Candomblé Agora é Angola
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IVETE MIRANDA PREVITALLI
CANDOMBLÉ: Agora é Angola
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Foto: Syntia Alves – Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como requisito parcial para obtenção do título de Mestre em Ciências Sociais, sob orientação da Profa. Teresinha Bernardo.
POTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO 2006 1
Nos candomblé de nação angola, há um toque de atabaque que se chama muzenza e a coreografia que os filhos de santo desenvolvem ao som deste ritmo é muito peculiar. Os braços formando um ângulo de 90 graus se agitam fazendo subir e descer os cotovelos, enquanto os pés, um de cada vez, sem se levantarem do chão se arrastam em movimentos rápidos e repetitivos para os lados. Essa dança sugere uma galinha de angola ciscando no chão ao mesmo tempo em que abre e fecha suas asas, reproduzindo um gracioso balé.
Banca Examinadora
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Este trabalho teve apoio financeiro de CNPq
Para Heitor Barbosa Previtalli.
Agradecimentos
Agradeço a Professora Dra. Teresinha Bernardo, orientadora e amiga que com paciência e dedicação, ensinou-me a pesquisar nestes anos que estivemos juntas desde minha iniciação científica até o mestrado. Aos professores Eliane Hojaij Gouveia e Acácio Sidinei A. Santos que compuseram a mesa de qualificação e que competentemente contribuíram de maneira positiva para o aperfeiçoamento deste trabalho. À minha filha Luciana que esteve sempre presente me estimulando e acreditando no meu trabalho, além de dar consultoria nos escritos em língua inglesa. Ao meu filho Amílcar pela colaboração com as questões das leis em tempo de escravidão. Ao meu filho Daniel pelo suporte em informática que em muitas horas fez-me perder a razão. Ao Walter pela paciente leitura preliminar, pelos achados nas bibliotecas e por suas opiniões precisas. À filha-de-santo, amiga e colega de academia Syntia Alves, que nunca me deixou esquecer prazos, e esteve presente em todos os momentos, sempre estimulando e oferecendo todos os seus préstimos. À Lajara Correa amiga que sempre solícita acudiu-me com as mais diversas informações sobre a comunidade do candomblé e a comunidade negra de Campinas. À Letícia Reis Vidor, doutora, antropóloga, filha de santo e amiga, que nos intervalos dos ritos me auxiliou a pensar e organizar o trabalho. À Maria José Sanches makota de minha casa de candomblé que ajudou-me com os textos em francês.
À Melissa Barreti que muitas vezes acolheu-me em sua casa. Aos meus filhos-de-santo que tiveram paciência com a diminuição da minha disponibilidade como sacerdotisa e que continuaram assumindo as atividades relativas aos inquices e às entidades espirituais, além da administração da casa. Aos meus pais em especial à minha mãe que nunca deixou de me estimular mostrando o caminho que eu já havia percorrido. Ao tateto dia inquice Ubiacylê, à maeto dia inquice Corajacy, ao tateto dia inquice Gitalanguange, à mameto dia inquice Dangoroméia, ao tata Tawá, ao baba Tologi, e a todo povo do santo que em entrevistas ou conversas informais ofereceram dados preciosos para a realização deste trabalho. Aos meus professores na graduação e na pós das Ciências Sociais da PUCsp, que sempre me incentivaram a ir em frente na carreira acadêmica elogiando e lapidando meus trabalhos. Ao CNPq órgão que financiou este trabalho durante dois anos. Em especial agradeço a Inkossi o grande guerreiro que me ensina a vencer as lutas da vida e o carinho de pai Congo que nunca deixou de me acolher. A todos aqueles que comigo tem caminhado e que de alguma forma ajudaramme a escrever este trabalho, meus sinceros agradecimentos. .
Resumo
Esta pesquisa trata dos candomblés de nação angola de Campinas, e analisa-os sob a perspectiva do sincretismo religioso e do ideal de pureza. Entre os aspectos analisados encontram-se: a observação do espaço que revela a passagem da umbanda para o candomblé além da acomodação de novos ritos que foram absorvidos por um dos terreiros pesquisados; a formação do parentesco que se estrutura conforme a proibição do incesto e também como as características da família moderna são encontradas atualmente na família de santo inclusive o transito de seu filhos; a Lavagem do adro da Catedral Metropolitana de Campinas que se constitui em uma festa de rua, apesar de se revelar como uma manifestação de uma linhagem, não deixa de proporcionar visibilidade para o candomblé campineiro independente da nação a que pertence. Além disso, torna o negro visível numa sociedade racista, pois atrai para a praça ativistas e as mais diversas manifestações culturais afro-brasileiras.
Abstract
This research is about candomblés of the Angola Nation from Campinas, and analyze them under the perspective of religious syncretism and the ideal of purity. Among the analyzed aspects are: the observation of space that reveals the transition from umbanda to candomblé besides the accommodation of new rites that were absorbed by one of the studied terreiros; the constitution of relashionships that are structured according to the forbiddance of incest and also how the characteristics of the modern family are currently found in the família de santo including the transit of its followers; the Lavagem of Campinas Metropolitan Cathedral´s steps, which is a street festivity and even though it reveals itself as a lineage´s manisfestation, it still provides visibility for the candomblé of Campinas independent of the nation to which it belongs. Besides, it makes the black people stand out in a racist society, because it atracts to the public eye activists and the most diverse afro-brazilian cultural manifestations.
Sumário
INTRODUÇÃO
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CAPÍTULO I: Nascimento e estabelecimento dos terreiros Campinas
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CAPÍTULO II: Da umbanda para o candomblé: o espaço conta a história
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As casas de angola
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Três Oguns: uma só terra
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Outros usos do espaço
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As Casas de Santo e a Casa de Egungum.
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O Recanto da Umbanda.
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O Arranjo Entre As Diversas Nações.
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CAPÍTULO III: Elaboração do Parentesco – Formação e Organização das Famílias-de-santo A aliança
81 105
CAPÍTULO IV: A Festa
112 Vencendo A Intolerância: Murmúrio de uma festa afro-brasileira
118
Lavagem: festa na praça - Uma etnografia
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A Lavagem e o Ideal de pureza
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
135
ÍNDICE E CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES
145
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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INTRODUÇÃO
Esta dissertação trata do candomblé angola circunscrito na cidade de Campinas. Neste trabalho, proponho analisar alguns aspectos do candomblé angola de Campinas, mostrando a sua formação, a elaboração do espaço, a constituição das principais famílias de santo, o trânsito de filhos de santo, as rivalidades e alianças e a lavagem do adro da Catedral Metropolitana, sob a perspectiva do sincretismo religioso e do ideal de pureza. Embora não existam dados quantitativos a respeito de quantos terreiros de candomblé há na região de Campinas nem a que nações pertencem, pude perceber que são os terreiros de nação angola os que têm mais visibilidade, os que são mais numerosos e os mais influentes nessa cidade. O candomblé de nação angola é valorizado em Campinas por seus adeptos, não só por pessoas anônimas, mas também por ativistas do movimento negro e por políticos que participam dos congressos sobre religiões de matrizes africanas1, dos encontros de valorização da cultura banta e de atos públicos, como o que ocorre nos sábados de aleluia, desde 1985, isto é, a lavagem das escadarias da igreja Nossa Senhora da Conceição, catedral Metropolitana de Campinas. Nota-se, assim, que este tipo de candomblé goza de prestígio na cidade.
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Entre as religiões de matrizes africanas encontram-se as diversas nações de candomblé, os batuques, os tambores de mina, os xangôs, a umbanda, o candomblé de caboclo, e todas as manifestações religiosas que têm em sua composição teológica elementos advindos de religiões que os diversos grupos africanos trouxeram para o Brasil.
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O meu interesse por essa expressão religiosa data de algum tempo, mais precisamente, sobrevém do meu envolvimento com o candomblé angola e também do meu estudo sobre as religiões afro-brasileiras. Ao pesquisar sobre o candomblé, observei que a maior parte da literatura se referia, diretamente, ao candomblé queto, enquanto quase não havia informações sobre o “angola”. O candomblé se organizou em torno de “nações” que se originaram principalmente dos grupos de negros bantos e dos sudaneses que chegaram ao Brasil, através da diáspora africana. Edson Carneiro escreve que os escravos que vieram para o Brasil provinham de muitas tribos e que cada uma delas tinha sua religião em particular. A diversidade era tanta que, segundo Carneiro, “O conde dos Arcos achava prudente manter as diferenças tribais entre os negros, permitindo os seus batuques, porque “proibir o único ato de desunião entre os negros vem a ser o mesmo que promover o governo, indiretamente, a união entre eles””. (1991, p.16,17) Porém, parece que o Conde se equivocou, uma vez que da união de todas essas religiões surgiram diversas expressões religiosas afro-brasileiras de norte a sul do Brasil, que se assemelham “ao menos pelas suas características essenciais.” (Carneiro; 1991) O Tráfico trouxe escravos de Guiné, Angola e da Costa da Mina e o denominador comum nesse tipo de escravidão foi a preocupação em “anular as peculiaridades nacionais das tribos africanas.” Assim, um número considerável de culturas africanas foram trazidas para o Brasil e ressignificadas. Além disso, vale lembrar o tráfico interno, após 1850, que trouxe escravos de todas as regiões do país que, por sua vez, pertenciam às várias etnias.2
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Edson Carneiro escreveu que “a mineração absorveu, indistintamente, todo braço escravo ocioso nas antigas plantações de açúcar do litoral; muitos negros da Costa da Mina, quando a corrida do ouro arrefeceu, ficaram na Bahia, outros foram vendidos para Pernambuco e para o Maranhão; a maioria dos
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Do intercâmbio cultural dos escravos e ex-escravos surgiram as diversas modalidades de religiões afro-brasileiras, dentre elas, o candomblé, o batuque, o tambor de mina, o xangô, entre outras. As nações de candomblé surgiram dos antigos terreiros baianos, fundados por sacerdotes africanos – angolas, congos, jejes, nagôs, - iniciados em suas religiões tradicionais, que ensinaram a norma dos ritos e o corpo doutrinário para as comunidades que se formavam em torno da religiosidade que conservava “certos traços da cultura, particularidades de dança, música, de canto, de organização de festas, que os identificavam com a região de origem) .” (Carneiro, Antologia do Negro Brasileiro; p. 263). Conforme Vivaldo da Costa Lima, as nações foram “aos poucos perdendo sua conotação política para se transformar num conceito quase exclusivamente teológico. Nação passou a ser, desse modo, o padrão ideológico e ritual...” ( 2003; p. 29) dos antigos terreiros de candomblé da Bahia fundados por africanos. As primeiras obras referentes a um estudo mais criterioso sobre a cultura dos africanos no Brasil surgem na primeira metade do século XX. Em 1906, Nina Rodrigues escreveu “Os Africanos no Brasil”, publicado em 1933. Mais tarde, Artur Ramos e Edson Carneiro também se voltaram para os estudos das manifestações culturais afrobrasileiras, dentre elas as diversas nações de candomblé, gerando obras que até hoje são indicadas para quem se interessa pelo tema. Nota-se, porém, que, quando havia alguma referência sobre o angola, era sempre alguma observação pejorativa e, ainda hoje, essa expressão religiosa, quando comparada ao queto, se situa em uma categoria inferior.
escravos antes empregados na minas serviu às culturas de café e do algodão ou aos novos empreendimentos pecuários do Sul; as cidades reuniram elementos de todas as tribos, quer agregados à camuflagem do senhor, quer alugados a particulares, quer trabalhando por conta própria, quer engajados em explorações de tipo industrial.” (1991, p.18)
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Tais estudos posicionavam as manifestações religiosas oriundas dos bantos como as mais pobres de todas as nações de candomblé. Concebiam-se os negros de angola como ignorantes adoradores de lascas de pedra, imitadores da estrutura religiosa nagô, além de serem sincréticos, pois misturavam às suas crenças qualquer elemento religioso que conhecessem. 3 Posteriormente, Roger Bastide, nos anos 50, escreveu sobre o candomblé, contudo, sem dar maior atenção ao de origem banta, prestigiando mais os candomblés queto. Desta forma, os autores pioneiros que se ocuparam dos estudos sobre o candomblé, fizeram apenas algumas observações sobre os de nação banta e, por causa
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Falando sobre os cambindas, Luciano Gallet escreve que: “considerados pelos outros, inferiores, imitadores e ignorantes. Desconhecem até o próprio idioma, complicado e difícil, e o misturam com termos portugueses. Adoram as pedras, os paralelepípedos e as lascas de pedra.” (Gallet, Luciano. Estudos de Folclore. Edt. Carlos Wehrs & Ltda. Rio de Janeiro, R.J. 1934. p.58). Ainda sobre os negros bantos, Nina Rodrigues afirma que: “decorrido meio século após a total extinção do tráfico, o fetichismo africano constituído em culto apenas se reduz ao da mitologia jeje-iorubana. Angolas, guruncis, minas, haussás, etc., que conservam suas divindades africanas, da mesma sorte que os negros crioulos, mulatos e caboclos fetichistas, possuem todos, à moda dos nagôs, terreiros e candomblés em que as suas divindades ou fetiches particulares recebem, ao lado dos orixás iorubanos e dos santos católicos, um culto externo mais ou menos copiado das práticas nagôs.”( Rodrigues, Nina. Os africanos no Brasil. Edita. UnB ,Brasília, D.F. 7a edição, 1988, p. 216). Por outro lado, Arthur Ramos embora considerasse também que as “sobrevivências religiosas e mágicas de origens bantu existiam deturpadas e transformadas” (1961: p. 361), escreveu um capítulo intitulado:“sobre as culturas bantu”, no 1o volume da coleção de sua obra chamada “Introdução à antropologia brasileira”. Nesse capítulo faz uma ressalva à afirmação de Nina Rodrigues quanto à quantidade de negros bantos existentes na Bahia, que para Nina não passavam de “uns três Congos e alguns angolas”. Já para Ramos os bantos eram encontrados em grande número, mesmo na Bahia (1961: p. 357). Outro autor, Edson Carneiro, refere-se aos candomblés angola e congo tanto no livro Candomblés da Bahia, quanto no Religiões Negras. Carneiro escreveu que: “Pode-se dizer que, na Bahia, os negros bantos esqueceram os seus próprios orixás.” (1991, p,134). E quando escreve sobre a formação dos candomblés de caboclo, diz que : “foi a mítica pobríssima dos negros bantos que, fusionando-se com a mítica igualmente pobre do selvagem ameríndio, produziu os chamados candomblés de caboclo na Bahia.” ( 1991, p. 62). Carneiro, Edson. Religiões Negras. Negros Bantos. Edita . Civilização Brasileira , 3a edição. Rio de Janeiro, R.J. 1991. Candomblés da Bahia. Edita. Civilização Brasileira, 8a edição. Rio de Janeiro, R.J. 1991. Ver ainda: Carneiro Édison. Cartas de Édson Carneiro a Artur Ramos. Edita . Corrupio, São Paulo. S.P. 1987. Querino, Manoel. Costumes Africanos no Brasil.Edita Massangana, 2a edição. Recife. Pernambuco. 1988.
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da baixa qualificação dada a esta cultura, os trabalhos posteriores trataram dos candomblés queto, deixando de lado os de nação angola. Prandi, em 1992, escreveu que “o candomblé nagô4 pode contar, além do prestígio, com muitas fontes escritas brasileiras, além de uma etnografia produzida sobre o culto dos orixás da Nigéria e do Benin. Nada semelhante existe para o candomblé angola, a não ser o ensino do quicongo oferecido pela Universidade Federal da Bahia”. (Prandi, 1991; p. 20). O mesmo autor comenta o discurso feito por Esmeraldo Emérito de Santana, representante da nação angola no Encontro de Nações de Candomblé, promovido em Salvador pelo Centro de Estudos Afro-Asiáticos da Universidade Federal da Bahia em 1981...: “Aqui faço um apelo, já que existe um centro de estudos, para que pesquisem o angola. Não há livros sobre o angola. E tem mais terreiros de angola na Bahia do que de queto, de jeje, de qualquer nação” (Lima et al., 1984:41, In Prandi, 1991; p.20). Portanto, o principal argumento que pode justificar esta dissertação é a falta de pesquisa sistemática sobre o candomblé angola. É importante ressaltar, ainda, que, mesmo havendo preconceito sobre o candomblé de origem banta, o candomblé angola de Campinas é majoritário e vem se fortificando perante seus adeptos, o movimento negro e outras instituições. A produção etnográfica sobre o candomblé elegeu para seus estudos antigas casas de candomblé queto da Bahia, que foram preferidas por preencherem os critérios necessários de pureza que as tornavam melhores que as outras ditas mais miscigenadas e, portanto, impuras. Segundo Beatriz Góis Dantas “a ideologia da pureza pressupõe a existência de um estado original, uma espécie de reduto cultural preservado das influências perturbadoras de elementos estranhos”... (Dantas, 1988; p. 145) 4
Prandi quando fala de candomblé nagô se refere à nação queto.
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A pureza, nesse sentido, presume que haja um estoque original de bens simbólicos, uma continuidade da tradição e fidelidade à África, requisitos para a “marca dos puros”. É lógico que as origens existem, porém numa África distante no tempo e, portanto mítica. O candomblé foi composto por diversos povos, por isso, não tem uma origem única, embora preserve mais traços de uma ou outra cultura originária. Desta forma, mesmo que esses terreiros baianos tenham nascido de mães africanas ou de seus descendentes, não foi somente este fator que os caracterizou como os mais puros e que os colocou em evidência. Embora a pureza fosse uma categoria nativa utilizada para expressar as rivalidades entre as diversas nações, na disputa pelo mercado de bens simbólicos, a influência nos meios religiosos afro-brasileiros dos antropólogos apegados aos africanismos, segundo Dantas, “transformou esta categoria nativa em categoria analítica, prática” que cristalizou traços culturais que passaram a ser representações da “expressão máxima da africanidade” (Dantas, 1998; p.148) Prandi, estudando os candomblés de São Paulo, entende que: “A produção etnográfica sobre estes candomblés prestigiados por sua publicidade passou também, em anos recentes, a oferecer modelos legitimamente puros da religião dos orixás para aquelas casas de criação mais recente, ou de origem de memória perdida”. (Prandi, 1991,17) O candomblé de São Paulo somente se torna expressivo a partir dos anos 60 (Prandi; 1991. Wagner; 1995) e, por isso, muitas casas se servem dos modelos baianos para se espelharem. Ao participar do projeto “Religião da diáspora negra: Continuidades e rupturas” de autoria da Dra Teresinha Bernardo, para o qual realizei a coleta de histórias de vida
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das mães-de-santo mais velhas de São Paulo, percebi, ainda em uma observação preliminar, que o candomblé paulista procura uma legitimidade que vai ser encontrada por meio da descendência a uma destas casas antigas de queto ou pela proximidade com a África, obtida através da viagem à Nigéria. Por outro lado, em Campinas, os terreiros angolas são fortes representantes das religiões afro-brasileiras, mesmo conhecendo a existência de um preconceito banto, que ainda hoje tem muito peso entre os adeptos do candomblé; ao contrário do que se poderia esperar ao observar o candomblé paulistano, o candomblé campineiro de nação angola elaborou uma reação à soberania nagô, que começou com a delimitação das fronteiras da nação angola. 5 À primeira instância, o que parece é que a mesma categoria analítica utilizada para definir a pureza nagô, definida por Beatriz Góis Dantas, é a que o candomblé angola de Campinas está utilizando, a fim de marcar suas diferenças e de firmar sua identidade. No entanto, com um olhar mais cauteloso, percebi que, num primeiro movimento, as casas paulistas procuravam uma tendência homogeneizante em direção à nação queto, em decorrência do ideal de pureza que se lhe atribuía. Atualmente em Campinas, e numa observação preliminar, pude averiguar que, também em São Paulo,
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Isso pode ser percebido em algumas casas de candomblé angola de Campinas pela preocupação em,
por exemplo, repercutir os atabaques apenas em toques que são reconhecidos da nação angola, em somente cantar nas festas em alguma língua banta, em separar os inquices (divindades bantas) dos orixás (divindades queto)., mediante também dos vocabulários em banto colados nos murais dos terreiros e que servem para o aprendizado dos filhos-de-santo, os nomes das casas que foram transformados de nomes em língua ioruba para nomes bantos, entre outras evidências que têm o sentido de delimitar as fronteiras e o fortalecimento da identidade.
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surge um segundo movimento que se caracteriza, utilizando as palavras de Hall, como uma” proliferação subalterna da diferença”. (Hall; 2003) O candomblé paulista, tanto em Prandi quanto na pesquisa que realizei para o trabalho de Bernardo com as mães-de-santo mais antigas de São Paulo, parecia “quetetizar-se”, porém, paradoxalmente, notei, por intermédio da presença em congressos de cultura banta e reuniões com a comunidade de candomblé campineira, que a nação angola está interessada em firmar as diferenças. Porém não se trata de uma diferença binária em que existe o absolutamente eu e o absolutamente outro, seria conforme o pensamento de Hall “uma ‘onda’ de similaridades e diferenças, que recusa a divisão em oposições binárias fixas.” (2003; p. 60) Neste caso, o candomblé de nação angola procura retornar ao particular, ao específico, que o torna diferente, mas não pode deixar intactas as formas antigas tradicionais. Então, ao mesmo tempo em que se torna um sítio de resistência também traduz e se ressignifica, tornando evidente que a tradição não precisa necessariamente ser algo fixo, mas que busca um diálogo com o passado e a comunidade e este diálogo conduz à afirmação da identidade. Contudo, isto não se dará sem conflitos e acordos, sem disputas e consensos. Para designar este tipo de diferença, Hall utiliza o termo Derrida “ différance que tanto pode ser “marcar diferença” [to differ], quanto “diferir” [ to defer]. O conceito se funda em estratégias de protelação, suspensão, referência, elisão, desvio, adiamento e reserva.” ( 2003; p.92) Conforme observei, há nos quatro terreiros que fizeram parte de minha pesquisa uma preocupação em valorizar a nação angola para si e perante a sociedade religiosa afro-brasileira. Para que isso ocorra, os pais e mães-de-santo têm se empenhado em
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recuperar as marcas autênticas do angola e, em alguns casos, retirar elementos estranhos à nação. Para que seja possível a "recuperação" do angola, acreditam os adeptos que existe um estoque original de bens simbólicos, que hoje está numa África mítica, uma vez que a diáspora transformou os elementos africanos constitutivos desta nação. Desta forma, dicionários de língua banta são muito comuns a estas comunidades, sugerindo conforme as palavras de Hall, “que a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno. Não é uma ‘arqueologia’. A cultura é uma produção.” (2003; p.44). Neste contexto, a procura da valorização da cultura banta surge como instrumento que mobiliza e justifica a nação angola, podendo ainda agregar, no sentido da afirmação identitária da população afro-descendente campineira, outros movimentos culturais e políticos afro-brasileiros. Neste caso estão inseridos os grupos de capoeira, de jongo, de tambor de crioula, que acompanham, no sábado de aleluia, a lavagem das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas, realizada pelo candomblé angola. Para a realização da pesquisa, acho relevante expor as dificuldades e facilidades que minha condição de iniciada gerou para a de pesquisadora. Ao mesmo tempo em que a minha posição de adepta possibilitou ao trabalho uma perspectiva interna do candomblé, causou-me algumas dificuldades, quando tive que olhar de fora para essa expressão religiosa da qual faço parte. A questão foi tornar estranho aquilo que já há muito tempo me era familiar. Vagner Gonçalves, no livro “O antropólogo e sua magia”, diz que: “Para alguns antropólogos que têm experiências de aproximação e familiaridade com as religiões afro-brasileiras
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(como simpatizantes, freqüentadores ocasionais ou adeptos) em períodos anteriores à realização da pesquisa etnográfica, a observação participante pode assumir outros significados, pois para eles, a imersão no campo não tem a função, propriamente, de proporcionar a familiaridade com o universo dos seus observados, mas tornar aquilo que aparentemente lhes é “familiar” em “estranho”. Se por um lado o antropólogo pode contar com maior segurança em estabelecer contato e conviver no ambiente da pesquisa, pois parte do código de comportamento do grupo ele conhece, por outro, seu esforço será redobrado para não restringir a pesquisa a relações e posições mais contingenciais à sua própria experiência de vida na religião". (2000; p. 69)6 Desta forma, o fato de eu ser iniciada, por um lado, facilitou a realização da observação etnográfica, posto que eu conheço a expressão religiosa e, por conseguinte suas regras, por outro lado, dificultou a observação mais atenta de detalhes que pudessem ser importantes para uma descrição minuciosa e interpretativa. Além disso, tive que tomar cuidado com o “jeito de olhar”, já que o olhar curioso de observador etnográfico poderia ser tomado por bisbilhotice a fim de conhecer os “segredos da casa”. Destarte, procurei voltar diversas vezes em cada casa, para que pudesse observar com os olhos da curiosidade de pesquisadora aquilo que me era familiar, ao mesmo tempo em que o ato de repisar me permitia olhar sem ser inconveniente. Na verdade, eu estava ali desempenhando outro papel, ou seja, eu era a aprendiz de antropóloga e procurava mostrar isso indo às visitas com roupas ocidentais e sem 6
Silva, Vagner Gonçalves da. O antropólogo e sua magia. Edusp, São Paulo, SP. 2000,
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utilizar símbolos que pudessem me associar ao candomblé. Deixei claro para os pais e mães-de-santo que, no momento das entrevistas, eu estava realizando uma pesquisa sobre o candomblé de Campinas, proposta aceita por todos. Apesar disso, jamais deixaram de me tratar como uma “de dentro”, ora chamando-me pela “dijina" 7, ora expondo-me segredos, pedindo sigilo, dizendo que confiavam em mim, em virtude de minha posição religiosa. O distanciamento entre a adepta e a pesquisadora que, nas entrevistas, se deu tão-somente pelo abandono dos símbolos religiosos afro-brasileiros, não foi assim tão simples, quando das idas às festas. Em tais ocasiões, não foi possível participar sem a vestimenta típica de baiana, o que me causou alguns constrangimentos para tirar fotos, porque eu era vista ali, antes de tudo, como sacerdotisa vestida com roupas incômodas que tolhiam meus movimentos; ao mesmo tempo, era estranho estar paramentada com a máquina fotográfica à mão. Para a realização do trabalho de campo, programei uma observação sistemática, durante um ano, que começou no sábado de aleluia de 2004 com a “lavagem” da Catedral e terminou com o mesmo evento, em 2005. Durante esse período, fui às principais festas, saídas de muzenza8, de makotas9, de tatas10, festa de caboclo, confirmação de kota11, kudiá mutue12 e, como já disse, à lavagem da Catedral. Além disso, participei de encontros com a comunidade de candomblé de Campinas que promoveu discussões sobre legalização e visualização dos terreiros, sobre os problemas com a polícia e com outras religiões, principalmente, com as neopentecostais.
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Nome religioso recebido por aquele que é iniciado no candomblé angola No candomblé de rito angola-congo, filha-de-santo. 9 Cargo feminino correspondente ao cargo de equeji no candomblé queto. Acolita dos orixás, quando descem nas filhas-de-santo. 10 Cargo masculino no candomblé de rito angola correspondente ao ogã no candomblé queto. 11 Irmã mais velha, com mais de sete anos de feita. 12 Cerimônia de dar de comer à cabeça. 8
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A minha pesquisa se concentrou em quatro terreiros que foram selecionados, levando-se em conta os seguintes critérios: pertencer à nação angola, antiguidade, ter expressividade para o povo de santo e ter reconhecimento na cidade. Terreiro 1 Nome do terreiro: Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda Data de fundação: dezembro de 1981 Pai-de-santo: Antonio Carlos Rodrigues da Silva Dijina: Tateto dia Nkisi Ubiacyle Data da iniciação: ano - 1971
Terreiro 2 Nome do terreiro: Inzo Musambo dia Hongolo Data de fundação: abril de 1974 Mãe-de-santo: Eunice de Souza Dijina: Mameto dya Nkisi Edangoroméia Data de iniciação: 18 de janeiro 1984
Terreiro 3 Nome do terreiro: Inzo dia Musambu Kaiango n’boti Ofulá Data de fundação: 20 de Janeiro de 1983 Mãe-de-santo: Antônia Lima Duarte Dijina: Mameto dya Nkisi Corajacy Data da iniciação: 15 de fevereiro de 1981
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Terreiro 4 Nome do terreiro: Ile Axé Arolê Data de fundação: 8 de dezembro de1986 Pai-de-santo: José Estrivo Dijina: Tateto dya Nkisi Odé Gitalanguangi Data de iniciação: 13 de maio de 1980
A teoria escolhida para interpretar os dados selecionados das histórias de vida dos pais e mães-de-santo foi a da memória. De acordo com Pierre Nora, diferentemente da história que é uma representação do passado, “a memória é um fenômeno sempre atual, um elo vivido no eterno presente... Porque é afetiva e mágica...” (Nora, 1993, p. 9) Para a memória é fundamental o envolvimento com o grupo afetivo, pois segundo Halbwachs: “Outros homens tiveram essas lembranças comigo. Muito mais, eles me ajudaram a lembrá-las: para melhor me recordar, eu me volto para eles, adoto momentaneamente seu ponto de vista, entro em seu grupo, do qual continuo a fazer parte, pois sofro ainda seu impulso e encontro em mim muito das idéias e modos de pensar a que não teria chegado sozinho, e através dos quais permaneço em contato com eles.” (1990, p.27) Seguramente, ao trabalhar com a memória, se tem a lembrança que é, ainda segundo Halbwachs, “em larga medida uma reconstrução do passado com ajuda de dados emprestados do presente e, além disso, preparada por
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outras reconstruções feitas em épocas anteriores e de onde a imagem de outrora manifestou-se já bem alterada. Certamente, que se através da memória éramos colocados em contato diretamente com algumas de nossas antigas impressões, a lembrança se distinguiria, por definição, dessas idéias mais ou menos precisas que nossa reflexão, ajudada pelos relatos, os depoimentos e as confidências dos outros, permite-nos fazer uma idéia do que foi nosso passado.” (Halbwachs.1990; p.71) Neste sentido, a memória é viva, uma vez que o ato de lembrar dispõe de um movimento que sai do presente, vai para o passado, retornando novamente para o presente. Deste modo, trabalhar com a memória é trabalhar com reconstrução que se efetiva mediante este movimento de ir e vir tal qual uma lançadeira, isto é, tem-se elementos do presente incorporados aos do passado. Embora lembrar seja o ato mais importante no estudo da memória, quando lidamos com grupos discriminados, como é o caso do candomblé, o esquecimento também tem que ser considerado, visto que por meio dele podemos identificar a presença de conflitos. Tais conflitos são muitas vezes revelados por intermédio de lacunas nas histórias de vida que surgem como esquecimentos de algumas situações ou de épocas da vida. A memória das minorias tem tanto continuidades quanto rupturas. A estas últimas, Pollak vai chamá-las de memórias subterrâneas, porque é uma memória que não pode ser revelada, por causa do preconceito e das perseguições; fica, pois, restrita à comunidade afetiva.
