. No fim da sessão algumas pessoas, mais precisamente os sócios da UDV, vieram me perguntar por que eu tinha devolvido o chá, pois nunca tinham visto algo igual acontecer, ou mesmo escutado 62
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histórias similares. Respondi que não sabia o porquê, que havia sentido uma força, como se tivesse me empurrado e escutado uma voz dizendo para não beber, mas que com palavras era difícil descrever o que tinha acontecido. Fiquei meio constrangido, com receio de estar desrespeitando, sei lá, então um dos membros, um conselheiro acho, me disse para não preocupar, pois era uma coisa normal que manifestasse a vontade de beber e que depois essa vontade desaparecesse. Sabia que aquela questão era um pouco mais complexa, mas decidi aproveitar o banquete de frutas que eles haviam montado para depois da sessão, fiquei conversando com o Cordeiro sobre a sessão quando decidi chupar uma manga, nunca senti um sabor igual aquele, a manga estava muito, muito saborosa, com um gosto divino, chupei mais um monte de manga, como um animal, me lambuzei todo, das mãos à boca, parti para a melancia, laranja, melão, comecei a experimentar todas as frutas e todas estavam com um sabor além do imaginável, nunca comi tanta fruta como naquele dia. A minha experiência na UDV foi ótima, eu aprendi bastante, desde o momento que cheguei, aprendi a respeitar o próximo, pois para fumarmos um cigarro, nos afastávamos das outras pessoas, saindo até mesmo de seu campo de visão. Convivemos de uma forma civilizada com outras pessoas, totalmente diferente de nós, ficamos no alojamento com um monte de pessoas, com as mais variadas histórias e posições sociais, conversamos com bastante gente, conhecemos um pouco da história de cada um. Achei muito interessante o fato de cada pessoa lavar o prato e os talheres que usou, o que nos transmite muito a filosofia da UDV. A forma como todos foram recebidos, com indiferença, pessoas de todos os etilos, com problemas com o álcool, drogas, universitários, pessoas humildes, do campo, com trabalhos humildes, jovens e idosos, todos sendo tratados de forma digna, sem um olhar julgador, era muito gostoso estar ali, sentir a vibração positiva do lugar e o calor das pessoas da UDV. A minha lição mais importante foi que naquele momento (do empurrão) eu senti a presença de Deus, eu que andava meio desconfiado da sua existência, talvez por não saber onde buscar Deus, por saber que ele não estava dentro das igrejas, nas estátuas, crucifixos, ou mesmo na sua imagem. Não poderia encontrar Deus nos símbolos cristãos, naquilo que o homem construíra, por que Deus estava dentro de mim, se quisesse encontrar Deus, bastaria olhar para dentro de mim, para a natureza, para as coisas que Deus criou, isso sim era Deus. A criação é senão uma extensão do criador, assim passaria a me interagir com Deus, por detalhes sutis, passei a sentir que Deus interagia com a gente de maneiras inusitadas, que só quem está aberto e tem o merecimento entende. Ele estava me ensinando, ele já havia me 63
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dado aquilo que eu precisava saber, a luz, naquele momento o chá me revelou o suficiente, eu queria mais conhecimento, mas ele interviu, e disse muito mais do que “não beba”, disse que o conhecimento é como um caminho que tem que ser percorrido. Não adianta correr, pois correndo deixamos de perceber os detalhes desse caminho, quanto mais rápidos passarmos, mais sujeitos estamos a percorrer novamente o mesmo caminho, pela falta do conhecimento detalhado, temos que prestar atenção em cada pedra, árvore, folha, em fim, em tudo que estiver ao nosso redor, pois só assim teremos chance de encontrar o nosso verdadeiro caminho. É preciso ter paciência com os detalhes, as vezes o que parece pouco quer dizer muito mais do que imaginamos, temos que saber explorar o pouco, como se ele fosse o suficiente, pois num simples vôo de um pássaro você poderá reconhecer o valor da liberdade. Perto do meu segundo encontro com Pedro, ficava pensando como eu iria trabalhar com ele, qual tipo de intervenção, seria mais direto, indireto, ainda não sabia bem, mas da minha parte havia uma grande ansiedade, não apenas por ser meu “primeiro” trabalho como Psicólogo, mas pela responsabilidade de conduzir uma análise e todos os aspectos que esta envolve. Um dia antes do encontro com Pedro, ainda sem saber como conduzir, conversava com um aluno na porta da faculdade, estava fazendo horário de intervalo do serviço, aproveitei para fazer um lanche em uma barraquinha de pão com carne que tinha na porta da faculdade, estava conversando com este aluno, quando se aproximou um rapaz pedindo dinheiro, uma ajuda para comprar algo, pois estava com muita fome. Disse que se ele quisesse poderia pedir um lanche que eu pagaria, ele inventou algumas desculpas, dizendo que a mulher dele estava esperando, que preferia o dinheiro, para encontrar com sua mulher e comprar algo para os dois comerem, falei então para pedir dois lanches para levar, que pagaria e assim levava um para sua mulher também, ele resmungou, insistiu que lhe desse dinheiro, e saiu andando meio chateado. Começamos a comentar sobre aquilo e esse aluno me disse que tinha um primo viciado em crack e continuou falando sobre o primo, contando algumas histórias. Em meio a isso ele disse duas coisas que chamaram muito minha atenção, falou que “todo noiado é manipulador” e que “tem saída para tudo, esquiva-se de tudo”, comecei a pensar nas histórias que ele tinha contado a respeito do primo e naquilo que tinha falado sobre os usuários de crack e vi que fazia sentido, o comportamento de esquiva era uma característica comum nos usuários de crack. Logo me dei conta que deveria apresentar uma intervenção não formal, não adiantaria ser direto ou seguir alguma linha de intervenção, seria necessário algo novo, uma abordagem menos fabricada e mais autêntica, uma análise que fosse empírica e ao mesmo tempo isenta de um modelo padrão, um experimento. 64
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O dia do encontro com Pedro havia chegado, estávamos ali na sala, só eu e ele cara a cara, este seria o começo da minha história dentro da Psicologia, o meu fazer, o meu primeiro caso. Antes de começar a terapia propriamente dita, estabeleci o contrato ético, o que na Psicologia chamamos de Rapport, que é nada mais que uma apresentação formal, uma conversa sobre o processo terapêutico, ressaltando o terapeuta como confidente e a importância da participação do cliente nesse processo, participando com veracidade e assiduidade, entregar-se à análise. Após o Rapport, perguntei como tinha sido esses dias que ele estava na casa, a minha atitude como terapeuta era proporcionar um ambiente, onde inicialmente, ele pudesse se sentir o mais a vontade possível, era buscar a autenticidade à longo prazo e assim evitando que surgisse logo nos primeiros encontros o comportamento de esquiva. Ele começou falando que estava muito difícil ficar na casa, que tinha vontade de ir embora, voltar para sua casa, que o pessoal ali era muito carrasco, reclamou muito, e eu escutando tudo sem interferir. Pedro continuou a manifestar sua insatisfação, deixei que ele se concentrasse em transmitir essa imagem negativa da casa de reabilitação, como se isso desviasse a atenção do foco terapêutico, que no caso era Pedro, resolvi pegar leve na primeira sessão e encerrei sem causar-lhe angústia. O que me interessava nessa primeira sessão, era que Pedro visse em mim alguém que o escutasse, alguém que estava ali, disposto, única e exclusivamente para escutar o que ele tinha para falar, queria dar voz ao Pedro, sem contestalo ou julgá-lo, simplesmente escutá-lo, e foi o que eu fiz. Na minha análise do primeiro encontro, percebi que Pedro não estava na casa de reabilitação por vontade própria, pois ele enfatizou como se a casa fosse algo ruim, até concordo que não deve ser bom, mas digamos que era um mal necessário. Ele ainda não estava preparado para assumir a condição de tratamento, tanto que não se posicionou em nenhum momento enquanto alguém que estivesse disposto a fazer um sacrifício, mas desviando toda a culpa para a casa, este seria um bom ponto a ser trabalhado. No segundo encontro fiz a mesma pergunta para Pedro, como tinha sido os dias dele na casa, ele continuou com o mesmo discurso do primeiro encontro, dizendo que queria ir embora, que não precisava ficar ali, que não ia mais usar crack, que tinha mudado. Deixei que ele falasse por algum tempo, escutando sem intervir, quando ele fez uma pequena pausa perguntei: - E se você saísse da casa, o que você iria fazer?
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- Eu? Eu ia pra minha casa, ia arrumar um emprego, ou começar a fazer faculdade, igual meu pai tá querendo que eu faça, ia parar de fumar crack, ia mudar. - E a última vez que saiu daqui, o que você fez? Perguntei. Ele se calou por um tempo, abaixou a cabeça e com uma voz menos intensa disse: - Fugi pra fumar pedra. A resposta dele foi melhor do que eu poderia imaginar, aproveitei, fiquei calado, deixando que a fala dele ecoasse dentro de sua cabeça até que fosse dolorosa o bastante para suportá-la, e completou: - Mas aquela vez eu tinha ficado menos de dez dias aqui. - E acha que agora que ficou um mês, está pronto para sair e não usar crack? Enquanto ele ainda pensava, continuei, na tentativa de confortar, pois já tinha sido duro demais com ele. - Não se preocupe, sei que deve ser muito difícil estar aqui, mais você esta num processo de reabilitação e eu estou aqui para te ajudar, te dar apoio, agora é a hora de mostrar para os outros que você é forte, que você consegue superar isso. Mesmo que você se sinta bem daqui a quatro, cinco meses, fique os nove meses, se sacrificar também faz parte de qualquer mudança, eu acredito que você consegue. Pedi para que ele pensasse nisso e encerrei o encontro, percebi na sua fala, quando se referia que ia arrumar um emprego ou fazer faculdade, colocou a as palavras no futuro, que expressa como se tivesse a intenção de fazer algo, mas que não o fizesse. Tentei incentivar uma identificação no processo de reabilitação, mostrar que ainda é instável, como sendo inerente à sua condição de dependente e não como pessoa, transmitir confiança e credibilidade. Uma vez que eu realmente achava que ele pudesse se reabilitar, temos que acreditar nas pessoas, não há limites para um ser humano, no que diz respeito ao campo psíquico, o ser é que se limita. No terceiro encontro já havia um mês e meio que Pedro estava na casa de reabilitação, perguntei como iniciou o contato dele com o crack, contou sua história desde a adolescência, que sempre foi muito polêmico, era bagunceiro na escola, tirava notas ruins, tomou bomba, que nunca gostou de estudar e se identificava com a galera do fundão na sala de aula. 66
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Começou a beber bebida alcoólica muito novo, fazendo bagunça na rua, arrumando briga em todos os lugares, gostava muito de andar em turma, eles tinham como se fosse uma gang de bairro, andavam sempre mais de dez juntos, quando um brigava, todos entravam, um ajudava o outro, eles caçavam muitas brigas e sempre estavam juntos, pois se estive sozinho poderia ser surpreendido por outras gangs. Como andava com uma galera um pouco mais velha, começou a fumar maconha com quatorze anos, os amigos todos fumavam, naquele tempo era legal, eles fumavam maconha e bebiam muito, ficavam loucos nas festas, aquele estilo de vida foi se estendendo pela sua adolescência toda, até que aos dezessete um amigo apareceu com uma pedra de crack, como ele não tinha medo de nada, fumou pela primeira vez, mas não parecia tão perigoso. Como era mais lucrativo para os traficantes, muitos pararam de vender maconha, era difícil achar maconha, todo mundo estava vendendo pedra, e os caras começaram a comprar pedra e fumar. Aquilo sem perceber havia se tornado rotina, todo dia a gente fumava pedra, ninguém trabalhava, os pais da gente dava dinheiro, pro lanche, pro ônibus e aquilo dava, juntávamos o que tínhamos, fazia um rateio e levantava a grana pra comprar a pedra, quando um não tinha, o outro salvava, mais a sede pela pedra começou a aumentar e a galera começou a se dividir. Antes nos juntávamos para fumar uma pedra, depois passamos a fumar escondido uns dos outros, cortando as cabeças que não contribuíam, aí desandou, queria fumar e não tinha dinheiro, as mães começaram a desconfiar, a negar dinheiro. A vontade vinha e não tinha dinheiro, comecei a trocar celular, videogame, bicicleta, o que tinha em casa com algum valor, vendia na rua ou trocava por crack, um amigo trocou o cachorro dele uma vez por três pedras de crack. Comecei a roubar dentro de casa, as coisas da minha mãe, pegava dinheiro na carteira dela, incontrolável, não aguentava mais essa vida, mas a pedra não me dava paz, era mais forte do que eu, tentava sair, quando pensa que não lá estava eu fumando crack de novo. Aquele discurso me deixou meio sem palavras, eu não entendia como ele estava consciente de sua situação, sabia tudo que fazia e ainda sim não conseguia deixar de fumar crack, era triste, que coisa era essa, o crack, como poderia fazer isso com uma pessoa, jogá-la no fundo do poço, ser odiada e mesmo assim continuar fazendo parte da vida daquela pessoa. Nunca havia pensado que coisa parecida pudesse acontecer, é como dar murro em ponta de faca, mas este é o ser humano, um mistério, mas num é isso que a gente faz com a gente, um obeso que não consegue parar de comer, um alcoólatra que não consegue parar de beber, um fumante que não consegue parar de fumar, um chocólatra que não consegue parar de comer 67
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chocolate, um apostador que não consegue parar de apostar, uma mulher que apanha do companheiro e não consegue deixá-lo, um homem que não consegue ficar sem ler seu jornal, uma mulher que não consegue ficar sem ver sua novela, ou trair seu marido, um torcedor que não vive sem seu time do coração, uma pessoa que não consegue ficar sem sua caminhada no fim da tarde, uma pessoa que não consegue gozar férias sem pensar em trabalho, uma criança que abusa das doses de refrigerante, uma pessoa que não consegue abrir mão do poder, que não consegue pensar em outra coisa além de sexo, que não consegue viver sem celular ou internet, que sente um amor possesivo, sinceramente, não vejo diferença nenhuma entre esses casos. Por que o ser humano tem essa necessidade irracional de apego, por que nos apegamos tanto a algumas coisas, de onde vem esse vazio, cada um busca sua neurose de acordo com sua história e suas vivências, algumas são menos nocivas que outras, mas todas tem uma consequência psíquica tão impactante quanto. Para o inconsciente não existe maior ou menor, existe a angústia em sua plenitude, o que diferencia é a maneira que você lida com essa angústia, sua estrutura psíquica, que envolve um estado biopsicossocial. Quando o Pedro terminou de falar, fiquei sem saber o que dizer, mas tinha que falar algo, então disse: - Está vendo Pedro, você sabe o que passou melhor do que ninguém, agora está na hora de parar e pensar no que você quer, veja como uma segunda chance, uma oportunidade de rescrever sua história, tenha sempre esta fase da sua vida como exemplo, para que nunca abaixe a guarda, tem que ser forte e começar a traçar seu caminho. Encerrei o terceiro encontro deixando que ele refletisse sobre aquilo que tinha falado para mim, sobre sua vida e suas escolhas, achei aquele encontro muito pesado, mas a iniciativa partiu dele, caberia a mim deixar que desenvolvesse. Fiquei meio perdido na questão da intervenção, já havia traçado um caminho, uma linha de conduta, esse discurso quebrou todos os meus planos, teria que repensar em novos meios de intervenção. Naquele encontro pude comprovar e ver que dentro da Psicoterapia não existe uma estrutura de intervenção, um plano de trabalho, uma lógica de pensamento. A Psicoterapia é uma caixa de surpresa, ela vai do A ao Z em questão de segundos, ou seja, você pensa em trabalhar uma coisa e o cliente traz outra completamente diferente. Este é o cuidado que teria que tomar, a demanda deve partir do cliente, ele é o protagonista e o terapeuta o coadjuvante. Não podemos impor uma relação de poder, temos que concentrar nossas habilidades naquilo que a pessoa nos relata, para conduzi-la ao encontro consciente/inconsciente, é neste momento que 68
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o sujeito se encontra. Quando permitimos que questões pessoais atravessem esta linha tênue, terapeuta/cliente, perdemos o sujeito inconsciente. O quarto encontro seria um desafio, o que poderia levantar para o quarto encontro, iria continuar a explorar o discurso que Pedro iniciou no encontro passado, ou começaria o encontro com alguma coisa mais leve. Ainda não sabia, se fosse algo mais leve, teria ainda sim um embasamento que sugerisse uma continuidade com o que havia emergido no encontro passado, para não perder o foco, por isso chamamos de processo terapêutico, pela sequência. Claro que uma nova demanda poderia surgir, até mesmo como uma esquiva, nessa hora entra a parte intuitiva do terapeuta, cabe a ele tomar a decisão mais pertinente ao processo. Quando me refiro a preparar algo para um encontro, é que o ponta pé inicial quem dá é o terapeuta, baseado naquilo que se escuta no primeiro encontro, baseado na queixa ou na anamnese, a partir desse ponta pé inicial é que a terapia vai se construindo. Então era muito importante que voltasse com algo que instigasse e que ao mesmo tempo não fosse agressivo, pensava em perguntar se ele havia pensado no nosso encontro e o que havia sentido depois do encontro, ainda estava pensando, mas queria iniciar com algo do tipo. Faltando três dias para o quarto encontro, recebi uma ligação do diretor da casa de reabilitação, dizendo que Pedro havia ido embora, saído da casa, fiquei meio desolado, a final, estava vendo o processo com olhos tão positivos, estava tão animado com o trabalho que eu e o Pedro estávamos fazendo, estava prestes a completar dois meses de tratamento e faltavam apenas três dias para nosso próximo encontro. Resolvi conversar com uma professora, queria escutar uma opinião de alguém com experiência em atendimento, contei a ela que estava fazendo um trabalho com um rapaz em uma casa de reabilitação, que o trabalho parecia estar indo bem, que ele estava participativo e que as demandas que estavam surgindo davam um ótimo material de trabalho, que tínhamos feito três encontros e quando estava próximo de completar o quarto o rapaz havia abandonado a casa de reabilitação. Ela olhou para mim deu uma risada discreta (acho que percebeu minha angústia) e disse que esse tipo de coisa é comum no processo terapêutico, mais comum do que imaginamos. O abandono da terapia segundo ela, não tinha apenas este viés negativo, pelo contrário, poderia ser fruto de um encontro com o ser real, o rapaz vivenciou esta angústia e esta poderia ter causado uma mudança no seu comportamento, onde fugir foi a saída mais conveniente que ele encontrou. Mas que ainda colheria frutos desse processo, mesmo estando supostamente fora dele, e
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completou dizendo que teria que acostumar com este tipo de conduta, brincou, falando para mim trabalhar essa minha angústia. Recebi uma ligação da mãe de Pedro, ela estava muito preocupada com o filho, a final ele havia saído da clínica pela terceira vez, aquilo causou um grande desconforto em toda família e ela pediu para que fosse até sua casa para conversarmos. Quando cheguei lá Pedro não estava, a mãe dele me perguntou sobre os atendimentos, como Pedro estava, falei que ele estava muito participativo, que foi uma grande surpresa para mim também, pois achava que estávamos tendo um avanço em relação ao processo de reabilitação. Sua mãe suspeitava que estivesse usando crack novamente, pelo seu comportamento e me pediu que eu continuasse ajudando-o. Estava muito interessado em ajudar, mais agora que ele estava fora da clínica as dificuldades seriam enormes, ainda mais com a possibilidade do contato com o crack, não seria fácil. Combinei com a mãe de Pedro que ligasse quando ele estivesse em casa, ela falou da dificuldade de encontrá-lo em casa, mas que faria o possível para me avisar, o detalhe era que teria que ser nos finais de semana, pois eu estudava e trabalhava durante a semana. Enquanto aguardava o telefonema da mãe de Pedro, a minha vida continuava normalmente, num belo dia quando voltei da escola, encontrei minha mãe com uma cara de poucos amigos, sentada no sofá da sala. Entrei em casa e fui logo percebendo que o clima não estava bom, fui até meu quarto tirei a roupa, entrei no banheiro tomei um banho, quando saí do banho ela estava terminando o almoço, continuou com a cara fechada. Almocei e comecei a me preparar para o trabalho, saí de casa para trabalhar e ela nem se despediu, fiquei pensando naquilo o expediente inteiro, sabia que tinha acontecido alguma coisa, mas o que eu havia feito dessa vez? Quando retornei para casa, já tarde da noite, ela e meu pai estavam me esperando chegar do trabalho, dessa vez os dois sentados no sofá, ambos com cara de poucos amigos. Ao atravessar a porta, tentei passar direto para o meu quarto, mas não teve jeito, no meio da sala meu pai disse para me sentar que estavam querendo conversar comigo. Me sentei e ele perguntou: - O que é isso aqui? Estendendo a mão com uma dola de maconha. - Maconha. Respondi sem titubear. - De quem que é isso? - É meu. 70
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Nesta hora meus pais ficaram sem saber o que fazer, chocados, mas o que podia fazer, era meu mesmo. Nunca gostei de mentir, tinha que enfrentar as consequências. E ele continuou com o interrogatório: - Quando sua mãe me mostrou, falei com ela que devia ser de alguém que estava atendendo e você pegou, nunca imaginei que isso fosse seu... - É... mais é meu sim. Minha mãe começou a chorar, meu pai me xingando, dizendo que eu era um viciado, onde eu tinha aprendido aquilo, que ele nunca tinha ensinado a usar drogas, que eu era um desgosto para a família, só dava trabalho, que ele me dava tudo que eu queria e era isso que eu dava em troca. Passando o maior sermão, me chamando de drogado, de burro, falando que maconha era para pessoas burras, em fim, aquele clima. Minha mãe continuava chorando sem parar e eu fiquei chateado com tudo aquilo que tinha escutado a meu respeito, não senti culpa, pois a Cannabis nunca me fez sentir como um drogado, um inútil ou até mesmo um viciado, pelo contrário, tinha uma relação muito boa com a Cannabis. Aquela noite foi horrível, fiquei sem lugar dentro de casa, não queria nem olhar na cara dos meus pais, é claro que não estava gostando da situação de ser causador daquele clima, era a única culpa que estava sentindo, mas o que podia fazer, eu sabia o que estava fazendo, tinha consciência de toda a história da Cannabis, seus efeitos, seu princípio ativo, sua criminalização, a forma como era vista socialmente. Tudo que envolvia a Cannabis eu estava por dentro, pelo fato de usá-la e me interessar pelas suas potencialidades, me tornei um estudioso e li vários livros, artigos, assisti documentários, discutia com colegas sobre a Cannabis, tudo relativo à Cannabis eu buscava formar minha opinião. No dia seguinte acordei no meu quarto e fiquei deitado na cama por algum tempo, pensando, sem querer olhar para a cara da minha mãe, não sei se por vergonha ou raiva de terem feito uma tempestade em copo d‟agua, esperava uma reação de decepção, tristeza, preocupação, nenhuma mãe quer descobrir algo tão abominável socialmente. A questão era que o meu comportamento dizia o contrário, nunca havia pegado dinheiro sem permissão, sempre busquei ser um bom filho, irmão, amigo, neto, sobrinho, primo, um ser humano melhor. Tirava boas notas na escola, não gostava de tirar vantagem das pessoas, sempre tive boa vontade para ajudar os outros, valorizava a família, fazia muitos programas em família, sempre tive um bom relacionamento com os amigos dos meus pais, vizinhos, colega de 71
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faculdade e trabalho, com todos que faziam parte do meu meio social. E ainda tive que escutar que era um drogado, um viciado, sem responsabilidade, o que tinha feito para merecer aquilo, só por causa de uma porção de maconha? De repente, tudo aquilo que eu era, tudo que tinha feito de bom, a forma como me posicionava socialmente, uma pessoa do bem, havia se perdido e naquele momento haviam me transformado num marginal, num modelo antissocial, era assim que estava me sentindo, uma pessoa horrível. Os dias que vieram depois daquele episódio foram muito difíceis, meus pais fizeram aquela velha pressão psicológica para que eu prometesse que nunca mais ia fumar maconha, o que poderia fazer a não ser dizer aquilo que eles estavam querendo escutar, e o fiz, prometi que não usaria, mesmo sabendo que aquela promessa não era de coração. Cheguei a pensar em parar realmente por alguns momentos, mas na minha concepção, não encontrava um motivo que me convencesse que estivesse fazendo algo errado, salvo estar infringindo a lei, mas isso não me incomodava. Sempre tive um olhar muito pessoal sobre a(s) lei(s)”, a começar pelo fato de que não foi eu quem as havia criado, como alguém poderia dizer o que eu posso ou não fazer, seguia a minha lei, na qual partia do princípio que você pode fazer o que quiser, desde que não cause mal ao próximo, seja este mal físico ou psicológico, o meu fazer era preventivo, evitava fazer coisas que poderiam causar o mal para alguém, premeditando todas as minhas ações. Um bom exemplo, o cinto de segurança, o sinto de segurança é um equipamento de proteção individual, por que sou obrigado a usar o cinto, sendo que o fato de usa-lo ou não, trará consequências somente para mim. Se eu estiver sem cinto de segurança, não implica que estou mais apto a causar um acidente, assim como se o meu carro estiver com o farol queimado, alguém pode não perceber a aproximação do veículo e consequentemente se envolver num acidente. Nunca gostei do fato de ter sempre alguém dizendo o que você deve ou não fazer, sou devoto da liberdade, preciso fazer as coisas do meu jeito, acredito que este é o caminho do autoconhecimento, a descoberta de seus limites, contudo toda ajuda é bem vinda, ajuda, e não imposição. Quando via o sofrimento, principalmente da minha mãe, comecei a pensar seriamente em parar, mesmo sem entender o motivo de tanto sofrimento pararia por ela. Mas toda vez que atravessava a porta da sala para ir à rua, minha mãe olhava com aqueles olhos e fazia quase que uma mini entrevista, querendo saber onde iria, que horas voltaria, muitas vezes ia conversar com os amigos da rua. Quase todos os meus amigos e as pessoas que me relacionava não usavam Cannabis e quando eu voltava para a casa, sem ter usado, minha mãe 72
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começava a resmungar, falando pra mim parar de usar, cheirava minha roupa, revistava meu quarto. Acho que todo este movimento me fez desistir de deixar de usar, uma por que eu já não queria mesmo, deixaria de usar por causa da minha mãe, somente por ela, mas ela não demonstrava confiança nenhuma em mim, continuava me tratando como viciado, revirando minhas gavetas e meus pertences. Recebi a ligação da mãe do Pedro num domingo de manhã, me chamando para ir almoçar lá, disse que provavelmente Pedro estaria em casa na hora do almoço, pois ainda estava dormindo. No almoço conversamos, eu, Pedro e seus pais, após o almoço o chamei para dar uma volta, ir até o Parque Ipanema para conversar, chegamos no parque, sentamos à sombra de uma árvore e começamos a bater papo, nada que remetesse ao fato dele ter saído da casa de reabilitação, um assunto qualquer. Papo vai, papo vem, perguntei sobre como estava sendo não estar na casa de reabilitação, ele falou mil maravilhas, disse que estava melhorando, que teve uma recaída quando saiu, mas não estava andando mais com os colegas do crack, que tinha arrumado uma namorada, que estava de boa. Conversamos por um bom tempo, a experiência que tive em casa em relação às drogas me fez ter um outro olhar sobre o caso do Pedro, fiquei curioso sobre os discursos tanto do Pedro, quanto da mãe dele, pensando quem estava com a razão e percebi que não existia uma razão e sim pontos de vista diferentes. Talvez a mãe dele poderia estar prejudicando a reabilitação do próprio filho, Pedro parecia realmente estar melhorando, mas longe de estar livre do crack, precisava investigar mais, conhecer o olhar do Pedro sobre o crack. Levaria algum tempo, mas a minha ideia era passar mais tempo junto com ele, só nós dois, em outros ambientes, tipo essa conversa no Parque Ipanema, para conhecê-lo melhor. Em casa, mais precisamente na minha cama, encontrei uma carta da minha mãe, nessa carta ela falava para mim deixar de usar droga, dizia que a Cannabis iria me levar a usar outras drogas mais pesadas, como o crack, que não me levaria a nada, a não ser destruição, que na televisão tinha visto que a Cannabis é a porta de entrada para o mundo das drogas. Quatro páginas falando da Cannabis assim como o social a vê, como um monstro, como proliferadora do mal, como inversa ao amor, mas na minha percepção, na minha relação com a Cannabis, tudo que ela descrevera era totalmente oposto, toda a concepção que ela tinha a cerca da Cannabis, seus efeitos, sua filosofia, não passava de contradição. Tentei explicar que era uma coisa totalmente diferente, mais não conseguia explicar com palavras, talvez por que ela também não quisesse escutar, estava fechada, sua opinião já estava formada, baseada nos 73
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fundamentos da televisão, não em uma ideia séria, mas na visão dos jornais, dos programas medíocres de assuntos policiais, daqueles que polemizam quaisquer assunto, que atribuem a violência à Cannabis. Como poderia fazê-la mudar de opinião? Falei que estudava muito sobre a Cannabis, que já tinha visto muitos documentários a respeito do assunto, que a Cannabis não era tudo isso que ela pensava, sugeri que víssemos um documentário que eu tinha sobre a Cannabis, mais nada adiantou, talvez esse preconceito inquestionável seja pela falta de um material de natureza neutra sobre a Cannabis, algo que sugerisse a formação de opinião, um acervo que fale por si só, cinquenta por cinquenta, que traga uma visão do todo e não de uma ideologia moral discriminadora. Depois de tanto tentar transmitir a minha visão sobre a Cannabis, desisti, e neste momento aprendi que era melhor me calar, para não gerar mais conflitos, a partir daí mudei minha abordagem, se minha mãe não queria escutar sobre o lado bom da Cannabis, ela então passaria a ver com os próprios olhos que a Cannabis não é um monstro como ela pensava. Não iria brigar ou discutir com ela por causa da Cannabis, esta foi minha primeira ação em prol da minha causa, o que demonstraria uma contradição ao perfil do drogado, viciado, marginal e bandido. Escutei tudo que ela tinha para falar, que eu estava errado, que era ruim, escutei calado, sem me exaltar.
“Quem sabe cala quem não sabe é quem mais fala, O sábio cala, a verdade por si fala. O bem aventurado Que ouve antes de falar Aprende com as palavras do Pai, Meditando em suas leis dia-e-noite, noite-e-dia. Meditando em suas leis dia-e-noite, noite-e-dia. Oh, Pai! O homem não é mais que o vento Vem e vai, não pode se calar por um momento. Só sabe falar, Só sabe falar.” Quem Sabe... (Salomão) - Ponto de Equilibrio
Pensando no caso do Pedro, procurava uma forma de ajudá-lo, mas não conseguia encontrar algo que pudesse surtir efeito à curto prazo, naquele momento em que me encontrava não podia me dedicar à sua causa inteiramente, no fim do meu curso, fazendo estágios e elaborando o trabalho de conclusão de curso, trabalhando a semana inteira, estava muito atarefado e me faltava tempo para dar conta de tudo isso. Por outro lado não podia abandoná-lo, não naquele momento, sentia que ele estava sofrendo bastante com toda a 74
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situação, principalmente com a forma com que os outros olhavam para ele, a pressão e o desamparo social, talvez eu fosse a única pessoa que o via como um ser humano, a última esperança daquele jovem de dezenove anos. Percebendo o quanto o seu vício lhe causava uma angústia muito grande, o quanto era patológico, resolvi ligar para conversarmos um pouco e reforçar nosso laço, que neste ponto já havia ultrapassado os limites cliente/terapeuta, sugeri que nos encontrássemos para um bate-papo, peguei minha bicicleta e fui até sua casa, conversamos bastante, por muitas horas, falamos de tudo e sobre tudo, não tocamos em assuntos relacionados ao crack e sua situação de dependência, conversamos como dois amigos, sobre mulher, futebol, política, essas coisas. Depois daquele dia Pedro passou a me respeitar muito, quase que como uma admiração, pois não estava com o intuito de mudá-lo, de bater na mesma tecla que a grande maioria vinha batendo, estava ali para transmitir uma mensagem muito maior, além até mesmo da minha própria compreensão. Em casa as coisas não iam bem, meus pais muito preocupados e eu já não sentia aquele calor de um lar, não me sentia à vontade dentro de casa, a nossa relação pais/filho passou de um vínculo incondicional à hipocrisia, onde os meus interesses eram ignorados pelos meus pais e os interesses deles eram ignorados por mim. Relação conflitante, mas nunca encarada como sendo uma realidade, sempre por debaixo dos panos, eles fingiam que mandavam e eu fingia que obedecia. Queria viver minha vida do meu jeito, já estava cansado de tanta gente falar como você deve fazer isso ou aquilo, a vida é única, singular, e ninguém a não ser você pode vivê-la. Meus pais que querem o melhor para mim, que só querem o meu bem, estavam fazendo o que todos os outros pais fazem de melhor, traçando objetivos para a minha vida, construindo um caminho para mim, dentro de suas concepções e só nas suas concepções, infectadas por nada mais que seus sonhos e desejos e com uma pitada de padrões midiáticos. A mim só restava alimentar essa farsa, insistir na mentira, continuar fazendo as coisas do meu jeito, de jeito que acreditava que tinha que ser. Sabe quando na vida a gente tem aquele insight, aquele momento raro onde surge uma solução do nada, pois então, foi quando senti que era a hora de sair de casa, de fazer minha vida, de produzir, de evoluir, de começar a viver, mas era só nisso mesmo que iria ficar, não tinha como sair de casa, ainda era instável financeiramente, talvez carregasse um certo medo também, sei lá, mas se existe o momento certo, aquele seria o momento. Não conseguia ficar em casa, esperava sempre algum colega me ligar para sair, ir a algum bar, choperia, festa, qualquer coisa que fosse, era melhor do que ficar em casa, quando 75
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não tinha nenhuma companhia, saía sozinho, e gostava. Quando estava só me dedicava mais a mim mesmo, a conhecer mulheres e até pegar algumas, me sentia mais livre para me aproximar da garota que mais me interessasse, achava mais fácil pegar mulher sozinho, por que observava mais, procurava a mais radiante e a menos fútil, aquela que só de olhar me causava uma vibe positiva, um sentimento bom. Nunca tive uma preferência característica por um tipo de mulher, pois quando olhava para uma garota, olhava para sua alma e não apenas para o que meus olhos desejantes queriam, confesso que nas muitas vezes era difícil de fugir daquilo que o contemporâneo nos determina como sendo beleza, há muitas mulheres sendo levadas pela maré e às vezes uma pequena diferença, fazia toda a diferença. Fui a uma festa da empresa em que meu pai trabalha, conhecia muitos amigos do meu pai nessa empresa, cresci acompanhando meu pai nas festas da empresa e nos campos de futebol vendo o time deles jogar, gostava de participar sempre que podia. Nessa festa acabei encontrando com um colega, esse colega tinha levado uma amiga, Alda, ele me apresentou-a e ficamos conversando por um bom tempo, nós três, falamos de vários assuntos, ela era música, o papo foi descendo ladeira, fluindo sem parar. Tínhamos muitas coisas em comum, a começar pelas ideias, no gosto musical, na forma de se vestir, no comportamento, na visão de mundo, ela era bastante interessante, além de bonita. Como esse colega trabalhava na empresa, ele deixou a gente conversando sozinho por muito tempo, hora cumprimentava um, ora brincava com outro colega, e nós ficávamos ali conversando, a chegar num ponto em que ele se aproximou de nós e nem notamos a presença dele. Rolava uma sintonia, perguntei qual era o lance dele com ela, pois se ele estivesse querendo pegar ela, eu sairia, pra não atrapalhar (mais), ele deixou o caminho livre, disse que era só amizade e que podia ficar tranquilo, nessa hora ela estava dando uma palhinha, tocando e cantando enquanto o cantor fazia um intervalo. Tocava muito bem, tocou uma música do Zé Ramalho, eu viajei, depois de conversarmos a noite toda, trocamos telefone, queria ter dado um beijo nela ali, mas esse colega tinha levado ela, achei melhor ligar e combinarmos de sair outro dia. Dois dias depois ela me ligou e conversamos um pouco, me chamou para vê-la tocar num bar em Timóteo no fim de semana, na sexta mais precisamente, disse que iria. Ela me ligou novamente na terça, na quarta, na quinta e na sexta, mais de uma vez por dia, já não tinha assunto desde terça, imagina nos outros dias então, como num foi o papo. Aquilo já me desanimou um tanto, mas não podia furar com ela, sei lá, talvez também fosse algo que não importasse muito, um pequeno detalhe que pudesse ser reparado. Na sexta ela ligou falando 76
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que o Corpo de Bombeiros tinha interditado o bar, por questões de segurança, combinamos de ir ao Burracharia Pub. Busquei ela e fomos para o pub, ia tocar uma banda muito boa, entramos, pegamos uma lata de cerveja cada, encostamos na grade do andar de cima e começamos a conversar, riamos, brincávamos e na segunda cerveja, a banda começou a tocar uma música do The Doors que eu era louco para beijar uma garota escutando essa música, de repente eu parti e comecei a beijá-la, foi um beijo inexplicável, ela ficou de costas para a grade, que tinha a altura de sua cintura. Com a ferocidade do meu ataque, o corpo dela se inclinou para trás como se fosse cair, ela então me abraçou o pescoço tão forte, que começou a me puxar para baixo e aquela sensação de que iriamos cair foi ignorada pelo nosso desejo de continuar aquele beijo, que se tornou ardente, devorador, com uma pitada de adrenalina e medo de cair. Eu a agarrei e o beijo pareceu durar horas, quando em fim nos desprendemos, quase sem fôlego, me olhou como se não acreditasse, então sorri e fui respondido com um sorriso daqueles que vem lá do fundo, raros, que reflete nos olhos. Percebi que não deveria ter feito aquilo, de algum modo ter feito surgi tal sentimento não era minha intenção, era perceptível que tinha acontecido alguma coisa diferente, pela intimidade, pelos seus olhos, por tudo, foi um beijo muito íntimo, porém espontâneo, talvez nem tão inocente assim. No decorrer da noite trocamos alguns beijos, nenhum igual aquele, a noite estava boa, fomos embora e no carro o clima esquentou um pouco, ela cortou, não insisti, por dois motivos, não gosto de insistir e por que o sexo seria muito mais íntimo. Se o beijo já me assustou, imagine se tivéssemos transado, não poderia usá-la, não queria nada sério com ela e naquele momento, não compartilhávamos do mesmo sentimento, seria melhor assim, deixei-a em casa. Durante toda semana ela me ligou, não sabia o que fazer, não queria ser grosseiro e direto, mas também não queria alimentar suas expectativas, simplesmente deixei que as coisas fossem se esfriando até que a própria situação tomasse seu rumo, ou seja, explicasse por si só. Até que nos encontramos algumas vezes depois disso, desde então como amigos. Liguei para o Pedro, o chamei pra ir ao Parque Ipanema bater um papo, trocar umas ideias, apesar da nossa condição terapeuta/cliente, gostava de conversar com ele, o via como um amigo, era um cara esperto, inteligente e aprendia muito com ele também, entre nós passou a não existir essa definição terapeuta/cliente. Éramos dois amigos conversando sobre o que viesse à cabeça, às vezes via que ele depositava essa confiança de como estivesse ali querendo ajudá-lo e me permitia tentar ajudar, baixava a guarda. Ficamos conversando e após 77
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um tempo, percebi que demonstrava um pouco de aflição, perguntei o que estava rolando, se estava tudo bem, dava para perceber que ele estava sobre o efeito do crack, começou a chorar e disse que não, dei um tempinho pra ele, não é fácil chorar na frente de outro homem, então perguntei: - O que foi, me conta, o que aconteceu? - Tô pra baixo cara... Minha mãe me pegou tentando roubar o botijão de gás lá em casa... - Pô Pedro, num acredito! ...e sua mãe cara? - Falou até, me xingou, gritou, pegou a bolsa dela, com muita raiva, brigando comigo, tirou vinte reais e jogou em mim... gritando: é dinheiro que você quer, é dinheiro? Toma, vai lá comprar crack... - Eaí? Indaguei. - Eaí que eu fui lá e comprei... mas tô arrependido... Continuamos a conversar, pesei um pouco no assunto, aproveitando o arrependimento dele, foi bastante construtivo, pareceu que ele absorveu bem as coisas que conversamos, acho que dessa vez ele iria pensar bastante nas suas decisões, inclusive na vida em que estava levando. Passaram-se três dias, Pedro me ligou, me chamando para aparecer lá na casa dele pra gente conversar, então eu fui, quando cheguei vi que ele estava com um semblante muito bom, diferente, falou que desde aquele dia não havia usado crack, que estava querendo parar, perguntei como ele tinha conseguido, falou que tinha pensado muito naquele episódio da mãe dele, só dependia dele para parar, que ficou esses dias pensando e que nem havia saído de casa, de tanto pensar no incômodo que o crack estava lhe causando. Fiquei muito feliz, pude ver que estava acontecendo alguma coisa, que ele estava começando a se balançar quanto à suas ideias, um novo movimento estava se iniciando dentro de Pedro, uma nova percepção, uma reconstrução do eu. Enquanto as coisas fluíam bem, apareceu um amigo do Pedro, com uma pedra de crack, chamando-o pra fumar, e eu ali do lado. Pedro olhou para mim, olhou para a mão do cara, que tinha uma pedra, olhou para mim de novo, continuei calado, no mesmo lugar, torcendo por dentro para ele recusar, talvez um não somente não bastasse, mas se ele dissesse não ao menos uma vez, eu poderia ajuda-lo, reforçava o não dele e fazia o cara 78
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ir embora, mas ele se levantou, sacudiu a bermuda como se estivesse limpando-a e perguntou se eu iria ficar ali mesmo, que ele não ia demorar. Nessa hora pensei, pronto, agora ferrou, me levantei e falei que iria com eles, ficaram sem entender, achou que eu estava brincando, o cara perguntou quem eu era, e Pedro disse que era um amigo e que nunca tinha usado crack, então o colega dele disse: - Vamo lá então que você vai gostar... Seguimos pela rua, fui meio receoso, nunca tinha fumado crack, mas tinha que ver o que o crack tinha que fazia dele um aliado tão forte, se quisesse ajudar o Pedro e mostrar que estava do lado dele, este seria o momento perfeito, assim teria mais argumentos quando nas próximas conversas o crack surgisse como assunto. Antes tinha sempre a visão dele sobre o crack, tinha que formar alguma opinião para poder confronta-lo ou mesmo interagir mais verdadeiramente com ele. Fomos até um terreno baldio que ficava a alguns quarteirões de sua casa, e lá começamos a fumar, num cachimbo, sujo. Na medida em que os dois fumavam, eu claro, não fumava com a mesma intensidade, talvez também por medo, aquilo era desconhecido para mim, quando começou a fazer efeito, percebi que eles ficavam muito desconfortáveis, olhando por todos os lados, para traz toda hora, dizendo que estava vindo alguém. Eu não sentia nada disso, mas acho que por estar exposto a este estímulo, comecei a ficar um pouco desconfortável também, até que a pedra acabou, o colega do Pedro ficou querendo comprar mais uma, perguntou se o Pedro tinha dinheiro, mas não tinha, me pediu dinheiro também e apesar de ter, disse que não tinha e ele partiu falando que ia pegar uma no F (fiado) pra gente esperar ele ali que voltaria com outra. Chamei Pedro para sair fora, perguntei se ele iria ficar lá esperando o cara, ele falou que ia, que se quisesse podia ir embora que ele ia ficar lá, foi quando comecei: - Ô bicho, é por causa disso que você tá deixando de viver sua vida e andando igual a um zumbi por aí? Olha pra você, tá se escondendo igual a um rato, olha onde a gente está, num terreno baldio, escondido, grilado, e ainda por cima sem sentir nada. Não consigo descrever o que estou sentindo, num sinto nada, nem alegria, nem ódio, nem dor, nem fome, nem cheiro, nem se está frio ou quente, parece que simplesmente não existo, é como se eu fosse um fantasma, sem sentimento, sem emoção, sem ter certeza que estou respirando. Você pode estar passando por uma fase ruim, mas isso aqui não vai te ajudar cara, você vai se afundar aqui e nada vai mudar, pensei que você fosse mais forte, eu não imaginava que era 79
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por causa disso que você está assim, definitivamente não vale a pena, o crack não te dá nada, ele só te tira, tira tudo de você, te deixa como nada. Pedro escutou tudo calado, sem dizer uma palavra, mas também continuou ali, no mesmo lugar, olhando para a entrada do terreno fixamente, como se estivesse esperando o colega entrar lá a qualquer momento com mais uma dose. Fiquei sem saber até se ele tinha escutado, fiquei calado e ali ao lado dele, esperando que o cara não voltasse, se ele voltasse, teria que ir embora e deixar os dois lá, se afundando. Já havia passado uns trinta minutos, nem os efeitos eu já sentia mais, esperei até os quarenta e o chamei para ir embora, queria esperar, olhei nos olhos dele, e falei: - Você acha que aquele cara vai voltar? - Mas ele falou que ia. Respondeu. - Será que a gente pode acreditar nas coisas que um viciado em crack diz, eu estou começando a duvidar. Dei uma cutucada nele. Me olhou e me chamou para ir embora, dizendo que o cara não iria voltar mesmo não, chegamos na casa dele, ele entrou e fui embora para a minha, fiquei pensando no Pedro, o que será que ele estava passando para querer continuar usando crack. Deu para perceber que o vício é algo extremamente patológico, por que quando se torna um vício, perde-se o sentido, descaracteriza-se o próprio simbólico, passa-se a representar um outro sentido, que é caracterizado pela própria condição do ser, podendo ser algo punitivo, fuga, prazeroso, dependendo da pessoa e suas angústias. Tinha que tirar Pedro dali, o momento era propício, percebi que tudo estava mexendo com ele, liguei para ele e falei para arrumar que a gente ia dar uma volta, passei na sua casa, quando ele entrou no carro, perguntou aonde a gente ia, falei pra ele ficar calmo, de boa, que a noite estava apenas começando. Fui até um ponto da cidade que é bem alto, tem uma vista privilegiada da cidade, o morro do C3, estacionei o carro, falei pra ele descer, sentamos no meio fio e falei com ele da vista, aqui de cima a cidade está a nossos pés, tirei um baseado do bolso, e perguntei se ele já tinha fumado Cannabis, respondeu que sim, mas que não gostava muito, continuei: - Mas hoje você vai fumar um comigo!
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Acendi o baseado dei dois tragos e passei para ele, ele deu um trago e dei continuidade à conversa: - Olha quantas pessoas estão lá em baixo! Sabe cara, na vida a gente tem que alcançar um lugar para olhar para as pessoas do ponto mais alto, mas esse lugar a gente consegue é com respeito, confiança, amor, paz, com sentimentos bons, por que quanto mais degraus você subir, mais pessoas vão poder te ver e te escutar. Nessa hora você tem que ter uma mensagem a passar, tem passar algo bom, o bem, se quando chegar essa hora você não estiver preparado, não vai conseguir fazer a diferença, você tem que buscar esse homem dentro de você, sei que não é fácil, olha aí pra baixo, quantos não conseguiram subir nenhum degrau. Tem muitos que achou melhor fazer o mais difícil, que é construir uma escada para baixo, aproveita que você ainda está no primeiro degrau, que não começou a cavar ainda, vai tentar fazer a diferença para alguém, comece pela sua família, mostra que você é melhor do que eles imaginam. Subir não é difícil, o difícil é ficar parado, os que já estão lá em cima, estão fazendo de tudo para te derrubar, eles querem te ver mal, pois assim eles se sentem bem, você tem que ter alguma coisa para acreditar, um sonho, e lutar sabendo que vai perder algumas batalhas, mas com um tempo, à medida que for conseguindo superar os obstáculos, vai perceber que a vitória vai se tornando mais fácil, vai subir degraus até sem perceber. Enquanto fumávamos, já estava na metade, era um baseado bolado para dois, sem exagero, perguntei se ele estava entendendo a ideia, respondeu com um sorriso quase rindo, perguntei se ele já estava na onda, e ele respondeu: - Jaaaaaaaaa... Apaguei o baseado, mostrei para ele e falei que sobrar também era importante, temos que tomar cuidado com os excessos, pois os excessos representa tudo aquilo além do que precisamos para viver, os excessos estão ligados à desigualdade, o que importa é o equilíbrio, a gente já num está numa brisa boa, então cara, não precisa de mais. Guardei o bagulho e falei pra deixar pra mais tarde. Ele escutou concordando, disse para entrar no carro, que agora ia apresentar a vida para ele, o levei para o Burracharia, pegamos uma lata de cerveja cada, conversando, falando das mulheres, muitas gatas. Sempre que podia dava uma enfatizada, olha só você prefere olhar para essas mulheres ou para a cara daqueles colegas seus, sente o gosto da cerveja cara, olha o vestido daquela ali, sente o vento batendo no seu rosto, é isso que é viver, perguntei se estava se divertindo, respondeu que sim, falei: 81
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- Então chega de dor, de esconder naquele lote para fumar crack, olha aí, o que você tá perdendo... mulherão né! Então enquanto você está lá fumando crack no lote com seus colegas, nego tá comendo gostoso... Acabou a sua aí? Vou pegar outra lá pra nós. Demorei uns quinze minutos, fui ao banheiro, o Burracharia estava cheio e aproveitei para fazer uma horinha, pra deixar ele pensar um pouquinho, voltei e ele estava lá sozinho, pensativo, já cheguei chamando ele pra entrar, que ia lhe mostrar a mulher mais bonita da noite, uma gata que tinha visto lá dentro. Entramos falamos muito da gata e de muitas outras, sobre música também. Pedro ficou bem à vontade, também me esforcei ao máximo para que ele se sentisse o mais à vontade possível, não rolou de pegar mulher, apesar de ter tido algumas oportunidades, mas estava ali num processo terapêutico, se fosse para arrumar mulher teria que ser duas, mas não estava na hora ainda, era cedo para pensar nisso. O importante naquele momento era o Pedro, reinseri-lo no contexto social, tentar atribuir algum significado com que ele se identificasse e se sentisse interessado, para que pudesse virar a página, recomeçar. Voltamos para casa e só no outro dia fui me lembrar da ponta que tinha sobrado, nem sentimos falta dela de tão positiva que a noite havia sido, naquela tarde Pedro me ligou, conversamos um pouco, pude ver que tinha surtido o efeito que estava esperando, positivo, um interesse em desfrutar da vida de outra forma, de estar em contato com as pessoas, de sentir-se parte do social e querer fazer parte do social, de perceber suas potencialidades e saber que é uma pessoa comum, como todas as outras. Naquele dia fiquei muito feliz, pude ver que não há barreiras quando o assunto é o bem estar do próximo, essa é a palavra, até onde você iria para ajudar alguém? Muitos de nós já sofremos o bastante, e este sofrimento em sua maioria é causado por nós mesmos, que não conseguimos compreender os outros, que somos imperceptíveis aos sentimentos daqueles que estão ao nosso lado. Talvez eu tivesse conseguido fazer algo de bom para o Pedro, e ele a mim, isso é o que nos torna humanos, ensinar e aprender, sempre, nunca subestime uma pessoa, pois mesmo que não perceba você estará aprendendo com ela. É assim que evoluímos, que crescemos, são nas experiências reais, nos fatos, virar as costas é muito fácil, poderia ser uma medida digamos que preventiva, por que se pegarmos toda a história, lá no início, meio ou fim, vamos perceber que todos nós temos uma parcela de culpa, mas enxergar isso pode ser muito doloroso.
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Agora teria que começar administrar a relação terapeuta/cliente, mesmo que essa nossa relação tenha um grande diferencial, que seria o coleguismo, ela precisaria passar por uma série de etapas, para garantir a sua saúde, num ponto de vista biopsicossocial, onde o vínculo que se construiu, tinha que ser um pouco cortado, para não haver nenhum tipo de dependência, o que viria contra todas as metodologias trabalhadas. O próximo passo era a conquista da autonomia, sendo que a iniciativa de socialização tinha que partir de Pedro, ele que teria que buscar os seus interesses, os lugares onde iria frequentar, os círculos de amizade, buscar aquilo que ele acreditava. Eu tinha usado uma abordagem alternativa, não convencional num contexto acadêmico, seria muito criticado, pois substitui o crack pela Cannabis, por assim dizer, mas pela história de Pedro, acredito que foi a coisa mais sensata a se fazer. Foi uma aposta na qual percebi que surtiria um melhor efeito, não havia outras possibilidades, pelo menos no meu repertório, onde eu pudesse explorar todos os meus objetivos e que me desse tanta liberdade para trabalhá-lo, essa foi além de toda a minha base no que se refere ao vínculo, o ponto chave do processo terapêutico. Foi onde demonstrei toda a minha confiança em Pedro, acredito que foi o instante onde consegui resgatá-lo, quando me postei de forma diferente, o surpreendendo, sendo mais verdadeiro do que nunca, pois num processo terapêutico, temos que ser autênticos, que estar em máxima sintonia com o cliente, não é só mostrar que nos preocupamos e estamos ali para ajudar, é realmente nos preocuparmos e saber demonstrar toda nossa preocupação, claro, de um jeito peculiar. Com o passar do tempo, Pedro começou um cursinho pré-vestibular, a gente continuava a se encontrar, saía, tomava algumas cervejas, fumávamos um baseado, falávamos sobre a vida, sempre que tinha oportunidade dava uma provocada nele, pra nunca esquecer o que havia passado. Ele parou de usar crack, mas também fumava um baseado todo dia, alertava ele direto sobre os exageros, para ter cuidado e estar sempre se policiando, para não perder o verdadeiro sentido da coisa. Ele estava ativo, conseguiu passar na federal de Viçosa (MG), está fazendo engenharia, conhecendo pessoas novas, já me apresentou algumas amigas, acredito que o uso da Cannabis proporcionou-lhe um grande crescimento, lhe trouxe mais confiança e maior entendimento de si. Às vezes dava para notar que ainda tinha ficado uma angústia, talvez pelas coisas que passou, que só Deus sabe, ou mesmo pelas que se perderão, ou até pela
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fragilidade do relacionamento com aqueles que mais gostava, sua família por exemplo, vizinhos que não conseguem olhar para ele da mesma forma, não sei, isso já seria outro caso.
“Ainda me lembro bem daquela quinta feira Cinco malandro em volta da fogueira Ouvi o grito de dor de um homem que falava a verdade mas ninguém se importava Botando pra fora tudo o que sentiu na pele Mas ninguém lhe dava ouvidos não” Quinta-feira - Charlie Brown Jr.
Numa manhã em sala de aula tive uma surpresa, uma amiga de classe me revelou que tinha uma menina da sala que estava a fim de mim, mas não quis dizer quem, fiquei bastante curioso, já tinha ficado com quase todas das que estavam disponíveis, solteiras, nunca gostei de me envolver com mulheres comprometidas, pois nunca aceitei ou concordei com traição e não seria eu um incentivador de tal ato. Pensei muito nisso a semana inteira, percebi que uma menina havia se aproximado bastante de mim nos últimos dias, mas ela tinha namorado e para minha surpresa acabei descobrindo que era dela que essa amiga tinha falado, quase não acreditei, a final ela não era apenas uma menina, era a mulher mais bonita que já tinha visto, era maravilhosa, um espetáculo, imagine uma mulher perfeita, era ela. Fiquei sem saber como agir, ainda não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo, a ficha não tinha caído, mas continuei agindo naturalmente, tratando-a como o de costume, e aos poucos as coisas foram acontecendo. Primeiro ela terminou o namoro e quando assustei estávamos mais próximos do que nunca, não nos desgrudávamos por nada, mas ainda era amizade, até que depois de um tempo um beijo aconteceu, fomos nos conhecendo e o que antes parecia um sonho, passou a ser realidade. Aos poucos, cada dia que passava meu sentimento crescia mais e mais por ela, tudo estava tão bom, eu, ela, a vida, só tinha motivos para sorrir, apesar dela ser uma pessoa com uma beleza sem igual, cabelos grandes lisos, cintura fina, seios siliconados, maquiagem forte, salto alto para todas as ocasiões, roupas de grife, justas e decotadas, valorizando o seu belo corpo, em fim. Seguia o padrão de beleza midiático, vistos em novelas e programas de televisão, mas ela era especial, muito romântica e eu gostava muito, sempre tive um lado romântico muito forte, buscava tratar as mulheres da melhor
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forma possível, com muito carinho e atenção, ela tinha um lado muito carinhoso e fui me apaixonando por essa mulher, pelo seu jeito, seu sorriso, seu cheiro, seu olhar, sua pele macia. As coisas iam acontecendo devagar, no seu tempo, a gente se via bastante, passávamos a manhã juntos na sala de aula e nos encontrávamos frequentemente à noite, seja para sair ou ficar juntos conversando, nós éramos muito diferentes, tínhamos mais diferenças do que coisas em comum. Aos poucos essas diferenças começaram a aparecer cada vez mais intensamente, ela tinha um ciúmes irracional de mim, nunca gostei de mulheres ciumentas, por que o ciúmes exagerado tem um efeito fantasioso. Nunca dei motivos para mulher alguma sentir ciúmes de mim, sempre fui fiel e respeitoso, mais ela não conseguia perceber isso, eu estudava numa sala que tinha quase cinquenta mulheres, era inevitável que me relacionasse com elas de forma amigável, como sempre o vinha fazendo. Tinha uma amizade bacana com muitas mulheres da sala e isso causava um grande desconforto na Bombom, por mais que eu tentasse me expressar, dizendo que era uma criação dela, que não tinha nada a ver, que eu era dela, que gostava dela, parecia que mais ciúme ela sentia, era irracional, não tinha como tentar argumentar. Se a Bombom me visse conversando com alguma mulher ela ficava louca, fechava a cara para mim, emburrava, e aquilo mexia comigo, eu era tão carinhoso, atencioso, mostrava sempre o tanto que gostava dela, o quão importante ela era para mim, mas vira e mexe batíamos nessa mesma tecla. Este fato para mim era apenas um detalhe, o resto estava indo bem, sempre estive em busca da mulher da minha vida, com muita paciência e naturalidade, nos meus relacionamentos tento manter um equilíbrio e busco conhecer a pessoa em sua espontaneidade. Gosto de dar um passo de cada vez, sem apressar as coisas e estávamos levando nosso relacionamento neste ritmo, não tinha sexo, por uma questão dela, ela acreditava que tinha que se resguardar mais, que ainda não se sentia pronta, eu respeitava e além, compartilhava em partes, da sua forma de pensar, pois o sexo não pode servir de base para um relacionamento, não é a coisa mais importante. O sexo nos dias de hoje possui uma característica comercial, um valor de troca, digamos que uma mulher aceite sair com um homem, ele a leva a um lugar bacana e a deixa à vontade, ela pede uma bebida com um preço razoável, ele a trata bem, a busca em casa, em fim, ele faz tudo isso em troca de sexo e no fim da noite o que essa mulher pode oferecer? Sexo, que neste momento adquiri um valor de troca maior do que todo o gasto que ele teve com ela, torna-se o entretenimento mais valioso da noite, não que o sexo não seja importante, é importantíssimo para um relacionamento, mas ele 85
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não deve obter tal valor, tem que ser espontâneo, natural, desejante pelo outro, acontecer por si só, se entregar como uma forma de compartilhar o mesmo sentimento, amor. É claro que muitas vezes ficava louco para transar com ela, principalmente naquelas horas em que os amassos ficavam mais quentes, mas sentia que se precisasse forçar um pouco, era por que ainda não estava na hora e assim ia levando. Vez ou outra ela sentia um ciúme de mim, mas eu acreditava que mostrando para ela que gostava dela, que queria ela, conseguiria passar essa segurança e as crises de ciúme iam desaparecer com um tempo. Não podia culpá-la, não sei se o fato dela ser ciumenta era uma coisa dela, algo que acontecia em todos os seus relacionamentos ou se ela construiu esse ciúme irracional por mim, pela imagem que ela tinha da minha pessoa, pelo fato de que havia beijado uma quantidade significativa de mulheres na faculdade, que era visto como mulherengo, mais eu era solteiro, é uma situação bem diferente. Logo comecei a perceber que estava me afastando das pessoas (mulheres), sem motivos passei a me afastar das meninas da sala e até mesmo de outras amigas, evitava o contato e o convívio com mulheres, tudo isso para cumprir uma exigência, entre aspas, de outra mulher, aquela na qual tinha me apaixonado. Sempre tive um ideal de mulher em mente, um relacionamento onde existisse certa liberdade, onde o outro não fosse possessivo, onde existisse confiança e sinceridade, eu tentava proporcionar todo um ambiente baseado nesse ideal e em troca era condenado por um ciúme incoerente. Comecei a pensar sobre essa tal paixão que sentia, coloquei as coisas na balança, talvez eu estivesse empolgado, ou até mesmo enfeitiçado pela sua beleza. Sabe, chegar a um lugar ao lado de uma mulher bonita, roubar a cena, causar um impacto visual, as pessoas me olhando como se não entendesse onde tinha conseguido aquela mulher, as mulheres pensando o que eu tinha, todo esse glamour poderia estar me influenciando a gostar dela cada vez mais, mas será que era isso que estava buscando numa mulher, um troféu, e o amor, seria isso o amor? Por que me sentia mal em evitar as outras pessoas? Talvez o sonho estivesse chegando ao fim, a fase da ilusão começando a passar e as coisas surgindo de forma mais real, como realmente são. Éramos bastante diferentes e não sou daqueles que acredita que os opostos se atraem, acredito que uma mulher para estar ao meu lado, tem que compartilhar das coisas que acredito e gosto, não necessariamente tudo, mas ter ideias em comum sobre questões variadas, pode ser um pouco mais difícil de encontrar, requer tempo encontrar um amor, não é se apaixonar 86
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pelo primeiro belo par de pernas que aparecer. A Bombom frequentava lugares diferentes que eu, tinha um gosto musical diferente, se vestia como todas as outras mulheres (vestido curto/decotado, maquiagem forte, salto alto, silicone), não era o meu tipo de mulher, sempre gostei de algo mais diferente do comum, singular, uma mulher mais natural, verdadeira, inteligente, equilibrada, que tenha certeza do seu potencial, com um estilo próprio, peculiar. Que fosse menos modinha e que tivesse uma opinião própria, que buscasse se informar, que não seguisse programas de fofocas e programações fúteis, que não fosse uma religiosa fanática, que gostasse da natureza e de fazer passeios para lugares menos badalados, lugares onde pudéssemos passar mais tempos juntos, nos curtindo, queria uma mulher que mesmo estando dentro da Babilônia, não se sentisse parte dela.
