BOSI, Viviana. Poesia Em Risco
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Descrição: Tese de Viviana Bosi sobre poesia contemporânea (a partir dos anos 60)....
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
POESIA EM RISCO (ITINERÁRIOS A PARTIR DOS ANOS 60)
VIVIANA BOSI
Trabalho apresentado no âmbito do concurso de Livre-docência junto ao Departamento de Teoria Literária e Literatura Comparada
SÃO PAULO 2011
Índice:
Apresentação................................................................................ p. 3 Introdução: marcos iniciais...........................................................p. 7 O fixo e o fluxo: notas sobre tempo e forma em Augusto de Campos e Ferreira Gullar...............................................................................p. 47 Artes plásticas e poesia nos anos 70 no Brasil..............................p. 63 Poesia auto-móvel.........................................................................p. 81 Objeto urgente...............................................................................p. 102 Ana Cristina Cesar: “Não, a poesia não pode esperar”.................p. 122 Começa na lua cheia e termina antes do fim.................................p. 151 O sujeito-pedra: tornar-se coisa.....................................................p. 168 As “idéias-dente” de Sebastião Uchoa Leite.................................p. 186 Rubens Rodrigues Torres Filho: verso e avesso...........................p. 197 As faces da musa em Francisco Alvim.........................................p. 211 Poesia em risco nos anos 70..........................................................p. 233 Apêndice........................................................................................p. 278 Anexos...........................................................................................p. 326
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Apresentação
I dwell in Possibility – A fairer House than Prose More numerous of Windows – Superior – for Doors – Of Chambers as the Cedars – Impregnable of Eye – And for an Everlasting Roof The Gambrels of the Sky – Of Visitors – the fairest – For Occupation – This – The spreading wide my narrow Hands To gather Paradise –
(Emily Dickinson)
Não me parece haver síntese mais perfeita do que poderia ser a leitura interpretativa de poesia do que esta representação metafórica de Emily Dickinson. A dinâmica interdependente entre o empenho construtivo que confere alicerce material e o ganho irrestrito para a expansão de sentidos acompanha a comparação de sua atitude poética com uma moradia de muitas portas e janelas, de cômodos sólidos mas de teto descerrado para o céu, uma vez que tão somente a resistência das paredes permitiria a possibilidade de tantas saídas para o lado e para cima. Que as mãos estreitas possam, quando abertas, apanhar o Paraíso, é o paradoxo da linguagem poética, “fonte que no finito colhe o infinito”, conforme a definiu Croce. Entrar como visitante convidado no interior da casa, outrossim fechada para o ponto de vista do olhar externo, acorda um apelo indeclinável, mesmo conhecendo de antemão a dimensão instável de tal habitação, cujo centro pode ser o ponto de fuga do horizonte, o zênite celeste ou o reflexo escuro de um poço. Sob a égide deste emblema, o trabalho que se segue constitui uma tentativa de edificação de questões suscitadas pela leitura de alguns poetas brasileiros cuja obra se desenvolve ao longo de certo recorte temporal, em sentido largo. Os encontros com a obra de cada um deram-se paulatinamente, de modo que cada estudo, independente, observou seu próprio ritmo. Poder-se-ia, portanto,
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continuar ainda longamente a acumulação de mais e mais poetas caso fosse a intenção deste conjunto de ensaios o panorama cabal de uma época. Mas, num dado momento, sucederam-se cristalizações de problemas teóricos. A necessidade de cesura se impôs, uma vez que alguma organicidade finalmente se produzia, sem prejuízo da vocação assistemática da qual se srcinaram as leituras singulares. Agora, pretendendo-se reuni-los num volume, esperamos que os leitores divisem certa consistência de perspectiva. Embora autônomos, os ensaios não são estanques, complementando-se de várias maneiras e remetendo-se um ao outro. Não há ordem sequencial, seja cronológica, seja de desdobramento lógico. Dispôlos em sucessão foi um esforço bastante artificial. Confio, contudo, que o trabalho não pareça eclético ou dispersivo, pois foi nossa intenção percorrer determinados trilhos críticos. Isto é, aceitamos alguns postulados e rejeitamos outros, sem precisar desenvolver ou explicitar um sistema ao qual se submeteria cada análise, mas supondo que emerja afinal coerência. Assim, para cada poeta (ou tema), buscou-se captar e perseguir um feixe de indagações correlatas que conduzisse para algum centro de ignição interpretativa, sem esgotar nem de longe as possibilidades de compreensão de sua obra. Tampouco houve qualquer preocupação em ater-se a uma única mirada hermenêutica. Colocar-se sob uma teoria prévia que conferisse pedigree aos esforços interpretativos, embora ambição louvável a ser considerada ao longo da vida, não convinha a este tipo de investigação, dado o caráter diversificado de nossas preocupações relativas a cada objeto. Desde o começo da pesquisa, estávamos decididos a não nos submetermos a um arcabouço totalizante, por mais sedutor que parecesse. Advertia Schlegel (1798) ao estudioso de poesia: “É igualmente mortal para o espírito ter um sistema ou não ter sistema algum. Ele terá portanto de se decidir por uma combinação de ambos.” (1994, frag. A 53) O intento que nos acompanha desde a pesquisa de doutorado é justamente apontar incongruências em conclusões apocalípticas, que enxergam na arte do capitalismo tardio apenas pastiche e ecletismo conformista. Ao mesmo tempo, não compartilhamos das euforias pós-modernas, que vislumbram nas obras atuais a liberdade das derivas e das misturas fragmentárias e velozes, que nos transportariam a algum reino efervescente de virtualidades sempre em formação. Seria ingênuo ou pretensioso recusar as interpretações dos grandes teóricos que 4
tratam de nosso tempo, das quais partimos mais ou menos conscientemente, mas que são articulados o mais das vezes sob a hegemonia dos estudos particulares, e costurados por dentro. Por vezes, partes de um pensamento são aproveitados, quando nos convém, sem que concordemos necessariamente com todas as conclusões do autor. Dito isto, porém, é necessário acrescentar que redigimos uma Introdução, na qual procuramos situar aspectos do período estudado, em suas inquietações culturais. Nela, adiantamos linhas de convicção que irão permear as leituras de alguns dos poetas escolhidos. Na verdade, esse texto desempenha também o papel de conclusão parcial. A seguir, os onze ensaios que constituem o corpus da tese debruçam-se sobre obras de poetas que começaram a publicar seja ao redor de meados dos anos 50 do século passado (os dois mais velhos, Augusto de Campos e Ferreira Gullar), seja à volta do final da década de 60 ou começos de 70. Os dez primeiros estudos tratam ora de poetas singulares ora estabelecem paralelos entre eles à volta de determinado tópico. O décimo primeiro ensaio, maior do que os outros, de certa forma continua o papel da Introdução, mas afunilando-se na direção da poesia marginal: mais geral, gira à volta do “poemão” dos anos 70, sem deter-se em nenhuma obra em particular. Por fim, o Apêndice sobre as publicações periódicas (que pertence, como sub-item, a esse último texto) tem uma personalidade distinta do restante da tese, porque se parece antes com uma lista comentada de jornais e revistas do que com um estudo organicamente interpretativo. Embora haja algum exame analítico, pretendeu-se sobretudo registrar e comentar o rol de publicações a fim de reforçar hipóteses que havíamos espalhado pelo trabalho. As reproduções anexas de capas e textos internos de diversas dessas edições possuem a função de fazer reviver o espírito da época para o leitor atual. Vários poetas representativos estão ausentes. Tal silêncio deve-se a fatores distintos: alguns há que mereceram atenção crítica de muita qualidade, de forma que nada de minimamente relevante teríamos a acrescentar à sua fortuna bibliográfica; outros, talvez, não despertaram em nós suficiente acicate: futuros leitores terão maior capacidade de penetração em sua obra. Ou ainda, há poetas com quem precisaríamos conviver mais longamente para pretender comentá-los. Enfim, nosso propósito consiste em assinalar pontos marcantes num mapa de 5
grande variedade de paisagens, na esperança de guiar os possíveis leitores por locais especialmente estimulantes, procurando trajetos alternativos. Uma observação sobre a bibliografia. Embora tenhamos consignado (quase) todos os livros e artigos aos quais nos referimos ao longo do trabalho, não padronizamos as citações. Por falta de alento regulador, em certos estudos as indicações bibliográficas foram colocadas ao pé de página enquanto em outros comparecem ao final do texto. Diferentemente de certas livre-docências exemplares, que representam o ápice da realização de uma trajetória de pesquisa acadêmica, este trabalho que ora submeto à apreciação pretende ser parte de um percurso a meio de seu desenvolvimento. Oxalá a ocasião da defesa concretize uma oportunidade de diálogo para aprendizado e futuras reflexões. Por mais árduos que sejam nossos esforços, temos consciência plena de que esses modestos resultados não correspondem nem de longe à magnitude da epígrafe que ousamos escolher, sem que, com isso, desistamos de continuar a admirá-la, almejando que prossiga à nossa frente.
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Introdução: marcos iniciais Tomorrow is easy, but today is uncharted, Desolate, reluctant as any landscape To yield what are laws of perspective
John Ashbery1
Décadas são difíceis de recortar, pois a história se desdobra em camadas. Conforme pondera Gramsci (1968), “um determinado momento histórico-social jamais é homogêneo: ao contrário, é rico de contradições. Ele adquire ‘personalidade’, torna-se um ‘momento’ do desenvolvimento, graças ao fato de que uma certa atividade fundamental da vida nele prevalece sobre as outras, representando uma ‘ponta’ histórica.” (p. 5). É, assim, importante puxar esta “ponta” para abarcar o contexto brasileiro em dimensões mais amplas, tendo-se sempre em vista a necessidade de, ao situarse frente à poesia dos anos 70, rastrear os centros nervosos vitais que ali se colocam desde pelo menos o final dos anos 50, e lembrando igualmente que certas obras escritas no início da década podem só ter vindo a lume no início dos anos 80. Ao repensar aquele período, tentamos segurar relativamente a hoje uma extremidade do fio nas mãos. O conceito de década nem sempre é funcional, pois um ciclo cultural específico pode se desenrolar com pontos fortes de ruptura em momentos diferentes. Embora seja, em princípio, problemático propor-se um contorno temporal, podemos procurar a gênese de certas características centrais a esses anos para compreender como neles se chegou e afinal se saiu, pois alguns fatos se srcinaram muito antes e outros terminaram bem depois do período em tela, ou continuam a se desdobrar. Podemos atribuir nomes a duas correntes principais que deságuam nos anos 60 e lá se transfiguram: uma tendência que chamaremos de “construtiva”, proveniente dos anos desenvolvimentistas da década de 50, e que esteve em seu ápice até mais ou menos 1962, avançando até hoje diluída e transformada. E outra, característica da conturbada década de 60, mas gerada bem antes, que chamaríamos de tendência “nacional-popular”, ou “militante”, que dura 1
Trecho do poema “Self-portrait in a convex mirror” (1975).
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mais ou menos até 1968 ou 1969, quando se engruvinha em um nó de problemas, a anunciar uma nova inflexão - e então começam os anos 70, que, por sua vez, entram anos 80 adentro, possivelmente até as “diretas”. Na virada entre os anos 60 e 70, o binômio nem tão paradoxal de “milagre econômico” (aquisição de bens de consumo pela classe média, aumento da 2
indústria nacional, entrada da comunicação de massa) e fechamento político (desmonte das forças de oposição e do pensamento crítico, repressão, AI-5 e leis complementares) – enfim, a chamada “modernização conservadora” - trouxe como uma de suas conseqüências o exílio e a impotência de grupos mais intelectualizados em relação aos projetos políticos e debates sobre o país, quer para os que ficaram, quer para os que viajaram. Se, de um lado, este foi o período de acirramento da luta clandestina, de outro, aumentava em alguns a desconfiança acerca dos discursos e tentativas de ação, seja os revolucionários, seja os ufanistas de direita, reformistas ou nacionalistas de esquerda. Crescia o desalento (ou “sufoco”, como então se dizia) também em relação às explicações da realidade, cada vez mais difícil de nomear, desproporcionalmente mais complexa do que as análises que se propunham a examiná-la. Ditadura, nacional-populismo ou guerrilha pareciam opções ideológicas pouco atraentes para muitos: “The best lack all conviction, while the worst/ Are full of passionate intensity” (Yeats, “The Second Coming”). Se há, de um lado, uma literatura irônica de vôo curto, sem horizontes para além do reconhecimento do cotidiano opressivo, há também uma bolha de energia criativa que leva à euforia maníaca alternada à depressão, quando os projetos não se realizam por falta de campo de possibilidades (tempo bipolar). Localizamos esse momento da década de 70 no Brasil como balizado: 1) politicamente, no início, pelo endurecimento da ditadura, a partir de 68, e, no final, pela passagem para a democracia em 82; 2) economicamente, num arco mais amplo, que se traça entre 1955 e 1979, quando o PIB brasileiro teve a maior variação positiva do mundo. O começo do período é conhecido como a fase desenvolvimentista, representada pela era JK. Depois, entramos nos anos da ditadura militar, cujo auge, do ponto de vista econômico, foi o “milagre brasileiro” (1968 – 1973), interrompido pela crise do petróleo, mas depois 2
Para mencionar balizas bem concretas, lembremos a construção da Transamazônica, a
popularização da TV colorida em tempos de Copa do Mundo, a inauguração da Embratel no Brasil da época, assim como a grandiosa construção da usina binacional de Itaipu, iniciada em 74 e inaugurada em 82, por Figueiredo e Stroessner.
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retomado a fórceps, à custa do endividamento do país, e por fim, a crise do final da década, na qual os defeitos do modelo vêm à luz, coincidindo com a transição para a democracia representativa – que os militares, desgastados, pareciam quase desejar. Em 1975, iniciava-se, com o presidente Geisel, a distensão “lenta e gradual” rumo a uma maior democratização (depois da sucessão de mortes e desaparecimentos, culminando com o pseudo-suicídio de Vladimir Herzog na prisão). Em 1979, num típico arroubo, o último presidente militar, General Figueiredo, resume esse anseio com a frase que se tornou célebre: “Quem for contra a abertura democrática, eu prendo e arrebento”. Estabelecia-se, então, a fase da democracia liberal. Do ponto de vista cultural, a virada dos anos 60 para os 70 é um momento de inovação em todas as artes. As referências inaugurais importantes no Brasil seriam: o “penetrável” de Hélio Oiticica denominado “Tropicália” (1967), os filmes “Terra em Transe” (1967), de Glauber Rocha, e “Macunaíma” (1969), de Joaquim Pedro de Andrade, as encenações de “O rei da vela” (1967) e “Roda viva” (1968), pelo Teatro Oficina, dirigidas por José Celso Martinez Corrêa, assim como várias canções emblemáticas veiculadas nos festivais de música popular brasileira: “Alegria, alegria”, de Caetano Veloso e “Domingo no parque” de Gilberto Gil (ambas de 1967), “Sabiá” (1968), de Chico Buarque e Tom Jobim, “Tropicália” (1968), de Caetano Veloso, “Construção” (1971), de Chico Buarque, dentre tantas outras significativas. Contudo, não se pode afirmar que iremos encontrar marcos iniciais para a literatura da época. Na forma narrativa, embora possamos arrolar, como exemplos, romances e contos muito representativos das experiências históricas do período, e que desenvolvem técnicas experimentais, não afirmaríamos que houve uma transformação evidente. Livros como PanAmérica (1967) de José Agrippino de Paula, Fluxo-floema (1970) de Hilda Hilst, Me segura qu’eu vou dar um troço (1972) de Waly Salomão, Catatau (1975) de Paulo Leminski, Bar Don Juan (1971) e Reflexos do baile (1976) de Antonio Callado, Armadilha para Lamartine (1976) de Carlos Süssekind, A festa (1976) de Ivan Ângelo, Quatro olhos (1978) de Renato Pompeu, Lavoura arcaica (1978) de Raduan Nassar, os contos de Caio Fernando Abreu, João Gilberto Noll, Rubem Fonseca, João Antonio e Sérgio Sant’Anna, dentre outros, acentuam a indeterminação de gêneros, a mistura de vozes e de estilos em um mesmo texto, o pastiche, a fragmentação – 9
características consideradas “pós-modernistas” como extensão radicalizada do moderno – embora a temática urbana tal como neles se apresenta seja mais evidenciada. Tudo isso, além da predominância da cultura pop, confluirá no tropicalismo, com seus aspectos de teatralização, que irá catalisar e ser catalisado pela experimentação nas artes plásticas, pelo cinema novo, e pelo surgimento de grupos de teatro com ênfase na criação coletiva. Essa estética irá igualmente influenciar a poesia, com a reunião de artistas em grupos articulados para a feitura coletiva de livros e revistas e a apresentação de saraus, com músicas e recitais, seguidos de performances ou happenings (como é o caso das Artimanhas promovidas pelo grupo carioca “Nuvem cigana”). Se não se pode falar em inovação radical, mas em aguçamentos de tendências próprias ao moderno, há no entanto tentativas – frustradas ou não – no sentido de realizar um poema coletivo (com a participação de muitas vozes), inclusivo tanto em relação ao leitor quanto a outras linguagens. Para Octavio Paz aquele é o momento final da arte moderna, uma vez que se chegou definitivamente a uma “atitude negadora da obra” (1978, p.63) que recusa tanto o futuro como lugar utópico quanto a tradição como referência. Adaptando as idéias do poeta e crítico para o contexto brasileiro, Heloísa Buarque de Hollanda (1980) observa que uma parte considerável da geração que emergia não era engajada politicamente no sentido militante usual, do tipo que acreditasse num projeto coletivo, fosse no sentido marxista do termo (de sacrifício da vida pessoal pela revolução), fosse no sentido capitalista (de economia e disciplina burguesas), fosse em algum sentido religioso (ao crer em valores eternos que fundamentassem a existência): concentrava-se na vivência do momentâneo (p. 111-112). Paz os chama de “rebeldes”, ao invés de “revolucionários”. Cito: “a rebelião da juventude é de natureza corporal e erótica, exatamente porque exalta o presente, o aqui e agora”, e ainda o grupo dissidente e o subversivo no cotidiano, mudando o paradigma do futuro para o presente, 3 assim como do partido político 3
Entrevista para a Revista Anima (Rio de Janeiro, n. 2, abril 1977), reproduzida por Carlos Alberto Messeder Pereira em Retrato de época: poesia marginal – anos 70 (1981), p. 92. Tema abordado por Heloísa Buarque de Hollanda em Impressões de viagem (CPC,
vanguarda e desbunde: 1960-1970) (1980). Ver também, especialmente, os vários ensaios do próprio Octavio Paz na Parte III de Corriente alterna (1978) e “O ponto de convergência”, em Os filhos do barro (1984).
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para o protesto das minorias, que preferem, no lugar da militância tradicional, a ação cultural, artística e festiva. Esse “ocaso do futuro” vem acompanhado da valorização do desejo e da imaginação, que substituem o trabalho de criação de formas cristalizadas pela imediaticidade das sensações, com a conseqüente dissolução da arte como objeto autônomo. O happening parece a alternativa perfeita para esses jovens artistas, pois só ocorre uma vez, num único instante, como um ritual que não transcende seu tempo e espaço, em sua “imobilidade frenética” (1978, p. 170). Já não são os mais despossuídos e explorados os protagonistas dos atos de rebeldia, mas jovens estudantes que se desinteressam completamente dos modos usuais de integração social. No Rio de Janeiro, em especial, surgiram diversos agrupamentos de afinidade que escreviam e publicavam poesia, como o Nuvem Cigana, o Vida de Artista, o Folha de Rosto, o Frenesi4... Grupos esses que, como dissemos acima, organizavam eventos, editavam almanaques e calendários, manufaturavam livrinhos, promoviam festas com performances, e que, de várias maneiras, exaltavam a vitalidade do momentâneo. Parte dessa literatura foi apelidada de “marginal”, e caracteriza-se o mais das vezes por uma declarada rejeição de conhecimentos literários técnicos: a linguagem parece despreocupada com os padrões tradicionais de qualidade formal. No seu lugar, o apreço pela musicalidade espontânea, o gestual, a realização coletiva. Tratava-se de uma produção à margem do mercado editorial, feita de modo artesanal e distribuída pelo próprio autor ou por amigos. Formava-se assim um circuito alternativo. O fato de estar fora dos estabelecimentos convencionais de publicação, divulgação e circulação suscitava, tanto na forma quanto no conteúdo, um modo de ser “descompromissado” – percebe Cacaso em vários ensaios seus
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Estas coleções têm personalidades variadas, uma vez que seus participantes pertenciam a grupos de formação diferente: a Frenesi, mais intelectualizada, a Nuvem Cigana, mais contracultural... ainda assim, há intercâmbios de poetas, amizades e idéias entre elas. Informações deste e dos próximos parágrafos coligidas basicamente dos livros acima mencionados de C. A. Messeder Pereira, idem ibidem e de Heloísa Buarque de Hollanda, idem ibidem. Além de organizar a antologia seminal sobre a poesia do período, que expôs à luz essa produção, Heloísa foi a crítica mais próxima do grupo. O capítulo 3 de seu livro supra citado (“O espanto com a biotônica vitalidade dos 70”) é um depoimento lúcido e vivaz das inquietações da poesia da época. Junto a Cacaso, ela foi a primeira leitora simpática aos poetas marginais.
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sobre o tema.5 Aliás, ele se pergunta: estavam à margem porque foram excluídos ou desejavam se excluir? Ambas as coisas. De um lado, possivelmente as editoras não se interessariam por aquele tipo de escrita tão pouco lucrativa, de outro, essa mesma linguagem utilizada para a poesia era conseqüência da não integração de uma parcela da juventude, que não se situava nas instituições tradicionais.6 Os artistas que firmaram sua voz ao longo deste período tiveram de se haver com alterações sociais e culturais bruscas, que influenciaram a formação de uma linguagem bastante diferenciada tanto em relação à modernização reformista da passagem dos anos 50 aos 60 quanto em relação ao círculo esquerdista mais firmemente engajado nos anos 60 e 70 de oposição à ditadura. Se há afinidade quer com a vertente iconoclasta do modernismo de 22 quer com um ideário surrealista diluído que pregava a aproximação radical de arte e vida, percebe-se logo graus diferentes de corte, negação ou incorporação parcial. Rejeitavam o cerebralismo intelectual das vanguardas (concreta, práxis, processo), assim como seu a-subjetivismo. (Embora possamos discernir influências no aspecto visual e nas “palavras em liberdade” que, apesar da negação consciente, entraram na poesia marginal como dado importante). Na verdade, creio, essa recusa embasava-se na percepção da diferença de momento social. Os concretistas, no final dos anos 50, jactavam-se dos avanços da técnica industrial e acreditavam nas benesses da modernização cosmopolita, como novos operários da poesia (nunca o PIB crescera tão rapidamente, e ao mesmo tempo, as reivindicações populares). Eram os anos JK, com seu desenvolvimentismo democratizante, em que as artes se internacionalizavam, sob o impulso da abstração geométrica – desde o grupo Ruptura de Waldemar 5
Ver os diversos artigos sobre o assunto de Antonio Carlos de Britto (Cacaso), org. Vilma Arêas em Não quero prosa (1997) e o estudo fundamental de Carlos Alberto Messeder Pereira, op. cit ., especialmente quando ele faz considerações a respeito da “mercadoria artesanal” que promoveria uma “ironização do progresso” (p. 75) e sobre o antitecnicismo, a “politização do cotidiano”, e o antiintelectualismo como características básicas da produção cultural daquele momento (p. 92). 6 Também a popularização do off-set e a maior facilidade de aquisição de papel de boa qualidade tornou factível a edição singularizada, de acordo com os caprichos gráficos de cada poeta, barateando os custos e permitindo maior flexibilidade para incorporação de material visual. Isto se refletiu imediatamente nessa produção juvenil, que se apropriou com interesse criativo das novas possibilidades. Assim me informou Flávio Aguiar, poeta e crítico, que na época integrou a histórica antologia 26 poetas hoje , org. por Heloísa Buarque de Hollanda (edição srcinal de 1976), além de ter participado ativamente da imprensa alternativa mais politizada daqueles anos.
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Cordeiro e a famosa exposição da escultura tridimensional de Max Bill na Bienal de 54. Foi apontada mais de uma vez a analogia de princípios entre o ideário primeiro do concretismo e o espírito do futurismo no começo do século: a fé no progresso técnico, a superação do subjetivismo individualista em nome da produção coletiva, serial, o desprezo por certa tradição beletrista, o desejo inovador de incorporar à poesia as conquistas da linguagem gráfica dos jornais e da comunicação de massa. E, principalmente, a energia combativa que se dedica ao experimento sem concessões.7 Também as possibilidades das reformas de base que animaram a esquerda naquele momento contribuíram para um espírito de fermentação política e especial interesse na situação brasileira (e latino-americana). Isto formava, ao lado do cosmopolitismo das vanguardas, um clima de esperanças de superação de nosso atraso e pobreza econômicos e culturais. No período subseqüente, que aqui apresentamos, esse modelo havia exposto algumas fraturas. A nova síntese do tropicalismo na música, do neoconcretismo nas artes, e do discurso engajado nacional-popular na literatura e no teatro – dentre outras - traduziu muitas dessas linhas cruzadas como formas do “absurdo”8 de nossa situação: de um lado, o ímpeto de renovar a linguagem alinhando-se à produção pop internacional e, ao mesmo tempo, adicionar, com isso, os desalinhos da contracultura.9 De outro, pesquisar a melhor tradição 7
Mario Pedrosa, já em 59, tanto elogia quanto critica a autodisciplina e o rigor dos jovens concretos, “inflexíveis ”, opostos aos “romantismos preguiçosos”, mas podendo tender ao dogmatismo, o que, se “tem servido sempre para alguma coisa”, precisaria ser superado para que concretista”, as obras fossem por fimhomem, banhadas “atmosfera espiritual brasileira” paradoxo em Mundo, artepela em crise , org. Aracy Amaral, 1975). (“O 8 A expressão provém do ensaio de Roberto Schwarz, “Cultura e política 1964-1969” (1978), no qual o crítico sugere a idéia polêmica de que, assim como a ditadura militar associou estrategicamente os aparentemente incompatíveis valores do capitalismo aos mais retrógrados sentimentos de “tradição, família e propriedade”, de modo análogo a estética tropicalista justapunha informações cosmopolitas modernas a formas arcaicas de vida características do Brasil interiorano, criando imagens alegóricas do país. O texto foi escrito no calor da hora, entre 1969 e 1970, e traduz, conforme declara o próprio crítico, posições da época. 9 Quando nos referimos à expressão contracultura, evocamos principalmente os protestos de maio de 68 na França e seus congêneres europeus, assim como as manifestações coletivas de várias ordens ocorridas na mesma época nos E.U.A (movimento negro, resistência à guerra do Vietnã, conflitos nos campi universitários, etc). Pensamos também no ideário mais amplo que amparava a rebelião da juventude, que primava pela recusa à sociedade tecnocrática. A respeito do tema, remeto aos livros de Theodore Roszak (1972) e de Mario Maffi (1972). Obviamente, o contexto brasileiro requer adaptação do termo. A revolta deflagrada nos anos 60, cujos protagonistas são estudantes, “não inseridos no
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brasileira para com ela dialogar de “forma evolutiva”. As aporias entre mercado internacional e nacional popular, ditadura e transgressão, buscam na ironia e na elipse formas de curto-circuito do discurso que se afinam com a transformação daquela realidade que antes dava sustento às grandes expectativas nas melhorias sociais (afins a outras formas de expressão).10 No Modernismo, a conjunção de modernização cosmopolita e pesquisa de raízes da cultura brasileira havia sido exemplar e fecunda, tanto na literatura como na música e nas artes plásticas. Agora, a cultura de massa permeava a nova linguagem. A feliz equação tornara-se água venenosa, pois componentes políticos e econômicos reacionários, de interesses alheios à democracia imiscuíam-se fortemente em nossa abertura ao exterior. A “dialética” entre localismo e cosmopolitismo, retomada por Gullar (1969) como solução para nossa evolução artística, se chanfra e espedaça nas arestas irregulares de uma cultura que engolia sem digerir nacos inteiros de srcens imiscíveis. Como conjugar, em meados dos anos 60, a nostalgia do mundo sertanejo nordestino ou do interior de Minas (por exemplo), com o desejo de liberdade e de modernidade tipicamente cosmopolitas? É com isto mesmo que nos deparamos nas letras de Torquato e Gil, e em todo um ideário mesclado de contracultura e valores populares, bem característico do Brasil, não encontrável com esta freqüência e configuração na cultura jovem norte-americana ou européia. 11 A urbanização violenta e súbita, e todas as limitações sócio-políticas pelas quais passava o momento brasileiro faziam emergir um imaginário muito singular, no
processo econômico de produção” e, portanto, sem “recursos que permitissem dar conseqüência política imediata e eficiente a essa negação” (Martins, 2004, p. 160) se alastrará pelo mundo e chegará também ao Brasil, com a diferença evidente de que aqui os sindicatos de trabalhadores estavam desarticulados pela ditadura e o movimento estudantil agia na clandestinidade. Enquanto alguns se orientaram para as ações políticas subversivas, para outros o meio de vazão da rebeldia foi essencialmente comportamental . 10 Lembre-se, como símbolo, da enorme resistência da esquerda às guitarras elétricas e à forma discursiva alegórica encampada pelo tropicalismo que, para muitos, representava não apenas a contracultura mas sobretudo a adesão ao comercialismo globalizado, reforçando a perda tanto do tesouro cultural do país quanto das possibilidade de transformação revolucionária futura. Tal cisão levou à rigidez das contraposições por um longo tempo. 11 Conjuntura semelhante ocorreu em outros países da América Latina no período, também dominados por ditaduras e igualmente convivendo com disparidades entre modelos culturais nativos e outros importados “modernos”, com rendimentos estéticos particulares a cada contexto.
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qual se colocavam abruptamente lado a lado o universo rural e citadino. 12 Segundo as agudas ponderações de Flora Süssekind (2007), manifesta-se uma variação ampla de tom na cultura brasileira entre os anos de 1967 a 1972. Para a pesquisadora, há um primeiro momento de expansão, em que os experimentos ocorrem “em várias frentes”, abrangendo a música, o teatro, o cinema, as artes plásticas, e a seguir, um período de encolhimento, em que o “desencanto histórico” (p. 39) conduz à dissolução da “coralidade” múltipla e complexa que, por algum tempo, parecia ser a tônica das diversas facetas da cultura. Correspondendo à primeira fase, ela reproduz textos de Oiticica em que o artista propõe um “estado criador geral”, uma arte participativa, e uma espécie de “superantropofagia”, cujo intento seria não apenas a “absorção exacerbada e crítica do colonialismo cultural mas também do repertório imagético brasileiro.” (p. 32). Acrescenta ainda Süssekind que Glauber Rocha e José Celso, concomitantemente, também pregavam uma devoração “bifronte”, que desmontasse o imperialismo, de um lado, e os velhos mitos nacionais, de outro (p. 33-37). Observa-se um “desejo de ações coletivas” (p. 32) correspondendo ao começo do movimento da Tropicalia, que vai aluindo conforme endurece o regime político e esmorecem as esperanças de abertura política. As letras das canções, por exemplo, passam a refletir de forma satírica ou agressiva a repressão, exasperando-se a carga de negatividade e dissonância daquele momento de dispersão e exílio. Oiticica, agora vivendo em Nova York, batiza sua nova fase de “subterrânea”, o que parece inverter a tropicália, como um sucedâneo crítico, quando esta se dispersa.13 12
Voltaremos a esse assunto adiante, no item sobre Torquato Neto. Por tudo isso a crítica reconhece em Oiticica o emblema da transformação da arte brasileira naquele momento. E nós consideramos seu trajeto importante para compreender o caminho dos construtivistas aos marginais, passando pelo tropicalismo. Em 67, ele prepara o “penetrável” chamado Tropicália, que propõe uma caminhada do espectador descalço por um ambiente tátil, sensorial, para evocar a impressão de estar pisando a terra, como quando ele deambulava pelo morro de Mangueira, topando com plantas da região, bem brasileiras (gravatá, comigo-ninguém-pode, espada de São Jorge...). Mas, à semelhança de um labirinto, ao final encontra-se um impasse: o participador dá de cara com uma televisão, que provoca a sensação de ser devorado pelas imagens. Em 68, participou de Apocalipopótese, uma grande exposição com obras de Antonio Dias, Lygia Clark e outros artistas, o que propiciava um contato grupal, comparável a sua experiência com a passeata dos 100.000. Em 69 vai para Londres, onde repete a experiência da 13
Tropicália numa galeria, com ambiente ornamentado de elementos naturais (folhas, água...) com grande sucesso – os ingleses realmente embarcaram na experiência, que lá Oiticica chamou de Éden. Para eles havia mais contraste e estranhamento do que no
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Neste sentido, aproximamos a descrição de Süssekind de dois movimentos sucessivos na arte experimental de Oiticica (e de seus contemporâneos) da percepção de um tom misto tanto nas revistas quanto nos livros de poemas dos anos 70: acoplam-se um clima festivo e grupal a expressões mais sombrias, como se, por vezes na mesma obra, se superpusessem vertentes abortadas de experimentação. Isto se verifica tanto em publicações como a Navilouca e o Almanaque Biotônico Vitalidade (dos quais trataremos adiante) como na poesia de Ana Cristina Cesar, Torquato Neto, e Cacaso (dentre outros).14 É perceptível a alteração na atitude existencial e poética nos autores que começaram a escrever nos anos 60 e, ainda relativamente jovens, foram afetados pelos novos ares dos 70: em Cacaso, por exemplo, foi sintomática a ruptura com o estilo epigonal derivado do alto modernismo de seu primeiro livro (A palavra
cerzida, 1967). Nos livros posteriores (a partir de Grupo escolar, 1974) um novo tom coloquial “rebaixado” se impõe, diferenciando-se pelo aspecto autocorrosivo e pelo pouco grau de esperança daquele momento.
Brasil. As ruas de Londres são frias, repetidas, encharcadas e monumentais, observa o artista, enquanto sua exposição gera a sensação de estar “de volta à natureza, ao calor infantil de se deixar acolher, como se houvesse uma auto-absorção no útero do espaço aberto construído, que mais do que ‘galeria’ ou ‘abrigo’ era esse espaço.” Nesse momento ele escreve enfaticamente: “E não tenho lugar nesse mundo” – como um exilado em seu país. Não à toa procura em suas últimas obras realizar as “aspirações humanas...livres da alienação de um mundo opressivo”. Tal como Lygia Pape, que nesse período havia criado a casca-ovo, ele cria ambientes que lembram berços ou úteros. Ao final, em Nova York onde mora nos anos 70, passa a compor estruturas aconchegantes, cujo objetivo seria abrigar o homem de um mundo ondeemelesuas poderia viver o“lazer-fazer que batizounão de “crelazer” – traduzindo – ócio alienado criativo e ou, palavras, interessado”. 14 Se, por um lado, as relações entre as visões de mundo e questões estéticas de Gullar, Oiticica, Clark e poetas concretos, por exemplo, já foram analisadas e comparadas em estudos como o de Carlos Zílio, “Da antropofagia à tropicália” in Novaes, Adauto (org.) O nacional e o popular na cultura brasileira (1982), ou o de Haroldo de Campos, “Construtivismo no Brasil. Concretismo e neoconcretismo” em Gonçalves, L. R. (org.) Tendências construtivas no acervo do MAC USP (1996), ou do próprio Ferreira Gullar, que reuniu seus ensaios sobre artes plásticas e poesia no livro Experiência neoconcreta (2007), dentre outros trabalhos recentes de críticos e teóricos provenientes de diferentes áreas de estudo, creio que ainda não foram realizadas muitas análises comparativas entre poemas e obras visuais produzidos à volta dos anos 70, de modo a tentar compreender por dentro como se deu a resolução formal das questões que circundavam a ambos. Alguns trabalhos intentam sínteses maiores, tendo o cuidado de apontar problemas. Além dos supra citados, destacamos o artigo de Marcos Napolitano e Mariana M. Villaça, “Tropicalismo: as relíquias do Brasil em debate” (1988) e o livro de Frederico Coelho, Eu, brasileiro, confesso minha culpa e meu pecado (2010).
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Predominou, tanto nas artes plásticas quanto na poesia, a língua do pequeno grupo dissidente. Do ângulo das manifestações culturais da época, avizinham-se contracultura e favela nos parangolés e ninhos de Hélio Oiticica, comparecendo nos filmes super-8 de Waly Salomão (e tantos outros) e na alfavela de Arempebe da Navilouca, atravessando a comunidade dos Novos Baianos (que montam tendas no apartamento em São Paulo), desaguando nas dunas da Gal, nas vivências poéticas performáticas da “Nuvem Cigana” (na produção dos Almanaques e Artimanhas) e do grupo teatral “Asdrúbal trouxe o trombone”, nas cooperativas de jornalistas e escritores para a edição coletiva de publicações. A relação entre eles acontece no projeto talvez nebuloso de “mudar a vida”, “politizar o cotidiano”. Resta saber, porém, se num meio politicamente fechado, haveria outros modos de constituir grupos de produção e intervenção, e se esta saída – posto que restrita – não induziu afinal a soluções interessantes.15 Em parte, procurando ideais pré-modernos, que os hippies e a geração beat haviam carreado (como na mistura que se vê, por exemplo, no álbum duplo “Clube da esquina” dos mineiros) – e fundindo-se tendências naturalistas e até esotéricas junto a outros ideais anarquistas, como o amor livre, o culto das drogas ou estados alterados de consciência, o interesse pelas terapias alternativas, a vivência comunitária. Porém, tais buscas podiam acabar por conduzir a um tipo de isolamento do todo social em nome de uma linguagem da “patota” que se comunica de forma íntima e cúmplice, excluindo, no entanto, o resto do mundo. 16 Um fenômeno de refração também se observa em nosso teatro. Por exemplo, o Oficina inspirou-se nas experiências libertárias do Living Theater americano, incluindo em seu elenco não-atores, e incentivando o envolvimento com o público. No âmbito do palco se observa o elogio do improviso e a recusa da obra, com resultados variáveis. É de se notar, no entanto, que enquanto os hippies 15
Segundo depoimento de Capinam, ao tratar de novas parcerias: “Ficaram poucas pessoas com quem a gente podia ter um diálogo”... “Isso obrigou a gente a forçar mais a unidade dos que restaram para manter um pouco a energia que cada dia se esgota mais e obriga também a sair cada dia mais gente.”... “Todo esse tipo de explosão marginal de uma porção de coisas que não eram aceitas, não eram acadêmicas, passou a surgir em música e houve uma aproximação de todos os setores em torno desse grupo.” (entrevista para O Pasquim , 1970, apud Frederico Coelho, 2010, p. 246-247). 16 Marcelo Ridenti (2000) aproxima a valorização da cultura popular, do exoterismo, das drogas, da defesa da natureza, etc (característicos da contracultura) do romantismo anticapitalista, que em seu tempo também havia sido considerado regressivo ou irracionalista por seus críticos, utilizando-se, para essa comparação, dos estudos de Michel Löwy e Robert Sayre.
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dos EUA criavam um teatro participativo com intenções agregadoras, aqui, em plena ditadura, José Celso e seu grupo afirmavam querer agredir o público e a si mesmos, para destruir seus preconceitos burgueses. Observa Roberto Schwarz (1978, p. 85 a 89) em sua reflexão sobre o período que, nas encenações, os tabus que regem a distância entre os indivíduos eram sistematicamente quebrados não só para suscitar desejo mas sim, sobretudo, medo e vergonha. As acusações e a zombaria criavam facções no público que não era em geral solidário com a vítima das provocações. Para desmascarar o autoritarismo social uma estética de choque auto-dividida se apresentava, e mesmo uma desqualificação consentida da própria obra teatral.17 Flora Süssekind (2007) ressalta o anseio por violência expresso por vários artistas da época, como uma necessidade de “incorporar a problemática brasileira num nível de expressão revolucionária e ferir o público” (nas palavras de Glauber Rocha), que se explicitaria nos confrontos entre artistas e espectadores (p. 40-41), para tentar a “afirmação de novas relações estruturais, conjugada a uma antiformalização desintegradora, a uma fuga (auto) consciente da forma” que privilegiaria a “desestetização” e o “antiespetáculo” em todas as artes (p. 44). O livro recente de Frederico Coelho (2010) demonstra, através de pesquisa aturada, as afinidades entre artistas de várias áreas e tendências (provenientes do cinema, das artes plásticas, da literatura, da música e do teatro) na perspectiva de uma estética violenta, batizada, latu sensu, de “marginália”, inspirada no banditismo e na transgressão, que perpassaria o ideário musical da tropicália, antecedendo-o e ultrapassando-o, e do qual ele seria um momento específico. Naturalmente, nem todos os artistas se identificariam totalmente com esta rejeição da sociedade instituída na mesma intensidade radical. Apesar das especificidades, haveria, no entanto, aproximações e intercâmbios dos mais fecundos. Extraído de seu trabalho, cito Waly Salomão, quando este procura confluências que lhe permitam explicar a nova poética: [Tropicália é] o desembocar MEÂNDRICO do ateliê Ivan Serpa, do 17
O fenômeno dos festivais de que participavam público e cantores de forma apaixonada ou virulenta evoca esse clima de integração complicada, do qual também o teatro de José Celso Martinez é um testemunho ao buscar relacionar-se diretamente com o espectador (vaiar, provocar, tocar). Como se percebe, mesmo seu aspecto utópico manifestava-se de forma agressiva – até contra si mesmo e contra o público – ao contrário da unanimidade catártica dos espetáculos do Opinião ou do Arena, nos anos anteriores. Ver a esse respeito, posição diferente da apresentada por Roberto Schwarz em Celso Frederico, “A política cultural dos comunistas” em Quartim, J. (org) História do marxismo no Brasil (1998).
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círculo Mario Pedrosa, do suplemente JB, do neoconcreto, da teoria do não objeto, da ideia de superação do espectador, do bicho de Lygia Clark, da arquitetura das favelas, do Buraco Quente, das quebradas do morro da Mangueira, do Tuiuti, da Central do Brasil, dos fundos de quintais da Zona Norte, do Mangue, do samba, da prontidão, da Liamba e outras bossas.18
Não se entende o porquê do recalque da srcem nordestina e dos ritmos sertanejos, ao lado de toda a pesquisa musical da música de raiz amalgamada ao rock e a alguns toques eruditos. Mas ao menos se percebe o desejo de ampliar o repertório, incluindo fatores menos alardeados. Imaginar que as décadas são difíceis de recortar, porque as marés dos movimentos culturais se comportam por impulsos e fluxos desiguais, também comporta pensar em como definir o final dos anos 70 e quais as suas portas de saída. Esse ritmo de sucessões e inflexões pode ser igualmente questionado. A década contempla amadurecimentos importantes na obra dos artistas, que se firmam numa certa direção (Sebastião, Gullar, Armando, Chico Alvim), mas, ao chegarmos aos anos 80, observamos dois movimentos que parecem opostos: de um lado, em alguns, paralisação ou repetição de paradigmas durante anos a fio, muitas vezes até hoje; e de outro, a interrupção de certas experiências artísticas. Nesses casos, pode-se dizer que há poetas que não saíram daquela década. Se é penoso aceitar que o passado pode ser irremissível e o que foi destruído não será recomposto, pois mesmo quando falamos dele, soa como um fantasma que não pode mais encarnar-se no real - para sempre perdido - também não é fácil suportar a aporia oposta: que a história não se mova e o mesmo se reapresente monotonamente (dois pesadelos...). Existe algo em comum entre esses extremos: o fato de que, uns e outros, ao contrário de seus antecessores nos anos 50 e 60, deixaram de acreditar em projetos de grande monta para o futuro, desistindo de crer na possibilidade de conversão radical da realidade, e interrompendo violentamente sua própria vida e obra. Ou então, continuaram com as mesmas expressões e idéias, como se a história tivesse parado. Há ainda um terceiro tipo de movimento: poetas que conseguiram ampliar e amadurecer a sua perspectiva, sem modificá-la, tendo sido estabelecida naqueles anos. São poetas cuja qualidade e densidade depende também da reflexão sobre 18
Cf. Coelho, F. (2010), p. 128. O livro detém-se especialmente na análise interpretativa
das relações mantidas pelos artistas da época, trazendo à tona rico material acerca do envolvimento criativo de Hélio Oiticica, Glauber Rocha, Torquato Neto (destacando-se suas crônicas jornalísticas polêmicas sobre música e cinema), Capinam, e outros.
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esses desafios, que se converteram em impulso interiorizado de seu trabalho atual.
Do construtivismo à geléia geral Abra as janelas abra as feridas: Pindorama cicatriz do futuro.
Eudoro Augusto 19 Do ponto de vista artístico, imagino três camadas em debate que se superpõem, imiscíveis à primeira vista, mas com pontos de contato insuspeitos. Começo o percurso com um exemplo da primeira, que podemos chamar de construtivista-concreta. Anos atrás estive em Niterói para conhecer o MAC (Museu de Arte Contemporânea), que foi construído no começo dos anos 90 para abrigar uma coleção de arte de um doador da alta sociedade carioca. A coleção mantém uma coerência enorme: são todos quadros, esculturas, objetos, pertencentes a essa tendência que intitulamos construtivista. Não por acaso Niemayer foi designado para desenhar o projeto do museu, tendo estabelecido uma grande consonância entre a arquitetura e a coleção que ela abriga, assim como com o entorno da paisagem e, especialmente, com certo construto ideológico que ali realiza seu veio de síntese. Olhando de longe, o museu lembra um disco voador em posição de decolagem. Edificado à beira do penhasco, seguindo as linhas das montanhas, e de noite sendo iluminado por faróis de avião colocados à volta de um espelho d’água que mais aumenta a sensação de vôo, ele se coloca no limite entre a pedra e o mar. As paredes côncavas e brancas, as janelas que rodeiam todo o prédio, a haste em espiral, as cores simples... tudo conspira para provocar a impressão de leveza e descolamento do solo. Talvez seja a mais avançada manifestação do desejo utópico de quem construiu Brasília e decola para um futuro em que técnica, arte e progresso se aliam harmoniosamente. Niemayer, em depoimento, sobrepõe a idéia de disco voador e flor – algo que brota do chão para o ar desafiando a gravidade e
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Dois últimos versos de poema reproduzido no livro organizado por Gramiro de Matos e Manoel Seabra, Antologia da novíssima poesia brasileira . Lisboa: Livros Horizonte, 1981.
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procurando a luz, como o engenheiro de João Cabral, cujas formas simples crescem para o céu. Já as obras que vemos e tocamos do lado de dentro pertencem à fase construtivista de Hélio Oiticica (os “metaesquemas”); ao interesse pelas estruturas matemáticas de Ligia Pape, com seus quadrados e triângulos de montagem; à investigação das dobras de Lygia Clark, que buscava a terceira dimensão para o quadro; às pesquisas espaciais de Amílcar, Weissman, Serpa – todos monumentos à emoção inteligente, às variações de cor e forma proporcionadas pela geometria. O museu oferece algo de lúdico para o espectador, convidado a montar blocos de madeira e a quem é proposto que complete algumas esculturas que lembram figuras de fractais desdobrando-se no espaço. No segundo andar, onde ficam as exposições temporárias, havia uma longa fita branca desenrolando-se com poemas de Haroldo de Campos, combinando perfeitamente com esse ambiente de vanguarda nacional. O plano piloto, as metas de desenvolvimento, a euforia progressista, as bienais, tudo ali continuava a existir como sonho de um país do futuro. Os volumes e as cores básicas transpiravam claras certezas em suas formas ao mesmo tempo vibrantes e equilibradas. Foi então que tive a idéia de perguntar ao atendente como é que se limpavam aqueles janelões que davam para o mar: como lavar aqueles vidros? Supõe um esforço humano complicado e perigoso que envolve ser içado por um guindaste colocado sobre uma balsa em dia de mar calmo, e então rodear o cinturão de vidro do museu sem oscilações de maré, tentando passar um escovão em toda a extensão da longa fita de janela circular. E foi isso que os anos 60 perguntaram aos 50: “Quem construiu Tebas das sete portas?”
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Assim, o que era epifânico em sua agoridade reveladora, tornou-se bolha no espaço, estética paralisada, pois aquela aposta no futuro que iria realizar-se aluiu. Há algo de kitsch no disco voador de Niemayer – um moderno passado, que já esteve na moda. A beleza do sonho de uma década. Cápsula do tempo. Como os poemas hoje circulares de Augusto de Campos, brilhantes no uso das técnicas de computador, mas que mimetizam a estase, e vão do nada ao nada, em sintonia com um tempo esvaziado de real movimento. Se, segundo Cavalcanti, a própria cidade de Brasília se assemelhava a um poema concreto reticular, minimalista, planificada – em forma de cruz ou avião – a questão seria reconhecer que havia “contradição entre sua forma revolucionária, que a igualava às construções dos países mais desenvolvidos, e a realidade social do país” (conforme observa Souza, p. 114), e, além disso, que já estava latente naquele tipo de edificação sobre pilotis o pouco contato com a terra, tanto do ponto de vista natural quanto cultural.20 Mário Pedrosa, ao observar esse descolamento pouco orgânico da cidade, cultivada em contraste com seu entorno, à qual se chegava apenas de avião, saltando sobre o Brasil, conclui que ela “tem algo de imaturo e ao mesmo tempo de anacrônico” (1998, p. 392), como uma utopia isolada e artificial.21 O início dos anos 60 propõe uma aterrissagem, no que podemos chamar de segunda camada: a cultura engajada – volta ao solo no que ele conserva de mais arcaico. É a estética do cordel, da redondilha, das ligas camponesas, da alfabetização pelo método Paulo Freire com as palavras geradoras do ambiente de trabalho mais pesado e humilde. A favela (ainda semi-rural) e a seca são as paisagens que habitam o cinema. O sentimento do nacional-popular no teatro, na queixada de boi de “Disparada” de Vandré, das músicas de raiz, dá o tom. Muitos 20
Tanto o texto de Lauro Cavalcanti, “Brasília, a construção de um exemplo”, quanto o de Eneida Maria de Souza, “Arte e estado. JK reinventa o moderno”, integram o livro org. por Wander Melo Miranda, Anos JK: margens da modernidade (2002). 21 Em seu abrangente e incisivo ensaio sobre este período, “Esteticismo e participação: as vanguardas poéticas no contexto brasileiro (1954-1969)”, Iumna Maria Simon aponta a universalidade abstrata dos manifestos e poemas concretos, que elogiam a técnica, a era industrial, a cultura urbana, sem especificações relativas ao contexto brasileiro: “até que ponto a transposição da proposta construtivista para a realidade brasileira não implica necessariamente contradições, as quais já se anunciavam no ‘sonho suíço’ em São Paulo?” (p. 348) Ela observa o anacronismo entre a realidade cultural do país e a idealização desenraizada do imaginário modernizador concretista, que termina por tornarse um “simulacro esteticista” (p. 358). Em Pizarro, A. (org.) América Latina: palavra, literatura e cultura. Vol 3: Vanguarda e modernidade (1995).
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artistas se envolvem de maneira politicamente aguerrida, ligados ao movimento estudantil daquele momento: as primeiras letras de Torquato, Arena canta Zumbi e Tiradentes, o teatro de Boal – todos os criadores estão a serviço da idéia de consciência social, de releitura histórica a partir da perspectiva dos oprimidos... E o que aconteceu com a estética construtivista? Ou tentava dar o salto participante ou se dividia em poesia práxis, que lembra as associações de significados do método Paulo Freire (“lavra lavra”, de Mario Chamie, podia ser começo de cartilha...) Por que não convencia inteiramente naquele momento? Porque o ideário central – a crença no progresso industrial, essencializada, com seus valores de seriação, trabalho coletivo racional, fordismo, marketing, despersonalização, objetividade, máquina22 – todo esse pacote cosmopolita era posto sob suspeição pelo Brasil profundo. A contraposição de vanguarda e subdesenvolvimento vinha à luz, em toda a América Latina – expressão esta que passa a ser mencionada e conhecida nas diversas revistas culturais dos anos 60 – enquanto as teorias dos concretos buscavam na Suíça de Max Bill e Gorringer, e na Alemanha da Bauhaus e da música dodecafônica e de timbres, os seus avatares. Observa-se então como o plano-piloto da poesia concreta ecoa alguns manifestos do começo do século XX, nos quais a esperança de junção harmônica das inovações tecnológicas e artísticas era radiante (como o cubofuturismo russo, com o qual tinham afinidades). Por outro lado, já estava embutida na ideologia do construtivismo a concepção de relação entre obra e espectador que vai florescer nos anos 70. A integração arte/vida se esboçava devido à sua fatura quase industrial e anônima. Poesia é ofício e não ritual ou inspiração, afirmavam os manifestos: nas cidades modernas, o artista é como um operário, produzindo projetos urbanísticos, cartazes de propaganda, o design dos objetos, enfim, criando um novo ambiente. O lema de Max Bill, autor da escultura “Unidade tripartite” (hoje no MAC da USP) era “a beleza também é função” – prosseguindo na linha da Bauhaus, para quem o artista é um pesquisador de formas. Portanto colabora socialmente (contra o romântico subjetivo) pregando a integração social da arte. Enfim, a arte pressupunha e acompanhava a modernização. Como os construtivistas soviéticos, os concretos imaginavam intervir na edificação da nova sociedade coletivista e 22
Ver o livro de Gonzalo Aguilar (2005), que menciona e desenvolve essa caracterização da arte concreta.
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técnico-industrial (evocando Tatlin, Rodchenko, e Maiakovski) em que a arte se tornaria útil e reintegrada à esfera da vida cotidiana. Em confluência entre o ideário construtivista e a arte pop, os anos 60 incentivam a criação de objetos que conjugam poesia e visualidade, como os popcretos de Augusto de Campos e Waldemar Cordeiro, assim como os poemas objetos de Gullar. Mas, num país bastante rural e desigual como o nosso, estes anseios destoavam e pareciam até produtos do imperialismo, a acompanhar a invasão das indústrias multinacionais. O progresso industrial constituía uma bolha artificial que não trazia riqueza e progresso para o povo como um todo. Ao longo dos anos 60, a estética engajada, que propugnava uma aproximação do artista à cultura popular, de forma que sua criação se inspirasse na linguagem das classes pobres, e toda a polêmica entre os que defendiam uma estética experimental (considerada elitista) contra os que favoreciam uma poética calcada em formas tradicionais, de fácil decodificação, foi um dos fatores que contribuiu para uma suspeita em relação à arte construtivista, cuja linguagem é cosmopolita. Já a arte engajada queria afinar-se com os signos de cultura rural ou da pequena cidade, para neles encontrar emblemas nos quais pudesse enraizar sua mensagem. Como se percebe, tanto a estética construtivista quanto a nacional-popular – ambas – propugnavam a interação entre arte e espectador, convertendo o objeto artístico num processo que admitia intervenção. 23 Que da conjunção inadvertida entre ambas tenha nascido interesse especial por uma arte participativa, menos preocupada com a noção de obra do que com a experiência, é uma hipótese plausível. Em parte, a arte característica dos anos 70 srcinou-se também da aproximação de dois aspectos semelhantes em estéticas opostas (o anseio construtivista por uma arte aliada à vida na cidade,24 e o anseio da arte realistapopular de trazer o espectador para uma reflexão sobre sua vida). 23
A idéia me foi sugerida por Paulo Ferraz, que estudou longamente estes momentos de transição em sua dissertação de mestrado “Depois de tudo. Vertentes da poesia brasileira contemporânea: Régis Bonvicino e Carlito Azevedo” (2004), quando se refere aos rumos da poesia engajada e do concretismo. 24 Também as concepções do grupo neoconcreto foram fundamentais para a alteração de rumos, embora, como tenha percebido Ronaldo Brito (1985), ele tenha sido o cume e o vértice destrutivo do projeto construtivista, ao retirar a pintura do espaço bidimensional e levá-la ao espaço real, rompendo o limite de gêneros e buscando a participação do
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Mas, o fator mais relevante não é esse tipo de explicação pelo continuísmo de um derivando do outro, e sim a percepção das mudanças sofridas no Brasil e no mundo naquela fase, em que se acentuava um forte sentimento de fratura entre o momento anterior e o presente, a circundar tanto a poesia quanto as artes plásticas, que iam ao limite de recusar a fatura do objeto artístico durável e simbolizante. Entremos, então, na terceira camada constitutiva, que podemos batizar provisoriamente de “arte em questão”. Mário Pedrosa considera, em seu texto “Arte ambiental, arte pósmoderna”, de 1965,25 que entramos em novo ciclo cultural: é o fim do ciclo da arte moderna inaugurada pelo cubismo das “Demoiselle d’ Avignon” de Picasso. Não mais uma arte intelectual e pura, mas uma antiarte, em que estruturas perceptivas e situacionais se sobrepõem aos valores puramente plásticos. O pop teria inaugurado essa fase, ao substituir a expressividade romântica e lírica do sujeito pelas mensagens coletivas, de humor ou de crítica. Hélio Oiticica seria, para este crítico, o primeiro artista pós-moderno brasileiro, nesse sentido de criar uma arte ambiental, em que o espectador precisa vivenciar a cor, a textura, o espaço proposto pela obra, nos sucessivos núcleos, camas-bólides, ninhos, parangolés, dos quais o corpo participa como fonte de sensorialidade. Todo o tempo esse artista quer provocar inconformismo, de forma que suas experiências conduzem-se para além das categorias estéticas, em sua concepção utópica (que derivou de Mondrian) de que a arte ocuparia o espaço da cidade e não seria mais algo separado da estrutura social. Na srcem das experiências de Oiticica vislumbra-se o contato com o grupo neoconcreto carioca, especialmente a influência da pesquisa plástica de Lygia Clark e das idéias veiculadas por Gullar em especial nos textos “Teoria do não-objeto” (1959) e “Manifesto neoconcreto” (1959), em que o espectador é chamado à interação e a obra passa a fazer parte do mundo real, extravasando a moldura para entrar no espaço comum.26 espectador. Como sintetiza o crítico, a “ruptura neoconcreta” foi o “último rebento do construtivismo e também, sua explosão”, especialmente por intentar uma atuação como “modelo de construção social”. 25 Republicado como apresentação ao livro póstumo de escritos de Hélio Oiticica Aspiro ao grande labirinto (1986). Repito esta informação no texto constante desta pesquisa “Artes plásticas e poesia nos anos 26
70 no Brasil”, assim como algumas citações de Gullar. “O não-objeto reclama o espectador (trata-se ainda de espectador?), não como testemunha passiva de sua existência, mas como a condição mesma de seu fazer-se. Sem
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Nessa aproximação com o universo urbano reconhecemos um passo que terá conseqüências práticas também para a poesia brasileira, pois esta buscava superar o tardo-modernismo, ou modernismo reclassicizado, para efetivar um estilo ainda mais coloquial, retomando em parte o primeiro modernismo. Desde as experiências concretas, e inspirando igualmente Gullar naquele momento, a poesia intentava, como as artes plásticas, abandonar uma linguagem que apalpava muros de aprisionamento: Também o poeta busca a experiência primeira do mundo, também ele trabalha no limite da linguagem poética. Na época moderna, vimos a destruição das formas fixas de estrofe, de verso, para chegar-se ao verso livre. Mas, depois, o verso livre também tornou-se um instrumento estereotipado: rebentou-se a sintaxe e chegou-se à palavra como elemento primeiro. Da mesma maneira que a cor libertou-se da pintura, a palavra libertou-se da poesia. O poeta tem a palavra, mas já não tem um quadro estético preestabelecido onde colocá-la habilmente. Ele se defronta com ela desarmado, sem nenhuma possibilidade definida mas com todas as possibilidades indefinidas. O que importa não é fazer um poema – nem mesmo fazer um não-objeto – mas revelar o quanto de mundo se deposita na palavra. (idem, p. 98-99)
Embora Gullar ensaiasse formas poéticas vizinhas às artes plásticas, tais como o “Poema enterrado” ou os “Poemas espaciais”, quando, depois de passar pela fase mais engajada do CPC, compõe, nos anos 70, uma poesia mais próxima do que será sua trajetória até hoje, voltamos a encontrar muito das preocupações manifestadas em seus primeiros textos. Aquelas idéias reaparecerão modificadas por novas experiências de vida e poesia. Por exemplo, não mais prescindirá da sintaxe, uma vez que concluiu, em certo momento, de que nela se desenrola o tempo, eixo central da linguagem (diferentemente das artes plásticas). Também retornará à forma-livro como suporte que, naquele momento, talvez desejasse superar. Mas a preocupação de que o mundo se deposite na palavra, e de que a linguagem poética possa ser não-metafórica, bastante prosaica e realista, habitará muitos de seus melhores versos. No “Poema sujo” (1975), resíduos de memória em estado bruto convivem com momentos mais melódicos, aproximando-se, mesmo sem querer, da ambigüidade lingüística dos jovens “marginais”, que também promoviam uma poesia impura, entre a linguagem efêmera da experiência cotidiana e algumas breves iluminações imagéticas e/ou sonoras. ele, a obra existe apenas em potência, à espera do gesto humano que a atualize.” e “A arte não é uma atividade de segundo grau mas um ato primeiro que muda o mundo.” (Ferreira Gullar, “Teoria do não-objeto”, 1959, e “O tempo e a obra”, 1961, Supl. Dom. Jornal do Brasil, republ. 2007, p. 100 e p. 110 respectivamente).
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Há ainda um elemento a considerar, igualmente formador do caldo contracultural dos anos 60 e 70: germinando secreta e recessivamente, o filamento surrealista, que também pressupunha a tentativa de aproximar arte e vida. Ele nos adveio através de ecos franceses, das idéias da Internacional Situacionista e de maio de 68,27 e de influências americanas, mediante a leitura dos beatniks.28 Também a indefinição entre escrita e desenho, assim como a fusão entre diário e texto literário, igualmente aparece em outros poetas escrevendo na época (tais como Torquato Neto, Ana Cristina, Rogério Duarte, Chacal, Cacaso). Multiplica-se o número de publicações em que se cruzavam os interesses mútuos e trabalhos paralelos ou conjuntos de poetas e artistas plásticos partilhando as mesmas inquietações. Acerca de Ana Cristina Cesar, verifica o crítico Gonzalo Aguilar em sua escrita uma “tentativa de figurar na linguagem”, “fluxo ininterrupto,
proliferante”
“ininterrupto
eletro-cardiograma
da
‘floating
attention’”: “fazer das palavras um terminal dos prolongamentos sensoriais e um 29
testemunho direto do corpo insistentemente presente que fala” ... da forma como o fizeram Mira Schendel, Cy Twombly, Henri Michaux, Hélio Oiticica, assim como Chacal, Eudoro Augusto, Armando Freitas Filho – compondo poemas que tanto se aproximam do desenho quanto intentam não fechar-se em obra acabada. Já os poetas norte-americanos contemporâneos (ou mesmo de uma década anterior) haviam começado a escrever desta maneira, em que o eu se descobre ou se oculta em uma das sete camadas.30 Os brasileiros naquele momento não citam os seus (quase) contemporâneos da chamada “Escola de Nova York” (John 27
Nicolau Sevcenko, ao resumir o ideário do Situacionismo, apresenta, dentre as estratégias criativas, uma que nos remete à linguagem poética dos anos 70: o détournement . Segundo o autor, este implica em reaproveitamento e recontextualização de resíduos históricos (Vários autores, Anos 70: trajetórias , 2005, p. 23). Nas artes plásticas, verifica-se este procedimento quando da utilização de materiais reciclados de diferentes srcens, ressignif icados. Na poesia, observamos que os versos de Ana Cristina, Chico Alvim e Cacaso, por exemplo, são repletos de apropriações literárias ou de frases ouvidas em conversas. 28 O grupo de poetas de São Paulo foi o que mais ostensivamente se aprofundou nessa vertente estética, publicando inclusive manifestos sobre a necessidade de reativar o surrealismo (especialmente Roberto Piva e Cláudio Willer). Outros artistas foram influenciados de modo mais subreptício. 29 No ensaio introdutório “ Luvas de pelica de Ana Cristina Cesar: el ojo y el guante”, que acompanha a edição bilingue em espanhol de poemas de Ana Cristina Cesar citada na bibliografia 30
(2006). Aludo aqui a um verso de John Ashbery: “You are that dream, and it is the seventh layer of you.” (“More pleasant adventures”, A wave , 1981).
27
Ashbery, Frank O’Hara, James Schuyler, entre outros), que haviam iniciado sua produção umbilicalmente conectados aos pintores expressionistas abstratos. No entanto, há coincidências importantes entre eles, como a valorização do que Frank O’Hara chamou de “Personismo”: não tem nada a ver com personalidade ou intimidade, longe disso! Mas para dar a você uma vaga idéia, um de seus aspectos mínimos é endereçar-se a uma pessoa (outra além do próprio poeta), evocando assim insinuações de amor; percebi que, se eu quisesse, poderia usar o telefone ao invés de escrever o poema; O poema está finalmente entre duas pessoas em lugar de entre duas páginas. Com toda modéstia, confesso que isto pode ser a morte da literatura da forma como a conhecemos.; Por um tempo, as pessoas pensaram que Artaud iria realizar isto mas, na verdade, apesar de toda sua magnificência, seus escritos polêmicos não estão mais fora da literatura do que a Bear Mountain está fora do estado de Nova York.31
Apesar dessas afirmações, sua poesia não é confessional. O’Hara e seus companheiros de geração rebelaram-se, de um lado, contra certa “arte acadêmica” composta por epígonos de Eliot pela décadas de quarenta e cinquenta afora e, de outro, contra o que John Ashbery chamou de “poesia da dor”, em que o artista expressa diretamente seus sentimentos e memórias, sem um trabalho de “coletivização do eu”. As interrogações que tal postura coloca se relacionam com o sentimento iminente de morte (ou transformação) da arte. Mas talvez não no sentido de final e sim de tentativa de ampliação para além das fronteiras estabelecidas, cada vez mais.
31
Apud Donald Allen & Warren Tallman (eds.) The Poetics of the New American Poetry (1973), ps. 353-355. Frank O’Hara (1926-66), cujos poemas lembram crônicas instantâneas da vida na metrópole, escreveu esse manifesto auto-irônico em 1959. Sua poesia, que deve muito às leituras de Whitman, dos surrealistas franceses, e da convivência com os artistas plásticos que valorizavam o gesto expressivo, não é, de forma alguma, manifestação espontânea de sentimentos, nem rememoração da experiência vivida, tout court . Como em Ana Cristina Cesar, as referências literárias se entremeiam todo o tempo com fragmentos fugazes de fatos, que se aglutinam em possíveis sentidos metafóricos sobre a velocidade da vida e da morte contemporâneas.
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A vida anoitece provisória32
Estou partindo: pra onde? Viajo pelo deserto e sinto que vou morrer.
(Cacaso, “Em tempo de notícia”, 1964)33
A primeira impressão de um leitor de poesia, ao entrar em contato com a produção brasileira, seja a “marginal”, seja a pós-tropicalista ou pós-concreta, é de que não valeria a pena sequer tentar compará-la, sob qualquer parâmetro, com a dança das imagens, da sonoridade e das percepções que nos habituamos a considerar como lírica, desde Safo. Quem se atreveria a equiparar os escritos elípticos de Torquato Neto e Ana Cristina Cesar, ou os jorros irados de Waly Salomão, a epifanias de Ungaretti, breves e intensas, como M’illumino d’immenso (“Mattina”), ou à pungente expressão de Yeats para descrever, na velhice, o amor que hid his face amid a crowd of stars (“When you are old”)? Haveria, em toda a produção daqueles anos um só poema que se compare a “Cão sem plumas” de Cabral ou ao “Relógio do Rosário” de Drummond? Algo que chegue aos pés de “Fraga e sombra”? De que lugar, com que tom iremos nos referir a esses escritores em processo de metamorfose, em conflitos por vezes insuperáveis, dos quais com certeza teríamos que afirmar com Bonnefoy, “l’imperfection est la cime”? No entanto, somos tocados e compreendemos intuitivamente que naqueles escritos de uma geração por vezes interrompida ecoam laivos e entreditos que prenunciam ou revelam o que vivemos. A nosso ver, o fato de terem buscado (e talvez alcançado) o extremo do não literário, insta os leitores a um desafio do qual não podemos recuar. Há o leitor ufanista, que adere com entusiasmo à produção desses poetas como criações admiráveis, que revelariam muito da crise do sujeito contemporânea. Por vezes o conceito de écriture do Barthes, de um texto infinito e sem margens, parece ajustar-se como a mão e a luva em livros outrossim 32 33
verso de Cacaso em “Logia e mitologia” ( Grupo escolar , 1974) versos do livro A palavra cerzida , 1967, na sessão “O triste mirante”
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ilegíveis, como Catatau, do Leminski. Ou alguma boutade malcriada remete ao Oswald, sempre invocado quando se precisa justificar como genial um lance de ar espontâneo, cuja graça se consome no minuto da leitura. Textos evidentemente inacabados ganham o status de fragmentos, e a falta de sentido pode virar obra aberta. Há o leitor crítico, que hostiliza completamente essa incipiente produção, considerando-a reflexo da sociedade de consumo, produto do vazio cultural da fase da ditadura: superficial, regressiva e imediatista. Para ele, o capitalismo tardio teria controlado de tal modo corações e mentes que o sujeito reificado só fabricaria pastiches farsescos das inovações das vanguardas para o entretenimento da sociedade do espetáculo. Estas, se falharam em superar a separação entre arte e vida, ao menos tentara-na, heróica posto que ingenuamente, enquanto a arte hoje apenas reciclaria estilos esvaziados de seu conteúdo antes utópico tendo em vista a consagração do mercado. Ambos são “partidos” bem definidos, com orientações teóricas próprias e no geral imiscíveis. Enquanto uns proclamam euforicamente a pós-modernidade, outros a condenam in totum (rejeitando até mesmo tal rótulo), saudosos seja da “tradição da ruptura” moderna seja de uma arte, quem sabe, bela e orgânica. Poder-se-ia imaginar uma terceira via? Concordamos que a época traduz certa “incapacidade de ser” (lembrando uma expressão de Gramsci) que se faz ainda mais visível quando se considera quantos artistas do período morreram cedo. Reiteramos que não se produziu dentre aqueles jovens escritores nenhuma obra-prima à altura dos grandes autores do alto modernismo (alguns publicando naquela década, como Drummond e Cabral). Poderíamos sem pejo assumir a postura do “crítico da cultura”, que se considera intocado pela banalização de seu tempo, acerbamente condenando-o, como se dele pudesse se eximir, sobranceiro. Ou poderíamos, como propõe ainda Gramsci (1968), considerar estoicamente que, dada a raridade da grande obra, “a atividade crítica normal não pode deixar de ter um caráter preponderantemente ‘cultural’ e ser uma crítica de ‘tendências’; do contrário, tornar-se-ia um contínuo massacre”, devendo ressaltar, na literatura examinada, um valor que “se não pode ser artístico – pode ser cultural e, neste caso, não valerá tanto o livro singular, salvo casos excepcionais, quanto os grupos de trabalhos colocados em série de acordo com a tendência cultural” (p. 21). 30
Não há nestas palavras nem um grão de relativismo, pois Gramsci – anterior à moda dos estudos culturais – não estava se consolando ou sendo indiferente à tradição literária, que ele sabia apreciar. Apenas, dispunha-se a tentar compreender os traços principais que distinguiam o seu tempo e a procurar, no solo cultural, possibilidades para a germinação da grande obra. Nada há de confortável em nossa escolha, porque não nos sentimos imunes ao mal-estar e à dificuldade de leitura que a criação literária daquele momento de experimentação nos oferece: em sua maioria, produções deliberadamente (ou “na medida do impossível”) irregulares. Quem sabe o epigrama de Marcial que Augusto de Campos traduziu no
Balanço da bossa (1993, p. 15) pudesse brincar com nossa relutância: Só admiras os velhos, só a arte Dos mortos move a tua pena. Sinto muito, meu velho, mas não vale A pena morrer para agradar-te.
Seu livro defendia justamente as inovações tropicalistas no calor da hora, e o tom polêmico revela o entusiasmo da aderência – lúcida na medida de sua agoridade – a um projeto de renovação na música popular. Nosso olhar talvez esteja mais sombreado, mas buscamos, de forma cautelosa, aproximarmo-nos. Nesse âmbito do valor cultural, reconhecemos que a produção dos poetas marginais, pós-concretos, ou pós-tropicalistas, influenciou de maneira decisiva grande parte das publicações contemporâneas, atualizando a linguagem ao provocar a consciência de questões mais afins a um sentimento de mundo particular, diverso do corrente nos manifestos concretos dos anos 50/60 e, posteriormente, nos saltos participantes e nos congraçamentos resistentes da esquerda dos anos 60. Parece-nos que houve certa confluência de escolhas estéticas, à volta de problemas similares, em poetas de formação e idade diferentes, naquele momento. Constatamos ainda, lendo mais extensamente a obra de alguns dos poetas a partir da sua produção completa até agora, que eles superaram a primeira formatação com que foram então caracterizados. Se, por um lado, a antologia 26
poetas hoje (1976, org. por Heloísa Buarque de Hollanda) definiu uma geração, por outro, circunscreveu-os em um estilo comum adequado àquela circunstância temporal. A recepção daquela forma era necessária aos anos 70 e 80: hoje temos condições de diferenciar a produção de cada um e observar em que extravasam o 31
rótulo de tamanho único. Gostaria de ocupar o movente lugar do leitor empático mas desconfiado que, se não releva as contradições, não deixa de observar o quanto de nervo pôde ser exposto por aqueles poetas. Sem escamotear limites, não menosprezar o que trouxeram de desafio e radicalização para a linguagem poética, posto que muitas vezes em processo. O que podemos desenterrar e expor à luz? Por quê? É uma posição mais difícil do que aderir ou recusar.
Tensões sem solução...
... the mind, is empty of sense, no alliance can be made between self and things and the self is weary of its masks its conjugations and no longer asks for verbal the poison pit of conscience for the world of perpetual beginnings . . .
Kenneth White34
Um livro recente do poeta e crítico francês Jean-Michel Maulpoix ostenta o melancólico título de Adieux au poème (2005). Nele, o prestigioso intelectual argumenta que o poema, complexo coeso de imagens e de sons, tal como o conhecemos, estaria em vias de desaparecer ou, na verdade, já teria desaparecido, por força de um incremento sucessivo, na modernidade, de negatividade, até a dissolução do lírico:35 “Este é um livro de adeus ao que se perde ou ao que já desapareceu: o poema, tecido de figuras, objeto de beleza, densidade de fatos da língua.” (p. 9) 34
Trecho do poema “Now in this Tomb” ( The Cold Wind of Dawn, Londres, 1966), citado por Michael Hamburger em A verdade da poesia . Trad. Alípio Correia da Franca Neto. São Paulo: Cosac Naify, 2007, p. 413. 35 Antoine Compagnon (2009), ao defender a pertinência da literatura hoje, inicia sua argumentação lembrando que “Um ‘Adeus à literatura’ se publica a cada temporada” (p. 24), o que confere ao tema certo ar de assunto batido pelas sucessivas retomadas já rançosas. Mas não cabe ao livro de Maulpoix anunciar mais uma vez a “novidade”: sua discussão incide sobre outro ângulo da questão, que esperamos esclarecer ao longo de nosso texto.
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A poesia, segundo o autor, vem se nutrindo de tudo o que a paralisa e « não cessa de repetir a fratura » (p.10): « os modernos se esforçam em depurar o poema de suas faltas retirando-lhe a música e as imagens.
Enfraquecido,
depauperado, proibido de Canto, ei-lo transfigurado em um rude e sóbrio objeto da língua, concebido menos para comover ou seduzir do que para infundir temor. O discurso em vigor tolera a poesia apenas na condição que ela se declare ‘inaceitável’: culpada de impostura, ela só será purificada de seus crimes românticos se votar-se à mais severa das autocríticas.” (p. 11) Desconfiada dos valores que antes cantava (beleza, amor, natureza, divindade), e da forma melódica como o fazia, 36 a poesia se volta fortemente contra si desde os românticos que propunham a combinação de sublime e grotesco. Baudelaire salientou radicalmente esta convivência. Rimbaud seguiu tal tendência explorando as possibilidades da sinestesia e da justaposição de significados. Laforgue e Corbière dedicaram-se à auto-derrisão (tomando alguns modelos do caso francês). As vanguardas modernistas vão acentuar o fragmento, a ruptura da organicidade, os trechos de conversa e todo tipo de ruído no verso, avançando em territórios cada vez mais desconexos e prosaicos, abalando fortemente a confiança da arte em si mesma. No Brasil dos anos 50 surgem desafios extremos, desde o momento em que João Cabral publica a “Fábula de Anfion” e principalmente a “Antiode” (ambos em Psicologia da composição, 1947), nas quais recusa a concepção tradicional de lirismo. Mais tarde, o movimento concreto propõe uma poesia sem sujeito aparente e sem sintaxe – palavras em movimento, em consonância com uma estética urbana e industrial. Depois, porém, tanto Haroldo de Campos quanto Ferreira Gullar voltarão ao verso com renovada força – como se continuar assim fosse insuportável. Mas a crise se arraigara, abrindo veios para uma
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A relação entre beleza e verdade, a “coerência do mundo” humano, divino e natural – uma interpretação do destino do homem enraizado no plano sobrenatural – srcinou a figuração poética, que vinha acompanhada do metro regular, do ritmo melódico e das imagens simbolizantes. Auerbach (1997), ao estudar a evolução do termo “figura” desde os latinos, observa seu grande desenvolvimento no período do primeiro cristianismo, quando história humana e divina se entrelaçavam, e a primeira era uma figuração da segunda. Não se tratava de mera alegorização, em que aos traços de algo já se atribuía um significado outro, mas de imprimir no real uma interpretação transcendente sem que este perdesse sua constituição plena. Assim, a palavra “figura” vai sendo apropriada pela poética, como forma de recriar pela palavra bela a harmonia do universo.
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problematização radical da linguagem poética, incorporada à nossa produção contemporânea. A poesia dita marginal, juntamente com os seus antecessores chamados pós-tropicalistas, introduz de novo um ciclo anti-formalista e anti-lírico, aguçando o desejo de imediatez em relação às experiências do sujeito ao lado de um não descolamento da linguagem coloquial, agora atacando a poesia tanto pelo flanco da construção quanto do conteúdo: “um tipo de literatura violentamente antitradicional, que parece feita com sucata de cultura”, conforme nota Antonio Candido (1974, p.25) ao retratar a produção jovem dos anos 70, e ali se referindo especificamente a Waly Salomão. Continua Maulpoix: « parece que somente a via do negativo permanecelhe aberta, e que ela só poderia combater as deformidades da Época reproduzindoas violentamente”... “todo um establishment do gosto parece aplaudir esta arte da abjeção”. (de acordo com Jean Clair, De Immundo, 2004, p. 29, apud Maulpoix, p. 15). A poesia contemporânea se retarda sobre restos : « cicatrizes ou cinzas, objetos de pouca importância, dejetos e velhas relíquias.” (p. 37). Seja através da reciclagem, das citações ou do acúmulo de detritos, como uma algaravia em que o sujeito se expõe em pedaços incoerentes: “Estes restos, igualmente, são aqueles de uma autobiografia impossível onde o sujeito, convertido em ‘tradutor de pedregulhos’, nunca se entrega diretamente, mas se apresenta através da experimentação de diversas modalidades da enunciação.” (p. 41). Será que o poeta ainda procura - depois de sua descida aos Infernos (tal um Orfeu para resgatar da morte sua musa) - um retorno através do canto da perda, na “energia do desespero” (como a batizou o poeta e pensador Michel Déguy)? Será que a poesia continua responsável pela exploração do destino humano, uma vez que a herança passada lhe confere o compromisso da reflexão sobre o futuro? Assim acreditam Maulpoix e Déguy. Para eles, o poeta permanece em vigília, atento: “o poeta confere presença ao que se ausenta inexoravelmente: o que não existe, ou o que o tempo leva, o que já não é mais ou nunca será.” (p. 324), como um átimo de presença. Afirma por fim Déguy que poesia é promessa - expansão
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da possibilidade do mundo - revelação, espaço de alteridade pela comparação: uma profanação da herança para ampliá-la.37 Os poetas passaram a explorar lugares pouco visitados. Há poemas do inglês Philip Larkin que descrevem o ambiente das salas de espera dos hospitais públicos, e de Charles, nosso poeta marginal, sobre o prazer de limpar um fogão ouvindo rádio... mas os versos não se restringem a ser “sobre” tal ou qual assunto – simplesmente abrem a percepção para recantos e sensações, como uma caixa de ressonância que, ao ampliar o eco das palavras, remete a considerações, no mínimo, sobre o mais obscuro no sentimento de mundo de uma geração. Evidentemente, o poema “funciona” quando o recorte é suficientemente bem apanhado para imantar-nos. Pois essa arte corre riscos e, como todo experimento, pode não funcionar. Embora nos anos 60 e 70 vários críticos e teóricos tenham dito que chegáramos à exaustão do modelo de arte tal como praticado desde o Renascimento, poemas continuaram a ser escritos durante e depois deste período. O crítico italiano Roberto Vecchi cunhou o termo “modernismo–póstumo” para caracterizar a poesia escrita a partir daquela época.38 Debord, guru do período, crê que a arte acabou ou está no fim, pois se a cultura busca a unidade, e ela está separada em compartimentos, deve-se tentar reunir as esferas da vida, mesmo que ao custo da destruição da arte autônoma. Para ele, a arte vai definhar em seu isolamento, por isso precisa reintegrar-se à vida. Ou ela deve ser utilizada como instrumento crítico, ou continua a “manutenção organizada como objeto morto, na contemplação espetacular.” (p. 121). Nesse caso, a reprodução da sociedade do espetáculo permaneceria inalterada. Os situacionistas desejavam superar a arte, algo que os dadaístas (ao querer suprimi-la) e os surrealistas (ao querer realizá-la) haviam tentado. Declara o teórico:
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Conforme comenta Paula Glenadel em seu ensaio introdutório sobre o poeta, “Uma geopoética do ‘como um’”, na antologia bilíngüe de Michel Déguy, A rosa das línguas (org. e trad. Paula Glenadel e Marcos Siscar) (2004), p. 32. 38 Ao caracterizar a poesia de Francisco Alvim, Vecchi destaca o aspecto fragmentário e arruinado, que contraria o tom jocoso do poema-piada de tradição modernista, como se o fantasma e a herança, reavivados, adquirissem outra conotação no contexto contemporâneo. Remeto a seus textos “Do histórico no fragmento pós-trágico: quando o poema leva a sério a piada” (2006) e “O real como projeto poético de Elefante de Francisco Alvim” (2004), aos quais me refiro adiante, no texto sobre o poeta.
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A arte em sua época de dissolução, como movimento negativo que prossegue a superação da arte em uma sociedade histórica na qual a história ainda não foi vivida, é ao mesmo tempo uma arte da mudança e a pura expressão da mudança impossível. Quanto mais grandiosa for sua exigência, tanto mais sua verdadeira realização está além dela. Essa arte é forçosamente de vanguarda , e não existe. Sua vanguarda é seu desaparecimento. (1994, p. 124)
Muitos críticos asseveram que as décadas de 60/70 são o encerramento de um ciclo. Embora o prognóstico do fim da arte não tenha se cumprido, certamente, ao ser colocada violentamente em questão, houve um abalo em suas perspectivas de realização. Os artistas daquele momento se viram desafiados a propor novas balizas, ao ponto de ir além dos confins da destruição da arte. Mesmo um poeta como Armando Freitas Filho, que se aproximou apenas afetivamente dos marginais sem seguir pelo caminho da desliteratização, naquele momento, porém, mostrava-se convicto da necessidade de ir além da obra, como se percebe na tensão e torção de seus livros do período, e explicitamente nesse excerto de seu ensaio sobre a poesia nos anos 70 (1979, p. 122): E entendo, também, finalmente, com esse poema de Tite [de Lemos], que graças a Deus e ao diabo, nesse tempo de abertura que pode arrebentar e prender, o outrora sagrado, estético, secreto coração da literatura já não existe mais – ele está “...bordado, em pleno vôo, na camisa do peito.”
No caso brasileiro, a alusão ao fechamento político e social aguçaria especialmente a tendência a colocar em risco a configuração da obra autônoma, sugerindo-se outro lugar, de coincidência entre linguagem (roupa) e sujeito (peito, corpo), como se a poesia pudesse pulsar no ritmo da respiração, movendo-se na velocidade do ar da vida (e com ela se dissolvendo sem deixar rastro). Anseio impossível, mas assim mesmo convictamente expresso. Pretendemos apontar de que forma a poesia passou pelo mesmo torvelinho que as outras manifestações culturais, especialmente aproximando o discurso crítico das artes plásticas das realizações poéticas ao longo da década de 70. Ao compará-los, parece evidente que pontos cruciais de conversão tornam seus percursos paralelos (até certo ponto...) pois passaram por metamorfoses análogas, vivenciando uma inflexão similar.
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Se a concepção de eternidade ou permanência lenta, que informa a própria idéia de obra, vem se extinguindo, a arte tenderá a desaparecer, reflete Jameson (1997). Observa o crítico que a temporalidade contemporânea, fruto da experiência urbana moderna, das tecnologias de informação e produção, é de tal maneira acelerada que está se deteriorando até mesmo a referência ao conceito de mudança. Baudelaire e Proust cultivavam a saudade do perdido no momento de transformação do mundo urbano, mas hoje tal tipo de nostalgia não pode se aprofundar, pois o processo de demolição e construção de novas edificações é constante. Quando as alterações na cidade são cotidianas, o conceito de permanência perde o sentido. Não apenas a arte entrou em crise na modernidade39 como também todas as formas tradicionais de sociedade (tais como a igreja e a família), uma vez que elas também não acompanham a racionalização capitalista. No espaço urbano planejado para melhor circulação dos bens de consumo (e das pessoas que os produzem e vendem) vão desaparecendo os marcos estáveis de modo análogo às relações humanas. No limite, as representações ideológicas tendem a ser padronizadas de acordo com as necessidades do mercado, conforme uma concepção do “presente puramente fungível, no qual o espaço e as psiques possam igualmente ser processados e refeitos à vontade” (p. 29), submissos aos interesses das grandes corporações, que manipulam a disposição das ruas da cidade assim como o destino dos sujeitos. Pondera ainda Jameson que, devido à “equivalência entre uma taxa de transformação sem precedentes em todos os níveis da vida social e uma estandardização sem precedentes de tudo – sentimentos junto com bens de consumo” (p. 30), constituiu-se um paradoxo: esta aceleração das mudanças, e o fato de elas serem programadas de forma modular, confere ao nosso tempo a aparência de uma “estase de ficção científica na qual as aparências (os simulacros) brotam e decaem sem cessar” (p. 31). Como a lógica da moda, que imprime a impressão de uma inovação incessante, o fluxo de variações permanece estável, de 39
Segundo Marcos Siscar (2010), em “As desilusões da crítica de poesia”, a poesia moderna se constitui a partir e em torno do sentimento de crise, pois “É pela via do discurso da crise que se justifica ou se torna necessária a reinvenção ou refundação da subjetividade e da comunidade” (p. 175). Veja-se, em seu livro, este e outros ensaios que se referem à questão.