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Uma característica da memória subterrânea é que ela somente vem à tona quando surge uma brecha nas relações sociais, especialmente as políticas, e por ela ser assim, podemos outorgar-lhe um caráter de resistência. Segundo Pollak, “o longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de discursos oficiais. Ao mesmo tempo ela transmite cuidadosamente as lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.” (Pollak,1989, p.5). No caso do candomblé, é muito comum a presença deste tipo de memória, já que a origem dessa manifestação religiosa está vinculada à população afro-descendente, e o racismo que se impinge contra esta população também se estende aos elementos de sua cultura. Uma das formas de localizar a memória subterrânea é por meio da história oral. Michael Pollak, ao se ocupar da memória de grupos “segregados, excluídos e minorias” diz que “para poder relatar seus sofrimentos, uma pessoa precisa antes de mais nada encontrar uma escuta.” (Pollak, 1989; p. 6). Desta forma, a história oral revela-se uma importante técnica de pesquisa com minorias sociais. Na história de vida há um núcleo forte que vai dar consistência ao discurso e ao qual o sujeito vai sempre retornar. Nas de longa duração, conforme Pollak: “a despeito de variações importantes, encontra-se um núcleo resistente, um fio condutor, uma espécie de leitmotiv em cada
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história de vida. Essas características de todas as histórias de vida sugerem que estas últimas devem ser consideradas como instrumentos de reconstruções da identidade, e não apenas como relatos factuais.” (Pollak, 1989; p. 12). Esta reconstrução da identidade do grupo é um ponto bastante importante para o candomblé angola campineiro que hoje luta contra o preconceito que o próprio povo do santo, aliado a alguns intelectuais, possui em relação a este tipo de expressão religiosa. Neste sentido, a história de vida transforma-se numa técnica excelente para realização deste trabalho. O critério assumido para determinar quantas histórias de vida deveriam ser coletadas foi aquele conhecido como “bola de neve”, isto é, foram os entrevistados do primeiro grupo que indicaram os outros que os sucederam até que se repetiram as indicações, terminando assim as entrevistas. Além disso, muitos dados foram frutos da convivência com os sacerdotes, por causa de minha condição de iniciada do candomblé. Coletei histórias de vida das quatro mães e pais-de-santo escolhidos e de outros pais-de-santo, inclusive de outras nações, que se revelaram essenciais na formação do candomblé campineiro, por intermédio da citação de seus nomes nas histórias orais já ouvidas. Também fizeram parte da pesquisa filhos-de-santo das diversas casas. Para registrar as histórias de vida, optei pelo uso do gravador que foi bem aceito por uns e considerado constrangedor para outros.
Muitas vezes, as revelações
interessantes aconteciam depois que eu desligava o aparelho. Foram gravadas 40 horas de entrevistas, mas muitas revelações importantes foram obtidas em conversas informais, nos fins das festas, nos dias de sacrifícios, nas reuniões políticas da comunidade religiosa afro-brasileira de Campinas, em que o
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gravador não estava presente. Estas revelações feitas pelos pais, mães-de-santo e filhosde-santo eram anotadas discretamente em cadernetas ou escritas assim que fosse possível, porém em momento e local adequados. É importante mencionar uma outra questão relevante para quem pesquisa esta expressão religiosa: aquela relacionada aos conflitos e rivalidades. Como nem sempre fosse possível ficar neutra, no momento da pesquisa, era importante saber a que distância eu deveria me manter para não me envolver na “indaka de mavula" 13 e poder realizar o meu trabalho. Quando comuniquei aos pais e mães-de-santo selecionados para este meu estudo que estaria nos próximos anos fazendo uma pesquisa e escrevendo sobre o candomblé de Campinas, a notícia se espalhou como rastro de pólvora. Numa reunião com aquela comunidade, na qual se discutiam as diversas dificuldades que os terreiros encontravam na legalização da construção de suas casas, percebi uma conversa paralela, que não era comigo, mas que se fazia bem ao meu lado para que eu pudesse ouvi-la. O assunto desta conversa era: Qual era a casa mais antiga de candomblé de Campinas? Havia diversos nomes de pais e mães-de-santo envolvidos na questão, e eu não havia percebido o quanto era importante para a comunidade ser notada, isto é, ser tomada como objeto de um trabalho acadêmico. Certamente, na perspectiva do candomblé de Campinas, ser objeto de estudo lhe dava maior importância. Na realidade, para esta expressão religiosa, seja queto, seja angola, ser o primeiro significa ter prestígio, pois quer dizer que, no mínimo, os que vêm depois descendem dele. Daí a relevância da questão da casa mais antiga, do primeiro candomblé, do primeiro pai-de-santo.
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Discussão, litígio. Confusão, barulho, tumulto. Fofoca.
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Ouvi estas conversas paralelas sem me intrometer durante vários encontros, até que um dia, a discussão entre alguns dos envolvidos veio à tona. Embora o recado fosse para mim, a conversa se passou como se eu não estivesse ali. Por fim, depois de alguns acertos, ficou resolvido, com muita habilidade, que a casa de candomblé mais antiga, “registrada” era a de pai Toloji; a primeira mãe-de-santo com casa aberta de candomblé angola em Campinas, porém sem registro, fora mãe Nanjerecy; o barracão mais antigo, isto é, o primeiro que tinha sido construído, era o que pertence hoje ao pai Ubiacyle, considerado como o pai-de-santo mais velho. Assim, a comunidade resolveu seus problemas muito diplomaticamente, sem deixar ninguém de fora, ao mesmo tempo em que me “passava o recado”. Portanto, ficou evidente para mim que o que eu fosse escrever deveria estar de acordo com o que a liderança desta expressão religiosa havia determinado. O trabalho está dividido em quatro capítulos. No primeiro capítulo, farei uma contextualização da cidade de Campinas, relacionada ao tipo de escravidão que foi instituído na região, que deve ser levado em conta para se entenderem as características do candomblé angola hoje estabelecido na cidade. O segundo capítulo trata da etnografia do espaço mais antigo, além de mostrar como uma das casas de candomblé pesquisada se diferencia das demais, na ocupação e distribuição do espaço com a introdução de novos ritos. O terceiro capítulo destina-se a mapear as famílias de santo e mostrar como se formam os parentescos e o que resulta do trânsito de filhos-de-santo entre as famílias, levando-se em conta as alianças e os conflitos. Os nomes dos componentes das famílias de santo que participaram deste trabalho foram obtidos através dos depoimentos dos entrevistados.
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No quarto capítulo, será analisada a lavagem das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas, atentando para a ausência do deslocamento de filhos entre duas importantes casas de angola, que possivelmente tenham nessa prerrogativa a possibilidade de realizarem juntas a única festa pública do candomblé campineiro e que hoje está inscrita no calendário oficial deste Município e no calendário turístico e cultural do Estado de São Paulo.
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CAPÍTULO I Nascimento e estabelecimento dos terreiros.
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Campinas
Por volta de 1767, em decorrência do caminho de Goiases, formou-se no oeste do Estado de São Paulo o bairro de "Campinas do Mato Grosso de Jundiaí". Um pequeno comércio se desenvolveu naquele local para suprir as necessidades das tropas que transitavam entre Santos, Minas Gerais, Goiás e Cuiabá e atendiam à economia mineira. (Baeninger, 1992) Em 1774, o bairro tornou-se "Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí"14, e, em 1797, de Freguesia passou para a categoria de vila, "Vila de São Carlos". A cultura de cana de açúcar fora introduzida na região e, entre 1790 e 1795, a indústria açucareira fundou a prosperidade econômica e populacional da região. 15 O ciclo do açúcar arregimentou significativa quantidade de mão-de-obra escrava cuja maioria era formada de negros provenientes do grupo lingüístico banto, filhos das diversas etnias que o compõem. Conforme Slenes, “vários grupos de bakongo, mbundu e ovimbundo (localizados respectivamente no baixo rio Zaire, no interior de Luanda, e no hinterland de Benguela), forneceram grandes contingentes de cativos
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No dia 14 de julho de 1774, em uma capela de sapê e paus roliços, foi celebrada a primeira missa por Frei Antônio de Pádua, primeiro vigário da paróquia. Essa ficou sendo a data oficial da fundação da cidade, na época Freguesia de Nossa Senhora da Conceição das Campinas do Mato Grosso de Jundiaí. Nessa fase, o Governador da Capitania cumpria expressas ordens do Rei de Portugal para povoar e implantar agricultura sólida no território paulista, pois a mineração estava em queda e os preços do açúcar anunciavam alta
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. Em 1797, a freguesia foi elevada à condição de vila, mantendo até 1842 o nome de Vila São Carlos. O período do açúcar marcou a fase de construção da cidade, havendo ainda ruas com pouquíssimas casas. Site www.campinas.sp.gov.br
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para o sudeste e (estou convencido) boa parte da matriz cultural da senzala”. (Slenes, 1999; p.50). Com a sangrenta revolução de Saint Dominique em 179116, que dizimou a colônia francesa, a exportação de açúcar para o mercado europeu ficou bastante prejudicada. O preço do produto subiu vertiginosamente e deu um impulso às "plantation" da região de Campinas, onde a escravidão passou a caminhar junto com o açúcar. A expansão da cultura da cana gerou uma expansão econômica que, por sua vez, estimulou, também, o crescimento da população cativa. Conforme Baeninger, "o ciclo do açúcar marcou a fase de construção da cidade. A dinâmica expressa por esse ciclo econômico contribuiu para o surgimento de pequenos núcleos urbanos ligados ao setor agrícola e à comercialização de escravos, introduzindo a diversificação, embora incipiente e apontando para o surgimento de uma importante rede urbana no Estado”.(1992; p. 23) Com a queda do preço do açúcar no mercado internacional, a cultura da cana entrou em decadência. Porém, o ciclo econômico do açúcar gerou capital suficiente para a introdução da cultura cafeeira que veio como alternativa econômica para a queda do mercado açucareiro. Embora a cultura do café tivesse surgido concomitantemente à
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O domínio colonial (no Haiti) foi seriamente abalado pelos acontecimentos que culminaram com a Revolução Francesa. Os antigos escravos da ilha rebelaram-se contra o jugo francês em 1791 e o grande líder abolicionista Pierre-Dominique Toussaint L'Ouverture tomou o poder. Em 1794, Napoleão Bonaparte enviou uma expedição para combater os rebeldes. Após meses de resistência, Toussaint aceitou os termos de paz e foi enviado para a França onde, contra os termos da paz negociada, morreu na prisão em 1803. www.ufrs.br/cdron.
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prosperidade da cultura açucareira, foi somente em 1835 que houve a substituição de uma cultura pela outra. (Beaninger, 1992). 17 Prometendo consideráveis ganhos para os fazendeiros, a cultura do café se estendeu por toda a região, o que aumentou a necessidade de mais trabalhadores, arregimentando, desta forma, grande quantidade de mão-de-obra escrava, que com a proibição do tráfico negreiro em 1850, foi suprida através do tráfico inter-regional.18 Os escravos do Norte e Nordeste deixaram as regiões que manifestavam decadência econômica e se dirigiam para as regiões que apresentavam maior desenvolvimento, como o Sudeste.19 O primeiro registro nacional de escravos, datado de 1872, segundo Slenes, mostrou que “Campinas tinha 14.000 cativos, ou a maior população escrava de todos os municípios paulistas". (Slenes, 1999; p. 71). Em virtude da proibição do tráfico externo20 a mão-de-obra escrava foi suprida pelo tráfico inter-regional. Embora a mãode-obra escrava, naquela ocasião, fosse proveniente principalmente do Nordeste
17
Em 1867, com capital derivado essencialmente de cafeicultores, fundou-se a Ferrovia Paulista que entra em operação em 1872. www.campinas.sp.gov.br
18
Período e economia fortemente escravagistas, entre 1854 e 1886, a população cativa estava em 50%. www.campinas.sp.gov.br 19
Conforme Baeninger: A migração de escravos provenientes de regiões onde as lavouras canavieiras entravam em decadência, como as do Nordeste, contribuiu para o crescimento populacional das províncias do Sul (Prado, 1983). De fato, nos jornais da época, encontravam-se anúncios como este: "vende-se(sic) 12 bonitos escravos de 12 a 20 anos, todos do Ceará" ( gazeta de Campinas, 22-6-1878; apud Lapa, 1991) - (Baeninger. 1992; p. 21) 20 Leis Abolicionistas : * 1815 - Tratado anglo-português, na qual Portugal concorda em restringir o tráfico ao sul do Equador; * 1826 - Brasil compromete em acabar com o tráfico dentro de 3 anos * 1831 - Tentativa de proibição do tráfico no Brasil, sob pressão da Inglaterra. * 1838 - Abolição da escravidão nas colônias inglesas * 1843 - Os ingleses são proibidos de comprar e vender escravos em qualquer parte do mundo * 1845 - A Inglaterra aprova o Bill Abeerden, que dá à Inglaterra o poder de apreender os navios negreiros com destino ao Brasil. * 1850 - É aprovada sob pressão inglesa a lei Eusébio de Queirós, que proíbe o tráfico negreiro no Brasil. * 1865 - A escravidão é abolida nos Estados Unidos (13a. Emenda Constitucional) 1869 - Manifesto Liberal propõe a emancipação gradual dos escravos no Brasil. * 1871 - Lei do Ventre Livre ou Lei Rio Branco 1885 - Lei dos Sexagenários ou Lei Saraiva-Cotejipe * 1888 - Lei Áurea.
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brasileiro, esses escravos poderiam não ser mais africanos, mas já terem nascido em terras brasileiras, contudo observa-se que "a população cativa de Campinas na primeira metade do século XIX era predominantemente africana.” (Slenes, 1999; p. 72). Cabe notar que a proibição do tráfico negreiro limitava a aquisição de mão-deobra escrava, numa época em que o complexo cafeeiro se estruturava, se consolidava e isso demandava uma grande quantidade de mão-de-obra.21 Ademais, a partir da metade do século XIX, o Movimento abolicionista tomou força e incitava levantes e fugas de escravos que desorganizavam a produção nas fazendas. Nesta mesma época, idéias racistas importadas da Europa formavam opiniões entre alguns intelectuais que, baseados nestas fontes, se preocupavam com um Brasil que se formava moreno e miscigenado. A solução encontrada nesse caso, tanto para o déficit de mão-de-obra, quanto para o branqueamento da população, foi uma política de imigração européia. Desta forma, acreditavam, estaria “salvo” o Brasil não só economicamente, mas também na constituição da sua identidade nacional, uma vez que com o branqueamento poderia se configurar uma nação aos moldes europeus. A lei Áurea, assinada pela Princesa Isabel em 13 de Maio de 1888, além de ter libertado um décimo da população negra da época no Brasil, significou, principalmente, a retirada de um entrave para o trabalho assalariado no país, visto que muitos dos setores da economia já não mais utilizavam a mão-de-obra escrava. Porém o que deveria terminar com um programa de ajustamento social gradativo, tornou-se um desajustamento estrutural, porquanto os negros foram fadados ao desemprego e à marginalidade. Esse contexto somente agravou o preconceito racial 21
A hipótese de que a proibição do tráfico negreiro gerara um déficit de mão-de-obra disponível para trabalhar na agricultura do café, é refutada no livro de Petrônio Domingues, Uma História Não Contada – negro racismo e branqueamento em São Paulo na pós-abolição (Editora Senac, SP) que foi resultado da dissertação de mestrado desenvolvida pelo autor na USP. Segundo Petrônio, não havia falta de mão-deobra em São Paulo, mas uma concreta intenção da elite, do governo e dos intelectuais paulistas em branquear a cidade.
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que justificava a degradação do liberto na nova realidade social pela superioridade do branco sobre o negro. Além disso, os libertos tiveram que disputar no mercado de trabalho com os imigrantes brancos europeus, mais bem aceitos. Reafirmando essa questão, Bernardo chama a atenção para a concorrência no mercado de trabalhadores livres, entre os ex-escravos e o imigrante europeu, afirmando que este último era o preferido. Com isso, o ex-escravo alforriado ou aquele que mais tarde obteria a liberdade, eram colocados inteiramente à margem da nova ordem social, que se instaurou com o mercado de trabalho livre. (Bernardo, 1998; p. 24). A primeira experiência com mão-de-obra formada por imigrantes europeus no Estado de São Paulo data de 1847 e foi realizada na fazenda Ibicaba, na região de Campinas, e atual município de Limeira (Beaninger). Esse foi um empreendimento importante, por empregar, simultaneamente, mão-de-obra livre e escrava. No entanto, essa primeira tentativa de imigração européia não foi bem sucedida. Os imigrantes que chegaram ao sudeste vinham para trabalhar como meeiros, parceria que não deu certo, por um lado, porque as condições de trabalho eram péssimas e nesse sistema os imigrantes eram obrigados a pagar para o fazendeiro as despesas realizadas com a imigração, ficando vinculados a ele até saudarem a dívida. Por outro lado, o regime escravista ainda vigente também se tornou um entrave para a imigração, uma vez que esse sistema não era bem aceito pelos governos europeus da época. Em 1886, uma nova experiência imigratória se iniciou, mas, desta vez, com outro sistema de trabalho que não era mais o de "parceria" como fora nas décadas
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anteriores, mas o de "colonato". Inaugurou-se, então, o sistema de trabalho livre, em contrapartida com a escravatura. 22 O desenvolvimento da cultura do café no sudeste do Brasil trouxe consigo o desenvolvimento dos meios de transportes, da construção civil e uma industrialização rude, que geraram um processo de urbanização. A região se modificou, as cidades cresceram, as indústrias precisaram de mão-de-obra, e o comércio, de consumidores. Conforme Baeninger, "Com a implantação da cultura do café, que passou a ser o principal produto cultivado, Campinas acentuou seu dinamismo com um intenso desenvolvimento urbano e rural. O efeito urbanizador já se fazia sentir através da expansão das vias de comunicação para o transporte do café, como as Estradas de Ferro Mogiana e Companhia Paulista (1872), originando núcleos urbanos e ampliando as atividades ligadas a esse setor". (1992; p. 29) Em 1889, uma epidemia de febre amarela causou muitas mortes em Campinas e provocou intensa fuga de moradores para outros municípios, além de diminuir a imigração européia para a região. 23 Em São Paulo, a febre amarela adentrou por Santos, que era a porta de entrada dos imigrantes que vinham trabalhar nas lavouras de café. A doença alastrou-se 22
Segundo os registros da hospedaria dos imigrantes do Estado de São Paulo, " foram enviados para as lavouras de café do Município, de 1882 a 1900, 140631 imigrantes estrangeiros, dos quais 75% eram italianos; 11,3% portugueses; 7,9% espanhóis; 3,9% alemães e 1,8% de outras nacionalidades." (Baeninger. 1992: 31, 32) 23 Segundo Baeninger,: Os historiadores locais afirmam que durante a epidemia quase 75% da população emigrou do Município (Brito, 1969; Pupo, 1969). "A cidade é abandonada; a população reduziu-se de 20 mil para 5 mil moradores; a morte rondava a cidade." (Figueira de Mello, 1991:23). Estabelecimentos comerciais, escritórios de indústrias e até algumas indústrias transferiram-se para São Paulo e Jundiaí. (Semeghini, 1988). (1992: 35)
26
primeiramente pela região portuária e, como não havia casos no interior paulista, a medicina acreditava que era uma doença típica das regiões litorâneas. Porém, em 1889, houve uma forte epidemia em Santos que subiu a serra através da ferrovia e chegou a Campinas. Foram vários surtos que assolaram a região nos anos de 1889, 1890, 1892, 1896 e 1897, dizimando grande parte da população. 24 Como era desconhecido o meio de propagação da enfermidade, acreditava-se que a febre amarela era contagiosa e, num consenso geral, originária de eflúvios miasmáticos ou emanações pútridas. Sendo assim, os médicos higienistas, pensando na erradicação da enfermidade, voltaram-se para os aspectos urbanísticos, já que associavam a doença ao ar confinado, portanto a habitações coletivas, a ruas estreitas, matadouros, cemitérios, valas, águas de fontes duvidosas e à falta de esgotos. Desta forma, o combate da doença ficou centrado na reorganização urbana e na normatização da vida cotidiana. Nesse sentido, foi a população mais pobre, constituída de imigrantes e negros libertos, que arcou com a responsabilidade da disseminação da enfermidade, acentuando desta forma o preconceito contra aqueles que se amontoavam em cortiços na cidade. Segundo Figueira Mello “libertos e imigrantes em 1888 e1889, afluíram para a cidade. Entupiram os cortiços” (1991; p. 23)25 Nessa perspectiva, o preconceito racial contra o negro se intensificou e gerou fortes demandas contra suas manifestações religiosas, pois do mesmo modo que a raça negra foi considerada inferior, sua religiosidade também foi encarada como mais primitiva e, ao mesmo tempo, associada a bruxaria e malefícios. Embora Slenes afirme que "a maioria dos escravos de Campinas, mesmo em 1888, estava próxima no tempo às fontes africanas de sua cultura" (Slenes, 1999; p. 24
Dados obtidos na Biblioteca Virtual Adolph Lutz. http://www.bvsalutz.coc.fiocruz.br/html/pt/home.html 25 FIGUEIRA MELLO, F. Formação histórica de Campinas: Breve Panaroma. Subsídios para a Discussão do Plano Diretor. Prefeitura Municipal de Campinas, 1991.
27
72), seus cultos foram escondidos, parecendo desta forma não terem se estruturado ou mesmo desaparecido, mas, pode ser que tenham se tornado subterrâneos por causa das perseguições sofridas, segundo a concepção de Pollak. (Pollak, 1989). 26 Apesar de Campinas ter passado por muitos surtos de febre amarela, a cidade aos poucos foi se recuperando e, em 1891, deu-se continuidade ao processo imigratório, com o registro do maior "volume anual de imigrantes com destino a Campinas". (Baeninger, 1992). Na virada do século, tanto São Paulo quanto os principais municípios do interior apresentaram dinamismo econômico e populacional. No entanto, com a queda do preço do café e a conseqüente crise neste setor, a imigração subsidiada para São Paulo e a economia cafeicultora encerraram-se, respectivamente em 1927 e 1930. Contudo, na região houve também a vinda de imigrantes norte-americanos que introduziram o cultivo do algodão, que trouxe consigo novas técnicas de plantio, além de um novo pólo industrial. Conforme Baeninger: "O
movimento
migratório
internacional
desempenhou
urbanização, alternando em muitos casos, o comportamento 26
Um estudo realizado por Rita Amaral sobre a coleção etnográfica de cultura religiosa afro-brasileira do MAE , curiosamente revela a Coleção Registro Sertanejo que apresenta um candomblé banto datado do começo do século XX. De acordo com o artigo, Rita divulga que: “Foram encontradas 187 das 252 peças listadas, datadas do princípio do século, de cultos afro-brasileiros sediados principalmente no interior de São Paulo. Segundo informações contidas nesta listagem, algumas peças foram levadas ao Museu Paulista, em 1914. Outras, em 1938 e outras ainda, em 1943. São originárias de cultos do interior de São Paulo (Tietê, Pirapora, Araraquara, Jundiaí) e foram doadas ao Museu Paulista pela Secretaria de Segurança Pública, o que indica que devam ter sido apreendidas durante o período de repressão policial ao culto. Essa coleção é extremamente valiosa, não apenas por representar aspectos múltiplos do culto, como por seu caráter artesanal, constituindo peças únicas.”, 26 Amaral, Rita. A coleção etnográfica de cultura religiosa afrobrasileira do museu de arqueologia e etnologia da universidade de São Paulo, In Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, Universidade de São Paulo, no. 10, 2000, p266. Isso significa que houve um candomblé anterior a este que hoje existe em Campinas e que, possivelmente, desapareceu em virtude da perseguição policial.
28
demográfico, o perfil populacional econômico e as formas de inserção dos municípios na divisão social do trabalho no Estado". (1992; p.48) Campinas, no ciclo do açúcar, fora denominada a Capital da escravatura, no período cafeeiro, recebera a alcunha de "Princesa do oeste" e, com o avanço da industrialização, tornara-se uma "Cidade Modelo". Na primeira metade do século XX o processo de urbanização e industrialização, conforme Baeninger, "representou a formação de uma nova ordem social permeando todas as instâncias da sociedade. A mistura de raças, nacionalidades, culturas e ideologias, dispersas no espaço urbano, começou a caracterizar certos grupos sociais. A constituição da classe operária, formada primeiramente pelos trabalhadores estrangeiros foi expressão desse processo". (1992; p.50) Com o crescimento do número de indústrias aumentava também a migração originária não só de outros Estados, como também do êxodo rural. (Baeninger, 1992) Campinas era uma cidade que reforçava o papel da migração, uma vez que isto era sinônimo de dinamismo econômico e prosperidade. A partir dos anos 60, o fluxo migratório para a região de Campinas aumentou consideravelmente e continuou na década de 70, ocasião em a cidade recebeu "um total de 230.464 migrantes, dos quais, aproximadamente, 20% apresentavam como local de última residência o Estado do Paraná, 15% vinham da região Metropolitana de São Paulo, 10%
29
do Estado de Minas Gerais e 5% da própria região de governo da Campinas". 27 (Baeninger. 1992; p. 76) Em Campinas, é o Estado do Paraná que nesta época aparece como a principal área de procedência dos migrantes, porém de uma maneira geral é de Minas Gerais que tradicionalmente vem a maioria. Ademais, se para São Paulo a migração de nordestinos foi intensa, em Campinas ficou em torno de 12,5%, ocupando a quarta posição em relação a outras regiões do Brasil. (Baeninger, 1992) Além dos fluxos migratórios interestaduais, também foi significativo o movimento migratório proveniente do oeste paulista que se direcionou para Campinas. Na década de 70, coincidindo com o processo de urbanização, com a afluência de indústrias que formaram o maior parque industrial regional e com a expansão rodoviária, fatos que estimularam a vinda de um número significativo de migrantes, é que se deu a chegada dos pais e mães-de-santo que fazem parte desta pesquisa e, por meio deles, o surgimento dos primeiros terreiros de Umbanda em Campinas. Por sua vez, o candomblé que já havia se estabilizado em São Paulo nos anos 60, chega a Campinas na década de 80, confirmando o que nos afirma Boaventura de Souza Santos ( 1996), a saber, que só permanecem ou florescem elementos da cultura que possuem raiz. Por isso, me ative à explicação de como chegaram os escravos em Campinas, na verdade, a raiz das expressões religiosas afro-brasileiras. . Fundamentando-nos em Bernardo (1986) e Prandi (1991) que explicam que a Umbanda abriu caminho para o candomblé em São Paulo, podemos assegurar que o mesmo processo ocorreu em Campinas. Mais reintegrada à sociedade a umbanda, como expõe Ortiz,
27
Beaninger considera como migrante o indivíduo residente há menos de dez anos no município de residência atual.
30
”aparece, pois como um solução original; ela vem tecer um liame de continuidade entre as práticas mágicas populares à dominância negra e à ideologia espírita. Sua originalidade consiste em reinterpretar os
valores
tradicionais,
segundo
o
novo
código
fornecido pela sociedade urbana e industrial”.(1999; p.48) 28
Sem a necessidade de processos iniciáticos mais drásticos, tais como são exigidos pelo candomblé, na umbanda que há a manifestação do
é por meio do transe
caboclo, do preto-velho, que são espíritos
ancestrais, que vão direcionar o inicio do caminho religioso a esses sacerdotes pesquisados. Todos os entrevistados vieram de famílias de religiões cristãs, sejam católicas ou neopentecostais, e para se chegar ao universo mágico do candomblé, no qual os ritos de passagem e purificação são realizados mediante o sacrifício de animais, rito que foi e
ainda
é
amplamente
questionado
e
combatido
pelas
diversas
modalidades de religiões cristãs no Brasil e pela sociedade mais abrangente, a umbanda surge, então, como uma interessante solução para a entrada ao universo afro-brasileiro. Por um lado, citando Ortiz,
“O problema das despesas encontra, pois, na religião umbandista
uma
solução
original;
um
primeiro
28
Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda e sociedade brasileira. Editora Brasiliense, São Paulo. 1a reimpressão, 1999.
31
resultado é a ausência de gastos no sacrifício de animal, uma vez que estes tendem a ser abolidos.” (1999; p.154).
Por outro lado, ainda referindo-se à obra de Ortiz, “o problema longe
de
ser
uma
equação
funcional,
parece-nos
ser
de
cunho
ideológico. Por detrás do jogo de funcionalidades se esconde um conflito muito mais amplo que se trava contra os valores da sociedade global”. 29 (1999; p.155) Este conflito já se mostrava desde o início da caminhada desses sacerdotes, quando iam à procura das benzedeiras e revelavam a má impressão deixada pelos objetos religiosos afro-brasileiros, expostos nos altares. Neste caso, o elemento básico determinante da ação dramática é a oposição entre os valores da população branca, cristã e de classe média e os padrões afro-brasileiros expressos na estatuária e, muitas vezes, na incorporação dos espíritos de pretos-velhos e caboclos. A entrada do candomblé em São Paulo se dá, segundo Prandi: "... por diferentes maneiras: através de pais-de-santo que vêm do Rio e da Bahia para iniciarem filhos aqui; quando umbandistas vão ao Rio e à Bahia para lá se iniciarem no candomblé; nos casos em que um pai ou mãe-de-santo migra para São Paulo já iniciado em seu Estado de origem e abre aqui terreiros de candomblé; na situação em que o migrante já vem “feito” no
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Ortiz, Renato. A morte branca do feiticeiro negro. Umbanda e sociedade brasileira. Editora brasiliense, São Paulo.1a reimpressão, 1999.