“Eu sei que você nem pode imaginar todo o amor que eu tinha pra ter dar De coração aberto quero te dizer que um sentimento lindo tenho pra você Hoje eu acordei e vi o sol brilhar, penso em você aonde esta? Tive um lindo sonho com você Quero te amar, deixa eu te amar?” „ Razão de Sonhar - Filosofia Reggae
O meu último ano de faculdade estava chegando ao fim, várias histórias para contar, festas, amigos, um dos períodos mais marcantes da minha vida, a saudade já se antecipava em meu coração. O nono período acabou sendo muito difícil para mim, tive um problema com um professor em um estágio que fazia, que foi mais ou menos o seguinte, tínhamos que desenvolver um trabalho em uma instituição que aplicava medidas socioeducativas em adolescentes que cometiam ato infracional. Na nossa primeira visita ao programa, tive a ideia de me vestir de uma forma menos formal, na tentativa de conseguir estabelecer vínculo com os adolescentes encontrando menos resistência, mesmo que tal fato não acontecesse, iria ao menos despertar uma curiosidade maior nos adolescentes, que me serviria como uma porta de acesso à esses adolescentes, então vesti uma bermuda, tênis e camisa, e fui para o estágio. Chegando lá tinha vários adolescentes, todos vestidos muito parecidos, como havia imaginado, a minha vestimenta se enquadrava um pouco no estilo daqueles garotos, exceto pelos bonés e chinelos que muitos ali usavam. Após nossa apresentação, subimos para uma sala onde nosso professor iria passar alguns detalhes do estágio, do programa e nos apresentar 87
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para os funcionários que ali trabalhavam, quando chegamos na sala, o professor chamou a minha atenção, de uma forma um tanto agressiva, dizendo que eu estava parecendo com os adolescentes, que não podia ir para o estágio vestido daquela forma. Tentei explicar-lhe que a vestimenta fazia parte da minha metodologia de trabalho, que havia me vestido daquele jeito justamente para ficar um pouco mais parecido com eles, o que poderia facilitar para um contato com aquele grupo, atrair menos resistência e maior identificação. Que aqueles garotos não estavam ali para se sentirem desvalorizados, reduzidos, por alguém bem vestido e com um ar de superioridade, estavam ali para serem escutados, acolhidos, por alguém que os entendessem, ou que pelo menos se esforçasse para isso. Continuei perguntando se ele achava que aqueles que vinham tendo contato com esses garotos, promotores, juízes, assistentes sociais, psicólogos e policiais, vinham conseguindo causar algum resultado positivo na maioria deles, sendo que grande parte daqueles garotos eram reincidente. Talvez estivesse na hora de tentar fazer algo novo, um novo método, uma nova abordagem, um cuidar mais acolhedor e com menos hipocrisia, vim assim para mostrar que não sou melhor do que eles, só fiz uma escolha diferente, e que todos eles tem essa capacidade de escolha, que depende pura e simplesmente de cada um, mas fui ignorado pelo professor. Aquilo atrapalhou todo o meu desenvolvimento no estágio, me desmotivou, tudo que tinha planejado, todo o trabalho que queria fazer, um trabalho diferente na qual acreditava que realmente poderia fazer a diferença, não passou de uma ideia, de algo que ao invés de construído, foi desconstruído antes mesmo de se tornar real. Não saiu do papel, em consequência disso, acabei sendo reprovado no estágio, não só nesse, nos dois estágios que estava fazendo, isso refletiu em todo meu processo de formação. Que fazer Psi é este, onde temos que nos apresentar como os donos do poder, da verdade, como uma entidade suprema, essa para mim não é a essência da Psicologia, longe disso, onde fica a neutralidade nessa história, o poder de fato está em nossas mãos? Se estiver, não podemos nos privilegiar dessa situação, não devemos demonstrar tal poder, esta é a nossa carta na manga, é o que nos diferencia. O poder deve ser conscientemente compartilhado com todos por igual, todos tem o direito de se manifestar e nosso papel enquanto Psicólogos de Grupo é garantir que esse direito seja exercido e mais, proporcionar um ambiente para que esse desejo de se manifestar ocorra de modo geral, pra isso precisamos garantir a equidade, o respeito e a neutralidade nos grupos, a começar por nós, que somos exemplo, referência, dentro do processo grupal. 88
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Quase não acreditei que havia sido reprovado, procurei a coordenadora de estágios, pois achei que os professores ainda não haviam lançado as notas de todas as atividades na internet, ela já estava ciente da situação, nem ela acreditou. Quando eles passaram as notas para ela, ela enviou um e-mail pedindo para corrigir pensando que a minha avaliação estava incompleta, quando ela me perguntou o que tinha acontecido para ser reprovado, logo eu, que tinha boas notas, nunca havia ficado nem de prova de segunda oportunidade nos oito semestres passados, que era um bom aluno, me segurei para não chorar, respondi aquele nada não, meio desanimado, bobeei, agradeci a atenção e informação e fui direto para casa. Quando atravessei a porta de casa, comecei a chorar, minha mãe veio, preocupada, sem saber o que estava acontecendo, então respirei profundamente e disse que havia sido reprovado, me acalmei. Fiquei chateado por um bom tempo, comigo, pois não poderia deixar que um conflito com um professor pudesse me abalar dessa maneira, agora é ter paciência e esperar o próximo semestre chegar, para correr atrás do tempo perdido. No último semestre as coisas ficaram bem apertadas, teria que me virar para conseguir dar conta de tudo, não queria perder a oportunidade de formar com minha turma, a final, estávamos juntos há quatro anos e meio e no último semestre iria ver a turma formar e não estar ali presente. Me matriculei nos quatro estágios, o normal era fazer dois no nono semestre e dois no décimo, junto com o TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), mas como tinha sido reprovado nos dois do nono, decidi fazer os quatro de uma vez. Não sabia como, trabalhando de quatorze e trinta à vinte três e trinta, de segunda à sexta e no sábado de meio dia às dezoito, iria ter que me transformar em três para dar conta do recado. Quase tudo estava me preocupando, principalmente o TCC, optamos por fazer em dupla, por que tinha um amigo de sala, Cordeiro, que durante nossa formação compartilhávamos de muitas ideias em comum, passávamos horas e horas discutindo Psicologia. Uma das coisas que sempre questionávamos e conversávamos muito e que de fato era uma situação bastante atual no cenário brasileiro, era o consumismo, então nossas ideias se casaram. Já havíamos começado o TCC no semestre anterior, mas era apenas um esboço ainda, algo para nos dar um norte, um caminho, para chegar a abordar as ideias que queríamos. Focamos bastante na escolha do tema, já havíamos chegado a um titulo: O Consumo na Relação entre Desejo e Necessidade, dentro deste tema nossa proposta era fazer uma investigação bibliográfica sobre as relações de consumo, analisando o desejo como sendo o principal influenciador nos comportamentos de consumo e a necessidade, o termo necessidade, servindo apenas como bode expiatório aos atos de consumo. Estávamos lendo bastante, mesmo no período de férias, vários livros e artigos na 89
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internet, Filosofia, Psicanálise, Sociologia, Marketing, Comunicação, tudo no que se referia à comportamento social, de Freud à Foucault. Nosso professor orientador foi de grande ajuda, ele se identificou bastante com o tema e nos passava muitas dicas de leitura, quanto mais a gente lia, mais achávamos teorias para complementar nossa pesquisa. Tudo parecia se encaixar no nosso tema, havia muitas coisas que poderiam influenciar no comportamento de consumo, em fim, era muito difícil compactar tudo, graças ao nosso orientador, que nos ajudou a focar nosso artigo em pontos essenciais, estávamos conseguindo desenvolver bem o tema. Nesse período, como a faculdade na qual trabalhava vinha de uma crescente, estava para inaugurar um novo Campus e acabei sendo transferido para lá. Trabalhamos bastante para deixar o Campus em condições de receber os alunos e a área administrativa, enxerguei a transferência como algo positivo, uma vez que estaria no Campus como único responsável do meu setor, ou seja, teria a oportunidade de demonstrar que além de minhas habilidades operacionais, tinha habilidades para manter todo o Campus em ordem. No que se referia à minha função, ou até mesmo desenvolvendo desde os trabalhos operacionais, até trabalhos referentes à coordenação do Campus, que seria um trabalho exercido pelos meus superiores na unidade principal. Um outro lado, é que o Campus era novo, parte elétrica, móveis, em fim, o que traria menos problemas operacionais, onde sobraria mais tempo para fazer um relatório ou ler um texto, em horários em que a movimentação de alunos fosse menor. Toda minha semana na parte da manhã estava preenchida, entre supervisões e práticas de estágios, se tratando a níveis de cronograma, tudo ia bem, mas estava me matando literalmente, o TCC então nem se fala. A gente combinava de se encontrar para falar do TCC, escrever algojuntos, mas nunca saia nada e custamos para perceber isso, sempre começávamos bem, desenvolvendo o assunto e quando pensa que não, estávamos falando de outras coisas, que não tinham nada a ver com nosso trabalho. Começamos então a escrever separadamente e só nos encontrávamos para discutir à cerca daquilo que tínhamos escrito, levávamos para as orientações, pedaços de papel com ideias incompletas, frases solitárias, parágrafos inacabados, nosso orientador ficava louco, dizia que tínhamos que escrever, mas ainda estávamos desenvolvendo nossa ideia, buscando uma base para iniciar nossas discussões em cima daquela ou dessa teoria, ainda tinha que encontrar tempo para me divertir, disso não abria mão, tomar uma cerveja, fumar um baseado, curtir uma balada, sair.
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No fim de semana fui ao Burracharia, como de costume, neste dia, antes de sair de casa, minha mãe estava enchendo o saco, falando que eu estava bebendo muito, quase todo dia, que voltava de manhã bêbado, dirigindo bêbado, em tempo de bater o carro, causar um acidente, falando até babar. Eu já no ponto de sair, escutando aquilo tudo, ela me perguntou se eu não sabia me divertir sem beber, respondi que sabia, claro, e disse que naquela noite não beberia e saí de casa. Cheguei no Burracharia, estacionei o carro, fumei um baseado nas proximidades, sozinho, tinha ido sozinho para lá, sempre gostei de sair sozinho, entrei no bar, comprei uma garrafa de água mineral e fiquei lá curtindo, fumando um cigarro, conversando com colegas, numa boa. Tinha hora que dava aquela vontade de beber uma cerveja, mas uma coisa que sempre procurei preservar e manter é a minha palavra, mesmo sabendo que não tinha como minha mãe saber se tinha bebido ou não, por que provavelmente quando chegasse em casa ela ainda estaria dormindo, mas nunca tive o costume de mentir, não gostava de mentir, era uma pessoa de palavra, era uns dos meus princípios. Continuei a curtir a noite bebendo só água mineral, de vez enquanto alguém perguntava, eu dizia que estava tomando remédio. Lá no meio da noite, uma amiga de faculdade que estava lá, veio até mim e começamos a conversar, ela estava meio chateada, tinha saído com um cara e havia brigado com ele, ele tinha ido embora e deixado ela lá, ela era de Timóteo, uma cidade vizinha, aproximadamente vinte quilômetros de Ipatinga, ficamos conversando durante a noite. Ela também era Sativa, uma gata por sinal, era louco para ficar com ela, mas nunca havia imaginado que poderia rolar alguma coisa, tínhamos um grupo de amigos e sempre participávamos de churrascos e íamos para eventos alternativos sempre essa mesma galera. Nessa noite, uma banda de Belo Horizonte que fazia o som no Burracharia, o cara da banda ficou louco com ela, quando eles terminaram de tocar, ele veio conversar com ela, que estava do meu lado, deixei ela à vontade, saí, fumei um cigarro, conversei com alguns colegas, voltei e ela dispensou o cara, falando que era um babaca e tal, achei que ela estava chateada com o cara que tinha brigado mais cedo, continuei conversando com ela numa boa. No fim da noite, ela perguntou se podia dormir lá em casa, falei que podia sim, que não tinha problema, ela já estava louca, tinha bebido a noite toda e provavelmente fumado um baseado no início da noite, eu por outro lado, já estava de cara, tinha fumado um baseado no início da noite e bebido água a noite inteira, a Cannabis já não fazia efeito algum. Viemos para casa, eu e ela, no meio do caminho ela disse que estava sozinha em casa, mas nem liguei os fatos, trouxe-a pra casa, quando chegamos minha mãe acordou, nunca havia trago uma 91
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mulher pra dormir em casa, não na presença dos meus pais. Falei que tinha trago essa amiga pra dormir em casa, pois ela tinha brigado com o namorado e ficado sem carona, minha mãe arrumou a cama dela na sala, subimos para o terraço para fumar um cigarro, fumamos e deitei junto com ela na sala, conversando. Em um momento o assunto parou e o silêncio seguiu acompanhado de um beijo gostoso e longo, continuamos a nos beijar no colchão na sala, ela começou a se excitar, quando escutei um barulho vindo do quarto dos meus pais, me assustei e percebi que ela estava de bruços com a calça no joelho, sua calcinha estava na coxa, e eu em cima dela, pronto para iniciar a transa. A bunda dela era linda, lisinha, redonda e parecia estar toda arrepiada, me controlei, a euforia, o medo de ser pego pela minha mãe no colchão da sala, minha irmã dormindo no quarto dela, a casa pequena, o silêncio da noite, me fizeram pensar se aquilo que estava prestes a acontecer seria o certo, broxei! A situação não me deixava à vontade, transar na sala da minha casa, com meus pais e minha irmã dormindo (acho difícil que minha mãe estivesse dormindo), não dava, ela então começou a me zoar, dizer que eu era virgem, rindo de mim. Dei mole que ainda tentei de novo, mas não dava, insisti, chamando ela pro meu quarto, mas o clima já tinha esfriado, dormimos, no outro dia conversamos, ela perguntou por que não fomos pra casa dela, ela tinha falado que estava sozinha, e que não poderia fazer um convite mais formal do que este. Disse que não tinha colocado maldade, não havia percebido que era uma indireta, levei-a até o ponto de ônibus, nos despedimos com um beijo. Pensei em chamá-la pra sair novamente, mas nossa relação depois daquilo ficou diferente, mais fria, continuamos conversando todas as vezes que nos encontrávamos, nunca tocamos no assunto. Provavelmente se naquela noite eu tivesse bebido, tinha comido ela ali mesmo, na sala, mas também poderia me arrepender no dia seguinte, pois iria contra meus princípios, iria transar na sala com meus pais dormindo e ainda com aquela certeza de que minha mãe não estava dormindo. O respeito tinha que prevalecer, respeito a meus pais e irmã, momento de consciência. O último período de faculdade foi muito marcante, até quando as coisas davam erradas, era para ficar melhor, não era um erro propriamente dito, eram ajustes. Atendi um sujeito, cumprindo um estágio de atendimento psicológico, o professor era Psicanalista, eu tinha uma boa leitura Psicanalítica, mas ele deu liberdade para nós, alunos, atender na nossa abordagem de preferência, sabia que minha vocação era a abordagem Humanista. Conseguiram marcar um primeiro atendimento, o paciente era um sujeito que tinha sofrido acidente e passado por uma cirurgia na cabeça, por conta de um traumatismo, ele ainda estava 92
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em fase de recuperação, um pouco debilitado, não teria como afirmar se eram sequelas, talvez fosse um estado passageiro, ou que de fato um bom acompanhamento profissional resultasse em melhoras significantes. Sua condição psicomotora estava afetada visivelmente, apresentava dificuldades para andar, na fala, em fim, estava com muita dúvida de que forma iria trabalhar com ele, como iria escutá-lo, talvez seria necessário fazer uma leitura Neuropsicológica, foi uma das ideias que comecei a desenvolver para poder ter um olhar a mais daquele paciente. Aguardando a supervisão do professor, já me adiantei lendo alguns textos de Neuropsicologia, pensando em formas de ação com meu paciente, quando levei o caso à supervisão, discutimos sobre o caso e o professor chegou à conclusão de que eu teria que fazer uma visita ao médico dele, perguntar sobre o caso, ia ter que entrar em contato com ele, para colher mais informações, pensei naquela hora, fudeu!?, vou ter um trabalhão danado com esse cara, eu nessa correria, me aparece um sujeito com um caso tão complexo. Havia me interessado bastante pelo caso, mas nas minhas condições, trabalhando, fazendo quatro estágios, TCC, estava muito apertado, não conseguiria fazer um bom trabalho, só se tudo desse certo, mas nunca podemos contar com as coisas dando certo, sempre aparece alguma coisa que você não planejou, talvez esse médico enrolasse para me atender, não iria marcar uma consulta com ele, iria tentar me encaixar na agenda dele para reunirmos, mas médico de Hospital, sabe como é... Achei que ia passar por uma fase, fiquei com medo de não dar conta, na segunda seção a mulher dele ligou dizendo que ele não iria, pois não se sentia bem daquele jeito, a forma como as pessoas na rua olhavam para ele, ele era morador do bairro onde eu fazia os atendimentos (na faculdade) e vinha de cadeira de roda. A mulher o guiava com uma cicatriz grande na parte superior da cabeça, os olhares das pessoas lhe causavam um grande mal estar, ela disse que ele não estava mais saindo de casa e que não iria mais. Naquele momento pensei, poderia fazer os atendimentos na casa dele, mas permiti que as condições do sistema fossem maiores do que a de ajudar aquele paciente, me despedi no telefone, desejei sorte e a ajuda de Deus. Um tempo após desligar o telefone, aquilo me soou um tanto hipócrita, me arrependi, perguntei a uma professora se teria como atender um paciente, cumprindo duas disciplina, pois assim teria um tempo necessário para me envolver e dar o suporte que fosse preciso ao caso, mas por uma questão burocrática não teve jeito.
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Por outro lado não foi ruim, me aliviou bastante, peguei outro caso menos complexo no sentido de trabalhoso, mas uma angústia nunca é uma coisa simples, todas tem seu peso. Consegui encerrar o semestre aprovado em todos os estágios, muito trabalho, relatórios grandes e detalhados, com muito esforço consegui, sabia que conseguiria, a final estava fazendo aquilo que gostava, e desta vez não houve nenhuma ação conflitante. Tive que ser menos ousado, por uma questão de precaução, o nosso TCC, ficou muito bom, discutimos à cerca do consumismo, desejo e necessidade, trazendo uma visão do senso comum ao sentido da palavra propriamente dita, até que ponto o desejo de consumir se torna uma necessidade. Vários olhares de diversas teorias, o que resultou numa indicação de publicação, na revista do nosso centro universitário, mas não publicamos o artigo, achamos que ainda estava vago, havia muita coisa a ser abordada, era um trabalho complexo, tínhamos acabado de formar, queria dar uma aliviada, e nessa bobeira, acabou ficando de lado, o semestre tinha exigido muito da gente. Recém-formado, com um milhão de ideias na cabeça, não estava com pressa de fazer Psicologia, pois eu tinha compreendido o que é ser Psicólogo, apesar de não ter uma experiência institucionalizada como respaldo, tinha vontade de aprender, aquela era a minha vez de fazer uma Psicologia que fosse de meu interesse. Queria inovar, buscar novos padrões, novos métodos, pois a Psicologia, assim como a Filosofia, é a ciência da liberdade, de ser livre, de fazer mesmo quando o outro achar que você não está fazendo nada, um fazer à longo prazo, interpretativo, que leva à reflexão. Tinha muita vontade de sair do trabalho quando me formasse, mas acabei apostando na oportunidade que tive, a final, tinha concluído o nível superior, trabalhava num setor que estava com um déficit de liderança, pois era um novo campus. A faculdade que trabalhava estava iniciando um projeto para construir uma unidade maior, pois esta que havíamos montado era uma unidade provisória, então tinha a expectativa de que novas oportunidades surgiriam. Tentei alguns concursos públicos, mas não era um desejo trabalhar para municípios, o poder público te dá péssimas condições de trabalho, os salários aqui da região sudeste de minas eram baixos e não se via uma valorização do profissional, era como se as vagas surgissem como uma obrigação, muito poucas vagas por sinal, a saúde e a educação são muito precários no Brasil. Como um exame de seleção pública pode valorizar títulos como variável de eliminação, que tipo de poder público é esse que privilegia as classes que possuem mais recursos financeiros, quando os humildes terão oportunidade de competir de forma igual, se 94
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sempre o investimento na educação passam pelas nossas condições financeiras. Se possuo a graduação que é o requisito da vaga, quem possui especializações, mestrado, doutorado e experiência, tem uma vantagem de soma extra na contagem dos pontos, quer dizer se eu conseguir somar na prova três pontos a mais que um doutor, ele fica com a vaga, por ganhar um bônus de cinco pontos pelo título, que justiça é essa, democracia, onde? Democracia que só favorece os que têm mais condições de capital, quanto mais capital investir, mais chances você tem de se destacar no mercado de trabalho. Os anos que passei estudando, tanta coisa havia se tornado tão obvia e tão simples de ser aplicada, que não via uma explicação racional para a situação da administração pública ser um fracasso, a não ser pela corrupção e mal planejamento, pela falta de inteligência e pelo excesso de ganância dos legislativos. Não entendia como uma pessoa pode prejudicar tantas pessoas por um interesse pessoal, como eles conseguem dormir, como tirar do povo o que é do povo para beneficio próprio, como se fossem deles, sem remorsos, sem culpa. Que tipo de pessoa é essa, que distribuem o caos àqueles que lhe depositaram confiança, que fizeram dele o que é, queria achar não uma resposta para mim, mas uma resposta de interesse coletivo, que fizesse a diferença para todos. Procurei vagas na área de Recursos Humanos, além de vivermos na era dos títulos, experiência, tinha o ideal da profissão, que era um ideal de valorização do homem, e não do produtor, como as grandes empresas veem seus colaboradores, eles querem que você faça um processo seletivo, que se dê ao trabalho de preparar uma temática, uma dinâmica, uma observação, uma investigação, uma entrevista, para no fim do processo eles te dizerem quem contratar. Qual a relevância do papel do Psicólogo nas organizações, se não for selecionar o candidato mais apto, com o melhor perfil para a vaga, se não for cuidar do clima organizacional, se não for ser a voz de todas as classes, se não for atender às necessidades que influenciam diretamente no ambiente de trabalho, se não for lutar pelos direitos e pela saúde mental dos colaboradores. Ficar simplesmente preenchendo uma vaga não era o que eu queria, olhar as especificações da vaga de profissional de RH e ler exigências como curso de inglês, para empresas de pequeno porte, título mais inútil (na maioria dos casos), um filtro de seleção, mal interpretados por empresas pequenas que sonham ser grandes, mas que não possuem uma filosofia própria. Não existe uma cultura organizacional, não conseguem erguer a empresa, começam pelo lado errado, que é de cima para baixo, quando se deveria começar de baixo para cima, valorizando os funcionários e dando oportunidade de crescer junto com a 95
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empresa. Buscam profissionais diferenciados, mas encontram profissionais limitados, que investem em títulos e não no conhecimento propriamente dito, pessoas que fazem graduação, especialização, aula de inglês, espanhol, cursos extra curriculares, se sobrecarregam de informação e não dão conta de aprender nada. Oferecem salários de mil reais e ainda esperam encontrar alguém diferenciado, encontram alguns que juram querer fazer parte da empresa, que se demonstram interessados, mas que no fim estão querendo mesmo e cumprir seis meses de experiência para buscar algo melhor. Este é o perfil do profissional do século XXI, sem vínculos, sem respeito, sem tradição, mas estão certos, pois se contrata qualquer mané que possua títulos e não se preocupa construir uma identidade profissional, muito menos uma valorização, enquanto aposta. Eu não tinha experiência, mas tinha malícia para saber que a Psicologia no Brasil é uma profissão que não tem seu reconhecimento, apesar de ser nova, cinquenta anos aproximadamente, estava sendo desperdiçada pela/para a sociedade. Ainda há muito preconceito das pessoas sobre as doenças mentais, isso causa uma barreira na própria concepção do ser enquanto ser, nós não nos conhecemos, não sabemos por que agimos assim, evitamos nos encontrar, consideramos umas e outras doenças como banais e quanto menos se fala, menos se descobre a seu respeito. Tendemos a nos afastar, a correr de certas situações e é nesse momento que demonstramos nossa fraqueza, nosso medo, e essas são condições determinantes ao fracasso de uma possível tentativa de superação, o homem só consegue superar aquilo que por ele é compreendido. Então eu não via o trabalho do século XXI como sendo algo promissor, e sim como algo passível ao adoecimento, de modo geral, as cobranças seguidas pela insegurança, a pressão da produtividade e a falta da relação mais acolhedora. Hoje um funcionário trabalha em uma empresa com diversos setores, com diversos funcionários e conhece apenas os fazeres daquela função que lhe foi designada, não tem uma participação efetiva no processo final, não conhece o processo. Isso desvincula todo o sentimento de fazer parte disso ou daquilo, traz uma falta de sentido do trabalho, carrega um sentimento escravizador, onde a empresa não atende as expectativas do empregado e o empregado tem a obrigação de atender acima das expectativas do empregador, o que detalha um trabalho punitivo, ao invés de ser algo propenso ao orgulho. Eu não concordava com a forma como as coisas vinham sendo institucionalizadas para nós, os falsos sentimentos, a desvalorização do ser, a falta de ética, eu era um Rasta, eu não ia me entregar a um sistema que não via nenhum benefício para mim, não queria fazer parte 96
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dessa palhaçada, sustentar o ideal de que a qualidade de vida melhorou, sendo que tudo que eles davam, vinha seguido da intenção de tomar em dobro. E aquele empregado que financiava um carro em sessenta vezes, em conjunto com uma televisão de doze vezes, uma geladeira, mercadorias em geral, o que esse sujeito poderia reivindicar dentro de uma empresa, ele dependia daquele salário que já vinha muitas vezes negativo no fim do mês, só lhe resta sofrer calado, não é desse tipo de sistema que eu queria fazer parte.
“Eu não preciso de óculos pra enxergar O que acontece ao meu redor Eles dão o doce pra depois tomar Hoje vão ter o meu melhor Eles pensam que eu vou moscar Mente pequena... eu tenho dó! Eu não preciso de Mãe Diná Pra saber que é o seu pior” Marió – Criolo
Eu tinha muita consciência que queria buscar algo novo, por que eu não queria fazer parte do sistema, tudo na perspectiva do sistema iam contra toda a minha filosofia, sempre busquei o equilíbrio, no meu caso o lado racional. Eu era muito emotivo, tinha uma sensibilidade maior que a das pessoas, não sei se desenvolvi mais este lado pela necessidade que a Psicologia exige do terapeuta, mas lembro-me que sempre fui assim, desde criança, me sensibilizava com situações de brincadeiras de mau gosto, não gostava quando alguns tiravam proveito de uma pessoa injustamente, nunca fui a favor deste tipo de “brincadeira”. Acho que a Cannabis me ajudou bastante também a desenvolver esta sensibilidade, e acho que ela ajudou a desenvolver o racional no sentido de trazer uma outra visão de mundo, no meu mundo. De dar mais atenção para mim, procurar ser eu mesmo, me conhecer, me questionar, estar sempre querendo aprender cada vez mais, tudo para mim é um desafio. Ainda quero fazer muitas coisas, fazia muitos planos para o futuro, pensava como queria fazer as coisas, o que queria fazer, sempre tinha algo que me interessava, mas eram planos futuros. Pensava muito, pensava sobre várias coisas, explorava o meu campo mental bastante, e consegui assimilar bem esse conflito razão/emoção, acho, pela prática.
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Havia me tornado uma pessoa mais racional, mas sempre me preocupando em deixar os dois em equilíbrio, cinquenta por cento de cada lado da balança, às vezes sempre aparecia alguma coisa para pesar a consciência, para jogar um papel no chão, eu já pensava duas vezes. Nas vezes que acabava jogando por distração, quando me via jogando a ficha caía e na mesma hora abaixava, pegava do chão para jogar na lixeira mais próxima, podia até demorar a encontrar uma lixeira, segurava até encontrar, por que a gente está cansado de saber que não é legal jogar lixo na rua e não há motivos racionais para você continuar fazendo isso, seria ignorância, então eu me preocupava com esses detalhes. É claro que não somos perfeitos, mas nada impede que busquemos a perfeição, eu buscava. Algumas pessoas tem o costume de usar cinto de segurança, outras usam somente por que é obrigatório, eu nunca gostei de andar com o cinto, uma que me incomodava, meu pai dizia que era por que eu gostava de defrontar a lei, talvez tivesse um pouco de verdade nisso, a minha visão da política sempre foi um tanto anarquista, mas não que pensasse em uma sociedade sem leis. Gostava muito da sociedade alternativa do Raulzito, mas como uma forma mais artística, mais poética, meus princípios eram baseados nos dez mandamentos, concordava com muitas das leis dos homens, principalmente aquelas que contemplavam as leis de Deus, os dez mandamentos eram o meu pilar. Uma das coisas que mais me parecia grave desrespeitar era o oitavo mandamento, que é não levantar falso testemunho, penso que essa foi a causa da morte de Jesus, pois o viram como uma pessoa perigosa, sendo que sua intenção era praticar o bem, o amor, praticar e difundir. Uma coisa que eu passei a perceber e observar era o fato de como as pessoas se apegavam tanto a falsos testemunhos, hoje como existem mais meios de comunicação, e a internet tornou-se o maior veículo de comunicação, tudo que é apresentado é rapidamente tomado pelo imediatismo social como realidade, instigando todo o desejo na curiosidade, que já não se buscava a verdade. A quantidade de informação não lhe permite um tempo para organizar as ideias, você vai lendo ou escutando algo e aquela história te consome, por você não possuir história, ou melhor, por não enxergar a sua história, a história do outro se torna a sua história, aquilo que te alimenta. O fato de não conseguir se relacionar de corpo presente, faz com que traga essa afinidade de corpo ausente, você vivencia a história do personagem (pessoa) se saboreando daquelas vivências, é onde se perde. Cria-se coisas que não são reais, é onde o Marketing deita e rola, os resultados são estatisticamente computados e transformados em cálculos e metas, isso mesmo, somos os maiores contribuintes à nossa própria extinção, nossa raça é nossa pior inimiga. 98
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Tinha tanta coisa pipocando na minha cabeça, tantos pensamentos revolucionários que precisava conhecer as opiniões das pessoas, chegou a despertar curiosidade, sobre o que as pessoas pensam, pois para mim tudo parecia tão simples, que não conseguia entender por que nos comportamos de forma tão estupida. Conversei com uma menina uma vez e ela estava tão perdida que comecei a perceber o quanto uma história é diferente da outra, o quanto somos diferentes e devemos respeitar essa diferença, por que é isso que nos faz ser quem somos. Por que se você estivesse no meu lugar, não seria você, seria eu, por que é aqui que tenho que estar (é impossível você estar no meu lugar), desse jeito, com essa forma ou aparência, tem que ser consciente disso, sua mente não tem limites, com ela você pode ser quem quiser. Então passei a me concentrar a levar as pessoas a sonhar, a resgatar os dez mandamentos, mas de uma forma alternativa, menos ortodoxa possível, eu não falava com as pessoas o que elas tinham que fazer, eu simplesmente buscava nelas o que tinham de bom, estimulava o despertar dos bons sentimentos, bons pensamentos, isso era os próprios mandamentos, a prática deles. Assim me relacionava com as pessoas, saia muito, conhecia muitas pessoas novas, a final Ipatinga não era um lugar tão grande assim, mas tinha um diferencial nessa nova proposta, no novo fazer que eu queria desenvolver, achava que a Psicologia estava sem muito prestígio pelo fato dela ter parado um pouco no tempo. Vemos os diversos ramos da ciência se destacando, temos a medicina como um bom exemplo, de acordo com o que a tecnologia foi se desenvolvendo a medicina ficou mais eficaz e muito mais prestigiada do que a Psicologia. Talvez essa fosse uma questão na qual deveríamos receber o maior apoio dos médicos, pela sua própria percepção sobre os demais casos na qual se depara, mas como não temos o hábito de usar aparelhos com alta tecnologia (desconheço), nossa ciência não acompanhou essa trajetória inflacionária. Queria dar uma nova cara à Psicologia, o primeiro método que eu adotei foi o de que a ética tinha que prevalecer, então eu não conversava com as pessoas como Psicólogo, analisando e tal, como muitos acham, pelo contrário, mas conversava trocando opiniões, buscava sempre ser o mais sincero possível para estimular a sinceridade, exceto em casos muito pessoais, não conversava para falar mal da vida alheia, não me interessava, além de ir contra a essência dos dez mandamentos. Buscava falar sobre coisas pessoais, não de conotação particular, algo que fosse de categoria pública, futebol, música, assuntos sociais, dependendo da pessoa, essa leitura de personalidade era fundamental. Nunca buscava entrar em algo particular da pessoa, ao menos 99
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que sentisse uma abertura por parte da mesma, um outro detalhe também, é que eu era bastante sensível em relação a esta abertura, aprendi muito com uma professora, então dificilmente passava despercebido, nessa hora, deixava a terapia fluir. Às vezes trabalhava apenas uma pequena porção do todo, por estar em locais inapropriados, onde uma pessoa começasse a se abrir, falando de seus problemas pessoais em contextos que poderia causar alguma reação inesperada, alguém escutar a conversa e ela se constranger, ou começar a chorar compulsivamente numa festa, num bar, em fim eram situações em que tinha que ter total controle e que ia exigir muita habilidade de mim. Ia descobrindo novas formas e métodos, uma vez estava eu e um colega no parque Ipanema, de tarde, tínhamos acabado de fumar um baseado e ficamos lá conversando, estava bem vazio, num tinha praticamente ninguém. Enquanto conversávamos passou um vendedor de picolé, compramos dois, esse colega abriu o dele e jogou o papel no chão, eu olhei, abri o meu, peguei o papel e joguei na lixeira do carrinho do tio do picolé, ele olhou, pegou o papel no chão e jogou na lixeira também, era esse tipo de intervenção que fazia, sem dizer o que fazer, como uma mensagem subliminar. No meio de tantas dúvidas, de uma coisa eu tinha certeza, não queria fazer parte de um sistema hipócrita e aproveitador, precisava fazer algo que fosse meu, único, novo, que fosse totalmente contra essa conspiração capitalista. Busquei desenvolver mais as técnicas alternativas que tinha em mente, uma outra perspectiva de atuação, uma Psicologia livre, isenta de regras, baseada somente no compromisso ético, que visasse não somente a “cura”, mas o desenvolvimento, a evolução do ser. Precisava saber o que as pessoas pensavam, fazer uma leitura da demanda social contemporânea, acreditava que só assim poderia levantar hipóteses e trabalhar em soluções, e a melhor forma de pesquisar, era tendo um contato direto com as pessoas nas ruas, em situação real, onde elas se sentissem de alguma forma livre e pudessem se desmascarar, se tornar mais verdadeiras e menos representativas. Eu observava as pessoas em situações cotidianas, conseguia perceber suas angústias, não compreendia sua raiz, mas percebia toda a angústia no social, o sofrimento nos olhos e nos semblantes apagados, sem exceções. Alguns sofrendo mais do que outros e assim por diante, não era difícil perceber o quanto a sociedade é doente e o quanto as pessoas tentam se esquivar dessa condição, apontando os defeitos dos outros, como se essa ação o isentasse de todos os seus próprios defeitos, é mais fácil evidenciar aquilo que o outro faz de errado do que assumir essa condição de errante. 100
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A partir do momento que assumimos essa condição, passamos a nos preocupar em não cometer os mesmos erros, quanto mais nos focamos defeitos dos outros, mais estamos sujeitos a errar e menos consciência temos de nossos erros, consequentemente continuamos cometendo os mesmos erros, essa é a ignorância humana. O sistema capitalista é um sistema falho, apesar de ser totalmente bem estruturado, o verdadeiro crime organizado. Nele não há brechas para os fracos, para resistir é necessário travar uma eterna luta onde nem todos possuem essa força, ele atua no vazio, na falta que sentimos em nosso coração, alias essa falta é um mal necessário, é ela que nos mantém homens e não máquinas, ela que traz o sentido da vida, mas é necessário que seja explorada todo o tempo, a cada segundo. Eles dizem a você o que fazer, o que comer, o que vestir, e nós escutamos tudo e acatamos qualquer ordem que nos evitem à dúvida e a incerteza, pois temos medo do amanhã, do incerto. O capitalismo trabalha no vazio, te dizendo como preenchê-lo, mas este vazio, sempre será vazio, nunca será preenchido, e assim ele alimenta a todo vapor as chamas do capitalismo, que nos consome de forma voraz e selvagem, que se apresenta como caminho e não como escolha, que nos obrigam a sorrir, enquanto nos fazem chorar. Eu andava pelas ruas sobre essa linha tênue, o que eu quero e o que eles querem que eu queira, o capitalismo não te vende um produto, te vende uma imagem, um ideal, um estilo de vida, um sentimento, uma verdade, uma emoção, esse é o papel do marketing, padronizar. Elegem a classe média alta como um grupo padrão, com a alta economia brasileira, visam caracterizar o aumento de consumo, fazendo o capital girar para as mãos daqueles que tem mais, uma jogada óbvia. Após selecionar um grupo padrão, trabalham para tornar esse grupo, um grupo modelo, então enfatizam suas propagandas, ao padrão classe média alta, que é a meta a ser atingida, você consegue perceber que as propagandas apresentam sinais claros dos padrões da classe média alta? Decoração das casas, paisagens de fundo, veículos utilizados, vestimenta característica, vocabulário e pessoas bonitas, constroem uma ilusão, com somente uma finalidade, iludir, e conseguem. Criam uma realidade, um sentido de realidade, dentro de um set de estúdio, de falas decoradas, de pessoas que não vivem aquela ilusão, quando você absorve essa informação, ela não vem fragmentada, ela vem como uma situação real, um pedaço de realidade através da imagem que nos chega e não conseguimos distinguir que aquilo é um conjunto de cenas, como nos filmes, algo planejado para causar aquele impacto em específico. Com isso vamos moldando nossa realidade, estes estímulos se apresentam de forma tão sugestiva a ponto de 101
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nos convencermos que é aquilo que queremos, de fato eles nos induzem de certa forma a buscar um melhor padrão de vida, mas buscamos tal padrão para nos tornar meros consumidores e nada mais. Por que eles enfatizam na classe média alta, mas nunca na classe alta, não querem dividir esse lugar, em outras palavras aceitam que você se torne um milionário, mas nunca vão favorecer para que se torne um bilionário, este é o lugar deles, e nós não somos bem vindos, pois enquanto você tiver um degrau abaixo deles, o seu capital estará indo todo para eles. Portanto, não sei se o homem precisa do capitalismo ou se o capitalismo precisa do homem, acho que um pouco dos dois. Talvez meu pensamento anticapitalista seja um tanto quanto radical, mas o capitalismo também não é nem um pouco compreensivo, ele não tem dó, te tira o que tem e o que não tem e não se culpa. Talvez o problema do capitalismo esteja mais em nós do que na sua própria essência, pois o papel dele é claro, nós é que damos as costas para sua realidade cruel. Conversando com um amigo que tinha comprado um carro a menos de um ano, ele me dizia que estava com vontade de vendê-lo, queria comprar um mais novo, o carro dele deveria ser do ano de dois mil e um, mais estava inteirão, bonitão. Ele olhava para o carro parado e falava que dava uma dó de vender, por que o carro estava muito bom, que tinha criado um afeto com o carro, mas ao mesmo tempo queria um carro mais novo, dava para perceber que aquela situação era desconfortante para ele. Passado algum tempo ele vendeu o carro e comprou um mais novo, ele chegou a comentar que sentia falta do carro antigo, mas estava com um mais novo agora. Em menos de três anos esse colega trocou de carro umas cinco vezes, encontrei com ele e já estava no quinto carro, brinquei com ele dizendo que tinha tomado gosto pela coisa, foi quando ele verbalizou que este último era melhor por que era mais caro. Pensei quando ele queria trocar o primeiro, a angústia que ele estava de se desfazer de algo que tinha um sentido em sua vida, uma história, ele havia falado tudo do carro para mim, feito uma propaganda e tanto. Disse que o carro era muito bom, que dava tantos km por litro, que só tinha levado ele na oficina duas vezes e nem foi por problema mecânico, foi só para trocar o óleo, e o discurso do último que era mais sofisticado, com vários acessórios a mais que o primeiro, ele só disse que era melhor por que era mais caro, fiquei refletindo sobre isso algum tempo. Olhando as pessoas não consigo entender por que elas fogem tanto da verdade, por que não conseguem enxergar as coisas como elas são, por que insistem em acatar tudo que o 102
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sistema impõe e pior, ainda defendem o sistema como se fosse a única verdade, e os culpados de tudo isso ainda somos nós, nós que só estamos querendo abrir os olhos da sociedade, difundir o livre arbítrio, a liberdade de escolha, a intolerância ao preconceito, como eles não conseguem enxergar? Eu não entendo, tudo parece tão óbvio para mim, tão claro, não sei por que para mim tudo é tão claro, talvez por que essa seja uma das minhas preocupações, conhecer a verdade, descobrir a verdade, não acreditar naquilo que me dizem ou que vejo sem investigar a veracidade dos fatos. Não sei se eles não veem por que não querem ou por que não conseguem enxergar, não consigo entender, talvez da mesma forma que não entendo várias outras coisas. Acredito que essa questão está dentro de cada um, alguns preferem explorá-la, se questionar, questionar tudo, outros preferem guardá-la a sete chaves, pois é uma questão incômoda, influencia diretamente no sentido da vida, na sua trajetória enquanto ser, causa uma dor, uma angústia, você perceber que vem fazendo tudo errado, que vem apoiando e acreditando no seu pior inimigo. Creio que esse não enxergar esteja ligado com algum mecanismo de defesa da nossa mente, funciona mais como uma autopreservação do nosso eu, mas creio também que não há como fugir, é uma batalha perdida antes mesmo de se iniciar, se refugar não vai te preservar, vai te remoer, vai tirar a sua paz, pois o inconsciente cobra, e cobra caro, sem dó e nem piedade. De toda essa angústia o seu consciente pode conseguir te preservar, mas ela tem que aflorar de uma forma ou de outra, então ela se reflete no seu corpo, de uma forma como dizemos na Psicologia, somática. A doença é um distúrbio funcional, é a quebra da homeostase, acredito que cuidar de nossa psique é tão importante quanto cuidar de nosso corpo, é prevenir-se de forma mais eficaz, é evidente que existem fatores externos que favorecem ao adoecimento, como um vírus, uma mudança climática, dentre outros. Mas acredito também que as doenças do corpo estejam muito ligadas aos maus cuidados com a nossa psique, não damos a atenção devida aos nossos problemas sociais, as nossas angústias e sofrimentos. Caracterizo isso como um distúrbio funcional, pois nosso cérebro funciona de forma diferente nessas situações, ele deixa de executar de maneira regular comandos que são vitais para nossa saúde, estimula menos áreas com neurotransmissores, que é vital para a comunicação fisiológica (corpo/mente), produz menos endorfina, dopamina, noradrenalina, acetilcolina. Toda essa comunicação falha, consequência de uma psique sobre estresse, deprimida, angustiada, reflete diretamente nas funções corporais, na distribuição de hormônios, até mesmo no sono, no apetite, no nosso sistema imunológico, na aparência, na 103
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nossa rotina funcional, todas estas questões tem uma participação relevante no surgimento de novas doenças, ou no enfraquecimento do combate de uma doença já existente. A minha dedicação me contemplou com um novo olhar sobre o mundo, o nível superior me trouxe mais informações, além das minhas atitudes, a maneira como pensava e construía meus ideais, minha filosofia, meu estilo de vida, o tipo de ser humano que queria me tornar, a resistência e persistência. Buscava me libertar desse sistema, do monopólio, da manipulação, queria escapar dessa Matrix que se tornou o século XXI. Quando começamos a tentar perceber as ações do sistema, percebemos o quanto hipócrita e opressor ele é, juntamente com sua grande força persuasiva, ou no caso corrompedora, às vezes me questiono se todos esses fatos seriam cuidadosamente planejados ou seria apenas uma coincidência, um resultado lógico, de acordo como a sociedade foi se desenvolvendo socioeconomicamente, não sei, mas temos a impressão de que as coisas se encaixam perfeitamente. O marketing consegue trabalhar muito bem em cima disso, as informações hipócritas que recebemos acabam alterando o sentido do conceito das palavras e até mesmo sua imagem associativa, a forma como a mídia expõe a classe menos favorecida, as matérias e reportagens quase que os expõe ao ridículo, desviam toda a culpa nas classes mais baixas, oprimem a liberdade de expressão, não dão voz às comunidades. Construímos uma nova imagem para as comunidades, será que somos tão narcisistas assim, a ponto que não conseguir enxergar que somos culpados também, todos somos culpados, quanto dinheiro sujo está preso nas mãos dos detentores do poder, não percebe que as comunidades são apenas bode expiatório de um sistema poderoso, o tráfico de drogas é o petróleo sul-americano, você acha que todo esse capital está nas mãos da comunidade? Se estivesse, dono do morro ia viver igual Sheik no Brasil, ia ter poder, e com poder ninguém vai pra cadeia não, quem lucra mesmo está morando é em ilha particular e a coisa toda. Pobre não tem direito, não é respeitado como cidadão e acima de tudo é importuno, num país onde se prega e visa um desenvolvimento, temos que buscar uma evolução coletiva, somos uma sociedade, um conjunto, participamos em comum, vamos criar mais oportunidades, buscar a união, buscar o bem, fazendo o bem, este é o único caminho. Não podemos tolerar pessoas procurando comida no lixo, passando fome, sendo tratadas sem o mínimo de respeito, lutando contra os preconceitos da sociedade, vamos abrir nossos olhos, ver que tem muita coisa a ser mudada e que nós podemos fazer alguma diferença, a nossa geração é melhor do que isso, nós precisamos mostrar que somos melhores, que conseguimos 104
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construir um mundo melhor. Uma noite estava tomando uma cerveja com um amigo em um posto de gasolina, a gente tinha saído para fumar um baseado e trocar uma ideia. Ao nosso lado havia um grupo, bebendo, conversando, de aproximadamente sete pessoas, um morador de rua se aproximou da gente e pediu alguns trocados, dizendo que faltava para inteirar o valor de uma garrafa de quinhentos mililitros de cachaça, até que tínhamos esses trocados, a final não era muito, mas dissemos que não tinha nenhum trocado. Esse homem se dirigiu à mesa ao lado, ele repetiu a mesma fala, dizendo que preferia ser honesto, que não era ladrão e que estava precisando de alguns trocados para comprar uma garrafa de cachaça. Cada um deu sua desculpa, mas um dos caras tirou o valor que o morador de rua pedira e lhe entregou nas mãos dizendo-lhe para ir lá comprar a garrafa de uma forma bastante amigável. Aquilo chamou a minha atenção, a forma como ele se dispôs a ajudar aquele homem, enquanto ainda observava buscando entender o que passava em sua cabeça, uma de suas amigas o indagou: - Por que você deu dinheiro para aquele homem comprar uma garrafa de cachaça? Acha que vai ajudar ele dessa maneira? E o cara respondeu: - Eu quero ver se um de nós aqui consegue, de cara limpa (sem estar bêbado), deitar em um papelão no chão, sem nenhuma coberta, um travesseiro, um teto, sem se sentir seguro, fechar os olhos e dormir a noite toda, até de manhã. Aquelas palavras me fizeram pensar, nunca tive esse ponto de vista sobre tal situação, imagine a dificuldade, tirando o medo, a angústia, a solidão, em fim, naquele momento o que aquele morador de rua talvez mais precisasse, não era de um copo de leite quente, nem de uma última refeição antes de dormir. Precisava de algo que pudesse tirá-lo fora de si, seis ou sete tragos de cachaça, para espantar todos os seus tormentos, para que conseguisse um momento de paz, para que pudesse não sentir nada, nem o frio, nem o chão duro, nem o medo, nem o tempo que teria que esperar até o adormecer. Em alguns momentos nossa ignorância é maior do que nossa capacidade de reflexão e isso nos leva a julgar situações que mal conhecemos, como saber o que é melhor para aquele morador de rua sendo que nunca sequer refletimos sobre como deve ser seu cotidiano, sua história, se não o conhecemos, ou melhor se não passamos pelas mesmas coisas que ele. Quanto mais julgamos, apontamos os defeitos do outro, mais nos tornamos alvos, por que demonstramos a nossa incompetência em conhecer os nossos defeitos, julgamos para ver no outro aquilo que está em nós, por que não 105
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conseguimos suportar que aquilo seja nosso. Não considerando um fato específico, mas considerando que somos seres humanos e possuímos defeitos, assim como qualquer um que apontar os defeitos dos outros não vai fazer com que nos tornemos seres humanos perfeitos, vai apenas refletir a sua falta de conhecimento de si, a final, quem é perfeito? Quem nunca pecou que atire a primeira pedra. O fato de ter me tornado Psicólogo, de ter conseguido me formar naquilo que queria, me trousse muita felicidade, mas essa felicidade veio acompanhada de uma profunda tristeza, pois eu olhava para o mundo e via como tudo estava errado, o quanto medíocre nos somos. Não conseguia aceitar, tinha que fazer alguma coisa, mas o quê, ia promover a hipocrisia, o brasil é lindo, a economia é linda, os interesses são lindos, a vida é linda, ou iria promover a revolução, rebele-se contra o sistema, contra o poder, contra a opressão, contra a política de boa vizinhança. Depois de pensar muito, de repensar, de sentir raiva e alegria, resolvi que a melhor opção era um tempo, precisava de um tempo para me dedicar a mim, aos meus pensamentos, minhas ideias, minhas angústias, meus medos, minhas limitações, precisava me conhecer, me explorar, explorar o mundo, perceber suas falhas, explorar a pessoas, perceber as suas necessidades, construir uma nova Psicologia, sonhar.