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tal modo que o conceito de novo deixa de fazer sentido. Os ritmos, antes naturais, são simulados para a conveniência comercial (coleção de outono, coleção de primavera, modelo 2008...). Portanto, “doravante, quando tudo se submete à mudança perpétua das imagens da moda e da mídia, nada mais pode mudar”, pois há uma “persistência do mesmo na diferença absoluta” (p. 32). Isto é um dos elementos fundamentais do que o crítico descreve como pós-modernidade: o equivalente à sensação de fim da história, quando o pensamento fica bloqueado, sem acreditar na possibilidade de qualquer reforma substancial que conduza a outro sistema. Como se a variação contínua fosse análoga à paralisia, pois “mudança absoluta igual a estase” (p. 33). Acreditamos que nos anos 60 e 70 ocorreu o momento fulcral em que começa a acontecer esse estilo de vida impulsionado por uma onda capitalista de novo tipo. Mas, por isso mesmo, a energia para a revolta foi especialmente concentrada. Reconhecemos no ímpeto de modificar tudo imediatamente e na desconfiança em relação a qualquer postergação como característicos do contestador daqueles anos. Adverte porém Jameson que há um evento irreparável que interrompe abruptamente a ilusão de sucessividade estática: “a morte e a passagem das gerações”. O jovem emblemático dos anos 70 morreu rápido, no auge de sua energia, e depois sucedeu-se sua canonização como rebelde máximo (Che Guevara, Torquato Neto, Hélio Oiticica, Cacaso, Leminski, Ana Cristina Cesar, Janis Joplin, Jim Morrison, Jimmy Hendrix, assim como outros menos conhecidos, como o poeta Guilherme Mandaro e o compositor da MPB Sidney Miller). Eles são a medida do tempo urgente e curto. Sua presença foi eternizada e desempenha hoje papel no consumo, porque se constituíram em símbolos da revolta intensa, como uma combustão de toda vitalidade inconformista.40
40
Em depoimento, a psicanalista Maria Rita Kehl rememora o engajamento político e a mudança comportamental de sua geração. Ao final, lembra de uma propaganda de calça jeans cujo slogan era “Liberdade é uma calça velha, azul e desbotada”, em que aparecia um jovem cabeludo tocando gaita num vagão de carga de trem. E comenta então: “O que eu não sabia era que aquela propaganda, dirigida aos consumidores da minha geração, marcava – acho que o ano era 1981 – o fim da nossa década de 1970.” (“As duas décadas de 70”, vários autores, Anos 70: trajetórias , 2005, p. 23).
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Por sinal, os poetas que morreram jovens, como Ana Cristina, Leminski e Torquato são muito representados em fotos que acompanham seus livros de poemas, como se sua presença empírica devesse ser iconizada.41 Conforme percebeu sombriamente Debord, Onde se instalou o consumo abundante, aparece entre os papéis ilusórios, em primeiro plano, uma oposição espetacular entre a juventude e os adultos: não existe adulto, da própria vida, e a juventude,porque a mudança daquilo nenhum que existe, não édono de modo algum propriedade desses homens que agora são jovens, mas sim do sistema econômico, o dinamismo do capitalismo. São as coisas que reinam e que são jovens; que se excluem e se substituem sozinhas. (1994, p. 42)
Essa poderia ser o epitáfio da “Nuvem cigana” e dos poetas marginais. Eles foram, no nosso imaginário, o epítome da juventude, com todas as características de renovação, rebeldia, deboche, liberdade, espírito tribal, irreverência, descompromisso, onipotência, destemor – grande capacidade de ação grupal e de se divertir, ao mesmo tempo sem parar de pensar, experimentar, desejar mudar. Quando a democracia chegou, após o milagre econômico e a abertura política, o grupo, reintegrado à sociedade, se desmobilizou. Sua criatividade passa a ser vendida para a sociedade afluente de espetáculo, sua energia é sugada, pasteurizada – e cada um segue seu caminho, na TV Globo, nos teatrões, na propaganda...42 Reflete ainda o crítico norte-americano que quando a modernização ocidental se firmou no Terceiro Mundo houve forte oposição, mas as resistências foram destruídas e a srcinalidade da cultural tradicional, assimilada (embora em alguns lugares apareça um neotradicionalismo reativo, como o confucionismo na 41
Ver a esse respeito as agudas observações de Flora Süssekind em seu texto “Hagiografias. Paulo Leminski”, no qual faz um levantamento inicial sobre o martiriológio ou santificação dos autores e músicos que morreram jovens nos anos 70. Na obra de Cacaso, examina as imagens angelicais, e nos escritos de Ana Cristina, algumas referências religiosas ou de destruição. Registra também o uso da fotografia que acompanha seus livros, e que transmite, especialmente em Cacaso, uma aparência típica dos anos 70. Já Ana Cristina varia bastante em sua representação icônica. O ensaio de Süssekind concentra-se na análise da inclinação religiosa que acompanhou sempre a obra de Leminski e conclui que, mesmo quando auto-irônico, o “modelo hagiográfico”, que “pode parecer, à primeira vista, recurso atemporalizador, [mas] talvez, diante do contexto brasileiro dos anos 1960 e 1970, esse aparente anacronismo tenha se mostrado particularmente apto a captar impasses estético-ideológicos do período.” (2007, p. 74). 42 Ao ler a biografia de Chacal, Uma história à margem (2010), retifiquei em parte essa constatação, pois ele relata muitas experiências recentes de resistência à mercantilização da cultura, protagonizadas por ele, por artistas valorosos de sua geração, assim como pelos mais jovens, contaminados pelo mesmo espírito rebelde.
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China). Enfim, a residualidade pré-moderna fazia parte das sociedades modernas, contudo agora só o moderno prevalece – e isto é o pós-moderno.43 No Brasil (e em toda a América Latina) também a juventude dos anos 60 e 70 tentou incorporar aspectos mais arcaicos da cultura em sua visão de mundo assim como um ideário afastado do progresso urbano (associado, é claro, a outras influências). Mas tal reapropriação se deu de forma mítica e alegórica, já em parte nostálgica. Assim, a reativação dos blocos de rua no carnaval, as festas populares, o futebol de várzea, a vida tranqüila e simples do campo, as formas comunitárias de trabalho, foram valorizados num momento em que elas se midiatizavam e se adaptavam ao formato de espetáculo, ou simplesmente desapareciam. Como se aquele momento de explosão rebelde antecipasse o que se sucedeu logo depois: o “pessimismo generalizado”, a “apatia política”, o “desejo de ordem e contenção”. O fracasso das utopias (seja pela falência do comunismo, seja pela impossibilidade do sonho anarquista - ambos sem lugar na sociedade do capital multinacional high tech) desembocou no fundamentalismo do mercado. Concluindo as considerações de Jameson, observamos que ele nota nos jovens contemporâneos uma “experiência enfraquecida de futuro”, que teria relação ora com a sensação de paralisia da história, ora com a sensação de aceleração da vida. As duas coordenadas, aparentemente paradoxais, causam essa impressão de “estase”. A percepção de hoje costuma ser de que “o tempo consiste num eterno presente, e mais adiante, numa catástrofe inevitável”, o que conduz à incapacidade de imaginar qualquer transformação significativa, como se houvesse uma “paralisia de um lobo do cérebro coletivo”. Nas décadas de 60 e 70, porém, a luta contra o domínio da sociedade administrada foi especialmente enérgica, pois as modificações sociais estavam se processando abruptamente (no caso brasileiro, a urbanização acelerada, o milagre econômico, a ditadura, foram fatores que desencadearam resistência), portanto a urgência de alterar o presente seria de outra ordem. Por isso cultiva-se com saudade a inspiração da década de 60 em
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Cremos que tal exame agudo da realidade contemporânea encontra-se sob a égide da experiência do primeiro mundo, especialmente os Estados Unidos, onde mora o crítico. O desaparecimento das manifestações da cultura popular não se estende de forma tão extrema à América Latina, em que, seja de forma híbrida, seja por vezes de modos bastante genuínos, ainda se faz presente. A absorção “antropofágica” das influências externas vem acompanhada, inúmeras vezes, de manifestações da cultura popular que resultam em amálgamas muito fecundos.
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especial como última época “idealista”, mesmo que se deslocassem consideravelmente, naquele momento, os projetos de inovação do modernismo. Os tempos são propícios para o ceticismo. Mas, argumenta por fim Jameson, a desconstrução de ideais pode não ser em si mesma anti-utópica e sim revelar um impulso utópico inconsciente que se desconhece. Por temor à frustração, a lógica das novas gerações rejeita a possibilidade de mudança radical. De todo modo, uma alteração importante na forma de se organizar deu-se a partir da descrença em qualquer tipo de totalidade monolítica que negasse as identidades dos pequenos grupos. O repúdio ao centralismo e ao estatismo criou outra cultura política. Isso começou a tomar forma nos anos 60 e 70 quando o vigor da discussão se apoiava no desejo de “mudar a forma de mudar”. Nosso principal motor será, portanto, examinar traços de parte da poesia à volta dos anos 60 e 70 tendo em vista repensar aspectos da cultura contemporânea a partir do impulso questionador (quiçá, por vezes, destruidor) daqueles anos. E o faremos considerando a possibilidade de que o período foi um vórtice que atraiu para um torvelinho parte considerável das artes quando nem todos conseguiram suportar a tensão da permanência na borda, fracassando em realizar algo que se sustente. Tentaremos entender essa procura extrema, mesmo quando as respostas conseguidas sejam irregulares.
Notas conclusivas A clivagem proposta pelas vanguardas, ao relativizar ou mesmo destruir o conceito de obra como um todo orgânico, desmistificando a realização do produto ao apresentar seus bastidores, e ao enxertar na construção simbólica aspectos do real em bruto, alterou a ilusão representativa, proporcionada pela arte ao longo dos séculos. Uma nova linguagem foi se consolidando nos tempos modernos que incorporou como procedimentos formais estes ataques, de modo que também a montagem, a fragmentação, a colagem, passaram a integrar a sintaxe artística. As neovanguardas dos anos 50 a 70 voltam a se inspirar numa postura de suspeita em relação à contemplação estética. Passado o auge da fase construtivista abstratizante no Brasil (em meados dos anos 50), inicia-se um período de embate vigoroso dos limites entre arte e realidade.
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Se as chamadas neovanguardas do pós-guerra remodelaram procedimentos das vanguardas, como já observaram tantos estudiosos, deveríamos ressalvar, na esteira de Hal Foster (1996), que esse tipo de reaproveitamento gerador é comum na história da arte. Afirmar que o concretismo deve muito ao construtivismo russo, ao futurismo e à Bauhaus, ou que os marginais e os tropicalistas retomam o espírito iconoclasta de alguns modernistas (como Oswald de Andrade) não se traduz, afinal, em compreensão completa desses movimentos, porque se desconsidera o deslocamento de tempo e lugar, que introduziu tantas nuances e novos problemas. Foster desenvolve a noção freudiana de “ação deferida” para explicar como um evento posterior recorda retroativamente o trauma anterior, tecendo uma rede complexa de relações que possibilita a consciência aumentada de um evento passado.44 De modo que a arte performática dos anos 60 e 70 não pode ser mera repetição de manifestos dadá e surrealistas, mas relê em outro contexto aquelas “instruções”, atualiza-as ao radicalizá-las, esclarecendo seu poder de ruptura assim como suas contradições. Segundo o crítico, essas ações deferidas recriam algo do sentido do passado, permitindo inclusive que se perceba que a destruição da arte não era nem a única nem sequer a principal vertente das vanguardas. Duchamp, que pode ser tomado como paradigma do artista-teórico, propunha-se a desmistificar as convenções da arte assim como as da vida, no capitalismo.45 Como se sabe, a completa indiferença na escolha de um objeto feito em série para constar de uma exposição de arte, com o efeito explosivo que se sucedeu a essa recusa da obra e do autor, será um pólo de reflexão para as novas gerações de artistas. Em 1913, ano de seu primeiro ready-made, tal gesto foi tomado no contexto dadá. Mas, nos anos 60, Duchamp vai fundar outro ponto de virada, quando foi exposto, post-mortem, o misterioso “Étant donnés”, um tipo de 44
O autor sugere ainda o conceito de paralaxe para a melhor visualização da “figura paradoxal ” que desdobram no tempo as neovanguardas. Hal Foster enfrenta a polêmica em torno das neovanguardas (cujo principal oponente seria Peter Bürger, em sua controversa Teoria da vanguarda , 1993) principalmente no Capítulo I, “Who’s afraid of the neo-avant-garde?”, de seu livro The return of the real (1996) cujos argumentos reproduzo e em parte adapto neste e nos próximos parágrafos. 45 Remeto ao excelente livro de Octavio Paz, Aparencia desnuda. La obra de Marcel Duchamp (1973) para uma interpretação informada e refletida de todo o percurso do artista. O poeta dá a entender que Duchamp teria sido tanto um dos mentores das vanguardas quanto, afinal, das neovanguardas, através de realizações diversas mas coerentemente complementares.
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instalação que demanda o olhar ativo do espectador para ser observado, além de leituras aforismáticas de seu caderno de notas para ser “interpretado”. Estaria ele reconsiderando o efeito aurático da arte, no ambíguo movimento de esconder e mostrar uma obra, simultaneamente de luz e sombra, natureza e tecnologia, pintura e simulacro? Assim, condenar as neovanguardas por insistirem em deslocar o intervalo entre arte e vida, considerando seu esforço de testar essas fronteiras como uma traição do projeto da modernidade (por isso mesmo falhada ou incompleta) seria reduzir as tendências modernas a um modelo único. Embora parte da arte hoje seja de fato espetáculo para o mercado burguês, a crítica concomitante a esse estado de coisas aprofundou-se consideravelmente nos anos 60, tornando-se este justamente um de seus principais motivos de reflexão, ao compreender os desafios das vanguardas históricas de modo ainda mais agônico. As estratégias de alteração por dentro se realizaram em várias esferas: no teatro de arena participativo, que se propôs a ser uma experiência coletiva; nas artes visuais, que todo o tempo dispõe-se a exibir o material e a moldura; e na poesia, quando esta perverte as fronteiras entre o prosaico cotidiano e a forma literária, incorporando a frase ouvida na rua, a conversa, o trecho do diário em estado bruto. Tanto a arte dita engajada, quanto a experimental dita de vanguarda – todas as tendências – sofrem, de um lado, o temor de se cristalizar em objeto alheio à vida (portanto artefato meramente decorativo), e de outro, a “angústia da banalização” (conforme Ana Cristina descreve o medo de perder o território da linguagem poética). O que começou dicotômico em termos de posições opostas no começo dos anos 60, no entanto, passa pela mesma clivagem logo adiante no tempo. O formalismo concreto inclui em seu paideuma a criação advinda do acaso de John Cage, assim como a prosa delirante e prolixa de Leminski em Catatau, além da transgressão dos beatniks e a poética do precário de Hélio Oiticica. Os antiformalistas aderem, muitas vezes, à concisão e à visualidade dos concretos, mesmo quando não o reconhecem.46 Com isso, não se pretende ignorar as
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No começo dos anos 70, estava acesa a crítica ao que a nova geração identificava como “vanguardas assépticas e formalistas” (Cacaso, “Nosso verso de pé quebrado”, Argumento , n. 3, 1974). Na mesma linha, Ana Cristina vai se opor ao que considera
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diferenças e as distâncias, sempre mantidas, mas reconhecer certos cruzamentos (mesmo quando inconscientes). Em alguns momentos, como já dissemos, a especificidade das diversas artes se esmaece, com propostas de integração entre elas. O termo happening, que não era então difundido no Brasil, traduz bem a concepção de “acontecimento” – algo que passa a fazer parte do real, como um evento da vida. Exemplos bem característicos desse período são as performances do grupo “Nuvem Cigana” (as Artimanhas), e as apresentações teatrais de “Asdrúbal trouxe o trombone”. Em ambos os casos, trata-se de criações coletivas, envolvendo o concurso de vários tipos de artistas (músicos, escritores, cenógrafos, atores, pintores, fotógrafos, etc) para a realização de um espetáculo que pressupõe interação do público, terminando em festa, em carnaval. A elaboração artística pressupunha então uma forma de vida comunitária, em que as decisões eram discutidas intensamente, e toda organização do evento incluía contribuições as mais variadas. Assim se deu com a coleção de livrinhos de poesia editados pela Nuvem Cigana, pela Coleção Capricho e a Frenesi, por exemplo. De acordo com os depoimentos coletados, seja por Carlos Alberto Messeder Pereira para o seu livro Retrato de época: poesia marginal (1981) seja posteriormente por Sérgio Cohn para o livro Nuvem cigana (2007), fica evidente a influência da grande cidade cosmopolita dinamizada pelas informações trazidas do primeiro mundo da cultura jovem internacional (especialmente dos grupos de rock e do cinema), além da informalidade proporcionada pela vivência na praia, e ainda, a proximidade da cultura popular dos morros e suas manifestações coletivas ligadas ao samba e ao futebol (sobretudo, graças à geografia urbana que facilitava os encontros diários). Essa conjunção característica do Rio de Janeiro (tão diferente, naquele momento, da São Paulo industrial, migrante, dispersa, com enorme separação espacial entre as classes) permitiu a troca fecunda de diversos registros: aspectos agremiativos de resistência da cultura popular, vertentes contestatórias da cultura pop, fímbrias experimentais da cultura erudita. Tal formalismo cabralino (“Poesia hoje: debate”, revista José n. 6, agosto 1976). Por outro lado, os concretos (Augusto de Campos, Risério, Asher) também criticam a imediatez da poesia marginal. Mas, na própria José , números depois, já os marginais, antes discriminados, publicavam seus poemas com espaço e elogios.
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caldeirão de aproximações, característico da cultura underground carioca, apresenta especificidades em São Paulo, em que a referência cultural dos jovens de classe média foca-se muito mais nos estudos universitários e na indústria cultural – sem a mediação da cultura popular e muito menos da paisagem natural.47 Assim, as deambulações solitárias dos poetas paulistas tendem ora à introspecção do imaginário surrealista ora à constatação descarnada do chiste, da ironia, ou mesmo à disposição espacializada de palavras com sentido metalinguístico. Evidencia-se a relação entre a percepção da realidade apertada, e o desejo de superar esse confinamento autoritário, projetando para o cotidiano o sonho de alterar a vida, imediatamente. A arte parece então o local privilegiado onde o imaginário, a “promesse du bonheur” pode ser finalmente antecipada, mesmo que ao custo de sua transfusão para a linguagem informal, efêmera. Sabemos que alguns aspectos mutantes da poesia dos anos 70 não foram totalmente absorvidos pelo nosso tempo – ainda que estudados e interpretados, há um elemento exilado e interrompido em sua escrita que não se diluiu nem de fato na corrente que flui da história cultural. Parte de sua incomunicabilidade permanece, extrema, pois exigiria do leitor apreensão e acolhimento que apenas em centelhas pode ser realizada: “Amor, isto não é um livro, sou eu, sou eu que você segura e sou eu que te seguro”...48 Não aconteceu o que esses artistas aspiraram: “Changer la vie!”. A superação da autonomia da arte, devolvida ao cotidiano transformado, não veio. Ficaram os testemunhos, “empacotados” (na expressão de Torquato) – brilhos esparsos, cadentes. Mas reconhecemos a presença inquietante do poeta adolescente, de Rimbaud e de toda a modernidade, atualizando a vontade de romper as amarras do 47
Houve, porém, mais de um momento de troca entre os poetas das várias capitais, que propiciaram aproximações fecundas: veja-se o relato da viagem dos integrantes do “Nuvem Cigana” a São Paulo para encontrar Willer e Piva em evento no Teatro Municipal, assim como de sua apresentação em Brasília, que irá influenciar o grupo “Cabeças”, em que se destacava Nicolas Behr (no livro Nuvem Cigana , 2007). 48 Trecho de poema emblemático de Ana Cristina Cesar, no qual ela parafraseia Whitman, e que poderia ser uma síntese do jogo poético de sua geração: entre o livro e o desejo de comunicação imediata. Os três últimos parágrafos desse ítem, a começar por “Sabemos que algo”... foram reproduzidos do prefácio que escrevi para o seu livro Antigos e soltos (2008) .
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cais e navegar (ou naufragar) – que importa? – em direção aos limites de uma terra desconhecida que, pelo sonho, pela arte, pelo desejo da vida inteira, tentaram atingir.
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O fixo e o fluxo: notas sobre tempo e forma em Augusto de Campos e Ferreira Gullar49
As indagações desataviadas que se seguem são o mote para pensar a modo de gangorra – isto é, parece-me que tanto Augusto de Campos (1931) quanto Ferreira Gullar (1930), poetas contemporâneos um em relação ao outro, tematizam obsessivamente a relação entre representação poética e passagem do tempo, impondo ao problema soluções antagônicas. Enquanto Augusto pode dar a impressão de distância quase impessoal (como agudamente formulou Gonzalo Aguilar, semelhante a um “sujeito espectral”), propondo a questão de modo universal e epigramático, e criando formas geométricas que fixam o sentido do poema também visualmente, Gullar carrega-o de dramaticidade por vezes trágica, fundada na memória do perdido, tomando a imagem das frutas que apodrecem sem remissão ou a impossibilidade de conversar com os mortos, com versos vertiginosos. Em comum, ambos alcançam um grau de perplexidade cósmica e interiorizam o tempo na matéria do poema. No Manifesto Neoconcreto (1959), uma das críticas que Gullar endereçava ao concretismo era sua insistência na espacialidade óptica, que, ao eliminar a sintaxe discursiva do poema (portanto, a sucessão em fluxo, característica da literatura, que a diferenciaria, tradicionalmente, das artes visuais), negaria a dimensão da temporalidade, uma vez que a poesia concreta se propunha a apresentar as palavras não como sinais para a representação, mas como “objetos” que fariam parte do design da cidade. Os artistas que subscreviam o Manifesto apoiavam a volta ao “verbo”, que consideravam mais expressivo. Mas, com o passar dos anos, a crítica pôde notar que a duração também estava presente na poesia concreta, de maneira singular. Quando li o texto de Flora Sussekind “Augusto de Campos e o tempo” (1998), tive a impressão de que se matizava aquilo que sempre se alegara sobre a produção concreta a qual, ao rejeitar a disposição frasal do verso para afirmar o poema como um tipo de ideograma significativo em sua totalidade isomórfica no 49
“It is this contrast between fixity and flux, this unperceived evasion of monotony,
which is the very life of verse.”, assevera Eliot em seu ensaio de juventude “Reflections on ‘vers libre’”. Selected Prose of T.S.Eliot . (Ed. por Frank Kermode). Londres: Faber&Faber, 1975, p. 33.
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espaço, recusava por isso a sequência temporal. Era um ovo de Colombo enxergar como a reflexão sobre o tempo ocorria ali reiteradamente, em especial em poemas cuja disposição visual e todos os elementos são constatações da consciência da passagem temporal enquanto procuram ainda assim apreender e segurar, pela forma, o instante lírico. Acrescenta Flora: “Visualização não apontando, portanto, para uma inevitável suspensão temporal, nem espacialização para estaticidade, talvez se possa compreender o aspecto expositivo da poesia de Augusto de Campos, não como atemporalizador, mas, ao contrário, como forma de tensionar a fixidez convencionalmente característica do presente lírico.” (p. 106). A seguir, ela menciona várias traduções realizadas por Augusto, e dentre elas, as odes de Keats e alguns poemas de Yeats, que, como esclarece, são “reflexões sobre o contraste entre permanência e corrosão, sobre as relações entre o instante e o tempo.” (p. 107). Ora, em seu conhecido ensaio sobre Francisco Alvim, Roberto Schwarz (2002), concordando com a avaliação acerca da importância do tempo na poesia de Augusto de Campos ressalva, porém, que o tempo ali não é histórico: “O que Flora poderia acrescentar é que se trata de um tempo reversível, do qual está excluída a história, ou cujo conteúdo histórico é esta ausência” (p. 12). Entendi a declaração do crítico no sentido de que os poemas dos últimos trinta anos de Augusto não se encaixam bem na concepção do regime moderno de historicidade (paradigma que nos acompanha simbolicamente desde a Revolução Francesa, relacionado à visada hegeliano-marxista, que compreende a história como um processo coletivo de transformação dialética rumo a um devir utópico...). Associo o tratamento do tempo na poesia mais recente de Augusto de Campos a dois tipos de regime de historicidade, conforme as definições de François Hartog (1996): um primeiro, que o historiador intitula “presentismo” (que de certa forma teria começado à volta de 1968, mas se firmaria de fato a partir de 89, após a queda do muro de Berlim). Esta modalidade de consciência da temporalidade não crê em modificações necessariamente positivas do atual estado de coisas. Uma série de fracassos relativos às esperanças revolucionárias e vanguardistas no século XX teria levado a uma sensação de encurtamento do tempo. Cito o historiador: “Entendo o presentismo, assim nomeado pela referência e oposição ao futurismo, como a expressão de um profundo questionamento do regime moderno de historicidade. O futuro, o progresso e as ideologias que a ele 48
se prendem perderam sua força de convicção no momento mesmo que a distância entre horizonte de espera e campo de experiência tornaram-se máximos.” (p. 152). Mas, ainda segundo Hartog, “um regime [...] não existe jamais em estado puro.” (p. 132). Aliado a este, pode sobrepor-se um segundo tipo, o da “história mestra da vida”, característico de certas visões da Antiguidade e da Idade Média, no qual os acontecimentos são confirmações exemplares dos modelos já previstos e anunciados, seja pela sabedoria dos mestres, seja pela providência divina. Não à toa sente-se a afinidade entre o efeito de alguns poemas de Augusto de Campos e a meditação zen (não religiosa, porém) – porque há uma concentração no instante, contrária ao percurso horizontal da linguagem: uma pintura do evento em seu momento de manifestação, ou a impressão de epifania poética (quando a palavra intensifica seus sentidos) – por isso a incompatibilidade em pensar a história, o movimento, a discursividade, de maneira processual e linear. Embora a idéia de futuro ainda frequente os poemas de Augusto de Campos, vez por outra (como, por exemplo, em “Morituro”, 1994, constante em Não, 2003), a afirmação da estaticidade do contínuo presente-passado, fundada no ceticismo, dá o tom. O moribundo crê na sobrevivência do ideal poético, a despeito das evidências em contrário, como um tipo de morto-vivo isolado em sua catacumba que espera retornar. A forma-ataúde vai preservá-lo, embalsamado, até que esse mundo perfeito sobrevenha. Enquanto isso, a única atitude a tomar é a oposição diante da alastrada vulgaridade à sua volta, contra a qual o poema se coloca. A partir da discussão acerca de “pós-tudo” (1984, em Despoesia, 1994)50 isto ficou mais claro. À luz de um poema como este é difícil reiterar a energia assertiva dos manifestos, que desejavam a realização de projetos modernizadores – Brasília, o cosmopolitismo, a industrialização, a efervescência política e cultural de meados dos anos 50 até o começo da década de 60... Uma linha subterrânea
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Refiro-me principalmente ao ensaio de Roberto Schwarz (“Marco histórico”, publicado antes no Folhetim, da Folha de S. Paulo, 31/03/1985 e republicado em Que horas são? São Paulo: Companhia das Letras, 1987) e à réplica de Augusto de Campos (“Dialética da maledicência”, também publicado primeiro no mesmo jornal, em 07/04/1985, e depois republicado em À margem da margem . São Paulo: Companhia das Letras, 1989).
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começou a percorrer seus poemas atuais, contrária à figura do poeta entusiasta do futuro.51 As divergências à volta de “pós-tudo” serviam para debater também, mesmo que de modo inconsciente, os rumos da cultura brasileira daquele período. No fundo, as críticas ao poema em parte ecoavam o inconformismo com o decepcionante momento político do começo dos anos 80 (passagem da ditadura para a democracia, sem melhoras sociais profundas). O poema registra o mal-estar individual e coletivo em relação à conjuntura histórica, o que, para o crítico marxista era naturalmente terrível: reconhecer o quanto estamos imobilizados e perplexos pela sociedade do espetáculo. Há algo de antibrechtiano no poema, pois ao contrário do mantra “Tudo muda”,52 ele anuncia, de um lado, a paralisia, ao duvidar da possibilidade de transformação. E, de outro, a mudança inespecífica, sem considerar o resíduo existencial particular.53 Enfim, uma afirmação sobre a (quase) inutilidade das iniciativas e sobre a necessidade de parar e estudar... 51
O ensaio de Haroldo de Campos “Poesia e modernidade: da morte do verso à constelação. O poema pós-utópico” foi publicado contemporaneamente ao poema e anuncia a disposição conformada, mais adequada a esses novos tempos. Republicado em O arco-íris branco . Rio de Janeiro: Imago, 1997. 52 “Alles wandelt sich”, de B. Brecht, na tradução de Modesto Carone (citado por Alfredo Bosi em O ser e o tempo da poesia , 1977): Tudo muda. Começar de novo Tu podes, com o último alento. Mas o que está feito, está feito. E a água Que atiraste ao vinho, não podes Mais retirar. O que está feito, está feito. A água Que atiraste ao vinho, não podes Mais retirar, mas Tudo muda. Começar de novo Tu podes com o último alento. 53
Mas Schwarz elogia, na sua polêmica contra “póstudo” (em “Marco histórico”, op. cit ., 1977), o poema “dias dias dias” ( Poetamenos, 1953) Por quê? Justamente é um poema que se ocupa da passagem do tempo, do amor e da solidão... da memória... e do estertor da linguagem, e da experiência do sujeito frágil. Nesse livro, anterior aos manifestos, todos os poemas são de amor, dedicados a Lygia. Ao lado de “dias”, está “nossos dias com cimento”: ambos se aproximam da música timbrística, serial, de Webern, muito concisa e sugesti va, como um haicai, tematizando a angústi a do tempo que passa, m as também os ecos, retornos, variações e simultaneidades da experiência, da memória, presentes também no lirismo e no amor (entre pintura e música), de forma sutil. No começo de sua produção concreta, havia um tipo de sucessão alternada à simultaneidade... no auge da ortodoxia, como em “tensão”, no qual Augusto alcança um
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Augusto continua a afirmar, em mais de uma entrevista, sua crença no desenvolvimento tecnológico, mas, parece-nos, tais progressos são impermeáveis aos sentidos muitas vezes pessimistas emitidos pelos poemas, embora possam contribuir para o aperfeiçoamento formal dos procedimentos de construção. Em poemas de momentos diversos, como “memos” (1976, em Vivavaia, 54
2000) ou “rapidalentamente” (2001, em Não), é como se a voz poética buscasse conciliar o inconciliável: o tempo que passa em flecha e o círculo do instante que a forma procura aprisionar ou ralentar: um espaço de revelação, mas que escoa e passa – mesmo retido pela textura ininteligível ou pela lenta gota, que poderia dar a impressão de reiteração inumerável, avança para a dissolução. Veja-se também “ão” (1994, em Não): a tentativa zen do om que ressoa no oco, no vão, no osso do som, na canção sem voz – o poema é um núcleo, que tenta apreender o momento de luz. Se escorre como filete (na expressão de Sussekind, 2002), deseja ao mesmo tempo ser o “aço do açúcar”, o tutano, a depuraçãoa palo seco. As diversas formas geométricas que moldam os poemas de Augusto têm parentesco com a retícula (“grid”), e suas inúmeras variações, a qual fez escola na pintura do século XX, conforme se constata na pesquisa fartamente documentada de Rosalind Krauss.55 Segundo a estudiosa, um de seus atributos seria a proeminência de “tudo o que separa a obra de arte do mundo, do espaço ambiente e dos outros objetos. A retícula é uma introjeção das fronteiras do mundo no interior da obra; é o mapeamento do espaço interior à moldura em si mesmo.” (p. 18-19). No entanto, haveria algo de contraditório nessa separação supostamente autônoma que tais formas abstratizantes salientariam. Distingue-se nos quadros de Mondrian, por exemplo, uma possível constância de linhas e quadrados de uma sequência que demandaria continuidade, como se a moldura interrompesse uma sucessão serial de cores e formas num recorte arbitrário. Alguns poemas concretos apresentam esse impulso para o movimento contínuo, como se pudessem girar as pás de moinho aparentemente fixas, em “tensão” incessante. grande equilíbrio – que “ovo novelo” revela ser contraditório. Por ém, a tentativa de pular sobre o tempo sempre o acompanhou... 54 Todos os poemas citados encontram-se reproduzidos ao final do texto. 55 Nos dicionários, normalmente traduzir-se-ia o termo “grid” por grade ou grelha, o que nos parece inadequado aqui. Gonzalo Aguilar (2005), que desenvolve ampla reflexão sobre o tema, oscila entre “retícula” e “quadrícula” em sua tradução. Veja-se “Grids”, de Rosalind Krauss, em The srcinality of the avant-garde and other modernist myths (1986). Há um aspecto antinarrativo e antihistóri co na retícula, ela observa ainda.
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Gonzalo Aguilar, em seu excelente livro sobre a poesia concreta, foi quem mais profundamente atentou para essa semelhança entre a pintura abstrata e as formas “matemáticas” dos poemas. O crítico se interroga sobre a função da aparência geometrizante: haveria nessa escolha radical uma defesa contra a dissolução da obra característica de algumas vanguardas? A recusa da imediatez surrealista implicaria o risco da “reprodução acrítica das relações abstratas e quantitativas de uma modernidade mercantilizada”, numa “celebração acrítica”, ou, ao contrário, conduziria a uma “crítica do atraso e da falta de modernidade do contexto” (2005, p. 203)? A retícula possibilitaria o afastar-se relativamente à “noção de sujeito” e o concomitante “abandonar a expressividade em função da evolução das formas”, que finalmente “deixa o poema entregue às forças de seu próprio material” (p. 204)? Pressupunha-se que a arte abstrata conteria mais do germe revolucionário do que a figurativa, pois superava a representação da realidade empírica através da razão ou da intuição, conferindo maior liberdade ao artista. Este podia purificar sua linguagem da mera aparência, e ir além, alcançando as estruturas geométricas do real, revelando o cerne dos objetos, ou então construindo, ideogramaticamente, uma síntese das coisas do mundo. Assim, nos manifestos da Teoria concreta, os poetas colocam-se contra o “realismo simplista e simplório” e advogam o “realismo absoluto”, como concepção de uma “uma arte – não q apresente – mas q presentifique” a “palavra-coisa”: o poema cria seus próprios objetos mentais, compõe um mundo paralelo, “é uma realidade em si, não um poema sobre...” 56 Esse objeto verbovocovisual, a “estrutura-conteúdo” de que falam os manifestos, não deixa de ser a reposição de um ideal poético absoluto, entre a realização mística de Mallarmé e Maliévitch (ao lado da iluminação oriental), e o construtivismo racional de Rodtchenko e Le Corbusier.57
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Trechos extraídos dos vários manifestos integrantes do livro Teoria da poesia concreta . Org. Augusto de Campos, Haroldo de Campos, Décio Pignatari (1ª. ed. 1965, reed. 2006) 57 Enzensberger (1971) faz observações satíricas acerca da mistura de cientificismo e religião que acompanha as “seitas” de vanguarda, como se os manifestos fossem um tipo de Bíblia, com seus profetas e dez mandamentos, suas inevitáveis dissidências e expurgos. Não obstante, ressalva a necessidade de voltarmo-nos para as obras individuais independentemente do credo que as reveste, pois por mais redutores que nos pareçam os programas dos manifestos, ainda assim, mesmo o mais rígido dos dogmas não consegue destruir o potencial criador do artista...
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Mas a planificação construtivista, em seus começos muito dinâmica, sofrerá no entanto modificações que nos parecem ocasionadas pelo contexto histórico. Em realidade, nos últimos anos, o estático muitas vezes predomina sobre o móbile. Já o percebera Eduardo Sterzi (2002) quando ressaltou a íntima relação da poesia de Augusto de Campos com a lápide: “O epitáfio é seu modelo secreto – e às vezes evidente. Augusto confere centralidade e alcance a uma forma poética persistente mas marginal, o epigrama funerário.” E exemplifica: “Com efeito, ‘morituro’ (1994) foi escrito como um telegrama enviado da tumba.”; “em ‘inestante’ (1983, em Despoesia), ele admite que ‘escrever é quase tão desgastante’ quanto morrer e elege para si a definitiva perspectiva da morte: ‘vivam os vivos com o restante.’ Aliás, o poema aqui já aparece em ruína, com a elisão do segmento rítmico dos versos e a sugestão da rima apenas pelo encadeamento dos vocábulos terminais desgastados.” (p. 178). Conclui que na sua tendência à máxima redução e contenção, “a indesejada das gentes não é apenas o assunto ou tema, mas sim a razão determinante da forma.” (p. 177). Embora no último livro publicado, Não (2003), a imagem do “beco sem saída” (“desplacebo, 1977), reiterada na contracapa com o poema labiríntico “sem saída” (2000), no qual se podem decifrar frases como “não posso voltar atrás/nunca saí do lugar/não posso ir mais adiante/o caminho é sem saída”; ou poemas circulares que vão do nada ao nada (“ad marginem”, 1986); ou praticamente todos os poemas da sessão “Ex” tratem da entropia (temas que já compareciam antes: veja-se por exemplo o impressionante “viv” de 1992, em
Despoesia, que realmente lembra uma lápide funerária) – este não é o único tom de sua obra recente. O encontro breve e intenso com o minuto essencial também aflora em seus poemas. O tempo que se desdobra seja para a dissolução inescapável seja para a iluminação no instante mínimo (em que salta a rã, cai a folha, brilha a estrela, pulsa o quasar) parece ser o fundo da meditação poética de Augusto de Campos. Um piscar de estrelas entre o cosmos e o pó, o ser e o nada, o tudo e o mudo, a progressão que se quer simultânea – procurando vencer a contradição absoluta disto na natureza sintática da linguagem – são os núcleos que traduzem essa dinâmica tensa entre viver e morrer, luz e negror. Quando se examina a poesia concreta em sua trajetória, pode-se concluir que se trata de um fenômeno tipicamente brasileiro, a ser analisado em sua 53
necessidade de existência histórica. Embora esse movimento tenha florecido também em outros países, normalmente constituiu-se, lá fora, de grupos isolados e marginais ao mainstream. Aqui, o construtivismo teve forte ascendência em vários campos, o que nos impele a pensar que precisamos, em mais de um momento, evidenciar a estrutura óssea depurada da geléia, exibindo a medula e o esqueleto da cultura. As poéticas de Augusto de Campos e de Ferreira Gullar se srcinaram sob uma égide histórica dúplice: tratava-se tanto de um momento de crise cultural pós Segunda Guerra quanto de empuxo desenvolvimentista para o futuro. Enquanto na Europa e nos E.U.A. predominava a poesia da “nova austeridade”, que recusa o subjetivismo e as sublimações, no Brasil ainda se praticava o beletrismo epigonal da geração de 45, embora Cabral, Drummond e alguns outros acusassem a nova direção anti-lírica.58 Tanto um como outro poeta se propunham a destruir uma linguagem considerada carcomida em seu lirismo hedonista e alienado, ao mesmo tempo em que valorizavam fortemente a sociedade que se modernizava. Esta polaridade entre crise e construção reaparece na poesia de cada um deles de modos muito diferentes. Ao contrário dos estudos acerca da obra de Augusto de Campos, a fortuna crítica de Ferreira Gullar sempre destacou a questão do tempo em sua poesia. Sem pretender apresentar as muitas e complexas considerações sobre o tema, aponto, sumariamente, algumas ponderações que se confirmam em quatro ensaístas, à guisa de alicerce fundamental do que gostaria de acrescentar. No estudo longo mais antigo sobre o poeta, João Luiz Lafetá (1982) logo observou que a consciência da “passagem desagregadora” do tempo, que conduz para a destruição a beleza fugaz dos viventes era um motivo axial de Gullar desde seu primeiro livro: “o canto, coisa viva, em que se trabalha, é inquietude, luta contra a morte.” (p. 74), compreendia o crítico. Mas, nem sempre a linguagem pode resistir ao curso de deterioração das coisas. Por isso, o fogo aparece constantemente como imagem do ardente consumir-se de tudo, até da própria poesia. Haveria nos seres uma cintilação que logo se perde, inútil e solitária. Desde A luta corporal (1954), ao desencavar e depois voltar a enterrar o cadáver 58
O enciclopédico volume de Michael H amburger (2007) trata desse período com argúcia extraordinária.
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do anjo, “o poeta recusa o mito da eternidade, firma-se na constatação do perecimento de tudo” (p. 81). A seguir, o ensaio de Alfredo Bosi (1983) sobre Gullar encarecia traços análogos, acrescentando a percepção de que A matriz do seu mundo poético é a Cidade da infância e da adolescência, aquela São Luís mítica e realíssima onde o Sol irradia por um céu cruelmente azul arde como que ésea rápido, própria ou, figura Tempo. chamaexplodir, calcina comoe as horas. O um fogofogo queima, se do lento, faz o Agerme a polpa adoçar até o mel e, obsessão fecunda, leveda a natureza até o apodrecimento, a náusea, a inexorável combustão dos seus mais ocultos tecidos. (...) No poema de Ferreira Gullar uma intimidade febril une o sol e a morte, e esta, repito, me parece ser a forma imaginária com que o poeta diz o seu sentimento do Tempo. (p. 7-8).
Alcides Villaça (1998) refletia: As imagens da iluminação e as do escuro constituem pois um campo simbólico geral da luta que se trava entre o impulso lírico e a consciência da sua impossibilidade, tudo desembocando na ironia mortal que conduz à pulverização do discurso. O antagonista maior, quase absoluto, é o Tempo, menos histórico que fenomênico, ação material da natureza sedutora mas ilusória, fátua e fatal. A tarefa dessa poesia está em perfurar a superfície enganosa para encontrar, no cerne de cada coisa ou ser, o que lhe é essencial: ‘um contínuo negar-se’. Assim, o azul do céu é ‘mais que azul’: ‘ele é o nosso sucessivo morrer’”. (p. 93)
Em relação ao Poema sujo (1976), porém, concluía Lafetá, firma-se um movimento que já vinha crescendo desde livros anteriores, quando a memória recupera a infância no presente, ao mesmo tempo em que imerge nas velocidades plurais de tantos dias, objetos, pessoas, que vivem e circulam lado a lado, juntas ou distantes. De forma similar, Alfredo Bosi acentua a “simultaneidade dos múltiplos modos de existir da vida íntima e pública de São Luiz” (2003, p. 175). Aduziríamos que os núcleos narrativos fragmentariamente espalhados ao longo do Poema sujo reafirmam a noção de sujeito, tão recalcada pela impessoalidade característica da vanguarda concreta. Trata-se de uma biografia lacerada, exposta através de lembranças epifânicas, mas ainda assim coesas à volta da experiência de um indivíduo situado em tempos e espaços definidos. Por fim, o sugestivo ensaio de Leonardo Martinelli (1997) procura explorar a tensão do tempo que passa versus a forma que perdura no próprio tempo do
poema, cuja linguagem é destruída, fraturada e conspurcada em nome da ânsia de existir. O “incêndio” é a figura da impermanência da representação, pois as coisas consumidas pelo fogo só podem brilhar no segundo antes do vórtice implacável
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que as corrói, visto que as palavras não as apanham de fato, apenas as alumiam vivaz e fugazmente. Seu texto, que considero notável, nos servirá de plataforma para alguns desenvolvimentos a seguir. Num dos poemas antigos em que mais se destaca a composição aparentemente equilibrada entre o existir passageiro (mas real e sólido) e o fogo que consome a vida selvagemente, “Frutas” (O vil metal, 1960), contrapunham-se o universo doméstico, equilibrado no fugaz presente, e o “mar atrás”, como pano de fundo das chamas que vem devorar por dentro e por fora o pequeno mundo humano.59 A qualificação do tempo como ser vivo com corpo de luz, que resiste a morrer, comparece desde os começos juvenis de sua poesia. Os nomes dos meses (dezembro, fevereiro, março, setembro) caracterizam-nos como deidades animalizadas, potências que presidem as deambulações pelas ruas, entre vitrinas, pontos de ônibus, jardins – qual aviões que sobrevoam a cidade, sinais dessa passagem majestosa, entreouvida entre os ruídos da bulha cotidiana. O “sôfrego pulsar” do coração diário confere aos poemas um ritmo enumerativo e desconjuntado, aos trancos, como se a multidão dos homens e mulheres o atravessasse em diferentes compassos enquanto certa cadência se mantém, de acordo com rotações variadas e simultâneas, lentas ou aceleradas, formando um painel complexo que inclui insetos e estrelas. “Muitos/muitos dias há num dia só/porque as coisas mesmas/os compõem/com sua carne (ou ferro/que nome tenha essa/matéria-tempo/suja ou/não) – a matéria-tempo se move de modo “sinfônico” e “simultâneo”, como já notou a crítica, ou “vertiginosamente devagar”, como se desfazem frutas e homens. A consciência da finitude, se implica na desconfiança em relação à durabilidade da vida, torna preciosos os pequenos núcleos narrativos associados à memória dos amigos e da infância, como se fossem espessamentos nucleares que permanecem, pouco antes de serem tragados pelo afloramento incessante de um novo presente. A sensação de que a vida passa de modo irremissível relaciona-se com a mortalidade da forma, amoldada a imitar a flama, a chama, o clarão do instante. Não há distância e calma para o diamante polido quando a poesia quer tratar de 59
Confira-se a bela análise deste poema realizada por Alcides Villaça, em e seus avessos » (1998), p. 94-95.
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sangue, de corpos que se amam ou se ferem. Gullar, numa entrevista sobre o
Poema sujo, falava da urgência com que desejava “vomitar” a “matéria bruta”. Tema e poética reiteradas em muitos e muitos versos que afirmam a precariedade humana assim como a da poesia, na mesma diapasão. Verificamos uma insistente e contraditória negação da poesia como palavra morta em Gullar tal como em sua “Arte poética”: “Não quero morrer não quero/ apodrecer no poema”, em que toda a composição dos versos é dual entre o universo ígneo, vital, e a tentativa de museificação e embalsamamento que seria a palavra escrita. Em rebelião contra a forma estática, aspirando a cadavérica, da arte autônoma, que lembre “pássaro empalhado múmia/de flor/dentro do livro” (em um volume cujo título, muito a propósito, é Na vertigem do dia, 1980), afirma o movimento do fogo, em sua voraz vitalidade, como seu modelo de duração e intensidade. A forma deste e de tantos outros poemas corrobora o impulso para o perpétuo deslocamento, quando os versos se desalinham na página, desarranjando a estaticidade dos recuos usuais. “A poesia é o presente”, assegura o eu-lírico em “No corpo” ( Dentro da
noite veloz, 1975), quando recusa ao poema o estatuto de obra perene: “Poesia – deter a vida com palavras?/ Não – libertá-la,/fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po/esia – falar/o dia (“A poesia”, idem), a ecoar os sentidos do corpo, onipresente no “Poema sujo” ou em tantos outros versos daqueles anos, como em “O poço dos Medeiros” (Na vertigem do dia, 1980) no qual declara: “Não quero a poesia, o capricho/do poema: quero/reaver a manhã que virou lixo”, em que considera o poema uma mentira, porque mero simulacro da vida. Questão que continua a acompanhá-lo, como se lê no poema “Desastre”: “Ah, quem me dera o poema podre” - “Um poema/como um desastre em curso.” (Barulhos, 1987). A tensão entre a permanência da forma e a instabilidade da passagem do tempo, que ceifa tanto as frutas quanto os homens, é paralela ao anseio dramático de gerar vida no poema, como se este fosse uma usina de energia que pudesse acender uma flama na realidade. Após haver passado por dicotomias radicais entre a potência lírica e o prosaísmo didático do discurso engajado (que tantas vezes desequilibrou seus versos no passado), Gullar atingiu, na poesia, a “experiência sensível do político” (conforme também observou Martinelli), quando a vibração do instante que se quer devir foi plenamente incorporada à perenidade da obra (adaptando muito sinteticamente as reflexões de 57
Rancière sobre a poesia na modernidade). Se “o poema é uma coisa/que não tem nada dentro” (“Não-coisa”, Muitas vozes, 1999), um tipo especial de obra que o poeta e crítico batizou no passado de “não-objeto”, ele busca mesmo assim existir, ambiguamente “em alguma parte alguma”. O que é afinal esta linguagem que detona um tipo de efeito imprevisto - alarido, lampejo ou estampido – na zona de contato entre imaginário e real? Até mesmo em poemas claramente “metapoéticos”, como “O espelho do guarda-roupa” (Na vertigem do dia), o eu lírico evita mineralizar as palavras, nunca retidas em conserva. O próprio espelho é água e estilhaço, enquanto “por trás do meu rosto/o dia/bracejava seus ramos verdes/sua iluminada primavera”. Tudo se agita e cresce: mesmo quando dormindo, o poeta “é como um acrobata/estendido sobre um relâmpago.” O problema da representação imobilizadora é que, embora reflita “a paisagem”, não consegue reter o movimento ruidoso da vida: “o vento nas copas/o ladrar dos cães/a conversa na sala//barulhos/sem os quais/não haveria tardes nem manhãs”. O tempo abstrato é preenchido por pedacinhos de tempos menores, que podem ser particularizados e nomeados pela experiência humana mais cotidiana. Se o poeta tenta pular a barreira entre linguagem e mundo, reconhece entretanto, seus limites, como em “Visita” ( Muitas vozes) quando o sujeito lírico quer conversar com o filho morto no cemitério, único lugar do mundo em que isto seria factível. Mas, sabe que o papel com o bilhete que deixou sobre o mármore negro terá o mesmo destino da flor sobre o túmulo. Embora narrativo, o poema de uma só frase se lê como uma série de soluços. Enfim, a fortuna crítica de Gullar desdobrou de muitas maneiras esse Leitmotiv determinante: “o trepidar do tempo que escorre da torneira”, em acordo com a transitoriedade da vida. Jacques Rancière, no ensaio “Será que a arte resiste a alguma coisa?” (2007) observa o duplo sentido do termo resistir, que tanto pode significar algo que perdura (como o monumento e a pedra), quanto pode significar algo ou alguém que se contrapõe ao status quo, à situação do mundo tal como é. 60 Desta maneira, haveria um nó que não pode ser abolido, na arte, entre, de um lado, sua autonomia de obra e, de outro, sua potência de transformação, uma vez que ela é tanto forma 60
Sobre esta segunda acepção, ver o ensaio “Poesia resistência”, de Alfredo Bosi, constante em O ser e o tempo da poesia (1977).
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imóvel quanto vibração sensível. No romantismo prolongado, à volta do paradigma da modernidade, que podemos fundar na Revolução francesa, cada vez mais, o objetivo da arte é sua própria supressão, quando uma nova vida viria, na qual arte, religião, política e economia não seriam mais isoladas uma da outra. Mas deve-se prolongar e diferir a tensão, mantendo-a irresolvida para que a arte aponte sempre para este devir. Como paradigmas opostos, poderíamos imaginar dois extremos: de um lado, o desejo de reunir-se à vida que passa, renegando toda fixação da forma, e afirmando a potência do existir, em sua “carnadura”, num instante de aparente imediatez, e, de outro, o empenho em constituir a obra de modo a durar, como “estrutura”, contrapondo-se à vulgaridade da realidade presente. Um paralelo nos ocorre quando lembramos os poemas do artista visual belga Marcel Broodthaers (Pense-Bête, 1964), que encarnou essas duas atitudes em animais que ele considerava exemplares: a medusa (ou água viva) representaria, para ele, o ser que praticamente se amolda e amalgama ao ambiente à sua volta, mimetizando o mar, enquanto o mexilhão (“la moule”) seria o bicho que contrasta com seu entorno, protegendo-se graças à sua dura concha (em francês, “le moule”, o molde). Enquanto Augusto de Campos, em “desplacebo” (1977), enjeita a semelhança com o que adere e se dissolve, aproximando sua poesia da “clareza de cristal/dureza de rochedo”, a poesia de Gullar (cuja forma também é, aliás, bastante refinada) exibe, ao lado de simetrias e retornos, a flexibilidade de quebras e deslocamentos:
O poema já não quer ser mais poema quer ser fala esgarçada e esparsa mover de nuvem e sono que se desenrola azul do joelho quer ser um murmúrio rente à pulsão estelar chamada d i
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(“Fevereiro de 82”, Barulhos) Ambos os poetas demonstram alta consciência da diagramação na página. Mas a concepção de forma, tão prezada pelos dois, diverge na medida da diferença extrema de suas poéticas. Do ponto de vista da presença, à qual a poesia anseia, na verdade não é nem desejável nem possível alcançá-la plenamente. A antiarte pode fracassar por completo, limitando-se à vivência fugaz, e aderida a uma realidade o mais das vezes banal. Da perspectiva do trabalho formal, a fatura depurada impede que o poema se esboroe na linguagem cotidiana enrijecida pelo lugar comum. Entretanto, ao tentar alcançar a perenidade, o tempo vital pode se imobilizar em mero tecnicismo. Num caso ou no outro dos nossos poetas, Gullar e Augusto, ambos tangenciam os extremos, embora consigam, muitas vezes, não perder nem o fluido que confere maleabilidade nem o molde (“moule”) que permite a forma. Mas cada qual tomou rumos radicalmente distintos. Desde o final dos anos 50, enquanto nos manifestos da poesia concreta declarava-se que o poema deveria ser um objeto, Gullar desenvolvia a concepção de obra artística como um não-objeto, contrariando o programa assumido pelos seus contemporâneos de vanguarda. Mas afinal, ambos são poetas modernos, que acreditam na consistência e durabilidade da obra mesmo quando dela desconfiam (ou por isso mesmo). A dúvida sobre o sentido da poesia, que explicitam em tantos poemas, não os conduz até o extremo da destruição da arte, a qual repropõem obsessivamente. Os dois revivem o dilema da resistência poética como emblema inescapável. Sintomaticamente, tanto Gullar quanto Augusto enfrentam, nos últimos anos, o tema da morte, que aparece para cada um de maneira muito diferente - diferença esta que se nota na forma, no grau de presença, e no imaginário. Pois o poema movimenta-se na página de acordo com andamentos de tempo distintos, acoplados e paradoxais: quer como brusco impulso, que se assemelha ao jorro ou salto, quer como ginástica serial, que se posiciona em estruturas variáveis. Ou ainda, seja como a ação do sol violento do meio-dia, a estiolar frutas e homens, e à qual se contrapõe a escora da memória e do desejo para firmar-se no instante; seja como um sujeito impessoal, roendo com angústia um não de pedra enquanto, cada qual à sua maneira, ausculta o pulso das estrelas no curso dos dias. 60
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Artes plásticas e poesia nos anos 70 no Brasil:
Uma geração é definível mais pelos problemas que encontra do que por uma maneira comum de resolver seus problemas.
João Cabral de Melo Neto61
Chamou-nos a atenção, em 2007, o debate travado nos jornais entre artistas plásticos e críticos de arte à volta da exposição de uma escultora relativamente recente, Laura Vinci.62 Na verdade, estava em jogo, na discussão que ora passamos a comentar: a concepção de arte por trás da instalação denominada “Ainda viva” que ela então apresentava numa galeria prestigiosa de São Paulo. Argumentos empregados nas décadas de 60 e 70 contra (ou a favor de) uma transformação na arte voltavam à baila, atualizados, retomando teorizações de Mário Pedrosa, Ferreira Gullar, Hélio Oiticica e Lygia Clark. Era como se algumas das controvérsias inflamadas daqueles anos ressurgissem para assombrar público e especialistas, seja como impasses, seja como questões em aberto. Laura Vinci, a escultora que suscitava tais discussões, estava expondo um grande retângulo de mármore branco que lembrava um túmulo ou uma mesa, sobre a qual, ou caídas em volta, quedavam centenas de maçãs, arranjadas numa “bela desordem”. Do teto pendia uma forma que parecia um candelabro alongando-se até o chão, feito de folhas transparentes de um vidro muito leve. Alguns críticos indignaram-se com a efemeridade do “objeto” exposto, pressupondo-se que, pouco tempo após a inauguração, as maçãs iriam 61
“A geração de 45”, II, Obra completa (Rio de Janeiro: Ed. Aguilar, 1994), p. 744. O tema escolhido, sugestivamente amplo, pede recorte. Pretendemos nos concentrar numa única linha de desenvolvimento, sem desdobrá-la em todas as suas dimensões. Estamos cientes de que outras linhagens artísticas se firmavam no mesmo período, as quais não serão aqui abordadas. Por isso a epígrafe acima. 62 Laura Vinci vem trabalhando como escultora há vinte anos, tendo apresentado suas obras em muitas exposições nacionais e internacionais de importância (Bienal Internacional de São Paulo, Centro Cultural Banco do Brasil, MAM-RJ e MAM-SP, e em outros países tais como a Itália, os EUA e Portugal). Realizou cenário e figurino para o Teatro Oficina de José Celso Martinez Correa. Utiliza materiais que evocam “estados fugidios”, como a areia e o vapor, em “permanente fluxo”, de forma a aludir ao movimento do tempo (confome notou Luisa Duarte, no texto crítico “O murmúrio de um segredo”, 2008, publicizado no site da Galeria Nara Roessler). Neste site podem ser visualizados alguns dos seus trabalhos.
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inexoravelmente apodrecer, e a instalação não perduraria além dos quarenta dias de duração do evento. Ferreira Gullar, por exemplo, numa entrevista, quando perguntado se continuava a acompanhar a arte contemporânea, respondeu sarcasticamente, aludindo à famigerada instalação como exemplo da degeneração que estaríamos testemunhando:
Não vou mais à bienal, não é mais vanguarda há anos, é a repetição da repetição da mesma coisa. Ninguém pode me dizer que cocô dentro de uma lata é arte. Li que numa instalação uma moça pôs várias maçãs numa mesa. Prefiro as maçãs de Cézanne, que duram mais. Ela vai fazer o quê após desfazer a mesa? Comer, guardar? Apodrece. Quero ver quando ela tiver 70 anos. Tudo o que fez se apagou. Só restarão fotos das obras. Será que não percebe que é uma furada, um oportunismo de momento. (entrevista a Mauro
Ventura para o jornal O Globo, 18/11/2007).
O título “Ainda viva” da exposição de Laura Vinci invertia a expressão “still life”, da qual “natureza-morta” é a tradução consagrada em língua portuguesa, talvez parafraseando a discussão sobre a não perenidade da obra levada a cabo durante as décadas passadas, como ela mesma assinalou, em sua réplica: A única coisa que Gullar sabe sobre o trabalho é que nele existem "300 maçãs" expostas ao apodrecimento, o que lhe pareceu suficiente para tecer considerações ácidas sobre a obra e o estado geral da arte. Imagino então se ele soubesse que não são 300, mas 7.000 maçãs. Se ele visse que mesmo assim, numa dimensão de Ceasa, uma maçã é uma maçã que sempre lembrará Cézanne. Que postas numa superfície de mármore, que tem a dignidade do altar, da lápide e da tela branca, elas estão ali falando da tradição da natureza-morta na pintura. Que elas apodrecem em conjunto sem perder a beleza e exalando um perfume embriagante. Talvez ele se lembrasse que "natureza-morta" se diz em inglês "still life", vida parada, ou ainda vida. Que isso é uma pergunta sobre o destino arte, (“A e não umaviolência confusãocontra da arte comé maior a arte o lixo. Talvez ele se lembrasse que éda poeta.
querer falar dela sem ela”, Folha de S. Paulo, 28/11/2007). Ora, alguém poderia, maliciosamente, lembrar o poeta de que uma boa epígrafe para a exposição seria, como amostra dentre tantos outros versos nos quais Gullar trata de frutas apodrecendo, o poema “Desastre” (Barulhos, 19801987): Há quem pretenda que seu poema seja mármore ou cristal – o meu o queria pêssego pera
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banana apodrecendo num prato e se possível numa varanda onde pessoas trabalhem e falem e donde se ouça o barulho da rua. Ah quem me dera o poema podre! a polpa fendida exposto o avesso da voz minando no prato o licor a química das sílabas o desintegrando-se cadáver das metáforas um poema como um desastre em curso.
Se tais versos expressam um desejo real, eis que a instalação “Ainda viva” decerto o realiza plenamente. Em vários poemas anteriores, especialmente ao longo dos anos 70, Gullar tematizara a insatisfação com um tipo de obra de arte imóvel, que lembrasse “pássaro empalhado múmia/de flor/dentro do livro” (“Arte poética”, Na vertigem do dia, 1975-1980), defendendo uma poesia que suportasse o cerceamento da temporalidade sem ilusões de transcendência. 63 “A poesia é o presente”, assegurava o eu-lírico em “No corpo” (Dentro da noite veloz, 19621975), quando recusava ao poema o estatuto de mera “emotion recollected in tranquility”: “Poesia – deter a vida com palavras?/ Não – libertá-la,/fazê-la voz e fogo em nossa voz. Po-/esia – falar/o dia (“A poesia”, idem), que ecoava, insistente, os sentidos do corpo, onipresente no “Poema sujo” (1975) ou em tantos outros versos daqueles anos, como em “O poço dos Medeiros” (Na vertigem do dia, 1975-1980) no qual afirmava: “Não quero a poesia, o capricho/do poema: quero/reaver a manhã que virou lixo”, e considerava o poema uma mentira, porque mero simulacro da vida. Laura Vinci, em sua resposta, remonta à tradição da pintura da natureza morta, mas não chega a referir-se à influência que, consciente ou inconscientemente, recebeu da antiarte dos anos 70. Pois a provocação que seu trabalho propõe para a crítica parece-nos advir diretamente dos questionamentos
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O parágrafo a seguir retoma ipsis litteris o que está escrito no texto anterior, “O fixo e o fluxo”, visto que os mesmos exemplos servem perfeitamente a ambos os argumentos.
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daquele período. Por exemplo, o poeta e letrista Waly Salomão apelidou um conjunto de textos e colagens compostos ao longo da década de 70 de “Babilaques” e conferiu-lhes o epíteto de “arte still alive”. Estes “babilaques” são páginas de caderno nas quais ele foi escrevendo, desenhando, colando fotos, como um misto de diário, carta, e reflexão poéticovisual. O nome inventado lembra badulaque, penduricalho, babilônia. Não se trata de obra para ser editada em livro e sim de um tipo de criação compulsiva – como um aspirador de todas as impressões, sugadas e espalhadas. Apenas alguns deles foram publicados em revistas alternativas nos anos 70 e 80. O interlocutor provável é certamente ele mesmo, em primeiro lugar, e logo em seguida os amigos artistas e poetas – uma entourage de pessoas afins que pudessem partilhar seus interesses de forma íntima. O poeta Antonio Cícero, comentando um texto inédito de apresentação dos “babilaques” escrito por Waly, ressalta que este não os considerava simplesmente poemas visuais mas “performance poético-visual”, uma vez que neles se combinam escrita e formas plásticas de desenho e montagem: Trata-se, portanto, da arte still alive, da arte ainda viva, da arte que permanece viva. Assim quer ser o Babilaque: “a composição enquanto presença dalguma coisa”. A presença surge “dentro da composição através dela pela primeira única vez”, quando, numa performance poética, o artista põe ou surpreende, por exemplo, tal pedaço de fruta dentro de tal lata vazia. E “a fotografia”, como diz Waly na nota inédita já citada, “com seus elementos composicionais próprios: luz, cor, ângulo, corte - transforma e ficciona a performance poética”. (Cícero, 2007: 28)
A expressão “still alive” parece denotar, de um lado, um desejo de resistência, como se a arte não abdicasse do seu direito de existir, e de outro, o reconhecimento de sua efemeridade e pouca centralidade no mundo da mercadoria no qual as sete mil maçãs vêm do Ceasa. A referência ao pai da arte moderna, Cézanne, tanto por Vinci quanto por Gullar, não é nada gratuita, uma vez que foi com seus experimentos pictóricos que o realismo plástico começou a dissolver-se, tendo então alcançado seu apogeu. Igualmente, faz ressoar o diálogo com desafios enfrentados nos anos 70, em que a literatura e as artes visuais precisavam defender-se do inimigo que de dentro e de fora as acossava, como reconhece o mesmo Waly Salomão no livro Me segura qu’eu vou dar um troço (1972). Nessa obra, a pressa ansiosa de tudo dizer, concomitante ao temor de ser logo calado, infiltra-se na própria estrutura da escrita, em seu estilo fragmentado e histérico, e
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vai comparecer em grande parte da poesia mais experimental da época (por motivos políticos, existenciais, culturais que não caberia desenvolver aqui). Ao comentar o mencionado livro, Roberto Zular identifica o gesto performativo que quer inserir-se no texto como traço paradoxal dessa escrita quase presencial. Tal tentativa-limite “aponta uma busca desesperada de aproximação entre corpo e palavra.” (Zular, 2005: 51). Comparando sua escrita em processo com as experiências de criação do grupo Fluxus, de Hélio Oiticica e de Yoko Ono, ressalta o aspecto proposicional de suas obras, em que o leitor (ou espectador) “é chamado a participar do processo de produção”. Assim, o livro ganha um ar de inacabado, de rascunho reiterado, uma vez que estamos diante de um “questionamento constante das suas condições de enunciação.” (Idem, 53). Ora, desde a “Teoria do não-objeto”, que Ferreira Gullar publicou pela primeira vez em 1959, acompanhada a seguir pelo texto “Manifesto neoconcreto”, o poeta e crítico propõe a destruição dos objetos artísticos convencionais, sugerindo que a pintura rompa “a moldura para que a obra se verta no mundo” (2007: 94), de forma que o artista não mais se contente em “erguer um espaço metafórico num cantinho bem protegido do mundo, e sim” que cumpra a determinação “de realizar a obra no espaço real mesmo” (Idem, 92). Para Gullar, a arte deveria intervir no real, criando situações que alterassem a percepção, principalmente mudando o espaço em que vivemos. Enfim, naquele momento ele propugnava a radicalização da experiência artística, instando-a a misturar-se ao mundo, exigindo a manifestação do leitor e afirmando que se a realidade é inconclusa, também a obra deve fluir, modificar-se... Reclamava sobretudo uma poesia engajada na carne das coisas, nos barulhos, na experimentação da luta corporal, em que se rejeitasse a técnica poética exterior, como se a linguagem não existisse antes do poema. O poeta imagina um tipo de arte que se confunda com os objetos do mundo: Quando rompo a moldura, destruo esse espaço estanque, restabelecendo a continuidade entre o espaço geral do mundo e meu fragmento de superfície. O espaço pictórico se evapora, a superfície do que era “quadro” cai ao nível das coisas comuns e tanto faz agora esta superfície como a daquela porta ou daquela parede. Na verdade, liberto o espaço preso no quadro, liberto minha visão e, como se abrisse a garrafa que continha o Gênio da fábula, vejo-o encher o quarto, deslizar pelas superfícies mais contraditórias, fugir pela janela para além dos edifícios e das montanhas e ocupar o2007: mundo. É a redescoberta do espaço. (“Lygia Clark, uma experiência radical”, 83 [1958])
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Posteriormente, a geração rotulada como marginal, que certamente dependeu bastante da influência do pós-tropicalismo de Waly Salomão e Torquato Neto (mas provavelmente desconhecia tanto as formulações de Gullar quanto as concepções de arte sensorial de Mário Pedrosa) recusava o suporte do “livro bibliotecável”, preferindo as formas precárias semi-artesanais e personalizadas de expressão, ao mesmo tempo que as artes plásticas tendiam para as chamadas “manifestações ambientais” – eventos que se realizavam desde o final da década de 60, coletivamente, e se esgotavam no seu acontecimento, sem transcendência material. Assim, a concepção de arte como evento único no presente, circunscrito a seus participantes como acontecimento pontual, contrariava violentamente a idéia mais tradicional de uma arte que produz objetos perenes.64 Recentemente, o crítico Alberto Tassinari (2001) desenvolveu esta idéia lançando como hipótese a divisão das artes plásticas modernas em duas fases: a primeira, de formação (a partir de 1870), e a segunda, de desdobramento (a partir de 1955). A arte contemporânea, ou pós-moderna, seria uma continuação da moderna sem os resquícios pré-modernos que provocavam conflitos: estes foram superados ou atenuados, de modo que não houve ruptura radical entre a primeira e a segunda fases. Para o norte-americano Leo Steinberg, citado pelo autor, a pintura tornouse mais um lugar do “fazer” em oposição ao tipo de obra mais tradicional, relacionado ao “ver”. No período de formação da arte moderna, ela ainda é em parte naturalista e em parte a destruição do naturalismo. Mas esse processo termina na era contemporânea, a partir de Jasper Johns, Pollock e outros: o resíduo naturalista esgota-se quando a tela, por exemplo, aparece no produto final. Deixar à mostra os processos operacionais e diluir os contornos já se constituiam em procedimentos das primeiras vanguardas, que se tornaram soberanos hoje. O fato de que a arte contemporânea tende a ser interativa, desmontável e mesmo 64
Um grupo de estudiosos argentinos vem estudando a arte e a literatura brasileira contemporâneas e tem pesquisado o ponto de virada que esta época significou. Nos últimos anos, publicaram diversos textos importantes que refletem sobre este período. Destaco os nomes de Florência Garramuño, Gonzalo Aguilar e Luciana di Leone. A inflexão da arte do visual para o tátil ou sensorial é uma de suas preocupações teóricas assim como a importância do acontecimento como experiência única. Observa Florência Garramuño que uma “grande quantidade de textos e práticas artísticas que começam a surgir a partir da década de 70” tendem a relativizar “uma noção de obra como constructo autônomo e impermeável a um exterior ou ‘fora’ da obra.” (2007, p. 11).
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descartável, ou ainda, interferir no espaço da vida, pode levar o espectador a não mais distinguir entre um fenômeno estético e outro não estético. A autonomia da arte corre risco quando uma obra não se separa com nitidez do “mundo em comum”. Enquanto as obras de arte anteriores, até mesmo as ruins, não colocavam esse problema, pois tinham seu lugar próprio emoldurado e bem contornado, hoje mesmo obras interessantes “podem passar por simples coisas jogadas no espaço em comum” (Tassinari, 2001: 56). O modelo comentado pelo crítico, a escultura “Arco inclinado” (1981) de Richard Serra, era uma parede curva e ondulada de ferro colocada numa praça, dividindo-a ao meio sem que o passante soubesse de antemão que se tratava de uma escultura.65 Observamos que o mesmo questionamento pode ser percebido na poesia brasileira, a partir dessa época. O coloquialismo e a mistura de gêneros, tendo começado no modernismo como ruptura, radicalizou-se muito mais a partir dos anos 70. Deparamo-nos com um tipo de texto literário indiscriminado entre carta, diário, reflexão, ou o poema sem nenhum “pedestal” ou “moldura”, compartilhando totalmente da linguagem diária, como se não fosse um artefato artístico. Tassinari utiliza a expressão “espaço em obra” para definir esse novo modo da arte apresentar-se, que se assemelha mais a um fazer, algo que exibe sinais evidentes de sua construção, ao mesmo tempo em que há um “rompimento do contorno” (moldura e pedestal, nas artes plásticas; verso e metro, na poesia). O crítico também exemplifica com uma pintura de Rauschenberg intitulada “Cama”, a qual transpõe para o quadro pedaços de matéria bruta, que fazem com que ela seja quase um objeto real: uma “pintura-coisa”, na expressão de Argan. Ao contrário, na arte “naturalista” (termo que o crítico estende a toda representação realista a partir do Renascimento) ocultam-se os procedimentos de composição porque se necessita da ilusão da obra pronta, enquanto na arte contemporânea os processos são expostos. 65
Por ironia do destino, essa escultura foi desmontada em 1989, tendo rest ado apenas um monte de ferro velho num depósito, quando a prefeitura de Nova York resolveu retirá-la da praça para a qual havia sido encomendada, alegando sua incompatibilidade com a circulação. A história completa desse processo é relatada no livro de Martha Buskirk, que apresenta o sugestivo título The contingent object of contemporary art . Cambridge (Mass.) e Londres: The MIT Press, 2003, p. 48-51.
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De certa maneira, vários textos de Ana Cristina Cesar, Waly Salomão, Torquato Neto, Cacaso e Francisco Alvim oferecem esse jogo entre exposição do processo e momentos de acabamento, como se houvesse por vezes um desnudamento do trabalho de composição e uma exposição crua de seus andaimes: são poemas-conversa – entre arte e vida cotidiana. Em Ana Cristina, a inserção de trechos de conversas em meio a jogos de palavra, imagens, reflexões, gera este indecidível cruzamento de carta, diário, fala transcrita ou texto poético. Cacaso se auto-denomina “o poeta que escuta” e muitas vezes seus versos ecoam a proposta de um “poemão” coletivo, escrito por toda sua geração. Talvez estas estratégias sejam formas inconscientes de manter avivada a impressão de voz presencial, quando se ia tornando obsoleta a tradição sonora e imagética que proporcionava corporeidade à linguagem poética, como um modo de reposição sob outra roupagem. O espaço do mundo prosaico, quando solicitado pela obra, passa a fazer parte dela, ao mesmo tempo em que continua a ser cotidiano, sugerindo certa ambivalência. É o que reconhecemos nos poemas de Francisco Alvim, em que frases por ele capturadas na rua, na família e no trabalho se convertem em versos de poema mas mantêm a ambigüidade de continuarem a ser palavras ditas comumente. Ao entremeá-las com poemas líricos, em que imagens da natureza desempenham função metafórica, ele obriga o leitor ao movimento de entrar e sair da obra, provocando a estranheza do ready-made, que explora essa zona de fronteira, ao lado do objeto estético no mesmo espaço, com a intenção de perturbar o estatuto da obra. A poesia dos anos 70 busca um caminho de mão-dupla, produzindo versos que contêm muito da fala comum combinada a imagens e reflexões mais formalizadas. Tal composição resulta na indeterminação, na sensação de inacabamento e espontaneísmo, e finalmente, na possível dúvida sobre se aquilo é uma fala retirada imediatamente da vida, sem transfiguração estética alguma: “A obra se expõe emergindo do cotidiano sem nunca dele desgarrar-se.” (Tassinari,
op. cit.: 93). Diferentemente da obra de arte autônoma a partir do Renascimento, que convida o espectador a nela colocar-se inteiramente, emergindo da vida para aceder à arte, aqui ele “não abandona inteiramente o mundo em comum mesmo quando solicitado para o mundo da obra” ( Idem, 95). Há um vai-e-vem constante, em que a visão e o pensamento não são transportados totalmente. 70
Por isso, o espectador não é totalmente abduzido, uma vez que o processo de feitura o espaço em comum com o mundo ficam expostos. O fato da obra não ser um conjunto unívoco também provoca essa reação de menor entrega. A incompletude torna-se característica da obra, seja porque se espera que o leitor preencha as elipses pela sua interpretação, seja porque as fronteiras entre as partes entram em atrito, sem resolver-se em configuração coesa. Muitas vezes é difícil decodificar as relações pouco orgânicas, pois as associações não são necessariamente contíguas. Na dramaturgia a partir do final dos anos 60, tal transformação é clara: enquanto no teatro tradicional somos arrebatados para dentro do ambiente da peça, vivendo o drama das personagens, no teatro pós-brechtiano, tal como praticado pelo Oficina a partir do “Rei da vela” (1967), por exemplo, a montagem é exposta: o ator entra e sai de seu papel, e o lugar do espectador é posto em xeque.66 Assim, não vivemos uma experiência de transporte completa: somos devolvidos à realidade de forma intermitente e chamados a interagir com a obra, que não se perfaz sem este movimento. Além do debate recorrente “isto é arte?”, ou, “se isto é arte, o que é arte?” (extensivo a “isto é mesmo poesia?”) sucede-se a controvérsia correlata “será que a arte, tal como a reconhecemos, acabou? (e o que se faz hoje é só uma reprodução ou variação de algo esgotado?)” – são problemas que se avolumam nos anos 70, ao lado de indagações mais antigas sobre se a arte abstrata não seria elitista e meramente ornamental, sem função crítica, algo asséptica em seu formalismo, enquanto se demandava um tipo de arte “útil” que representasse criticamente um aspecto do real a ser denunciado – uma arte de cunho imediatamente político, que não se mantivesse simplesmente como expressão de um sujeito encapsulado, e fosse sinal dos tempos. Então, se de um lado, a poesia concreta, ao produzir uma arte serial, industrial, urbana, considerava-se mais engajada com a realidade contemporânea, de outro, os poetas ligados ao CPC67 se 66
Cito um trecho do convite-manifesto da peça “Gracias Señor” (1972), de José Celso: “O único papel do teatro/é levar as pessoas pra fora dos teatros./Destruir teatro onde houver teatro/Construir teatro onde não houver teatro./Chegar na frente da televisão/Quebrar o vídeo e dizer: qual é?/- Eu tô vivo!/Eu estou vivo, bandeira é estar vivo!” ( apud Sussekind, 2007: 51) 67
Os Centros Populares de Cultura, organizados pela União Nacional dos Estudantes (UNE) congregavam artistas de várias áreas durante os anos 60, com a intenção de criar e divulgar uma arte dita nacional-popular, de intenção claramente política, cujo objetivo era
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auto-enxergavam como devotados à causa conscientizadora, confiando que falavam a linguagem do povo. E, por fim, por que não? também os marginais supunham algo semelhante a respeito do próprio trabalho: acreditavam estar se aproximando do cotidiano.... enfim, todos propunham lutar contra velharias sublimadoras, ilusórias, e ir ao encontro do mundo da vida, fazendo algo que, se era arte, incluía também aspectos de outros campos – o político, o relacional, o psíquico. A idéia da necessidade de destruir a arte como instituição, ou transformá-la radicalmente, está presente em muitas vertentes. Enquanto os artistas plásticos desejavam abandonar o museu e as galerias para criar uma arte performática que interagisse com o público, agora “participador”, o poeta também compunha um livro coletivo, feito para ser parte do cotidiano e que conversasse com os leitores. O artista plástico Helio Oiticica reforça estes argumentos afirmando que a arte deve ser um acontecimento interativo, e embasando-se na teoria do nãoobjeto de Gullar, propõe outros nomes, como “transobjeto” ou mesmo “probjeto” (que inclui a idéia de projeto, inventada pelo tropicalista baiano Rogério Duarte para a exposição coletiva Apocalipopótese de 1968).68 A criação contínua como um “exercício experimental da liberdade” anima-o a conjugar o próprio fazer da obra com a vivência do indivíduo a quem se apresentam essas novas formas – “proposições abertas, não condicionadas”: Parangolé é a antiarte por excelência; inclusive pretendo estender o sentido de “apropriação” às coisas do mundo com que deparo nas ruas, terrenos baldios, campos, o mundo ambiente, enfim – coisas que não seriam transportáveis, mas para as quais eu chamaria o público à participação – seria isto um golpe fatal ao conceito de museu, galeria de arte, etc., e ao próprio conceito “exposição” – ou nós ocotidiana modificamos ou continuamos p. 78-79). na mesma. Museu é odemundo; é a experiência [...] (1986,
Desde os penetráveis e parangolés de meados dos anos 60 (e ao longo dos anos 70), Oiticica recusava-se à produção de uma obra fixada no objeto artístico. Influenciado pela arquitetura precária das favelas, procurava soluções coletivas para sua produção, “à espera de um sol interno” utópico que iluminasse a vivência
o de conscientizar o público das injustiças políticas e sociais (ver o “Anteprojeto do manifesto do CPC”, de Carlos Estevam Martins, republicado em Arte em revista n. 1. São Paulo: CEAC, 1979. 68
Para uma visão circunstanciada das idéias de Gullar e Oiticica sobre arte, em suas semelhanças e diferenças, leia-se o estudo de Carlos Zílio, “Da Antropofagia à Tropicália”, op. cit , (1982).
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de cada “participador”, negando-se a expor em galerias ou museus que desvirtuassem a relação entre artista, obra e público. Também os poetas em seus textos da época ansiavam por uma eletrização do momento, colocando em causa o poema como forma perene. Nos anos 70, Oiticica propugnava uma arte “suprassensorial” na qual os estímulos externos fossem mínimos e a percepção do evento estivesse centrada no sujeito. Nota Sussekind (2007: 50) que os artistas sublinhavam, naquele momento, a realização de atos inesperados e espontâneos que intensificassem a sensação do tempo presente. Lygia Clark, por sua vez, no texto “Da supressão do objeto”, publicado na revista Navilouca (1974), que congregou artistas plásticos e poetas, afirmava que se fazia necessário exprimir-se diretamente. Seria através da exposição do próprio corpo? Alguns artistas concluíram que sim, mas a ela parecia regressivo usar-se, transformando a si mesmo em objeto (agredir-se, estar presente, cortar a tela, fazendo do corpo o suporte). A crise geral de expressão, sugeria, poderia ser superada por uma perda incorporativa da identidade. Propunha, então, um caminhar (metafórico?) em que o eu se dissolveria no coletivo, pois os atos particulares se integrariam na existência de todos, e a autoria individual não mais importaria: “Sinto a multidão que cria em cima do meu corpo, minha boca tem gosto de terra”. Erotismo panteísta que pressupõe a atitude de estar colada ao fluxo da experiência: “receber as percepções em bruto sem passar por qualquer processo intermediário” (1974: 82-85). Outro artista, Artur Barrio, em 1969 lança um manifesto, do qual selecionamos algumas partes:
contra as categorias da arte contra os salões contra as premiações contra os júris contra a crítica de arte ... faço uso de materiais perecíveis, baratos, em meu trabalho... materiais precários 69
Como no caso dos poetas marginais, ele se rebelava contra a forma mercadológica da divulgação e circulação de seu trabalho artístico, além de se insurgir contra qualquer categorização autonomizante, preferindo criar com um 69
Reproduzido no livro dedicado ao artista da coleção “Arte contemporânea”. Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1978.
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material que se opusesse à eternização – de modo análogo ao aspecto informal dos livrinhos da geração mimeógrafo. Ainda ressaltava o “contato com a realidade”, especialmente com “tudo que é renegado”. Acrescenta, mais tarde, que, na sua produção, “as coisas não são indicadas (representadas) mas sim vividas” – muito similar à assunção de Cacaso, tomada como lema pelos outros poetas de sua geração (“a vida não está aí para ser escrita, mas a poesia sim está aí para ser vivida”) ou de Torquato Neto (“Um poeta não se faz com versos”). De fato, suas obras eram realizadas com lixo. As mais conhecidas se tornaram as “Trouxas sangrentas” – pedaços de pano que embrulham vísceras e outros materiais orgânicos, amarrados com barbante, como se fossem troços, corpos abandonados... que ele jogava em rios ou terrenos baldios, com o objetivo de causar choque nos transeuntes. Chamava-os “objetos deflagradores”, filmando e fotografando a reação dos passantes (já predispostos ao medo, pela presença do Esquadrão da Morte nas cidades satélites cariocas). Algo parecido acontecia no reino da poesia chamada pós-tropicalista ou marginal, dependendo do grupo ao qual o poeta pertencia naquele momento. Ambas desconstruíam o construtivismo concretista predominante desde meados dos anos 50 e se diziam anti-formalistas e aderentes à prática vital, que se recusavam a mediar pelo distanciamento necessário à simbolização. Parece-nos que a produção de Ana Cristina Cesar, Francisco Alvim, Waly Salomão e Torquato Neto – e, porque não, Ferreira Gullar – seriam paradigmáticos dessa crise extrema que os anos 70 representam, em rebelião contra a sociedade de consumo e contra a repressão política. Também ele, desde os experimentos concretos, intentava, como nas artes plásticas, superar uma linguagem que já apalpava muros de aprisionamento: “O que importa não é fazer um poema – nem mesmo fazer um não-objeto – mas revelar o quanto de mundo se deposita na palavra.” (2007: 99 [1959]) Seu “Poema sujo”, um dos mais poderosos textos da década de 70, sintetiza os embates entre construção e imersão na existência, recriando a poesia de novo, aproximando-se da lama, dos cheiros, do nascimento e podridão das coisas. Embora Gullar estivesse no exílio e fosse de uma geração bem mais velha que os poetas iniciantes naquele momento, há confluência de espírito com o movimento de acercar-se visceralmente do corpo dos seres e da linguagem, recomeçando a poesia, como intentavam fazer os jovens de incipiente produção 74
nos anos 70.70 Não se pode negar certa afinidade entre os questionamentos enfrentados pelas artes plásticas e pelos poetas marginais, ao partilharem a postura antitradicional, a realização da obra em grupo, de modo artesanal e perecível, a ida às ruas, e a desconfiança em relação à arte autônoma e transcendente. Os livros de Chacal e Charles são um exemplo bem característico: pequenos e coloridos, muito ilustrados, feitos com a ajuda de amigos, referem-se a experiências repartidas pelo grupo geracional, com ecos em surdina da situação do país. Assim, no texto manifesto “Mamãe Belas-Artes”, publicado no tablóide alternativo e coletivo Beijo n. 2 (1977), e assinado pelo crítico e poeta Ronaldo Brito e
pelo artista plástico José Rezende,71 ambos recusam, da forma
peremptória típica da época, o que chamam de monumentalização da arte e seu
status de objeto como valor de troca, afirmando que “O meio de arte brasileiro resiste à produção contemporânea e à sua mais grave exigência: a liquidação definitiva do sistema das Belas-Artes.” Enfatizando a crise que começou em Cézanne e se radicalizou nas vanguardas, atribuem-lhe como causa o “questionamento do lugar social da arte.” Haveria, portanto, algo de inadequado e mesmo “ridículo” na relação entre os objetos produzidos e o espaço dos museus e galerias onde são expostos. O termo “vazio cultural”, segundo os dois, refletiria essa dificuldade de perceber o que estava sendo feito de fato, preferindo-se pensar que nada estava acontecendo, uma vez que a produção contemporânea não correspondia ao parâmetro esperado. Na mesma linha, a apresentação da revista “Almanaque Biotônico Vitalidade” (1976-1977), produzida pelo grupo de artistas conhecido como “Nuvem cigana”, evoca uma atitude de rebeldia, reiterando-se na apresentação que dois poetas, Bernardo Vilhena e Eudoro Augusto, redigem para uma antologia
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É justamente Ferreira Gullar, um dos mentores intelectual dessas mudanças, grande amigo de Mário Pedrosa, que considerava, naquele momento, que “os três radicais do movimento, passadas suas experiências, haviam deixado praticamente de ser artistas: Hélio Oiticica escolhendo a marginalidade, Lygia Clark a terapia e ele a sua África: a política cultural de esquerda”, apud Wilson Coutinho (1998), “Gullar, crítico de artes plásticas”, p. 112. 71 Reproduzimos este artigo para ressaltar a relação importante entre texto e ilustração no Beijo (ver Anexo, Arquivo IMS). Volto a referir-me, mais longamente, a este tablóide assim como ao Almanaque Biotônico Vitalidade no texto final deste trabalho.