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candomblé, mas começa sua carreira religiosa em São Paulo abrindo casa de umbanda, para mais tarde vir a tocar candomblé e abandonar a umbanda; e, finalmente, através de filhos que já são iniciados em São Paulo por mães e pais-de-santo, também iniciados em São Paulo... Já na etapa de expansão, é claro, esta última forma é a mais freqüente e é também a que reforça a idéia de estar esta religião se enraizando na metrópole.” (1991; p.93)
Em Campinas, a umbanda data da década de 70 e o candomblé se estabelece na década de 80 do século XX, edificado por dois pais-de-santo brancos e duas mães-desanto negras, todos provenientes de outras cidades do Estado de São Paulo e de outros Estados, e coincide com o fluxo migratório direcionado para este Município. 30 A iniciação destes sacerdotes no candomblé foi realizada por mães-de-santo oriundas de São Paulo e da baixada santista31, a propósito, da mesma forma de expansão relatada por Prandi. Convém ainda acrescentar que o candomblé que primeiro e mais largamente se estabeleceu em Campinas foi o de nação angola, ainda hoje o mais numeroso.
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Pai Ubiacylê é proveniente de Limeira, pai Gitalangunage de Catanduva, mãe Corajacy da Bahia, mas já morava em Minas Gerais quando migrou para Campinas e Mãe Dangoroméia é oriunda de Minas Gerais. A expansão do pólo industrial de Campinas atraiu grande quantidade de migrantes originários do interior de São Paulo assim como de outros Estados. Estes pais e mães-de-santo vieram com esse movimento migratório que muito se intensificou depois de 1960. 31 Vagner Gonçalves nota que: A importância do candomblé litorâneo em São Paulo também pode ser atestada na relação dos mais antigos pais-de-santo em São Paulo, elaborada pela Comissão de Candomblé formada por algumas lideranças religiosas paulistas, a partir da Assessoria para Assuntos Afro-brasileiros da Secretaria do Estado da Cultura do Governo Franco Montoro, em 1983. Dos vinte e sete babalorixás e ialorixás citados, quinze se localizam na capital e doze em Santos; deste total, onze pertencem à nação angola e três à sua variável ameríndia – o xambá; do queto são seis, o mesmo número para sua variável efon. ( obs.: um dos terreiros não tem definida a nação) (Vagner, 1995: p.82)
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CAPÍTULO II Da umbanda para o candomblé: o espaço conta a história.
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É no espaço que encontramos todas as marcas das épocas em que um determinado grupo viveu.. Maurice Halbwachs afirma que as religiões “estão solidamente afixadas sobre o solo, não somente porque se trata de uma condição que se impõe a todos os homens e a todos os grupos; mas uma sociedade de fiéis é conduzida a distribuir entre diversos pontos do espaço o maior número de idéias e imagens que são por ela defendidas.” (1990; p. 143). 32
Nos terreiros pesquisados, isso é visível nas novas edificações, nas imagens dos inquices pintadas nas paredes, nas imagens de gesso dos santos católicos colocados em suportes, nos assentamentos distribuídos pelos canteiros, nos odus assentados nos cantos da casa, nos símbolos da umbanda que se encontram distribuídos pela casa ou reunidos num só recanto, nos centros dos salões, enfim, todo espaço é provido de símbolos cujos significados estão ali mostrando as relações com os deuses e como o fiel deve se comportar. Os terreiros aqui estudados, assim como a maioria dos terreiros paulistas,33 se tornaram de candomblé num movimento posterior à umbanda. Ao observarmos as permanências e modificações no espaço, podemos tentar desvendar a história da comunidade e o conjunto de símbolos e atributos pertinentes àquele grupo. 32
Halbwachs, Maurice. A Memória Coletiva. Vértice, Editora Revista dos Tribunais, São Paulo. 1990 Sobre o trânsito dos terreiros paulistas da umbanda para o candomblé existe vasta bibliografia a respeito. Ver: Bernardo, S. Teresinha. A mulher no candomblé e na umbanda. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Estudos Pós-graduados em Ciências Sociais – PUCSP, 1986. Prandi, Reginaldo.Os candomblés de São Paulo. Editora da Universidade de São Paulo, São Paulo,1991. Silva, Wagner Gonçalves da. Orixás da Metrópole. Editora Vozes Ltda. Petrópolis, R.J. 1995.
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Situados em bairros periféricos de Campinas, os terreiros de candomblé podem ser identificados, externamente, pela presença de alguns elementos simbólicos que são comuns às religiões afro-brasileiras, os quais geralmente ficam dispostos sobre os portões e muros frontais. Sempre circundados por muros altos que não permitem a visão interior do pátio das casas, a fachada revela, por seu recato, a inquietação perante o preconceito que ainda hoje persiste contra as religiões de matrizes africanas. Desta forma a busca da segurança avança em direção a uma comunidade de interesses e identidade comuns, e os muros altos a protegem dos “olhos” dos diferentes. Das quatro casas escolhidas, apenas a de mameto Dangoroméia que está localizada num bairro de Hortolândia34, cidade próxima a Campinas, apresenta uma indicação mais contundente sobre a razão daquela construção. Num muro lateral que dá para a rua de maior movimento pode-se ler o nome “Inzo Muzambo dia Hongolomenha,” escrito em grandes letras azuis sobre a parede branca, que significa “Casa do Dono do Arco-Íris”. A localização dos terreiros nas periferias da cidade denota a capacidade aquisitiva do grupo, uma vez que os terrenos nessas regiões possuem um valor mais baixo do que outros em localidades nobres. Além disso, encontrar-se num bairro retirado significa estar num nicho da sociedade onde as regras da vida social são mais maleáveis, possibilitando o toque de atabaques, a criação e sacrifício de animais e os despachos de ebós, já que as encruzilhadas e matas na época da fundação dessas casas
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Até 1953, com o nome de Jacuba, a atual Hortolândia pertencia ao município de Campinas. A partir desta data, o povoado de Jacuba foi elevado a Distrito de Jacuba do município de Sumaré emancipado nesta mesma época . Em 1958, Jacuba passa a ser conhecida como Hortolândia, distrito de Sumaré. Trinta e três anos depois, em 19 de maio de 1991, Hortolândia se emancipa de Sumaré, passando a ter uma identidade própria no processo de desenvolvimento da região. www.hortolandia.sp.gv.br
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estavam mais presentes. Vale notar, ainda, que ali estão os mais pobres e a maioria dos afrodescendentes. A justificativa para os estudos dos terreiros que estão localizados, respectivamente em Hortolândia e em Monte Mor, é que o crescimento da Região de Governo de Campinas (ver fonte IBGE, censo demográfico de 1980) teve como eixo dois processos, segundo Beaninger: “A expulsão da população de baixa renda para áreas cada vez mais distantes - com menor valor de solo urbano em relação às áreas mais centrais e precários sistemas de infraestrutura e equipamentos sociais - a industrialização de grande parte dos municípios da Região, além de Campinas, com importante peso no emprego industrial do Estado (FUNDAÇÃO SEADE, 1990b) (1992; p 134)35.
Fonte IBGE, Censo Demográfico de 1980 35
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Fonte IBGE, Censo Demográfico de 1980
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O terreiro de mameto Corajacy é o que fica num bairro mais afastado e de mais difícil acesso. Anteriormente, esta mãe-de-santo havia construído um barracão nos fundos de sua casa que ficava num bairro de casas populares em Campinas. Hoje, o terreiro está localizado num bairro periférico de Monte Mor, com ruas sem pavimentação, constituído de pequenas chácaras. Por ocasião da entrevista, tive dificuldade para encontrá-lo, uma vez que as informações que haviam me passado para chegar ao terreiro eram um emaranhado de direitas e esquerdas, e apesar de terem me dado algumas referências, a dificuldade persistiu uma vez que a rua não tinha placa sinalizadora. Depois de errar diversas vezes e vagar por muitas ruas do bairro, eu pude chegar ao terreiro, ainda assim mameto Corajacy precisou me enviar um de seus filhos para que me guiasse até lá. Essa procura me fez recordar as histórias míticas contadas nos candomblés, em que os caminhos eram indicados aos que saiam em jornada na terra, por transeuntes ou moradores encontrados pelos caminhos. Foi exatamente assim que consegui chegar até o terreiro de mameto Corajacy, pedindo informação para transeuntes. Somente depois de tantos erros, de diversos ir e vir que atinei ao mito de como os caminhos podem ser facilmente encontrados, ou seja, quando anteriormente à partida faziam-se ofertas votivas a Exu, o orixá dos caminhos e das encruzilhadas, que ajudava os viajantes a chegarem a seus destinos; eu não as havia feito. Nas minhas voltas pelo bairro à procura do terreiro da mameto Corajacy, olhava para os portais das chácaras na esperança de ver uma quartinha, um alguidar e por intermédio destes objetos tão comuns nas entradas dos terreiros, encontrar a chácara certa. Se minha busca tivesse dependido destes símbolos para identificar o terreiro, eu não o teria achado, uma vez que seus assentamentos de portão estavam cuidadosamente camuflados entre as folhagens que eram abundantes sobre o portal. Apenas ao longe, a
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bandeira branca do Tempo, atada a um alto mastro, surgia por sobre a vegetação e a cerca viva. Os demais terreiros aqui pesquisados ficam em bairros residenciais de ruas asfaltadas e com uma disponibilidade de espaço muito menor que a chácara onde está localizado o terreiro da mameto Corajacy, além de estarem cercados de vizinhos muito próximos as suas instalações. Todos esses terreiros foram construídos na formação desses bairros, e por isso, esses pais e mães-de-santo foram os primeiros moradores a se estabilizarem nessas localidades. Essa referência tem sido constantemente utilizada como atributo legalizador das atividades do candomblé nos dias de hoje, pois que, com o crescimento da cidade, acabaram ficando cercados de casas. A constante presença de animais, como cabritos e galinhas, ou ainda o barulho dos atabaques nos dias de festa, além da convivência com as diferenças religiosas, fazem com que os terreiros sejam muitas vezes espezinhados pela vizinhança. Embora esses candomblés possam declarar que estão ali há mais tempo que os seus vizinhos, acabam alterando os costumes, a fim de se adaptarem à nova realidade.
As festas passaram a começar e a terminar mais cedo, os ebós são
despachados cada vez mais longe, e as criações de animais destinados ao sacrifício estão cada vez menos presentes. Na nova realidade espacial, decorrente do crescimento da cidade, esses terreiros acabaram ficando circundados de residências, exigindo por isso uma nova organização das atividades, a fim de facilitar a convivência com o outro. Esses candomblés mudaram seus horários e maneiras de fazer as oferendas, porque esperam ser aceitos na vizinhança. Embora o intuito das mudanças seja obter a reciprocidade e a generosidade daqueles com que essas comunidades são obrigadas a interagir socialmente, nem sempre é isso que acontece. É bastante comum os terreiros terem que lidar com atos de rejeição, como apedrejamentos, realizados por
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fundamentalistas de outras religiões, principalmente neopentecostais, ou por crianças e adolescentes que certamente têm alguma referência de discriminação em relação às religiões afro-brasileiras. Campinas tem uma história em que a ação repressora sempre esteve presente na vida dos negros. Desta forma, o preconceito contra o candomblé, que é uma religião afro-brasileira, também é muito forte. A dificuldade de o candomblé conviver com suas indumentárias ritualísticas e a sociedade mais abrangente campineira, é expresso no depoimento de mameto Dangoroméia: “Aqui em Campinas não tinha... com todo o respeito aos meu irmão que são mais velhos na religião, mas tudo era muito escondido, porque o preconceito era muito grande. Então eu não via as pessoas de cabeça raspada, porque punham peruca. Era muito difícil ver uma pessoa com “tobosso”36. (mameto Dangoroméia) A opressão sobre as atividades culturais do negro, mesmo depois da abolição da escravatura, continuou muito forte. Se a escravidão legitimava a opressão, com a abolição, esta relação passou a ser um caso de polícia que freqüentemente invadia bailes e proibiam as capoeiras. Além disso, a idéia do branqueamento, a partir do período da República Velha, reforçou ainda mais o racismo que já era instituído. Essas são marcas que a história das relações raciais em Campinas também deixou como herança para o candomblé, tanto que os terreiros de hoje são datados dos anos 70, do século XX, foram fundados por pais e mães-de-santo migrantes de outros estados e cidades. Embora Campinas 36
Pano enrolado cobre a cabeça das mulheres do candomblé angola.
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tenha
recebido
um
grande
contingente
de
negros
escravos,
seus
descendentes não estão presentes na formação destes candomblés. Diferente dos antigos terreiros de Salvador, onde há uma comunidade que vive tanto nas imediações quanto dentro da própria “roça” 37, os terreiros em Campinas são menores e são poucos os adeptos que residem nas proximidades, de forma que a maioria dos filhos-de-santo vem de outros bairros e outras cidades.
As casas de angola
O primeiro terreiro campineiro de angola de que se tem notícia, data do final dos anos 70 e era dirigido por uma mãe-de-santo chamada Nanjerecy. Hoje não existe mais, porém foi nesta casa que se iniciou tateto Gitalanguange, um dos pais-de-santo que faz parte deste trabalho. Assim, o terreiro mais antigo de candomblé angola em Campinas que continua ativo, atualmente, é o Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda, fundado em dezembro de 1981, dirigido por pai Ubiacylê. Localizado na rua João Sulinski, nº 390, no Jardim São Pedro, este terreiro tem uma história peculiar, pois o barracão havia pertencido, originalmente, a uma mãe de 37
Bernardo descreve um terreiro baiano dizendo que: “A “roça” surpreende, desde o início, pela sua construção. Parece um pequeno bairro, todo cercado de grades brancas com um portão central. Ao atravessá-lo, entra-se em uma pequena praça que dá origem a curtas e estreitas ruas asfaltadas e arborizadas com casas antigas e bem cuidadas. Em uma das vielas, vê-se um armazém e, em outra, uma capela toda branca.As crianças brincam despreocupadas dispondo daquele espaço como verdadeiros ‘donos’, diferentemente das brincadeiras infantis que se vêem nas ruas de São Paulo e da própria Bahia”. Bernardo, Teresinha. A mulher no candomblé e na umbanda. Dissertação de mestrado apresentada ao programa de Estudos Pós Graduados em Ciências Sociais da PUCsp- 1986. São Paulo.
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umbanda, depois foi vendido a um sacerdote de nação queto que, posteriormente, o vendeu ao tateto Ubiacylê. Além disso, é o espaço mais antigo dentre todos os outros, considerado o lugar onde “nasceu” o candomblé de Campinas.
Três Oguns: uma só terra.
“Ogum Rompe Mato” foi o primeiro nome que esse barracão recebeu de uma sacerdotisa de umbanda chamada Antonieta. Curiosamente, esta senhora vendeu o barracão juntamente com o corpo de médiuns e o peji38 para um babalorixá de São Paulo que estava se estabelecendo em Campinas, chamado baba Toloji. Ele conta: “Era uma casa de Umbanda. Ela se chamava “Ogum Rompe Mato”. Essa casa foi de Ogum. Eu comprei. Sou de Ogum. Era de uma pessoa de Ogum, comprei e sou de Ogum, vendi para o Bia que é uma pessoa de Ogum. Você está entendendo? Ela nasceu para ser uma casa de Ogum”. (baba Tologi)39 Pela narrativa do baba Tologi podemos observar que, na concepção dos adeptos do candomblé, Ogum fundou seu chão sem se importar se era inicialmente um terreiro de umbanda e depois de candomblé queto, ou como é agora, de nação angola. O que interessa é que foi o mesmo “santo” que tomou aquele lugar para si, não se importando de ser São Jorge, como é sincretizado na umbanda paulista, ou o Ogum Rompe Mato da
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Altar onde são colocadas imagens de santos católicos, orixás, velas, nos terreiros de umbanda. Pai Tologi é um sacerdote da nação queto que começou em Campinas batendo para caboclo, no barracão onde hoje funciona a casa de pai Ubiacylê.
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umbanda, ou
simplesmente Ogum como é no queto, ou finalmente como Roxi
Mukumbo, o inquice, no angola. A casa sempre foi de Ogum, independentemente se ele foi rezado em português, ioruba ou banto. Nesse momento, Ogum deixa de ser santo, orixá, inquice ou vodum para ser uma “única” divindade que tem ali uma terra que tomou para si e a sacralizou. Inicialmente, este terreiro dispunha de uma infra-estrutura precária, pois havia ali apenas um barracão, sem banheiro e sem luz elétrica, construído no fundo do terreno e utilizado somente para a realização das sessões de umbanda.
Aos poucos, à medida que se introduziam os ritos do candomblé, as modificações foram sendo feitas, conforme nos conta este sacerdote: “Eu acrescentei uma porta no centro, fiz uma porta lateral, fiz um roncózinho, do lado fiz os banheiros. Agora está modificado um pouquinho. Fiz uma casinha de Exu na frente que parece que o Bia desmanchou ou fez alguma outra coisa. E fiz no espaço vazio do outro lado, fiz uma moradia. Ali eu fiz um banheiro e dois espaços, um para a cozinha e um para dormir e um jardinzinho de inverno”. (baba Tologi) Além do banheiro e da moradia para suprir as necessidades dos consulentes e do pai-de-santo, já o roncó faz parte do espaço sagrado do candomblé. É ali naquele quartinho que são colocados os assentamentos de santo e também onde vão ser realizados os recolhimentos dos neófitos para as cerimônias de bori e feitura de santo. A casinha de Exu disposta na entrada do terreiro também foi modificada, tornando-se maior. De um modo geral, na umbanda, a casa de Exu é pequena, porque
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ela não exige sacrifícios e assentamentos, portanto, para o culto bastam uma imagem e velas. No candomblé, ao contrário, os assentamentos são grandes e a presença do sacrifício é constante; exige, pois, a construção de um espaço maior. Do barracão simples no fundo do terreno, baba Tologi também fez uma cozinha para preparar as comidas do orixá e para assar os cabritos, os porcos, os carneiros e as aves, que foram sacrificados.
O candomblé campineiro foi se compondo aos poucos. O aprendizado se fazia mediante a relação com outras casas, com amigos, com os livros e com os próprios sacerdotes que iniciaram os pais e mães-de-santo. No começo, ritos de umbanda e candomblé foram se mesclando. Com o decorrer do tempo, acrescentaram-se mais um quarto, uma cozinha, um quarto de santo, uma dispensa, o roncó, banheiros, quartos de vestir e, aqui e ali, nos canteiros do quintal, colocaram-se alguns assentamentos. Apenas quando houve a “feitura” do primeiro filho-de-santo é que o terreiro se concretizou como sendo de candomblé. Neste contexto, baba nos conta: “Bonidê, foi feita lá. Então ela foi feita lá... Foi a rombona da casa. Olhe, eu comprei lá em 77 porque eu registrei em 78. Em 77 por aí assim... um ano depois eu estava registrando a casa. Alguns anos depois, Bonidê já era feita...”. ( baba Tologi)
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4 5 O primeiro barracão - 1980- foto cedida por Baba Tologi
6 Interior do salão- 1980
7 Lembrança da abertura
Fotos cedidas por Baba Tologi
Em 1980, tateto Ubiacylê que já tinha filhos iniciados em Limeira e em outra casa em Campinas, comprou este barracão e está nele até hoje. As reformas que já tinham começado com baba Toloji, continuaram, a fim de suprirem as necessidades do sacerdote e do candomblé que, de uma vez por todas, se estabilizaram naquele local.
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As primeiras construções foram conservadas com pequenas alterações e no restante do terreno foram construídos novos compartimentos. Esta casa, assim como a maioria dos terreiros de candomblé de Campinas, são construções muito discretas. Porém, se não há nomes que os identifiquem, a bandeira branca do Tempo pode ser vista ao longe, atada ao mastro de bambu, tal qual pequena chama que aponta para o candomblé angola filho de Zara Ktembo40 . Exceto esse marco, um vaso com folhas de peregum41 e uma quartinha branca, tradicionais símbolos religiosos afro-brasileiros, indicam exteriormente que se trata de uma casa de candomblé. Fora isso, um muro alto e um grande portão de ferro pintado de azul não permitem que nada mais seja revelado. Do lado de dentro, à esquerda, num canteiro beirando o muro, uma pequena telha de amianto margeada por uma folha de palmeira desfiada protege um tufo de ferros que “plantado” num vaso, foi colocado estrategicamente à entrada. É um assentamento de Incossi42 que, de modo semelhante ao de Ogum43das casas de queto, também comporta o facão, a espada, as chaves, as setas e outras
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Zara Ktembo , como também é conhecido o inquice Tempo Dracaena fragans Gawl, AGAVACEAE,. Fonte: Barros, José F. Pessoa de. O segredo das folhas .Sistema de classificação de vegetais no Candomblé jêje-nagô do Brasil. Pallas; UERJ, Rio de Janeiro, R.J. 1993. 42 Corresponde ao orixá nagô Ogum. Também conhecido nos candomblés angola como: Incossimucumbe,Iincossi, Mungongo. Roximucumbe, Sumbo, Cangira, Nkossi- Mukumbe, (Roximucumbe, Nkossi, Tabalajo, Roxi-marinho); Mucumbe (rossi Biolê, Incossi, Rossi Mocumbo, Kitaguaze, Minicimgo, congo mocongo, Naguê, Mugomessá, Jambá, Ngo, Mavalutango, Katembo, Rucongo, Alunda, Dagolonan, Kitongo); Roxo Mucumbe, Incôssi Mucumbe, Ncôsse; Kossimburé, Roximucumbi, Inkossi, Sumbo, Mugongo e Nkosi, Hoji Mukumbi .- Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negroafricano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao9 departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999. p. 278/279 43 Giroto na sua tese de doutorado expõe: “Considerando os terreiros Nagô e Bantu de maneira genérica, é quase homogênea a representação, material dos orixás e inquices, isto é, dos seus assentamentos, elementos simbólicos depositários de energias. As variações consistem, no geral, em enfeitar mais ou menos. Nos terreiros Bantu, Roximucumbe, Mutacalambo e Katende, via de regra, são cimentados, enquanto Ògún, Òsóòsì e Òsanyìn não o são... Wunje tem seus elementos simbólicos sobre a areia que cobre o alguidar, Ìbejì os tem soltos e dificilmente é representado por esculturas de crianças, como na África. Ambos se aproximam muito do conceito de erê, espíritos infantis. 41
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ferramentas feitas de ferro. Posso deduzir, pelo estado em que se encontram os ferros, a quantidade de sacrifícios que foram ali realizados. Ao seu lado, um porrão44 de barro que contém água, cuja finalidade é descarregar as energias negativas e esfriar os caminhos daquele que ali chega por ocasião das obrigações. À direita, há uma casinhola que está sempre fechada, que é a casa das almas; mais atrás, há um viveiro, com pombos, galinhas de angola e frangos caipiras. É muito comum encontrar criação de bichos nos candomblés em Campinas, pois esse tipo de criação, além de facilitar a aquisição de animais para realização de ebós, também ajuda a gerar alguma renda para o criador, que geralmente está ligado à casa. Dividindo este espaço frontal, ainda há um pequeno quarto onde está o assentamento do Exu de rua45. Deixando-se ver através de um portão de ferro, este Exu é representado por um vaso encimado por um arranjo em ferro, onde se vêem tridentes, facas e chifres de animais, parafernália que significa seu próprio corpo. Neste local, são feitos os pedidos e colocadas as oferendas. É o Exu que tem como objetivo cuidar da porta, segurar as demandas e é a divindade a que o público tem maior acesso. Nos candomblés angola de Campinas, Exu assume dois diferentes papéis: O primeiro é aquele que representa o papel de guardião, que fica na entrada dos terreiros a fim de proteger a casa de candomblé das demandas, além de atender aos caprichos dos homens que vão ao seu encontro para que ele os ajude a resolver os mais diversos problemas do dia-a-dia. Isso pode se dar através de oferendas que muitas vezes são depositadas diretamente aos pés de seu assentamento. Este Exu é concebido pelos Assentamentos de Bombonjira e Èsù, sempre os vi fixos (cimentados ou com tabatinga), enquanto para os Nàgó, em África, segundo depoimento verbal de Síkírù Sàlámì, são soltos. As representações dos demais Orixás/inquices se assemelham no Brasil e se distanciam ora mais ora menos das africanas.” Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô.Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999. p.288. 44 Pote ou vasilha de barro, comumente bojuda e de boca e fundo estreitos: 45 Exu que guarda a casa de candomblé.
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adeptos tal qual o Exu de umbanda cujas casas são construídas a frente dos terreiros e que Liana Trindade nos fala que servem “para guardá-lo dos perigos do exterior e atender às necessidades de seus fiéis que lhe depositam alimento. Conservar esta entidade presa, amarrada, significa uma forma de apropriarse e deter a sua força mágica a serviço dos interesses daqueles que o conservam. Ter Exu assentado consiste em deter, através dele, o poder mágico.” (1985; p. 69).
Conhecido também como Exu pagão, Companheiro, Exu de ronda, entre outras denominações, que têm sempre certo grau de intimidade, carinho e respeito por essa “entidade”, representa o espírito de pessoas que viveram à margem da moral social e que agora vêm auxiliar os homens a resolverem seus conflitos e a superarem as dificuldades da vida, tanto por meio de pedidos que podem ser realizados ao pé de seus assentamentos quanto diretamente confessos ao próprio Exu, através da possessão em “trabalhos” especiais.
Giroto, refletindo sobre a perspectiva reelaborada de Exu no Brasil, uma vez que ele foge à concepção Nagô original que o tem como orixá, escreve: “... os Bantu que não têm na África um correspondente para Èsù ( Nkadi Mpemba é um espírito malévolo que foi assimilado à concepção cristã do diabo) mas têm nos Nkisi a subordinação de um morto (Nkita = homem que teve morte violenta ou os Mpungu, protetores das vilas) cuja elaboração muito se assemelha ao assentamento de Exu...” ( p. 289) Desta forma Exu nos terreiros
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de angola é assimilado ao espírito de um morto que sofreu morte violenta e ou foi pessoa má, em vida.1999: .289)
Em algumas interpretações, Exu está relacionado a espíritos de pessoas que foram más em vida, como podemos verificar em texto de Liana Trindade: “Os adeptos consideram Exu como uma entidade boa, uma vez que através de seus poderes mágicos ele auxilia os homens a empreenderem e superarem seus conflitos.... As necessidades coletivas, culturais e psicológicas que a ele cabe resolver decorrem das relações estabelecidas entre os homens em uma dada estrutura da sociedade. Por esse motivo Exu é identificado com os homens, o seu universo é a Terra e, como os seres humanos, ele é ao mesmo tempo bom e mau. Assim, apenas Exu será capaz de resolver s conflitos sociais. (1985; p. 80)
Muitos terreiros de candomblé em Campinas realizam festas muito concorridas em homenagem a Exu. Nestas ocasiões, os Exus que incorporam são aqueles que, nas casas, estão assentados perto da porta dos terreiros. Eles vêm receber as homenagens, comem, bebem, fumam, dançam e, muitas vezes, dão consultas. Segundo Liana Trindade ele “fornece não somente a proteção diante do sentimento de insegurança dos indivíduos, mas também permite – através do processo de demanda – uma forma dos homens atuarem e modificarem sua vida social.“ (1985; p. 43)
O segundo papel, também muito importante é aquele em que Exu é um inquice denominado no angola como Aluvaiá, Bombogira, Carococi, Pangira, Jiramavambo,
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Mavambo, conhecido também como Exu do santo, Exu escravo do orixá, porque, embora seja um inquice, é considerado um escravo de outro inquice. Exus escravos-dosanto se manifestam nos rituais de candomblé realizados nos terreiros, porém somente em adeptos iniciados para ele, embora não seja muito comum esse tipo de iniciação. Ele vem como inquice, vestido com roupas de festa e seus filhos passam pelo mesmo processo de iniciação dos demais inquices
Ambas as categorias de Exus são forças individualizadas ligadas a um adepto e/ou a um inquice, podendo ser, como no último caso, o próprio inquice. O Exu do santo normalmente fica em uma casa mais reservada e o acesso não é permitido a qualquer pessoa. Ele “trabalha” somente para o inquice e a única pessoa que tem acesso a seu assentamento para obter benefícios é o próprio iniciado. Participando de uma festa na casa do Tateto Ubiacyle, a respeito desse Exu-dosanto, também chamado de Bombonjira, o ouvi explicar que o ouvi explicar que: “Bombonjira não é Exu mulher e que não tem nada a ver com ”Pomba-Gira” que é entidade de umbanda. Liana Trindade escreve que a “identificação de Exu com o demônio se faz principalmente ao nível da magia. Pomba-Gira, enquanto Exu mulher adquire os significados fornecidos pela macumba e mantidos na umbanda. “(1985; p. 67) Ambos, tanto o Exu de rua quanto o Exu-do-santo têm nomes particulares. Esmeraldo Emérito de Santana, representante da nação angola, no “Encontro de naçõesde-candomblé” realizado em Salvador, em 1981, se refere a essa individualização de Exu da seguinte maneira: “... a eles dão os nomes que querem, ou eles já trazem os nomes... Fulano é de Ogum, o Exu é tal. O outro é também de Ogum, e o Exu é outro. É difícil dizer para “santo” tal, tal, porque ele se apresenta lá como quer.” (1984; p. 41).
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Embora os assentamentos tanto do Exu de rua quanto do Exu do santo sejam externamente muito parecidos, ambos cimentados ou constituídos na tabatinga46, os elementos utilizados para assentar os Exus de rua são diferentes dos utilizados nos assentamentos do inquice. As substâncias incorporadas tanto num quanto noutro têm a ver com o mundo em que vivem os homens e alguns elementos representam a proteção, outros a defesa, ou mesmo um potencial de ataque, que resultam por meio da magia simpática nas respectivas forças emanadas.