“Na minha cabeça Uma guitarra toca sem parar Trago um par de fones nos ouvidos Pra não lhe escutar O que você tem pra dizer Ouvi a cem anos atrás O que eu faço agora Você não sabe mais” Um Som Para Laio - Raul Seixas,
O fator principal para mim era o tempo, estipulei um prazo de um ano, um ano para buscar o autoconhecimento, que era fundamental na minha perspectiva, autoconhecimento é a chave para se fazer Psicologia, o segredo, o cerne de tudo que envolve essa ciência. Como ainda estava trabalhando na faculdade, iria ter um ambiente propício à minha meta, pois gozaria de recursos financeiros que me ajudariam explorar os meus interesses enquanto autoconhecimento, interesses sociais, necessidades humanas, dentre outras coisas, meu salário seria minha cota de pesquisa, sendo que este nunca devesse ultrapassar seu limite, que não era 106
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muito. As condições do meu emprego eram muito favoráveis à minha investigação, pois o meu trabalho exigia muito pouco da minha mente, era um trabalho mais operacional, mais ação, menos intelecto, então eu poderia ficar antenado quase que o tempo todo, pensando, analisando, demandando, além do fato que o público na qual me relacionava em sua maioria eram alunos de nível superior, os chamados “futuro do país”, tudo parecia se encaixar perfeitamente, o universo conspirava a meu favor. Aproveitei a forma como havia me inserido socialmente em Ipatinga, a vasta rede de amizades que tinha, para me relacionar com as pessoas de uma forma diferente, mais verdadeira, mais pessoal. Queria saber o que as pessoas pensavam sobre certas coisas da vida, política, religião, sentimento, amor, tudo, era essa coleta de dados que me traria informações das necessidades das pessoas, das fraquezas do ser, era a fase e a oportunidade de colher demandas para poder criar algo que estivesse mais ligado ao ser, para o meu fazer Psi. Havia me tornado um subversivo, colhia informações em vários grupos sociais, provocava, reprimia, lançava ideias, questionava valores, tudo isso para observar a reação das pessoas diante o novo, o desconhecido, o velho e o conhecido. Andava muito com um grupo que me identificava bastante, todos nos erámos Sativos, estávamos sempre arranjando uma desculpa para fumar um baseado. Tínhamos combinado de ir a uma festa, ia rolar algumas bandas da região, cerveja e vodka liberados, muita mulher bonita, uma balada classe média. Nos encontramos dentro da balada, depois de algumas cervejas e muitas ideias, alguém sugeriu fumar um baseado, e obviamente ninguém demonstrou resistência. A festa era em local aberto, num clube, mas estava cercada por seguranças, não havia um local onde pudéssemos fumar um baseado e passar despercebido, de repente alguém disse para fumarmos ali mesmo, mas estávamos na frente do palco, no meio da festa que não era uma grande produção por sinal, como um show por exemplo, era coisa de aproximadamente trezentas pessoas, e alguém, catch a fire! Fiquei meio receoso, pois alguns seguranças poderiam chegar e causar uma situação constrangedora, mas quem está na chuva é para se molhar, erámos quatro homens e uma mulher (uma gata por sinal). O baseado começou a rodar por nossas mãos, quando me dei conta, estávamos rodeados de mulheres, nunca tinha visto nada igual, os homens se afastaram e as mulheres começaram a surgir de todos os lados, parecia brotar da terra. A nossa amiga começou a ficar sem graça e a gente sem entender nada, de repente uma menina se aproximou e pediu para fumar, passamos o baseado para ela e as amigas delas vieram na sequência, acabaram levando nosso baseado. Era tanta mulher que a gente ficou meio sem saber o que fazer, elas se misturavam no meio da gente dançando, olhando, se 107
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insinuando. Comecei a conversar com uma delas, mas iam chegando outra e outra, passava mais uma, parava outra do meu lado, estava perdido com tanta informação, acabei não pegando ninguém, nem meus colegas, foi uma coisa louca, sem explicação, não consegui entender aquele fluxo até hoje. O mais interessante foi o efeito da situação, a nossa geração está mais aberta em relação à Cannabis, as mulheres se interessaram pelo fato, os seguranças não nos incomodaram, nem chegaram perto, pelo contrario, o fato de termos acendido um baseado no meio das pessoas trousse uma afinidade maior entre aquele público frequente, trousse mais interação, mais calor humano, as pessoas se aproximaram e o ambiente ficou mais comunicativo, afetuoso, expressivo, totalitário. Ao invés de causar um repúdio, causou mais união, este fato me impressionou bastante, era claro que nem todas as pessoas que estavam ali eram Sativas, torna-se evidente a tolerância ou a simples dissociação da Cannabis como algo perigoso, que causa medo ou espanto, as pessoas mais jovens respeitam mais as diferenças sociais, a cultura popular, o espaço físico comum, isso é viver em sociedade, é respeitar as diferenças, é não se ligar em estereótipos. Devemos aproveitar o que tem de bom nas pessoas e sermos bons também, devemos estimular o bem, plantando o bem, se a sociedade diz a um adolescente que ele é um marginal, qual modelo você quer que esse adolescente busque a não ser aquele na qual já é visto. Você acha que ele vai ter o discernimento que pode recusar-se ser um marginal e buscar ser outra coisa, é um adolescente, uma identidade em construção, sua personalidade é vulnerável, sugestível, temos que dar a eles ao menos o trabalho de buscar ser o que quiser, por que é nessa fase que essa busca se inicia, e não simplesmente dizer-lhe o que é e o que não é. Estava em constante reflexão, buscava alternativas, me concentrava na Psicologia, que tipo de profissional queria me tornar, quais seriam os métodos que utilizaria, estava sempre me perguntando. A densidade do curso e a consciência de que todo conhecimento era pouco, que o mundo é um conjunto de complexidades, que cada pessoa é um ser único, incomparável. Precisava buscar essa visão ampla do ser, precisava navegar nos meus pensamentos, no meu eu e achar a minha Psicologia, a forma na qual pudesse compreender a vida. Em minha cabeça perpetuavam muitas dúvidas enquanto me tornar Psicólogo, teria que me comportar de outro jeito, que adquirir uma nova postura social, construir um novo “eu”, uma nova imagem? Precisava de um tempo para viver meu luto, para me despedir de mim mesmo, aproveitar o tempo que havia me reservado para me curtir, me explorar, me descobrir 108
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e redescobrir, a final, as pessoas não me viam como Psicólogo (salvo algumas), não me associava à profissão. Eu precisava saber se essa transição de imagem era mesmo necessária, se teria que vestir o papel do Psicólogo além do consultório, não era essa minha pretensão, mas vivemos numa sociedade que reverência a imagem, construída pelo simbólico, no entanto este era um preço que não estava disposto a pagar, ele chocava-se contra tudo aquilo que acreditava, contra a própria Psicologia. A sociedade é impiedosa, ela te cobra a perfeição e se esquece que não é perfeita, ela quer ver um Psicólogo usando óculos, sapatos, camisa social, blazer, um homem sério, com um ar de superioridade e essa não era minha leitura da Psicologia. Esconder atrás de um papel social para exercer minha profissão estava totalmente fora dos meus planos, tinha muito mais a dar do que simplesmente representar os desejos de uma sociedade patológica. Não havia passado cinco anos me dedicando, questionando, construindo ideias, me relacionando com a Psicologia, para me esconder dentro de um consultório, sentado em uma poltrona ou ao lado de um divã. Tal papel não me iludia, queria fazer uma Psicologia real, criar uma relação de amor com meu cliente, queria por um momento me tornar ele, mas para que conseguisse tal façanha, seria necessário que não existisse nada entre nós, nenhuma distração, me colocaria ali, na sua frente, este sou eu, agora pode me mostrar quem é você. Quanto mais refletia sobre o comportamento social, mais me sentia frustrado, a grande diferença entre o sujeito e as massas são nítidas e alarmantes, o sujeito só, se comporta totalmente diferente do sujeito social. Na medida que nos tornamos mais ligados ao social, mais transparecemos produtos do meio, quanta influência esse meio exerce sobre nós, e por que permitimos tais influências a ponto de perder nossa singularidade? Estava focado em buscar o ser singular, mas queria uma mudança social, uma releitura de valores, o modelo social contemporâneo estava gritando socorro, mas não sabia como ajudar e este era o tipo de desafio na qual estava me concentrando, era neste ponto que queria atuar, queria mostrar que existem outras opções, outro mundo, outra saída, mas a descrença era minha maior inimiga, descrença num povo, numa cultura, numa nação. Havia menos de três meses que tinha me formado, resolvi então me presentear com um carnaval especial, parti para Diamantina, com mais três colegas, a ansiedade estava para nós quatro, cada qual com a sua, estava louco para extravasar, curtir. Saímos de Ipatinga num ônibus com várias pessoas (jovens) a destino de Diamantina, toda aquela bagunça, o carnaval já havia começado ali mesmo, muitas mulheres, algumas conhecidas, outras a gente 109
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conhecendo, tudo muito bom. Até que há uns cem quilômetros de Diamantina um mané puxou a janela de emergência do ônibus e esta para piorar caiu em cima do para-brisas de um carro que vinha atrás, o pessoal ficou p da vida, todo mundo louco para chegar em Diamantina e o cara faz uma sacanagem desta. Numa viagem que seria para durar cinco horas em média, durou quase dez, por que o motorista do carro fez um boletim de ocorrência, a polícia demorou a chegar e tudo mais, chegamos lá no sábado de manhã, ou seja, perdemos a madrugada da sexta. Quando chegamos na casa onde iriamos ficar, estava lotada, não cabia mais nem uma pessoa na casa, como era de manhã o pessoal estava todo dormindo, tinha curtido a noite de sexta, num tinha como nem entrar na casa, de tanto colchão espalhado pelo chão. Um dos meus colegas, havia combinado tudo com o cara da casa pela internet, e pagamos via deposito bancário, o cara passou mil e uma informações, dizendo que era totalmente organizado, que iria ter segurança na porta da casa e só iria entrar quem estivesse com uma pulseira que a gente receberia quando chegássemos, que iria ter almoço todos os dias, fez aquela propaganda, mas quando chegamos a casa estava numa situação incontrolável. Estávamos muito cansados da viagem e deveria ser umas sete horas da manhã, eu queria tomar um banho e deitar um pouco pra descansar, mas só tinha lugar na cozinha, aquela situação trouxe um desconforto seguido de arrependimento, já estava pensando na raiva que ia passar naquele carnaval. Esticamos o colchão na cozinha mesmo, nós quatro e acabamos pegando no sono, senti meu colchão (inflável) balançando, havia estendido ele próximo a pia da cozinha, acordei com uma algumas gotas de água caindo no meu rosto, quando olhei tinha uma menina em cima do meu colchão lavando alguns copos. Olhei meio acordando ainda e ela sorriu pra mim, era uma gata, com aquele sorriso que não tinha nem como ficar com raiva, pensei: o carnaval acabou de começar. Conversamos um bom tempo e mais pessoas haviam chegado e estavam chegando o tempo todo para ficar na casa, sem condição, a gata era de Belo Horizonte, muito comunicativa, parecia que a gente se conhecia a tempos, o pessoal acordando, aquela loucura. Meio-dia o responsável pela casa apareceu, desesperado sem saber o que fazer, aquele monte de gente reclamando, ele então saiu à procura de outro lugar para a gente ficar, passados menos de uma hora voltou e levou a gente para outro lugar. Um terraço, com dois banheiros, aberto e com uma escada que dava acesso independente para a rua, fomos nos quatro e mais três meninas, chegamos lá tinha mais dois colchões, com pertences femininos ao lado, pensei aí sim, deixamos nossas coisas posicionadas. 110
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Tínhamos combinado de cada um levar uma garrafa de bebida, peguei a garrafa de absolut que tinha levado e pedi que os meninos comprassem um refrigerante enquanto tomava banho, tinha uma vendinha ao lado da casa, quando saí do banho, os meninos estavam virando a absolut dentro da garrafa de refrigerante de dois litros, eles beberam a metade e estavam completando com a absolut. Já saí louco, perguntando se eles estavam loucos, virar absolut numa garrafa descartável, que daquele jeito eles iam acabar comigo, se o mais interessante era a garrafa da absolut. Para minha sorte ainda havia sobrado uns quatrocentos ml da bebida, peguei a garrafa da mão deles e brinquei falando que aquilo não podia ficar na mão de criança. Era a primeira viagem deles sozinhos, não tinham maldade ainda, muito bacanas, garotos da melhor qualidade, mas estavam começando e todos aqueles foliões na cidade causaram um certo medo, uma forte impressão. Partimos para a rua, explorar a cidade, a final era a nossa primeira vez em Diamantina, estava disposto a curtir e esquecer os contra tempos que havíamos passado, as ruas estavam cheias e nunca tinha visto tanta mulher bonita por metro quadrado, descemos a caminho do bar do Titi. Na esquina encontrei com um garoto vendendo energético (o melhor do mercado) a cinco reais cada, mais barato do que no supermercado, comprei seis, quando dobramos a esquina do bar aquele mar de gente, o nosso carnaval tinha começado, aquela imagem fez com que todos os perrengues que havíamos passado valessem a pena. Começamos a descer a rua embalados pelo som dos carros e levados pelo agito de todos que ali estavam, ficamos horas sob o sol forte do verão, compartilhando de toda alegria e loucura que só o carnaval proporciona. Eu e mais um resolvemos voltar à casa para tomar um banho para curtir a noite, pois o calor estava insuportável, enquanto a gente voltava, encontrei com uma amiga de Caratinga-MG, quando ela me viu já chegou me beijando, aquele beijo safado, gostoso, peguei-a pelo braço e falei baixinho no ouvido, “vou te levar pra casa”, e continuei a caminhar de mãos dadas, as ruas estavam completamente cheias e eu muito excitado, a casa parecia estar no fim do mundo. No meio do caminho tinha um cara cheirando loló e ela pediu um pouco, ele estava cheirando numa munhequeira, molhou e ela puxou com vontade e me ofereceu, mas recusei, dizendo que não iria colocar a boca na munhequeira daquele cara. Ela então pegou o vidrinho da mão dele, puxou a blusa larguinha que estava usando um pouco pro lado e deu uma espirrada no top, que parecia um sutiã mais largo. Espirrou em cima do seio, olhou para mim e perguntou se ali eu colocaria a boca, quase que ela nem termina de falar, meti a boca e dei 111
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aquela chupada com puxada. Fui arrastando-a em direção à casa, ela estava com uma amiga, falei pro meu colega se virar com a amiga dela, quando chegamos na casa, joguei-a no meu colchão e comi ela gostoso, enquanto meu colega transava com a colega dela, perfeito, o meu primeiro dia de carnaval em Diamantina estava a mil. Cada vez que voltava para a casa, no terraço aparecia mais colchões, no começo eram apenas uns dez, agora já tinha mais de vinte colchões espalhados pelo terraço, tinha gente de Belo Horizonte, São Paulo, de todo lugar. Tomamos banho e saímos a noite, o carnaval em Diamantina a noite tem algo especial, as ruas de pedra, a arquitetura barroca, as pessoas, dá um clima e uma energia positiva à cidade. Nas ruas parecia que todo mundo cheirava loló, nunca vi tanta gente cheirando loló, mas o clima era favorável, carnaval, curtição, não se tornava um problema e sim algo a mais. Muita azaração, pegação, as mulheres mais lindas de minas a cada passo, era uma festa bastante eclética, tinha apresentações de bandas locais no palco, desfile de blocos caricatos pelas ruas, hip hop, samba, em vários pontos da cidade, para vários gostos. Depois de curtir bastante voltamos pra casa, descansar, já no terraço acendi um baseado para dar uma relaxada e dormir pensando no dia seguinte, foi quando um paulista se aproximou e pediu para dar um dois. Papeando sobre o carnaval, ele me contou um lance que tinha acontecido com ele, por acaso ele acabou conhecendo um americano e esse americano disse que ele se parecia com um skatista famoso, eles então chegaram em umas meninas e começaram a conversar em inglês com elas, as meninas falavam inglês e continuaram a conversar, o americano disse que o paulista era skatista nos estados unidos e aquele papo todo. Ele acabou beijando uma das meninas e na situação, a que o americano estava investindo duvidou que ele era mesmo americano, falou que o paulista era americano e que o americano estava tirando onda com a cara dela, que não era americano nada, e não beijou o americano. Nesse papo, surgiu assunto sobre o trance na Baiúca, disse que ainda não tinha curtido lá, ele continuou falando que era muito bom, bom pra tomar um doce e ele acabou me vendendo um terço do double face por quinze reais, guardei para curtir na Baiúca, dormi pensando no trance e no doce. Na manhã seguinte acordei cedo e desci até o mercadinho na ideia de tomar um café da manhã reforçado, depois de tomar o café, sentei na porta da casa e acendi um baseadinho pra começar o dia espantando a ressaca. Nisso estavam passando um grupo de foliões, umas quinze pessoas, homens e mulheres, como a nossa rua era um morro com calçamento de pedra, um dos camaradas resolveu se deitar no chão, numa posição horizontal e descer o morro rolando, e o pessoal pilhou, gritando pra descer e o rapaz desceu o morro todo rolando. Diamantina era assim, a gente vê cada loucura, queria pegar leve de dia, pois estava a fim de 112
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curtir o trance de madrugada na Baiúca, saímos pra rua, mas dessa vez procuramos um lugar menos movimentado e uma sombra de preferência, pois estava igual a um pimentão, todo vermelho de sol por causa do bar do Titi, levamos a garrafa de tequila e alguns limões e sal, secamos a garrafa, que fez muito sucesso com algumas meninas na rua, beijamos várias. No final da tarde retornamos para nosso reduto e combinamos de sair com algumas meninas que estavam alojadas no terraço também, estava louco para pegar uma delas, desde o dia que chegamos lá, era linga, me apaixonei instantaneamente quando a vi. Tomamos banho e ficamos esperando as meninas se arrumarem, naquele momento percebi que seria uma boa hora para tomar o doce, esperei até que a última menina estivesse pronta para sair e só então coloquei o doce debaixo da língua, e saímos, nós quatro e seis mulheres rumo às loucuras das ruas e vielas de Diamantina. Enquanto nos dirigíamos rumo à aglomeração eu só esperava a hora em que o LSD batesse, paramos no meio do caminho para comprar cerveja e continuamos a caminhar, eu estava na frente com as meninas e os meus colegas ficaram para trás, não sei por quê, se por timidez ou medo da minha reação. Foi quando comecei a sentir algo diferente, me aproximei dos colegas como se estivesse pedindo reforço, chamando eles para se juntar a nós (eu e as meninas), pois sozinho não estava conseguindo dar atenção a todas e assim elas iam acabar voltando para a casa. Elas estavam um tanto desanimadas, saindo pouco, por motivos que desconheço, mas os colegas se recusaram a se juntar a nós e se mantiveram distantes, o que poderia fazer, eles não queriam se juntar a nós, voltei para perto das meninas na intenção de dar atenção a elas e não deixar que as mesmas escapassem, pois queria pegar aquela gata de qualquer jeito. De repente quando nos aproximávamos da igreja percebi que já estava falando demais, muito alegre e descontraído, comprei quatro garrafas de catuaba, elas passaram a tarde toda bebendo catuaba, quando cheguei com as garrafas elas se animaram, quando me dei conta estava conversando com as cinco, todas ao mesmo tempo e falando de assuntos diferentes. Não sei como conseguia, mas eu olhava como se observasse toda aquela situação e me via conversando com cada uma, uma ria, a outra me escutava atentamente, outra me dizia algo e eu escutava atentamente, tudo ao mesmo tempo e eu sem acreditar naquilo que estava acontecendo, como podia estar conversando com cinco mulheres ao mesmo tempo? Não consigo me recordar do que falava com cada uma, mas pelos gestos, feição, comportamento, era uma conversa que fazia bastante sentido e sem dúvida algo muito interessante. A coisa era tão natural que acredito que nem as próprias meninas se deram conta do que estava 113
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acontecendo, não sei como consegui fazer aquilo, mas era uma sensação muito boa, algo inexplicável. Estava me dialogando não só com as meninas, mas com tudo que estava ao meu redor, mas não de um modo expressivo, e sim de um modo conectivo, sem explicação. Descemos a rua em direção ao palco principal, para curtir o show das bandas locais, descemos em fila indiana, pois não havia outra forma de andar naquela multidão, fiquei por último e desci de mãos dadas com a gatinha que estava querendo. Lembro que a gente passou por alguns caras e um deles olhou para essa gata e cutucou o colega mostrando-a para ele, olharam admirados, ela era muito gata, quando iam mexer com ela perceberam que estava de mãos dadas comigo e os dois olharam para mim com aquele olhar meio “qual é a desse cara”, e passei por eles tirando a maior onda, num tinha nem pegado ainda e tirei onda. Paramos num lugar um pouco menos movimentado, pouco tempo se passou e uma das meninas quis ir embora e todas se manifestaram a favor, os meus colegas também quiseram ir e eu fiquei para trás, em pleno o carnaval de Diamantina, tudo acontecendo e os colegas queriam ir embora com as meninas. Não entendi, um deles estava louco para pegar uma delas, primeiro eles não queriam nem chegar perto das meninas, agora eles já queriam ir embora com elas, mesmo estando muito a fim de pegar a gata, fiquei, fiquei pela festa, pela curtição, por aquilo que Diamantina poderia me proporcionar e não trocaria nenhuma dessas incertezas por outra dúvida, mesmo que perdesse a gata eu iria desfrutar do carnaval em Diamantina, tudo podia acontecer. Estava sozinho e louco, subi em direção à Baiúca, quando cheguei estava rolando um trance, todas aquelas pessoas, curtindo, eu só conseguia enxergar mulher no lugar, nunca tinha visto tanta mulher assim, louca, dançando, como se todos estivesse na mesma sintonia, a vibe era sensacional, fiquei por um tempo só observando, sem acreditar em tudo que estava acontecendo, a alegria era contagiante, o sorriso estava estampado no rosto de cada pessoa, era um ambiente de total liberdade, sem preconceito, sem discriminação, sem confusão, sem diferença, apesar de cada um se apresentar de forma bastante diferente, parecia coisa de outro mundo. Comprei uma cerveja na Baiúca, parei na porta e acendi um cigarro, enquanto observava cada rosto da multidão e sentia a energia do lugar, nem percebi que estava sendo observado, uma menina que se aproximou e parou do meu lado, me pediu um cigarro e começou a conversar comigo. Ficamos ali por um tempo, de pé no mesmo lugar, ela era muito bonita, uma beleza exótica, acompanhada de um estilo bacana, do jeito que eu gosto, logo
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estávamos nos beijando e fui aparecer na casa que eu estava só no outro dia de madrugada, que noite inexplicável, que mulher louca, voltei só para tomar um banho e sair de novo. Sabe o que mais me impressionou em Diamantina, foi a vibe do lugar, muitas pessoas faziam loucuras, mas a ordem prevalecia, não sei como, eu não vi brigas, nem princípio de tumulto, quando se esbarrava em alguém ambos pediam desculpas, andei sozinho em vários momentos, em horários distintos e ninguém tentou me roubar ou sequer vi alguma tentativa de roubo. Minhas coisas ficaram no terraço, junto com as de um monte de gente e ninguém mexeu, ninguém reclamou que haviam mexido ou roubado alguma coisa dele, eu vi um grupo de rapazes carregando um sofá de três lugares para o meio da Baiúca, tudo era festa. Ali eu voltei a ter esperança na humanidade, percebi que as pessoas ainda tem capacidade de fazer um mundo melhor, só depende delas, dos objetivos e de se desligar um pouco do sistema, da pressão, da mídia que é o maior veículo de informações sugestivas. Se um bando de jovens podem curtir quatro dias de carnaval, bebendo, usando drogas, farreando, e ainda sim sendo pacífico e respeitando, esse mesmo bando (nação jovem) pode fazer qualquer coisa, não há limites para nós. Desde que não se caia em toda essa conversa que o sistema impõe, desde que continuemos a lutar pelos nossos sonhos e ideias e mostrar para essa nação ultrapassada e frustrada que podemos e conseguimos fazer melhor do que eles, que somos diferentes de tudo aquilo que eles já viram. Ainda curtindo a ressaca do carnaval, estava de volta ao trabalho, tudo tinha voltado ao normal, os tempos de festa tinham acabado e o ano começara novamente, sempre depois do carnaval. No trabalho tudo ia bem, estava pensando muito em desenvolver algum trabalho voluntário na parte da manhã, algo leve que não exigisse muito de mim, mas que causasse um bom impacto social, pois tinha algumas ideias a desenvolver, coisas que surgiram ainda na graduação e precisava estar concentrado e explorar mais para começar a nortear minha linha de pensamento. Continuava a pensar todos os dias em desenvolver alguma ação social, esta também era uma meta de quando ainda estava estudando, era como queria me ingressar na Psicologia. Via como a Psicologia estava mal compreendida pela sociedade e queria muito fazer algo a favor, queria mudar a cara da Psicologia, trazer um novo sentido ao fazer do Psicólogo, demonstrar a importância da Psicologia no âmbito social, e procurava uma ideia que casasse com os meus objetivos.
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Um certo dia estava fumando um cigarro, sentado dentro campus, antes da aula começar, alguns alunos chegavam muito cedo, vinham direto do serviço para estudar, chegou uma aluna, eu já tinha visto ela na faculdade, sempre na dela com poucas amizades, percebi que ela estava rodeando e fiquei ali parado. Se aproximou perguntando algo que nem me lembro e começamos a conversar, ficamos sentados conversando, deu o horário da aula começar ela se despediu e entrou para a sala. Na hora do intervalo, ela novamente se aproximou, conversamos durante os quinze minutos de intervalo, perguntei o que ela ia fazer depois da aula, pois era sexta-feira, ela respondeu dizendo que nada, que iria para casa, com um ar de frustação, então disse que havia combinado com um colega de tomar uma cerveja e que se quisesse poderia ir com a gente. Ela disse que estava precisando sair um pouco e perguntou como a gente ia fazer para se encontrar, peguei o telefone dela, expliquei que saia do serviço às onze e meia e que quando saísse iria ligar para pegar ela e que era para já estar arrumada. E foi assim, sai do trabalho, liguei para ela e a busquei em casa e fomos ao barzinho, só que tinha um problema, eu estava sem dinheiro, como eu convidaria uma mulher para sair, ir a um bar comigo sem dinheiro? Meu amigo tinha me ligado chamando para tomar uma gelada e eu lhe disse que estava quebrado, sem grana, ele insistiu e disse que iria segurar umas cinco para nós, para mim não me preocupar (como fazíamos de costume), então, quando a menina aceitou o convite, liguei para ele disse que tinha chamado uma menina e perguntei se poderia levá-la? E como a amizade pesa, ele disse que não tinha problema. Quando chegamos ao bar ele já estava lá esperando, tomando uma, apresentei-a para ele e ficamos conversando e bebendo, tomamos algumas e depois de um tempo ele disse que iria embora, se levantou e foi acertar a conta no caixa, voltou disse que estava certo lá, se despediu e partiu. Eu tinha dez reais na carteira, o bar era arrumadinho e com dez conto dava para tomar duas cervejas, então pedi mais uma, pois até então não tive tempo de ficar a sós com ela, para a gente se conhecer melhor, bater um papo. Tomamos duas cervejas conversando bastante, foi um papo muito bom, então pedi a conta, enquanto acertava a conta, ela me disse: - É, acho que estou meio bêbada. - Eu também estou um pouco alegre. Complementei. - Acho que vou precisar da sua ajuda para subir as escadas e abrir a porta do meu apartamento. Disse como quem seduz. 116
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A partir daí, não falei mais nada, acertei a conta e fomos para o seu apartamento, afinal, ela morava sozinha. Estacionei o carro na frente do prédio dela, desci e ajudei-a a descer, ela me entregou as chaves, pedindo para abrir o portão. Abri o portão e a porta do prédio e ela pediu que abrisse a porta do seu apartamento também, pois a porta agarrava às vezes, ajudei-a subir as escadas, exatos três andares, que na verdade mais parecia trinta e chegamos à sua porta, ela disse sorrindo: - É essa aqui. Abri a porta, entreguei-lhe a chave e lhe dei boa noite, ela entrou deixando a porta aberta e no escuro indagou: - Cadê o apagador ein? Não estou achando. Entrei, acendi o apagador que era do lado da porta e antes que eu saísse, ela pediu que fechasse a porta, naquele momento tive certeza da sua intensão, que tinha sido quase que uma vítima dela, desde sua aproximação na faculdade e gostei muito desse joguinho, quando me dei conta o astro rei já raiava. Combinamos de nos encontrar no domingo, fomos a um bar onde estavam alguns colegas meus que haviam me chamado para curtir uma banda de rock que iria fazer um som lá. A galera era bem alternativa e a Catarina não ficou muito à vontade, o ambiente não era muito a cara dela, melhor, não tinha nada a ver com ela. Ficamos um tempo e fomos embora, paramos em um outro bar, tomamos umas três cervejas e partimos para o apartamento dela, quando chegamos lá percebi que ela tinha tirado as fotos de um cara que estavam coladas na parede em cima da cabeceira da sua cama. Acho que ela percebeu que olhei e não vi as fotos e falou que tinha tirado, que era um ex-namorado dela e que não sabia por que não tinha tirado as fotos antes, nem rendi conversa, achei um pouco estranho aquelas fotos no dia que entrei lá na sexta, mas ela disse que era ex-namorado e não tinha a intensão de ter algo sério com ela. Não acreditei muito nesse papo de ex-namorado, mas também não me interessava falar sobre isso. Começamos a nos ver com muita frequência, conversávamos bastante na faculdade e quase todos os dias dava uma passada na casa dela depois do serviço, saíamos algumas vezes, mas na faculdade não ficávamos juntos, éramos como amigos. Estava tudo como queria, nada sério, somente um relacionamento casual, apesar da frequência com que encontrávamos. Não conversávamos sobre namoro ou algo do tipo, apenas curtíamos o momento em que estávamos juntos, não sabia o que ela pensava em relação a isso, mas para mim estava ótimo, 117
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principalmente pelo fato dela ser de Governador Valadares-MG, o que fazia com que a maioria dos finais de semana ela fosse para sua cidade e eu continuava curtindo com meus amigos e frequentando os lugares que gostava, já que erámos bem diferentes em relação ao gosto. Mesmo com pouca comunicação à nível de relacionamento conseguimos criar uma boa afinidade sexual, o que era muito bom, pois conseguíamos satisfazer um ao outro sem qualquer esforço e passávamos momentos fantásticos juntos, nosso relacionamento continuava do mesmo jeito, casual. É claro que eu gostava dela, nos dávamos super bem, mesmo sendo bastante diferentes, conseguíamos nos divertir juntos e essa ausência de ser um “relacionamento sério” era bastante favorável, uma vez que eu não queria ter algo sério, não só com ela, mas com garota alguma, por uma questão pessoal. Tinha muitos interesses, muitas coisas a fazer, muitos objetivos a alcançar e um namoro sério poderia atrapalhar todos os meus planos, então buscava estar com alguém para compartilhar momentos de carinho, afeto, prazer, alegria, mas sem deixar que tal relacionamento alcançasse parâmetros de planejamentos futuros. Vivia o momento, a mim só interessava isso e mais nada. Enquanto isso continuava pensando numa ação social, minha ideia à priori era ingressar na Psicologia com trabalhos sociais, para causar algum impacto social, levar uma mensagem abstrata aos profissionais da saúde, à sociedade de modo geral. Comecei a pensar em várias coisas, mas teve uma que me despertou maior interesse, fazer palestras para alunos entre quatorze e quinze anos sobre drogas. Levar esta proposta às escolas estaduais e municipais com o intuito de construir metas preventivas mais eficazes, mas tinha que começar a colocar minhas ideias no papel para analisar o que seria interessante discutir e qual metodologia de discussão iria seguir, pois somente o clichê: diga não às drogas, não estava alcançando resultados muito positivos. Ao mesmo tempo estava me mantendo muito ocupado curtindo bastante a minha vida, como em clima de despedida, pois sabia que muita coisa iria mudar a partir do momento em que começasse a atuar como Psicólogo, sei lá, teria que ter maior responsabilidade e compromisso profissional, dedicação, pois lidar com questões do outro é uma verdadeira realização ética e exige bastante de nós enquanto profissionais. Teria que adotar uma outra postura social, agora sou um Psicólogo e as pessoas esperam um comportamento adequado, padrão, quase que perfeito e isso seria muito difícil de assimilar para mim. Por essas e outras questões havia me dado este tempo, para aos poucos construir mudanças que não seriam fáceis e torná-las significativas a ponto de conquistar uma imagem de confiança, sendo que a maioria das pessoas não me viam como Psicólogo. Essa 118
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imagem que muitos tinham de mim era um tanto ultrapassada, confesso que nunca fui santo e que já havia aprontado muita coisa, mas desde meu ingresso na Psicologia passei a concentrar em me tornar uma pessoa mais equilibrada e acredito que por meio de avaliações autocríticas havia conseguido grandes progressos. Exceto por me adequar aos padrões sociais na qual me distanciava de mim mesmo, ou seja, queria manter minha autenticidade, as coisas que acreditava, meus ideias e valores, mas muitos desses iam contra os padrões sociais e disso não iria abrir mão tão facilmente. As pessoas se apegam às imagens, às coisas superficiais e montam um perfil de alguém específico, no caso o Psicólogo, como sendo uma imagem que destoa da realidade, uma imagem pré-moldada, pré-fabricada, um perfil social onde aquilo que as pessoas acham, é aquilo como sendo a realidade e eu enquanto Psicólogo, era justamente contra isso que lutava, contra este perfil profissional. Por que fora isso somos seres humanos como qualquer um e devemos construir a nossa imagem de acordo com o que acreditamos que seja tal imagem, fugindo dos estereótipos, como por exemplo, quando você pensa em um Advogado, você pensa em um homem usando terno e sapato, carregando uma maleta, sem barba e com os cabelos cortados, isso é um exemplo de perfil profissional. Tais características não fazem um Advogado, o que o faz é o seu conhecimento pelas leis e sua paixão pelo trabalho, mas isso no âmbito social parece ter menos relevância do as imagens características, eu não queria cair neste clichê, me sentir obrigado a adotar um perfil profissional para me sentir um profissional ou ser visto como um. Eu queria sacudir a sociedade, questionar seus valores e seus estereótipos e acho que essa afirmação do meu eu, essa autenticidade, a maneira com que ignorava tais imagens e buscava enxergar o “eu” de cada pessoa, principalmente pela minha capacidade de questionar os padrões e aquilo que nos são imposto, é o que me fazia mais Psicólogo do muitos por aí, com suas camisas sociais e seu ar de superioridade, então este tempo que tinha decidido me dar, iria servir para questionar tudo enquanto Psicologia e tudo enquanto Eu. Nessa época estava andando bastante com um grupo de alunos da faculdade onde trabalhava, tudo começou por causa do Lagosta, eu sempre via ele entrando na faculdade alguns minutos antes da aula começar e pouco depois que a aula começava ele saia, sempre de mochila e isso se repetia praticamente todos os dias. Aquilo começou a me deixar bastante intrigado, eu pensava, o quê que esse cara vinha fazer todos os dias na faculdade, no mesmo horário, sempre sozinho, nunca ficava por mais de vinte minutos no campus. Passei a achar 119
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que ele nem era aluno da faculdade e que só ia lá por que estava escondendo maconha no campus, algumas vezes seguia ele, mas não percebia nada suspeito, ele chegava até entrar em sala de aula, mas saia quase que instantaneamente. Um dia no Burracharia trombei com ele na porta e a gente se cumprimentou, a final nos conhecíamos de vista da faculdade, ele se aproximou e disse que eu era maluco também, respondi meio sem graça um que isso brother, pois estava acompanhado com um mulherão e ele continuou, que nada rapaz, gambá cheira gambá e conversamos um pouco. Depois daquele dia começou uma amizade muito bacana, precisava de ter um colega igual ele, que gostasse de fumar um baseado, que tivesse mais ideias em comum e que fosse uma pessoa boa, sensata, de coração bom, nossa amizade estava começando. Falei com ele que achava que ele escondia maconha na faculdade, a gente riu muito dessa história, em fim, este nosso grupo de dois acabou crescendo, agregando mais alguns colegas, todo mundo na mesma pilha, na mesma ideia. A gente saia nos finais de semana, íamos no Burracharia, sempre com o intuito de se divertir, fumar um baseado, trocar uma ideia, uma coisa muito sadia, cantar algumas mulheres. Minha rede de relacionamentos cresceu muito, principalmente no quesito colegas Sativos, coisa que antes conhecia muitos, mas que acabei percebendo a dimensão e o grande número de pessoas que compartilhavam deste mesmo gosto. Neste tempo acabei ficando um pouco afastado dos meus amigos de infância, eu gostava de ir no Burracharia e eles não, o meu horário de trabalho era diferente do deles e nos finais de semana tinha endereço certo, Burracharia e Cannabis. Uma vez eu levei Catarina lá, a gente curtiu a noite juntos, com os meus colegas, fumei um baseado com o pessoal mais ela nunca me viu fumando, ela nem sabia que eu fumava. Nunca ofereci ou incentivei alguém a usar Cannabis, por que acho que essa vontade tem que ser uma coisa particular da pessoa, algo que ela pense e repense bastante antes de usar, deixar claro o que ela pretende usando a Cannabis, avaliar seu auto controle e entender um pouco do que realmente é a Cannabis. Mesmo também pelo fato de achar a própria Cannabis uma planta muito seletiva, acho que ela seleciona seus adeptos, ela possui esse poder de dar para cada um aquilo que a pessoa busca, de forma consciente e pelo respeito que a pessoa tem pela planta, quem não é da Cannabis não adianta, não vai ter boas experiências com ela, é fato, ou mesmo não vai sentir sua força, suas potencialidades. Havia passado na casa da Catarina a semana toda, sempre depois do trabalho, chegava umas onze e pouco e ia embora uma, uma e tanta, eu subia as escadas e ela já estava lá me 120
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esperando, com aquele shortinho, deitada na cama... A gente sempre conversava bastante, ela se sentia um tanto sozinha, dava pra perceber quando eu dizia que iria embora, era uma luta, nossa, ela insistia tanto para que eu não fosse, me abraçava e ficava me segurando repetindo para mim ficar, numa dessas acabei combinando que iria dormir lá com ela de sexta para sábado, e ficou combinado. Na sexta eu pegava serviço mais tarde um pouco, saí de casa comprei uma carne, cerveja e combinei com ela de fazer um churrasquinho só nós dois, levei o grill e fizemos o churrasquinho, tomamos as cervejas e dormi lá como tinha combinado. De manhã quando acordamos, quase na hora do almoço, ela insistiu que ficasse para o almoço, queria que queria fazer comida pra mim ver que ela sabia cozinhar e que a comida dela era gostosa. Acabei ficando para o almoço, mulher quando quer uma coisa ela tem muitos meios para conseguir, num teve jeito, almocei com ela e depois fui embora, ela realmente cozinhava muito bem, as coisas continuaram como antes, sem cobrança, sem assunto de namoro, não dormia lá com frequência, estava bom demais. Num outro dia ela me disse que o ex-namorado dela estava vigiando o apartamento dela, fiquei sem saber o que estava acontecendo, falou que o cara já tinha me visto de cueca lá no apartamento dela, mas como o cara era um ex-namorado deixei que ela resolvesse isso sozinha. Não sabia se realmente o cara era ex ou se eles ainda estavam namorando, mas ela falava que havia terminado e que ele não estava aceitando muito bem, mas com as idas dela à Governador Valadares, sei lá, talvez esta história tivesse um pouco mal contada, mas eu também não iria discutir isso com ela, uma vez que não éramos namorados nem nada. Começava a perceber que estava na hora de por um fim nesse relacionamento, mas era difícil, estava tão bom, já tínhamos atingido uma intimidade tão bacana, pela frequência com que nos víamos. O fato dela morar sozinha facilitava bastante as coisas, o fato da gente se ver, de estar junto e acho que ela também não queria se sentir sozinha, afinal ela tinha dezenove anos, morando num lugar onde ela conhecia poucas pessoas, longe da sua família, era melhor deixar rolar mais um pouco, acho que era melhor para nós dois. Pensando sobre a questão das palestras sobre drogas, veio uma coisa que tinha acontecido na minha graduação, uma vez íamos apresentar um trabalho sobre drogas na faculdade, então chamei a professora e perguntei como ela queria o corpo do trabalho, quais temas ela queria que a gente abordasse e ela deixou que construíssemos de forma livre. Perguntei na sequência se poderíamos colocar um tópico expondo os prós e contras do uso de drogas, ela olhou para mim e me respondeu com outra pergunta, se havia prós no uso de 121
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drogas. Naquele momento mesmo discordando dela e achando que há sim prós no uso das drogas, mesmo que se de fato não houvesse, não faria sentido que as pessoas a usassem ou até mesmo sua existência, e escutando Chico Science & Nação Zumbi, lembrei de um documentário de título “O Mundo é uma Cabeça”, e esse foi o insight. Nossos adolescentes precisam de mais informações sobre não só as drogas, mas sobre tudo relacionado à vida, não é só esculachar as drogas, temos que falar tudo sobre as drogas, temos que ter uma maior quantidade de opiniões, de visões a cerca das drogas, só assim podemos melhorar os padrões de discussão, não podemos deixar que uma cabeça fale por todos nós, alias a juventude nunca aceitou que uma cabeça falasse por todos nós, o mundo não é uma cabeça, são várias cabeças, como diria Raul Seixas, “Cada um de nós é um Universo”, então chega de hipocrisia, estamos cansados disso. Acho que é isso que acontece, de tanto escutar somente NÂO sobre as drogas e depois de ter o primeiro contato, percebermos que não é nada daquilo que eles vem te falando desde sempre, que eles vem te fazendo acreditar, quebra-se essa relação de confiança do ser com as leis do homem, talvez seja por isso que as pessoas que praticam esse ato “ilícito” tenham uma forte tendência Anárquica, contra o sistema. Acredito que a melhor forma é esclarecer todas as dúvidas dos adolescentes com clareza, seja tentando passar informações verdadeiras, apontando os perigos, se mantendo o máximo possível neutro, deixando claro que não está se fazendo apologia. Enfatizando na responsabilidade social de uma pessoa que faz essa prática ilícita, como não utilizar em locais públicos, com crianças por perto, de se preocupar em se manter no controle, de não deixar que a dor vivida influencie na quantidade do consumo, ao invés de oprimir. Tentar ensinar aqueles que usam, ou aqueles que possam vir a usar, a realmente usar drogas, a entender o sentido do uso, se é uma prática recreativa, ou se é fundamentada em alguma crença e/ou ideal, simplesmente quebrar paradigmas com novos paradigmas. Existem vários fatores que influenciam diretamente a relação do sujeito com a substância em questão, vou falar da Cannabis que é uma droga na qual tenho um conhecimento mais aprofundado, por exemplo: o fato do sujeito apresentar dificuldades na hora de apertar (enrolar) um baseado, eu particularmente treinei bastante, pois não há nada melhor do que fumar um baseado bem bolado. Tinha colegas meus que só fumavam aquele baseado do tamanho de uma vela, exagerado, por não conseguirem apertar um baseado num tamanho menor, os caras se viam forçados a fumar uma quantidade além daquela necessária, 122
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por não saberem enrolar um fino (baseadinho). Essa questão da dose aprendi também na UDV, vendo o mestre medir a dose de cada um, olhando para a pessoa e despejando no copo a dose que cada um necessitava para alcançar a borracheira. Assim aprendi a dosar a quantidade de Cannabis também, acabei percebendo que com quantidades muito menores, tipo um baseado do tamanho de um palito de fósforo, conseguia sentir que ele batia com uma tamanha intensidade. Um colega já me dizia também, ele falava que apertar uma vela (baseadão) era o mesmo que desperdiçar fumo, com a prática você descobre a sua dose. Tinha essa ideia de trabalhar uma palestra que girasse em torno disso, de informação, aproveitando para desencorajar um pouco os adolescentes, por que é preciso um equilíbrio, ter estrutura psíquica, estar em sintonia/harmonia consigo mesmo e com o universo, e principalmente ter respeito pelos outros, por si mesmo e pela natureza é fundamental para usufruir tudo que a Cannabis e outras substâncias tem de bom a oferecer. A ideia das palestras aos poucos estava se construindo, mas eu não estava me dedicando muito a essa questão, nos finais de semana, além de trabalhar no sábado, eu saía para me divertir, nos dias de semana quando não estava trabalhando estava dormindo, pois tinha somente a parte da manhã livre. Com esse rolo com a Catarina, eu estava chegando em casa tarde todos os dias praticamente, consequentemente, acordando quase com o prato do almoço nas mãos, então estava tomando esse tempo, mas nessa altura eu nem ligava muito, estava deixando rolar. Havia passado em sua casa e ela veio com um papo de uma festa de casamento, me chamando pra ir com ela, num gostei muito da ideia não, ainda mais sendo festa de casamento, o que iria fazer num casamento junto com ela, num tinha nada a ver, mais ela ficou insistindo uns três dias, eu disse que iria pensar no caso. Foi quando ela falou que os pais dela iam também, aí piorou mais ainda, se eu não estava querendo ir só nós dois, imagina ir junto com a família dela, sem condição nenhuma, mas sabe como são as mulheres e sua irritante insistência, falando que não tinha nada a ver, que iria falar que eu era um amigo da faculdade. É claro que eu num iria cair nessa, mas pensei bem, mesmo sem ter compromisso sério com ela, me bateu um sentimento de dívida, que devia isso a ela, uma coisa tão simples, ir a uma festa, ela era tão bacana comigo. Acabei indo na festa, conheci a família dela, os pais e a irmã, só o irmão mais velho não tinha vindo, a mãe dela foi bastante simpática comigo, o pai era um pouco mais fechado e a irmã dela de aproximadamente doze anos, conversou comigo a noite inteira. Quando os pais dela vieram de Valadares o para-brisa do carro quebrou no caminho, e quando estávamos na 123
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festa, quase no final da festa, começou a chover, chover muito, viemos embora, o pai dela foi sozinho no carro, ficou todo molhado, paramos no estacionamento de um supermercado perto da minha casa e perguntei se ele queria ir para o apartamento onde a Catarina morava com o meu carro, pois iam dormir lá. Ele insistiu dizendo que não precisava, que não iria pegar meu carro, pois não tinha garagem no prédio e poderiam roubar o carro e o problema seria maior ainda, depois de ver que ele não iria aceitar ir no meu carro, levei as mulheres até lá, fui escoltando ele. A chuva era forte, a rua dela mais parecia um lago, de tanta água, deixei-as na porta do prédio e resolvi sair para tomar uma, pois na festa não tinha cerveja, o pessoal era evangélico da mesma igreja da família da Catarina. Como o bairro onde a Catarina morava era o point da cidade, em relação a bares, eu estava dentro da bagunça, lembrei de uma amiga e resolvi ligar pra ela, passei na casa dela e fomos tomar uma, ficamos conversando, demos alguns beijos e acabei dormindo na casa da Leila mesmo, eu já dava uns pegas nela de vez enquanto, havia até um tempinho que a gente não se via, mas tudo bem. Na semana seguinte encontrei novamente com a Catarina na faculdade, percebi que ela estava com um olhar diferente, a coisa estava ficando mais séria, apesar de nunca termos tido este tipo de conversa, mas os atos falam por si só. Eu precisava ser mais cauteloso e começar a cortar esse relacionamento o quanto antes, pois estava virando uma bola de neve e iria me trazer dor de cabeça depois. Fui diminuindo a frequência com que ia na sua casa, não podia acabar assim sem mais nem menos, resolvi ir acabando aos poucos, pra ela não sentir tanta falta. Nos finais de semana que ela passava aqui, já não passava com ela, passava na casa dela só dia de semana e mesmo assim somente dois dias na semana, e fui levando. Depois comecei a passar uma vez por semana, acho que ela foi percebendo o que estava acontecendo, mas não quis conversar nem nada, deixou acontecer também. Até um dia que eu passei lá e ela não queria deixar eu ir embora de jeito nenhum, parecia que ela tinha percebido que depois daquele dia, iria ficar um bom tempo sem me ver dentro da sua casa de novo. Ela me abraçou, se agarrou em mim, fez de tudo pra não deixar eu sair, escondeu minhas roupas, não queria me devolver. Então eu desci de cueca e sapato e mais nada, entrei no carro, dei a volta no quarteirão, parei debaixo da sacada que tinha no apartamento dela, que dava de frente para o hospital, desci do carro de cueca e gritei ela. Pedi para que jogasse minhas roupas, ela me enrolou um pouco ainda, pedi novamente com um tom sério, e ela jogou, despois que já tinham passado alguns carros e me
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visto de cueca no meio da avenida, depois desse dia eu sumi. Às vezes conversava com ela na faculdade e só, passava longe da casa dela. As coisas aconteciam com uma harmonia inexplicável na minha vida, tudo que eu planejava, as minhas ideias, a forma que eu enxergava o mundo, era tudo perfeito, de vez enquanto pensava sobre o futuro, sobre este eu Psicólogo e parecia muito difícil abrir mão de tudo que eu era. Eu sabia que não era necessária uma mudança radical, mas as pessoas cobram uma postura dentro de suas expectativas, dentro de um modelo padrão e eu estava vivendo este luto. O que causava uma angústia enorme, ter que me adequar a uma sociedade que prega a hipocrisia, que não tem pena nem compaixão, que ignora o ser e seus princípios, essa dúvida me matava, qual caminho deveria seguir? Me entregar à pressão social, ceder e me tornar mais um personagem social, ou continuar com minha autenticidade, me valorizando, fazendo minha profissão da forma mais verdadeira possível, estando bem comigo mesmo, o que acredito ser o essencial. Não que eu quisesse conduzir uma terapia de bermuda e chinelo, ou que saísse por aí com um baseado acesso na boca, pelas ruas da cidade, longe disso, sempre fui uma pessoa discreta, reservada, mas eu não queria ter que me render ao sistema. Queria continuar fumando um baseado de vez enquanto, sentar sem camisa na esquina da minha rua para conversar com os colegas, queria continuar frequentando lugares alternativos, dançar ao som do reggae nas reggeiras da região, conversar com o negro, o branco, o pobre e o rico, queria beber e extrapolar numa noite e na outra nem beber, sair com a mais certinha da cidade e também com a mais safada. Eu gostava desse dinamismo, nunca gostei de rotina, queria contar até dez numa situação e noutra acertar o meio da cara do filho da mãe, queria ser visto como uma pessoa comum fora do meu trabalho e dentro ser avaliado pelas minhas habilidades e conhecimentos e pelo bem que poderia estar proporcionando, mas quem disse que ser Psicólogo é fácil? Ainda tinha muito a pensar, muitas coisas para avaliar, pois eu era apaixonado por mim, pelo meu corpo, pela minha vida, era uma construção de anos e anos, de erros e acertos até conseguir chegar onde tinha chegado. Pô, eu tinha um nome, tinha história, sempre fui meio louco mesmo, admito, mas nada que fizesse mal a ninguém, sempre foi só pra ver até onde eu poderia chegar, por diversão, por motivos supérfluos, por um motivo pessoal ou por motivo algum. Eu era diferente, e gostava de ser diferente, nunca quis ser igual aos outros, era como se fosse uma mistura de tudo e de todos que passaram por minha vida na qual aprendi alguma 125
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coisa, seja um comportamento, uma ideia, um detalhe, O que faço não é o que sou, o que sou é o que faço, eu era assim, não era as minhas ações que me determinavam e sim o que antecedia minhas ações, às vezes fazia algo que não queria ou concordava, mas fazia isso por um bem ou interesse maior. De alguma forma tudo isso se apresentava diante de mim como uma pressão, assim como o atacante que não pode perder um pênalti ou a modelo exceder suas medidas, a cobrança pela perfeição ultrapassa os parâmetros sociais, torna-se também uma cobrança pessoal, quem não se cobra? Talvez a origem dessa cobrança de si próprio seja justamente essa navalha social que não perdoa ninguém e da qual ninguém consegue fugir. Enquanto pensava em um cronograma para a ideia das palestras, a vida continuava, tinha a tese do trabalho de conclusão de curso também, que era algo que estava com muita vontade de continuar. O trabalho estava meio caminho andado, a linha de pensamento já estava traçada, era só continuar pesquisando para dar mais corpo ao trabalho e desenvolver mais em assuntos de certa forma resumimos, tinha muita vontade de transformar essa tese em um livro. Além de ter uma grande identificação com o assunto, a questão do consumismo é mais do que atual, poderia ser uma chave para abrir algumas portas. Meu trabalho me ajudava neste ponto, pois além de não causar um esforço mental, tinha o horário de trabalho, pegava na parte da tarde, então teria a madrugada livre para desenvolver, só conseguia desenvolver leitura e escrever de madrugada, pois nesse horário há menos contratempos e conseguia me concentrar mais, o silêncio e o clima da noite me proporcionavam algo a mais. Conversando com Catarina no corredor ela começou a se queixar que estava engordando, mais eu não percebi diferença, mulher gosta de falar que está gorda, achei que ela estava tentando puxar assunto. Alguns dias se passaram e ela voltou a puxar assunto, desta vez falando que tinha faltado de aula no dia anterior por que estava se sentindo mal, tinha vomitado e ficou com ânsia de vômito quase o dia todo, perguntava por que eu havia sumido, eu desconversava e só dizia que num sabia por que, que estava por aí, sei lá, aquela conversa. Um dia ela veio até mim querendo conversar, me chamou para ir até a casa dela que estava precisando conversar comigo, então depois do trabalho passei lá, ela começou perguntando por que eu tinha sumido, me afastado, disse que eu era assim mesmo, que era meio doido, que sumia depois aparecia, pra ela num ficar pensando muito nisso não. Aí ela começou a falar que duas amigas delas estavam grávidas, a conversa ficou meio estranha, principalmente pelo fato do seu semblante, parecia meio tensa, desesperada, e continuou falando das amigas, que uma delas num sabia nem quem era o pai, ela parecia 126
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muito angustiada, então interrompi com um pressentimento ruim e perguntei se ela estava querendo me falar alguma coisa, com uma voz quase que tremula. E ela continuou, sei lá, eu estou passando mal esses dias e apareceu essa coisa na minha barriga e levantou a blusa pra me mostrar, cara, na hora que eu olhei a barriga dela, tinha um calinho redondinho, perdi até o folego na hora, meu Deus. E ela continuou, não sei o que é isso, isso apareceu aqui, eu nem estou comendo muito, sinto algumas coisas aqui, dizendo totalmente desesperada, e eu sem saber o que dizer, tinha dado um nó na minha garganta, daqueles que nenhuma palavra conseguia sair, e falei, você tem que olhar isso direito, vai no posto de saúde aqui perto amanhã e olha isso, naquele momento fiquei sem lugar, deu vontade de levantar e sair andando nem sei pra onde, de um lado pro outro. Não sei nem qual foi o meu semblante na hora, nem se conversamos alguma coisa depois, lembro quando cheguei na porta do carro, abri a porta, sentei no banco do carro, acendi um cigarro e fiquei tentando me consolar, me acalmar um pouco. Lembro que quando ia dar um trago no cigarro, minhas mãos tremiam num descontrole total, liguei o carro e nem sei como cheguei em casa, naquela noite não dormi. No dia seguinte perguntei se ela havia ido ao posto de saúde, ela disse que não, falei novamente para ela ir, num sabia o que fazer, estava desesperado, nem conseguia raciocinar direito, vinha tanta coisa na minha cabeça que era difícil processar qualquer coisa. Essa história se estendeu por mais de uma semana e junto com ela meu desespero, quem disse que conseguia dormir, colocava a cabeça no travesseiro e só pensava naquele calinho que tinha na barriga dela, virava pra um lado e para o outro e nada de dormir, não conseguia pensar em outra coisa em qualquer hora do dia, só naquela cena. Eu queria fazer alguma coisa, ter uma conversa mais clara com ela, mas quem disse que conseguia fazer algo? Eu não sabia nem se estava respirando, só pensava naquilo, no quanto eu havia vacilado, no problema que tinha arrumado pra minha vida, na cagada que tinha feito, o que que eu ia fazer agora? Não tinha nem noção, eu era só desespero, meus pais iriam me matar, o que eu ia fazer? E agora? Já era, todos os meus planos, minha vida, estava num beco sem saída, como fui burro, por que eu deixei uma coisa dessa acontecer, tentava me manter mais calmo, mais tranquilo, pra poder pensar em relação a isso, mais não conseguia pensar em outra coisa, aquilo tomou conta de mim de uma maneira... Um dia ela estava chegando pra aula, veio até mim e disse que precisava conversar comigo na hora do intervalo, fiquei louco, o coração na garganta, batendo igual a um liquidificador, eu devo ter fumado uns dez cigarros até a hora do intervalo, sentei sozinho 127
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num canto, pensando, levantava, sentava, pensava, dava mais um trago, só pensava como havia dado mole. No intervalo ela me ligou e foi se encontrar comigo, eu desesperado tentando me manter calmo, mas desmoronando por dentro, ela chegou e começou a falar, nem sei como te dizer isso, parecia estar muito sem graça, eu estou grávida, essas palavras ecoaram nos meus ouvidos e por alguns segundos o mundo parou, mas pode ficar tranquilo, continuou: que o filho não é seu! Eu fiquei sem reação, como assim? Mas continuei calado, paralisado, sem fala, ela continuou, é que o menino é do meu ex-namorado, eu já contei pros meus pais, a família dele também já está sabendo e vai vir aqui semana que vem pra gente fazer um ultrassom, meus pais já conversaram com a mãe dele, pode ficar tranquilo. Naquele momento eu senti um alívio tão grande, que não consigo nem descrever a sensação, aquelas dezesseis toneladas haviam sumido, meus olhos se encheram de água, consegui puxar o ar e dar uma respirada forte e consegui me tranquilizar. Estava meio passado ainda, sem acreditar, falei com ela que se ela precisasse de alguma coisa poderia me ligar, me procurar, que se tivesse no meu alcance ajudaria, ela me pediu desculpas por causa do lance com o ex-namorado, disse que estava muito sem graça com tudo, falei que não tinha o porquê ficar sem graça, pois não tínhamos nada sério, apesar dos aproximadamente seis meses que ficamos “juntos”. Quando saí dali, deu aquela vontade de sair pulando e comemorando como se tivesse marcado o gol do título na final de copa do mundo, todo aquele desespero havia passado e eu era eu novamente. Fiquei pensando como tinha conseguido escapar daquela situação, era só Deus mesmo, intervindo por mim mais uma vez, foi o maior aperto que eu passei na vida, que servisse de lição, por que por várias vezes, com várias mulheres, deixei de usar camisinha, por um tempo na minha vida achava até que não podia ter filhos e a final, não poderia ficar contando com a sorte sempre. Voltei ao trabalho e contei para um brother meu, tinha comentado com ele o lance do dia em que fui na casa dela conversar e falei todo aliviado que ela tinha dito que o menino não era meu, que era do ex-namorado dela. No final ele perguntou como ela sabia que o menino não era meu, de certa forma ele acabou com o meu alívio, respondi dizendo que não sabia, mas que ela era a mãe e que devia saber o que estava falando, se não, por que ela faria isso, essa nossa conversa acabou com o meu sossego. Mas naquele momento não poderia fazer nada, a não ser esperar, mas fiquei com essa dúvida na cabeça também, não fazia sentido ela dizer que não era meu, procurei não pensar muito nisso. Quando deitei na cama para dormir, o fato foi a primeira coisa que veio a minha cabeça, comecei a lembrar de algumas coisas, as 128
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pílulas em cima da estante da casa dela, a história do ex-namorado, será que era ex mesmo, ou se ainda namoravam, as vezes que deixei de usar camisinha, essa história voltou a causar um incomodo tremendo, deixa rolar. Acho que na mesma semana ela me chamou pra ir na casa dela, disse que queria conversar com alguém e perguntou se podia passar lá, mesmo sem querer ir, disse que passaria, ela deveria estar enfrentando uma barra, com a família, com ela mesma, com tudo. Passei lá pra conversar, dar uma força, ela me contou dos pais, como haviam recebido a notícia, a forma como eles brigaram com ela, ela parecia estar muito triste, pra baixo. Ela falou que o pai dela brigou demais com ela, pois achava que ela tivesse engravidado de proposito, por causa das suas amigas que engravidaram também, todas elas estavam com três meses de gravidez, que ele queria expulsá-la de casa, que iria trancar a faculdade dela. Desabafou por um bom tempo comigo e era perceptível que ela estava passando por um momento bastante ruim. Fui embora pra casa, agora tinha mais um motivo para não me envolver com ela, eu não sabia qual era a condição dela e do “ex-namorado” e agora que eles iam ter um filho, não queria atrapalhar o que poderia se tornar futuramente uma família, na minha consciência, tinha que deixar o caminho livre para os dois. Se antes eu andava sumido, passei a ficar mais sumido ainda, mas a probabilidade de ser pai dessa criança nunca me deixava parar de pensar nisso, comecei a fugir dela na faculdade, por que quando ela me via, ela vinha conversar comigo e estava decidido a não atrapalhar. Alguns dias se passaram e eu continuava evitando encontrar ela na faculdade, acho que pelo fato de como as coisas aconteceram e como acabou sem um motivo aparente (briga, discussões), ficou aquele gostinho de quero mais. Sentia que ela ainda tinha um sentimento bom para comigo, eu também não tinha nada contra ela, pelo contrário, gostava dela, às vezes sentia aquela vontade de subir as escadas em direção ao apartamento dela, mas eu tinha que segurar minha onda, seria ruim tanto para mim quanto para ela. Havia dias que ela me ligava e eu não atendia e muitas das vezes eu nem via mesmo, só depois, mas não retornava, estava tentando evitá-la ao máximo, até que o meu telefone tocou uma noite, quando olhei era ela, pensei se atenderia ou não, acabei atendendo, ela estava chorando, desesperada, dizia que queria morrer, que tinha acabado com a vida dela, que queria morrer, aquilo foi muito forte. Fiquei um pouco assustado, tentei acalmá-la, disse algumas coisas na tentativa de tranquilizá-la, aos poucos ela foi se acalmando e pediu que eu fosse até lá pra conversar com ela um pouco. Pensei um pouco e disse que não tinha jeito que 129
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estava tarde, dei algumas desculpas, nos despedimos e desligamos o telefone, com ela já bem mais calma. Foi difícil não ir lá, fiquei muito preocupado com ela, mas se eu fosse lá saberia como as coisas iriam terminar e estava conseguindo evitá-la tão bem, não sabia se tinha agido certo, mas sabia que não poderia ir lá. A minha vontade de sair do emprego ficava maior a cada dia que eu ia trabalhar, principalmente nos dias em que eu encontrava com ela nos corredores, alguns alunos e colegas de trabalho brincando comigo, dizendo que eu era o pai. Comecei então ficar mais fora da faculdade do que dentro, era muito difícil vê-la na faculdade, principalmente com o tempo passando e a barriga dela já grande, cinco meses, seis meses, era demais para mim, deixei que a notícia que queria sair se espalhasse pelos funcionários, mal conseguia trabalhar. Sempre fui um bom empregado, por todo lugar que passei sempre fui bom de serviço, comigo não tem frescura, nem preguiça, nem corpo mole, se estou ali como funcionário eu cumpro o meu papel. Mas nessa altura a minha vida estava uma bagunça, tudo estava me afetando de uma forma tão indireta que nem eu estava dando conta disso, nas horas que estavam próximas ao início da aula eu dava um jeito de dar um sumiço para não vê-la. Por causa dessa situação passei a deixar o serviço confesso que um tanto a desejar, perdi o controle, não estava mais trabalhando direito, não conseguia mexer no meu trabalho de conclusão de curso, minhas ideias estavam estagnadas, não estava conseguindo nem continuar a pensar nas minhas ideias à cerca da minha profissão e do tempo que tinha me dado pra pensar na minha vida de modo geral. Todo o meu trabalho psíquico na qual estava me dedicando foi por água abaixo, tinha conseguido progressos em tantas questões, principalmente no quesito equilíbrio, havia diminuído a quantidade de cigarro que fumava, desde novo comecei a fumar cigarro, mas eu não era um fumante comum, não tinha aquela vontade de parar de fumar, acho que nunca tive, mas gostaria muito de diminuir a quantidade de cigarros, e ultimamente havia conseguido alcançar um controle bastante interessante. Fumava de maneira esporádica, fumar para mim não era sagrado, todo dia, tinha dia que fumava um cigarro, tinha dia que nem lembrava de fumar, fumava no fim de semana, ficava sem fumar durante a semana, era muito ocasional. Era desse jeito que eu queria, o mesmo com a bebida, antes tinha vezes que bebia em excesso, por gula, não estava aguentando mais e continuava bebendo, tinha conseguido também este controle com a cerveja, ia nas festas, nos bares (cultura forte da cidade são os bares), e tomava umas cinco/seis latas de cerveja ou três garrafas e ficava numa boa. Demorava para beber um 130
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copo, ia conversando, enrolando, observando e bebendo devagar e de repente tudo isso acabou, voltei à fase inicial, o descontrole, sempre pensando nessa dúvida em relação ao bebê, tinha algo em mim que não me deixava esquecer isso por nada. Numa noite de sexta, estava no Burracharia, curtindo um rock n‟ roll e bebi muito nesse dia, fiquei muito bêbado e comecei a pensar naquela situação, e se eu fosse o pai, e tudo mais. Resolvi ir embora, entrei no carro e pensei em ligar pra ela, liguei, perguntei se poderia passa lá pra conversar, começamos a conversar, a barriga dela estava enorme, devia estar com uns seis/sete meses, passei a mão na barriga dela acariciando e dei um beijo em seguida, mas aconteceu o inevitável. No outro dia fiquei muito arrependido e todas as minhas teorias de que teria que continuar a evitá-la se fizeram verdade, então decidi de vez que não iria mais no apartamento dela por nada, pois não queria continuar e transformar essa situação em novela. Depois de uns quinze dias acabei conhecendo uma menina, ela foi promover uma empresa de vagas na qual trabalhava lá na faculdade e acabei tendo esse primeiro contato com ela lá, era uma negra linda, sempre fui fã da beleza negra, a mulheres negras sempre mexeram comigo, aquelas com o cabelo sarará é um charme. Acabei encontrando na mesma semana essa negra no Burracharia e ela ainda estava acompanhada de uma colega minha, que frequentava assiduamente o lugar, nem pensei duas vezes em me aproximar, puxei aquela conversa e quando me dei conta já estávamos saindo pela segunda vez. Na terceira vez chamei-a para vir a um churrasco aqui em casa, tinha combinado com o Lagosta e outro amigo de assar uma carne aqui, um amigo dele tinha chegado dos EUA e ele o convidou para vir pra cá, veio o amigo com a esposa, que era colombiana, e a Taís (negra) com uma amiga. Durante o churrasco tomamos cerveja e fumamos um baseado, eu, lagosta e o colega com a esposa, nessa semana eu tinha comprado cinquenta gramas de Cannabis, pra dividir pra três. Tinha deixado dentro do carro, pois mais cedo tinha passado na casa do meu amigo pra entregar o pedaço dele e do outro colega nosso, mas esse amigo não estava lá, liguei e ele não atendeu, esperei ele retornar a ligação e ele retornou no desenrolar do churrasco. Chamei ele pra passar na minha casa, pois estava rolando um churrasco, e que pegasse a parte dele aqui, depois de um tempo ele chegou, ficou com a gente no churrasco confraternizando, depois pediu que pegasse a parte dele que iria ter que trabalhar, desci e peguei a parte dele dentro do carro a entreguei e ele foi embora, a minha parte ficou no carro, na porta do lado do carona. A cerveja da festa acabou, e eu e o Lagosta fomos buscar mais, entramos no carro e fomos num bar aqui perto de casa, compramos mais cerveja e subimos pra colocar no 131
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congelador, o churrasco ainda rendeu um bom tempo, o pessoal começou a ir embora e só sobrou eu a Taís, as coisas foram se esquentando, desci e busquei um colchão, subi com o colchão, começamos a nos beijar, acariciar, mas não passou disso, eu não entrei no clima, não sei se foi pelo fato dos meus pais estarem lá embaixo na sala assistindo televisão ou se por alguma outra coisa. Sentia que estava desconfortável com alguma coisa, mas não conseguia saber ao certo o que, deixamos para outra hora, nos despedimos e ela foi embora. No outro dia dei falta da minha parte da Cannabis, fui até a casa do meu amigo perguntar se não havia lhe passado as duas partes e ele disse que não. Parecia uma coisa sem lógica, como poderia ter sumido, será que o Lagosta havia pegado, comecei a pensar nessa hipótese, já que a Cannabis estava na porta do lado do carona, onde ele havia sentado na hora em que fomos buscar mais cerveja, mas será que ele tinha pegado, num era possível que iria fazer isso. Na segunda feira encontrei com o Lagosta na faculdade, ele estava entrando pra sala, perguntei se ele tinha pegado e ele falou que não, perguntando por que, contei que havia sumido, mas que provavelmente seria minha mãe, conhecia a minha mãe, sabia que ela mexia nas minhas coisas, vasculhando. Na terça de manhã ela veio perguntando sobre a Cannabis, tudo ficou claro, como o meu carro ficava estacionado na porta da minha casa e já tinha ido lá mais cedo pegar um pedaço pra gente fumar antes, e depois voltei pra pegar a parte do meu amigo, minha mãe que só fica de antena ligada, percebeu a movimentação e desconfiou. Depois que eu subi ela foi até meu carro e achou a minha parte, pegou e jogou fora, quase vinte gramas de Cannabis, e essa era diferenciada, verde clarinha, muito boa e minha mãe jogou tudo fora, não tinha nem dois dias que havia comprado e perdi tudo, dava uma revolta, mas fazer o que? Apesar dessas situações já terem se repetido outras vezes, nunca briguei com minha mãe por causa disso, ela estava certa e sempre vai estar, ela não concordava e fazia o papel dela de mãe, que era jogar fora, eu respeitava a atitude dela. Mesmo não querendo magoar minha mãe, eu não iria parar com a Cannabis, só queria que ela percebesse que não era uma coisa pessoal, para magoá-la ou deixá-la triste, o que era inevitável, mas eu estava aprendendo muito com a Cannabis, me descobria, refletia sobre meus atos e pensamentos e sempre buscava melhorar enquanto ser. Para a planta não existe limites e eu explorava todas essas possibilidades, explorava o campo mental, treinava a agilidade das conexões mentais, buscava transcendência, evoluir, o equilíbrio não só com as minhas questões, mas com o universo. Acredito que depois que comecei a entender o verdadeiro sentido da Cannabis eu me tornei 132
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um ser humano melhor, mais compreensivo, mais simples, a minha busca pelo conhecimento, pela verdade se tornou quase que insaciável, a interação corpo/mente passou a ser única, tudo se tornou parte de um todo. A forma com que eu me relacionava com as pessoas melhorou, sentia um grande desenvolvimento, minha concentração, razão, emoção, memória, principalmente minha capacidade de sonhar e mais, de acreditar nos meus sonhos. Minha mãe era apenas parte de uma maioria que se deixa levar por aquilo que o sistema impõe, eles não têm culpa, são induzidos a isso, a essa pacificidade, a sempre concordar, a serem fieis aqueles que “colocam comida no seu prato”, aqueles que se julgam donos do poder e assim como te acolhem, te descartam como uma pilha descarregada, sem compaixão. Te fazem escravos de todas as formas possíveis, tem tudo para fazer um mundo melhor, mas não querem abrir mão das suas excentricidades, preferem ver pessoas morrendo nas filas dos postos de saúde, crianças estudando em escola precárias, em fim, mantém a saúde e a educação do país em condições arcaicas só por não abrirem mão de uma vida de luxo e exagero e pior com dinheiro público, apossam do dinheiro como se fossem deles, tudo isso para gastar milhões em jóias, roupas, acessórios, carros, viagens e outras coisas fúteis.