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da poesia, “Consciência marginal” (editada numa revista do Rio produzida por poetas e artistas plásticos, a Malasartes, 1975, n. 1), na qual afirmam que “a poesia não cabe em estantes programadas, (...) não foi incorporada ao comércio de livros e à cotação periódica dos artefatos consumíveis”. Voltando ao presente, e retomando a polêmica à volta da exposição de Laura Vinci, o pesquisador e curador de arte contemporânea Moacir dos Anjos, respondendo às restrições de Gullar e de outro crítico, Luciano Trigo (“É de fama e dinheiro que se trata a arte?”, Folha de S. Paulo, 19/11/2007), procura justificar a instalação “Ainda viva” comentando que “o roçar entre maçãs vermelhas perecíveis e a solidez branca e esculpida do mármore” constitui uma “locução simbólica do momento e do espaço em que vivemos nós todos.” (“É do mundo que a arte trata”, Folha de São Paulo, 20/11/2007).72 O melhor texto da polêmica talvez tenha sido o de Paulo Sérgio Duarte, “Muito além da aflição” (no catálogo da exposição), em que o crítico observa o contraste entre o tempo acelerado e burocrático da vida moderna e o tempo no entanto lento das maçãs, em seu ritmo natural de apodrecimento, durante o qual longamente ainda exalam cor vibrante e perfume. Ao invés da efemeridade, ele destacou a duração e a beleza – aspectos pouco ressaltados na arte dos anos 70 – indicando uma diferença sutil, como se hoje pudéssemos recuperar aquelas questões com mais vagar. A arte certamente voltou aos museus e às galerias, assim como a poesia aos livros produzidos e distribuídos pelas editoras. Mas a ferida aberta nos anos 70 não pode ser ignorada, pois sua cicatrização apresenta uma marca indelével sob a forma aparentemente apaziguada do objeto artístico, a partir de então ainda mais 73
contraditório: aponta tanto para as maçãs quanto para o mármore, paradigmáticos seja da nossa consciência da temporalidade precária seja do
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O debate continuou ainda com outras réplicas e novos agregados pró e contra. Um articulista do mesmo jornal, Marcos Augusto Gonçalves, reportou-se ao célebre artigo de Monteiro Lobato, “Paranóia ou mistificação” (em que nosso melhor escritor de histórias infantis desancava a arte moderna, encarnada pela suposta degeneração doentia dos quadros de Anita Malfatti) para defender a arte contemporânea da pecha de repetição degradada das vanguardas (22/11/2007). 73 Artur Barrio continua a coletar detritos e resíduos de todo tipo, mas os dispõe em configurações abstratas, dentro de quadros emoldurados que expõe em galerias, numa atitude paródica, talvez agressiva (“Desenhos”, 2008). Por outro lado, Waltercio Caldas produz séries elegantes e de sutil ironia, como uma sala em que se distribuem maçãs de cera iguais às reais sobre mesas simétricas, que parecem refletir-se umas às outras através de estruturas de vidro e aço, como finas alusões a molduras (“Maçãs falsas”, 2008).
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momento da figuração formal, como uma resistência, breve que seja, do desejo de beleza. Algo similar se nota na poesia de Gullar, antes suja e delirante, girando num disparo para vários lados simultâneos, e agora tão depurada,
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ainda que
tratando dos mesmos traumas. É verdade que desde o começo de sua obra, peras e bananas o acompanham (e por que não maçãs?) como metáforas do tempo que passa, consumindo-se inutilmente, e indicando a brevidade do homem e do seu canto. Tal Leitmotiv, com ecos existenciais e estéticos, acompanhou-o ao longo de toda sua obra, até seu livro mais recente em que também a oposição entre o orgânico e o mineral o assombra. Como toda a crítica sempre enfatizou, a principal veia temática de sua obra é o assombro com a passagem inexorável do tempo, em contraste com a fragilidade da vida, que acontece “na vertigem do dia”, “dentro do presente veloz”.75 Sua arte parece reiterar esses dilemas, em Barulhos e Muitas vozes, considerando o quanto a palavra poética é feita de ar, uma “não-coisa” escrita por “muitas vozes”, que não apreende a consistência dos seres nem impede a sua corrosão. Quando escrevemos o presente texto, ainda não havia sido publicado seu mais recente livro, Em alguma parte alguma (2010), no qual as artes plásticas são referência fundamental para a reflexão poética. No extraordinário “Figura-fundo”, começa por afirmar que “a pera pintada é falsa” para afinal concluir que se pode atingir uma “pintura-pera”, tão profundamente verdadeira quanto as frutas naturais. Assim, depois de bater-se ao longo de toda sua obra com o contraste entre mundo real e a arte, no qual a poesia ficava sempre aquém da consistência 74
A depuração se deu também em outros poetas de longo curso, como Armando Freitas Filho, que, fiel à exposição permanente do processo de feitura, passou da urgência aflita para o refinamento desta. Obcecado pela passagem do tempo, intentava pular para dentro do poema enquanto o escrevia. Agora se observa em sua obra momentos de distensão lírica, ao lado da perseguição do presente inalcançável. A respeito do diálogo entre poesia e artes plásticas, assim como entre o construtivismo e o visceral, na obra de Armando Freitas Filho, leia-se o ensaio “O olhar eloqüente” de Célia Pedrosa em que a pesquisadora desenvolve reflexão ampla sobre os debates estéticos dos anos 60, à volta dos escritos de Mário Pedrosa e de Ferreira Gullar (2006). 75 Em vários poemas que giram à volta da imagem da fruta apodrecendo, o dilema entre a fugacidade do tempo humano e a composição artística é aguçado ao máximo. Nesse sentido, evidencia-se a diferença com as artes plásticas, que, ao tratar da efemeridade da vida contemporânea, podem ser mais literais, uma vez que incorporam matérias “reais”, gerando um tipo de ambigüidade entre o imediato e o mediado que a palavra, por ser de natureza simbolizante, pode mimetizar sem nunca ser de fato “coisa”.
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das coisas, em mais de um momento sugere a existência de algo que fulge para além da brevidade fugidia do verso. Para falar com Merleau-Ponty e Klee, também Gullar considera o encontro com “o coração das coisas” (2004, p. 36), quando o pintor não representa mais o mundo, mas ambos se criam pela fusão entre quem vê e o que é visto. Então não existe separação entre “figura” e “fundo”, uma vez que a “pera pintada” nasce das palavras densas do poema. Logo, o “objeto” artístico não significa mais algo reificado e alheio, pois ocorre uma “transubstanciação do pintor em pintura”, quando o artista se converte em “quadro-corpo”. A diferença entre palavra e coisa, posto que irredutível, nem sempre pende em desvantagem para a primeira, neste seu último livro. De forma que se compreende a resistência de Gullar a esse tipo de adesão à matéria “bruta”, quando uma maçã natural apodrece na obra enquanto intenta figurar uma maçã artística (ou mantém um papel duplo). Embora concordemos com Gullar que grande parte das obras expostas nas Bienais seja um prolongamento repetitivo das mesmas provocações já exauridas pelas vanguardas e seus desdobramentos, ressalvamos que, nos melhores casos, a antiarte tornou-se constitutiva da arte, como uma fissura que penetra as formas simbólicas, inconciliável com elas, mas que ainda assim pode ser incorporada em tensão não resolvida. O artista nem permanece na imediaticidade nem a ignora (propondo-se à realização de uma forma artística orgânica). Porém, isso não mascara o fato de que muitas vezes a apresentação artística de palavras e objetos que não sofreram a interferência da mediação promovida pelo trabalho formal e pela reflexão criadora parece-nos mal resolvida e pouco instigante. A precariedade não é, evidentemente, uma característica a ser considerada, em si mesma, qualidade. Por vezes, as instalações pecam pela transitoriedade não apenas dos materiais, mas principalmente dos seus significados, esgotando-se como sentido alegórico de antemão estabelecido. Repetindo o que antes foi gesto de desafio, promovem, paradoxalmente, o esteticismo que supunham combater. Estaria embutida em “Ainda viva” a consciência trágica do sacrifício da vida no altar profano da arte, ou seria esta apenas uma exposição fútil da onipotência do artista? A luz, a cor, o volume das efêmeras maçãs em contraste com o mármore, são objeto de expressão significativa, ou meramente um resultado arbitrário? Decidir sobre isso faria diferença na apreciação da obra? 78
Ao tratar das antinomias da arte contemporânea, Bürger (1988, p. 95) acolhe o repto da antiarte, em seu movimento irresolúvel: Se a exigência formulada pelos movimentos de vanguarda, no sentido em que se abolisse a separação entre arte e vida, embora tenha fracassado, continua, tal como antes, a definir a situação da arte de hoje em dia, temos um paradoxo no sentido mais estrito da palavra: se a exigência vanguardista de abolir essa separação for factível, isso será o fim da arte. Caso se abandone exigência, seja, seserá a separação entre arte e vida for aceita como uma essa questão de fato,outambém o fim da arte.
O artista precisa transfigurar esse local de risco em ritmo e transitar entre a presença e a sua metaforização em linguagem, para abrir uma via que atualize a afirmação de Laura Vinci quando da defesa que fez de sua exposição: “isso é uma pergunta sobre o destino da arte”... ou, na mesma linha, esta reflexão recente de Waltercio Caldas: “É da natureza dos objetos de arte preservar, mesmo depois de concluídos, o seu destino de hipótese.”
Bibliografia: - Bürger, Peter. “O declínio da era moderna”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 20, março de 1988. - Caldas, Waltercio (2006). Notas, ( ) etc , Livro do Artista. São Paulo, Gabinete de Arte Raquel Arnaud. - Cícero, Antonio (2007), “Os Babilaques de Waly Salomão”, Revista Z Cultural, Ano IV, n. 1, dez. Republicado em Waly Salomão. Babilaques: alguns cristais
clivados. Rio de Janeiro, Contra Capa Livraria/Kabuki Produções Culturais. - Cesar, Ana Cristina (2008), Antigos e soltos, org. Viviana Bosi, São Paulo, Instituto Moreira Salles. - _______________ ( 1982), A teus pés. São Paulo, Brasiliense. - _______________ ( 1985), Inéditos e dispersos, org. Armando Freitas Filho, São Paulo, Brasiliense. - Coutinho, Wilson (1998), “Gullar, crítico de artes plásticas” in Ferreira Gullar. Cadernos de Literatura Brasileira, São Paulo, Instituto Moreira Salles. 79
- Garramuño, Florência (2007), “La experiência y sus riesgos” in Garramuño, Florencia/Aguilar, Gonzalo/di Leone, Luciana (orgs.) Experiencia, cuerpo y
subjetividades. Literatura brasileña contemporânea, Rosário, Beatriz Viterbo Ed.. - Gullar, Ferreira (2007), Experiência neoconcreta, São Paulo, Cosac Naify. - ____________ (2006), Toda poesia, Rio de Janeiro, José Olympio. - Malufe, Annita Costa (2006), Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar. São Paulo, Annablume. - Merleau-Ponty, Maurice (2004), O olho e o espírito. Trad. Paulo Neves e Maria Ermantina Galvão Gomes. São Paulo: Cosac Naify. - Meschonnic, Henri (2006), “A oralidade, poética da voz” [1987], Linguagem,
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na cultura brasileira, 1967-1972, São Paulo, Cosac Naify. - Tassinari, Alberto (2001), O espaço moderno, São Paulo, Cosac Naify. - Zílio, Carlos (1982) “Da Antropofagia à Tropicália” in Novaes, Adauto (org.) O
nacional e o popular na cultura brasileira, São Paulo, Ed. Brasiliense. - Zular, Roberto (2005), “O que fazer com o que fazer? Algumas questões sobre o Me segura qu’eu vou dar um troço de Waly Salomão”, Revista Literatura e Sociedade, n. 8, São Paulo, DTLLC/USP e Ed. Nankin. Obs.: Não foram incluídos nesta Bibliografia os artigos de jornal nem revistas de época citados no corpo do texto.
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Poesia auto-móvel76
Stop. A vida parou Ou foi o automóvel?
(“Cota zero”, Carlos Drummond de Andrade)
Como anda o poeta na cidade contemporânea? Será que a mudança de paisagem e de perspectiva que o automóvel implica configuraria um olhar diferente para o passante? Aventamos como hipótese que há uma distinção entre o flâneur característico da primeira poesia moderna e o transeunte urbano de hoje. Não se trata apenas da aceleração do ritmo da cidade, mas também da conseqüente distância e heterogeneidade em relação ao mundo no qual se move o eu-lírico – ele mesmo igualmente fraturado. A máquina em movimento ou parada, que conduz o poeta ou que passa por ele, revelaria ou disfarçaria o “coração numeroso” que a habita? Em São Paulo dos anos 1920, a revista Klaxon buzinava estridente, o Cadillac azul freqüentava os poemas de Oswald, o Forde transportava a nova poesia (rodando em meio a cafezais e atravessando procissões...) Ainda não havia se consolidado o “turbocapitalismo” que alterou profundamente a relação da cidade com seus habitantes. Nos depoimentos dos velhos moradores, a rua era local de conversa e diversão, e os carros que atravessavam por ali, eram no geral de brinquedo: “Eu fazia carrinhos com rodas de carretel de linha e nós
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Este texto foi em parte apresentado, numa versão preliminar que sofreu alterações, em dois eventos: o Congresso da Abralic “Lugares dos Discursos” (Simpósio Topologias da poesia na modernidade , coordenado por Marcos Siscar e Fabio Akcelrud Durão, UERJ) e o Seminário “Crítica e Valor”. Homenagem a Silviano Santiago (Casa de Rui Barbosa), ambos no Rio de Janeiro em 2006. Foi parcialmente veiculado na internet, no site da Revista de Letras da Unesp, n. 45, vol. I, 2005. Fabio Weintraub e Ivone Daré Rabello foram meus primeiros e preciosos leitores, a quem agradeço a atenção crít ica e generosa – conjugação h oje tão rara.
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brincávamos o dia todo, livremente, nunca me machuquei porque a rua não tinha carros” (Sr. Ariosto).77 No entanto, se desde o modernismo, o automóvel era signo de distinção para os raros que o possuíam, índice da conquista prometéica do homem (o qual, no manifesto futurista, quer superar, com a eletricidade, a luz das estrelas), como aparecerá agora – sinal já desgastado da teia urbana? Escolhi três poemas e uma letra de música popular que se referem a este veículo de deslocamento contemporâneo por excelência (mais do que o trem, o bonde e mesmo o avião – coletivos). Ao comentá-los, tive em vista não apenas a especificidade no tratamento do material, do ponto de vista do tema e de sua disposição formal, mas também as conseqüências, para a percepção do homem urbano e para a produção poética, das alterações radicais que se estabeleceram na experiência cotidiana. A velocidade propiciada pela passagem do carro serve para destacar, como metáfora, aspectos do viver contemporâneo - por vezes desmistificando até a própria idéia de movimento dinâmico e eficaz que a rapidez do transporte urbano individual poderia sugerir. Nos poemas a seguir, o ritmo tende à expressividade do verso livre, cujo desenho parece insinuar a irregularidade das acelerações, trocas de marcha e freadas de uma respiração assimétrica. Na letra de música, na cadência compassada do samba, há pausas significativas, que acentuam o sentido da perda e a dificuldade de sua expressão. Na verdade, ela nos serve como mote e introdução ao nosso tema, pois naquele momento começa a se estabelecer a metrópole contemporânea e, por conseqüência, a questão de que iremos tratar.
“Pogréssio, pogréssio”: Embora a linguagem da canção siga parâmetros diferentes dos da poesia escrita, seja por causa do registro popular, seja devido à melodia e ao ritmo da música (nos quais a letra deve integrar-se), quisemos introduzir uma modalidade também significativa do olhar do habitante citadino em trânsito.
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A liberdade das crianças na rua no começo do século XX reaparece em várias entrevistas do livro de Ecléa Bosi, Memória e Sociedade. Lembranças de velhos . São Paulo: Companhia das Letras, 1994 (3ª. ed.), p. 55.
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Comecemos, então, por ela, composta na época em que se inicia a indústria automobilística brasileira, quando houve um arranque inédito em nosso desenvolvimento urbano:
Iracema Iracema Eu nunca mais eu te vi Iracema, meu grande amor, foi embora Chorei Eu chorei de dor porque Iracema, meu grande amor foi você Iracema Eu sempre dizia Cuidado ao traversar essas ruas Eu falava Mas você não me escuitava não Iracema, você travessou contramão. E hoje ela vive lá no céu E ela vive bem juntinho de Nosso Senhor De lembranças, guardo somente suas meias E seus sapatos. Iracema, eu perdi o seu retrato Parte declamada:
Iracema, fartavam vinte dias/Pro nosso casamento/Que nóis ia se casá./Você atravessô a rua São João [ou a Consolação, mudáro é a Consolação]/Vem um carro, te pega/E te pincha no chão/(Você foi pra assistência, Iracema)/O chofer não teve curpa, Iracema/Paciência, Iracema, paciência...
(Adoniran Barbosa, 1956)78
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Letra extraída do volume de Francisco Rocha, Adoniran Barbosa , o poeta da cidade . Cotia: Ateliê Editorial, 2002, pp. 146-147. Divisão estrófica nossa, com o fito de ressaltar cada parte para a análise. O final declamado costuma variar um pouco dependendo da gravação, com frases que são acrescentadas (“Você atravessou contramão”) e outras cortadas (por exemplo, “Você foi pra assistência, Iracema”). Citaremos diversas vezes este livro ao longo de nosso artigo, de grande interesse sobre a trajetória de Adoniran, pois não apenas investiga sua biografia profissional, mas também abrange estudo sobre o período histórico compreendido em seu percurso de vida, associando a história do crescimento urbano de São Paulo, a ideologia do ufanismo progressista, e as letras do compositor. Rocha analisa em sua pesquisa a constituição do ideário de trabalho e dinamismo relacionado à cidade. O crítico observa que tal imaginário aparece de modo contraditório nos sambas de Adoniran, cujos protagonistas estão à margem das benesses do desenvolvimento .
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Talvez seja esta a primeira música popular em que se conta a história de um atropelamento.79 Nela, a típica mulher transgressora dos sambas comete uma contravenção mais moderna: seguiu um ritmo do corpo em meio às máquinas – erro fatal para a dinâmica da vida governada pela via de mão única. Roger Bastide já comentava em 1959: “Não se pode flanar em São Paulo. A multidão que vai para o trabalho, ou que volta para casa, arrasta-nos em seu turbilhão. A qualquer hora do dia, só há na rua homens apressados que nos impõem a cadência de seus passos.” a( pud Rocha, 2002, p. 81) São Paulo, cidade em que o crescimento incessante se dá à custa da expulsão dos pobres, cujas malocas são derrubadas para que novos edifícios surjam, produz no sambista um misto de nostalgia e resignação. 80 Mas está no ritmo e na voz desencantada da música a outra face: a percepção do preço alto que a civilização do “progresso” acarreta, com a funcionalização do espaço promovida pelo predomínio do automóvel e a concomitante abertura das avenidas. A elocução lembra o desabafo, que sai curto, de jorro – de novo, e outra vez de novo, só o nome dela: seis vezes em tão poucas linhas; depois a frase aumenta um pouco e mais um pouco, numa cadência que evoca a fala em soluço. As repetições de palavras traduzem bem a simpleza do narrador, cujo despojamento lingüístico reforça a impressão de conformismo quanto à transformação abrupta da cidade. Ele imputa a culpa por sua dor à companheira, que não soube submeter-se à novidade que foi naqueles anos a introdução da via de mão dupla no trânsito de São Paulo, onde a disseminação do automóvel em larga escala era recente. A impotência do sujeito desamparado é tão grande face à racionalidade do progresso, a cuja lógica a descuidada Iracema não se adaptou que, como um operário que perde o dedo na prensa, atribui o erro à sua distração.
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O tema, porém, não era inédito em livro. A introdução dos veículos motorizados no Brasil inspirou o que parece ter sido primeiro caso de atropelament o literário paulist ano, ocorrido na vila operária onde morava o menino Gaetaninho, cujo grande sonho era passear de automóvel. Filho de imigrantes italianos, é retratado por Alcântara Machado (Brás, Bexiga e Barra Funda , 1927) jogando bola no meio da rua com os outros garotos quando então é apanhado pelo bonde, figurando assim uma contradição central do urbanismo funcional moderno. 80 A respeito da representação do pobre na música popular, é de se assinalar a contraposição da figura do malandro carioca e do trabalhador do subúrbio paulistano, bem observada por José Paulo Paes em “Samba, estereótipos, desforra”. Os pobres na literatura brasileira (org. Roberto Schwarz). São Paulo: Brasiliense, 1983.
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Nas primeiras estrofes, a voz do cantor conversa com sua interlocutora, chama-a, numa apóstrofe dramática. Embora o tempo verbal seja o passado, mantém-se um diálogo em que a memória convoca a presença do outro, como se este pudesse escutá-lo. Há algo patético na frase “Eu nunca mais eu te vi” – enfática nessa repetição do sujeito e na construção esquisita - como se ainda fosse possível, de alguma forma reencontrá-la, passante, nos cruzamentos, a escutar o apelo do poeta. As duas estrofes iniciais, no passado perfeito, tornam definitiva a perda. O ritmo marca uma pausa maior depois de cada primeiro verso de estrofe, composto por uma só palavra, incrementando a impressão do gemido pouco articulado, em que se invoca o outro sentidamente. A seguir, o passado imperfeito entra no acorde da rememoração, da conversa habitual que a brusca ação de Iracema interrompeu. Eram reiterados os conselhos do poeta para que ela prestasse atenção no trânsito. De novo, é como se ele estivesse admoestando a ingrata que foi embora. Por isso, o verso em que finalmente se revela o seu destino trágico é um pequeno choque para o ouvinte, embora já estivesse para ele se preparando. Não sabemos, quando ouvimos a canção pela primeira vez, que se vai falar de alguém que morreu atropelado, pois as primeiras estrofes se referem à amada na forma tradicional do gênero: como se ela tivesse abandonado o cantor, e esta fosse mais uma doída representante da canção de dor de cotovelo, parecida no tema com tantas outras anteriores a ela. Logo depois, o narrador conta, no presente, o que ele imagina seja a vida pós-morte da amada, e nisso busca talvez conforto: descreve sua situação atual como de bem-aventurança e acolhimento. Iracema habita um lugar mais alto do que esta cidade pedestre, na qual se caminha com meias e sapatos – sinais metonímicos de sua andança pelas ruas. Agora está protegida por alguém poderoso, que a conserva bem perto de si, sem mais perigos, enquanto “viva eu cá na terra sempre triste”. Assim, o momento possível de consolo se dá com a imagem do céu – pois aqui embaixo jamais será vista novamente Iracema. No final, invoca a figura da amada para contar-lhe uma última dura verdade: apesar de tanto amor, o retrato, imagem fiel do outro, igualmente desapareceu, o que parece causar uma dor ainda maior no sujeito, como se uma segunda ausência viesse cavar mais fundamente o luto. Na língua truncada e repetitiva, a indigência propositada, que acentua a pungência pela extrema simplicidade – recurso que enfatiza a desproteção e a 85
pouca compreensão do mundo da personagem. Pelo livro de Francisco Rocha, ficamos sabendo que esta é a primeira composição de Adoniran em linguagem popular, quando ele se apercebeu do valor expressivo que teria esse procedimento, especialmente para o assunto tratado: a vida dos moradores pobres de São Paulo, excluídos seja das benesses materiais, seja das culturais.81 Sinais concretos do cotidiano comparecem, como em tantas outras canções de Adoniran: os lugares onde se passam as ações são conhecidos e referidos nas músicas, e objetos são trazidos à baila: meias e sapatos, como lembrança pouco romântica da noiva – o que sobrou do atropelamento. Resquícios.82 Lembra-nos ainda Rocha que o samba “Iracema” foi inspirado numa notícia de jornal: de fato o compositor leu a história do atropelamento de uma moça, que havia atravessado a Consolação sem olhar para o lado correto de onde vinha o fluxo de carros (sugerindo-se que a rua mudara de mão, coisa que ela não percebeu ou esqueceu): “Ao singularizar e imprimir um conteúdo afetivo à informação, ele transgride o sentido de banalização – e conseqüente apagamento da singularidade – que os fatos mais cotidianos podem ter para a memória coletiva.” (p. 150) Se antes esse tipo de desastre causava impacto a ponto de sair no jornal pelo inusitado do fato, e um sambista se sensibilizava, figurando-o como canção e incorporando a notícia como história pessoal e coletiva, hoje já se tornou de tal forma anônimo e banal o acidente de trânsito com vítima que dificilmente levaria a um estremecimento tamanho. 83 81
“Foi o Documento primeiro samba erradoEstúdio que euEldorado, fiz”, conta1984. em depoimento para o CD “Adoniran Barbosa, Inédito”, 82 Objetos da vida mais humilde são mencionados em várias músicas: o pavio do lampião, as meias de estimação, a marmita do pedreiro com arroz, feijão e torresmo, assim como os bairros: Moóca, Braz, Ermelino Matarazzo, Jaçanã, Casa Verde... sem falar nos nomes das personagens. 83 Outro testemunho musical que marca de modo significativo um momento histórico de incremento da indústria nacional e da urbanização brasileira, descrevendo igualmente uma morte no meio da rua – desta vez não um atropelamento – é “Construção” (1971), de Chico Buarque, quase uma palinódia de “Operário em construção” do Vinícius ao encenar a maquinização do homem no cotidiano da cidade capitalista e sua importância relativa como indivíduo – apenas mais um tipo geral, cujas ações são moldadas pelas funções do trabalho. A primeira estrofe termina de modo a não deixar dúvidas sobre quem tem o controle, em plena ditadura e milagre brasileiro: “Morreu na contramão atrapalhando o tráfego.” Ver, a seu respeito, de Adélia Bezerra de Meneses, Desenho
mágico. Poesia e política em Chico Buarque (Cotia: Ateliê Editorial, 1982). Em “Sinal fechado” (1969), de Paulinho da Viola, a canção mimetiza a interrupção do encontro no trânsito e no país. Na prosa ficcional, a contrapartida mais destacada do período são os
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Considera Olgária Matos84 que, ao passar de cidade para metrópole, a paisagem urbana acentua a liquidação da identidade do indivíduo, destruindo seus marcos pessoais e esmaecendo suas memórias, pois o espaço urbano se altera de acordo com a lógica da expansão capitalista e passa a ter valor de troca. As ações dos habitantes devem ser exatas, obedientes e atentas à velocidade das máquinas, sob pena de interrupção do curso de funcionamento do sistema e da ordem que melhor garanta a circulação da mercadoria. Adoniran canta o cotidiano do pobre com resignação: uma força muito maior do que ele se alevanta, e nada se pode fazer contra a fatalidade da transformação da cidade, assim é inevitável que o progresso altere as ruas e elimine os distraídos. “Paciência, Iracema, paciência”... é quase um dar de ombros frente ao irremediável. Por isso, o tom de lamento da canção. A admiração ingênua pelo mundo moderno, bem característica do morador da capital paulista, matizada pelo reconhecimento da inevitabilidade da destruição dos desadaptados, convoca a compaixão do ouvinte, que não pode sequer se indignar ante a força peremptória dos desenlaces difíceis na vida de Joca, Mato Grosso, João, Iracema e tantos outros. De um lado: “os home tá com a razão/nós arranja outro lugar”. De outro: “cada tauba que caía/doía no coração”.85
Automóvel imóvel: O salto que daremos agora será de quarenta anos. Passaremos daquela fase de frenesi construtivo em São Paulo – do café às indústrias - para outro período, de quase estagnação econômica e arrastada convivência com a crise. contos de Rubem Fonseca, em especial “Passeio noturno”, parte I e II ( Feliz ano novo , 1975), em que um executivo, com necessidade de relaxar após o trabalho, exerce sua vontade de poder atropelando transeuntes desprotegidos ao cair da noite. 84 “A cidade e o tempo: algumas reflexões sobre a função social das lembranças”. Espaço&Debates , n. 7, out-dez 1982. Citada por F. Rocha, op. cit ., pp. 34-35. 85 Na canção “Despejo na favela”, reencontramos os mesmos dois tons complementares: aceitação do destino, pois contra a “ordem superior”, do “seu dotô” o jeito é arranjar um novo canto, saindo antes que se ouça o “ronco do trator” – e a queixa, que não deixa de perguntar com pena: “mas essa gente aí como é que faz?” Também no samba “Agüenta a mão, João”, o cantor o aconselha a se conformar com a destruição do barraco, pois o seu vizinho perdeu bem mais do que ele: “Não reclama,/contra o temporal/que derrubou seu barracão/não reclama,/guenta mão João... de novo a causa da miséria parece puramente natural, e o jeito é ir “se segurando”, “pegando firme”, até “se arrumar”, seja com o esforço, seja com o favor dos amigos.
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Se aquela época foi marcada pela crença no progresso técnico e ascensão da cidade a pólo de civilização, esta, retratada no poema a seguir, trata de um tempo paralisado. Acostumados à imagem do automóvel em movimento, somos surpreendidos por um poema de José Paulo Paes que se reporta ao automóvel estacionado, desfazendo a imagem fixada desse veículo de transporte como protótipo da idéia de deslocamento funcional. Uma outra forma de passagem do tempo natural e humano transcorre, agora mediada pelas “pupilas gastas na inspeção”: Momento
Visto assim do alto no cair da tarde o automóvel imóvel sob os galhos da árvore parece estar rumo a algum outro lugar onde abolida a própria idéia de viagem as coisas pudessem livremente se entregar ao gosto inato da dissolução – e é noite.86
O fato de o observador estar parado, olhando do alto, permite compreender o tom elevado (embora desencantado), que confere certa regularidade de redondilha menor ao ritmo do sujeito lírico que, livre de finalidade, entrega-se à contemplação. A gravidade combina-se à melancolia, tão característica das elegias românticas em que o eu considera a mortalidade em consonância com a natureza crepuscular. Devemos lembrar que Socráticas é o último livro do poeta, publicado postumamente, quando a verve satírica cedeu seu lugar cardinal ao matiz meditativo, à volta de reflexões sobre o destino do eu. Aqui o propriamente lírico aparece na fusão metafórica de cair da noite e automóvel imóvel – ambos figurando o aquietar-se da azáfama da vida cotidiana. As coisas poderiam finalmente existir em si mesmas se desobrigadas de suas tarefas a que durante o dia eram submetidas – a liberdade retornaria quando o carro se movesse em direção a uma outra viagem que não a utilitária. A poesia parece habitar a noite, aparentemente como no famoso poema de Goethe, quando o andarilho cansado
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José Paulo Paes. Socráticas . São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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sabe, soturno, que logo a paz se instalará ao entardecer. 87 Mas, no caso, o romantismo contemplativo é antecedido pelo caminhar do viandante, que espera encontrar descanso na chegada como recompensa pelo bulício do dia. Aqui, “a própria/idéia de viagem” foi “abolida” – talvez haja uma ironia triste nessa conclusão que aluda, indiretamente, às esperanças de realização pelo empenho formativo da viagem como símbolo da maturação. Como se o dia administrado não mais proporcionasse o espaço para o transporte verdadeiro, em que seres e coisas pudessem alcançar significação plena, para além da fixação amesquinhada do imediato. A dissolução permitirá que novas combinações possam ocorrer, tranqüilas, sem que aparentemente haja movimentos – estes serão internos. O oxímoro do automóvel imóvel é o tropos para explicar o poema – sem deslocamento que não o esclarecimento ambíguo da consciência. O poema termina afirmando o drummondiano “gosto inato da dissolução”, recusando-se a ver para além da escuridão, e mesmo aceitando-a 88
como repouso das demandas por rumo e significado. A noite que se adensa sem esperança, como expressão de um cansaço infinito que deseja abolir todo movimento, já rondava Mário de Andrade em Lira
paulistana (1945): É noite! é noite! . . . E tudo é noite! E os meus olhos são noite! Eu não enxergo sequer as barcaças na noite. Só a enorme cidade. E a cidade me chama e me pulveriza,...
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Noturno do andarilho: Em todos os cumes/ Sossego,/ Em todas as copas/ não sentes/
um sopro, quase./Wanderers Os passarinhos calam-se na mata./ Paciência, logo/Torres Sossegarás também. (J.W. Goethe, Nachtlied , trad. Rubens Rodrigues Filho.) Hoje inseparável do poema, um trecho do comentário de Adorno: ...“a vida inteira se transforma, com enigmático sorriso de tristeza, no breve instante que antecede o adormecer.” [...] “Imperceptivelmente, a ironia roça em silêncio o que há de consolador no poema: os segundos que antecedem a bem-aventurança do sono são os mesmos que separam da morte a curta vida.” “Palestra sobre lírica e sociedade”. Notas de literatura I (trad. Jorge de Almeida). São Paulo: Livraria Duas Cidades e Editora 34, 2003, pp. 71 e 72. 88 “Escurece, e não me seduz/tatear sequer uma lâmpada./Pois que aprouve ao dia findar,/aceito a noite.”, conclui Drummond num outro anoitecer em “Dissolução” ( Claro enigma , 1951). A pesquisadora Ana Elvira Luciano Gebara também notou parentesco com Quasimodo, quando se percebe que a noite cai súbita sobre cada homem. Mas, enquanto no poema de Paes não há destaque ou contraste trágico entre dia e noite uma vez que a inutilidade do primeiro corresponde ao apagar-se apaziguador do último, o poeta italiano enfatiza a vida como uma luz solar, intensa posto que breve: “Ognuno sta solo sul cuor della terra/ Trafitto da um raggio di sole:/ ed è subito sera.” (Salvatore Quasimodo, Ed è subito sera , 1942).
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As formas se dissolvem na noite, refletida na água pesada que afoga o coração exausto do poeta meditando na Ponte das Bandeiras. Ele deixa cair uma lágrima “morta, dissoluta, fraca” no rio Tietê, que a carrega junto com toda a história “abjeta e barrenta” do país.89 José Paulo, ao comentar num breve ensaio o poema de Mário, ressaltava a “luta entre o homem solitário e o homem solidário que ora se trava na alma de todo artista digno desse nome.” (p. 94), refletindo sobre as contradições do desejo de engajamento político do poeta, o qual, em seu testamento, mescla-se, com dor, ao fluxo pesado do passado da cidade em que viveu.90 Nesse sentido, o âmbito de alcance desse pequeno “Momento” se reduz à circunscrição restrita da meditação sobre a passagem vital de um único sujeito, sem a ambição explícita de carrear o caudal da história para uma vivência tão modesta...
embora
a
paisagem
marcadamente
contemporânea
aluda
inevitavelmente à circunstância existencial que a todos irmana. Enquanto nos outros poemas mencionados as imagens do ambiente provinham sobretudo da natureza, neste houve uma mudança considerável até mesmo no ponto de vista do sujeito lírico, aqui identificando-se com o automóvel. A noite que cai no poema de Paes remete ao locus tipicamente urbano do estacionamento, onde a energia do trabalho humano comparece convertida em objeto fetiche de nossa civilização. O “cemitério de automóveis” substitui, como apogeu paradoxal, a circulação associada ao veículo na primeira modernidade, 89
“Meditação sobre o Tietê”. Mário de Andrade. Poesias Completas (Ed. crítica de Diléa Zanotto Manfio). S ão Paulo e Belo Horizonte: Edusp e It atiaia, 1987. Lembremos, por contraste, “Louvação da tarde” ( Remate de Males , 1930, na sessão Tempo da Maria , 1926), de em Mário de Andrade, comentado por Antonio Candido no Segundo ensaio “Oo poeta itinerante” O discurso e a cidade (São Paulo: Duas Cidades, 1993). crítico, ao tratar de um passeio de automóvel na estrada da fazenda, este é assemelhado a um animal de montaria - não apenas símbolo da máquina moderna mas meio de transporte para a atitude de devaneio e meditação. Aliviado das peias da ação prática, o eu lírico celebra o sossego que permite sonhar enquanto deambula pelas proverbiais montanhas, tão populares para este mister desde Rousseau... Na natureza cultivada, da qual o automóvel passa a fazer parte, o sujeito pode reencontrar um lugar em que não haja obrigação sistemática de dominar e progredir. Naquele momento, o sujeito lírico pensa em planos de vida, animado e calmo, seguindo o ritmo prazenteiro e livre da máquina que o conduz sem esforço dentre uma paisagem amena de cafezal, em que o trabalho humano se traduziu em progresso. Aqui o automóvel harmoniza-se ao “ritmo natural”, “perde características de máquina”, diferentemente dos manifestos de Marinetti. Candido reconhece como variação da poesia itinerante “outra modalidade que pode ser qualificada como poesia de perspectiva, na qual a meditação, sucedendo a uma andança explícita, é feita a partir da 90
altitude” (p. 262). Cf. Paes, J.P. “O juiz de si mesmo”. Mistério em casa . São Paulo: Comissão Estadual de Literatura, Conselho Estadual de Cultural, 1961.
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pois experimenta-se, nesse momento histórico tardio, uma teleologia que desemboca na crise. O crepúsculo de coisas e homens insinua a discreta utopia do apaziguamento final após tanta agitação inútil.
Uma passante: No poema a seguir, de Sebastião Uchoa Leite, o pedestre atravessa a rua por onde correm automóveis. Traz título em latim - trata-se de versículo bíblico: Spiritus ubi vult spirat
Atravessando em câmara rápida A Presidente Vargas Deparei-me sus Com uma sobrevivente Da magrém ad hoc Dos orbes concentracionários Erguia a saia Mostrando a câmera escura Entre os bólidos Batia uma foto O espírito sopra onde quer Iam todos radiosos Indiferentes Para as manjedouras Depois a moral: Primum vivere Deinde philosophari 199791
A respeito da srcem deste poema, vale a pena citar um trecho esclarecedor de uma entrevista de Uchoa Leite: Há um poema nesse livro, que se chama "Spiritus ubi vult spirat" [O espírito sopra onde quer]. O que é esse poema? Quando eu estava trabalhando no IPHAN, num prédio do começo da Avenida Rio Branco, gostava de procurar almoço do outro lado da Av. Presidente Vargas. Um dia passei a notar uma louca que ia para o meio do trânsito, ficava entre os carros, no meio da rua, e levantava a saia. E debaixo da saia não tinha nada, ela estava nua. Eu me lembrei disso em casa e ao mesmo tempo fiz uma associação, quer dizer, lembrei-me da frase “o espírito sopra onde quer". O espírito daquela mulher soprava naquele momento para ela levantar a saia e mostrar-se. Associei isso ao filme Viridiana, de Buñuel, no 91
Sebastião Uchoa Leite. A espreita . São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000.
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qual há uma cena fantástica em que os vagabundos invadem a casa de Viridiana e fazem uma esbórnia total. Eles estão sentados numa mesa da sala, de uma casa grande. Sentam-se e promovem uma espécie de Santa Ceia paródica, com um cego ao centro como Jesus Cristo. Uma mendiga vai para o meio da sala e bate uma foto deles. Mas, como é que ela bate a foto? Ela levanta a saia e mostra o sexo. A câmara escura é o sexo e os pentelhos negros, mas eu não me sinto na obrigação de dar essa explicação no poema. Se o leitor sobrou, paciência. Acho que há inúmeros poemas no mundo em que você não entende tudo. E acho que, mesmo sem essa pista, o poema vai funcionar do mesmo jeito. 92
A entrevista contextualiza a srcem do poema, nas ruas centrais do Rio de Janeiro, ao descrever uma cena que impressionou Sebastião. Mas, aproveitando as referências do autor no que elas contêm de revelador, intentemos ir além do fato biográfico, abrindo vias de associação que esta composição textual nos possibilita. O automóvel é aqui figurado como bólido, objeto em veloz deslocamento, que é visto e vê fugazmente, dirigindo-se para um fim prático. A câmera igualmente rápida da mendiga retém por um flash a imagem do outro, “fotografando” os que passam rumo às manjedouras. Em vez do olhar que resgata a aura, o tom paródico, rebaixado. O eu-lírico atravessa a avenida, perpendicular aos automóveis, e flagra a cena como espectador – também ele “em câmara rápida”. As palavras latinas, bíblicas ou anacrônicas que manteriam o tom elevado, agravam o contraste, e especialmente o título e o provérbio do final (“Primeiro viver, depois filosofar”) acentuam o efeito de distanciamento irônico, ao mesmo tempo que põem em relevo o encontro em sua dimensão de evento catalisador. Desde a linguagem há estranhamento, e em tudo o mais também: Se as pessoas maquinizadas correm ao longo da avenida defendidas em suas carapaças de metal, a mendiga, em contraste, está parada no meio da rua, exposta ao perigo, e nada a protege do mundo. Se elas passam indiferentes e animalizadas (e submetidas tanto à irracionalidade instintiva quanto à racionalidade instrumentalizada), a louca é mais do que todos uma sobrevivente do humano (e a palavra magrém a opõe à
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Entrevista concedida a Carlito Azevedo e Heitor Ferraz. Cult (Revista Brasileira de Literatura) , n. 33. São Paulo: Lemos Editorial, abril de 2000, p. 8.
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manjedoura geral93). Como a mendiga em Viridiana, de Buñuel, ela fotografa uma paródia, aqui acelerada, de uma ceia da qual não comunga. A associação com a cena do filme tem relação, inconsciente talvez, com a dessacralização, ou mesmo profanação de tudo presente na poética de Sebastião. O fato de que ela tenta chamar a atenção de forma exibicionista, obrigando o olhar “radioso” de quem corre a fixar-se alguns segundos no “escuro”, não deixa de ser uma comparação com o tom determinante de sua poesia. Aqui a sexualidade não é erótica e consumível como nos cartazes de propaganda que entulham a cidade de fotografias de corpos para o desfrute da visão. Explícita demais, causa riso e repulsa, uma vez que não é com o olho, parte nobre e intelectual do corpo, que a mendiga retrata os passantes. O grotesco do baixo corporal salva o indivíduo da ideologia já domesticada da pornografia soft, na qual a lufada da saída de ar da calçada levanta saias glamurosas. O gesto remete à própria poética de Uchoa Leite, cuja obra encerrou-se há pouco. Ele cultivou o humor negro, a agressividade do sujeito em posição de ataque,94 vilipendiando a si, à poesia e a tudo o mais, como o acuado que se defende pela exibição. Contra a “baixeza das alturas” (na expressão de Adorno), corrói com bravatas de sarcasmo as falsas certezas. Sua espreita é de uma “lucidez amarela” que se quer sadicamente desagradável: “A minha consciência é o verme/e eu sou o cria cuervos”. Nos últimos livros (como é o caso deste) o indivíduo se esquiva, negando as definições de si e a suspeita aproximação do outro.95 O insight da epifania é luciferino: pela provocação dirige-se ao leitor hipócrita. Pois se em Baudelaire a mulher de luto destacava-se da multidão porque 93
O termo raro « magrém » refere-se à seca nordestina e à magreza corporal dela resultante. Segui do da expressão latina “ad hoc” reforça a impressão de deslocamento, na rua e na sociedade. 94 Luiz Costa Lima caracteriza a obra de Uchoa Leite como “esquiva a gratificações estéticas, porque estas se incorporaram ao bem-estar da sociedade”, por isso sua “poética átona é atraída pela agressão.” (“A poética átona de Sebastião Uchoa Leite”. Pensando nos trópicos. (Dispersa demanda II) . Rio de Janeiro: Rocco, 1991). 95 Ao resenhar A espreita , Davi Arrigucci Jr. chamava a atenção para seu título, significativo para a compreensão do poema, pois remete ao olhar “esquivo”, “de recusas, que prefere o viés, a sombra, o fascínio difícil. Atraído pelo sorvedouro de águas secretas, pelo que espreita nas trevas e remói em segredo.” (“O guardador de segredos”. Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo, 10/06/2000, p. 1-2). Observava ainda a atitude do caminhante urbano que, desde Baudelaire e das vanguardas, encontra na rua o outro e a si mesmo. Espiando-se ambos, estabelecem uma “secreta solidariedade do solitário, a comunidade invisível dos homens de que faz e se sente parte, até pelo gesto de recusa mais renitente.” (p. 2). O crítico considerava central a “tensa harmonia, em que a escuridão cerrada pode virar luz” (p. 2).
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olhava longamente para o sujeito lírico como quem poderia amá-lo, na cidade contemporânea não há encontros desta magnitude, e o indivíduo invisível precisa, ao contrário, fazer-se presente de modo obsceno.96 Enquanto neste poema o pedestre apressado a atravessar a avenida entrevê a mendiga a “fotografar” os carros no meio da rua, numa relação de embate por choque (ou trombada); em José Paulo Paes, o pedestre melancólico vê o automóvel parado, e este lhe devolve a possibilidade da contemplação. Mas em ambos os textos, o eu lírico observa de passagem uma cena e dela deriva conclusões, reveladas pelo ponto de vista. Há uma alteração da perspectiva quando o eu lírico atravessa a cena, evocando o Cortazar d´ “As babas do diabo”, e suas máquinas de disparo – o automóvel e a câmera fotográfica. Como o narrador do conto, o poeta descobre o mecanismo letal ao atentar para um novo foco da imagem. Ambos derivam desse olhar a mesma percepção da insanidade do movimento na urbe contemporânea, e recusam com desgosto a velocidade inútil. Dessa fugaz confluência tentam apreender uma faísca de consciência para fora do curso repetitivo dos circuitos predeterminados.
Poesia em transe: Já em poema de Ana Cristina Cesar, o eu-lírico conduz o “carro em fogo”, na contramão, “passando a mil”:97
Não, a poesia não pode esperar. O brigue toca as terras geladas do extremo sul. Escapo no automóvel aos guinchos. Hoje – você sabe disso? Sabe de hoje? Sabe que quando digo hoje, falo precisamente deste extremo ríspido, deste ponto que parece último possível?
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A crítica de arte Cristina Freire, ao comentar a reação dos espectadores à arte contemporânea na última Bienal de São Paulo, observa que esta se contrapõe ao passante apressado e cansado através da “percepção do choque”, cujo intuito é insultá-lo ou provocá-lo – diferentemente da estética tradicional (citado por João Augusto FrayzePereira em Arte, dor . Cotia, Ateliê Editorial, 2005, pp. 294-296). 97 Ver especialmente “Mocidade independente” e “Fogo do final” ( A teus pés . São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982), além de tantos outros poemas em que aparecem ambulâncias, ônibus, aviões, navios – todos os “meios de transporte” – nome com que Ana Cristina queria batizar seu livro.
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A garganta sai remota, longe de ti mal creio que te amo, Corto o trânsito e resvalo Que lugar ocupa este desejo de frutas? Esta é a primeira folha aberta. 15.7.8398
O automóvel em marcha busca representar essa poética de apreensão impossível da vida enquanto acontece, antes da “emoção recolhida na tranquilidade”, aproximando ao máximo a experiência e sua expressão. Trata de cada momento com urgência, como se este fosse lhe escapar. Por causa da necessidade de trazer a escrita para o imediato, Ana Cristina faz aflorar aflitamente o coro desafinado de sentidos concomitantes e cacofônicos. Como nas aporias de Zenão de Eléia, que tentava dividir o espaço infinitamente até alcançar o ponto que seria a srcem da linha, podemos transportar esse paradoxo para o tempo: aqui o eu lírico quer chegar ao inaferrável centro do presente. “O devotamento ao sempre singular é destituído de esperança porque está vinculado à consciência de que a realidade escapa ao indivíduo como realidade a ser conformada”, observa Bürger (p. 144-145)99 a respeito das obras inorgânicas das vanguardas e pós-vanguardas, que aparentem estar inacabadas, ou em movimento. Salta do texto a premência por transformá-lo em ação, instando o leitor a conscientizar-se e a mover-se junto com o eu lírico, que o conclama “aos guinchos” (palavra onomatopaica, ecoada na mesmo estridência dois versos abaixo por “ríspido”, acentuando a ênfase). E nisto se experimenta uma possível coesão: no tom oratório, impaciente, com que repisa seu apelo. Acentuam-se, na primeira estrofe, os deslocamentos intensos do brigue (um tipo de navio a vela) e do automóvel, que transportam ao pólo extremo do agora. Na segunda, pelo contrário, falar de longe é resvalar, perder-se de si e do amor. O trânsito é a imagem contraditória da distância e do isolamento. A seguir, a frase arbitrária sobre o desejo de frutas acorda de novo para a experiência vital, o empuxo para o
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Ana Cristina Cesar. Inéditos e dispersos (org. Armando Freitas Filho). São Paulo: Ed.
Brasiliense, 99
1985. Reedição: São Paulo: Institut o Moreira Salles e Ed. Ática, 1998. Refiro-me ao livro de Peter Bürger, Teoria da vanguarda . Trad. José Pedro Antunes. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
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“registro imediato” ou o instante do “flagra”, 100 considerado característico da geração de Ana Cristina, que se recusa aos modelos pré-fabricados da convenção literária, imprimindo estranheza ao poético. Cansada de elucubrações ideológicas que se consideravam completas e abrangentes em relação ao real, inspira-se na subversão da ordem do discurso e na idéia de deriva 101, muitas vezes criando textos de aparência aleatória e rebelando-se de tal forma contra as interpretações didáticas falseadoras da experiência que termina por produzir composições solipsistas, propositadamente contingentes. Por meio de seus ensaios, sabemos que Ana Cristina escolheu escrever nesta vertente não simbolizante, esquiva em relação à continuidade esperada: “uma sensibilidade talvez meio histérica”, diz ela.102 Não há quase unidade ou simetrias que retornem, embora se possa considerar as repetições enfáticas de algumas palavras e construções (“Não, a poesia não pode esperar”, “Hoje – você sabe disso? Sabe de hoje? Sabe que quando/digo hoje”, “extremo sul” – “extremo ríspido” são os exemplos mais evidentes). No entanto, parecem antes acentos dramáticos do que paralelismos
100
Conforme as expressões de Flora Süssekind para designar o tom da poesia dos anos 70. Reporto ao capítulo “A literatura do eu” em Literatura e vida literária . Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2004 (reed., p. 114 e ss.). A crítica nota ainda o “procedimento menos” comum à época: a lacuna, a hesitação, o delírio, o diário hospitalar, a correspondência cifrada. 101 O termo foi primeiro utilizado pela Internacional Situacionista nos anos 60 para significar “modo de comportamento experimental ligado às condições da sociedade urbana: técnica de passagem rápida por ambiências variadas.” Ao criticar o urbanismo atual e o modo como as cidades foram remodeladas em função do automóvel, o grupo conclui: “O trânsito é a organização todos. Constitui problema preponderante das cidades modernas. do É oisolamento avesso do de encontro” (Jacques, o2003, p. 65 e 140) 102 Citação transcrita por Annita Costa Malufe, que analisa a histeria à luz de Deleuze como “excesso de presença”, teatralizada, o que se traduz em textos com “movimento descontínuo, caótico, de frases entrecortadas, fragmentárias, de ritmo acelerado, ofegante” em “Afectos femininos da escrita”. Territórios dispersos: a poética de Ana Cristina Cesar (2006). Reencontramos uma variação desta idéia (a partir de outros fundamentos teóricos) na interessante reflexão de Henri Meschonnic (2006) sobre a conexão entre histeria e poesia. Ambas teriam em comum o fato de “não ser[em] mais um dizer, nem um dito, mas um fazer.” (p. 65-66). Mas a histeria, expressão neurótica em que o corpo sofre sintomas doentios quando um indivíduo não consegue simbolizar um trauma, pode provocar dores (trata-se, para o autor, da “linguagem no corpo”). Na poesia, pelo contrário, quando a pessoa se faz representar através da linguagem, e a voz (que o estudioso chama de “oralidade”, não necessariamente falada) exprime todo o corpo como sujeito, intenta-se apresentar uma presença única, colocando-se “o corpo na linguagem”, com “eficácia máxima”. De modo que a poesia manteria sempre um vínculo depurado com o corpo, agora simbolizado em linguagem.
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líricos. A interrupção e a elipse realçam o aspecto de montagem, traduzindo a “fragmentação da memória e da consciência e sua expressão como série de falas lampejadas”.103 A enumeração de frases disjuntivas que não compõem um todo coerente nega a possibilidade mais tradicional de interpretação, sem que, no entanto, esmoreça a tensão interativa entre elas, acicatando-nos a procurar, na aparência cifrada, alguma forma de penetração, mesmo reconhecendo que se trata de poema avesso ao compromisso seja com a comunicação utilitária seja com a recepção sem fraturas: “O que permanece é o caráter enigmático das obras, a resistência que elas opõem à tentativa de lhes extrair sentido.” (Bürger, 2008, p. 159) Como ocorre no teatro épico moderno, aqui também a “narração [...] progride aos saltos”, com o objetivo de provocar tais rupturas na continuidade semântica que o leitor possa notar de novo e com mais clareza o sentido da realidade.104 Da mesma forma, o antiilusionismo presentifica, no primeiro e no último verso, a moldura, revelando por meio da ênfase no processo de escrita e no dêitico do final o poema a se fazer – não mais obra realizada, mas composição que se constrói ante nossos olhos. Pois não temos aqui a apresentação de uma cena sobre a qual reflete o eu lírico. Diferente da poesia “tradicional” (termo muito impróprio, por sinal...), nela não há narratividade e passar do tempo, uma vez que tudo se constela em torno da fome de presente absoluto, como um “monólogo dramático”105 que tentasse aceder a algum tipo de interlocutor. A cisão entre sujeito e mundo manifesta-se intensa, ao ponto de não serem utilizados recursos de configuração habituais, que permitiriam algum trânsito descritivo ou narrativo, característicos da pequena fábula que é a metáfora: este poema foi composto praticamente só por montagem. Não há antinomia entre o conteúdo, enfático na angústia, e a respiração arrítmica do verso disparatado, do qual se perdeu o pressuposto de eco sonoro e imagético, em que voltaria o sentimento recordado, o que não combina, por certo, com tal ansiedade pela 103
Conforme percebeu Flora Süssekind, em Até segunda ordem não me risque nada . Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007 (2ª. ed.), p. 22. 104 Remeto ao livro clássico de Anatol Rosenfeld (2006), especialmente pp. 102 e 152, assim como às reflexões de Peter Szondi (2001). 105 Definição de Flora Süssekind, que, tendo caracterizado a poesia de Ana Cristina como “arte da conversação”, observa como a relação entre “forma teatralizada” e “efeito lírico” é característica de grandes poetas modernos lidos por ela (em especial T.S. Eliot) e como “seus textos costumam assinalar a própria dramatização” (2007, p. 13 e 16).
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presença em cena. O leitor é interpelado, e incontinenti recusa-se uma eventual afirmação, como se de cara já houvéssemos discordado e fossemos provocados.
Cruzamentos: A poesia moderna cresce sob o signo da contradição: começa como antagonismo do sujeito ao mundo, e subseqüente expressão do ainda não apreendido. A fusão lírica, embora por vezes desejada, é mediada ou impedida pela reflexão – por isso a dissonância sonora e semântica, e a prosaica metonímia, mais cautelosa na aproximação agora parcial entre homens divididos e mundo a eles heterogêneo. Se todos os gêneros se alteram ao longo da história, o que dizer da lírica? Nos tempos modernos, também ela (como o drama e a narrativa) de certa forma “epicizou-se” e “dramatizou-se”, seja porque tomou distância reflexiva de si, seja porque se dirige ao presente do leitor – isto é, não se trata mais do ingênuo enlace do um-no-outro (ressoando nas harmonias instantâneas que a iluminação ou alumbramento da imagem configuram, e a sonoridade em eco faz persistir 106) – antes há sobretudo autoconsciência desconfiada e quase impossibilidade de transfiguração, quando a ironia perfura ou inverte as possibilidades de sublime. Ao que a observação indica, a poesia estabeleceu uma oscilação fundamental, que se tornou constitutiva das suas melhores realizações, entre lírico e reflexivo (derivando e adaptando a nomenclatura de Schiller). Quando ela se apresenta só “liricamente”, pode tornar-se conservadora. Quando se restringe à razão corrosiva, pode perder igualmente a contradição e se enfraquecer. Tanto a negatividade quanto a afirmação tendem a ser dogmáticas e imóveis, ao se julgarem donas da totalidade, sem fissuras para que os movimentos do tempo e da subjetividade, problemáticos, consigam infiltrar-se. Uma e outra, quando desprovidas de tensão, tornam-se maneirismo fácil, à la mode, como percebe Benjamin quando deplora a pseudo-melancolia de certa poesia soi-disant bem-
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Como designa o lírico Emil Staiger em Conceitos fundamentais da poética (trad. Celeste Aída Galeão). Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1972.
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pensante, que reproduz discursos ideológicos sem arriscar-se em nova penetração do pensamento imaginativo sobre o real.107 Seria meramente classificatório indicar o tom descritivo-contemplativo do poema de José Paulo Paes, diferenciando-o da posição narrativo-participante de Uchoa Leite, e por fim notar a atitude dramática de Ana Cristina. Mais sugestivo é perceber que, ao contrário do poeta e do prosador tradicionais, que transmitiam uma experiência completa de vida cujo fundamento era o enraizamento na totalidade, o escritor contemporâneo exprime uma vivência apenas parcialmente compreensível, pois seu testemunho é passageiro. Mas apesar da difícil comunicabilidade entre os homens, mesmo assim pode alcançar, como resíduo da fantasia livre, o instante em que seu olhar capturou e transfigurou aquele pedaço de vida semi-opaca. Baudelaire, no supracitado poema “A uma passante”, sugere um lugar para a poesia na cidade moderna: a lírica apela para o desejo do homem urbano de reencontrar um pouco da aura, esta “aparição única de uma coisa distante, por mais perto que ela esteja”108, em meio ao achatamento na multidão, em que todos somos intercambiáveis e efêmeros. Os olhares mútuos da passante e do poeta adquirem ambos o estatuto da contemplação estética, e capturam a energia imaginativa que cada objeto transfigurado adquire em contato com a arte. A visão do sujeito lírico se ilumina rapidamente ao vislumbrar a passante, que logo em seguida desaparece (“Un éclair...puis la nuit!”) correspondendo à metade da arte que é a modernidade: sempre atual e transitória. Porém, a outra metade da arte é a eternidade, local utópico imaginado pelo poeta em que este amor possível será resgatado. Mimese caracteriza-se aqui pela aproximação do desejo e pela distância do movimento do pensar – exercendo sua natureza divergente, que, desde o Platão do “Fedro”, é composta de Eros e Logos. Na sua poesia evidencia-se claramente a dupla face: o anseio de fusão tipicamente lírico (que a organicidade de forma e
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A esse respeito, desenvolve importante análise o ensaio de Ivone Daré Rabello, “Melancolia e rotina”. In Revista Rodapé (Crítica de literatura brasileira contemporânea) , n. 1, 2002. 108 Ver, de Walter Benjamin, “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica”, Magia, técnica, arte e política. Obras Escolhidas vol. I (trad. Sérgio Paulo Rouanet). São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 170, e Charles Baudelaire, um lírico no auge do capitalismo . Obras Escolhidas vol. III (trad. José Carlos M. Barbosa e Hemerson A. Baptista). São Paulo: Brasiliense, 1989.
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conteúdo atestariam) e a percepção aguda da impossibilidade presente do ideal mas este mesmo assim é apresentado, como dimensão do devir esperado. Na poesia contemporânea, a caminhada do flâneur parece menos propensa a conduzi-lo a encontros perenes. Mais terra a terra, são configurações imagéticas fugidias, que logo se desfazem - paisagens e pessoas passando na velocidade do automóvel. O eu-lírico se reconhece tão transitório quanto o trânsito, quase se dissolvendo como lugar de perspectiva privilegiado, não fosse a resistência breve mas significativa de um olhar, que recebe de volta, ao invés do reconhecimento do outro, o flash inconsciente da musa negra, remanescente viúva de tudo que perdeu. A revelação não chega a ser nenhuma epifania – só a “câmera escura” frente a qual reconhece sua corporeidade passageira, quando sentencia, no final do poema de Sebastião Uchoa Leite, a primazia da “vida” sobre a “filosofia” – ou da corrida de pedestres e veículos para a manjedoura cotidiana, sem tempo ou espaço para qualquer horizonte ascendente. Mas ao evocar o mote do título do poema, lembramos que advém da passagem do Evangelho em que Nicodemos conversa com Jesus e lhe pergunta, incrédulo, como é possível a ele, velho, entrar no ventre de sua mãe e nascer de novo. Na tradução de João Ferreira de Almeida: “O vento assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes donde vem nem para onde vai; assim é todo aquele que é nascido do Espírito.” (João 3,8). Desdobrando a comparação entre o arquifamoso poema das Flores do mal e o nosso “Spiritus ubi vult spirat”, retomemos o contraste entre a multidão ensurdecedora que ulula, e a majestosa viúva, em silêncio por sua dor, única que olhou o sujeito lírico e que poderia predestiná-lo à vida eterna – ela é não somente a musa do poema mas o próprio poema moderno entre ideal e spleen. Topar por acaso com a poesia, na rua, sugere a possibilidade incerta de redenção. E nós leitores, onde estamos? Somos também a multidão indiferenciada, e indiferente, até hostil. Contudo, o poema nos salvou também: por ele nos tornamos o sujeito que, por um átimo ao menos, reconhece o outro. Algo análogo ocorre no poema de Sebastião: se somos a multidão que passa de carro, a mulher que fotografa nos reflete e absorve para uma revelação – profana embora. O poeta atravessa a rua, e flagra. Então nascemos desse cruzamento de olhares. O leitor singular (porque semelhante e irmão do eu-lírico), e anônimo (porque somos todos aqueles que por um momento se detiveram e mergulharam 100
naquela visão), inscreve-se brevemente ali.109 Ambos - pedestres empurrados ora por coches ora por automóveis, que deixaram cair sua auréola ao atravessar a avenida - leitores e poetas, vivem o silêncio e o luto da perda que é ganho. Não estou sugerindo que o poema de Sebastião seja uma alusão ou paródia direta de Baudelaire, quando não se trata mais da ode à altiva mulher de negro mas a descrição da pobre louca. Porém, o sentimento mútuo de diferença em relação aos circundantes, o desgaste do sentido da alteridade, seja em meio à multidão seja entre os bólidos ruidosos, ocorre em ambos. Degradada e submetida à derrisão, a “inútil poesia”, como o sucateiro, recolhe o lixo da cidade. Cabe a nós leitores resgatar o poema do atropelamento, gerados do ventre da mendiga como testemunhas. Pois o que, desde Aristóteles, especialmente designa o poético é sua qualidade de virada, reviravolta (trópos): transporte de um lugar (semântico que seja) para outro, a reconfigurar-lhe o sentido. Transformar a landscape em
inscape (Hopkins), numa síntese mental, ou arabesco do real (Baudelaire), ou correlato objetivo (Eliot) é sua função de deslocamento (desvio para alguns; alumbramento para outros) também na poesia urbana hoje. No modernismo tardio, vê-se que a relação com o imaginário nem sempre é descartada pela acomodação ao negativismo autoritário ou novidade vistosa, permanecendo na melhor poesia contemporânea, mesmo a mais literalmente seca, paródica ou sofrida, uma tal intensidade de concentração na conturbada experiência do presente, que dela advém o “brusco lampejo” da conversão do
tópos - estacionamento - em móvel trópos.
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Aludo ao texto notável de Silviano Santiago, “Singular e anônimo” ( Nas malhas da letra. São Paulo: Companhia das Letras, 1989), em que o crítico retoma o tema da ambigüidade das fronteiras entre biografia e literatura, a partir de comentário acurado de um trecho da obra de Ana Cristina Cesar. Neste ensaio, ele desenvolve reflexão sobre o vínculo entre leitor e poesia na modernidade – esta “cumplicidade inimiga” (no dizer da poeta).
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Objeto urgente*
Graças à reunião de sua obra, podemos agora conhecer o conjunto da trajetória de Armando Freitas Filho, e perceber como um caminho individual pode ser, na sua srcinalidade, paradigmático, ao enfeixar de forma coesa o que de mais instigante se produziu nos últimos quarenta anos de poesia brasileira. O autor veio adensando ao ponto de transfiguração todos os elementos que compõem o seu percurso, sempre numa profundidade superior, que nos permite ver com clareza a consistência de uma poética, tanto em sua particularidade quanto nos pontos comuns com seus contemporâneos. Os poemas de Numeral, Nominal - que abrem o volume de sua poesia reunida até 2003, Máquina de escrever - configuram-lhe a história anterior, tornando compreensíveis os contrastes urdidos e alinhavados ao longo de sua escrita. Gradualmente, delineia e intensifica o estilo, a cada vez atingindo mais contundência em suas polaridades. Como esclarece o título, vem dividido em duas partes de natureza distinta. No entanto, uma unidade de fundo se entrevê: todo ele enfrenta o diálogo tenso da presença do homem frente ao tempo de vida. Há uma coragem entre raivosa e erótica, que arremete para dentro das coisas – não em consonância, mas em desafio. A dissociação entre a dura matéria do outro e o esforço do coração só pode ser franqueada por um impulso de lançar-se contra a “impassível paisagem”: muro, mármore, mar. O sujeito incompatível com o mundo-parede tenta arranhar, com ritmo imperfeito, a natureza esquiva. O pensamento insatisfeito procura interrogar o que passa. “Feixe de gritos”, o corpo reconhece o limite da expressão e seu escuro. Ele resiste com dentes, osso, ferro interior, “ira de raízes”, contra a “derradeira terra imediata”. A angústia de ler e escrever as coisas é uma obsessão que se desdobra em variações seriais: “sucessivas erratas/que superpondo-se assim/não chegam/a corrigir, a acrescentar fôlego/no comprimento e sentido das linhas/e nada sopra no espaço entrelinhado/não dando tempo e teto para que o vôo levante.” *
Este texto advém, srcinalmente, de outros dois: “Armando Freitas Filho: a trajetória da raio”, publicado na Revista Rodapé n. 2, 2002, e “Já não é a alma que fala”, resenha sobre Fio terra , publicada no Jornal de Resenhas , fev/2001 da Folha de São Paulo . Foram feitos acréscimos e cortes. Publicado como apresentação ao volume que reuniu toda sua obra, não contempla suas publicações posteriores a essa data. Em Freitas Fo., A. Máquina de escrever. Poesia reunida e revista . Rio de Janeiro: Ed. Nova Fronteira, 2003.
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Pode-se dizer que a disposição anímica angular – especialmente da primeira parte, “Numeral” – é o desejo de flagrar num átimo o sentir ainda sem figuração, “a respiração/anterior ao alfabeto”, que a linguagem quer apanhar em livre enlace. A imagem do tigre comparece algumas vezes, ameaçando atacar a carne das palavras e engolir sua presença srcinal. O salto desse felino caçador, tantas vezes feroz, traduz o desenho de sua poética: Escrever é arriscar tigres ou algo que arranhe, ralando o peito na borda do limite com a mão estendida até a cerca impossível e farpada até o erro – é rezar com raiva.
A obstinação incessante em alcançar esse mundo de “arame e oceano” é trabalho árduo, mística imanente que o persegue até o fim: “‘Numerando até a morte’/principalmente
o
inominado.”
Medindo-se
severamente
com
Drummond, nele reconhece a exata velocidade para apreender a máquina do mundo – a tal ponto que ele podia até desprezar a ilusão mitificante da compreensão total – e, em contraste, observa em si mesmo o ritmo errado, desenfreado ou gago, que não alcança o cerne fugidio das coisas. A mão erra, sua, se rala, e por vezes tange o universo, que esplende e escapa. E este é o seu sal-gema: o empenho visceral para abarcar o imo esquivo das coisas em devir que a ele não se abrem melodiosas e ofertas. A segunda parte desdobra-se mais distendida. Os poemas de “Nominal”, batizados com títulos, são independentes. Vários são os temas que se apresentam, abrindo um leque diverso em que perdas e reconhecimentos se enlaçam. Impossível abarcar aqui sua riqueza, cada página alteando-se solitária e completa. Há uma sequência em homenagem a Drummond, em que fraga e sombra se alternam. Sua presença, como “palavra-chave” da poesia moderna, é pedra angular, como se vê logo no início de “CDA no coração”: Drummond é Deus. Pai inalcançável. Não reconhece os filhos. A mão ossuda e dura, de unhas rachadas, não abençoa: escreve, sem querer, contudo, a vida de cada um, misturada com a sua.
Há poemas descritivos de grande sensualidade visual e aderentes ao concreto. Há outros de um patético irremissível, em que a perda é abrupta e violenta. A lembrança das coisas findas em seu giro de brilho vital contrasta 103
com o vazio irreparável. Não se cultiva, porém, a nostalgia: só lucidez de luta, que carreia a imagem para o presente e a faz soar novamente. A passagem do tempo perpassa os poemas, seja de forma sutil (como o barulho seco das amêndoas que caem na calçada), seja de forma dramática (como na foto de Marilyn Monroe, fixada no veludo vermelho, já antecipando a chama em que se extinguiu). Os objetos e a paisagem atestam o discreto entardecer, desde a mesa seca que outrora foi árvore com pássaros, até a sombra que avulta sobre a vida. Também aqui a dificuldade áspera da escrita reproduz um obstinado galgar na direção da claridade que evoca as aproximações precisas e repetidas de caçador cabralino. Mas, se muitas vezes utiliza as mesmas ferramentas (o passo pedregulhoso, as sequências gradativas e rigorosas), no entanto o impulso subjetivo termina por inverter o resultado. A sua ética o faz esperar de pé, em vigília, pronto para o embate corpo a corpo. O vigor do seu engajamento lembra o processo poético descrito por Sartre, quando as palavras existem como coisas em estado selvagem, quase que anteriores ao pensamento. O fracasso em alcançá-las é registrado no poema, signo intermitente de que cada nova tentativa comunica, ainda que por instantes, uma teimosa reiteração da mensagem secreta de que “o homem é o remorso do mundo”. Escrever é gesto corrosivo, como ácido de gravura vertido contra o pulso da vida, fluindo a partir da própria veia: Sofrer o livro. Entrever o trançado de caneta e dicionário, e o desvio que o sentido linha em cada folha impôs nova eà úmida que passa, vira, no vento do sol do dia aberto, seca, e se volta para sempre, para trás – pára contra a cal viva, o papel vazio contra a noite dos olhos fechados.
(segunda estrofe de “Livro”) Forma de conhecimento em que o sujeito deseja deixar de sê-lo, ao não separar seu corpo do mundo, o um-no-outro de Armando não se realiza como fusão lírica, mas sempre corte, em que a ferida testemunha o confronto. A persistência é como doença, um caminhar de cego que forceja para descrever a sombra mais do que a silhueta, frente a frente com o oco do que morde.
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Trajetória: Armando comenta, em depoimento, que considera Bandeira, Drummond e Cabral tríade fundamental em sua formação poética e compara Gullar a D’Artagnan.110 Foi ele o responsável pela sua primeira íntima aproximação com a linguagem da poesia contemporânea, esboçando-se em fins dos anos cinqüenta num Brasil que se industrializava. Armando chegou a copiar A luta corporal à mão, para reler à la Pierre Menard, percebendo ali uma possibilidade que se abria de experimento. Na potente irregularidade daquele livro, há sonetos metafísicos, poesia concreta, dissolução “dadá” da sintaxe... tudo! como um mundo emergindo complexo, fecundo e ainda em estágios diversos de ebulição, solidificação e destruição. Esta é parte da pré-história de sua poesia, como se Gullar pudesse ocupar o lugar de irmão mais velho, afirmando a importância da leitura da tradição modernista e de sua reconfiguração. Mas, ao sondar a via de poeta de vanguarda, suas publicações dos anos sessenta trazem marcas da Instauração-práxis. Não que tenha de fato integrado o grupo com a ortodoxia programática exposta nos manifestos de Mario Chamie. Na verdade, Armando agregou-se a eles por afinidade de espectro amplo, tendo em vista duas motivações centrais à poesia daquele período: a experimentação formal e o conteúdo socialmente orientado. Depois de Palavra (60-62) – seu primeiro livro - os dois seguintes, Dual (63-66) e Marca Registrada (66-69), foram editados pelo grupo Práxis.111 Neles, encontramos o engajamento da sua palavra com o concreto. Poesia, desde o princípio, substantiva e terrena. Os exercícios de proliferação à volta de um campo semântico são recorrentes nesse período inicial, nos quais a forma de construção é compacta, tanto do ponto de vista sonoro, em que os ecos reiterados lembram uma gesticulação veemente e o ritmo evoca a percussão intermitente do pulso; quanto da perspectiva temática, em que prevalecem as linhas e cores de uma visão plástica, certamente embebida na descoberta da arte mais em voga e suas afiliações. Calder, Volpi, Goeldi, Gershman ... inspiram esses estudos de arquiteto. 110
“Três mosqueteiros”, em M assi, A. (org.) Artes e ofícios da poesia . São Paulo e Porto
Alegre: Secretaria Municipal de Cultura e Artes 111
e Ofícios Ed., 1991. Seus dois primeiros livros trazem capa de Rubens Gerchman, com quem partilhou projetos gráficos posteriores, e Marca registrada tem capa de Emilie Chamie.
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Quase nem é preciso dizê-lo - outra influência de enorme magnitude o assombrava – e até hoje com ela se depara e contrasta: João Cabral foi sempre seu contraponto, na matéria vazada em branco e preto, no estilete da gravura atuando com força e precisão. O engenheiro cauteloso e medido na aproximação da matéria – e não menos apaixonado por isso (como se poderia preconceituosamente supor) - também atua em Armando, conferindo à sua poesia uma qualidade paradoxal de fundo que se torna cada vez mais consciente: um desejo desmesurado mas meticuloso. Desde seus primeiros poemas, já descortinamos o traço maníaco dos ritornelos sonoros: as aliterações e assonâncias, e uma continuidade ou passagem do metalinguístico abstrato para preocupações neo-concretas. Há, aqui, uma afinidade inconteste com as estruturas entre geométricas e orgânicas das artes plásticas cariocas da época, que derivam da matéria bruta do corpo e das linhas de força matemáticas as suas balizas. A admiração cum grano salis que consagra a Cabral dá-se pelo viés da convergência do aspecto solar e construtivista dos dois. Ambos têm em comum o anseio de apreender o cerne das coisas. Mas um fá-lo através de símiles lúcidos, afiados, até chegar quase à anulação da matéria (e do eu). Outro se distancia com um misto de louvor e crítica ao que considera excessivamente planejado e cerebrino, e valoriza “o que ficou atrás, no escuro/do rascunho, cego e rasurado” e “segreda/em código na entrelinha, o que só/passa através de frestas”, preferindo a atitude do bote na medula como dinâmica mais afim ao seu perfil criador. Nessa posição dialética reside a tensão que realiza sua escrita. Ainda que elogie o “verso de prumo e rigor” de Cabral, atribui a si o transbordamento impetuoso e veloz, como em “Caçar em vão” (em Fio terra): Às vezes escreve-se a cavalo. Arremetendo, com toda a carga. Saltando obstáculos ou não. Atropelando tudo, passando por cima sem puxar o freio – a galope – no susto, disparado sobre as pedras, fora da margem feito só de patas, sem cabeça nem tempo de ler no pensamento o que corre ou o que empaca: sem ter a calma e o cálculo de quem colhe e cata feijão.
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Espanta nesse poema o uso inteligente do ritmo, da simetria final irônica com aliteração e cortes espelhados, como a querer superar um tipo de racionalidade a partir dela mesma. Ou seja, a maneira de Cabral – tão circunstanciada – de apresentar o mundo com cuidado, por partes metonímicas para enfrentar cada pedaço, através do reiterativo serial, e ainda a forma obstaculizada e esquisita de atrapalhar a fluência de leitura terminando o verso antes da respiração, aqui é virada ao contrário, para enfrentá-lo. Avançando para os anos setenta, mais três livros ( De corpo presente, 7075: À mão livre, 75-79; Longa vida, 79-81). Neles sua poesia sofre alterações substanciais, a começar pelos títulos, bastante reveladores. Outra textura e vocabulário, corporal, vai aparecendo. Não mais pedra, estrutura, espaço, forma, e sim carne, sangue, pele, esperma... Muito mudou: do espacial para o temporal, do geométrico para o vital, do social para o subjetivo. Progressivamente, habita seu estilo de lirismo - mordente e sôfrego. Passa da batida do pulso para o fluxo das veias: uma paixão modulada – sempre rascante e visceral – e agora mais interiorizada. Como se sabe, Armando vem sendo o responsável pelas edições cada vez melhores da obra de Ana Cristina Cesar. As afinidades com a liberdade discursiva dos anos setenta conservam-se presentes ainda que metamorfoseadas pela forte dicção própria de sua poesia atual, que nunca perdeu a referência construtiva primeira. Sempre, o dilema da escrita é a pedra de toque, mas a ela agregou a subjetividade impura e muito coloquial. Cacaso propunha que a poesia não fosse memória do susto, mas véspera do trapezista: ao invés de emoção recolhida na tranquilidade, um enfrentamento que implica atirar-se ao desconhecido. Em Armando, deparamos com os dois movimentos essenciais ao trapezista: o pulo e a procura do tempo exato. Na sua poesia daquele período, a primeira qualidade – do risco – parece predominar. Uma urgência aflora, como se escrever fosse questão de sobrevivência, num arranque para a vida: Escrevo só em último caso ou como quem alcança o último carro como quempor um triz por um fio
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não fica no fim da linha de uma estação sem flores a ver navios.
(Longa vida) A própria diagramação dos versos acompanha o ímpeto de quase ruptura, tornando a escrita o ponto de sustentação. Sonho, delírio, loucura, navegação, são imagens reiteradas. A idéia da mão livre, para ele, remete a um Dr. Jekyll ou subversivo mal-comportado, que quer fugir da escrivaninha e levantar vôo. O poema como raio, descarga do momento. A escrita ágil em fiat lux, numa subjetivação de recortes e vestígios rápidos da paisagem. Flashes em que observa Sebastião Uchoa Leite112 - arma-se um conflito dos signos poesia e vida, pois agora interfere o erotismo e o cotidiano do caminhante urbano. As imagens do amor são uma poética em si mesma, pois figuram o vôo ou mergulho do jogarse inteiro, como se vê em dois trechos de poemas de Longa vida: e como o amor se lança sem esperar a ponte concluir seus lances, cálculos, óculos o alcance de sua segunda margem mergulhando pois eu sei pois eu sou esse incêndio instantâneo aceso em seu louvor.
E um outro: Amar é mergulhar de cabeça sem saber nadar sem saber de nada ao seu encalço numa piscina como um camicase pulando do último do mais alto trampolim de mim sem asa-delta 112
Na orelha de Longa vida, Sebastião Uchoa Leite faz agudo apanhado crítico da obra de Armando Freitas Filho.
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salva-vidas, pára-quedas sem perguntar sem sequer pensar se lá embaixo vou encontrar água ou apenas o ladrilho do vazio?
Primeiro pular – e sempre duvidar da possível porosidade ou acolhimento do mundo ou do outro. O poema exprime muitas vezes esse medo de não ter certeza do seu kairós mas atira-se contra a parede/o muro/o ladrilho sem nenhuma rede de proteção. Flora Sussekind define o estilo de Armando, ao comentar 3X4 (81-83), como a fala de um gago que adora conversar ao telefone: o ritmo cortado de alguém que se coloca como meio para a transmissão do viver e quer alcançar o instante da onda, que se repete, repete, repete e não pára. Assim, a pressa de falar antes de ser interrompido pela fuga das palavras ou a traição da retórica leva o poeta a ansiar por uma comunhão entre a subjetividade que pretende se exprimir e o destino dessas palavras de dentro que saltam e erram sem pouso: Arrancadas tão depressa pelos cabelos pela raiz da terra última estas palavras são mudas trêmulas e íntimas e erram no ar quase sem fôlego buscando um vôo para a voz e qualquer vento para o pouso. Vontade iminente de sair ao encalço e acossar o instante fragílimo: A tarde precipita sua cor cai, no começo no princípio da noite e o que ainda resiste meio fera, ao precipício ficou na beira da taça que não suporta mais sequer um riso pois todo cristal está sempre na iminência, um minuto antes de partir.
Observe-se a aproximação de dois ritmos: tarde e cristal que estão a pique de cair. Aqui se contraria a “Urna grega” de Keats, visto que os objetos não se encontram em harmonia entre forma e fundo: podem-se romper e quebrar, pois o poeta quer impedir que o poema se cristalize literariamente, assepticamente, em 109
manifestação consagrada; tal é a premência para Armando – e nisso, lembra os versos emblemáticos de Gullar em sua “Arte poética’: “Não quero morrer não quero/ apodrecer no poema”. Nunca, porém, Armando se tornou propositadamente anti-literário. Mas o contato com a chamada geração marginal (rótulo ambíguo) acicatou ainda mais, para ele, o problema da passagem da escrita para a vida, e vice-versa. Leiamos, por fim, versos que resumem perfeitamente essa questão sempre retomada: Abrir os pulsos as gavetas e cortar as veias enquanto é tempo de salvar a vida e impedir que o poema caia em si mesmo como os repuxos, os reflexos os anúncios luminosos que trabalham sempre com a mesma água sem o risco das hemorragias.
Recusa-se a estagnação ou paralisação da vida em nome da bela forma. Na ponta do trampolim, negando-se a passar a limpo ou marmorizar a lírica, para não perder a vitalidade, chegamos à sensação, em De cor (83-87), de queda ininterrupta e vertigem. Os muitos poemas entrançados com a memória do suicídio de Ana Cristina também agudizam o motivo (já central mas agora transfigurado tragicamente) da poesia “em apuro no ápice do precipício” ou “cachoeira fixa”, “edifício calafrio”, sobressalto e torpedo. Dois trechos, tal como aparecem neste livro: Você não pára de cair fugindo por entre os dedos de todos: água de mina resvalando pelas pedras. Nunca um poema acaba a não ser com um tranco com um corte brusco de luz _____________ Escrever metralhadora: quebra-quebra o coração quer disparar louco vermelho preso entre paredes acolchoadas atingindo muitos alvos
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sem precisar de mira fina ou olho microscópico para ferir fundo e grave sem matar jamais
Há uma aceleração de choque, de fio desencapado. Interroga João Gilberto Noll: que torna odopoeta, digamos, tão aflito com as de ingerências físicas, com a O materialidade mundo? Estes versos (não raro cadência afoita), que provocam a sensação de que acabaram de estar, deixando ao nosso olhar como que a lembrança espantada de um fulgor ríspido, sem pompa, estes versos parecem indicar que na potencialidade da matéria repousa o central, farpado, avesso ao ar. (na orelha de Cabeça de Homem).
De fato, Armando escava e se fere sem cicatrizar, nesse período, procurando em si, num ralo escuro, fundo, um anti-retrato, uma não fixação da imagem, que se rompe no momento mesmo de ser representada: mimese de estilhaço mais do que de espelho. Como se o poeta quisesse destruir a si e a qualquer objeto, lembrando Lygia Clark que desejava ultrapassar todo objeto externo de referência. Esse arranco brusco, com ira e dentes, que morde e tritura com impaciente raiva e fome, tudo, como o sol que bate nas pálpebras a soco, de Cabral, insemina igual anseio por luz e vigília antes da cegueira auto-destrutiva. Observa Maria Rita Kehl, em ensaio sobre Cabeça de homem: “A poesia de Armando incita uma velocidade por dentro e por fora do corpo, correndo atrás de que? [...] Claro, essa velocidade conhece a força do que vem vindo atrás dela, implacável.”113 Para a estudiosa, essa urgência em apanhar eroticamente a paisagem, a mulher, o instante, revela a gana de agarrar a vida em si mesma, tentando a todo custo casar coisa e palavra. Por isso, as imagens remetem à penetração violenta, à custa de si mesmo, configurando o poema até o seu avesso. Neste livro, talvez Armando atinja o cume da nitidez e dureza, recortando com ansiedade de insônia, a “talhe de foice”, “à queima-roupa”, intensamente sensório num “mergulho do prego/vertical, reto de ponta-cabeça, ininterrupto.” Como em todos os anteriores, a emergência da vida: um retesamento que salta e arranha a matéria, o tempo de dias e noites, o escrever. Com os nervos estirados, o poeta dispara sobre a paisagem de si ou à sua volta, e comunica a 113
Em “O desejo aflito”, p. 127, que é seguido por “Saudades de tudo”, outro artigo excelente sobre a poesia de Armando, ambos publicados no livro A mínima diferença: masculino e feminino na cultura . Rio de Janeiro: Imago, 1996.
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vibração da procura dificultosa mas urgente do homem ao real opaco. Como se a velocidade e a brusquidão arrebatassem com mais pungência as coisas na sua ardência. Já Números anônimos (90-93) apresenta, de um lado, como que outra linguagem, amaciada pela felicidade, anasalada em remansos, e de outro, a imponência simbolizante do tema do tempo, chegando a momentos do sublime clássico na sua secura trágica. A criação correndo em rascunho, submetida à lei da necessidade e do concreto retorna, sob o leit motiv da passagem veloz, além do homem, dos dias e palavras: Deus contra o céu cercado de nuvens coberto pelo suor de todos os dias pensados: um por um sem tempo de ensaio ou sonho, de passar a limpo os sucessivos rascunhos sob a carga do que corre e do que estaca - do que é do vento e da pedra – sob o peso do dilúvio e do deserto depois.
O perseguidor do tempo, na impotência do exprimir-se em definitivo, apresenta aos céus seu clamor de desespero, sob o peso de Sísifo da má infinitude. O corpo vai para a morte, na inexorabilidade dos dias que correm contra o céu: só a estátua e seu espelho duram, mas ele esvai-se no intervalo entre pedra e vento, sob “os dias sem índice/idênticos e mortais.” Talvez seja o momento extremo de agonia o mais fulgurante do anônimo decorrer das horas, e nesse se experimente algum consolo efêmero. Por outro lado, uma delicadeza tranqüila percorre alguns dos poemas, como breve apaziguamento de acorde musical, aceitando a distância do concreto e alegrando-se (quase) placidamente, com a harmonia suave entre o lugar do homem e o universo, num interregno: A lua não está à mão a não ser da luva do astronauta mas o seu lugar é aqui. luar queovai entrando eO paralisa lago, o alto-mar em cada onda, as salvas de prata
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o espelho do aparador, e toca no silêncio no piano de Debussy e no chão, xadrez, quadriculado da casa que enfrenta a noite em match sereno e aceso jogando só com as brancas preferindo à luz do fogo, a da água.
Mas, são passageiros esses momentos extáticos. Logo o vermelho e o convulsivo retornam, e a vida por alguns instantes cálida e branda volta a “disparar”, “a sós com a alma violenta”, o “Amor que pega no tranco/e fica rodando/na base do tiro”. O ritmo da cidade transpassa vários poemas, como metáfora dos arranques agônicos do indivíduo contra a aniquilação. São os “sucessivos ônibus, táxis, metrôs” do desespero dos dias contra os quais se enfrenta o poeta, tentando manter-se vivo à revelia, por túneis e gargalos e agulhas e gargantas e sinais fechados, “nadando no seu próprio sangue”, “vivendo do próprio fígado”. Do outro lado, o mar, impassível à subjetividade humana, segue indiferente ensimesmado em sua grandeza. Nos três livros seguintes (Cabeça de homem (87-90), Duplo cego (94-97) e
Fio terra (96-2000), o tema da escrita se impõe soberano, não como mera metalinguagem, antes como sentimento de mundo retesado entre a necessidade e a impossibilidade de dizer “A não ser o inarticulado/entre suspiros/ou o que as palavras não pegam/próximo da alma e do impulso”. Um dos poemas mais dramáticos nesse sentido, pontiagudo e – malgrado seu – em perfeita consonância de som e sentido: Gritos por dentro que acabam calados na boca do céu. Píncaros! Terrível. Qualquer palavra que tenha escarpas sentidos ou ritmos de perfis agudos de sprinter e sentinela em arrepiadíssimos despenhadeiros. Sem luxo. Sem o encaixe justo da jóia no estojo.