O que os diferencia são os elementos
incorporados nos assentamentos do Exu de rua que tem a ver com a característica psicológica deste e os elementos constitutivos da identidade no assentamento do Exudo-santo que são aqueles relacionados com o inquice com o qual este Exu estabelece ligação. Os Exus são muito importantes nos candomblés, qualquer que seja a nação, porque são eles que dão proteção aos terreiros contra qualquer tipo de malefício, ao mesmo tempo em que, se tratados de maneira adequada, serão muito benevolentes com a casa e seus adeptos, trazendo bênção e prosperidade. Além do mais são os primeiros a receber as oferendas, são eles que transportam o moyo que é a força vital47 e nada se realiza sem a sua participação. (Giroto; 1999)
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Argila sedimentar, mole, untuosa, e com certo teor de matéria orgânica. Segundo Temples : “Pour les bantous, tous les êtres de l'univers possèdent leur force vitale propre; humaine, animale, végétative ou inanimée. Chaque être a été doté par Dieu d'une certaine force, susceptible de renforcer l'énergie vitale de l'être le plus fort de la création: l'homme.
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La félicité suprême, la seule forme du bonheur est pour le bantou la possession de la plus grande puissance vitale; la pire adversité et en vérité le seul aspect du malheur est pour lui la diminution de cette puissance. Toute maladie, plaie ou contrariété, toute souffrance, dépression ou fatigue, toute injustice ou tout échec, cela est considéré et désigné par le bantou comme diminution de force vitale’’. Placide Tempels - La Philoshophie Bantoue 1945 Lovania -Placide Tempels« LA PHILOSOPHIE BANTOUE. Traduit du néerlandais par A. Rubbens » Lovania (Elisabethville) 1945 .Texte intégral digitalisé et présenté par le Centre Aequatoria. Full text digitalised and presented by the Centre Aequatoria http://www.aequatoria.be/tempels/Melang2.html Esta foça vital que é chamada de moyo tem conforme o texto acima uma concepção muito parecida com a concepção de axé dos iorubá ou dos candomblés de nação queto.
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Mais adiante da casa de Exu há duas construções, uma à direita e outra à esquerda, separadas por um estreito corredor coberto por telhas de amianto. Este corredor, além de fazer a ligação entre a parte da frente do terreiro e o domínio interno, também serve de área de descanso e sociabilidade Há, neste espaço, um banco de alvenaria de ponta a ponta beirando a construção da direita que, nos dias de festa e no dia-a-dia, serve para os momentos de pausa e de ponto de conversa para os filhos, clientes e amigos da casa. A construção da direita é composta por um quarto de santo, onde ficam os assentamentos do tateto dia inquice e dos filhos da casa, uma dispensa, um banheiro e o vestiário que é um quarto amplo, com inúmeras roupas de baianas penduradas num ferro que vai de um lado a outro deste cômodo. No fundo, à esquerda, um estreito corredor conduz para uma pequena área de circulação. Uma porta permite o acesso para a área interna.. Do lado esquerdo fica a cozinha, na qual há várias prateleiras nas quais se acondicionam muitas panelas reluzentes, louças diversas, talheres, brancas bacias de ágata e inúmeros utensílios de plástico. Além disso, há um pequeno armário de parede, uma mesinha sobre a qual se colocam garrafas térmicas de café. Encostadas ao fundo da cozinha, há duas geladeiras, um forno e um fogão industrial bem amplo e, apoiado à parede lateral, ainda há um outro fogão, pouco menor. Próximo à entrada, há uma pia sob a qual se encontram alguidares48 de diversos tamanhos e, ao seu lado, um fogão à lenha. Os fogões são muitos e grandes, porque no candomblé se preparam muitas comidas para alimentar os inquices e os homens. Nos dias de festa quando são
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Vaso de barro ou de metal, baixo, em forma de tronco de cone invertido, e com diversos usos domésticos; oberó, alquidar
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sacrificados muitos bichos, são os filhos da casa que se encarregam de limpar as carnes e cozinhá-las. A cozinha, em cujo centro há uma grande mesa ladeada por cadeiras, tem um papel muito representativo na cosmologia do candomblé, pois é ali que são transformados os alimentos que são servidos aos inquices e ali também são preparadas as refeições que fortalecem os homens para que eles possam continuar a cultuar seus deuses. A luminosidade entra por três janelas que estão assim dispostas: uma para o corredor lateral, outra, para a área interna que fica ao lado da porta de entrada e uma mais alta que dá para a área da frente. Toda essa parte do complexo do terreiro foi construída pelo sacerdote atual. Na área interna há um pequeno pátio ocupado por dois canteiros separados por uma escada que conduz a uma varanda, que precede o barracão de festas. Esses canteiros são circundados por caminhos cimentados que dão acesso, de um lado, à cozinha e a dois tanques, que estão dispostos lado a lado e encostados ao muro lateral, e de outro lado, à dispensa, à área contígua do vestiário e à moradia do pai-de-santo. As moradias anexas aos terreiros procuram ter uma entrada lateral ou serem construídas sobre algumas alas do terreiro, preocupando-se sempre em não estar sobre as “casas dos inquices”, a fim de que não se “pisem” sobre os assentamentos. Certa reserva com a entrada da casa do sacerdote está relacionada com a possibilidade de eles terem alguma privacidade, mesmo morando no complexo do terreiro. Os canteiros de plantas sagradas são partes importantes das casas de candomblé em Campinas, uma vez que as matas estão cada vez mais longe e cada vez mais privadas, dificultando a colheita das plantas sagradas utilizadas para preparo de banhos
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e, em diversas ocasiões, nos ritos de iniciação49. Todos os tatetos e mametos entrevistados orgulham-se muito das espécies que possuem em suas próprias casas, inclusive porque muitas delas são difíceis de se achar nas matas da região e só é possível obtê-las através de cuidadoso cultivo. Inseridos neste esboço de mata estão colocados alguns assentamentos. À esquerda, no pepelê50, que para os de fora se assemelha a um banco de alvenaria, ficam os assentamentos de Tempo51 e o de Angorô. O inquice Tempo é muito cultuado nos candomblés de angola e, invariavelmente, traz, em sua representação feita em ferro, uma grelha, mesa, cadeiras, garrafinhas de bebidas, uma mão com o indicador apontando para cima, escadas, algumas miniaturas de ferros representantes de outros inquices, além de outros objetos que fazem parte do dia-a-dia das pessoas. Seu Angorô, como é carinhosamente chamado este inquice, é representado por duas cobras entrelaçadas que se erguem para o céu e seu assentamento repousa sobre uma coluna que sai de uma pequena poça d‘água coberta por alfaces d’água52. Ocupando o canto esquerdo do jardim, uma pequena cobertura de telhas translúcidas protege as quartinhas dos caboclos, as quais são rodeadas por pequenos vasos de plantas, que as agasalham, reproduzindo um espaço “domesticado” da mata.
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Série de processos de natureza ritual, que efetivam e marcam a promoção de indivíduos ao acesso a determinadas funções religiosas no candomblé. 50 Pepelê é uma construção de alvenaria onde são colocados os assentamentos dos inquices. O pepelê tem a função de colocar o inquice num pedestal demonstrando sua soberania e sobre os homens, sugerindo respeito e reverência dos adeptos. 51 Segundo Giroto: “Tempo Possui mastro e bandeira branca e seus símbolos ligam-no mais ao elemento terra, aproximando-a de Obalúayé enquanto [com quem muitas vezes é sincretizado( grifado por mim)] Ìrókò está relacionado mais ao fogo, cultuando como Sàngó próximo a gameleira.” Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999. p.288. 52 Erva aquática, ornamental, da família das aráceas (Pistia stratiotes), acaule, estolonífera, com inúmeras raízes imersas, folhas emergentes, esponjosas, sésseis e polimorfas, flores pequenas, amarelo-pálidas, dispostas em espádice e protegidas por espata pequena e alvacenta, e cujo fruto é baga ovóide, com pericarpo fino; alface-d'água, erva-de-santa-luzia. Dicionário Aurélio Século XXI
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Esses caboclos são os representantes do Brasil e, segundo os adeptos, a “boca dos santos”. Subindo a escada, podemos encontrar, no canteiro da direita, o assentamento de Catendê, o inquice das ervas mágicas e das plantas medicinais. São sete hastes de ferro enrodilhadas por pequena trepadeira de folhas metálicas encimadas por um pássaro. Tudo isso sai de um vaso camuflado pelas plantas do canteiro. Ao final dessa escada, está o barracão de festa, em cuja entrada há uma varanda, tendo ao lado direito uma pia e ao esquerdo um corredor, que separa a construção principal de uma outra menor e mais estreita que está encostada ao muro lateral onde estão uma casa de Aluvaiá que é, segundo os adeptos, o Exu-do-santo, uma pequena lavanderia e um banheiro, onde são feitos os banhos de ervas . No fundo do corredor, há um portão de ferro que separa uma pequena área que é usada nos dias de oferendas para guardar os bichos de quatro patas que serão usados nos sacrifícios. Planta do Terreiro: Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandanlunda 1. Pepelê 2. Casa das almas 3. Viveiro. 4. Casa de santo 5. Exu de rua 6. Cozinha. 7. Vestiário 8. Dispensa 9. Banheiro·. 10. Caboclo 11. Casa do pai-de-santo 12.Casa de Aluvaiá 13. Área coberta 14. Salão de festa. 15. Lavanderia. 16. Banho. 17. Banho 18. Roncó
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Privilegiando esta área, ao centro, está o barracão que para a leitura dos estudiosos, antropólogos, sociólogos, etc., talvez seja a peça mais importante do terreiro. Isto porque sua especificidade é ser um lugar público onde ocorrem as festas nas quais dançam os homens e os inquices, reproduzindo os mitos, além de que certas danças e músicas revelam as diversas etapas de um processo iniciático. Também é no barracão que o sacerdote recebe as visitas, portanto onde as pessoas compartilham as experiências pessoais, propalam as suas conquistas e é onde a hierarquia se torna mais transparente aos olhos dos de fora, pois é ali que os lugares estão bem definidos, a fim de mostrar quem é quem na ordem do candomblé. A idéia de senioridade associada à sabedoria e respeito é fator preponderante para a organização hierárquica do candomblé, embora nem sempre signifique idade física, mas iniciática. Numa festa, a disposição dos adeptos no cortejo que entra no salão para dançar o candomblé, revela a hierarquia daquele terreiro.
As
pessoas que estão na frente, com roupas mais luxuosas, colares de contas mais abundantes e vistosos, são as que têm mais tempo de iniciação (cotas), ou então se trata de uma macota ou um tata, que já “nascem” para o candomblé com um alto grau hierárquico. Tanto os mais velhos quanto as macotas e tatas têm privilégios em relação aos filhos mais novos da casa. As melhores cadeiras são reservadas para os sacerdotes visitantes mais antigos e mais chegados ao tateto ou à mameto da casa.
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Ter
muitos
amigos
"mais
velhos"
no
candomblé
significa
compartilhar com eles do moyo 53, e ter o próprio moyo reconhecido. Sendo assim, as melhores cadeiras e os lugares mais próximos destas são sempre disputados, pois é como se a convivência com os iniciados, com os mais experientes, impregnasse os mais novos no santo ou os de fora de força espiritual e de vida (moyo). Quando cessam as danças coletivas em virtude da apresentação da dança de um inquice, os mais novos ficam sentados no chão, numa postura diferente dos tatas, macotas e cotas que permanecem em pé. O olhar de baixo para cima revela, além da posição hierárquica inferior, o respeito pelos inquices e pelos parentes mais velhos, pois o sacerdote ou a sacerdotisa comumente são chamados de pai e mãe como os ancestrais biológicos, transformando-se, portanto, naquele que é ou será seu ancestral religioso. Os mais velhos, embora possam permanecer em pé, devem curvarse reverenciando o inquice ou o que tem mais tempo de iniciado, pois se acredita que senioridade, devido à tradição oral, significa sabedoria e, conseqüentemente, poder. Esta ação social se expressa na conduta do “povo do santo” como uma norma, com poucas variações dentro das casas de candomblé, sejam eles de nação angola, queto, ou jeje. O barracão pode ser dividido em duas partes, segundo os espaços que são designados para os de dentro e para os de fora. Alguns são de fora porque, embora sejam iguais na crença aos mesmos deuses, não passaram pela feitura do santo ou por
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Força vital. Axé
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qualquer outro processo que anteceda à iniciação, mas que introduza o sujeito na família de santo. A primeira parte do barracão, que fica próxima à entrada, mais perto do lado externo, é onde ficam os bancos da assistência. Essa parte corresponde a um terço do salão, mesmo que fique abarrotada de gente nos dias de festa. Todo o resto do salão, que é a sua maior parte, é destinado aos atabaques, aos visitantes mais ilustres e à dança da roda de candomblé. É nessa segunda parte que fica o centro do barracão, marcado por um ladrilho diferente dos demais e que nos dias comuns está sempre enfeitado com flores, acaçás e uma quartinha de água, entre outras coisas. Podemos ver do lado esquerdo deste salão uma outra porta que dá passagem para o corredor lateral, já descrito anteriormente, e que acolhe a casa de Aluvaiá54, uma pequena lavanderia e um banheiro. No fundo do barracão estão três atabaques; ao lado direito, a cadeira do tateto dia inquice e uma velha cadeira de encosto de couro, já corroído pelo tempo, que é a cadeira de Roxi, o inquice dono desta casa. Por causa do modo como foram sendo ampliados, esses terreiros nem sempre comportam uma camarinha55 grande o suficiente para acolher mais de um filho-de-santo para uma iniciação ou para as diversas obrigações no decorrer da vida religiosa. Assim, o barracão, por ser maior que as outras acomodações das casas de candomblé de Campinas, muitas vezes é utilizado para a realização dos atos propiciatórios nas cerimônias fechadas, ou quando a casa está ainda em mudança da umbanda para o candomblé, antes que seja construída a camarinha. Nesta condição, o barracão vai servir
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Corresponde ao orixá nagô Exu Lugar reservado nos candomblés onde os iniciandos passam dias recebendo lições de culto e praticando sacrifícios para merecerem a confiança do orixá a que se dedicam; camarinha; ronco.
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de espaço privado onde serão recolhidos os “filhos-de-santo” que, porventura, estejam de “obrigação”. Em toda lateral direita estão encostados bancos, que acolherão os convidados mais ilustres, nas ocasiões festivas. Mais próximo da cadeira de Roxi há uma outra cadeira de braços, para que em dias de festa se assente um convidado mais velho dentro da hierarquia do candomblé ou mais importante para a comunidade. Do lado esquerdo, uma porta vai dar ao roncó, que também é a sala de jogo de búzios em épocas em que não há obrigações ou feituras de muzenza. Conjugado a esse quarto, há um banheiro com uma janela que dá para o corredor lateral. Nas paredes, havia pinturas de Lembaranganga56, de Incossi57, de Caviungo58, de Caiá59 que são semelhantes às imagens dos orixás que correspondem a esses inquices. Atualmente, as paredes estão pintadas de branco e não há mais as imagens dos inquices, pois já estavam bem desgastadas pelo tempo. A parede dos fundos foi revestida por uma cerâmica que dá a ilusão de ser um muro de pedras. No centro da sala, pendurado no teto, há uma quartinha e uma tigela branca, rodeadas por folhas de palmeira desfiadas.
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Corresponde ao orixá nagô Oxalufã. Este inquice também é denominado Gangarumbanda, Gangaunfaramá, Lembafurama, Jafurama e Lembafulama. Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999.p. 283. Esmeraldo Emérito de Santana fala que “... Oxaguiã no angola, que chamamos Cassuté [também denominado de Lemba-dilê ( observação acrescentada por mim)]; o Oxalufã que é Gangarumbanda, Gangaumnfaramã; o Oxalá mais velho é o Caocô... Xicaramgomo,” Esmeraldo Emetério de Santana. Encontro de nações-de-candomblé. Centro de Estudos Afro-Orientais 1984. Salvador, Bahia; p. 41. 57 Corresponde ao orixá nagô Ogum. Também denominado no angola como: Incossimucumbe, Mungongo, Roximucumbe, Sumbo, Munganga, Roximucumbe, Sumbo, Cangira, Tabalanjo, RoxiMarinho Kitaguaze, Minicongo, Mucongo, Naguê, Mugomessá, Jamba,Ngo, Mavalutango, Katembo, Rucongo, Alunda, Dagolonan, Kitongo. Giroto, Ismael. Universo Mágico-religioso negro-africano e afro-brasileiro: Bantu e Nagô. Tese apresentada ao departamento de Antropologia da FFCH da USP. São Paulo. 1999.p.279 58 Corresponde ao orixá nagô Omolu. Também denominado no angola Quingongo, Camafunge, Cafunge. Kaviungo. 59 Corresponde ao Orixá nagô Iemanjá. Também denominado no angola como: Quissimbe, Caiala, Micaia, Aiocá, Inaê, Calunga, Janaina, Mameto Caiatumbá.
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Alguns ventiladores estão distribuídos nas paredes, para dar um pouco de ventilação quando a casa está cheia, porque o teto não é muito alto e há apenas duas janelas e duas portas que dão para o exterior. Nas prateleiras vêem-se santos católicos, a exemplo de São Jorge e São Benedito. Nas paredes do barracão, se espalham laços de tecidos coloridos. Fotos Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005
Frente atual. Foto: Ivete M . Previtalli
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Corredor de entrada. Vê-se ao fundo a entrada do salão.
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Foto: Ivete M. Previtalli
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Entrada do barracão. Foto Ivete M. Previtalli
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12 13 Parte interna do barracão. Foto: Ivete M. Previtalli
14 Casa de caboclo. Foto Ivete M. Previtalli
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15 Assentamento do Inquice Tempo e inquice Angorô. Foto Ivete M.P.
Embora o candomblé exija locais onde haja matas, cachoeiras, rios, encruzilhadas, os terreiros hoje estão cada vez mais enfronhados nos espaços urbanos. Por isso, os terrenos não são muito grandes e a construção do complexo religioso, em sua maioria, ocupa quase toda a área disponível. Os sacerdotes procuram comprar os terrenos adjacentes a fim de aumentar a área e incorporar novas construções. As ervas são plantadas em canteiros, uma vez que as matas estão cada vez mais distantes e privadas. As encruzilhadas vão sendo asfaltadas e Exu que antes só recebia ebó em rua de terra, hoje vai se acostumando com o asfalto representante da modernidade. Esta casa revela a vitória de alguns candomblés de Campinas, porque a maioria deles não possui seu próprio "chão". Embora esses espaços sejam conseguidos com o sacrifício dos pais e mães-de-santo, tateto Ubiacylê fala com satisfação sobre sua conquista: “Olha, graças a Deus que eu tenho um pedaço de chão. Porque não é para mim, é para o meu santo... Eu acho que isso é muito bom, muito bom mesmo. Graças a Deus, a todos os inquices, aos orixás, sei lá, a Exu. Porque muitas pessoas queriam ter o que eu
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tenho, porque tem muita gente que toca candomblé em casa de aluguel. Então eu não posso reclamar. A gente fala, reclama do aperto, mas... dá graças a Deus.". O segundo terreiro mais antigo que realiza atividades ainda hoje no município de Campinas é o Inzo Muzambo dia Hongolo, situado na Rua Sérgio Sidney de Souza, no Município de Hortolândia, e data de abril de 1974. O terceiro terreiro de que se tem notícia é Inzo dia Musambu Kaingo n´boti Ofulá, situado à Rua 6, nº 1783, no município de Monte Mor e data de janeiro de 1983. O quarto terreiro, segundo a data de fundação, é o Ile Axé Arolê, situado à Rua Joaquim da Silva Arieiro, nº 374, em Campinas e data de 1986. Percebe-se que as denominações bantas que receberam estes terreiros, com exceção do Ile Axé Arolê que tem seu nome em nagô, foram introduzidas recentemente devido à procura da afirmação da identidade da nação angola, perante todas as outras. Diria mesmo que este fato é de importância inconteste para estes terreiros. Em outras palavras, o nome é um dos fatores fundamentais da identidade. Olhando com atenção cada um dos quatro terreiros selecionados, pude perceber que o deslocamento dos terreiros de umbanda em direção ao candomblé se deu, fisicamente, de maneira muito semelhante em todos eles. Entretanto, o terreiro Ilê Axé Arolê revela uma nova faceta, pois as permanências e rupturas aconteceram com a agregação de novos ritos.
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OUTROS USOS DO ESPAÇO
O espaço do terreiro Ilê Axé Arolê que passou por mudanças em conseqüência da introdução do candomblé, hoje processa uma nova fase de alterações determinadas pela construção de novos nichos, exigidos pelo acréscimo de ritos da nação queto e de culto ao egungun.60 Agregando ritos afro-brasileiros diversos, tateto Gitalanguange separa cada expressão religiosa, meticulosamente, por categorias que designam os limites de cada uma delas, definidas por ele mesmo. Quanto ao espaço, são estabelecidos lugares para a umbanda, para o candomblé de nação angola, para o de nação queto e outro ainda para o culto de egungun. Se observarmos cuidadosamente o salão onde são realizadas as festas públicas, podemos perceber como sutilmente se revelam as novas utilizações do espaço. No salão, o chão revestido com uma moderna cerâmica branca acompanha a decoração das paredes de um tom verde muito claro, que é dado pelo efeito de uma textura que lhe foi aplicada, revelando uma estética moderna diferente dos outros terreiros que são mais rústicos. No centro, tateto Gitalanguange mostra Onilê61, que é a divindade da terra cultuada pelos candomblés queto. Embora esse espaço central seja semelhante aos outros terreiros, o que o diferencia dos demais é o significado que lhe é atribuído, ou seja, a morada do orixá Onilê, uma divindade que não pertence ao panteão angola.
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Em alguns candomblés iorubas, espírito de antepassado que recebe oferendas e é invocado em certas cerimônias especiais [p. ex., no axexé (q. v.)] ; egungum. 61 Orixá dono da terra, ou a própria terra. Giroto fala em sua tese de Doutorado que o inquice correspondente a Onilê é Tateto Kisanga Ria – Incungo, porém em Campinas não ouvi falar sobre esse inquice apesar de todos os terreiros angola possuírem um marco central no chão do barracão que também pode receber sacrifício em tempos propícios.
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Uma grande coluna circular branca de paredes frisadas em alto relevo, que lembra as colunas dos antigos templos gregos, marca o centro do salão. Sobre a parte superior desta coluna descansam uma quartinha e uma alguidar, ambas de barro, rodeadas por folhas de palmeira desfiadas, o assentamento da cumeeira. Em um dos cantos deste salão, há três atabaques, ao lado de um trono de madeira e, nas paredes, exibem-se algumas máscaras e esculturas de madeira em estilo africano. Observa-se que o centro do salão, o orixá Onilê, a coluna grega, os assentamentos que há sobre ela, as máscaras e esculturas em estilo africano e a própria decoração das paredes, revelam as infinitas possibilidades que esse pai-de-santo permite que se elaborem em seu terreiro. Fotos do terreiro Ilê Axé Arolê – 2005
Frente do barracão. Foto: Ivete M.P.
Coluna central. Foto: Ivete M. P. 17
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Coluna central. Foto: Ivete M. P. 18 65
As Casas de Santo e a Casa de Egungum.
Num terreno, recentemente incorporado ao Ilê Axé Arolê foram construídas casas de santo que estão divididas conforme a nação a que pertencem. O pai-de-santo separa os orixás dos inquices, mas possui ambos em seu candomblé e justifica essa separação: : “A minha rumbona é de Ewá, então não tem como fazer em angola, então a gente faz em queto e toca em queto as coisas de Ewá, de Obá, de Logum.” ( tateto Gitalanguange) Pensando desta forma, o pai-de-santo distribuiu inquices e orixás nos diversos quartos em que estão divididas as duas construções que se localizam uma de cada lado do terreno. Na primeira visita ao terreiro, o egungum62 que foi assentado por pessoas de Itaparica, estava colocado no último quarto da construção à direita. Um ano depois, a casa já estava construída num terreno ao lado.
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O culto de egungum é o culto de ancestral ligado à cultura nagô. 62 Em alguns candomblés iorubas, espírito de antepassado que recebe oferendas e é invocado em certas cerimônias especiais [p. ex., no axexé (q. v.)] ; egungum.Segundo Juana Elbien, “ O objeto primordial do culto de Égúngún consiste em tornar visíveis os espíritos ancestrais, em manipular o poder que emana deles e em atuar como veículo entre os vivos e os mortos. Ao mesmo tempo que mantém a continuidade entre os vida e morte, o culto de Egúngún também mantém estrito controle das relações entre vivos e mortos, estabelecendo uma distinção muito clara entre os dois mundos: o dos vivos e o dos mortos (os dois níveis de existência). Com efeito, os Baba trazem para seus descendentes e fiéis o benefício de sua bênção e de seus conselhos, mas eles não podem ser tocados e ficam sempre isolados dos vivos. Sua presença é rigorosamente controlada pelos Òjè e ninguém pode aproximar-se dos Egúngún. Os Egúngún, Baba Égún, ou simplesmente Baba, espíritos daqueles mortos do sexo masculino especialmente preparados para ser invocados, aparecem de maneira característica, inteiramente recobertos de panos coloridos, que permitem aos espectadores perceber vagamente formas humanas de diferentes alturas e corpo. Acredita-se que sob as tiras de pano que cobrem essas formas encontra-se o Égún de um morto, um ancestre conhecido ou, se a forma não é reconhecível, qualquer aspecto associado à morte. Esses ancestres coletivos são os mais respeitados e temidos entre todos os Egúngún, guardiães que são da ética e da disciplina moral do grupo “( 1993; p. 120)
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O pai-de-santo justifica a introdução do culto de egungum em decorrência de problemas de saúde que só poderiam ser sanados mediante o culto de ancestrais. Embora ele afirme isto, convém lembrar que nos terreiros de angola já existe a casa das almas, e o culto de ancestrais é marca preponderante das religiões bantas das quais se originou a nação angola. Afirmar que os bantus cultuavam ancestrais pode simplificar muito sua filosofia. Conforme os estudos de Tempels, a filosofia banta é complexa e se fundamenta na preservação da força vital chamada pelo autor de ‘’dom de Deus’’. Acreditando que a força vital do homem pode, por um lado, se enfraquecer ontologicamente e, por outro, ser reforçada, o negro banto não media esforços para preservá-la e recompô-la, sempre que fosse necessário. Isto envolvia o comprometimento com comportamentos morais condizentes com suas normas sociais, tais como o respeito à hierarquia que organizava todos os níveis de seres viventes e também após a morte. O principal intuito era jamais KUFWA (morrer). Segundo Temples, o motivo principal do modo de agir banto é preocupar-se, principalmente, com a vida, muito mais do que com a existência de tal modo que temiam acima de tudo a morte, o enfraquecimento ou a anulação da vida. Uma das maneiras da energia vital ser fortificada era pela relação com certos espíritos de mortos, sobretudo dos
antepassados dos clãs que salvaguardavam os
viventes, e de espíritos de pessoas que tinham sido boas em vida, apesar de pessoas comuns. Temples nos informa a maneira como os bantos acreditavam que a energia da vida podia ser fortificada por meio de certos espíritos:
« Existem termos positivos utilizados pelos bantos como a
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expressão Kukomesya Bumi que significa « fortalecer a vida » 63. Também existem os Bauidye que são os mortos sobretudo dos pais de clãs espiritualizados e os Bauidye, que « protegem, salvaguardam » os viventes
que são os Dafu Betunama. »
(tradução livre)
Além disso, também Deus era considerado pelos bantos, conforme Temples, como um morto ou um ancestral igual a outro qualquer, além de que outras qualidade de espíritos ancestrais podiam trazer inúmeros benefícios aos viventes: « Referiam-se a Deus como um Vidye ou um morto comum vidye bampe, mfumwami ampe, que em banto significa : Deus ou nosso espírito, nosso morto me dá isto ou aquilo, me concede uma ou outra alegria... Há também os Manga que propiciam dyese, maese..., isto é a fecundidade, a caça, etc. » (tradução livre)
Desta forma, uma preocupação essencial entre os bantos era cuidar bem de seus ancestrais, a fim de que a vida pudesse andar positivamente. Sobre isto Temples escreve que «A negligência, o abandono dos mortos, dos ancestrais, dos espíritos trazem forçosamente a infelicidade. Se os viventes não causam nenhum obstáculo (ontológico, moral, jurídico), os 63
Tempels escreve :« Il existe des termes positifs qui signifient: "raffermir la vie" kukomesya bumi. On dit des défunts, surtout des pères de clan spiritualisés, des bavidye, qu'ils "protègent, sauvegardent" les vivants bafu betunama. On dit de Dieu, d'un vidye ou d'un défunt ordinaire vidye bampe, mfumwami ampe, Dieu, ou notre esprit, mon défunt, me donnait ceci ou cela, m'accordait positivement l'un ou l'autre bonheur... Il y a des manga pour avoir de la chance, dyese, maese..., pour la fécondité, pour la chasse, etc. La négligence, l'abandon des défunts, des ancêtres, des esprits, apporte nécessairement du malheur. Si les vivants ne posent pas d'obstacle (ontologique, moral, juridique), les êtres invisibles sont, per se, des aides, des protecteurs et soutiens de la force de vie des vivants(...). La Philosophie bantu (capitulo II : 6. La force de la vie peut-elle être raffermie?) .
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seres invisíveis são por si só ajudas, protetores, e sustentam a força vital dos viventes. »( tradução livre)
Desta forma os bantos acreditam, segundo Tempels, que, se a pessoa andar positivamente, respeitar seus ancestrais, cuidar deles e se mantiver longe de influências nefastas, se não tiverem o hábito de maldizer, ela será vigorosa e passará esse vigor aos seus filhos. No Brasil, os antigos valores bantos reinterpretados sob novo contexto, e hoje com o candomblé inserido numa sociedade pós-moderna em que a relação do ser vivente e da morte foram modificadas, o culto aos ancestrais foi consideravelmente reestruturado e reintrepretado. Inzo Yombeta, Cruzuê das almas, Casa das almas ou Cruzeiro da almas, são alguns dos nomes que recebe a moradia dos ‘’ancestrais’’ nos candomblés angola. Com o afastamento dos valores africanos, os ritos aos mortos tornaram-se bastante simplificados, esvaziando-se a concepção de antepassado e ancestral para adquirir uma função mais mágica (Giroto ; 1985) As almas que são consideradas nefastas (Kiumbas) afastam-se por intermédio de ebós ; as almas que realizam benefícios são cultuadas na Casa das almas, além de espíritos de filhos da casa que já faleceram e, em alguns casos, de clientes também já falecidos. Embora não tenham a categoria de "ancestrais,’’ essa almas, crêem os adeptos, podem beneficiar a comunidade do terreiro. Velas, sacrifícios de animais e oferendas de alimentos diversos, são ofertados a estas almas para que elas estejam presentes
e tenham relações amistosas com o
sacerdote, no momento em que forem necessários seus préstimos.