“E se você pensou na liberdade E Jah já conseguiu te libertar Então você ta sentindo o feeling Da regueira que ta pra rolar Ninguém pode prender a natureza Nem o que ela vem a nós, propiciar E só cantar a canção, Pra bom entendedor Meia palavra vai bastar. Não vamos mais lutar pra legalizar, Pois estamos cansados Do ódio e da guerra, ohh Maldita guerra! Não vamos mais lutar pra legalizar, Se a natureza já legalizou Porque a planta brota da terra Bendita terra!” Planta que Brota da Terra - Planta & Raiz
Estava ficando com a Taís, gostei dela desde o dia em que a conheci, tínhamos combinado de ir a uma festa que iria rolar num clube que tinha em um bairro aqui da cidade, fomos na festa, fiquei a noite toda com ela, aproveitamos bastante, pra mim só de estar ali junto com ela já era demais. No fim da noite fui acompanhando o carro dela até a porta da sua 133
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casa, ela guardou o carro na garagem e voltou para se despedir de mim, demos aquele beijo gostoso, ninguém queria largar o outro. Ela me chamou pra irmos pra dentro do meu carro, entramos no carro e o clima esquentou, mão aqui, mão ali, ela cismou que queria fazer sexo comigo ali mesmo, dentro carro, fiquei meio abafado, tentei desviar falando que a gente estava na porta da casa dela e que a mãe dela poderia chegar, mas o fogo dela estava acesso, como eu não estava muito na mesma sintonia dela o fogo acabou apagando e nos despedimos. Fui embora pensando naquilo, me perguntando o que estava acontecendo comigo, justo naquela situação que mais me excitava não consegui entrar no clima, tinha uma coisa muito errada acontecendo e comecei a perceber que o lance da gravidez havia mexido um tanto comigo. Acordei no outro dia pensando no que tinha acontecido no dia anterior, que eu não podia deixar que o susto que tinha passado me afetasse tanto assim, esperei a noite cair e saí de casa com a ideia de ligar pra Taís. Fui pro bairro Iguaçu, num lugar tipo um mirante, perto de um bar alternativo, peguei uma lata no bar, me conduzi até a ponta do mirante acendi um baseado e comecei a refletir sobre o assunto e a maneira como estava me afetando, fiquei horas lá, olhando para o estádio Ipatingão, refletindo, pensando e como num passe de mágica peguei meu telefone e liguei pra Taís. Roubei-a na casa dela quase meia noite e levei-a direto para o motel, a gente namorou gostoso, puro desejo carnal, aquela pele negra, com o sorriso branco, me olhando com malícia, tirou meu sono a noite inteira, nossa sintonia foi sensacional, conversamos bastante, criamos mais afinidade. No outro dia acordei com uma mensagem sms dela, “muito bom!”, e realmente tinha sido muito bom. Depois desse dia saímos mais uma vez juntos, percebi que naquele dia transei com ela por uma questão de honra, e por desejo também claro, aquela negra linda. Mas ainda sim eu tinha consciência que não estava bem, não dava pra continuar levando esse relacionamento com ela, não queria me envolver com ela, assim como com nenhuma outra, não tinha cabeça pra isso, teria que dar um fim nessa história. Comecei a me afastar, tornar menos presente, ligar menos, mas o problema é que a gente frequentava os mesmos lugares, então sumi um pouco da pista, a história estava se repetindo mais uma vez, assim como outras vezes, mas sempre é muito difícil você ter que terminar com alguém, é uma situação onde não existe a melhor maneira. Após alguns dias sem vê-la, encontrei com ela no Burracharia, ela estava com uma amiga, se aproximou e conversamos um pouco, fiquei com vontade de partir pra cima dela e dar aquele beijo, mas eu 134
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não podia ficar brincando com as pessoas assim, tinha que me manter, me segurar, eu estava com um amigo e ficamos curtindo a noite, tomando uma gelada e batendo papo. Quase no fim da noite a Taís me liga, olhei ao redor do bar e ela não estava mais lá, atendi e ela me perguntou onde eu estava, disse que ainda estava lá, ela então me chamou para ir até a casa da amiga dela. Disse que estavam sozinhas lá, falei que ia ver, desliguei o telefone, meu colega perguntou o que era, contei e ele colocou maior pilha pra gente ir pra lá, acabei concordando, também nem precisou insistir muito. Quando chegamos na casa da amiga dela, elas nos atenderam rindo muito uma para outra, pareciam duas meninas brincando, entramos e já comecei a beijá-la. Fiquei no corredor com ela e deixei meu amigo com a amiga na sala, o corredor estava pegando fogo e eu estava bem animado, ela me empurrou pro quarto e me jogou na cama, subiu em cima de mim e começou a me beijar, que tesão... Quando eu comecei a tirar a blusa dela, ela deu uma ordem como um policial, não!, então parei, ela olhou nos meus olhos, chegou o rosto bem perto do meu, olhando nos meus olhos e disse: te amo! Eu assustei, não acreditei naquilo que tinha escutado, perguntei um “o quê?” no susto, torcendo para que ela não repetisse, e ela, “o que, o quê?”. Então falei que tinha que ir embora, fui levantando, sai do quarto, meu colega ainda estava na sala, naquele clima de nada tinha rolado e que nada ia rolar pra ele, chamei-o pra ir embora, pois ele estava de carona comigo e fomos embora, nem entrei muito em detalhe com ele não. Fiquei bastante assustado, como ela poderia me amar, que loucura, a minha consciência pesou, eu não podia ter feito isso com a Taís, mas sei lá, acho que era muito mais da parte dela do que algo que eu tivesse realmente criado. Eu sempre gostava de tratar as mulheres bem, sou um eterno apaixonado pelas mulheres, pra mim não tem nada mais importante no mundo e elas precisam ser tratadas como tal, sinceramente eu não sabia se eu tinha culpa ou até que ponto tinha culpa, mas fiquei um bom tempo sem vê-la, dessa vez ela que sumiu. Uma colega de Caratinga, a mesma que tinha encontrado no carnaval em Diamantina havia ligado dizendo que estava em Ipatinga e queria me ver, combinamos de ir ao Burracharia, passei pra busca-la e já estava louca, estava bebendo com uma amiga que tínhamos em comum, bebendo desde cedo. Estava arrumada me esperando, fomos pro Burracharia entramos e compramos umas cervejas e subimos para ver a banda tocar, a gente estava curtindo, desci pra ir ao banheiro e a Daniele ficou me esperando lá em cima. Quando desci o último degrau da escada, dei de cara com a Taís, ela veio pra cima de mim e eu a 135
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cumprimentei, ela já chegou me pedindo um beijo, me dá um beijo, me dá um beijo agora! Falei que não podia, pois estava acompanhado, que não tinha como, fui saindo em direção ao banheiro para evitar uma situação mais dramática de ambas as partes e voltei do banheiro pra Daniele. Noite adentro e agente bebendo uma cerveja, não vi a Taís mais não e a Daniele estava no ponto, me dando uns beijos que só ela sabia, mordendo minha boca, o tempo todo apertando meu pau dentro do bar, me deixou louco, ela estava com tanto tesão que ela ficou pegando no meu pau duro a noite toda. Quando saímos de lá queria levar ela pro motel, mas ela preferiu a casa da amiga dela mesmo, por que estava mais perto e ela não aguentava mais se segurar. A amiga dela morava há três quarteirões do Burracharia e ela foi me chupando até a casa da amiga, não conseguiu esperar os três quarteirões e acabamos tirando a primeira no carro mesmo. Chegamos e fizemos sexo a noite toda, ela era muito gostosa de comer, aqueles gemidos no pé do ouvido, seguidos de gritos assustadores. Acabei dando uma cochilada antes de ir embora, umas oito da manhã. Na tarde seguinte quando acordei já na minha cama, fiquei pensando na Taís, eu realmente passei ótimos momentos com ela, era uma mulher do jeito que eu gostava, madura, inteligente, sensual, bonita, com uma certa independência. Interagia bem com as pessoas, simpática, pelo tempo que ficamos juntos, não consegui perceber nenhum defeito nela, mas não era um bom momento e ainda por cima eu tinha essa questão de não me envolver, pelos meus objetivos, pela minha causa. Paramos de nos ver, é sempre um pouco difícil se afastar, ou manter-se afastado de alguém que não lhe causou nenhum mal aparente, mas as boas lembranças me reconfortavam quase que instantaneamente e no mais, é bom olhar para trás e poder ter somente boas lembranças. Meu drama no trabalho continuava, dia após dia, e o meu comportamento ganhando mais visibilidade. Apesar de querer sair do serviço, não queria sair como um mau funcionário, mas nessa altura do campeonato, pouco me importava, só queria sumir dali, buscar novos ares, começar a buscar alguma coisa na minha área. Os meus planos de transformar meu artigo de conclusão de curso em livro estava parado, as palestras também ainda não havia passado de alguns rabiscos no papel, eu estava perdido, tudo que planejará fazer após minha graduação, não conseguia colocar em prática. Na verdade não conseguia nem pensar sobre mais nada, tinha traçado uma meta de iniciar com ações voluntárias, fazendo um trabalho diferenciado, sério, mostrar a importância da Psicologia para a humanidade, o valor do Psicólogo e a vasta gama que possibilitava a atuação deste profissional nas mais diversas 136
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vertentes sociais. Via a Psicologia de modo geral passar por um enfraquecimento a nível nacional, logo no século XXI, onde as pessoas pareciam estar mais perdidas do que tudo, em pleno o ano dois mil as pessoas ainda tinham uma visão reducionista e preconceituosa de que a Psicologia era somente para loucos e pacientes diagnosticados com alguma doença mental. Quanta falta de personalidade, quanta ignorância e estupidez, o Psicólogo moderno age de diversas formas, principalmente como um facilitador de questões intrínsecas, um tipo de personal training da psique, um agente em prol da evolução do ser, aquele que traz à tona todas as potencialidades, que torna o sujeito mais autocrítico, com maior controle de suas emoções, ajuda-o a relacionar-se melhor com o mundo, o faz mais intelectual. Esse era o tipo de trabalho que queria desenvolver, aquele na qual fui preparado por cinco anos e continuava me atualizando, mas confesso que este próprio preconceito vem de berço, por que muitos profissionais da minha área não fazem sequer questão do que realmente é a Psicologia, ainda estão presos aos padrões sociais e aos estereótipos. Qualquer pessoa pode fazer Psicologia, mas poucos se tornam Psicólogos, a própria ciência cuida dessa seleção vocacional. O ano estava se aproximando do fim, havia quase um ano que tinha me formado, meus pais de vez enquanto faziam uma pressãozinha para mim arrumar um emprego, falavam de algum concurso público, pra mim espalhar currículo, essas coisas. Amigos falavam pra levar currículo em algum lugar, pediam pra enviar currículos para seus e-mails, eu enviava, me cadastrava em alguns sites de vagas, mas na verdade não queria trabalhar naquele momento. Cheguei até a fazer prova para uns três concursos, mas muito desmotivado, uma pelas condições de trabalho muito precárias, falta muita responsabilidade do Ministério da Saúde para com o povo e o salário era muito ruim, uma média de mil e quinhentos reais, uma falta de respeito com a profissão, essa era a área da saúde no Brasil, os profissionais mais mal remunerados do país. Sabe, a gente não tem que ficar aguentando isso do governo, eles disponibilizam vagas como se estivem nos prestando um favor, como um profissional pode desenvolver um trabalho respeitável no Brasil, com resultados positivos reais, com mudanças significativas, com desenvolvimento, levando saúde à população? Alguém se sente no direito de cobrar ou exigir alguma coisa? Certo que eles são profissionais e estão ali por que escolheram se manter e recebem para isso, mesmo que mal, mas ao mesmo tempo temos que tentar perceber o como deve ser frustrante e revoltante tal situação. Eu não sei, talvez fosse uma fantasia minha, uma viagem, mas eu queria dar uma sacudida no Brasil, queria causar alguma coisa, queria mostrar que ainda há esperança, que devemos adotar um outro, caminho 137
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por que continuar assim não estava resolvendo nada, ao contrário, nossos problemas só estavam aumentando, e nós, filhos do Brasil, somos os mais prejudicados. Eu acreditava tanto no nosso país, no seu potencial, numa política mais justa, tinha dia que me perguntava o porquê de tanta crença, nunca tivemos nada que pudesse alimentar essa esperança, nem eu mesmo sabia, mas acreditava, como ainda acredito e vou continuar acreditando. Eu não tinha o costume de falar ou pedir por um mundo melhor, simplesmente agia por um mundo melhor, ações valem mais do que palavras, simples ações, um bom dia, um ato de compreensão, uma verdade, um compromisso social, a troca de ideias, um por favor, um obrigado, o respeito para com o próximo. No início de novembro fui despedido do trabalho, foi uma sensação ótima, de alívio, estava sendo muito difícil correr o risco de encontrar Catarina pelos corredores da faculdade, isto estava acabando comigo, agora pelo menos estaria longe daquele lugar. Com o acerto, o fundo de garantia, o seguro desemprego daria pra ficar um tempo tranquilo, procurando outra coisa, tentando tirar isso da cabeça, o que a princípio parecia impossível. Os primeiros dias em casa eram uma maravilha, quase toda semana eu dava um pulo lá na faculdade, ia encontrar com o Lagosta e os outros colegas, jogávamos uma sinuquinha, tomava uma gelada, sem esquecer daquele baseadinho suave. Era um companheirismo muito bom, nos finais de semana também estávamos sempre juntos no Burracharia, sempre interagindo com a galera, o Lagosta também era piolho do Burracharia e conhecia muita gente que frequentava lá, conhecia mais gente do que eu, ele também era um cabeção danado, nunca vi gostar de Cannabis igual ele. Com o fim do ano se aproximando, planejei uma estratégia para não ficar sem grana no carnaval, estava gastando demais, saindo quase todos os dias, meio abafado com aquela situação toda, querendo esquecer essa história de vez e com dinheiro na mão me achar em casa era difícil, mas o meu plano era dar entrada no seguro em dezembro, pois assim de qualquer forma em fevereiro teria caído no mínimo a primeira parcela antes do carnaval. Meu aniversário estava chegando, meados de dezembro, sempre gostei de fazer alguma coisinha no meu aniversário, é bom poder comemorar com os amigos e com as pessoas que você gosta essa irônica proximidade do fim. Fizemos uma confraternização entre amigos, compareceram quase todos os meus amigos, tomamos cerveja a noite toda, aquela bagunça digna de vinte e seis anos. A festa começou a tarde e meus amigos me fizeram uma surpresa, compraram um bolo e cantaram parabéns para mim no meio da festa, veio alguns 138
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colegas da faculdade e do trabalho também, começamos a beber umas três da tarde e fomos até as duas do domingo. Quase na ressaca ainda viajei com meus pais pra Sabará-MG, passar o natal em família, como a maioria da nossa família é de Sabará, sempre passávamos o natal lá, depois que meus avós da parte de mãe morreram, o natal nunca mais foi o mesmo. A família da minha mãe se dispersava um pouco, meu tio passava com a família dele, o outro com a família da mulher, então dividia muito. Minha avó da parte de pai, que também é de Sabará, sempre pegava salgado para fazer no natal, ficava numa correria o dia inteiro, não dava nem para preparar a ceia de natal direito, consequentemente os irmãos não se uniam para passar o natal na casa dela. Começamos a passar junto com a família do meu padrinho, era divertido, rolava uma cervejinha, tira gosto, e aquele papo agradável, mas num era nem de longe como passar o natal na casa dos pais da minha mãe. No ano novo, fizemos uma visita na casa da minha avó, jantamos por lá, numa conversa com meu primo, ele disse que a galera dele iria alugar uma casa no carnaval. Pra rapaziada ficar e fazer aquela bagunça, levar as mulheres, ficar mais à vontade e me convidou, mesmo gostando da ideia, pois já conhecia o carnaval de Sabará, não confirmei nada, pois eu e um amigo estávamos combinando de viajar no carnaval. Em janeiro já em Ipatinga, era época de projeto verão na Lagoa, um clube recreativo da região, como era sócio, a entrada era de graça e podia levar bebida e carne se fosse usar as churrasqueiras que o clube disponibiliza para os usuários, sempre rolavam shows de bandas consagradas. Iria ter um show dos Titãs, combinei com um amigo de ir, fui com meus pais, cedo, pra conseguir pegar uma churrasqueira, à tarde encontrei com esse amigo, o show sempre acontecia no fim da tarde, horário de verão, sol e clube cheio, tínhamos combinado de fumar um baseado lá, nos encontramos tomamos algumas cervejas e partimos para fumar um. Estávamos a caminho da trilha ecológica, quando encontramos dois mulherão, que nos perguntou onde tinha um lugar bom para fumar um, dissemos que poderia ir com a gente, que estávamos indo dar uma bola também e elas vieram. A mulher do meu amigo estava com a gente, fomos para a trilha, fumamos um junto com as mulheres, eu já estava louco, tinha bebido o dia inteiro e ainda fumei um baseado, pensa como fiquei, louco. Me apaixonei por uma delas, mas elas pareciam ser um casal, então nem tentei cantar, também por que essa mulher do meu amigo estava com uma colega que me interessava, muito gata. Quando voltamos, investi na amiga da mulher do meu brother, consegui pegar e fiquei a tarde inteira com ela, até o fim do show, nos divertimos demais, apesar de algumas vezes 139
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me agarrar a ela para não cair. Quando o show acabou, nos despedimos e fui procurar meus pais para irmos embora, quando os encontrei seguimos direto para o estacionamento, pois todo evento desse tipo na Lagoa sempre dava congestionamento, ao chegarmos no carro, não tinha como nem sair da vaga, ficamos ao lado do carro esperando descongestionar. Foi quando passou um carro com duas mulheres dentro, a que estava no banco do carona olhou demais, então fui atrás, os carros quase não andavam por causa do engarrafamento, me aproximei e comecei a abordagem. Depois de alguns minutos e muitas risadas, estava beijando a mulher, de vez enquanto a fila andava um pouquinho e eu ia acompanhando a pé, depois que já tínhamos andado uma boa distância, andando e beijando, resolvi voltar, pensando que meus pais já poderiam estar na fila de carros para ir embora. Voltei e ainda estavam no mesmo lugar, fui em direção às meninas de novo, andei mais alguns metros beijando e me despedi. Quando estava saindo, alguém que estava no carro de trás me gritou, olhei para trás e vi a menina na qual tinha passado a tarde inteira com ela, dentro carro, não sabia onde enfiar a cara. Ela me chamou sinalizando com a mão, cheguei e ela me deu um esculacho, disse que não esperava isso de mim, fazer o que numa situação dessa, pedi desculpas e sai calado pensando no azar que tive, tanto carro naquele lugar, tinha que estar atrás logo a amiga da mulher do meu brother. Pedro me ligou nesses dias, estava passando férias da faculdade em Ipatinga, combinamos de tomar uma cerveja e colocar o papo em dia, seguimos pra feira que acontece no estacionamento do estádio Ipatingão, fui de carona com ele, fomos fumando um baseadinho pra descontrair. Sentamos, pedimos uma cerveja e conversamos durante um bom tempo, depois de muita história e gargalhadas, fiquei satisfeito de saber que ele estava indo bem e que o problema com o crack ficava cada vez mais no seu passado. Num momento uma menina se aproximou da nossa mesa vendendo bombom, estávamos tomando cerveja, um bombom naquela hora não fazia parte do contexto. Ela insistiu um pouco e acabou me comovendo, comprei dois e pedi então, que ela entregasse para duas mulheres que estavam sentadas numa mesa próxima à nossa. A menina ficou meio envergonhada, talvez por não saber qual poderia ser a reação das moças, ou sei lá porque, mas acabou entregando, com uma condição, que não precisasse dizer que nós estávamos enviando, acho que era um pouco tímida. Pra mim não importava, pois estava comprando mais para ajudá-la mesmo, ela dirigiuse à mesa e entregou os dois bombons às duas moças e continuou oferecendo bombons para as pessoas. As moças que receberam os bombons demonstraram uma grande curiosidade em saber quem havia mandado, no início riram muito e depois começaram a olhar em volta, 140
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procurando alguém suspeito de tal ação. Para nós não tinha nem como disfarçar, acho que nas proximidades só havia nós dois desacompanhados, logo elas desconfiaram, mas ficamos na nossa, continuamos o bate papo. Depois de algum tempo, já havia chamado Pedro para irmos até as moças, mas ele não tinha agradado muito de uma delas, até que elas se levantaram para ir embora, fizeram aquela cena para ver se a gente se aproximava e nada. Foram andando bem lentamente, olharam para trás e ninguém estava caminhando em sua direção, quando perceberam pararam, como se fosse a última tentativa, eu olhando não resisti e fui de encontro a elas. Me aproximei cumprimentei as duas, elas perguntaram se eu tinha mandado os bombons, e disse que sim, me agradeceram e perguntaram por que não fui até elas me apresentar, inventei uma desculpa, falei que meu amigo tinha namorada e que era meio sistemático, mas que queria pegar o número dela (nessa hora já estava investindo naquela que mais me interessava) para sairmos depois, ela acabou passando, nos despedimos e ficou por isso. Voltei pra mesa, fiz aquela brincadeira com o Pedro, dizendo que a amiga dela tinha se interessado por ele, mas havia dito que ele não gostava de mulher, brincando com ele. Contei a minha abordagem, que elas disseram que ficaram loucas pra saber quem havia mandado os bombons e que faltou ela se jogar pra cima de mim, ela não era uma mulher muito bonita, mas tinha sua beleza. Cabelo curto, uma bunda enorme, empinada e era uma mulher mais madura, quis muito me relacionar com ela, acho que o fator que mais pesou foi este fato de ser uma mulher mais madura, na faixa dos trinta e cinco. Antes de irmos embora ficamos conversando, tomando uma, fumando um cigarro, sabe, a gente havia se tornado quase que amigos e nosso papo era muito espontâneo, sobre qualquer assunto. Mas quando percebia uma brecha, tocava no assunto do crack, não queria ser inconveniente, fazia parte da minha intervenção, a tomada de consciência daquela época, lembrar dos momentos difíceis, pra reforçar e ajudá-lo ficar longe, tocava no assunto não por desconfiança dele, mas como um método preventivo. No domingo, três dias depois, liguei pra Isabela e chamei-a pra tomar uma cerveja, sempre gostei de sair no domingo, claro que pra curtir um programa mais leve, tomar umas três cervejas em companhia de uma mulher gostosa, agradável e quem sabe fazer aquele sexo sujo pra começar a semana leve. Claro que tinha a intenção de acabar a noite no motel com ela, mas a vibe tinha que rolar, tomei um banho e fui buscá-la em Coronel Fabriciano, uma cidade vizinha, parte da região do vale do aço, ela me explicou onde morava e disse que quando chegasse no local até onde eu sabia chegar, que ligasse pra ela que iria a meu 141
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encontro. No caminho rolou aquele baseadinho, ao som de um reggae de primeira, cheguei lá e liguei pra ela, depois de uns quinze minutos ela apareceu e fomos para um bar em Fabriciano mesmo. O bar era bem tranquilo, pedi uma cerveja e conversamos sobre o dia da feira, do bombom, ela realmente era uma pessoa muito agradável, depois da primeira garrafa, pedi mais uma e uma dose de caipirinha, a caipirinha é uma bebida diferenciada, brasileira, afrodisíaca. Dividimos a caipirinha e tomamos mais uma, nessa segunda caipirinha já estava igual namorado, agarradinho, dando aqueles beijinhos carinhosos, a vibe havia se criado espontaneamente. Tomamos mais uma garrafa de cerveja e fomos embora, no meio do caminho perguntei se ali por perto tinha algum lugar seguro onde a gente podia dar mais uma namoradinha antes de deixá-la em casa, ela disse que havia uma rua ali perto e foi me guiando. Parei na rua do clube Casa de Campo, é lógico que não estava a fim de ficar com ela na rua, mas preferi esperar um pretexto pra sair dali. Começamos a nos beijar, dar aquele amasso gostoso e acabou parando um carro próximo à gente, era o pretexto, convidei-a ir para um motel, ela aceitou e fomos, perguntei sobre algum e segui para o que ela mesmo indicou. Era tudo que eu queria, espaço, um pouco mais de conforto, pois queria consumi-la inteira, estava em tempo de estourar e o sexo com ela foi uma loucura, de ponta à ponta daquele quarto, que delícia, aquela bunda gigante de quatro e aquele jeitinho de submissa, deixando eu colocar aonde quisesse. Mas o que eu mais gostei foram seus gemidos, tão gostoso, me enchia de tesão. A experiência com ela foi ótima, nunca fui um cara de falar muito na cama, sempre deixei que meu corpo falasse por mim, ela também se entregou completamente, essa era a vibe, nossos corpos se comunicavam, se enroscavam, roçavam um no outro e neste momento a fala se faz desnecessária. O mês de janeiro estava perto do fim e eu começava a esquecer toda aquela história com a Catarina, as vezes quando eu fumava um baseado sozinho e ficava pensando na minha vida, nos meus objetivos, minhas atitudes, fazendo uma auto avaliação, em algum desses momentos vinha à tona, como um incômodo, mas estava me esforçando pra não tentar pensar nisso. Meu amigo Gabriel passava aqui em casa quase todos os dias pra gente combinar sobre o carnaval, altos planos, mais muito em cima da hora, ele estava louco de vontade de passar o carnaval em Ouro Preto, mas o carnaval já estava em cima e a gente não tinha ninguém conhecido lá, que estudava lá, de alguma república, e acabou que esse lance de Ouro Preto furou. Convidei-o para passar em Sabará, já que minha vó morava lá, não precisaria 142
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programar nada, podia ligar até um dia antes e dizer que estávamos indo, ele não ficou muito pilhado não, até eu começar a contar algumas histórias minhas e do carnaval de Sabará. Contei quando sai com meu primo num sábado de carnaval, devia ser umas oito da noite, descemos a rua dos boys, Sabará estava lotada, toda aquela gente fazendo a maior bagunça, enquanto descíamos para comprar uma cerveja uma mulher ficou me olhando, ela estava abraça da com um cara e eu retribuindo o olhar quase comendo-a com olhos, passamos por ela e compramos a gelada. Ela era loira, magrinha, gostosinha demais, chamei meu primo pra parar próximo à mina, pra ver qual era a dela, quando chegamos, ela passou os braços no pescoço do cara deixando-o de costas e ficou olhando e sorrindo pra mim, sem entender, continuei ali, cheio de tesão pela loira. Ainda trocando olhares maliciosos, ela fez um sinal com o dedo indicador me chamando, nem pensei, comecei a andar em sua direção, ela se soltou do cara, deu uns três passos em minha direção e chegou me beijando e eu quase engolindo ela do lado do cara, depois de um beijo longo e safado a soltei, de um lado meu primo me esperando, do outro o cara esperando ela. Antes de qualquer palavra ela me perguntou quem era meu amigo, disse que era meu primo e perguntei se queria beijá-lo também, ela se calou e segui dizendo que beijasse o menino, que era da família, olhei pra ele, o chamei e disse: “pode beijar a menina”, ele olhou pro cara (ao lado) e reforcei, “pode ir lá”, dando aquele empurrãozinho. Meu primo fez igual, chegou beijando, o cara continuou parado ao lado como se esperasse pela menina, quando meu primo me chamou falando que a menina estava me querendo de novo, voltei e comecei a beijá-la novamente. O cara se manifestou, pegou-a pelo braço querendo levar ela embora, dizendo: “ah não, de novo não”, falei pra ele se acalmar e perguntei se ela queria ir com o cara e ela disse que não, voltei a beijá-la ignorando o cara, quando em fim parei pra ela pegar um fôlego, olhei e o cara ainda estava lá esperando pela loira, desconsolado, quase chorando. Nessa hora bateu aquele sentimento de compaixão, uma dó, o cara ainda estava esperando a menina na esperança de que ela ainda fosse voltar pros braços dele, não aguentei e falei pra ela ir com o cara. Quem disse que ela queria, agarrou meu pescoço voltou a me beijar e o cara esperando, dei aquele beijo como quem despede, olhei nos seus olhos e falei pra ela ir com ele, pois tinha acabado de chegar e não iria ficar com ela a noite toda, queria pegar mais mulheres, só depois de insistir um pouco com uma feição mais séria a loira foi embora com o cara, contrariada. Não queria que ela fosse, era gostosinha demais e já tinha planos pra ela, mas senti pena do cara, ficar esperando? 143
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Contei também da vez que vi, eu e mais uma dezena de pessoas, um cara comendo a mulher atrás da igreja perto da casa da minha vó, tinha um monte de gente em volta do casal, a menos de quatro metros assistindo e o cara mandando vara. A mulher empinando aquele rabo com a calça na altura do joelho, bonita e gostosa demais, quando o cara terminou eu fiquei louco para pegar ela também, fui atrás dela, puxei um papo e ela me falou que estava com muita fome. Peguei ela pela mão e disse que ia pagar um tropeiro pra ela, desci as ruas de pedra sabão puxando ela, já pensando numa estratégia. Passamos pela primeira barraca de tropeiro e continuei puxando-a, quando passamos pela segunda e não paramos, ela parou e me perguntou onde eu estava levando-a, eu disse que iria passar em casa pra pegar o dinheiro, ela percebeu minha má intenção e soltou minha mão e voltou pra trás. Naquela hora eu estava sem nenhum real no bolso, estava tentando levá-la pra rua do hotel pra ver se me dava bem, mas não colocou, quando vi ela mais o cara, estava indo embora pra casa da minha avó e tinha aquele aglomerado atrás da igreja, foi assim, coisa de outro mundo, a cara de pau dos dois e a plateia pareceu excitá-la. Quase nem dormi quando voltei pra casa, se eu tivesse pelo menos um dinheiro pra pagar um tropeiro pra ela, iria comprar o tropeiro, tirar o bife e falar com ela, o bife você só vai comer depois que der pra mim, o tropeiro você pode comer à vontade, mas o bife só depois... brincadeira. Quando a gente está bêbado fazemos cada loucura, o cara tinha acabado de comer a mulher, mas ela era tão sensual e tão safada que acredito que não teve nenhum homem que viu aquela cena e não ficou com inveja daquele cara, desgraçado. Não comi, mas tentei! O carnaval estava no seu primeiro dia, sexta-feira, e lá estávamos nós em Sabará, eu e o Gabriel, meus pais iam passar o carnaval na fazenda do meu tio, com a família da minha mãe, pegamos uma carona até Sabará, saímos na sexta à tarde, passamos na casa do Gabriel e o pegamos, ele se despediu do pai dele e pegamos estrada, ansiosos e animados pra curtir o carnaval. Em Sabará a tradição do carnaval é os blocos caricatos, na qual os homens da cidade se vestem de mulher e fazem a maior bagunça desfilando pelas ruas do centro histórico da cidade. Orientei o Gabriel a levar uma saia ou vestido, pois sempre quando passo o carnaval em Sabará saio com a galera no bloco caricato do pessoal de perto da casa da minha vó, é muito bom, animado, eu saio desde novo, com meu pai, tios, primos, amigos, meu avô sempre saía, é diversão ao máximo. Como chegamos na sexta a noite, dava pra curtir o primeiro dia de festa, fomos entrando na casa da minha vó, tomando um banho, arrumando e descendo pra rua, a casa da minha vó era no centro, praticamente dentro do carnaval, já descemos compramos uma lata de cerveja e fui detalhando as coisas pro Gabriel. 144
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Arrumamos um ponto estratégico e ficamos curtindo a festa, como era o primeiro dia e não tinha uma programação especial, a cidade não estava muito cheia, tinha mais as pessoas de Sabará mesmo, mas estava bacana a festa. Encontramos com meu primo, louco já, só de toalha na cintura, pois na sexta tem o bloco do banho, o pessoal sai de roupão e toalha desfilando na rua, e meu primo veio com uma notícia boa, que eles e os amigos dele haviam alugado a casa pra passar o carnaval. A galera dele vinha fazendo isso todo carnaval, o pessoal do Tapppa (bloco de carnaval da galera do meu primo), falando que eles estavam com contatos da mulherada de BH (Belo Horizonte), que ia ficar bom demais, que a gente ia participar com eles. A empolgação pra curtir um carnaval de responsa estava lá nas alturas, a muito tempo eu e o Gabriel queríamos fazer uma viagem assim juntos, meu primo saiu rodando e a gente ficou lá, as mulheres passavam a gente mexia, brincava. Até que passou uma amiga que já tinha dado uns beijos nela e me deu aquele beijo, o Gabriel ficou louco, ele num gosta de ficar pra trás de jeito nenhum, mas a gente não estava bêbado, estava mais fazendo o reconhecimento da área, o sábado a noite que ia ser quente, tomamos algumas cervejas fazendo planos para os dias seguintes, esse carnaval prometia. No sábado de manhã acordei com o telefone do Gabriel tocando, parecia ser muito cedo, fiquei um pouco alerta, era o tio dele, estava dizendo que ele tinha quer ir embora, pois seu pai estava passando mal. Acho que ele pressentiu algo a mais, pediu que pusesse seu primo no telefone, quando seu primo pegou o telefone, disse a mesma coisa, neste momento estava esperando que não fosse nada grave, Gabriel insistiu com seu primo, querendo a verdade, pedindo para falar o que tinha acontecido. O primo dele acabou dizendo o que naquela hora ninguém quer escutar, eu estava deitado na cama ao lado, de costas para ele, de repente escutei aquele choro que começou baixo e engasgado, então eu soube qual era a notícia. Me senti paralisado, um vazio me preencheu e por um lapso curto, que por sinal pareceu durar um longo tempo, foi como se eu tivesse saído de mim, em busca de uma resposta pra tentar amenizar a dor do meu amigo. Mas em mim não havia respostas para lidar com tal situação, então me levantei e sentei ao seu lado e dei um abraço de conforto enquanto ele ainda chorava, senti que nada que pudesse fazer poderia aliviar sua dor e me mantive calado, triste, confortando-o com um abraço amigo. Nesse abraço senti o poder de um sentimento verdadeiro, um sentimento solidário, um abraço que só o meu amigo entenderia o valor.
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O pai dele tinha uma insuficiência respiratória e aparentemente estava muito bem, no dia anterior, quando Gabriel se despediu dele, parecia estar tudo bem e infelizmente acontece essa fatalidade, meus pais me ligaram pouco tempo depois dizendo que iriam passar na casa da minha vó pra pegar a gente e assim voltarmos pra Ipatinga, despedir do pai do Gabriel. A viagem foi tensa, um clima de tristeza acompanhado por um silêncio ensurdecedor, duzentos quilômetros sem abrir a boca, era como se estivesse de mãos atadas. Acho que o silêncio diz mais do que muitas palavras e apesar de ter um tom assustador o silêncio é confortante, é a princípio um sinal de respeito e acima de tudo demonstração de que também estava sentindo a perda do meu amigo. Passei muitos dias pensando o porquê, me senti mal, não sei dizer pelo que, mas tínhamos viajado juntos e nossas intenções eram as melhores, criamos uma expectativa, mas penso que talvez não éramos para estar ali. Vejo como se fosse por um bem maior, uma intervenção divina, só tal coisa poderia tirar a gente dali, provavelmente não haveria nada que fizesse a gente sair de Sabará no carnaval, é como dizem, Deus escreve por linhas tortas. O carnaval havia se passado e o que antes era sinônimo de alegria e histórias mirabolantes, este ano se tornou dor, mas a vida tinha que continuar e eu estaria lá caso o Gabriel precisasse de mim, de alguém para conversar ou até alguém para ficar calado ao seu lado. Tentava apoiar como podia, principalmente respeitando a sua dor e seu momento e sabia também do espaço que ele precisava, passar algum tempo sozinho, pensar, buscar uma auto compreensão do fato. No início de março comecei a trabalhar, estava fora da minha área, trabalhando com documentação numa empresa parceira da Cemig (Companhia Energética de Minas Gerais), essa empresa prestava serviço num programa do governo, onde se levava energia às comunidades e moradores rurais. Logo me enturmei com o pessoal, o clima era ótimo, a maioria era jovem e o futebol descontraia e firmava os laços nas sextas depois do expediente, apesar de em alguns casos mesmo que com rivalidade. O salário não era tanto, mas já era quase o dobro do que recebia antes na faculdade e o serviço também era mais tranquilo, era muito distinto do anterior em todos os aspectos. Apesar das expectativas dos meus pais e dos amigos de me ver atuando na minha área, ainda não era minha vontade, por vários aspectos pessoais, nas quais me apoiava fortemente na minha ideia de decadência da Psicologia e na minha não aceitação de um sistema ditador, que menospreza o ser humano e tudo que o envolve. Assim estaria ganhando tempo até encontrar uma saída para tal situação, encontrar algo que eu pudesse fazer de coração, algo que pudesse causar mais do que um relacionamento profissional, uma mudança. Enquanto isso a minha avaliação continuava, até 146
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onde eu poderia chegar, até quando iria conseguir levar meus ideais adiante ou se entregar a essa monopolização? Seria questão de tempo? Não sabia. Continuava encontrando com a Isabela, não com tanta assiduidade, ela me ligava quase todos os dias no meu horário de almoço, alguns dias a atendia, outros não, sempre quando saíamos nossa rotina era sempre a mesma, tomava algumas cervejas em algum bar e terminávamos a noite na cama. A gente se curtia e deixava rolar, mesmo dando todos os indícios que não queria um relacionamento sério, apenas compartilhar alguns bons momentos como fazíamos, não sei o que ela pensava disso tudo, mas acho que no fundo a esperança não a alimentava, por algum motivo, talvez por ser um pouco mais experiente, sei lá, no fundo também, lá no fundo, o sentimento sempre impõe suas dúvidas. Um amigo tinha terminado o namoro de alguns anos, ele estava bem, consciente do termino, me ligou e chamou para tomar uma, saímos sentamos em um bar e conversamos por horas e nesse assunto rolou de marcar com a Isabela e pedir para ela arrumar uma colega pra esse brother. No dia seguinte saímos, nós quatro, a Isabela havia levado uma amiga e logo os dois se entenderam, no fim da noite cada um procurou seu canto, eu com a Isabela e meu amigo com sua amiga. Depois disso continuei respeitando o tempo dele, não adiantava ficar arrumando mulher pro brother, a gente sabe que o cara fica meio sentido e a iniciativa tinha que partir dele, nunca gostei de influenciar ninguém a um ato ou comportamento, cada um sabe o tamanho da sua dose. Tinha um amigo que visitava de vez enquanto, aprendia muita coisa com ele, era mais velho, na casa alta dos trinta, ele gostava de fumar um baseado e era mais caseiro. Às vezes ia na casa dele, a gente fumava um e fazia um som, geralmente ele tocava guitarra e eu ficava mais viajando vendo ele tocar, depois começou a tentar me ensinar a tocar contra-baixo, fazia a marcação para ele, coisa simples, notas repetitivas, só mesmo pra participar. Ele sempre me incentivava a aprender a tocar e dava resultado, pois o meu gosto por instrumentos musicais foram crescendo, mesmo sem fazer aula, ou comprar algum instrumento, a vontade ficou, ficou para planos futuros. Ele tinha algo que o inspirava a fazer as coisas por ele, restaurou um case de guitarra, lubrificava o seu carro, lavava, cuidava, restaurou as caixas de som que estavam velhas, fazia artesanatos, tinha um lado artístico forte que me despertou um outro olhar das coisas, a gente tinha muita coisa em comum, então era bacana passar um tempo com ele, discutindo filosofias, falando sobre rock n‟ roll, mulheres, tudo. Um certo dia falei do meu interesse em percussão, ele gostou muito, colocou pilha pra mim comprar madeirite pra gente fazer um Cajon, ele não conseguiu me esperar, acabou fazendo um Cajon sozinho, mas 147
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os horários de serviço dele dificultavam muito, fazia escala em outras cidades, mas naquele Cajon que ele fez, tiramos altos sons enquanto gastávamos nossa onda. Ele acabou se mudando de Ipatinga, por conta do trabalho, acabou fazendo muita falta, era um amigo e tanto, tenho que fazer uma forcinha pra visitar ele e colocar o papo em dia. A primeira vez que sai com um colega de trabalho, foi pra assistir um jogo do galo, esse colega, o Leitão, era atleticano doente e era o único do escritório que fumava cigarro, a gente tinha isso em comum e foi mais pelo cigarro que a gente ficou chegado. Ele foi um dos primeiros a me acolher também no trabalho, baseado nisso nosso companheirismo começou a se formar, fomos a um bar em Coronel Fabriciano, bar do Curió e lá assistimos uma vitória do galo. Logo comecei a sair com os outros colegas do escritório, pois o Leitão namorava e curtir uma noitada era praticamente impossível, tinha uma galera que gostava de ir num pagode que rolava num bar no bairro Canaã, comecei a frequentar com o pessoal, tinha uma mulherada louca que frequentava lá, o que me animava a curtir o pagode, que nunca foi meu forte. Numa dessas idas ao pagode, fui com mais dois colegas de trabalho, um regulava idade comigo, vinte oito e o outro era um pouco mais velho na casa dos quarenta, separado, de BH, solteirão em Ipatinga. Chegamos no pagode e percebemos que tinha uma mulher dando bola pra esse amigo de quarenta, mas ele não estava muito empolgado, a mulher num era grandes coisas, mas coloquei aquela pilha pra ele pegar ela e foi o que aconteceu. Ele se aproximou e trocou alguns beijos com a vítima, mas a mulher estava indo embora e ele voltou e se sentou conosco, aquilo pareceu um empurrão, o cara ganhou confiança e quando assustei ele estava pegando uma novinha de uns dezoito anos, gostosa demais, quando vi, assustei e a reação do nosso outro colega foi quase que a mesma que tive, não estávamos acreditando naquilo, nessa hora a auto estima do cara estava lá nas alturas. Saímos de lá e fomos para um outro bar de nível melhor, com mulheres mais interessantes, sentamos no bar e havia uma mesa ao lado com algumas mulheres, ainda no primeiro chop, esse colega se levantou e chegou numa mulher, mas numa mulher, fora de série. Uma loira meio coroinha, linda, antes do terceiro chop ele já estava beijando a mulher, eu e meu colega olhamos um para o outro sem acreditar, pedimos a conta e viemos embora, o cara tinha ganhado a noite, no outro dia no serviço ninguém aguentava ele e pra piorar ele tinha nós como testemunhas.
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As coisas estavam começando a melhorar, quando recebi uma ligação de Catarina, estava em casa numa boa e meu telefone tocou, quando olhei era ela, atendi e ela disse que estava precisando conversar comigo, naquela hora já sabia que era algo sério. Desliguei e fui me encontrar com ela, tomei aquele banho que pareceu ter durado duas horas, só pensando no que ela tinha pra me dizer, com o coração a mil por hora, vesti uma roupa, entrei no carro e respirei fundo, já estava prevendo a conversa, resolvi fumar um baseado pra mergulhar no assunto e fui. Parei no lugar que tínhamos combinado e esperei-a chegar, ela entrou no carro muito sem graça e começou a falar, perguntou como eu estava, aquele quebra gelo antes de entrar na questão. Falou que quando me disse que o filho não era meu, estava querendo me proteger, que ela tinha acabado com a vida dela e que não queria acabar com a minha, pois ela gostava muito de mim e não queria me prejudicar, que nem sabia se tinha feito a coisa certa, que os pais dela estavam cobrando uma posição do pai da criança e que eu era o pai. Naquele momento, mesmo prevendo essa situação, senti um baque tão grande, foi como se por um instante tudo ao meu lado estivesse se desmoronado, como se saísse de mim, ido para um lugar todo escuro, silencioso e voltado. Fiquei sem saber o que dizer, sem fala, ela continuou dizendo que tinha algumas fotos dele no seu celular e me mostrou, peguei o celular e fui vendo ainda baqueado, parecia que estava me vendo, era a minha cara, senti uma emoção tão grande, indescritível, meus olhos se encheram de lágrimas, eu era pai. Sempre fui louco pra ser pai de um filho homem e ali estava, fiquei sem palavras, ansioso, com uma emoção estranha, uma mistura de medo, felicidade, culpa, um turbilhão de sensações, tentei me controlar. Catarina continuou falando que estava difícil, pois o pai dela ficava jogando na cara dela que o menino gastava muito e que não tinha condições de ficar arcando com as despesas sozinho e me perguntou se eu podia ajudá-la, nada mais justo, concordei em ajudar. Procurei não demonstrar algum sentimento, não sei por que, talvez pelo fato de ainda estar digerindo as palavras, teria que pensar, tentar entender o que estava acontecendo, estava em choque, passado, depois de conversarmos sobre sei lá o que, me despedi dela, liguei o carro e sai daquela rua, parei numa praça que tinha próximo ali. Acendi um cigarro e comecei a pensar, estava tremendo, louco, sem saber o que fazer, tentava pensar em alguma coisa, mas não conseguia me concentrar em nada, um milhão de coisas passavam pela minha cabeça. Naquela noite nem dormi, a situação me causou muito medo, não esperava que isso poderia acontecer comigo, logo eu que sempre fui focado nos meus interesses, que loucura, o que estava acontecendo, eu estava na cama, com vontade de sair correndo, de gritar, de me esconder. 149
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O desespero havia tomado conta de mim, não conseguia nem sequer pensar o que fazer, havia ficado inerte, sem ação ou pensamento e tudo me soou estranho, a final, por que Catarina tinha feito isso comigo, no meio dessa história tinha algo muito mal contado e eu tinha que me manter consciente pra buscar minhas respostas, uma compreensão, mas era impossível manter o controle, estava abalado, emocionalmente frágil. Tentei levar os dias, ser pai me assustava muito, principalmente o fato de ter sido antes da hora, Catarina se converteu novamente de passado para presente em minha vida e não estava aceitando bem essa transição, já havia sido muito difícil esquecer tudo, ou tentar esquecer e agora de repente ela surgira novamente. No fim de semana saí como um cachorro no cio, descontrolado, tomei todas e não havia conseguido arrumar ninguém, resolvi antes de ir embora pra casa passar no bar do Elias, era um bar no bairro Veneza perto da rua dos motéis, lá ficavam um monte de prostitutas, dava de tudo lá, já havia passado por lá algumas vezes com os colegas, então sabia que lá poderia achar alguma mulher a fim de sexo. Passei bem devagar em frente ao bar, vi uma mulher sentada numa mesa sozinha, deveria ser umas três da manhã, parei imediatamente, estacionei o carro e me aproximei. Perguntei se estava acompanhada ou esperando alguém e ela disse que não, fui logo sentando e puxando papo, nem lembro sobre o que conversamos, só sei que após trinta minutos estávamos na cama do motel, se agarrando. Era uma mulher muito sexy, pele clara, cabelos pretos grandes (na cintura) com um corpão, bundão, cintura fina, seios fartos e naturais, não estava nem acreditando. Começamos a nos enroscar e ela ficou só de calcinha e sutiã, tirou minha roupa e começou a me chupar, eu estava com muito tesão, liguei a câmera do meu celular, a mulher fazia até pose enquanto me chupava, parecia estar bêbada, mas não muito. Tirei a roupa dela, fui por cima e comecei a transar com ela enquanto lambia seu pescoço e olhava nos seus olhos, não demorou muito e ela saiu debaixo de mim, colocou sua cabeça pra fora da cama e começou a vomitar, na hora pensei, era bom demais pra ser verdade, deitei pro lado meio decepcionado, lamentando, e ela vomitava. Ela estava de quatro na cama, só com a cabeça pra fora, vomitando sem parar, quando olhei e vi aquele rabão empinado de quatro, não resisti, me posicionei e entrei com tudo dentro dela novamente, ela vomitando e eu metendo, ela parou e continuamos a transa, a morena havia voltado com um fogo, ficamos transando, entre um cigarro e outro, até umas onze da manhã. Ao sairmos do motel perguntei onde ela morava, bateu aquela vontade de ir pra casa, de largar ela ali mesmo, um arrependimento, enquanto seguíamos a caminho do Caravela,s ela 150
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ficou um pouco diferente, talvez percebeu minha feição arrependida, sei lá. Quase chegando lá, falou que tinha que passar pra comprar comida pras crianças, pediu pra parar num restaurante que ia comprar marmitex, parei num restaurante e ela comprou dois marmitex e pediu que a deixasse no Canaã. Levei-a pro Canaã e deixei-a próximo da esquina de uma rua (por pedido dela), fiquei com a impressão de que ela poderia ser casada, não sei, o que me intrigou foi o fato dela não querer ir embora do motel, fui elogiar a nuca dela e ela cismou querendo que comesse o rabo dela, beijando e olhando sua nuca. Mas se eu começasse a pegar aquela morena por trás onze da manhã, ia chegar em casa três horas da tarde, não tinha como, vontade num faltou não, mas o pessoal lá de casa ia pirar, minha mãe então, nem se fala. Às vezes acontece algumas coisas que não tem como evitar, fiquei até meio dia com a mulher no motel, chego em casa meio dia os meus pais já ficam chateados, deixei de tirar mais uma, por que vim embora pensando neles, também antes de meio dia não tinha como chegar. Se fosse olhar sempre o lado dos meus pais eu não tinha nem saído de casa, então assim, por todas as vezes que eu chegue tarde em casa, eu sempre estava pensando nos meus pais, é claro que sempre buscava o meu caminho, mas meus pais sempre tiveram esse tipo de participação nas minhas escolhas, nunca deixei de pensar neles. No trabalho havia um colega que tinha uma filha e não estava junto com a mãe, mas já havia namorado com ela, tentou continuar depois que a filha nasceu, mas não deu certo e por uma ironia do destino a gente tinha ficado muito próximo. Saíamos pra festas juntos e tinha mais alguns colegas que fechavam com a gente, a gente formou uma panela grande, catando essas festas tudo da região. Uma vez eu e esse amigo, o L10, fomos numa festa em Santana do Paraiso, um distrito daqui da região, como a gente gostava muito de futebol, ele já jogou bola profissionalmente e eu estava brincando com um time veterano todo sábado à tarde, a gente se chamava de jogador. Estávamos parados tomando uma cerveja, vendo o movimento, aí passou duas meninas lá de Frabi (Coronel Fabriciano) colega dele, elas o cumprimentou e eu fui em cima e comecei a brincar com elas, elas gostaram, fomos conversando bobeira e quando olhei o L10 já estava pegando, aí agarrei a outra e ficamos a noite toda juntos. Só que nesta mesma festa tinha umas meninas que eu conhecia lá também, e num momento quando as meninas que estavam com a gente foram ao banheiro, as minhas amigas vieram conversar, dar um oi, e as meninas voltaram do banheiro e pegaram as meninas lá conversando com nós, elas se despediram de mim e saíram, a menina que estava comigo ficou meio com raiva. Na hora de ir embora, a mulher do L10 estava louca de tesão, pulando em 151
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cima dele, ele dirigindo e beijando, pegando no pau dele, e a minha estava descontando a raiva, fria igual geladeira, eu já estava pirando na mulher do L10, perguntei quem queria ir pro motel e a gata do L10 levantou a mão na hora, mas a minha empacou o lance. A minha nem era tão bonita, agora a que estava com o L10 era uma loira, gostosa pra caramba e estava num clima sem igual, mesmo assim não conseguiu motivar a menina que estava comigo, preferi nem insistir, senão corria o risco de passar raiva no motel, não sei por que ela não entrou no clima, talvez ela não estivesse a fim de transar comigo, pode ser por outro motivo qualquer também, não sei, foi um banho de água fria, nem o L10 comeu a loira depois. Meu pai jogou uma boa parte da sua vida num time daqui de Ipatinga, Siderúrgica, começou no amador e está jogando lá até hoje, só que agora no veteranos, galo velho. O pessoal do time queria dar uma renovada, pois o time estava bem velho e perdendo muito, por conta de jogar com outros times mais novos, aí eles convidaram a gente que é mais novo e filhos de alguns jogadores. Acabei entrando com mais dois, depois foram chegando outros, só filhos dos jogadores, nosso time melhorou demais e com outros caras que chegaram nosso time virou um timaço, nosso atacante era matador, mas eu num conseguia jogar meu futebol cem por cento. Jogava algumas partidas boas, dando assistência, armando jogadas, mas num conseguia acertar o pé, finalizava muito mal, sempre, e eu sabia que era psicológico, mas não conseguia concentrar na hora da finalização e finalizava mal, não tinha jeito. A partir de então comecei a perceber que podia aprender alguma coisa com o futebol, já tinha percebido que ele funcionava como um termômetro da minha situação emocional, era onde eu podia perceber uma possível melhora. Bastava eu me concentrar mais no futebol, que consequentemente estaria conseguindo concentrar mais na minha vida particular, por que eu estava desenfreado, saindo demais, bebendo muito, e esquecendo de pensar na condição de pai, “eu era pai!”, tinha muita coisa a pensar. Era mais fácil dizer do que fazer, os únicos momentos em que conseguia pensar nessa situação era quando eu fumava um baseado sozinho, saia de casa, fumava, parava em algum lugar com um movimento bacana, tomava uma lata, fumava um cigarro, ou parava num lugar tranquilo e nessa hora eu pensava, mas ainda estava muito confuso, acredito por também existir uma grande vontade de fugir disso. O que me atrapalhava bastante era o fato de ir jogar bola só de ressaca, toda sexta estava solto pela noite Ipatinguense, fumando e bebendo de segunda a segunda, não tinha condições de jogar bem, mas continuava na zueira com a galera do trampo, quase não fumava Cannabis quando estava junto com os caras, por que a maioria era careta, então a gente bebia, e bebia muito. 152
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Nas férias do meio de ano, Ipatinga lotava, o pessoal que estuda fora tudo vinha passar férias de faculdade na casa dos pais, geralmente a maioria dessa galera que volta são mulheres, para a nossa alegria, e os bares da cidade ficavam cheios de mulher. Na terça-feira rolava um bar aqui que fica com um movimento muito bom e nessa época melhor ainda, então fui um dia lá com um colega, estava lotado, muita mulher, saquei uma mulher dando mole pra mim, já era no meio da noite, deixei rolar. Mais pro final da noite ela se aproximou, parou muito próximo de mim, quase encostando, aproveitei a deixa pra puxar conversa, apresentei meu colega e começamos a conversar, ela estava com uma amiga, mas esse colega que estava comigo, passava por um momento difícil, separado, sem ver a filha, acho que por iniciativa dele próprio. Ninguém do serviço entendia essa decisão dele, eu também não, talvez entendesse por partes, ele não havia me contado nada e não tinha que formar uma opinião, se assim o fizesse estaria indo contra meus princípios. Por esse colega estar passando por uma situação delicada, ele não estava muito bem, pra mim era perceptível, talvez por conviver com ele fora do ambiente de trabalho, é difícil manter uma postura que não seja aquela na qual você não se sinta à vontade. Acabei pegando a mulher e ele não pegou a amiga dela, nem sei por que, nem se ele chegou, mas eu me dei bem, era boa demais, cabelinho curtinho, um pouco alta e eu só no beijinho, até a mulher me cantar na cara dura. Fui parar no apartamento da mulher, devia ser da minha idade, no caminho deixei a colega dela em casa primeiro e a menina estava louca pra dar também, ligando pra um cara de dentro do carro, falando que queria ver ele, pra passar lá na casa dela e pegar ela, que já estava chegando em casa, pra ir rápido e eu vendo aquilo. Deixamos ela em casa e a menina me chamou pro apartamento dela, perguntei se morava sozinha e ela disse que morava com a irmã, mas que a irmã não estava, iria dormir na casa do namorado. Fui pro apartamento da menina, chegamos lá e rolou um assunto que não me recordo, sei que ela disse que era noiva, já fiquei preocupado, então ela falou que o noivo estava trabalhando, perguntei se ele morava lá com ela, sei lá, era pior a situação de estar ali, na casa do cara com a noiva dele, ela disse que ele não morava lá, mas sinceramente depois que eu já estava lá dentro a história é outra. A mulher também, se tivesse me falado antes, levaria ela pra um motel, mas quem está na chuva tem que molhar, fomos pra cama dela, de casal, começamos a nos beijar e quando comecei a tirar a roupa dela, ela pediu que esperasse, se levantou e entrou no banheiro deixando a porta entreaberta. Quando ela abriu a porta, veio vestida com uma lingerie novinha, um espartilho completo de oncinha, ela num havia tirado nem a etiqueta. Fiquei louco, toda sensual, dançando, pulou na cama e começou a soprar meu 153
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rosto, me despindo e soprando meu corpo, transamos uma mistura de sexo animal com sensualidade, quase poético, e depois de mais duas ela pediu leitinho. Fui embora por que já estava lá há um tempão, sei lá, saí e fui pra casa pensando o que noivo dela tinha feito, pra ela descontar desse jeito, ela me queria na casa dela, pra se vestir pra mim, num fez nem questão de tirar a etiqueta, pra mim ver que era peça nova. Costumo brincar dizendo que apesar de todo o meu esforço, o universo feminino é muito complexo, as mulheres às vezes tomam decisões muito radicais, seus atos tem um lado muito extremista. Todo início de mês eu me encontrava com a Catarina, para passar uma quantia pra ela, que era muito pouco, nunca ligava pra ela, ela sempre me ligava lembrando, o problema maior não era passar o dinheiro pra ela, era ter que me encontrar com ela. A vontade dela era que a gente ficasse junto, dava pra perceber mesmo sem ela falar, coisa que não havia feito, ela tentava me seduzir, como eu estava confuso e frágil emocionalmente não queria tomar nenhuma decisão, de nada. Toda vez que a gente se encontrava era a mesma coisa, ela tentava me beijar ou acontecia outra coisa do tipo, era uma pressão, que eu mal conseguia raciocinar direito, certas vezes acabava cedendo, outras segurava a onda. Os encontros se tornavam cada vez mais difíceis pra mim, por que também era chato cortar ela toda vez, mas também a investida era pesava, já estava louco, desesperado, só ela sabia, talvez ela fosse a única pessoa no mundo que poderia me entender. Um dia ela me ligou, me chamando pra sair, conversar, somente sobre nosso filho, como amigos, então topei, talvez fosse o início de um relacionamento diferente e além, a gente estava precisando começar a se relacionar de modo diferente. Peguei-a no lugar que a gente combinava, perto da faculdade, fomos para uma choperia no bairro Caçula, sentamos, pedi uma jarra de chopp e começamos a conversar, no meio da jarra o papo já não tinha nada a ver com nosso filho. Ela dizia algumas coisas, falava sobre outra, eu tentava me manter imparcial, aí ela me pediu um cigarro, dei-a um cigarro e perguntei se ela estava fumando, ela falou que não, acendi o cigarro dela e perguntei por que então ela queria um cigarro. Falou que não gostava muito da fumaça, deu um trago bem sensual, olhando para mim, com as pernas cruzadas, soltou a fumaça e completou: gosto só de ficar segurando ele, ficar com ele na mão, brincando. Aquilo me deixou louco, pedi a conta na hora e fomos pro motel, ela queria e conseguiu, mas o sexo foi diferente de antes, bem diferente, uma loucura carnal, apesar de nunca ser igual, a gente seguia uma linha mais romântica, com uma pimentinha. Foi mais uma confirmação de que eu não queria ficar com ela, que não seria mais do mesmo jeito de antes, 154
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muita coisa tinha acontecido e naquele momento eu não estava com uma estrutura emocional boa, a ponto de me relacionar com alguém, eu só queria parar de pensar naquilo. Às vezes pensava nela, ela tinha um jeito que me confundia muito, em alguns momentos parecia ser uma menina um pouco “inocente” em relação às suas atitudes, já em outros, vinham carregados de “malícia”, no sentido de sedução, de conseguir aquilo que se quer. Todo evento que tinha eu estava dentro, fui há um show que rolou aqui no fim de semana seguinte, fomos com duas mulheres que conhecemos numa boate daqui, esse colega gostava muito de beber vodka com energético e nesse dia comecei a tomar vodka com energético com ele. Fazendo a maior bagunça com as mulheres, agitando, dançando, nesse meio termo surgiu um assunto de cheirar, nós dois já estávamos pilhados de vodka, compramos vinte reais de pó e cheiramos dentro do banheiro químico do evento, cada hora ia um e cheirava uma carreirinha, fomos umas três vezes cada um e acabou a coca, acho que as meninas nem perceberam. Continuamos curtindo a festa e antes de ir embora paramos pra fazer um lanche, a segunda intenção era finalizar as meninas, elas moravam no bairro Cidade Nobre, num apartamento e estavam sozinhas. Nos convidaram pra entrar, mas acabou não rolando nada, meu colega estava muito louco e a menina mudou de ideia, a minha queria muito, estava acessa, mas acabei indo embora com meu colega. Não era a primeira vez que cheirava, mas não era muito minha onda, nem fazia questão, mas como estava bêbado, você sabe, acaba topando tudo. Eu bêbado era sem noção, mas era uma coisa na qual teria que tomar muito cuidado, não deixar que isso se repetisse, pois o meu momento não era dos melhores, então tinha que ficar atento a muita coisa. Meus pais viajaram num feriado e eu não pude ir por causa do trabalho, fiquei sozinho em casa, antes de viajar meus pais sempre diziam pra mim não fazer festa, mas a coisa é maior do que nós, quando se começa a fazer festa em casa quando os pais viajam é difícil parar, muito difícil. Às vezes aquele colega já fica sabendo que seus pais viajaram e já começa a falar em festa como se fosse o dono da casa e quando você percebe não tem como evitar mais. Nesse fim de semana eu queria passar tranquilo, sem festa, só curtindo a casa mesmo, tomar uma cerveja de leve, quem sabe até sozinho, mas tive a ideia de chamar um amigo, pra gente tomar uma cerveja, fumar um baseado e escutar uns discos vinis que tinha aqui. Ele veio e ficamos escutando disco de vinil até umas duas da manhã, aí ele foi embora e eu fui fumar o último cigarro antes de dormir, pensei até em assistir um videozinho pornô antes de dormir, se sabe, mas desanimei. Quando deitei meu telefone tocou, olhei e era uma 155
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colega que tinha pegado recentemente, atendi, quase três da manhã, ela perguntou onde que eu estava, disse que estava em casa, e ela que estava querendo me ver, falei pra ela passar lá em casa, voltei pro quintal, liguei o toca discos e fiquei esperando ela chegar tomando uma cerveja. Depois de alguns minutos ela chegou trazendo uma amiga junto, ela achou que eu fosse sair com ela, mas chamei-as para entrar, falei que tinha cerveja na geladeira e elas entraram. Fiz um social antes de voar na minha colega, ela acabou me chamando pra tomar um banho, fui tomar banho com ela e a outra ficou lá fora, tomando uma e escutando vinil. A gente deve ter ficado mais de trinta minutos debaixo do chuveiro metendo, com a água quentinha, saímos e a garota estava lá, coitada, sozinha, num tinha ninguém pra chamar pra ela, coloquei um colchão na sala e disse pra ela deitar lá, que eu ia deitar um pouco com a minha colega na cama pra esquentar ela um pouco, por que ela estava com frio, os ventos de Agosto. Entrei pro quarto com ela e fizemos mais sexo, depois deitamos abraçadinhos e ela acabou pegando no sono. Levantei bem devagar, sem fazer barulho e fui na sala mal intencionado, a colega dela estava acordada ainda, acho que ela ficou escutando tudo, virei pra ela e comentei que ela ainda estava acordada, disse que tinha perdido o sono, falei que iria deitar com ela um pouquinho até o sono vir. Já deitei agarrando, ela estava toda molhadinha me esperando, perguntei a ela se tinha demorado, ela me respondeu dizendo que pensou que eu não fosse na cama dela, perguntei se ela me queria e fizemos um sexo gostoso, escandaloso, gostoso com as duas, depois voltei e acordei a minha colega, pois já eram sete da manhã, o dia já estava claro e elas foram embora. Na semana, eu chegava atrasado no trabalho pelo menos um dia, não conseguia dormir, quando num era por ter saído na noite anterior, era por não conseguir parar de pensar em tudo que estava acontecendo na minha vida. Meus pensamentos eram tão abstratos que não conseguia chegar a lugar algum, estava em conflito comigo mesmo e deixando as coisas acontecerem, tentava pensar no passado, mas não largava o presente e pensava no futuro, me culpando no presente, era tudo muito incoerente. Começou a especular que o programa do governo estava acabando, por causa da posse da nova presidência do país, eles acabaram contratando um deficiente físico e outro com deficiência psíquica (aluno da APAE), e os colocaram para trabalhar comigo. Passei a ficar responsável pelos dois, treinamento, acompanhamento da rotina, suporte, cobrança, pois eles iriam cuidar de um trabalho que exigia uma grande responsabilidade, que era digitalizar todos os projetos e mandar à central da Eletrobrás para arquivar em computador. Nossa, eles deram trabalho demais no início, o que veio da APAE era assíduo e possuía uma vontade enorme de 156
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aprender, apesar de suas dificuldades, o outro não estava muito interessado, era uma luta pra ele também, tinha que pegar dois ônibus, subir três andares de escada com muleta e tinha dias que ele faltava e não justificava. Com muita paciência e motivado pela vontade de aprender de um deles, consegui passar o serviço pra eles antes do esperado e eles pegaram depois de muitos erros, mas estavam mandando muito bem. No final de setembro veio a notícia que o programa iria acabar mesmo, e as urgências começaram aparecer, aquela correria pra fechar no prazo, a minha parte de projetos havia encerrado perto do final de outubro, como a de muitos outros setores e alguns dias depois quase a metade do escritório foi mandada embora. Agora era só questão de tempo, os meninos que eu tomava conta, tinha serviço até dezembro, por que a parte deles era o fechamento da unidade de Ipatinga, a última tarefa. No início de dezembro a obra finalizou e um colega meu que trabalhava lá me ligou chamando pra tomar uma em homenagem ao encerramento, por que também ele iria voltar pra terra dele na região do Vale do Jequitinhonha, Minas Novas-MG, então fomos num bar do bairro Veneza, foi eu, esse colega e um encarregado. Tomamos cerveja, vendo as mulheres bonitas, comemos um peixe de tira gosto e fomos acertar a comanda pra ir embora. Percebi que tinha uma mulher rodeando e me olhando, tinha encontrado com ela antes, quando voltava do banheiro e ela havia me cumprimentado, mas não a conhecia, resolvi ficar mais um pouco pra ver no que dava. Voltei, acendi um cigarro e não demorou ela encostou, pedindo fogo, acendi o cigarro dela e ela elogiou minha blusa, estava com uma blusa que minha mãe já tentou várias vezes jogar fora, mas eu achava ela muito doida, tinha um tom hippie e várias pessoas já elogiaram essa camisa, assim começamos a conversar, ela estava com a filha dela de quatorze anos. Seguimos pra casa dela, onde a sua filha entrou pra dormir e ela voltou pra mim, fomos direto pro motel, chegamos lá abrimos uma cerveja e ela perguntou se eu fumava um baseado, disse que sim e ela enfiou a mão na sua bolsa e como num passe de mágica tirou um baseadinho lá de dentro. Fumamos juntos e começamos a nos beijar, aquele beijo gostoso, brando, já estávamos nus, em cima dela comecei olhá-la por dentro, a mulher estava louca, gemendo calada, se contorcendo, puxando o lençol, nunca tinha visto uma cena tão real, autêntica, de prazer. Parece que eu tinha chegado num lugar que nem ela conhecia, sequer sabia da sua existência, foi quando senti algo quente no colo do meu pau, pensei, será que ela está gozando, mas não parou e no susto me afastei. Quando olhei ela estava mijando, que loucura, tentava segurar e não conseguia, sem graça, pediu desculpas depois que se controlou, ligou pra recepção e 157
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pediu outro lençol. Trocamos o lençol e começamos novamente, só que dessa vez demorou uns dez minutos a mais que da primeira, me molhou de novo e ficou sem graça novamente, chamei-a para ir pro chuveiro, por que lá não teria problema, como não teve. Deixei-a em casa e fui pra casa pensando naquele lance, que loucura!, percebi que no início foi uma coisa constrangedora pra ela, muito mais do que pra mim, sabia que não era de proposito e não me importei, pra falar a verdade foi uma experiência diferente e gostei de ter vivido essa experiência, deu até tesão vê-la se derretendo de tesão em cima de mim. Não consegui perceber se era recorrente ou se foi uma coisa realmente inesperada por ela, por que pra mim foi totalmente inesperado. Uma garota de Timóteo, minha amiga, tínhamos um caso mal resolvido, havia ficado com ela uma vez, um colega ficava com a prima dela e me apresentou ela, era loirinha, magra, corpo bonito, simpática, muito bacana, e a gente conversava algumas vezes no msn. Ela sempre dizia que eu ficava enrolando ela, aquele papo, então convidei-a pra sair comigo e ela veio pra Ipatinga se encontrar comigo, peguei a no Shopping e levei-a pro pagode, pois tinha combinado com um colega que trabalhava comigo. Cheguei com ela e o pagode estava lotado, meu colega estava parado no balcão me esperando, paramos ao lado dele, apresentei minha amiga e ficamos bebendo e conversando, de repente parou dois casais no balcão, do meu lado. Um dos casais ficou de costas pra mim, o cara encostado no balcão e a mulher do cara apoiada no ombro dele, a mulher era uma cavala, grande, gostosa, com um shortinho atolado, que estava deixando qualquer um louco. O namorado dela era um camarada grande, forte, com uma cara de quem gostava de confusão, procurei não olhar muito pra ela, estava acompanhado também e abraçado com a gata por sinal, mas a mulher do cara começou a encostar demais em mim, esfregando aquele bundão na lateral da minha perna. Estava ficando inquieto, passei a loira que estava comigo pra minha frente, abracei-a pelo pescoço e a mulher continuava a se esfregar em mim, olhava para ela e ela fazia aquela cara como se não estivesse fazendo nada, olhava de canto de olho, com um olhar meio desafiador e safado. Não aguentei, coloquei uma das minhas mãos pra trás e esperei que ela viesse se esfregar, ela encostou e sentiu minha mão, fiz questão que sentisse levemente, e ficou parada. Então comecei a acariciar aquele rabo gostoso devagar, suavemente, mas ela estava demais, comecei a me empolgar, fui apertando a bunda dela, apertando, apertando e descendo em direção a sua virilha e ela me cortou. Acho mais que foi pra evitar uma confusão, deu um passo à frente e se ajeitou no seu namorado, mas aquilo me deu um tesão 158
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fora do normal, pedi uma caipirinha e dividi com minha loira, nessa hora tratando-a com um dengo, pensando no fim da noite. Depois de duas caipirinhas, terminamos na cama do motel, a vibe foi ótima entre nós, aquelas apertadas na lateral da sua costela, ela era tão aconchegante e carinhosa, além de ter um corpo de linhas simples e curvas convidativas à exploração. Quando eu a apertava, ela inclinava a cabeça pra traz e seu pescoço ficava lindo e os peitinhos também empinavam bem pontudos. Eu adorava olhar as poses espontâneas que o sexo liberta, que faz emergir, a expressão corporal do prazer, a oportunidade de ver como o prazer se comunica. Antes de viajar pra Sabará no natal, havia combinado de ver meu filho, foi uma decisão difícil, estava com muito medo, com muitas dúvidas, mas a Catarina disse que teria que vir para o dentista e que poderia trazer ele pra mim o conhecer, topei e combinamos o dia e o horário. Seria um dia antes de viajar, acho que no dia vinte e um, fiquei muito ansioso, ela às vezes perguntava se já tinha contado pros meus pais e dizia que não, ela falava que era melhor contar, quanto mais cedo melhor, mas não me pressionava, só perguntava, eu ainda não me sentia preparado, nem sabia o que estava esperando. No dia do encontro tinha levado meu carro pra arrumar a parte elétrica, pois estava com suspeita de roubo de carga e perto do horário o carro não tinha ficado pronto, o telefone tocou, era Catarina, dizendo que tinha chegado e que estava indo pro Parque Ipanema pra gente se encontrar, na hora inventei uma desculpa que estava saindo pra viajar naquele momento, que meus pais já estavam de malas prontas pra pegar estrada, ela me xingou e ficou bastante chateada, num era pra menos. Fiquei com um grande sentimento de culpa, mas eu estava com muito medo, o meu maior medo era ver o meu filho e não sentir amor por ele, tinha muito medo de que nesse primeiro contato acontecesse algo que causasse uma má impressão. Ainda me sentia muito incomodado com essa situação, não tinha chegado a conclusão alguma, estava só rodando em círculos, perdido e não queria refletir isso no meu filho. Ela me mandou uma mensagem dizendo que a mãe dela nem acreditou que eu não tinha ido ver o meu filho, que eu havia feito ela chorar, aquilo mexeu comigo, mas ainda não tinha essa segurança. Penso que a primeira impressão é a última chance e eu não poderia correr o risco de causar uma má impressão ou mesmo de interiorizar isso, pensamentos mil passavam pela minha cabeça e eu não queria que meu filho passasse por uma gama de pensamentos, sendo que ele era o menos culpado. Tinha medo de transmitir culpa pra ele, sei lá, qualquer coisa poderia acontecer, até mesmo o fato de olhá-lo e sentir todo o amor do mundo, mas naquele momento não o conseguiria livrar de 159
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algum pensamento ruim, separar as coisas. Estava muito afobado, meus sentimentos estavam escondidos por um caminhão de coisas que os encobriam, não sei se tomei a decisão certa, talvez tenha tomado uma péssima decisão. O que me conforta é o fato que não tomei essa decisão como algo pessoal, foi simplesmente por medo, insegurança, pela incerteza, não foi para prejudicá-lo, a intenção foi justamente contrária, foi para preservá-lo da minha irracionalidade, minha loucura. Viajei pra Sabará com isso na cabeça, sentindo um incômodo tremendo, eu não queria dificultar as coisas para Catarina, ela estava passando uma barra também e estava me ajudando muito, mas algumas situações eram inevitáveis, fazia parte do que acontecido, que também não era nada simples. Tinha combinado de passar a virada em Milho Verde (MG), iria acontecer um show de Reggae, eu mais um colega estávamos combinando de ir, tinha esquematizado tudo, iria voltar antes do ano novo pra poder viajar pra lá, mas meu colega acabou furando e fiquei em Sabará mesmo. Acabei conhecendo uma mulher de Sabará em uma boate de BH, sem saber, ela era uma conhecida do meu primo, uma confusão. Fiquei com ela a noite toda, no outro dia meu primo disse que ela era casada, fiquei sem entender nada, ela me ligou e nos encontramos no dia seguinte, contou que havia separado a poucos dias, passamos esse resto de dia juntos. Estava tentando me manter tranquilo, parar de me crucificar e manter minha cabeça leve, pelo menos nesse tempo de fim de ano. Saímos em Sabará e terminamos a noite num motel de BH, mas nessa noite não foi mil maravilhas, o emocional acabou pesando e não consegui fazer nada, a gente começou a conversar e depois de algum tempo resolvi falar sobre o meu filho, depois de alguns minutos de conversa e uma lágrima caída, as coisas se acalmaram. Batemos um papo muito cabeça, falei que estava com medo, ela disse algumas coisas, não ajudou muito, o que ajudou foi mais o alivio de expor a situação e antes de ir embora, transamos uma vez e o vínculo entre a gente se fortaleceu, principalmente da parte dela. Fiquei um pouco angustiado quando falei do meu filho e ela disse que era fácil de resolver, era só assumir a criança e continuar a vida normalmente, é claro que parece fácil, simples até, mais não é tão fácil assim, tem muita coisa envolvida. Estava tão confuso e isso estava me afetando de uma maneira tão negativa que não estava conseguindo achar uma saída, havia ficado preso nisso e não tinha nada de fácil. Sabe, via tantas pessoas com problemas e que se recusavam a buscar um outro olhar, uma ajuda, se abrindo com pessoas que não estão nem aí para os seus problemas, aqueles que tem todas as soluções tão rápidas, que demoram 160
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mais para falar o que fazer, do que pra você fazer o que elas te dizem pra fazer, parece até mágica, é só estalar os dedos que tudo passa, é um absurdo. Como as pessoas necessitam de ajuda e negam a procurar nos lugares certos, comecei a perceber essa falta de compreensão do outro, a primeira pessoa com quem eu exponho alguma coisa me diz que é fácil, ninguém tinha noção do que eu estava sentindo, da fase que eu estava passando. Toda vez que via um bebê na rua (não sabia de onde saiam tantos bebês), passava por um desconforto, eu tinha pesadelos constantes com uma criança me perseguindo com uma faca na mão, tudo que me remetia a pensar nele causava uma certa dor e eu não sabia o que era isso, algumas vezes pensava com alegria, outras com tristeza, ficava oscilando emocionalmente, muito confuso, muito. Eu tinha fé que as coisas iriam melhorar, mas tinha muita coisa pra acontecer, ainda não tinha acontecido praticamente nada, ninguém sabia do meu filho, tentava me preparar para o que estava por vir, mesmo sem saber o que.