Essa convulsão do som para imitar o agudo do grito quer justamente romper o equilíbrio das formas – através delas. Desejando vigorosamente divisar de novo a vida, ao “quebrar os pés dos versos mesmo que/doa”, nega a elegante
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morte-mímesis da poesia, em luta permanente para permanecer imerso no corpo, em relação boca a boca, com a cara mergulhada na terra. Por exemplo, em Duplo cego: Escrevo contra, e incompreensível em pé, direto na parede sem horizonte à mão
(“Sobre pedra”) Mas... como não ser sombra e luva da existência, esta que “Quando escrevo já morreu”? Será a arte menos precária do que a vida? Ambos, poeta e mundo, se enfrentam, e ele sabe da fenda entre o eu e a escrita. Agora, surge em Armando uma sutileza de lapidador, um anelo de leveza e “concentrada luz”: Movimentos finos, risco, fulgor! Ritmo a frio, no automático lapidando o brilho milimétrico, ciclotímico. Chuva de alfinetes, lá longe pegar com as unhas o vôo tremido da borboleta contra o ar (“Diamante”)
O alfinete, o lápis bem aparado, o buril, enfim, a força refinada, convertese em referência constante nesses últimos anos. A obsessão de alcançar através da escrita o real, “morder o mundo”, “inscrever-se intenso”, demonstra o esforço para vir à tona, forcejar, irromper, sempre por frestas, entrelinhas, “como a umidade do muro que teima em vazar, a despeito da cal”, ou “a luz que fura a parede, de tão furiosa”- sempre à procura da dose certeira. O fino - concentração depurada do explosivo -, começa a revelar-se mais potente que o rombudo. Em Fio terra dá-se a plena maturação. Desde o nome, o livro remete ao relâmpago capturado, enfatizando, de um lado, o aspecto rápido e inesperado, de um poeta que sintoniza no ar da tempestade as suas intuições. Por outro lado, o que foi de súbito apreendido é descarregado num corpo pesado e escuro, que retém a carga elétrica e a digere, faísca consumida pela espessura úmida da terra, interior do sujeito e da linguagem que oscila “entre a sensação e o sentido” (nas palavras do poeta). Logo nos primeiros versos revela-se o mal-estar central que perpassa boa parte de sua escrita: a identidade solitária comprimida pelo mundo trevoso, terroso, contra o qual a poesia intentará um combate guerrilheiro, com “voz silenciosa”. Mesmo quando recém-nascido, o poema será desentranhado com 114
garra, assumindo sua condição “de garatuja, estudo ainda sujo”, papel “abscôndito, amassado”, para enfrentar a resistência das coisas em serem manifestas. A primeira parte do livro, intitulada “fio terra”, apresenta-se em forma de “poema-diário ou o “diário de um poema”. 114 A companhia do diário, se lembra a sombra ou o reflexo no espelho, parece igualmente fortalecer a possibilidade de voz e saída do tempo-túnel, como se escrever fosse ao mesmo tempo a doença e a cura do poeta: Doente de mim, desde que a escrita juntou-se à vida, com as linhas da mão misturadas às do papel sob o peso da batida do pulso [pegajoso.
Dela retém-se um sentimento de invariabilidade circular do tempo cotidiano: Sob a carga do corpo – vagão de sangue correndo sobre os trilhos dos ossos – roda dormente, circular, sempre dentro do mesmo túnel.
O homem se move na extensão dos dias a se repetirem exasperados, andando numa rua abstrata, apenas horizonte para a perplexidade do existir. Avança como o relógio, pulso e sangue, a não ser por sensações táteis e perfumes que perduram ou retornam. Mas, a engrenagem do “dia e noite inumeráveis”, da “camisa-de-força”, da “definitiva televisão dos dias”, pedestres, transitórios, almeja iluminar-se. Na aurora volátil da criação, algo se abre, aparentado de pássaro e flor, e conduz leve a mão para fulgor, vôo de nuvens, bandeira tremulante, contrapondose à identidade solitária e pesada na noite: “Trevor. Noite sem remédio/toda de terra, repleta de árvores/de braços abertos para a poda.” Assim, o poema-diário oscila entre a perplexidade da enunciação do percebido (“Perto do pensamento/é difícil nomear o que se escreve.”), que se manifesta pela incomunicabilidade de homem e coisa (“murmúrio e muro misturados/segregando umidade, melodia/sobre pedra muda, seca – entre/poros – a custo este segredo.”) e a
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Conforme considerou em entrevista a Adolfo Montejo Navas para a Revista Cult, n.
40.
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esperança de emitir estes clarões de percepção que podem trazer o amanhecer, ainda que “sem se passar a limpo”, na forma de borrão e mancha: Difícil de abrir o dia, o sol a luxuosa luz da manhã o céu que a montanha sonha o alto-mar feito de leões. A única vitória é a própria vida com o corpo batendo ponto na mão. e o fogo fechado do troféu,
Fogo este que consome ao rés do chão, sem sublimar-se, mas avança teimoso, mesmo enfrentando o cerne duro das coisas: Ser na superfície, ao nível do mar. Não vôo nem mergulho. Vou a pé, no chão calculado da cidade, dentro dos dentes dos dias, em cadeia.
E então, alguns instantes de nudez, entrega e faísca: graças ao encontro amoroso e ao sonho, o noturno insolúvel torna-se fértil, cintila em jóia, quando da terra brotam fontes. E tudo cresce no poema, com novo alento: “Debaixo de mim/o orgânico jardim/desdobra sua planta – bétula, bétula!/Em campo aberto, galopa o agapanto”...“sob mim, mil miosótis crescem”. Muda inclusive a natureza da mão: as veias fazem-se firmes e azuis; a palma, delicada; e assim todo o corpo pode estar mais à vontade no dia. Ainda que a vida retorne depois ao que era antes, o tempo de transfiguração ocorreu, em certa madrugada. Premente e contínua, no fundo dos poemas, entrevemos a passagem do tempo e a morte. A poesia parece um esforço até muscular para resistir à continuidade secante e cegante dos dias e sua lei fatal. Escrever como infiltração secreta, fermento, explosão do cimento, sob a cal, rasgando a parede, como se houvesse uma diferença quase insuperável entre o mundo enigma e “a mão que escreve na ventania”, tentando mesmo “morder a mesa” para marcá-la, entalhando a matéria para registrar os sinais do poeta: a linguagem é comparada a bala, risco, flecha, pluma – finos ou rombudos como lápis ou obus “no ataque contra o muro repetido/contra o fim do dia, que morde.” Mas, reconhece, “a vida vem com a morte implícita”, e, embora a arte permaneça imóvel nos museus, protegida por vidros, caímos paulatinamente, até depor o corpo na terra. Pior, a escrita pode acelerar o corte, arrancando a flor da vida, que não mais respira, congelada no livro sem perfume ou cor – simulacro ou vampiro, eterno como estátua de
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chumbo: “sem água nem terra, sem céu/e sol – sem o sereno da lua/o livro se encerra sem pássaros”.
Encontro-enigma: 115
Um “movimento contraditório” entre “permanência e fuga” se aguça em Máquina de escrever. As aliterações compulsivas, que permeiam todos os seus livros, marcam o zelo do embate entre murmúrio e muro, a voracidade do amante que se dá sem reservas, buscando em seu corpo e no da mulher a crença e descrença na poesia como possibilidade de confluência com a matéria do mundo – a montanha maciça sonhando com o céu. Tornam, por toda sua poesia, imagens recorrentes: a solidão do corpo, o “dia invariável”, o sol causticante que apressa a morte, o mar imenso em contraposição à cidade, o trânsito nos túneis, a fala que quer rasgar (mas não pode) o vento que move os seres. Tanto nos poemas eróticos quanto nos que tratam da morte, do círculo do tempo e da dificuldade exasperada da escrita, o leitor depara-se com a disposição vital de um poeta que não se poupa do risco, atirando-se com energia até pontos extremos, e que nos reapresenta, destemido, o paradoxo romântico proposto por Schiller em toda sua conseqüência de ruptura entre homem, linguagem e mundo: “Quando a alma fala, ah, já não é a alma que fala!”. Um trecho dele mesmo “explicando” sua poética: Sob o aspecto visual, a sensação é de que armo, num lugar sem mãos, um puzzle, onde as peças quase se encaixam: há sempre alguma coisa que falta ou sobra. O interstício e o excesso são a diferença imprecisa entre intenção e expressão. Procuro não contemporizar com a carência e a abundância, mas jamais consigo preencher ou desbastar de maneira correta. De vez em quando, essas necessidades vivem no paradoxo e se apresentam no mesmo plano – simultâneas – querendo existência plena e idêntica. A poesia assim pensada não apresenta resultado cabal. As soluções são virtuais e se deixam ver e ouvir através de atmosferas distintas que misturam, aleatoriamente, cálculo e acaso. 116
Afinado com as artes contemporâneas que contemplam o desafio da indeterminação na obra sempre por perfazer-se, aceita arriscar-se na fronteira do desconhecido, como um dos “horríveis trabalhadores” de que fala Rimbaud, 115 Citação da 116
supra-citada entrevista. Encarte do CD “Armando Freitas Filho”, da coleção O escritor por ele mesmo , gravado e publicado pelo Instituto Moreira Salles, 2001, p. 4.
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sempre ambicionando trazer aos homens o que está além das sensações conhecidas e nomeadas. Dessa forma, o seu trabalho vai consolidando claramente uma ética de luta para a apreensão das coisas, que se torna cada vez mais precisa, como uma série cabralina de aproximação que fosse ao mesmo tempo um mergulho ou transmutação de si no outro, nunca satisfeita com a própria expressão. A incompatibilidade do herói problemático com o mundo, se, de um lado, constitui o que possibilita a busca (que é o próprio sentido de sua individualidade), também é a fonte de sua insatisfação perene: o que o obriga a lançar-se, para tentar descobrir um sentido com esforço do coração. Ao amadurecer como poeta, o medo de cristalizar-se torna-se um motivo central para Armando, obsessão que virou tema profundo tanto como conteúdo quanto como forma, quase como se ele estivesse correndo por fora de sua poesia, tentando deixar uma marca ou transcrição muito incisiva e rápida antes de fugir ou ser agarrado: há um atirar-se reiterado como se a vida escorresse, pulasse, escapasse e fosse necessário lançar-se em seu encalço. No entanto, uma vez domada, perderia o sal, a liberdade de seu devir. Nesse caso, a expressão precisaria todo o tempo figurar o gesto que não enclausura – como a blague de Delacroix contada por Baudelaire: ser um desenhista tão rápido que conseguisse capturar os traços do suicida enquanto ele se joga pela janela. O desenho deveria ficar pronto antes que ele chegasse ao chão. Para isso, aliar técnica e espontaneidade, para ser percuciente no imediato vertical. É uma arte desesperada, que sabe ter pouco tempo de vida e precisa ser incisiva naquele instante: em si mesma já inscreve a dessublimação do que é impermanente, mas carrega o paradoxo baudelairiano da idéia da modernidade: ao mesmo tempo representação do agora e do atemporal. A exasperação entre mundo e sujeito só se aquieta, muito momentaneamente, no que parecem ser entregas totais, completas e por vezes auto-destrutivas – mas na verdade nunca se resolve, pois o ato de escrever já demanda o esforço e a insatisfação ansiosa. Assim, a própria descrição das
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imagens da entrega contém o germe da nova exasperação – ainda que relate o instante muito breve da graça.117 De um lado, como já sublinhamos, a poesia de Armando se distingue pelo ímpeto para tentar agarrar a vida, o corpo, a coisa, como se fosse possível franquear o espaço entre a paisagem indiferente e a mão que tenta “incendiar”, “avançar”, “caçar”, alcançar o poema, que passa voando, sai correndo e se esvai na tentativa: “exploemas/fonte de plumas, fluxo/foguete, flash de palavras/e páginas/volantes/virando velozes”, ou ainda: “seguir/segundo por segundo/a cem por hora/a céu aberto/verão adentro/sem pouso ou pique”... “É correr na contramão/por bares, praias, casas/pegando fogo/e chegar – ventando -/na hora H/de todos os incêndios” (ambos de Longa vida). Mas, mesmo precipitando-se, “na iminência, um minuto antes/de partir”, tentando impedir que o poema se cristalize como forma fixa, na carreira, “na ponta do trampolim”, o eu lírico reconhece a dificuldade de dizer o que sente, vê e vive: as cartas ficam sempre no rascunho, escapando do registro preciso. Tal como na canção de Waly Salomão, conhecida por “Vapor barato”, na qual o revólver atirava no que via mas não matava o desejo do que ainda não existia, o poema de Armando também atira “na miragem que ainda não vejo”, e sente que fracassa, erra, mas continua: “Escrever metralhadora/quebra-quebra/o coração quer disparar” (“Muito depressa”, De cor) ou: “Desescrevo depressa, desespero/até o último ponto do avesso” (“Aplicação e espelho”, Cabeça de homem). Mas, de outro lado, a velocidade tem a sua contrapartida... Ao lado da “vida que dispara” segue a consciência de que, quando todos os tiros são gastos, sobra uma roda de luz que gira e regira sob o céu, sem nada que a possa consolar: a dor repisa o deserto no peito. Por mais que tente acelerar a vida, o telefone continua tocando na “casa vazia e trancada”. Embora o poeta ataque as palavras com facão e navalha, o resíduo fica. Ainda que invista contra tudo, “nada me salvará daqui/deste desastre.” (versos de Cabeça de homem). O sol e o deserto são presença constante nos poemas, a impor uma luz imutável, coruscante, que dura: “O sol trabalha no céu perpétuo”. Há uma 117
Eduardo Guerreiro Brito Losso observa o desequilíbrio constitutivo da poesia de Armando, à procura sem fim do irrepresentável, do inaudito – próximo do erotismo e da morte. Ver sua dissertação de mestrado, Travessia cega de um desejo incurável: a experiência sublime na obra de Armando Freitas Filho (mimeo, UFRJ, 2002, orient. Profa. Dra. Vera Lins).
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imobilidade do tempo, uma repetição das estações, dos minutos nos relógios, do telefone tocando, das cenas no espelho, do sujeito de pé contra o muro “abotoado e morto até a boca”. Ser como máquina de escrever parece ter a função de continuar o fluxo dos dias e não deixar parar a vida-poesia que, no entanto, é descrita como estática: “céu inútil, dias/que não andam, previsíveis sol e/lua, nuvens, vento que não arrebata” ou: “Sol de fora a fora/sem sombra para aterrar/e interromper o corpo/e os dias sem índice/idênticos e mortais.” (Números
anônimos, 1994). O corredor que se precipita inutilmente no vácuo, repetindo invariável e desesperadamente os mesmos movimentos, continua tentando fugir, ansiando sofregamente que o poema possa ser o seu “meio de transporte” – para além do espelho, para um novo real. As dores da vida (e da morte) são aliviadas por meio dessa velocidade/paralisia de movimentos, que impede algum perigoso estacionamento em formas aprisionadoras. Assim interpreta Celia Pedrosa a recusa aos ritmos lisos, como se a irregularidade fosse um modo de driblar o automatismo mecânico do tempo inexorável: “Em Armando, a gagueira está, ao contrário, vinculada a uma estranha forma de eloquência, em que o grito é expresso por uma dicção que o nega, a força pelo travo que a reprime, assim como a luz pelos sobressaltos que a entrecortam.” (p. 161).118 Ela menciona, a esse respeito, os seguintes versos (que começam recordando o sentimento de mundo drummondiano): “Eu vou doer/eu estou doendo” e o pensamento ferido prefere acelerar para não parar na dor e toma velocidade a anestesia da mesma paisagem do dia aberto e igual sem horas.
(“Pai”, Cabeça de homem, 1991) A lírica de Armando existe sob o signo da tensão inconciliável, pois deseja fundir-se na expressão mais íntima do mundo, fora e dentro de si, reconhecendo, ao mesmo tempo, tal impossibilidade, - pedra inaferrável que impede o encontro e se debate, fazendo do poema o arabesco inquieto desse impulso. Todo o tempo, 118
Refiro-me a “O olhar eloquente”, no livro de Celia Pedrosa, Ensaios sobre poesia e contemporaneidade. Niterói, Editora da Universidade Fluminense, 2011.
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a noção de rascunho revelador é reiterada como um desafio para o qual a poesia funciona como relatos de aventuras necessariamente incompletas. Sob o signo da negatividade que não desiste nem se dobra, marca da melhor arte desde o romantismo, sua obra testemunha uma fissura irreparável e registra sujeito e vida contemporâneos, como veloz máquina de escrever, sem elidir a contradição do gesto, corajosa e lucidamente partido.
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Ana Cristina Cesar: “Não, a poesia não pode esperar”119
Ah! reader! you open the page my poems stare at you you stare back, do you not? my poems on the silver of your speak eyes your eyes repeat them to your lover’s this very night.
(Frank O’Hara)120
A sensação de que o poema poderia olhar para o leitor a partir da página do livro, atuando como um espelho que intensifica a imagem, e imantando a ambos com sentimento amoroso, descende de uma figuração sobretudo romântica de lirismo. A poesia deveria transmitir-se intimamente de alma para alma, como a linguagem transparente do paraíso. De maneira similar, Whitman sugeria em “So long” ( Leaves of grass, 1855): Camerado, this is no book, Who touches this touches a man, (Is it night? are we here together alone?) It is I you hold and who holds you, I spring from the pages into your arms – decease calls me forth.
Embora tal anseio por contato ronde assiduamente muitos versos de Ana Cristina Cesar, o discernimento da distância intransponível o mais das vezes se faz sentir, produzindo-se movimentos opostos de aproximação e recuo.121
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Este texto derivou de algumas análises de poemas de Ana Cristina Cesar que integram artigos mais antigos, retiradas de seu contexto anterior para que aqui interajam com outras reflexões. É o caso do poema “Le ballet de l’opéra a Rio” (em “Tal ser, tal forma”, Poesia sempre n. 19, 2004) e grande parte dos comentários sobre os poemas gatográficos (“Orfeu e o gato: Jorge de Lima e Ana Cristina Cesar, uma trajetória de releitura poética”, Revista Remate de males n. 20, 2000; “O risco do gato” in Süssekind, F., Dias, T., Azevedo, C. Vozes femininas . Rio de Janeiro: Ed. 7 Letras, 2003). 120 Estrofe reproduzida por Marjorie Perloff em seu livro Frank O’Hara: poet among painters . Nova York: George Braziller, 1977, p. 55. 121 Sobre Leaves of grass , de Whitman, ela afirma: “o livro é o poeta”, que teria inventado a si mesmo como figura apaixonante, abolindo “a questão da representação como distanciamento” e criando “a metáfora recorrente do abraço da palavra que percorre e inventa o país de ponta a ponta.” Se “ler Whitman [significa] tornar-se amante de Whitman” ao mesmo tempo não importam os fatos empíricos de sua vida real, “apagada”, e sim sua persona poética. Em “O rosto, o corpo, a voz”. Escritos no Rio (1983).
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Ao traduzir esses versos de Whitman, deles se apropria, repetindo suas palavras, que inclui no próprio texto.122 Mas de antemão avisa: “Opto pelo olhar estetizante” (em Luvas de pelica, 1980), como se oscilasse entre a pretensão (que ela mesma reconhece como inatingível) do encontro imediato com o leitor e a necessidade de preservação da “autonomia”. Tal como Whitman, que terminava seu poema avisando que suas palavras iriam substituir a presença corpórea (“I love you, I depart from materials/I am as one disembodied, triumphant, dead.”), ela se despede em outro trecho: “Estou partindo com suspiro de alívio. A paixão, /Reinaldo, é uma fera que hiberna precariamente.”... “Não pega mais o meu corpo; não pega mais o seu corpo./Não pega.” Assim como experimentamos, nos poemas de Ana Cristina, extremos entre os acenos afetuosos e os afastamentos bruscos, que parecem filiar-se a uma desconfiança suprema em relação à probabilidade de acolhimento compreensivo dos seus textos (ainda quando eles insistem em comunicar-se), de maneira análoga, seus versos enunciam, muitas vezes, obstáculos relativamente à possibilidade de expressar o mundo através das palavras. Cito a seguir trecho de um longo e complexo poema: Os poemas são para nós uma ferida. Cachoeira de repente alguém diz a palavra cachoeira e ela se medusa insolúvel intimidade piche insolúvel negro.
(“Contagem regressiva”, Inéditos e dispersos, 1985) Há nesses versos uma contradição exasperada entre o que consideramos o próprio símbolo do movimento ininterrupto e, por outro lado, a imagem paradoxal
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Maria Clara B. Paro observa que Ana Cristina “fez uma incorporação da voz whitmaniana na sua, buscando exprimir-se e imprimir-se no(a) interlocutor(a)”. Percebe ainda que a palavra “‘camarada’”, mais ideologicamente marcada”, foi substituída por “amor”, e que as “implicações metafísicas ” do poema aqui adquirem “proporções físicas” (1995, p. 255-257).
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da cachoeira imóvel.123 A palavra fixa o devir das coisas numa forma sonora, retirando-as da existência e convertendo-as em linguagem sem substância, como num espelho deformado do instante. Estamos parafraseando Platão e a teoria clássica da mimese apenas para evidenciar quanto a poesia moderna, e mais ainda a contemporânea, pode até mesmo invertê-la – pois nesse poema a oposição entre o que está fora do poeta (o outro, a cachoeira – signos da paisagem e do tempo) gera total opacidade para o olhar, e, quando este o incorpora – ao fazer o gesto de tentar agarrar o que viu, perde-o por inalcançável. Então, o mundo se torna enigma insolúvel (o contrário das propriedades habituais da água, que associamos a clareza e fluidez, ao passo que no poema ela é piche negro e medusa). Se a poesia anula o intervalo entre palavra e coisa, sujeito e mundo, Ana Cristina, ao também pretendê-lo, enfrenta o seu aspecto traumático: “As palavras são para nós uma ferida”. Esse recorte de “Contagem regressiva” evoca outro poema, do começo do século XX, no qual o irlandês W.B. Yeats se interroga sobre a natureza da imagem. Em “Towards break of day” (que pode ser traduzido como “em direção ao limiar do dia”), já no título se sugere o lugar de lusco-fusco, de indefinição, de passagem entre sonho e realidade, figuração e vida. Nele, o eu lírico refere-se a uma lembrança de infância: a cachoeira que costumava admirar, numa montanha chamada Ben Bulben (por sinal, o local onde está enterrado o poeta, na Irlanda). O menino corria até lá com vontade de segurar a água corrente com as mãos, mas então ficava irado, pois no momento mesmo em que tentava abraçar a cachoeira, ela se reduzia a pedra e água fria. Revoltava-se contra uma lei inexorável dos céus: “Nothing that we love overmuch is ponderable to our touch” (“Nada do que amamos de fato é ponderável ao nosso tato”, na tradução de José Paulo Paes). Assim, se entre a imagem fenomênica e a realidade a passagem é tão difícil, quanto mais em relação à linguagem artística, que sonha fundar os objetos que mira como se renascessem com o poema. Se a poesia contém um aspecto gestual em que o ritmo, os ecos sonoros, as figurações, querem conferir à palavra um alto grau de presença, superando o divórcio entre coisa e linguagem no mesmo passo que entre significante e
Armando Freitas Filho, no poema “Edifício Libera” ( De cor, 1988), apresenta a imagem da “cachoeira fixa” para figurar “qualquer coisa correndo/sempre no mesmo lugar” – uma “imagem-manequim”, guardada e repetida, como um emblema repisado. 123
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significado, o desafio do poema seria projetar na linguagem o máximo de corpo através da imagem e da sonoridade. 124 Creio que Ana Cristina se propõe a tensionar a composição do poema e assim evidenciar os obstáculos entre a própria voz e toda alteridade (da língua, do outro, do real). Ela não desiste do duplo impulso – como se o poema fosse o processo sucessivo, por vezes ambivalente de saltar e recolher-se. Porém, quando as pontes entre sujeito, linguagem e mundo estão fraturadas (assim como eles próprios), também o contato entre o poeta e o outro (seja este um interlocutor, seja um objeto do mundo) é penoso. Naquele mesmo poema, em outro trecho adiante: não há ninguém que me interesse e meus versos são apenas para exatamente esta pessoa que deixou de vir ou chegou tarde, sorrateira, de forma que não posso, gritar ao microfone com os olhos presos nos seus olhos baixos, porque não te localizo e as luzes da ribalta confundem a visão, te arranco, te arranco do papel, materializo minha morte, chego tão perto que chego a desaparecer-me, indecência, qualquer coisa de excessivamente oferecida, oferecida, me pasmo de falar para quem falo com que alacridade
Como se fosse possível sair do palco de papel e conversar com o leitor pessoalmente, mesmo sabendo que tal falta de limite significaria a morte - o desaparecimento do poeta. Esse outro a quem se endereça o sujeito da enunciação também é um ser de linguagem, uma vez que foi incorporado à escrita do poema e tornou-se um “você”, pronome intercambiável. Ele não pode, por conseguinte, comparecer a esse encontro imaginário. Mas, um aspecto da artimanha sedutora do texto consiste em querer estar presente ao lado do leitor amado e singular. 125 124
Sugiro a leitura do capítulo “Interlocução, a presença do corpo”, do livro de Annita Costa Malufe (2011), no qual a pesquisadora ressalta a “obsessão pelo interlocutor” (p. 182) na poesia de Ana Cristina, traduzida pela reiteração da função fática, no geral típica da conversa ou da carta, nas quais se evidencia a “presença da voz que fala” (p. 185). Malufe reporta-se a Barthes, quando este trata do diálogo (amoroso), em que “um corpo se lança em direção ao outro para ‘agarrar o outro e mantê-lo em estado de parceiro.’” (p. 187). Também amplia o conceito de performance de Zumthor, observando como a presença de um corpo e de uma voz, característica da vocalização de um poema, poderia estar embutido nessa sensação do “acontecer em tempo real” (p. 189) que os textos de Ana Cristina muitas vezes propiciam. 125 Ana Cristina, em conversa com um grupo de alunos, ao esclarecer a escolha do título do seu livro A teus pés, reforça a impressão de que escreve ‘na perspectiva da paixão”, deixando claros a “referência ao outro”, o “desejo alucinado de se lançar, que o teu texto mobilize”. E mais: “Todo texto desejaria não ser texto”, mas “Existe de repente uma consciência trágica: texto é só texto. Que tragédia!” Ao mesmo tempo, Ana Cristina enfatiza que não transcreve sua intimidade, ou subjetividade, uma vez que isto seria na
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Chamar para perto de si o interlocutor a quem se dirige a mensagem é uma idéia fixa: ele precisa ser alertado, acordado, para que venha ouvir, cuidar, tratar da voz poética que o interpela no espaço hostil, perigoso, onde se coloca pronta a escorregar, destruir-se, perder-se, escapar “ralo abaixo”. Reencontramos essa aflição em muitos escritos de Ana Cristina Cesar os quais desejam atingir o aqui e agora, conforme se verifica neste outro trecho de poema a seguir: Não querida, não é preciso correr assim do que vivemos. O espaço arde. O perigo de viver. Não, esta palavra. O encarcerado só sabe que não vai morrer, pinta as paredes da cela. Deixa rastros possíveis, naquele curto espaço. E se entala. Estalam as tábuas do chão, o piso rompe, e todo sinal é uma profecia. Ou um acaso de que se escapa incólume, a cada minuto. Este é meu testemunho.
(Inéditos e dispersos, 1985) A urgência em relação ao tempo transmite a impressão de que o poema é o testemunho do último minuto, e demanda a incorporação da linguagem ao locus da experiência. Exprime-se, pois, em metonímias abruptas, como se não houvesse fôlego para dizer mais do que o essencial daquele evento fugaz, segurando o leitor e colocando-o no centro do poema, pedindo sua ajuda para salvar-se. Num outro texto em prosa (provavelmente não talhado para publicação), cuja forma inequívoca parece remeter a acontecimentos factuais, Ana Cristina adverte: “Lá fora está sol, quem escreve deixa um testemunho.” E mais adiante: “Diário não tem graça, mas esquenta, pega-se de novo a caneta abandonada, e o interlocutor é fundamental. Escrevo para você sim. Da cama do hospital. A lesma
quando passa deixa um rastro prateado. Leiam se forem capazes.” (Inéditos e dispersos, datado de 16/10/1983). Novamente, o mesmo apelo patético e premente ao leitor, o único capaz de acolher sua confissão que, paradoxalmente, inscreve no mundo um sinal físico, tão certo como o sol brilha.
verdade impossível. Escolhe a construção, optando pelo “literário”. Ver “Depoimento de ACC no curso ‘Literatura de mulheres no Brasil”, da professora Beatriz Rezende, em Escritos no Rio (1993).
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A convicção de que o tempo se encolheu e só existe este único (e último) instante, característico de sua geração de artistas, é fortemente reproposta. Octavio Paz tratou dessa retomada do presente em maio de 68: não mais transformar o mundo, politicamente, mas “changer la vie”.126 A forma perene e durável da arte é muitas vezes substituída pela percepção do presente, sem intervalo, pois só a 127
sensação do imediato existe. Cito alguns versos de Inéditos e dispersos, que se assemelham a mensagens telegráficas desesperadas: “Estou vivendo de hora em hora, com muito temor.” Ou: Preciso me atar no velame com as próprias mãos./Sopra fúria.” E: “Barca engalanada adernando,/mas fixa: doçura, não afoga.” Por fim: “O que morre./Estou morrendo, ela disse devagar,/olhos fixos para cima. Olhe/para mim, ordenei. Não se vá assim.” Em outra anotação, misto de poema e prosa, destaca-se a mesma iminência da escrita como gesto que organiza a vida, sem delongas: “Agora, imediatamente, é aqui que começa o primeiro sinal do corpo que sobe. Aqui troco de mão e começo a ordenar o caos.” (Inéditos e dispersos). A mão que escreve parece 126
Ao tratar dos efeitos da industrialização e urbanização aceleradas no Brasil dos anos 70, ao lado da influência da contracultura, Heloísa Buarque de Hollanda (1992) evoca ponderações de Octavio Paz que enfatizam a “crise de uma perspectiva de Futuro” (p. 61), associada à “perda da imagem do mundo como totalidade” e à fragmentação do próprio sujeito (p. 58). Tal mudança de paradigma é bastante perceptível em canções do tropicalismo, como “Alegria, alegria” (Caetano Veloso), “Geléia geral” (Torquato Neto e Gilberto Gil), ou em poemas nos quais a afirmação do presente combina euforia e desespero (por vezes melancolia), como se reconhece claramente nos escritos de Torquato Neto e Waly Salomão. Esta aproximação pode ser conferida principalmente na chamada poesia marginal. Em Ana Cristina Cesar, a complexidade costuma ser maior, mantendo-se tensão entre uma tentativa de intimidade e um dá através de aprocedimentos de corte e montagem de cacos de afastamento confissão. brusco, que se 127 Diferentemente do regime moderno de historicidade, que projetava no futuro o progresso e a evolução, no mundo contemporâneo, “Passamos, portanto, em nossa relação com o tempo, do futurismo ao presentismo: a um presente que é seu próprio horizonte, sem futuro e sem passado, ou engendrando quase diariamente o passado e o futuro, dos quais necessita quotidianamente. ”, pensa François Hartog (1996) que credita a maio de 68 ter sido um dos primeiros momentos da consciência do “presentismo”, regime de historicidade referido ao instante imediato, característico de nossa era. Afirma ele: “O slogan “esquecer o futuro” é provavelmente a contribuição dos anos sessenta ao estrito encerramento sobre o presente. As utopias revolucionárias, progressistas e futuristas em seu princípio, deveriam operar em um horizonte que pouco ultrapassasse o círculo do presente: Tout, tout de suite!, diziam os muros de Paris em 1968. Neles se inscreve um pouco depois: “No future” . Vieram, com efeito, os anos setenta, as desilusões, a clivagem da idéia revolucionária, a crise econômica de 1974, e as respostas mais ou menos desesperadas ou cínicas que, em todo caso, apostaram no presente, somente nele e em nada além.” (p. 1-2).
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querer sublimar a desordem das sensações pela sua figuração na poesia, sem afastar-se demasiado da confusão do imediato, porém. A poesia pode até mesmo se antecipar e fugir do controle, como neste outro trecho no próprio “Contagem regressiva”: “Tenho medo de ter deixado a máquina ligada/elétrica IBM lebre louca solta pelo campo//Corri atrás”... Seu ideal seria correr tanto que conseguisse chegar junto às palavras, compartilhando com elas a intensidade da reunião do sujeito e sua expressão: “Agora quero luzes, os ramais piscando, o som/virando/luz, o disco voador, velocidade ímpar, num piscar/de olhos”. São notações que soam repentinas, num tempo radicalmente concentrado: “Vem de imediato” ou, numa variante: “Vem imediatamente, possível, e nos leva./Durante estes últimos meses amor foi este fogo./Contagem regressiva: a zerar. Hoje é o zero.” ( idem ibidem). Aspiração de coincidir com o tempo matriz, no qual o sujeito anula todo intervalo temporal, espacial, linguístico, e vive só de alumbramento.
“Houve um poema que guiava a própria ambulância”: poesia em transe “Da adversidade vivemos.” (Helio Oiticica) Em muitos versos de Ana Cristina Cesar, o eu lírico conduz um carro à toda, “passando a mil”. Leia-se, dentre outros, em “Mocidade independente”: “Voei pra cima: é agora, coração, no carro em fogo pelos ares, sem uma graça atravessando o Estado de São Paulo, de madrugada, por você, e furiosa: é agora, nesta contramão.” (A teus pés , 1982), assim como em outros poemas, com várias passagens sobre automóveis e velocidade, além de tantos versos atravessados por ambulâncias, ônibus, aviões, navios – todos os “meios de transporte” – nome com que Ana Cristina queria batizar seu livro. A “cena da escrita”128 é figurada em movimento, como se a poesia fosse uma viagem, um deslocamento no tempo e no espaço: “Estou sirgando, mas/o velame foge.”, ou “Um carro em ré. Memória da 128
Título do estudo de Rosa Maria Martelo sobre “as representações do ato da escrita na
poesia portuguesa contemporânea” tal como retratadas em diversos poemas. Trabalho apresentado no Simpósio, Travessias poéticas – Brasil e Portugal, na mesa-redonda “Cenas de escrita: poesia e crítica” (PUC SP, 2010).
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água em movimento. Beijo./Gosto particular da tua boca. Último trem subindo ao/céu.” Como em “Contagem regressiva”, a voz lírica anseia por um marco zero para a linguagem poética – o local de onde se irradia o tempo – lampejos do agora. A aspiração utópica de eliminar a sucessão horizontal do tempo, superando bruscamente a dominação implacável do relógio e instaurando o incêndio instantâneo da poesia já integrava as obsessões do primeiro poeta da modernidade. Para atingir esse êxtase da liberdade absoluta, Baudelaire aconselhava, veemente: “São horas de te embriagares! Para não seres como os escravos martirizados do Tempo, embriaga-te, embriaga-te sem cessar! Com vinho, com poesia ou com a virtude, a teu gosto.” (“Embriaga-te”, p. 105).129 Em outro poema em prosa, um dos personagens manda vir mais bebida, “para matarem o tempo que tem uma vida tão resistente, e para acelerar a vida que tão lentamente decorre.” (“Retratos de amantes”, p. 125). Na visão de Bachelard (1985), próxima à fenomenologia, “o poeta destrói a continuidade simples do tempo encadeado” (p. 183), procurando gerar um tempo vertical, que jorra, diferente do comum, que corre. Assim fazendo, rompe com a duração característica da vida social (ou do “tempo administrado”, como diria outro filósofo). Bachelard divisa no poema em prosa “O relógio” de Baudelaire o motivo dos olhos do gato, onde o poeta vê as horas, “sempre a mesma hora, uma hora vasta, solene, grande como o espaço, sem divisão em minutos ou segundos – uma hora imóvel que os relógios não marcam, e, no entanto, leve como um suspiro, rápida como um golpe de vista.”... “Sim, vejo as horas; agora é a Eternidade!” (op. cit., p. 47-48), ou ainda: “Não! já não existem minutos, já não existem segundos! O tempo desapareceu; é a Eternidade que reina, uma eternidade de delícias!” (“O quarto duplo”, p. 18). Embora o propósito de anulação da passagem do tempo possa ser em alguma medida compartilhado por ambos os poetas, não se reconhece, em Ana Cristina, o anseio pela eternidade. O “minuto de luxo” é o único horizonte de expectativa, uma vez que a outra metade da arte não faz parte de seu universo.
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Todos os trechos citados de Baudelaire foram extraídos d ’O spleen de Paris. Pequenos
poemas em prosa . Trad. António Pinheiro Guimarães. Lisboa: Relógio d’Água, 1991. O parágrafo acima e o próximo constam, com algumas modificações, do meu texto “Baudelaire mau vidraceiro”, no qual desenvolvo melhor essas idéias.
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Mais um exemplo de apóstrofe imperativa, que nos precipita para o presente repentino: No verso: atenção, estás falando para mim, sou eu que estou aqui, deste lado, como um marinheiro na ponta escura do cais. É para você que escrevo, hipócrita. Para – sounos eu ouvidos, que te seguro os ombros e grito você verdades no último momento. Me jogo aos teus pés inteiramente grata. Bofetada de estalo – decolagem lancinante – baque de fuzil. É só para você y que letra tán hermosa. Pratos limpos atirados para o ar. Circo instantâneo, pano rápido mas exato descendo sobre a tua cabeleira de um só golpe, e o teu espanto!
(trecho de “Fogo do final”, A teus pés, 1982) Quem é “você”, esse interlocutor tão desesperadamente amado e pelo jeito um tanto distraído e ausente, que precisa ser acordado e sacudido? (e, ao mesmo tempo, por que o aviso inicial, “No verso:”, esclarecendo o lugar da enunciação, como um tipo de aviso ou moldura preliminar?) Lance duplo entre intenção de presença e consciência de composição estética. As reiterações performáticas convocam o leitor mas também insistem na distância entre a voz poética e o interlocutor (falando desde a ponta escura do cais): “atenção” – “estás falando para mim” – “sou/eu que estou aqui, deste lado” – “É para você que escrevo, hipócrita.” – “Para você – sou eu que te seguro os ombros e/grito verdades nos ouvidos, no último momento.” etc. (Por sinal, o verso “É para você que escrevo” se torna um autêntico bordão, repetido em diversos poemas de sua última fase). Todas as imagens (bofetada de estalo, decolagem lancinante, baque de fuzil, pratos limpos atirados para o ar, circo instantâneo, pano rápido... de um só golpe) apresentam eventos súbitos, como reiterações do mesmo, intensificadas.130 Aliás, o poema começa com o verso “Escrevendo no automóvel.”, e mais adiante: “Ancorada no carro em fogo pela capital: sight-/seeing no viaduto para a
130
Ainda é Annita Costa Malufe (2011) que interpreta esses momentos de enumeração descontínua, encontráveis em vários textos de Ana Cristina, como típicos do procedimento de saturação, muito utilizado pela poeta para imprimir velocidade à escrita: “Vamos saltando de uma oração a outra, como se impelidos por um acelerador. São frases rápidas que nos empurram para frente, jogam-nos em um fluxo acelerado.” (p. 101)
130
Liberdade. Caio131/chutando pedrinhas na calçada, damos adeus/passando a mil, dirijo em círculo pelo maior passeio/ público do mundo, nos perdemos -/exclamo num
achado
–
é
bocas/imperguntáveis.”
tardíssimo, Mais
um:
um/deserto “Engato
industrial a
quarta
com ao
perigosas som
de
Revolution./Descontinuidade. Iluminações no calçadão.” Assim, a forte oscilação entre o ímpeto de consumação erótica, para o qual o outro é atraído, e a inclinação construtiva que monta, separa, recorta... gera a ambivalência entre máxima intimidade e enorme separação.132
Ana Cristina, cadê seus seios? 133 Em muitos momentos, deparamo-nos com uma “Poética quebrada pelo meio”, em que se enfatiza a dificuldade de edificar-se um texto puramente autônomo, constituindo-se como vestimenta apartada de si própria (luvas de pelica...), quando se está tão ciente da proximidade ou da fusão entre a voz dos outros e a própria. A imagem dos seios figura em mais de um poema, como srcem nutriz e sinal do corpo feminino, a atrair e interpor-se como obstáculo para essa separação necessária - o desmame - que permitiria a existência da escrita. Penso neste poema em prosa, por sinal dividido em duas partes: I Enquanto leio meus seios estão a descoberto. É difícil concentrar-me ao ver seus bicos. Então rabisco as folhas deste álbum. Poética quebrada pelo meio. II Enquanto leio meus textos se fazem descobertos. É difícil escondê-los no meio dessas letras. Então me nutro das tetas dos poetas pensadas no meu seio.
(Inéditos e dispersos).
131
Ou se trata do verbo cair ou referência ao amigo Caio Fernando Abreu, que Ana Cristina visitava em São Paulo. 132 Luciana de Leone (2008) conclui sua análise da recepção crítica da obra de Ana Cristina observando a ocorrência de “permanente tensão entre aparição e desaparição, entre 133
vontade de deixar um testemunho e tentativa de desarrumar as pistas” (p. 107) Cacaso começa um poemeto em homenagem póstuma à amiga assim, glosando quem sabe, versos dela própria.
131
Michel Riaudel desenvolve uma análise muito interessante do poema em sua tese de doutorado (2007, p. 337 e ss.) na qual o aproxima da “Metafísica da moda feminina”, de Murilo Mendes, como uma possível matriz, e com um trecho da Logique du sens, de Deleuze, reproduzido por Ana Cristina na própria página onde se localiza o manuscrito do poema. O crítico francês destaca, dentre as frases assinaladas pela autora no volume do livro que a ela pertencia, esta, que nos parece particularmente próxima das inversões simétricas do poema: “A obra de Klossowski é construída sobre um extraordinário paralelismo do corpo e da linguagem, ou, antes, sobre uma reflexão de um dentro do outro.” (p. 353). Sem poder aqui resumir a complexidade do pensamento do filósofo francês sobre as relações entre corpo e linguagem, apresentadas por Riaudel em seu trabalho, assinalamos apenas o aspecto erótico da escrita poética, associada, no poema, à ambigüidade entre pudor e nudez.
Fogo do final por fim à realidade, prima, e tão violenta que ao tentar apreendê-la toda imagem se arrebenta.
(de “Uma faca só lâmina”, João Cabral de Melo Neto)
A gana pelo presente (e pela presença) é concomitante à consciência de sua inviabilidade, como se observa ainda neste outro poema de Ana Cristina: LE BALLET DE L’OPERA A RIO dos bastidores perde-se a ilusão do transe. mas hoje eu queria escrever do meio de luzes que só a platéia visse. desejava um palco puro, pura perspectiva de platéia. desejava escrever com violência para consolar-te: a violência com que (imaginamos) os bailarinos fetichizados se erguem em êxtase em transfiguração
(Antigos e soltos, 2008) 132
O eu lírico propõe ao leitor entregar-se à “ilusão de transe” que parece acometer os bailarinos quando dançam – algo que só a platéia, na verdade, experimenta: “a violência/com que (imaginamos)/os bailarinos fetichizados se erguem/em êxtase/em transfiguração”. Ímpeto de entrega completa: “palco puro, pura/perspectiva da platéia” – no frenesi da arte como rendição ao transe. O primitivo ritual, srcem da dança e do teatro, Dioniso encarnado de novo: quimera de uma poesia curativa, em que se abraça a catarse total, contrária a todo distanciamento. Disto gostaria a poeta: deixar de ser a autora para poder sentir o prazer da platéia, mergulhada na mágica do espetáculo, ignorante dos andaimes da fatura. “Imaginamos” a naturalidade sublime dos bailarinos, que, para parecerem espontâneos, quebraram em segredo mil vezes os ossos em árduos ensaios (como apontou Valéry). O exercício deve ser tão perfeito que a apresentação dê a impressão de haver nascido ali, somente para aquela ocasião única de comunhão esplêndida entre público e platéia. Um momento místico de consagração à luz fulgurante e inimitável pelo qual o desencantamento do mundo nostalgicamente anseia. Nota-se que a diagramação imita os movimentos da dança, sugerindo o ímpeto de alcançar, pela palavra, a fusão perdida com algum rito srcinal, que a arte propiciaria antes da cisão moderna entre indivíduo e mundo. Deste modo, o poema evidencia a fratura entre “mundo em comum” e representação estética. Assim, o movimento do querer anuncia o que se perdeu. A inocência já foi rompida pela separação do puro arrebatamento e da construção: entre a “machine à emouvoir” e o bastidor há um hiato a que alude o verso “desejo escrever com violência para consolar-te”, uma vez que a utopia de comunhão plena consigo mesma e com as forças inaugurais panteístas foi dilacerada por força da consciência dividida de si. A leitura desses poemas leva-nos, contraditoriamente, a desconfiar que o apelo ansioso pela participação de um interlocutor aliado ao “excesso de presença” teatralizado denota falta e intangibilidade. O movimento sem síntese desses versos agudos como sirenes é constituído pela tensão irresolúvel que caracteriza o sujeito lírico, o qual, se supera o eu empírico universalizando o singular, ao mesmo tempo “está em perpétua constituição numa gênese constantemente renovada pelo poema” – como se este
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último tivesse “valor performativo” (Combe, 1996, p. 63) para criá-lo e criar-se, numa roda dinâmica entre experiência e vir a ser.134 Mas, num raro instante, há a visão fulminante das luzes (“bliss”), quando não se distingue mais “the dancer from the dance” (Yeats). Como anelava Whitman, poeta e leitor finalmente se encontram, sem mais intervalos, em corpo e espírito, no presente vivo: A luz se rompe. Chegamos ao mesmo tempo ao mirante onde a luz se rompe. Simultaneamente dizemos qualquer coisa. Então dou pique curva abaixo, volto e brilho. Mirante extremo onde se goza.
(Inéditos e dispersos)
« Viens, mon beau chat, sur mon coeur amoureux »
I rhyme To see myself, to set the darkness echoing.
(“Personal Helicon”, Seamus Heaney)
Ao comentar alguns poemas da sequência “gatográfica”, publicados postumamente em Inéditos e dispersos, remetemos ao diálogo entre Ana Cristina e Jorge de Lima, o que permite a oportunidade de investigar um dos fios condutores da poesia brasileira dos anos cinquenta aos setenta, a fim de pensar as relações entre o alto modernismo e este seu momento tardio ou pós-moderno, 134
A concepção do sujeito lírico submetido à tensão entre ipseidade e identidade, assim como as citações do parágrafo, integram o rico ensaio de Dominique Combe, “La réference dédoublée” em Rabaté, D. (org.) Figures du sujet lyrique (1996). O estudioso traça uma gama variada de atitudes à volta da definição do sujeito lírico ao longo da modernidade, desde a assertiva romântica de sujeito de enunciação que exprime seus sentimentos mais autênticos até o máximo questionamento desta postura.
134
resgatando alguns traços do surrealismo. Se a leitura inventiva que ela fez do poeta é reveladora de tensões típicas dos anos setenta, estas já se apresentavam em embrião no pós-guerra de Invenção de Orfeu.135 Embora o significado último dos versos seja, de antemão, impossível de apanhar, uma impressão geral de sentido sobressai, reforçada pela leitura do conjunto. A própria construção sintática é, por vezes, estranha, como se houvesse inversão de sujeito e objeto. Ao enfatizar a impossibilidade da paráfrase na poesia como um todo, e em Ana Cristina em particular, Malufe (2011) sugere “a idéia de um poema como partitura vocal” (p. 32) – atitude congenial à poética da autora. Vamos ao primeiro: Localizaste o tempo e o espaço no discurso que não se gatografa impunemente. É ilusório pensar que restam dúvidas e repetir o pedido imediato. O nome morto vira lápide, falsa impressão de eternidade. 135
Uma das interlocuções mais fecundas de Ana Cristina Cesar com a poesia anterior a ela encontra-se em um grupo de doze poemas chamados de “gatográficos”, composta toda, provavelmente, no começo de outubro em 1972 (alguns no mesmo dia). A sequência, com vários poemas à volta da figura do gato, foi livremente inspirada em poemas de Invenção de Orfeu (1952) de Jorge de Lima. Obviamente, uma diferença importante a assinalar encontra-se no desnível entre um poeta maduro, cuja obra máxima talvez seja este seu último livro, e os esboços escritos por uma adolescente ainda canhestra no labor poético. (Um dos poemas, que mais parece um exercício lúdico, foi escrito a duas mãos, e apenas incorporado à segunda edição de Inéditos e dispersos , por não constar da primeira leva de textos editada). Parte de sua importância advém da exposição de questões importantes para a compreensão da poética em formação de Ana Cristina, a serem repropostas ao longo de toda sua obra. Orfeu, de Apolo, deus da(concórdia música e do trajeto diurno do sol, representa na mitologia grega afilho harmonia das esferas entre homem e natureza, característica do pólo apolíneo da arte clássica), e foi desde sempre o símbolo do poeta demiurgo, que recria o mundo pela imaginação. Mas, sabemos que Orfeu foi afinal dilacerado pelas bacantes dos montes da Trácia onde perambulava. Confundido com um animal, não foi poupado do delírio das mênades. No fracasso final para trazer a amada para o mundo dos vivos, vencendo a morte, podemos reconhecer uma analogia com o ponto de partida do questionamento dos anos sessenta e setenta, na sua desconfiança em relação à arte, que parece recusar a constituição de objetos perenes. Há algo de cru e direto, contrário ao cozido civilizado seja na poesia marginal seja na antiarte sensorial dos artistas plásticos mais experimentais da época, que tanto desejavam a presença do espectador como participador de uma obra em processo. Para uma análise mais completa desses poemas, conferir o livro de Maria Lúcia de Barros Camargo (2003) assim como os estudos de Luiza Lobo (1993). Também encetei uma tentativa de análise destes poemas em dois ensaios (citados na nota 1), dos quais retirei, cortei e adaptei o texto aqui reproduzido. Mais recentemente, Michel Riaudel (2007) se debruçou sobre os “gatográficos”, tendo-os inclusive traduzido para o francês.
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Nem mesmo o cio exterior escapa à presa discursiva que não sabe. Nem mesmo o gosto frio de cerveja no teu corpo se localiza solto na grafia. Por mais que se gastem sete vidas a pressa do discurso recomeça a recontá-las fixamente, sem denúncia gatográfica que a salte e cale.
Observe-se o alexandrino, o peão quarto e o uso da segunda pessoa do singular que imprimem regularidade incomum à abertura do poema. Comenta Camargo (2003): “o verso inicial introduz solenidade, algo do ‘sublime’ poético”, um “tom classicizante” (p. 126). Note-se igualmente a divisão dos versos em parelha, só quebrada nos quatro últimos, em consonância (assim o cremos) com os possíveis significados destes. Parece constituir-se uma tensão entre o discurso, o nome morto, a grafia – como formas de localizar, prender, recontar – e as dúvidas, o cio exterior, o gosto
frio de cerveja no teu corpo, as sete vidas... Em contraposição à escrita que inscreve em lápide, ignorando os pedidos imediatos, para recontar fixamente, criando uma falsa impressão de eternidade, haveria outra forma de mimetizar o real da vida e do corpo, através da gatografia, que poderia denunciar a pressa do
discurso ou a presa discursiva, saltando o intervalo, soltando o reprimido e calando a imposição do arranjo artificial. Seria talvez necessário o silêncio atento à vida, ou a imersão nela, para penetrar na substância do gato, pois os nomes e letras não retratam de fato os seres, que ficam submergidos em sua verdade íntima. O saber apressado e preso do discurso falsifica a impressão do real. O tempo e o espaço, formas abstratas de percepção, se distorcem ao serem concretizados em palavras. A escrita sufoca o acesso direto à experiência. Se nenhuma sensação corporal consegue exprimir-se através de uma lógica exterior ao discurso, a linguagem, no entanto, é figurada como grade que impõe sua própria estrutura sobre a existência (e aqui a poeta apresenta várias imagens: “o nome morto vira lápide,/falsa impressão de eternidade”, “nem mesmo o cio exterior escapa/ à presa discursiva que não sabe”, “nem mesmo o gosto frio de cerveja no teu corpo/se localiza solto na grafia”). Como se estivesse enredado numa armadilha, o eu lírico conclui que a linguagem se sobrepõe às tentativas de salto. A gatografia, como alternativa, denuncia mas
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não consegue calar a “pressa do discurso” tirana, que fixa e computa os movimentos vitais. O segundo poema também expõe essa contradição: O nome do gato assegura minha vigília e morde meu pulso distraído finjo escrever gato, digo: pupilas, focinhos e patas emergentes. Mas onde repousa o nome, ataque e fingimento, estou ameaçada e repetida e antecipada pela espreita meio adormecida do gato que riscaste por te preceder e perder em traços a visão contígua de coisa que surge aos saltos no tempo, ameaçando de morte a própria forma ameaçada do desenho
e o gato transcrito que antes era marca do meu rosto, garra no meu seio. O eu lírico atenta para o nome do gato que não o deixa dormir porque morde seu pulso. O gato provoca o poeta a vê-lo em sua inteireza, como um flerte entre sedutor e agressivo, em que ambos pretendem estar distraídos. Em vez de escrever o nome, enfrentando diretamente o ser, o que aparentemente seria facilitador, ele resiste e prefere um caminho de desvios, talvez para evitar o aprisionamento do gato. As partes tateiam o todo, sem tentar apaziguá-lo tachando-o imediatamente por uma palavra possivelmente redutora: “pupilas, focinhos/e patas emergentes”. Comparecem os olhos em seu brilho, a boca que mordisca e cheira, os movimentos dos pés...aquilo que negaceia, não se deixando prender pela rede imobilizadora da linguagem. Como em “Procura da Poesia”, de Drummond, as palavras não se abrem sem luta e sem a chave certa. O nome é “ataque e fingimento”: tudo faz para não se entregar aos que não sabem desvendar seus mistérios ou defender-se de seus golpes. O gato precede o escritor, e este só se constituirá como autor quando souber apreendê-lo e então transcrevê-lo. Inverte-se a relação entre “sujeito” e “objeto”, pois a tentativa de mimese nada tem do recolhimento preconizado por Wordsworth: ao contrário, é o gato o elemento ativo que espreita, sonso, como quem caça. Ele se recolhe para atacar, levando a voz poética a “perder em traços a visão contígua/de coisa que surge aos saltos/no tempo, ameaçando de morte/a 137
própria forma ameaçada do desenho”. A distância estética, que poderia transfigurar a experiência sensorial, anula-se, e o gato esquiva-se de ser nomeado como objeto imobilizado: o que o observador pode enxergar são movimentos – antes o devir e o fluxo do que o todo descritível. O nome decompõe-se metonimicamente em partes contíguas, visto ser impossível agarrá-lo inteiro. Ele destrói sua forma gráfica para recuperar o corpo vivo da primeira relação visceral: “marca do meu rosto, garra no meu seio” – signos da anulação de qualquer intervalo entre poeta e mundo – tão entranhado que não pode ser contemplado – tão “um-no-outro” que ambos são afrontados na sua qualidade de mônadas: apenas o fragmento é vislumbrado, dado que a principal relação não é mais a do olhar e sim a do ataque corporal. O mundo nega-se à vontade e à representação. O terceiro poema é o único de toda seqüência em que não aparece gato 136
algum.
Contudo, como nos outros, os versos também se referem a quedas e
cortes. Um espelho desaba e os cacos ferem a face, ecoando, novamente, o mote do eu que procura sua imagem com muita dificuldade, imergindo no silêncio e na autodestruição para viver (ou morrer) no instante em que a identidade se parte, os nomes se apagam, os valores atribuídos às coisas diminuem, e resta apenas a cara machucada no embate: Estão caindo sobre mim cacos sem peso porque retorno em quedas sobre os braços volto ao espaço circunscrito, mas me teme meu corpo lento e bioquímico no escuro, e lentamente sei que me dissolvo aos quinze miligramas, seca em queda de paralisia quantificável. Silêncio retornando sobre quedas paralisia em caixa, crédito e cheque onde risco assinatura de meu nome; hipnótico aconchego dos números menores, em firmas menores que ainda registram arabescamente seus lucros; eu queria: Silêncio de resposta e sangue ainda os vidros soltos sobre a cara mesmo sem saber que retornamos 136
Interroga-se Michel Riaudel (2007): “Si le poème 3 ne fait aucune mention de
l’animal, ne serait-ce pas tout simplement que celui-ci s’identifie au ‘je’ du texte?” (p. 373). Considerando-se as quedas e cortes referidas no poema, seria plausível imaginar uma identificação de eu lírico e gato.
138
saibamos que o espelho que desaba fere e contunde nossa cara
O espelho costuma representar “o elemento da experiência de identificação fundamental, do reconhecimento de si e da constituição da imagem do corpo. Mas o espelho está partido. Cacos sem peso, vidros soltos sobre a cara permitem a imagem do corpo não apenas fragmentado mas em dissolução. A assinatura, marca de autoria e de identidade, fica para os cheques, este signo de valor de troca, signo de mercadoria.”, pondera Camargo (2003, p. 129). Poderíamos pensar no texto de Lacan sobre a construção do eu,137 em que, ao longo do crescimento, a criança precisa conscientizar-se de que não faz parte da mãe, e se constitui em ser independente. A difícil separação, que depois lhe permitirá intercâmbios entre sujeito e objeto, significa, em primeira instância, uma sensação de distância em relação ao próprio corpo, que a imagem no espelho proporciona. Desejo e agressão marcam a percepção do reflexo no espelho, algo inteiro e alienado. Interagir com essa primeira imagem pode levar, num extremo neurótico, a fantasias destrutivas de fragmentação e, no outro, a encastelar-se num eu fortificado. Ao quebrar o espelho, o sujeito lírico imagina-se, talvez, mais livre dessa estátua ou autômato, que, nas palavras de Lacan, é a matriz ficcional da identidade. Pois, sem ela não podemos desenvolver nossas relações com o outro e o mundo. Chama a atenção no poema a repetição em cada estrofe da imagem do retorno e da subsequente diminuição do corpo. Assim, na primeira estrofe, o motivo pelo qual caem sobre a voz poética “cacos sem peso” – possivelmente imateriais, como são os espelhos imaginários – é o “retorno em quedas sobre os braços”. O eu “volta ao espaço circunscrito”, como se houvesse um encolhimento ou enrodilhamento. A seguir, o corpo se dissolve, e ainda, diz o poema: “mas me teme/meu corpo lento e bioquímico no escuro”, como se o corpo fosse um outro (separado do sujeito), que não aderisse ao movimento de queda. Enquanto o sujeito poético cai, voltando ao espaço menor e escuro de srcem, o corpo, como um estranho ao núcleo da identidade, vai se diluindo. O termo “bioquímico” reforça a impressão de alienação entre o cerne do sujeito e a matéria corporal, que 137
Lacan, J. “El estadio del espejo como formador de la función del yo [je] tal como se nos revela en la experiencia psicoanalítica”, Escritos , vol. 1 (tradução para o espanhol). México: Siglo Veintiuno, 1971, ps. 86-93.
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se reduz ao mínimo. “Queda de paralisia” parece um contraste incompreensível, se não antevimos já que o poeta liberou-se da mobilidade corporal para tornar-se um objetozinho “seco” e quase abstrato, visto que o eu extinguiu sua própria matéria depois de chegar aos “quinze miligramas”: com uma objetividade científica, e dados “quantificáveis” ele refere-se a esse paradoxal outro. “Queda” e “paralisia” voltam a aparecer na segunda estrofe, agora reforçadas pelo “silêncio” que preside esse movimento de retorno. O patrimônio e as trocas (símbolos da identidade e sua capacidade para o relacionamento com o mundo?) estão imobilizados, e mesmo, “risco assinatura de meu nome”. De novo, a escritora rasura uma palavra que se tornou extensão de si e desempenharia o papel de sua identidade. Mas a assinatura, redigida por sua mão, também se tornou alheia. Seu propósito, agora reiterado, é o “hipnótico aconchego dos/números menores”. Como na primeira estrofe, a mutilação da imagem externa da identidade vem acompanhada do movimento em direção ao menor. Registrar “arabescamente seus lucros” talvez aluda à criança que desenha o mundo de maneira mais gráfica que o adulto, relacionando-se com o outro de modo íntimo e visível. Regredir ao pequeno e próximo, prescindindo do corpo e da assinatura. O verso interrompe-se no ponto e vírgula, de forma que a última frase fica em posição ambígua na leitura: “eu queria” é sujeito do que foi enunciado anteriormente, concluindo a segunda estrofe, ou, independente, anuncia os versos seguintes, reunidos sob sua égide, a partir dos dois pontos? O eu lírico chega a um lugar visceral, de silêncio e sangue, em que não há o outro para responder a perguntas. O “sem saber que retornamos” sugere falta de entendimento do resultado da queda. A única certeza é a ferida, a sensação dos cacos espalhados (“soltos”), que machucam. De forma que “o espelho que desaba” sugere uma completa fragmentação das relações do eu com o próprio corpo, com os outros, com o mundo, com o nome, numa volta nada prazerosa a um possível lugar de srcem. Sobrou “a cara”, ferida na queda, contundida pelos cacos. Por alguma razão, é-nos indicado que ele “queria” justamente isso – viagem antiépica de regressão dolorosa. Por que, nos últimos versos, o sujeito passa para a primeira pessoa do plural? Será devido à dissolução do lugar do eu, que agora fala inclusive consigo mesmo como interlocutor? Será uma forma de incluir o leitor no retorno à srcem, acordando-o para a percepção de que ele também participou da queda, e que deve, por isso, assumir o saber imediato de 140
que cacos pontudos ameaçam ferir a sua face? Trata-se então de um alerta final (para si mesma e, quiçá,) para os leitores, de que, uma vez riscadas e dissolvidas todas as seguranças externas, tendo se libertado da pseudoidentidade fabricada socialmente, resta somente um núcleo ferido, recusado pelo espelho que, ao invés de refleti-lo, machuca-o? Ao destruir toda a alteridade, destruiu-se também a possibilidade da imagem? E, no entanto, tal é a ambição paradoxal de catarse suicida do eu lírico. E ele nos adverte sobre a consequência de sua escolha. Este é o desafio extremado dessa série de poemas: tornar ao início, voltar ao pré-eu, antes da separação pela palavra, retomar a poesia a partir do nascimento das coisas e apreendê-las em si mesmas. Objetivos impossíveis. Ou, talvez, posso ler este poema em outra chave, lembrando do verso “As palavras são para nós uma ferida”, como uma expressão da consciência de que tornar-se poeta seria eliminar o espelho (falseador) da representação de si e do mundo dada a priori. Diminuir-se, abrindo fendas dolorosas, a fim de eliminar transações e assinaturas pré-determinadas por uma identidade prévia. Camargo, em sua análise, introduz a noção de palimpsesto, referindo-se à relação com Invenção de Orfeu de Jorge de Lima, pois, segundo argumenta, “é nos cacos que refletem aqueles poemas que estes se espelham” (p. 130), como se estes poemas de Ana Cristina fossem “intenso trabalho sobre velhas marcas, restos”... “de outras falas, deformadas e reinventadas. Sim, talvez seja este o pulo do gato.” (p. 140) O quarto poema volta ao motivo do gato. A “incerteza de escrevê-lo” e os jogos do bichano com a letra revelam a dificuldade de se apossar do que se quer figurar:
Ainda o gato vigia e expõe as unhas e segura o instrumento que o revira e finge deitar-se sobre a letra e nela cobrir sua barriga. O desenho que te peço tu cobriste de não saber, e rasgaste a paixão súbita pelo animal e a incerteza de escrevê-lo. O gato que não soubeste tem cheiro concreto e se enrodilha concreto e morde e saltas contornando os meus pelos e colo inseguro com cheiros e manchas e pele presa no espaço recortado em gatos pretendidos.
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Nota-se de pronto que o gato continua desconfiado de seu perseguidorescritor, pronto para o ataque, indócil à idéia de ser descrito. É ele que “segura o instrumento que o revira”, evitando o domínio da representação sobre sua concretude de ser. Pretende acomodar-se sobre a letra, mas ela apenas abrange sua barriga (de novo, só a parte pode ser contemplada). A inscrição gráfica, abstratizante, distante de seu corpo, é impotente para cobri-lo. Brincando, ele acaba por coibir a independência da caneta. Desenhá-lo é, paradoxalmente, ignorá-lo. O saber da escrita pressupõe a rigidez dogmática que afastaria do corpo vivo. A mimese precisaria recuperar seu aspecto lúdico e erótico, mas parece, ao contrário, uma forma de circunscrever e limitar o seu objeto, ignorando, para tanto, “a paixão/súbita pelo animal e a incerteza/de escrevê-lo”. O poeta tornou-se um olhar autoritário, que pretende prender a natureza do gato com suas palavras, quando, com isso, distancia-se do saber real. A coisa em si tem cheiro e movimentos concretos que a letra nunca poderia de fato captar, à medida que é, no máximo, pálido fantasma dos seres. Há um enigmático “tu” a quem se dirige o sujeito da enunciação que poderia ser ou a própria voz poética a quem ele mesmo se dirige, ou algum interlocutor desconhecido, ou ainda... o próprio gato. Mas, uma inversão inesperada, agramatical, do sujeito confunde o leitor e faz pensar numa troca de posição, como se o gato fosse de repente o próprio poeta: “o gato que não soubeste”... “se enrodilha”, “morde/e saltas contornando os meus pelos”, como um rondar felino. O sujeito, de pelo e colo “inseguro”, quer encarnar o gato, habitá-lo e ser possuído por ele. A imagem, porém, continua “presa no espaço/recortado em gatos pretendidos”, pois o bicho real nunca poderia ser totalmente alcançado. O poema parece mimetizar esse voltear indeterminado entre poeta e gato. Para concluir, no último da série, os gatos vêm, à noite, procurar o seu poeta, invadindo os restos do imaginário e se libertando, como que para atingir um estádio superior, além da linguagem: Gatos vieram, à noite, perseguindo, deitaram seu hálito sobre o sono. Logo após o salto imaginário de fatos e palavras misturados
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vieram saber de cada gato o gato que os soubesse, e a todos compusesse dos restos de desenho e traços e sexos procurados. Porque nesse instante perdeu-se a voz que os miasse e desse forma e de gato se fizesse sem engenho e deformando-os em bichos nunca vistos, não mais linguagens perseguidas, mas gato somente se lambendo.
Querem, finalmente, ser apenas gatos, sujeitos de si. Para além do símbolo poético, agora eles tornaram-se “não mais linguagens perseguidas/mas gato somente se lambendo.” Será uma conquista radical do eu lírico esta possibilidade de perder a voz para enxergar as coisas e seres em si mesmos? Pois aqui são os gatos que se conhecem e que podem, então, desenharem-se uns aos outros. Fatos e palavras foram confundidos, de tal forma que os gatos compõem o seu próprio desenho. A voz poética que pretendia miar como eles, dar-lhes “forma”, perdeuse. Não mais será preciso o engenho, a arte, para retratar gatos inapreensíveis. Eles poderão finalmente ser, sem servirem de mera referência, como objetos, à linguagem de outrem. Ao que parece, essa ansiada conquista acontece durante o sono, como um “salto imaginário” da poeta, que pôde então deixar de ser a agente da própria escrita. Camargo (2003) assinala, nestes poemas, uma “trajetória do não-saber à aprendizagem” (p. 125) que passa pela ameaça de morte do eu lírico. Tanto este pseudo-soneto (de decassílabos elásticos) quanto o poema de Jorge de Lima no qual diretamente se inspirou (Canto I, XVIII) 138 derivam aspectos da alquimia, em que o baixo se metamorfoseia em alto e o casamento dos 138
Éguas vieram, à tarde, perseguidas, depositaram bostas sob as vides. Logo após borboletas vespertinas, gordas e veludosas como urtigas, sugar vieram o esterco fumegante. Se as vísseis, vós diríeis que o composto das asas e dos restos eram flores. Porque parecem sexos; nesse instante, os mais belos centauros do alto empíreo, pelas pétalas desceram atraídos, e agora debruçados formam círculos; depois as beijam como beijam lírios.
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elementos mais díspares pode ser fecundo e totalizador. Há, em Invenção de
Orfeu, uma crença animista de que tudo no universo se corresponde pelo poder do Verbo ou do espírito criador, em analogia metafórica. Os contrários em tensão resolvem-se dialeticamente, dada a harmonia – inclusive formal – de sua composição. Já em Ana Cristina, ocorre uma “desmetaforização”, passando-se da imagem para a coisa: o gato concreto, que se constituiu a partir dos restos de desenhos, não pode mais ser apreendido pela escrita, pois se tornou a srcem de si mesmo. A “voz e o engenho se perderam”. Ele escapa desta possibilidade ao se metamorfosear em “bichos nunca vistos”, que a linguagem não alcança, pois agora ele é pura matéria. Para Ana Cristina, a tentativa (frustrada) de “representação” dá-se, em todos os poemas, por meio de quedas, saltos, unhadas: o poeta tenta alcançar o gato, mas enfim é alcançado por ele que, por sua vez, pula no discurso, ferindo as letras, tentando “sem saber/fluindo entrar nesse poema.”, arrastando sal pelas linhas dos versos... Algo semelhante ocorre n’ “As aparições”, do Canto IV da Invenção de Orfeu, em que o eu lírico come monstros feitos de sal-gema, talvez para incorporar a loucura criadora e descobrir a quintessência da matéria: aquela que dá sabor à palavra. O “salto futuro do poeta” que gera “montanhas/e desenhos e escritos” de Ana Cristina remete ao “fogo desabrochado” de Jorge de Lima, a dar à luz um dilúvio de seres e vozes. Mais adiante, nesta conversa misteriosa entre dois poetas, a mais jovem ecoa, mas possivelmente discorda, do poema XXII do Canto I (“O céu jamais me dê a tentação funesta”). Naquele conhecido poema, o eu lírico é tentado a adormecer na floresta e a se confundir com os elementos primordiais, renascendo em pedra, esquecendo tempo e espaço. A poeta lamenta-se, por sua vez, porque não pode entregar-se à natureza inconsciente, apesar do “sangue de arranhões das tentativas”. As pedras de Jorge de Lima penetram-no “do Verbo em seus silêncios claros”, incorporando-se ao corpo e à mente. Em Ana Cristina, por sua vez, em meio à crise aguçada da palavra: “Nem agora os verbos me consolam// e saltam como gatos desgarrados/por cima dessas pedras que me inscrevem.” Em contraposição à força profunda de criação pelo sonho, pela memória, pelo fazer poético, com que nos encantamos em Jorge de Lima, há, nesta série de poemas “gatográficos”, uma consciência da dificuldade da escrita, proporcional à negação dos seres em se deixarem reduzir a palavras. Como se a poeta 144
reconhecesse que o mundo ao seu redor estivesse fora do seu alcance, e, apesar do esforço de sintonia, a realidade lhe escapasse. E, ao persegui-la, se submetesse ao seu fascínio inapreensível. Há algo que apenas se entrevê em Ana Cristina, em seus “diários” fugidios, como se as referências diretas aos fatos e toda descrição estivessem interditas - fruto significativo da crise da própria voz. Lembrando Octavio Paz, “o mundo como imagem evaporou-se. Toda tentativa poética se reduz a fechar o punho para não deixar escapar esses dados que são o signo ambíguo da palavra talvez.”139 Os poemas da sequência gatográfica inscrevem-se sob esse “signo ambíguo” que lhes confere um destamanho, um desajeitamento, certa incoerência - sinais dos sucessivos saltos irregulares para empenhadamente lograr obter algo em perigo de se perder: a espessura do sal-gema poético. Parece provocação, mas lembramo-nos do procedimento serial e metonímico de Cabral, girando à volta do objeto, aproximando-se e tomando distância, até fundir-se em luz e diamante, sem no entanto fazê-lo de uma vez, sempre por meneios e recusas, como se custasse muito ao sujeito lírico (ou antilírico) esse encontro, e as preliminares fossem absolutamente necessárias para aumentar o grau de tensão que precede a cópula metafórica: para que o objeto se abra, arremessos desdobrados. Aqui, pelo contrário, a aproximação com o gato segue uma lógica distinta pois este tenta se inscrever no corpo do poeta. Faz-se necessário tomar distância a fim de captar o ser em movimento, que não é apanhado na sua totalidade, mas por indícios descontínuos: ataque e fingimento. Primeiro o poeta é ferido e marcado, e só então tenta acercar-se por partes, em sinédoque contínua. Se, em Cabral, a figuração poética, dita objetivista, procura focar-se no mundo em sua concretude, acreditando que a linguagem poética é o meio adequado para revelá-lo a nossos olhos, algo mudou relativamente a essa fé nos poderes da palavra. Enquanto em “Tecendo a manhã”, o poeta atribuía aos galos solidários o concerto da luz matinal, que surgia como um balão da rede de cantos por eles entoados na madrugada, Gullar, em “Galo galo” imaginava um galo sozinho entre coisas indiferentes cujo canto não tem poder algum sobre a aurora, 139
Apud Lima, R.H.S.C. (1994), p. 236
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esgotando-se sem repercussão. Todo o seu conjunto de poemas sobre as frutas que apodrecem, que o acompanha ao longo de sua trajetória, reforça essa perspectiva do poema como um instante intenso mas passageiro, solitário e de certo modo inútil. Além disso, quantos e quantos versos tratam da dificuldade de apreender certas sensações e experiências que o poeta considera infranqueáveis através da linguagem (o cheiro de tangerina, o perfume do jasmim, o azul da blusa de mulher): “o gosto da fruta só o sabes se a comes”. Ainda assim, “o poeta desafia o impossível”: “ousa incutir na linguagem densidade de coisa” (“Não-coisa”,
Muitas vozes). De forma que, à certeza cultivada por tantos poetas de que a linguagem poética estava do lado das coisas, em estado selvagem (como asseverava Sartre) abraçando substancialmente o mundo (daí a famosa afirmação do filósofo de que Mallarmé foi o mais engajado dos poetas), substitui-se a desconfiança em relação à linguagem como veículo suficiente para a expressão da vida. poema.
O processo de tentar atravessar o intervalo tornou-se o próprio material do A procura da palavra demiúrgica em Invenção de Orfeu refrata-se em Ana
Cristina como dúvida e crise, para a qual a poesia dificilmente é transfiguradora. A conturbada tradução de vivência a expressão é mimetizada pelos pulos do gato, o qual não se deixa transcrever com facilidade. O conflito entre o empenho do poeta para forçar o gato para dentro do poema e a recusa deste em ser representado pela linguagem, aqui chamada de “desenho”, é bastante tenso. O desejável seria que os traços fossem feitos pelas próprias unhas do gato, e a poeta a ele se incorporasse, até fundir-se ao gato vivo e particular: não mais um símbolo ou metáfora, mas apenas o ser gato. Fazer as coisas virarem palavras (e viceversa) torna-se vontade ainda mais intensa quanto mais se agudizam a descontinuidade e o isolamento do poeta, agora sem forças mágicas, lutando corpo a corpo com cada pedaço, e experimentando “pânicos felinos”. Imprimir de novo a linguagem no corpo do mundo, presentificar as palavras encarnando-as, também o quer a poesia de Ana Cristina, que despende tanto mais energias na tentativa quanto maiores se tornaram os obstáculos. Ela parece atravessada por funda desconfiança na capacidade do discurso de suscitar vida ou dar à luz qualquer ser. Ao cifrar o gato (“gatografar”), sabe que
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perdeu o contato direto com o bicho real: “o nome morto vira lápide/ falsa impressão de eternidade”. O gato escapa à rede analítica dos a priori de tempo e espaço porque é a carne em si mesma, a matéria inocente, a pulsão anterior à consciência, o ponto negro do corpo. Como capturá-lo a não ser entregando-se ao mundo em sua srcinalidade? Como isso é, no limite, impossível, o gato nunca se fixa como emblema claro, pois ele não se resolve, como uma incessante interpelação. Ao tentar desvendar ou apresentar algo, o artista elabora um novo correlativo imagético. O extraordinário procedimento de Ana Cristina consiste em apresentar esse processo em estado de plena dissonância, quando ainda tateia em busca.140 Se a figuração poética advém da percepção da ausência, por ser fruto de uma disposição mental que pressupõe a distância para se realizar, não haveria possibilidade de criar quando o objeto se impõe como um fato cristalizado que não comporte o trânsito da imaginação. Assim, os “poemas gatográficos” especulam sobre este paradoxo: penetrar-se de gato e entranhá-lo no poema seria perder a mediação necessária para gerar-se o analogon mental (como o batizou Sartre). Sublinhamos igualmente a
polarização entre o instante presente e a
perenidade da forma, que permeia as inquietações de tantos artistas nos anos 60 e 70. A idéia de obra pronta e acabada é posta em suspeição em nome da exposição contínua do processo de composição. Creio que o jogo dialógico de Ana Cristina contém um permanente desafio ao leitor, que precisa interagir com o poema e completá-lo com suas próprias sensações e experiências para que as palavras possam sair do papel. Como um parangolé, o poema só se converte em obra se o leitor vesti-lo, respondendo ao seu apelo. Num mundo de objetos sem aura, que não olham de volta infinitamente quando contemplados, a arte propõe objetos aparentemente efêmeros, realizáveis apenas em interação. Nos poemas elípticos e incertos de Ana Cristina, o sujeito luta pela sua própria “descriação”, quando a poeta procura entregar-se com ardor aos seres (figurados pelo gato), à busca de um olhar menos limitado a si mesmo, para
140
Armando Freitas Filho, num poema dedicado aos gatos de Ana, conclui que os gatos são “gráficos”, “esquivos fugidios significantes” ( Numeral , 27) – mais forma do que sentido.
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ganhar de novo o mundo que se distanciava.141 Como bem refletiu Florência Garramuño (2006), seria mais adequado empregar o termo lacaniano “extimidade” para definir o descentramento em relação a uma subjetividade sem fundo.142 Ora, não há desapego sem dor, adverte-nos Simone Weil: disso tratam esses poemas, como a apresentar um processo criativo em seus inícios, aberto para o nosso exame: o ateliê, a matéria-prima, o embrião. Ela exibe com todos os vaivéns o seu dilaceramento. Enfim, associam-se e cruzam-se quatro esferas de interrogação: dúvidas sobre a força motriz do discurso, questões acerca da perenidade e perfeição da obra, incertezas relativamente à constituição e expressão de um sujeito no poema, e, finalmente, perguntas sobre a posição do leitor. Acredito que Ana Cristina move-se entre dois extremos: de um lado, o anelo de reunir a escrita à vida, afirmando a potência do existir em seu instante de aparente imediaticidade, e, de outro, o trabalho com a forma, e a constituição da obra. Mas esta presença pela qual ela suspira, não existe integralmente (e ela bem o sabe). Expõem-se as dicotomias em cacos, em fragmentos, atraindo e afastando o leitor da possibilidade de compreensão. Para contrabalançar os apelos urgentes, o texto sofre, ao mesmo tempo, uma série de procedimentos de elipse e fragmentação, que interrompem a via de acesso aos significados próprios à “clareza” do corriqueiro que parecem apregoar, ao imitar (e deslocar) parcialmente o estilo tradicional do diário ou da carta. Talvez, como bem notou Malufe (2011), o fato de muitos textos de Ana Cristina serem compostos “a partir de procedimentos que atacam o significado” (p. 90), suprimindo nexos e contextos, através de “subtração, enxerto e saturação” (p. 92), pretextando tal intimidade com o leitor que até mesmo “oculta-se um nome, uma palavra, pressup[ondo-se] que nosso destinatário saiba muito bem do 141
Não se trata do mesmo processo consagrado da “despersonalização” preconizado por Eliot. O cadinho do correlato objetivo pressupõe uma transfiguração alquímica (por assim dizer) em que o sujeito lírico se expande e se deixa permear pelo mundo, através da linguagem, alcançando, através de “objetos inesgotáveis”, imagens do “universal concreto”, como é o ovo de Cabral, a rosa de Rilke, a maçã de Bandeira. Aqui, tal processo expõe fraturas, quando o recuo contemplativo necessário à mediação estética não conduz à apreensão intuitiva das coisas através do silêncio que está no cerne da linguagem poética, como se os circuitos estivessem obstruídos ou gastos. 142
Garramuño desenvolve o conceito segundo a definição de J. A Miller: “Extimacy is not the contrary of intimacy. Extimacy says that the intimate is Other – like a foreign body, a parasite” (p. 16, nota 5).
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que se trata” (p. 93), também nesse modo de tratar o material da poesia se expresse a necessidade de interlocução premente. Ela seria de tal intensidade que o próprio poema abriria fendas para uma conversa permanente entre texto e leitor, quando caberia a este completar as fraturas do significado, assim instigado a participar de forma ativa de uma obra estruturalmente aberta: “E essa palavra não falada, que escapa, não é uma senha a ser decifrada, mas é, ao contrário, como um pequeno gancho, um anzol, para agarrar o leitor, tencioná-lo e dar-lhe o espaço de fabulação.” (p. 109). O “excesso de presença” que alguns julgam como uma fraqueza, outros como uma qualidade, parece-nos mais um acicate para um feixe de considerações. No caso de Ana Cristina, não há a ingenuidade de pressupor uma continuidade possível entre confissão íntima e literatura. Tal ambição, muitas vezes expressa, é coartada pela consciência construtiva, assim como pelo reconhecimento da própria natureza da linguagem. Mas a presença que ela solicita termina por ocorrer quando uma voz afinal emerge, mesmo que seja para contradizer-se. Trata-se de uma perspectiva de tal modo problemática que o poema nunca se resolve, solicitando o nosso empenho como co-autores, ou interlocutores solidários – sem, no entanto, de fato convidar-nos de forma acolhedora e completa: somos chamados e repelidos, reconhecendo, como leitores hipócritas, a nossa semelhante impossibilidade.
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Começa na lua cheia e termina antes do fim: Os leitores de Torquato Neto observam, com razão, como o seu percurso é paradigmático para melhor compreendermos os traumas de sua época.143 Quase tudo que ele escreveu parece cruamente sintomático, como se o poeta estivesse de tal forma submerso no clima daqueles anos que sua produção fosse uma reação imediata e praticamente inconsciente às pressões dos fatos históricos. O pesquisador André Bueno (2005) ressalta que “cabe frisar a falta de distância entre o corpo do poeta, a linguagem verbal e o fogo da História de sua época” (p. 181), o que, afinal, “Significa que a própria matéria social tomou conta da linguagem e da subjetividade do poeta, como forma bruta e destrutiva, o tempo todo indiciada.” (p. 108). Ressalvamos, em consideração a alguns bons resultados do artista, que essa tentativa de obra, por vezes falhada, dá a ver principalmente as tensões do período, encarnadas pela sensibilidade sismográfica de um indivíduo. Evocamos sua figura como artista emblemático de uma atitude vital, que transitava entre a literatura, a música, a crítica cultural e o cinema. Reconhecemos que o valor cultural de Torquato é possivelmente superior à qualidade estética de seus escritos. O interesse do desenrolar de sua trajetória consiste em que nela visitamos momentos por assim dizer extremados de uma geração, e, neste caso, cada passo de sua carreira desenvolve-se em consonância – num nível agudíssimo - com os acontecimentos e o espírito do tempo dele resultantes. Não se pretende, com isso, anular a srcinalidade do indivíduo, em relação por vezes assimétrica com o mundo à volta, mas consideramos a carreira literária de Torquato muito significativa e mesmo exemplar em relação a essas décadas ainda em movimento da história brasileira. O ponto que queremos destacar, nesse breve estudo, é a dificuldade da partida de um mundo mais orgânico e tradicional, ligado à infância e à família, para outro mais cosmopolita da cidade grande. Os sentimentos contraditórios expressos nos escritos de Torquato em relação a esse tema, muito sensível para o 143
Para análises e discussões interpretativas do conjunto dos escritos de Torquato Neto, recomendo os estudos de Laura B. Fonseca de Almeida (2000), Paulo Andrade (2002) e André Bueno (2005). Antes de todas, como matriz, o livro de Celso Favaretto (1996, 1ª. ed. 1979). Estas, ao lado da própria obra de Torquato, foram minhas fontes de referência principais, uma vez que tiveram o cuidado e a ambição de comentar sua produção com uma perspectiva integral, tratando de seus vários aspectos (poemas, letras de música, artigos de jornal, diários e cartas).
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artista, estendem-se também a alguns de seus companheiros de geração, em graus diferentes, como um tópico recorrente e que significa mais do que um problema meramente pessoal ou grupal. Parece-nos antes um desenraizamento ao mesmo tempo temido e desejado, que provoca reações ambíguas entre a sensação de liberdade e de culpa. Para além da experiência psicológica, variável de acordo com o sujeito que a vivencia, há uma questão maior, derivada do alto índice de urbanização naquele momento, que provocou alterações consideráveis nas formas de vida, desestabilizando as relações entre as gerações, e entre os dois Brasis – um designado como “arcaico” e outro como “moderno” – o que explica em parte o estilo justaposto e fragmentário, em parte alegórico e mesmo “absurdo” do Tropicalismo. Comecemos, portanto, pelos primórdios da carreira de Torquato, para compreender o arco do seu desenvolvimento. Se formos remontar ao início de seu percurso como letrista, no começo dos anos 60, notamos que suas primeiras composições atêm-se às formas folclóricas corais e a temas voltados à realidade do interior nordestino. Como muitos dos seus contemporâneos mais interessantes, compõe música engajada similar à poesia e ao teatro do CPC, combinando motivos da tradição popular ao desejo de justiça social. A raiz comum com os espetáculos de Boal e Vianinha, ou com o show Opinião, é claramente perceptível, pois a época fomentava a esperança na ampliação da consciência que protesta.144 Primeiro, suas letras lembram as canções típicas da MPB, sejam líricas, sejam politicamente engajadas. Começa por pertencer à grande coletividade dos cantadores, e se parece bastante com Geraldo Vandré, Edu Lobo e outros compositores emergentes naquele momento. Ele se inspira então nos ritmos populares, na literatura de cordel, na folia de reis e outras festas tradicionais, em provérbios e expressões nordestinas, e até atinge certa empostação épica que lembra canções como “Aroeira” e outras. Uma letra como “A rua” (1966, musicada e gravada por Gilberto Gil em
Louvação, 1967) revela muito de certa nostalgia da pequena cidade nordestina revisitada como cenário encantador. Comenta Paulo Andrade, ao analisá-la: “A 144
Torquato chegou a morar na sede do CPC da UNE em 63 no Rio até a sua destruição
na época do golpe. Trabalhou com o gru po Opinião no roteiro do espetácul o “Pois é” (1965). Estes e outros dados sobre sua biografia encontram-se no livro de Toninho Vaz (2005).