69
Ademais, o culto de egungum, que tem ligação com os candomblés de origem nagô, desenvolveu-se , no Brasil, sobretudo na Ilha de Itaparica. Conforme Júlio Braga, o culto de babá egum é organizado em volta de um ancestral comum que tenha fundado o culto e se constitui através de seus descendentes, "e de tantos quantos estão vinculados àquela família por um complexo sistema de parentesco, seja por consangüinidade, afinidade, adoção ou compadrio. Acrescente-se ainda, os que se associam a essa família por laços de parentesco religioso, que se intercruzam com os de parentesco prevalecente, para garantirlhes quase o mesno nível de aceitação no grupo
familiar
extenso.’’ ( 1995 ; p.25)
Pertencentes a categorias diferentes dos orixás, que são associados a estruturas da natureza, os eguns estão associados à estrutura da sociedade (Elbbein: 1993) Desta forma são duas práticas diferenciadas e segundo Juana Elbien, constituem dois tipos de organizações e de instituições, dois sacerdócios: “o culto dos òrìsà e o culto dos égún; os “terreiros” lésè-égún64 e os “terreiros” lésè-òrìsà65. Os axé de fundação são totalmente diferentes, assim como os “assentos” de égún são diferentes dos de òrìsà.” (1993: 103) No terreiro onde se cultua orixá, pode haver uma casa dedicada aos eguns que se chama ilé-ibo-aku, local onde os mortos (adósù66 falecidas) serão cultuados e que, segundo Elbien, nunca deve ser confundida com o Ilé-ìgbàlè que é a casa do culto de ègún .Ainda segundo a autora, no Ilé-ibo , são venerados os espíritos das adósù,
64
Expressão usada para designar terreiros que trabalham somente com egungum ; pisar no culto de egungum 65 Expressão usada para designar terreiros que trabalham somente com orixá; pisar no culto aos Orixás. 66 Pessoas iniciados no candomblé nagô, queto.
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sacerdotisas iniciadas no culto dos òrìsà. No Ilé-`gbàlè, são adorados os ará-òrun, em geral, os espíritos daqueles iniciados nos mistérios dos égún.”(1993; p. 104) O que podemos perceber é que, embora tateto Gitalanguange tenha construído uma casa para egum, seu terreiro não traduz o que Julio Braga descreve como um terreiro dedicado ao de culto de baba egum.67 Afastada das demais dependências, a casa de Egun é chamada pelo sacerdote de Iléibo, porém, na pesquisa de campo, ele me revelou o desejo de vestir baba egum que fora, segundo o sacerdote, assentado nesta casa por sacerdotes de culto de baba-egum de Itaparica. Conforme Juana Elbien: “ Além dos “assentos” e dos símbolos coletivos, a adoração dos ancestres masculinos toma toda a significação pelo fato de os espíritos de alguns mortos do sexo masculino, especialmente preparados, poderem tomar uma forma corporal e serem invocados em circunstâncias determinadas através de ritos bem definidos. São os Égún ou Egùngún, antepassados conhecidos, que levam nomes próprios, estão vestidos de maneira que os singulariza e são cultuados pelos membros de sua família e seus descendentes. (1993; p. 106)
O culto de egum na casa de Tateto Gitalanguange é totalmente importado, conforme nos conta o próprio sacerdote: “Agora o mês que vem eu vou fazer cinco anos de Baba egum assentado. Então vem o pessoal de Itaparica da 67
Ver; Braga Júlio. Ancestralidade Afro-brasileira. O culto de babá egum. Centro de estudos AfroOrientais da Universidade Federal da Bahia e Edições Iananmá. Salvador Bahia.1992
71
casa de Budjó, lá da ilha... das amoreiras.. O que eu conheço... aqui ninguém tem ilê ibo... egum plantado. Pelas referências até do pessoal de Itaparica essa é a primeira casa que tem. Então a gente cultua Babá Okê. Tem os ancestrais que a gente cultua também. Então, lá ele já tem posto, ele já tem roupa. Mais para frente, vou tomar posto dentro da casa de Egum. Então não adianta a gente ter na casa da gente, porque tem “lá dentro”68 também. Então é aí que eu vou para lá também e depois disso a gente combina dele vir para cá fazer este ritual de vestir babá egun. É por isso que eu estou fazendo separado, fora para não ter envolvimento com o axé do orixá.” ( Tateto Gitalanguange)
Na maioria das vezes, nos terreiros de angola pesquisados, os adeptos se referem à casa das almas como a casa de egungum. Neste caso, o pai-de-santo optou por chamar sacerdotes do culto de egungun da Bahia para fazer um assentamento em seu terreiro. Isso separa as almas do candomblé angola dos eguns do candomblé queto de tal forma que parece, segundo a concepção do pai-de-santo, que o culto ao egungum possui um status superior ao culto das almas, embora hoje acolha “almas” e “eguns” sob o mesmo teto.
68
Provavelmente, o sacerdote esteja se referindo aos segredos do culto de Egungum . Júlio Braga explica que os segredos do culto são muito bem guardados: “ Os ojés são auxiliados pelos Amuixãs, que passaram à condição de Ojé após o primeiro estágio de iniciação. Formam eles um grupo de extrema importância para a permanência da comunidade sagrada, além de exercerem diferentes serviços durante a cerimônia. Embora situados no primeiro grau de iniciação, já conhecem os elementos essenciais dos rituais sem, contudo, terem acesso ao Ilê auô e aos segredos da seita.” (1995: p.43)
72
Num outro terreno vizinho, um ano após minha primeira visita, foi construída uma casa, local em que o pai-de-santo instalou as almas do candomblé angola e os egunguns do culto nagô, a fim de separar tais ritos dos demais. Além disso, conta com orgulho que plantou, naquele espaço recentemente adquirido, duas árvores de Iroco69, a árvore sagrada do candomblé queto. Ilê Axé Arolê
Casas de santo.
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Casa de Egungum e das almas
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Foto: Ivete M. Previtalli
O Recanto da Umbanda.
Além da delimitação de espaços para os inquices, os orixás e os eguns, também a umbanda ganha no Ilê Axé Arolê um lugar específico. O cantinho da umbanda é um nicho repleto de objetos que simbolizam as entidades de umbanda, principalmente os caboclos, os pretos-velhos e as crianças. Coberto por telhas de barro e circundado por meias paredes, se localiza do lado direito do pátio que fica em frente do terreiro, próximo ao salão de festas.
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Orixá nagô cuja morada e epifania é a gameleira-branca, árvore que se costuma adornar com laços de pano e, em cujas raízes, recebe oferendas de alimentos.
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Neste pequeno espaço, há um altar de santos católicos, imagens de pretos-velhos e de caboclos, cuités, cabaças, rosários de lágrima de nossa senhora, arco e flechas, ferros de caboclo e um banquinho. É neste local que o preto-velho dá atendimento para as pessoas, conforme nos informou o sacerdote. Esse mesmo sacerdote nos revelou por ocasião da entrevista que, além do candomblé, realiza trabalhos de umbanda todas as segundas-feiras, nesta seqüência: Exu, preto-velho, caboclo e baiano. Disse, ainda, que "bate” umbanda, mas, quando faz festa de caboclo, "bate" em angola.
Cantinho da umbanda. Foto Ivete M. P.
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Detalhe do cantinho da umbanda. Foto Ivete M. P. 23
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O Arranjo Entre As Diversas Nações.
Para poder organizar todas essas expressões religiosas, o pai-de-santo separa espacialmente a umbanda do candomblé angola, do candomblé de queto e do culto de egungum. Ritos de umbanda e de candomblé podem ser realizados no salão, mas o de egungum é fora da casa. Quando a umbanda ocupa a sala, o candomblé fica afastado, para que os orixás e inquices fiquem longe das almas dos pretos-velhos, dos caboclos, dos baianos e exus pagãos. Nas festas do candomblé, esta casa celebra tanto queto quanto angola no mesmo dia. O pai-de-santo diz que: "Exu, Ogum Oxossi, Bombojira70, Catendê71, Angorô72, Zaze73, Matamba74, Dandalunda75, Iemanjá, Nanã e Oxalá, pertencem à nação angola", e por outro lado, pertencem à nação queto: Logum, Oxumarê, Omolu, Ewa e Obá.” (Tateto Gitalanguange) Embora haja esse leque de possibilidades religiosas afro-brasileiras, realizadas neste terreiro, o pai-de-santo afirma que pertence à nação angola.
70
Inquice correspondente ao orixá nagô Exu - Aluvaiá Corresponde ao orixá nagô Ossaim 72 Corresponde ao orixá nagô Oxumarê 73 Inquice da justiça, que gera o poder da política/ Loango corresponde ao orixá nagô Xangô 74 Corresponde ao orixá nagô Iansã 75 Inquice correspondente ao orixá nagô Oxum 71
75
A comunidade campineira do candomblé angola não aceita de bom grado algumas inovações, dentre as quais podemos mencionar os atabaques tocados por baquetas, zuelas76 e orins77 cantados numa mesma quizomba78. O pai-de-santo conta como a comunidade reage a respeito de suas novas elaborações: “Ah você virou sua casa para queto (dizem os outros)! Eu não virei minha casa para queto. Na minha obrigação de 21 anos, dei todos meus ebós79 e meu bori80, toda a situação foi feita dentro de odu81, dentro de caminhos de odu, e o meu orixá como sempre, ele só comeu dentro de angola, eu não mudei nada. A minha mãe veio exclusivamente para minha obrigação. Ficou aqui o período todo acompanhando tudo que estavam fazendo, mesmo no bori com o pessoal lá de Salvador, que também são da família de Tumbajunssara82.” (tateto Gitalanguange) As festas continuam sendo freqüentadas por pais e mães-de-santo da comunidade religiosa afro-brasileira, independentemente da nação a que pertença, embora já tenha acontecido de uma mãe-de-santo de angola se retirar com toda a família de uma delas, porque uma parte da festa foi cantada em queto.
76
Cada um dos cânticos com que se chamam a descer os inquices. Estes cânticos são realizados nas festas do candomblé angola e os inquices dançam conforme são realizados pelos adeptos. 77 Cada um dos cânticos com que se chamam a descer os orixás; são os cânticos realizados nas festas públicas quando os orixás vêm e dançam ao som dessas músicas-orações. 78 Dança movimentada. Festa pública no candomblé de nação angola. 79 Oferenda ou sacrifício de animal votivo a um orixá realizado para receber um benefício, para melhorar a energia vital, para purificar o ser antes de entrar nas obrigações iniciáticas. 80 No candomblé e em outros cultos afins, rito penitencial e purificatório ao fim do qual se banha a cabeça do crente com sangue do animal sacrificado. 81 No opelé-ifá, o valor de cada uma das metades de sementes ou de búzios. 82 Antigo terreiro de origem banta da Bahia
76
O que parece uma arbitrariedade do pai-de-santo, ao juntar diversas nações de candomblé, umbanda e o culto de egungun, pode ser interpretado como uma disputa no mercado de bens simbólicos.
Assentamento de Iyámi83.
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Assentamento para prosperidade 24
25 Assentamento do inquice Tempo. Foto: Ivete M. P
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As ìyàmi Osòròngà também denominada de eleye ( dona dos pássaros) representam o poder místico da mulher em seu aspecto mais perigoso e destrutivo. Verger expõe que embora as àjé ( como também são conhecidas) sejam feiticeiras, “as àjé não são execradas pela sociedade, da qual ... constituem um dos pilares essenciais” (16). Porém deve-se ser prudente ao falar delas e, se falar bem pode trazer transtornos, falar mal é atrair para si sua força destrutiva, portanto, “uma atitude de prudente reserva diante de uma potência estabelecida, malevolente e atuante... o que acarreta, em relação a elas, uma discrição que não facilita a tarefa dos pesquisadores.” Verger, Pierre. A grandeza e Decadência do Culto de Ìyàmi òsòròngà ( minha mãe feiticeira) entre os Yorùbá. In: As Senhoras do Pássaro da Noite. Org. Carlos Eugênio de Moura. Edusp. São Paulo. S.P. 1993; p. 16.
77
Na realidade, o sacerdote tem conhecimento de que nem sempre o candomblé angola “agrada” o cliente; desta forma, na disputa pelo mercado de bens simbólicos, ele incorpora outros ritos, a fim de conquistar novos adeptos e clientes.O discurso do Tateto Gitalanguange, com o objetivo de justificar a existência dessa variedade de ritos em sua casa, ainda que esteja sempre voltado para suas necessidades espirituais, revela outra realidade, quando fala: "Hoje com a dificuldade material que a gente tem, de axé, de coisas de orixá... A gente tem que ter alguns conhecimentos fora do arroz e feijão, para você poder atender não só filhos-de-santo, mas cliente e tudo mais. Porque hoje a dificuldade é o cliente, que é na realidade quem sustenta uma casa. Ou a gente vai trabalhar fora para poder pôr o dinheiro dentro de casa, ou se você vive disso, como eu, a gente tem que se adequar dentro de certas situações. Então, mesmo quando eu estou fora para fazer obrigação, eu faço angola se for de angola e faço queto, se for de queto. E tem algumas coisinhas que a gente fazia dentro de jeje84 também. Então a gente tem isso aí, para poder atender essas pessoas.” (Tateto Gitalangiange) Ao mesmo tempo em que a incorporação de novos ritos pode trazer uma instabilidade para essa casa de candomblé por meio das rupturas que eles possam causar, ao se contrastarem uns com os outros, a permanência dos ritos mais antigos de umbanda e do candomblé angola permitem uma referência simbólica que mantém o equilíbrio do grupo.
84
Uma das nações do candomblé.
78
Esse arranjo é elaborado de tal forma que um adepto pode escolher entre as diversas modalidades religiosas afro-brasileiras a que prefira freqüentar, sem que seja obrigado a participar das outras. Isto quer dizer que, se por acaso o filho quiser freqüentar somente os trabalhos de umbanda, não será obrigado a estar presente nos dias em que são cultuados os inquices ou orixás com ritos de candomblé. Se por um lado, essa atitude exclui, por outro lado, ela inclui todos no contexto mais amplo do grupo, que se mantém na relação de unidade/diversidade. Neste mesmo sentido, o pai-de-santo torna possível este jogo de relações, muitas vezes antagônicas, quando universaliza a idéia de Deus: “Não tem diferença. Deus é igual, só muda o nome". (Tateto Gitalanguange) Apesar desse terreiro realizar tantos rituais, de possuir espaços específicos para cada um, parece que o pai-de-santo carrega consigo a idéia monoteísta cristã de ver um só Deus. A separação espacial de cada expressão religiosa revela a organização do sistema de símbolos religiosos de maneira que, segundo Halbwachs, “o lugar recebe a marca do grupo, e vice-versa. Então, todas as ações do grupo podem se traduzir em termos espaciais, e o lugar ocupado por ele é somente a reunião de todos os termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar em si mesmo tem um sentido que é inteligível apenas para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou correspondem a outro tanto de aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, ao menos, naquilo que havia nela de mais estável”.85(1990:133)
85
Halbwachs, Maurice. A Memória coletiva. Editora Vértice, Revista dos Tribunais, São Paulo, SP. 1990; p.133.
79
Desta maneira, o espaço deste terreiro revela como esse pai-de-santo se relaciona com a religião, o que ele e sua comunidade valorizam como sagrado, e os espaços que são
cedidos separadamente a cada rito denota uma preocupação em
mostrar que o candomblé de nação angola, o de nação queto, o culto de egungum e a umbanda têm sua própria identidade e, portanto, se diferenciam entre si. Apesar de o candomblé angola de Campinas se dizer resistente às mudanças, nesta casa ele se modernizou, adquiriu novas formas e não perdeu sua beleza e harmonia. Ele sobrevive.
80
CAPÍTULO III
Elaboração do Parentesco – Formação e Organização das Famílias-de-santo
26
81
O candomblé, conforme Vivaldo da Costa Lima, “é um grupo pequeno, na medida em que sua estrutura, e não sua extensão, é que define e o situa como tal”. (2003; p.58) Sendo assim, o grupo de candomblé funda sua estrutura organizacional na figura do pai ou mãe-de-santo, respectivamente, tateto dia inquice ou mameto dia inquice, nos candomblés de angola. O nome mais difundido e utilizado nas casas de candomblé para designar os sacerdotes ou sacerdotisas é pai ou mãe-de-santo e conforme Édison Carneiro: “O título de mãe vem do fato de o chefe do candomblé aceitar iniciadas (filhas, no futuro) para criar a devoção aos
deuses.
comunidade,
Depois estas
de
efetivamente
iniciadas
se
admitidas
consideram
na
filhas
espirituais do chefe do candomblé – e nesse sentido é que se emprega a palavra mãe. Desde que toda gente, dentro ou fora do candomblé, tem um espírito protetor, que deve habitar o seu corpo, e desde que o chefe do candomblé precisa preparar a iniciada para receber, em si mesma, a visita mais ou menos freqüente da divindade, - um processo que exige tempo, convivência diária, prática de um conjunto de cerimônias secretas no interior do candomblé, com a orquestra especial de tambores e de instrumentos musicais africanos, - fazer o santo vale por uma segunda educação, que confere ao chefe da seita a ascendência de mãe em relação à filha.” (1991; p.103)
82
Desta forma, com base na relação dos líderes dos terreiros com seus filhos espirituais, e dos filhos entre si, é que se organiza a família-de-santo, de modo que, segundo Vivaldo da Costa Lima, “o conceito de família biológica cede sempre lugar ao outro, de família de santo. Mãe de santo é assim entendida no seu valor semântico atual – como a autoridade máxima do grupo de candomblé, o chefe da família-de-santo.” (2003; p. 60) Embora o conceito de família-de-santo esteja associado ao conceito de família ainda muito discutida nas Ciências Sociais, Vivaldo da Costa Lima explica que “a família-de-santo, corrente nos candomblés, necessita, mais de uma explanação do que de uma definição.” (2003; p. 24) A estrutura familiar no candomblé se constrói mediante a relação do sacerdote com seus filhos, resultando daí os diversos níveis de parentescos que vão sendo elaborados, conforme se sucedem as iniciações. Esta constituição familiar se revela muito parecida com a estrutura familiar ocidental contemporânea, porém não corresponde ao conceito de família nuclear que é formada por pai, mãe e filhos. No candomblé, apenas a presença de um pai ou de uma mãe-de-santo (não dos dois ao mesmo tempo) e seus filhos, é suficiente para fundar uma família-de-santo. Também a família religiosa não estanca no núcleo familiar, mas se expande envolvendo irmãos, tios, primos de diversos graus, avós, bisavós, inclusive todos os ancestrais conhecidos, além de padrinhos e madrinhas, configurando-se, desta forma, uma família extensa. Essa rede de relações não se esgota nas unidades-terreiros, mas se amplia a todos os terreiros que se envolvem na rede de relações sociais que é tecida, principalmente, pelo parentesco entre seus membros. Pode também se dar por agregação mediante
83
compromissos sociais assumidos publicamente, como no caso de padrinho e madrinha que podem ser pessoas de família e até de nações diferentes, mas que apadrinham algum filho de uma casa no momento dos ritos religiosos públicos, dentre os quais, a tirada do nome e o recebimento do decá.86 O pertencimento a uma família de santo pode ainda ser uma força efetiva de socialização, de prestígio e de mobilidade dentro da classe e da sociedade mais abrangente. Pertencer a uma família-de-santo de prestígio pode assegurar ao adepto do candomblé, além do amparo religioso, o pertencimento a um grupo familiar socialmente reconhecido que lhe confere algum status. (Vivaldo da Costa Lima: 2003) Por isso, o conhecimento da ancestralidade se torna muito importante para o "povo do santo", porque, uma vez que o candomblé tem uma tradição oral, conhecer e recitar sua ancestralidade significa saber sua origem, a que linhagem pertence, onde é seu lugar na rede de relações familiares e desta forma, ser ao mesmo tempo detentor e divulgador da história do grupo e de sua própria. 87 Os ancestrais, assim como os parentes mais próximos, no candomblé angola campineiro, sempre são saudados pelos adeptos ao iniciarem um jogo de búzios, nos pedidos de bênção ao chegarem aos terreiros, antes e depois das refeições, assim como no princípio e finalização das grandes cerimônias propiciatórias.
86
As cerimônias de tirada do nome consistem numa fase da festa de saída de muzenza (iniciação no candomblé angola) em que um sacerdote visitante é convidado pelo tateto ou mameto protagonista da festa para perguntar a dijina ( nome de iniciação) ao novo inquice que está saindo na sala. O sacerdote que apadrinhará o iniciado dá algumas voltas na sala de braços dados com o inquice. Num determinado momento ambos param e o padrinho pergunta ao inquice qual é a dijina do recém iniciado. O inquice responde baixo, porém o padrinho insiste no questionamento a fim de que todos possam ouvir o nome do novo membro da família. Neste instante o inquice gira em volta de si mesmo, dá um salto e grita o nome pelo qual a muzenza será conhecida a partir de sua iniciação. 87 O novo nome recebido após a iniciação do candomblé tem a ver com a perda dos laços familiares na diáspora. Quando o escravo descia do navio negreiro, deixava para traz a sua família, os seus ancestrais, até o próprio nome, porque muitas vezes era batizado ainda com o pé entre a água do mar e a areia. No candomblé quando se passa efetivamente a fazer parte da família de santo e torna-se uma muzenza, recebe um nome africano que tem significado para o grupo.
84
O grupo familiar se organiza fundamentado numa regra de obediência geral relacionada ao parentesco, que é a proibição do incesto88. Isto significa que não se pode fazer o que se quer, quando o que está em pauta é a vida sexual. Deste modo, a interdição consiste em dar início à organização familiar sobrepondo-se ao acaso ditado pela natureza. Assim, essa interdição determina um jogo de trocas que, conforme LeviStrauss, são operações complexas, conscientes ou inconscientes e que pressupõem a reciprocidade que se converte na regra fundamental mantenedora do grupo (L-Strauss: 1976). Neste sentido, no candomblé em geral e, em especial na nação angola aqui estudada, os sacerdotes não podem iniciar indiscriminadamente qualquer pessoa. O marido não pode iniciar sua esposa ou companheira e vice-versa, tampouco o pai-desanto de uma filha pode ser ao mesmo tempo pai de seu parceiro(a) sexual. Os filhos biológicos também não devem ser iniciados por seus pais biológicos, embora neste caso não haja uma norma muito rígida. Nesta última circunstância, pode acontecer uma iniciação que é chamada de meia cabeça, isto é tanto o pai ou mãe biológica, desde que sejam sacerdotes, dividem a raspagem da cabeça do filho com outro sacerdote que se tornará seu pai ou mãe espiritual. Ainda levando-se em conta a proibição do incesto, nas iniciações ou obrigações de tempo de “feitura” não é permitida a presença do parceiro na casa de candomblé e tampouco a participação deste em qualquer uma das fases dos ritos, mesmo que seja apenas na preparação das comidas sagradas, a fim de que o casal não sofra, futuramente,
88
Vivaldo da Costa Lima escreve que nos terreiros baianos há o interdito de casamento para aqueles que são filhos de um mesmo orixá, porque se tornam, desta forma, irmãos. Melhor dizendo, se um homem e uma mulher são ambos filhos de Ogum , esta seria uma união proibida porque por serem de um mesmo orixá tornam-se irmãos. Em Campinas, não encontrei esta proibição. Ao perguntar sobre este tipo de interdito, ouvi de um sacerdote: “Nunca ouvi falar disso”. Ouvi também de uma filha de santo: “Já ouvi minha mãe falar disso uma vez, mas ela disse que é bobagem.” Na verdade, Vivaldo explica que essa interdição não é muito respeitada também nos terreiros pesquisados por ele na Bahia.
85
com desavenças ou a repulsa sexual, que poderá resultar numa separação. Neste caso, o parceiro sexual daquele que está "recolhido" permanece, na maioria das vezes, afastado das cerimônias e do terreiro. Forma-se um verdadeiro bloqueio de informações tanto de dentro da casa para fora, quanto de fora para dentro da "camarinha”,89 de maneira que não haja nenhuma ligação entre os cônjuges. A regra determina, ainda, que parceiros sexuais não podem ser irmãos de santo, nem filho-de-santo um do outro, mas podem ser primos, tios, sobrinhos, assim por diante. A proibição de um sacerdote ser pai-de-santo (ou mãe) a um só tempo de parceiros sexuais o obriga a dar um dos cônjuges a outro sacerdote; além disso, cria um direito sobre outro parceiro sexual de algum filho ou filha de santo que pertença à outra família e que lhe será dado (a) em troca. A proibição do incesto, ao fundar a troca, vai além da interdição, uma vez que se converte numa regra de reciprocidade e por meio desta, se cria a aliança. Nos quadros abaixo, podemos observar como é elaborado o sábio jogo de trocas que, segundo Levi-Strauss, garante e previne contra os riscos no duplo sentido das alianças e rivalidades. (Levi-Strauss: 1996)
89
Lugar reservado nos candomblés onde os iniciandos passam meses, recebendo lições de culto e praticando sacrifícios para merecerem a confiança do orixá a que se dedicam; Roncó.
86
Grupos aparentados de A (Iniciado no candomblé)
Avô ou avó-de-santo
Pai ou mãe-de-santo
“ A” parceiro sexual de “B” * Filho-de-santo *
Tio ou tia-de-santo
Irmão ou irmã de santo
Primo ou prima-desanto
Sobrinho- sobrinha-desanto
27 Possibilidades de parentesco com “A” em que não há proibição do incesto.
Avô ou avó-de-santo
Pai ou mãe-de-santo
“A” parceiro sexual de “”B” *filho-de-santo
Filho-de-santo de “A”
Tio ou tia-de-santo
“B” Parceiro sexual de “A” (Torna-se tio de A)
Irmão ou irmã-de santo
“B” parceiro sexual de A (torna-se primo de A)
“B” Parceiro sexual de “A” (torna-se sobrinho de “A”
28
87
Em vermelho estão relacionados os casos em que a proibição do incesto não permite que “B” esteja localizado na organização familiar por causa de seu parceiro sexual “A”
Avô ou avó-de-santo
Pai ou mãe-de-santo
“A” parceiro sexual de “B”
Tio ou tia-de-santo
Irmão ou irmã de santo
Primo ou primade-santo
Sobrinho- sobrinha-desanto
29 É importante notar que o parceiro sexual “B” será introduzido no grupo por meio de filiação a algum parente de “A”. Neste caso, o pai ou a mãe de “A” não pode tomá-lo como filho, a fim de que “B” não se torne irmão de “A”, além de que o próprio “A” também não poderá ser pai ou mãe-de-santo de “B” a fim de que “B” não se torne filho de “A”, que tornaria um interdito o relacionamento sexual entre eles. Outra questão importante é que, embora haja a regra da proibição do incesto entre irmãos de santo e entre pais e filhos, “B” não é excluído totalmente do grupo familiar de “A”. Respeitando o interdito, serão elaborados arranjos para que “B” permaneça na mesma linhagem, de preferência no grupo de parentes mais próximos de “A”, reforçando desta forma, o núcleo parental com mais uma nova aliança. Assim, há uma preferência para
88
que a filiação de “B” se dê entre os irmãos de “A”, não excluindo as outras possibilidades.90 Contudo, no limite, o interdito do incesto traz para as famílias do candomblé a reciprocidade e, com isso, a possibilidade da aliança entre as casas. Segundo LeviStrauss: “Para nos assegurarmos de que as famílias não se tornem fechadas e não venham a constituir progressivamente outras tantas unidades auto-suficientes, contentamo-nos em proibir o casamento entre parentes próximos." 91(1976; p.226) Certamente não é difícil acontecer que filhos de um mesmo sacerdote se envolvam sexualmente. Neste caso, se concretizaria o incesto entre irmãos de santo. Para que a relação dos parceiros sexuais não resulte numa “quizila”92 entre eles, um dos dois, através de ebós93 ou de um “Mutue kudiá”94 acompanhado ou não de sacrifício ao inquice, passará para uma nova filiação para desfazer a relação incestuosa e, portanto, o interdito. Por ser o candomblé de Campinas bastante jovem, comparado aos terreiros mais antigos da Bahia e do Rio de Janeiro, ainda hoje procura fincar suas raízes e criar tradição em solo do interior paulista. Assim, diferente do candomblé baiano cujos laços
90
A respeito do tabu do incesto na organização do parentesco no candomblé, Vivalado da Costa Lima fala que nos candomblés da Bahia há além da proibição de pais e irmãos–de-santo serem parceiros sexuais também há o interdito para filhos de um mesmo orixá. Não encontrei este interdito nos candomblés angolas de Campinas, permanecendo a proibição do incesto somente para os casos de pais com filhos e entre irmãos. 91 Claude Lévi-Strauss. As Estruturas Elementares Do Parentesco, tradução Mariano Ferreria. Editora Vozes, São Paulo, 1976. 92 Repugnância, antipatia, aborrecimento, chateação, desavença, zanga, inimizade, desinteligência, rixa, briga. 93 Alimentos considerados sagrados que são passados pelo corpo da pessoa, com o intuito de cura ou retirada do mal acompanhados de rezas e que podem vir ou não seguidos de sacrifício animal. 94 Literalmente “dar de comer à cabeça”. Cerimônia em que muitas comidas sagradas são ofertadas à cabeceira do ofertante seguidas de rezas e sacrifício de galinhas e pombos.