“Não é fácil Não pensar em você Não é fácil É estranho Não te contar meus planos Não te encontrar Todo dia de manhã Enquanto tomo meu café amargo É, ainda boto fé De um dia te ter ao meu lado Na verdade eu preciso aprender Não é fácil, não é fácil” Não é fácil - Marisa Monte
Dois dias antes do ano novo, um amigo meu de infância de Sabará, o Malvado, me chamou para passar a virada com ele em Guarapari-ES, resolvi ir, iria com os pais dele para o apartamento que eles tinham lá, como havia muito tempo que não via o Malvado, seria uma ótima oportunidade pra gente relembrar as nossas bagunças e fazer mais um pouco de bagunça também. Chegamos um dia antes da virada e queríamos ir numa rave que iria rolar na Pedreira, mas encontramos com uns amigos dele de Sabará e ficamos na orla mesmo, dez e meia, saímos do apartamento dos pais dele com uma garrafa de black e duas de energético. Na virada já estávamos loucos, seguimos pra perto do trio, rolou a contagem regressiva e minutos depois da virada a luz acabou na orla de Guarapari por uns trinta minutos, quando a energia 161
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voltou não demorou muito e encontramos com os amigos dele, um mais louco que o outro. Enquanto andávamos pela calçada da orla, acabei encontrando com uma colega de Ipatinga, parei pra cumprimentá-la e acabei beijando a amiga dela, os caras tentaram pesar, mas as meninas num deram muita bola pra eles não, continuamos com nossa caminhada de reconhecimento. Lá pelo fim da noite, umas cinco da manhã, a orla praticamente vazia, ainda estávamos fazendo bagunça, como bons mineiros, até encontrarmos uma baiana caminhando na orla sozinha, os caras ficaram loucos foram logo pra cima, ela era safada demais, muito safada mesmo, e gostosa, mas não era bem apresentável. Os caras num quiseram nem saber, um dos amigos do Malvado foi logo encostando e agarrou-se a mulher de um jeito que ninguém encostava nela, tomou posse da baiana e começou a falar que ela iria dar pra todo mundo. Estávamos em seis, ela rindo e fazendo piada que só não iria dar pro grandão (Malvado) que não aguentava um homem daquele tamanho não, o Malvado tinha mais de dois metros de altura e da largura de um guarda roupa. Fomos embora dormir, era muita bagunça e pouca mulher, os caras ficaram com a baiana, no outro dia eles mostraram um monte de foto que tiraram com ela, os quatro comeram, ela chupou todo mundo, um monte de pau na mão, aquela putaria, ela pelada, de quatro, um esculacho só. Curtimos mais um dia de praia, o dia seguinte e no outro dia voltamos pra Sabará. Já em Sabará, saí com Iana pela segunda vez, com a promessa de que desta vez seria diferente, tentamos um clima bacana, fomos a um bar em BH, tomamos umas três cervejas e comemos uma porção, depois partimos para um motel de luxo, numa suíte com banheira de hidro. Tentamos aproveitar ao máximo, mas aconteceu novamente, não estava correspondendo, só depois de um tempo transamos somente uma vez e fomos embora. Vi decepção no rosto da Iana, mas estava fora do meu controle, vinham várias coisas na minha cabeça e não conseguia criar aquela vibe entre nós. Fiquei pensando muito nisso e por algum motivo, não sei se foi pelo fato de estar compartilhando uma coisa muito pessoal com ela, o sentimento dela foi crescendo. Nos encontramos mais dois dias antes que eu fosse embora, desta vez sem sexo, só carinho e conversa, não queria ficar mais insistindo, batendo na mesma tecla, sabia que tinha alguma coisa de errado, algo me incomodando muito. Isso despertou em mim uma certa preocupação a ponto de começar a refletir melhor e abrir espaço pra essa angústia surgir do modo que fosse, pois não dava mais pra ficar correndo disso, as coisas iam se complicando cada vez mais.
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Iana falava de relacionamento sério, fazia juras, isso e aquilo, mas eu achava que não era nada de mais, pois ela era uma mulher experiente, trinta e poucos anos. Com menos de quinze dias que estava em casa, um carro parou com duas mulheres e perguntou se eu morava aqui, que tinha uma encomenda para esse endereço, era pra mim, um buquê de flores, não entendi muito bem, quando vi era dela, fiquei sem palavras, nunca havia recebido um buquê e se tratando da Iana tornou-se mais estranho ainda o fato. O buquê veio acompanhado de uma carta de amor, não estava acreditando, como ela poderia ter se apaixonado assim por mim, acho que foi a fragilidade na qual se encontrara, o fato da separação, de ter uma filha com o ex-marido, talvez isso estivesse afetando suas decisões, o seu discernimento, nem liguei pra agradecer, já havia deixado claro que não poderíamos ter algo sério, que não tinha como. Depois desse buquê, nem sabia o que dizer, dizer o que, obrigado pelo buquê, mas o mesmo não surtiu efeito positivo algum, pelo contrário, uma coisa era certa, não ia namorar com ela, estava numa fase confusa da minha vida, como ia pensar em namorar alguém passando por tantos problemas. Após curtir uma praia no ano novo, voltei com uma ideia de mudança em mente, tinha que fazer alguma coisa urgente, não aguentava mais ficar nessa bagunça, nessa desordem que estava minha vida, tinha que começar a rever várias questões e tomar atitudes diferentes. Agora já havia gastado quase todo o dinheiro do acerto, restava contar com algum que tinha guardado, para pagar os documentos do carro e um pouco que tinha sobrado, tinha o seguro desemprego para entrar, mas por algum motivo o seguro não caiu, fiquei muito chateado, tentei resolver, mas o ministério do trabalho de Ipatinga não conseguia resolver nada, mandaram meu caso para Brasília-DF, sem resposta também, ninguém conseguia me explicar por que estava bloqueado. O problema aparente foi pelo fato que, quando saí do meu emprego anterior, tinha direito a receber cinco parcelas, mas acabou que eu recebi uma e fichei novamente, é claro que eu preferia fichar do que ficar recebendo seguro-desemprego. Quando minha carteira foi assinada, meu seguro foi bloqueado, foi algo do tipo, dia quinze minha carteira foi assinada, dia vinte era a data que recebia o seguro, mesmo fichado, no dia vinte fui lá conferir e já estava bloqueado, deixei para lá, nem procurei saber se tinha direito de receber essas parcelas. Pelas diretrizes do programa seguro desemprego eu tinha direito às parcelas restantes, e as mesmas foram bloqueadas, quando fui mandado embora nessa última vez este bloqueio causou um impasse, devido à mudança de sistema, lá no sistema constava que eu tinha direito 163
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à sete parcelas, mas o operador não conseguia desbloqueá-la, uma confusão e tanto e que só eu seria o prejudicado. O funcionário do ministério do trabalho de Ipatinga estava fazendo de tudo pra resolver, mas infelizmente a coisa não dependia dele, se dependesse tenho a convicção que não teria se tornado um problema, todo esse entrave e a grande bola de neve que é o poder público no Brasil, acarretaria num grande ponto negativo na minha situação emocional. Esse dinheiro era o respaldo que precisava para tentar organizar as coisas, e agora, sem emprego, sem seguro desemprego, sem nenhum recurso financeiro, logo agora que era pai, quando mais precisava de dinheiro, não o tinha. É uma vergonha a gente ter que correr atrás de uma coisa que é nossa por direito, ser prejudicado por uma corrupção moral e ética do poder, se sentir um bobo diante daqueles que ao invés de lutar por nós, puxam o nosso tapete e riem da nossa cara, envolto seu luxo, manchados pelas lágrimas de uma sociedade desacreditada. Os dias se passavam e o meu desespero aumentava, pensava no meu filho, em tudo que estava acontecendo, era muito difícil não saber o que fazer, se sentir à mercê do destino, perder o foco, o seu caminho. Poucas semanas antes do carnaval, uma amiga do Rio de Janeiro ligou dizendo que viria passar uns dias na casa da irmã dela, aqui em Ipatinga, combinamos de nos encontrar, a gente conversava pela internet algumas vezes, a conheci antes dela se mudar pro Rio e agora voltaria a reencontrá-la depois de muito tempo. À noite peguei-a na casa de sua irmã, ela havia trago até presente pra mim, uma camiseta com a imagem do Cristo e um cd com músicas que ela havia gravado pra mim, gostei muito, acabou sendo uma surpresa. Seguimos pra feirinha e ficamos lá matando a saudade e trocando carícias, a companhia dela era ótima, uma pessoa muito doce, sexy e agradável. Saímos da feirinha e fomos a uma choperia no bairro Cariru, eu estava a fim de curtir mais ela, mas como ela havia se arrumado toda pra sair comigo e estava linda por sinal, com um vestido vermelho curto que estava me matando, resolvi levar ela pra um lugar mais bacana pra justificar tal produção, a final, ela tinha se arrumado pra mim, não custava nada reconhecer seu esforço em ficar linda daquele jeito. A noite acabou da melhor forma possível, enroscados numa cama, corpo a corpo, sentindo todo o seu calor e seu gosto, a cama mais parecia um mar, onde desconhecíamos sua verdadeira dimensão e mergulhamos ao universo que criamos ali, naquele momento, entre beijos, abraços, carícias, contato e tudo o que uma trama sexual proporciona. Uma venda nos olhos, a satisfação em satisfazer sentindo-se satisfeito não tem comparação, essa é a transa 164
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que procurava, a que gostava, algo que chegasse ao amor, mas que fosse menos que isso e mais que uma transa qualquer, onde o clímax ultrapassasse qualquer interesse, onde não existisse um pensamento, apenas o instinto voraz da carne, a vontade pelo outro. Que noite boa! Pena que durou pouco, que logo essa amiga estaria de volta no Rio e tudo voltaria ao normal, não sabia se o fato dela ter que ir embora era algo negativo, talvez justamente esse simples fato, foi o que tornou a situação especial, este álibi pré-estabelecido, onde a própria circunstância fala por si só, onde não existe desculpas ou justificativas, apenas uma despedida. Sem dinheiro pro carnaval, e sem clima também, viajei com meus pais pra Sabará, iriamos passar na fazenda do meu tio, em família, sempre tive um lado família forte, por vários motivos, mas principalmente por gostar muito da minha família. Agora estava diferente, essa imagem, a cabeça estava uma bagunça, tinha me fechado socialmente, mas tentava disfarçar meu desespero, nem sabia ao certo se o estava escondendo, mas com certeza me relacionar estava ficando cada vez mais complicado, logo eu que nunca tive problemas em me relacionar com os outros, estava sofrendo as consequências de um conflito do “Eu”. Mesmo sendo uma pessoa consciente de mim, dos meus limites, do meu potencial, fui surpreendido por uma questão que estava me enlouquecendo, quanto mais eu pensava, mais queria esquecer e procurava esquecer de todas as formas, buscava uma saída pra toda essa situação, algo que estivesse dentro dos no meus ideias, ficava me perguntando o que fazer e sinceramente, não conseguia pensar em nada. Chegamos em Sabará na sexta de tardezinha, iriamos pra fazenda no sábado, por que meu tio tinha que trabalhar no sábado de manhã, aproveitei pra curtir a sexta de carnaval, sai encontrei com meus primos e ficamos por ali, curtindo o movimento. Acabei encontrando com a Iana, ela perguntou por que não havia ligado nem pra agradecer o buquê, estava meio desapontada, tentei me desculpar e explicar meu comportamento e quando me dei conta a gente já estava se beijando, não sabia se era a coisa certa a se fazer, mas acabou acontecendo, as vezes tomamos atitudes que nem nós mesmos entendemos. Ficamos juntos no decorrer da noite, conversamos bastante, queria que ela entendesse que não estava usando-a, mas que estava com ela por gostar da sua companhia, o que não implica que queira sua companhia em tempo integral. Naquele momento queria estar com ela, mas no dia seguinte talvez não, é uma coisa complexa de expressar e mais complexa ainda de se entender. Pode-se resumir que um relacionamento à curto prazo, por mais surreal que seja, 165
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por mais que cause momentos especiais, ele não serve como base para um relacionamento à longo prazo. Éramos pessoas muito diferentes, onde por alguns dias ou instantes, essa diferença seriam irrelevantes, mas à longo prazo a gente não se entenderia, por que possuíamos interesses incomuns. Mas nada disso importava, pois isso era uma coisa que não precisasse ser explicada com palavras, estava no ar, talvez até mais evidente do que qualquer explicação, era só uma questão de interpretação e no fim das contas o desejo sempre se encarrega de encobrir nossa percepção das coisas em prol de seus objetivos, nesse caso, a vontade insaciável pelo outro, mais uma vez terminou em sexo, dessa vez sem constrangimentos. No dia seguinte fomos pra fazenda do meu tio, uma de minhas tias trabalhava num posto de saúde e me deu uma caixa de camisinha, se eu tivesse usado sempre camisinha, seria quase certo de que não estaria vivendo um momento como este na minha vida, parecia até ironia do destino, uma caixa de camisinha. Ter passado o carnaval em família foi bom, até mesmo pela falta de opção, resultado de uma baixa financeira e uma condição psicológica fragilizada, mas por mais que tente disfarçar todo o meu desespero, era perceptível que algo diferente estava acontecendo, eu não era o mesmo, mas também como poderia ser? Passando um perrengue destes na minha vida, tendo que lidar com tantas coisas, o que eu tinha feito pra merecer isso, onde eu errei, como fui perder o controle dessa forma, como poderia ter deixado isso acontecer. Pensava o quanto havia sido ingênuo, que tinha confiado na Catarina, nas pílulas, e que por uma brincadeira infantil e irresponsável ela agora era mãe em conjunto com suas duas amigas, será que ela tinha mesmo feito este pacto com as amigas, mesmo com algo tão sério. As dúvidas permeavam minha cabeça, eu nem fazia ideia do que estava acontecendo, tantas coisas desfilavam em meus pensamentos, culpa em sua maioria, pensava por que ela havia dito que não era meu e depois apareceu do nada dizendo que eu tinha um filho, que era pai de uma criança que já se apresentou diante mim pronta, com nome e tudo mais, não tinha nada de meu no meu filho, a não ser na aparência física e sua biologia. Não sabia nada dele, não o vi nascer, nem uma sonografia, não ajudei a escolher um nome, nem o tinha visto pessoalmente ainda, não o tinha carregado e agora ele já estava com um ano de idade e eu estava perdendo tudo o que tinha pra aproveitar com ele. Depois de nove meses como pai, a ficha ainda não tinha caído, eu não me sentia um pai, o que poderia fazer para me tornar um pai, ninguém sabia que eu era pai, nem minha família, nem amigos, o que era ser pai? O rosto do meu filho quando eu fechava os olhos, não faziam de mim um pai, 166
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não possibilitava emergir nenhum sentimento, quem disse que eu quero ser pai, mesmo não querendo ser eu era pai e isso estava me consumindo. Depois do carnaval Catarina me ligou querendo conversar, ela começou perguntando por que não liguei no aniversário dele, por que ela sempre tinha que ficar correndo atrás de mim, não ligava pra saber como ele estava, se estava bem, mal. Disse que a família estava cobrando dela, uma postura do pai e que eu tinha que fazer alguma coisa, por que meu filho já estava com um ano e eu nem tinha visto ele ainda, que eu dava dinheiro pra ela e parecia não estar nem aí pro meu filho, que tinha comprido minha obrigação, ela queria que eu tivesse contato com ele, que ele precisava de um pai e perguntou quando iria contar pros meus pais. Ouvir aquelas palavras era muito difícil e doloroso, mas era a pura verdade, eu tinha que fazer alguma coisa, mas fazer algo parecia ser mais difícil ainda, eu não queria causar mais transtorno à Catarina, já estava sendo difícil pra ela, mas o que poderia fazer, eu era pai, não tinha um emprego, não queria ficar com a mãe do meu filho, tinha vergonha de encontrar com os pais de Catarina, não conseguia sentir amor pelo meu filho, não me sentia preparado para ser um pai, não estava com cabeça pra nada, só pra me culpar por tudo. Tinha medo de contar pros meus pais, mais um desgosto pra eles, entre vários que já havia causado, meus pais não mereciam algo assim, eu estava mal. Passei a sentir a necessidade de dar mais atenção pra mim, num sentido introspectivo, apesar da falta que o dinheiro estava fazendo, bloqueado pelo Ministério do Trabalho por questões que ninguém conseguia explicar o por quê, comecei a perceber que o fato de estar sem dinheiro me deixou menos ativo, passei a ficar mais em casa e consequentemente pensado mais no que estava acontecendo na minha vida. Era muito difícil ficar em casa, mas eu teria que me acostumar, estava sem dinheiro e isso também estava causando um grande desconforto pra mim, tinha que lidar com isso em paralelo como uma cobrança pessoal além da cobrança (justa) de Catarina, que às vezes perguntava se estava procurando emprego. Me encontrava numa fase que eu não sabia o que eu havia pensado nesses nove meses que haviam se passado, lembro das coisas que fazia, mas não lembro de ter me empenhado em arrumar uma solução pro momento que estava vivendo, tinha-se passado nove meses e eu ainda não tinha uma opinião sobre tudo que estava acontecendo, sobre que agora eu era pai, eu tinha um filho. Peguei minha bicicleta e saí pedalando em busca de respostas, me perguntando quando iria parar pra pensar no fato de agora eu ser pai, o que vou fazer agora? E sendo embalado por 167
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meus questionamentos, acabei chegando a um dilema, será que vou ter que abrir mão de todos os meus planos. Estava esquecendo de todo o caminho que vinha trilhando, que buscava, que acreditava, que queria, todo meu empenho foi deixado de lado por seis meses de loucuras, mesmo sofrendo iria ter que começar a pensar nisso, passei seis meses tentando encobrir minha dor, buscando o prazer incessantemente. Minha dor era grande, tão grande a ponto de buscar o ponto máximo do prazer, o sexo, a busca pelo prazer havia me cegado para mim mesmo. Então comecei a andar de bicicleta com mais frequência, pensando e pensando, de alguma forma as pedaladas começaram a surtir um certo efeito e estava me questionando cada vez mais, e cada vez que saía pra pedalar percebia coisas diferentes, pensava sobre coisas que nem tinha percebido. Eu de fato comecei a pensar no assunto, mas na medida que respostas emergiam, novos questionamentos iam surgindo consequentemente, percebia o ponto que a situação de ter me tornado pai havia chegado, tanta coisa aconteceu e a situação era gravíssima. Muito tempo passou, não tinha mudado nada praticamente, quanto mais tempo se passava mais complexo e mais doloroso ficava. O impasse era, eu teria que arrumar um emprego pra ajudar ela, mas existia uma resistência emocional muito grande, por me encontrar num ponto em que eu havia começado a pensar e tinha muita coisa a resolver comigo mesmo. Queria conseguir um emprego, mas realmente eu estava sem forças pra ir à luta por um emprego, então eu procurava pela internet, mas não colocava a cara mesmo, sair em busca de um emprego. Alguns dias antes a Catarina começou a cobrar uma atitude de mim, mandando mensagem por celular, ligando, e eu não sabia o que fazer, o que dizer, ela tinha o direito de cobrar, dava pra perceber que ela não se sentia bem em me cobrar. Ela havia passado por momentos difíceis e não tinha noção das coisas que eu passava no dia a dia, Catarina poderia ter uma noção que nada estava fácil pra mim e também sofria esta pressão. Não conseguia sair do lugar, tudo ainda era muito confuso, me encontrava diante das questões mais importantes da minha vida, em toda minha existência fui acostumado a ter o controle, buscava prever os resultados de um certo comportamento, avaliava qual atitude tomar, fazia planos, me mantinha focado nos meus objetivos, acreditava que podia fazer o meu destino, seguir um sonho, fazer as escolhas certas. Agora eu estava fazendo tudo errado e não sabia o que fazer, tinha que tentar manter a calma, pois o desespero não estava ajudando muito, havia dias que a perturbação era grande, momentos em que precisava sair de casa, ficar sozinho e pensar na minha vida, longe de tudo, um lugar onde poderia me encontrar e refletir, falar comigo mesmo, me fazer perguntas. 168
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Numa terça-feira de março, peguei minha bicicleta e saí em busca de respostas, Catarina queria um posicionamento meu, uma resposta, algo que diminuísse o seu desespero e de sua família em relação a nosso filho. Saí pedalando como se corresse de algo, já havia pensado em algumas coisas, mas parecia que algo me segurava e eu não conseguia me soltar daquilo, que angústia, que momento difícil, quanta confusão. Num piscar de olhos cheguei a meu destino, Parque Ipanema, e lá me pus a pensar, quanto mais pensava, mais via que estava num abismo, que mesmo querendo sair daquela situação sem magoar ninguém, não teria jeito, era tarde demais, meu medo e desespero criaram algo ainda pior, o tamanho dos meus problemas aumentava a cada tic tac do relógio. No meu celular chegou uma mensagem e era de Catarina, na mensagem ela pedia pra mim fazer alguma coisa, pois senão ela iria tomar as providências dela, pronto, o que eu faço agora, que providências vou tomar, não tenho nenhum real e um filho pra criar, que tipo de pai eu sou, como poderia ser pai? Respondi a mensagem dizendo para que tomasse suas providências, pois não tinha o que fazer. Ainda não havia digerido a notícia, tinha muita coisa passando pela minha cabeça e eu precisava me organizar psicologicamente, sentado na grama de frente à lagoa do parque, pensava aflito, me sentindo muito mal por tudo que estava acontecendo, por não ter uma perspectiva para Catarina, por perceber minha imaturidade. Montei na bicicleta a caminho de casa, procurava entender, não conseguia ter nem sequer noção do que estava acontecendo, eu era pai, eu tinha um filho, como deixei isso acontecer, por que deixei, estava me sentindo o maior otário do mundo, quanta burrice. Logo eu, que tentava manter as coisas sobre controle, que exercia um certo controle na minha vida, através da minha força de vontade e meu foco, como acabei permitindo que uma coisa tão significativa acontecesse comigo, contra minha vontade, o que vai ser da minha vida agora, o que vou fazer, como vou lidar com isso. Sempre fui louco pra ter um filho, mas não nessas condições, em mim existia um ideal de família na qual eu queria me manter fiel, achar a mulher certa, procurando com paciência, me casar, programar e planejar um filho no momento mais propício, para que pudesse dar todo o meu apoio, estar presente, curtir ser pai ao lado do meu filho, poder criar ele e aprender com ele, viver cada momento da minha vida ao seu lado, mas ao invés disso, havia estragado tudo, feito tudo errado. Quando aproximei do portão da minha casa percebi algo diferente, tinha alguma coisa rolando ali, abri o portão e subindo o lance de escada com a bicicleta, vi que a porta estava entreaberta e Catarina estava sentada no sofá da minha casa. Naquela hora se eu pudesse 169
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voltar, montar na bike e pedalar pro fim do mundo eu o faria, pra não voltar nunca mais, mas respirei fundo e continuei entrando como se não tivesse acontecendo nada, o coração já batia na garganta e a cabeça nem se fala, maquinando e quase entrando em curto circuito. Passei pela porta dos fundos com a bicicleta e entrei em casa, minha mãe estava na cozinha com uma cara fechada, passei pela sala rumo ao meu quarto e lá estava Catarina sentada e meu pai sentado no outro sofá, cumprimentei-os e segui para o banheiro. Tomar um banho, tirar o suor da pedalada, foi um banho tenso, não durou muito, mas na realidade queria me trancar ali pelo menos por uns dois anos, porém o único jeito era sair e enfrentar. Saí do banho coloquei uma roupa e me sentei no sofá, nessa altura do campeonato sem saber o que estava fazendo, minha mãe continuava na cozinha fazendo um lanche pra nós, ela estava prevendo que não iria sair nada de bom daquele ambiente. Não sei o que meus pais imaginaram quando Catarina chegou na minha casa, nem sei o que tinham conversado até minha chegada, mas o clima estava no ar e minha mãe estava sentindo, chamei-a pra ir na sala e ela despistou e subiu pro terraço. Fui atrás dela e a chamei novamente e ela me perguntou o que aquela menina estava fazendo ali, e depois de um engasgo e uma culpa muito grande disse que eu era pai e que estava ali pra falar sobre isso, descemos e nos sentamos na sala. Que momento difícil, que situação complicada, o que eu tinha feito pra minha vida, mais uma apunhalada nas costas de meus pais, eu tinha o dom de magoar minha família, minha irmã coitada nem do quarto dela saiu. Eu estava ali, cara a cara com meus pais antes que recebessem a notícia de que eram avós e pior, de uma criança de um ano. Por um breve momento, um silêncio, Catarina perguntou se eu queria falar, disse que ela poderia falar, uma vez que foi até minha casa com essa intensão, e ela começou a falar. Disse que a gente se conhecia e ficamos um tempo juntos, nesse tempo que ficamos juntos ela engravidou e a criança já estava com um ano, falou que eu não ajudava e nem conhecia o menino ainda. Falou que eu havia abandonado ela na gravidez e que os pais dela estavam cobrando muito que o pai participasse da vida do filho, que ajudasse financeiramente, que ela insistia para que eu contasse aos meus pais e que até hoje eu não tinha falado nada, por isso estava ali falando sobre o nosso filho. Contou das dificuldades que passou, contou também que não foi nada de propósito, que foi um acidente após ela trocar as pílulas, nesse prazo de transição que as coisas aconteceram e foi falando. Eu fiquei só escutando, calado, acho que eu não tinha forças nem para responder alguma coisa caso alguém me perguntasse. No desenrolar da conversa meus 170
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pais olhavam pra mim com sangue no olho e entre algumas colocações de Catarina, eles reforçavam a forma como conseguia levar somente problemas para eles. Depois que Catarina contou toda sua versão da história, minha mãe iniciou seu ponto de vista, disse que eu era assim mesmo, que sempre trazia problemas pra casa, que era um irresponsável, que depois que tinha começado a usar droga, vinha fazendo somente coisa errada, que não estava preparado para ser pai, pois não sabia ainda nem o que era ser um filho. Sabe, das coisas que minha mãe havia falado existia uma certa porção de razão, principalmente o fato de que não estava preparado para ser pai, isso ninguém precisava dizer, mas falar que eu não sabia ser filho, isso era demais. Essas palavras doeram como se estivesse sido apunhalado no coração, sei lá, ver minha mãe olhar nos olhos de uma pessoa até então desconhecida e falar que eu não sabia o que era ser um filho, me pegou de surpresa, nunca esperaria que algo assim saísse da boca da minha mãe. Meus pais também não sabiam o que fazer, de repente uma coisa dessas surge do nada, perguntaram a Catarina o que ela estava precisando, pois não iriam ajudar financeiramente por que a obrigação era minha, eles não tinham obrigação nenhuma de dar dinheiro, quem teria que fazer isso seria eu, correr atrás de um emprego para cuidar do meu filho e que também estavam apertados com o casamento da minha irmã que seria no final do próximo mês. Eles tinham razão, não eram obrigados a dar dinheiro à Catarina, a consertar meus erros, o problema era meu e como me meti sozinho, teria que arrumar uma saída sozinho, ela disse que não estava ali por dinheiro, mas por que queria que eu participasse da vida do meu filho. Após a ida de Catarina meus pais iniciaram a sessão esporro e me chamaram de tudo que alguém possa imaginar, de burro, de viciado, irresponsável, desgosto da família, tudo mesmo, mas ainda estava pensando no que minha mãe havia dito, que não sabia o que era ser um filho, como se estivesse tentando achar uma justificativa para tal pensamento. Mais uma vez eu estava pior do que antes, dessa vez muito pior, por que a cobrança tinha aumentado, o clima pesado dentro de casa, os olhos de raiva da minha família em minha direção, menos de minha irmã, que não me disse nada, mas senti que a desapontei também. Me sentia o pior ser humano do mundo, só conseguia magoar e decepcionar as pessoas que me amavam, os tempos ficaram mais difíceis depois da visita de Catarina, eu ainda não tinha nenhuma perspectiva e o fato de meus pais agora estarem por dentro da situação atrapalhou ainda mais. Era como se eu estivesse começando do zero novamente, por que minha angústia aumentara, pois as cobranças vieram a partir de então e eu não estava conseguindo lidar com 171
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isso, por que passei a me cobrar mais consequentemente, a pressão era muita, dividir o espaço da casa com meus pais, sendo que estava com vergonha até de olhar pra eles. Nossa casa não era muito grande e torna-se inevitável não se encontrar a caminho do banheiro ou cozinha, eu e meus pais não nos falávamos e este encontro forçado causava mais dor, acredito que em ambas as partes. Passei então a ficar mais no meu quarto e menos circulando pela casa, estava em choque, claro que mesmo sabendo o quanto estava errado, sabendo o que deveria fazer, as coisas que escutara da minha família, principalmente da minha mãe, mexeu comigo de forma negativa, me deixou mais pra baixo, menos forte. Aquilo me incomodava a ponto de tirar meu sono todos os dias, já não estava dormindo a muito tempo, por desespero, depois desse dia então nem se fala, acho que nem pra cama conseguia ir. Meus dias foram piorando cada vez mais, não tinha dinheiro, desempregado, com um filho, sem apoio da família, já não dormia mais, passava as noites acordado e os dias dormindo, o sol já nem fazia parte da minha vida, era só noite. Ia deitar lá pelas seis da manhã, por causa do meu pai que saia pra trabalhar cedo, me levantava pra almoçar e deitava novamente até as cinco que era a hora que meu pai chegava do serviço, assim meus dias se passavam, cada vez mais difíceis. Olhar para meus pais era algo praticamente insuportável e doloroso pra mim, por que eu tinha que ser um filho tão ruim pra eles, que sempre fizeram tudo por mim. Todos os dias eram iguais, já não saía de casa, me sentia tão mal, que chegava a doer no meu peito, uma dor que nunca tinha sentido antes, que dificultava até mesmo a respiração, essa dor não passava por nada, alias era a única coisa que sentia, dor, não conseguia sentir mais nada. Passei a não sentir fome, vontade de me relacionar com alguém, sede, sono, nada, não sentia nada, só a dor no peito que me consumia, tinha vontade de morrer, de me livrar daquela dor que me matava, morrer pra mim era uma solução e desejava isso nas noites que passava acordado. O tempo estava passando e cada dia que passava me sentia pior, mas não conseguia fazer nada pra mudar isso, estava entregue à minha dor, não tinha força pra reagir, já se passaram dias e nem sequer tinha consciência de quanto tempo estava assim, igual a um zumbi, sem sentir a vida correndo nas minhas veias. Perdi contato com meus amigos, pessoas que na qual tinha contato diariamente, não conseguia manter as relações de amizade mais, não me interessava ser amigo de ninguém. Aos poucos fui perdendo contato com aquelas pessoas que me relacionava menos, as com que tinha um relacionamento casual, meu telefone não tocava e quando tocava eu não atendia. Não ligava pra ninguém, não tinha contato nem com 172
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as pessoas que moravam comigo, meus pais e minha irmã, nem vontade de ficar perto deles eu tinha. Já não aguentava mais continuar assim, doía muito, uma dor inexplicável e imensa, onde não se via saída, isso me assustava, como, alguém como eu, que me sentia tão forte diante os impasses da vida, tão consciente das minhas questões, pudesse se encontrar nessa situação e não ter forças pra sair. Queria sair mais nada conseguia me tirar da minha dor, assim meus dias se passavam refém dos meus próprios conflitos.
“Socorro! Não estou sentindo nada Nem medo, nem calor, nem fogo Não vai dar mais pra chorar Nem pra rir... Socorro! Alguma alma mesmo que penada Me empreste suas penas Já não sinto amor, nem dor Já não sinto nada...” Socorro - Arnaldo Antunes
Desiludido, preso dentro de mim, já não tinha uma expectativa, esperava por não sei o que, pensava em morrer, não queria mais sentir a dor que em meu peito gritava em silêncio. Era demais pra mim, quanta tristeza, quanta falta de vida, não sabia se estava realmente vivo, não me sentia vivo, não sentia nada. Buscava uma saída, mas não tinha forças para me levantar e fazer algo, qualquer coisa e num destes momentos de total desprazer recebi um telefonema de um amigo. Acabei atendendo a ligação, a gente conversou um pouco e ele me chamou pra fumar um baseado, pensei por um momento e acabei topando, tinha que sair de casa e isso poderia se tornar algo motivador. Peguei minha bicicleta e pedalei até a casa do meu amigo, o encontro com ele foi meio sem graça, estava sumido, passando uma fase difícil, não sei o que ele sabia a respeito do meu momento, talvez não soubesse nada, mas só a questão de me afastar de tudo e de todos já era um complicador. Mas eu não queria falar sobre isso, não tinha cabeça para me expressar de uma forma consciente, na minha mente reinava a confusão, então preferi poupá-lo dos meus problemas, que naquele momento se apresentavam diante de mim irracionalmente. Aproveitei a companhia do meu brother pra falar de assuntos corriqueiros e coisas da qual costumávamos conversar, pra descontrair um pouco também. Acendemos um baseado e 173
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a dor se amenizou um pouco e conseguimos dialogar por horas, por um breve momento me senti bem e mal ao mesmo tempo, bem por estar ali, sentindo alguma coisa novamente, por conseguir me relacionar e por perceber a falta que um amigo ou o outro faz pra gente. Mas ao mesmo tempo, bateu uma tristeza por saber que por um momento também estava perdendo tudo aquilo, tudo que eu mais gostava, me relacionar com as pessoas, viver minha vida com vontade, me jogar no mundo e arrancar dele tudo o que ele podia me proporcionar de bom. Já não sabia mais o que viria dali pra frente, se um dia teria novamente essa gana de viver a vida, de buscar a cada esquina o novo, o inesperado, de sonhar novamente, de continuar a buscar aquilo que eu acreditava. Era hora de me despedir do meu amigo e voltar pra casa, o baseadinho tinha sido bastante proveitoso, mas retornar pra casa seria mais uma luta. Enquanto voltava pra casa começou a chover e enquanto pedalava sobre a chuva, percebi o quanto ainda estava vivo, senti vida em mim, uma sensação maravilhosa tomou meu corpo, cada gota que caía sobre mim, uma parte adormecida do meu eu se enchia de vida, era uma coisa de Deus, me irrigando com vida e lavando a minha dor, minha alma. Senti essa ligação divina e me emocionei sobre as duas rodas, desci o morro próximo minha casa, debaixo de chuva, com as duas mãos estendidas e os olhos entreabertos, agradecendo a Deus por me mostrar que apesar de tudo, ainda existe vida dentro de mim. Quando cheguei em casa, enfrentei os olhos condenadores dos meus pais, eles sabiam que tinha saído pra fumar um baseado, por causa do meu amigo, era uma pessoa que compartilhava esse gosto comigo e um dos meus poucos amigos a ter esse quesito em comum. Apesar do fato de ter saído de casa e ter sido contemplado com um pouco de vida, meus pais se demonstraram chateados e decepcionados comigo, eles não poderiam compreender o bem que aquela experiência me tinha feito e percebi que a minha luta seria muito maior do que eu imaginava. Mesmo tendo essa experiência boa, de vida, toda minha empolgação foi frustrada por não atender às expectativas dos meus pais. Mesmo estando um tempo sem fumar, beber ou usar Cannabis, percebi que a Cannabis tinha me dado uma injeção de vida, eu sempre considerei a Cannabis uma planta mística, poderosa, alguns a classificam como enteogena, ou seja, aquilo que o leva ao encontro de Deus. Mais uma vez me senti amparado por Deus, justo quando eu mais precisava, era muito bom poder sentir algo, principalmente algo tão forte e empolgante e que apesar da minha família não aprovar essa postura, isso iria ser algo a reconsiderar. 174
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No dia seguinte começava a tentar adotar uma nova postura, tinha que fazer alguma coisa diferente, percebi que só dependia de mim, por mais que as pessoas quisessem que eu me sentisse bem, quem poderia fazer isso por mim era só eu mesmo, e um novo dia amanheceu para mim, uma nova esperança. Aos poucos voltei a conversar com meus pais e amigos, mas sem forçar nada, teria que ser cauteloso, pois percebi que me encontrava num estado emocional delicado. Combinei de correr com um amigo da minha rua e adotei a bicicleta novamente como uma ferramenta de solução de conflitos, pela primeira vez resolvi encarar a minha angústia de frente. O clima dentro de casa, era difícil, passei a sair de bicicleta com mais frequência e toda vez que eu saía de casa meus pais pensavam que eu estava indo me drogar. Ainda não tinha exposto nada a meus pais nem a ninguém a respeito do que estava passando, da minha fase conflitante, infelizmente minha família ao saber que eu era pai, mesmo querendo, não tinha conseguido me ajudar em nada. Ao contrário, haviam conseguido só piorar as coisas, como dizendo que eu não sabia como ser um filho, então resolvi sair dessa barca sozinho, a final tinha um conhecimento teórico e a vontade de testar uma autoterapia, uma ideia que tive. Era como se tivesse acabado de acordar de um pesadelo, mas ainda tinha muita coisa a se pensar, principalmente o fato de que era pai, mas isso continuava me incomodando muito, de uma forma que não saberia descrever. A questão era que eu queria ser um pai, mas não sabia como, faltava muita coisa, tudo estava confuso na minha cabeça, precisava de respostas e passei a me concentrar nisso. Sentado num banco do Parque Ipanema, depois de uma pedalada até lá, comecei a refletir sobre minha vida, desde o começo, o que eu estava precisando fazer para tomar as rédeas da situação novamente? Um emprego era a resposta mais óbvia, mas fui lembrando de como o fato de ter um recurso financeiro disponível havia me distanciado ainda mais dos meus problemas, quanto mais eu pensava em ser pai, mais eu tentava fugir disso e o dinheiro era o que me possibilitava essa fuga, fuga pra lugar nenhum, só para até onde ele pudesse me levar. Eu saía para me divertir, tentar esquecer, bebia, pegava mulheres, perdi meu limite completamente, algo que sempre prezei com muita cautela, tinha medo de que tudo isso voltasse a se repetir, a dor era grande e não estava recuperado ainda, vivia sobre pressão e o prazer é sempre algo muito tentador. Resolvi que iria ficar um tempo sem emprego, pra colocar as coisas no lugar, reestabelecer o equilíbrio que tinha perdido, me concentrar nas minhas ideias.
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Essa era uma decisão minha, tomada de forma consciente e que ninguém entenderia o por que, mas era por um bem próprio e também esse seria o caminho que levaria a me sentir um pai pro meu filho. Não queria correr o risco de me perder novamente numa busca pelo prazer que não me preenchia em nada, só me trazia mais angústia e sofrimento, precisava tomar o controle de mim mesmo, antes de pensar em ser um pai, naquelas condições em que me encontrava, fragilizado, vulnerável, eu não tinha a força suficiente pra ser um pai, eu estava em busca disso e só o tempo, em conjunto com meu empenho, poderia dizer quando estaria pronto. Esta seria a primeira decisão difícil que tomará depois de muito tempo, talvez a primeira em relação a ser pai, tinha encontrado a vida novamente correndo nas minhas veias, mas sabia que nada seria fácil. O clima lá em casa vinha de mau a pior, uma por meus pais não saberem o que estava se passando e outra por verem minha imparcialidade em relação a arrumar um emprego, dar um jeito, de me virar. Estava fazendo o contrário, ao invés de me desesperar, como já havia feito antes, resolvi tentar me acalmar, ver o que estava realmente acontecendo comigo, estudar uma solução, buscar resolver todos os meus conflitos internos da melhor forma possível, o tempo passou de inimigo a aliado, e eu precisava dele.
“Deixe-me ir Preciso andar Vou por aí a procurar sorrir prá não chorar Deixe-me ir Preciso andar Vou por aí a procurar sorrir prá não chorar... Quero assistir ao sol nascer Ver as águas dos rios correr Ouvir os pássaros cantar Eu quero nascer Quero viver...” . Preciso me Encontrar - Cartola
Os dias se passavam como uma tortura, cada segundo causava um desconforto, a influência que o meio social exercia na minha angústia era agonizante, não conseguia ter clareza, mas começava a dar mais atenção para essa forma negativa com que as coisas se colocavam diante mim. A pressão existe, por mais que as pessoas ao seu redor tentem ao máximo não causar um mal estar, te apoiar, acreditar em você, no que está vivendo, sentindo, é muito difícil de ser evitada, as situações cotidianas influenciam, tudo parece influenciar e 176
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influencia de alguma forma. Acho que a coisa que pesava mais, era o fato dos meus pais saberem que tenho um grande potencial e continuar preso naquela situação, acabei percebendo isso numa escapada de bike pela cidade. O fato de estar passando por um momento complicado da minha vida, as pessoas ao meu redor, minha família e amigos, estavam sentindo uma angústia enorme por me ver naquela situação e isso doía o dobro em mim, machucava um tanto, quase que insuportável. Eu não queria que as pessoas se sentissem mal por mim, por que apesar de estar realmente sofrendo bastante com aquilo, havia escolhido sofrer, era uma decisão consciente, sabia que iria sofrer e que não seria pouco, mas teria que enfrentar aquilo, teria que superar essa dor. Queria que as pessoas não se preocupassem comigo, pois apesar da forma com que elas interpretassem minha situação, eu estava bem, procurava respostas, resolver meus conflitos e sentia que já começara a ter resultados positivos, esclarecer algumas questões. Meus pais e minha irmã ficavam muito mal, meus amigos sem saber o que estava acontecendo, por que eu tinha sumido, parado de sair, pelo menos com eles tinha a desculpa que não estava trabalhando, sem dinheiro, o que na verdade não era só uma desculpa, era uma realidade, o que dificultava minha fuga, por que dificilmente iria parar se estivesse trabalhando, com dinheiro no bolso. Então essa questão do desemprego era uma situação que me forçava a encarar minhas questões, pois sabia que só essa luta poderia me tirar dessa situação. O problema é que grandes batalhas nunca são fáceis, avaliava as probabilidades e tentava continuar essa batalha até onde pudesse, era um foco, uma coisa que queria, que precisava e sabia que me faria bem. Um ponto positivo e que me dava forças era a mãe do meu filho, ela percebia o meu sofrimento e tentava entender meu lado, muitas vezes ela me cobrava uma atitude, mas ela respeitava muito a minha dor, não sabia o que ela pensava a respeito, qual a sua visão da situação, talvez percebesse que eu não estava fazendo de má intenção. Nunca tinha me aberto com ela, expressado meu ponto de vista, ela mau sabia o que se passava na minha cabeça e no entanto ela nunca tomava uma decisão mais polêmica, tentava resolver tudo na base da conversa, com um bom relacionamento, com amizade, tudo da melhor forma possível, ela sempre teve essa iniciativa de evitar uma discussão ou briga, tanto que nunca acontecera.
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Essa ajuda de Catarina pra mim era o mais importante, pelo fato de nós dois sermos os mais envolvidos em tudo que estava acontecendo, apesar de algumas pessoas tomarem partido por estarem envolvidos indiretamente, essa era uma questão nossa e a gente estava se esforçando pra resolver da melhor forma possível. Era praticamente impossível não sofrer pressão, até mesmo esse ato de compreensão de Catarina me trazia culpa, assim como a vontade de ajudar de todas as outras pessoas ao meu redor, o fato de tentarem se relacionar comigo e eu estar num momento tão egoísta, tão fechado. Meus pais continuavam mandando algumas indiretas pra arrumar um emprego, alguns amigos também, eu sabia que a intensão era boa e aquilo mexia comigo, mas estava convicto em continuar a seguir aquele caminho. Não era fácil, o que eu iria fazer, será que aquilo que estava fazendo era o certo, as dúvidas eram frequentes e muitas das vezes elas se apresentavam mais pressionadoras, a luta era cansativa, será que eu iria ter que me esquecer de tudo aquilo que eu acreditava, que queria pra mim e me entregar ao sistema, desistir de tudo. Um amigo que trabalhava comigo na faculdade na qual sempre tinha contato, me ligou, disse que um amigo estava comprando uma pousada no Espírito Santo e estava precisando de uma pessoa pra ficar lá pra ele, tomar conta da pousada e que havia falado de mim com o cara e passado meu telefone pra ele. Falou que tinha visto algumas fotos da pousada, que o lugar era bacana, arrumadinho, na beira da praia e que o cara iria me ligar. Fiquei pensando nessa ideia, a final não era tão ruim assim, era uma oportunidade de sair daquela pressão, de ter um lugar onde estaria sozinho comigo mesmo, pensando, na frente do mar, me virando, um momento íntimo comigo mesmo, um lugar pra pensar livre desse clima pesado. Um dia, enquanto caminhava com um amigo no bairro, meu telefone tocou, era o cara, me falou sobre a pousada, ficava em Marataízes, que a praia era muito bonita, que a pousada ficava de frente pro mar, fez a maior propaganda. Disse que queria alguém de confiança pra ficar lá, tomar conta da pousada, disse que tinha comentado com esse amigo em comum e que ele havia falado de mim, que eu era uma pessoa de confiança e queria saber se eu tinha interesse de ajudar ele com a pousada, ele usou o termo gerenciar pra dar uma ênfase. Falou que estavam com uma obra grande por lá e que poderia tentar dar alguns treinamentos para empreiteiras, descolar algo em paralelo, perguntei qual era a proposta dele e disse que me pagaria setecentos reais mensais e mais trinta por cento do lucro líquido da pousada, fiquei de ligar pra ele depois para dar resposta, pedi um dia pra pensar.