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imagem do rio como metáfora do fluxo contínuo e da vida é utilizada nesse poema a fim de que o poeta possa refletir sobre um tempo que não volta mais. Cantá-lo, portanto, no presente, é torná-lo atemporal, um passado mítico, um espaço de resistência” (2002, p. 90). A paisagem descrita sobrepõe as passagens do rio e da rua como um curso único de memória, evocando os “meninos correndo atrás de bandas”, da procissão, em que um ritmo comum da natureza e da infância os associa num pequeno paraíso. Percebe-se um pertencimento, um desejo de voltar, com saudade, ao tempo coletivo de brincadeiras num bairro tranqüilo, de lua mansa, rio manso, sino ecoando (também no coração) e água clara. Há a rememoração de figuras humanas ligadas à pobreza, mas especialmente o tom elegíaco do “para sempre perdido” se impõe. Nessa canção, como em várias outras (compostas entre 1964 e 66),145 o foco concentra-se na solidariedade e na esperança que provém da confiança nos valores populares, com algum alcance crítico das situações de injustiça, ao lado do sentimento de saudade de um mundo do qual o artista se distanciava. No entanto, a política brasileira vai se fechando, e os anseios sociais tão claros e determinados tornam-se mais opacos. As agremiações políticas de resistência à ditadura desmoronam-se com a repressão firme e não podem mais acompanhar as mudanças que o tempo requer. Descrente de discursos agora enrijecidos, por força das novas circunstâncias, em retórica com pouca fundamentação, uma parcela da juventude ressente-se do ranço daqueles que parecem afirmar o subdesenvolvimento cultural como trunfo de nossa especificidade, recusando tudo o que vem de fora como forma de alienação – uma vez que se identificava, confusamente, o “imperialismo ianque” com as influências do rock norte-americano ou inglês. Embora seja compreensível tal defesa por vezes ressentida do nacional popular, no entanto, para a arte, isto podia significar um estreitamento de horizontes. A discussão levada a cabo por Ferreira Gullar em Vanguarda e
Subdesenvolvimento (1969) recupera essa tensão. Quando conduzida ao campo da poesia e das artes plásticas, a aceitação do diálogo entre vanguardas européias e conteúdos temáticos nacionais era consensual. Veja-se o caso de João Cabral, 145
Cito, dentre outras:
“Lua nova” (com Edu Lobo, 1966), “Veleiro” (1966),
“Louvação” (1966), “Minha senhora” (196 6), “Zabelê” (196 6), “Rancho da boa vinda” (1966), “Rancho da rosa encarnada” (com Geraldo Vandré, 1966), “Vento de maio” (1966), cujas letras podem ser conferidas no livro Torquatalia. Do lado de dentro (2003).
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analisado por Gullar, em que a paisagem nordestina pode ser cantada numa linguagem que deve tanto ao cancioneiro ibérico medieval (incorporado às tradições do sertão) quanto às cadências do alto modernismo europeu, numa dinâmica profícua entre o regional e o internacional, ou mesmo entre o arcaico e o moderno. Mas tal perspectiva de uma dialética razoavelmente harmoniosa entre “localismo” e “cosmopolitismo” (na expressão consagrada de Antonio Candido) parecia não se aplicar mais quando se tratava das incorporações fragmentárias e paródicas desses dois universos culturais na estética tropicalista. Seu cosmopolitismo não era considerado qualidade, antes traição a uma suposta pureza nacional.146 Nesse período, Torquato entra em contato com o mundo urbano do Rio. A descoberta do cinema e da música contemporâneos, ao lado de leituras literárias mais amplas (dentre elas, a marca do paideuma concreto), modifica rapidamente sua concepção de arte. Os novos textos que produz já se configuram como tropicalistas. Um ideário contracultural polêmico o inspira agora, quando então passa a renegar veementemente sua direção estético-política anterior. Frederico Coelho (2010, p. 142 e ss.) assinala a rápida metamorfose de Torquato, durante 1967, através da leitura detida de suas crônicas jornalísticas do
Jornal dos Sports (republicadas no livro Tropicália. Geléia geral, 2004). Nos primeiros meses do ano, ele se porta como um típico jovem de esquerda, influenciado pela visão de mundo cepecista, defendendo a MPB engajada e recusando acerbamente o iêiêiê como imitação degradada de ritmos norteamericanos. Conforme se aproxima do grupo tropicalista, sua postura vai se alterando, e passa a criticar alguns músicos populares que agora considera ingênuos e mesmo conservadores, por renegarem a guitarra elétrica e as influências externas. Nesse segundo momento, passa a integrar um conjunto menor de artistas, rebelde, que representa uma parcela transgressiva da juventude. Esse grupo sofre em si mesmo um amor contraditório pelos ritmos populares, que fazem parte de sua formação, e que tentam transformar, justapondo-os aos ritmos mais pop então 146
Em momento imediatamente anterior, Vinicius de Moraes, Tom Jobim e outros casavam aspectos musicais eruditos e populares na bossa nova e depois nos afro-sambas sem que tal atitude fosse, no geral, considerada dissonante ou apelativa à indústria cultural. Já na Tropicália a junção é paródica e agressiva, com mais elementos da cultura de massas (veja-se Tom Zé com “Parque industrial”, 1968).
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em voga. Um traço de afirmação contestadora se evidencia, também claro na personalidade de Torquato. Como
salientamos,
essa
juventude
estudantil
é
coetânea
à
internacionalização do modelo econômico brasileiro. Embora recentemente egressos dos sertões ou interiores e lá mantendo fortes raízes, não havia uma forma de arte popular “pura” que catalisasse suas novas vivências. O discurso da contracultura e mesmo da indústria cultural aproximava-se da sensibilidade mais cosmopolita do período – embora, como percebera Schwarz (1978), a alegria e o alívio de matar os avós provincianos fosse ali patente. No entanto, é preciso ressalvar que tal libertação veio o mais das vezes acompanhada de angústia como sua contrapartida, consciente ou não. Gil declara que a tropicália é filha do CPC com a poesia concreta – mas é obvio que há um salto e uma alteração histórica no meio. O engajamento do grupo tropicalista prende-se sobretudo ao ideal de uma revolução de comportamento e de inventividade estética, desacreditando tanto da política de esquerda engajada quanto das formas musicais associadas ao complexo ideológico nacional popular. Nesse sentido, apoiamos o ponto de vista de André Bueno (2005) quando, ao retomar a argumentação de Roberto Schwarz acerca do tropicalismo, discorda de uma de suas interpretações (posto que acolha a maior parte das outras): Que o processo de montagem das alegorias tropicalistas causava estranheza, dada a aproximação de figuras tão desencontradas da vida social, é certo. Que essa estranheza, sem as necessárias mediações estéticas, simbólicas e não alegóricas, abrisse o flanco para um qualquer fascismo, era um equívoco do crítico. Mesmo que ambíguas, as alegorias tropicalistas tinham força crítica, não endossavam a modernização e, muitas vezes, tratavam o passado rural e popular, da cultura popular, com delicadeza e um lirismo que em nada se parecia com a arrogância do provinciano que foi para a capital e olha para seu passado com desprezo. (p. 93)
De fato, não se pode comparar o arreglo realizado pelos militares (aliados à burguesia) entre modernização capitalista e conservadorismo moral e político – aparentemente paradoxal, mas que funcionava e funciona até hoje em várias sociedades autoritárias como o mais produtivo dos casamentos – e o caldeirão tropicalista, este sim “absurdo”, pois se refletia tal realidade, também a contestava. Torquato compõe, nesses curtos anos, suas letras mais conhecidas (como “Geléia geral”, “Marginalia II”, “Deus vos salve a casa santa”, e outras) com disjunções metonímicas, brilhantes em precisão e humor amargo, em que respinga 155
amor-ódio purificador à tradição.147 Dele poderia ser a frase enunciada por Glauber Rocha, que Paulo Andrade colocou como epígrafe de sua pesquisa sobre a obra do poeta: “Entre uma usina hidrelétrica e o luar do sertão, não há dúvida possível - fica-se com os dois” (2002, p. 31). A militância cultural se intensifica nesse período. Torquato chega a redigir manifestos com toques surrealistas invocando declarações de Oiticica e Caetano. No roteiro do programa de TV chamado “Vida, paixão e banana do Tropicalismo”, redigido em parceria com Capinam (entre 67 e 68), o Brasil aparece de forma farsesca, como a revolver as entranhas vulgares da mídia. 148 Paródia que ataca o discurso oficial resvalando para o grotesco até o cinismo, num paroxismo da crítica de si mesma, volta-se contra o arquétipo mítico como forma de corroer a cultura, desapropriando o gesto dominante, as idéias importadas e o atraso local (conforme analisou Celso Favaretto, 1996, no cap. “O procedimento cafona”) Havia ali um “look back in anger” que sabotava com um misto de desprezo e gozação as ilusões ufanistas. A ironia típica de muitas das canções tropicalistas do período traduz bem esse sentimento de recusa eivada de afeto. Os letristas defendem-se de sua relação com um passado considerado careta sem libertar-se completamente da dor que isso lhes provoca. A afirmação da identidade pessoal vem conjugada à culpa – e a paródia traduz um sentimento tipicamente adolescente de defesa aqui, porque renega a própria raiz. Quantas canções assim ambíguas em que a mãe é referida, assim como a terra natal... Isto constitui uma temática forte no tropicalismo (e em Torquato)... Pois a quebra com a experiência da geração anterior fora abrupta, mas não completa. A partida para a cidade grande, abordada por Torquato em “Mamãe, coragem” (1968)149 de modo dilacerante – e que de fato é tema muito pertinente, pois foi a década em que a urbanização se deu de forma mais acelerada – parece
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Não é necessário retomar essas canções, cujas letras foram analisadas com brilho por Celso Favaretto (1996, reed.), que nelas ressaltou o aspecto alegórico, o carnavalesco, a paródia, os procedimentos de montagem e as alusões literárias (especialmente aos poetas românticos e a Oswald de Andrade). 148 Veja-se “Torquatalia III” e “Vida, paixão e banana do Tropicalismo”, entre as páginas 63 a 85 de Torquatalia. Do lado de dentro (2004). 149
A letra pode ser lida no livro citado na nota acima, p. 95-96. Além da vírgula, outra diferença em relação à “Mãe coragem e seus filhos”, de Brecht, é o uso mais afetivo e informal de “mamãe”.
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uma chave para entender a ambivalência tropicalista. Ir-se embora do interior para a metrópole é interpretado como rompimento de uma geração que vai fazer sua vida no Brasil moderno, industrial (observe-se, na canção, a sirene de fábrica de abertura). Ao mesmo tempo, a auto-afirmação do jovem vem acompanhada de palavras de consolo à mãe, que acentuam ainda mais sua desolação. A figura materna pode servir de metáfora desse interior arcaico, como na “Ave Maria” em latim (no disco Caetano Veloso, 1967) ou no ambivalente “Coração materno”, de Vicente Celestino (cantado por Caetano em Tropicalia ou
Panis et circencis , 1968), correspondendo a um ethos mais tradicional, como uma eterna fonte de nostalgia. No entanto, ela precisa ser ironizada a fim de permitir o salto do indivíduo rumo à modernidade, para que ele possa partir para a cidade, lugar do encontro descompromissado (como em “Alegria, alegria”), mas também da solidão (como se infere no poema de Gullar musicado por Caetano, “Onde andarás”, ambas do discoCaetano Veloso, 1967). Além da mãe, outras personagens femininas são associadas, nas canções tropicalistas, ao mundo da cidade pequena, tal como a Maria, em “Pé de roseira” (Gilberto Gil, 1968), a chorar porque o seu amado vai embora caminhando sozinho e indiferente: “Só sei que eu andava e não sentia dor”, diz ele - enquanto o pé de roseira murchava. Embora o cantor afirme, na letra, sua confusão por não sentir dor ao perceber que o amor acabara (“eu também não compreendia/por que terminava um amor/nem mesmo se o amor terminava”), ao mesmo tempo, ele se lembra da ciranda que seu pai cantava, como se a ruptura com os valores tradicionais não fosse completa ou passível de distância reflexiva... Igualmente, “Clarice”, que despe o corpo moreno enquanto o narrador da canção se afasta no navio a levá-lo dali, de Caetano e Capinam ( Caetano Veloso, 1967). A moça figura a natureza, o amor eterno, a infância, o mistério da pureza - qualidades muito substanciais abandonadas, mas mitificadas na memória da infância. Em oposição a elas, o protagonista da canção se distancia rumo à cidade grande, fixado naquela imagem que guarda no coração. Ou ainda “Clara”, que morre de amor (de Caetano e Perinho Albuquerque, idem ibidem), todas evocadas num mesmo sentimento elegíaco. Já em “No dia em que eu vim-me embora” (de Caetano e Gil, em Caetano Veloso, 1967), enquanto a mãe, a irmã e a avó sofrem em casa assistindo-o partir, parece haver um misto de alívio e ruptura no destino escolhido pelo jovem que segue sozinho para a capital. Ele não chora nem ri, nem 157
sabe direito o que sonha... mas a mala de couro que transporta fede e incomoda, como algo morto que se carrega... Walnice Galvão (1968) assinalara, em cima do lance, “o tema do indivíduo que é obrigado a deixar sua terra em busca de trabalho” e, por conseqüência, a importância das “imagens de partida” na canção de Caetano Veloso, que retrata 150
essa situação com ambiguidade, entre o sofrimento e a alegria (p. 103-104). Concomitante, o tema do eu vencedor de “Superbacana” (também de Caetano), que se espalha e conquista, é recorrente também nos poemas de Torquato (como “Cogito”, “Let’s play that”, “Pessoal intransferível”), afirmandose de modo retumbante, como na declaração tão assertiva “Eu só quero saber do que pode dar certo”, expressa no mesmo tom do sujeito de “Mamãe, coragem”, a quebrar amarras e a desbravar a grande cidade: “eu quero eu posso eu fiz eu quis”.151 Às vezes a paródia é indiscernível do elogio, conclui Celso Favaretto a respeito de “Baby” (1968), à qual acrescentaríamos “Paisagem útil” (1967), ambas de Caetano Veloso. Nesta última, não se consegue assegurar se o compositor está se vangloriando (como os futuristas) do fato de que a luz elétrica suplanta as estrelas, os automóveis substituem os anjos, o emblema da Esso brilha mais bonito que a lua - e tudo isso ilumina com vantagem “o beijo/ dos pobres tristes felizes/ corações amantes do nosso Brasil” – ou se os dois mundos (moderno, associado à cidade, e tradicional, associado ao amor e à natureza) convivem superpostos. Poderíamos aproximar a ambivalência de fascínio e repulsa relativamente à modernização urbana da estética pop. No exemplo mais evidente, “Alegria, 150
Em seu ensaio, a autora destaca o aspecto “mítico” da canção engajada dos anos 60, que enfatizaria o “dia que virá”, como se este fosse o agente que move a história, sem necessidade do concurso do sujeito, proporcionando a este esperança e consolo. Os laivos nostálgicos destas canções, que muitas vezes relembram com pungência a vida na pequena cidade pré-industrial, são igualmente criticados como ilusórios. 151 No texto “Torquato Marginalia Neto” ( Armarinho de miudezas , 1993), Waly Salomão menciona o quanto seu amigo gostava da canção “Vapor barato”, devido, segundo ele, à “obsessão que diz que está indo embora” (p. 65). Recorda o “medo de ser desaprovado aos olhos da mãe medusa tirana”, assim como “O temor fulminante de se constituir no Idiota da família” (p. 66). Quando vê Torquato sair do sanatório “com o cabelo completamente tosado,” justamente ele que tinha tanto orgulho da cabeleira rebelde, pressente: “sofri uma premonição terrível e insuportável de uma ovelha negra tosada se oferecendo ao cutelo do matadouro. INQUISITORIAL: fazendo do final de sua vida uma fogueira de um auto de fé, Torqua se transvestiu em seu próprio Torquemada?” (p. 67)
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alegria” (1967), isto parece atingir o máximo: de um lado, “ela pensa em casamento”, de outro, “eu tomo uma coca-cola” – como se o sujeito tradicional fosse superado por este novo indivíduo leve, eufórico, colorido, livre de lastros, movendo-se em meio às mercadorias, atraído pelo mundo do consumo, e desapegado do peso da experiência. Mas, enquanto alguns lêem o maior paradigma da arte pop, Andy Warhol, numa chave cínica, como um artista que aderiu à reificação, outros teóricos querem reconhecer nele um crítico da sociedade de consumo – como se ao reproduzir as latas de sopa Campbell e o rosto de Marilyn, imitando as técnicas da propanganda e repetindo até a exaustão os seus clichês, Warhol estimulasse, de um lado, a sedução pelo seu glamour, enquanto, de outro, parodiasse a seriação intensificada da era industrial. A superficialidade de suas imagens recusa toda densidade histórica, em nome das sensações presentes. De todo modo, é o oposto das convenções sólidas e fixas, da arte auratizada, dos sentimentos viscerais.152 O caso brasileiro afigura-se diferente do americano em vários aspectos, porque, dentre outras particularidades políticas e culturais, aqui esta modernização não se faz sem dor. Nota-se em “Marginalia II” (com letra de Torquato, musicada por Gil para o disco Gilberto Gil, 1968) como a animação do cantor contradiz espantosamente o pesadume melancólico da letra, quando inverte a “Canção do exílio”, exílio este que se localiza por cá mesmo. E não há saída: apenas solidão, medo, culpa, aflição, desmontando assim ícones do ufanismo tropical. “Aqui é o fim do mundo”, local de catástrofe e pobreza, afirma o oposto do ideal da pátria como “berço esplêndido.”153 152
Celso Favaretto (1996) desenvolve em muitos momentos de seu livro reflexão sobre a ambiguidade entre vanguarda e mercado na estética tropicalista, próxima ao pop, assim como a sensação de deriva e dissolução do sujeito. Na análise realizada por Carlos Eduardo de Barros Moreira Pires (2008) dos primeiros LPs tropicalistas, ele observa nas canções “um interessante efeito na direção de Andy Warhol.”... “ao mesmo tempo em que se tenta esboçar críticas, que pressupõem algum ponto de vista e algum ‘peso’ dos materiais, ao mei o cultural [estas] acabam em um clima de pulveri zação semelhante ao das vozes.” (p. 164). Hal Foster (1996) interpreta a complacência com o consumo de Warhol como uma compulsão a repetir serialmente como máquina a lógica social para expô-la em seu automatismo, de modo a apagar-se como sujeito imitando o modo de existência das coisas no mundo capitalista – mas...de forma consciente ou inconsciente? cínica ou crítica? provavelmente o artista trabalhou nas duas frentes, indo do experimento à propaganda e vice-versa (no capítulo “The return of the real”). As analogias não pretendem 153
ser, evidentemente, aproximações modelares. Essa dissonância entre a letra e a música, já antes destacada por Celso Favaretto, é assim analisada na dissertação de Carlos Eduardo de Barros Moreira Pires (2008): “A
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Em alguns momentos, avulta a estranheza inquietante em sentido freudiano, como em “Panis et circensis” (de Gil e Caetano, gravado no disco homófono, 1968) ou em “Janelas abertas n. 2” (no álbum Chico e Caetano juntos
e ao vivo, 1972), nas quais penetrar no recinto familiar para matar o que se ama e odeia é uma forma de libertação. Mas os insetos entram pela janela... (alusão às implacáveis Erínias, d’ “As moscas” de Sartre?). Sinistra a gestação do filho temível ou profético de “Anunciação” (com letra de Rogério Duarte, cantada por Caetano no disco de 1967), que virá matar os pais: representaria a revolução, o caos, a barbárie?154 A força dessas canções enraíza-se no sentimento obscuro de recusa, com culpa e afeto, da família, ao lado da afirmação do novo sujeito, um tipo de monstro informe e perigoso, mas cheio de energia, atraído pelo mundo pop da indústria cultural e da contracultura internacional. Torquato também compôs letras de matiz estranho, como é o caso de “Deus vos salve a casa santa” (gravado por Nara Leão em 1968), no qual o tema central, posto que interdito, gira à volta do conflito de gerações. O silêncio dos jovens, o filho que some dentro de casa “entre a cozinha e o corredor” enquanto os pais e a polícia o procuram, num universo fechado em que, ao mesmo tempo, Deus salva e a mesa da família é farta. Mas, há um caos germinando abafado, numa opressão secreta: “Um trem de ferro sobre o colchão/A porta aberta pra escuridão/A luz mortiça ilumina a mesa/E a brasa acesa queima o porão”... O aspecto metonímico, e as montagens às vezes incompreensíveis dessas letras, remetem ao fértil conceito da enumeração caótica, definida por Spitzer (1974) como uma forma de pensamento heterogêneo que tenta aglutinar situação de degredo dentro do próprio país é cantada com estranha alegria como que sugerindo certo degredo subjetivo, ou certa ‘migração interior’ [expressão de Antonio Candido], já que a voz se encontra dentro desse lugar que se tenta caracterizar. Não existe a oposição entre o aqui do degredo e o lá do país, como na canção do exílio que é citada na letra.” (p. 20). 154 Não podemos nos furtar à referência obrigatória a Freud, especialmente ao Capítulo VII d’ O mal-estar na civilização (1931), quando o pensador trata dos sentimentos ambivalentes em relação aos pais, de remorso culposo mesclado ao amor, que remontam à srcem do superego, o qual tanto maltrata o sujeito. Ilustra essa contradição inerente à civilização, “eterna luta entre as tendências de amor e de morte”, com estes versos de Goethe, constantes do romance de formação de Wilhelm Meister : “À Terra, a esta Terra cansada, nos trouxestes,/À culpa nos deixastes descuidados ir,/Depois deixastes que o arrependimento feroz nos torturasse,/A culpa de um momento, uma era de aflição!” (1997, p. 95)
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referências diferentes num sistema de sentido. O crítico temia que esse procedimento sem síntese e assistemático, se instaurasse, como matriz pouco coesa (embora altamente significativa) de compor-se a poesia moderna. Considerava tal risco um perigo real, pois nem sempre a matéria heterogênea organiza-se afinal em obra consistente, traço que podemos observar em parte da trajetória de Torquato. Em momentos mais articulados, o artista consegue justapor diferenças e embalá-las coerentemente, como em “Geléia geral” (gravada por Gilberto Gil em Tropicalia ou Panis et circensis , 1968). Ali, a energia do grupo se manifesta positivamente. Mas, como se verá adiante, a fragmentação cada vez mais intensa termina por romper a possibilidade de acordes minimamente harmônicos. Pois, por fim, num terceiro momento, Torquato não integra mais nenhum grupo orgânico, passando a escrever textos solipsistas e bastante disjuntivos. Suas reflexões em forma de diário ou poesia, algumas lúcidas, outras ininteligíveis, denunciam um isolamento cada vez maior. Assim, torna-se gradativamente confinado em si.155 Ao afastar-se dos tropicalistas, continuou ainda cultivando outros laços e buscando realizar alguns projetos, como os filmes super-8 com Ivan Cardoso, as constantes trocas de idéias junto a Hélio Oiticica, ou as publicações alternativas em parceria com Waly Salomão. Mas agora sua produção alcançava apenas um número muito pequeno de dissidentes “subterrâneos”.156 A duplicidade de tons de seus textos no final da vida, entre o eufórico e o deprimido, se evidencia de modo estridente: de um lado, o apelo ao desfrute do filme trash e da música pop na coluna de jornal “Geléia Geral”, e de outro, os diários do sanatório. De modo análogo, advertimos tanto uma auto-destrutividade 155
Novamente nos referimos ao estudo de Paulo Andrade (2002), no qual ele comenta letras de canção, trechos do diário e poemas de Torquato em que este se encerra numa linguagem desconstruída e mesmo auto-agressiva. Refiro-me às análises do Cap. III de seu livro, em que o pesquisador busca interpretar os textos finais, nos quais destaca uma radicalização do hermetismo da linguagem, em recortes das palavras, quando a violência se volta contra todo o significado, bloqueado pela fragmentação extrema, como se a palavra reproduzisse a imagem de um corpo torturado. De seu cancioneiro, extraímos alguns exemplos do tema da caminhada solitária: “Lua nova” (1966), “Pra dizer adeus” (1966), “Ai de mim, Copacabana” (1967), “Três da madrugada” (1971), “Jardim da noite” (com Carlos Galvão, 1972), “Tome nota” (1972), “Andar, andei” (com Renato Piau, s/d), em Torquatalia. Do lado de dentro (2004). 156 Nesse período, Torquato publica textos obscuros nas edições quase clandestinas de Presença , Flor do mal e depois a Navilouca . Remeto a essas publicações no Apêndice final.
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paranóica em relação à própria época, quanto a vontade perturbada de assim mesmo inventar de novo as palavras: Quando eu a recito ou quando eu a escrevo, uma palavra – um mundo poluído – explode comigo e logo os estilhaços desse corpo arrebentado, retalhado em lascas de corte e fogo e morte (como napalm) espalham imprevisíveis significados ao redor de mim: informação. Informação: há palavras que estão nos dicionários e outras que não estão e aparentemente outras que eu posso inventar, inverter. Todas juntas e à minha disposição, limpas, estão imundas e transformaram-se, tanto tempo, num amontoado de ciladas. Uma palavra é mais do que uma palavra, além de uma cilada. Elas estão no mundo e portanto explodem, bombardeadas. Agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma; qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam nos hospícios. No princípio era o verbo e o apocalipse, aqui será apenas uma espécie de caos no interior tenebroso da semântica. Salve-se quem puder. As palavras inutilizadas são almas mortas e a linguagem de ontem impõe a de hoje. A imagem de um cogumelo atômico informa por inteiro seu próprio significado, suas ruínas, as palavras arrebentadas, os becos, as ciladas. Escrevo, leio, rasgo, toco fogo e vou ao cinema. Informação? Cuidado, amigo. Cuidado contigo, comigo. Imprevisíveis significados. Partir 157
pra outra, partindo sempre. Uma palavra: Deus e o Diabo.
Parece uma cena de guerra. O que fazer para salvar-se da violência das palavras quando estas podem explodir reduzindo tudo a destroços desordenados? As referências cacofônicas ao extermínio dos sentidos são acompanhadas pelo sentimento de desproteção, num mundo informe, em que a informação faz parte do grande monturo de ruínas, colaborando inclusive para seu incremento, pois as palavras, carregadas de sujeira, são perigosas e pesam sobre o real. Na carne do material inscrevem-se as referências históricas, que se interiorizaram. Acrescentaríamos a isso a tendência ao caótico proliferante: um pensamento heterogêneo, que precisa aglutinar referências contraditórias, aparentemente sem possibilidade de síntese. Mas a mensagem final é clara: “Partir pra outra, partindo sempre”. Formas pouco coesas de refletir sobre a realidade, como um aglomerado de estilhaços, a revelar um sujeito acossado (pássaro cantando do precipício) que deseja fugir. André Bueno (2005) destaca o aspecto apocalíptico do texto, como sinal de coincidência entre o fim da história e o da vida do poeta, ambos congelados, e submetidos a uma liquidação de seus agora impossíveis movimentos (p. 182). O 157
“Marcha à revisão. 1. Colagem.” Trecho do texto extraído da coluna Geléia Geral no jornal Última Hora (08/10/71). Torquatalia. Geléia geral , p. 261-262
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sujeito “de repente se vê objeto, dilacerado e dividido, de uma História que não controla e de formas de linguagem que, além de terem perdido o sentido, tornaram-se perigosas e inúteis ciladas.” (p. 181). Assim, suas “sucessivas recusas
de linguagem” (p. 182) desembocariam num silêncio mortal. Às vezes os textos de Torquato dessa última fase são pedaços picotados de poemas anteriores ora submetidos à intensificação do fragmento repetido e obsessivo, no espectro oposto da facilidade “alegrinha” (também a se considerar...) aparente em outros poemas (como cara e coroa). O ímpeto para “festa e comício” é contrabalançado pela confissão da solidão, a internação no sanatório, o anseio de morte, que pontuam a trajetória de Torquato, a oscilar entre a energia do entusiasta procurando frestas no marasmo, e o desalento angustiado lutando consigo para não soçobrar – como se a alegria fosse uma resolução heróica e mesmo patética. A linguagem de Torquato lembra, em mais de um aspecto, Ana Cristina Cesar, seja no estilo de comunicação elíptica, preferindo certo tom intimista, seja na recusa de ambos em continuar a viver quando se perceberam absolutamente sós, sem interlocutor. Cadernos, diários compulsivos. Torquato se empenha em não se encolher completamente, como quem se protegeria do mundo numa clausura: Mais: a prisão, o hospício, a burocracia repressiva dos esquemas, o apartamento apertado no meio de apartamentos – enfim, esses lugares forçados podem (e devem, como exercício de vida) ser curtidos segundo os papos da política, da psicologia, etc mas em nenhuma hipótese podem servir como refúgio contra. refúgio contrário. apocalíptico do tipo suicida (a mais “doce” tentação, a mais “cruel” e a mais malandra, saco, soluço, banheiro). o hospício é o lugar mais fundo que eu conheço – mas isso não é desculpa para que EU o transforme em refúgio. o fundo do poço e o lado de fora.
(Torquatalia. Do lado de dentro, 2004, p. 304) E por aí segue, num monólogo em que procura convencer-se de que precisa lutar para permanecer no lado de fora, sem se retrair nem render-se à autodestruição. Seus diários evidenciam cada vez mais as tentativas de lucidamente resistir à pulsão de morte, como se verifica nos textos de Geléia Geral (coluna do jornal
Última hora) em que busca “ocupar espaço”, transar qualquer coisa, fazer guerrilha cultural, de modo até maníaco. “Todo dia é dia D” vira um tipo de grito de guerra para aguentar a pressão e seguir adiante. Nas muitas cartas a Hélio
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Oiticica, eles partilham a animação ansiosa dos projetos radicais. Quando começam a tentar realizá-los, à euforia segue-se a frustração: Torquato se entusiasma com a edição do jornalzinho alternativo Flor do mal em 71, logo desmantelado por “ordem dos homens.” (ou pior, pela autocensura dos editores). Mas em todos os momentos acompanham-no os temas da despedida, do isolamento, das mudanças ocasionadas pela viagem – o que nos faz pensar que este seja um traço específico de sua sensibilidade, em consonância com um tempo de mudanças sócio-políticas drásticas. Numa de suas últimas composições, “Todo dia é dia D” (1971, com música de Carlos Pinto), comprime-se tanto o tempo quanto o espaço, quando partir já é voltar, e existir, carregar dentro de si o próprio fim: Desde que saí de casa Trouxe a viagem da volta Gravada na minha mão Enterrada no umbigo Dentro e fora assim comigo Minha própria condução Todo dia é o dia dela Pode não ser pode ser Abro a porta e a janela Todo dia é dia D Há urubus no telhado E a carne-seca é servida Um escorpião encravado Na sua própria ferida Não escapa, só escapo Pela porta da saída Todo dia é o mesmo dia De amar-te, amorte, morrer Todo dia menos dia Mais dia é dia D
Se cada dia reitera o mesmo dia, numa rota circular sem escape (que o monótono ritmo regular, as rimas toantes e as aliterações mais reforçam), querer ir embora de casa não leva a lugar algum, ao contrário, os urubus esperam logo acima a carniça ressecada pelo sol nordestino. O destino vem gravado fundo no corpo (mão e umbigo), como um retorno compulsivo à srcem. A porta da saída é o encontro inexorável com o dia D – a data da decisão, que tanto significa a virada para a vitória quanto, na verdade, uma batalha na qual, como se sabe, milhares de jovens desembarcaram dos navios, encurralados para morrer na praia sem apelação.
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Ao contrário de “Alegria, alegria” (1967) ou, ainda, “Pra não dizer que não falei de flores” (1968), a intenção de caminhar não se dirige à realização de nenhum projeto individual ou coletivo, e nem há interlocutor amoroso ou político. O único trajeto desse sujeito consiste em revolver-se, consumindo-se no próprio veneno que o marca no fundo de si. É ilusória qualquer tentativa de expansão vital, por mais que Torquato repise em seu diário que “é preciso não dar de comer aos urubus”. Por outro lado, na animação compulsiva de “Geléia geral”, de certa forma se anunciava a mesma circularidade do tempo: “Ê bumba ie ie boi/Ano que vem, mês que foi, ... é a mesma dança, meu boi”..., como um ritual de sacrifício travestido de festa. A pressa meio histérica de alguns escritos de Torquato (“não tenho tempo a perder”) se antecipa, como contrapartida, ao abatimento melancólico e ao luto continuado de si. Na última viagem que fez à cidade natal, Torquato gravou um filme super8, o qual intitulou de O terror da Vermelha. Nele, um jovem assassino serial persegue pelas ruas da cidade rapazes e moças os quais mata, por estrangulamento ou facada. Com um dos rapazes com quem conversa, o protagonista parece entreter alguma relação entre amigável e amorosa, o que não o impede de atacá-lo, de uma forma que poderia sugerir alguma alusão erótica. De quando em quando surge alguém, inesperadamente, segurando um cartaz, ou palavras escritas em muros e placas sobressaem, sem contexto explicativo, tais como: VIR VER OU VIR, ou RESINA (exibida longamente). Por sinal, os “atores” eram todos amigos e parentes do poeta, convidados para serem personagens (inclusive os próprios pais integram a lista dos créditos)... O filme termina com a exibição na tela de um texto razoavelmente longo, que procura esclarecer o roteiro, e do qual recortamos o seguinte trecho: TRISTERESINA uma porta aberta semiaberta penumbra retratos e retoques eis tudo. Observei longamente, entrei saí e novamente eu volto enquanto saio, uma vez ferido de morte e me salvei o primeiro filme – todos cantam sua terra também vou cantar a minha viagem/lingua/vialinguagem
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A obsessão do retorno à casa paterna e à cidade da infância, mesmo conhecendo o desfecho perigoso de tal aventura, poderia, quem sabe, ser superada pela repetição exaustiva do assassinato dos pais e amigos, e o poeta, talvez salvo pelo exorcismo do filme. Mas tal revela-se impossível pois a volta reitera o trauma. Como em “Marginalia II”, a referência a um verso romântico tornado clichê, desta vez de Casimiro, comparece parodiada (“Todos cantam sua terra/Também vou cantar a minha”). Assim, poemas, canções e filme documentam seu enorme desejo (culpado) de libertar-se da “casa santa”. Os oxímoros (“novamente eu volto/enquanto saio” seguido de “uma vez ferido de morte e me salvei”) acompanham o fato de que não é ele que morre no filme, pelo contrário, ele é o que voltou para matar, nesse espaço penumbroso e apenas semiaberto das memórias. Numa fotomontagem da época, composta por Moacir Cirne (constante em Últimos dias de Paupéria), o rosto de Torquato aparece sob a palavra-valise, desdobrada em outras duas: “resina” (repetida três vezes) e finalmente, “sina”. O final do texto que encima o filme conclui-se com a frase: “Sou um homem desesperado andando à margem do Rio Parnaíba”. As lembranças, tão líricas do rio da infância numa canção como “A rua”, se tornaram uma cadeia de tormentos que o subjugam. As fases pessoais acompanham a evolução do estreitamento progressivo dos horizontes da vida cultural brasileira e da concomitante crise de expressão e representação. O seu exílio (externo e interno) se acirra até que ele não cabe mais em molde algum. Sua carta-poema de despedida é terrivelmente patética, pois sente que nem mesmo Ana, sua mulher, podia já compreender o seu desajustamento às novas noções de eficiência do ambiente: atesto q FICO Não consigo acompanhar o progresso de minha mulher ou sou uma grande múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher em sua louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em que me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo q FICO sossegado por aqui mesmo enquanto dure.
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Ana é uma SANTA de véu e grinalda com um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que eu FICO e vou ficando por causa de este AMOR Pra mim chega. Vocês aí, peço o favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar. 158
A palavra FICO – grafada e repetida em letras capitais – e todos os desdobramentos que reforçam a atmosfera de imobilidade, ainda acentuada no paralelismo com o sono insciente da criança, encerram a jornada de Torquato, sintomática dos desejos irrealizáveis de uma geração. Outro projeto de país aparentemente venceu, e os derrotados ficaram à margem: tanto os radicais apaixonados que morreram na guerrilha quanto alguns artistas inquietos quedaram paralisados nos embates dos anos 70, como sombras igualmente “empacotadas” no esgotamento precoce de um ciclo, em que uma parcela de jovens brasileiros vivenciava um mundo que se fechava para eles. Os trabalhos recentemente publicados sobre esses poetas de obra irregular contribuem para que não se transformem em “múmias”, como se refere a si mesmo Torquato, numa imagem analógica ao vampiro – figuras marginais fechadas em antros escuros, a nos assombrar sem poder pertencer à corrente da vida. Antes, ao manter viva a memória de sua ferroada e de sua ferida, podemos nos inocular seu veneno salutar refeito em vacina, forte em reflexão, dor e alegria, porque, lembra-nos Benjamin, como as sementes de trigo guardadas nas pirâmides, nunca perdem seu poder germinativo.
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reproduzido no livro de Toninho Vaz (2005), p. 200.
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O sujeito-pedra: tornar-se coisa A força (...) transforma o homem em pedra. Do poder de transformar um homem em coisa fazendo-o morrer procede um outro poder – prodigioso sob uma outra forma – o de transformar em coisa um homem que continua vivo. (Simone Weil, “A Ilíada ou o poema da força”, 1941) De modo que, contrariamente à opinião geral que faz dela aos olhos dos homens um símbolo da duração e da impassibilidade, pode-se dizer que, de fato, como a pedra não se reforma na natureza, ela é na verdade a única coisa que nela morre constantemente. (Francis Ponge, “O seixo”, 1942) 159
Proponho-me a ler alguns poemas contemporâneos nos quais se reconhece uma discreta alteração na posição tradicional do sujeito. Pois neles a voz lírica percebe-se convertida em coisa, negando-se portanto enquanto tal, num tipo de não-relação consigo mesma e com o outro. Nem se projeta para fora, numa “íntima alteridade” (como intentaram os objetivistas Ponge e Cabral), nem é atravessada pelo externo a si. Embora a fusão ou identificação com o mundo, própria do lírico, também aconteça em pequena escala, não ocorre como enriquecimento extensivo, porque não há intersecção ou tangência entre o eu e o outro. Conquanto a figura poética costume ser antropomorfizadora em relação às coisas do mundo a sua volta, como se o imaginário fosse fruto do desejo de corresponder-se, o típico enlace analógico, nestes poemas, evidencia a consciência do alheamento. Todos foram escritos por poetas da mesma geração (porém não do mesmo grupo) na década de 90 do século XX: Rubens Rodrigues Torres Filho, Francisco Alvim e Sebastião Uchoa Leite.160 O que poderíamos ressaltar de comum entre os 159
As epígrafes foram retiradas, respectivament e de: Ponge, F. O partido das coisas. trad. I. A. Neis e M. Peterson. São Paulo: Iluminuras, 2000, e Weil, S. A condição operária e outros estudos sobre a opressão . (sel. e apres. Ecléa Bosi). Trad. T. G. G. Langlada. Rio de Janeiro: Ed. Paz e Terra, 1979. 160 Como iremos nos centrar no problema que ora nos ocupa, destaco-os de seu entorno. Para tanto, retomo e desdobro comentários analíticos que fiz em textos anteriores, sem me deter no exame específico da obra dos poetas, de seu contexto ou fortuna crítica. Desenvolvi comentários mais extensos sobre a poesia de cada um em “Rubens Rodrigues Torres Filho: verso e avesso”( Terceira Margem , ano VIII, n. 11. Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2004), “As faces da musa em Francisco Alvim” (Pedrosa, C. e Camargo, M.L. de B., orgs. - Poéticas do olhar e outras leituras de poesia . Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006) e “As ‘idéias-dente’ de Sebastião Uchoa Leite” (livro coletivo
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autores, à guisa de apresentação sumária, é que adquiriram seu estilo maduro, que os acompanha até a obra mais recente, quando da poesia publicada a partir do final dos anos 60 e começo dos anos 70, endossando certa tendência de reaparecimento da expressão subjetiva depois da ruptura extrema que o concretismo havia lançado como repto à poesia. Mas, neste caso, não se tratava de um retorno puro e simples: afirmava-se outra forma de voz poética, mediada fortemente pela desconfiança em sua centralidade ou organicidade. Logo se percebeu que esta “nova subjetividade lírica” era traspassada pela “solidão” e “por uma consciência agônica da vulnerabilidade do indivíduo em face da ‘paisagem humana’, do meio social, do comércio doloroso e imediato com o nosso presente social, com o tempo agressivo do ethos urbano moderno.” (p. 198-199), conforme analisa Merquior ao examinar a reintrodução do sujeito na poesia de Francisco Alvim.161 Por outro lado, será que as propostas concretistas infiltraram-se como desafio mesmo em poetas que as refutavam? Os que se diziam anti-formalistas, leitores partidários de Drummond e Bandeira, e críticos da interpretação de Cabral disseminada na época, ainda assim teriam incorporado a desconfiança em relação a certa expressão do eu que não era mais possível? “After such knowledge, what forgiveness?” (Eliot) Ou ainda, teriam acontecido tais alterações na experiência do sujeito contemporâneo que, junto à desconfiança acerca da formalização da obra (quando se abandonavam moldura e pedestal, rejeitados vigorosamente pelos artistas e poetas mais radicais daquele momento) também a voz autoral entrava em crise – não para ser reprimida e asseptizada, mas para aparecer lanhada ou questionada, em lascas e feridas? Sebastião Uchoa Leite é especialmente interessante, uma vez que se identificou fortemente com o experimentalismo vanguardista e seu rigor depurativo da linguagem, mas este foi por ele ruminado como consciência irônica e destrutiva. Embora suas soluções como poeta sejam irredutíveis a generalizações comparativas, não se pode deixar de notar que um certo tipo de “eu” bastante auto-crítico também paira sobre parte considerável da poesia pós-
ainda inédito em homenagem ao poeta, a ser editado pela Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro). 161 Merquior, J.G. A astúcia da mimese. Rio de Janeiro: José Olympio Ed., 1972.
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concreta. Francisco Alvim expressa, em entrevista ao poeta Heitor Ferraz, 162 a sua relação conflituosa com os artigos de Mário Faustino e dos concretos, que lia na juventude no Jornal do Brasil. De um lado, concordava que o sujeito lírico estava “gasto”. E, por outro: “Não concordava com eles de que era preciso eliminar o eu” (p. 260). Sentia-se atraído pelas personae criadas por Pound, adaptando-as entretanto para a fala brasileira. Começou, então, a escrever com “vozes”. Passou a ser conhecido por “ceder a voz”, introduzir a “voz do outro” (conforme o descreveu Cacaso), como retalhos de fala costurados por uma “moviola”
unheimlich – o estranho muito conhecido, o familiar oculto interiorizado, revelando a sociedade que o rodeia e produz.163 Esta vertente da sua poesia elide a pessoalidade, ainda que empreste voz a supostos sujeitos. Os três poetas mencionados, posto que atuais, não pertencem às mais novas gerações. Tampouco integram o cânone do alto modernismo. Situam-se, de certa forma, numa posição intermediária entre os valores solidificados e os emergentes. Todos desdobraram sua obra em ampla extensão. Embora possam assim o esperamos - continuá-la, 164 já estabelecemos certa expectativa de leitores em relação ao seu estilo e visão de mundo. Isto os coloca em lugar um tanto diferente dos poetas que começaram a escrever a partir dos anos 80, cuja produção não sofreu os embates mais veementes advindos das polêmicas constantes das décadas de 60 e 70. Parece-nos que se deve a este lugar de passagem que ocupam, intermediário entre o moderno e o contemporâneo, o reconhecimento lúcido de que parte de sua voz lírica foi convertida em coisa alheia. Pois foi durante seu período de formação e juventude que se deu a grande urbanização das metrópoles brasileiras, inchadas pela crescente indústria nacional, e ocasionada primeiro pelo desenvolvimentismo e, alguns anos após, pelo milagre econômico. Modos de vida relacionados ao campo, à pequena cidade – mais artesanais e comunitários –
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Mello, H.F. de. O rito das calçadas (Aspectos da poesia de Francisco Alvim) . São Paulo: FFLCH/USP (dissertação de mestrado), 2001. 163 Conforme observou Roberto Schwarz: “as vozes que falam através do poeta não são de ninguém em particular, o que não quer dizer que sejam de todo mundo”... “Anônimas e típicas, nem individualizadas nem universais, elas têm a polivalência do uso corrente, sempre em via de expecificação, com encaixe estrutural em nosso processo coletivo, a cujas posições cardeais respondem alternadamente e cujo padrão de desigualdade veiculam.” (“O país do elefante”. Caderno Mais! Folha de S. Paulo, 10/03/2002). 164 Com a exceção de Sebastião Uchoa Leite, cuja vida encerrou-se em 2003.
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foram destruídos justamente nesses anos, assim como diversas formas de participação na vida social. Talvez a fluidez e a dispersão contemporâneas não guardem mais esta lembrança da perda, neles ainda sensível e problemática (mesmo que colocada de modo objetivo, sem maiores sentimentalismos). No caso de Rubens Rodrigues Torres Filho, cujo estilo muitas vezes se aproxima do desmascaramento pela ironia, tão praticado por outros poetas da mesma época, acentuando-se, nele, o aspecto lúdico dos jogos sonoros, não deixa de nos surpreender quando somos apanhados por uma semi-aparição melancólica do sujeito – como se vê neste poema: um toque
Estive algumas vezes só como um rochedo batido pelas bestas ondas verdes do mar adjacente. Só é como estar ausente no centro exato. Limita por dentro. O céu redondo, capa impermeável ou sobretudo lírico, acrescenta um toque de ironia ou de clemência: ave, algumas vezes chuva, no mínimo uma estrela. 165
Aqui, o ritmo em staccato e os cortes drásticos dos versos dificultam a enunciação corrente, reiterando a impossibilidade da comunhão entre sujeito lírico e natureza. As imagens não promovem encontros: o rochedo não se consola com as ondas ironicamente aliterativas do mar, ou com os limites opressivos do horizonte em que até a estrela que ali brilha iluminando sua solidão é fixa e, portanto, paisagem inútil. Tanto por fora como por dentro o lamento sem refúgio ou consolo reconhece sua impotência. O “solitude récif étoile” de Mallarmé, ponto de partida, não avista amigos na proa para o brinde nem acredita no lirismo que enfuna velas de viagem. Há uma subtração no tom, pois o isolamento não se deu apenas em relação ao outro mas igualmente em relação a si mesmo. A pedra é ausente de si, matéria que não interage, inalterável e dura. Alcançada pela água ou pela luz, não é permeável em relação a um mundo estrangeiro a si.
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Torres Fo., R.R. Retrovar (1993) em Novolume . São Paulo: Iluminuras, 1997.
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No poema “O ovo de galinha” (Serial, 1961), Cabral opõe a pedra ao ovo, pois este, apesar da semelhança aparente, anuncia a vida, uma vez que “seu peso não é o das pedras,/inanimado, frio, goro;”, já que “é vivo e não morto”, “não se situa no final:/está no ponto de partida.” Por outro lado, o minério distingue-se: “Sem possuir um dentro e um fora,/tal como as pedras, sem miolo:/e só miolo: o dentro e o fora/integralmente no contorno.” Assim, o sujeito-pedra, indiferente à alteridade do ambiente, nada contém de essencial que o diferencie como interioridade. Ave, chuva, estrela e onda movem-se no céu e no mar, mas não podem alcançar a pedra, “alheia a tudo que na vida é porosidade e comunicação” (Drummond). Justamente as imagens mais costumeiras da lírica romântica que Rubens estudou como professor de filosofia, as quais reúnem homem e cosmos em símbolos (como a realizaram Goethe e Schiller), são atualizadas ao revés, no laconismo severo de enjambements tristes. Até possíveis rimas são cuidadosamente evitadas, como se nota na coincidência sonora que haveria entre “adjacente” e “ausente”, interposta pelo ponto final e pelo “Só” antecipado, para que maior relevo concentrasse esta repetida palavra. O mesmo acontece adiante, quando poderia se constatar algum eco toante entre “ironia” e “clemência”, logo impedido pelos dois pontos que antecipam “ave” (saudação?). O metro é em alguns momentos discretamente regular, alternando-se alguns decassílabos a hexassílabos, mas de tal forma tropeçamos na ostensiva pontuação que não se pode observar uniformidade rítmica. As duas comparações iniciais, que se propõem a explicar por meio de imagens o que é ser só, conectam-se uma à outra como variações do mesmo em ângulos complementares. Localiza-se espacialmente o sujeito no seu entorno: à volta, por dentro e afinal por cima. Centralizado sob a brilhante e vívida abóbada celeste e rodeado pelo mar rítmico, verde e cambiante, o eu-lírico, em contraposição – ainda que imóvel e firme - não é nada: está ausente e sem conexão. Que a solidez da pedra traduza-se como uma representação da resistência moral a qualquer assédio, como na imagem do penedo que se lança contra o céu, ou como no verso da canção de Caetano, “luta do rochedo com o mar”, já o
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assinalou belamente Bachelard em seus estudos sobre os elementos. 166 Não há, porém, no poema, nenhuma magnificação das suas possíveis qualidades – apenas uma constatação de triste negatividade. Se o começo do poema abre-se em primeira pessoa, a descrever a atitude existencial do eu-lírico na vida, logo a seguir passa-se para a terceira, que permanece até o final, ampliando afirmações agora impessoais de forma assertiva, a enunciar uma verdade mais geral, dissolvendo num sujeito neutro a experiência da segregação radical. O tema do isolamento frente ao mundo indiferente não é novo. Desde os famosos versos de Safo, paradigma da mais antiga poesia ocidental (“A Lua já se pôs, As Plêiades também/Meia noite, foge o tempo/e eu estou deitada sozinha”) associa-se o conceito mais tradicional de lírica à imagem do sujeito face ao universo, solitário como os astros quando todas as luzes se apagam, mas bem mais efêmero em sua mínima existência. Contudo, aquele “eu” antigo que se colocava sob as estrelas reconhecia no cosmos algum eco dos seus sentimentos, enquanto o poeta contemporâneo não advoga para si nenhuma possibilidade de correspondência. Já a afinidade com o spleen baudelairiano se explicita não só na figuração do céu baixo e opressivo como também pela comparação ambígua, inesperada, com capa e sobretudo – vestes que protegem da chuva, acrescentando “um toque de ironia ou de clemência” à posição do sujeito-pedra. Assim, esta natureza que o rodeia poderia estar ali para melhor realçar a discrepância intransigente entre sua imobilidade melancólica, em contraste com o brilho, a leveza e a dança rítmica do mar, da chuva, da ave e da estrela. Ou quem sabe estes elementos estão ali para inutilmente consolá-lo, posto que não podem dirimir sua irredutibilidade. Também a identificação com um objeto inanimado apresenta-se paradigmática num dos poemas do “Spleen”, quando a voz lírica compara-se a uma cômoda, um quarto velho, um cemitério e afinal assevera: “- Désormais tu n’es plus, ô matière vivante!/Qu’un granit entouré d’une vague épouvante,” (“Doravante, tu não és mais, ó matéria vivente!/Que um granito rodeado por uma onda assombrosa”). Tornar-se mineral afigura-se como atributo do poeta
Leia-se o seu notável estudo de 1948 A terra e os devaneios da vontade . Trad. Paulo Neves da Silva. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 1991. 166
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impermeável e mesmo contrário ao movimento agressivo do mundo, ao qual ele retribui com um tédio profundo. A percepção de estar esvaziado de si e do outro se afigura dolorosa neste outro poema, de Francisco Alvim: Escolho
Parado Na plataforma superior Entre as pernas no chão as compras num plástico Longe do verso perto da prosa Sem ânimo algum para as sortidas sempre – enquanto duram – venturosas da paixão Longe tão da longe do humor ironia das polimorfas vozes sibilinas transtornadas no ouvido da língua Ali onde o chão é chão as pernas, pernas a coisa, coisa e a palavra, nenhuma Onde apenas se refrata a idéia de um pensamento exaurido de movimento Entre dois trajetos dois portos (duas lagunas) duas doenças Sublimes virtudes do acaso por que não me tomais por dentro e me protegeis do frio de fora da incessante, intolerável, fuga do enredo? da escolha? 167
O título, já de antemão um trocadilho espelhado no último verso (escolhoescolha), parece aludir à concepção existencialista sartreana da obrigatoriedade da 167
Alvim, F. Elefante . São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
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liberdade individual: o sujeito inexoravelmente responsável por seu destino. Mas, aqui, assiste-se alguém parado de pé numa plataforma com um saco de compras entre as pernas, cansado, como um resto abandonado. Pensamento, idéias, palavras, amores e poemas – exauridos. Só o chão afigura-se sólido, e as pernas, imóveis, nele se apóiam como partes das coisas. Uma experiência característica da grande cidade contemporânea. A comparação com a idéia de escolho como pedra é mesmo fluvial, porque se imagina entre duas lagunas (de água rasa e parada), dois portos, mas, também, entre duas doenças ou entre duas paixões, breves e exaustivas. Todas as imagens reforçam o foco na estagnação reificada. A plataforma alude a algum meio de transporte urbano – possivelmente trem, metrô ou ônibus. Remete, portanto, à idéia de trilho ou estrada como os espaços para onde se dirigiria o passageiro – meios de transporte aos quais se tornou indiferente – o qual preferiria, ao que parece, não se mover. Este sujeito esvaziado de paixões e lances aventurosos, de deslocamentos quaisquer – seja na vida seja na linguagem – está fundeado ou imobilizado num lugar pouco humano, em que os lances do relacionamento inteligente ou amoroso não chegam. As camonianas “sortidas venturosas da paixão”, que tanto o animariam, posto que fugazes, emprestariam intensidade e movimento a tal vida (como sugeriu Vinícius ao exprimir o paradoxo do lirismo, entre a forma perene e o instante de vibração) – mas nada ocorre neste não-lugar. À maneira de um Cabral obsessivo, há, além da redução quase elíptica na linguagem, uma repetição enfática de termos, como se, por vezes, o substantivo fosse o melhor adjetivo para defini-los. Mas, se chão é chão, perna é perna, coisa é coisa, o mesmo não se pode dizer de palavra ... Talvez os versos “Onde apenas se refrata/ a idéia/ de um pensamento exaurido/ de movimento” sejam uma alusão às “subdivisões prismáticas da Idéia” de Mallarmé, uma vez que neste poema, em oposição, tudo é desmetaforizado e literal, sem nenhuma possibilidade de que “toda realidade se dissolva” nem que “todo Pensamento emita um lance de dados”.168 Pelo contrário, o “pensamento exaurido/de movimento” recusa-se a qualquer deslocamento, no sentido literal ou
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Assim me foi sugerido pelos colegas do grupo de estudos de poesia contemporânea Labioratório quando lhes apresentei uma versão preliminar deste texto.
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figurado.169 Sinalize-se a obsessão aliterativa do /p/, intensificando a impressão de dureza e paralisia, em especial nos dois primeiros versos, bem destacados em frases isoladas. Já na última estrofe, de estilo bastante diferente, a repetição do /f/ e do en/in se faz audível, como possível concretização do destino fluido, que o eu lírico quer evitar. Quando finalmente manifesta-se a voz do sujeito, em atitude de apóstrofe invocando estranhas musas (“Sublimes virtudes do acaso”), ela surge para clamar por sua auto-destruição. O poema conclui-se com um apelo, como uma prece, num momento de anti-iluminação. Abandona-se a um tipo de providência, não mais divina, mas nesse instante de parada e exaustão, considerada superior à consciência finita e errada. É como se estivéssemos diante de um Ulisses (ou Vasco da Gama) ao revés, queixando-se da falta de destino da viagem, da indiferenciação entre homem e mundo, com um cansaço que o reduz às mercadorias. Não temos mais aquele sentimento de indivisão épica entre interior e exterior, nem o belo abandonar-se à contemplação da paisagem ao ponto de nela transfigurar-se para mais intimamente exprimi-la. Ocorre, pelo contrário, uma paródia extrema disso. Quem sabe como seria melhor alienar-se e deixar-se levar pelo arbítrio do acaso, que transformaria o escolho do eu na escolha impessoal... Numa outra possível interpretação do poema, e particularmente desta última estrofe, Heitor Ferraz salienta a angústia do eu lírico relativamente à “perda desse espaço da epifania, do alumbramento”, pois “esses momentos se restringem às ‘sublimes virtudes do acaso’”, agora raras e distantes, já que sua inspiração para escrever volta-se principalmente para o “registro de um cotidiano cada vez mais degradado.” (op. cit.: 248). Uma vez que suas rememorações da natureza, que o conduziam para um estado de felicidade súbita, inexplicável, ligada à 169
Bruna de Carvalho, aluna de Letras na U SP, escreveu um trabalho no qual, ao analisar detidamente “Escolho” observa, com muita acuidade, “a verve metalingüística que percorre o poema”, quando o poeta “toma distanciamento crítico de sua poesia, analisando em tom sóbrio o próprio humor e a ironia dos quais se vale em tantos de seus poemas” (p. 6). Notou também o contraste entre o tom prosaico de alguns versos e a “linguagem notavelmente lite ralizada” de outros, a ecoar a oposição entre o “ rasteiro” e o “superior” (p. 6 e 8). A reflexão sobre a impossibilidade de comunicação da experiência levou-a a considerar o poema como um discurso “colado ao mundo”, petrificado, que é por isso impelido a perguntar-se “sobre o que, então, fazer da poesia (senão transcrever o literal, o já dado).” (p. 8). Conferir “Um céu, que não existe. Negatividade e reflexão em Chico Alvim” (São Paulo, Teoria Literária I, junho de 2010).
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infância,170 se comprimem para dar lugar ao mal-estar da história presente, do mundo dos homens, o eu-lírico invoca em prece o acaso para abduzi-lo, quem sabe, da pressão redutora do real hostil, que obriga a (falsas) escolhas.171 O crítico já ressaltara, ao longo de seu estudo da obra de Alvim, a consciência da “reificação como resultado da automatização da vida” (p. 98), tema que reaparece em outros poemas, como destaca na análise que realiza de “O corredor” (Passatempo, 1974) o qual caminha por si, conduzindo maquinalmente as pessoas que nele passam (p. 98 e ss.) O poema adota uma aparente configuração descritiva por conta da utilização de termos precisos de localização espacial: superior, entre, no chão,
longe, perto, ali, onde, dentro, fora. Porém, ao lado da objetividade com que a cena “parada” nos é apresentada, logo somos conduzidos à viagem imaginária para destinos almejados pela lembrança e pelo desejo,172 por um sujeito no entanto resignado à sua impossibilidade e conformado com a mediocridade do trajeto. Talvez haja algum resquício de contraste entre os termos “superior” e “chão” – análoga aos (não) deslocamentos horizontais – como outro vetor de comparação, que mais enfatiza a imobilidade e o achatamento do sujeito-coisa. Por isso, a invocação final, que clama pela sua auto-anulação, quando então tais possibilidades sonhadas poderiam ser definitivamente suprimidas, e ele tornar-seia submisso e indiferente às adversidades do mundo real: dentro e fora, termos espaciais em tensão, seriam apaziguados quando abolida a sua contraposição.173 O indivíduo ainda sofre porque mantém a espessura interior, que a linguagem mais 170
Ou ao amor,lírico. acrescentaríamos. A poética de Alvim possui uma vertente do mais alumbramento Em contraponto a “Escolho”, poderíamos citar “Água”: “Falarpuro de ti/é falar de tudo que passa/no alto dos ventos/na luz das acácias/é esquecer os caminhos/apagar o enredo/é pensar as formas do branco/como teu corpo numa praia/branda e azul/Tua pele não retém as horas/escorres, líquida/sonora” (Lago, montanha , 1981). 171 Em sua dissertação de mestrado sobre a obra do poeta, Heitor Ferraz de Mello analisa “Escolho” detidamente, dentre muitos outros poemas. Ver especialmente p. 219-225. 172 Em The Waste Land (T.S. Eliot, 1922), a “obrigação” de mover-se, de preci sar nascer e crescer (a que nos impulsiona a primavera) é definida como cruel: memória e desejo causam sofrimento... Lá, como aqui, a perda da experiência, vinculada à tradição coletiva de gerações, leva ao encolhimento do sujeito, que corrompeu o objetivo de sua peregrinação e apenas deambula como autômato pela terra estéril. 173 Notara-o Augusto Massi “ (em “Conversa dentro conversa fora”) que « Desde o início, a poesia de Chico estrutura-se a partir de uma tensão entre o mundo exterior e o latejar da experiência íntima. É impressionante a recorrência de imagens espaciais que giram em torno de ‘fora’ e ‘dentro’.” ( Inimigo Rumor , n. 6, Rio de Janeiro: Sette Letras, jan-jul 1999, p. 23)
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literária, “alta”, denuncia, posto que já consciente de ela ser um “escolho” que será afinal eliminado. Desde Homero (no episódio de Cila e Caribdes) até Drummond, que “tinha uma pedra no meio do caminho”, 174 ou afinal no poema rapsódico de Enzensberger contra o iceberg (no Naufrágio do Titanic), as pedras comparecem na poesia ocidental, figurando em geral um obstáculo a ser enfrentado, por vezes intransponível. Também ressurgem como motivo recorrente em Cabral, verdadeiro “paradigma moral e estético.” 175 Mas em Rubens Rodrigues Torres Filho e Francisco Alvim, a pedra encarna-se na própria voz lírica: ela mesma óbice. Non nova, sed nove. Ao identificar-se com ela, na verdade a voz que fala abdica da ilusão de ser sujeito no sentido pleno e se deixa revelar na sua condição de coisa, indiferente a qualquer possibilidade de troca ou fusão.176 Não se poderia evitar a alusão a certo parentesco com o instinto de morte freudiano (“Além do princípio do prazer”, 1920): a verificação, no ser humano, de uma pulsão pré-histórica de retorno à matéria inanimada inorgânica anterior ao instinto sexual de ampliar e reproduzir a vida. Trata-se de memória primitiva que remete a seres unicelulares, quando a humanidade estava próxima ainda da forma mineral e o trajeto da vida terminava na rápida dissolução. Portaríamos, então, um 174
Um dos versos mais emblemáticos de nosso modernismo, reconhecimento de não identidade e de desconforto entre sujeito e mundo. A identificação com as características do ferro, que encontramos em “Confidência do Itabirano”, tende a ser uma triste constatação, nesse sentido semelhante aos nossos poemas, nos quais a voz lírica tornada pedra no meio do caminho empaca como algo que emperra o fluxo, seja das correntezas, seja da multidão em trânsito. Heitor Ferraz, ao comentar “Escolho”, já se referia a “No meio do caminho” como possível alusão (2001: 220). Algumas tensões da imagem da pedra em Drummond foram figurações retomadas em novo contexto discussão por Pedrosa em “Poesia, cânone, valor: da pedra em Carlosde Drummond de Célia Andrade e Armando Freitas Filho” (Revista Gragoatá, n. 12. Niterói: UFF, 2002). 175 Conforme destacou Lauro Escorel em A pedra e o rio. Rio de Janeiro: Academia Brasileira de Letras, 2001 (reed.), p. 22. 176 Também nos deparamos com afinidades em Beckett, especialmente em textos tardios como O despovoador (1968-1970), uma anti-utopia em que algumas pessoas - na verdade corpos sem identidade - recusam-se a continuar caminhando inutilmente, e param no meio do fluxo atrapalhando o trânsito dos outros: “É curioso notar a presença na pista de um certo número de sedentários sentados ou em pé contra a parede. Praticamente mortos para as escadas e fonte de incômodo tanto para o transporte quanto para a espera eles são no entanto tolerados.” (p. 16); e em Mal visto mal dito (1979-1981) onde uma velha solitária deseja a morte: “Ali está ela portanto como que transformada em pedra diante da noite.”... “Como se ela tivesse a infelicidade de ainda estar viva.” (p. 37-38), “Se ao menos ela pudesse ser somente sombra.”(p. 44), “Paralisada fiel a si mesma parece transformada em pedra.” (p. 49). Em português, ambos os textos foram publicados juntos, em O despovoador. Mal visto mal dito . Tradução de E. Araújo Ribeiro, ed. V. Nikitin, pref. Fabio de Souza Andrade. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
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desejo remoto de completo apaziguamento. Regredir a esse estágio seria característico de momentos próximos ao terminal, ou encontráveis nas depressões profundas, quando o sujeito perdeu as forças vitais.177 De certo modo, ressoa nos versos de “Fraga e sombra” de Drummond (Claro enigma, 1951), o sentimento de limiar com o crepúsculo, quando o sujeito lírico, sobre um rochedo, vê a paisagem se desvanecer em “mar ausente e abstrata serra”, e recalca “sob o profundo/instinto de existir, outra mais pura/vontade de anular a criatura.” Entre o desejo de viver e a inclinação a diluir-se no nada, a suavidade contemplativa convida à meditação sobre a efemeridade da passagem humana.178 Mas a consciência de existir, ainda que brevemente, num intervalo musical, faz diferir a meditação do nosso mais subido viandante noturno do tipo de situação experimentada pela voz lírica em “um toque” e “Escolho”, quando não 179 há enlevo algum do sujeito com o mundo – apenas recusa e desânimo.
Os dois poemas focam a consciência possível sob o alheamento extremo, ambos retratando o estranhamento do eu voltado a si mesmo como coisa quando se perderam os laços com a vida. No primeiro, “um toque”, a voz lírica quem sabe gostaria de alcançar um possível interlocutor, rodeada que está pela natureza com a qual não pode se relacionar. Ensimesmada, pressente o mundo à sua volta. Paira certo clima de “romantismo da desilusão”. Embora o próprio sujeito também se 177 O complexo estudo de Maria Rita Kehl ( O tempo e o cão. A atualidade das depressões . São Paulo: Boitempo Editorial, 2009) sobre o aumento da depressão hoje contrasta a demanda por produtividade no capitalismo atual e o abatimento dos depressivos, que “sofrem de um sentimento do tempo estagnado” (p. 17), pois, ao desistirem de ser sujeitos desejantes, não mantém “nenhuma representação esperançosa
do devir”por (p. uma 58), tendo perdidofatalista o sentido duração experiência. Pelo contrário, são tomados “indolência antedeum mundodavazio e a reificação das relações humanas” (p. 87). Conclui, por fim: “A depressão, do ponto de vista da vida social, expressaria a desvalorização da vida que interroga seu sentido diante do espelho, em que não existe nem passado, nem futuro, nem alteridade – e se depreende a inutilidade de realizar qualquer ação.” (p. 297). 178 Ivone Daré Rabello analisa, em aula, este soneto de Drummond, ressaltando o contraste entre fraga e sombra, luz e crepúsculo, música e silêncio, e afinal, vida e morte, que se equilibram por meio da sonoridade e da figuração no poema. 179 Poderíamos lembrar também o poema de Jorge de Lima “O céu jamais me dê a tentação funesta” (Canto I, XXII, Invenção de Orfeu , 1952) em que o eu-lírico tanto teme quanto deseja abandonar-se à condição mineral. Nele, a pedra é umbigo – regressão ao estágio de desindividualização, quando se volta ao ventre da terra para nascer de novo, sem separação em relação ao mundo – mito da linguagem órfica, que recria as coisas demiurgicamente: ser um deus, falar-criar – potência total. Isto é o contrário deste sujeitopedra: não há em “Escolho” retorno à gênese como sinal de potência criadora dionisíaca, que em Invenção de Orfeu é perigo regressivo mas tentador: apenas o esgotamento do tornar-se corpo morto, minério sem vida.
179
ausente de si (uma vez que não há contato com a alteridade), ao definir-se como “só”, e lamentar o seu isolamento, ele se vê como uma forma de indivíduo. No segundo poema, “Escolho”, a consciência do isolamento em relação a tudo é de tal ordem que não sobraram mais esperanças (ainda que permaneçam as lembranças sinalizadas pelo “longe, tão longe”), a não ser aquele anseio ambivalente, talvez resignado, de deixar de ser um sujeito. Observando a si mesmo como objeto, perde a possibilidade de movimento no espaço e no tempo, reduzido ao “presentismo” (na expressão de Hartog), um regime de historicidade em que o futuro e o passado são recompostos para referir-se apenas ao agora. No capitalismo, quando “o trabalhador tornou-se uma mercadoria“, “corpórea e espiritualmente reduzido à máquina”, “a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens”: “quanto mais o trabalhador se desgasta trabalhando, tanto mais poderoso se torna o mundo objetivo, alheio, que ele cria diante de si, tanto mais pobre se torna ele 180
mesmo, seu mundo interior, tanto menos pertence a si próprio” (p. 24, 26, 80, 81 respectivamente). A desumanização e a não-existência são o quinhão deste homem alienado do processo e do produto de seu trabalho além de, conseqüentemente, da relação com os outros homens, conclui ainda Marx: “Em geral, a questão de que o homem está estranhado do seu ser genérico quer dizer que um homem está estranhado do outro, assim como cada um deles [está estranhado] da essência humana.” (idem ibidem: 86) Mas, comenta Meszaros,181 a sociedade não é uma “totalidade inerte de alienação”, uma vez que é dinâmica: não produz apenas “consciência alienada” como também “consciência de ser alienado” (p. 162), o que implica necessidade de superação. O próprio sistema produz suas contradições como, por exemplo, o incremento da idéia de indivíduo, que se julga soberano (ainda que esta seja uma crença no fundo ilusória), o que poderia conduzir à revolta, sempre latente, contra este regime de exploração (p. 167). Evocamos rapidamente tais reflexões bem conhecidas para ponderar sobre o movimento duplo do eu-lírico dos poemas em
180
K. Marx. Manuscritos econômico-filosóficos (1844) trad. J. Ranieri. São Paulo:
Boitempo, 181
2008. I. Meszaros. Marx: a teoria da alienação. Trad. W. Dutra. Rio de Janeiro: Ed. Zahar: 1981.
180
tela, que sofrem a inevitável reificação tanto quanto, ao nela imergir, parecem denunciá-la.182 Pois em “Escolho”, o eu-lírico ainda resiste como pedra no caminho. Poema-topada, último suspiro ou resmungo irônico de desconforto antes da “ansiada” submissão do sujeito ao reino dos bens descartáveis. A rememoração do que perdeu ecoa em sua consciência como fragmentos da experiência que uma vez viveu, impedindo-o ainda, malgrado seu, de metamorfosear-se totalmente em coisa. Nossa nítida impressão, ao ler “um toque” e “Escolho”, é de paródia melancólica, como se o sujeito sofresse a percepção muito consciente da dificuldade de continuar a ser um indivíduo num mundo partido: transfigurado em pedra – matéria por excelência morta. Os poemas reforçam os pressupostos hegeliano-marxistas sobre a alienação aparentemente pelo avesso, uma vez que, como adverte Adorno: “O artista deve transformar a si mesmo em instrumento: tornar-se até mesmo coisa, se não quiser sucumbir à maldição do anacronismo em meio ao mundo reificado.” (2003: 160). 183 182
Em nosso tempo, a indústria de entretenimento vem criando objetos de distração tão completos que evocam o “almejado” esvaziamento da consciência testemunhado pelo poema de Francisco Alvim. Numa propaganda de televisão atual, presenciamos a seguinte estorieta: um rapaz entra num vagão de metrô no qual se sente deslocado por ser o único que não possui um determinado celular que os outros passageiros seguram, obedecendo todos a um ritmo comandado pela pequena máquina, que simula jogos diversos. Assim, cada feliz portador de um destes aparelhos está alheio ao ambiente do trem, participando de uma competição individual com o seu celular, e fazendo movimentos enigmáticos para o recém chegado, como se fossem estranhos autistas controlados por um ritmo invisível. A cena se repete na rua, onde outros jovens se mexem de modo incompreensível para ele, enquanto olham fixamente para seus celulares. Finalmente, lhe atira um celular igual ao que os outros possuem, e então nosso herói passa aalguém fazer parte da confraria de zumbis. Os espectadores da propaganda podem compartilhar de sua alegria ao também vê-lo jogar, como os outros, numa quadra de tênis ou numa mesa de bilhar virtuais que aparecem na telinha do aparelho. Não há, evidentemente, nenhuma angústia nesta abdicação da autoconsciência e mesmo de toda alteridade à sua volta em prol da distração contínua – à semelhança da horrível utopia de Huxley, em Brave new world (1932) em que a TV é onipresente até mesmo no momento da morte, quando uma paciente terminal se distrai vendo um campeonato esportivo numa tela ligada ininterruptamente na frente de sua cama no hospital. A escolha do jovem protagonista da propaganda pela anulação de sua diferença e pela integração total ao controle maquinal é um abandonar-se contente. 183 O filósofo referia-se, no ensaio “O artista como representante” (1953), à paradoxal despersonalização do eu-lírico propugnada por Valéry, quando este sugeria uma sublimação do sujeito em nome de uma superação da individuação imediatista e possivelmente alienada na sua falsa partição em relação ao todo humano. Porém, o contexto utópico ali proposto era a possível redenção do homem como ser completo quando, mergulhando na especificidade da linguagem poética de forma obstinada, atingisse um fundo universal, no qual as barreiras de classe e de divisão de trabalho
181
Desde a frase de Nerval, “eu sou um outro”, ou na sua formulação mais radical, “eu é um outro”, de Rimbaud – considerando-se a tradição francesa como um dos paradigmas da modernidade - e tendo em vista seja a “desaparição elocutória do sujeito” em Mallarmé, seja o “je maravilhosamente superior ao
moi”, de Valéry (só para citar alguns enunciados elegantes da questão), o eu lírico vem sendo caracterizado como uma voz que se constrói pela relação com a alteridade (ainda quando consigo mesma), pois permeada pela linguagem, instância tão coletiva quanto singular. Nesta linha, definições muito fecundas são a de Octavio Paz, que divisa no eu lírico uma “outridade constitutiva” e um vir a ser, ou ainda a de Emil Staiger, que apresenta a disposição do eu-lírico como o “um-no-outro”, quando sujeito e objeto se dissolvem e se reconstituem como nova unidade imagético-sonora no poema. Mais recentemente, o estudioso francês Michel Collot refere-se ao eu lírico como “matéria-emoção” (expressão retirada a René Char), a projetar-se e dissolver-se num espaço interiorizado. E, finalmente, Maulpoix inventou o termo “transpessoa” (“quarta pessoa do verbo”), para descrever este sujeito expandido.184 Conceber o eu-lírico como um tipo de centro anímico coletivo (especialmente quanto mais singular e inapreendido) também implica a diluição ou mascaramento da voz singular, que em muitos poetas modernos aparece como persona e heteronomia. No caso brasileiro, talvez o paradigma cabralino, ao recusar a expressão imediata do sujeito como uma “diarréia” informe, preferindo inscrever o poema no chão mineral do papel, tenha proporcionado aos poetas posteriores a necessária desconfiança em relação a uma ingênua identificação entre o eu empírico (vago e desordenado) e o rigoroso trabalho da composição, do qual derivaria um sujeito poético feito de linguagem, forjado como flor de ferro.185 Não há dúvida que, consciente ou inconscientemente, a inspiração motriz dessa negação explícita do lirismo, o qual identificaria sujeito e objeto em consonância, advém da educação pela pedra. Mas, para Cabral, o poema parece derivar de um esforço cognitivo de fossem canceladas pela sua expressão como representante (ou, na tradução espanhola, “lugarteniente”) da humanidade libertada. Conferir em T.W. Adorno. Notas de literatura I. Trad. J. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades e Editora 34, 2003. 184 Ver o livro coletivo Figures du sujet lyrique (org. D. Rabaté). Paris: PUF, 1996. 185
A respeito da poética de Cabral, sigo, neste trecho, as reflexões de Alcides Villaça em “Expansão e limite da poesia de João Cabral” em Bosi, A. (org). Leitura de poesia . São Paulo: Ed. Ática, 1996.
182
aproximação gradual em direção aos objetos que resulta em maior lucidez para o poeta e para o leitor, ambos compartilhando desse desvendamento progressivo à volta da cabra, da bailadora, do canavial. Entrevê-se, contudo, nos nossos poemas, ao lado de um lamento sobre a coisificação do sujeito e de uma afirmação desse alheamento como inelutável, o encolhimento, no mesmo passo, de si e do mundo. Ampliando o universo de exemplos, sem procurar nesse momento aprofundar qualquer nova análise, evocamos afinal Sebastião Uchoa Leite, outro poeta altamente crítico da ilusão de um eu lírico soberano. Vale a pena transcrever o poema “Dentro/fora: Rio de Janeiro”: Daqui de dentro Por trás dos vidros Vê-se lá fora A rua pétrea De pedestres Ao sol incósmico Deslizam Por dentro do vidro Parecem Do outro vir lado Desta mesa Onde o olho É outro espelho Pétreo 1994186
Também aqui assoma o sujeito-pedra, em meio a pessoas igualmente coisificadas, numa paisagem em que apenas as aparências, vítreas, deslizam, como se olho, sol, vidro, fossem telas ou janelas virtuais, sem espessura ou volume. “Daqui de dentro” e “lá fora” deixam de ser opostos quando a luminosidade do “sol incósmico” equaliza os espaços, como se todos – voz que fala e pedestres – flutuassem no mesmo aquário. O próprio olho, sinal da alma, foi esvaziado de sua potência singular de expressão da interioridade. Sua aparência líquida e brilhante associa-se, no poema, ao vidro, vazio de singularidade, “espelho pétreo” refletindo uma “rua pétrea”, de modo contraditoriamente impessoal: “ao movimento adquirido pelo que era pétreo – os pedestres da ‘rua pétrea’ – corresponde à petrificação do olhar do eu que os
186
Leite, S.U. A espreita . São Paulo: Ed. Perspectiva, 2000.
183
via”, reflete Luiz Costa Lima,187 que se deteve sobre este poema, em meio a vários, com vistas à tentativa de compreensão do tipo de eu lírico na obra final de Sebastião Uchoa Leite. Dele observou que “a oposição entre sujeito e objeto se converte em uma transitividade ... intransitiva.” (p. 234). Conclui então, tendo em vista igualmente outros poemas do livro A espreita: “a ironia sustenta a consciência, ao mesmo tempo que ri zombeteira de ela se considerar o centro das coisas. A separação entre o eu e o outro por certo não desaparece, mas tampouco permanece intacta, ao impedir que o eu ainda se tenha por centro.” (p. 236). Não há propriamente sujeito: tudo se dá como se a voz que enuncia fosse uma coisa - o olho pétreo espelhado que reflete outros, imagens passageiras, enquanto ele permanece parado, de certa forma indiferente a tudo e sem possibilidade de interlocutor. A contraposição entre ele e o mundo apresenta-se de modo diferente neste poema, pois nos dois anteriores havia um sujeito-coisa que se ressentia de sua imobilidade e isolamento. Já aqui tudo é equalizado na mesma apatia. Não parece haver o indivíduo enfeixando um núcleo anímico que imagina e deseja: passivamente, o olho desliza como se houvesse uma anulação da perspectiva central a comprimir proximidades e distâncias. 188 Em outro poema, Rubens Rodrigues retoma a imagem da cristalização mineralizada do olho: O olho, vidro, voou em cacos. O que resta deste farol, a órbita vazia 187
Remeto a Lima, L.C. “Sebastião Uchoa Leite em prosa e verso. b. Negatividade e
São Paulo: Edusp, 2002. Peter Intervenções Pál Pelbart .amplia a concepção de Agamben em relação à “vida nua” contemporânea: 188 suspeita”.
À vida sem forma do homem comum, nas condições do niilismo, a revista Tiqqun deu o nome de Bloom. Inspirado no personagem de Joyce, Bloom seria um tipo
humano recentemente aparecido no planeta, e que designa essas existências brancas, presenças indiferentes, sem espessura, o homem ordinário, anônimo, talvez agitado quando tem a ilusão de que com isso pode encobrir o tédio, a solidão, a separação, a incompletude, a contingência – o nada. Bloom designa essa tonalidade afetiva que caracteriza nossa época de decomposição niilista, o momento em que vem à tona, porque se realiza em estado puro, o fato metafísico de nossa estranheza e inoperância, para além ou aquém de todos os problemas sociais de miséria, precariedade, desemprego etc. Bloom é a figura que representa a morte do sujeito e de seu mundo, onde tudo flutua na indiferença sem qualidades, em que ninguém mais se reconhece na trivialidade do mundo de mercadorias infinitamente intercambiáveis e substituíveis. Pouco importam os conteúdos de vida que se alternam e que cada um visita em seu turismo existencial, o Bloom é já incapaz de alegria assim como de sofrimento, analfabeto das emoções de que recolhe ecos difratados. (“Vida e morte em contexto de dominação biopolítica”, 2008.
www.iea.usp.br/iea/textos/pelbartdominacaobi opolitica.pdf, p. 10-11).
184
é certa fome irônica e algum câncer prolífico que a ataca. Já mordes no vazio, minha doença, debaixo do teu dente a polpa é escassa.
(“acidente”, O vôo circunflexo, 1981, em Novolume, op. cit.)
Apesar da magnificência dos decassílabos finais (em contraste com o ritmo irregular do começo), e dos sutis ecos aliterativos e assonantes, o poema assemelha-se a um veneno que consome a si mesmo, pois a substância do eu-lírico é o ácido que o desfaz. À fome que tenta devorar o vazio corresponde o câncer que desfaz o próprio sujeito, corroído e corruidor. Outro matiz tinge esta voz: a constatação do pouco que resta de si mesma durante o processo de autodestruição. De modo aparentemente análogo, mas com ânimo de resistência, Paul Celan, no poema “Esperança” (1959)189 imagina um olho movente “sob a pálpebra de pedra”, cavando com os cílios a rocha a que o mundo (e o próprio corpo estranhado) se reduziu. São as “lágrimas não choradas”, guardadas nas pestanas, que furam como “o mais fino dos fusos” a dureza extrema. Esta célula do sujeito que sobrevive, sensível a “um toque”, tenta reverter a morte-em-vida.
189
Celan, P. Sete rosas mais tarde . Antologia poética. Sel., trad. e introd. João Barrento e Y.K. Centeno. Lisboa: Ed. Cotovia, 1993.
185
As “idéias-dente” de Sebastião Uchoa Leite
Todas as famílias felizes se parecem entre si; as infelizes são infelizes cada uma à sua maneira.
(Tolstoi, Ana Karenina)
Introdução Será que as décadas de 70 e 80 foram um período de inflação retórica de tal maneira estereotipada que os poetas se pungiram com a claustrofobia do palavreado pronto, estreitados na prisão ou no exílio da linguagem oficial?190 No Rio de Janeiro, Sebastião Uchoa Leite (1935) e Chico Alvim (1938), assim como Cacaso (1944), mais moço, praticam, nessa época, a ironia como forma autoparódica e socialmente desveladora. Em São Paulo, José Paulo Paes (1926) e Rubens Rodrigues Torres Filho (1942), e em alguns momentos também Roberto Piva (1937), são seus principais expoentes. Não esqueçamos outro então jovem, Paulo Leminski (1944), voz do sul integrada a esse circuito cultural. (Haveria ainda, para outro estudo, Sebastião Nunes e Zuca Sardan, que continuam firmes a prestar o serviço de desmantelamento dos clichês reacionários). Seria interessante desdobrar as formas como se manifesta a ironia na produção desses (quase) contemporâneos e depois procurar situar a sua singularidade no contexto de uma geração. O espectro deste tema abrangeria um volume, mas aqui vou apenas referir-me mui brevemente a alguns poetas que compuseram versos de laivos irônicos ou sarcásticos. Sebastião, Leminski e Paes aproximaram-se da vanguarda concreta e depois seguiram cada qual trilha independente, com maior ou menor ruptura, ou inflexão. Dela derivaram a desconfiança em relação ao tom altissonante, aos versos longos, a certa elevação de estilo característica de 45 e sempre reiterada no tardo modernismo – além de, principalmente, a consciência mais aguçada do impacto sonoro e visual da palavra. Já Cacaso, Chico Alvim e Rubens distinguemse, sobretudo, como refratários às propostas concretas, pois em nenhum momento 190
Comentário inspirado por observação feita pelo escritor israelense David Grossman,
ao referir-se à opressão por ele experimentada no cotidiano de seu país, obrigado a submeter-se à propaganda política (entrevista ao programa Roda Viva, TV Cultura, 2009).
186
repelem
programaticamente
os
resíduos
de
subjetividade
e
duração
temporal/sintática. Ainda que tão diversos entre si, é estimulante notar como reagem ao espírito do tempo em ritmo paralelo: finos praticantes do humor, contrapõem-se tanto à grandiloqüência do pseudo-sublime esmaecido pós-45, quanto à retórica didática dos “engajados”. Procuram encontrar um tom que se afine com tempos de expansão pequena, seja por conta do encolhimento do espaço público seja devido à retração num mundo subjetivo também açodado pela dúvida. Esses contemporâneos não se colocam longe da definição de F. Schlegel, em 1797, para quem a “espirituosidade (Witz) é uma explosão de espírito agrilhoado.” (1994, frag. L 90). Neste local apertado de pouca manobra que foi a década de 70 buscarão uma linguagem que se inscreva como marca e ferida: brevidade e economia, a serviço da descompressão psíquica (para lembrar os estudos freudianos sobre o chiste).
Sebastião, em entrevista à revista 34 Letras, confirma: “Eu procuro –
senão vou terminar amargurado demais – ver as coisas sob um prisma de humor, ver as coisas por outro lado que não é só aquele que se apresenta, que às vezes é um lado perverso da realidade, que me choca.” (1990: 37). Na verdade, a ironia, comenta ainda, é uma forma de alterar a visão das coisas, revelando algum outro ângulo que possa ampliar a bitola do real opressor. Mas, uma característica comum é que quase todos começaram com livros “sérios”, de estilo elevado. Dos mais velhos aos mais jovens, perpetraram os “sonetões com hipocampos e medusas que naufragaram em revistas literárias” (como descreveu José Paulo Paes seus poemas iniciais) ou ao menos a imitação de um estilo moderno mais “reclassicizado”. Porém, no final dos anos 60, a concepção de poesia de cada um começa a mudar. No caso de Cacaso (cacófato irresistível...), Chico Alvim, e Rubens Rodrigues há um salto entre o primeiro e o segundo livros, de entremeio a um relativo silêncio que bem prenuncia a ruptura. Isso já se dera anteriormente com José Paulo Paes e Sebastião Uchoa Leite, que também haviam descido da metafísica para o rés-do-chão, passando em alguns anos dos cantos da inocência (relativa...) para os cantos da experiência.