89
consangüíneos designam, muitas vezes, a herança de casas e cargos, apenas muito recentemente, o candomblé campineiro começou a formar um grupo de iniciados, que são parentes biológicos dos primeiros “feitos no santo”. Uma nova geração de filhos, sobrinhos e netos consangüíneos começou a ser iniciada nos candomblés angola de Campinas, o que aponta para uma continuidade desta expressão religiosa no interior de São Paulo. Estes novos filhos-de-santo que pertencem tanto à família religiosa quanto à família biológica serão, ou pelo menos se espera que sejam, os herdeiros do axé. Observando as famílias biológicas dos sacerdotes pesquisados e as novas ordenações que o candomblé lhes dá, podemos perceber tanto essa nova geração sendo introduzida nessa expressão religiosa, quanto distinguir as alianças
formadas por
intermédio das trocas determinadas pela interdição. Por exemplo, mameto Dangoroméia tem um filho de nome Kassumbê que foi iniciado por Ogogê (filho-de-santo de Munukaya que é mãe-de-santo de Dangoroméia), além de outras duas filhas, Omindewá e Kauselê, “raspadas” por mãe Munukaya, e tem também duas netas: Imbomazaletambo e Kiximugombê, a primeira feita por Kauselê (tia biológica) e a segunda iniciada por Omindewá (tia biológica).95
Família biológica de mameto Dangoroméia
Dangoroméia Mãe biológica Kassumbê (filho biológico)
Omindewá (filha biológica)
Kiximugombê (neta biológica)
Imbomazaletambo (neta biológica)
Kauselê (filha biológica)
95
Os parentescos relacionados neste trabalho foram obtidos através da memória dos entrevistados, uma vez que não existem documentos que comprovem as filiações.
90
30
Família de santo cruzada com família biológica de mameto Dangoroméia
Munukaya Mãe-de-santo
Dangoroméia
Omindewá
Kiximugombê
Ogogê
(Irmão- de- santo de Munukaya) Kauselê
Kassumbê
Imbomazaletambo
31 Mameto Dangoroméia se torna, na família de santo, irmã de suas filhas biológicas e tia de suas netas, além de passar a ser prima de seu próprio filho. Também mameto Corajacy tem uma filha, Omijewa, que foi “raspada” por Munukaya, sua mãe de santo, tornando-se desta forma irmã de santo de sua filha.
Família de santo cruzada com família biológica de mameto Corajacy
Munukaya (Mãe de santo) Corajacy
Omijewá
32
91
Da mesma forma, tateto Ubiacylê também tem uma sobrinha biológica, Iyalodemim, que foi raspada por ele próprio juntamente com Omolewá (uma filha-desanto de Ubiacylê), tornando-se desta forma sua meia-neta de santo, se levarmos em conta a presença de Omolewá.
Família de santo cruzada com família biológica de tateto Ubiacylê Ubiacylê (pai de santo)
Omolewá (mãe de santo)
Iyalodemim
33 Por sua vez, Kafulavunjê que é filho biológico de tateto Gitalanguange foi “feito” por Toigilá, irmão de mãe Somenegué que é avó de pai Gitalanguange. Desta forma, Gitalanguange passa de pai biológico para primo de santo de segundo grau de seu filho.
Família de santo cruzada com família biológica de tateto Gitalanguange
Somenegue
Toigilá Kafulavunje
Nanjerecy
Gitalanguanji
34
92
Como pudemos observar, através dos esquemas, as famílias de santo reorganizam o parentesco biológico de tal forma que, no candomblé, uma mãe pode se tornar irmã de suas filhas, como no caso de mameto Dangoroméia e mameto Corajacy, ou ainda como no caso de tateto Gitalanguange, se tornar primo do seu próprio filho. Assim como os filhos e netos dessas lideranças, há atualmente muitos descendentes de filhos-de-santo que já nasceram no candomblé e hoje formam um novo grupo de "feitos no santo" diferente dos primeiros sacerdotes e filhos que vieram de outras religiões e se iniciaram em idade mais avançada do que estes descendentes que foram introduzidos no candomblé ainda crianças. Por outro lado, o candomblé campineiro cresce também por meio de sacerdotes de umbanda que procuram os pais e mães-de-santo a fim de se iniciarem e ganharem mais prestígio religioso. Iniciados, tornam-se pais e mães-de-santo ao introduzirem o candomblé angola em suas casas e, na maioria das vezes, não abandonam os “trabalhos” de umbanda. Em Campinas, duas linhagens dão origem às quatro famílias mais importantes do candomblé angola. De um lado, temos tateto Ubiacylê e tateto Gitalanguange que são provenientes, consecutivamente, de uma neta (Namboazaze) e uma bisneta (Nanjerecy) de Miguel Grosso; de outro lado, mameto Dangoroméia e mameto Corajacy, que são filhas de uma filha (Munukaya) de santo de Menakenã. Os diagramas abaixo mostram as casas principais e suas descendentes.96
96
A ancestralidade e a descendência destas famílias foram coletadas nas histórias de vida dos tatetos e mametos que fizeram parte da pesquisa, uma vez que devido a tradição oral do candomblé não há documentos que registrem os parentescos. Além disso, houve nos relatos dos sacerdotes uma congruência na revelação dos dados.
93
I- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Gitalanguange
Miguel Grosso Obamim Somenegué Nanjerecy Gitalanguange Nitobi
35
II- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Ubiacylê Miguel Grosso Obamim Nambuazaze Ubiacylê Mazamkaya Alamussangi Omolewa Dandaiworô Onisatoju Gebelonan Oluanganji Lembazukala Kimulengi 36
94
III - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Dangoroméia
Menakenã Munukaya Dangoroméia Kayagodelecy Coromimm Kayalodomim Kayangolaborecy Toluãnamborecy Kayangokecy Diamonoya Indakeolegi
37
IV - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Corajacy Menakenã Raismarê (queto)
Munukaya (angola)
Corajacy
38
95
É importante notar que, no diagrama IV, mameto Corajacy já havia sido iniciada por uma mãe da nação queto (Raismarê) e mais tarde deu uma obrigação com mameto Munukaya, passando assim para essa linhagem. Prandi, na sua obra Os candomblés de São Paulo, escreveu que: “...são raríssimos os sacerdotes chefes de terreiros de São Paulo que permaneceram filiados ao axé de feitura (terreiro onde foram iniciados), ocorrendo seqüências de rupturas e refiliações que já vêm desde a Bahia.” (1991, p.107) Como já havia comprovado Prandi em São Paulo, a pesquisa de campo em Campinas também revelou um intenso trânsito de filhos entre as casas e linhagens. As regras que regem a família tradicional do candomblé pressupõem que o filho-desanto vai permanecer neste núcleo familiar até, ao menos, completar sete anos de iniciado para tornar-se "irmão mais velho"97 mediante um ritual de confirmação,e se for de sua vontade constituir casa própria de candomblé. A conquista deste patamar hierárquico, na família do candomblé, deve tradicionalmente ser uma conquista cumulativa. É ano após ano cozinhando as comidas de santo, rezando ingorossi, participando de ebós, dançando nas festas, limpando os animais sacrificados para os inquices, além de fazer os serviços mais rudes na faxina da casa, que a muzenza98 completa sete anos de iniciação e pode através de uma cerimônia propiciatória se tornar uma cota99. Na família tradicional, o tempo é o recurso que o neófito tem para galgar os patamares hierárquicos do candomblé.
97
As mulheres quando passam por esse processo tornam-se de cota, e de um modo geral, homens e mulheres serão reconhecidos, após a obrigação de sete anos, como ebômi. 98 Muzenza é a filha-de-santo que é iniciada para um inquice no candomblé angola. Depois que ela completa sete anos e faz os ritos propiciatórios e a cerimônia pública de recebimento do decá (ou cuia), no qual lhe será outorgado o direito de iniciar filhos-de-santo, ela não mais será uma muzenza e passará a ser uma “cota”. 99 Ver nota 6
96
Ele terá como seu maior objetivo dentro da religião servir a família de santo e ao seu inquice, e contará, para resistir às adversidades do sistema, como sua maior aliada, a autodisciplina que lhe facilitará a permanência e lhe possibilitará a conquista do reconhecimento da sociedade religiosa. Porém nem sempre as coisas acontecem conforme prescreve a família tradicional do candomblé que existia antigamente na Bahia. Muitos filhos violam o lugar que lhes foi atribuído no mito da família e embarcam numa viagem rápida, resultando no trânsito de filhos-de-santo entre as famílias e linhagens. Se as regras na família tradicional pressupõem um compromisso de lealdade e reciprocidade, que significa sacrificar-se, comprometer-se socialmente com o grupo familiar religioso do qual faz parte, com o evento da mobilidade dos filhos entre as diversas famílias e linhagens, o compromisso em longo prazo é descartado e os laços sociais, afrouxados, resultando daí uma nova relação mais prática na qual os valores tradicionais são substituídos por outros mais apropriados à modernidade. Ainda que haja, na modernidade, um afrouxamento dos laços familiares no candomblé, reitero a importância da família-de-santo para o escravo e mesmo para muitos de seus descendentes, pois ela legaliza a família negra matrifocal, uma vez que há uma identidade entre este tipo de família e a família–de-santo. O candomblé campineiro se compôs em uma sociedade na qual vigoravam relações capitalistas que se tornaram cada vez mais de curto prazo, no decorrer da última metade do século XX. Este capitalismo de "curto prazo”, segundo Sennet, tem a produção movida por uma constante mudança, a fim de satisfazer a volatilidade do consumidor, e não só modifica as relações de trabalho, como também as relações sociais e, portanto os relacionamentos familiares.
97
Se antes num capitalismo organizado, o mercado era menos dinâmico e as relações de trabalho assim como as sociais eram baseadas no compromisso de lealdade, no capitalismo de curto prazo a carreira tradicional fenece, o mercado se torna muito competitivo e dinâmico e, por isso, não há mais lealdade, nem perspectivas em longo prazo. Da mesma forma, também o mercado de bens simbólicos se flexibiliza a fim de atender à demanda do "cliente" que passa cada vez mais a exigir inovações que possam satisfazer suas expectativas. Falar em compromissos mútuos e relações em longo prazo,, neste contexto, é falar em uma virtude abstrata, pois que ela não se encontra em nenhum lugar. (Sennet: 2001) Transpondo isso para a família observamos que, no sistema tradicional, havia a valorização das virtudes que se aprimoravam em longo prazo, e a obrigação formal entre pais e filhos desenvolvia uma confiança mútua que se enraizava lentamente. Com a mudança para um novo padrão cultural mais adaptado às condições sociais modernas, as relações familiares vão se traduzir em uma reação mais descomprometida entre pais e filhos, de tal maneira que se afrouxam os laços familiares, resultando num distanciamento, e as relações fortes de parentescos convertem-se numa cooperatividade superficial entre os membros da família. Observando essa mudança de comportamento nas relações de trabalho e nas familiares, Sennet escreve: “Como se podem buscar objetivos a longo prazo numa sociedade de Curto prazo? Como se podem manter relações sociais duráveis? Como pode um ser humano desenvolver uma narrativa de identidade e história de vida numa sociedade composta de episódios e fragmentos?” (2001; p. 27).
98
Como exposto anteriormente, desde os anos 70 do século XX, Campinas passou por intenso processo de industrialização e crescimento urbano e foi nesta condição socioeconômica que, nos anos 80, o candomblé se estabeleceu no Município. Para compreendermos o trânsito de filhos dentro do candomblé campineiro, temos que levar em conta o contexto socioeconômico em que ele foi inserido, uma vez que, segundo Rita Amaral, "... o "povo de santo" fala a mesma linguagem que o resto da sociedade e participa da mesma cultura." (2002; p. 21). Quando observamos em Campinas o grande trânsito de filhos entre as casas de candomblé, podemos pensar que isto pode corresponder a uma "liberdade" pessoal, isto é, a um descompromisso que tem a ver com os novos padrões familiares que vigoram na sociedade mais abrangente. A pesquisa de campo mostrou como essa nova relação familiar se contrapõe aos valores da família tradicional, corroendo a confiança, a lealdade e o compromisso mútuo. Isto aparece muito claro no momento em que um pai-de-santo relata sua história de vida e revela os conflitos que a flexibilidade dos novos relacionamentos familiares gera: "Eu nunca tentei segurar ninguém, muito pelo contrário. Todo mundo é livre para fazer o que quiser. Mas eu acho gozado porque, quando minha mãe morreu, eu estava com 29 anos de santo. Agora veja, se eu abri minha casa e estava com 9 anos de santo, claro que queria trazer os ibás de todos os meus santos. Eu só estava com o ibá100 de Exu e eu tinha uma casa aberta. Agora os meus santos nunca quiseram vir embora para minha casa. Só no ano que ela morreu é que trouxe meus ibás; e hoje... Não sei. 100
Assentamento do "santo". Ser, ou objeto onde assenta a energia sagrada de qualquer entidade religiosa afro-brasileira; assento.
99
Tem gente que faz o santo... Depois abandona, vai para outra casa, às vezes volta. Todos os lugares têm gente assim." (tateto Ubiacylê)
Neste relato o pai-de-santo revela o fosso que separa a geração mais velha da mais nova, o que nos leva a verificar que as relações de “curto prazo” nas famílias da sociedade moderna, também aparecem na família do candomblé, promovendo novos padrões de comportamentos, apesar de não serem rejeitados os padrões tradicionais. Se as relações mais voláteis causam mágoas entre pais e filhos, também podem gerar conflitos entre os sacerdotes, já que é muito comum uma mãe ou pai-de-santo dizerem que o santo do filho que rompeu com a antiga casa, fora “feito” errado. Um dos meus entrevistados desabafou: "O povo do candomblé não tem ética. Quando um filho vai procurar outro pai-de-santo, ao invés de perguntarem: Por que vou jogar para você? Cadê sua mãe? Não... Eles vão logo dizendo que o santo está errado, dão obrigação e ainda mudam a dijina101. Se continuar assim, não tem candomblé certo. Trocam uma amizade por causa de um filho-de-santo." (mãe Corajacy) A fluidez das relações na modernidade que caminha no sentido contrário às regras do modelo tradicional, parece corroer o caráter e concordando com Sennet, “talvez a corrosão de caracteres seja uma conseqüência inevitável . Não há mais longo prazo (...) desorienta a ação a longo prazo, afrouxa os laços de confiança e compromisso e divorcia a vontade do comportamento." (2001; p. 33)
101
No candomblé angola-congo nome por que a filha-de-santo ou o filho-de-santo passa a ser ritualmente conhecido(a), ao fim de sua iniciação.
100
Uma vez que o trânsito de filhos entre as casas é comum e intenso, novos acordos são elaborados a fim de que os recentes padrões de comportamento não venham a desintegrar a rede de relações sociais mais amplas que é fundamental para que o candomblé se constitua como uma comunidade. Desta forma, os sacerdotes procuram "fazer vista grossa" ao acontecido e continuam convidando e sendo convidados para as festas, permitindo, assim, que se dê continuidade aos intercâmbios sócio-religiosos. Por exemplo, mesmo que um filho não queira que o antigo pai ou mãe-de-santo seja convidado para sua festa de recebimento de decá,102 ele será convidado e muito provavelmente comparecerá, embora as rivalidades e as mágoas não deixem de existir. Embora o deslocamento de um filho-de-santo para outra casa de candomblé gere constrangimentos, ele pode, por outro lado, ampliar a rede de relações porque, conforme migra para outra família, incorpora na sua genealogia religiosa outro pai ou mãe, novos irmãos, tios, avós, etc. sem descartar completamente a antiga família. Neste caso, quando o filho for declarar sua ancestralidade, ele começará pelo pai ou mãe que o iniciou, depois proclamará os outros sacerdotes que por ventura lhe deram obrigação, até chegar ao último sacerdote ou sacerdotisa que o adotou como filho de santo e a família a que pertence. Quando o trânsito foi intenso, a declaração da ancestralidade fica bastante extensa. Assim, o cruzamento de diversas linhagens, num mesmo sujeito, revela no seu mapa de parentesco as várias famílias se interligando por intermédio de um mesmo indivíduo. Curiosamente, quando estive falando com os sacerdotes pesquisados, todos eles, em algum momento da entrevista, referiram-se ao parentesco que nos unia, em
102
No candomblé investidura de um ou de uma ebômi no cargo de babalorixá, ou ialorixá, quando é de sua intenção abrir uma nova casa de culto. Cerimônia que se faz por ocasião dos sete anos de feitura, em que se alcança um patamar superior na hierarquia do candomblé. O conjunto dos paramentos (filá e colar) e a bandeja com material consagrante usado nessa cerimônia.
101
decorrência de meu envolvimento com essa manifestação religiosa e ao meu trânsito entre as famílias. De uma maneira muito peculiar, mãe Corajacy fala sobre a rede de relações familiares no candomblé, quando ela se refere ao meu envolvimento religioso com as casas angolas de Campinas: “Queira ou não queira nós somos parentes de santo dos dois lados. De um lado você é minha parenta de santo, quer dizer, você é neta de Dango, não é? Isso, você é bisneta. Sua mãe de santo é minha afilhada... Olha o rolo, olha como tem rolo... Você foi para casa de Bia e o povo queira ou não queira... foi o avô de Bia que disse para mim quando Bia tomou obrigação de 14 anos... que eu sou parente dele. Por que... esqueci o nome dele agora, porque eles são parentes. Meus avós são parentes dele, então devemos ser parente, porque tem uma parentagem ali que a gente não sabe falar como é que é. Meu tataravô é parente de não sei lá de quem... Nós filhos-de-santo... nós somos sempre parentes.” (mameto Corajacy) Este caso é somente um entre muitos outros que são comuns no candomblé de Campinas. Por exemplo, Odetalodê foi iniciado por Kitalemim que é filha de santo de Omikassidê e que foi iniciada por uma mãe-de-santo chamada Vani, porém acabou dando obrigação com Dangoromeia e desta forma entrou para esta família. Dangoromeia é irmã de santo de Corajacy, porque Corajacy embora tenha sido feita por Raismarê, deu obrigação com Munukaya, passando assim para essa linhagem. Desta forma, torna-se tia-de-santo de Odétalodê. Como Kitalemim fechou a casa, Odétalode deu obrigação com Gitalanguange, recebendo uma nova dijina que é "Talaboquemim". 102
Posteriormente, Kitalemim deu obrigação com Gitalanguange e passou de mãe-de-santo para irmã-de-santo de Talaboquemim. Tateto Gitalanguange é filho de Nanjerecy que é filha de Somenegué, que por sua vez é irmã de Namboazaze. Namboazaze é mãe-desanto de Ubiacylê que, desta forma, é primo de Gitalanguange, portanto tornou-se também primo de Taloboquemim. Para facilitar a visualização desse arranjo elaborei um diagrama que pode ser visto a seguir.
Diagrama do candomblé de angola de Campinas. (a interseção num filho-de-santo transforma o diagrama do candomblé angola campineiro numa grande família).
Menakenã
Miguel Grosso
Raismare
Obamim
Munukaya
Corajacy
Dangoromeia
Somenegue
Nambuazaze
Nanjerecy
Ubiacylê
Vani Omikassidê
Gitalanguange
Kitalemim
(Odetalode) Talaboquemim
39 103
Desta forma, se, de um lado, o jogo prudente das trocas propicia a aliança, o trânsito dos filhos-de-santo entre as diversas casas e linhagens produz uma série de conflitos. Tais conflitos, por sua vez, forçam os pais e mães-de-santo a serem mais “flexíveis,”
103
administrando as relações sociais de modo a não desintegrarem o
intercâmbio sócio-religioso entre as famílias e se reconstituírem as alianças. Na pesquisa de campo uma mãe-de-santo revela: “Uma época eu me afastei da casa..., por causa de filho que saiu. O filho-de-santo saiu daqui foi para casa dele, e ficou muito... O pai-de-santo não tinha nada a ver, e hoje que sei que filho-de-santo que faz fuzuê. A gente não tem que entrar na dele... Nós nos afastamos por causa de filho-de-santo, mas é bobagem, agora vou à casa dele e tudo bem, nós somos amigos mesmo e acabou, e nós temos que entender que filho-de-santo é filho-desanto e nós somos nós.” (mameto Corajacy)
No entanto, se no candomblé campineiro é comum a mobilidade dos filhos-desanto entre as diversos terreiros, linhagens e nações, vale notar que há entre duas das casas pesquisadas o acato à regra tradicional, uma vez que entre elas não se dá a troca de filhos. Não quero dizer que não exista trânsito de filhos entre os seus terreiros e outros terreiros de candomblé de Campinas, mas que, no caso de mameto Corajacy e mameto Dangoroméia, elas recebem e perdem filhos para outros sacerdotes, porém elas não trocam filhos entre si.
103
Flexibilidade para Sennet significa a “capacidade de ceder e recuperar-se da árvore, o teste e restauração da sua forma. Em termos ideais, o comportamento humano flexível deve ter a mesma força tênsil: ser adaptável a circunstâncias variáveis, mas não quebrado por ela.” (2001; p.53)
104
Sob esta ótica, surge a indagação:
Se o trânsito de filhos-de-santo entre os
terreiros de candomblé é muito comum em Campinas, o que é que faz com que estas duas mametos não violem as regras entre si?
A aliança
No trabalho de campo, mameto Dangoroméia revela um aspecto importante da sua vida quando fala: “Eu já sou mulher, negra e do candomblé... Que moral se dá para isso? A sociedade não dá moral mesmo...” Conforme explana Helena Theodoro, “ dentro do sistema capitalista que sobrevive à custa da exploração do ser humano. A mulher negra é a mais explorada, já que em termos da divisão racial e sexual do trabalho ela ocupa os mais baixos escalões, sobretudo no setor agrícola, onde equivale a cerca de 60%. Na medida em que a carteira profissional assinada é uma garantia para o trabalhador, constata-se que apenas 37% das mulheres negras trabalhadoras possuem carteira assinada. ( 1996; p 50)104 Além de mulher negra que, socialmente, vem depois do homem branco, da mulher branca e do homem negro, portanto, no último patamar social, mameto Dangoroméia alia mais um atributo negativo que é pertencer ao candomblé. Neste caso, ser do candomblé, segundo a afirmação da sacerdotisa ,não é uma característica
104
MITO E ESPIRITUALIDADE:MULHERES NEGRAS. Helena Theodoro. Editora PALLAS, Rio de Janeiro, R.J. 1996
105
positiva, pois sua declaração revela o preconceito contra a mulher, o negro e, conseqüentemente, às religiões afro-brasileiras. Apesar da afirmação “ser do candomblé”
ter uma conotação negativa na
afirmação da sacerdotisa, pode, ao contrário, converter-se num atributo positivo, porquanto foi por intermédio do sacerdócio que mameto Dangoroméia e mameto Corajacy puderam melhorar seus recursos financeiros que eram bastante parcos, além de adquirirem visibilidade e força política em Campinas. Mameto Dangoroméia e mamteto Corajacy eram funcionárias da limpeza pública, tinham uma família matrifocal e passaram muitas dificuldades. Conforme explica Bernardo, a família matrifocal da mulher negra é uma “forma alternativa de família, (e) parece fazer parte dos fluxos, das trocas constituídas na diáspora. Tanto para a mulher africana, quanto para a afro-descendente, a matrifocalidade, aparentemente, não foi só uma imposição da escravidão e do pósabolição – com a conseqüente marginalização do homem negro no mercado livre durante as primeiras décadas do século XX, que lhe impossibilitava assumir a chefia familiar. ( Bernardo, 2003; p. 44) A família matrifocal é observada no caso das duas sacerdotisas, que não conviveram muito tempo com seus respectivos maridos e foram responsáveis pela criação e sustento de seus filhos. Ouvi certa feita de Mameto Dangoroméia: “Minha filha, se não fosse o candomblé, não sei o que seria de meus filhos...”
106
O candomblé além de oferecer referência religiosa para seus filhos, também lhes proporcionou a possibilidade de ganhos com o jogo de búzios e os ebós que supriam suas necessidades. Mameto Corajacy conta como foi que o sacerdócio no candomblé lhe mostrou novas maneiras de ganhar a vida: “Quando eu cheguei aqui, eu perdi meus dois empregos... Aí eu fui para a cidade com Dango fazer cartão, Dango me incentivou. Dango foi muito legal comigo, me incentivou fazer cartão, ligar para os outros, que eu jogava búzios, que eu tinha conhecimento que o povo não tinha porque batia umbanda.” (mameto Corajacy) No candomblé segundo Bernardo, “ os trabalhos religiosos são sempre pagos, desde a “leitura de búzios”, que tem um preço mais ou menos fixo, até outros tipos de trabalhos que são pedidos pelos orixás, dependendo dos problemas apresentados pelas diferentes pessoas que recorrem a esta modalidade religiosa.” (1986; p. 49) Desta forma, quando mameto Corajacy perdeu seu emprego foi com o saber e o status que lhe foi conferido através da iniciação no candomblé que ela conseguiu suprir suas necessidades financeiras. Embora
este
saber
tenha
sido
“desqualificado
por
outros
saberes”
(Bernardo,1986; p.44) foi ele que possibilitou a ascensão social e financeira destas mulheres. Ou dito de outra forma: foi através do papel da “mãe-de-santo” que estas
107
mulheres ascenderam socialmente. “Ser do candomblé” é muito diferente de “ser mãede- santo”, uma vez que é no cargo de mãe-de-santo que está inscrito o poder. Concordando com Helena Theodoro, “ a fé na religião é o grande apoio da mulher negra; seu axé. Sua atuação na comunidade se completa com sua força espiritual, trabalha nas comunidade-terreiros que se apóiam na concepção da tradição nagô sobre o universo e as pessoas. Os mitos africanos a consagram e caracterizam.” ( 1996; p.61) Porém, no caso destas sacerdotisas, principalmente de mameto Dangoroméia, o apoio se dá na origem banta que legitima sua nação religiosa que é angola, como podemos depreender de sua próprias palavras: “Encontrar o candomblé de angola foi uma lição de vida, eu tenho
certeza
que
eu
herdei
essa
espiritualidade
dos
antepassados da minha família , porque meu pai tinha espiritualidade, e também depois ele era...eu sou
de uma
ancestralidade pura, né, de uma nação do povo banto. Papai contava algumas coisas pra mim , de meu tataravô, da minha tataravô que foi jogada no mato...”( mameto Dangoroméia)
Percebe-se na declaração acima a importância que tem a relação da ascendência biológica com a nação do candomblé à qual pertence; além do mais, percebe-se que por meio da espiritualidade ancestral, legitima-se o cargo, no caso, de mameto dia inquice ou como são mais comumente conhecidas, “mãe-de-santo”. Anteriormente, por serem mulheres, negras, chefes de família, eram exploradas, uma vez que a divisão racial e sexual do trabalho as colocava nos mais baixos escalões. 108
Ademais, a mulher negra, conforme Helena Theodoro,“é vítima do machismo do homem negro, que sofre todos os condicionamentos de uma sociedade racista e machista, da qual ele absorve todos os valores e o comportamento do homem branco em relação às mulheres,” (1996, p. 50) Quando essas mulheres são iniciadas no candomblé encontram bastante apoio na religião, porém ainda não têm status e poder que só se alcançam com o sacerdócio e a liderança de uma casa religiosa. Isso só acontece quando elas se tornam mães-desanto. Daí a diferença de “ser do candomblé” e “ser mãe-de-santo”. A figura da “mãe-de-santo,” no imaginário social, reserva-lhe uma aura de sabedoria pelo conhecimento das tradições, pela bondade, pela simpatia, pela densidade de sentimento materno e pelos poderes ocultos que lhe são conferidos, impondo-lhe um lugar de respeito na sociedade mais ampla, embora com algumas reservas em decorrência do preconceito que se origina no racismo contra o negro. O que se percebe é que, entre as duas mametos, há diversos elementos de identidade comuns às duas, tornando suas histórias de vida semelhantes. Essas vivências similares foram muito importantes para o estreitamento dos laços de amizade e compromisso entre as duas mulheres além de que as incitaram a realizar uma aliança. Se, como mulher negra e do candomblé, as realizações eram difíceis, quando se acrescentou a categoria “mãe–de-santo” a seus atributos pessoais, lhes foi conferido certo poder, e no momento em que conseguiram percebê-lo, despertou nessas mulheres o desejo de expandi-lo para fora dos muros dos terreiros. Desta forma, para que houvesse a realização desse desejo, seria importante a união de forças entre os semelhantes, que neste caso, significou mais do que pertencer a
109
uma mesma religião, mas também a uma mesma categoria social. Mameto Corajacy e mameto Dangoroméia realizaram, então, um pacto não-manifesto que tornaria possível a constituição da aliança entre as duas sacerdotisas. Desta forma, foi através do respeito à regra que rege a família tradicional do candomblé que as mametos efetuaram o acordo, ou seja, não trocarem filhos-de-santo entre si. Ao preservarem suas casas do trânsito de filhos entre si, não permitem que haja “quizila” entre elas, estabelecendo-se assim a aliança entre as duas famílias que pertencem à mesma linhagem. Essa ética estabelecida entre as duas mães-de-santo permitiu que elas organizassem a única festa do candomblé campineiro em praça pública que é a “Lavagem da escadaria da Catedral Metropolitana de Campinas”. Esse evento, hoje, está inscrito no calendário oficial de Campinas e também no calendário Cultural e Turístico do Estado de São Paulo. Sob o ponto de vista do parentesco, podemos perceber a “Lavagem” como o resultado da aliança entre as duas mães-de-santo e a manifestação de uma linhagem. Porém, a “Lavagem” não resulta apenas no manifesto destas duas mametos, pois se converte na visibilidade de todo o candomblé, mesmo daqueles que dela não participam, além de muitos movimentos culturais afro-brasileiros e de movimentos políticos negros. Ao valorizar a figura da “mãe-de-santo,” não há a intenção de desmerecer os “pais-de-santo” que também edificam a história do candomblé campineiro. Apenas que, neste caso, não posso reduzir todos a um só. A pluralidade cultural brasileira, segundo a reflexão de Helena Theodoro, impõe uma análise detalhada de diversos segmentos que a formam, e com relação à mulher negra constata-se que “ao mesmo tempo em que participa da luta e da história da mulher
brasileira,
possui
aspectos
exclusivamente
seus,
construindo sua história de mulher negra, com características 110
próprias e outras adquiridas do meio em que vive, tendo peculiaridades que apontam para dimensões novas e distintas da mulher em nosso país. (1996; p. 57).