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Ele precisava com urgência, me ligou na quarta à noite e iria pra lá no feriado de sexta-feira da paixão, pediu pra dar uma resposta rápido, pois se eu topasse teria que partir com ele na sexta já com as malas prontas pra ficar lá, disse que ligaria no dia seguinte. Apesar de estar querendo muito ir, era uma decisão difícil a ser tomada, iria sair de casa, morar sozinho, me virar, não sabia cozinhar direito, mal lavar uma roupa, não seria fácil, mas havia um problema maior, o casamento da minha irmã era no final do mês, é claro que eu não poderia perder, seria padrinho e era o casamento da minha irmã, mas eu daria um jeito com Raul quanto a isso. Estava com medo, era uma mudança radical, por mais que eu queria sair de casa e essa era minha vontade, mas quando você se depara com uma situação real a coisa é diferente, eu teria que decidir entre ir ou não, a saudade da minha família e amigos, tudo parece pesar nesses momentos, até mesmo questões que pareciam ter pouca importância. Outra coisa que teria um papel importante na minha decisão era a questão de ser formado em Psicologia, nível superior e ir pra Marataízes virar caseiro de pousada, foi a primeira coisa que meu amigo falou depois que desliguei o telefone e contei pra ele, era o que todo mundo iria dizer, mas estava disposto a ignorar esse comentário, pois eu sabia o que era bom pra mim, e apostava nisso. Fiquei a noite toda pensando nisso, pensando muito, no dia seguinte falei com meus pais, a reação deles não foi muito boa, mas meus pais sempre me apoiaram em minhas decisões, no quesito de não tentar me impedir, isso não quer dizer que aprovavam as mesmas. Minha mãe disse a mesma coisa que meu amigo, ela não entendia minha decisão porque não sabia os meus motivos e preferi que continuasse assim pra todos, sem exceções. Depois de pensar um dia inteiro e a noite inteira, liguei para Raul já na sexta-feira da paixão dizendo que iria, arrumei minha mala e esperei dar a hora que tínhamos combinado. Meus pais ficaram loucos, a final eu nem conhecia o Raul, só conversei com ele por telefone, nunca o tinha visto, não sabia nada de nada, só sabia que ele queria comprar uma pousada. Eu já vinha tendo uma ideia de escrever um livro, levei vários textos meus de Psicologia, caderno, levei uma caixinha de som com um monte de música em pen drivers, seria um ótimo lugar para escrever. Encontrei com Raul em frente à estação ferroviária, ele chegou num bufador oito quatro, num entendi nada, cheio de planta e lotado de coisas, eu pensando aonde que eu iria e aonde iriam minhas coisas. Ele desceu do carro, arrumou as coisas no porta malas e conseguiu um espaço pras minhas coisas e para mim, despedi da minha família e entrei no carro rumo à Marataízes. Estava muito desconfortável, dividindo 179
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espaço com toda aquela bagagem, malas, ventilador, plantas, panelas, pra piorar Raul tinha colocado a tampa traseira do porta malas no encosto do banco, era como se estivesse encostado numa placa de madeirit. Minhas costas já estava começando a incomodar, coloquei o edredom que estava levando sobre a tampa pra ficar mais macio e diminuir o incômodo, fui conversando com Raul e a namorada dele durante a viagem, nos conhecendo, estabelecendo um vínculo, ele foi me contando sobre a pousada, tinha muitos planos e essa ideia foi se desenrolando. A gente estava se entendendo bem, ele estava muito ansioso, adquirir essa pousada era uma vontade muito grande dele, um sonho, estava próximo de sua aposentadoria e pretendia se mudar pra lá. Fizemos uma parada em Realeza pra fazer um lanche e esticar as pernas, voltamos pra estrada, perguntei como ele tinha achado essa pousada lá pra comprar, ele contou que já estava querendo comprar um lote na praia e tinha ido na praia de neves olhar uns lotes. A namorada dele era louca por neves, falou um monte, queria que ele comprasse um lote lá, que a praia era muito bonita, encheu a bola do lugar, mas eu estava querendo saber da pousada, a final iria ficar lá sozinho, queria saber como era a localização, se era isolado, seguro, essas coisas. Raul contou que tinha conhecido um casal em um bar e que estavam querendo vender essa pousada, ele gostou do lugar e combinou que iria voltar na sexta-feira da paixão para fechar negócio. A família dele estava meio com o pé atrás, com medo dessas pessoas estarem passando ele para traz, não o apoiavam na compra e tentaram fazer de tudo pra ele desistir da compra, disse que tinha conversado com os proprietários e eles pareciam pessoas honestas. Raul estava indo para comprar a pousada, lembro que ele brincou dizendo que se o casal estivesse enrolando ele, seria coisa de artista. Passei quase o resto da viagem pensando nisso, Raul nem conhecia as pessoas direito, conheceu num bar, sei lá como conheceu essas pessoas e eu também nem o conhecia, estava conhecendo ele dentro do carro à caminho da pousada, pensando na loucura como as coisas estavam acontecendo, tudo às escuras, o que a gente tinha eram apenas palavras e um voto de confiança. É claro que essa situação mexia comigo, estava com medo, ainda não sabia nada a respeito de tudo, tinha muito dinheiro envolvido na questão, outro estado, um lugar onde eu não conhecia ninguém, mas fui pra ficar, queria conversar com ele e dizer que garantia uma permanência de no mínimo três meses, caso não quisesse continuar lá, avisaria com antecedência pra ele conseguir alguém pra me substituir, seguimos viagem madrugada adentro. 180
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A uns cem quilômetros da pousada, deveria ser umas quatro da manhã, Raul disse que estava sem saber se o pessoal o esperava na pousada como combinado, perguntei como ele havia combinado com o pessoal, ele disse que tinha mandado um e-mail pro cara, mas o cara não tinha respondido. Brinquei com ele, falando que ele era louco, nem sabia se o pessoal poderia se encontrar conosco, ele então disse que viu que o cara leu o e-mail, só não respondeu, mas que tinha visto que ele estava indo pra lá. Chegamos umas cinco e meia da manhã, o dia estava começando a raiar, o pessoal estava lá, acordaram e abriram o portão da pousada pra gente, desci do carro meio desconfiado, ansioso e com expectativas mil, o pessoal recebeu a gente super bem, pareciam pessoas normais. Guardamos as malas e voltamos para um espaço que tinha na frente da pousada, o lugar era bacana, os quartos arrumadinhos, uma cama de casal e uma de solteiro, frigobar, ar-condicionado, televisão com antena parabólica, um banheiro, tudo organizado. Muito bom mesmo, oito quartos, todos padronizados, uma piscininha na área da frente da pousada, com um banheiro e uma ducha, uma cozinha grande, gostei bastante, a impressão foi muito boa. Os proprietários chamaram o Raul pra ver uma mudança que haviam feito por sugestão dele, subimos para o lugar onde era servido o café da manhã, era um cômodo que ficava em cima da área da cozinha, passando pelo portão e finalizava na portaria, tinha uma escada de acesso, era um cômodo grande, cinco de largura por vinte de comprimento, havia um balcão numa das extremidades e cadeiras e mesas no resto do salão. Esse salão era todo fechado, por causa do vento que era demais, Raul havia sugerido que eles abrissem uma janela na parte que dava de frente pro mar, um janelão, e os proprietários abriram, o janelão ficou lindo, de frente pro mar, aquela vista toda, a ideia havia sido perfeita, não conseguia nem imaginar aquela área da pousada sem aquela janela, seria uma grande perda. Quando cheguei na janela pra olhar o mar, o sol estava nascendo, nossa, imagina aquele nascer do sol lindo, esse foi meu cartão de visita da pousada, fui logo me apaixonando pelo lugar, fiquei louco, cheguei quase me emocionar, o pessoal desceu para tomar café e eu fiquei lá contemplando o visual. Acendi um cigarro e fiquei muito satisfeito em estar ali, naquele lugar eu teria a inspiração que precisava para poder escrever meu livro, fiquei um bom tempo admirando a paisagem e pensando que ali seria o lugar perfeito pra mim pensar, colocar a cabeça no lugar, procurar respostas e soluções. Senti um alivio tão grande, uma paz difícil de explicar, pela primeira vez depois de muito tempo senti algo bastante positivo em relação a minha situação, talvez ali pudesse em fim começar a resolver meus problemas, meus conflitos e isso se tornou uma expectativa muito esperançosa. 181
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Desci pra tomar café e me encontrei com o pessoal lá embaixo, estava tudo muito bom, o dia estava perfeito, bonito e tudo isso influenciava de forma positiva, harmônica, ainda mais pra mim que sou muito supersticioso. Raul queria resolver a questão da compra o quanto antes, pelo jeito não era só eu que estava empolgado, Raul era pura empolgação, planejando pequenas mudanças. Naquele clima, saíram para concretizar a compra, foram até a cidade mais próxima se encontrar com o advogado pra assinar a papelada e transferir o dinheiro, eu mais a namorada dele ficamos na pousada, eu estava morrendo de sono, viajamos a noite toda e num deu pra tirar aquele cochilo no carro. Entrei pro quarto em que coloquei minhas coisas, tomei um banho e deitei na cama, dormi umas horas, quando acordei o pessoal não tinha chegado ainda. A namorada do Raul estava acordada e veio logo me dizendo que me chamou, bateu na porta do quarto e eu não atendi, falei que estava dormindo e ela continuou dizendo que o telefone dela tocou e quando ela atendeu era uma pessoa dizendo pra ela sair fora de lá por que a polícia federal estava indo pra lá prender todo mundo e ela ficou muito assustada. Fiquei meio desconfiado se era isso mesmo que ela queria, mas de qualquer forma era uma situação um tanto estranha, quem será que estava ligando e falando essas coisas. Quando Raul chegou ela contou pra ele, ainda muito assustada, ele disse que deveria ser alguém da família dele, pois não queriam que comprasse a pousada e o assunto morreu por aí. O local era meio deserto, em volta da pousada tinham vários lotes vagos e apenas uma casa ao lado, de um cara que passava somente os finais de semana lá, a três quilômetros à esquerda ficava um povoado, mais parecendo um bairro e a quinhentos metros à direita algumas casas e pousadas. A praia era como se fosse particular, dava um pouco de medo, mas os ex-proprietários garantiram que era seguro, mais até onde eu poderia acreditar, mesmo se não fosse tão seguro assim acho que não diriam, era um risco que iria assumir. O clima era de comemoração, eu e Raul já estávamos com uma intimidade boa, conversamos bastante, ele era um cara gente boa, tínhamos algumas coisas em comum, as ideias dele em relação à pousada eram muito boas e eu estava ali pra cuidar como se fosse meu, fazer um ótimo trabalho. Os ex-proprietários eram muito bacanas também, a mulher (Joana) era mais doidinha, já o marido (Otávio) era mais centrado, mas muito gente boa, se prontificou a me ajudar no início, dar umas dicas, me mostrar os lugares para comprar as coisas e me explicar questões da pousada, lavanderia, tratar a água da piscina, esses tipos de coisas. O Raul saiu junto com o Otávio e voltaram com uma caixa de cerveja pra comemorar o negócio fechado, e começamos a beber, era de tardezinha e logo veio a lua cheia, enorme, 182
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tiramos várias fotos da lua, do janelão que a gente batizou como mirante, uma visão muito bonita. Aquele vento, sentado ali beira-mar, já estava pensando que era ali que iria escrever meu livro, sentado numa mesa olhando o mar do mirante, conversando com Deus e buscando respostas e compreensão. Acordamos na manhã de sexta, caminhamos até a lagoa, uma parte onde a água doce e salgada quase se encontravam, sentamos num quiosque e ficamos ali admirando, em épocas de chuva a água da lagoa desembocava no mar, um lugar bonito e tranquilo. Começamos a tomar uma cerveja quase na hora do almoço, acompanhado de uma porção de peixe, Otávio e Joana chegaram depois e se juntaram a nós, Raul pediu que eu fizesse um vídeo do lugar para divulgação, peguei a câmera e fiz um vídeo muito bom, pegando a essência do lugar e claro algumas mulheres gostosas de biquíni pra dar uma valorizada. Enquanto estávamos em clima de festa, Joana encontrou um pessoal cliente da pousada, essa galera estava em outra pousada, Joana fez a propaganda dizendo que Raul havia comprado a pousada e que seria ativada, que da próxima vez que fossem pra lá poderiam procurar a pousada que já estaria funcionando. Continuamos no quiosque, até que o Raul disse que iria na pousada buscar alguma coisa e resolvi ir com ele pra buscar minha carteira, seguimos para a pousada, conversando, olhando as mulheres, ele tinha muitos planos pra pousada e eu também e Raul dava abertura pra mim expor algumas ideias. Chegamos na pousada, fui pegar minha carteira no quarto e quando eu voltei Raul estava com um baseadinho na mão, perguntou se eu queria dar uns dois tragos com ele, acabei fumando com ele. Quando a gente estava voltando apareceu o Otávio dizendo que tinha um dos amigos do cliente dele querendo ficar na pousada, a pousada estava preparada pra receber pessoas, tudo limpinho, arrumado, mas não tinha nada definido ainda em relação a preços e havia algumas, poucas, pendências. Raul não esperava acomodar ninguém a não ser nós, pois ele tinha ido pra curtir mais a pousada, então fiquei na pousada esperando eles voltarem, retornaram com os hospedes, recebi o pessoal mostrei os quartos e escolheram um, era uma família, um casal e dois filhos, uma menina de uns nove anos e um menino de aproximadamente doze, eram cariocas, eles se acomodaram e Raul voltou pra praia com Otávio. Agora era por minha conta, já tinha começado a trabalhar, fiquei conversando os meninos e eles me fizeram lembrar muito eu mais minha irmã, o menino era cabeça, trocava uma boa ideia, era surfista e conversamos muito sobre surfe, sempre tive muita vontade de surfar, tirei algumas dúvidas com ele, a família depois de se acomodar, tomou um banho e saiu, aproveitei pra entrar pro quarto e tomar um banho, tirar o sal do corpo. 183
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Enquanto eu tomava banho, escutei alguém gritar no portão o nome do Raul, era um dos clientes antigos, da janela do meu banheiro dava pra ver o portão e gritei pra esperar um pouco, eles entraram e quase me pegaram pelado. Atendi o cara mais a mulher dele na porta do meu quarto, enrolado com a toalha na cintura, o cara já estava meio chapado e abafado, disse que no lugar que eles estavam arrumaram confusão por causa de som alto e saíram de lá e queriam saber se tinha vaga pra ficar lá conosco. Perguntei quantos quartos eles precisavam e eles começaram a contar o pessoal, deu quase umas vinte pessoas, falei que podiam vir, que tinha quarto pra eles, isso tudo sem Raul saber. Eles saíram pra buscar as coisas e voltar em seguida, de repente a casa estava cheia, só tinha um quarto livre, cinco era para esse pessoal, um que o Raul estava com a namorada e o outro eu, coloquei uma roupa e fiquei aguardando o pessoal chegar. Estava sentado no mirante, um carro passou e viu o portão aberto e parou perguntando se tinha vaga, era um casal, falei que tinha um quarto e eles entraram, pronto, casa cheia e o Raul nem sabendo o que estava acontecendo, ele já havia combinado preço com a família que chegou primeiro, setenta reais a diária, muito barato pelo conforto, mas acabou pegando ele de surpresa e o preço ficou esse. De repente chegou o pessoal que tinha brigado lá, um monte de gente, tudo carioca, nesse meio, duas meninas, namorada dos caras, boa demais as duas e eu só observando. A rapaziada ligou o som do carro e começou a fazer bagunça, os frigobares ficaram entupidos de cerveja, gente dentro da piscina, a área da frente estava toda tomada de gente, bebendo e dançando, a galera era animada e bagunceira, estavam fazendo a festa na pousada, interagi com o pessoal, muito bacana. Quando Raul chegou já era quase nove da noite, a pousada estava cheia, ele não entendeu nada, me perguntou o que tinha acontecido e falei que o pessoal veio procurar quarto e que estava tudo cheio, ele ficou louco, saiu com Otávio e voltou com uma grade de cerveja e ficamos tomando até horas. O casal que chegou por último o marido da mulher enturmou com a galera e ficou bebendo com o povo, o quarto que estava livre a antena da televisão tinha um probleminha, era a única que apresentava esse problema, nem lembro qual, e a mulher do cara cismou de ver televisão e deu maior trabalhão pra mim. Tive que trocar a televisão do quarto dela com o meu, o aparelho e nada de conseguir sintonizar a tv dela, ela ficou meio chateada até que consegui, foi um custo, mas o que deve ter deixado ela mais brava foi a mancada que o Raul deu com ela. A mulher estava junto com o marido e o Raul se referiu a ela como se ela fosse mãe do marido dela, a senhora está aí com seu filho..., a mulher ficou puta, mas sinceramente a diferença de idade parecia ser enorme entre eles, o 184
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marido dela disse que a diferença era de dois anos, mas que todo mundo pensava isso, ele riu demais. O pessoal bebeu demais, o Raul ficou louco, estava bebendo o dia inteiro. Depois que todo mundo entrou, fechei a porta da pousada, fiquei com medo de não acordar cedo e o pessoal ficar trancado lá dentro, tentando me acordar e acabei deixando a chave na porta, do lado de dentro, Raul tinha falado que seis horas estaria de pé. Fui dormir, de manhã quando acordei Raul já estava acordado e me contou que esse casal tinha ido embora sem pagar, foi foda, o primeiro cano assim tão rápido, ele disse que levantou para buscar o café da manhã e deixou o portão aberto, eles entraram no carro e foram embora e quando ele voltou o carro já não estava mais lá e o quarto vazio. Era nossa primeira lição, apesar de tudo foi bom ver como as coisas realmente acontecem, pois a partir de então me manteria alerta quanto a esse tipo de golpe, também o Raul foi falar que a mulher do cara era mãe dele, sorte dele ela ter saído sem pagar e não matado ele. Fomos na rua comprar alguns galões de água mineral e como na pousada não havia sinal de celular, recebi algumas mensagens enquanto fazíamos algumas compras no distrito próximo à pousada. Numa dessas mensagens estava a mensagem da Catarina, desesperada, na hora que eu li a mensagem, fiquei louco, escreveu que meu filho estava passando mal, quase morrendo e me perguntando onde que eu estava, que ele tinha dado convulsão, nem consigo me lembrar do resto da mensagem, essa parte da mensagem mexeu comigo, fico na cabeça. Como estava de carona com Otávio e Raul, eu nem me lembro como eu agi direito, qual foi minha reação, tentei esquecer, mais ficou na cabeça, ficou como se fosse um lembrete na minha cabeça, na hora, pela correria, a pousada cheia, faltando algumas coisas, talher, prato, tempero, o pessoal fazendo bagunça lá o dia inteiro. Os cariocas passavam mais tempo na pousada do que na praia, então não tinha descanso, sei lá, estava tudo uma correria que não deu tempo pra pensar naquilo, parar, ler a mensagem novamente, pensar, num tinha como parar. Quando voltamos pra pousada comecei a pensar um pouco, mas sempre tinha alguém me chamando, pra pedir alguma coisa ou pra completar meu copo de cerveja, em alguns momentos eu até bebia uma cerveja com o pessoal, no período da noite. Ficava mais de lado, aproveitando para observar um pouco, sempre gostei de observar, pra mim era conhecimento, fiquei tentando pensar na mensagem, travando uma luta no desenrolar do dia, nem me lembro 185
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como a noite passou. Sabe quando você faz as coisas sem pensar, a cabeça tá longe, em outro lugar, passei batido, só fui parar pra pensar em tudo na cama, quando deitei na cama pra dormir veio tudo de uma vez, as dúvidas que tinha a respeito de ficar lá, que o cara me levou e iria me respeitar caso não ficasse e voltasse com ele pra casa. Tinha que conversar com ele sobre o casamento da minha irmã, que queria ir no casamento, superar o medo que eu estava de ficar, iria ficar sozinho num lugar deserto em volta, onde não pegava celular, só nas proximidades (aprox. quatrocentos metros), agora meu filho internado, o que vou fazer, que loucura, tudo ao mesmo tempo me bombardeando, junto com outras questões que não paravam de surgir. No domingo de manhã o pessoal que estava hospedado iria embora antes do meio dia, depois que os cariocas foram embora melhorou o clima, apesar de que eu iria sentir falta das mulheres dos caras, tomando sol de biquíni na área da piscininha da pousada. Era foda também saber que iria ficar sozinho lá, sem saber cozinhar, lavar roupa, eu só iria ter na casa, um fogão e uma geladeira, mais nada na dispensa, a não ser aquilo que comprasse, mesmo depois de pensar em tudo não consegui resolver nada, como se nem tivesse pensado em nada ainda. As mulheres começaram a fazer o almoço pra gente e nós ficamos no mirante conversando, estava decidido a ficar, pois além de ser bom pra mim, pra dar uma esfriada na cabeça, iria receber um dinheiro e poder ajudar, era o que eu mais queria, poder ajudá-la, talvez isso fosse o que fizesse maior sentido na minha ida. Otávio estava insistindo pro Raul ficar e ir embora na segunda, só que Raul teria que trabalhar na segunda, esse assunto rendeu o almoço todo e continuou depois dele. Raul acabou concordando em ir embora no outro dia e saíram para comprar alguns enfeites pra pousada, fiquei lá sozinho esperando a mulher que iria dar faxina na pousada chegar, fui pro mirante acendi um cigarro e fiquei lá pensando. Era perceptível que Raul estava com um pouco de medo de estar sendo passado pra trás, percebi o quanto é difícil fazer um negócio desse tipo, sei lá até eu estava um pouco desconfiado, não sei, estudava eles em alguns momentos, as coisas que diziam, seus atos, o papo, desconfiava de tudo. Tinha até minhas dúvidas se os dois eram realmente casados, eles eram muito diferentes, golpes assim envolvendo muito dinheiro são coisas planejadas, coisa de quadrilha, mas mesmo com medo e rolando tudo que estava rolando iria ficar, eu tinha que ajudar Catarina financeiramente, meus pais haviam dito que não ajudaria, que eu teria que me virar. A mulher que ficou de limpar a casa havia chegado, abri o portão pra ela, já tinha conhecido ela antes, nos dias em que tínhamos hospedes, aproveitei que estávamos sozinhos 186
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na pousada e fiz algumas perguntas a ela, querendo saber a respeito de Otávio e Joana. Ela disse que nem conhecia eles, que uma amiga que tinha arrumado o emprego pra ela, algo do tipo, num disse quase nada, como se não quisesse se envolver, sendo que eles haviam dito ao Raul que conheciam a mulher, que era gente boa, falou comigo que era casada, pra mim não mexer, fiquei sem entender. Quando eles voltaram das compras, depois de horas, ficaram fora umas cinco horas, quando retornaram a menina já havia ido embora, terminado de limpar, Raul estava todo empolgado com os enfeites, pra colocar na parede, uma âncora e um timão de barco, feitos de fibra de vidro imitando madeira, até bonito os enfeites, de bom gosto. Trouxeram cerveja e peixe pra fritar de tira gosto, subiram pro mirante e começaram a beber, a namorada do Raul e a Joana se davam muito bem, ficavam só juntas, eles bebendo e conversando e eu tomando uma com eles. Percebi que Otávio e Joana estavam diferentes comigo, podia sentir que estavam diferentes, no dia anterior ela tinha me cantado, ela e a mulher do Raul estavam me perguntando se eu iria mesmo ficar lá, disse que iria, aí elas perguntaram se eu iria conseguir ficar ali sem mulher, disse que cedo ou tarde iria acabar aparecendo alguma mulher, que isso num seria problema não. Joana falou com a namorada do Raul que eu não iria ficar sem mulher não, falou que iria mulher lá na pousada atrás de mim, ela falava muita bobeira e brincou dizendo que gostava de chupar pau novo e olhou pra mim. Pra variar no fim da noite, na hora que estava indo embora, abri o portão pra eles saírem com o carro, quando saíram o marido dela já estava arrancando pra ir embora e ela o pediu pra parar e me chamou pra ir com ela, do lado do marido dela, eu fiquei todo sem graça e ela disse mais uma vez, “entra aí, vamo comigo...”, dei uns dois passos pra trás seguidos de uma risada de quem não entendeu direito e levou na brincadeira, então o marido dela arrancou o carro sem graça também, ela também já estava muito bêbada, além de tudo não era bonita. Fiquei pensando, talvez fosse por isso que eles estavam diferentes comigo, mas antes deles saírem pra comprar os enfeites, na hora do almoço, eles estavam normais me tratando bem e agora que voltaram estavam esquisitos. Comecei a me preocupar, fiquei com medo, o Raul já estava querendo comprar os dois lotes do lado pra aumentar a pousada, percebi que eles tiveram uma conversa, mas comecei a ficar com medo. Raul já tinha envolvido os ex-donos da pousada demais, falando que tinha dinheiro, isso e aquilo, a Joana pedia pra buscar cerveja toda hora, o tempo que Raul passava na pousada ou fora dela era bebendo, isso foi me intrigando, fui tomar um banho e fiquei 187
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pensando nisso tudo. Quando o Raul saiu com eles e demorou aquele tempo todo, eu já estava preocupado, com medo de terem feito alguma coisa, de matar ele, sequestrar e tentar extorquir mais dinheiro, sei lá, isso tudo foi se juntando na minha cabeça. Terminei o banho e subi pro mirante, quando cheguei a namorada do Raul já não estava mais lá, tinha descido pro quarto pra dormir, fui ficando grilado, será que eles estavam tentando executar a gente. O trabalho do Raul era a única coisa que poderia servir de alerta, mas dava tempo pra fugirem, pois o Raul já tinha avisado que não iria trabalhar na segunda, ou seja, teriam praticamente um dia pra sumir, ninguém mais sentiria nossa falta antes disso. A área do mirante, que era a área do café, tinha uma bancada de ardósia no fundo dela, atrás dessa bancada tinha armários pra guardar copos, xícaras, talhares, pratos, cestinha de pão, essas coisas. Otávio se levantou e foi em direção à bancada, foi para trás dela e sumiu, se abaixou. Quando eu vi aquilo, pirei, levantei da cadeira e parei próximo à porta, acendi um cigarro, estava de óculos escuros, e fiquei olhando para a bancada, mas com a cabeça posicionada como se estivesse olhando em direção à mesa onde a gente estava sentado. Estava posicionado pra descer as escadas a mil, veio na cabeça que ele estivesse se abaixando pra pegar alguma arma que estivesse escondida nas gavetas, por ali. Fiquei esperando na porta ele se levantar, terminei de fumar o cigarro todo e ele não havia se levantado, fiquei na dúvida. O telefone da Joana tocou, ela se levantou e atendeu, fiquei conversando com Raul, ela se apoiou no janelão olhou pra cima, como se estivesse tentando avistar algo, falou rapidamente poucas palavras e desligou, eu já estava abafado, então disse que iria no banheiro, desci as escadas grilado. Quando saía da escada passou um carro preto, um pouco rápido, passou e depois de alguns metros freou bruscamente, levantando poeira, num tinha nada em volta naquele lugar e o carro freou de uma vez, já entrei abafado, achando que faziam parte da quadrilha. Entrei pro meu quarto tranquei a porta, abri a janela e pulei, fui para o muro dos fundos e pulei pra rua, desesperado, me escondi no mato e fiquei observando, o carro ficou pouco tempo parado e arrancou rumo ao povoado, pulei pra dentro da pousada, peguei meus documentos e pulei pra fora de novo, saí tão desesperado que estava com a chave da pousada no bolso. Deveria ser umas seis horas da tarde (horário de verão), quando pisei na areia do mar, saí correndo rumo à lagoa, pra onde tinha algum movimento, corri como se estivesse disputando os cem metros, disparei, quando cheguei lá na frente, na metade do caminho, parei. Estava preocupado com Raul, o que eu poderia fazer, voltei e fiquei vigiando eles pelo 188
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janelão (mirante), eles estavam conversando, fiquei olhando sem saber o que fazer, resolvi me aproximar mais pra perceber o clima e vi Otávio junto com eles, encostado no janelão, Raul se juntou a ele, estavam conversando. Saí como quem voltava do mar, da rua mesmo disse a eles que estaria ali olhando o mar, pensando um pouquinho e voltei. Queria que eles achassem que estaria ali perto, caso quisessem fazer alguma coisa com Raul, voltei pro mar e desci correndo em direção à lagoa novamente, dessa vez já estava começando a escurecer. Fui caminhando na beira do mar, a maré estava alta, devia dar quase dois quilômetros de caminhada, tinha alguns barzinhos abertos, dei uma volta pelas barraquinhas da lagoa pra pensar o que fazer, não sabia, estava desesperado, assustado, tudo parecia suspeito. Estava tão preocupado que não conseguia pensar, era só desespero, Raul tinha ficado sozinho com eles e eu não sabia o que estava acontecendo, quando escureceu, me desesperei mais ainda. Fui a uma vendinha que tinha num lugar mais movimentado, pedi uma cerveja e perguntei se eles conheciam o Otávio e a Joana, o cara, com o filho e a mulher, só a mulher me respondeu, dizendo que não, desconversando, de uma maneira bem estranha, como se evitasse a conversa. Falei que eles estavam vendendo uma pousada, queria tirar alguma coisa da boca dela e antes que eu terminasse de falar, ela completou dizendo que eu iria ficar lá, como se já soubesse, aquilo soou mais estranho ainda, como ela sabia que era eu que iria ficar lá. Saí meio desconfiado, fui até o orelhão na intenção de ligar pra casa dizendo que iria voltar, mas quando cheguei no orelhão um carro parou próximo, desligou os faróis e ninguém desceu, “perceberam a minha falta e mandaram pessoas me procurar”. Num lugar pequeno não é difícil de me identificar, fiquei grilado, dei meia volta e sentei num bar de esquina, todo aberto, numa posição onde pudesse ver tudo, pedi uma cerveja, fiquei observando, muita coisa parecia estranha, um cara se sentou numa mesa próxima, sozinho, parecia nativo, as pessoas começaram aos poucos a irem embora e eu preocupado sem saber o que estava acontecendo com Raul ou o que poderia acontecer comigo. Com medo de estar sendo alvo, tudo estava bem vazio, era domingo a noite, poderia dizer que todos os turistas haviam ido em bora pra trabalhar na segunda, tinha só uma família no bar ao lado, um cara dentro do carro na esquina, com o carro estacionado, um outro carro parado próximo ao orelhão e esse cara na mesa próxima. Quando a família se levantou pra ir embora, levantei e fui pagar a conta, paguei a conta no balcão e saí rumo à praia, pelo menos de carro não conseguiriam vir atrás de mim, 189
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teriam que correr pra me pegar. Fui seguindo na areia até a beira do mar, a praia estava escura, a lua ainda não tinha aparecido, quando cheguei à margem comecei a caminhar em direção a pousada. Quando começo a caminhar, percebi que tinha algo vindo em minha direção, mas estava escuro, comecei a andar devagar, espremendo os olhos pra tentar enxergar, até que vi algo que parecia ser uma camisa branca. Naquela escuridão, a praia sem ninguém, comecei a dar alguns passos pra trás e voltei para um lugar mais claro, onde um refletor jogava na areia, próximo aos quiosques. Quando se aproximou eu tomei um susto, era um homem muito parecido com o Raul, estava andando com alguma dificuldade, pensei ser Raul e que provavelmente estaria ferido, cheguei mais perto na tentativa de ajudá-lo, quando vi, era um homem bêbado, cambaleando, se parecia um pouco com Raul mesmo, voltei em direção à rua, fiquei com medo, estava muito escuro. Quando cheguei na rua, vinha um homem caminhando, voltei em direção a praia e me escondi na vegetação nativa, esperei passar e o segui, de longe, em meio a vegetação da praia sem deixá-lo me ver. Ele foi até a esquina e ficou parado lá como se esperasse, fiquei grilado, pensando que os caras estavam me caçando, o homem bêbado passou direto andando pela beira da praia rumo outra praia. Fiquei pensando o que fazer, estava num estado de pânico, paranoico, voltei em direção à pousada pela praia, tudo escuro, voltei grilado, olhando ao redor, o barulho das ondas quebrando, a maré alta, com medo de tudo, vivenciando na pele Metrô Linha 743. Depois de andar um tempão consegui chegar no rumo da pousada, fui rastejando em meio a vegetação até no ponto em que poderia ver a pousada sem que eles me vissem (saindo da pousada antes de chegar na praia, havia uma duna uns dois metros acima do nível da rua), então fiquei olhando do cume da duna e vi o pessoal lá em cima, estava tudo normal, estavam conversando, bebendo cerveja. Comecei a pensar que estava pirando, será que era paranoia minha, comecei a me questionar, com muita aflição, percebi que tudo não passava de uma paranoia, algo que eu estava criando, uma outra realidade. Aquilo foi forte, senti como se estivesse andando em corda bamba, entre a loucura e a sanidade, me apavorei mais ainda, estava a um passo da loucura ou estava realmente louco, já não sabia mais. Nessa hora percebi que todos se levantaram e foram para janela, falando alguma coisa e apontando o dedo, apontavam para o mar, quando olhei pra trás ainda envolto pelos meus questionamentos mentais, era a Lua. A Lua estava nascendo, me paralisei naquele momento, o céu estava negro com aquela aura iluminando o final do mar, como se estivesse se escondendo por trás do mar, a lua começou a surgir, como se saísse de dentro da água, Lua 190
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Cheia, enorme. Senti uma calma, fiquei admirado pela beleza, nunca tinha visto um nascer da Lua tão bonito, perfeito, parecia que Deus estava mandando pra mim, senti como se me falasse, “calma, não se preocupe, eu estou aqui com você”, pude sentir a presença dele. A Lua continuou a subir e eu olhando, hipnotizado pela magia, contemplando a Lua enquanto ela subia, seu brilho refletia na água fazendo aquele caminho prateado, vindo lá do fim do mar. Na medida em que subia, mais o caminho ia se formando sentido à praia, quando ela saiu/surgiu toda, era enorme, com aquela cor vermelha/amarelada e o caminho prateado vindo até a areia, em minha direção. Foi mágico, me emocionei, algumas lágrimas escaparam, nessa hora sabia o que tinha que fazer, todas minhas dúvidas se foram. Respirei fundo, agradeci (Deus) a ajuda em conversa, levantei e fui em direção à pousada, o pessoal me viu saindo da praia e foram logo perguntando onde eu estava, falando que estavam preocupados comigo, entrei na pousada e subi pro mirante. Joana me deu o maior esporro, que eu não podia ter feito isso, sumir, perguntou se eu estava com eles (no sentido de trabalho), que se fosse desse jeito que nem precisava ficar na pousada, falando um monte. Percebi que Otávio e ela estavam querendo me derrubar, talvez pra poder ficar olhando a pousada sozinhos e ganhar trinta por cento ou até mais de comissão. Falei que estava pensando numa coisa particular e ela falou que se fosse por causa de namorada, de mulher, num justificava não. Disse que eu tinha um filho e que ele havia passado mal e eu nem sabia como ele estava, que estava pensando e havia decidido não ficar, iria voltar pra casa, aí eles ficaram sem graça na hora, a coisa era séria, estava sem graça com Raul, mas ele foi o primeiro que me entendeu, talvez por algum interesse também. O clima se acalmou, foi quando a namorada do Raul reparou uma sacola que formava a imagem certinha de Nossa Senhora Aparecida, a sacola era preta, estava em cima do balcão com alguns tira gosto dentro, Otávio e Joana eram devotos de Nossa Senhora, tinham imagem adesivo no carro, chaveiro, tinham falado que eram devotos acho que no primeiro dia. Joana ficou fascinada, falou comigo que não queria que eu fosse embora mais não, queria que eu ficasse, depois que ela olhou pra sacola e viu o formato da imagem, o manto, tudo exatamente igual, num queria deixar eu voltar pra casa mais não. Mas já estava decidido a voltar, fiquei um pouco frustrado em voltar, pois fui pra ficar e voltei três dias depois, tinha me despedido dos meus amigos, minha família, alguns vizinhos e iria voltar depois de três dias. Voltei achando que estava fazendo o certo, num falei com ninguém sobre os motivos de minha volta,
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nem mesmo com minha família, falei que não quis ficar por que eu fiquei com medo, essas coisas, outras desculpas e mantive assim. Minha volta traria consequências obviamente, sabe, em alguns momentos o dizer machuca menos do que o não dizer e você perceber nos olhos das pessoas que elas estão pensando alguma coisa que não tenha nada a ver com a realidade da situação, sabe? Escutei de colegas que, quando falou com algumas pessoas, cara falou que eu iria ficar fumando maconha o dia inteiro, pessoas que não aprovavam minha ida, meus pais poderiam estar pensando qualquer coisa e isso me incomodava muito. Ajuda a piorar o clima, sei lá meus pais poderiam pensar que era alguma coisa de droga, por que eles não conheciam o Raul, o cara disse que estava indo comprar uma pousada no Espirito Santo e chegou num gol bufador oito quatro, sei lá, isso era até um grilo meu. Se jogar no vazio é uma loucura, pensar em todas possibilidades, tudo o que pode ser, um olhar nosso para algo que sabemos pouco é algo muito corrompível. Fiquei mal no decorrer dos dias, continuei pedalando e correndo quase todos os dias, correr ou andar de bicicleta era muito bom, precisava sair de casa um pouco, ficava atracado dentro de casa e o clima em casa me deixava pior, por que de certa forma tinha uma grande parcela de culpa e tudo estava afetando minha família de forma negativa. Saia de casa pra pensar, montava na bike e conseguia pensar, nas coisas como estavam, dentro de casa, sempre era uma preocupação muito grande, acabava comigo, como sempre fui bem teimoso e ligado nas minhas ideias, me mantinha fiel a elas. Uma das questões que vinha com maior frequência na minha cabeça era a minha mãe ter falado que eu não sabia ser um filho, aquilo não saía da minha cabeça, percebi que tinha que pensar nisso com urgência, era uma coisa que dava um nó na minha cabeça. O que mais me incomodava era o fato que aos onze anos estava jogando bola na rua com os colegas, não sei por que motivo, nem sei o que eu iria fazer lá em casa, sei que cheguei na janela da cozinha e vi minha mãe caída no chão, inconsciente. Entrei desesperado, peguei ela no colo, lembro que ela não estava respirando, fechei os olhos bem forte e pedi a Deus que eu não a deixasse morrer e senti ela acordando, falei com ela que não era nada, que eu estava ali com ela, foi como se não tivesse acontecido nada, voltei pra rua e continuei jogando bola até umas horas. Mas depois daquele dia minha mãe não era mais a mesma, por mais que ela tentasse ser a mesma, sempre percebi que algo havia mudado entre nós, depois 192
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disso nossa relação ficou mais fria, sei lá, muito pelo meu lado, as coisas mudaram inconscientemente, mas nossa diferença não era tão agravante como se tornou a partir do dia que ela falou que eu não sabia ser um filho. De alguma forma eu tinha salvado a vida da minha mãe e preferi não contar a ninguém o que tinha acontecido, escondi aquilo no lugar mais inacessível da minha mente e de repente ela me dá essa punhalada nas costas. E o que foi ainda pior, foi falar com a Catarina que eu nunca soube ser um filho, se fosse pelo menos comigo, mas com outras pessoas, gente que não é nem da nossa família, aquilo acabou comigo, me deixou mal e eu guardando tudo comigo, tentando segurar a onda, esfriar a cabeça pra tentar pensar. Perto do casamento da minha irmã ficou aquele corre-corre, últimos preparativos, meus pais tinham alugado um casarão num clube campestre aqui da região, pra família do meu pai, minha mãe e amigos ficarem alojados. Seriam três dias de festa (pra família), cervejada e churrasco, minha mãe contratou uma mulher pra ficar responsável pela cozinha, comida, tira gosto, essas coisas. Meu tio, um amigo de BH e meu padrinho foram os primeiros a chegar, fomos pro clube e já começamos a comemorar, tomamos quase duas grades de cerveja na sexta à noite, eu, meu pai, meus dois tios, o amigo do meu pai, meu cunhado e um amigo dele, o casório tinha começado. Eu já sentia falta da minha irmã antes mesmo dela ir embora, não tinha como, ela era a pessoa que mais amava nessa vida, a pessoa mais importante pra mim, era o que fazia com que os dias em casa fossem mais brandos e agora a única pessoa nesse mundo na qual tinha algo especial iria embora pra São Paulo. No dia seguinte o restante do pessoal chegou e a correria foi maior ainda, as mulheres pra arrumar, os homens de bico seco antes do casamento, aquela confusão. Minha irmã iria arrumar em um salão e minha mãe também, que acabou levando uma tia e uma prima juntas, só fui encontrar com elas na igreja. O casamento teve um atraso por causa do padre, que havia ficado agarrado na BR vindo de João Monlevade-MG, essa 381 sabe como é, um perigo. Depois do casamento só alegria, a recepção com aquela cerveja gelada pra finalizar a noite, acabei tomando uma multa por causa do cinto de segurança, em frente ao salão da recepção. Nada iria tirar minha vontade de curtir os últimos dias com minha irmã, alguns colegas brincaram comigo dizendo que apostaram se eu choraria na igreja ou não, mas o que eles não sabem é que já tinha derramado minha cota de lágrimas antes, no casamento civil, pra não correr o risco de chorar na igreja. No meio da festa minha prima chegou falando que estava sabendo que eu era pai, que minha mãe tinha contado pra ela e pra mãe dela no salão e 193
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ficamos de conversar depois, essa prima minha também era uma pessoa na qual tinha um carinho especial, fomos criados praticamente juntos, o que nos fez adquirir uma ligação muito forte, mas a festa estava rolando e queria mais era me divertir. Fiquei muito louco, até cantar eu cantei, o cunhado do meu cunhado tinha levado a banda dele pra fazer o som, e a banda era muito boa, lembro que cantei uma música do Rappa, maior bagunça. Muita gente ficou bêbada, exageraram na dose até passar mal, um primo meu foi um dos que passaram mal, alternando entre uísque e cerveja, minha irmã também passou mau, tomou uma garrafa de vodka grey goose sozinha, imagina como ela ficou. A festa foi nota mil e mesmo sabendo que minha irmã iria embora, não consegui ficar triste, pois estava vendo a felicidade dela, estampada no rosto e isso me deixou muito feliz. No outro dia ainda tinha mais festa pra família e a gente estava lá tomando mais uma pra rebater, era bom ter as duas famílias unidas, principalmente se tratando de uma data especial, de comemoração, todos se interagindo, contando as situações engraçadas do casamento e coisas a fins. A bagunça era tanta, que nem conversei com minha prima, talvez por uma questão proposital, ainda estava me sentindo muito mal em relação a ser pai, minha prima foi embora mais cedo com o namorado por causa de algum compromisso e não conversamos sobre o assunto. Estava disposto a não conversar com ninguém, precisava compreender primeiro antes de dizer alguma coisa sobre o assunto com alguém, tinha medo de falar alguma besteira, algo por impulso, algo que achasse que fosse e que na verdade não era. Os dias de festa se acabaram e minha irmã havia viajado de lua de mel, não sabia ao certo com quem minha mãe tinha falado sobre eu ser pai, mas também não me importava, na verdade já estava passando da hora das pessoas saberem, mas não seria eu a contar. Lembro que quando Catarina veio até em casa contar a meus pais, quando ela foi embora, queria subir pra contar pros meus amigos da minha rua e meus pais não deixaram que eu fosse lá contar. Não sei por que, talvez por se sentirem menosprezados, por que eu iria contar pros meus amigos e não contei pra eles, mas eles já estavam sabendo e queria contar pros amigos como uma forma de assumir, pois guardar aquilo pra mim estava me matando, mas eles me proibiram de contar, a partir de então, resolvi que não contaria pra ninguém. Alguns dias depois minha avó ligou e me deu os parabéns, agradeci, continuou dizendo que um filho era um presente de Deus e falou uma coisa que chamou bastante minha atenção, disse que eu não estava aceitando, mas que abrisse meu coração e aceitasse a criança, opa!, espera um pouco, “eu não estou aceitando? Quem disse isso?”, não falei nada com ela. 194
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Conversei como se não tivesse escutado aquilo, desliguei o telefone e fiquei pensando, meus pais estavam falando com as pessoas que eu não estava aceitando o meu filho, quem tinha falado com eles que eu não estava aceitando meu filho, aquilo me deixou muito triste, sei lá, estava passando uma barra e meus pais falando que eu não estava aceitando meu filho. Tinha tanta coisa passando na minha cabeça, eu tinha um filho, estava desempregado, não queria ficar com a mãe do meu filho, estava assustado com a ideia de ser pai, havia ficado um ano correndo disso e perdido todo esse tempo, a mãe do meu filho tentava algumas investidas, meus pais me esculacharam de todos os jeitos possíveis e ainda estavam falando com as pessoas que eu não estava aceitando meu filho. Procurava me manter racional, me encontrar, sair de dentro do buraco que havia me atirado e eles falando que eu não estava aceitando meu filho. Depois de me apunhalar pelas costas dizendo que eu não sabia ser um filho, agora isso, minha mãe protagonizava as coisas que me deixavam mais pra baixo e ainda por cima diz querer me ajudar. Depois de dezesseis anos guardando minhas diferenças em relação a ela, de buscar um jeito de lidar com aquilo, sozinho, tentar outras formas de demonstrar meu amor por ela, ela agora não satisfeita estava falando com os outros que eu não estava aceitando meu filho. O meu filho!, que eu estava tentando manter fora disso tudo, de todos os meus pensamentos confusos, de toda minha angústia, minha raiva, dos momentos difíceis, ela espalhara que não aceitava meu filho, era uma punhalada atrás da outra, difícil de aguentar. Via cada vez mais minha sanidade se afastar, minha razão se distanciava de mim, logo quando eu chegava tão perto, aparecia mais uma coisa pra tirar meu sono. Sai de bicicleta e procurei entender o que estava acontecendo, por que meus pais estavam falando que eu não aceitava meu filho, cheguei a duas possíveis conclusões, talvez pelo fato de me manter calado, introspectivo, pacato, dentro de casa, longe dos amigos e de tudo, pela aparência ou também pela questão da justificativa aos outros, como uma forma de tirar o deles da reta, por que meu filho já estava com um ano e ninguém sabia nem que tinha um filho, sendo que a justificativa mais simples era a que eu não estava aceitando meu filho. Mas não era isso, a minha vida estava uma loucura, tinha que tentar organizar e precisava de tempo pra isso, fazer uma releitura de tudo que aconteceu na minha vida, do meu nascimento até o dia atual, repensar tudo, redescobrir a vontade de viver. Tudo me causava um estado de desânimo, de não querer viver mais, como as pessoas podem julgar as coisas pela forma com que veem e não pela forma com que realmente são. 195
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Não seria mais fácil até mesmo pra eles, dizerem que não sabiam por que não falei nada durante esse ano, por que eles realmente não sabiam o porquê, mas preferiram falar que não estava aceitando a criança, quais seriam as consequências disso no meu relacionamento com meu filho, como as pessoas olhariam para meu filho achando que eu não o estava aceitando. Era muito grave isso e meus pais pareciam não pensar nas consequências, sempre fui muito cauteloso nas minhas atitudes, o meu tempo não é igual ao das pessoas, eu não vivo no imediatismo, aqui e agora, eu tomo minhas decisões consciente, estudo as probabilidades, tomo minhas decisões com calma e clareza e não por impulso, gosto de entender o que está se passando e achar a melhor forma de lidar com aquilo, sempre fui perfeccionista. João Cabral de Melo Neto demorou quinze anos pra escrever um poema, eu não sou do consumismo, do desejo, do impulso, sou do consciente, do real, do que não gosta de errar. Alguns dias depois do casamento minha mãe me perguntou por que eu tinha falado com minha avó que eu iria morar com ela, respondi que nem me lembrava de ter dito isso e realmente não me lembrava. Ela disse que minha avó falou que eu tinha conversado com ela no casamento e falado que iria morar com ela, liguei pra minha avó pra saber o que tinha dito e minha avó falou que tinha dito que iria morar com ela, se poderia ir pra casa dela, mas não agora, mais pra frente, que não sabia quando, mas que iria pra Sabará morar com ela, não entendi muito bem os motivos que me levaram a dizer aquilo, talvez fosse apenas cachaçada. Os dias na minha casa só pioravam, cada dia que se passava ficava mais difícil pensar, a pressão era muita e eu não conseguia me questionar a fim de buscar as respostas, só conseguia pensar como meus pais estavam me matando aos poucos e ficar preso na minha angústia. Dentro de casa o clima era um, bastava colocar os pés fora de casa que a dor no meu peito passava e as coisas se clareavam um pouco. Tinha uma ponta de baseado guardada em casa, tinha sobrado de uma vez que tinha fumado um com um amigo, estava guardando pra uma ocasião em que precisasse pensar, meditar um pouco em relação aos meus problemas, percebi que não tinha momento mais propício e saí de bike pra fumar e pensar na minha vida. Acendi a ponta no caminho ao parque Ipanema e me sentei lá pra refletir, fiquei horas pensando, comecei pensando nos meus pais, por que eu estava com tanto ódio e raiva em mim. Tudo estava muito difícil e mesmo sentindo na pele a pressão dos meus pais não poderia ficar com raiva deles, estavam sofrendo como eu, mas de uma forma diferente. Tentei imaginar o sofrimento dos meus pais, entender o lado deles, percebi que não estava sendo nada fácil pra eles, me ver naquela depressão, em 196
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casa, deitado, sem sair do lugar, eles só queriam me ver bem e não sabiam como fazer isso, erravam tentando, às vezes perdiam a paciência comigo, faziam tudo errado (como eu), mas a situação era complexa e aquilo me causou um alívio. Pensar nos meus pais me acalmou um pouco, fiquei pensando em várias coisas, com calma, sem ninguém por perto, só eu e eu. Pensado no que poderia fazer, tinha que fazer alguma coisa e tive a ideia de escrever um livro, sempre foi um sonho ser escritor, desde novo gostava de escrever, escrevia poemas, já havia tentado escrever um livro algumas vezes, mas sempre me esbarrava em algo depois de algumas páginas. Senti que este seria o momento de escrever um livro, a final o que estava vivenciando era muito mais do que aquilo que havia aprendido nos cinco anos na faculdade, estava vivenciando teoria pura e com certeza poderia aprender muito com toda essa situação. Resolvi deixar as coisas como estavam e começar a escrever minha situação, não iria falar sobre o livro, iria escrever sem que ninguém soubesse. Sabia que meu filho não tinha nada a ver com essa situação, que não existiam culpados a não ser eu mesmo, teria que aprender a aceitar meu erro, pra poder seguir em frente. Não tinha nada nesse mundo que me causava mais desconforto do que perceber um erro meu, eu detestava errar, perder, comigo sempre foi assim, se não fosse pra fazer direito, melhor nem fazer, por que meia boca pra mim é muito pouco. Por um instante percebi que se quisesse tirar essa culpa do meu filho, por mais que soubesse que ele não tinha culpa, às vezes esbarrava nessa questão, era como se ele não tivesse culpa, mas já nascesse culpado, a culpa era como se fosse uma coisa inata ao meu filho e só eu poderia livrar-lhe dessa culpa. Resolvi então escrever na tentativa de tirar essa culpa do meu filho, ou seja, teria que tentar ser escritor, realizar esse sonho, sonho que já vinha me preparando antes mesmo da minha graduação, só depois de tentar, poderia dar certo ou não, não importava o importante é que tentei e isso seria o suficiente. O que mais me incomodava era o fato de ter que desistir dos meus sonhos pra ser pai, esse era meu dilema, não conseguia parar de pensar nisso, largar anos de dedicação, preparação, pra arrumar um trabalho, na minha área ou não pra sustentar meu filho, o que eu iria fazer. Decidi abraçar a decisão mais difícil, seguir meu sonho, partindo do princípio que, a partir do momento que eu estivesse feliz, poderia transmitir essa felicidade para o meu filho, seria melhor pro nosso relacionamento, melhor do que lá na frente olhar pra trás e dizer que se não fosse pelo meu filho teria sido um escritor. Sabia que as pessoas não entenderiam minha 197
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decisão, resolvi continuar sustentando a ideia que já estava criada em torno de mim e meu filho, sabia as dificuldades que enfrentaria, as angústias que surgiriam, mas queria aproveitar essa fase em que meu filho se encontrava, novo ainda, um ano e três meses, pra me dedicar um pouco mais a meu sonho e abrir mão por um instante de ser um pai pra ele, pai no sentido financeiro. Às vezes achava que a questão do seguro desemprego ter agarrado era uma ação de Deus, pra mim poder focar no meu livro, escrever, me isolar socialmente, por que com dinheiro na mão eu não iria conseguir parar, dar esse tempo pra mim, iria continuar correndo pra lugar nenhum. Pensei muito na Catarina e na angústia que iria causar nela, mas ela teria que entender, explicaria a meu filho quando ele atingisse uma idade consciente das coisas da vida, que estava fazendo isso por mim, mas principalmente por ele, pelo nosso futuro, pela nossa relação. Sei que será uma coisa muito difícil de entender, talvez as pessoas não me entendam inclusive as diretamente relacionadas, mas terei o resto da vida depois pra demonstrar a eles que tudo que fiz foi com boas intenções, que foi por amor. Quando cheguei em casa peguei o notebook e comecei a escrever as primeiras palavras, escrevi oito páginas na primeira noite, o ritmo estava bom, mas não fiquei muito satisfeito com as oito páginas. No dia seguinte acordei e fiquei pensando nisso o dia inteiro, minha dificuldade era enorme, por que não conseguia arrumar um lugar pra escrever dentro de casa. Uma por não deixar que meus pais percebessem que estava escrevendo e outra, a que mais pesava, pelo clima que estava em casa, não conseguia pensar com clareza com aqueles olhos (dos meus pais) famintos pelo meu sangue. Foi quando descobri um bom horário pra escrever, de madrugada, era a hora que meus pais estavam dormindo, melhor, que o mundo estava dormindo, teria muito silêncio pra ouvir meus pensamentos e não seria incomodado por ninguém. Subi para a área do quintal de minha casa com o note na mão e lá comecei a revisar o que tinha escrito, não gostei e resolvi começar escrever novamente, era muito difícil começar escrever, sempre foi, ainda mais pelo fato de que estava pra baixo, com a cabeça a mil. Exclui o que tinha escrito e comecei a escrever novamente, deixei fluir da forma que viesse, dessa vez sem título, sem pensar muito no livro, só nas palavras que vinham em minha mente. Passei quase a noite inteira escrevendo, esse ato se estendeu a semana inteira, manter essa ideia de escrever era uma luta e tanto, só eu e Deus sabia como estava sendo difícil, meu relacionamento com meus pais só pioravam, estava desgastando todo mundo. Nesses dias de maio, Catarina havia combinado 198
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com minha mãe de levar meu filho lá em casa pra gente conhecê-lo, quando ela veio falar com meus pais, minha mãe combinou de levar ele depois do casamento da minha irmã, por causa da correria. A ansiedade era grande, minha e dos meus pais, minha irmã havia voltado de lua de mel e já estava morando em São Paulo, mas voltou pra casa só para conhecê-lo, a expectativa era enorme, tudo se passava pela minha cabeça, medo, euforia, dúvidas. Minha irmã chegou alguns dias antes, trouxe para mim um skate long, meu cunhado era skatista e havia voltado a andar de skate, me derem o skate, gostei muito do presente. Nunca tinha andado de skate, mas por um momento o skate foi visto por mim quase como uma agressão, como se fosse uma moeda, como se quisessem me comprar, comprar uma postura mais amigável, um eu mais sorridente, uma tentativa de me resgatar novamente, fazer ressurgir a pessoa que sempre fui. Após pensar um pouco mais sobre o assunto percebi que não tinha nada a ver, que era um presente como qualquer outro e resolvi desfrutar do presente, comecei a andar de skate, andava aqui perto de casa, descendo o morro atrás da igreja, nada demais, mas precisava pegar intimidade com o skate, equilíbrio. O fim de semana estava se aproximando e Catarina estava pra chegar, ela iria passar o fim de semana aqui em casa com meu filho, nada mais justo, mas eu não estava gostando nada da ideia de tê-la por perto, não era por ela, pela sua pessoa, mas pela dificuldade de me manter afastado dela. De não saber como transmitir que não queria ficar junto com ela, de manter um relacionamento de amizade e agora ela estaria dentro da minha casa, ocupando o meu espaço. Não sei dizer ao certo como isso me afetava, mas era muito difícil ver alguém que você não quer que faça parte da sua vida, entrar nela sem pedir licença, pela porta da frente. No fim de semana, Catarina chegou mais meu filho, meus pais foram buscá-los na rodoviária, quando eles chegaram em casa e olhei para meu filho pela primeira vez. Foi uma sensação muito esquisita, era como se eu estivesse olhando para mim, estava me vendo na minha frente. Eu queria pegá-lo no colo, olhar para ele e dizer o quanto o amava, mas não consegui, não sei por quê, talvez fosse por não querer compartilhar uma parte muito íntima de mim com Catarina e com meus pais que não me entendiam e não faziam nenhum esforço para me entender. Meus pais e irmã ficaram loucos, amor à primeira vista, toda aquela raiva que demonstraram por mim quando souberam que eram avós se foi naquele instante, brincavam e paparicavam a criança como se fosse a coisa mais preciosa desse mundo. Minha mãe e Catarina conversavam muito, o tempo todo e meu filho era a atração principal, o centro de todos os olhares. Era um menino muito ativo, brincalhão, curioso, inteligente, comia de tudo, 199
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tomava água o tempo todo, não fazia pirraça, era tudo muito bom, eu e Catarina quase não nos falamos. A expectativa em mim era grande, todos queriam ver como eu reagiria, então todas as vezes que eu brincava com ele, minha família e Catarina ficavam de olho, faziam comentários do tipo “que bonitinho” ou coisas do gênero. Aquilo me deixava um pouco incomodado, o que é isso, estava só brincando com o meu menino, fazendo o mesmo que todos estavam fazendo, normal, e agora estava tendo até torcida a cada vez que me aproximava do meu filho, nada a ver. Ficava me perguntando por que eles insistiam em me colocar numa posição distante do meu filho, estava só brincando com o menino e eles insistiam em destacar como se estivesse fazendo algo inacreditável, como se eu não fosse nem chegar perto do meu filho. Estava sendo muito bom conhecer meu filho, apesar do pouco tempo que passamos juntos, dois dias, consegui curtir um pouco o fato de ser pai, eu estava com tanta vontade de sentir amor pelo meu filho, que a ansiedade foi maior do que qualquer emoção e acabei me despedindo dele sem ter essa certeza, como se o amor fosse algo certo, lógico. O medo, as dúvidas e a interferência das pessoas que estavam ali, atrapalharam minha percepção sobre tal sentimento, mas era algo que continuaria me incomodando e me tirando o sono. A semana continuou, meus pais estavam super felizes por serem avós, só falando na criança, minha irmã contando pro marido dela sobre meu filho, titia coruja, mas pra mim nada havia mudado, pois a questão não era a criança e sim eu, com minhas dúvidas e com tudo que passou a se estabelecer após a vinda dele. Esse fato chateou meus pais, que insistiam em mandar eu fazer alguma coisa, arrumar um emprego, dar um jeito na minha vida, aquela velha história. Eu continuava escrevendo sem saber se um dia iria acabar, era muito difícil ter essa certeza, muitas coisas acabavam com minha inspiração e me desanimavam a continuar, principalmente o fato dos meus pais me criticarem fortemente, o que sempre me levava à reflexão e colocava em xeque a sanidade da minha ideia e se de fato eu conseguiria levar isso até o fim. O que era melhor, desistir e tentar arrumar um emprego ou continuar escrevendo e arriscar tudo, arriscar acabar com minha família e com a chance de vivenciar um futuro com meu filho, eu tinha medo que a família da mãe do meu filho se cansasse de mim e resolvesse tomar uma atitude drástica, me impedisse de ver meu filho ou algo parecido. Minha família estava se desmoronando aos poucos, minha mãe estava adoecendo ao me ver assim, sem falar nada, de mal do mundo, introspectivo, mas era um risco que estava 200
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disposto a correr, por acreditar num final feliz, claro. Meu pai disse o que você está esperando, a gente já aceitou a criança, agora pode arrumar um emprego, vai continuar do mesmo jeito? Eu nem perdia tempo pra dizer que não tinha nada a ver com a criança, a questão é que eu estava precisando pensar e não estava conseguindo pela pressão. A sensação era como se você quisesse prestar atenção a um programa na televisão e tivesse aquele monte de gente na sala conversando na maior altura, falando com você, pedindo sua atenção, passando na sua frente, era mais ou menos assim. Não tinha como me concentrar e consequentemente as coisas não pioravam somente pra mim, mas pra todo mundo, quanto mais eu tentava me isolar pra me concentrar e pensar, mais eu me tornava alvo de críticas e mais agressivas essas críticas se tornavam. Agora eu tinha mais uma válvula de escape além do futebol, a bicicleta e as corridas, o skate, o skate me tirava de casa e isso me trazia mais clareza em meus pensamentos, passei a me concentrar nestas coisas, era onde deixava a pressão de lado, somente de lado por que convivia com ela constantemente. Pra jogar bola no sábado fazia praticamente um ritual, procurava relaxar, esvaziar a cabeça, assistia aos jogos dos campeonatos europeus e escutava música no fone de ouvido até a hora de sair para o campo. Fomos jogar contra um time de Inhapim, tentava me concentrar bastante nos jogos, pelo menos pra parar de finalizar tão mal igual vinha finalizando. Nesse jogo entrei no segundo tempo, estávamos perdendo e aos trinta minutos escanteio para nós, fiquei no segundo pau esperando a bola, quando nosso jogador cobrou o escanteio, o zagueiro deles tirou de cabeça, sai e fiquei na entrada da área, a bola caiu nos pés do jogador do nosso time e ele mandou a bola na minha direção, tinha um marcador nas minhas costas, me posicionei e matei a bola no peito, já fora da área e de costas para o gol ela subiu perfeita pra tentar uma bicicleta e eu puxei, peguei na bola e mandei ela no ângulo, sem chances pro goleiro, um golaço. Aquele gol me deixou um pouco mais confiante, perdemos o jogo, mas a importância que o gol teve pra mim foi imensurável, era resultado de um esforço tamanho de minha parte e vinha carregado de esperança em recuperar o bom futebol. Eu procurava buscar forças nas coisas simples, como o time do galo por exemplo, que estava bem, tinha sido campeão invicto do campeonato mineiro e iniciava o brasileirão bem, essas coisas por mais que parecem não significar nada, traziam alguma alegria para os meus dias mais amargos. Me concentrava bastante em músicas e nas mensagens que elas passavam pra mim, tudo era válido pra enfrentar as dificuldades que encontrava no dia a dia. 201
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Minha mãe combinou com Catarina de ir na casa dela conhecer sua família, saímos mais ou menos na hora do almoço num domingo, eu estava muito eufórico e com muita vergonha da família dela. O que eles pensavam de mim, um pai desempregado que não liga pra saber como o filho está, que nem dá sinal de vida, e agora eu iria ter que enfrentá-los cara a cara. Estava com muito medo e se pudesse escolher, preferiria não ir, mas essa era uma situação que teria a obrigação de passar e não adiantava fugir ou adiar, fui com o coração na mão. Achamos a casa dela com facilidade e já no portão meu coração quase pulava pra fora do meu peito, minhas mãos suavam, nem tinha ideia de qual era a minha expressão facial, queria ter uma expressão tranquila, branda, mas o pavor do momento tomou conta de mim, não sabia se tentava sorrir e parecer artificial demais ou se me mantinha calado, não sabia como agir. Eles nos receberam e nos cumprimentamos, eles foram muito receptivos conosco, disseram que estavam esperando a gente para almoçar e a gente já tinha almoçado no caminho, depois de insistirem para que a gente almoçasse com eles, dizendo que estavam esperando pela gente e que não acreditavam que tínhamos almoçado no caminho, que iriamos fazer esta desfeita, aceitamos almoçar um pouco. Meu pai e o pai da Catarina ficaram conversando sobre futebol e eu fiquei ali perto tentando participar da conversa, meio receoso, sem conseguir olhar nos olhos do pai da Catarina. Só eu sabia o que estava passando naquele momento e como coisas aparentemente simples, causam um desconforto enorme, tinha vergonha de estar ali, como um pai, na situação em que me encontrava, agindo de uma forma que se chocava contra tudo aquilo que imaginava nessa mesma condição, condição de pai. Que pai era eu, que não arcava com nada do meu filho, não ajudava nas despesas dele, não tinha um futuro traçado, não tinha voz. O pai dela foi muito gentil comigo, o que ele poderia fazer também, me xingar, gritar comigo, me mandar arrumar um emprego, claro que tinha todo o direito, mas sua educação não permitiria tal conduta. Em alguns momentos, ele deu algumas indiretas pra mim arrumar um emprego, tipo de coisa na qual já esperava acontecer, mas que aconteceu de forma bem amigável e com uma ênfase muito menor do que imaginava. Fiquei brincando com meu filho grande parte do dia e graças a Deus estava se aproximando a hora de ir embora, nos despedimos e viemos embora. Tudo correu muito bem, não graças a mim, mas graças a meus pais, que apesar de todos os conflitos que estávamos tendo, foram uma parte importante nesse encontro com a família da Catarina, pelo tanto que gostavam do meu filho e pelas pessoas que 202