187
Embora devamos sempre ressaltar as significativas diferenças entre os poetas citados, temos em mente, em síntese, que todos foram marcados por três fortes incisões em suas personalidades poéticas: 1) a leitura intensa dos modernos (que em todos deixou marcas maneiristas de aprendizes, especialmente em seus primeiros livros); 2) a guinada concretista (à qual reagiram fortemente contra ou a favor, mas que certamente inscreveu-se - conscientemente ou não - em suas poéticas); 3) e, por fim, o contato com o “coloquialismo anti-literário”, que irrompeu como onda tanto nos poetas pós-tropicalistas quanto na geração da chamada poesia marginal latu sensu (e aqui, com muitas aspas, porque nos nossos poetas exprime-se um eu cindido e reflexionante – sempre se olhando meio de fora - contrário a qualquer imediatismo espontâneo da linguagem). Sejam os mais conscientemente construtivistas, de linha cabralinoconcreta, sejam os soi-disant subjetivistas, de linha bandeiriana, todos eles se voltaram contra e enferrujaram de propósito seus instrumentos. Conforme observou Rodrigo Naves (1996), assim como Amílcar de Castro criou esculturas que exprimiam desconfiança em relação ao racionalismo construtivista sem negálo, ou porque eram feitas de matéria enferrujável e opaca, ou porque, muito pesadas, revelavam a inflexibilidade de cada dobra e corte, constituindo-se mais em relevo da duração dificultosa do que em libelo a favor da técnica e do progresso, característico do leve e brilhante alumínio utilizado pela geração anterior (e desse modo manifestando os obstáculos ao modernismo reformista e desenvolvimentista, que foram crescendo ao longo dos anos 60), também estes poetas corroeram a própria crença na representação auto-confiante, não recaindo nem na ilusão da expressão direta de si mesmos nem numa fórmula impessoal, uma vez que o veneno mental se infiltrava como ressentimento no poema. O eu que suspeita de si e volta-se ironicamente para sua aparência alheia, “signo do dilaceramento da consciência” (Susuki, 1998: 163) ressurge no “espelho” gauche esquivo e auto-paródico de Paes (“eu/ue//mas a barba/feita/a máscara/refeita/mais um dia/aceita”), nos pacotes de veneno ácido de Leite (“eu não sou eu/nem o meu reflexo”), na dúvida ciumenta sobre si mesmo em “Aquele no espelho a quem me assemelho”, de Rubens Rodrigues Torres Filho, nas indecisões brincalhonas de Cacaso sobre seus fracassos amorosos, em versos malandros de Leminski ... enfim, o tema da auto-ironia vai ressoar em todos.
188
Alguns são jogos de palavras, brincadeiras, e outros, bem sinistras considerações sobre o fim, variando do chiste leve ao sarcasmo do humor negro. Se, no entanto, descendem e se assemelham aosprit dos salões iluministas ou do
witz alemão dos jovens românticos, deles se distinguem por não depender de um constante amparo da amizade civilizada – a “sinfilosofia”, a que se referia Novalis -, e de uma crença no progresso das idéias que a urbanidade mais refinada supõe ser o apanágio da fé na futura democracia ou na revolução. Tanto a formação goetheana quanto a educação rousseauísta eram ambas generosas ao acreditar na possibilidade do amadurecimento integral do homem, em contraste com uma sociedade por vezes hostil, mas com vias possíveis para a transformação. Por mais críticos que possam ser alguns dos escritos dos poetas-teóricos românticos, não deixaram de crer na importância da tentativa de diálogo, e a ironia participa, assim, das estratégias retóricas de disputa pelas idéias. Uma das diferenças de grau entre a ironia dos românticos e a nossa, contemporânea, é que se atingiu um ponto de pesadume e negatividade como não encontramos tão descrente antes. Se a ironia, desde Sócrates, queria acordar o senso de justiça dos jovens, acreditando na função pedagógica do seu caráter dialógico, Friedrich Schlegel, por sua vez, defendia que, se não existe público, cabe ao poeta filósofo criá-lo, agindo pela recusa aos males presentes e assim incitando à reflexão. Hegel, igualmente, tratará a ironia como o momento de negatividade no processo dialético. Num caso e no outro, a ironia conserva um emprego educativo para fazer-se antítese de ideais postiços ou ilusórios tendo em vista uma melhoria adiante. Ainda, a fé no aspecto redentor da história se expressa, no caso romântico, na defesa do uso do fragmento, forma em si mesma agressiva ao todo falso, com o intuito de fustigar o sistema para desmascarar suas contradições, na esperança de completar-se num futuro ideal. No entanto, a raiz comum entre as formas de ironia perduram na autoparódia, no espírito de contradição e no paradoxo zombeteiro das pseudototalidades dogmáticas. Peter Szondi (1975) assinalou nos irmãos Schlegel a projeção de uma filosofia da história, em que se daria uma evolução por etapas. Embora a modernidade fosse um tempo de sofrimento, sabia-se intermediária na busca do “universal progressivo”. O fator crítico embutido na ironia serviria como acicate – exercício preparatório – para o projeto do futuro. Assim, o fragmento romântico não era tão somente resíduo e ruína (como parecem muitos poemas de Alvim e 189
Uchoa Leite), mas sobretudo pergunta, antecipação e promessa, manifestação da crise passageira, transitória e necessária na dissipação das ilusões.191 Resiste, em F. Schlegel, a crença na natureza infinita em contraste com a finitude do ser humano que, devido a esse desequilíbrio, torna-se irônico, mas ainda graças a ele, confere dinamismo a suas criações. Ater-se a um eixo que se movimente entre o entusiasmo e a crítica, tal o gesto paradoxal exigido do artista, que por vezes eleva-se ao sublime e por outras sucumbe ao relativismo ou mesmo ao niilismo.192 Por isso – volto a insistir - a significativa diferença de grau em relação aos nossos poetas é que estes se negam a enxergar além do instante a que a vida se reduziu no qual não cabe mais uma transfiguração redentora. Desconfiando do que está engessado e esvaziado na cultura, nem sempre deparam com algum ideal realizável que resista à corrosão de seu ácido depurador. A princípio, gostaria de considerar, dentre eles, duas tendências aparentes, que podem conviver no mesmo poeta, em momentos diversos de sua obra: 1) Alguns praticam a ironia como forma de contradição dialética, que parece mais “cidadã”, isto é, escatológica e utópica – acreditando numa direção transformadora para a história, portanto mantendo no fundo um tom pedagógico dramático, típico do eiron instruidor/destruidor. 2) E outros, cuja ironia parece descrer do futuro, de si mesmos e de qualquer explicação salvífica, elegeram a reiteração da má infinitude e o ceticismo como tom. Para nomear essa segunda vertente escolhemos o termo “modernismo póstumo”.193
191
É verdade que a insistência na cisão interior e no inacabamento da forma pode prenunciar uma impossibilidade de objetivação. Lukács (2000: 92) reflete sobre a constante oscilação entre condicionamento e alheamento mútuos de subjetividade problemática e mundo externo contingente: uma luta constitutiva das formas românticas de literatura que não pode ser superada, pois “a ironia do escritor é a mística negativa dos tempos sem deus” e, a partir de seu movimento de escavação constante desvela-se tanto a ausência de sentido quanto o sentido a se fazer. 192 Li estas reflexões no Capítulo 2 de Muecke (1995). 193 Expressão cunhada por Roberto Vecchi (2004) para substituir o termo pósmodernismo, a fim de enfatizar a conotação de duplicidade do atual momento: aproveitamento de uma herança, resto que persiste culturalmente, fim que é continuidade de uma época – como o filho que, em lugar-tenência, se responsabiliza pela transmissão da memória do pai morto antes de seu nascimento. Refiro-me às suas ideias no texto sobre Francisco Alvim.
190
Discernimos acima nesse movimento de mudança de orientação existencial, duas águas que se misturam por vezes: de um lado, obras em que reencontramos ecos do espírito galhofeiro do modernismo, o poema-piada, cuja intenção é geralmente apontar-nos um disparate aceito como lugar-comum, demonstrando seus aspectos grotescos, deformados, incongruentes
194
– e nisso
ainda reconhecemos certa feição didática, posto que moleque – e, de outro lado, obras em que a graça é mais soturna. As inversões típicas do humor são, nesse segundo caso, melancólicas ou agressivas. Se há riso, este é de anedota gasta e rançosa, como assinalou Chico Alvim mais de uma vez ao diferenciar-se da “piada auroral dos modernistas”.195 Os mais velhos, Paes e Sebastião, ao mergulharem na crise do verso e do anti-lirismo, distinguem-se por constantemente assinalar a falta de relevância da arte no mundo. Embora seus temperamentos fossem muito diferentes, pode-se dizer que o procedimento ligado à entropia e à desconfiança lhes é comum. Mas, acredito, a ironia de José Paulo Paes inclina-se geralmente para o primeiro tipo, como um acicate zombeteiro das instituições autoritárias (família, religião, política, consumo), voltada para a desmistificação certeira. Nesse sentido, retêm laivos da utopia romântica de um tempo futuro que supere a negatividade antitética desse presente passageiro: fase de reflexão crítica com vistas à construção de um mundo mais justo e livre. Mantém-se, em Paes, fortemente, a presença do chiste, do humor descompressor, do trocadilho evidente, da magnificação oswaldiana das contradições (ao lado, bien entendu, da redução minimalista da forma) e, por vezes, o choque entre melancolia compassiva e acidez irônica drummondianas, embora o tom de sua piada possa soar bastante desiludido. Como se o poeta exercitasse essas duas direções, praticando ambas as formas de ler seu lugar histórico impotente e por isso sarcástico.
194
Remeto ao ensaio de Roberto Schwarz, “A carroça, o bonde e o poeta modernista” (1987), no qual o crítico examina o tipo de humor particular do poema piada de Oswald de Andrade. 195 Expressão utilizada tanto em entrevista feita por Heitor Ferraz de Mello (2001: 266), quanto em entrevista realizada por Sérgio Alcides (2002: 201), ambas reproduzidas parcialmente no texto sobre Francisco Alvim.
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Sebastião: o resíduo ainda resiste Por sua vez, os jogos de linguagem de Sebastião Uchoa Leite não suscitam no geral a menor vontade de rir – uma “lucidez amarela”, diz ele. “A minha consciência é o verme/e eu sou o cria cuervos” A sombra de um mundo monstruoso, de crimes e seres aberrantes dá a medida da história como perda, desgosto e tédio. O pó do tempo é companheiro constante, a poesia “é a máquina do nada”. O infra-herói que “é todo coação” (ao invés de coração) e “resíduo de varredura” lembra diretamente a definição do modo irônico, para Frye, em que olhamos de cima para baixo para enxergar o (anti) herói: “ao vencedor as baratas”... O pus e o dejeto são o alimento do vampiro, que se dirige a nós com hostilidade: leitor, “meu não-semelhante”. Há uma afirmação reiterada de imagens sinistras, que se repetem com variações numa perspectiva fixada no mal sem saída, evocando um presente estático como aqueles mecanismos auto-destrutivos de Tinguely que ficam se batendo até virarem poeira: a anti-obra. O chiste “ranzinza”, como o adjetiva Luiz Costa Lima (1991) é desconfiado em relação ao próprio poema: não pretende agradar, antes provocar desprazer, agredindo e agredindo-se. Por sinal, assim caracteriza Freud o humor negro (1927). O leitor é interpelado e nocauteado por uma voz poética que deseja anular a si mesmo e ao seu discurso, e mais ainda o interlocutor. O eu-poético é, nas suas palavras, o próprio “pássaro crítico” que zomba de si em “espirro musical”, destruindo “a máquina de metáforas” – numa “poética do espirro”, “irrisão do ser”, oposta ao hausto da inspiração: “vômito amargo/Que vem/Do âmago/Do vácuo”. Este sujeito ataca a todos, “do nada onde somos”: vazio de dentro, “vazios de fora”, “fala da voragem/que nos devora”. A palavra no poema é, enfim, “idéias-dente que mordem e se remordem”, como “ecos de uma cisterna sem fundo”, num mundo em que tudo - sujeito, palavra e objeto - tornouse pó e nada. Ainda assim, continua mordendo, porque “os poemas são o remorso dos códigos” (“Biografia de uma idéia”, Antilogia, 1979). Estaria ele parafraseando a frase de Sartre, “o homem é o remorso do mundo”? (Como se sabe, etimologicamente, remorsus em latim é o particípio passado de remordere, tornar a morder).
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Davi Arrigucci Jr. descreve, em sua densa resenha do livro A espreita (2000), um eu poético como figura “que vigia e se vigia, espia o mundo e a si mesmo sem descanso, enrodilhada nas dobras de si mesma como a víbora, encoberta nos desvãos das sombras que ela própria devora, convertendo-se na própria doença.” (2010: 76). Retomando a imagem do remorso, cita a seguir os versos “Qualquer consciência/É uma doença/Remoendo-se em segredo.” (“Uma voz do subsolo”). Assim, ao escavar-se, na tensão de ser o que recusa ser, o sujeito parece “Sufocado em si mesmo e voltado pra o mundo, mas ao mesmo tempo contra o mundo e enfiado em si” (p. 74). De forma análoga, Costa Lima assinala um elemento fundamental de contradição na utilização da ironia pelo poeta, que “se torna um sêmen destrutorprocriador” (2002: 230 e ss.) porque, da negatividade máxima da morte nasce Eros, como Drácula que se abate amorosa e destrutivamente sobre sua presa. Tanto sujeito como objeto estão em conflito e ao ponto de aniquilar-se numa oposição tão extrema que o eu se diluiria não fosse a consciência alerta de si: um eu que se repudia, ao mesmo tempo que espreita e ataca, mordendo como vampiro ou cobra, inoculando veneno. Nas palavras do crítico, mantém-se, na poesia de Sebastião, uma rejeição do eu que quase consegue dissolvê-lo completamente, mas ainda assim o conserva “destituído de toda a pompa e glória”. Por outro lado, “um individualismo intransigente”, a auto-análise mordaz, conduz a uma “transitividade intransitiva”, como se a distância e o ataque fossem ainda formas de interesse no mundo, num desejo de fusão/destruição lírica: “a ironia sustenta a consciência ao mesmo tempo que ri zombeteira de ela se considerar o centro das coisas.” O poema assoma como fome irônica, dentada crítica, doença que se espalha no organismo carcomido, e por isso mesmo seu cerne mais íntimo. Em entrevista de Uchoa Leite concedida a Adolfo Montejo Navas (2003), este menciona a percepção de Leminski quanto à tensão política na sua poesia, que nela sustentaria aversão pelo regime e pelas idéias dominantes no capitalismo. Que sua poesia manifesta completa recusa do sistema vigente, não resta dúvida. Mas que tal posição ultrapasse um feroz individualismo, alcançando uma dimensão coletiva, muito raramente. Leio trecho de uma carta do poeta dos anos 70, que terminava fazendo considerações sobre o clima da época: “Tenho acompanhado a evolução dos acontecimentos, sobretudo estou atento ao que acontece na área estudantil. Fui umas duas ou três vezes à PUC do 193
Rio, e lá peguei publicações que eles distribuem. Incrível! Os estudantes ainda acreditam nas mesmas coisas em que nós, há uns 20 anos atrás, acreditávamos. E usam quase que a mesma linguagem, as mesmas palavras. Eu disse “nós acreditávamos”, isto é, nossa geração. Eu pessoalmente evolui para um pessimismo que custo a combater. Termino citando Leopardi: ‘Quella vita ch’é una cosa bella, non è la vita che si conosce, ma quella che non si conosce; non la vita passata, ma la futura.’ Que é que você acha?”196 Alguns anos depois, Sebastião parece responder ele mesmo a esta pergunta, num poema de 1984 que começa assim: “a vida futura/aquela que não se conhece/não existe.” Em “Vida é arte paranóica” ( Cortes/Toques, 1983-1988), o eu poético representa-se como um fugitivo vigiado e perseguido, até ser alcançado e caçado, sem salvação. Mais tarde, ao escrever sobre os Opúsculos morais de Leopardi, Sebastião resume o pensamento do poeta italiano comentando: “A uma vida sem ilusões da espécie humana, o que opor quando se defronta a consciência crítica com a mais típica das ilusões, que é a da vida futura?” (2003: 107). O sujeito proíbe-se de crer no devir transformador do tempo. Para finalizar, quero confirmar a percepção de que mesmo a extrema negatividade não impossibilita a criação poética. Na linha cabralina, ao menos desde a “Antiode”, o poeta prefere o desbastamento da flor ao nível de suas intestinações mais concretas, à adoração da “surda e silenciosa, e cega e bela e interminável rosa”, de Cecília. Proclama seu desejo de real limpando toda galharia que esconda algo obscuro, talvez metafísico, desnudando qualquer folhagem que mistifique o mundo à sua volta. Isto não impede a beleza (em Cabral), mas ela precisa ser forjada a partir do esforço de composição. No caso de Sebastião, apenas a desconfiança fez escola. Este eu radicalmente anti-lírico suspeita do próprio ângulo do olhar e descrê, portanto, do seu papel de vidente. Sem vedar, porém, todas as frestas que permitem que o poeta espie, mesmo que parcialmente, pelo buraco da fechadura. Ao assumir o papel de vampiro, se tampouco almeja pertencer ao fluxo temporal de uma história doente, também se recusa a morrer, sombra à espreita, cuja presença paradoxal no seu amor e ódio se instila como veneno-vacina na circulação da vida presente, transmitindo-se a nós através do poema-mordida. 196
Carta a Alfredo Bosi, datada de 1977.
194
Obras referidas dos poetas citados: - Alvim, F. Elefante. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. - Torres Filho, R.R. Novolume. São Paulo: Iluminuras, 1997. - Leite, S.U. Obra em dobras. São Paulo: Duas Cidades, 1988. - Leite, S.U. A espreita. São Paulo: Perspectiva, 2000. - Leite, S.U. “Poesia e verdade em Leopardi”. Crítica de ouvido. São Paulo: Cosac&Naify, 2003. - Paes, J.P.P. Um por todos. São Paulo: Brasiliense, 1986.
Bibliografia crítica: - Alcides, S. Entrevista com Francisco Alvim. “Ela se finge, ela se disfarça, ela é muito sonsa”. Rodapé. n.º1. São Paulo: Nankin, agosto de 2002. - Arrigucci Jr., D. O guardador de segredos. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. - Bracher, Quental, J.G., março Sussekind, F. “Sebastião Uchoa Leite: entrevista”. 34 Letras , n. 7,B.,Rio de Janeiro, de 1990. - Freud, S. “Os chistes e sua relação com o inconsciente” (1905) e “O humor” (1927) e Obras psicológicas completas. Vol. VIII e Vol. XXI. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago Ed., 1980. - Frye, N. Anatomia da Crítica. Trad. Péricles Eugênio da S. Ramos. São Paulo: Cultrix, 1973. - Hartog, F. “Tempo e história: como escrever a história da França hoje?”. Trad. A. C. Fonseca Brefe. História social . Revista dos pós-graduandos em História da Unicamp, n. 3, 1996. Versão eletrônica: www. ifch.unicamp/br - Lima, L. C. “A poética átona de Sebastião Uchoa Leite”. Pensando nos trópicos (dispersa demanda II). Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1991. - Lima, L.C. “Sebastião Uchoa Leite em prosa e verso”. Intervenções. São Paulo: Edusp, 2002. - Lukács, G. Teoria do romance. Trad. J. M. M. de Macedo. São Paulo: Ed. 34 e Duas Cidades, 2000. - Mello, H.F. O rito das calçadas (Aspectos da poesia de Francisco Alvim) . São Paulo: FFLCH-USP, dissertação de mestrado, 2001. - Muecke, D.C. A ironia e o irônico. Trad. Geraldo Gerson de Souza. São Paulo: Ed. Perspectiva, 1995. - Navas, A. M. “Última entrevista de Sebastião Uchoa Leite”. Site Weblivros. Acesso 30/11/2008. - Naves, R. A forma difícil. Ensaios sobre arte brasileira. São Paulo: Ed. Ática, 1996. - Pereira, C.A.M. Retrato de época: poesia marginal – anos 70. Rio de Janeiro: MEC/Funarte, 1981. - Schlegel, F. Conversa sobre a poesia e outros fragmentos. Trad., pref. e notas de Victor-Pierre Stirnimann. São Paulo: Ed. Iluminuras, 1994.
195
- Suzuki, M.. O gênio romântico. Crítica e história da filosofia em Friedrich Schlegel. São Paulo: Fapesp e Ed. Iluminuras, 1998. - Schoentjes, P. Poétique de l’ironie. Paris: Editions du Seuil, 2001. - Schwarz, R. Que horas são? São Paulo: Cia. das Letras, 1987 - Szondi, P. “Frédéric Schlegel et l’ironie romantique” em Poésie et poétique de l’idéalisme allemand. (trad. Jean Bollack). Paris: Gallimard, 1975. - Vecchi, R. “O real como projeto poético de Elefante de Francisco Alvim”. Em Vecchi, R. e Rojo, S. (orgs.) Transliterando o real. Belo Horizonte: UFMG, Poslit, 2004.
196
Rubens Rodrigues Torres Filho: verso e avesso* Entre a fala e o desespero a curta canção que nasce...
(“arte poética (sic)” )
Um aspecto que nos intrigou, quando começamos a ler a poesia de Rubens Rodrigues, foi o seu isolamento em relação aos agrupamentos estéticos aguerridos de sua geração e contexto. Tendo começado a publicar no começo dos anos 60, nunca se ouviu falar de qualquer aproximação do poeta – morador de São Paulo – com a vanguarda concreta ou práxis. Nem muito menos parece ter afinidade estética evidente com o neo-surrealismo um pouco beatnik da hoje chamada “Geração 60” ou “novíssimos”, também localizada em São Paulo, centrada principalmente em Roberto Piva e Cláudio Willer. Além disso, não manteve relação com o grupo formado à volta da Revista Civilização Brasileira advindo dos Violões de Rua – nunca fez poesia explicitamente política. E, apesar do gosto pelo coloquial, não consta que tenha estabelecido qualquer contato maior com os chamados poetas marginais do Rio. Amizade com um ou outro (como se depreende de um poema em que se refere a Leminski – laço este, aliás, que mais ressalta a sua independência), ou a poetas ligados ao Massao Ohno, como Carlos Felipe Moisés e Celso Luiz Paulini, aparecem na forma da sociabilidade intelectual, mas não constituem sinal de linguagem comum. Num sentido mais largo, porém, não está imune a alguns traços característicos de outros solitários da época. O isolamento lhe trouxe a vantagem da liberdade, como se pode depreender num depoimento seu em que se diz leitor influenciado por muitos, “de Jorge de Lima a Augusto de Campos”. Justamente por não se identificar com grupos, pôde articular-se ao momento cultural de maneira ímpar. Pretendemos recortar alguns aspectos da poesia de Rubens Rodrigues Torres Filho, com a intenção de aproximá-lo do ar do tempo, a partir de certo *
O texto contou com a leitura de Ivone Daré Rabello e Fábio Weintraub, aos quais devo o privilégio do diálogo crítico, raro e precioso, e a ambos agradeço a agudez da atenção e os comentários certeiros, que espero haver honrado. Fiz várias alterações relativamente à publicação inicial nas revistas Terceira Margem (ano VIII, n. 11. Rio de Janeiro: UFRJ/Faculdade de Letras, 2004) e Diacrítica (n. 18-19, vol. 3. Braga (Portugal): Universidade do Minho, 2004-2005).
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flanco. Motivou-nos a leitura de Novolume (1997) em que toda sua produção até aquela data foi recolhida. Insisto na falta de ambição de nossa leitura, que pretende comentar poucos ângulos dessa obra bastante complexa. É necessário caracterizá-lo, desde logo, também como filósofo. Embora em entrevistas sobre a obra poética ele pretenda tomar distância em relação aos estudos, tendendo a minimizar sua possível influência nos versos – como se o ranço acadêmico fosse indesejável neste espaço mais livre e subjetivo – tal hesitação atesta a profundidade de sua reflexão, que não se quer externa à fatura do poema. Não há “influência” dos conceitos filosóficos na sua poesia: isto se dá mediado pela imagem, pelo som, pela disposição mentada do material. Sua reflexão mais existencial embebe a criação poética, recusando, porém, todo pedantismo erudito conscientemente, a ponto de termos a impressão, lendo os poemas, de que ali ele deseja desmanchar o falso sério que a universidade poderia incorporar à imagem de escritor. Ao redigir artigo sobre Schelling, enfatiza o quão importante foi o símbolo em sua arquitetura de pensamento – algo que não apenas significa mas também é: a imagem em que se dá a confluência da idéia e da coisa (o universal concreto), e por isso não pode ser reduzida a uma explicação meramente conceitual. Comenta ainda a utopia idealista de reunir filosofia e poesia num só corpo, numa convergência em que “a filosofia reencontrará suas srcens” alcançando “fulgurationes do infinito nas coisas finitas”.197 Enfim, escolheu, dentre os teóricos, aqueles que primeiro valorizaram a poesia como modo superior de conhecimento, sem que, no entanto, a diferença histórica tivesse sido apagada por anseios românticos de totalidade. Em alguns momentos, um trabalho fino e finório com a forma quase barra no leitor a percepção deste. A construção se submete a uma escavação do sujeito que, antes de tudo, disfarça suas intenções. Por vezes, algo de brincalhão se insinua no tom aparentemente sério, como nestes versos que imitam a gagueira da voz poética:
197
Torres Filho, R.R. “O simbólico em Schelling” São Paulo, Revista Almanaque, n. 7,
respectivamente pp. 91, 92, 96. Tendo se dedicado toda a vida aos trabalhos acadêmicos, Rubens tematiza, em seus ensaios, questões ligadas à arte – especialmente por tratar, o mais das vezes, das idéias dos pensadores do grupo pré-romântico e romântico alemão.
198
Você me olhou. Só que isso, você já sabe, me deixa gago, embaraçado. Feito a meada de que perco o fio. Quanto mais encontrar agora a frase certa e alerta para tocar-te, sem perder o humor. Como acertar o gesto, o dito que entre nós estabeleça aquela transparência de corações que seria algo tão bom, tão oportuno neste momento, para algum dos dois?
(“Cá, entre nós”, Poros, 1989) As rimas toantes e imperfeitas nem parecem se ecoar, dados os obstáculos para o ritmo tropeçante, impedindo justamente aquela “transparência de corações” almejada, tão rousseauísta. Mas a ironia, também romântica, esta sim comparece... O que consideramos a peculiaridade distintiva dos versos – esta autoconsciência que desvela o estreitamento do indivíduo e de seu tempo, mordendo-se no osso – ou atinge a sua expressão cabal em poemas de densidade do pensamento e da imagem (e não menos qualidade na fatura), ou resvala no trocadilho aligeirado, que consome os paradoxos em folguedos de pouco fôlego. Talvez essas oscilações se devam ao próprio horizonte de problemas que esta obra propõe, como “defeitos” inerentes à lúcida extensão constrita de seus movimentos. Seguindo sua trajetória por um fio cronológico, observamos que aparentemente Rubens proveio de um lirismo tardomodernista epigonal, praticado em São Paulo nos idos da década de sessenta, com influência francesa de suave surrealismo amoroso éluardiano, e enveredou mais tarde pela concisão e pelo humor melancólico. O modo como se deu o amadurecimento de seu estilo de escrita particular não foi paulatino e gradual, tendo transitado de uma linguagem mais elevada e rarefeita nos anos 60198 a outra, frequentemente irônica e elíptica, a partir de 80. No segundo livro publicado, em 81, depois de dezesseis anos de silêncio editorial, os poemas indiciam uma produção realizada em diferentes momentos. Não sabemos quando foram compostos, pois não há datas apostas, mas o fato é que 198
Investigação do olhar (1963); Nem tanto ao mar (1965) e Poema desmontável (196567) – todos incluídos em O vôo circunflexo (1981).
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seus diversos tons e modalizações sinalizam uma fratura significativa, que depois se confirma nos livros posteriores, coincidindo em parte com o tipo de variação sofrida pela tendência anticonvencional característica dos anos 70. Talvez todo esse tempo sem publicar tenha sido sintoma de insatisfação com o estilo poético anterior. Vê-se, coincidentemente, Cacaso e Chico Alvim também estrearem com livros afins a um modernismo convencionalizado, em meados dos anos 60, e passarem abruptamente para o registro intitulado marginal nos livros posteriores, a partir da década de 70. (Claro que esse rótulo é cheio de imprecisões, e não corresponde totalmente ao que cada qual realizou depois, e nem mesmo à sua produção completa daquele período. Mas serviu para definir um sentimento grupal nos anos 70 e esclarecer a atitude de crise mais existencial, embora, a despeito de algumas veementes afirmações espontaneístas em verso e prosa, muitos poemas não confirmem o propagado desprezo à “literatura” – e nem mesmo prescindam dos tradicionais recursos poéticos). Em Rubens, a vertente irônica típica de alguns poetas da época o aproxima também de José Paulo Paes, Sebastião Uchoa Leite, das piadas de Leminski e, como assinalado, do tom coloquial de “marginais” intelectualizados como Cacaso e Chico Alvim. Mas este não é nem de longe seu único veio, tendo escrito poemas em que a fantasia, o elegíaco, o reflexivo grave, se aliam ao refinamento de uma poética que não prescinde do trabalho de ourivesaria sonora.
O vôo circunflexo (este livro mais maduro de 81) é título que bem prenuncia o seu conteúdo: ora a ironia um tanto chocarreira, ora um alçar de asas discreto, em transfiguração medida e refletida, a alongar-se pouco para logo cair, pesado, sobre si mesmo. “Imitação de Mozart” abre-se assim: É bom morrer d’amor mas não viver do referido material. As flores abrem asas de manhã à noite pousa um súbito metal.
Um lirismo de lampejos, súbito desconsolado pelo entrave, mas que não desiste de existir nem de manter a consciência de que o vôo tem de ser curto, sob pena de incorrer em desmesura:
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Um pedaço de síntese, um arco, um crescente, se tanto no canto do olho demora agora por enquanto por encanto.
(segunda estrofe de “Elgin Crescent”) A tematização da precariedade da construção poética e de seu lugar pouco assegurado não o faz por isso negar a possibilidade do encontro de arco e lira, posto que tenso e veloz: (...) Amor, feixe de nervos, doce harpa tangida por rápidas ternuras, bem sei qual esplendor tu sonhas com empenho onde pousar, pacificado, teu marulho: figura clara que na água iguala o peixe ao vôo, lúcido de dor.
(“Janela da lua”) Voar de peixe precisa ser rápido, mas nem por isso menos glorioso em seu momento de desafio, confirmado no breve fulgor pela sonoridade rica do dístico final. Mas a fresta possível para a anulação da gravidade não permite quimeras de eternidade. O que “pede licença para ser pássaro” é uma poesia de restrição: “Meu canto se agrada do agudo e do escasso.” (“linguagem”), ou ainda: “O pássaro do poema/abre as asas, orvalhadas/ou molhadas de suor?” Uma pergunta que denuncia o esforço em relação ao próprio vôo poético, reconhecendo-se quase sem fôlego, porém sonhador. Como o pássaro de Marianne Moore, “grown taller as he sings” ou o pássaro de Cabral cantando a palo seco, a intensidade da busca aguça o canto, que esplende e silencia. A água contida, que flui e sem demora se estanca, é outra figura reiterada como imagem adequada para esse instante de abertura de asa a se recolher tão logo se expande. Calhas, fios, navalhas – são as palavras agudas que balizam o corte e a condução estreita do espaço de liberdade. Mover-se parcimoniosamente é a melhor possibilidade em conjuntura de encolhimento: (O que vale: o salto dentro amadurece)
(“pari passu”) 201
A seguir, em “cantiga partindo-se”, como em muitos poemas desse livro decisivo, uma atitude desiludida em relação aos cumes elevados do lirismo confirma a postura modesta frente à existência: Deixemos de lado o muito que se perdeu nos abismos entre a frase e o seu recado e se esvaiu nesses vãos. Um pouco ficou retido nas malhas da coerência. Dele tiramos paciência, levedo de nosso pão.
Novamente, uma poética desenganada que tende ao rés-do-chão, com ressonâncias cabralinas, a reconhecer a importância de ater-se ao resíduo, também ele fermento, quem sabe. A oscilação necessária entre afirmar a positividade do que restou e a percepção do que imensamente se esvaiu vem reverter, a todo momento, uma possível acomodação na nostalgia resignada. A partir daí se finca pé e se continua, embora reconhecendo sem comiseração o parco resultado possível. N’A letra descalça (85), seu livro seguinte, Rubens se diverte parodiando formas consagradas num palavra-puxa-palavra e rima puxa rima. O humor bobo de piada velha predomina, quando a poesia alia a verve da “sacada súbita” – como a define Davi Arrigucci199 – ao mal-estar. Na própria abertura do livro: É tudo – solilóquio fascinado. É nada – solidão que se esvazia. É isto – pensamento pé na estrada, poeira ao sol poente. Pó? Pois ia.
O excesso de paralelismos confere à quadra um ar gnômico de sabedoria proverbial. Chistes gastos para tratar da desimportância de tudo, que revelam a consciência secreta do desejo decepcionado da maior parte de sua “pois ia”. Dele bem percebeu Cacaso: “Apesar do jogo lúdico e da gratuidade que percorrem o livro, e que são requisitos da criação artística, o seu virtuosismo parece disfarçar
199
em resenha sobre Retrovar , O Estado de São Paulo, 30/10/1993.
202
um niilismo mais profundo que vibra como uma sensação de vazio na experiência final do leitor.”200 Deparamo-nos com um momento forte de relativização de si em “(duplo) resíduo”: Antigamente eu acreditava nos direitos de minha subjetividade soberana. Hoje dia nãosem há mais direitos nem esquerdos: um fioem apenas, espessura, marca o limite do mundo. As árvores de Montparnasse – que sentem (na cor) o outono – tem mais folhagens que a alma. Desta, o verso diz: está vazia; tem tais ou tais compartimentos; tal deles vai pior, tal menos mal. Mas o trabalho da calvície parte de uma problemática diferente e vai em direção oposta ao da navalha.
Aqui se patenteia a consciência auto-irônica da reviravolta epistemológica, talvez do existencialismo ao estruturalismo, para quem, como ele, viveu 68 em Paris e lá foi amigo de Foucault. A descrença em relação a quaisquer projetos utópicos, no amor ou na política, torna-se nele cada vez mais assídua. A calvície que assola árvores outonais assim como os compartimentos da alma (cômoda com gavetas de objetos fanados e inúteis?) se alastra lenta, enquanto, com violência, outra força avança... Este é, na verdade, um livro alentado, em que se revelam muitas facetas de Rubens. Seria injusto reduzi-lo a apenas estes poemas mais “humorísticos”, quando se apresentam tantos momentos líricos e meditativos – à espera de outro leitor, a quem passo o bastão. A epígrafe de Burroughs, em Poros (1989), resume o anseio de alçançar o que é visceral e liberar-se de discursos alienados, além do âmbito do corpo: “Language is a virus from outer space. Listen to my heartbeat”. O importante, o que de fato existe, é esse ritmo do coração: como a voltar ao essencial (“Perto do coração não tem palavra?” diria Ana Cristina poucos anos antes – e não é casual a aproximação: ambos desconfiam dos discursos, da História, das aspirações
200
Brito, A. C. “Poesia e universidade” em Areas, V. (org.) Cacaso. Campinas e Rio de Janeiro: Ed. Uni camp e Ed. UFRJ, 1997, p. 258.
Não quero prosa.
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grandiosas... e ela também lia os beats, embora não Schiller, como Rubens: “Ah, quando a alma fala, já não é a alma que fala”...). O título remete à tentativa de contato num espaço restrito, como se a palavra fluísse de corpo a corpo. Sempre descrente em relação às sublimações da arte, rejeita o “inatingível esplendor” literário, do qual “o real se retira humilhado”(“o lamento”). Um poema que sintetiza o desejo de interação plena com o mundo é “Selos”, último do volume: Antes de poder querer pousar as mãos, selos precários, sobre a pele difícil desta tarde, já os olhos multiplicam por si mesma esta paisagem, que se pôs alerta. O mergulho é tão vôo e tão exato o prumo que os perfis da folhagem se corrompem para que sua cor, densa, se assanhe. Amar, agora, se assemelha a um vento forte e silencioso como a parte queuma se cantasse desacompanhada de canção, em pura voz, sem sequer o socorro de qualquer som, que lhe desse matéria.
Mãos e olhos almejam, cuidadosamente, a “poder querer pousar” sua capacidade de apreensão sobre a paisagem – tarefa escusa, posto que ela se retrai e se modifica assim que tocada pela atenção da voz lírica, de tão delicada. “Mergulho” e “vôo” (metáforas já visitadas) figuram a tentativa de captura pela percepção que, por si mesma, altera o ambiente. “Amar” a tarde seria louvá-la sem impor a voz pessoal, abandonando-se ao vento emanado das coisas e fundindo-se a elas, como um selo colado ao papel. O ciciar da aliteração procura alcançar o som invisível dessa música sutil que não assusta ou eriça nem a mais mínima folha. Tal é a meta de um eu lírico desapegado de si, que se entrega ao canto, como pretendia Valéry: “O alvo é criar o tipo de silêncio ao qual o belo responda. Ou a linha pura do verso, ou a idéia luminosa... Então o verso parece pertencer a si mesmo, nascer da necessidade”. 201
201
Citação traduzida a partir do inglês, de uma coletânea de ensaios de poetas sobre o ofício da escrita: Valér y, P. “A poet’s notebook”, em Gibbons, R. (org. ) The poet’s work . Boston: Houghton Hifflin, 1979, p. 172. Ainda desta antologia, uma frase muito a propósito, de René Char: “Um poema é a realização do amor – desejo que permanece desejo” (“The formal share”, op. cit., p. 62)
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Neste e nos outros livros, comparecem inúmeras vezes pequenos textos em prosa, de gênero indefinido, com forte marca rimbaldiana. Talvez a ambição do poeta seja, como ele mesmo afirma por meio de alguns versos, ultrapassar a fronteira divisória entre as formas literárias enrijecidas pelos séculos, nelas introduzindo o amálgama que a modernidade romântica permitiu. Ao menos, buscando ampliar o espaço entre opostos considerados estanques, tais como os tons alto e baixo, como expõe na primeira parte de “sem jeito” (não obstante, com rimas muito jeitosas): O poema, essa cicatriz da velha ferida dos gêneros, entre prosaica e feliz - indigna, pelo menos – oscila, pela via-não, entre a corrosão e o êxtase [...]
Retrovar (1993) o volume publicado poucos anos depois, segue direção análoga, pretendendo desnudar o ritmo do coração e seu pulsar erótico ou solitário, suspeitoso da palavra e de quaisquer sistemas. Um acolhimento amoroso seria a mais alta realização. Mas a consciência da falha precede qualquer veleidade de um possível sucesso. Mundo exíguo, na medida do umbigo, sua “filosofia” de vida é “o xis da dêixis”: Aqui e agora o now e o here formam meu pícolo nowhere. – Onde é aqui? – implora agora (ambíguo umbigo) o que é. Aqui soçobra este now frágil. E agora, no fundo do poço, José?
Sem pesar o gosto pelos trocadilhos infames (now/here – nowhere, now – nau, ambíguo-umbigo), o naufrágio acaba sendo fundo e estreito... Esse modo zombeteiro de tratar da dor, seja do fracasso nas relações humanas, seja da perda de horizontes, parece de fato o reconhecimento da derrota que nega toda miragem de felicidade, e apenas pela ambivalência de sentidos das palavras amplia o espaço à volta resistindo à angústia. Assim, evita imagens elevadas... o que existe teria que ser sempre vitalmente concreto, uma vez que só o corpo salva (um pouco...). Nisso Rubens se assemelha grandemente ao tom geral de sua geração que, na contramão das 205
esperanças de mudança política dos anos 50 e 60, preferiu, naquele momento, ater-se ao desmascaramento geral do senso comum opressivo por meio da ironia esquiva, mantendo-se no lugar privado que lhe restava. Tal posto observatório, que preferia envolver-se pelo não envolvimento, afina-se com a reflexão oblíqua de sua poética. Somos instados a nos defrontar, em muitos poemas, com a estrita aderência à observação empírica. O poeta despede, pelo deboche ou pela amargura, todo descolamento ou fantasia de transcendência. “Nada de novo, sob o sol” poderia ser o mote de parte considerável de sua obra. O aspecto paródico de sua poesia que, por vezes, apropria-se de formas tradicionais, reforça o esvaziamento da cultura letrada, tornando-a derrisão e trash. Se Schiller reputava como fundamental para a qualidade da sátira a distância que revela entre real e ideal, aqui houve um encurtamento conformado, a partir do envelhecimento dos tempos (que Hegel consideraria prenúncio do final da poesia, em direção dialética à filosofia...). Há um despudor moleque aliado tanto à desconfiança em iluminações metafísicas quanto à tentativa da poesia de dizer alguma verdade relevante. Mas, ao arrepio dessa impossibilidade, o poeta atingirá o cerne inapreensível: Falo e falho num só ato, ex-ato que cabe num silêncio ininterrupto e claro.
(“poros”) Num átimo, acontece isso mesmo: Rubens apanha a forma exata, pretendendo sempre estar aquém. Como contraponto ao humor, um poema sério e belo é “um toque”, tentativa contida de expressão que se sabe fadada ao fracasso. 202 Mas, poemas assim pungentes são raros. No geral, dessacralizar é a norma: um humor até escrachado que pretende dissolver ilusões de sublime. (Um parêntesis: a nosso aviso, a ironia hoje, ainda que descenda do poema-piada modernista ou do ouriço romântico, apresenta no 202
A transcrição e a análise do poema encontram-se no ensaio “O sujeito-pedra: tornar-s e coisa”.
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tom algo diferente: um contraste menor com o “alto” ou “ideal” . Em Drummond de Alguma Poesia, em Oswald e em certo Murilo, o humor ou o chiste apontavam para o desconcerto entre indivíduo e sociedade, mas ainda a água da modernização não era tão poluída quanto a partir de meados de 60, quando a nova ironia de Paes e Sebastião se afirmou. Daí para frente, o horizonte do futuro tornase cada vez mais apertado e, especialmente com os marginais, desencantado. Cremos que Rubens cultiva o lúdico cético dessa nova onda dos “pós-utópicos). Em Poemas Novos (1994-97), mais recente e menor, fica nítido o elogio do instante, o exame do aqui e agora que ao menos não se engana com mistificações. Tentativas além são desqualificadas como risíveis, imprecisas. Por outro lado, o lugar do presente é magnificado como possibilidade de irrupção do novo. Não se perdeu de todo a esperança: É novo, escandaloso, está nascendo. Ouve bater a pálpebra do instante. Claro, calcula a mínima distância, esse exagero imperceptível, clássico. Paisagens anteriormente anônimas recuam.
(“ato primeiro”) Assim, em alguns momentos, como esse dos primeiros poemas do livro, há um clima de entusiasmo. Estaria Rubens batizando um tempo nascente de criação poética? Sim e não: logo se manifesta a ambivalência. Pois já em “elogio do oco” o sujeito suspeita da honestidade dos cheios, preferindo a estes a transparência do vazio: O oco desfaz as dúvidas quanto ao vazio do que é: ninguém fica sem recado. Todo sabemos direito o que importa a seu respeito. O oco é fácil e honesto. Não digo o mesmo do resto.
Zen irônico que curte o presente possível, o carpe diem medíocre de “anjos pedestres”. O livro também achincalha com a filosofia, desde os gregos, restando ao final uma declaração nada assertiva da existência imediata como único reduto. 207
Em “após o sinal do bip”, adverte: Primeiro era melhor (valia mais) querer o nada que não querer nada. Sem merecer uma sequer vírgula digna agora a vida acaba, a vida cabe em muito, o máximo, de pequenez, a vida apequenada. Chegou um tempo em que não se quer nada eo oprêmio menorestímulo querer levará o prêmio, do melhor mínimo – e esse é o máximo. Com isso estamos, e o estar com isso é tudo – combinação paupérrima e binária. Atendo ao telefone disso tudo. Só posso responder com o ocupado.
Este “não querer nada” se tornou mais importante do que “querer o nada” nesta “vida apequenada” em que seguimos ocupados em ações desimportantes e sem horizonte, perdendo tempo ao telefone, miudamente esperando uma promessa que não se cumprirá. Há aqui uma recordação esmaecida de Drummond (“Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus./ Tempo de absoluta depuração.”), mas sem o mesmo teor de angústia e altura, pois nosso poeta dá de ombros para o mundo... No ritmo da embolada, sem economizar em paronomásias, seu talento exibe certo pendor fútil para tratar desse cotidiano tão banal. Como se Rubens exultasse até mesmo com a mediocridade das circunstâncias, mas logo corroesse tal fugaz felicidade com a percepção descrente de que, na realidade, só nos sobrou a impossibilidade da busca de sentido. Por isso, seus chistes têm um lado meio tolo, até chato.203 Pois conformar-se sem sentimentalismos seria o que nos cabe no espaço exíguo. Conclusão paralítica, aporética, sem síntese dialética futura.
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Esta é, aliás, a opinião de Adorno sobre as piadas de Beckett – um tipo de humor que não faz rir, dado o esgotamento da vida e a “dialética da paral ização” (em “Trying t o understand Endgame”, Notes to literature II. Nova York: Columbia University Press, 1991). Mas algumas anedotas se assemelham àquelas contadas pelo amigo de Morgenstern, retratado neste poema que Rubens traduziu: Korf inventou uma espécie de piadas que só fazem efeito muitas horas passadas. Todos as ouvem com tédio, enfadados.
Mas é como um rastilho queimando em surdina. Quando é noite, na cama, repentina euforia faz sorrir feito um beato bebê amamentado. (“O invento de Korf”, na sessão “Traduções” de Novolume )
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Porém, - e aqui abro um parêntesis para duas citações - concordam tanto Fernando Paixão quanto Abrahão Costa Andrade que não se trata de desistência ou fraqueza esse recolhimento à existência em seu instante presente, mas problematização irônica do lugar da poesia, fruto de forte autoconsciência em sua obra. Diz o primeiro: Estamos dianteastuta de um poeta vigoroso, em distância que se revela, desde às a primeira vista, uma capacidade de ganhar em relação dobras do mundo. Como? Podemos responder com seus versos: Em nome do poema estar aqui e rir. Ser pequeno, andar aceso: por qual vão se consumir? Prezado rio das coisas. qual dos dois: fluir, florir? . . .” (“poema sem nome”, in Poros) Duas perguntas colocadas nestas poucas linhas. Sabe o poeta que, para incandescer a língua, é importante escolher o vão certo por onde correr o poema, voltado para o riso ou para o toque lírico. Escreve, pois, uma peça que interroga a si mesma. Mas, vale a pena alertar, não observemos nesse ato uma vocação narcísica para a metalinguagem. Pelo contrário, aqui a dúvida se enuncia por força de um rigor que não se deixa baratear. Ao enunciar o dilema, o autor zela por um sentido de integridade que também questiona o lugar do poema frente à circunstância (“nem sei se o banal espreita/com malícia, devagar”), como que fazendo um acerto de contas.”204
O “poema sem nome” teve a sorte de encontrar um segundo leitor interessado, que também lhe dedicou análise reflexiva, da qual quero extrair o trecho inicial, muito a propósito do que aqui ressaltamos da poesia de Rubens Rodrigues: Esse poema se constrói sob uma advertência, a epígrafe de Pedro Morato: “Vê que teu verso não ande aceso/onde anda a noite”, aliás muito eloqüente. Pelo contraste entre a clareza (“aceso”) e a escuridão (“a noite”), sugere-se que o verso, passível de ser claro, se acautele nos lugares freqüentados pela escuridão. Se tomarmos essas palavras pelo que elas indicam de presença de luz e de seu contrário e tomamos “luz” como indicadora do que abunda, ao passo que a escuridão seja a ausência ou escassez, a epígrafe então pediria que o poeta fosse avaro quando o tempo fosse, por assim dizer, de vacas magras. 205
Assim, a poesia de Rubens recusa-se a abandonar seu posto de vigilância no escuro, que mimetiza para compreender, ao invés de ofuscar-se na luz. E, 204
Paixão, F. “O trapezista pensando”, prefácio de Novolume . São Paulo: Iluminuras,
1997, 205
p. 14. Andrade, A. C. “Angústia da concisão” in Rodapé : crítica de literatura brasileira contemporânea, n. 1. São Paulo: Nankin Editorial, 2001, p. 97.
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apesar da compressão do cotidiano, afirma “Estar aqui e rir”. Posto que sabe “Ser pequeno”, ainda assim se pergunta se a poesia pode “fluir, florir” sem cair no “banal” que “espreita”. E conclui adiante no mesmo poema, com disposição persistente: Se caio é sem sair do lugar.
Por outro lado... seria esta uma constatação de fundo de poço onde não há espaço para mais um fim de túnel? Então, a graça consiste no vôo das palavras, que brilham brevemente antes de recair sobre si mesmas, evitando alçar-se falaciosamente além do horizonte possível, e afinal nos oferecendo a outra face, escura.
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As faces da musa em Francisco Alvim206 quantas cidades te percorrem passo a passo antes de entrares nos mil lares que te aguardam
(“Corpo”, Sol dos cegos) Um corredor que caminha eu todos a gente Um corredor se caminha
(“Um corredor”, Passatempo) A dificuldade de compreender a poesia de Francisco Alvim em sua medula consiste, dentre outras complexidades, em que seria possível recortar nele duas ou três vozes poéticas, cada qual com estilo firmemente definido e, à primeira vista, estanque um ao outro. Suas imagens recorrentes, seu ritmo, sua forma, de tal maneira variam ao virar da página, que poderíamos supor a sobreposição de vários autores. No entanto, convencemo-nos com o tempo de que as mudanças de tom e atitude tentam dialogar entre si, e devem constituir um olhar razoavelmente coeso sobre a existência – esta sim contraditória e demandando do escritor alterações constantes de altitude para abarcá-la em seus diferentes graus. Ao longo de toda sua produção poética esses ângulos de visão mantêm-se firmes, de forma que aprendemos a reconhecê-los. Talvez não se devessem forçar relações de convívio entre eles, quando tendem a provocar a impressão de tensa 206
Publicado em Poéticas do olhar e outras leituras de poesia . Org. Célia Pedrosa e
Maria Lucia de Barros Camargo. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2006. Aqui, sofreu várias alterações. Francisco Alvim nasceu em Araxá, Minas Gerais, em 1938. Morou no Rio de Janeiro longamente, tendo conhecido os chamados poetas marginais nos anos 70, e participado da Coleção Frenesi, editada por Antonio Carlos de Brito (Cacaso) e da antologia 26 poetas hoje (organizada por Heloísa Buarque de Hollanda). Ao lado da sempre presente voz drummondiana, de certo Cabral, e do modernismo de 22, seu primeiro livro mantém um tom mais elevado, talvez por influência da linhagem familiar de poetas. As edições da maior parte de seus volumes de poemas foram produzidas pelo autor ou por amigos. Suas principais publicações são: Sol dos cegos (Rio de Janeiro: Olímpica, 1968), Passatempo (Rio de Janeiro: Fon-Fon, 1974, Coleção Frenesi, capa de Heloísa Buarque de Hollanda), Dia sim dia não (em dupla com Eudoro Augusto, Brasília: Mão no Bolso, 1978), Festa (Rio de Janeiro: Janex, 1981, Coleção Capricho), Lago, montanha (Rio de Janeiro: Janex, 1981, capa de Carlos Saldanha), Passatempo e outros poemas (primeira edição comercial, São Paulo: Brasiliense, 1981), Poesias reunidas (1968-1988) (reunião de todos os livros anteriores mais O corpo fora na Coleção Claro Enigma, editada por Augusto Massi. São Paulo: Duas Cidades, 1988), Elefante (São Paulo: Companhia das Letras, 2000). Seguiu carreira diplomática, tendo trabalhado em Brasília e em diversos países.
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descontinuidade. Mas o fato é que se entremeiam ao longo de seus livros, brotando de chofre um ao lado do outro, isolados ou em pequenos grupos. Um desafio que tal postura suscita reside na tentativa de delinear as particularidades desta voz, que se enxerga como “ser inconcluso”, cuja fala, passos e face são “Bruma” (Sol dos cegos, 1968). Desde o primeiro livro, figurase por vezes como indistinta em relação ao interlocutor, como no caso de dois poemas que se seguem acintosamente: “O inimigo” (“Lá ou cá/você em verdade sou eu”... “Quando lhe der a morte/ou recebê-la de você/estaremos vivos no que sobreviver”), imediatamente antes de “Amor” (“Formei contigo um único poro/por onde penetrou a consciência unívoca de nossa posse/de nossa perda”). Tanto na hostilidade quanto na atração, o ego se confunde com a (falsa) alteridade. Em Sol dos cegos a questão é reiterada, como inquietação de srcem: Meu contorno no mundo, devo a esta luz: a mesma que se ilumina agora no desenho de todos nós, objetos deste quarto, e que extinguimos em sombra.
“Eu” não se distingue de “nós”, pessoas ou objetos, que existem tãosomente como efeitos do seu reflexo no claro escuro do dia - tema que voltará em outros poemas.207 Algo maior circunda a tudo e paira além do sujeito limitado: a morte, que reaparece constante neste livro de juventude, alertando acerca da corrosão das ilusões da vontade: Estamos gastos sim estamos gastos O dia já foi pisado como devia e de longe nosso coração piscou na lanterna sanguínea dos automóveis Agora os corredores nos deságuam neste grande estuário em que os sapatos esperam para humildemente conduzir-nos a nossas casas
(primeira estrofe de “A roupa do rei”, da sessão “Drummondiana”) 207
Heitor Ferraz de Mello (2001) observara que “o contorno do poeta só existe enquanto um objeto a mais no quarto”, quando até mesmo a própria forma em verso se desfazia aqui (p. 55). A respeito dos poemas “Inimigo” e “Amor” conclui: “Toda mediação necessária ao sujeito para completar a sua reflexão é problemática e envolve uma perda de si mesmo.” (p. 56). Em relação a “O rito” ( Sol dos cegos ), aventa que a passagem do eu para o nós assoma como indício da “dissolução do sujeito” no coletivo, quando se manifesta o trânsito entre privado e público no espaço urbano, representado, no poema, pela imagem da “calçada”, onde caminham os habitantes da cidade, entre a casa e a rua (p. 42 e ss.).
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O sujeito (ou, melhor dizendo, objeto) coletivo dos versos apresenta-se levado pelos sapatos, automóveis, corredores, de forma apática e maquinal, num tempo de completo envelhecimento da história, quando as ruas foram tão palmilhadas que o ideal seria recolhermo-nos. Talvez o poema que mais claramente anuncie a consciência da indiscriminação entre a voz “pessoal” e a multidão, neste mundo reificado, seja o precisamente chamado “Corpo”, no qual o humano nem parece preponderar como centro da enunciação: dentro do ônibus os dias viajam sentados em meio a ombros colados túneis esgotos bichos sorvetes coxas anúncios uma criança um adulto
A passagem do tempo que arrasta misturados tudo e todos no seu trajeto termina por anular a singularidade dos indivíduos, sugerindo-se sua intercambialidade e sua fixação em tipos sociais. O fluxo dos dias reaparece nesses poemas como um movimento que prossegue, indiferente às vontades, na toada das coisas. Na verdade, os homens são coisas passivas entre outras: correndo na grama a sombra de quantos assistem sentados enquanto das traves pende o corpo de um de todos enforcado enquanto as orelhas ouvem ouvem ehánão umgritam fora dentro da gente e fora da gente um dentro demonstrativos pronomes o tempo o mundo as pessoas o olho
Assim, desde o início de sua produção, o poeta se afirma como porta voz das vítimas da engrenagem social, que apenas observam, sentadas e caladas, a própria destruição. Ele não se coloca numa posição exterior à multidão anônima – pelo contrário, percebe-se permeável e mesmo esvaziado de singularidade, como um pronome de Benveniste. Embora no primeiro livro não compareça ainda aquela “voz dos outros”, sua marca registrada, a verruma do desassossego desde logo perfurava esse anti-sujeito. 213
Em Passatempo (1974), seu livro seguinte, em meio aos muitos poemas nos quais “cede a voz” (na expressão de Cacaso) a funcionários obscuros ou palacianos, mestres do understatement que sussurram entreditos entre a bajulação e a ameaça velada, o motivo da autonegação retorna súbito, em itálico, como neste dístico (que parece uma citação adaptada - de Emily Dickinson? de Ulisses fugindo de Polifemo?) convertido em aforisma:
Eu sou ninguém; meu nome é ninguém Toda coisa que existe é uma luz
Luz e sombra: metáforas da passagem do tempo sobre seres volatilizados de sua breve estabilidade, ou relativizados em sua fantasia da diferenciação entre “fora” e “dentro” como categorias substanciais, avultam como sensações desse olhar errante que oscila entre o medíocre das conversas comezinhas de casais de amor cansado e o assombro cósmico pelas inalcançáveis, vagas estrelas por trás da muralha de neblina. Assim, a deposição da própria voz em prol das falas anônimas e comuns denuncia a coisificação, enquanto, quando o sujeito do poema é permeado pela luz, dissolvendo-se ou existindo nela e por ela, ele parece então fundar-se como eu lírico. Esse lugar do sujeito que fala sempre foi alvo de um questionamento rico para Alvim, que reviveu da tradição moderna brasileira alguns de seus dilemas. Em estudo sobre sua obra, Ferraz de Mello (2001) examina a herança problematizadora de Cabral e Drummond à volta do eu lírico retomada pelo poeta, em detrimento da atitude anti-subjetiva da vanguarda concreta. Entre a postura dita objetivista de Cabral, que propôs uma superação da voz individual no poema em direção ao sujeito coletivo (uma vez que este buscaria expressar a história dos homens de seu tempo), e os retorcimentos do gauche drummondiano, que não abandonou o atormentado núcleo pessoal, reconhecendo entretanto suas contradições, nosso poeta também se interrogará radicalmente sobre essa presença, no novo contexto da sociedade urbana industrial (misturada embora aos fortes resquícios do ancien régime à moda da casa): “Nota-se uma espécie de travamento dos sentidos e uma dor, cada vez maior, nascida da percepção da automatização da vida e do desgaste do homem moderno.” (p. 12). Segundo a compreensão de Ferraz de Mello, o poeta deseja “resistir a essa coisificação”, mas consciente de “se perceber fragilizado e sem sentido histórico no espaço de convívio”, de modo que “o preço da solução será a consciência da derrota.” (p. 214
40). Oscilando entre várias personae, conforme afirma na entrevista concedida ao crítico, declara-se atraído por essa concepção de Pound, que ele adapta, com intenção crítica, para o cotidiano brasileiro (p. 260).208 Mas, para tentar diminuir o número de prismas, de forma a presumir alguns, poderíamos, afinal, apontar três facetas principais dessa obra: uma atitude reflexiva, em que se refere aos dilemas do sujeito poético e da poesia; uma atitude lírica, em que o amor, a nostalgia e a natureza são centrais; e uma atitude irônica – por vezes compassiva, por vezes “objetiva” -, em que trechos de ditos ou conversas recortadas do cotidiano (escritas com a tesoura, segundo Süssekind) são mimetizadas. Entre essas três perspectivas mantém-se certa margem de indeterminação em muitos momentos, embora entre a segunda e a terceira haja confrontos incisivos que melhor marcam sua proposital oposição. Difícil descobrir um vínculo que atravesse essas poéticas díspares, chocantes quando nos deparamos com elas lado a lado na página.209 Assim, em vez da tradicional apresentação cronológica, propomo-nos a apresentar três vertentes de sua obra que, como se antecipa, não vão ficar quietas!
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Maria Augusta Fonseca (2001) também se refere à “sarabanda de vozes” para descrever a poesia de Francisco Alvim, aludindo à repartição pensada por T.S.Eliot no ensaio “As três vozes da poesia”, no qual ele propunha: “A primeira é a voz do poeta falando para si mesmo – ou não falando para ninguém. A segunda é a voz do poeta dirigindo-se a um auditório, grande ou pequeno. A terceira é a voz do poeta quando ele procura criar uma personagem dramática falando em verso; quando ele diz, não aquilo que pessoalmente nos diria, mas aquilo que lhe é possível dizer dentro dos limites de uma personagem imaginária que se dirige outra contraposto personagem uma imaginária.” p. 117) Anteriormente, Flora Sussekind (1993)a havia voz dita (1962, “dramática” (referente aos poemas-falas, prosaicos) a outra chamada por ela de “descritiva” (vinculada às cenas breves de captação imediata da beleza da paisagem). 209 Uma representação adequada da dificuldade de apreensão dos seus aspectos contrastantes foi bem apanhada por comentários críticos de Sérgio Alcides, quando recomenda ao leitor de Chico Alvim que não estacione em leituras ilhadas, pois nem sempre o autor privilegia o acabamento separado ou a consideração isolada de cada poema. A seqüência também faz parte da forma incompleta das situações retratadas em miniatura, melhor apreendidas em conjunto: “são fotogramas do cotidiano que, por estarem em movimento, impossibilitam a fixidez e a monumentalidade do objeto simbólico estável (com seus compromissos ideológicos e políticos) [...] sua poesia tem horror à reificação.” E mais adiante: “Na poesia de Francisco Alvim, como na obra de Amílcar de Castro, por exemplo, ou Lygia Clark, cada objeto vale menos individualmente do que em conjunto, num organismo poético mais amplo, que fala com muitas vozes.”. (1999, p. 19-20.) Roberto Schwarz considera que “os poemas se agrupam segundo aspectos inesperados, do simples contraste ao comentário fulminante, e interagem à distância” (2002, p. 6)
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I. Um reflexo cego Este é o labirinto dos ouvintes laboriosos eco de muitas vozes procuro minha voz
(“Oráculo”, Sol dos cegos) Não se trata de mera “função metalinguística” o questionamento de Alvim sobre o lugar da poesia. Ao se debruçar sobre seu mister, interroga igualmente o lugar do sujeito, a natureza do tempo, o destino da modernidade. Tudo isso é poética, desde sempre entrançada com sentimento de mundo. Logo na abertura do primeiro livro, ele se perguntava sobre a função crítica da representação poética, que não adere inocentemente ao que vê. Até mesmo para “copiar”, desmonta o mecanismo, evidenciando, pela aparentemente simples imitação, os desvãos do poder, as entrelinhas soturnas das conversas afáveis: (Soletrar os signos que contém o rito para destruí-lo ou reproduzi-lo?)
(em “O rito”, Sol dos cegos) Uma consciência muito forte da necessidade de libertar-se dos mortos que pesam sob as calçadas o obriga a exorcizá-los, aludindo a eles, a seu retorno sempiterno, a sua onipresença, para tentar viver o agora, enterrando o passado. No entanto, ao buscar aliviar-se de seu peso, faz-se obrigatório reproduzir o incômodo, numa anamnese que homeopaticamente inocula em si o mal para diagnosticá-lo. A poesia se interroga sobre a cópia da vida degradada – não para a ela aderir, mas para manter aberta a fresta do pensamento. Presente e futuro estão condenados à repetição, como se nos movêssemos “contra um imutável muro cinza”, em que a passagem do tempo fosse só o corredor da morte. Os homens são cegos num eclipse, fitando o céu vazio. Tudo apodrece, até mesmo as pedras. No alto voam aves de rapina. A mente é turva, nada se consegue enxergar. A desimportância do sujeito frente à destruição é sua única mirada. Desde o título do livro, já se anunciava que a luz não trazia nenhuma visão ou certeza. Confira-se “Paisagem” (O sol dos cegos):
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E sobre o casario um astro míope parece contemplar a sucessão infinita de enganos que amor move
Tal como os cegos de Baudelaire, os homens de hoje também olham para cima, mas o que encontram no céu é a réplica da terra irredimida – bem diversa da harmonia das esferas de Dante. E se não é possível descobrir um sentido sólido e cabal para a vida, menos ainda para o poeta e seu poema. Muito a propósito, o crítico italiano Roberto Vecchi (2004, p. 4) intitula a poética de Alvim de “modernismo póstumo”, exaurido junto ao projeto nunca realizado de país. Agora os gestos são inúteis, e o poema é resto (“fragmento-ruína”): enquanto o pós-modernismo habita um além, do esgotamento da história, o póstumo mantém parcialmente vivo o passado, reaviva a herança, habita um fim aberto que assim resulta ainda não arquivado. O problema pode ser eventualmente o risco de citar um passado inconcluso, mas de algum modo praticando-o pode também criticá-lo. Na verdade, o passado é contemporaneamente duplo, morto e vivo, aberto e fechado. É assim que o marco modernista é tão forte no Elefante: não é porque absorveu a lição da época, mas porque inscreve em fim que é continuidade daquela época. Como ser se modernista nãoumsendo, uma condição dual e conflitante, uma incoincidência, que só a condição póstuma proporciona.
Em contraponto ao sol cabralino, que despertava a socos, aqui o astro cresta os olhos, fura a retina. Tendo em mente a Educação pela pedra do poeta engenheiro, leia-se “Meu país” (também publicado em O sol dos cegos): Sentir a pedra como se não fora pedra mas um câncer A árvore o rio o sol que cai a pino sobre a estrada A paisagem doente consome a mente e retina A consciência em agonia desenha a quase visível razão da paisagem: a gente que a contamina
Se até as rimas toantes seguem o esquema dos versos de Cabral, o método de organização que o movia é desconstruído na pseudo-imitação (uma educação pela perda?). O humano doentio, como o rio mangue do Cão sem plumas, degrada
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a paisagem, que poderia ser íntegra como pedra não fosse o câncer que a consome. A poesia de Alvim se verga sob a negatividade, sem elidir a dificuldade da passagem de um real obscuro para as palavras retorcidas que não alcançam representá-la, frutos podres de cabeças doentias. Nem tudo é tão trágico nos poemas mais auto-reflexivos de Alvim. Com humor, abre a primeira página do livro O corpo fora (1988), convidando o leitor, em três curtos poemas, a dar no pé antes que seja tarde. Depois de uma epígrafe de Baudelaire, anunciando em tom possivelmente depreciativo a poesia a vir em seguida, apresenta-se como “O chefe da estação”: Se quiserem ficar dão muito prazer Mas se quiserem partir é hora
Logo após, sucedem-se os poemetos de frases feitas sugerindo subserviências de classe, famílias em decadência, violência e preconceito... a confirmar a justeza do aviso inicial. Mas, para além da degradação social, a ferida pode irromper de dentro. “Pássaros”, último poema do livro, mais complexo do que pretendemos apenas apontar, apresenta imagens de barreiras à frente do sujeito que tenta ver o mundo, em parte majestoso, em parte hostil. Aves de vários tipos denotam sentimentos de angústia e medo. Parecem, por vezes, encarnar a voz do poeta (“no ombro o louco louro”210), invocando, em certo momento, o olhar de Narciso, que, deslumbrado pelo espelho, enxerga sobretudo a beleza, defendendo-se da tristeza nas coisas. Ao final, apela aos Meus de treva voem passarinhos baixo respeitem meu cão doente e minha alma que soluça Meus passarinhos tenham dó a dor é tanta cantem não cantem
Ele pede às aves, no diminutivo, que reduzam a altura da epifania poética, como se a voz lírica não devesse elevar-se acima do corpo sofredor, a ignorar os lamentos dessa vida comezinha. Já em “Poema”, de Elefante, intenta-se uma síntese do antes oposto, pois o 210
Na interpretação bem interessante de Ferraz de Mello, o “louco louro” poderia representar, como papagaio, aquele que repete as falas dos outros – um dos aspectos mais notados da voz poética de Alvim ( op. cit ., p. 204)
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que se exclui (sombra e luz) pode ser igualmente figurado no verso, imantando a experiência num campo polarizado por atração e repulsão:211 O vôo das sombras gira em torno de uma coluna sonora, o poema – luz de dentro Fora
Assim, esses poemas fazem aflorar o “ar escuro” proveniente do cerne secreto das coisas, permitindo sua aparição em palavras que carreiam um pouco de seu vento interno. Fonseca esclarece: “A ‘coluna sonora’, vertical, que explicitamente representa o poema, metaforiza a poesia como um farol, guia na entrada de portos. Definido como sinal luminoso, mas lugar de vozes irreais, de espaços inventados, o poema também é ‘vôo de sombras’” (2001, p. 96). Percebemos que essa reflexão sobre o fazer poético incide sobre o lugar esvaziado de quem fala, por vezes ainda dolorido, por vezes pura escuta, por vezes visão dissolvente. A estranheza da perspectiva, nos poemas prosaicos das falas, obriga-nos a olhar tão de perto que só vemos um retalho e precisamos adivinhar o contexto, enquanto nos poemas solenes (como “Torre”, “Canto”, ou “Num adro”, em
Elefante), o horizonte se amplia tanto que somos tomados pelo temor reverencial do inexplicável. A “razão inconclusa” não consegue abarcar a máquina do mundo. “Perto” e “longe” assinalam, mais do que distâncias, o lugar scherzo do poeta contemporâneo, vidente míope com óculos multifocal, que não enxerga mais do que miragens: Corro. No deserto líquidos longes e pertos Palavra de pó, limalha ranhura do olhar cego O sol com brilho de lua apaga-se em desmemória
(trecho de “Ventura”, Elefante)
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No texto “Jogo de contrários” (2002), Vilma Arêas aborda este poema como um dos momentos em que a cisão entre os pólos da lírica e da fala coletiva são tematizados à busca de solução.
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Nesses versos extraordinários, o mistério do mundo é inquirido pela sua palavra, que entretanto se dissolve na areia (pó, limalha, ranhura). A “aventura humana”, com que terminará o poema, consiste talvez nessa tentativa inglória de perseguir ou tatear o lume, aqui mortiço, do real. Do primeiro ao mais recente livro, em sucessivas voltas sobre a questão do lugar do poema em nosso tempo, Alvim sustenta um espaço incômodo para sua arte. Elefante se abre com a pergunta “Qual o real da poesia?” Seria o “sol dos cegos” a projeção da sombra irônica do mundo em desarranjo, expondo-se o desassossego difuso do sujeito, ou seria a claridade ofuscante da transfiguração amorosa?
II. Poemas da água A tua volta tudo canta. Tudo desconhece.
(“Elefante”, Elefante) O lirismo transparece em imagens suaves, em que a matéria é branda, flexível, como nuvem, névoa, neve. Tudo se abraça e flui: o olhar da amada, tão doce; a paisagem, verde e azul; os pássaros, macios; o coração, exultante ou nostálgico; nessa sensação de natureza, sumarenta e arredondada. A “encosta mole dos montes” se assemelha ao dorso da amada... A entrega do poeta ocorre tranqüila nesse ambiente líquido, especialmente em seu segundo livro (Passatempo), do qual cito esse excerto de um poema sem título: Encostei meu ombromolhavam-se naquele céu curvo e terno No lago as estrelas Sussurravam que meu abraço contivera a terra inteira e os ares
Como o Bandeira mais sublime e simples, Alvim também adere ao “Ser como um rio que deflui”.212 Os poemas para a amada se assemelham a espelhos de luz e água: ela é “árvore/molhada de chuva”, “Calma de névoa nos montes”, “folha verde debruçada/das águas de uma fonte clara”, “Um mel de águas, macia pedra”. Se a indistinção entre o interior e o exterior podia ser acachapante em ambientes opressivos, tal não ocorre quando se trata do encontro feliz de um olhar 212
BANDEIRA, Manuel. “O rio” ( Belo, belo, 1948).
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que parece levitar acompanhando os movimentos da “Moça de bicicleta” (Passatempo): O céu é mais que um mar sobre a cidade os pés descolando-se do chão mergulho de um corpo em cores que são ventos relva relva verde verde pneus rilhando o saibro úmido amarelas margaridas brancas sons que lavam o ar (O corpo: um sino ouvindo e repetindo a paisagem)
Esse corpo poroso ecoa, sinestésico, a natureza jubilosa. Na paisagem transparente, os sentidos imergem em infusão beatífica. As correspondências retornam de modo bastante freqüente em seus poemas de amor: Quando olho para você vejo uma árvore molhada de chuva Meu coração se aquieta terra onde chovesse uma água verde
(“Água”, Passatempo)
Constantes são as imagens da amada como água “de uma fonte clara”, ou “luz das acácias”, praia azul, “olhar de água verde”, “arco de luz” - um ser matinal, apaziguador, que o liberta das agonias noturnas. 213 As percepções de Merleau-Ponty (2004) acerca da posição do mundo no pintor, para o qual a natureza nasce dentro de si, quando interior e exterior se amalgamam, adaptam-se perfeitamente à sensação que experimentamos quanto a este sujeito líquido: “Imerso no visível por seu corpo, ele próprio visível, o vidente”... “se abre ao mundo.” “Visível e móvel, meu corpo conta-se entre as coisas, é uma delas, está preso no tecido do mundo, e sua coesão é a de uma coisa.” “[As coisas] são um anexo ou um prolongamento dele mesmo, estão incrustadas em sua carne, fazem parte de sua definição plena, e o mundo é feito do estofo mesmo do corpo” ... “a 213
Lembramo-nos de um depoimento do poeta (na USP, em 2009) no qual ele se recordava das viagens que fizera quando criança de Minas ao Rio de Janeiro, e da sensação de contraste brusco entre a treva dentro dos túneis da estrada e a súbita, esplêndida visão da cidade iluminada pelo azul do céu, com o mar a seus pés. Tal oposição se tornara, para ele, um emblema da dicotomia entre a angústia que lhe provocam as esconsas alma e sociedade humanas, em oposição às cores mais belas que enxerga no mundo. O começo de “Lembrança” parece uma variação deste tema: “Esta clara cidade/me traz à outra/escura cidade/de dentro do pensamento”. Alvim já havia remontado a essas memórias em sua entrevista a Heitor Ferraz de Mello, constante em sua dissertação (2001, p. 258)
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visão é tomada ou se faz no meio das coisas, lá onde persiste, como a água-mãe no cristal, a indivisão do senciente e do sentido.” (p. 16-17) Poderíamos escolher poemas que se contrapõem totalmente à reificação do sujeito (tal como testemunhada em vários outros de Alvim) dentre este conjunto mais contemplativo que perpassa toda sua obra, como se de fato outra voz, esta sim lírica e mesmo mágica, se impusesse:
Paineiras roçam o tombadilho da manhã escarlate brisa divina diz o poeta trago meu corpo vizinho distante da morte de minhas mãos faço jorrar a água do ar brotar as escuras raízes
(“Claro”, Lago, montanha, 1981)
O poeta ressurge aqui como o demiurgo srcinal, que estende as mãos e sopra luz à aurora, pronta para zarpar em direção ao primeiro dia. Há uma radiante passagem do corpo para o cerne vital da natureza, no geral feminina e acolhedora. Ainda Merleau-Ponty: “A visão do pintor é um nascimento continuado” (p. 22), como se ele surgisse junto à paisagem que dele também provém. Entretanto, enquanto “Na praia/corpos passeiam/varados de luz” (“Pier”,
Lago, montanha), a consciência da ferocidade da história humana atravessa a possível felicidade em que o eu lírico submerge, tornando-a fugaz como um vento de frescor logo perdido. Um poema como “Dois antigos” ( Passatempo) retrata as palavras de um guerreiro, cansado da “Noite humana
Interminável noite”, a
admirar o renascimento da natureza enquanto ele, contrariado, entrega-se à batalha: Voltou a primavera, a sempre mesma maravilhosa primavera Sinto meu olhar despegar-se da demência dos combates e invadir-se de nostalgia pungente: não há como reter esta hora verde que passará como todas as outras
Assim, imiscui-se nas formas macias a presciência da morte e da ausência, como em tantos outros versos:
“Percorro os ossos de teu rosto/imerso na
claridade sombria desta tarde” ( Passatempo), anunciando a escuridão que se entremostra. Dessa forma, o um-no-outro característico do gênero lírico puro, em que as fronteiras entre sujeito e objeto se diluem, ressoa vivamente em Alvim – mais do
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que em qualquer outro poeta de sua geração – contrastado pelas subliminarmente equívocas vozes sociais, as quais só a distância irônica ou hostil pode delinear. O sofrimento causado pelo choque entre a aspiração pela natureza romântica e o embate com a sociedade brutal aparece como susto em “Se você está feliz”, (também de Passatempo): Aquele desejo insofrido Um campo de trigo Som de vento nos ramos terra Vocês poderiam estar combinando esta manhã a morte de alguém Neblina azul o mar batendo nas pedras
A mancha atroz na paisagem ingênua ressalta - sem necessidade de maiores comentários - a justaposição da paisagem bela e do absurdo violento das relações humanas. Rupturas entre a imagem mais amorosa e a perda também manifestam as fraturas decorrentes da vida deformada, ora no campo social, ora nas recordações, ora especialmente na relação entre percepção externa e interioridade. Em “Lembrança” (Lago, montanha), por exemplo, o tempo quer parar de correr, imergindo no instante vertical do jorro poético: Em que seu jeito de barro me punha terno e molhado e se abria na mesma azulverde janela dia igual ao da véspera O tempo se distraía não a queria deixar (eu me iludindo, iludia)
Mas logo a seguir a cidade de “mil detritos” obscurece a presença amorosa: Diversa desta cidade em que agora reside – interna cerrada sombria baú de ossos, de perdas que a vida que é perda ajuda
Novamente, de um lado, amor-luz-abertura (eterno enquanto dure) e, de outro, cidade-sombra-fechamento (mortal) se enfrentam face a face. A irrestrita amplidão de tempo e espaço, em que o visual colorido intenso ecoa o alumbramento bandeiriano, no convívio com a estrela, a manhã, o vento, a fonte, confrange-se na hora – no mesmo poema ou imediatamente no seguinte – 223
com a amargura do veneno entredito. Até mesmo dentro de si o sujeito descobrese isolado da natureza feliz, como se a claridade vibrante da vida não pudesse penetrar nas câmaras internas. Leia-se o poema “Dentro” (Passatempo): Como de uma varanda a tarde debruça-se de meu olhar – em sons iluminada Murmúrio de vozes a brisa verde dos pássaros meu corpo recobre-se de relva silenciosa Penso ouvir o som distante de uma porta batendo Regresso pelo escuro corredor que vai de meu corpo a minha mente
Acoplados e paradoxais, os mundos luminoso e sombrio dividem o poeta, que interiormente experimenta o isolamento e a desconfiança. Corredores, varandas, vidraças são as imagens a que recorre para exprimir esses lugares de passagem, “de um movimento de báscula entre dentro e fora” (Ferraz de Mello,
op. cit., p. 123). Os dias passam, passeiam, o tempo sopra... em muitos poemas, nos quais o sujeito atravessado pela luz do tempo é o mesmo que se vê como “jarro obscuro do abandono” (“Vampiro”, Lago, montanha). A natureza amorosa canta, mas não oblitera a consciência negativa, ponto partido do círculo que assim divisa a própria sombra.
III. A ambivalência do lugar-comum Imensa profundeza de pensamento nas locuções vulgares, buracos cavados por gerações de formigas
(Baudelaire, citado como epígrafe de O corpo fora, 1988) O terceiro rosto do poeta (sempre imbricado com os outros, como antes ressaltáramos), foi o melhor estudado, em leituras percucientes, às quais remeto.214 214
Ver: José Guilherme Merquior, “Sobre o verso de Francisco Alvim” (1972). Aí já se
apontava para os “ flashes ‘objetivos’ diretamente importados do capitoso capítulo vícios e costumes do eterno Brasil” (p.200), assim como para o predomínio da evocação ‘direta’ da experiência so bre a metáfora (p.1 96). Antonio Carlos de Brito (Cacaso) escreveu o
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Os minipoemas de Chico Alvim destacam, por meio do recorte de frases feitas, aspectos grotescos da sociedade brasileira em que se acoplam camadas arcaicas e modernas, reforçando mandonismo e compadrio. Não evidenciam uma perspectiva explícita de revolta: antes expressam uma resignação quase conformista, uma magnificação dos “gestos sociais já sedimentados” (Cacaso, op.
cit., p. 311), que, sobretudo, registra a banalidade do mal. Um homem cordial no pós-país do futuro, que reconhece a selvageria e a sabe parte da engrenagem, naturalizada e eternizada como paisagem: este é o resultado dos semi-epigramas, ou semi-piadas por vezes sinistras. É como se, diferentemente da ironia tal como pensada pelos alemães, não houvesse significado na história, que, nesse caso, não progride rumo à síntese libertadora, e, diversamente dos modernistas, faltasse energia para a denúncia, porque o futuro não virá, e a memória do passado fixouse em caricatura imóvel e degradada. Advertiu Roberto Schwarz (1999, p.205206) que o espírito da alegoria, com seus fragmentos hipnotizantes de ruínas, penetrou na ironia pós-anos 70 de Alvim, certamente não com a euforia mesclada do tropicalismo, nem muito menos com a interrogação romântica do ideal pelo real. O crítico reitera a constância dos mesmos traços problemáticos na sociedade brasileira, que reaparecem na forma das falas oblíquas, epigramáticas, a comprovar que “O passado não passou, embora já não ajude – como ainda outro dia – a inventar o futuro, que não está à vista.” (2002, p. 12). ensaio seminal “O poeta dos outros”, publicado postumamente em 1988 (republicado em Arêas, V. (org.). Não quero prosa , 1997), que influenciou todas as leituras críticas de Alvim por seus acertos. Nesse ensaio, Cacaso nota o gesto de “ceder a voz”, típico da obra do amigo, como uma forma dar anos ver,acostumamos através da reprodução de frases feitas, a experiência social cristalizada comdea qual e que se tornou automática, desmascarando sua falsa naturalidade. Ao “desentranhar” do hábito o lugar-comum, o poeta “se despersonaliza para melhor se personalizar” (p. 323), simulando ausência de autoria: “É o poeta dos outros. Cede a palavra” (p.327). Assim, “tematiza o universo brasileiro, uma burocracia semi-parasitária que combina as sutilezas da dependência paternalista com a instabilidade e a dureza da competição moderna.” (p. 334). Mais recentemente, Roberto Schwarz, em “Elefante complexo” (Discurso Editorial, Folha de S. Paulo, 10/02/2001), em texto ampliado posteriormente em “O país do elefante” (Caderno Mais! , Folha de São Paulo , 10 de março de 2002), aprofunda estas considerações ancorando-se em parte nas teses do clássico ensaio “Dialética da malandragem”, de Antonio Candido, e analisando com acuidade também os procedimentos formais de Alvim, desenvolvendo relações entre sua poética e os desajustes sociais brasileiros com a perspicácia de seu olhar sociológico. A partir desse texto, a discussão se amplia, com várias contribuições srcinariamente tributári as dos autores anteriormente mencionados e novas idéias e análises de poemas. Destaco os textos citados de Maria Augusta Fonseca (2001), Vilma Arêas (2002), Roberto Vecchi (2004), assim como a dissertação de Heitor Ferraz de Mello (2001).
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Sem dúvida, seus poemas dos anos 70 e 80 acusam os porões da ditadura, ao expor a tortura, o medo e a perseguição, insinuando a corrupção e o apadrinhamento, muitas vezes de forma sinuosa, figurando situações ambíguas que precisam ser decodificadas pelo leitor. No fundo, mesmo quando o poema parece meramente apresentar uma situação cristalizada, ele “protesta contra os efeitos desumanos da engrenagem social” (Cacaso, op. cit., p. 309), mas de um modo tal que o leitor tende a fazer parte da cena, ao reconhecê-la. Nos últimos livros, parece haver um aspecto gnômico de testemunho desencantado de uma situação cronicamente inviável, que apenas pode ser desvendada, mas não tem salvação. Como sabiamente ponderou Michel Déguy, numa palestra em São Paulo, não vivemos tanto na época do engajamento, e sim, sobretudo, na época do testemunho. Mutatis mutandis, parafraseando Lukács (1965), poderíamos dizer que não mais narramos participativamente, como quem acredita no papel transformador das ações do sujeito. Ao contrário, tendemos a apenas descrever o que está diante dos nossos olhos, seja um aspecto do mundo, seja nossa própria vida, reduzidos a objetos de dissecação e dúvida. A pretensa objetividade desses poemas de Alvim também compreende denúncia, mas evidencia principalmente indícios ou vestígios de uma situação reiterada e imóvel. Para não me alongar ao resumir simplificadamente os argumentos da crítica, gostaria de distinguir, nesse conjunto mais recente, os diversos poemas que se detêm nos temas correlatos da velhice, da doença e do abandono. Ao tomar a voz do outro, identificando-se entre a ironia e a compaixão, o poeta, esse sujeito coletivo, permite ao leitor reconhecer conversas ouvidas muitas vezes de antemão, que são recortadas e emolduradas, destacando a repetição imobilizada da vida – o homem, esta paixão inútil e cansada. Do Elefante (2000), “Festas”: Primeira regata em Santos. Ganhei o primeiro lugar. O dia em que me casei. Os dias de lua-de-mel no Rio de Janeiro. O dia em que meu patrão me chamou para ser o mestre da fábrica de tecidos. Bairro do Ipiranga. SP. Júlio Bonni. A minha nora tem sido muito boa para mim. Não tenho palavras para agradecer. Meu filho também. Porque a primeira família, acho que acabou. Ninguém mais me procura. Queria que Deus melhorasse meus rins.
A ironia dolorida está no título, que alude a datas felizes de aniversário, casamento e promoção, marcando a oposição dos parágrafos: de um lado, as 226
lembranças esperançosas da juventude; de outro, a dependência e a decadência, tocantes mas corriqueiras. O itálico reforça a impressão de depoimento alheio, reproduzido tout court com a distância descritiva do álbum de fotografias. Com as mesmas queixas conformadas nos deparamos em “Cavalo velho”, “Te contar”, “Eta-ferro”, “E agora?”, “Sem dentes”, “Aparece”, “Gemido” (em Elefante) todos sobre final de vida, dores comezinhas e longas, ressentimento de solidão. Depois que lemos, temos a impressão de anedota velha e sem graça: um humor tornado obsoleto pelo ínfimo e ridículo papel de homens cujo único horizonte é a espera da morte. As ilusões perdidas exibem um tempo achatado, em que se reitera a mesquinhez das relações absconsas de poder, sempre cafajestes e ambíguas no aliciamento. Que esperança há se “Aviões partem/Para que deserto?” (“Espelho”,
Elefante)? Penetra a dimensão do ser essa insignificância humana, como se nos rebaixássemos ao nível de objetos: aqui não tem mar tem céu e ficamos claustrófobos panos de chão irrisórios do cosmo
(“Aqui”, Elefante) Reconhecemos a trivialidade da vida enclausurada e degradada sob a tampa opressora deste céu tão limitado nas inúmeras historinhas patéticas em que a voz poética se apequena para melhor se compadecer ou ironizar. 215 As falas de tantas personagens miúdas demandam um tom de realismo básico, e contrastam – como apontamos – com a poética iluminada das epifanias amorosas, do azul, da felicidade. Impossível sarcasmo mais cruel do que MAS é limpinha
ou
215
Este movimento entre a compaixão e a ironia é um sentimento muito explorado na obra de Drummond, conforme bem argumentou Ivone Daré Rabello (2002) em estudo sobre o poeta. A autora percebe como o “eu-lírico se desdobra” e “zomba daquele que sofre”, isto é, se divide, ao reconhecer “os impasses hi stóricos da subjet ividade”, que o fazem hesitar entre a identificação e a distância (p.112).