111
CAPÍTULO IV A Festa
40
112
A festa é fundamental para os grupos de candomblé. É neste momento que deuses e homens se confraternizam, por meio da música, da dança e da comida. Como a mais expressiva instituição dessa religião, a quizomba, que é a festa no candomblé angola semelhante ao xirê dos candomblés queto, segundo Rita Amaral, é o resultado da visão
de
mundo
dessa
expressão
religiosa,
porque
nela
encontramos,
concomitantemente, “a religião, a economia, a política, o prazer, o lazer, a estética, a sociabilidade” (2002; p. 30) entre outras relações sociais. Pode ser classificada, de acordo com o conceito de Marcel Mauss como um “fato social total”. Ainda é Amaral quem escreve que: “A vivência da religião e da festa é tão intensa que acaba marcando de modo profundo o gosto e a vida cotidiana do povo-de-santo. A religião passa a se confundir com a própria festa”.(2002, p.30) Na festa do candomblé, dá-se o que se tem de melhor, as roupas devem estar impecavelmente brancas, a comida deve seguir os gostos do orixá homenageado, mas, ao mesmo tempo, também precisa agradar o paladar dos humanos, os atabaques são repercutidos conforme a nação, as vestimentas dos inquices devem ser vistosas e proporcionar o deslumbre dos homens que assistem às danças. Assim, são muitos os trabalhos desenvolvidos nos dias que a antecedem. A confecção dos adereços e das roupas de cada inquice ou orixá, a colheita das ervas, a ida ao mercado, as comidas dos deuses e dos homens, a limpeza do barracão e dos quartos sagrados, os enfeites, as lembrançinhas105, são algumas atividades que ocupam muito tempo dos adeptos em cada festa que, normalmente, é direcionada a algum inquice ou orixá específico. A festa é tão importante para o candomblé que Amaral escreve: “A própria vida dentro do terreiro pode ser pensada como a permanente produção da próxima festa, pois inclui, através de aspectos dramatizados ou outros, sua continuidade no tempo.” (200;, p.29). 105
É interessante notar que a incorporação das lembrançinhas pelo candomblé se originou das festas dos extratos médios e que, até mesmo os candomblés queto tradicionais, como o de Olga de Alaketu, aderiram a esta novidade.
113
O imaginário e o concreto estão permanentemente presentes, propiciando arranjos especiais para cada ocasião. Proibições e preferências de cores, de temperos, de óleos, de sal são conhecimentos importantes nos preparos das comidas. Desta forma, preparar a comida do inquice vai muito além de pilar o inhame, de moer o feijão, de bater o acarajé, porque é essencial saber oferecer e respeitar o que agrada a cada um deles, isto é, suas preferências e proibições, de maneira que não é simplesmente preparar o alimento e comê-lo, mas transformar aquilo que é material e o que é incorpóreo na pura essência da vida. Além das comidas bem temperadas pelas mãos de muitas especialistas da cozinha do candomblé e que são servidas na festa, também são mostradas as artes nas roupas, nas danças, no som que emana das repercussões dos atabaques e das vozes das mulheres que cantam azuelas106. Rita Amaral explica a festa como o “momento em que a identidade dos grupos se expressa plenamente (...) (a festa) Expressa a glória da coletividade (...) A festa mostra o que o grupo é e o que o grupo pensa. Nesse sentido pode ser entendida como o “proselitismo” do candomblé.” (2002; p.31, 32) O trabalho para a preparação da festa, por ser muitas vezes realizado concomitantemente ao emprego que garante sustento do adepto, torna–se extenuante pelo acúmulo de tarefas, em razão de terem que conciliar o tempo que vão passar dentro do terreiro com o tempo do emprego. Ainda que seja assim, é visível, na festa, a satisfação da filha ou filho-de-santo, que confeccionou a coroa de Dandalunda107, vê-la balançar o cintilante chorão enquanto dança na sala dissipando seu moyo108, ou quando a mesa do inquice está posta com os bolinhos de inhame pilado redondinhos, todos do mesmo tamanho, os acaçás caprichosamente enrolados em folhas de bananeiras, as 106
Cantigas que são realizadas na roda de candomblé angola Inquice relativo ao orixá Oxum 108 O mesmo que axé dos candomblés de origem sudanesa 107
114
carnes moles e cheirosas nos molhos condimentados, segundo a preferência do inquice, os melões, as bananas, as uvas arrumadas carinhosamente em gamelas, os acarajés fofos e rubros, tudo arrumado de maneira a convidar os deuses a virem comer e festejar com os homens. Desta forma, a festa também pode ser lazer, porque além do prazer que resulta ao ver o produto do trabalho pronto exibido na sala do terreiro, também é na festa que se conhecem pessoas, começam namoros, o povo-do-santo fica sabendo dos acontecimentos de outras casas, é a ocasião em que se recebem os convites para outras festas, tudo isso enquanto se come o cudiá109 que é o banquete da festa dos inquices. Uma outra perspectiva que a festa proporciona visualizar é a hierarquia do grupo de candomblé em questão. Muitos papéis são representados no momento da festa.
Por exemplo, as
makotas110 se manifestam ao acudirem os inquices quando eles “viram” na sala. Desamarram os panos-da-costa das cinturas ou dos bustos das filhas-de-santo e os arrumam segundo a natureza feminina ou masculina do inquice, secam-lhes o suor do rosto, dançam com eles, cobrem-lhes com seus panos-da-costa para encaminhá-los de volta à terra dos ancestrais. Também são os tatas111 que devem saber as azuelas112 e toques para cada inquice, além daqueles especiais utilizados nas saídas de muzenza113, nas confirmações de tata e makota e das saídas de sete anos. A ordenação cosmológica do grupo também é representada na festa, de forma que, nos candomblés angola, primeiro se canta para Aluvaiá e se despacha a rua com farofa e água. A seguir, pede-se licença para começar a festa: Cubana gira ê, Cubana gira, cuba gira de Roxe mokumbo, Cubana gira e nanguê. Depois se reza a pemba, momento em que todos se ungem com o pó branco de um giz que misturado a ervas e 109
Comida servida nas festas e considerada sagrada. Equivalente ao ajeum dos candomblés queto. Cargo equivalente a equeji dos candomblés queto. 111 No candomblé de rito angola , cargo masculino equivalente ao cargo de ogã nas casas de rito queto. 112 Rezas cantadas nas festas de candomblé angola 113 No candomblé de rito angola-congo, filha-de-santo. 110
115
sementes torna-se uma substância sagrada chamada pemba, que os adeptos acreditam fortificá-los e protegê-los. A seguir, canta-se para os inquices nesta ordem: Incossimucumbe, Gongobira, Catendê, Angorô, Cafungê, Tempo, Zaze, Matamba, Dandalunda Caiatumbá, Vunge, Zumbarandá, Lembarenganga. Esta é uma ordem mais ou menos comum nos terreiros de angola de Campinas, contudo pode haver algumas diferenças conforme a festa que está sendo realizada. Os atabaques nos terreiros de angola são repercutidos com as mãos e as cantigas são feitas em línguas bantas. A festa, conforme Rita Amaral, é “um momento de síntese de tudo o que o povo-do-santo pode apresentar publicamente em termos de imagem da religião, para a assistência à festa é não só um verdadeiro espetáculo, de estética ímpar, mas também uma “vitrine” da alegria, do ludismo, da sensualidade e beleza vividos pelos adeptos dessa religião. De seu estilo de vida.”( 2002; p.56) Por ser a festa o próprio candomblé, é através dela que o candomblé angola vai se mostrar na praça da Catedral Metropolitana de Campinas. Embora a lavagem de Campinas se efetive diferente da de Salvador, foi mediante o conhecimento da dramatização realizada no Bonfim que uma das mametos desejou realizar a Lavagem de Campinas. No seu depoimento ela conta que: “eu fui para Salvador assistir à lavagem, porque quando eu morava lá sempre ia... quando eu cheguei de lá queria muito fazer aquela lavagem...” (mameto Corajacy) A Lavagem do Bonfim, em Salvador, conforme pesquisa realizada por Ordep Serra, em virtude de hoje serem sacerdotisas do candomblé as protagonistas deste ritual “induziu muitos a pensar que esse rito foi criado pelo povo dos terreiros. Mas trata-se
116
de uma velha tradição ibérica – que na Bahia combinou-se à lógica do culto do candomblé, segundo a qual foi reinterpretada.” (2000, p.71) Segundo esse autor, esse era um ritual comum em Portugal o qual se realizava dentro da igreja a propósito de pagamento a graças concedidas pelo santo da invocação que era o padroeiro da igreja. No Brasil, esse rito era realizado por devotos que lavavam não só as escadarias, mas todo a chão da igreja. Conforme descrições do século XIX sugerem, o término da lavagem resultava numa espécie de carnaval dentro do santuário. Ordep Serra escreve que em “1889 o arcebispo dom Luiz Antonio de Sousa proibiu a Lavagem da basílica do Bonfim.(2000, p. 71)
Porém, a proibição teve
conseqüências não previstas, uma vez que cerrada a porta da igreja o candomblé surgiu como “via disponível para o sacramento” e reinterpretou a lavagem segundo seus mitos e agora se reduz às escadas. De acordo com a interpretação do mesmo autor, a identificação do Senhor do Bonfim com Oxalá se deu porque Oxalá era cultuado na África, em cima da colina, pois ele é o orixá criador e o pai de todos os orixás. Ordep escreve que: “segundo o seu mito, quando Oxalá fez emergir a terra do seio das águas do primórdio, despontou primeiro uma elevação, considerada o “umbigo do mundo”. É Oxalá o senhor do monte sagrado, e também das águas fecundas, festejado com ritos lustrais... ritos que se caracterizam, nos terreiros do candomblé, por uma serena solenidade”. ( 2000; p.72).
Como a igreja do Bonfim fica em cima de uma colina, as baianas passaram então a realizar um rito religioso que é uma “celebração do sagrado na fronteira do profano” (2000; p.73).
117
Esta festividade tornou-se com o tempo muito popular e um paradigma para outras iniciativas em todo o país. Entretanto, se a Lavagem da Catedral Metropolitana de Campinas nasceu do desejo de uma mameto de realizar um rito semelhante ao de Salvador, trilhou uma história muito diferente da primeira.
Vencendo A Intolerância: Murmúrio de uma festa afro-brasileira
Articulada por duas mães-de-santo, a festa da Lavagem em Campinas começou a ser pensada por causa de um sonho da mameto Corajacy de levar o candomblé para a rua, assim como era feito em Salvador, na Lavagem do Bonfim. Por outro lado, um ato de preconceito ao candomblé que fora cometido contra mameto Dangoroméia, na mesma praça onde hoje é realizada a festa, também foi motivo de interesse dessa sacerdotisa em realizar esse rito na praça da catedral. Mameto Dangoroméia conta: “Eu era conserva 114, na época chamada laranjinha 115. Aí eu me iniciei... Eu tinha um uniforme, mas tinha que
114 115
pôr
branco
por
baixo.
Eu
punha
meus
Funcionária da limpeza pública que conserva limpas as ruas da cidade. Funcionária da limpeza pública que, por vestir uniforme cor de laranja, era chamada de laranjinha.
118
mijeloguns 116... os meus fios de contas e o ojá 117 na cabeça,
porque
eu
estava
careca
e
punha
meu
chapeuzinho por cima, e ia trabalhar. Eu tomei seis meses
de
muzala”
118
obrigação,
três
meses
... porque eu sou de Angorô
de 119
“migui
de
, então minha
mãe me deu seis meses de obrigação. E aí eu tinha que trabalhar... Eu tinha muita amizade com um engraxate ali. Um dia eu ali varrendo, tomei um tamanho tapa no bumbum, que eu caí em cima do engraxate. Esse homem disse assim: Sua feiticeira, isso, aquilo e me xingou de outros nomes. Eu caí e ele correu (...) Aí eu comecei a chorar, fiquei tão nervosa e olhei assim na igreja, e aí eu falei: Olha, minha santa Nossa Senhora da Conceição, a senhora me viu em perigo... Se a Senhora é de verdade... Se a Senhora representa a Iemanjá
de
conhecia Caiá
nossa 120
religião...
naquela
época
não
... Eu vou entrar aí (referia-se a lavar
o adro da igreja). Essa é a única coisa que eu falo pra Senhora. Porque esse mistério desse preconceito tem que acabar. Campinas foi a última que aderiu à abolição, entre aspas. E continuei varrendo. Tinha que trabalhar.”(mameto Dangoroméia)
Do preconceito nasceu o pacto com a santa que tinha algo do orixá que também era inquice. Naquele momento, a mãe-de-santo, além de mulher, pobre, negra, era também a feiticeira aglutinando toda uma gama de atributos pejorativos outorgados pela sociedade branca, cristã e masculina representada pelo homem que a agredira na praça.
116
Corruptela da palavra de origem ioruba merindelogum que significa dezesseis e que no candomblé são dezesseis longos fios de contas fechados por uma pedra maior chamada firma e que tem a cor representativa do orixá ou inquice correspondente. 117 Faixa de pano usada para diversos fins litúrgicos e rituais no candomblé e em cultos a ele associados. 118 Migui,Musala: apetrechos que os recém iniciados no candomblé angola usam no pescoço. 119 Inquice correspondente ao orixá Oxumare. 120 Caiá- inquice correspondente ao orixá Iemanjá.
119
Mãe Corajacy também era “laranjinha” e tinha o sonho de trazer o candomblé para a rua, a fim de ser reconhecida pelo poder que sua iniciação lhe concedera como mãe-de-santo. Note-se que sair do barracão, da periferia, tornar o candomblé visível e ser reconhecido como religioso, é sair do âmbito da magia e ir para o da religião, é deixar de ser feiticeiro, charlatão para se tornar sacerdote. Certo dia reuniram-se as duas em frente à catedral, ambas varredoras de rua, com o objetivo de terem um reconhecimento religioso. Planejavam fazer a Lavagem Por
intermédio
de
uma
amiga
influente,
conversaram
com
repórteres e comunicaram-lhes a vontade de fazer a Lavagem da catedral. Segundo mameto Dangoroméia e mameto Corajacy , mais que uma conversa foi um debate. Afinal, diz mameto Dangoroméia: “o jornalista retrucava, porque... Cidade das andorinhas... é, é, como é que se fala? invadida por feiticeiros baianos, mineiros... Ah menina, foi uma luta.” ( mameto Dangoroméia) . Finalmente, com a imprensa convencida, impôs-se uma conversa formal com a Igreja católica, ficando de um lado as duas mães-de-santo, mulheres, negras e do candomblé e, de outro, o bispo, representando a Igreja, pois, para que pudessem dançar candomblé em praça “pública” teriam que pedir licença para o bispo; afinal, a escada era da Catedral. Foi uma conversa tensa, difícil, conta mameto Dangoroméia:
“Aí eu fui falar com Don. Gilberto, ele demorou muito para me atender, e aí, graças aos deuses, ele me atendeu. Eu fui falar com ele e ele me questionou muito, falou que eu estava misturando a igreja dele com aquela história de Santos, que todo mundo bebia, que todo mundo quebrava garrafa. Falava da festa de Iemanjá , né!? Aí falei pra ele que não era nada daquilo, que a gente não ia incorporar na frente da igreja dele. O papo demorou mais ou menos umas duas horas até quando 120
ele disse assim: Olha, e se a Senhora for proibida de fazer? Eu disse: Olha, vai ser difícil o senhor me proibir, sabe por quê? Se o senhor for pôr guarda lá, nós vamos levar uma torcida. Aí vai ter uma torcida para o senhor e uma para mim. Porque um terço da sua população católica vai ao meu candomblé. Eu já sou mulher, negra e do candomblé, não vai afetar minha moral. Que moral se dá para isso? A sociedade não dá moral mesmo..Agora, o senhor já pensou metade da torcida do senhor e outra metade minha? Ai ele deu aquela risada e falou: A senhora quer
saber
de
uma
coisa?
Faça.
(mameto
Dangoroméia).
A primeira Lavagem aconteceu no sábado de aleluia de 1985. Bispo e mães de santo resolveram o dia, conta mãe Corajacy: “Aí nós falamos para ele que nós íamos fazer em Janeiro, porque a festa de Oxalá é em Janeiro, Não é lavagem, é chamada de as águas de Oxalá 121. Aí ele sugeriu
que
nós
fizéssemos
na
páscoa
que
é
renovação, que estava pertinho...” ( Mãe Corajacy)
Uma vez que o Oxalá na Bahia é sincretizado com Nosso Senhor do Bonfim, então, lavar o adro desta igreja significa na reinterpretação afro-brasileira, preitear Oxalá. Por sua vez, o orago da Catedral Metropolitana de Campinas é Nossa Senhora da Conceição, de forma que, se fosse seguida a mesma lógica da Lavagem do Bonfim, a Lavagem
121
Muitos dos adeptos do candomblé têm essa concepção, de que a Lavagem do Bonfim é ligado às “águas de Oxalá”. Oxalá é ligado às águas primordiais. Há um mito que fala sobre uma viagem de Oxalá ao reino se Xangô onde se sucederam diversos imprevistos. Oxalá acabou preso e esquecido na prisão do reino de Xangô. Sua tristeza foi tão intensa que causou grandes danos a esse reino, até que, através de sacerdotes de Ifá. Xangô ficou sabendo de seu amigo que havia anos estava preso em seu reino. Então, mandou que soltassem Oxalá, que lhe banhassem com águas perfumadas e que lhe oferecessem farto banquete a fim de que Oxalá aceitasse suas desculpas. Ao mesmo tempo quando a mameto denomina a Lavagem do Bonfim de “águas de Oxalá” diferenciando da Lavagem de Campinas, ela procura legitimar sua festa dando-lhe uma identidade diferenciada da festa de Salvador.
121
Campineira deveria ser realizada dia 8 de dezembro, dia votivo desta santa. Da mesma maneira, não há nenhum mito afro-brasileiro que justifique a lavagem tal como é o caso da do Bonfim. Em Campinas, por meios hábeis do bispo, houve um novo arranjo para a festa. Por que não ser no sábado de aleluia, quando a igreja está fechada para os seus fiéis e quando é o dia de se malhar o Judas, que já é uma festa pagã? Fica, então, de alguma forma, tudo no seu lugar, a saber, as festas populares, os pagãos na rua, e o que é da igreja guardado sob suas portas cerradas. Nada se mistura, estando do lado de dentro. Devido à independência total em relação à santa padroeira e aos ofícios da igreja, configura-se uma ruptura quase completa entre a igreja e a rua, no sentido em que, neste caso, um espaço não se configura complementar, do ponto de vista simbólico, em relação ao outro. Porém o que se pode observar é que por ser no sábado de aleluia em que a igreja traz suas portas fechadas, o singelo ato de devoção das mametos se apropria do fechamento das portas do templo católico e lhe dá novo sentido. Em muitos aspectos, as duas Lavagens, a do Bonfim e a da Catedral de Campinas, se assemelham, uma vez que existem diversos componentes de inversão na devoção da Lavagem de santuários, antes luso-brasileiras e hoje afro-brasileiras. Ordep Serra destaca dois aspectos de inversão que acontecem no rito de Salvador, que a meu ver podem ser identificados nas duas Lavagens. A primeira inversão é que, ”enquanto nos ofícios regulares da Igreja o povo acorre ao templo para purificarse, numa “Lavagem” o templo é purificado pelo povo” (200, p. 75) A segunda inversão é a que resulta do fechamento das portas da igreja.
Ordep, neste caso, aponta para a ausência dos sacerdotes
católicos e seus acólitos na realização dos ritos litúrgicos, permitindo que se invertam os papéis. “Então seu rebanho tem toda a iniciativa, ao contrário do uso normal” (2000; p. 75) Ainda no sentido “anárquico” da inversão de valores, o afã do serviço alegre realizado espontaneamente, segundo Ordep pode, “ser qualificado como um anti-trabalho, numa cultura em que a idéia de
122
trabalho liga-se com a de obrigação penosa imposta, humilhante até.” (2000; p. 75).
Lavagem: festa na praça - Uma etnografia
Fazia uma manhã quente, quando comecei a descer a avenida Francisco Glicério em direção à praça da Catedral. Ainda distante umas três quadras, podia-se ouvir entrecortada pelo vento, uma voz feminina que cantava ao microfone. Imaginei que estivesse muito atrasada e que talvez eu tivesse perdido já grande parte da festa.
122
Eram 11horas da
manhã e eu não sabia a que horas ela havia começado. Um pouco mais adiante, uma rajada de vento tornou mais audível a música: Azekutála zinge, o iá zinge, o Azekutála zinge, o iá zinge o Iá iza Kutala, Kawiza Kurá... Ai ai, ai ai, ai ai... Cantavam para Kabila, que era um dos primeiros inquices a ser louvado na roda de angola. Eu não havia perdido muito da festa. Observei as pessoas passando na calçada, indiferentes à cantoria. Era mais um sábado comum de comércio. Conforme fui me aproximando, percebi que a praça estava toda circundada de grandes barracas brancas entre as quais poucas pessoas circulavam. Direcionei-me para a igreja onde se via um aglomerado de pessoas. Um palanque havia sido montado em frente às escadas da Catedral de 122
Após um ano, n a segund a ob serv ação etnográf ica pud e cheg ar ma is cedo e v er u m alegre cor tejo do povo-do- san to cheg ando à pr aça co m qu ar tinhões enf e itado s d e f lor es car reg ados sobr e a s cab e ça s. À fr en te, jun tos co m as ma me to s , v inh a m fa ixa s e co lor idos estandar tes escr itos em língu a b an ta. O s grupos d e Jongo , d e tambor, d e c ap o e ir a, ade r ir a m a o cor t ejo . To d o s tr ajan d o r o u p as b r anc a s i lu mi n ara m a p r a ç a s o b o so l d a ma nhã . Qu anto à s d e ma is a tiv id ad es , e las o corr er a m d e ma n e ira mu ito s e me l h an te à p r i me i r a o b ser v a ção .
123
onde vinha o som dos tambores. Entre os transeuntes, duas moças negras com cabelos trançados com fitas coloridas conversavam alegremente com um rapaz de longos cabelos rastafari. Aproximei-me para ver melhor o que acontecia naquele espaço. Sem muita dificuldade fui saindo do meio das pessoas e chegando à frente e pude subir nos degraus do palanque. Havia uma grande roda de baianas vestidas de branco, que dançavam num espaço anterior à escadaria da igreja. Alguns homens também de branco se misturavam a elas. Uma outra roda menor, ao centro, composta de homens e mulheres trajando roupas de imaculado branco e bordadas em richelieu, dançavam formando um centro referencial para a roda maior. Neste pequeno circulo interior, identifiquei mameto Corajacy e mameto Dangoroméia. No palanque, uma orquestra de tambores e seus tatas, ao microfone tata Tawá. Esse tata viera de São Paulo para prestigiar a Lavagem campineira. Pessoa de grande prestigio com mameto Dangoroméia, é um articulador da recuperação lingüística banta nos candomblés angola de São Paulo, além do desejo de valorização desta nação. Esse tata cantava uma azuela, enquanto a roda de candomblé dançava. Quando a música cessou, e os componentes da roda pararam de dançar,
pude
identificar
diversos
personagens
da
política
e
do
movimento afro-brasileiro. O deputado estadual Sebastião Arcanjo dos Santos, famoso pela luta anti-racista e assumido candomblessita, somado a outros ativistas que se misturavam com as mulheres vestidas de baianas. Do lado esquerdo da escadaria da igreja havia um tapume, que escondia talvez obras na calçada lateral. A igreja fechada silenciava-se ao movimento do candomblé do lado de fora. A grande porta fechada do templo católico separava os “deuses”. Os santos católicos lá dentro, protegidos sob a majestosa construção da catedral que curiosamente fora toda construída com mão-de-obra escrava, e os deuses negros, na praça, no tempo, na rua, na boca dos homens, na batida dos tambores. Do alto da igreja, dois anjos pareciam esquecer suas trombetas e observavam a festa dos inquices.
124
Talvez naquele momento, lá de cima da torre, os anjos olhassem, atentamente, para depois contar a Nossa Senhora da Conceição o quanto era bonita “Caiatumbá” com quem ela muitas vezes fora sincretizada. Ali, diferente do que muitas vezes acontece nos terreiros, tudo e todos podiam ser fotografados. Ninguém fazia cerimônia, afinal, se estavam na praça, era para serem filmados, fotografados, porque parece que hoje também o povo do candomblé gosta de sair na mídia. Era o momento do candomblé se mostrar, de dizer para toda a população que ele existe e é forte. Hoje, ao invés da polícia fechar as casas, quebrar e apreender símbolos afro-brasileiros ou bater no lombo dos sacerdotes e adeptos, o candomblé tem a seu favor todo o aparato dos órgãos do governo e da segurança pública. Mameto Corajacy contou como isso foi importante para ela, por ocasião primeira Lavagem: “Mas
olha,
eu
vou
te
falar,
chegamos lá na catedral... Estava(sic)
quando
nós
ambulância, o
prefeito na época era Magalhães Teixeira, o vice dele em cima daquela estátua, que eu tenho uma foto dele até hoje, no jornal. Ambulância, Corpo de bombeiro, tudinho. Aí eu percebi que Campinas... (mameto Corajacy) A mameto não terminou a frase, porém o que ela queria mesmo dizer era que tinha sido naquela ocasião que Campinas dera-lhe importância e à sua crença e que, naquele momento, ela tinha se sentido, pela primeira vez, respeitada como uma verdadeira cidadã campineira. Atualmente, na praça, tudo parece mais fácil e a festa flui sem resistência. Cada um dos componentes da roda de candomblé foi pegar seu porrão 123 de água de cheiro enfeitado de flores brancas que estava junto aos outros, nas escadarias da igreja. Organizada uma fila indiana, encaminharam todos para a escada. As mães de vassoura em punho, com alegre e contagiante entusiasmo, encenaram uma Lavagem.
123
Pote ou vasilha de barro, comumente bojuda e de boca e fundo estreitos.
125
Naquela hora varriam a escada com outro intuito, não eram mais as “conservas”, não trabalhavam mais para a limpeza pública; na verdade, varriam agora o preconceito sofrido por ser do candomblé e a dor de terem nascido mulheres, negras e pobres. Muitas pessoas pediam bênçãos. Outros queriam que elas lavassem suas cabeças com água de cheiro. Todos distribuíam flores. A praça foi se tornando movimentada, muita gente chegava para a outra festa que se daria depois da realizada pelas mametos. As pessoas alegremente se cumprimentavam. Eram amigos, gente que identificava ou não o candomblé com a lavagem, mas que, certamente, tinha algo a ver com a cultura afrobrasileira. Gente da capoeira, do jongo, do maculelê ia chegando e se espalhando pela praça, atrás do palanque. Muita gente de pele negra, com roupas vistosas, com cabelos trançados e enormes boinas coloridas. Um pai-de-santo que não se aventurara a participar, estava com muitos filhos de sua casa, ali parado, cumprimentando amigos
e se
deixando ver. Uma negra gorda e jovem passou bem perto de mim e pude ver marcas de escoriações em forma de cruz nas costas e braços. Esta é independente da sua forma, a marca do “santo” que indica um filho do candomblé. Muita gente andava agora pela praça. Todos se confraternizavam alegremente. Em frente ao palanque, uma voz feminina chamava todos os participantes para se reunirem novamente a fim de que fosse encerrada a celebração. O adro estava cheio de gente conversando, o chão molhado pela água de cheiro. A limpeza festiva da escadaria da igreja resultou numa manifestação espontânea de alegre entusiasmo. Não havia mais organização, apenas a devoção aos inquices e a vontade de conversar e divertir-se. Uma das filhas-de-santo me puxou pelo braço e disse que queria que eu conversasse com uns americanos, porque ninguém ali falava inglês.
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Se, por um lado, o povo do santo aprecia a presença e o interesse pelo candomblé de estrangeiros, de integrantes da academia e de políticos, por outro lado, essas pessoas também valorizam o apreço que se efetiva com a aproximação aos sacerdotes. Ao mesmo tempo em que o candomblé pode conseguir maior visibilidade, e conseqüentemente legitimidade e poder, através dessas pessoas, também os políticos e ativistas conseguem com o candomblé visibilidade e influência, podendo angariar novos votos em eleições futuras. Do mesmo modo, gente da academia, ao se tornar mais íntima dos sacerdotes, pode realizar com maior facilidade pesquisas e os estrangeiros acreditam conseguir receber axé de uma religião que se configura exótica quando se compara a cultura afro-brasileira com as norte-americanas ou européias das quais descende. A voz feminina novamente apelava para a reorganização das pessoas. Acatado o pedido, foram entoados cânticos de despedida e o povo do candomblé retirou-se para a parte maior da praça, que ficava atrás do palanque, cercada de barracas. As pessoas procuravam os banheiros e um lugar para trocarem as roupas, uma vez que as armações e as grandes saias rodadas, certamente incomodavam por causa do calor que era intenso e volume que certamente restringia os movimentos. Numa barraca aberta, muitos se escondiam do sol. Passei perto de uma negra jovem de sorriso aberto que me deu um galhinho de alecrim, convidando-me para o jongo. Ouviam-se berimbaus e as rodas de capoeira foram se formando. Nas barracas de bebidas e comidas formaram-se filas de gente querendo comprar algo que os refrescasse do calor e que lhes saciasse a fome. O cheiro do acarajé, frito no dendê, não deixava esconder que ali havia comida de santo. Um grupo de jongueiros se instalou bem à porta da catedral que àquela hora já adquirira uma sombra acolhedora e ali começou a ensaiar. Gente vestida de branco, e com roupas muito coloridas encheu a praça para beber, conversar, comer e namorar.
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É importante observar que, ao sair da sua cercania, o candomblé levou para a praça central de Campinas seu povo e, mesmo que hoje seja um candomblé freqüentado por muitos brancos, este rito na praça atraiu as mais diversas manifestações de luta e de resistência do povo afrobrasileiro.
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A Lavagem e o Ideal de pureza.