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são, suas índoles, seu caráter, e nesse ponto eu ficava mais uma vez devendo essa pra eles, pois se não fossem o relacionamento, a mediação dos meus pais com Catarina e a família dela, talvez eu nem estivesse vendo meu filho. O que ao mesmo tempo me deixava triste, ver meus pais tendo que passar por tudo isso, dando esse suporte, segurança, transmitindo a palavra, coisas que teriam que ser feitas por mim e que no momento estava longe de poder garantir alguma coisa. Voltei para casa triste e pensativo, o que eu estava fazendo da minha vida, por que eu não conseguia fazer nada a respeito, que tipo de ser humano eu era, o que estava acontecendo, não sabia, não tinha respostas para todas as minhas perguntas, sempre fui uma pessoa muito rebelde, rebelde pela minha causa, pelas minhas crenças, por aquilo que eu acreditava. Não sigo padrões, nem ouço o que as pessoas me dizem, será que eu estava certo, errado, louco, não sabia de mais nada, num instante as coisas pareciam se esclarecer e em outros tudo se perdia e só sobrava eu, no vazio, sem opções por tantas opções, sem saber o que fazer, sabendo o que fazer e fazendo. Perdido dentro de mim mesmo e com o emocional mais abalado que tudo, seguia, na minha luta particular, separando as coisas, os sentimentos, desiludido e cheio de esperança no que poderia vir a acontecer, assim minha cabeça ficava todos os dias, horas e minutos. Quando sorria incomodava alguém e quando chorava também, ficava sem saber se as pessoas já sabiam, se alguém sabia, se ninguém sabia e isso martelava na minha cabeça. Nesse dia um brother me chamou para correr, descemos fazendo um percurso caminho bairro Horto, a gente estava conversando e quando passávamos pelo shopping, esse brother comentando sobre a vida, era uma das poucas vezes que havia saído de casa. Lembro que rolou um assunto sobre futuro, falávamos o quanto nossa vida é uma loucura, como as coisas que acontecem nos afetam, que num dia você está bem e noutro por um simples acontecimento tudo muda, um pequeno detalhe faz toda diferença e nessa ele me perguntou se eu tinha um filho. Na hora deu um nó na garganta, olhei para ele e disse que não, com uma convicção um tanto fragilizada, mas sustentei minha mentira, não sei o porquê ao certo, era um amigo, muito amigo, quase irmão, mentir era uma coisa na qual não estava acostumado. Tentei entender por que havia mentido pra ele, doeu um pouco, logo pra ele que sempre foi sincero comigo, sincero até demais, ele também não insistiu na pergunta e continuamos nossa corrida. Todas essas dúvidas estavam me matando, era um bombardeio de informações e eu não conseguia processar nada, como um computador velho, com pouca memória ram, algumas coisas meu 203
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disco não rodava. Era como se todos os link‟s, aplicativos, jogos, softwares, estivem abertos ao mesmo tempo, até dar uma pane que necessitasse reiniciar todo o processo, quanta confusão, às vezes não conseguia acreditar que aquilo estava acontecendo, não comigo. Na segunda semana de junho era feriado se Corpus Christi, Catarina ligou para combinar com minha mãe de ficar aqui em casa, pois ela tinha um trabalho pra fazer e iria se encontrar com o pessoal do grupo dela aqui em Ipatinga, viria na quinta pra fazer o trabalho na sexta. Ela veio na quarta à noite depois da faculdade, com meu filho, minha mãe tinha ido buscá-lo na faculdade antes da aula dela começar, mais uma vez ela iria ficar na minha casa, não que a minha questão fosse uma coisa particular com ela, o fato é que não queria ficar com ela. Essa participação no meu ambiente familiar me causava um grande incômodo, já estava sendo muito difícil tentar manter ela fora da minha vida, por um bem comum, tanto pra mim como pra ela, sei lá, pensando em coisas futuras, pra desencanar logo. Eu não sabia como dizer isso a ela, às vezes minha mãe até dizia que eu estava alimentando a esperança dela, mas eu não podia falar pra ela na lata que não queria ficar com ela, eu não conseguia, tinha medo de perder um possível bom relacionamento com ela, então deixava indícios de que não queria ela. Pensava muito nela, a final ela estava sendo tão legal comigo, tinha medo de causar mais dor a ela, não conseguia ser direto, deixava as mensagens no ar pra ver se ela captava, mas ela não parecia querer enxergar o que estava acontecendo e eu não sabia o que fazer. Nunca fui bom em dispensar mulheres, sempre fazia o mais fácil, sumia, parava de ligar, de manter contato, de atender ligações, era assim que eu fazia, era assim que eu sabia fazer. No dia seguinte ficamos em casa, fizemos um churrasco na hora do almoço e ficamos curtindo meu filho, eu, meus pais e Catarina. Ela estava bastante à vontade em minha casa, meus pais faziam de tudo para que ela se sentisse dessa forma, apesar de não manter um contato direto com ela, também me esforçava para que ela realmente se sentisse assim, era a mãe do meu filho e eu queria o bem dela, o melhor pra ela. Na sexta de manhã meus pais decidiram ir pra Lagoa, passar o dia lá com meu filho, pra ele brincar no parquinho, nadar, essas coisas. Catarina tinha trabalho marcado na parte da tarde, eu acordei na hora do almoço, quando me levantei meus pais estavam se preparando pra sair, havia decidido não ir pra Lagoa, tomei um banho e fui almoçar, enquanto comia meus pais saíram em destino ao clube, eu havia decidido que iria andar de skate. Terminei de almoçar o mais rápido que pude, mas 204
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não foi o suficiente, meus pais já tinham saído, fiquei só com Catarina em casa, fui até o filtro beber água e Catarina veio em minha direção, meu coração acelerou, sabia que viria uma investida, respirei fundo e continuei bebendo água. Ela veio até mim e começou a conversar, perguntou se eu iria sair, disse que iria andar de skate e fui andando, ela entrou na minha frente como se me cercasse, já comecei a tremer e o coração batendo num ritmo muito atrapalhado. Continuei tentando esquivar dela e ela me cercando, perguntando se eu ia deixála sozinha lá, falei que iria sair, pois só tinha ficado nós dois em casa, ela rebateu falando que era isso que ela queria, meu coração batendo confuso, minhas mãos tremendo, respiração ofegante e ela continuando, perguntando se iria deixá-la sozinha, se referindo a ela na terceira pessoa, “num deixa a Catarina sozinha aqui não”, com uma voz sedutora. Comecei a me excitar com aquela situação, sabia que não podia ficar com ela, senão tudo que estava fazendo viria por água abaixo, toda minha tentativa de me manter afastado dela seria em vão, desviei dela e entrei no banheiro e tranquei a porta. Sentei no vaso, respirei fundo, tentando me concentrar e ela batendo na porta e falando pra mim sair do banheiro pra ficar com ela, falando que iria ficar sentada na porta até eu sair, me esperando. Era difícil segurar a onda, na minha cabeça passava abrir a porta já pelado e levá-la pra cama, mas essa não seria a melhor atitude a se tomar, me concentrei, respirei fundo, pedi a Deus pra não deixar que eu cometesse nenhuma cagada, lavei rosto e sai do banheiro ignorando-a. Entrei no meu quarto, peguei o skate e ela me trancou no meu quarto, dizendo que só deixaria eu sair se fosse pra ficar com ela, falando fica comigo, retruquei num tom mais sério, até que ela abriu a porta, peguei meu óculos escuro e fui pra rua com o skate debaixo do braço. Ela ficou muito chateada comigo, mas estava fazendo aquilo pro nosso bem, não adianta ficar arrastando o que não vai dar em nada. Quando sai de casa, sentei no morro atrás da igreja, acendi um cigarro e fiquei pensando, ainda tremendo, queria que ela entendesse que eu não estava fazendo aquilo pra machucá-la, mas por que eu não queria ficar com ela. Não foi fácil resistir, acho que na hora em que abri a porta do banheiro, se ela estivesse nua na minha frente eu não teria aguentado segurar a onda, acho mesmo que não conseguiria nem levá-la pro quarto, seria ali mesmo, de pé, na porta do banheiro. Fiquei andando de skate a tarde inteira, dei um rolé de umas cinco horas, rodei no Horto, Novo Cruzeiro, Iguaçu, Parque Ipanema, vários lugares, fiquei todo queimado de sol, rodando debaixo do sol, sem camisa e sem protetor. Foi bom, deu pra pegar mais as manhas e arriscar descer alguns lugares que não havia descido antes, mas na hora de voltar fiquei com 205
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muito medo dela estar em casa e meus pais não, mas tinha que voltar e acabei encontrando a casa vazia. Tomei um banho e fui assistir a um jogo do brasileirão, com as pernas cansadas de tanto rodar de skate, meus pais chegaram da Lagoa e Catarina foi chegar depois, pra minha sorte. Apesar de tudo eu não tinha raiva de Catarina, entendia ela, o fato dela querer ficar comigo, dela querer ficar com o pai do filho dela, os momentos que passamos, eu também tinha um carinho por ela, mas sabia que não era amor, não sabia o que ela sentia por mim ou o que representava pra ela, era triste, não querer ficar com ela. Talvez se eu pudesse escolher amá-la e ficar com ela eu escolheria, mas como poderia ficar com alguém que não amo, gostar, ter carinho, querer o bem, isso pra mim não é amor e eu nunca passaria minha vida ao lado de alguém que não amo, não eu. No sábado ela veio conversando comigo como se nada tivesse acontecido, eu agi da mesma forma, de tarde fui jogar bola e quando retornei ela já tinha ido embora pra casa dela. Fiquei pensando como é um relacionamento frágil, o nosso, pais de uma criança e vivendo separados, como poderia manter esse relacionamento de maneira amigável, a vida iria continuar, dentro de algum tempo ela iria se relacionar com outra pessoa e eu da mesma forma, como será esse relacionamento depois de um tempo. Eu quero deixar o caminho livre pra outro, pro cara que se relacionar com ela futuramente não ter nenhum problema comigo, não ter motivo pra ter ciúmes de mim ou algo parecido, quero que ela tenha a vida dela e eu a minha, não quero atrapalhar seus futuros relacionamentos e nem quero que ela atrapalhe o meu, é uma incógnita muito grande, me preocupava com isso. Pode parecer uma coisa comum, algo significativo apenas no mundo do futebol, mas a chegada do Ronaldinho Gaúcho no galo veio junto de uma grande alegria pra mim, sei lá, o time estava se encaixando, ganhando e só quem é torcedor apaixonado por futebol sabe o que é ver o seu time ganhando, jogando bem. Ver o R49 vestindo a camisa do seu time, jogando com vontade, raça, dando carrinho dentro de campo, fazendo gols, tudo isso trazia alguma positividade pra mim, principalmente pelo fato de como as coisas aconteceram com o Ronaldinho, uma história que achava um pouco parecida com a minha. Um cara com uma história, sendo julgado e criticado por todos, ninguém sabe o que aconteceu, pelo que ele passou, como era o ambiente dele e mesmo assim ninguém pegou leve com ele, queriam implantar uma outra imagem dele. De repente tudo que o Ronaldinho já havia feito foi desvalorizado, os títulos, os espetáculos, os gols importantes, o profissionalismo, tudo foi ofuscado por uma mídia agressiva que desrespeitava tudo que ele já foi e tudo o que pode vir a ser. Percebi o quanto ele estava lutando pra dar a volta por cima, mostrar que ele é o mesmo Ronaldo de sempre, que é a mesma pessoa e isso me motivava de um jeito estranho. 206
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Podia sentir a injustiça e como a visão social é facilmente sugestível, manipulada por um olhar de alguém que só quer polemizar, fazer manchetes de primeira capa, assim é o ser, desesperado pela falta do conhecimento, se agarra à primeira informação como se fosse a única, última, só por que ele não consegue se posicionar enquanto aquele que não sabe. Por que somos assim, egoístas a ponto de se tornar fiel a nossos próprios desejos e encará-los como verdade única, como se não existisse mais nada além daquilo que nos interessa? Eu não sei, mas quando as coisas ficavam difíceis, quando as noites se tornavam dolorosas, era pro meu refúgio que eu escapava, procurava me sintonizar com meus heróis, meus exemplos e percebia que ninguém está imune a momentos de angústias, somos todos seres humanos, faz parte da nossa existência, compreendia que não existe vitória sem luta e que às vezes, essa luta exigia o máximo e mais um pouco de nós. O que eu tinha, o que eu estava fazendo, apenas algumas folhas rabiscadas, um cigarro acesso e lágrimas que me escapavam entre um momento e outro, entre tantas dúvidas, uma certeza, a de que teria que fazer isso, continuar escrevendo, não por uma questão comercial, mas por algo pessoal, maior do que eu, acima de mim. Minha vida se resumia em dor e culpa, eu precisava me resgatar novamente, trazer meus sonhos, meu eu, meus ideais. Dentro de casa só conseguia pensar o quanto havia dado mole e por mais que eu tentasse evitar tais pensamentos, insistentemente era eles que giravam pela minha cabeça, como a gente pode se tornar refém de nós mesmos, sabia que tinha alguma coisa errada e precisava descobrir o que. Toda vez que saía de casa, minha mãe achava que era para me drogar, ela não dizia, mas eu podia perceber no seu olhar, principalmente quando saía de bicicleta, era o fim do mundo, meus vizinhos e amigos também ficavam muito desconfiados, não sei de quê. Era engraçado, pois em Ipatinga parece moda, as pessoas estão pedalando aos montes, pra todo lado que ia encontrava muitos grupos de ciclistas rodando pela cidade e eu estava fazendo a mesma coisa, pedalando, só que sozinho e pra descontrair um pouco, pensar. O problema é que eu não estava em cima de uma bike de dois mil e com roupas e acessórios de ciclista, talvez se fosse diferente as pessoas não ficassem com a pulga atrás da orelha. Vê se pode, agora pra poder pedalar em paz, teria que comprar uma bike importada e roupas especiais, esse mundo é uma contradição, como o valor material é atribuído à diversos sentidos sociais consumistas, se eu estiver pedalando numa bike de dois mil reais sou um ciclista, se estiver pedalando numa de cem sou ladrão, drogado e por aí vai. A cada dia que passa as pessoas menos favoráveis estão perdendo seu espaço no lazer, no 207
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social, tudo isso por uma maioria de classe média que não é nada e se julga melhor do que os outros, disseminadores da ilusão. Tinha me renunciado de tudo, a qualquer prazer, não queria arrumar um emprego, pois sabia que não estava preparado pra ter dinheiro em minhas mãos novamente, apesar da necessidade. Tinha medo de que o recurso financeiro fizesse com que me perdesse ainda mais, eu queria me encontrar e pela falta de recurso financeiro teria que enfrentar todas as consequências possíveis, ou seja, tudo no que se refere à vida social, lazer, mulheres, tudo. As mulheres eram um caso mais complicado, uma pelo fato de não ter dinheiro, mas o que mais pesava era minha consciência, todos os meus problemas se derivava de um envolvimento com uma mulher e estava sentindo muito por isso. Tinha medo de me envolver com alguma mulher novamente, um envolvimento sexual principalmente, medo de me descuidar e passar por tudo novamente, eu ainda me apresentava um tanto confuso, com raiva e inseguro diante as mulheres. Pela minha cabeça passava mil coisas, mesmo sabendo que foi um acidente, sempre vinha a questão de Catarina ter facilitado a gravidez, não sei por qual motivo, mas pensava nisso com uma certa frequência. O problema também era que minha libido havia se reduzido a quase zero, aquela euforia, sensação e vontade de devorar cada mulher atraente que passava ao meu lado, estava desaparecendo. Não sei se era por que eu não estava tendo muito contato com mulher, pois só ficava dentro de casa, não sabia o que estava acontecendo comigo, antes só de ouvir falar em mulher eu já sentia meu sangue esquentar, agora era uma apatia que nem dava pra imaginar. Isso logo no ápice do meu momento sexual, tinha alcançado uma maturidade sexual que nem eu mesmo imaginava que poderia chegar a tal ponto, estava no meu melhor momento, minha melhor fase, fazendo sexo
loucamente, sentindo cada
batimento do coração, cada suspiro, as contrações e as loucuras do orgasmo feminino e de repente um banho de água fria. Tinha medo de não conseguir recuperar essa performance que tinha adquirido com o tempo e que chegara no ponto mais alto imaginável por mim. A sintonia, os corpos se entrelaçando, eu havia desenvolvido um método próprio e continuava em evolução e essa gravidez acabou com tudo, não sabia se conseguiria me entregar e dar tudo de mim como antes a uma mulher. Como trataria as mulheres na cama daqui por diante, como seria minhas transas, será que este medo me perseguiria pro resto de minha vida, como iria lidar com essa 208
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questão, será que eu iria conseguir me concentrar numa mulher, dar prazer e extrair o melhor de si como antes. Será que nossa comunicação continuaria a ser interna, telepática, enérgica e única como antes, não sabia mais nada e isso me assustava, talvez fosse uma das coisas que mais me assustava. Pelo menos eu curti, aproveitei ao máximo, enquanto pude, deitar na cama com uma mulher, despí-la e arrancar dela a sua última gota de prazer, sem me preocupar com nada, somente com ela e seu bem estar, la petite mort. Apesar de me referir ao sexo de um jeito banal, tinha um pensamento um tanto conservador sobre o mesmo, sei lá, via o sexo como uma coisa muito íntima, talvez a coisa mais íntima que se possa acontecer entre duas pessoas. Pra mim, fazer sexo com uma mulher é um momento único, forte, inexplicável, e procurava manter toda essa mística que envolve o sexo. Mesmo tento mantido sexo com um número de mulheres até excessivo dentro da minha concepção, acerca do que é uma vida sexualmente ativa, tentava exercer um controle para que o sexo não tornasse apenas uma busca pelo prazer, um negócio. Um dos meus princípios era não insistir com nenhuma mulher para transar comigo, sempre gostei de jogar o jogo da sedução, não buscava sexo em troca de favores, como por exemplo, uma carona no final da festa, ou coisas do tipo. Gostava de sentir o desejo, a vontade da mulher em se entregar pra mim, em me querer, algo que fosse recíproco, não combinava um sexo, deixava acontecer e seduzia para que acontecesse, com beijos, carícias, palavras, e isso tornava mais especial, mesmo que sendo por uma noite, mesmo até quando não sabia o nome da mulher, mas a vontade é maior do que qualquer coisa, os hormônios no ar, o cheiro de sexo. Nunca gostei muito de ficar com mulheres que ficam com muitos homens, que qualquer um come, esse definitivamente não é meu tipo de mulher. Depende muito do momento e da vontade, talvez se ela demonstrar um desejo e jogar uma sedução, se rolar a vibe também não vou dispensar. Não que procure mulheres virgens, mas gosto de mulheres que se entregam, que sintam cada toque, cada suspiro meu, que veem no sexo um algo a mais e não que esteja acostumada a dar, que não saiba diferenciar uma pessoa da outra. “Mesmo de cara lavada Diz que sou sua pintada Eu já lhe disse, meu amor Isso são grains de beauté Que aqui estão pra ajudar você A encontrar o caminho de casa
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E até três vou contar E os olhos vão se abrir E ele vai Vai estar aqui” Grains de Beauté – Céu
Em meados de julho, num domingo mais precisamente, fomos até a casa de Catarina ver meu filho, toda ida lá era muito complicada pra mim, por motivos que acho que nem preciso dizer mais e essa não foi diferente. Chegamos na casa dela e meu filho estava dormindo, ficamos fazendo um social com a família dela, queríamos sair com ele, Catarina então o acordou e veio junto com a gente, fomos ao Pico do Ibituruna passear. Subimos o pico de carro, lá em cima estava muito movimentado, o pessoal estava pulando de parapente e tinha muita gente no pico, meu filho ficou fascinado, andando pra lá e pra cá, sempre muito agitado. Catarina contou que estava pra ficar desempregada, por que o setor dela iria dar uma enxugada pra reduzir custos e iam mandar as novatas embora e ela era uma das novatas, seria só questão de tempo. Ela parecia uma guerreira, estudava, trabalhava, tomava conta do menino, era dureza pra ela também. Ficamos um tempo lá em cima, eu estava ansioso em relação a meu filho, alguns dias antes eu tinha conversado com Catarina e ela perguntou como eu estava, falei que as coisas não estavam fáceis pra mim, que estava mau, que não saía de casa pra me divertir, que estava meio afastado dos amigos, que não sabia o que estava acontecendo comigo, que em alguns momentos queria morrer. Tivemos um papo bem cabeça, me perguntou sobre meu filho, falei que estava fazendo de tudo pra passar um tempo com ele, que minha visão em relação a tudo tinha melhorado bastante e que esse tempo estava me fazendo bem. Conseguia começar a enxergar as coisas com mais calma, mais clareza e que estava evoluindo, não comentei com ela, mas ainda tinha uma dúvida em relação ao meu amor pelo meu filho, eu não sabia o que era o amor, acho que nunca amei ninguém. Minhas ideias sobre o amor era uma visão mais poética das coisas e eu estava numa relação tão complicada com meus pais que já não sentia mais amor no meu coração, eu que sempre defendi o amor, sempre lutei em favor dele, não sabia se amava meu filho, esperava uma coisa mais concreta, sei lá. Quando descíamos o pico, meu filho estava no banco de trás com minha mãe e a mãe dele, e eu e meu pai na frente, meu pai dirigindo e eu no banco do carona. Ele estava fazendo 210
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a maior bagunça lá atrás e na metade da descida peguei-o e sentei ele no meu colo, virei ele pra janela e comecei a mostrar as árvores e a paisagem pra distraí-lo. Naquele momento ele olhou pra mim com um olhar, que não sei como descrever, olhou e sorriu como se estivesse se sentindo bem no meu colo, sei lá, naquela hora, todas as minhas dúvidas sobre o amor foram embora, eu senti uma energia tão forte entre nós dois, algo inexplicável, uma ligação, uma coisa física. Ele ficou quietinho olhando pra paisagem e aquela energia durou até a hora que ele saiu do meu colo, naquele momento sabia que existia um algo a mais, pude sentir nossa ligação, fiquei muito feliz, enquanto eu o olhava, pensava em tudo que queria dizer pra ele e o fiz como quem faz em prece, em silêncio. Em casa, passei a noite toda pensando no que tinha acontecido ali, na ligação, na força que senti com meu filho, no presente que havia ganhado, queria dizer tanta coisa pro meu filho, dizer que o amo, pedir desculpas pra ele, pelo que estava fazendo, pelo caminho que decidi tomar, falar que ele não tinha culpa de nada do que estava acontecendo. Dizer que eu quero ser o melhor pai do mundo, que quero aprender com ele mais do que ensinar, tentar explicar que eu precisava desse tempo pra colocar a cabeça no lugar, pra limpar o coração, que tudo que estava fazendo era por ele, pensando nele, que nada poderá separar a gente, nenhum obstáculo, nenhuma barreira, nada. Tudo que estava passando era pra me fazer crescer, evoluir, que mesmo o mundo ficando contra nós, nada vai conseguir quebrar essa ligação que temos um com o outro, que nossa hora ia chegar e que seriamos melhores amigos, cumplices. Que na hora que ele estivesse pronto, estaria aqui pra responder todas as suas perguntas, que queria fazer dele um homem, assim como ele estava fazendo de mim, que independente de tudo, eu o quis e quis desde o princípio. Ele era a melhor coisa que eu já tinha feito!
“Tem que ter muita força Muito amor no coração Tem que ter concentração Tem que ter fé no amor e confiar Saber que o dia vai chegar Saiba que eu vou ta lá com você e agradecer Pelo infinito amor que vem abençoar você e eu.” Praná - Cultivo
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Continuei em silêncio, sem compartilhar nada com meus pais ou pessoa alguma. No final do mês um amigo me ligou dizendo que tinha que conversar comigo, pra eu aparecer na casa dele pra gente conversar. Já em sua casa ele disse que tinha algumas ideias de trabalho pra mim, contou que um amigo queria abrir um curso preparatório aqui na cidade e queria que ele assumisse, mas como ele já estava assumindo um curso profissionalizante e isso tomava muito seu tempo ele não estava muito interessado na proposta, perguntou se eu teria interesse em assumir, que ele ajudaria com os contatos e daria apoio caso fosse necessário. Eu não tinha condições psicológicas de assumir tal responsabilidade, seria um empreendedorismo que necessitava de bastante atividade e no momento eu carecia de tal disposição, as últimas forças que ainda possuía estavam todas concentradas em escrever, a proposta era por parte tentadora, o desafio, a ocupação, mais eu sabia que não dava pra mim. Eu não entraria num negócio onde não pudesse desfrutar do meu rendimento máximo e sabia que esta iniciativa exigiria um envolvimento total, mergulhar de cabeça. Não queria demonstrar muita apatia em relação à proposta desse amigo, a final era uma boa proposta e uma demonstração de amizade, de que se importava comigo, não sabia se ele estava por dentro da novidade, a de que eu era pai, o mais provável era que sim, mas esse assunto não veio à tona. Disse que pensaria à respeito, ele estava com muitos dados em relação a custo, renda, e fiquei de analisar os números para dar-lhe uma resposta. Falou de uma outra proposta também, contou que uma professora Psicóloga estava com uma clínica e havia pegado um caso que estava exigindo muito dela, e que ela não tinha muito tempo disponível para analisar o caso com mais cuidado e que ele havia falado com ela de mim, que tinha muita habilidade com crianças e relatou de alguns casos meus com crianças bem sucedidos na época de faculdade. Ela se interessou e pediu que eu entrasse em contato com ela, essa proposta era uma proposta bem interessante pra mim, além de poder fazer aquilo que eu gosto, ou seja, fazer Psicologia, seria uma questão que exigiria um pouco menos de mim, apenas um caso, algo que facilmente eu daria conta de trabalhar. Além de tudo veio como um motivador a mais, voltar a fazer Psicologia, estava sentindo falta da Psicologia e isso me dava um novo ânimo, uma nova perspectiva. Pensei muito sobre a questão, se conseguiria assumir este papel, se estava preparado para voltar à Psicologia, pra conduzir uma análise. É sempre uma grande responsabilidade esse “cuidar” do outro e para que esse “cuidar” venha a surtir um efeito positivo, depende muito da condição emocional do analista, não só a condição emocional, mas vários outros 212
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fatores. Contudo todos estes outros fatores não seriam problema para mim, a fundamentação teórica, a ética, a sensibilidade e habilidades necessárias, mas minha condição emocional poderia ser uma variável agravante no processo. Uma coisa que sempre procurei desenvolver era a questão do profissionalismo, dentro da Psicologia existe como se uma necessidade a divisão do eu psicólogo do eu social, isto era uma coisa que sempre busquei treinar e que sempre fez parte da minha forma de analisar. Só então, depois de pensar muito no assunto, de buscar esse equilíbrio, de buscar este lugar de analista, de reconhecer minhas limitações, de me sujeitar a um processo de autoanalise, percebi que teria plenas condições para ocupar este lugar novamente. Resolvi entrar em contato com a Psicóloga, que por sinal era uma amiga, ela falou superficialmente sobre o caso e marcamos de nos encontrar para uma conversa mais formal, detalhada. Durante a semana continuei meu processo de preparação, fiz várias leituras sobre as fases do desenvolvimento infantil, Piaget, Erickson, Freud e sobre outros assuntos a fins. Recorri a meus relatórios de tempos de faculdade e no dia marcado fui até a clínica me encontrar com Helena, conversamos sobre o caso por um tempo, ela me passou alguns dados sobre o processo e ficou de conversar com a família da criança para passar o caso pra mim. Cheguei na clínica com status de Psicanalista, não me considerava um psicanalista e sim um existencialista e apesar de ser uma coisa que influenciava diretamente não só no processo, mas na minha vida profissional, não dei muita importância, pois tinha uma boa leitura da Psicanálise. O meu fazer psi também era um fazer próprio, exercia uma Psicologia livre, fundamentada no existencialismo, mas considerando e recorrendo a outras linhas de pensamento. Fiquei bastante ansioso em dar início ao atendimento, pela história que Helena me descreveu, era uma situação que esbarrava muito na minha atual situação de vida, o que me trouxe um pouco de preocupação consequentemente. Fiquei pensando nas coincidências da vida, peguei um caso justamente parecido com o que eu estava vivendo no momento, sempre voltava à cabeça para Deus nesses momentos, seria coincidência, destino, ação divina, não sabia, mas era uma coisa que estava bastante envolvida em minha particularidade e tinha que ter um cuidado redobrado pra não deixar que tais coisas se confundissem. E sinceramente, eu não só sabia que poderia separar as coisas, como sabia que faria um ótimo trabalho, minha vontade de ajudar essa criança se tornou maior do que tudo.
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Os dias se passavam e Helena encontrou alguma resistência dos pais da criança em passar o caso para mim, a situação era uma coisa desgastante para os pais, pois o filho já havia passado por outros Psicólogos e ninguém conseguia resolver o problema da criança, eles estavam cansados de tal processo e também tinham criado um vínculo com Helena. Havia também a própria questão de prevenir a criança de passar por vários profissionais, uma preocupação pertinente, mas depois de algumas investidas, Helena conseguiu convencer os pais de que o melhor para a criança seria transferir o caso pra mim. Marcamos o primeiro encontro com os pais da criança, esse fato trouxe um certo alívio na minha relação com meus pais, agora finalmente estava fazendo alguma coisa e não ficando o dia inteiro dentro de casa, sem fazer nada, uma esperança surgia e consequentemente uma expectativa por parte dos meus pais. Eu, estava concentrado no caso e nas minhas particularidades, havia decidido que não daria um passo maior que minha perna, queria apenas este caso, não queria pegar outro pra não desviar do meu foco que era escrever. No encontro com os pais, pude conhecê-los e observar um pouco algumas coisas, puder perguntar e escutar suas queixas e acima de tudo tentar estabelecer um vínculo de confiança, foi um encontro muito positivo e acabamos combinando um segundo encontro já com a criança, para dar início ao processo de análise, que já tinha se iniciado. Quando cheguei em casa, peguei todos os dados que Helena havia me passado sobre a criança e estudei-os por horas, a noite inteira praticamente e construí várias possibilidades de intervenção, destacando pontos interessantes a serem trabalhados, fiz analises dos desenhos, dos psicodiagnósticos, fiz leitura livre, leitura fundamentada em teorias, fiz um levantamento de dados riquíssimo, a fim de nortear o processo de análise. Estava muito contente por voltar a sentir um pouco da Psicologia em mim, estava com muita saudade, era aquilo que eu gostava de fazer, era minha vocação, qualquer coisa relacionada à Psicologia eu conseguia desenvolver com muita criatividade e competência. Sempre foi algo em que sentia prazer em dedicar o máximo do meu tempo, senão todo o meu tempo, e pela primeira vez senti vontade de comemorar, de me divertir um pouco. Um colega que tinha trabalhado comigo no meu último emprego, havia me chamado para ir no bar do Veneza na terça feira e achei uma ótima oportunidade pra curtir um pouco, sair de casa, ver gente nova, distrair. A final havia tanto tempo que estava confinado em casa, achei que faria bem. Fomos pro bar e estava cheio de mulheres bonitas, um ambiente muito bom, estranhei um pouco, despois de um tempo sem sair, estar novamente na balada, com 214
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tantos problemas para resolver, era no mínimo um pouco estranho pra mim. Encontrei uma amiga de faculdade, ela se formou comigo, ficamos conversando, ela estava com umas amigas e ficamos lá batendo um papo informal, lembro que comentamos sobre os tempos de faculdade e meu colega perguntou a ela se eu era inteligente, sempre tinham essa desconfiança em relação a mim, e ela disse a ele que eu era um gênio. Talvez ela não soubesse o efeito que essas palavras tiveram para mim, sabe as coisas estavam muito difíceis pra mim e escutar uma coisa dessa motiva a gente, faz com que continuemos buscando realizar nossos sonhos, nossos ideias, nos dá coragem, nos leva pra frente. Existem poucas pessoas que proporcionam essa emoção, é a força de um elogio, de um sentimento bom, puro, verdadeiro. Lembro que uma vez estava numa festa e encontrei com um colega que havia sido meu supervisor de estágio de curso técnico, um amigo meu fez a mesma pergunta a ele, perguntou se eu era bom de serviço e ele disse que eu era o melhor cara com quem ele já havia trabalhado. Era o mesmo sentimento, por que a gente se esforça tanto, não para aparecer pros outros, mas por uma questão pessoal, por vontade de aprender e o reconhecimento é a melhor coisa que pode acontecer a quem se esforça o bastante. Naquele dia meu telefone não parava de tocar, era um contato antigo me ligando insistentemente, resolvi atender, conversei um pouco com ela e não parava de dizer que queria me ver, que queria matar a saudade. Falei que estava no bar do Veneza e ela insistiu que passasse na casa dela, ficava no mesmo bairro, perto do bar, ela disse que estava junto com uma amiga, falei com meu colega e ele animou passar lá na casa dela. Quando entramos na casa dela vi a situação em que se encontrava, estava desleixada, ela se apresentava da mesma forma, era perceptível que estava passando por um momento conflitante, por uma fase difícil. Perguntei sobre sua filha e ela disse que não estava morando mais com ela, fiquei com pena dela, ela precisava de ajuda. Fomos para o quarto e ficamos conversando, a amiga dela estava dando muito mole pra mim, muito mole mesmo, não resisti, quando ela saiu pra ir na cozinha, fui atrás e arrastei ela pro quarto, comecei a dar aquele amasso, arranquei suas roupas e começamos a fazer sexo. De repente essa colega chegou na porta como se estivesse procurando a gente e me viu pegando a amiga dela de quatro na cama, ela ficou com muita raiva e saiu falando algumas coisas, eu não consegui parar, a mulher estava falando que queria dar pra mim no meu consultório, e pedindo mais, mais, e eu em cima, enchendo aquela bunda de tapa e metendo forte.
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Depois que a gente gozou voltamos pro quarto e a outra num queria olhar nem na minha cara, com raiva, a mulher que eu tinha pegado saiu com meu colega pra comprar um cigarro e eu fiquei sozinho com a minha colega, comecei a conversar com ela e ainda estava muito chateada comigo, fui desconversando, falando sobre outra coisa, e ela foi se aproximando. Quando assustei, ela já estava de boca no meu pau, chupando e me xingando, me chamando de cachorro, safado, perguntando por que eu tinha comido a amiga dela, cachorro, falando que meu pau ainda estava com gosto de buceta, mas não me soltava por nada, chupava cada vez mais, fazendo biquinho e puxando ar por entre os dentes. Meu colega voltou junto com a outra e ela se afastou de mim, ficamos conversando mais um pouco e meu colega quis ir embora, acho que ele percebeu que não ia arrastar nada, além do clima da casa que estava ruim, suja, marmitex espalhado, elas estavam muito mal, podia ver a dor no olhar delas, principalmente da minha colega. Meu parceiro desceu pra ir embora, na hora fiquei meio na dúvida, pensei em ficar e comer as duas a noite inteira, mas resolvi ir embora. Quando estava quase saindo, elas insistiram para que eu não fosse, me segurando, eu dizendo que tinha que ir, que meu colega estava me esperando lá embaixo. Uma delas se ajoelhou e começou a chupar meu pau e a outra veio logo em seguida - aí eu fiquei na dúvida!, iria embora ou ficaria, com as duas me chupando, não conseguia nem pensar direito. Decidi ir embora, sabia que se ficasse ia acabar fazendo alguma cagada, sei lá, achei melhor não ficar, o clima estava ruim, as mulheres aparentando depressão grave, se eu ficasse iria pra dentro delas, no grupo de risco. Não era daquilo que eu estava precisando, era disso que estava tentando me prevenir, desse sexo louco irresponsável, até pelo menos as coisas voltarem ao normal, até que eu tivesse o controle da minha situação. Era disso que eu estava me privando, do prazer, era justamente essa falta do prazer que fazia com que eu buscasse uma resolução para os meus problemas, justamente para poder resgatar o prazer novamente, mais de uma forma mais saudável e não de forma tão compulsiva. Desci e fui embora com meu colega sabendo que estava fazendo a coisa certa, eu não tinha nenhuma camisinha no bolso e a única que eu tinha já havia usado, mesmo usando, havia comido a mulher sem camisinha também, tirei pra ela chupar e voltei pra dentro dela sem camisinha novamente. O que eu estava fazendo, já tinha engravidado uma menina e não podia ficar repetindo os mesmos erros, detectar um erro é fácil, agora corrigi-lo exige um pouco mais, no mínimo tempo e conscientização. Minha experiência essa noite foi uma 216
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loucura, apesar de um tempo ter se passado e eu estar me mantendo fora das noitadas, buscando um comportamento diferente de um comportamento autodestrutivo, pude ver o quanto eu ainda estava despreparado. O meu medo de sair de casa e exagerar na doze era ainda uma “realidade”, não estava pronto pra voltar à rotina, isso por que eu não tinha dinheiro, imagina se eu tivesse dinheiro na mão, o que eu poderia fazer e faria. Precisava me reeducar, manter a cabeça no lugar, não deixar que minha angústia seja maior do que eu, mesmo minha mãe cobrando uma postura diferente de mim, que voltasse a minha rotina, que arrumasse um emprego, que voltasse a sair, curtir, viajar, eu ainda era muito mais desejo do que razão, e isso me assustava, o desequilíbrio, a busca pelo prazer a todo custo, a fuga da realidade, a compensação exagerada da minha angústia pelo prazer. Na semana seguinte a recepcionista da clínica me ligou dizendo que o atendimento havia sido cancelado, pois como a madrasta da criança estava grávida e havia passado mal, não tinha ninguém para levar a criança ao atendimento, iria remarcar uma nova data e entraria em contato comigo para me avisar. Fiquei um pouco frustrado, pois havia me preparado a semana inteira, mas isso faz parte da profissão, faz mais parte do que a gente imagina, melhor, isso é parte do processo de análise. Já havia passado por situações assim na época da faculdade e isso não afetava alarmantemente meu emocional, a questão era a ansiedade de poder iniciar o processo e ajudar essa família. O que restava agora era esperar a remarcação de uma nova data, essa ansiedade não era um privilégio apenas meu, os meus pais também estavam muito ansiosos, ficavam me perguntando sobre o atendimento, quando eu iria começar, essas coisas. Eu continuava lendo textos, artigos, buscando o máximo possível de informação, sempre consultava a ficha da criança, procurando detalhes que pudessem ajudar no entendimento do caso, buscando investigar algumas informações, natureza e contexto. Em setembro viajamos para Sabará, era aniversário de cinquenta anos do meu padrinho, ficamos na casa dele, o clima era de festa, minha família ainda não sabia muita coisa em relação a minha condição de pai, todos se demonstravam muito curiosos, mas ninguém comentava nada comigo e eu permitia que as coisas continuassem assim. À noite já na festa percebia uma diferença no meu relacionamento com as pessoas, não sei se era uma visão minha, ou se era por que eu estava diferente. Não havia como manter a mesma relação de antes, a minha fase era complicada, era uma coisa nova e estava tentando entender tudo ainda, eu estava mais retraído, mais introspectivo, menos feliz, menos alegre e é evidente que isso refletia no meu comportamento, no meu semblante, em mim como um todo. No meio da 217
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festa minha prima se aproximou de mim e começamos a conversar, ela perguntou como eu estava, disse que estava levando, que tinha muita coisa acontecendo e continuamos a conversa, num momento ela perguntou se eu tinha parado, não entendi muito bem e perguntei parado com o que, e ela disse “de fumar crack”, Pensei!? O que fumar crack!? Como assim fumar crack!?, falei com ela, que isso prima, como assim, eu num fumo crack não, você está louca. Ela, não por que minha mãe falou que você estava usando droga e eu pensei que você estivesse usando crack, falei que não, que era um mal entendido, que eu usava Cannabis, que não estava rolando nada de crack não, e ela continuou dizendo que Cannabis não era droga não, era uma coisa bem tranquila e que do jeito que a mãe dela havia falado pensou que eu estava usando crack. Procurei não render muito o assunto e começamos a falar em outras coisas, pra evitar que ficasse pensando naquilo e isso acabasse com minha noite, mas na hora, pensei logo na minha mãe, pensei o que será minha mãe anda falando com as minhas tias e família, mas procurei curtir a noite. No outro dia de manhã acordei bem cedo, dormi incomodado com aquilo, fui pra varanda da casa da minha madrinha e fiquei pensando no que tinha acontecido, falo ou não falo com minha mãe. Inicialmente pensei em não falar, estava na casa da minha tia e pensei em deixar essa história pra lá, mas essa história começou a me incomodar muito, não conseguia parar de pensar naquelas palavras. Fiquei preocupado, será que essa era a imagem que eu estava passando pra todo mundo, será que as pessoas estavam achando que eu estava usando crack, será que minha mãe tinha falado com minhas tias que eu estava usando crack, de onde ela tinha tirado essa ideia, não parava de pensar nisso. Quando minha mãe acordou, eu não aguentei e fui falar com ela, comecei contando pra ela que minha prima tinha me perguntado se eu havia parado de fumar crack, estava com muita raiva e continuei falando que a culpa era dela, que ela estava falando com todo mundo que eu estava usando droga, que a culpa de tudo era por que eu estava usando droga, que ela deveria estar falando de um jeito como se eu fosse um viciado e que agora todo mundo estava achando que eu era um viciado, um drogado, só por que ela tinha a cabeça pequena, do tamanho de um amendoim, que a gente estava no século vinte e um e que Cannabis não era essa droga perigosa como ela achava não, pelo contrário a Cannabis era uma planta com muitas potencialidades que iriam trazer muitas coisas boas ainda pra humanidade, que num futuro próximo a Cannabis iria ajudar muita gente e que agora eu tinha virado um viciado, eu que sempre tive muito cuidado com minha imagem agora tinha virado um drogado, só porque a minha mãe tinha uma cabeça pequena e uma mente fechada. 218
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Subversiva (Ferreira Gullar) A poesia Quando chega Não respeita nada. Nem pai nem mãe. Quando ela chega De qualquer de seus abismos Desconhece o Estado e a Sociedade Civil Infringe o Código de Águas Relincha Como puta Nova Em frente ao Palácio da Alvorada. E só depois Reconsidera: beija Nos olhos os que ganham mal Embala no colo Os que têm sede de felicidade E de justiça. E promete incendiar o país.
Minha mãe começou a chorar, eu perdi o controle e soltei os cachorros nela, aquilo me deu muita raiva, sei lá, a possibilidade da família inteira achar que eu estava usando crack, que tipo de pessoa eles pensam que sou. Meu pai tomou as dores da minha mãe e veio brigando comigo, que eu não podia fazer aquilo com minha mãe, retruquei dizendo que iria fazer o que então, deixar ela espalhar por aí que eu era um drogado, viciado, disse que não iria permitir que minha mãe acabasse com minha imagem do dia pra noite e saí com muita raiva. Meus tios ficaram sem entender nada, procurei manter a calma pra não piorar as coisas, minha intensão não era agredir verbalmente minha mãe, mas eu tinha que me impor, a final eu não estava envolvido com crack e aquela história tinha que acabar ali, de uma vez por todas, mas essa imposição veio seguida de um desabafo e o tom se elevou consequentemente. Depois de me acalmar, desci pra sala envergonhado, minha mãe me disse que eu não falava nada com ela, que ela não sabia o que estava acontecendo comigo, como eu me sentia, o que eu estava fazendo, que não aguentava mais me ver desse jeito, decidi então quebrar o jejum e falar alguma coisa. Sentei na mesa, chamei minha mãe, meus tios e comecei a falar, disse que estava passando uma fase complicada, que estava sofrendo muito por causa disso, mas que este sofrimento era uma escolha minha, eu sabia que iria sofrer, mas eu tinha que encarar isso, eu estou tentando entender algumas coisas, achar respostas, pensar em tudo que aconteceu e que vem acontecendo, que de repente tudo caiu nas minhas costas de uma vez e que precisava 219
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de um tempo pra separar as coisas, colocar cada coisa no seu lugar. Disse que eu ficava com a menina, ela engravidou e disse que eu não era o pai, depois quando o menino estava com três meses ela me procurou e disse que eu era o pai da criança, que eu tinha um filho com uma mulher na qual não queria ficar e que ela estava tentando investidas pra gente ficar junto, que eu estava desempregado, que meus pais quando souberam me deram o maior esporro e que depois só por que eles aceitaram eu teria que fazer tudo igual eles queriam. Que eu não havia falado com ninguém ainda e que o menino já estava com quase dois anos, que passavam mil coisas na minha cabeça, que eu sempre resolvi meus problemas sozinho, com calma, analisando o melhor pra situação, de repente vocês invadiram minha vida, me dizendo o que fazer, que eu não estava conseguindo nem pensar direito. Consequentemente eu descobri que podia aprender muito sobre Psicologia nessa fase que estava vivendo, de repente eu estava dentro da teoria, dentro de tudo aquilo que eu estudei por anos, estava vendo de dentro como a mente humana funciona e estava me permitindo à angustia, pois estava explorando a mesma, descobrindo, aprendendo, vendo como as coisas funcionam e novas ideias e novos olhares estavam surgindo na minha percepção da Psicologia. Havia tanta coisa acontecendo, que não contei por que não quero escutar as pessoas dizerem a mesma coisa, que eu tinha que aceitar, que queriam me ver bem, que eu tinha que fazer alguma coisa, sair desta, que ter um filho era bom, que era uma benção de Deus, pra mim não ficar assim que depois eu iria agradecer, que eu iria rir muito dessa história ainda e mais coisas deste tipo. Eu não queria ficar escutando isso, queria tirar minhas próprias conclusões, eu sei que tudo vai melhorar, sei que vou viver muitos momentos bons ao lado do meu filho, mas no momento é disso que eu estou precisando, de sofrer um pouco, de viver minha angústia, pois isso sim é sinal de mudança e eu tenho certeza que alguma coisa vai ter que mudar, ou muita coisa, mas primeiro tenho que descobrir o que, tenho que fazer essa releitura da minha vida, isso faz parte do processo e vocês não estão me deixando fazer isso, não estão me dando o tempo que estou pedindo. O que vocês queriam que eu fizesse, que de repente eu descobrisse que era pai e que achasse que estava tudo normal, que era coisas da vida e que continuasse minha vida normalmente, se pudesse, talvez eu quisesse que fosse dessa forma também, mais infelizmente não é assim, não pra mim, eu senti, e senti muito, mas estou sentindo pra poder melhorar, então me dá esse tempo, é só isso que eu estou pedindo, mais nada.
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Depois que eu falei um monte, minha tia falou que eles só querem o meu bem, que queriam ver aquela pessoa alegre que eu era, que queriam me ver bem, queriam me ver junto com meu filho, alegre, me calei. É claro que eu queria estar assim, bem, alegre, feliz, mais não adianta pular essa etapa, a etapa da angústia, o sofrimento, só depois que eu passasse por tudo isso que eu poderia encontrar a felicidade novamente. Essa era uma coisa que eles não entendiam, na vida é assim, tem hora pra sorrir, hora pra chorar, não existe felicidade sem tristeza e nem tristeza sem felicidade. Eu não tinha medo de estar sofrendo, por que eu sabia que estava sofrendo isso hoje, pra não sofrer por causa disso nunca mais, então eu estava ali, disposto a passar por tudo que tinha que passar, pra enterrar essa história de uma vez por todas. Voltamos pra casa, o clima não estava tão ruim quanto achei que fosse ficar, talvez pelo fato de ter falado um pouco sobre o assunto com meus pais e tios, não disse tudo, algumas coisas vieram à cabeça algum tempo depois, outras preferi deixar omissa. O fato de estar escrevendo, por exemplo, eu não comentei, por que essa não era uma questão certa, eu não sabia onde isso ia dar, talvez eu conseguisse terminar de escrever alguma coisa, talvez não, escrever era muito difícil, a cada dia surgia mais problemas, mais dúvidas, menos inspiração, então era um incógnita. Não disse para que não se criasse uma expectativa em cima disso e talvez para evitar uma suposta cobrança da parte de meus pais, queria escrever sem pressão, com liberdade. Queria algo que retratasse meu cotidiano, algo real, descrever minha angústia como uma questão familiar e não algo somente meu, sei lá, nem sabia o que queria escrever direito, só não queria ter a obrigação de escrever, bastava a mim me cobrando, pensando nisso vinte quatro horas por dia. O meu atendimento estava estacionado ainda e eu aguardava um posicionamento da recepcionista marcando um novo horário, não fiz nenhuma divulgação de que estava atendendo na clínica, pois não queria outro atendimento, este atendimento era o único que estava disposto a aceitar no momento. Por que queria me manter focado nos meus assuntos particulares e queria também começar devagar, ver como eu iria me sair, o caso era um caso complexo e estava disposto a dedicar grande parte do meu tempo a ele, só a ele. O galo continuava a me dar alegria, havia feito um primeiro turno perfeito, nunca vi nada igual no campeonato brasileiro, acreditava que este ano o galo seria campeão, não estava muito empolgado, pois ainda havia muita coisa pra acontecer. Mas as chances não se podiam negar que eram reais, o time estava jogando um futebol de encher os olhos, mas não começamos o 221
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segundo turno bem, ainda dava pra recuperar, o fluminense não saia da nossa cola, mas o folego deles uma hora iria acabar. No futebol eu não conseguia emplacar uma boa atuação com gols, depois do gol de bicicleta fiz mais dois gols em jogos diferentes, jogava bem, meu problema maior era a finalização, não conseguia finalizar bem por nada, isso me deixava puto de raiva, fazia tudo certo na hora da finalização chutava por cima, pegava na orelha da bola, chutava fraco. Era claro pra mim que meus problemas estavam me afetando dentro de campo, chega a ser algo no mínimo curioso, como as coisas nos afetam e comprometem nossa concentração, comportamento, raciocínio, decisão, todo o lado psíquico. Num final de semana Catarina ligou desesperada pra minha mãe, meu filho tinha passado mal de novo, ele desmaiou e teve contrações musculares, ela ficou desesperada, correu com ele para o hospital, o médico o examinou e constatou que ele teve um ataque de epilepsia, como era a segunda vez (a primeira foi quando eu estava na pousada na praia) que ele teve crise o médico receitou um remédio tarja preta pra ele, isso me deixou muito preocupado. Apesar de a epilepsia ser uma questão com grande aversão social, é uma coisa que não traz grandes preocupações, pois não é uma doença que possa levar à morte, salvo em casos EXTREMOS. Eu não estava muito a favor do meu filho tomar um remédio tarja preta, era muito novo, isso poderia comprometer seu desenvolvimento cognitivo e sua coordenação motora, fiz algumas pesquisas sobre o assunto, encontrei muitas adversidades, opiniões conflitantes, li a bula do remédio e constatei que ele poderia causar uma nocividade à fase de desenvolvimento do meu filho, pelo seu efeito sedativo. Em fim, meus pais eram totalmente a favor do uso do medicamento, o que chocava com minha opinião, resolvi conversar com Catarina, pra saber o que aconteceu e ver o que ela achava, me encontrei com ela e ela me contou o acontecido. Falei com ela que não era muito a favor do medicamento, por vários motivos, uma, era pelo fato de nosso filho se encontrar em fase de desenvolvimento, de descobertas, e esta fase seria uma fase sensório motora, onde ele estaria descobrindo o mundo através dos seus sentidos, do campo visual, do tato, pegar, agarrar, mexer, e da importância do campo intelectual, como copiar movimentos, imitar ações, essas coisas. Como o medicamento possui um efeito sedativo, isso poderia desestimular toda essa disposição e curiosidade pra reconhecer o mundo enquanto tal. Por causar sono e uma percepção distorcida, traria mais dificuldade para ele se relacionar com a realidade de uma forma motora mais aguçada, ou seja, além de apresentar uma dificuldade motora inerente a sua idade (dificuldade de precisão 222
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no manuseio de objetos), essa dificuldade seria mais prejudicada ainda pelo efeito sedativo, não só a dificuldade motora, mais a dificuldade verbal, de reproduzir o som das palavras com mais eficácia. O próprio efeito do sedativo interfere na dicção, o campo cognitivo, que a priori é o mais afetado, pois é o cerne de qualquer habilidade sensorial e isso me preocupava em relação que ele tivesse um atraso de aprendizado devido a essa dificuldade imposta pelo medicamento, seria uma intervenção química no próprio organismo da criança, o que causaria uma disfunção funcional no cérebro da criança. Como ele era muito novo, ainda não sabia falar, ficaria difícil saber o quanto o medicamento o afetaria nesse sentido, por que não teria como verbalizar os seus efeitos, outra questão era o fato de que as crises não eram constantes, teve um intervalo de aproximadamente seis meses entre uma crise e outra, é um grande intervalo de tempo, acharia melhor esperar mais um tempo, ver se aconteceria novamente e com qual grau de intensidade pra então pensar em receitar um medicamento tarja preta. Outra questão era o fato da conduta da Catarina quando a crise ocorria, ela desesperava, saía gritando com o menino no colo pra rua, o povo enfiava o dedo na boca da criança pra segurar a língua do menino, um procedimento totalmente displicente. Ela teria que tentar manter-se calma o máximo possível, deitar o menino numa cama, colocar a cabeça dele para o lado, afrouxar as roupas caso tivesse alguma muito justa e deixar a criança se contrair. Quando o mesmo estivesse voltando, recebê-lo o mais carinhosamente possível e em seguida levá-lo no hospital, ou caso não detectasse algo anormal (sendo uma crise leve) nem precisasse levá-lo ao hospital, por que este desespero poderia resultar numa imagem ruim, o que assustaria a criança e a remeteria a lembranças ruins sobre a crise, podendo causar complexos futuramente. Quando eu disse essas coisas pra ela, como ela deveria proceder, ele falou que não ia fazer nada disso não, que ia desesperar-se, que enfiaria a mão na boca do menino pra ele não engolir a língua, que ia sair gritando, falei com ela que não era uma coisa fácil, por que o susto é inevitável, mas que ela poderia tentar fazer alguma coisa de positivo, por que estes eram os procedimentos certos. Ela continuou insistindo em sua opinião, falando que quando a pessoa que você ama está morrendo, num tem como lembrar de procedimento ou tentar fazer a coisa certa não, o negocio é desesperar mesmo e sair pra rua pedindo ajuda. Confesso que concordo com ela em partes, deve ser muito difícil passar por uma situação assim, vendo seu filho dando uma crise de epilepsia no seu colo, mas mesmo com todo desespero, tentar fazer a coisa certa pra mim é a melhor forma de demonstrar o seu amor por alguém. Não consigo 223
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entender por que as pessoas se negam a fazer a coisa certa pelos que amam, mas tenho certeza de que ela vai se lembrar de alguma coisa caso aconteça novamente. Mesmo discordando eu era carta fora do baralho, não tinha voz, era só um pai inexperiente, que não sabe nada sobre ser pai, o que eu poderia fazer, não ajudava Catarina com nada, meu pai que comprava o leite e a frauda pro meu filho, as coisas de comer, os brinquedos quando ele vinha aqui pra casa também era meu pai que comprava, o que eu iria falar, nada. Meus pais achavam que minha relação com o medicamento era um anarquismo contra a medicina, por que eu questionei o médico, assim como questiono qualquer profissional. Infelizmente o que a gente vê hoje, é um descuido sem tamanho com os usuários do sistema de saúde, os profissionais passam pouco tempo nos postos, com o mínimo de recurso possível, em condições precárias, com efetivo reduzido, com grande número de pessoas esperando na fila de atendimento, Muitas vezes trabalham em mais de um posto de saúde, muitos não dispõe de vocação para “o cuidar” do outro e os mais prejudicados somo nós, que necessitamos de uma atenção ética e profissional, mas meus pais acham que sou contra tudo, mas as coisas não são bem assim. Depois desse ocorrido, Catarina pediu que pagasse pelo menos um plano de saúde, pois estava preocupada com a saúde do menino, eu também fiquei muito preocupado, mas não tinha condições de pagar um plano de saúde, teria que recorrer ao meu pai, disse que conversaria com ele e daria a resposta pra ela. Mas e a cara pra falar pro meu pai assumir mais uma responsabilidade, como eu iria levar mais uma conta pro meu pai, mesmo sabendo que ele faria isso por mim, mas era muito difícil pedir pro meu pai segurar mais essa, com vinte e sete anos nas costas. Com o feriado do dia das crianças se aproximando, estava me preparando para uma viagem destino a fazenda do meu tio, o meu filho viajaria conosco, seria a primeira vez que minha família iria ver meu filho. Sabia que não seria uma viagem qualquer, as formas com que as coisas estavam acontecendo, o desenrolar de toda essa história, eu não estava a fim de ir, mas era uma questão que não dependia da vinha vontade, teria que ir apresentar meu filho à minha família, estavam todos querendo conhecê-lo, a iniciativa era toda dos meus pais, tudo relacionado ao meu filho era por iniciativa dos meus pais. O fato de não estar trabalhando, não possuir nenhum tipo de renda, me impossibilitava de qualquer iniciativa, iria fazer o que, pedir meu pai pra comprar um presente pro menino, pra levar a gente pra sair, pra programar uma viagem, como eu ia pedir alguma coisa pro meu pai, nunca gostei de pedir dinheiro pro
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meu pai, não me sentia no direito de gastar o dinheiro do meu pai, o fato era que não gostava, meu pai já estava me ajudando pra caramba, fazendo além da sua obrigação. Um dia antes da viagem eu estava tenso, aquela vontade de não querer ir, junto com aquela obrigação de ter que ir, não tinha como fugir, entrei no carro e fui pra Sabará. Antes de ir pra fazenda a gente iria passar em Sabará pra comprar as coisas e ir todo mundo junto pra fazenda, entre uma cochilada e outra aquele aperto no peito sufocava um pouco mais a cada quilometro percorrido, quando chegamos em Sabará, tentei me manter calmo ou pelo menos me aparentar calmo. Neste dia dormimos na casa do meu padrinho, levamos o meu filho pra família do meu pai conhecer, passamos na casa da minha avó e das minhas tias, a família do meu pai adorou meu filho. Apesar de não querer fazer essa viagem com meus pais, era muito bom ver a família aceitando, gostando do meu filho, eu tinha essa preocupação, pela questão que sobrava um pouco pro meu filho, o fato das pessoas presumirem que eu não estava aceitando-o. Na fazenda já não sabia muito o que fazer, como agir, procurava não ficar entre meu filho e meus pais, para evitar desentendimentos, evitar principalmente uma possível confusão na cabeça do meu filho, era uma criança que sofria uma grande influência das pessoas que faziam parte do seu cotidiano. Com a família da mãe recebia uma educação, o meu contexto familiar proporcionava um tipo de educação que perceptivelmente não era a mesma e no meio disso tudo eu ainda iria querer impor minha visão de pai, o que penso sobre educação, não queria confundir sua cabeça, ainda não tinha discernimento, estava em desenvolvimento, acho que seria muita informação para ele. Meus pais apresentaram meu filho pra família da minha mãe, num seria diferente, todo mundo o adorou, antes de ir pra fazenda, tinha levado ele na casa do irmão da minha mãe, nossa intensão era a de apresentar o meu filho pra família toda, minha família precisava conhecê-lo, até pelo fato de querer que ele fizesse parte da minha família, da minha vida por inteiro. Depois de tantos paparicos, beijos, abraços, as coisas começaram a se normalizar e para minha surpresa não estava tão ruim assim como eu pensaria que fosse, não fazia ideia de como eu achava que seria, simplesmente o clima não estava tão ruim. O meu menino estava brincando com meu primo poucos anos mais velho que ele, correndo pra lá e pra cá, nadando na piscina, fazendo a maior farra, às vezes ele vinha até mim me chamando de papai, me mostrando alguma coisa que chamasse sua atenção.
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Num momento ele começou a fazer pirraça, não sei por que, começou a chorar sem motivo aparente, pirraçando mesmo, eu então peguei ele e o coloquei ao meu lado, de pé em cima do banco, perguntei por que ele estava chorando e ele insistia em chorar. Ninguém nem estava encostando nele e a pirraça estava demais, nunca gostei de menino pirracento, num tem nada mais feio, mas fazer pirraça é de qualquer criança, mas isso não quer dizer que não possamos tentar corrigir e ensinar que pirraça não leva a nada. Foi o que eu fiz, tentei corrigir, deixei-o do meu lado, olhando pra ele com uma cara de quem não estava entendendo o motivo de tanta pirraça, deixei que ele chorasse até perceber que aquele choro não o levaria a “nada”, mas antes que ele parasse minha mãe veio pegá-lo. Insisti que deixasse ele ali, no mesmo lugar, minha tia também tentou intervir, reforcei minha vontade de que permanece ali. Por mais que o meu comportamento sugerisse alguma discórdia em relação ao meu filho, eu queria ter a oportunidade de ensinar alguma coisa, de ter uma participação soberana na educação do meu moleque, a final eu era o pai e este é um dos papeis paternos, a imposição de limites, a introdução das regras, do convívio socializador, da percepção do outro, da descentralização do ego. Antes que ele entendesse minha mensagem, que pudesse interpretar o que estava tentando transmitir, alguém o tirou dali, não me lembro quem, e não importava, a construção de uma nova percepção foi interrompida. Apesar de ter ficado um pouco chateado, procurei não demonstrar, por que isso faz parte do que queria transmitir, que o meio social não vai atender todas as suas “necessidades e exigências”, sempre vai ter alguém pra te obrigar a improvisar, é um jogo de perde e ganha e sem dúvidas ele não poderia ganhar todas, era bom ir se acostumando com as derrotas, pois elas são essenciais no aprendizado e no crescimento do ser. Meu tio fez um comentário dizendo que achou interessante eu ter me manifestado como um pai, um amigo da família se manifestou concordando com meu tio, talvez esse seja o poder de uma visão não contaminada (ou até mesmo paterna), poder perceber uma ação como uma atitude paterna e não como uma afronta aos interesses do meu filho, acredito que meus pais enxergaram minha ação como sendo agressiva, mesmo eu não tendo encostado a mão no meu filho em momento algum. Penso que as experiências na qual eles presenciavam causasse este efeito, não que eu demonstrasse isso, mas sim por uma própria questão que partisse mais deles do que de mim, ou seja, eles vinham criando uma imagem que era totalmente descontextualiza a aquilo que achava que estava realmente tentando transmitir.