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SELAS Experimentei não reagiu
ou APARECE Internado várias vezes Ó Guiomar, faz aquele cafezinho que não esqueço Lê o jornal Bem vou indo Vejo que todos estão bem Até (nunca) mais ver
(Elefante) ou ainda MERCÊ (Você será bem tratado)
Mais um: RELAÇÕES Nos falamos mas não conversamos
(O corpo fora) E para concluir, de uma série imensa: MÃOS TRÊMULAS - Você quer um? - Não, não adianta
(Lago, montanha) Haveria ainda outros tantos exemplos de diálogos minimalistas – “lascas e cascas do real”216, ouvidos e reconhecidos pelo leitor, que entra no meio da conversa e fica tentando deduzir o que veio antes. Tudo se passa como em uma voz que vem com o vento, e escutamos pela metade, cujo sentido no fundo 216
Maria Augusta Fonseca (2001), ao se referir a esses poemas que se assemelham a “fiapos” assinala a incerteza que transmitem quanto ao sentido do pedaço de realidade para quem os escuta, inatingível em sua totalidade, a ser adivinhado. Já Cacaso se referia à necessidade do leitor detetive, que segue indícios e pistas para perfazer algum possível sentido desses diálogos incompletos.
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entendemos, e concluímos o resto sem muitos problemas, pois o contexto é bem conhecido. “Aqui a leitura adequada é francamente ativista, a mais livre, instruída e perspicaz possível, complementar da forma elíptica extrema exercitada pelo poeta.”, propõe Schwarz (2002, p. 6). Nesses poemas, aparece todo o racismo, a opressão, a discriminação contra o velho, a mulher, o negro, o pobre, enfim, uma gama de cinismos e indiferenças rotinizada e mascarada pela informalidade. Cacaso aproximou esse procedimento dramático de certos poemas de Bandeira, o qual desentranhava poesia de tudo. No entanto, seria prudente notar a mudança geral de altura e tom. Talvez fosse o caso de, a acreditar no próprio Alvim, lembrar que ele afirma ser leitor de Dalton Trevisan, e que pode ter se identificado com a atenção obcecada pela sordidez minimalista, na qual o
hypocrite lecteur reconhece no grão mais minúsculo da aparente afabilidade das falas brasileiras a semente que lateja e espreita. Em mais de uma entrevista, Chico Alvim relativiza a denominação de “poema-piada” herdada do modernismo para esse tipo de verso que pratica:
o modernismo era uma coisa auroral. O Brasil estava sendo descoberto, havia um otimismo, uma força, uma irradiação de energia. Enquanto os modernistas tardios, como nós, vivemos num país que só teve problemas, só traz problemas. É uma visão crepuscular, não tem otimismo nenhum.217 Porque a piada modernista era uma piada auroral. Era uma beleza! A sensação que tenho com os modernistas é como a sensação que fui encontrar na Grécia: está tudo ali, aquilo é a manhã da humanidade. Depois as coisas vão se repetindo, vão se aprofundando, vão tomando outros caminhos, mas o sentido geral está dado naquele primeiro momento [...] A minha coisa é doentia, não deu certo, o país é este que a gente vê aí, as sensações que ele desperta são estas que estão aí, então não é algo que me faça rir. Ou, se me faz rir, é com o riso torto.218
Estas opiniões ecoam e matizam a caracterização de Vecchi exposta anteriormente, além de reforçar a análise de Schwarz, ao distinguir do tom de Alvim a matriz oswaldiana, que no poema-piada modernista colava e montava cenas tipicamente brasileiras, as quais expunha ao ridículo, mas sempre tingido de otimismo.219 Pelo contrário, “trata-se de Oswald revisto à luz de Drummond, ou 217
Excerto da entrevista feita por Ferraz de Mello para sua dissertação de mestrado, op. cit., 2001, p.266. 218 Trecho extraído de entrevista feita por Sérgio Alcides, intitulada “Ela se finge, ela se disfarça, 219
ela é muito sonsa” ( agosto de 2002, p.201). No ensaio “A carroça, o bonde e o poeta modernista” (1987), o crítico analisa o que chama acertadamente de “ufanismo crítico” de Oswald: sua junção de euforia com o
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do encontro com o problema que estava escondido no pitoresco.” (2002, p.13)
IV. As faces da musa: Dulcinéia e Aldonsa
(Uma cidade iluminada ao sol e cuja sombra o olho teima em revelar) (“Mirante”, Passatempo)
A complexidade de Francisco Alvim reside na maneira cada vez mais apurada com que se mantém fiel à pergunta de seu primeiro poema (“O rito”), ruminado ao longo de sua obra. Faces diversas se manifestam: uma que recorta/cola, concentrando-se na anamnese do já morto ou gasto, outra que pensa a si mesma, e ainda outra que vibra com a visão luminosa do mundo. Análogos ao estilo híbrido de Cervantes, o “real” e o “ideal” se contrapõem como, de um lado, a descrição da salgadora de porcos Aldonsa, prosaica e chocarreira, e de outro, a elevação para divisar o que só o olho interno pode apreciar, bálsamo mágico preparado pelas mãos brandas de Dulcinéia. Essas vozes não se misturam, mas emergem da mesma fonte de duas águas: a vertente coletiva, advinda da percepção aguda das contradições sociais, que toma forma impessoal; e a vertente lírica, srcinária do desejo de sentir-se acolhido no universo, transitando entre o eu e o outro. Vilma Arêas (2002) encarece a posição do sujeito poético em Alvim, apenas aparentemente dissolvido, mas na verdade comandando a escolha das cenas como o diretor nos bastidores do teatro. Para ela, a incompatibilidade dos gêneros na mesma página, passando do registro lírico para a “banalidade da expressão humilde” confunde a crítica, ao desafiar a “integridade da forma artística”, que normalmente conteria em si tanto a “densidade da individuação” quanto “o sussurro da vida civil” no mesmo poema (p. 322-323). Mas em sua obra, embora não pareça haver, nas “constantes polaridades em diálogo” “conciliação desses opostos”, ela “só pode ser encontrada na solução formal do livro, expondo os laços profundos que unem voz coletiva e voz individual”. (p.
progresso, ausência de saudosismo, exaltação do presente, inocência, de um lado, e, ao mesmo tempo, crítica às relações sociais atrozes, percepção de nosso atraso, de outro.
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328). Assim esperamos... Justamente por isso, sentimos mais e mais intensamente nos poemas sua presença pervasiva, que faz ecoar em nós tanto o mal-estar da vida deteriorada quanto a alegria utópica do mundo reconciliado.
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Poesia em risco nos anos 70:220
Agora não se fala mais toda palavra guarda uma cilada e qualquer gesto é o fim do seu início; agora não se fala nada e tudo é transparente em cada forma qualquer palavra é um gesto e em sua orla os pássaros de sempre cantam assim do precipício:
Torquato Neto221
Parece que os anos 60 e 70 viraram um tipo de produto da moda nostálgico, dentre outras razões porque representam o momento seminal para a experiência contemporânea. Interrogações sobre a transformação da arte foram colocadas naquele momento com radicalidade, assim como o desejo de mudança da vida, que também se manifestou de modo muito afirmativo. Ultimamente, há uma enxurrada de livros sobre essa época (há até mesmo seriado de TV, como se the seventies fosse uma entidade mítica), e toda uma fantasia “retrô” no Brasil, construída sobre a idéia de um tempo de disposição para a vida comunitária, amor livre, protestos coletivos e experimentação artística. Alguns desses livros parecem fúteis, ao misturar sem pudor lembranças de propagandas populares e fatos duros relacionados à repressão da ditadura no Brasil. Numa página se relembra a calça boca de sino, e a seguir, a morte de Marighella. Mas até mesmo essa deshierarquização da história é fruto da estética pop que vigorou com força a partir daqueles anos, como se vê nas letras de música tão abruptas do Tropicalismo: “brutalidade e jardim”. Gostaria de compartilhar três exemplos recentes dessa percepção sobre aqueles anos:
220 O 221
título alude à definição de Augusto de Campos, “Poesia é risco”. Primeira estrofe do poema “Literato Cantabile”, reescrito em diversas versões em 1971. Republicado em Torquatália . Do lado de dentro (2004).
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Assisti à entrega do prêmio para os melhores artistas de 2007 nas áreas de literatura, música, teatro, cinema e artes plásticas – uma cerimônia com jeito de Oscar, patrocinada por um banco, por algumas empresas e por uma editora. Toda a trilha sonora do evento e toda a fala da apresentadora se baseavam em referências ao Tropicalismo, ao qual se atribuía a importância de momento de inovação fundamental para a compreensão da estética brasileira contemporânea. Assim, o presidente do banco subia ao palco para entregar um prêmio ao artista do ano enquanto se ouviam os versos “Os automóveis ardem em chamas./Derrubar as prateleiras, as estantes, as estátuas/As vidraças, as louças/Os livros, sim”... da canção “É proibido proibir”, de Caetano Veloso (composta a partir de frases pichadas nos muros de Paris em maio de 68) tocada bem alto ao fundo. Ou o governador do estado entregava o prêmio a outro artista, enquanto se ouviam os Mutantes cantando a emblemática “Panis et circenses”, que ironiza as convenções familiares e o modo de vida regrado da classe média burguesa à volta da cena da sala de jantar. Uma segunda situação: fui recentemente a um festival de literatura cujo mote era os anos 70, sob o ponto de vista cultural. Havia, entre os convidados, poetas muito representativos, como Chico Alvim, Chacal, Eudoro Augusto e Alice Ruiz, assim como militantes políticos importantes – pessoas que foram presas e escreveram sobre a história da ditadura, como Frei Betto. A cerimônia de abertura do evento, no Teatro Municipal da cidade, começou com os discursos habituais das autoridades, sucedida pela execução do Hino Nacional, quando, de forma súbita, irrompeu na sala um grupo de teatro formado por jovens “fantasiados” de anos 70, com bandanas na cabeça à la Hendrix, colares com o símbolo do anarquismo ou talvez dos Rajneesh, roupas coloridas de estilo hippie, cabelos compridos e conscientemente despenteados, recitando de forma performática - pois se tratava de um happening ou intervenção - frases e versos de conteúdo libertário, de autoria seja da geração marginal (Charles, Chacal, e outros), seja dos poetas pós-tropicalistas (Leminski, Torquato, Waly Salomão, por exemplo), ou seja de maio de 68. Depois das palmas, a cerimônia continuou. Por fim, um terceiro exemplo recorrente vem sendo o apego reconhecível em jovens, até adolescentes, pelos grupos de rock e pela música popular brasileira daquele período, e mesmo certa saudade do tipo de engajamento político que os enfrentamentos contra o regime militar proporcionaram a uma geração. 234
1) será que os anos 70 entraram na moda porque as tensões estéticas, políticas e comportamentais da época foram de tal modo neutralizadas pelo domínio do mercado, de forma a não mais se temer que elas venham a desestabilizá-lo, e hoje elas podem ser consumidas como espetáculo? Parece que o lado transgressor, rebelde, daquele momento, foi incorporado como prova de sua criatividade, mas domesticado na linguagem da indústria cultural. A estridência agressiva que acompanhava também as produções artísticas, com os seus egos gritantes, a proeminência das roupas, cabelos e corpos em evidência... a onipotência afirmativa do sujeito contra a tradição autoritária – tudo foi assimilado. Disso pode-se seguir uma leitura puramente celebratória daquele período, acrítica e laudatória: é a juventude tomando o poder, rompendo as amarras, em festa e em transe, os desbundados, a curtição; visão de mundo que tende a ser retomada como moda e aparência. 2) ou será que os anos 70 deixaram filamentos para a cultura contemporânea, desdobrando-se, como se tivessem sido “os primeiros passos de uma longa jornada”, não “fóssil” mas “míssil” conforme enxergou Waly Salomão – pois nem são ponto final nem culminância. Não é um tempo a ser idilizado, pensava ele, pois se tratava, no geral, de uma literatura “pobre” e mesmo “rastaqüera”. Ao desmitificar o passado, ele propiciava um olhar mais matizado para o tempo que se foi, libertando as novas gerações de ilusões “retrô”. Enfatiza ainda, em depoimento sobre a época (quando foi preso por porte de maconha, e na prisão escreveu grande parte de seu Me segura que vou dar um troço, publicado em 1972) que não se deveria heroicizar os suicídios emblemáticos do período (como um ponto extremado de auto-entrega) – mas enxergar o quanto perdurou de resistência criativa, para sopesar o que permaneceu, mesmo através da morte.222 As duas hipóteses são concomitantes e atuam juntas hoje, pois aqueles anos foram um ponto de virada, com todos os paradoxos que isso implica, de perdas e ganhos. Voltando ao acontecimento relatado no começo - o evento com trilha tropicalista - entendemos agora porque certos aspectos deste movimento musical não são incompatíveis com uma premiação de artistas contemporâneos patrocinada por empresas: diferentemente da MPB “de raiz” ou mais claramente 222
“Contradiscurso: do cultivo de uma ficção da diferença”, Vários autores. Anos 70: trajetórias. (2005).
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engajada politicamente (Vandré, Sérgio Ricardo, Théo de Barros), o tropicalismo não mantém certo purismo musical nacionalista que se tornou “anacrônico”, junto com ideais de cultura que foram deixando de existir como primordiais ao longo dos anos 70 e até hoje. A influência da indústria cultural, primeiramente estrangeira, depois aclimatada, tornou-se pervasiva. Ignorá-la seria isto sim uma forma regressiva de alienação. “Geléia Geral” (Torquato Neto), tão bem analisada por Celso Favaretto (1996), representa justamente o reconhecimento da inevitável “mélange adultère de tout” ou canibalização de níveis culturais antes distantes, agora convivendo (bumba-meu-boi, Frank Sinatra, Gonçalves Dias, Oswald de Andrade, etc). Aqueles artistas intuíam talvez uma linha de desenvolvimento social que confluiria, mais tarde, para a globalização (e que a abertura para o capital estrangeiro do milagre econômico anunciava). Ana Cristina Cesar comenta, em artigo sobre a relação entre o tropicalismo e a poesia marginal: Os novos para poetas pregam nos seus textos a necessidade de subverter comportamento mudar o sistema e ao mesmo tempo fazem questão deo manifestar em suas vidas o descompromisso com as regras e valores desse sistema. Desta forma, pode-se analisar a produção do momento tanto por meio de textos quanto da própria vivência dos poetas. Trata-se de uma poesia e de uma vivência fragmentária, marcada frequentemente pela loucura, pela utilização intensa de drogas como forma liberatória, pelos desvios sexuais, pela afirmação da marginalidade, pela exasperação com o chamado “sufoco”, pela descrença em relação aos mitos da direita e da esquerda. Ao mesmo tempo, verifica-se nesse grupo, de natureza fundamentalmente urbana, um apego às linguagens modernas, à apresentação graficamente trabalhada e aos meios de comunicação de massa, numa relação ambígua com o sistema que pretendem contestar. (“Literatura marginal e o comportamento desviante”,
1979)223
Ela identifica na prática de seu próprio grupo (incluindo a si mesma) as mesmas ambigüidades em relação ao sistema capitalista que reconhecemos na música da Tropicalia. Pois certas formas de luta política iam perdendo a credibilidade (ou a possibilidade efetiva de se realizar): uma parte dos indivíduos que doavam cada momento de sua vida para desestabilizar o regime político e, quiçá, instaurar uma revolução socialista, embora tenham tido grande influência na formação de uma consciência de esquerda na época, e em muitos momentos organizado manifestações de vulto, aos poucos foram aderindo a formas de atuação 223
Republicado em sua coletânea de ensaios Crítica e tradução (1999).
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modificadas, preferindo, em muitos casos, uma militância voltada para o cotidiano e as relações pessoais, que procuravam subverter. Chacal, em seu depoimento biográfico, relembra a srcem dos saraus festivos dos poetas, a partir da incorporação quase inconsciente do clima político, adaptado: “Vibrava com os comícios relâmpagos. [Eles], quem sabe, deflagraram algum dispositivo que viria usar mais tarde nos recitais pela vida inteira. A síntese, a urgência e a convicção daquilo que se fala.” (2010, p. 19)
A véspera do t rapezista:224 O que há de grande, no homem, é ser ponte, e não meta: o que pode amar-se, no homem, é ser uma transição e um ocaso. Amo os que não sabem viver senão no ocaso, porque estão a caminho do outro lado. . . . Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: há ainda caos dentro de vós.
(F. Nietzsche)225
As contradições dessa nova poética, agrupada sob o nome controverso de “marginal”, foram examinados sob diversos ângulos. Mesmo entre os defensores de primeira hora (como Cacaso e Hollanda) os seus problemas são apontados sem disfarce. Dentre os seus críticos, destaco o texto vigoroso de Iumna Maria Simon junto a Vinícius Dantas (1985), no qual apontam a coincidência entre sujeito lírico e empírico ao lado do encurtamento do trabalho formal, tendo como consequência um estilo descompromissado que resulta tanto na expressão banalizada do cotidiano quanto na desqualificação da linguagem literária. É necessário reconhecer a justeza deste diagnóstico que denuncia, igualmente, a crise de quaisquer esperanças utópicas, ao lado do apequenamento do horizonte da vida, reduzida ao corriqueiro.
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verso de Cacaso em que declara sua atitude poética: “Preciso/da palavra que me vista não/da memória do susto/mas da véspera do trapezista.” (“Cartilha”, Grupo escolar , 1974). 225 Em Assim falou Zaratustra . Trad. Mário da Silva. São Paulo: Círculo do Livro, s/d, p. 31-34.
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Segundo Simon e Dantas, “a expressão poética hoje não toma qualquer distância da experiência e da linguagem cotidianas.” (p. 48). Concluem que tal aproximação da língua comum deriva para uma aderência acrítica às novidades do mercado. O aspecto jovem, de caráter pop e desliteratizado da poesia marginal revelaria um “sentido regressivo” característico da cultura de massas, voltada para um público adolescente. Se srcinalmente essas produções tiveram uma intenção inconformista e rebelde, esta foi rapidamente incorporada com vantagem pela indústria cultural, dada a facilidade comunicativa do seu estilo. E se o aspecto mais interessante residia na produção artesanal e na distribuição personalizada, quando estas cessaram no final da década de 70, e os poetas passaram a ser publicados pelas editoras comerciais, reduziu-se o encanto da resistência contracultural e restou evidente apenas o conteúdo pobre. A própria Hollanda, na apresentação que fizera à antologia 26 poetas hoje, advertira que “o flash cotidiano e o corriqueiro muitas vezes irrompem no poema quase em estado bruto e parecem predominar sobre a elaboração literária da matéria vivenciada” (1998, p. 11), assim como “aspectos de diluição e de modismo, onde a problematização séria do cotidiano ou a mescla de estilos perde sua força de elemento transformador e formativo” (p. 13) sem no entanto deixar de ressaltar a força que esta atitude poderia ter quando reveladora da “psicografia do absurdo cotidiano” (idem ibidem). Acrescentaríamos, ainda, a essas observações críticas, um reforço ao sentido regressivo que reconhecem na poesia dos anos 70: também nela percebemos um encolhimento do espaço público coincidente com o que o crítico de artes Rodrigo Naves (1996) atribuiu às últimas realizações de Oiticica e Clark. Ao pregar a dissolução das fronteiras entre arte e vida, tentando conquistar um espaço de interação entre obra e espectadores, não caminharam para “uma exteriorização das formas, e sim a um ensimesmamento problemático” (p. 243).226
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Cito: “Nos trabalhos desses dois artistas a tentativa de promover experiências que fossem além de uma relação contemplativa entre observador e obra termina por desembocar numa exploração da intimidade do mundo ou do corpo, em lugar de abrir a forma para a criação de um espaço público, com tudo que ele envolve de exterioridade e estranhamento.”, isto é, “o esforço para romper com a separação arte-vida levou, paradoxalmente, à supressão de toda alteridade, por meio de uma identificação da experiência estética – convertida quase em experimentações sensoriais – com a criação de mundos altamente intensos e sem fissuras.” (p. 243-246). Tal atitude é contrastada, pelo
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Na trajetória paradigmática de Oiticica, o crítico analisa a ambigüidade da situação brasileira. Ao eleger a escola de samba e o morro da Mangueira como “uma espécie de suma da sociedade brasileira, oscilando entre uma utopia salvadora e uma precariedade violenta e dolorosa”, o artista incluiu materiais mambembes no seu trabalho, ecoando as contradições da nossa modernização desigual. Continua Naves: “A nossa vida social pouco estruturada, carente de instituições fortes e organizações civis representativas, faz com que a face coletiva de nossa existência guarde traços das relações familiares e afetivas. E essa característica irá marcar suas obras com a dificuldade de promover experiências que se afastem decididamente do campo da intimidade e do afeto.” (2007, p. 87)227 e ainda: “O fato de até um trabalho dilacerado e ambicioso como o de Hélio Oiticica reiterar alguns dos dilemas mencionados revela a profundidade dessa nossa experiência social. Na ausência de uma força social poderosa que fizesse vislumbrar novas possibilidades, parece restar apenas essa utopia rememorativa e docemente anti-capitalista, a única a fornecer indícios reais de um novo tipo de sociabilidade” (1996, p. 22). Para o teórico, tal postura fomenta distorções na leitura do trabalho de Oiticica e Clark, e dentre elas, ressalta a nostalgia de um mundo dionisíaco e primitivo que imprimiria, entre europeus e norte-americanos, valor agregado à obra de ambos. Quando Oiticica busca na valorização estética do barraco da favela a forma para o “penetrável”, e faz sucesso em Londres, despertaria, no europeu, uma saudade do primitivo que poderia ser saciada naquele “Éden” tropical e uterino? Suceder-se-ia então um tipo de incorporação de nossas “soluções” arquitetônicas, ainda mais radical do que os elogios populistas do CPC às formas de solidariedade encontráveis nas escolas de samba e nos times de futebol de várzea, que procuraram reproduzir em filme e em teatro como paradigmas de futuras células revolucionárias?
crítico, com a postura estética de Amílcar de Castro, que não teria abandonado a realização da obra autônoma e por isso alcançaria maior dimensão histórica. 227 A questão, bastante polêmica e de muita conseqüência para o nosso trabalho, é retomada esobre ampliada nos ensaios “Hélio Oiticica: entree violência e afeto” e “Um histórico: a recepção das obras de Hélio Oiticica Lygia Clark”, em seu livroazar de ensaios subseqüente (2007).
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No seu caso, os próprios materiais precários e transitórios do barraco, do puxadinho, das quebradas, participam do projeto artístico, ao ponto de chegar ao que Nuno Ramos considera como um tipo de “coincidência alucinada entre modelo e realidade” (2007, p. 128), quando “sujeito e objeto mutuamente se fundam e misturam” (p. 129), e a obra passa a integrar ou mesmo ser a vida, mas na verdade criando um “refúgio” de passividade e lazer, como se fosse um “caroço” ou “dobra” – um oco, que instaura no mundo um ambiente protegido de satisfação meio solipsista. Haveria na obra de Oiticica, segundo Ramos, uma tensão paroxística, entre o movimento de fusão com o “lá fora”, e o fato incontornável de que a sociedade moderna planejada é desagradável e contraditória. Por isso mesmo, a linha de costura entre obra e realidade precisa ser adiada (não à toa o título “aspiro ao grande labirinto”, retirado de uma frase de seus escritos, muito a propósito). Não há molduras ou pedestais que marquem a distância, ou o recorte delimitador, mas o desconforto de situar, por exemplo, um “penetrável” no espaço do museu (hostil ou indiferente) é contornado pela tentativa de circundar a obra com véus de tule e plástico que, na sua quase transparência e leveza, criam camadas tênues que tanto protegem quanto desvelam: “Entrar num trabalho de Oiticica é acessar uma região fisicamente difusa, que parece escorregar por toda parte. Algo ali se nega a prender o corpo ou a luz que o percorre – idealmente as paredes de seu labirinto seriam feitas de gás.” (p. 140). Mas se a intenção da antiarte é desmistificar a idéia de contemplação, sugerindo atividades ao “espectador”, no entanto ainda assim há uma indeterminação quanto a essa ação, que nada tem de claramente didático ou político, como se reconheceria, por exemplo, nas proposições da mesma época do alemão Joseph Beuys. Parece perpassar o texto de Nuno Ramos a insinuação nunca explicitada de uma potência vital que não divisa estruturas sociais que a poderiam acolher – como se a cultura do país à sua volta fosse informe, maleável e sem muita resistência ou ordenamento – o que, se permitiria uma expansão fundadora energética, ao mesmo tempo poderia conduzir ao anelo por um tipo de “migração interior” (na expressão de Antonio Candido) ou, segundo Ramos, ao adormecimento.228
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O texto de Nuno Ramos “À espera de um sol interno”, do livro Ensaio geral (2007) mereceria aproximação aturada, pela sua profundidade e vigor, aqui apenas flanqueado.
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O percurso até a antiarte (termo bem mais popularizado que “antipoesia”229), tal como se verifica na sequência de trabalhos posteriores ao “Bólide em homenagem a Cara de cavalo” (1966), quando Oiticica começa a abandonar as experiências construtivistas puras com cores e volumes para infletir na direção do que chamou de “momento ético”, guarda algumas peculiaridades diversas do caminho trilhado pelas neovanguardas naquele momento. Ao lado do caráter de protesto (que, nesse aspecto se assemelha aos congêneres europeus, norte e sul americanos) manifesta-se um forte traço ritual, uma vez que o “bólide” evoca uma urna funerária com epitáfio heróico. No ensaio notável de Gonzalo Aguilar (2008) sobre essa obra, o crítico reflete sobre a modificação radical que se observa na arte de Oiticica a partir daquele momento. Pela primeira vez a figura humana aparecia em um trabalho do artista, e mais ainda, um acontecimento que o abalava fortemente, alterando mesmo os rumos de seu percurso: “A arte, na homenagem ao bandido marginal, se desloca até a exterioridade, até uma alteridade que pode convertê-la em seu oposto, até a indigência do fora em momentos difíceis” (p. 156). No entanto, no mais das vezes, nem sempre a antiarte na sua versão brasileira revelou tanta carga trágica. Essa vertente extremada, que vai se espalhar também pela poesia, pelo teatro e pelo cinema, acopla à energia performativa (característica da cena artística dos anos 60 e 70, como índice da presença em lugar da representação), um tipo de mistura de tons, que vai do pastiche até certo “nãomeimportismo” desaforado ou festivo, cujos resultados são o mais das vezes crus e sintomáticos. Por querer ou sem querer, o nervo mais profundo é algumas vezes tocado e exposto, embora de forma bruta.
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Segundo li no mestrado de Deise Daiana Gugella Basanella, a idéia de antipoesia na América Latina estaria associada ao livro do chileno Nicanor Parra, Poemas y antipoemas (1954), citado pela pesquisadora em “A poesia sem estrela de Zuca Sardan: uma leitura de Ás de colete ” (Santa Maria, RS, mimeo, 2011, p. 3). Ela também alude ao termo “antipoesia” tal como utilizado por Hamburger (2007) quando trata de poetas que escreveram logo após a Segunda Guerra, cujo tom é especialmente prosaico ou literal: Ponge, Rósewicz, Enzensberger, Fortini, um certo Drummond – e que tiveram antecessores tão diferentes entre si como Moore, Williams, Brecht. Contudo, a meu ver, apesar destes autores compartilharem muitas vezes o estilo “imitativo baixo” e a negação de qualquer ilusionismo idealista, não se poderia de fato equiparar os poetas brasileiros dos anos 70, em sua recusa ou enorme dificuldade para constituir obras com valor orgânico, com a “nova austeridade” daqueles, cujo trabalho reflexivo com a linguagem nunca foi posto em dúvida.
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Pode-se certamente dizer algo semelhante da poesia “marginal”, entre a reprodução do cotidiano mais imediato e a elipse, o corte quase louco, que se observa nas produções de Torquato Neto, Ana Cristina Cesar, Francisco Alvim, Cacaso, Waly Salomão, Eudoro Augusto... poetas muito diferentes entre si que seguem, naquele momento, na direção do questionamento da obra acabada, orgânica, simbolizante. Mantendo-se alguma analogia com a situação das artes plásticas, igualmente reencontra-se na poesia essa aderência ao discurso contingente recortado da vida cotidiana ao lado de barreiras à comunicação aparentemente imediata. A precariedade social também é frequentada com intensidade pela mocidade de classe média, ainda que obviamente de modo diferente dos mais desprivilegiados. Mesmo quando não se buscaram pontes com a cultura popular (como fez Oiticica), ainda assim, a reverberação afetou, de uma forma ou de outra, aqueles jovens artistas, que, descrentes de ideários progressistas, vão procurar alimento no “primitivo” e “irracional” da contracultura. Comunidades urbanas que se reuniam à volta de projetos artísticos, como a Nuvem Cigana e os Novos Baianos, acabavam criando laços fortes com os sambistas dos morros, ou com a meninada de rua, que eram agregados a suas realizações. 230 Qualquer semelhança com o romantismo... No caso dos poetas, ao tentarem a experiência da vida longe da cidade, na fazenda do amigo Luis Olavo Fontes (onde passavam longas temporadas Cacaso, Ana Cristina, Charles, Chacal e outros), nas viagens pelo Rio São Francisco, na freqüentação da casa comunitária de Santa Teresa (núcleo da “Nuvem Cigana”), ou ainda ao agrupar-se no Píer de Ipanema (um istmo exilado do continente), essa geração isola-se da sociedade autoritária para abrir as portas da percepção para ilhas ou paraísos tribais, mas fechando-as e estreitando-as em relação ao mundo lá 230
...”a novidade que eu encontrei no Charme [da Simpatia, bloco de carnaval de rua da Nuvem cigana] foi freqüentar pela primeira vez um ambiente radicalmente democrático e fraternal, onde conviviam a rapaziada do asfalto e a turma da favela, brancos e pretos, arquitetos e operários, literatos e semianalfabetos, gente com sobrenome distinto e gente que praticamente só apelido tinha. Eu nunca tinha presenciado uma mistura social tão efetiva e natural” (declara Claudia Neiva de Matos, em depoimento para o livro de memórias de Chacal, 2010, p. 82) – aspecto que também observei recentemente ao assistir um dos CEP 20000, espetáculo promovido pelo poeta, no qual se nota a presença ativa tanto de jovens da Zona Sul quanto de jovens provenientes das diversas favelas do Rio, para cantar, tocar e recitar.
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fora. Resta saber se esta foi a melhor (e talvez única) estratégia interessante naquele momento, pois tanto nas associações políticas de esquerda quanto na reunião de jovens artistas, o pequeno grupo constituiu-se como possibilidade de troca de idéias e de experimentação de projetos coletivos. Já Silviano Santiago percebera a afinidade entre a rejeição dos poetas dos anos 70 às “formas bibliotecáveis de literatura” e as propostas “subterrâneas” de Oiticica, de Antonio Manuel, assim como dos cineastas underground que experimentavam com o super-8 naquele momento (1975, p. 184). Ao mesmo tempo, observava o simplismo de sua “ideologia rudimentar e juvenil” (p. 188) que se comprazia em fazer do poema mera “anotação de experiências vivenciais” (p. 185). No livro Nuvem cigana (org. Sérgio Cohn, 2007), muitos dos depoimentos coletados dos poetas do grupo vão na direção de contrastar o clima de repressão com o desejo de uma vida alternativa, comunitária, livre das injunções sociais autoritárias. A poesia é considerada uma atitude “subversiva” mais do que uma realização formal. Constantemente comparece esse mesmo ímpeto de engajar-se politicamente sem ter que ir para a luta armada (no fundo, única opção que se oferecia naquele momento). Queriam “agitar”, resistir ao “sufoco”, através da arte. Em consonância inclusive com as idéias políticas então em voga, prega-se a criação imediata, como se pontifica no artigo “Consciência marginal”, de Bernardo Vilhena, (revista Malasartes, 1975, n. 1): “Procuramos a poesia que salta da consciência do poeta pra um papel qualquer”, numa atitude adolescente transgressiva em relação às leis sociais: “instantâneo revelado às pressas, do cigarro a varejo e tantas coisas mais, desfrutadas em comum”, a apresentar-se ao lado da rebeldia irônica contra o sistema dominante: “a poesia que não cabe em estantes programadas, que não foi incorporada ao comércio do livro e à cotação periódica dos artefatos consumíveis, que não se abriga num rótulo aceito nem se defende numa escola reconhecida. Já sabemos que a civilização está em boas mãos, que a economia está em boas mãos, que o poder passa de boas em boas mãos. E a poesia, está em boas mãos? Esperamos que não.” A relação entre arte e política, ambas alheadas das estruturas sociais, torna-se evidente. Há um ar clandestino nesta maneira de se referir à poesia como algo que lembra a cola do
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colégio ou o baseado, passando sub-repticiamente de mão em mão – como um gesto apenas realizável através da interação do grupo. 231 Houve um corte em relação ao otimismo político da década anterior assim como a possibilidade de engajamento no processo de transformação social, e, com isso, o estreitamento da área possível de atuação. Nos melhores momentos, a poesia marginal (latu sensu), por desconfiar do “todo postiço” ou “má totalidade” que se impunha dogmaticamente, a falsear a dinâmica da realidade em suas contradições, repele tanto o didatismo chão, típico da maior parte da poesia engajada dos anos 60, quanto a ausência de ferrugem subjetiva do construtivismo de certo ufanismo concretista. No livro bastante completo de Teresa Cabañas (2009) sobre a poesia marginal, a pesquisadora ressalta a necessidade, naquele momento, de marcar presença ativamente abrindo brechas e “não dissimular a existência desse cotidiano sufocante” (p. 38), reconhecendo a “situação de perecibilidade” que acompanha a sensação de irrelevância do poeta (p. 61). A “consciência plena da finitude”, conforme se sugere em exemplos de poemas e manifestos mencionados por ela (dentre outros, destacamos este, de Cacaso: “Toda coisa que vive é um relâmpago”, em “Natureza morta” ( op. cit., p. 72) ou o “instantâneo revelado às pressas” (p. 74)232 na expressão citada de Bernardo Vilhena) são a “ofuscante constatação do presente” (p. 93), sem esperanças, sem idealizações, por um sujeito que se reconhece insignificante, anônimo. Nas palavras de Cabaña, um “eu exacerbado, voluntarioso e vitalista, mas ao mesmo tempo achincalhado” (p. 96). Assim, os poetas intentam representar a vida diária, sem heroicizar, com baixo tom e desajeitamento da forma, para transmitir a existência inútil e falida. A “recusa à operação transfiguradora”, ou ainda, na expressão da estudiosa, a 231
Acompanha o “manifesto” uma antologia de poetas, dentre os quais comparecem Chacal, Afonso Henriques Neto, Charles, Ana Cristina Cesar, Ronaldo Bastos, Ângela Melim, João Carlos Pádua, Francisco Alvim, Roberto Schwarz, Luis Olavo Fontes, Cacaso, Eudoro Augusto, Leomar Fróes, o próprio Bernardo. Podemos reencontrar a transcrição completa do texto, seguida de comentários críticos, na dissertação de Fernanda Félix Litron (2007). 232 Referindo-se a essa definição, nota Armando Freitas Filho: “A poesia brasileira que no Modernismo apelou para a Kodak para descobrir os instantâneos da vida, hoje realiza o poema-polaróide, de revelação instantânea e “elabora” um estilo e uma estética do inacabado, do “surpreendido” pelo acaso da interferência do poeta” (1979, p. 113) Não por acaso o poema de Cacaso se chama “Natureza morta”, pois tanto nesse caso como no texto de Vilhena, a referência é a arte “still alive”, que se manifesta no instante presente, como uma brusca iluminação, imediata, efêmera.
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palavra “desluzida” (p. 115), advém da consciência de que “A vida é sempre igual a si mesma” (verso final de “1974” de João Carlos Pádua).233 Não se trata, porém, de considerar tais atributos qualidades, ainda que possamos justificar historicamente sua existência. Essa auto-negação, com concomitante depreciação da obra de arte, conduziu a um limite extremo, que recaiu ora na máxima banalização, ora na pungência quase distraída da anotação honesta a captar até mesmo o que não percebe, como se adverte nesse despretencioso poemeto de Guilherme Mandaro, para o qual cairia como uma luva a pecha de “instantâneo”, “anotação” e “polaróide”: a área interna é um lugar muito frio onde as roupas secam o sucesso toca uma criança chora a empregada um passarinho uma gaiola um cachorro o sol fica lá no alto
(Hotel de Deus, Ed. Nuvem Cigana, 1976) A experiência não transfigurada, que se recusa a ir além do ambiente restrito, pode alcançar profundidade, mesmo quando insciente. Se “o sol fica lá no alto”, bem longe deste “lugar muito frio”, onde pessoas e bichos confinados são igualmente enumerados como desimportantes, o perigo da precariedade ronda o tema assim como a forma de representá-lo. Em vista disso, penso que se deve discernir, na poesia dita marginal dos anos setenta, uma produção no geral eufórica e acintosamente ingênua, e outra dúbia, cuja negação do literário se deveu à descrença do papel da linguagem como efetiva, pois o sufocamento do espaço social conduziu a contradições na relação com a própria idéia de obra de arte. O que se experimenta, por exemplo, na leitura desse poema do Charles – muito significativo para identificar o outro lado do “desbunde” e captar a autoironia perplexa daquele momento:
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O verso, de Drummond, é mencionado na epígrafe do poema, na qual vem advertido: “desentranhado do poema 1914 de Carlos Drummond de Andrade”, de Boitempo (1968). E o poema de Pádua retoma o clima de guerra em surdina, que não se vê mas se pressente, tal como o menino Drummond vivenciara as notícias longínquas da Primeira Guerra, no interior de Minas. Aqui, acrescido pela sugestão à censura (“Não vem nada no jornal”).
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o operário não tem nada com a minha dor bebemos a mesma cachaça por uma questão de gosto ri do meu cabelo minha cara estúpida de vagabundo dopado de manhã no meio do trânsito torrando o dinheirinho miudinho a tomar cachaça pelo que aconteceu pelo que não aconteceu por uma agulha gelada furando o peito
(Perpétuo socorro, Ed. Nuvem Cigana, 1976) O fato de o poeta não se identificar com a subjetividade do operário e afirmar mesmo a sua marginalidade, a sua “alienação” deliberada, parece uma provocação à ideologia assim exposta como filistina dos poetas ligados à Revista
Civilização Brasileira, cujo gosto pelo estilo grandiloqüente unia-se a um conteúdo soi-disant revolucionário.234 Coloca-se a diferença do poeta em relação ao povo à sua volta e ao mesmo tempo insinua-se certa afinidade comum na desvalorização. Há uma apologia desaforada da inutilidade da ação que, pelo avesso, evoca as considerações de Silviano Santiago quando observava a alegria descompromissada da época como forma de resistência pouco consciente à constrição social - dois lados da mesma moeda. Ponderam ainda Simon e Dantas a respeito da suposta aproximação entre poeta e povo: À miséria popular são atribuídas as mesmas posturas que o poeta assumiu: a ignorância é curtida como antiintelectualismo, a desclassificação social como transgressão pequeno burguesa, a falta de perspectiva como negação do progresso. A desqualificação estilizada impõe seus pontos de vista de classe e interpreta a outra, a social, à sua imagem e semelhança. As imagens de caos urbano, miséria e perdição materializam, portanto, sentimentos genuínos, porém dúbios, pois não se fundam na experiência 234
Adorno, como sempre percuciente no que tange aos impasses da ideologia, observa na Dialética do Esclarecimento: “É característico de uma situação sem saída que até mesmo o mais honesto dos reformadores, ao usar uma linguagem desgastada para recomendar a inovação, adota também o aparelho categorial inculcado e a má filosofia que se esconde por trás dele, e assim reforça o poder da ordem existente que ele gostaria de romper. A falsa clareza é apenas uma outra expressão do mito.” (p. 14) Mas...duas ressalvas: deve-se levar em conta que o tom inflamado e propositadamente simplista (supostamente popular) de tantos poetas que participaram dos Violões de Rua do CPC, depois incorporados às revistas de esquerda dos anos posteriores, pode ser apreciado como tentativa de resistência ao despotismo da ditadura da época. Se sua linguagem envelheceu, talvez isso também reflita o ceticismo de nossa sensibilidade atual. E, principalmente: não há regras para a criação. Mesmo utilizando imagens, formas métricas e rítmicas as mais tradicionais, Vinícius de Moraes escreve “Operário em construção”, obra-prima rimada em “ão”...Tornou-se um dogma o famoso bordão de Maiakóvski, cuja verdade relativa deveria ser contextualizada historicamente.
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social da desqualificação mesma, o que, por sua vez, tem um gosto inegável de privilégio. (p. 58-59)
Em todo caso, deve-se creditar ao poeta a lucidez de não tentar fingir um lugar de classe que não é o seu, esquivando-se do sentimento de solidariedade populista. Já que estavam cortados os laços ideológicos que aliaram em frentes amplas os intelectuais e as massas: agora o estranhamento e a degradação mútuos são denunciados sem disfarce. É o mesmo Charles que escreverá versos nos quais faz papel de palhaço ou viralata autoirônico.235 No geral, os poemas o colocam na posição do jovem sem prumo nem rumo, que vagueia entre o entediado e o inconseqüente, às vezes ameaçando se autodestruir, mas sem densidade, como personagem de desenho animado, que pode ser achatada e logo se recompõe. Em sua crise de esperanças finalistas, a poesia alimenta uma desistência em relação a mudar o todo social acoplada à perda das certezas fundamentais, o que induz a algum tipo de identificação com as minorias e o marginal social. Tal perspectiva também podia levar a um sentimento de desintegração. A percepção do exílio social, da incomunicabilidade, e até de certa paranóia, permeia muitos escritos desse período (em sentido largo), seja em Ana Cristina, Torquato, Cacaso, Chico Alvim, Armando Freitas Filho, Sebastião Uchoa Leite ou Lygia Clark. A oposição às explicações supostamente abrangentes da realidade conduziu a um tipo de fragmentação da linguagem que, muitas vezes, resultou em poesia acidental ou solipsista (como nos últimos escritos de Torquato e de Ana Cristina). A ironia, agressiva em relação até mesmo ao próprio sujeito, acaba por atingir a concepção da forma literária, produzindo-se então material bruto, que se quer contingente e reduzido ao pré-estético. Ou ainda, o sentimento difuso de não pertencimento desemboca numa resistência a qualquer compromisso que possa parecer submissão a formas sociais impostas. A esse respeito, Cacaso comenta acerca da poesia de Chacal o quanto ela busca a “plenitude da gratuidade” como consequência de sua “alergia visceral relativamente à situação e ao clima de autoritarismo reinante de alto a baixo no 235
a poesia alimenta revoluções/é o viralata esperto na mira da caça/a
poesia é a os criação maispensam barata/a mais de delicada/o mais alto/porque palhaços que situação tem a cabeça borrachatombo (Coração de cavalo , Nuvem Cigana, 1979)
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país, dentro e fora da vida literária.” (1997, p. 43) Outra ressalva que se faz aos poetas dessa geração, especialmente os considerados “marginais”, é o enfraquecimento do estilo pessoal em prol de uma escrita comum - como se todos estivessem compondo um poema a muitas mãos, conforme sintetizou o mesmo Cacaso. Há, de fato, uma desindividualização perceptível na recorrência a temas do cotidiano miúdo e na reiteração das mesmas formas de construção. Paradoxalmente, o que sinalizaria o débacle da qualidade, pode, em alguns momentos, mostrar-se conseqüência de uma escolha. O fato de Francisco Alvim ser “o poeta dos outros” - aquele que ouve as vozes sociais para magnificá-las, parodiando as nossas particularidades e fraquezas - situa-o como sujeito deslocado de sua interioridade única para captar as inconsistências do todo. De forma análoga, a questão se repropõe para o próprio Cacaso, assim como para José Paulo Paes, Sebastião Uchoa Leite e Rubens Rodrigues Torres Filho, por exemplo, que, sendo de gerações e estilos bastante diferentes, privilegiam em comum o tom satírico como modo de superar uma subjetividade viciada pelas circunscrições do lugar social. Já Ana Cristina Cesar, ao expor sua correspondência e diário sem revelar de fato a intimidade, de maneira elíptica e muito mediada – “singular e anônima” (conforme a precisa expressão de Silviano Santiago) - também desnuda a inconsistência de falsa mônada. Embora a expressão do instante imediato possa ser considerada como o traço mais óbvio da poesia marginal, freqüentemente soma-se a isso uma imagem que demanda reflexão sobre o lugar do sujeito e suas possibilidades. Segundo Heloísa B. de Hollanda, “É a arte de captar situações no momento em que estão acontecendo, sentimentos que estão sendo vividos e experimentados e fazer com que o próprio processo de elaboração do poema reforce esse caráter de momentaneidade.” (1980, p. 112) Se depois parte destas produções foi absorvida pelo mercado, quando em sua srcem dirigia-se a um grupo de pessoas diretamente envolvidas com a realização seja do livro coletivo seja do “não-objeto” artístico, é necessário reconhecer, com Simon e Dantas, que nelas habitava o germe ambíguo da facilitação. Fazia parte da proposta inicial esse pressuposto que induziu tanto à extremada valorização contemporânea dos ninhos efêmeros de Oiticica quanto aos poemas propositadamente imediatistas e contingentes da geração marginal.
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No entanto, apesar da fragilidade da realização formal em muitas obras de Oiticica, Clark, Pape, Antonio Manuel, Artur Barrio, e vários outros, observa-se que a crítica de arte considera-os – com ou sem razão – os pioneiros da arte contemporânea. A diferença, parcial, em relação à apreciação da poesia da época reside em que as artes plásticas realizaram um movimento radical de autoreflexão, com muita conseqüência hoje. Por isso, receberam uma atenção mais generosa da crítica em geral, enquanto a poesia parece ter pegado carona no clima de rebeldia geral, sem aprofundamento teórico, ressalvando-se dois ou três (Ana Cristina e Chico Alvim, dentre outros) como mais conscientes em relação aos problemas de formalização e alcance de sua escrita. Não obstante, as aproximações entre ambos os universos artísticos parece evidente. Rodrigo Naves, porém, relativiza a importância destes “desconstrutores” das artes plásticas ao ponderar, com justeza, que não se deve considerá-los a única linha de força influente para o conjunto da produção hoje. Também reduz o alcance das interpretações um tanto ufanistas de suas obras quando observa seu caráter excessivamente intimista, sensorial, colado ao sujeito. Além disso, a indeterminação entre arte e vida parece-lhe uma proposta que tende a dissolver a obra na linguagem da vida comum, minimizando por vezes seu possível impacto. De forma semelhante, Simon e Dantas lamentam a ausência de projeto renovador ou utópico na poesia marginal, que parece sugerir tão-somente as relações afetivas do cotidiano, como se se vivesse num tempo e num espaço encurtados. Um poema que ecoa e mesmo menciona as sugestões “performativas” (na expressão de Roberto Zular, 2005) das artes plásticas no sentido de proposição imperativa, ao mesmo tempo que deixa entrever a falta de projeto, retirado do livrinho semi-artesanal e ilustrado de Luis Olavo Fontes: Homenagem a Yoko Ono
Saia às ruas na noite. Fixe o olhar num poste de mercúrio e deixe que os carros, como tiros matem por um segundo a luz que dele emana.
(Prato Feito, Vida de artista, 1974)236
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Sobre esse poema e o performativo que não se completa, conferir, de Roberto Zular, “O que fazer com o que fazer? Algumas questões sobre o Me segura qu’eu vou dar um troço de Waly Salomão” (2005).
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Apresenta-se a sugestão de uma ação inútil, que remete tanto ao aspecto instantâneo do poema quanto à gratuidade da própria vida (seja do artista, seja do leitor). A rapidez dos carros mimetiza a violência da passagem do tempo associada à intercambialidade do sujeito e seu destino arbitrário. Destacamos, a esse respeito, as reflexões de Fernanda Teixeira de Medeiros, estudiosa da poesia marginal: No regime dos próprios dias vividos, descartáveis, dos instantes que se seguem e se substituem, cada “anotação” rodada nos mimeógrafos transforma-se em bilhete que se lê e joga foram, num movimento de perdas e ganhos, pois logo a seguir virá outro bilhete, e logo outro. Nesse sentido, a expressão usada por Heloísa Buarque para se referir à poesia marginal é uma das mais felizes e precisas que encontrei: “psicografia do absurdo cotidiano” parece traduzir melhor a situação trágica (?) de produzir poemas em massa, atestando não só a pressa sincopada contra a inexorabilidade do tempo mas uma condição de artista eternamente in progress, que não encontra outro espaço para a sua arte que não o estar muito próximo da vida, e longe da biblioteca. (em Pedrosa, Matos, Nascimento, orgs., 1998, p. 61)
Assim, o que foi avaliado como pioneiro e altamente valorizado no reino das artes plásticas (como o questionamento das fronteiras estabelecidas pela autonomia da arte, determinando-se que esta se encarnasse numa experiência sensorial, a fim de despertar ou ampliar a consciência do espectador, ainda que à custa da realização de uma obra perene), é de fato bem mais problemático como proposta no reino da poesia. O happening ou performance característico dos anos 60 e 70 recebeu atenção positiva ou negativa da crítica especializada, mas não se estimou que a poesia poderia ser contaminada por esse mesmo espírito ao ponto de (quase) se autodestruir. Nas revistas que publicavam lado a lado poemas e manifestos de artistas plásticos (como GAM, Navilouca, Malasartes, Beijo, dentre outras) se promovia a apologia da aniquilação do objeto artístico. Além de muitos poemas do grupo chamado “marginal”, há textos que se equiparam aos projetos radicais da arte em crise, tal como o de Chacal, “Artimanha: ardil, artifício, astúcia” ( Malasartes, n. 3, abr-jun 1976).237 Os jovens poetas partem da premissa de que é urgente participar, que a arte deve ir à rua, ou “a vida” precisa estar no poema. Comprovamos como as artes plásticas e a poesia compartilhavam a necessidade de ultrapassar os limites de 237
Desenvolvo outros comentários sobre ele no item sobre revistas.
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suas molduras ou suportes. Mas, como já reiteramos, o que nas artes plásticas alcançou um alto grau de prestígio, na poesia resultou geralmente em má qualidade. Ambas caminhavam pelo mesmo momento de crise e buscavam soluções similares, entretanto parece mais grave a presunção do poeta que ignora o intervalo entre vida e palavra, do que a atividade performática do artista que imagina compartilhar vivências “reais” com os “participadores”. Simplesmente, a palavra não pode ser a coisa, e a ilusão de transposição bruta, como se fosse um
ready-made, acabava muitas vezes por destruir o poema – a não ser quando permanecia a tensão entre o imediato (que, no fundo, nunca pode sê-lo) e a elaboração, intuída ou meditada. Nas artes plásticas, o dilema deve ser provavelmente o mesmo – com a diferença, talvez, de que os objetos podem ser transpostos de fato para a obra. Por tudo isso, propomo-nos a apresentar em síntese alguns traços dessa poesia sob aspectos que julgamos fecundos, na forma das notas a seguir. 1) Dessublimação: “presente veloz”:
Consideremos a proposição de Rosalind Krauss, crítica de arte norteamericana, que observa como a produção cultural dos anos 70 rejeita o “modelo de sublimação”: a idéia de que “a função da arte seja sublimar ou transfigurar a experiência, elevando-a do ordinário para o extraordinário, do lugar-comum para o único” (apud Perloff, 1998, p. 10), e até, acrescentaríamos, da mortalidade da existência concreta para a imortalidade do objeto com aura. A obra artística, anteriormente problematizada pelas vanguardas, sofrerá ataque ainda mais contundente nos anos 60 e 70. Se, pelo menos desde Baudelaire, o lugar da poesia na sociedade capitalista é conscientemente ambíguo, tal angústia provoca movimentos contrários de aproximação ou repulsa tanto em relação à vida quanto, mais ainda, em relação à sua configuração estética. Para críticos importantes como Habermas, seguido por Jameson, a dessublimação conduzirá à queda ao nível da indústria cultural, e às facilidades da perda do contraforte formal, que permitia a autonomia. Krauss e Perloff não pretendem opor-se totalmente ao modelo de sublimação nem minimizar os efeitos banalizadores da indústria cultural – apenas
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ressalvam alguns intercâmbios entre arte e sociedade que possam ter interesse, de modo a não opor ou separar completamente a arte do “resto”. Ao longo dos anos 60 e 70, augúrios de mudança no modo de olhar a produção artística podem ser reconhecidos claramente nas artes plásticas (mais tangíveis do que a poesia). Desde os neoconcretos, experimentamos a oscilação 238
entre obra estética e objeto derivado do uso cotidiano, posto que subvertido. A característica improvisatória de uma arte que congrega, criticamente ou não, elementos da linguagem diária, da experiência prosaica, e da vivência corporal, a fim de questionar o seu próprio lugar relativamente autônomo, está, como vimos, na fronteira da dissolução da própria idéia de obra. Por exemplo, incorporando ao literário estilos antes adequados à carta, ao diário e à confidência, à anotação de margem de caderno, ao bilhete que passa de mão em mão. Enfim, crescia a desconfiança em relação à arte enquanto formalização de objetos para contemplação e depois para circulação como mercadoria. A suspeita em relação ao sistema capitalista como alienante atinge também os poetas jovens, que desejam tanto ser independentes na edição de seus livros quanto na própria produção poética, ao exibir (ou mesmo, escancarar) os bastidores da criação. Apagar e superficializar, por vezes, a relação entre alta cultura e cultura de massa (como advertem Jameson e tantos outros, desde Adorno) ressalta o aspecto passageiro dessa arte, que muitas vezes só se realiza por formas interativas efêmeras em que a mensagem pretende, ambiguamente, contrapor-se ao meio. O problema é a falta de distância resultante entre obra e mundo, que acarreta um tal encurtamento da diferença de ambos que pode perder-se o intervalo de reflexão. Em trabalho que se tornou referência para a crítica da cultura da época, Marcuse (1967) condenava a tendência à dessublimação da arte, que dessa maneira perderia o valor de rejeição do status quo em nome de um pluralismo indiferente e de uma redução da necessidade de aperfeiçoamento de si e da sociedade: a “consciência feliz” e a “sexualidade desinibida” poderiam resolver os 238
Não apenas no Brasil, mas no mundo, observa-se a formação de coletivos de artistas que teorizavam sobre a necessidade de evitar a lógica da mercadoria, criando objetos lúdicos ou críticos, com a aspiração de a “desmontar o falso espetáculo do cotidiano” (segundo palavras que parecem ecoar Debord). Um dos grupos mais influentes no cenário das artes plásticas dos anos 60 e 70, o Fluxus representou com magnitude o espírito da época, apregoando uma produção coletiva, apoiando a arte política, a performance, a superação do objeto a ser vendido. Dele participaram John Cage, Joseph Beuys, Nam June Paik, dentre outros, principalmente na Alemanha e nos EUA.
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impasses sociais - acreditava-se ilusoriamente. Porém, precisamos distinguir, ao lado de uma literatura muito aderente ao imediato factual de fachada, a poesia do “desejo decepcionado” (na expressão de Celso Favaretto) que corroía, de modo complementar, a rebeldia eufórica das pseudo-rupturas. Assim, havia alguns artistas que afiavam um gume ainda mais radical de criação, suportando incorporar a antítese do literário sem aí permanecer. Apesar de o quadro geral anunciar perspectivas catastróficas, faz-se necessário distinguir a resistência e a srcinalidade do criador particular. Poetas como Armando Freitas Filho, Ana Cristina Cesar, Francisco Alvim, Cacaso, e outros dessa geração, foram capazes de enfrentar o dilema de aproximar-se o mais possível da experiência vital em estado bruto, desequilibrando o esteticismo das formas limadas. Sua produção é irregular, pois nem sempre conseguiram alcançar a síntese necessária entre o fato, a empiria, a abstração, a quebra de código e aquele “mais” que descola a literatura da língua prosaica: enfim, são todos, no seu melhor, um grande “Poema sujo”. Justamente Ferreira Gullar, no Manifesto Neoconcreto, uma década antes, antecipava o não-objeto, a ser desvelado pelo leitor, exigindo sua intervenção: se a realidade é inconclusa, também a obra deve fluir, modificar-se... Ele reclama uma poesia presente, na carne das coisas, nos barulhos, na experimentação da luta corporal, em que se rejeite a técnica poética exterior, como se a linguagem não existisse antes do poema: eu não podia mais me ater a normas prontas, eu tinha de descobrir no processo a forma do poema e esta é, enfim, a essência do livro A luta corporal, numa intensidade de procura que passa pela destruição, até chegar aos escombros do som e à “sabedoria do corpo”, à “fala brotando em silêncio”.239
A exigência, radical, devia ser a contrapartida do sentimento compartilhado por uma geração: de que qualquer forma ou tradição anterior ou 239
Ferreira Gullar, “Reinvenção da poesia”, Indagações de hoje (Rio de Janeiro: José Olympio, 1989), p. 28. Desde A luta corporal , o poeta vinha experimentando formas radicais de crise da linguagem poética. No momento neoconcreto, a teorização sobre a necessidade de trans formação da arte atinge um est ágio alto de consciência. O debat e desencadeado pelos seus manifestos e textos será o último suspiro do construtivismo (segundo Ronaldo Brito), uma vez que se encaminham decididamente para a antiarte, ao propor o rompimento da moldura e o conseqüente abolir da separação entre arte e mundo. Certamente toda a reflexão de Helio Oiticica sobre o “transobjeto” , “arte ambiental”, “participação do espectador” deve muito às proposições de Gullar acerca da necessidade de a arte ter um sentido ético, enraizado nas manifestações sociais.
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exterior ao momento da criação poética tornara-se enrijecida, portanto reificada, e precisava ser destruída. Se pudéssemos sintetizar o vórtice de tensão que a arte do período expõe em uma pequena estética da dessublimação e da gana de retomar o instante vital perdido, leríamos como um manifesto “Arte poética” de Ferreira Gullar: Não quero no morrer não quero apodrecer poema que o cadáver de minhas tardes não venha feder em tua manhã feliz e o lume que tua boca acenda acaso das palavras - ainda que nascido da morte – some-se aos outros fogos do dia aos barulhos da casa e da avenida no presente veloz Nada que se pareça a pássaro empalhado múmia de flor dentro do livro e o que da noite volte volte em chamas ou em chaga vertiginosamente como o jasmim que num lampejo só ilumina a cidade inteira
(Na vertigem do dia, 1975-80) Tanto a primeira como a segunda estrofes erigem-se sobre imagens que fortemente se contrastam, distinguindo a morte noturna e rígida do fogo diário, instantâneo, veloz. O movimento rotatório em espiral dos versos da última parte do poema bem representa a intensidade do desejo de encarnar-se na duração do tempo horizontal da vida, que afinal acelera-se em ressonâncias que mimetizam a “vertigem” do instante presentificando-se. Com isso, tenta furtar-se à mumificação da arte empalhada no museu. O paradoxo de uma arte semelhante à chama, que se consome sem fixar-se, mas que, no momento em que fulge, ilumina a cidade sem deixar peso ou rastro, acompanha o poeta até seu livro mais recente, como uma tensão que não cede, recusando-se, na forma, a abandonar a construção do poema, ao mesmo tempo em que, no conteúdo, incita o elogio do instante. Apesar disso, seria uma violência aproximar a poesia de Gullar da negação do projeto de futuro aliado à rejeição da obra que reconhecemos nos “marginais”,
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pois sua sede de vida não prescinde de sonhos políticos e existenciais de longo alcance. Se, como aquela geração, partilha a afirmação intensa do presente, entretanto ao fazê-lo não abandona a fatura poética. Acredito que a poesia de Armando Freitas Filho – que se quer seguidora das questões levantadas por Gullar - brota do impulso tenso de superar a expressão pronta sem cair seja no cerebralismo a-subjetivista, seja no pseudoengajamento, seja no primitivo espontâneo. Há nele o acicate de reclamar uma poesia imediata, na carne das coisas e na experimentação da luta corporal em que se rejeite a identidade fixada que existia antes do poema. A sensação de contundência, velocidade, premência de toda sua poética advém do mal-estar de quem se sabe afrontando as paredes do mundo, todo o tempo chocando-se, com raiva e impotência muitas vezes, para extrair alguma faísca desse embate.240 Sem talvez ter lido Adorno, quando este considerava os perigos de aderir mimeticamente ao mundo em que certa arte poderia submergir (em detrimento da resistência que o eu precisa opor seja ao irracionalismo regressivo seja à subjetividade superficial dita espontânea em geral subordinada à estereotipia social),241 Ana Cristina escrevia: Por afrontamento do desejo insisto na maldade de escrever mas não sei se a deusa sobe à superfície ou apenas me castiga com seus uivos. Da amurada deste barco quero tanto os seios da sereia.
(“Nada, esta espuma”, Cenas de abril, 1979, repub. em A teus pés, 1982) Proposital ou não, o poema alude à situação dilemática de Ulisses, que anseia ouvir o canto das sereias sem ser por elas destruído. Superar a atração do 240
Tanto Gullar quanto Freitas Filho devem muito a Cabral que, no “Cão sem plumas” e em tantos outros poemas, mergulha no mangue opaco das coisas, para extrair formas e imagens. Dele não herdaram a mesma geometria construtiva, mas o espírito metonímico e obsessivamente s erial de aproximar-se em camadas at é desnudar o cerne. É consensual comparar o final do “Poema sujo” ao estilo cabralino em sua forma gradual e reiterada de apresentação dos objetos, mas creio que desde o princípio do poema já há uma “desconstrução” do seu método de conhecimento do mundo. Armando Freitas Filho expõe estas tensões que claramente se apresentam em sua poesia de discípulo e contendor. 241
Tema recorrente em seus estudos estéticos. Aqui me refiro especificamente ao conhecido ensaio “Ulisses ou mito e esclarecimento“ constante em Adorno, T. W. e Horkheimer, M., Dialética do esclarecimento (1985).
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mito e substituir o instinto pela astúcia é sua condição de herói pré-burguês. A poesia, se “ingênua”, deveria aderir e imitar a canção da natureza. Mas, nesse período “sentimental”, um retorcimento se coloca, para o mal-estar da civilização.242 O poema inspirado pelas musas é agora castigo para quem as escuta, pois daqui se ouvem uivos, tal o grau de divisão malsã entre homem e mundo. A possibilidade de mergulho nesse mar inconsciente é perigosa, mas sempre tentadora: se fosse possível ultrapassar a amurada do barco e ir simplesmente ao encontro dos seios da sereia sem dissolver-se em espuma e nada pós-mallarmaico ... No entanto, o eu lírico hesita: resolve, como o herói racional, afrontar o desejo e não ir até as sereias: mantém-se no navio, a escrever. Por isso, é castigado. A “deusa”, sinônimo de musa – aquela que deveria inspirar o poema – parece aqui apenas uivar desagradavelmente em vez de cantar para o poeta, que tanto a quer. Sua resistência ao mergulho permite a existência do poema (e do poeta)... graças à difícil renúncia. Os “pânicos felinos debruçados na amurada” (“Último adeus II”, Cenas de abril) evocam o medo contumaz que o gato (com o qual ela se identifica em mais de um poema) tem da água. Coloca-se em crise o hiato entre sujeito e mundo, e o poeta se situa nessa posição desconfortável. Parece haver no canto das sereias uma potência regressiva fatal, que seduz e hipnotiza irremediavelmente o ouvinte, quem sabe prometendo toda delícia e conforto possíveis. Provavelmente, era uma melodia entre o sussurro animal e a potência maior da música – primitiva como a voz da mãe que embala o bebê, e como a voz da amante que suspira. Pois, como refletia Barthes (n’ O prazer do
texto, 1973), um dos motivos de jouissance na leitura literária encontra-se na fenda entre a linguagem dita “normal” e a sua transgressão pela “significância”. Maria Lúcia de Barros Camargo, ao analisar minuciosamente este poema,243 relaciona-o a vários outros na obra de Ana Cristina que tematizam o navio no mar e o limiar dos parapeitos ou do cais. Sem poder aqui apresentar todas as direções de sua leitura, destaco a antinomia explorada pelo “Bateau ivre” 242
Por coincidência (ou não...), Freud, em O mal estar da civilização (1931), nomeia o êxtase da comunhão com a natureza (com o outro, com o mundo), que pode em alguns momentos inspirados acometer um adulto, de “sentimento oceânico” – para ele a possível lembrança de um estágio muito primitivo do desenvolvimento (quando a criança vivia a ilusão de continuidade com 243
o seio materno). Refiro-me ao capítulo “Configuração do espaço” de seu livro uma leitura da poesia de Ana Cristina César (2003).
Atrás dos olhos pardos:
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de Rimbaud, fluindo secretamente para Mallarmé, a colocar em dúvida o feito autoenrijecedor de Ulisses, numa hesitação entre o impulso de lançar-se ao mar, abandonando-se, e a aspiração de preservar-se. Já o núcleo duro dos marginais chega ao ponto de propor a poesia como uma forma de vida, radicalizando as afirmações de Gullar na “Arte poética” (e em tantos outros poemas e textos teóricos) a um ponto que ele apenas sugerira:
Latente em quase todos nós, desperta aos poucos uma atitude que o Cacaso define numa frase convicta: “a vida não está aí para ser escrita, mas a poesia sim está aí para ser vivida.” (Bernardo Vilhena, Malasartes , n. 1, 1975)
A despeito de estes versos de Cacaso terem sido muito citados e portanto banalizados, transcrevêmo-los para enfatizar a semelhança entre os anseios dos artistas plásticos e os dos poetas, pois ambos desejavam produzir uma arte “still alive” (como queria Waly, contrariando a expressão “still life”). O problema reside em que toda aproximação paradoxal entre arte e vida, necessária para manter a dinâmica da obra, acaba por se esvair, quando o poeta se lança da amurada mediadora. Charles, por exemplo, defendia uma poesia das sensações imediatas, preferindo se ater à descrição de cenas cotidianas, sem grandes retóricas, fazendo o gênero desencanado e irreverente. De acordo com Hollanda, “o instante não é mais procurado como efeito inesperado, tal como o apreendia o modernismo, mas é aquele instante diluído no cotidiano, que se passa a toda e qualquer hora.” (1980, p. 123). Confira-se em Perpétuo socorro (1976): ando menos preguiçoso lavo fogãouma com maria grandelouca ardor cantoo como esse tango é demais ângela maria parece insuperável o pentelho da vida não me preocupa
Esse poemeto valeria bem como epígrafe de um ensaio sociológico que se propusesse a comprovar o bom-humor com que a geração do “vazio cultural” se dispunha a enfrentar o estreitamento das possibilidades de participação na vida civil. Seria uma adesão resoluta ou irrefletida ao marasmo reinante, traduzindo-o fielmente, ou haveria certo grau de ironia, mesmo (quase) inconsciente? A energia para esfregar o fogão, a escolha musical e a “chave de ouro” do final comentam o apequenamento da vida ao cotidiano doméstico, ilustrando, pela
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negativa irônica, o que ainda se podia almejar. “A única coisa a fazer é tocar um tango argentino”... mas rindo... 2) Descuido ou premeditação: “displicência estudada”:
Como o sabemos sobejamente, o lugar desses poetas não se situa na escrita formal e apurada, pendendo, ao contrário, para a dicção dita imediata. O que tentam expressar em seu texto, tão mutável quanto a transitoriedade das cenas urbanas ou mentais que apresentam, é o contraste entre a aderência alienada aos acontecimentos sucessivos e o rompimento disso através de indícios chocantes, penetrando o fluxo abruptamente, para cortá-lo. Assim, esta poesia contém aspectos hiper excitados decorrentes do dinamismo da ação, e do desejo de comunicá-la superficial e prontamente (como numa conversa entre amigos), ao lado de remansos para a reflexão e para o devaneio digressivo. Pois, evocando o título de um poema de Ana Cristina Cesar, “Ameno amargo”, associamos, aos melhores momentos da poesia marginal, uma fina percepção das tensões existenciais daqueles anos, expressa de forma elíptica e propositadamente displicente. De Guilherme Mandaro, em Hotel de Deus (1976): meu amigo de infância continua emagrecendo fala depressa diz que a vida tá difícil que mário continua exagerando que ele vai à praia ali mesmo enquanto a cerveja sobra no copo alguma coisa sobra no papo a noite apenas começa
Na despretensão pedestre da conversa de praia, em que há personagens conhecidos apenas pelo grupo pequeno ao qual se destina o poema, insinua-se a melancolia. De fato, concordamos que há uma “desqualificação” do sujeito e da técnica literária – o poema delineia um mero recorte do cotidiano que não busca resgatar-se da sua fugacidade. Seria proposital? Observam ainda os críticos: “não há projeto comum de linguagem a ser executado, nem utopia programada como meta” (p. 56), com o que concordaria tristemente o mesmo Mandaro o qual, depois de começar um poema anunciando que “logo de manhã escrevi uns textos ruins” (que rasgou), termina dizendo: qualquer ônibus
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qualquer destino qualquer transação não existe nenhum teatro da vida
Não há dúvida de que tal tipo de produção “indica que o que está sendo socializado é uma experiência de poesia afetada no mais íntimo de sua capacidade de formular e revelar ao mundo as promessas do novo.” (p. 60). A pergunta a ser colocada é se o “ensimesmamento” e a desconfiança em relação à elaboração formal resultantes de uma escolha do precário cotidiano para matéria do poema não revelariam uma consciência em certos momentos bastante alerta às contradições de seu tempo. Adverte Hollanda, generalizando a partir da leitura do poema acima de Mandaro: “Identificada como um dos gestos comuns do dia a dia, a “obra” é desmistificada junto com todos os “teatros da vida”. (1980, p. 126). A contestação de qualquer fôrma ou sentido que transcendam o instante frágil da comunicação sugere, para nós, a procura de uma expressão artística quase sem suporte formal. Incomoda-nos a completa falta de projeto e de esperanças manifestada nesses textos, cujos autores sequer procuram dar a impressão de “passar a limpo”, pois não acreditam em nada para além da contingência mais aleatória, e fazem questão de manifestá-lo. Por outro lado aceitamos o fato, reconhecido por Hollanda, que “Se algum programa for exigido, ele deve ser buscado na própria ausência de programa do grupo, vista como recusa a perspectivas finalistas que incorporem a dinâmica da história, e consequentemente, a utopia.” (1980, p. 113) “E é natural que essa nova postura rejeite sistemas coerentes. Ela é resultado de um estado de coisas mais elementar: a descrença e o mal-estar.” (p. 119) Também Haroldo de Campos (1984), proveniente da vanguarda “desenvolvimentista” de meados dos anos 50, advertia, vinte e tantos anos depois, que, sem perspectiva utópica e sem projeto transformador perde-se a negatividade exigente, e cai-se no ecletismo e na facilidade que a ausência de perspectivas mobiliza. Propunha, como um tipo de solução consolatória nessa fase “pósutópica”, que não se abandonasse a tradução e o estudo, atualizando a melhor tradição - paliativo para um tempo sem princípio-esperança. No entanto, por que fazê-lo a não ser como casca esteticista, num momento de estagnação da cultura? Soaria menos artificial do que o reconhecimento cru da crise?
259
3) Agressivo ou irônico: “sangra e ri”:
A ironia em seus vários matizes,244 modo de interrogação que desde a pólis corrói as certezas dogmáticas do poder, foi uma tônica do estilo poético à volta dos anos 70 e 80. Recurso reflexivo de desmascaramento, assumiu inflexões específicas em poetas diferentes (brincadeira, sarcasmo, humor negro). Um eu desconfiado de si e dos outros, voltando-se obliquamente contra a realidade, configura-se em poetas de variadas proveniências (como nos epigramas de José Paulo Paes, nos pacotes de veneno de Sebastião Uchoa Leite, no grotesco mesclado de Hilda Hilst, nos ataques satíricos de Sebastião Nunes e no pastiche geralmente escatológico de Glauco Mattoso), assim como na ludicidade mais ou menos pesada de Cacaso, nos diálogos paródicos de Alvim, em alguns hai kais bem bolados de Leminski, nos poemetos de Eudoro Augusto satirizando a história do Brasil, no humor anárquico de Zuca Sardan ou no absurdo engraçado de Quampérios, do Chacal. A inquietação advinda da impossibilidade de atuação desemboca nessa consciência crítica que tenta produzir movimento na realidade insatisfatória através do reconhecimento da incongruência entre uma falsa totalidade aparentemente harmônica e a aspiração pelo desvelamento social. Mas só de forma alusiva ganha força a expressão polêmica, liberando pelo riso (posto que amarelo...) da opressão. Certo que o humor desses poetas por vezes adquire tons agressivos, especialmente quando se impõe tal assimetria entre o sujeito e as forças do poder que a ironia serve como compensação da inteligência à humilhação constante provinda do autoritarismo social. Assim, a denúncia da ditadura e do conservadorismo, seja no plano político, seja na moral familiar, leva à configuração desta poesia em tom menor que valoriza o trocadilho e a dissimulação. E, ao apontar as contradições do país, a aporia e o estreitamento ocupam o lugar da negatividade dialética. A paralisação alegórica que revela a impotência substitui o mais das vezes o humor didático porque esperançoso. 245 244
O estudo que me informou acerca do conceito de ironia ao longo da história cultural foi o objetivo livro de Muecke (1995), do qual derivei as definições constantes dos próximos parágrafos. 245
Sobre as diferenças entre tipos de ironia – expressivas especialmente em Sebastião Uchoa Leite, Francisco Alvim e Rubens Rodrigues Torres Filho, reporto-me aos textos específicos que escrevi sobre esses autores, constantes neste trabalho. Em relação à ironia
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Dentre tantos poemas que aludem ao “sufoco” dessa geração, um que considero expressivo é “Logia e mitologia”, de Cacaso (Grupo escolar, 1974)246 – cujo título manifesta o contraste entre o Brasil real e o imaginário: Meu coração de mil novecentos e setenta e dois já não palpita fagueiro sabe que há morcegos de pesadas olheiras que há cabras malignas que há cardumes de hienas infiltradas no vão da unha na alma um porco belicoso de radar e que sangra e ri e que sangra e ri a vida anoitece provisória centuriões sentinelas do Oiapoque ao Chuí
Em meio aos animais grotescos que espreitam e invadem a escura paisagem da alma, vigiando-a por dentro e por fora, sem escapatória, “um porco belicoso de radar/e que sangra e ri/e que sangra e ri”: refrão que grita o dilaceramento dos sentimentos do poeta. Ao situar o locus infernal em seu tempo, compara-o a um possível paraíso ufanista perdido, sonhado pelo nacionalismo de extração romântica. Enquanto o poema acima prima pela fratura extrema entre sujeito e mundo, tingida pela mais funesta ironia, um matiz diferente pode ser observado na graça que raia o absurdo e o ilógico. É o que se nota em Quampérios (Nuvem Cigana, 1977), de Chacal, que narra, em pequenos textos, as aventuras imaginárias e inconseqüentes de seu alter-ego. O humor algo oswaldiano é fundamental para a poesia da época, assim como o elemento por vezes surreal, psicodélico. Mas mesmo num livro quase todo constituído de episódios divertidos, o clima pesado comparece travestido de piada sinistra, como nesse trecho de “Baralho”, no qual o mirabolante Quampérius, depois de inúmeras confusões, sonha que vai parar na delegacia com três amigas: na minha hora, o coranel falou: - quer dizer que você é um poeta, imbecil. em José Paulo Paes, recomendo, de João Carlos Biella, Um ironismo como outro qualquer . São Paulo: Unesp, 2006. O livro de Wilberth Clayton Ferreira Salgueiro (2002) sobre a poesia nesta época também destaca a ironia na produção poética da época, especialmente no capítulo “Indo, rindo: por que não? o humor como estratégia”. 246
Este poema me foi apresentado por Carlos F. Barrère Martin, que o analisou cerradamente em seu mestrado sobre a poesia de Cacaso, A véspera do trapezista (leitura da poesia de Antonio Carlos de Brito) (2008, p. 81-84).
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- é verdade. - fique sabendo que eu prefiro esse verso e me mostrou um papel com o nome e endereço de 3 mulheres: margot, brigite y suzette – nomes de guerra de mulheres da vida. - a vida é uma guerra. a poesia minha terra. coronol, esse verso é ruim de verdade, mais que essas mulheres, eu prezo minha liberdade. o caronel mandou que me levassem à sala de tortura dizendo com ar de superioridade: - vamos ver se ele não vai falar. fui amarrado a uma mesa com uma lâmpada de dois mil volts a menos de um metro da cabeça. um pqd espalhou sal grosso na minha testa retalhada a frio com um caco de vidro. tava com o cérebro saindo pelos cabelos quando os pqds voltaram, me desamarraram y me levaram por um corredor até um pátio. em uma das portas que dava para o corredor via diana com um filete de sangue a correr pelo canto da boca. me fez um sinal de ok. no pátio me deixaram nu e me amarraram a um poste. fiquei sozinho horas sem que nada acontecesse. então abriram uma porta e jogaram dentro do pátio um bicho indescritível que veio correndo em minha direção, me cumprimentou e começou a me lamber com sua língua de penas. então comecei a rir e ria ria ria um riso nervoso e tenso um riso imenso e prestes a desacordar... acordei a chica que dormia a meu lado...
(Quamperios, 1977, em Belvedere, 1971-2007) A instabilidade da personagem, que toda hora muda inclusive de nome, lembra certa malandragem carioca, que age como se fosse possível brincar com tudo, inclusive com a própria vida. Estudiosos como Celso Favaretto observam uma “relativização alegre dos valores em conflito e uma degradação contínua da informação” (1994, 2ª. ed., p. 94-95).247 Fernanda Medeiros (2010) confere a Chacal atributos de personagem cômica que, ao contrário da trágica, “escapa ao sacrifício de mudar o mundo; sabe que não pode fazê-lo e sequer o cogita.”: “Para o personagem cômico, a alegria é antes estratégia de sobrevivência e negociação com a engrenagem pesada das regras sociais que celebração.” (p. 93) A geração marginal (especialmente, nesse caso, Chacal, Charles, Nicolas Behr e Cacaso) não é a única que mantém esse estilo paradoxal e debochado. Vamos reconhecê-lo também em poetas mais velhos, como Sebastião Nunes e Zuca Sardan (pseudônimo de Carlos Saldanha), que começaram bem antes e se 247
Já Torquato Neto e Capinam, no roteiro que escreveram para o programa de TV “Vida, paixão e banana do Tropicalismo” definiam seu tom como: “Tropicalismo: ausência de consciência da tragédia em plena tragédia. Tropicalismo é uma arte sadomasoquista.” Depois de desfilar triunfal mas sarcasticamente vários ícones da brasilidade, o cenário será afinal destruído e com ele, o próprio tropicalismo, que se define como momento de crise (p. 72). O roteiro completo encontra-se em Torquatalia. do lado de dentro (2003).
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identificaram bastante com ela, ao ponto do segundo, amigo e colega de Francisco Alvim, ter integrado a antologia 26 poetas hoje e o Almanaque Biotônico
Vitalidade. Sem dúvida o tipo de humor que encontramos nos jovens em parte inspirava-se nas sátiras desses marginais avant la lettre que há muito faziam os seus livrinhos semi-artesanais, com desenhos e colagens, distribuídos entre amigos. No caso de Zuca Sardan, aforismos satíricos sobre os desmandos do poder constituem um dos aspectos de Ás de colete (1979), do qual extraímos alguns trechos: Uma opinião apoiada em baionetas degenera em bobagem se a gente deixar a barriga na frente.
(“Vademecum”) Dizia o Pequeno Caporal: “Em revolução não se pensa na hora do café.” “Pessoal, vamos deixar pr’amanhã...” Dizia o Pequeno Peludo: “A Revolução chega quando basta desfazer-se de apenas um homem.” Pelo menos, assim é mais fácil.
(“Baderna geral’) Só existem duas classes os que resguardamos privilégios e os descontentes. Mas deixemos que reclamem: o choro é livre e tristezas não pagam dívidas. Mais a mais multidão que brada não faz motim. A não ser que ande armada o que convém verificar antes de se providenciar qualquer daquelas tradicionais seja uma opções grosa de boas pauladas seja então o anúncio
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de umas reformas de base...
(“O dilema do Príncipe”) Seu livro anterior, Aqueles papéis (Col. Vida de Artista, 1975) também se distingue pela chacota de todos os assuntos ditos sérios: a filosofia, a política, a ciência. Teresa Cabañas (2009) define o tom desses poetas como de um “niilismo burlão a trucidar a crença na prosperidade de um inexistente amanhã” (p. 135), de um tipo “zombeteiro que ameniza a possível gravidade do enunciado” (p. 146), como nesses bem característicos versos paródicos de Cacaso: “não chore meu amor, não chore/que amanhã não será outro dia” (“Sinistros resíduos de um samba”, Beijo na boca, 1975). Ou ainda, destaca a poesia auto-irônica de Nicolas Behr, que ri de si mesmo, do que escreve e de Brasília: segundo ele, antes de ser uma cidade, nossa capital é sobretudo uma lição de geometria, com seus blocos, eixos, quadras (símbolos do planejamento urbano desumano: “SQS ou SOS?/eis a questão”) todo o tempo, desde o título do seu primeiro livrinho mimeografado,
Iogurte com farinha. (Leia antes que azede), de 77, no qual conclui, afinal, que poemas e poetas estão sendo encaminhados para a lata de lixo, fora de todos os desenvolvimentos modernos. Nessa toada, eis uma amostra de trovinha de José Paulo Paes: Metamorfose 2
quando lhe veio à lembrança que bicho é pai de bicho o pai de Gregório Samsa juntou-se ao filho no lixo 248
No gênero epigramático, o poeta pretende vingar a memória de Kafka, oprimido pelo vulto do pai, igualando por baixo as gerações, troçando da importância das srcens, ceticamente invertendo o sinal, e reduzindo tudo a “pó de varredura” (para citar outro aficionado da relação entre história e baratas, 248
Publicado num folheto manufaturado, “Poesia livre”, de Ouro Preto (editado por Guilherme Mansur) , distribuído no começo da década de 80, no qual comparecem, dentre outros, Aristides Klafke, do grupo Pindaíba (São Paulo), Leila Miccolis, mais ligada à geração marginal (Rio de Janeiro), Sebastião Nunes, humorista velho de guerra (Cataguases, Minas Gerais), Max Martins (Belém do Pará) e outros, como Zuca Sardana, José Almino, Chico Alvim, Gramiro de Matos, José Paulo Paes, Moacy Cirne e Glauco Mattoso, numa saudável anarquia de tendências e lugares. Assim, concretos, marginais diversos, humoristas, engajados, se reuniam. Republicado no livro Calendário perplexo (1983), com a referência “8 de agosto, dia dos pais”.
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Sebastião Uchoa Leite). Poderíamos considerar esses versinhos como mote do tipo de ironia da época e deduzir que algumas alterações fundamentais estavam ocorrendo na concepção de arte: a profanação da herança modernista ao lado da autodesqualificação. Em todos, reconhecemos a mesma desconfiança em relação ao estilo alto, assim como o ânimo de denúncia e a tendência ao alegórico que Merquior descrevera como característicos da “nova musa”.249 4) Presentificação e agrupamento:
Deparamos com um exemplo interessante nas capas de livros, revistas e discos do período em que os próprios autores e seus amigos posam ao lado de textos ou segurando faixas, como na revista Navilouca (1974), no livro Me
segura..., de Waly Salomão (1972), nos diversos números do Almanaque Biotônico Vitalidade (1976-77), no disco Panis et Circensis dos tropicalistas (1968). Livros em dupla sem a assinatura de cada poeta ao pé do seu poema, como o Misterioso ladrão de Tenerife de Afonso Henriques Neto e Eudoro Augusto (1972), Dia sim dia não , de Francisco Alvim e Eudoro Augusto (1978),
Segunda classe, de Antonio Carlos de Brito, o Cacaso, e Luis Olavo Fontes (1975) e publicações com desenhos, fotos, montagens, etc, são específicos desse momento. Embora pareçam situações diferentes entre si, o que as aproxima é esta tendência de fortalecimento do grupo. Ao mesmo tempo, nunca antes o jovem se singularizara tanto como categoria específica diferente do adulto: pelas roupas, cabelos, expressão – a rebeldia era um valor transmitido também pela aparência. Assim, as fotos proliferam nas revistas alternativas e nos livrinhos marginais. Em todas, elas são igualmente texto. Figuram a esperança no homem que está surgindo, protestando contra o mundo velho, a partir de transformações que afetam o cotidiano, o corpo, a intimidade. As fotos expressam a frase ouvida em maio de 68: “Não queremos unicamente transformar o mundo, também queremos mudar a vida.” (citado por
249
Em seus dois ensaios seminais, “Capinan e a nova lírica” (1972), e principalmente
“Musa morena moça: notas sobre a nossa poesia brasileira” (1974), em que se refere ao estilo dos poetas emergentes como “mesclado”, de acordo com o termo consagrado por Auerbach para referir-se a Baudelaire.
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Luciano Martins, 2004, p. 133, a partir do livro L’insurrection étudiante, 1968, p. 470).250 Veja-se a publicação atual da poesia reunida de Chacal, no volume intitulado Belvedere (2007) no qual apenas os textos foram reproduzidos, e que segue a mesma linha sóbria antes escolhida para a edição da obra de Cacaso (Lero-Lero, 2002) e de Chico Alvim (Poemas, 2004). Essa estandardização, mais de acordo com o padrão contemporâneo, atenuou bastante o impacto da leitura daqueles poemas, uma vez que, separados dos desenhos e fotos que integravam as edições marginais, alterou-se mesmo parte do seu contexto e sentido. 251 Chacal (2010) comenta essas distinções, ao deparar-se com a edição recente de seus poemas reunidos: Gozado é que são duas qualidades diferentes. O Quampérius para se ler na estrada. O Belvedere para se ler na poltrona. Ambos retratos de sua época. Uma utópica, antimercantilista, experimental, on the road. Outra assumidamente de mercado, competitiva, exigente, wall street. (p. 229)
Em comum, Waly Salomão, Ana Cristina Cesar e Torquato Neto, por exemplo, exprimem-se muitas vezes numa disposição histérica, que também experimentamos em algumas performances e instalações, como uma tentativa de restituição da presença direta: o artista concentra suas energias em desnudar-se veementemente reforçando as marcas da pessoalidade individual, estetizando aspectos de sua própria biografia ou, ainda, destruindo a ilusão estética. Rosalind Krauss e Hal Foster consideram a necessidade da presença do artista, ou a exposição de sua intimidade, como um tipo de reação de protesto contra a reificação social. Há uma temporalização nas artes plásticas, que passam a ser não apenas processuais, mas também muitas vezes apoiadas em escritos que 250
Tal exposição da aparência do poeta diminuiu muito nas publicações de agora, no geral mais discretas – às vezes com uma foto pequena e low profile. A cara, a postura, a roupa, do autor não contam pontos para a apreciação de seus poemas, nem a diagramação pessoalizada e artesanal faz parte da expectativa do leitor. Atualizou-se o padrão tradicional do livro de poesia, retornando-se à forma gráfica usual. Talvez porque o poeta contemporâneo saiba que “tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.” (Debord, 2004, p. 13 ) e que não há mais inocência para a exposição do eu empírico, tragado pela ilusória imagem midiática, em que até a “espontaneidade” pode ser cooptada como valor de mercado. Embora, evidentemente, isso permita a leitura mais isenta dos poemas, por vezes reduz a compreensão do universo dos livros de poesia da época. 251 Leia-se a observação de Heloísa Buarque de Hollanda a respeito da relação entre poesia e ilustração na obra de Cacaso: “Imagens com valor-texto, claramente produzidas e estruturadas no contexto de cada livro.” (“O poemão de todos nós”, Jornal de Resenhas, Folha de S. Paulo , 12/04/2003).