A Lavagem das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas, embora esteja inserida no calendário oficial de Campinas124 e no calendário cultural e turístico do Estado de São Paulo125, suscita reações por parte de membros da academia e da comunidade do candomblé por acreditarem que este tipo de evento está associado à igreja e aos símbolos católicos, e revela desta forma uma submissão do candomblé ao catolicismo. Na verdade, a discussão sobre o sincretismo afro-brasileiro não é novidade. Desde as décadas de 30 e 40 do século XX, este debate já havia tomado força entre os adeptos do candomblé e na academia, salientando uma dimensão política que até então não havia sido declarada. O sincretismo era visto como imposto pelas circunstâncias da escravidão e, hoje, ele não se faz mais necessário, uma vez que há a liberdade de culto amparada legalmente. Desta forma, separar o candomblé do catolicismo era naquele momento uma tomada de consciência por parte dos adeptos das religiões de matrizes africanas. Essa discussão gerou muita polêmica quando, em 1983, a imprensa baiana divulgou um documento resultante da II Conferência Mundial da Tradição de Orixá e Cultura que declarava o fim do sincretismo.126
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Lei nº 9515 de 2 de dezembro de 1997 institui, no calendário oficial da Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, o sábado que antecede o domingo de páscoa (sábado de aleluia) como dia da lavagem das escadarias da Catedral Metropolitana de Campinas pelos candomblés. 125 Em Sessão realizada dia 13 de setembro de 2005, na assembléia Legislativa do Estado de São Paulo, foram aprovados os seguintes projetos de autoria do Deputado Estadual Sebastião Arcanjo: PROJETO DE LEI NO 1163 – Inclui a cerimônia da “Lavagem das Escadarias da Catedral de Campinas” no calendário Turístico do Estado. 126 Consorte escreve que “no dia 29 de julho de 1983, uma sexta-feira, o Jornal da Bahia, editado em Salvador, trazia em letras garrafais, como principal manchete da primeira página do seu primeiro caderno, a seguinte notícia: “candomblé rompe de vez com o sincretismo.” Ilustrada com foto de mãe Stella do Opô Afonjá e complementada em letras menores, por um resumo da matéria, de que se
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Contudo, Consorte observa que “a ruptura do sincretismo não implicava, porém, o abandono da fé católica, não se tratava, propriamente de um cisma.” (1999; p.73). Na realidade, isso significava ainda, conforme a mesma autora, que “o manifesto deslocava, porém a dupla pertinência do plano coletivo do terreiro para o plano individual, passando a ser assunto de foro íntimo, particular, perseverar naquela crença.” (1999; p. 73) Isto significava que acabariam as missas de iaô e as de sétimo dia coordenadas com os ritos do candomblé, e do mesmo modo deveriam ser revistas datas festivas do candomblé associadas aos santos católicos, como por exemplo, a lavagem do Bonfim. Contudo, se cada um quisesse acreditar em São Lázaro ou nossa Senhora das Candeias, era um problema particular. Interessada em saber o que acontecera após as tomadas de posições contra o sincretismo de 1983, Consorte em 1992 retorna ao campo e percebe que no “desenrolar das festas religiosas em Salvador, parecia que nada mudara. A lavagem do Bonfim continuava entregue às baianas com trajes rituais e suas quartinhas; o presente de Iemanjá continuava a ser entregue no dia consagrado a Nossa Senhora das Candeias e a Nossa Senhora da Purificação, em Santo
ocuparia mais amplamente em sua página 3, o articulista Vander Prata, seu autor: a notícia era daquelas a mexer com meio mundo na cidade que fora chamada de Roma Negra por uma das suas mais veneradas ialorixás, Mãe Aninha, a fundadora do Ilê Opô Afonjá. Estava escrito no resumo: São Jorge não é Oxossi, Santa Bárbara não é Iansã. O candomblé resolveu romper com o sincretismo religioso. Agora, nada de exploração folclórica. Nada de utilização em concursos oficiais ou propaganda turística. A II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, que se realizou em Salvador, de 17 a 23 deste mês ( julho de 1983. Nota nossa), ajudou na decisão. Quem assina o manifesto ao público e ao povo do candomblé , merece respeito: Menininha do Gantois, Stella de Oxossi(foto), Tetê de Iansã, Olga de Alaketo e Nicinha do BogumAxé.”- Consorte, Josildeth Gomes Em torno de um manifesto de Ialorixás Baianas contra o Sincretismo, in Faces da Tradição afro-brasileira. Organizadores: Carlos Caroso & Jéferson Bacelar. Editora Pallas, Rio de Janeiro. R.J.1999.
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Amaro; as missas das segundas-feiras na Igreja de São Lázaro, sincretizado com Omolu, continuava a ser freqüentadas por uma população numerosa ritualmente vestida de branco, sem falar da presença da pipoca por todo o lugar; a festa de São Roque, sincretizado com Obaluaiê, preservava as suas características tradicionais; a festa da Irmandade da Boa Morte/Nossa Senhora da Glória, não havia alterado seus rituais e a tradicional bênção das terças-feiras no altar de Santo Antônio, sincretizado com Ogum, depois da missa das 18 horas na Igreja de São Francisco, parecia cada vez mais concorrida, tendo se tornado o mais novo evento do calendário de Salvador” (1999; p.81) Ainda em 1992, Consorte, voltando a ouvir as sacerdotisas que haviam participado da carta em repúdio ao sincretismo, não encontrou unanimidade entre as sacerdotisas, quanto a essa questão, tampouco entre os adeptos do candomblé. Desta forma, deixa claro que este é um tema complexo e que as posições divergentes das sacerdotisas “revelam uma compreensão diversa da natureza da formação das religiões afro-brasileiras, com repercussões significativas para o debate e o encaminhamento da (re)construção da identidade do negro no Brasil. (1999; p.88) Chamou-se a atenção para o “abandono do sincretismo” na Bahia, porque aí é possível perceber quão profundas são as raízes das relações entre o candomblé e o catolicismo. Houve uma repercussão relevante deste tema no Sudeste e dos debates que aí ocorreram é que se originou a crítica à “Lavagem” de Campinas.
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Por um outro lado, quando Geertz escreve que ao realizar uma etnografia não se pode ficar somente numa “descrição superficial” ,isto é, numa primeira observação ingênua, mas que o importante é que seja feita uma “descrição densa”, isto quer dizer que o etnógrafo tem que procurar seu caminho nas “estruturas sobrepostas de inferências e implicações”. (1989, p. 6) Percebe-se, desta forma, que a “Lavagem” deve ser compreendida por aquilo que está insinuado nas suas entrelinhas e o que importa, ainda segundo o mesmo autor, é “escolher entre as estruturas de significação e determinar sua base social e sua importância.” (Geertz, 1989; p.7) Assim, torna-se importante averiguar em que medida o universo religioso afrobrasileiro goza de uma cosmovisão que possibilita realizar através do simbolismo religioso, uma relação da sua esfera de existência com a esfera mais ampla. Lody chama essa cosmovisão afro-brasileira de “mundovisões do povo de santo” que estão invariavelmente vinculadas ao sagrado, e seus símbolos aludem tanto à mítica e remota África quanto às mais recentes memórias afro-brasileiras. Conforme o mesmo autor, “Os modelos africanos transculturados e ricamente incorporados em cenário cristão legam forte e expressivo paralelismo entre santos da igreja e santos dos terreiros”. (1995; p.2) Essa correlação torna-se muito evidente na situação da diáspora em que “as identidades se tornam múltiplas.” (Stuart Hall: 2003) Contudo, mesmo havendo esse paralelismo, são os terreiros que preservam as histórias dos povos africanos “aqui dinamizados e interpretados em concentrações etnoculturais chamados Nações.” (Lody, 1995; p.2)
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Os terreiros de nação angola em Campinas, além dos rituais, preservam um núcleo de cultura em que se incluem as comidas, as músicas, a língua, a dança, o artesanato, enfim “ um elenco de motivos e realizações do ser africano no Brasil, e do ser afro-brasileiro.” (Lody, 199;, p.14) Além disso, há numa outra questão que envolve o povo do candomblé que é a integração em seu meio de lideranças de movimentos sociais, de forma que cresce no seu âmago uma “afirmação racial e de busca de ocupação do poder, unindo-se a diferentes segmentos do amplo processo de conscientização do negro.” ( Lody, 1995; p.2). Isso é um fato que também se concretiza nas ações dessas duas mametos. Mameto Dangoroméia e mameto Corajacy há muito se identificam com os movimentos políticos e sociais, tornando-se ativistas da luta anti-racista, pois nelas está inscrita a marca da mulher negra e do candomblé. Quando o candomblé chega à praça da catedral no sábado de aleluia, junto a seu cortejo vêm grupos de capoeira, de jongo, de tambores que trazem faixas e estandartes escritos em línguas bantas. Esses escritos retomam a uma África mítica que fornece histórias e referências que possibilitam reinterpretar a história oficial. Desta forma, a Lavagem faz mais do que mostrar seus cantos, danças e vestes do candomblé na praça. Ela tornou o invisível visível e, por isso, mostra a existência do negro, permitindo assim um retorno para si mesmos. Essa África construída na diáspora vem desse retorno. Stuart Hall fala que a cultura é uma produção dinâmica. “Tem sua matériaprima, seus recursos, seu “trabalho produtivo”. Depende de um conhecimento da tradição enquanto “o mesmo em mutação” e de um conjunto efetivo de genealogias.” Porém, há os desvios, que no caso foram causados pela diáspora negra e que são, de certa forma, ressarcidos por meio da cultura, em virtude de sua constante produção. Essa dinâmica, possibilita uma nova elaboração desse sujeito, surgindo daí um novo ser. Portanto, segundo Stuart Hall,
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“não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos de nossas tradições. Paradoxalmente, nossas identidades culturais, em qualquer forma acabada, estão à nossa frente. Estamos sempre em processo de formação cultural. A cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de se tornar.” (2003; p. 44)
Os elementos culturais, nas suas formas originais, passam pelo processo de tradução cultural, (Hall: 2003) desta maneira, a Lavagem com os estandartes e faixas escritas em línguas bantas, com as danças e os batuques apresentados em frente à igreja, assume outro significado que é o de “descolonizar as mentes”.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tratei nesta dissertação de alguns aspectos do candomblé angola em Campinas. Apesar de não ser um estudo comparativo, penso ser importante fazer algumas comparações que apresentem as semelhanças e as diferenças nos aspectos dos candomblés angola e queto, aqui estudados. No candomblé há uma preocupação primordial que é a manutenção, a preservação e a ampliação da força vital, pois é através dela que a vida andará acertadamente e as bênçãos dos inquices/orixás coroará o adepto de prosperidade. A força vital pode ser medida e manipulada pelo moyo/axé. A palavra axé - termo oriundo dos candomblés de origem nagô, grandemente difundido pela música popular elaborada por compositores baianos e pela literatura, principalmente pelos romances de Jorge Amado - é muito mais conhecida e utilizada que moyo, por todas as nações. Prandi escreve que axé pode ter muitos significados, a saber, pode ser bênção, poder, carisma, dádiva dos deuses, além de ser o conjunto material que representa os deuses e sinônimo de Amém; por fim, é a “força vital, energia, princípio da vida, força sagrada dos orixás.” ( 1999; p.103) Da mesma maneira Elbien, interessada com a importância do axé no candomblé queto, o define como “a força que assegura a existência dinâmica, que permite o acontecer e o devir... É o princípio que torna possível o processo vital” (1993; p. 39). É interessante notar que a inquietação com a força vital nos candomblés, também é uma prerrogativa de toda a África Negra. Da mesma maneira que os nagôs, também os bantos, conforme escreveu Tempels, tinham tal apreço pela preservação do 135
moyo - para eles a força vital- que a grande resistência que faziam em se tornarem cristãos não era em decorrência de terem que abandonar a poligamia que praticavam, mas, sobretudo, em virtude do “pavor” em renunciar ao culto de seus ancestrais e perderem com isso a própria vida. Desta maneira, o culto aos ancestrais se configura como uma questão de vida ou morte. A vida torna-se, neste caso, o bem supremo de todos os bantos. 127 Nos candomblés de origem banta, esta força vital é chamada de moyo e é ela que liga os ancestrais aos seus descendentes, o inquice àquele que foi iniciado, permitindo que a dinâmica da vida se realize positivamente de maneira a proporcionar uma vida plena ao adepto. Neste sentido, tanto o candomblé angola quanto o queto são semelhantes em sua origem, que se efetiva na mesma procura, qual seja, a preservação e o crescimento do moyo/ axé. Conforme exposto, celebrar a vida como o bem mais precioso é um requisito básico no candomblé. Por ser assim, o advento da morte causa perturbação na harmonia do grupo e exige rituais específicos, tanto nos candomblé angola quanto nos queto (sirrum/axexê) a fim de reabilitar a simetria entre o mundo dos vivos e o dos mortos.
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Segundo Tempels, o conceito de vida para os Bantos tem um significado ontológico. Cada ser é uma força da vida, e cada força da vida é um ser. A noção da vida que é fundamental da ontologia banta, é uma noção universal suprema, e é aplicada a tudo que existe : Deus, os espíritos, os mortos, os homens, os animais, as plantas e todos os seres materiais. Ainda conforme Tempels, “ “ens” é para nós uma realidade estática, para os negros é a força, que é uma noção e uma realidade dinâmica”. (tradução livre ) La vie du Muluba, raffermie, sauvée par l'intervention du devin, kilumbu, le médecin magique et les défunts, court un grand risque s'il abandonne tous ces aides et moyens, pour devenir chrétien: ce n'est pas la polygamie, ni le soi; disant conservatisme et leur attachement aux coutumes anciennes qui est la grande raison pour laquelle les païens n'osent pas devenir chrétiens, mais c'est la peur de perdre leur vie. La question est pour eux une question de vie ou de mort[([47])]. La vie est donc le grand motif de tout agir essentiel des païens[([48])]. Et, chez les Bantu, ce motif est enraciné dans la connaissance ontologique des êtres, des vivants, des morts, des êtres de rang inférieur, de tout l'univers. On peut bien dire que la vie est le bien suprême de tous les hommes; que ce bumi ou cette théorie de la vie des Bantu les assimile précisément à toute l'humanité. C'est vrai dans un certain sens[([49])) PLACIDE TEMPELS - MELANGES DE PHILOSOPHIE BANTU - RECUEIL DE TEXTES PREPARES PAR A.J. SMET C.P. Première partie - L'idée fondamentale de l'ontologie bantu.
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Os espíritos primordiais, isto é, aqueles que deram origem aos primeiros clãs, eram cultuados pelos bantos e pelos nagôs (bakulo/egungum), porém, no Brasil, assim como em África, o culto de egungum desenvolveu-se concomitantemente ao culto de orixás, concebeu uma estrutura separada do candomblé queto, constituiu-se uma comunidade própria e realiza ritos específicos com o objetivo de reintegrar os ancestrais religiosos à comunidade dos vivos. Desse modo, conquistou uma reputação que lhe deu mais apreço que o culto dos bantos, embora na origem a importância dada aos egunguns e aos espíritos dos mortos fossem semelhantes. Assim, as almas cultuadas nos Cruzambê das almas ou no Inso Yombeta das casas angola passaram a ser comumente chamadas de egum ou como no Ilê Axé Arolê, em que foi realizada a junção do Inso Yombeta com Ile Ibo Aku ( casa dos culto dos mortos). As almas dos candomblés angola passaram a dividir o espaço com o assentamento de egungum, cujo culto foi totalmente importado de casas de egungum provenientes de Itaparica. Uma outra categoria de seres ligados à natureza e cultuados no candomblés são os inquices/orixás que, ao se transferirem para o Brasil através da diáspora, sofreram ressignificações. Os povos Bantos assim como os nagôs acreditavam em forças da natureza, isto é, nas matas, rios cachoeiras, fogo, ar, terra, água, raios, ventos e tempestades. Os nagôs tinham os Orixás que representavam reinados em terras iorubas, famílias reais, e seus mitos contam a história de guerras e conquistas de seus povos. Esses reis e rainhas em terras africanas constituíram-se em ancestrais divinizados e, com a diáspora, os orixás passaram a ser entendidos como forças da natureza, uma vez que ficaram desprendidos da sociedade a que pertenciam e que organizavam por meio de seus mitos.
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Por outro lado, também os bantos, conforme escreve Girotto, “rompido os laços com a ancestralidade,(...) reinterpretam o conceito de nkisi (inquice), alterando o foco de importância, de culto de mortos para o de espíritos da natureza que já praticavam em África.” ( 1999; p.276) ( grifo nosso) Da mesma forma, também os assentamentos dos orixás eram muito parecidos com a representação material dos inquices, isto é, enquanto símbolo e maneira de confeccionar. (Girotto, 1999). Nas palavras do autor: “Quando se encontram no Brasil inquices e orixás que já tinham em África muitas coisas em comum, transformam-se, da seguinte maneira: “nkisi (objeto confeccionado) passou, no Brasil, a designar o ”Ser Força” que energiza a sua representação material (assentamento), símbolo que contém elementos capazes de captar e armazenar, através de ritos, uma minúscula parcela de sua energia.” ( 1999; p. 276) Como se pode verificar, inquices e orixás puderam ter uma correspondência que se baseia principalmente no campo da natureza em que atuam. (Ver Tabela de correspondência entre Orixás e Inquices) No trabalho de campo, uma mameto expressou sua visão sobre Inquice/orixá da seguinte maneira: “Adoro ser filha-de-santo e sou muito feliz em ser filha de Iansã. Quando eu fiz santo, fiz queto. É outro conhecimento, é outra coisa, mas eu passei para angola e minha mãe não mudou a dijina, a minha dijina é a mesma. Hoje a gente já sabe que não é mais Iansã, é Matamba, mas eu não fico brigando com ninguém, tem que ser isso ou aquilo, não tem que ser Iansã tem que ser
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Matamba. Eu, para mim meu nome é Antônia, que minha mãe me deu, minha mãe de santo me deu Oyá Corajacy, meus amigos me chamam de Cora; e outros, Toninha. Eu sei que sou a mesma. Então quando eu discutia religião... Eu não discutia religião, eu acho que a gente não tem que discutir nação. A gente tem que discutir orixá. Eu sei que orixá/inquice é a mesma coisa. Você chama a pessoa do jeito que tem que ser, eu chamo da minha, e tudo é uma coisa só. Porque se eu for ao queto cantar queto dependendo o quê, meu santo vai responder sim, porque não vou dizer que não vai. Se eu for ao jeje cantar, ela responde, então, eu acho que nós não temos que ficar discutindo nação, porque nós somos do orixá. “( mameto Corajacy) Com suas palavras essa sacerdotisa traduz de uma maneira muito peculiar o sincretismo entre as nações de candomblé que ora é inquice, ora é santo e ora é orixá.
Tabela de correspondência entre Orixás e Inquices.128 NÀGÓ BANTU -------------------------------------------------------------------------------------------
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Olórun , Olódùmare
Zambi, Zambiapongo
•
Èsù, Bará, Elégbára
Aluvaiá,Bombogira, Jiramavambo, Mavambo
•
Ògún
Incossimucumbe,Incossi, Mungongo
•
Òsóòsì
Matalambô, Tauamim
Dados retirados de: Giroto, Ismael. Tese de doutorado apresentada ao Departamento de Antropologia da FFLCH da USP, sob orientação do Prof Carlos Moreira Henriques Serrano. 1999
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•
Òsanyin
Katende
•
Obalúayé
Burungunço, Cuquete
•
Omolu
Cafunge, Quingongo
•
Sànponná
Kaviungo
•
Òsùmàrè
Angorô
•
Nana Buruku
Zumbarandan
•
Òsun
Dandalunda, Kissimbi
•
Yemonja
Kaitumbá, Micaiá
•
Oyá
Mtamba, Bamburucema
•
Sangó
Zaze, Luango
•
Òbà
Caramoce
•
Yewa
Cuiganga, Kissanga
•
Ìbejì
Vungé
•
Írókò
Kitembo
•
Olóòkun
Kalunga
•
Òrìsànlá
Gangarumbanda, Lembarenganga
•
Òsàlufón
Gangarumbanda, Lembarenganga
•
Onile
Tateto Kisanga Ria - Incungo
•
Iku
Tateto Kisanga Ria- Kalunge
Outra questão relevante na relação entre as nações angola e queto é sobre Exu. Com expusemos no capítulo II, o Aluvaiá/Exu no angola assume duas características, uma se assemelha ao orixá Exu da concepção nagô e outra em que ele se revela como espírito de pessoas que tiveram uma vida de moral duvidosa e hoje trabalha incorporado nos seus médiuns para atender aos pedidos dos clientes. Embora esta diferença entre o angola e o queto exista nos terreiros mais tradicionais, o Exu espírito que incorpora nas
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festas e dá consultas, não é prerrogativa apenas dos terreiros de angola, pois um grande número de terreiros de nação queto também trabalha com estes Exus, além de possuírem como os terreiros de angola seus assentamentos diferenciados do assentamento do Exudo-santo. Além do mais, muitos dos seus filhos têm assentados seus Exus de rua e Pombajiras. A questão do sincretismo no candomblé, não só entre os diversos elementos das nações, mas também com os santos católicos, como vimos, é uma questão que exige muito cuidado ao ser analisada. Percebe-se entre os sacerdotes entrevistados, seus filhos de santo, enfim, entre os adeptos do candomblé, que todos sabem, por exemplo, que o inquice Matamba não é Iansã e também não é Santa Bárbara, mas que em alguns momentos podem ser uma só. Os assentamentos em muito se parecem quanto aos elementos usados na sua composição, e as danças dos inquices e dos orixás são diferenciadas entre as nações quanto aos movimentos de corpos, as músicas e quanto ao ritmo e os toques dos atabaques, porém reproduzem as mesmas histórias míticas. As duas mametos referidas nesta dissertação, por causa de uma forte aliança entre elas, lavam, no sábado de aleluia, as escadas da Catedral de Campinas, que tem como padroeira Nossa Senhora da Conceição. Reproduzem de certa forma a lavagem baiana de Nosso Senhor do Bonfim, porém em nome de Kaiátumbá realizam uma inversão de posturas e valores. Ao efetuarem os ritos religiosos do candomblé, purificam a igreja ,invertendo e reinventando os papéis. A festa na praça, embora seja realizada pelas duas mametos, promove o candomblé campineiro independente de linhagens e nações. Contudo, a festa se efetiva de maneira muito mais ampla, porque abrange diversos aspectos das questões antiraciais e da valorização da cultura afro-brasileira. Torna visível o negro.
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O que percebi estudando estes candomblés campineiros de nação angola foi que ser mais ou menos puro significa obedecer a uma medida de pureza que varia conforme os interesses dos grupos envolvidos. Concordando com Stuart Hall: “Sabemos que o termo ‘África’ é, em todo caso, uma construção moderna, que se refere a uma variedade de povos, tribos, culturas e línguas cujo principal ponto de origem comum situa-se no tráfico de escravos.” (2003; p. 31). Neste sentido, sujeitos que anteriormente se encontravam disjuntivos geográfica e historicamente, tiveram suas trajetórias cruzadas por intermédio da convivência espacial e temporal a que a diáspora os obrigou. Esta “zona de contato” (Hall; 2003) proporcionou uma mistura específica da combinação de santos católicos, orixás, inquices e vodus que é observada no Brasil, embora possam ser encontrados sincretismos semelhantes em toda a América Latina. Porém os grupos reorganizados em torno das nações de candomblé procuram afirmar suas identidades. Conforme Stuart Hall, “as culturas, é claro têm seus “locais”. Porém não é mais tão fácil dizer de onde elas se originam.” (2003; p. 36). Mesmo assim, o candomblé angola procura nos reflexos pálidos dos antigos povos bantos afirmar sua identidade. É uma questão que se torna importante na medida em que a diferença “é essencial ao significado, e o significado é crucial à cultura.” (Hall, 2003; p. 33) No entanto, o conceito binário de diferença em que a exclusão do outro se torna imprescindível, não se encaixa no caso das nações de candomblé, pois, embora haja um lugar de origem, “sempre existe algo no meio” que as torna singularmente diferentes das primordiais. A diferença aqui não pode seguir padrões rígidos de inclusão e exclusão, mas uma relação com o outro mais fluida em que as fronteiras podem ser construídas e descontruídas continuamente, e que mostram a posição de relação com o outro.
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Embora Stuart Hall escreva sobre culturas caribenhas na Europa, acredito que se encaixe muito bem a utilização da noção derridiana de différance na questão de afirmação da identidade do candomblé angola em Campinas. De maneira que o que faz sentido na determinação de uma nação de candomblé é captado no processo mais fluido do “fazer sentido na tradução”. Desta forma, todas nações são híbridas. Não obstante a formação sincrética estabeleça entre os vários elementos inclusos relações desiguais por causa das relações de poder, hoje em dia o candomblé angola tem uma luta cultural que o permite fazer uma revisão e a reapropriação de seus elementos de origem banta. O que sugere que a cultura está sempre em processo de produção. As sociedades das quais se originaram as diversas nações do candomblé foram muitas, suas origens não são únicas, tanto que algumas nações são oriundas de povos bantos e outras de sudaneses, termos que englobam inúmeros grupos negros africanos. Por conseguinte, é importante perceber que a produção diaspórica da cultura é invariavelmente “impura”. Essa impureza, Segundo Hall “tão frequentemente construída como carga e perda, é em si mesma uma condição necessária à sua modernidade.” (2003, p.34) Assim, o candomblé angola em Campinas sobrevive, resiste e se fortifica, ao mesmo tempo em que se constitui mediante uma grande plasticidade, vai à procura de uma África banta, mítica, que não é um ponto antropológico fixo, mas “hifenizada”, afro-brasileira, resultado
da diasporização que, segundo Hall, “foi apropriada e
transformada pelo sistema de engenho do Novo Mundo”. (2003, p.41) Desta forma, os estandartes e as faixas escritas em banto que vêm puxando o cortejo do candomblé até a praça da Catedral Metropolitana de Campinas retomam essa África metafórica que torna pronunciáveis o negro e o afro-brasileiro, por uma “lógica diferente” e permitem não-ditos virem à tona, as memórias subterrâneas serem
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desenterradas, mostrando uma cultura afro-brasileira, que diz “não” à marginalização e à subordinação. A lavagem anarquiza, subverte e dá como resposta ao racismo manifestado pelo homem
que
agrediu
mameto
Dangoroméia,
na
praça,
uma
“política
de
reconhecimento”, ao lado das lutas contra o racismo e pela justiça social. (Hall, 2003; p.46)
144
ÍNDICE E CRÉDITOS DAS ILUSTRAÇÕES 20
1.
Desenho de Carybé incluso no livro “As sete portas da Bahia” 2. Desenho de Carybé incluso no livro “As sete portas da Bahia” 3. Região de governo de Campinas – distribuição populacional. Fonte IBGE 4. Primeiro barracão de candomblé de Campinas 1980 foto baba Tologi 5. Frente do primeiro barracão de candomblé 1980 - foto baba Tologi 6. Interior do salão do primeiro barracão de candomblé de Campinas, com peji, cadeira de orixá e oferendas – 1980 – foto baba Tologi 7. Lembrançinha da abertura do primeiro terreiro de candomblé de Campinas 8. Planta do terreiro : Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandanlunda 9. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda2005- frente atual. Foto Ivete M. Previtalli Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda- 2005 Corredor de entrada 10. A o fundo a entrada do salão. Foto Ivete M. Previtalli 11. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda2005- Entrada do barracão.Foto Ivete M. Previtalli 12. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda2005- salão de festas. Foto Ivete M. Previtalli 13. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda2005- detalhe das paredes internas do salão. Foto Ivete M. Previtalli 14. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda2005- casa de caboclo 15. Inzo dia Roxe Mokumbo ni Dandalunda2005- Assentamento do Inquice Tempo e inquice Angorô. Foto Ivete M. Previtalli 16. Ilê Axé Arolê. Entrada do salão Foto Ivete M.Previtalli
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17.
Ilê Axé Arolê. Coluna central. Foto: Ivete M. Previtalli 18. Ilê Axé Arolê. Detalhe da coluna central. Foto: Ivete M. Previtalli 19. Ilê Axé Arolê. Casas de santo Foto: Ivete M. Previtalli 20. Ilê Axé Arolê. Casa de egungum e das almas. Foto: Ivete M. Previtalli 21. Ilê Axé Arolê. Cantinho da umbanda. Foto: Ivete M. Previtalli 22. Ilê Axé Arolê.Detalhes do cantinho da umbanda. Foto: Ivete M. Previtali 23. Ilê Axé Arolê. Assentamento Iyámi. Foto: Ivete M. Previtalli 24. Ilê Axé Arolê. Assentamento da prosperidade 25. Ilê Axé Arolê. Assentamento inquice Tempo. Foto: Ivete Miranda Preitalli 26. Desenho Carybé. In: As sete portas da Bahia 27. Gráfico: Grupos aparentados de A (Iniciado no candomblé) 28. Gráfico :Possibilidades de parentesco com “A” em que não há proibição do incesto 29. Gráfico: casos em que a proibição do incesto não permite que “B” esteja localizado na organização familiar por causa de seu parceiro sexual “A” 30. Gráfico: Família biológica de mameto Dangoroméia 31. Gráfico: Família de santo cruzada com a família biológica de mameto Dangoroméia 32. Gráfico: Família de santo cruzada com família biológica de mameto Corajacy 33. Gráfico: Família de santo cruzada com família biológica de tateto Ubiacylê 34. Gráfico: Família de santo cruzada com família biológica de tateto Gitalanguange
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91 91 92 92
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35.
I- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Gitalanguange
36.
II- Diagrama da família de santo de Tateto dya N’kisse Ubiacylê
37.
III - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Dangoroméia
38.
IV - Diagrama da família de santo de Mameto dya N’kisse Corajacy
95
39. 40.
Diagrama do candomblé de angola de Campinas.
95
41. 42. 43.
Desenho de Carybé incluso no livro “As sete portas da Bahia” I.Prospecto da Lavagem da Catedral Metropolitana de Campinas. II. Prospecto da Lavagem da Catedral Metropolitana de Campinas. Tabela de Correspondência entre Orixás e Inquices
94
94
103
112 128 139
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