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Era nítida a preocupação dos meus pais em relação a minha conduta, o medo de uma possível reação que colocasse em dúvida os sentimentos não só meus, mas o da família como um todo em relação ao meu filho, o seu neto, o seu sobrinho. Talvez essa preocupação gerasse um sentimento muito maior, um amor inexplicável, é como dizia um pensador, o sentido de algo está menos nele em si, do que nas pessoas que o contemplam. Confesso que a forma como estava agindo, seria algo longe de um comportamento paterno modelo, e todos percebiam isso, o que gerava uma cobrança tremenda, tanto da minha família, como do social. Cobranças me bombardeavam de todos os jeitos possíveis, uma palavra, um gesto, um olhar, uma expressão facial, tudo me atingia e se transformava em uma dor, em conjunto com uma revolta e outras coisas mais. A pressão se fazia maior a cada dia que se passava, o que as pessoas não entendiam era que eu não estava assumindo uma posição paterna, o fato era simplesmente por que eu não podia assumir de cara uma atitude paterna, além da pressão que sofria tanto de mim quanto dos outros, eu precisava perceber algumas coisas, entender. Acho que em tudo que aconteceu, a maneira como as coisas aconteceram, tinha ficado alguma coisa mal compreendida, faltava um pedaço nessa história e isso não poderia ficar assim. Imagina cair uma criança no meu colo, uma criança na qual eu era o pai, espera aí, o que eu perdi?, calma, eu tenho um filho, eu sou pai, não teria condições de ignorar tudo e entrar de cabeça na situação, que tipo de pai seria eu, será que essa seria a coisa certa a se fazer, ser pai e ver no que dava, ou tentar me estruturar para ser um pai pro meu filho, o que mudaria daqui pra frente?, deixe-me tentar aprender a ser um pai. Estávamos todos reunidos na varanda da fazenda do meu tio, quase toda a família da minha mãe, sempre tivemos um relacionamento bem família mesmo. Aquele feriado estava um pouco diferente, não sabia explicar o ambiente, mas a questão de estar lá com o meu filho, pela primeira vez, a impressão de que eu não estava aceitando bem a paternidade já instituída no pensamento das pessoas, os diálogos, os contatos, eram sempre mais cautelosos do que o comum, dos que estávamos habituados. Num momento, em que estava brincando com meu filho, estava com ele nas mãos, jogando-o para o alto, ele estava adorando, rindo e de repente eu o deixei escorregar pelas minhas mãos e ele caiu na grama. Eu o peguei rapidamente, minha tia que estava perto deu um grito, acho que ela se assustou , assim como me assustei também, todos vieram ver o que aconteceu. Meu menino estava chorando de susto, ele nem sequer se arranhou, ainda bem, carreguei ele tentando acalmá-lo, foi quando meu pai chegou, já veio gritando comigo, me xingando, tentando tirar meu filho do meu colo. Eu não deixei, achei um desaforo, a criança estava nos braços de quem ela deveria estar, no colo do pai, eu 227
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era o pai, ninguém melhor do que eu para estar com meu filho naquele momento, eu relutei, não o deixei tirá-lo do meu braço e subi em direção ao curral com ele no colo. Levei-o para ver os bois e logo ele se acalmou, parou de chorar, vendo os bois, chamando eles, imitando seu berro, olhei se ele tinha machucado e tive a certeza que havia sido apenas um susto, sem sombra de dúvida que aquele tombo doeu mais em mim do que no meu filho, depois de um tempo brincando com ele e os bois, desci de volta pra casa. Quando cheguei na varanda da casa meu pai já veio com tudo pra cima de mim, me xingando, nem me lembro o que ele falou, não consegui me conter, fui logo falando também, nervoso, gritando que ele não deixava eu ser pai e outras coisas, com muita raiva, quando assustei estávamos com o tom mais alto e aumentando na medida em que o outro aumentava. Quando a discussão começou estávamos a uns cinco metros de distância, nessa altura já estávamos nariz a nariz, apontando o dedo na cara do outro, se não fosse meu primo vir separar, chegou entrando no meio, me segurando, minhas tias e tios entrando no meio, separando, de repente tinha chegado numa proporção a ponto de dizer que se ninguém surgisse para separar não sei o que poderia ter acontecido. Meu primo veio gritando comigo, que eu estava errado, nessa hora minha ficha caiu, pensei como aquilo poderia ter virado isso, um pequeno acidente, será que alguém pensou que eu havia jogado meu filho no chão, não sei. Veio à consciência que eu estava realmente errado, talvez meus motivos não fossem tão errados, mas meu comportamento estava totalmente errado, isso nunca poderia ter acontecido, meu pai saiu chorando junto com minha mãe e tia, eu fiquei parado em choque, com os nervos a mil, ainda se acalmando. Uma vez ainda na minha adolescência eu havia discutido com meu pai, só que ainda havia sido pior do que esta, mas a minha biologia corporal era mais frágil, então se a gente tivesse chegado a brigar, os resultados seriam de menor proporção do que poderia ter sido se algo tivesse acontecido naquele momento. Minha tia que presenciou tudo, assim como os outros, não se conteve e começou a gritar comigo, falando que meu pai estava certo, que eu tinha que tomar uma atitude, fazer alguma coisa, arrumar um emprego, parar de ficar pensando, com medo de ser pai e ser pai de uma vez por todas. Eu já bem mais calmo, tentei argumentar em minha defesa, mas seria outra conversa sem fim se eu não me calasse. Depois de todo aquele momento de insanidade, o clima que já não estava dos melhores veio abaixo, o dia havia se acabado pra mim, não só o dia, mas todo o passeio. No dia seguinte acordei e não queria nem sair da cama, com vergonha, pensado no que tinha acontecido, arrependido, eu já 228
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estava de saco cheio de toda essa situação, de como tudo vinha acontecendo, ninguém sabia o que eu realmente estava sentindo e pensando a cerca de tudo, ninguém teve a coragem de vir me perguntar, conversar comigo e até o dia de vir embora pra casa, fiquei calado, sem lugar. Enquanto retornávamos para Ipatinga a viagem durou uma eternidade, confinado dentro do carro ao lado do meu pai de Cordisburgo-MG até Ipatinga, que loucura, tomado por meus fantasmas mais íntimos, era quase uma tortura. Chegando em casa o mal estar me rodeava, a casa não era grande o suficiente para poder me esconder e/ou me privar dos olhares e encontros pelos corredores. No dia seguinte meu pai chegou do trabalho e quase no fim do dia veio conversar comigo, disse que nunca havia se sentido tão humilhado em toda sua vida, o tom de sua voz estava longe de ser uma conversa, falou que eu tinha um mês para arrumar um emprego, se não iria me expulsar de casa, que não queria me ver morando mais ali. Essas palavras bateram como um cruzado no queixo, me exaltei e disse que iria embora naquela hora, me levantei da cadeira em direção ao meu quarto, peguei a mochila e juntei algumas coisas e saí de casa sem saber pra onde ir. Numa segunda-feira já devia passar das dez da noite, desci minha rua, parei no bar do Zé pra comprar um maço de cigarro de palha e segui ao léu. Minha mente dizia pra seguir em direção à ponte do shopping, foi quando me dei conta e me questionei por que em direção à ponte, que pensamentos eram estes, confesso que de fato passou pela minha cabeça me jogar lá de cima e acabar com essa palhaçada toda, mas acabei pensando em meu pai e como ele ficaria após receber uma notícia trágica dessas. Resolvi mudar o percurso mesmo sem saber ainda onde ir, fui em direção ao bairro Iguaçu, andando com a cabeça a mil e um cigarro na mão, no meio do caminho um cara me pediu um cigarro, disse que não tinha e continuei seguindo em frente, quando cheguei no trevo Ideal/Iguaçu/Cidade Nobre, quebrei pro Cidade Nobre, lembrei da passarela do Iguaçu e que anos antes um rapaz do meu bairro havia se jogado de lá e que aquela seria sua última ação em vida. Queria me manter longe de qualquer possibilidade de cometer um ato impulsivo, talvez ver aquela passarela causasse um estímulo incompreensível. Já no Cidade Nobre dei algumas voltas até me lembrar da praça perto de onde tem um movimento de bar e pessoas, comecei a caminhar em direção à praça, quase chegando lá passei por uma menina que conversava com um cara de bicicleta, pesquei um pouco da conversa e ele se dizia preocupado com ela, por que ela havia sumido, que todos na casa dela 229
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estavam preocupados, que se ela quisesse sair para espraiar, colocar a cabeça no lugar, ela poderia ter avisado o pessoal da casa dela. Em fim, pensei em como anda a sociedade, seria uma coincidência a menina estar passando por conflitos internos ou seria algo mais presente do que a gente imagina, quantas pessoas não estariam nessa mesma condição em que eu e a menina se encontravam naquele momento. Certos conflitos são tão complicados de serem resolvidos, seria pelo envolvimento de N pessoas numa coisa íntima, particular, não sei. Cheguei na praça e estes pensamentos foram uma ótima companhia enquanto a noite se passava, a praça estava com um certo movimento, o que era bom, mas logo sabia que as pessoas iriam embora e eu ficaria ali. Enquanto pensava alguns passavam, outros chegavam e consequentemente uns iam embora, por volta de uma da manhã eu já estava sozinho na praça, resolvi sair dali, caminhar pra matar o tempo, eu não tinha medo, talvez nem sobrasse tempo para pensar nisso, parece meio irônico, mas eu não percebia nem pra onde estava indo, acabei retornando pro meu bairro novamente. Dei uma volta pelo bairro, o tempo não parava, já passava das duas, e eu não iria ficar a noite inteira rodando, teria que arrumar um local para me sentar, parar um pouco, lembrei de um ginásio que tinha no bairro, uma quadra de futebol que fica aberta o tempo todo, resolvi ir pra lá, pareceu o lugar mais seguro que poderia arrumar naquele momento. Quando cheguei no local, dei uma volta antes de entrar no ginásio para me certificar que aquele local seria seguro e se não teria mais ninguém por perto e só depois entrei, apaguei os refletores da quadra que estavam acessos e me deitei na arquibancada, fiz minha mochila de travesseiro e tentei dormir um pouco. Era uma noite fria, ventava muito e os pombos faziam muitos barulhos no ginásio, andando pelos telhados de zinco, cada passo soava como um barulho assustador, até o dia amanhecer não consegui dormir tranquilamente, cochilava um pouco, acordava, tornava a cochilar, foi assim a noite toda. Já de manhã, acordei com um menino entrando no ginásio, ele se assustou até mais do que eu, cumprimentei-o e ele falou que tinha vindo fumar um antes de ir para o trabalho. Ele fumou um baseado a gente conversou um pouco, não falei sobre o que estava passando, nem vinha ao caso, mesmo ele me oferecendo eu não quis fumar, pois teria o dia inteiro pela frente e fumar poderia me atrapalhar, poderia bater uma fome fora do normal, sono, a boca secaria, achei melhor recusar. Minha mãe na noite anterior, havia dito que teria consulta de manhã, aproveitei e fui para casa tomar um banho e terminar de arrumar minha mala, durante a noite lembrei de minha avó e decidi que iria pra casa dela. Cheguei em casa e não tinha ninguém, tomei um 230
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banho, comi alguma coisa e comecei a arrumar a mala, enquanto ainda arrumava a mala minha mãe chegou do hospital, era uma consulta rotineira, sei lá, minha mãe consultava com certa frequência, ela me viu arrumando as coisas e perguntou pra onde eu estava indo, falei que iria pra casa da minha avó. Ela não argumentou muito, só me pediu pra esperar pra gente poder fazer o exame de DNA, eu disse que poderia esperar se a gente fosse no mesmo dia em Valadares fazer o exame, pois eu não queria ficar mais nem um dia dentro daquela casa, ela falou que ia ligar para mãe do meu filho pra ver se conseguia combinar com ela. Continuei arrumando minhas coisas, minha mãe combinou depois do almoço com Catarina, almoçamos e fomos pra Valadares fazer o exame, fizemos o exame numa clínica do centro e voltamos logo após o exame, o problema é que eu não tinha dinheiro que dava pra comprar a passagem de trem para Belo Horizonte. De noite liguei pros meus dois brothers e pedi uma grana emprestada pra comprar a passagem de trem, um dos meus brothers me emprestou, agora não tinha mais jeito, com o dinheiro na mão era só esperar o dia seguinte pra partir no trem. Expliquei um pouco do que tinha acontecido pros meus amigos, mesmo não querendo que eu fosse me desejaram boa viajem, foi meio que uma despedida. Dali pra frente ninguém poderia saber o que ia acontecer, a minha ideia era não voltar mais, nunca mais, mesmo minha mãe falando que meu pai não tinha me expulsado de casa, mas pra quem saber ler um pingo é letra. Liguei para um outro amigo e disse que iria na casa dele pois precisava conversar com ele, levei o último pedacinho de Cannabis que havia sobrado pra fumar junto com ele, contei que estava indo pra casa da minha avó, pois tinha brigado com meu pai e com o clima que estava não dava mais pra continuar em casa. Que estava saindo por que não queria mais correr o risco de brigar novamente com meu pai, não aguentava mais aquele clima pesado, seria a melhor coisa a se fazer, conversamos sobre outros assuntos como de costume e me despedi. No dia seguinte estava de mala pronta, minha mãe tinha ido na casa de uma vizinha na parte da tarde e até a hora de sair de casa pra pegar o trem não havia voltado, liguei para meu padrinho me buscar na estação ferroviária em BH e ele disse que me pegaria sem problemas, desci com as malas nas mãos para a estação. Cheguei na estação quase em cima da hora do trem chegar e não teve como a moça me vender passagem pro dia, pois estava muito em cima da hora, as passagens só podem ser vendidas com uma antecedência de trinta minutos, não questionei muito apesar de já ter comprado passagem nessa mesma situação. Comprei passagem pro dia seguinte e retornei pra casa com as malas, liguei pro meu tio expliquei o 231
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ocorrido e confirmei com ele pro dia seguinte. Em casa mais um dia, com as malas arrumadas no chão, no canto do meu quarto, sem conversar com meu pai ou minha mãe, não acreditava que estava ali mais um dia. À noite, aproveitei pra sair de dentro de casa e me despedir de mais um amigo, falei que estava indo pra Sabará, pois tinha brigado com meu pai, que estava difícil ficar em casa. Não falei com ninguém que meu pai tinha praticamente me expulsado de casa, pois ele não usou essas palavras literalmente, mas deixei bem claro que minha decisão foi tomada por um desentendimento com meu pai. No dia seguinte o trem partia às três e meia da tarde, depois do almoço minha mãe saiu com uns vizinhos dizendo que ia pra Lagoa, eu não disse nada, nem que iria pra Sabará naquele dia, num tinha ligado nem pra minha avó, pois sabia que as portas da casa da minha avó sempre estariam abertas pra mim e que coincidentemente me lembrava de que havia dito a ela que iria passar um tempo com ela em Sabará, no casamento da minha irmã. Saí de casa com as malas nas mãos rumo à estação de trem e dessa vez embarquei, fui a viagem inteira pensando no que estava fazendo, no que estava acontecendo e no que poderia acontecer, carregava um ódio em meu peito, não sei se era pelo fato de meu pai ter me expulsado de casa, coisa que eu nunca imaginei que poderia acontecer, ou se pelo fato de ter perdido o controle de toda a situação, tinha virado uma bola de neve e nada do que eu fizesse, ligado ao meu querer, causaria um efeito diferente. Coisa que eu desconheço é hipocrisia, poderia eu, ter fingido que estava tudo bem, ter passado uma outra percepção do caso, mas minhas ideias, sentimentos e compreensão como um todo, teriam que ser no mínimo respeitadas, pois só eu, mais ninguém, sabia o que eu estava passando. Passei toda viagem praticamente pensando no meu pai, em como ele sempre foi uma pessoa mais compreensiva, o quanto ele me conhecia, todas as conversas que tivemos ao longo da vida e mesmo assim ele estava se comportando de uma maneira na qual era novidade pra mim. Acredito que ele estava sobre influência da minha mãe, minha mãe que sempre foi assim, nunca conseguiu enxergar nada além daquilo que passasse pelo seu próprio ego, meu pai era diferente, mas diferente como?
“E eu não tenho nada a te dizer Mas não me critique como eu sou Cada um de nós é um universo, Pedro Onde você vai eu também vou.” Meu Amigo Pedro - Raul Seixas
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Quando cheguei na estação de BH, deu aquele frio na barriga, será que estava tomando a decisão certa ou estava sendo muito radical, agora não tinha mais jeito, já tinha colocado os pés em BH, não dava mais pra voltar a trás, num seria por uma questão de escolha e sim por princípios, por ego, por ideal. No saguão da estação encontrei meu tio me esperando, pedi a benção e fomos para o carro com destino à Sabará, conversamos durante o caminho sobre assuntos variados, nada que remetesse minha ida para casa de minha avó, imagino que ele soubesse o que se passava, ele colocou sua casa à disposição, agradeci e seguimos para casa da minha avó. Pelo caminho tudo parecia estar diferente, era como se fosse a primeira vez que estivesse fazendo este trajeto, a própria cidade se apresentava pra mim com outros ares, talvez algo mais íntimo, mais acolhedor. Quando chegamos em Sabará era pura poesia, Sabará estava mais linda do que nunca, suas ruas de pedra sabão, os postes do centro com aquela luz amarelada, as casas, a arquitetura, me fizeram viajar e trouxeram um certo alívio em meu coração, me senti em casa. Meu tio parou na porta da casa da minha avó e fui entrando casa adentro, minha avó na cozinha me recebeu com aquele enorme sorriso no rosto, me deu um abraço e disse, “olha quem chegou, meu menino chegou!”, aquelas palavras me trouxeram vida imediatamente, ver a felicidade de minha avó ao me ver, foi uma sensação renovadora, em fim alguém que pudesse me dar um pouco de carinho, de afeto, de me fazer sentir-me menos culpado, um apoio sentimental inigualável. Peguei minhas malas e me despedi do meu tio, coloquei as malas na sala e fui conversar um pouco com minha avó, sabiamente ela não me fez sequer alguma pergunta, simplesmente enalteceu minha chegada e me contou uma história como ela sempre fazia. Falava sobre um cachorrinho e no fim da história ela terminou dizendo, “e assim é o amor, como o fogo, se não é alimentado, se apaga”, só consegui pensar em tudo que estava passando, na minha relação com minha família, em como essa chama estava aos poucos se apagando e de que maneira eu poderia alimentar essa chama para que ela não se apagasse. Chamei meu primo pra tomar uma cerveja na praça, descemos e ficamos conversando, ele disse que meus pais já haviam ligado pra vó dizendo o que tinha acontecido e que eu estava indo pra casa dela, falamos sobre a vida, acho que tivemos um papo bastante construtivo, tomamos umas duas e subimos pra casa da vó. Na porta de casa, sentei, acendi um cigarro e senti uma vontade de ter uma conversa mais aberta com ele, e pela primeira vez conversei abertamente com alguém sobre meu filho. O que eu pensava a respeito de tudo, a 233
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forma como as ideias iam se construindo a cerca de tudo e o fato de que ainda não havia me manifestado sobre minha paternidade. As meias verdades criadas pelas mentes férteis e maliciosas daqueles que estavam à minha volta e o que eu vinha enfrentando todo esse tempo, sendo alvo de todos, criticado, julgado e tentando não deixar que nenhuma opinião alheia me influenciasse, buscando entender o que estava acontecendo e achar a melhor saída pra tudo isso. O meu momento chegaria, de mostrar as pessoas que elas estavam erradas, que sempre estiveram. Falei que estava escrevendo um livro, foi a primeira pessoa com quem comentei também, contei alguns detalhes e a forma como estava colocando as coisas e depois de um longo papo quase na hora em que estávamos entrando pra dormir, ele me disse que a melhor coisa que eu fiz foi ter ido pra casa da vó. Aquilo me tranquilizou um tanto, me trousse paz e naquela noite, depois de muitos meses, eu consegui dormir a noite inteira, sem acordar no meio da noite ou sequer demorar a pegar no sono. Após uma ótima noite de sono, pude acordar e sentir vida em mim, sentir o vento no meu rosto, o sol esquentar minha pele, respirar um ar mais brando e o mais importante, me sentir bem, feliz. Não tive dúvidas de que foi a melhor coisa que havia feito e pensei o porquê de não ter feito isso antes, creio que passar por tudo que estava passando seria necessário, traria aprendizado, o fato de estar em Sabará não significava o fim dos meus problemas, era somente um lugar para pensar sobre os mesmos. Mesmo buscando meu consciente, analisando a situação, procurando entender o lado dos meus pais, aplicando uma reflexão crítica, mesmo assim a raiva ainda era grande, a vontade de não voltar para casa nunca mais desfilava sobre meus pensamentos continuamente. Para mim era muito claro que precisava esfriar a cabeça, essa era uma medida que já se apresentava como um hábito, não gostava de tomar decisões imediatas, a não ser em situações de urgência. Ainda não havia ligado para os meus pais, mesmo com os insistentes incentivos de minha avó, eu não sabia o que falar e não queria escutar certas coisas, principalmente um discurso pré-formulado, como que meu pai não havia me expulsado, ou algo parecido. Procurei esquecer o que havia passado e tentava me concentrar no presente, em pensar na minha vida, a maior parte do dia, passava ajudando minha vó com os salgados, embalar e outros favores, na parte da noite descia na praça com meu primo pra fumar um cigarro e bater um papo, cada passo que dava naquelas ruas de pedra sabão vinha uma lembrança boa à mente. 234
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Um dia sentado nas escadarias da Igreja do Rosário, fumando um cigarro e olhando aquelas ruas por onde passara desde criança, me lembrei do meu pai, no carnaval, quando saí no bloco caricato das Piranhas do Morro, fantasiado de mulher (como é tradição na cidade). Descendo sozinho no meio do bloco com um copo cheio de cerveja, bêbado, veio meu pai vestido com uma roupa da minha tia, que pegara às pressas na casa da minha avó e descemos juntos. A bateria tocava Alcione, pode chorar, pode chorar! E cantávamos em ritmo de marchinha, orgulhosos pela ligação da música com a paixão de ser Galo! Fiquei pensando como a gente tinha chegado naquele ponto, de ser expulso de casa, depois de tudo que vivenciei com meu pai, todas as histórias e momentos, eu não podia ter raiva do meu pai, independente do que possa acontecer ou do que já tivesse acontecido, era apenas um momento de desentendimento, erámos somente dois machos alfa numa disputa de “poder”, continuei ali pensando por um certo tempo, parecia ser um bom caminho para o que estava buscando. Na noite seguinte meu amigo Gabriel me ligou, enquanto conversávamos, ele perguntando quando eu ia voltar, brincando, falando pra mim voltar, que eu tinha deixado muitas mulheres pra trás e que ele não conseguiria tomar conta de todas pra mim e depois daquela zoação toda ele começou a falar sério de repente, e disse pra mim voltar, por que não valia a pena ficar alimentando essa briga que tive com meu pai. Falou que os pais eram pessoas mais velhas, diferente nós, que pensam diferente, que não dão o braço a torcer, perguntou o que eu estava tentando provar, o que mudaria se eu ficasse nessa com meu pai, e de certa forma tudo que ele estava dizendo fazia sentido, mas eu também sempre fui muito teimoso, sem dúvida alguma suas palavras me levaram ao questionamento e à emoção, ele falou um pouco da sua experiência de perda do pai, e aquilo me comoveu, emocionou. No dia seguinte, enquanto minha avó preparava as coisas para começar a fazer salgados, comecei a conversar com ela, perguntei sobre meu pai, ela me contou algumas histórias e falou muito das dificuldades dela quando jovem, batemos um longo papo enquanto ela trabalhava. Percebi o quanto ela era uma mulher guerreira e admirei-a ainda mais, ela me disse muito de sonho, que temos que ser sonhadores, lutar pelos nossos sonhos e sonhar sempre. Talvez ela soubesse que eu era um sonhador, mas com as dificuldades e o dia à dia que a vida nos apresenta, torna-se muito difícil se manter sonhador, lutar por um sonho é lutar contra tudo que se vê, que se ouve e que lhe é imposto, é estar só e acreditar naquilo até o fim, é seguir o caminho mais difícil. Percebi que na verdade não estava ali para escrever, como havia pensado, e sim para me reencontrar, me reafirmar. Na minha casa era uma missão quase 235
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que impossível, vivendo sob a pressão involuntária dos meus pais, com amigos me chamando para sair, recebendo mensagens de mulheres, tinha muita coisa acontecendo, não dava para controlar. Queria que o tempo parasse, ser esquecido por um momento ou tempo, poder pensar sem sofrer alguma influência, mas quem disse que a vida para, a vida continua quer queira ou não, era o que estava tentando fazer, me excluir, cuidar de mim, não precisava adotar novos hábitos ou me apegar a prazeres momentâneos, queria evitar o desequilíbrio, a dependência, e para isso seria necessário continuar pensando, por mais doloroso que possa ser, e é. Recebi uma ligação do meu tio, irmão da minha mãe, falando que iria dar uma passada na casa da minha avó pra gente bater um papo, desci para igreja e enquanto esperava por ele acendi um cigarro, sabia que tipo de conversa seria, entre um trago e outro, revivia lembranças de minhas vindas a Sabará, em como eu admirava meu tio. Das vezes em que ele me emprestava sua moto para dar uma volta no bairro ou me levava pra dar um rolé na garupa, indo no morro da cruz, ou mesmo pescar nas águas do Rio das Velhas e na fazenda de um outro tio, à noite, na beira da lagoa, as conversas que tínhamos. Nos encontramos na escadaria da igreja e a conversa se iniciou, perguntou como eu estava, como estavam as coisas em Ipatinga e comentou que minha mãe tinha ligado pra ele e falado que eu havia ido pra casa da minha avó sem me despedir ou sequer falar que estava indo. Quis saber o que estava acontecendo, falei que tinha ido pra dar um tempo, que seria bom não só pra mim, mas para meus pais também, que tudo que vinha acontecendo estava deixando nossa relação muito desgastada. Contei a ele que estava escrevendo um livro e que as coisas haviam saído um pouco do controle, que tudo que estava acontecendo era necessário, não só pelos meus interesses, mas também pelo próprio círculo familiar, a gente como um todo (família) precisava tomar um sacode, mexer com a família, sair da zona de conforto. Toda minha visão sobre família estava em cheque, minha mãe não conseguia enxergar além dos seus interesses, meu pai não sabia o que fazer, não sabia quem apoiar, minha irmã estava há mais de dois mil quilômetros de distância. Erámos apenas um grupo de pessoas presas a um laço afetivo, totalmente distintas, com ideias e interesses diferentes, e o que antes eu lutava pra manter, a união da nossa família, veio como um fardo, me cansando de lutar por uma fragilidade constante. Eu não aguentava mais carregar essa responsabilidade, pois quando as coisas ficaram difíceis eu fui julgado por tudo que havia feito de errado na minha vida, um erro nunca é esquecido e agora estava pagando por todos eles. Sempre passei toda 236
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minha vida tentando provar aos meus pais não sei o quê, talvez que eu fosse alguém melhor do que eles imaginavam, mas estamos sempre à prova, mesmo com meu comportamento fora do padrão ideal de filho, eu conseguia me estabelecer enquanto ao que acreditava, mas essa certeza não é aprova de erros e um erro grande tem o poder de ofuscar tudo o que há de bom em nós. Meu tio contou algumas histórias dele com meu avô e dele com os filhos, relatou algumas de suas experiências de vida e sugeriu que eu lesse dois livros da bíblia, Eclesiastes e Sabedoria, gostei da ideia, afinal eu sempre gostei disso, poder ter um olhar diferente das coisas, assim como se ele dissesse para escutar uma música, ver um filme, ou qualquer coisa do tipo, isso que é o verdadeiro aprendizado, esse é o núcleo do relacionamento social, compartilhar ideias. Acredito, pela conversa que tive com meu tio, que ele ficou um pouco mais tranquilo, e eu também, apesar de não termos ficado ali por muito tempo, percebi sua intensão em ajudar verbalmente, moralmente e afetivamente, isso era bom, mas infelizmente ninguém poderia me ajudar, além de mim mesmo e por algum motivo era justamente isso que parecia incomodar os outros. Passei a ler a bíblia todas as noites antes de dormir, não por religiosidade, mas pela busca, pela dica, por vivência, não demorou muito até que lê-se os dois livros, interessante, a bíblia não é uma leitura ruim, além de se expressar fortemente, traz consigo um sentido bastante poético. Não tive o interesse em ler outros livros da bíblia, pois meu objetivo não perpassava em uma busca religiosa, mas uma busca interior, não de espirito, de mim. A casa da minha avó, apesar de ser um lugar onde estava recebendo carinho, atenção e conseguia ficar um pouco mais relaxado, não estava atendendo os padrões ideais para minha jornada interior, além das brigas frequentes entre minha avó e meus primos, por estresse dos salgados. Pois minha avó pegava muita encomenda e nunca conseguia entregar na hora marcada, não por falta de empenho e trabalho, mas seus salgados eram todos feitos horas antes das encomendas, tudo que ela usava era comprado fresco, era um processo quase artesanal, desde a massa à carne que ela própria moía. O agravante maior não eram as brigas, pois elas aconteciam somente durante a jornada de trabalho, mas meu primo, pois ele gostava muito de sair, fazia parte de uma galera animada, que gosta de festa, de tomar uma. Sempre tinha alguma coisa para fazer, um lugar pra ir, jogar uma bola ou fazer um samba no bar do Ruiz, enquanto eu queria ficar mais quieto, mais pensativo, procurar não me distrair dos meus objetivos. Quase todos os dias a gente ia no sítio da minha avó, dar uma olhada lá, como já 237
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havia sido invadido algumas vezes, um tio meu, cunhado do meu pai, sempre dava uma passada lá, pra dar “movimento” à casa. Havíamos ido lá e a casa estava sem água, uma queimada no morro na parte de traz do lote, tinha queimado a mangueira de água, seria necessário trocar toda mangueira, descê-la pelo morro até a caixa d‟água. Um irmão do meu pai de João Monlevade estava de chegada e sempre quando ia pra Sabará gostava de fazer um almoço no sítio, no fogão à lenha, assim meus tios conversaram e decidiram trocar a mangueira. Acordamos cedo e fomos para o sítio trocar a mangueira, eu, meus dois tios e dois primos, com seiscentos metros de mangueira e duas picaretas na mão, pois iriamos enterrar a mangueira para protegê-la de futuras queimadas. Foi um trabalho duro, o morro era íngreme e o solo era cheio de pedra, mas conseguimos furar e enterrar toda mangueira, levando-a até a caixa. Gastamos o dia inteiro, sob o sol, sem nenhuma sombra, cavando e enterrando, depois que terminamos descemos e tomamos algumas latas de cerveja de recompensa pelo trabalho. Apesar das dores no corpo e do cansaço físico, foi muito bom pra mim passar esse tempo com meus tios e primos, me ajudou de alguma forma nos meus questionamentos, ainda mais se remetendo ao termo família. Meus tios contando histórias do tempo deles de moleque, dos campeonatos de futebol, travessuras, citavam meu pai, cornetavam a gente, clima que só se pode ter em família. Preparamos o sítio para mais tarde, meu tio tinha programado uma vaca atolada pra fazer no fogão à lenha, descemos pra casa da minha avó pra tomar um banho e buscar as coisas, subimos com os ingredientes e algumas cervejas e veio grande parte da família. O fato de o sítio estar apto, me trousse a ideia de passar uns dias lá, pra fugir um pouco do pequeno movimento de Sabará e do tumulto na casa da vó. Combinei com meu tio e meus primos, da gente dormir um dia lá, talvez eles também já tivessem manifestado a mesma vontade, então não houve dificuldades alguma. No dia seguinte subimos com algumas cobertas, coisas para comer e o vídeo game do meu primo, ficamos a noite toda jogando futebol, tomando café e conversando, em sua maioria falando de mulher, fomos dormir quando o sol começou a raiar, ficamos por mais dois dias. No último dia, meu tio ia pra lá na hora do almoço, levava as coisas e fazia um rango no fogão à lenha, ficava na parte da tarde e descia antes do dia escurecer. Nesse dia nós descemos com ele, pois um primo tinha que ir pra escola e o outro tinha uma pelada marcada, desci pra pegar algumas coisas de comer na casa da minha avó.
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Entrei e ela comentou algo sobre “já estava na hora de vocês voltarem”, falei que só tinha vindo buscar umas coisas de comer e que ia voltar pra lá de novo, disse que no dia seguinte a gente voltaria. Comprei alguns pães e levei um leite, minha avó me deu outras coisas pra levar, entre elas uma vasilha com carne de panela, me despedi e subi de volta, cheguei lá, sentei no degrau da porta da sala, acendi um cigarro e fiquei ali, pela primeira vez eu estava sozinho, longe de tudo e todos, meu primos iriam voltar depois das dez e meia e num eram nem seis ainda. Meu tio havia deixado sua bolsa de cd‟s lá, tinha muito som bom, escolhi um e coloquei, me sentei de volta e fiquei pensando, depois de muitas horas pensando, por algum motivo, ficar sozinho alí passou a me incomodar um pouco, não por medo, não sabia por que, mas não era algo forte, era como uma leve sensação. Na sexta fomos até um barzinho que tinha próximo a casa da minha avó, a localização do bar era ótima, tinha um visual bacana, e ainda por cima rolava um som bom também. Estávamos lá em pé, tomando uma e apareceu uma colega do amigo do meu primo, parou e ficou conversando com a gente, tinha visto ela quando fomos assistir o jogo do galo num bar. Ela era meio doidinha, muito alegre, comunicativa, brincalhona, era bonita, o amigo do meu primo foi embora e ela continuou conversando com a gente, percebi seu interesse em mim, eu também fiquei interessado, o jeito dela era muito agradável. No meio da conversa ela me perguntou se eu fumava um, falei que sim e ela me chamou pra fumar um com ela, concordei com a ideia, o convite pareceu muito bom, havia um bom tempo que eu não fumava, decidimos deixar mais pro fim da noite. Não sei em qual assunto, eu disse que era Psicólogo, o papo fluiu, meu primo nessa hora nem estava mais perto da gente, ela contou que teve algumas consultas com um Psiquiatra, falou que tinha vontade de fazer o curso, falamos de livros e músicas, ela era tão espontânea e o papo ainda havia ficado muito mais interessante. Conversando com ela, dava pra perceber que algo havia acontecido em sua vida, nem quis saber o que também, e que tinha deixado marcas, preferi não entrar em questão, eu nunca entro em questão. Meu primo ficou no bar e a gente saiu pra fumar, fomos conversando, rindo, sentamos num banquinho que tem no outro lado da rua em frente a Igreja do Carmo, um visual legal também, fomos conversando enquanto eu preparava o baseado. Enquanto a gente fumava fui percebendo uma mudança em seu comportamento, ela começou a ficar cada vez mais séria, nervosa, pouco a pouco, tentei deixar ela um pouco mais relaxada, mas ela tinha fobia social, nada muito agravante, controlável. Descemos a rua em direção à sua casa, deixei-a na porta da 239
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sua casa e nos despedimos, voltei para o bar, pois meu primo estava me esperando lá e quando cheguei ele estava conversando com duas mulheres. Uma delas eu já havia ficado algumas vezes quando ia pra lá, e essa última vez ainda era um pouco recente, eu não queria mais nada com ela, apesar de ser uma ótima pessoa, mas não dava, fui com a intenção de reflexão, não queria ficar com nenhuma mulher. As mulheres sempre estiveram presentes em minha vida, desde a primeira vez que beijei na boca, aos dez, depois disso nunca mais fiquei sem mulher. Eu tinha mulher em todo canto que ia, uma amiga em cada cidade, ou mais de uma, estava evitando agarrar alguma mulher, porque quando eu estou com qualquer mulher eu perco o controle, eu respiro ela, eu a consumo. A menina me cumprimentou, me apresentou a colega dela, que era uma delícia, meu primo já pensando na parceria, com um sorriso de orelha à orelha, pô agora tá mais fácil, parceria, pega ela e eu a amiga. Mesmo sem querer pegar ela, eu iria quebrar o galho do meu primo, a final ele merecia esse sacrifício, tinha que manter a linhagem da família também. Fiquei batendo um papo, nós quatro, esperando meu primo se ajeitar melhor, enquanto isso minha cabeça fervia em pensamentos, comecei a ter uma ideia e aproveitei quando a mulher na qual já havia ficado foi buscar uma cerveja e parado na volta com umas amigas e fui embora. Subi pra casa da minha avó com o pensamento em escrever, peguei meu caderno de anotações e fui lendo alguns pensamentos, acabei escrevendo uma frase que estava na minha cabeça no bar, “o que faço não é o que sou, o que sou é o que eu faço”, fiquei pensando nela por um bom tempo. Abri as páginas que já tinha escrito e fiquei pensando, era a primeira vez que escrevia alguma coisa desde que chegara, logo meu primo chegou e comentou também que era primeira vez que estava mexendo no livro. Num dia, de tarde, fui comprar pão pra minha vó, quando estava na fila do caixa da padaria, vi um aviso de vaga de emprego, emprego de caixa, paguei a compra no caixa e voltei pra casa da minha vó. Passei toda a tarde ajudando ela a embalar salgado, depois de terminar tudo, tomei um banho e me sentei na porta da casa da vó, nos degraus de uma academia ao lado. Fiquei pensando naquela vaga de emprego que tinha visto, eu poderia me candidatar, eu não queria voltar pra casa, talvez quisesse, mas minha teimosia era maior do que eu, sempre muito fiel às minhas ideias, ao que eu buscava ser, como homem, como ser humano. Apesar de toda simplicidade de uma decisão, apenas um sim ou um não, mas tomar uma decisão é algo um pouco mais complexo, são as decisões que te impulsionam à vida, que te faz seguir em frente, e apenas uma decisão errada pode te levar a lugares onde você 240
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realmente não queria estar. Desde que me envolvi na minha jornada introspectiva, nenhuma decisão era simples, estava aprendendo o valor de uma decisão e que qualquer uma delas poderia mudar meu caminho completamente. Mesmo decidido (em partes) a não voltar, pensava no meu filho, não queria ficar longe dele, já achava Ipatinga – Valadares longe, imagina então aumentar mais duzentos/trezentos quilômetros, teria que pensar com calma, essa era apenas uma das dificuldades, não que as outras sejam mais complexas, todas tem uma complexidade imensurável. Acabei chegando à conclusão mais óbvia, a de que seria melhor esperar mais um pouco, não sabia ao certo quanto tempo já estava na casa da minha avó, nem me preocupava com isso, deveria ter mais de quinze dias com certeza, e ainda não tinha tido nenhum contato com meus pais. Meus amigos ligavam constantemente, perguntando que dia iria voltar, contando o que estava acontecendo, o Gabriel ligava das festas e sempre colocava alguma (s) mulher (es) pra falar comigo, pra me chamar pra voltar, aquele clima que mesmo sendo de brincadeira, tinha seu peso. Estar na casa da minha avó estava sendo bom, eu carregava aquele orgulho teimoso de que “como voltaria se meu pai me expulsou de casa”, eu não havia ligado por que também nem sabia o que falar, não sei se era por falta ou excessos de magoas, quando eles ligavam, minha avó me falava que haviam ligado, que conversou com eles, pedia pra mim ligar e respondia todas as vezes que iria ligar... A vontade de voltar sempre batia, melhor, era uma constante, quando saí de casa, não saí por vontade própria, havia sido expulso, talvez por este fator minha vontade de não voltar permanecesse mais forte, mais decidida, mesmo percebendo também que tal saída estava sendo algo necessário, nós precisávamos disso, de uma distância, de um tempo de reflexão. Ter brigado com meu pai na fazenda do meu tio, já tinha sido uma coisa ruim, gerou um grande mal estar e mesmo assim teve esta discussão lá em casa, poucos dias depois, onde meu pai me mandou sair, e foi pior ainda, não só pra mim, tanto quanto para eles. Eu não queria brigar com meu pai novamente, estávamos defendendo causas diferentes, mas os interesses sempre foram os mesmos, o bem, o melhor. Pensar no meu filho era muito... não tenho nem palavras pra descrever a quantidade de emoções e sentimentos ligados a ele, a mim e a tudo que estava em volta, se apresentavam numa complexidade intimidadora, eu me questionava todo tempo, não sabia se eu estava fazendo a coisa certa. Às vezes é muito difícil você decidir entre construir uma vida ou apenas ocupar uma pré-moldada.
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Queria seguir atrás daquilo que acreditava, correr atrás de um sonho, cumprir minhas promessas, mas ao mesmo tempo também eu queria ajudar, estar mais presente, aproveitar. Para o meu interesse, arranjar um emprego não era o que eu queria, queria terminar de escrever antes de qualquer coisa, mas para o interesse de todas as outras pessoas já estava passando da hora de arranjar um emprego, lutar contra maré nunca é algo fácil, fácil é deixar a maré te levar. Eu sabia que meus pais estavam certos, certos dentro daquilo que eles acreditavam, em desejar o melhor pra mim, tenho consciência disso, mesmo sendo muito grato, eu precisava seguir num caminho diferente, seguir o meu caminho, porém as coisas estavam tão confusas para eles, e isso me fazia mal, por que eu não falava nada pros meus pais, falar já não era mais uma opção, pois já havia tentado falar uma ou duas vezes e nunca obtia um bom resultado. Minha prima de BH me ligou me chamando para um churrasco na casa dela, pra comemorar sua aprovação na prova da OAB, eu não poderia deixar de ir, eu sempre tive uma relação muito boa com minha prima, a gente sempre se deu bem, eu tinha um carinho especial por ela, falei que iria e ela pediu que eu ligasse que iria me buscar em Sabará, falei que ligaria. Minha avó tinha viajado pra João Monlevade, casa do meu tio, resolvi chamar meu primo pra ir comigo, não tinha como ir e deixar ele pra trás, resolvemos ir de ônibus. No mesmo dia iria ter uma festa em Sabará no clube Alecrim, e meu primo estava pilhado pra ir por causa de uma mulher que ia, eu sabia que a festinha da minha prima ia ser boa, as colegas dela iriam estar lá, ela sempre teve umas amigas do jeitinho que eu gosto. Antes de ir, passamos no Alecrim e compramos o convite da festa e fomos pro ponto pegar o ônibus, teríamos que pegar dois ônibus, um até o Centro e outro até o Coração Eucarístico. Era bom dar um rolé de ônibus por BH, eu gostava muito de ficar vendo os Graffits nos muros da capital, até mesmo as pichações, via cada Graffit louco. Do Centro para o Coração Eucarístico, tinha uma loira sentada próximo à gente, que fui viajando nela até o ponto que a gente ia descer, num vi mais nada, que loira gostosa! Descemos no ponto e antes de descer deu tempo de dar aquele sorriso safado pra loira e seguimos pra festa. Chegamos no apartamento e subimos pro andar da minha tia, minha tia mora na cobertura e o pessoal estava na área de churrasco do Ap. O visual muito bonito, BH faz jus ao nome, por onde você anda por Belo Horizonte dá pra ter uma visão de boa parte da cidade, passando pelo anel rodoviário dos dois lados você consegue ver BH quase sumir no horizonte. Dei um abraço na prima como se fizesse muitos anos que eu não a via, só quando a 242
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saudade passou ela me apresentou o pessoal amigo dela e duas gatinhas que estavam solteiras, eu amo minha prima. A mulher do meu primo também era uma gata, meus tios tinham saído com o pessoal que meu tio anda de moto, pegamos um copo e a amiga da minha prima serviu cerveja pra gente, ficamos ali conversando, discuti com meu primo à respeito da festa em Sabará, o que a gente iria fazer, a que horas iriamos embora, ou até mesmo se iriamos embora. Acendemos um cigarro e assim ia um trago e um gole, sucessivamente, depois de um tempo meu tio chegou e como sempre meu tio sendo uma pessoa muito comunicativa, descolada, já chegou fazendo a festa, brincando com todo mundo. Chegou também daquele jeito, havia bebido a noite inteira, zuando todo mundo, me apresentando pras meninas falando que eu era o sobrinho dele, fazendo aquele meio de campo, bagunçando. Não sei de onde surgiu uma garrafa de tequila, começaram a chamar um por um pra tomar uma dose de tequila, meu tio lá, servindo tequila pra todo mundo, meu primo tomou uma dose e gostou. Depois que a maioria já havia tomado, ele chamou meu tio pra tomar, e tomou uma com meu tio, me chamou e tomei uma com os dois, desafiou meu tio a tomar mais uma, meu tio duro na queda não titubeou e depois dessas doses meu primo já estava louco. Quase dando a hora de ir embora pra Sabará, meu primo sumiu, estava conversando com a amiga da minha prima na hora e já não estava nem pensando em ir embora, pra mim estava bom, quando minha tia chega e fala que meu primo estava passando mal no banheiro, desci e meu primo estava no banheiro vomitando, muito doido. Minha prima que nem é prima dele limpou seu vômito, maior vergonha e pra piorar ele não estava em condições nenhuma de ir embora de ônibus, num parava nem em pé direito, pedi meu primo pra levar a gente em Sabará, ele nos levou, o cinto de segurança que estava segurando meu primo de tão louco que estava. Quando chegávamos em Sabará, meu primo começou a dar algum sinal de melhora, foi parar na porta da minha vó o menino ressuscitou, já desceu do carro chamando pra ir na festa. Entrei em casa pra pegar alguma coisa, nem me lembro o que, já estava louco também, nossa ideia era beber na casa da minha prima pra já chegar na festa acelerado, pois iriamos chegar mais tarde um pouco na festa, pra mim deu certo, cheguei a mil. Quando entramos no Alecrim, nem terminei de subir a escada pra pista, olha que ela tem no máximo quatro degraus, e encontrei com o menina que tinha fumado um baseado com ela, ela me viu, veio sorrindo e a gente se beijou, sem falar nada. Não sei por iniciativa de quem também, mas sabe quando a mulher vem pra buscar um beijo e você percebe, então percebi. Já entrei louco, de 243
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mão dada pra fila da cerveja, fiquei a noite toda com ela, apesar da não aprovação do meu primo e dos amigos dele, pois ela era meio doidinha. Sabará não é uma capital, apesar de estar muito próximo à ela, talvez por tratar-se de uma cidade histórica alguns valores mantenhamse mais conservadores, eu estava curtindo bastante, estava me divertindo, dançamos, nos beijamos, curtimos, era tão espontâneo, que parecia que a gente estava em outro lugar. Acho que eu precisava dar uma extravasada assim, curtir e esquecer de tudo, no fim da noite fui deixar ela na porta dela, no beijo de despedida as coisas esquentaram, e chamei ela pra ir pra casa da minha avó. Disse que estava sozinho, trombei com meu primo e uma menina do outro lado da rua de frente à casa da vó, cumprimentei e entrei com ela, levei ela direto pro quarto do meu primo. Caímos na cama nos beijando, beijando ela toda, mas num estante todo aquele tesão passou, pensei o que estava fazendo, fui pra casa da minha vó com o intuito de refletir, de mudança, organização e num foi nem minha avó viajar que já estou aqui, trazendo mulher pra casa dela. Não queria vir pra casa da minha avó pra dar trabalho para ela, queria criar o menor problema possível, não era certo fazer isso, tentei conversar com ela, explicando que não dava, que era um grande desrespeito, que tinha vindo pra casa dela refletir um pouco, acabei contato do meu filho, acho que pensei nele como o resultado de uma situação parecida e essa era uma coisa na qual eu estava refletindo. Levei-a até a esquina de sua rua, claro que ela não estava muito satisfeita, eu havia deixado ela daquele jeito, o problema foi falar do moleque, esfriou demais, se não teria transado com ela na rua, mas talvez fosse melhor assim, por que eu tenho um sério problema com camisinha, nunca me lembro delas. Voltei e fiquei pensando no lance, pô, a casa da minha avó tinha que ser um lugar de neutralidade, se fui com intenção de refletir justamente sobre essas questões. Fui lembrando de tudo que estava passando e que eu não podia fazer essas coisas em Sabará, imagina dar dor de cabeça pra minha avó, queria era ficar quieto, depois de pensar quase até de manhã, passei o dia todo pensando. Durante a semana fui me candidatando a vagas de emprego em BH pela internet, me candidatei a muitas vagas, não podia ficar na casa da minha avó sem trabalhar. Na quinta à noite minha tia ligou perguntando se eu queria ir na festa de aniversário da madrinha de uma outra tia, que se eu quisesse era só ligar que ela me pegava, de cara resolvi que não, mas falei que iria olhar pra não ser muito direto. Não estava com clima nenhum de festa com muita gente, o pessoal iria perguntar dos meus pais, seria uma situação chata, preferi nem ligar pra ela falando que não ia. Na sexta à tarde, estava sentado no computador 244
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olhando meu e-mail, tinha umas três entrevistas marcadas na semana seguinte, duas na segunda e uma na quarta, já estava pensando em arrumar um emprego, pra não ficar parado ali na casa da minha vó, ela também não tinha a obrigação de me sustentar, ela já ajudava a olhar um casal de primos que moravam lá com ela, e ainda eu, com vinte e tantos anos. Já fazia um mês que estava na casa dela, era hora de tentar ajudar com alguma coisa, já que não podia ver meu filho, pelo menos arrumar um emprego pra ter um dinheiro pra ir lá ver ele, poder ajudar em alguma coisa. Após um mês, eu e meus pais ainda não tínhamos nos comunicado, nada, e de repente chegou meu pai e minha mãe na casa da minha avó, minha mãe veio em direção ao quarto e quando eu olhei pra traz, ela não falou nada, chorou, e chorando voltou pra traz e foram embora. Fiquei sem entender na hora, mas eu senti uma coisa forte também quando eu a vi, ainda mais sendo assim, sem esperar, pego de surpresa, bateu uma dor no peito, foi uma cena muito forte, ela me olhou e eu me senti tão distante, distante até de mim mesmo. Nesse momento difícil que eu estava passando, já tinham acontecido muitos desentendimentos, com minha mãe principalmente, sabia que ela não podia entender o que estava se passando, por uma parcela de culpa minha também. Quando se tratava do meu filho, as dificuldades dobravam, sempre tive um ideal de pai, mesmo antes de pensar em ser pai, talvez por ver alguns erros de nossos pais, fazemos certos planos para o futuro, ainda mais se tratando de ser pai. Eu quero educar meu filho, acredito que as pessoas são livres, mas filho é uma exceção, eles precisam ser educados, educados com equilíbrio entre o sim e o não, para torná-los cidadãos, prepará-los para o mundo. Minha mãe não gostava de me ver corrigindo-o, e se não posso corrigi-lo, também não posso estimular só o lado prazeroso, a punição é tão importante quanto a diversão, não falo de punição de bater, mas sim de falar um não de forma mais firme, forte (NÂO), e certificar de que este foi entendido. Sabe aquelas pessoas que falam não e voltam atrás quase que na mesma hora, assim são os avós, com coração duas vezes mais mole, e isso na fase em que meu filho se encontra, quase dois, não é uma coisa boa para a formação da sua personalidade. Então brigamos muito por causa disso, brigávamos por que já resolvi não me meter no relacionamento entre meus pais e meu filho, a final que direito tenho, não o ajudo com nada, e outra, são coisas que nunca mudam, está no ser, em ser avô (ó), ou talvez faça parte de um papel social. Penso que ainda vai chegar minha hora de tomar as rédeas da situação, ainda há muito a ser visto, repensado.
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Agora meus pais estavam em Sabará, provavelmente vieram pra festa de aniversário, senti a vontade de voltar crescer dentro de mim, mas a indecisão dava uma cortada nela. Agora já tinha umas entrevistas marcadas, se voltasse como iria ser, por que eu estava decidido a não trabalhar enquanto eu não terminasse de escrever e ainda não tinha terminado, mas já estava oitenta por cento concluído, não dava pra parar mais. Em certos momentos eu ficava em cima do muro, mas minha vontade era voltar. No dia seguinte não nos falamos nem nos encontramos, no domingo eles passaram lá pra irem embora, meu pai então chegou e falou que minha mãe queria conversar comigo. Eu já estava decidido a ir embora caso eles demonstrassem qualquer vontade de querer que eu voltasse, me culpando pela cena com minha mãe, não queria fazê-la sofrer, nunca quis. Minha mãe não chegou nem a entrar na casa da minha avó, ela não queria entrar, sai pra rua e ela estava com minha tia de BH, meu tio estava próximo ao carro dele, desci de encontro e meu pai veio pegar uma moldura de quadro pra trazer pra Ipatinga, a moldura ocupava todo o banco de traz do carro, ajudei a colocar, sem entender. Pensei, eles não vão me chamar pra voltar, tão ocupando o banco de traz do carro todo, não tinha jeito de ir com eles conjunto com aquela moldura, seria eu ou ela, e ela já estava dentro do carro. Me encontrei com minha mãe, minha tia subiu, descemos para a praça, acabamos subindo as escadas da igreja e sentando no degrau da porta dela, ali começamos a conversar, a primeira coisa que ela quis saber foi por que eu havia saído sem falar nada, e a conversa se desenvolveu a partir daí. Estávamos muito cautelosos com o que iriamos falar, eu pelo menos estava tentando me manter numa boa, a final eu já não estava com raiva, queria só que ela me chamasse pra voltar, bastaria. Ela falou um pouco de mim e do meu pai e depois disse que eu poderia falar que ela iria escutar, fiquei em silêncio por alguns segundos, e chorando ela repetiu, pode falar!, eu queria falar, queria muito soltar esse berro, mas eu perdoei, e só queria perdão, falei alguma coisa mais leve, e o clima melhorou. Conversamos mais abertamente, sentindo-se mais leve, ela disse que eu tinha que arrumar um emprego, que queria me ver feliz, coisas e palavras de mãe, falei que estava escrevendo um livro e isso foi um alívio pra ela, por que eu ficava no terraço lá de casa escrevendo quase toda noite e meus pais não sabiam. Minha mãe falou que achava que poderia me encontrar ali em cima a qualquer momento, pendurado com uma corda no pescoço, que ela nem conseguia dormir quando eu estava lá em cima escrevendo. Imagine, eu não sabia que as coisas estavam nessa situação, a visão dos meus pais, com medo de me 246
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encontrar sem vida no terraço de casa, a ponto de chegar a temer subir no terraço pra ver, imagino nos dias em que fiquei até de manhã escrevendo, ou até o almoço. Olha só como as visões de uma situação parecem ganhar vida própria, sei que fiquei mal, ou até mesmo busquei este estado (não posso afirmar nem um, nem outro), mas nunca imaginei chegar neste ponto, não que dar um tiro na cabeça não tenha passado pela minha mente, como de fato acontece com qualquer um, a questão foi que naquele momento, me desligar do mundo foi uma necessidade pra tomar alguma decisão. O fato de ser pai, colocou tudo o que eu era em cheque, será que eu conseguiria ser quem sou, buscar quem queria ser e ainda, além de tudo ser pai, ou será que eu teria que abrir mão de algumas coisas para ser pai? De tanto martelar isso na cabeça, acabei chegando na conclusão que, para que eu pudesse ser pai, teria que estar bem comigo mesmo, feliz, poderia alcançar este status nas realizações, na luta por aquilo que eu acreditava, este seria um valor que eu queria passar para meu filho, acreditar que você pode sempre, lutar, não desistir, eu tenho tanta coisa pra passar pra ele e tanta pra aprender. Sempre tive muita vontade de ter um filho, ensinar alguma coisa diferente, ensiná-lo a ser mais humano, mais tolerante, mais amigo, alguém que faça a diferença, que ajude a tornar o mundo um lugar melhor. De repente eu estava em meio a essa confusão toda, um filho com uma mulher que não amo, morando em Ipatinga e o filho em Valadares, minha família católica e a família dele evangélica, nós atleticanos, eles cruzeirenses, eram muitas diferenças, talvez bobas, mas que influenciavam determinantemente. De que forma iria educar ele, respeitando as duas famílias, os valores maternos, dos avôs e avós, tio e tias, não era como sempre imaginei uma família, pai, mãe e filho. Muita gente participava ativamente da vida do meu filho, era uma relação aberta, não existia um círculo familiar, pai, mãe e filho, era como se ele tivesse três pais, três mães, e eu não sabia como fazer isso. Mexeu muito comigo, me deixou louco, mesmo a conotação negativa em torno das minhas atitudes, acredito que além de ser uma coisa boa, era algo necessário, eu não estava conseguindo respirar direito, aquele aperto no peito, era bom ter um momento de parar e me perguntar o que estava acontecendo. Nós não conseguimos correr atrás do tempo, teria que aceitar o tempo que eu havia perdido e compreender que ainda seria preciso perder mais algum tempo, até conseguir tentar ajeitar as coisas, colocar os pés no chão. Estava dentro do carro a caminho de Ipatinga, voltando pra casa, aquele silêncio, que apesar de tudo, me causava uma certa tranquilidade, todos pareciam estar satisfeitos, eu não 247
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sabia o que aconteceria dali em diante, tinha apenas a certeza de que não mudaria muita coisa. Sempre fui uma pessoa que me cobrava bastante, nunca gostei de errar, acredito que ninguém goste, mas essa relação com o erro era algo que me incomodava, me deixava inconformado, não sabia lhe dar muito bem com isso e nunca conseguia superar um erro. O erro é do ser, é o que nos torna humanos, de formas diferentes, nossa frequência de erros e/ou acertos são oscilantes e eu havia cometido um erro que me levou a refletir sobre minha existência, quem eu era, quem eu queria ser. Errar nem sempre é uma coisa ruim, principalmente se tratando de um erro sobre algo antes não vivenciado, assim acontece o aprendizado, é errando que se aprende, claro que existe situações onde o erro é menos tolerável, de tudo não era uma situação tão ruim, talvez lá no fundo eu estivesse buscando fortes emoções, algo do inconsciente. O que estava me incomodando não era o fato de ter errado, mas a forma como as coisas se apresentaram, apesar da consciência de que meu filho era a única pessoa que não tinha culpa nenhuma nessa história, ele nasceu marcado por essa culpa. Não que eu o visse dessa forma, essa era uma visão mais lógica, sem emoções, o que me incomodava de fato era a má interpretação de algumas pessoas sobre os meus sentimentos pelo meu filho, isso acabou comigo, foi como uma punhalada nas costas. Eu queria um jeito de mostrar para essas pessoas que elas estão erradas, que eu amava meu filho, e o simples fato de ficar bajulando meu filho como se nada tivesse acontecido, não seria algo que iria fazer demonstrar isso. Ele merece mais, merece que eu lute por ele, merece uma demonstração forte e sutil ao mesmo tempo de amor e a hora certa chegaria. Eu só queria que ele soubesse que era importante pra mim, que era a coisa mais importante da minha vida. As opiniões alheias nunca foram de meu interesse, buscava o meu caminho, minhas verdades, desejos e vontades, não possuía religião, nem partido, pra me manter indiferente socialmente, respeitando opiniões diferentes e mais ainda, preservando a minha, perguntar o que fazer não fazia meu estilo, buscava satisfazer meus desejos e realizar meus sonhos. Ir contra toda pressão social me levava a repensar tudo, principalmente em alguns dias, mas eu não podia me deixar de lado, é o que pensamos e a forma com que agimos, que marcam nossa existência. Baseado nisso é que afirmo minha existência todos os dias, ser mais um, não me atrai, sabia que estava longe de ficar bom, mas tinha a esperança que iria melhorar e isso me fazia seguir em frente, dia após dia. Aguentar não era fácil, como as pessoas se sentem no direito de se colocarem entre pai e filho e decidir o que seria melhor para ambos, acho que o fato de não querer compartilhar com minha família minha paternidade, passava pela questão de ainda não ter conseguido encontrar um caminho para ter total controle da minha vida e da 248
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vida do meu filho. Não queria dividir essa responsabilidade, não essa, justamente para evitar que pessoas se colocassem em nosso caminho, mas tudo foi um tanto chocante, surpreendente, eu precisaria de tempo para aprender a ser pai, pra alcançar as mudanças necessárias e não estava conseguindo o tempo necessário para tais mudanças. Pensava até quando iria suportar isso, perder noites e noites de sono, quantas lágrimas mais derramaria, quanto tempo iria se passar, quantas mulheres deixaria escapar das minhas mãos, quando ou em qual curva eu me reencontraria, quando chegaria a vez do sol, pra iluminar minha vida... “O sol há de brilhar mais uma vez A luz há de chegar aos corações Do mal será queimada a semente O amor será eterno novamente É o juízo final A história do bem e do mal Quero olhos pra ver A maldade desaparecer” Juízo Final - Nelson Cavaquinho
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PSICODIAGNÓSTICO A avaliação do paciente se deu início em maio de dois mil e doze, durante o período de avaliação o mesmo demonstrou uma enorme gama de questões subjetivas referentes à sua angústia e sua própria existência. No início foi observada uma suposta predisposição depressiva, na qual se baseia nos comportamentos de reclusão social, introspecção e falta de tônus, como descrito pelo próprio paciente em seus relatos sob sessão. No decorrer das mesmas, várias questões foram expostas em caráter de reflexão, com o intuito de trazer pontos de vista e experiências conflitantes com as vividas atualmente pelo paciente, ou seja, causar no paciente uma dúvida em relação aos seus sentimentos e emoções, emergindo novas perspectivas a cerca dos sentimentos primários até então inquestionáveis. Nota-se em certo momento uma tendência autodestrutiva, fruto da pressão social e da própria pressão exercida do paciente sobre si mesmo, onde a incompreensão de certos fatores causava um tormento e mal estar imensurável. Torna-se visível o momento decisivo em que o paciente se encontra e como o mesmo afeta sua qualidade de vida e até sua evolução enquanto ser social. Nota-se a busca pela autoafirmação do paciente, do resgate de seu Eu, da vontade de reviver no presente seus planos e projetos do passado, o que entra em choque com sua condição presente, nas suas responsabilidades. O medo do futuro prende o paciente num estado de congelamento, onde não se vê saída ou possibilidades. As perdas vinculadas à sua personalidade e autoestima, parecem ser algo muito difícil de recuperar, a falta de confiança em si e nas questões que o cercam, atrasam aquilo que pode o impulsionar a sair dessa inércia. As possibilidades existentes e principalmente as expostas pelas pessoas de seu convívio social, geram uma crise existencial e de identidade, sendo que o paciente possui forte personalidade. Desistir da vida, vez ou outra, parece ser uma escolha do paciente, salvo em momentos onde sua consciência se manifesta de forma forte e projetiva, em outros momentos a apatia toma conta dos seus ideais e do seu Eu. Mesmo passando por momentos críticos de natureza imaginária, onde a construção do real parece ter se distorcido entre seus medos e fantasmas, mantém os pés na realidade de forma bastante consciente, descartando qualquer possibilidade de desencadeamento psicótico ou a fins. A resignação ao prazer se apresenta como forma de punição a todo o prazer vivido e toda busca por ele, sendo que uma das maiores fontes do seu desprazer atual seja resultado da busca pelo mesmo, tal punição faz parte desse processo de consciência e compreensão, na tentativa de reeducar o Eu em questões posteriores. Demonstra traços de ansiedade, tensão e 250
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revolta, em relação a algumas pessoas de seu meio social, em destaque sua mãe, por alguma questão mal resolvida no passado, criando subterfúgios na tentativa de se justificar e dar alicerce no seu comportamento atual e nas suas perspectivas futuras. Apresenta uma grande deficiência em superar seus erros e falhas, sejam elas relevantes ou sem importância alguma, se prendendo assim no passado e atrapalhando sua caminhada cotidiana. Compromete a vida adulta esquivando-se de compromissos básicos, mantém uma postura sonhadora, o que destoa das exigências existenciais secundárias referentes à vida social. Apresenta indiferença social, acentuada por sinais de descomprometimento familiar, social e consigo mesmo, uma vez que reluta em se concentrar na sua ideologia, demonstrando fuga em substância psicotrópica, em busca de um alívio temporário e sustentação ideológica. Se fecha, negando sua realidade e se defende com argumentos plausíveis à aquilo que se deseja persuadir. Renúncia ajuda, pois o mesmo se diz como único facilitador possível, descartando qualquer possibilidade de interação e afeto de qualquer parte, ajuda de caráter moral, apoio emocional, uma vez que a família se prontifica a entender e compartilhar sua angústia. É evidente o sofrimento do paciente, assim como o sofrimento da família, tal sofrimento vem consumindo toda a relação familiar, na medida em que o tempo passa o ambiente piora e isso afeta negativamente ainda mais o paciente, de forma a surgir ainda mais questões e mais dúvidas, impedindo que o mesmo se concentre naquilo que determinou como foco. De acordo com relatos, o paciente vem passando por uma fase de insônia, esta justificada pelo momento em que o mesmo se encontra, a insônia é resultado de uma série de conflitos resultantes de sua atual situação, sendo assim, ocorreu o desencadeamento de bruxismo e transtornos do sono, situações de origem emocional. O paciente demonstra também uma fragilidade emocional, notada pela resistência à socialização, uma vez que fatores como rejeição, desaprovação, pode afetar negativamente em sua reabilitação, o que justifica o não envolvimento social e afetivo. Com os dados analisados, não foram constatados nenhum indício de doença mental grave, porém dificuldades de ordem social e afetiva, depressão menos acentuada, transtornos do sono e oscilação de humor, sendo necessária a continuação do tratamento psicoterápico.
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