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as acompanham, como se, mesmo na ausência do artista, ainda assim fosse necessário dar-lhe voz. Na verdade, esses dois estudiosos (bastante diferentes entre si) estão reagindo à pecha negativa ocasionada pela idéia de uma arte que não se expressa mais pela composição de obras formalmente construídas para serem perenes. Muitos críticos importantes, como Clement Greenberg e depois seu discípulo Michael Fried, vão questionar o que consideram (com certa razão) o fim da arte moderna, quando tiveram que se confrontar com essa desconfiança do objeto. Num famoso ensaio, Fried (1967) sustentava a necessidade do trabalho formal para a composição artística, condenando o que chamou depreciativamente de “literalistas”, aqueles que transpunham a matéria ou a vida em estado bruto para o terreno da arte, e sobretudo os que a teatralizavam, atuando em happenings de confronto com o espectador, e cujo tempo de realização coincide com sua duração – um único instante a consumir-se em si mesmo, sem nenhuma transcendência além da memória dos envolvidos – muito diferente do presente praticamente eterno de uma obra artística “autônoma”. Em nenhum momento ele se pergunta, em seu texto, as razões que teriam conduzido a esse extremo de refutação quanto ao “objeto” formalizado, cada vez mais “ansioso” e difícil de sustentar para alguns artistas mais radicais. É bem verdade que, no caso da poesia, tais literalismo e presença teatralizada não precisam ser realizados fisicamente, mas podem ser indicados no texto, de várias maneiras. Tanto o recurso à elipse violenta quanto os apelos veementes, nos escritos de Ana Cristina Cesar, colocam o leitor na posição de um interlocutor que necessita estar atento a cada movimento da frase, deduzindo suas entrelinhas, e respondendo aos chamados insistentes do eu lírico. Um dos motivos da sedução de seus escritos encontra-se nesta sensação de que o sentido só poderia ser eventualmente realizado através do preenchimento conjunto das lacunas, como se o poema fosse um “objeto transicional”252 que se completasse através da
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Este conceito de Winnicott, aplicado a alguns brinquedos e objetos da criança na primeira infância, é referido à palavra poética no ensaio inspirador de Nick Piombino, “The Aural Ellipsis and the Nature of Listening in Contemporary Poetry”. Do mesmo livro, o ensaio de Ron Silliman, “Who Speaks. Ventriloquism and the Self in the Poetry Reading” trata das implicações dos recitais performativos de poesia, populares nos E.U.A., em suas diferentes vertentes. Propõe que a leitura em voz alta não se interponha de modo tal entre escritor e leitor que chegue ao ponto de destruir a “opacidade irredutível de um texto”, impedindo que uma presença intersubjetiva possa se constituir. Pois no poema já estaria implícita a voz de alguém, intensificada pelos recursos
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colaboração do leitor, em íntima conversação. Enquanto a sobreposição de camadas, e certa dispersão ou intermitência nas seqüências obriga a essa atitude alerta do leitor, numa obra como a de Francisco Alvim são os ecos dos interditos sociais que nos fazem escutar com as orelhas coladas à parede, atrás da porta, para adivinhar as conotações por vezes perversas do que foi semicalado, ou o aspecto entre jocoso e patético dos piores preconceitos nas palavras esparsas de conversas, que entreouvimos en passant, e cujo sentido só pode ser deduzido pela nossa convivência (ou conivência...) com o contexto social que as sustenta. Nos dois casos, não são mais obras plenas, mas um tipo de fragmentação extrema, que apresenta falhas e recortes internos como se apenas retalhos nos fossem apresentados, a partir dos quais precisamos reconstituir o todo com imaginação para configurar algum tipo de sentido possível.
Engulo o mar, que me engole Cette roublarde à évité le moule de la societé Elle s’est coulée dans le sien propre. D’autres, ressemblantes, partagent avec elle l’anti-mer Elle est parfaite.
(Marcel Broodthaers, « La moule ») Elle est parfaite Pas
de moule
Rien que le corps
(Marcel Broodthaers, « La méduse ») 253
Poderíamos sintetizar os diversos matizes da perspectiva do eu poético dito “marginal” em duas direções interagentes: 1) uma subjetividade problemática, em que os limites entre o dentro e o fora são porosos e por vezes conflitantes. Vários críticos observaram o específicos da linguagem poética. Cf. Charles Bernstein (ed.). Close Listening. Poetry and Performed Word (1998). 253 Poemas do livro Pense-Bête (1964) citados em “Selections from Pense-Bête”, sel. e trad. Paul Schmidt e Michael Compton (trad.), em October, 42, 1987. O jogo de palavra entre “la moule” e “le moul e” é intraduzível em port uguês. Os dois poemas apresentam versões opostas sobre o trabalho da forma.
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estilhaçamento, a desestabilização do eu nessa geração de poetas. Ao mesmo tempo em que se assinalava a “volta” do sujeito no poema, após o concretismo e a perspectiva anti-lírica de Cabral, ficava evidente que não se tratava mais do mesmo tipo de voz da poesia anterior. Moriconi aponta, com precisão, que “O subjetivismo dos poetas brasileiros pós-68 não pode ser reificado como um bloco homogêneo ou ingênuo. Pois na civilização hedonista, é da ferida narcísica que a poesia fala. Em boa parte dos melhores casos (como Ana Cristina Cesar, Chico Alvim, e ainda outros como Ronaldo Brito, Sebastião Uchoa Leite, Armando Freitas Filho) há na verdade distanciamento em relação à posição de um sujeito plenificado e presente em si.”254 Talvez a alienação acelerada pela sociedade cada vez mais industrial tenha deflagrado a necessidade da aposta neo-romântica numa aparente confissão, ou de alguma forma de visceralidade, como defesa contra o formalismo impessoal. Não obstante, o poeta conhece a impossibilidade da representação desse suposto núcleo de subjetividade. Alguns poemas centram-se ora nas divisões internas do eu lírico, ora no trânsito entre interioridade e mundo, como pode ser conferido nestes versos de João Carlos Pádua: Teus sonhos são tuas tardes imóveis são o quadrado dos teus olhos o cavalo dos teus olhos são bocas dentro da tarde janelas para o outro lado - de dentro de fora – são mundo
(Motor, Col. Frenesi, 1974)255 O sonho abre espaços no real, como uma janela que emoldura o olhar, desde o fundo do sujeito até a busca pelo lá fora, confundindo-se com a própria realidade, de forma bilateral. Supõe-se um impulso de fusão entre subjetividade e vida exterior que, idealmente, poderia anular a separação entre devaneio e realidade.
254
Refiro-me aqui às observações desenvolvidas por Italo Moriconi em seu texto “Pósmodernismo e volta do sublime na poesia brasileira” no livro Poesia hoje, org. por Celia Pedrosa, Cláudia Matos e Evando Nascimento (1998), p. 15. 255
O livro é composto de folhas soltas colocadas em seqüência dentro de um envelopecapa. Produzido em parceria com o fotógrafo Bita, em muitos momentos acopla palavra e imagem (ver, em anexo, o fotopoema “Como um dia após o outro”).
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Em Francisco Alvim, a oposição entre o túnel escuro de dentro e o azul celeste do mundo (como ele mesmo tentou descrever seu imaginário), ou ainda entre homem na história e homem na natureza, será uma dualidade a acompanhálo por toda a obra. De várias maneiras, esse “poeta que escuta”, ou que “cede a voz”, evidenciará seus conflitos entre sujeito lírico e sujeito coletivo. Um dos avatares da tentativa de travessia entre um e outro se manifesta nas imagens dos lugares de passagem na metáfora da casa: Como de uma varanda a tarde debruça-se de meu olhar – em sons iluminada Murmúrio de vozes a brisa verde dos pássaros meu corpo recobre-se de relva silenciosa Penso ouvir o som distante de uma porta batendo Regresso pelo escuro corredor que vai de meu corpo a minha mente
(“Dentro”, Passatempo, 1974) Ao destacar este, dentre outros poemas também analisados, Heitor Ferraz (2001) ressalta a meditação continuada sobre o lugar do sujeito lírico, que ora se funde com a natureza, ora fala através de “personae”, ora sai de si e volta. Parece haver um estranhamento ou lonjura entre corpo e mente, e, ao contrário, um amálgama sinestésico entre a tarde, os sons, a relva, co-extensivas ao corpo.
256
À
tarde é atribuída luz, som, cor e mesmo silêncio, enquanto a mente permanece inalcançável, apenas referida como o lugar aonde se chegará depois de atravessar um escuro corredor. Como se infere, a pecha da “ressubjetivação” encerra aspectos conturbados, variando-se as tentativas de empostação do sujeito lírico de poeta para poeta, cada qual apresentando a sua dificuldade peculiar de habitar-se - quer de modo sério quer de modo irônico (por vezes resvalando para o grotesco e o escrachado).
256
Em sua dissertação, a questão do sujeito lírico é especialmente abordada no cap. 2, “Palavra circulando”. Sobre este poema, ver ps. 122-126.
270
Em Ana Cristina Cesar, esta também é uma questão fundadora: onde o mundo, onde a palavra, em relação ao poeta. Segue-se mais um exemplo intrigante da consciência afligida que procura estabelecer alguma barreira entre o fora e o dentro, neste poema escrito quando ela era uma adolescente, o qual, de várias maneiras, antecipa inquietações desdobradas posteriormente: Neste interlúnio Sou um dilúvio ou me afogo. E entre espectros que se comprimem, Nada se cumpre, O destino esfarela. De querela e farinha se ergue um olho. As vozes despetalam, Os períodos se abrandam, Orações inteiras lentas se consomem, Em poços há sumiço de palavras moucas. Neste interlúnio Sou fagulha ou hulha inerte. Enorme berne entra corpo adentro, Entre os dentes, carne. Arde o ente e cospe, Cuspe inútil invadindo espaço. Moléculas moles coleando, Víboras vagas se rimando, Poetas quietos entreolhando Coisas coisas que falecem. Neste interlúnio, Sou coisa ou poeta. agosto/68
(“Neste interlúnio”, Inéditos e dispersos, 1985)
O título em si anuncia a idéia de intervalo, uma vez que interlúnio é o momento em que a lua desaparece do céu, no espaço temporal entre o minguante e a lua nova. Escuridão total na qual não mais se distinguem sujeito e objetos, anterior ao nascimento da luz. A “coisa” entra na boca do poeta, desliza entre os dentes como parasita invadindo, parente da personagem de Clarice engolindo a barata. Mas aqui, repugnada, a voz lírica tenta resistir com os dentes e cuspi-la, na noite em que as palavras mergulharam num poço fundo e sumiram. A relação entre sujeito e mundo, indeterminada pelo interlúnio, torna-se tão direta que anula a diferença entre ser dilúvio ou se afogar (como a “roublarde”, medusa?), ser fagulha ou hulha inerte, magma primordial anterior à mediação pelas palavras, pois “as vozes despetalam” e os poetas estão quietos. A angústia de não reconhecer o seu lugar de sujeito da língua frente às coisas a serem nomeadas será 271
um dos motivos da poesia de Ana Cristina. A forma de construção ainda muito juvenil, de palavra puxa palavra, como se o verso seguinte nascesse do eco sonoro do anterior, acaba por compor um texto de amarras quase inconscientes, em que o quarto estado da matéria – o magma ou mole invertebrado - predomina. Moléculas, víboras e carne de berne preenchem o pesadelo, figurando o abjeto recalcado do corpo que ainda não se distinguiu como forma identitária, na claridade diferenciadora da linguagem.257 Poderíamos pensar no temor aflitivo de uma regressão a estágio anterior à constituição do sujeito, quando, sem palavras e sem separação, o eu se misturasse às coisas do mundo. Tal como os dois poetas anteriormente mencionados, ela também compartilha a incerteza quanto ao que está fora e o que está dentro, mas o anseio de focalizar este impasse é especialmente aflitivo, como se deduz sobretudo na longa seqüência dos chamados “poemas gatográficos”, em que se evidenciam, ao mesmo tempo, desejo e temor da auto-anulação do sujeito, uma vez transformado em animal, inconsciente de si e do mundo, puro corpo. Se considerarmos que este simulacro de “noche oscura” praticamente inverte a tradicional busca da alma pela união mística, quando a dissolução do sujeito propiciaria um encontro amoroso com algo que o transcende, entendemos a oposição entre o sublime (vinculado à beleza e à perfeição) e o abjeto. A voz que aqui fala invoca para si a condição de desenraizamento transcendental, mas além de tudo, tem medo de ser suprimida, como mera redução de si ao nada indiferente. 2) um tom no geral ingênuo (com raras exceções...) que invoca o desejo de uma geração de participar da vida coletiva. Dentro dele, duas nuances: a eufórica mais festiva, e a melancólica, que lamenta a impossibilidade. O aspecto discursivo revela o mais das vezes pouco trabalho com a linguagem poética, ainda pecando pelo lugar-comum. Do primeiro tipo, este trecho do poema de Bernardo Vilhena no qual comparece a força do grupo, e que lembra letra de samba enredo, pelo tamanho e pelo estilo agregativo:
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Para não nos alongarmos, remetemos ao texto sobre Ana Cristina Cesar no qual nos detivemos sobre o estágio do espelho e a constituição do indivíduo (segundo Lacan).
272
atlântico romântico a brincadeira sereia é rolar rolar feito um livrinho rola na mão da rapaziada o dia hoje sereia é de todo o povo do mar é de todo o povo amar prazer e felicidade as promessas todas serão cumpridas hoje é dia de festa ... eu peço por todos os nomes ronaldo pedro simone charles guilherme chacal bidinho georgete dionísio martha rita lúcia julião peço por claudinho paulinho rogerinho tôtô lulu e ivan (o loro e o scatibraim) peninha cezar e fernando helena júlio e andré hulk jorge hertz rezende dick valmiro valdir peçovera por todos os esantos por todo o charme da simpatia por toda a nuvem cigana e mesmo por quem não falei o nome como cláudio silvana e stael peço e ofereço meu destino os meus sonhos de menino muito sal e muito mel
(apud Nuvem Cigana, 2007, p. 158-159)
O motivo deriva da festa de Iemanjá e os pedidos feitos nesse dia (aqui uma lista imensa) pelas pessoas queridas com quem o poeta quer partilhar seu destino. Embora o poema seja simples, sem nenhum artifício mais rebuscado, a idéia de realização coletiva, que nos interessa, é claramente exposta. Guilherme Mandaro, também integrante eventual do grupo, oscila entre o impulso de realização imediata do “reino da liberdade” – agora e de forma irrevogável – e o reconhecimento da impossibilidade, recaindo numa “perda melancólica do futuro” (em expressão de Roberto Zular, 2005, p. 48). Do primeiro tipo, um trecho de poema bastante direto, com jeito de manifesto: fica abolida a morte como preocupação futura terão os versos com a vida o compromisso cotidiano das imagens
273
(Hotel de Deus, apud Nuvem Cigana, 2007, p. 202) Um segundo exemplo, muito elucidativo das constrições da época: há coisas que não se pode dizer há coisas que ficarão muito tempo caladas caladas e presentes como um calafrio num corpo só distante do movimento vivo às vezes as coisas permanecem como o fogo morto de alguma necessidade precário o tempo do silêncio necessário perpétuo o tempo de uma ausência imposta
(Hotel de Deus, 1976)
Ao ler os poemas, reconhecemos, então, tons misturados: a alegria tematizada como energia para a ação (por vezes com tinturas irônicas), e o sentimento de impossibilidade. A imagem do “fogo morto” figura a saudade e o desejo encobertos por cinza e silêncio. A guisa de exemplo do anelo utópico que se reconhece vencido, este lamento em relação ao fracasso, que presenciamos em poema de tom ingênuo mas afinal comovente de Alex Polari (preso em 71): Nossa geração teve pouco tempo começou pelo fim mas foi bela nossa procura ah! moça, como foi bela nossa procura mesmo com tanta ilusão perdida quebrada, mesmo com tanto caco de sonho onde até hoje a gente se corta
(“Idílica estudantil – III”, Inventário de cicatrizes, 1978) Mais uma vez, o apelo conjunto, permeado pelo temor da desintegração, numa sociedade em que a imaginação não está no poder, e onde se caminha de forma precária e arriscada. Na chave do desencanto lúcido, um dos textos que melhor procura sintetizar as diferenças entre as décadas de um ponto de vista individual, parecenos este, de Ana Cristina, cujo título “Ainda faço pauta” remete ao universo do jornal, como se fosse um tipo de reportagem (ou resenha) comentando o clima relativo àqueles tempos: 274
o recolhimento caipira sem assunto, como o filósofo da linguagem cada vez mais muda ou emitindo apenas o óbvio: boa tarde, faça um cozido, o passarinho, meu jardim, onde sento para ler Rosemberg e penso na década de 80 que não é mais 70, quando andávamos mais aflitos mas também mais articulados, identidade ou impressão de identidade em projetos de grupo, e até havia a última mohicana pertencente a 60 que agregava e pensava a juventude e que devia lançar o alerta do sonho acabou, o sonho de 70, a juventude ainda tinhanem umaaí, inteligência produzia 80 a os última não está não vai aoque circo, esperaprojetos, um filhoeeem estuda maismohicana velhos, como se estivesse entrando na maioridade. À noite a teoria não se aguenta, Rosemberg dá lugar a Joyce, e entrementes sou uma dona-de-casa caprichosa, envelhecendo, que depois do serviço se senta na poltroninha para ler romances ingleses ou rever cartões-postais de uma viagem à Itália ou cartas que recebia periodicamente do Brasil e de vez em quando pensar em móveis caros e na liberação do discurso e da sua inteligência (wit) fluente como único ato de amor possível neste espaço. a propósito de Glauber: O século do cinema
23.1.81
(Inéditos e dispersos, 1985)
O encolhimento do espaço público, o isolamento, a impossibilidade de projetos coletivos, as diferenças entre as décadas... tudo o que vínhamos comentando, aqui se apresenta tão incontestável que o texto poderia ser a síntese deste capítulo. Avaliamos que, ao menos em alguns casos, a poesia haja conseguido, com visada irônica e aparentemente descompromissada, enunciar um sujeito representativo de seu tempo. Embora conscientes de viver uma história provisória em que não se sentiam a cavaleiro, os poetas tenham tomado suficiente distância para apreender as contradições nas quais se encontravam imersos, posto que delas não pudessem sair. Rematando, consideramos, como hipótese, que podem ser observados dois tipos de anacronismo hoje: uma arte paralisada nos anos 70, cuja linguagem apenas repete o que já foi expresso naquele momento - portanto uma produção envelhecida e estetizadora do que antes foi crise real; ou uma arte que ignora as perguntas convulsas daqueles anos, evitando a decorrente fratura na linguagem. Em muitos casos, o sentido geral de questionamento da arte e da vida que as experimentações dos anos 70 trouxeram em seu bojo parece ter sido abafado e sem conseqüências posteriores, como se as perguntas feitas por aqueles jovens 275
escritores tivessem até mesmo perdido a importância para uma parcela da poesia contemporânea. Como incorporar (dialeticamente?) a negação da arte e procurar vias (tensas, contraditórias) de superação criativa, “sobrevoando a própria impossibilidade” (como se refere Adorno à lírica)? Cremos que alguns poetas atuais, curtidos por esses embates, refletem sobre tais dilemas, como se pode constatar nos melhores momentos de Muitas vozes (Gullar, 1999), do Elefante (Francisco Alvim, 2000), de Fio Terra (Armando Freitas Filho, 2000), de Socráticas (José Paulo Paes, 2001), de A espreita (Sebastião Uchoa Leite, 2000), de Novolume (Rubens Rodrigues Torres Filho, 1997). Nestes livros, as vozes de Ana Cristina, Torquato, Cacaso, Oiticica e tantos outros se atualizam e nos alcançam, ainda que nem sempre conscientemente percebidas. Pois em nossa opinião, a criação artística atual que não reflita sinais daquele momento pode perder o gume e tornar-se conservadora. É forçoso passar pela porta da crise para produzir uma poesia que carregue, em sua linguagem, as cicatrizes daqueles embates. Mesmo quando isto não é explicitado, a marca do desafio precisa ser entrevista para que a obra dialogue com o tempo presente. Evitar suas provocações extremas enfraquece o “teor de verdade” (na esteira de Benjamin) que, em fagulhas, aquelas obras ainda transmitem para acender a chama da arte hoje. A pergunta sobre o sentido desta antiga atividade humana que se defronta e mergulha na substância da vida e quer transfigurá-la, compondo um mundo paralelo e depurado em linguagem, poderia ser novamente lançada. Renova-se constantemente, atualizando-se o confronto insolúvel entre vida e arte desde a “Fria pastoral” de Keats (quando a “inviolada noiva de quietude” da sua “Ode” mais famosa representava a perenidade da arte contrapondo-se à procissão histórica infinda dos que já se foram). O poema – mesmo na forma de papel amarrotado - continua a “Visita” (Gullar, Muitas vozes, 1999), ainda que gaguejante e talvez fracassada:
Então apanhouamarrotado do chão um pedaço de papel escreveu
276
eu te amo filho pôs em cima do mármore sob uma flor e saiu soluçando
Mas, como disse Sartre, “o poeta autêntico escolhe perder a ponto de morrer para ganhar”, “ele é o homem que se empenha em perder”, pois apenas desse modo pode resgatar a linguagem do fracasso, sugerindo o incomunicável (1989, p. 31-32). Esperamos ter apreendido um pouco os modos como a poesia persistiu em anos duros, confiando que “onde não há jardim/as flores nascem de um/secreto investimento em formas improváveis.”
277
Apêndice:
A construção da vida, no momento, está muito mais no poder dos fatos que de convicções. E aliás de fatos tais, como quase nunca e em parte nenhuma se tornaram fundamento de convicções. Nessas circunstâncias, a verdadeira atividade literária não pode ter a pretensão de desenrolar-se dentro de molduras literárias – isto, pelo contrário, é a expressão usual de sua infertilidade. A atuação literária significativa só pode instituir-se em rigorosa alternância de agir e escrever; tem de cultivar as formas modestas, que correspondem melhor a sua influência em comunidades ativas que o pretensioso gesto universal do livro, em folhas volantes, brochuras, artigos de jornal e cartazes. Só essa linguagem de prontidão mostra-se atuante à altura do momento. As opiniões, para o aparelho gigante da vida social, são o que o óleo é para as máquinas; ninguém se posta diante de uma turbina e a irriga com óleo de máquina. Borrifa-se um pouco em rebites e juntas ocultos, que é preciso conhecer.
(Walter Benjamin, “Posto de gasolina”, Rua de mão única)
A importância dos periódicos: Uma das formas de criação coletiva que envolvia conversa de grupo e abertura para aspectos importantes da realidade da época foi a produção de revistas e jornais alternativos. Seja porque a ditadura não permitia que as pessoas se organizassem politicamente, seja porque as “frentes amplas” andassem desacreditadas num momento em que se debatiam as teias do poder no cotidiano, a agremiação representou o sucedâneo da vida pública – por isso a importância das cooperativas de artistas, ao lado da proliferação dos periódicos, que discutiam um pouco de cada aspecto da realidade e da cultura em seus tópicos mais candentes. Quando folheamos as publicações culturais dos anos 60 e 70 ( Revista
Civilização Brasileira, Vozes, Tempo brasileiro, Debate e crítica , Movimento, Opinião, Argumento, Escrita, Versus, etc), cujas comissões editoriais eram compostas pelos maiores intelectuais do país (Antonio Candido, Paulo Emílio, Celso Furtado, Antonio Callado, Florestan Fernandes, Anatol Rosenfeld, Caio Prado Júnior, dentre outros), e atentamos para os temas e a profundidade das matérias (geralmente versando sobre a situação política na América Latina, ao lado de assuntos como reforma agrária, habitação urbana precária, sistema público 278
de saúde, ou com entrevistas com nomes de peso da inteligentzia mundial como Foucault, Castoriadis, Octavio Paz, Garcia Marques) imediatamente notamos que estes veículos de comunicação encenavam um papel político evidente de resistência.258 Hoje, as revistas culturais de grande circulação adquiriram uma sofisticação gráfica maior, mas a forma de tratar os conteúdos parece ter se tornado menos comprometida com os aspectos duros de nossa realidade.259 Em primeiro lugar, os periódicos de cunho cultural no geral se especializaram: cristalizou-se a divisão entre tópicos políticos e sociais, de um lado, e temas literários ou artísticos, de outro. Publicações literárias não costumam desenvolver outros assuntos pois a cultura não é necessariamente considerada como um todo interagente. Publicações mais gerais trazem uma página ou duas de resenhas, mas raramente debates mais polpudos. Evidentemente, há exceções, como a Caros
amigos, ou a Teoria e debate – ambas com propostas que ainda lembram as décadas passadas. Assim como há (ou havia) revistas de literatura de muita qualidade, como a Inimigo rumor, Coyote, Medusa e outras. Pouco, porém, se infere, ao ler os periódicos contemporâneos, sobre as discussões que nortearam a constituição do grupo de redatores: se há assembléias para decisão democrática dos artigos a serem aceitos, se existem hierarquias salariais, se a linha política da publicação é alvo de questionamento interno, se a linguagem, a pauta, o tipo de colaborador, passaram por quais crivos da equipe – enfim, o tipo de preocupação característico da formação dos grupos nos anos 60 e 70.
258
Assim os define, com razão, Maria Lucia de Barros Camargo (2010), em seu estudo sobre importantes veículos culturais dos anos 60 e 70, destacando-se, dentre outras, a análise comentada da Revista Civilização Brasileira . O Núcleo de Estudos Literários e Culturais (NELIC), sediado em Florianópolis, na UFSC, reúne, sob a direção da professora, vários pesquisadores que trabalham com periódicos culturais. 259 Não estamos muito longe da “disneylandização da cultura” (na expressão de Baudrillard) que a tudo infantiliza e comercializa como entretenimento descompromissado, hoje atingindo desde os programas de TV para as massas até as revistas sofisticadas de cultura que tratam todos os assuntos com um tom de glamour cool, sempre com um pé no ceticismo elegante.
279
Ao investigar o prazo de existência das revistas contraculturais daquele período descobrimos que poucas ultrapassaram o limiar da fase de redemocratização, tendo então perdido sua razão de ser. 260
Desde 1992, uma preciosa coleção de imprensa alternativa, bastante completa, encontra-se no Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro, doada por Maria Amélia Mello para a Fundação Rioarte, que por sua vez repassou-a para lá.261 Continua praticamente intocada, com suas pastas de Bondinho, Flor do mal,
Beijo, Ex-, Código e centenas de outros itens. Seria simplesmente impossível não se deliciar longamente com tantos jornais e revistas, por horas a fio, quase perdendo nosso objetivo inicial de estudar somente a publicação de poesia nesses periódicos em seus momentos significativos. Sente-se dificuldade de parar de olhar esse material, tão abundante, ali representando uma época em toda sua vivacidade, enterrada em caixas empoeiradas. 262 Por força de manusear tais revistas e livros de formato artesanal, uma perspectiva dominante se impôs, antes quase irrelevante quando ainda não se tinha contato com as edições srcinais: a relação entre escrita poética e artes visuais – 260
No livro de Bernardo Kucinski (2003), o pesquisador traça um panorama muito informativo sobre a história dos periódicos nos anos 60 e 70. É bastante impressionante sua conclusão: “Como se tivesse ocorrido um cataclisma, quase todos os jornais alternativos que circulavam entre 1977 e 1981 deixaram de existir a partir de 1980-1981. Desde os grandes alternativos nacionais surgidos ainda em 1975, até os basistas, da última geração, voltados aos movimentos populares e à reportagem. Desapareceram, independentemente da natureza de sua articulação, da qualidade do projeto, do acerto ou do insucesso de suasà propostas editoriais e soluções operacionais.” (p. 173). O autora credita tal fenômeno mudança sócio-política da época, que tornou menos necessária criação e manutenção destas revistas e jornais. Subitamente, as equipes que os produziam tomaram outros rumos ao mesmo tempo em que a demanda do público esmorecia (sempre há gloriosas exceções, como é o caso da Revista Vozes, que começou a circular nos anos cinqüenta e continua firme). Na mesma direção segue Cláudio Novaes Pinto Coelho, observando que, após o ciclo de ditadura e de redemocratização, “O autoritarismo estatal foi substituído, devido à hegemonia neoliberal, pelo autoritarismo de mercado (o sujeito social da realidade contemporânea). Trata-se de um autoritarismo muito mais sutil e provavelmente mais eficaz: o Estado deixou de ser visto como o agente modernizador, cedendo espaço ao mercado.” (“A contracultura: o outro lado da modernização autoritária”. Vários autores, Anos 70: trajetória s, op. cit., p. 44) 261 Foi recentemente catalogada pela pesquisadora Sandra Horta e pela estagiária Yama Arruda. 262 Também consultei as bibliotecas particulares de Ana Cristina Cesar, no Instituto Moreira Salles, e a de Armando Freitas Filho, em sua casa, os quais, como poetas envolvidos na produção cultural, acumularam um acervo significativo de publicações de seus contemporâneos.
280
impossível de ignorar, dada a força da integração de ambas as linguagens - assim como o laço estreito entre as preocupações políticas e a expressão artística. Enfim, tornava-se evidente a integração de visão de mundo de toda a cultura, de modo que apenas uma única forma de expressão seria insuficiente para abarcá-la. As mudanças observadas nas artes gestaram-se nestas publicações e podem ser nelas examinadas. A fim de melhor avaliar o lugar da produção “marginal”, era necessário penetrar nos sonhos que a fundavam, inclusive tendo em vista a forma de vida que ela desejava instaurar, passando pela comunitarização das relações de produção e por um rechaço dos modos industriais.263 Ao finalmente VER aqueles livrinhos e jornais e revistas de todo o Brasil (principalmente do Rio de Janeiro e de São Paulo) compreendi-os de maneira diferente: deu-se um colorido novo à interpretação dos textos, pois antes só os lera em reedições tradicionais, já encampados pelas editoras. Observar sua diagramação srcinal e atentar para os agradecimentos calorosos à equipe que havia ajudado a produzir a publicação, praticamente coletiva, abriu-me a porta para perceber de modo mais concreto a motivação grupal que impulsionava o poeta, o qual incluía na realização o artista gráfico, o fotógrafo, o ilustrador, o amigo que emprestara o mimeógrafo, etc – pois todo o processo de editoração era pessoalizado e composto para um leitor próximo. A partir da verificação in loco, abandonei, temporariamente, a abordagem de obras individuais para me concentrar em pontos comuns. Deixei de lado revistas literárias e culturais muito relevantes dos anos 60 e concentrei-me em publicações menores, especialmente aquelas que de alguma forma partilhavam ideários próximos à contracultura. Assim, não examinei periódicos de importância e maior circulação como Revista Civilização Brasileira, Vozes, Paz e terra,
Opinião, Movimento, Argumento, Tempo brasileiro, O Pasquim (embora ocasionalmente os mencione) nem revistas literárias vinculadas diretamente às vanguardas, tais como Invenção, Tendência, Práxis. Preferi concentrar-me em pequenas e médias publicações, que manifestassem afinidade com a poesia e a cultura chamadas de “marginal”, “pós-tropicalista” ou simplesmente referida a
263 Estes
fenômenos já foram descritos e comentados por Carlos Alberto Messeder Pereira (1981) e Heloísa Buarque de Hollanda (1980), conforme foi e será mais de uma vez apontado em nosso trabalho.
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grupos menores. Deixei de lado tanto
periódicos cujo gosto literário
preponderante não comportava debates sobre a poesia então emergente quanto jornais e revistas diretamente políticos. Averiguei que de fato houve uma enorme fermentação de publicações produzidas, geralmente, entre amigos. Editar esses livrinhos, revistas, jornais (muito caprichados, desenhados, com papel especial – e com incursões das artes plásticas, seja na ilustração, fotos, desenhos, cor do papel e da tinta, gravuras) era uma via de realização com finalidade ampla. Arriscamos interpretar assim: uma vez que esses jovens talentosos não logravam nenhuma inserção social para produzirem de outro modo, a capacidade de invenção e organização foi canalizada para criações individuais ou coletivas que buscavam, na poesia (especialmente, por conta de sua natural confluência com a visualidade ou com a música) recompor o mundo de forma prazerosa e fazer da vida uma experiência estimulante.264 O centro desta produção é mesmo o Rio de Janeiro, mas também há exemplares de Minas, Bahia, Rio Grande do Sul, Ceará, Minas Gerais, Paraná e São Paulo. Os mesmos escritores circulam em diferentes estados e colaboram em várias revistas. Embora haja linhagens de poetas provenientes de formações culturais diversas, por vezes antagônicas, nessas publicações reconhecemos as vertentes confluindo, especialmente nos anos 80. Logo outra percepção se acrescentou: ao longo dos anos 70, conforme os concretos se aproximavam dos músicos tropicalistas e de outros jovens poetas (Waly Salomão, Duda Machado, Rogério Duarte, Paulo Leminski, Erthos Albino de Souza, Aldo Fortes, Régis Bonvicino), a “medula” foi se diluindo em “geléia geral” e, por diferentes vias, a ortodoxia concreta, acercando-se da estética contracultural. Assim, nas revistas Polem, Código, Muda, Navilouca, Qorpo
estranho, deparamo-nos com textos de várias tendências, e a quase dissolução das 264
O historiador Eric Hobsbawm (2007) destaca outro lado da moeda: visto que as formas culturais tradicionais perderam importância na vida social nas últimas décadas (dentre elas, a poesia), dada a emergência da indústria cultural na “era da reprodutibilidade técnica”, jovens com pendor artístico migraram para modos de expressão que pudessem ser mais facilmente codificados na sociedade de consumo como mercadorias. Assim, o design, a propaganda, a telenovela, o cinema, a canção popular “pra tocar no rádio”, a moda, passaram a absorver mais talentos. Isto é especialmente evidente, no caso brasileiro, em relação à música: em entrevistas, muitos escritores que oscilavam entre poesia e canção popular, preferiram afinal esta como meio de maior alcance de público. Conferir o capítulo “Morre a vanguarda: as artes após 1950”.
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diferenças estilísticas entre propostas poéticas soi-disant opostas (ainda que continuassem a se digladiar). A questão central em todos os grupos, que cremos ser a superação, ou até a negação, do construtivismo soberano nos anos 50, se impôs. Mesmo artistas afetivamente próximos aos concretos, como Hélio Oiticica, cultivam uma estética semelhante em tudo aos seus antípodas, pois simplesmente os ventos da cultura haviam mudado de lado – e todos, mais ou menos no mesmo passo, se transformaram. Armando Freitas Filho (1979) já assinalava como os poetas, a partir do tropicalismo, parecem ir se tornando “mutantes”, ao se libertar de ascendências programáticas rígidas. Confirma a tendência ao encontro “ecumênico” em Torquato e Waly, que localiza como o ponto de virada entre o concretismo e a subseqüente poesia chamada de marginal. Enfim, independentemente da rivalidade das “panelinhas” e das diferenças de credo que acreditavam pregar, o tempo e a distância atestam a semelhança das tensões com que os diferentes poetas e artistas se depararam no mesmo período e que os obrigou a respostas bastante similares. Assim, o contato com os periódicos da imprensa alternativa à volta dos anos 60 e 70 conduziu-me a essas duas suposições que, espero, sejam plausíveis: a consciência conjunta da vontade de ultrapassar as fronteiras da obra, experimentada tanto pelas artes plásticas quanto pela poesia (sempre mantendo em vistas algumas diferenças entre ambas) e o relacionamento estético (inconsciente) da nova geração concretista e dos marginais sob a égide de uma constelação política e cultural que os aproximava (malgrado eles mesmos). Comecemos pela primeira hipótese.
Irritação nas artes É comum que os amadores de poesia se espantem com as constantes provocações que a arte dos anos 70 reserva ao leitor. Ou tais obras não alcançam qualidade suficiente para atingir um patamar estético aceitável, ou, ao menos algumas vezes, estes “não-objetos” (conforme Gullar) ou “probjetos” (de acordo com Duarte e Oiticica) são híbridos de arte e outras esferas.
283
Um exemplo muito característico da época: no jornal Opinião, a poeta Ana Cristina Cesar publica o artigo “Um rito de passagem” (14/11/1975, p. 23) no qual descreve detalhadamente a apresentação de piano intitulada “Fragmentos de uma solidão”, de Vera Terra (professora de estética da PUC-RJ), em que a concertista, ao invés de simplesmente tocar músicas de Eric Satie conforme constava do programa, aparece no palco vestida como menina prodígio, de laço de fita na cabeça e uma rosa nas mãos. Enquanto se dirige lentamente para o piano, um ruído surdo se inicia e prossegue ao fundo, ao que a articulista comenta: “O trabalho de Vera [...] não se esgota numa discussão conceitual, mas, ao romper com a ‘moldura’ do concerto, assinala o aparecimento do artista com a sua força e o seu suor.” Enquanto a pianista tocava, palmas gravadas a interrompiam, projeções de filmes de festinhas familiares passavam... enfim, uma série de interferências era capitalizada para apresentar “uma ruptura com a noção tradicional do concerto e do concertista”. Finalmente, a autora descreve os movimentos da pianista, que arrasta o banco pela sala ruidosamente, faz barulho com as mãos e mesmo corre em volta do palco emitindo “gritos de cansaço” e um “ofegar cada vez mais forte”, o que “torna presente o corpo da artista.” Não há assim o distanciamento do público, “que gostaria, por sua vez, de recuperar a confortável posição de assistente de um concerto e evitar a proximidade da não-representação e o contato direto, sem a mediação de um código conhecido.” Nas palavras da pianista, tratava-se de iniciação a uma experiência nova, em busca da transição para outro estágio, o que pressupunha a “destruição dos olhares antigos”, através de “uma géstica não representada, simplesmente vivida.” Seu propósito, segundo a interpretação de Ana Cristina, seria refletir criticamente sobre o universo estereotipado da música clássica, com suas regras de etiqueta. Conclui Ana: “Os ritos de passagem supõem uma experiência de morte que torna possível o renascimento.” Que este espetáculo tenha ocorrido naqueles anos é sintomático da descrença nos procedimentos tradicionais da arte, e da necessidade de assinalar a presença corpórea do indivíduo, e de sua pessoa incômoda e precária – sem transfiguração simbólica ou distância. A obra poética de Ana Cristina Cesar e de alguns de seus contemporâneos se assemelha ao esforço da pianista, erigida sob os mesmos dilemas. 284
Assim, esta arte irregular e incômoda dos anos 70 oferece vários desafios. A trajetória de Hélio Oiticica, em muitos momentos paralela a de outros artistas plásticos brasileiros, mantém pontos de contato com as interrogações obcecadas de poetas como Armando Freitas Filho e da própria Ana Cristina, que, como ele, não abandonaram totalmente um impulso construtivista (apesar de todos os protestos que fariam em relação a essa afirmação), mas, seja por inflexão política, seja por afinidade com a linguagem que se desejava imediata da antiarte, criaram uma poética de intervalo entre forma artística e impressão de presença, como a recusar a “máscara mortuária” que congelaria de vez a concepção primeira, ou ocultaria os bastidores do processo de composição. Estudioso da ressurreição da voz na cultura ocidental, Paul Zumthor (2007) credita a necessidade de recuperar a presença corporal, em parte perdida, à frieza do mundo virtual dos media. Aquilo que poderíamos considerar como mera repetição das propostas das vanguardas históricas adquire, neste contexto, uma significação de outra ordem.
Primeiro exemplo: Beijo Acompanhamos o envolvimento de Ana Cristina Cesar na fundação de um jornal cultural e, através de suas anotações podemos depreender o significado deste tipo de publicação para ela e para seus contemporâneos que nele colaboraram. Pois enquanto alguns jornais e revistas eram coordenados por intelectuais de renome, a nova geração ora participava dos periódicos mais prestigiosos ora lançava seus próprios veículos. Dissidentes do Opinião reúnem-se para lançar o tablóide Beijo, que durou sete números, saindo mensalmente entre 77 e 78. Caracteristicamente, o comitê editorial era enorme e discutia em assembléia todas as decisões relativas ao jornal. Não havia hierarquia e as tarefas eram divididas por igual (assim como, supõe-se, os gastos...). Como os outros alternativos, este também trazia ilustrações e fotos grandes, que dialogavam de forma livre com os artigos. Os assuntos variavam: resenhas de livros recém-publicados, o cinema novo e marginal, a questão agrária, a influência da TV, a MPB (especialmente o tropicalismo), ressalvas à psiquiatria tradicional (isto era recorrente), a renovação da Igreja, oposição ao stalinismo, 285
direitos dos homossexuais, críticas ao sistema penal e à ditadura militar, textos da Escola de Frankfurt, de Michaux, Foucault, Baudrillard, Octavio Paz, Castoriadis, Guattari, Glucksman... Os colaboradores eram jovens egressos recentemente da universidade e já atuando, como a própria Ana Cristina Cesar, ao lado de Rodrigo Naves, Cacaso, José Resende, Ronaldo Brito, Gilberto Vasconcellos, Olgária Mattos, Francisco Foot Hardman, Carlos Zílio, e outros. De acordo com o documento de fundação, reproduzida por Ana Cristina,265 as propostas do novo jornal eram: - dessacralização: descompromisso com nomes ou figuras consagradas, consideradas “alinhadas” a um mesmo espectro ideológico, e importantes nos círculos intelectuais; - função de desrecalque: trazer à tona temas pouco debatidos (principalmente pela “esquerda encastelada”); - descentralização: desconcentração na estrutura de poder; - emergência de contradições: desmontagem da frente ampla; - linguagem alternativa: diferente do texto típico da imprensa e/ou publicação universitária; - constante questionamento e explicitação do autoritarismo das articulações discursivas; - atentar para a distância entre as propostas que norteavam a prática política e as relações cotidianas. Segue-se o seguinte comentário: “seria possível fazer um jornal que pensasse e atuasse criticamente sobre as relações que estabelece: entre texto e leitor, entre texto e texto, texto e ilustração, com outros veículos? Que refletisse sobre sua prática.” Em consonância com as orientações ideológicas típicas da época, a ata de lançamento adverte: “Reconhecemos que o produtor é parte interessada e comprometida com o que produz. Por isso a nossa proposta é autogestão. Fazer um jornal independente. Decidir coletivamente qual matéria sai ou não.”... “a que práxis queremos ligar o nosso produto final.” E ainda: “O produto diz da sua própria estrutura, significa as 265
Documento do Arquivo de Ana Cristina Cesar, no Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro.
286
relações que propõe.” No manifesto publicado pelo jornal em seu primeiro número, a comissão editorial afirma: “Não somos apenas produtores, mas também leitores.”, de forma a manifestar sua intenção de debate contínuo, seja entre si seja em troca permanente com os seus possíveis leitores, que se esperava, fossem também interventores críticos. Tal recomendação era levada ao pé da letra. Contou-nos Francisco Foot Hardman que, tendo realizado uma viagem marcante a Praga e pretendendo relatar o que vira, escreveu um artigo sobre sua experiência para o Beijo n. 6 (“Mulher de Praha”266). Foi então convidado a ir ao Rio participar da assembléia que decidiria sobre a publicação dos artigos para o número seguinte, com direito a voto e veto. Viajou de ônibus partindo de São Paulo especialmente para o evento, que ocorreu de maneira informal mas acirrada, no qual todos declararam assiduamente suas opiniões. Há uma analogia clara entre as intenções manifestas pela equipe redatora do jornal e os discursos dos artistas plásticos. Ambas remetem à concepção de micropolítica descendente de 68. Na linha da Internacional Situacionista, o cotidiano do jornal deveria manter-se atento ao fato de que “a organização revolucionária deve ter aprendido que já não pode combater a alienação sob
formas alienadas.” (Debord, 1994, p. 85). O fundamental era que a prática da vida diária fosse pensada e expressa de forma revolucionária: Esse vivido individual da vida cotidiana separada fica sem linguagem, sem conceito, sem acesso crítico a seu próprio passado, não registrado em lugar algum. Ele não se comunica. É incompreendido e esquecido em proveito da falsa memória espetacular do não memorável. (Debord, 1994, p. 107-8)
Havia, igualmente, uma preocupação muito constante em não aderir automaticamente a posições de frente ampla267, que pareciam mascarar 266
Texto posteriormente republicado em seu livro Os víveres de maio (São Paulo: Kairós, 1980), cuja diagramação (com ilustrações) e conteúdo (conjunto de poemas, prosa de ficção e pequenos ensaios) evocam o tipo de edição alternativa dos anos 70. 267 A expressão “frente ampla” srcina-se da tentativa feita em 67-68 de reunir Carlos Lacerda, Juscelino Kubitschek e João Goulart à frente de um movimento de redemocratização do país. Estes, que provinham de vertentes políticas muito divergentes, ainda assim tentavam costurar uma união possível à volta deste propósito. Representavam, porém, liderança acomodatícia, que não era aceita pelo emergente movimento estudantil nem pelos novos representantes sindicais, desconfiados de um arco de aliança de tal forma aberto que diluía diferenças importantes e assim perdia o gume radical. O AI-5 enterrou de vez suas propostas, mas a expressão ainda ecoava, seja como esperança possível, seja de forma desconfiada. Ver, a esse respeito, Márcio Moreira Alves (1993) e Zuenir Ventura (1988).
287
contradições mais fundas. Anota Ana Cristina: “As divisões de classe se apagam quando entram na ‘cultura brasileira’.” E: “O pânico das divisões come solto; dividir enfraquece. Mas unir pode esmagar.” Tal inquietação se reflete no propósito de “desrecalque” de temas pouco tratados pela imprensa, mesmo a alternativa. Pondera ainda Ana Cristina que o jornal dirigia-se ao mesmo leitor de Movimento ou Opinião mas o Beijo queria justamente evitar a armadilha dos outros, onde o público “lê colunas do bom-senso, lugares comuns a reiterar o próprio esquerdismo, gratificantes, enchendo a pança e os ouvidos – exatamente o que eu esperava ouvir!” – o que ressoa a estratégia do Teatro Oficina de provocar os espectadores, na esperança de desestabilizar suas certezas e boa consciência. Ana Cristina, ao comentar a lápis artigo de André Glucksman (Beijo, n. 5, 1978), critica a posição do intelectual ao qual “falta consciência de classe”, uma vez “que se acredita mais uma vez porta-voz dos oprimidos, setor neutro e transparente que reflete as imagens e os gritos ocultos banguelas e desbocados”. O intelectual, segundo ela, tende a não perceber “a sua função de controle” como jornalista, professor, escritor, além de ignorar os seus “limites de classe”. E termina com o comentário: “êta onipotência.” O nome do jornal também foi aceradamente discutido: queria-se evitar que englobasse totalidades abstratas ilusórias, tais como “povo, brasil, rosa dos ventos, nação, outros espaços”. Também se rejeitavam os “títulos acadêmicos, referências eruditas. Nem pretensões literárias. Nem panamericanismos.” Assim, a idéia marota que o comprador fosse à banca de jornal e pedisse “me dá um beijo” venceu, especialmente quando a própria editora passou a chamar-se “Boca”. Em particular sobre literatura, Ana Cristina anotou as considerações seguintes: nas relações entre real e texto, desmontar a impressão de reflexo. Mais especificamente, ter cuidado com a “representação do popular (que pode ocultar narrador autoritário ou paternalista; ou que pressupõe que as palavras refletem o real, basta boa vontade.”, e “que tenha uma determinada atenção aos processos que usa sem ‘naturalizá-los’.” Esta autoconsciência do texto como construção será constante em sua obra, entremeada à impressão de espontaneidade ou transcrição imediata – como se ela fizesse um jogo ambíguo e tenso entre dois pólos. Ainda acerca do tema, um artigo da própria Ana Cristina no Beijo n. 1 (1977), “Malditos marginais hereges”, ironiza a suposta identificação entre 288
escritor e povo preponderante em contistas da época, que tratam o primeiro como se fosse um explorado heróico, perseguido pela polícia posto que destemido apesar dos pesares, insistindo em desvendar a realidade nua e crua. Critica o intelectual de esquerda que, demagogicamente, diz identificar-se com o oprimido, e utiliza a escrita para “denunciar e conscientizar”, porém o faz de forma autoritária e manipulativa, como se fosse possível mudar a condição de classe apenas pela vontade retórica, passando por cima das contradições e da má consciência. O artigo censura especialmente o chamariz comercial disfarçado de marginal de uma coletânea de contos que quer assegurar seu nicho de vendas, em sua opinião popularesco, nas bancas.268 Apesar do empenho, Ana Cristina ainda assim decepcionou-se com a experiência, rompendo com os companheiros de redação na altura do número 6, pois sentia que, a despeito de tudo, como no jornal Opinião, do qual eram dissidentes, “entramos na velha ordem”: “em momento algum [se] questionava .... a própria posição”... “o pedestal de onde [se] falava”. Tal como nos pequenos grupos de esquerda que se dividiam continuamente, também aqui a busca de radicalidade era insaciável.269
Revistas de poesia e artes plásticas:
Das revistas voltadas especialmente para as artes plásticas, mas que faziam trânsito com a poesia, destacamos, como primeiro exemplo significativo, a
Malasartes (1975-1976). De vida curta como a maioria, surge no Rio, editada por um grupo de artistas e críticos de arte (dentre os quais Carlos Vergara, Carlos Zílio, José Resende, Cildo Meirelles, Ronaldo Brito, Rubens Gerchman, 268
Ana Cristina resenha o número 4 da coleção, denominado Malditos escritores! , que traz na quarta capa a seguinte assertiva de João Antonio: “Literatura não existe. O que há é a vida, de que a política e a arte participam.” Nas margens do exemplar encontrável em sua biblioteca, ela replica, a lápis: “por que ler então? Abra a porta e saia na rua”... (Mas... não se deve fiar literalmente seja em um, seja em outro). De forma bastante radical, seus colegas de redação Ronaldo Brito e José Rezende propugnam, no texto “Mamãe Belas-artes” ( Beijo 2, 1977), a liquidação do sistema artístico, propondo novas formas de criação para o presente (veja-se o texto anterior, “Artes plásticas e poesia”). 269
Flávio Aguiar (1997) relata, como observador participante, os sucessivos “rachas” que acometiam a imprensa independente nos anos 70. Por exemplo, de um grupo dissidente de Opinião surge Movimento, e por sua vez, deste descende Em tempo.
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Waltercio Caldas, Luis Paulo Baravelli e um poeta marginal, Bernardo Vilhena). Sua direção teórica foca-se especialmente na “crítica ao mercado” e “ao objetofetiche”, isto é, endossam a proposta de “questionar a natureza da arte e sua relação com o espectador” (de acordo com texto traduzido de Joseph Kosuth no primeiro número). Isto será a tônica de todos os artigos. Nela, logo de início, reencontramos o manifesto inaugural das artes do período, o ensaio “Teoria do não-objeto”, de Ferreira Gullar (republicado do Suplemento do JB, 1959) em que o poeta sugere que a pintura abandone “radicalmente a representação” e então rompa “a moldura para que a obra se verta no mundo” (p. 27): Não se trata mais de erguer um espaço metafórico num cantinho bem protegido do mundo, e sim de realizar a obra no espaço real mesmo e de emprestar a esse espaço, pela aparição da obra – objeto especial, uma significação e uma transcendência. (p. 26).
Para Gullar, as neovanguardas que imitam os dadaístas colocando materiais brutos do mundo dentro do quadro fazem pouco, pois apenas “denunciam o fim da convenção mas não anunciam o futuro.” A crítica ao objeto artístico, tornado bem de consumo dentre outros, deveria ocupar o centro, de modo a gerar intervenções que alterassem a percepção, e principalmente mudassem o espaço em que vivemos. No mesmo passo que as outras revistas culturais, também a Malasartes questiona as fronteiras estabelecidas pela autonomia da arte e propõe que esta seja uma experiência que amplie a consciência do espectador, com conseqüências transformadoras em sua vida cotidiana. Um texto de Bernardo Vilhena, “Consciência marginal” (1975, n. 1), seguido de significativa antologia de poetas do grupo, confirma a afinidade da poesia com a direção teórica da revista. Depois de asseverar que não há opção para a poesia a não ser a marginalidade, já que as editoras e livrarias não a divulgam mais, ele apresenta como possibilidade o livro pessoalizado e distribuído de mão em mão: O pacote pouco importa: um livro para ler no ônibus, um livro entre dois cigarros, envelope de bilhetes inesperados, caderno de notas, piadas, surpresas, indicações: o leitor o recebe como uma cola de colégio. Pode usálo pra conferir suas próprias respostas, ou rasgá-lo, se não estivesse interessado na pergunta. Latente em quase todos nós, desperta aos poucos uma atitude que o Cacaso define numa frase convicta: “a vida não está aí para ser escrita, mas a poesia sim está aí para ser vivida.”
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A famigerada desqualificação da poesia, ou rebaixamento estético, acompanhada
pela
ideia
do
poemão
(ou
poeminha)
espontâneo
e
despersonalizado, culminando com o tom um pouco transgressivo e imaturo (com essas referências infantis à cola no colégio), poderia ser comprovada neste minimanifesto, o qual devia cair bem junto ao espírito dessacralizador da antiarte propugnado pela revista. No número 3 da Malasartes (abr-jun. 1976), o texto de Chacal “Artimanha: ardil, artifício, astúcia” promove happenings multiartísticos, e publicam-se mais poemas do mesmo grupo. Chacal comenta os dois eventos recentemente acontecidos como soma de algo que “não era poesia, música, teatro, cinema, apenasmente.” Refere-se a eles como um tipo de festa teatral, com várias interferências (por vezes violentas) do público que dança, recita, briga, grita... enfim, em suas palavras, “artimanha é comício na cinelândia na central”, “Artimanha se faz na rua, mais precisamente, no meio dela”, e ressalta a necessidade de “interferir”, “votar”, “criar democracia”, “denúncia”, “ocupar espaço”... 270 Suas alusões à política são alegóricas, por meio do relato dos eventos performáticos ocorridos durante o evento do grupo. Por sinal, conta como aconteceu a saída dos participantes do MAM no final da Artimanha em forma de bloco de carnaval, desconcertando assim a repressão policial que se enfileirava na porta, muito de acordo com a própria concepção de “ardil, artifício, astúcia” descrita na apresentação.271
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A expressão “ocupar espaço” foi popularizada por Torquato Neto, que a repetia como um bordão em sua coluna Geléia Geral, no jornal Última hora . Da mesma fonte veio o nome “Artimanhas” para os eventos performáticos do grupo Nuvem cigana, inspirado num seu poema visual (poeta/mãeda/sartes/manha/sdarm/asdho/jedha/manhã). Ver Torquatalia . Geléia Geral. Org. Paulo Roberto Pires. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 2003. A influência do piauiense também se faz sentir quando Chacal publica Nariz Aniz (Nuvem Cigana, 1979), que inclui um poema cujo título é o verso de Torquato Neto em “Pessoal transferível”: “um poeta não se faz com versos”, num tom de manifesto político-estético, em que ele afirma ser o poeta “de real utilidade pública/no cumprimento de sua missão sobre a terra.” 271 Apesar de tanta artimanha para eludir a repressão, inclusive a censura prévia, os exemplares do segundo número da revista “Almanaque Biotônico Vitalidade” foram apreendidos pela polícia na livraria Muro, e os editores principais precisaram se esconder, assim como ao resto da edição (tal como relatado no livro Nuvem Cigana, 2007).
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Guilherme Mandaro, cujos poemas costumam versar sobre o quarto solitário, a noite que cai, e outros temas melancólicos, publica alguns versos, citados em texto curto de Bernardo Vilhena, no mesmo número da revista, que seguem na direção relevada por Chacal (nuançada, entretanto, pela percepção da dificuldade): umaansiedade incerta dor na de ocupar com a palavra certa os espaços que vão aparecendo
Nas artes plásticas brasileiras, lembramos a aparente “imediaticidade” extrema de Antonio Manoel que, em noite de estréia de exposição coletiva, desce nu as escadas do MAM apresentando seu trabalho “Corpobra” (1970), e argumenta que o corpo é a obra (e, aliás, é preso imediatamente...). Cildo Meireles carimba frases em notas de dinheiro que circulam, como “Quem matou Vladimir Herzog?” Letícia Parente exibe um vídeo em que aparece um pé sendo costurado com a expressão “Marca registrada” (1975). Regina Silveira se fotografa comendo biscoitos em forma de letras que compõem a palavra ARTE (1976). Waltércio Caldas coloca um círculo de arame no chão do museu, no qual prende dois sapatos e o intitula “A emoção estética” (1977), a ironizar a distância da contemplação. Hudinilson Jr. tira xérox de partes do seu corpo e as fotografa para uma exposição (1979)272. Artur Barrio produz as desagradáveis “Trouxas sangrentas”, que abandona em pontos estratégicos da cidade para surpreender os passantes. Ivald Granato sai em procissão carnavalesca na Rua Augusta, com a presença de Hélio Oiticica fantasiado e outros, numa performance que chamou de “Delírio ambulatório” (1978). Um pouco antes, em 1969, artistas brasileiros como Lygia Clark, Rubens Gershman, Antonio Dias e Hélio Oiticica decidem boicotar a 10ª. Bienal de São Paulo, em protesto contra a ditadura, e em 1971, muitos se manifestam contra a
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Segundo depoimento do artista, em 1978, com outros dois companheiros, forma grupo batizado de 3nós3 que, dentre outras intervenções urbanas, resolve lacrar as galerias de São Paulo: “Compramos rolos de fita crepe e, numa madrugada, fizemos um X nas portas das principais galerias. Deixamos também um panfleto dentro, com a seguinte frase: "O que está dentro fica, o que está fora se expande." (no site Stencil Brasil, “Entrevistas históricas”, para Maiá Prado, 23/8/2005).
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ameaça de prisão de Mário Pedrosa,273 tomando atitudes que na época também foram consideradas “marginais”. Três conclusões interligadas podem ser extraídas destas informações a se destacar do pano de fundo cultural daqueles anos: 1) era um momento de resistência contra a ditadura militar, em que os artistas preferem não expor suas obras de modo convencional como protesto contra as instituições governamentais que os patrocinariam; 2) a invasão do mercado e dos mass mídia estava sendo repelida pela arte, alijada então em prol da cultura de massa; 3) tratava-se de um momento de inquietação extrema a respeito do sentido e das formas possíveis da arte, que reage de forma crítica, intentando sair do museu (ou do livro convencional) para compor-se junto à vida da cidade.274 As revistas cumprem o papel de ser um canal para que grupos de artistas se reúnam para debater e expor suas idéias em fermentação. Críticos, poetas, cineastas, dramaturgos – todos enfrentam as mesmas controvérsias e se “polinizam” mutuamente (como queria Waly). Diferentemente de hoje, os periódicos culturais não se constituem apenas em espaços de divulgação cultural eclética ou, no máximo, discussões pontuais, mas assumiam posições de combate claras. Na mesma época, Ana Cristina e Ítalo Moriconi publicam o artigo “O poeta fora da república – o escritor e o mercado” (Opinião, 25/03/77), em que lucidamente reconhecem o rebaixamento e a perda de aura do escritor no novo mundo midiático. Sua geração, propõem, precisa desvencilhar-se da velha noção do artista isolado e glorioso, que vive numa ilha não mercadológica. É necessário, declaram, reconhecer as contradições e assumir a postura da intervenção do autor 273
Por sinal, na exposição do Instituto Tomie Ohtake “Arte como questão – anos 70” (curadoria de Glória Ferreira, 2007) na qual pude retirar estas informações, havia algumas revistas de poesia em que o visual e a escrita dialogavam intensamente, como Pólem e Navilouca . (Não pude deixar de notar uma carta endereçada ao presidente Médici pedindo a liberação de Mário Pedrosa assinada por nada menos do que Picasso, Calder e Moore....) 274 Rosalind Krauss refere-se à arte desse período como de “expanded field” (campo ampliado). Ligia Canongia, ao citá-la, verifica que se trata de “práticas heterogêneas” para as quais era necessário pensar numa “categoria provisória” que abarcasse as interrelações de campos artísticos diferentes em que se “combina objetos de produção de massa” com outros advindos da artesania expressiva mais tradicional (2005, p.19). Essas práticas mestiças lembram as intervenções da Tropicália, assim como os textos poéticos de Ana Cristina Cesar (entre o diário, a carta e o poema) e as Artimanhas (entre o sarau, o espetáculo, o teatro), por exemplo.
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na circulação dos textos, assim como recusar a falsa legitimação social como referência, que provém da autoridade bastarda conferida pela academia ou pela mídia. Ao mesmo tempo, cientes de que não existe autonomia total entre arte e mercadoria, concluem que saber criar tensão é o melhor caminho. Elogiam, no texto, a posição de Francisco Alvim que, sendo já um poeta considerado, escolheu continuar fora do mundo editorial, em “descompromisso com o sistema de consagração no campo cultural.”275 Em mais de um artigo, a leitura do ensaio “O autor como produtor”, de Benjamin (1985) esclarece os pontos de vista de Ana Cristina. Seja no questionamento do lugar do autor hoje, seja no elogio reiterado da montagem e da interrupção como procedimentos narrativos que favorecem a leitura participativa. Ela não deixa de se perguntar, com desconfiança, qual seria a posição do intelectual numa sociedade de classes em que a identificação com o proletário parece demagógica e populista, falseando as reais diferenças.276 Do ponto de vista da ousadia gráfica, a revista que melhor transitou entre linguagens, conjugando fotografia, texto e desenho, é, sem dúvida, o número 1 (e único) da Navilouca (1974), editada por Waly Salomão e Torquato Neto, e publicada posteriormente à morte deste. Nas fotografias da capa e da contracapa, as imagens dos participantes seguem duas tendências concomitantes: as representações eufóricas, que mostram um grupo de jovens na praia, vestindo roupas coloridas, e segurando letras grandes que formam a palavra “Alfavela” (certamente um trocadilho abrasileirado com o filme de Godard, Alphaville); e as representações perturbadoras, como as fotos de pessoas caídas no chão (aparentemente mortas) ao lado de latas de querosene e manchas de sangue, ou com o corpo emborcado no capim, sendo olhadas por crianças e por uma multidão de aparência humilde. As palavras soltas que se sobrepõem às montagens fotográficas são, numa página, escritas sobre um formato de cruz (“aqui ali, aqui ali/vir ver, ou vir”), e na outra, fileiras e curvas repetindo as palavras “sol” e “nada”. Os retratos mais celebratórios, em que jovens dançam ou fazem teatro, 275
Em Ana Cristina Cesar, Crítica e tradução (1999, republ.), p. 201. Cito, do seu artigo “Malditos marginais hereges” ( Beijo , nov. 1977): “’O intelectual deve encontrar seu lugar junto ao proletariado.’ Mas qual é esse lugar? Junto aonde? Só pode ser o de um protetor ou mecenas ideológico. Um lugar impossível, Benjamim. 276
Porque supõe que o intelectual é desenraizado, que pode sublimar seus interesses e privilégios, sua educação e seu poder de verbalizar, em nome do bem comum.” (ver p. 210 e ss., republicada em Crítica e tradução , 1999).
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são entremeados por associações macabras, como o texto de Torquato Neto sobre a gilete ou fotogramas de Zé do Caixão e Ivan Cardoso com aspectos vampirescos e aterrorizantes (mas de modo paródico). Waly Salomão, no excerto reproduzido de seu livro Me segura qu’eu vou
dar um troço (1972), diz-se possuído por uma “energia terrível”, propondo um “alargamento não-fictional da escritura” e um desejo mutante de ser outro, de tornar-se múltiplo. Percebe-se, aqui e em tantos exemplos, que não se trata de uma exacerbação da subjetividade em si mesma, mas um expandir-se que comporta diluição de fronteiras em vários níveis, incluindo aspectos de auto-destruição.277 Há, assim, um tom ambíguo na revista difícil de definir, entre a energia liberadora do experimento radical e o ímpeto agressivo. Talvez o exemplo mais ilustrativo seja a foto da quarta capa, na qual aparece uma mão segurando uma gilete que traça uma incisão diagonal sobre um círculo negro. Do talhe resultante verte sangue, que escorre, realçando-se o contraste entre o negro e o vermelho. Tendo em vista o teor de alguns textos, dos quais realço, como melhor articulado, o ensaio “Da supressão do objeto” de Lygia Clark (que já comentamos alhures), pode-se indicar como intenção do conjunto da produção a desconstrução da arte como forma autônoma. Um impulso que funde crítica ao autoritarismo sociopolítico e ataque à estética consagrada. Chega-se a um ponto de indeterminação e estranheza: a palavra-valise que abre a revista, “alfavela”, tem intenção utópica, paródica ou crítica? E qual o sentido do termo “gelete”, que funde gélida, gelatina e gilete, no texto de Torquato Neto?278 277
Nesse de sentido, ensaio de Robertoperformativo Zular (2005)donos esclarece, ao contrastar, na produção Waly oSalomão, o aspecto desejo e a exasperada percepção de sua impossibilidade, que obstrui a realização da obra, deixando-a sempre na posição de projeto inacabado. Ao mesmo tempo, observa, o sujeito poético é atravessado pelo outro, seu inimigo e invasor, tensionando a fronteira da interioridade, que se torna plural e contraditória. 278 O fato de a edição ter ocorrido num momento disfórico do tropicalismo, quando seus principais mentores haviam se exilado do país, por conta do endurecimento da ditadura, infiltra-se na atmosfera híbrida da revista. O próprio lançamento foi marcado pelo luto da morte de um de seus editores, Torquato Neto. Além disso, o apuro gráfico “luxuoso” contrariava a ética de recusa ao sistema característica da época, marcando ainda mais a virada para novos tempos. Conforme depoimento de Chacal: “De um lado era o suicídio do Torquato, do outro porque a Navilouca acabou sendo bancada pela Philips [na época, a gravadora da Gal, que tinha contato forte com Waly], então perdeu aquela virulência que tinha. Aquela coisa do Torquato, de que ‘poesia é atitude’. [...] No lugar de ficar feliz, achei que a revista tinha se vendido, que estavam querendo se promover à nossa custa, que tinha perdido a sua independência. Era um pensamento muito radical, típico daquela época...” (apud Sergio Cohn, org., Nuvem cigana , 2007, p. 38-39)
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Um excerto dos pseudo-diários de Ana Cristina, em que ela se refere ao parto da escrita e suas dificuldades, talvez nos indique um dentre os climas da
Navilouca: Tonta de pescoço, pedaços apavorantes nos quartos: mortos, duplos, monstros, mãos. Batmacumba. O lado do terror do tropicalismo. Terno, térmico, terror-tropicalismo. Meus pedaços trabalham detachados, olho pra mão, pra letra, pra perna, pros dentes escovados. (13/09/1977, Pasta rosa,
Arquivo do Instituto Moreira Salles, Rio de Janeiro)
Esse trecho ecoa de muito perto os últimos textos de Torquato Neto, pelo teor de dilaceramento do sujeito e de sua relação com a própria linguagem. Também nos chama a atenção o misto de traços característicos da poesia concreta (como a disposição espacial das palavras na página, a concisão, a fusão de termos), uma vez que ela faz parte da revista, e a apropriação destes procedimentos para um contexto bem diferente, em que as vozes são dissonantes.279 Ressaltamos, por fim, um jornal cultural em que transitam ao menos duas correntes diversas em termos poéticos: é o GAM (Galeria de Arte Moderna, 1ª fase: 1966-1970; 2ª. fase: 1976-1977), coordenado por Helio R.S. Silva e pelo poeta baiano Duda Machado, que, como os outros conterrâneos, associava-se tanto ao grupo concreto quanto ao tropicalismo, confluência forte naquele momento. Como já mencionado, essa aproximação acabou por metamorfosear por dentro o projeto dos concretistas, acercando-os de novo viés da cultura brasileira, 279
A revista constitui-se de uma sucessão de tons babélica. De modo análogo, no segundo número do Almanaque Biotônico Vitalidade (Nuvem Cigana, 1977), percebe-se marcas da violência social e negativismo que do não Almanaque supúnhamos existir numa publicação aparentemente “festiva”. Os dois números trazem ar anárquico, como um elogio do espontâneo. O primeiro abre-se com um poemeto do Charles que diz: “os mestres da vanguarda vem de complicar/a gente vem de viver/brincar e anotar”. Predominam as montagens com fotos e desenhos integrados aos textos. Mas, ao lado das páginas mais lúdicas, há uma quantidade expressiva de situações de violência e pobreza (especialmente no segundo número). Ao contrário do que a capa parece sugerir, a revista traz tanto o aspecto carnavalesco quanto um tom bastante crítico. Por sinal, no depoimento de Chacal sobre o Almanaque, ele ressalta exatamente essa estranha combinação. Depois de afirmar que a revista tinha um “ar folgazão, com a cara da Nuvem”, segue dizendo: “Poemas, fotos e desenhos ali estampados mostravam um painel pânico do tempo policial que se vivia, com muito humor e ironia” (2010, p. 64). Faz-se necessário, no entanto, distinguir as propostas destas duas publicações, pois está entranhada na forma de ser do Almanaque um aspecto artesanal e espontâneo – diferente do acabamento mais formalizado da Navilouca , cujo aparato literário e teórico, proveniente do contato com o paideuma concreto, é mais elaborado. Ainda assim, alguns traços comuns, na intenção e no resultado... (ver, no Anexo, reprodução de páginas de ambas as publicações).
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dissolvendo ossos do plano piloto e adicionando temperos do barroco, do contracultural, do pop. Waly Salomão, o próprio Duda Machado, Torquato Neto, Rogério Duarte, Paulo Leminski, Jorge Mautner, Antonio Risério... todos letristas do grupo tropicalista e admiradores da poesia e do paideuma concreto, acabam por absorvê-lo e ampliar suas fronteiras, transmitindo aos jovens poetas cariocas, para quem eles eram ícones, sua influência inquieta. No mesmo jornal, cujo eixo de interesse dava-se à volta das artes plásticas, Duda Machado abrirá espaço para a divulgação do grupo marginal, com matérias sobre o lançamento do Almanaque Biotônico Vitalidade (organizado pelo “Nuvem Cigana”, com colaboração de Ronaldo Bastos e Chacal, dentre outros), o qual ocorreu, por sinal, no próprio MAM. Reproduzirá poemas de João Carlos Pádua, assim como texto de Torquato Neto. Haverá ainda artigo sobre a recém-lançada
Anima (revista de Capinan e Abel Silva), escrito por Geraldo Eduardo Carneiro (poeta próximo ao grupo marginal). O que de fato norteia o debate promovido pelo GAM, e que se constituirá no pano de fundo comum de todos, é a necessidade utópica de “quebrar a inércia das platéias, liquidar com a figura do fruidor, passivamente contemplativo”, conforme formula seu editor, fiel a tema de discussão comum à época. E complementa, em outro artigo: “Enfrentada a questão do participador, dissolvida a autoria, a obra perde seu sentido, dilui-se. A negação do artista como demiurgo conduz a um novo tipo de proposta. Uma criatividade compartilhada e expressa no viver. A forma mais adequada e radical desta configuração é o lúdico. E o corpo é o lúdico por excelência.”, “O corpo é a casa”. E continua: “Redescobrir o corpo, reinventar a vida. Lygia Clark inclui-se entre aqueles que se propõem, através de sua ação, o cumprimento historicamente possível deste projeto libertário.” (“Lygia Clark, do objeto ao corpo”, junho 76, n. 28, p. 4-5) A relação entre arte e liberdade, arte como mudança de vida, reaparece continuamente, como uma bandeira. O fato de, no mesmo número da revista, comentarem-se estes pensamentos de Lygia Clark logo após o lançamento do
Almanaque Biotônico Vitalidade (1976-1979) não é gratuito. Quando se olha a capa destas revistas editadas pelo grupo “Nuvem Cigana”, em que pelo menos trinta jovens se encontram juntos de pé em atitude celebratória, como uma trupe de circo, cada qual expressando sua alegria de estar ali, reconhece-se a atitude proposta pelos artistas plásticos em seus manifestos. Como em algumas outras, 297
nesta também os trabalhos são praticamente anônimos – poucos trazem assinaturas, outros foram realizados por mais de uma pessoa, e para se ter certeza da autoria assim diluída, é necessário recorrer-se a um índice precário. Dessa forma, a impressão do poemão redigido a várias mãos, na fórmula de Cacaso, se materializa.280 Neste momento, as propostas concretas ainda precisavam ser defendidas, especialmente porque aqueles novos artistas que se diziam contraculturais tendiam a se afastar de concepções estéticas mais formalistas. Não se pode dizer isso de todos, já que Hélio Oiticica estava próximo de Haroldo, assim como muitos da geração da contracultura cuja obra teria afinidade com o tom marginal, como seria o caso de Waly, Torquato e Mautner, que no entanto se mantiveram sempre fascinados pelo círculo concretista. Enfim, a cisão é mais sutil e cheia de meandros do que se pensaria. Antonio Risério, por exemplo, ao escrever sobre obra de Augusto de Campos e Julio Plaza, a “caixa preta” (por sinal, também um objeto entre artes plásticas e poesia – justamente a tendência do momento), explica que não se trata de um livro tradicional, mas de experiência gráfica, entre o verbal e o visual: “Aqui o poema é um objeto tridimensional que o consumidor deve montar”. As palavras são ícones para o leitor armar e dispor, de modo lúdico. Critica os “tempos de diluição e de revanchismo anti-concretista, ressentido e retardatário.” (idem ibidem, p. 16) e elogia Catatau, de Leminski e Cantaria barroca, de Affonso Ávila – sobretudo porque ambos se afinavam com os poetas concretos... Já Geraldo Eduardo Carneiro, no artigo “A poesia marginal e seus meios” (julho 76, n. 29, p. 13) também observa que “há uma clara articulação entre o texto propriamente dito da poesia marginal e as formas gráficas de apresentá-lo ao público”, pois a intenção seria a “necessidade de destruição dos limites – literários, gráficos e, por que não dizer, biográficos.”, de forma a alimentar a tensão entre “vida literária” e “literatura da vida”, sem substituir uma pela outra. Ao comparar o produto final das publicações do grupo concreto e/ou tropicalista, de um lado, e marginal, do outro, distingue-se alguma diferença na qualidade gráfica ou no espírito que os norteia: enquanto os primeiros pelejam 280
Por sinal, tivemos ocasião de folhear, no arquivo do Cacaso, na Biblioteca da Casa de
Rui Barbosa, um caderno batizado de “200 milhas”, com poemas, desenhos e fotos entrelaçados, no qual as diferentes caligrafias e estilos sugeriam a criação coletiva e anônima.
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para apresentar um produto bem acabado, os segundos, muitas vezes, apreciam a “sujeira”, o que inclui o uso de papel descartável, em produções baratas. Nem sempre, porém, é assim: algumas edições, posto que de aspecto artesanal, são caprichadíssimas. Os desenhos, as fotos, todo o design traduz o empenho personalizado. Em outro número do GAM, Carneiro volta a enaltecer a importância da ilustração para a nova poesia, pois, ao aproximar as linguagens, aponta-se para o limiar entre arte e vida, buscando-se “o lugar onde as duas vacilam” (set 76, n. 31, p. 7). Naquele momento, porém, Risério não admitia semelhanças entre concretos e marginais. Em artigo subseqüente (“A crítica e a ‘nova musa’”, agosto 76, n. 30, p. 12), desanca Silviano Santiago porque este creditava à geração marginal srcinalidade em relação ao que havia sido feito anteriormente. Se Waly Salomão é coloquial, argumenta, porque seria Cacaso ainda mais? Chacal representaria melhor a “vanguarda” do que Torquato, Caetano, Duda, Afonso Ávila? Por que, afinal, deveria esse novo grupo desligar-se do concretismo, quando este nem era mais o mesmo? Ironizando o texto de Ana Cristina sobre a poesia recente, “Nove bocas da nova musa” (Opinião, 25/06/76), quando ela afirmava que nem tudo que é “última novidade” é “verdadeiramente novo em linguagem”, sugere ironicamente que a autora use esta lição para si mesma... O fato de Ana Cristina saudar os “anti-cabralinos novíssimos”, desvinculados dos movimentos vanguardistas constitui, segundo Risério, o seu grande mal, pois tal posição não condiz com o realmente experimental. Voltando a criticar Silviano Santiago, ridiculariza sua mania de inventar movimentos, tais como uma suposta “estética da curtição”, na qual situaria Waly e Gramiro, o que, para ele, não tinha sentido. Curioso notar, no seu texto, o desejo de arrebanhar para o concretismo todas as inovações, sem admitir o impacto que o tropicalismo e a contracultura alcançaram sobre o grupo concreto para articular sua abertura a outros sons e realidades. E o quanto, de fato, Waly e os outros nordestinos radicados agora no Rio estavam influenciando uma nova atitude entre os poetas jovens, para quem ele e Torquato eram figuras de grande inspiração: em mais de um depoimento de Ana Cristina, Chacal e de seus amigos da “Nuvem Cigana”, a ascendência tropicalista
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se faz sentir.281 Risério acerta, afinal, ao recusar, para aquele momento, a divisão estrita entre poesia e música, pois sem dúvida talentos poéticos estavam se projetando na MPB. De todo modo, é sinal raro de democracia interna o fato de o mesmo jornal abrigar polêmicas entre grupos que se consideravam opostos. Por exemplo, em número posterior (n. 33, nov. 1976), o GAM publica artigo de André Lázaro sobre uma antologia esteticamente semelhante às publicações marginais, o livro coletivo Folha de rosto (Rio de Janeiro, 1976), que reunia oito poetas e um contista e cuja distribuição fazia-se, como sempre, de mão em mão. O articulista salienta traços análogos aos ressaltados por Heloísa Buarque de Hollanda na “Introdução” a 26 poetas hoje (também do mesmo ano). De novo, a “negação das tendências vanguardistas das décadas passadas” e a “volta ao discursivo, ao coloquial”, com os defeitos inerentes à falta de mediação universalizante ou simbolizante que a “simples transcrição do momento vivido” e da “experiência direta” carregam. Lázaro aponta, de um lado, a “atualidade e força” dessa produção e, de outro, a “uniformidade de linguagem quase excessiva” a que conduz tal informalismo, que vacila entre a expressão do “sufoco” e a “alegria inconseqüente e irreverente”. Conclui com a observação interessante de que, se a vanguarda concreta pecava pelo universalismo generalizante, aqui se recaia no defeito oposto da restrição excessiva à experiência individual. Sinal dos tempos, a proposta construtivista havia correspondido a uma crença na expansão democrática e esperançosa da sociedade brasileira, e a arte marginal dos anos 70, interativa e inacabada, refletia outra forma de realização possível. Reencontramos tais idéias bem desenvolvidas em mais de um texto crítico de Cacaso, o qual, se de um lado reconhece o valor tático do “poemão” (como forma de atualizar a expressão da experiência), de outro distingue da desqualificação literária generalizada que a suposta falta de autoria produz, os poetas cujo estilo desindividualizado mais reforça uma voz inconfundível (referindo-se ao caso exemplar de Chico Alvim).
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Carlos Alberto Messeder Pereira (1981) assinalara, em sua pesquisa fundadora sobre a
poesia marginal, que Waly Salomão e Torquato Neto eram, nas suas palavras, “considerados”... “por alguns de meus informantes, como o passado mais imediato da ‘poesia marginal’.” (p. 80).
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Reproduzimos algumas expressões típicas do período, tais como postuladas em entrevista do artista Flamarion, na mesma revista: “trabalho de fronteira”, “o corpo é o instrumento”, “envolvimento coletivo”, “energias bloqueadas” – enfim, todas palavras de ordem que nos fazem lembrar das propostas dos poetas também – como se coubesse à arte ser o lugar da mudança social.
Jovens candidatos a artista são convocados a emitirem sua opinião sobre o
destino das artes: “A cidade é a tela. Vamos tirar a pintura dos museus e galerias e esparramá-las pelas ruas onde todos possam participar.” (depoimento de Maurício Fridman, que pintou a rua onde morava). E, como em outros veículos alternativos, o próprio jornal é motivo de questionamento. Duda Machado, o editor responsável, convida diversos artistas para se colocarem e montarem seu espaço livremente. Nos anos 90, quando o MAM havia perdido a centralidade cultural que mantivera no período anterior, e não mais atraía a juventude efervescente para sua cinemateca e exposições polêmicas, um diretor mais animado, Marcos Lontra, resolve reavivar o espírito do local criando oficinas de arte. Convida Chacal para editar o jornal do museu. Este confessa não ter grande intimidade com as discussões das artes plásticas, mas perfeito entrosamento com a realização de
performances, “essa linguagem trânsfuga de linhagem esquiva” (2010, p. 161), que ele e todo o grupo à volta da poesia marginal praticaram, de diferentes maneiras. A confluência de música, poesia, teatro e artes visuais, proveniente dos anos 70, tentava continuar o seu curso.
Seriados puramente literários: Revistas mais ligadas ao establishment literário, como a Escrita (São Paulo, 1975-1982, com boa divulgação, vida relativamente longa e tiragem elevada para os padrões da época), editada por Wlady Nader, propiciavam uma literatura mais voltada ao testemunho, que emulava a linguagem jornalística de modo realista. Como em todas, assuntos como exílio e repressão na América
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Latina eram centrais.282 A poesia também comparece na revista, de forma eclética. Ali são publicados velhos e jovens, sem grandes discriminações. Poetas como Mario Chamie, Renata Pallotini, Carlos Nejar, Affonso Romano Sant’Anna e, principalmente, Carlos Drummond de Andrade, terão espaço, assim como novíssimos desconhecidos.283 Disseminava-se a tendência a promover, na literatura, os autores que mais explicitamente tratassem de temas considerados populares. Ao lado de denúncias sobre o Esquadrão da morte e críticas à Coca-cola, deparamo-nos, por exemplo, tanto na Escrita quanto num jornal nanico de São Paulo, o Mais um (1976), homenagem a Solano Trindade na sua luta pela negritude e poema de Capinan sobre as injustiças no mundo agrário, dentre dezenas de exemplos.284 A revista abrigava praticamente todas as vertentes literárias, proporcionando espaço para muitos escritores e, algumas vezes, trazia debates. Num dos números, apresenta depoimentos e poemas dos jovens cariocas (“A vez dos marginais”, n. 19, 1977) em que vários poetas do grupo “Nuvem Cigana” e do “Folha de rosto” se manifestam. Mas tal destaque deu-se apenas uma vez. No geral, outra linguagem predominava ali, normalmente distinguindo-se escritores mais conhecidos. Uma revista bastante viva, de diagramação sóbria, José (1976-1978) foi editada por um grupo nordestino radicado no Rio (Gastão de Holanda, com a colaboração assídua de Sebastião Uchoa Leite, Luiz Costa Lima, Jorge Wanderley e outros). A princípio, privilegia autores e críticos consagrados, como Carpeaux e Drummond. Mas já no n. 2 (agosto 1976), promove um bate-papo importante entre a equipe editorial e membros do grupo marginal, a respeito da publicação da 282
Ao lado da revista propriamente literária, Escrita lançava outro periódico intitulado Escrita Ensaio, cujo objetivo era divulgar idéias de esquerda, e que se dedicava a tratar de assuntos como os sindicatos, os movimentos operários, as greves, a discriminação racial, além de reproduzir textos de Marx, Lênin, Lukács e outros teóricos. Nela colaboravam Maurício Tragtemberg, Octavio Ianni, Florestan Fernandes, Edgar Carone, Caio Prado Jr. e outros. 283 Encontrei uma pesquisadora que estudou essa publicação de forma organizada e completa. Confira-se, pela internet, o Boletim do NELIC (UFSC), onde se encontra o artigo de Nilcéia Valdati, “O que há de poesia em Escrita ” (1999). 284 Reforçando a idéia de marginal, a literatura que tratava de assuntos ligados à vida das minorias é valorizada nesse momento. Não à toa, o livro Quarto de despejo (1960), de Carolina de Jesus, negra e favelada, torna-se um best seller na época (conforme comentário da pesquisadora Germana de Sousa, da Universidade de Brasília, em palestra sobre a representação da favela na literatura brasileira, na Universidade de Rennes, em 16/11/2007).
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antologia 26 poetas hoje. Tomam parte a organizadora, Heloísa Buarque de Hollanda, e alguns jovens poetas, como Ana Cristina Cesar, Geraldo Eduardo Carneiro e Eudoro Augusto. Representando a revista, Luiz Costa Lima, Sebastião Uchoa Leite, Jorge Wanderley. O poeta Sebastião logo percebe que “não existe proposta estética comum, mas sim uma proposta existencial comum” naquela geração “anarquista”, no que é secundado por Heloísa, que, se defende o “impulso apaixonado e vitalista” dos marginais, também reconhece o “momento sem futuro”, cuja realização poética “se cumpre na sua precariedade”. Geraldo Carneiro defende a idéia de que a poesia se realiza na brecha que existe entre a vida e a arte (aludindo à concepção do artista norte americano Robert Rauschenberg), procurando matizar o antiformalismo reinante. Luiz Costa Lima cobra do grupo um programa estético, como forma de reflexão sobre a prática artística, o que provoca reação contrária de Ana Cristina que, escaldada, retruca: “Discordo em que a inexistência de programa tenha a ver com a falta de reflexão crítica.” Enfim, polariza-se amigavelmente a discussão, expondo-se claramente as diferenças entre uma geração marcada pela influência da vanguarda concreta ao lado de leituras de Cabral, e outra, que se rebela. Em meio a tanto ardor revolucionário ou comunitário, outro tipo de contrapartida surge: o escracho cético. O Jornal Dobrábil e seu sucedâneo, a
Revista Dedo Mingo, ambos editados por Glauco Mattoso, debocham de tantas propostas e manifestos, tomando a direção contrária. Neles publicam poetas de verve satírica de diferentes grupos e filiações, tais como José Paulo Paes, Roberto Piva, Luis Guedes, Rubens Rodrigues Torres Filho, Paulo Leminski, Millôr Fernandes, Bráulio Tavares, Sebastião Nunes, Sebastião Uchoa Leite e Alberto Pimenta (Portugal). Aceitando colaborações de todo o Brasil e distribuindo o jornal pelo correio conforme sua veneta, Glauco Mattoso propõe-se a anarquizar as metas utópicas de seus contemporâneos engajados e/ou experimentalistas, “avacalhando” seu ar assertivo e bem intencionado. Conforme comenta Cacaso: “Glauco Mattoso satiriza tanto a falta de seriedade quanto a falsa seriedade: aí entram as vanguardas, o homossexualismo, as contribuições alheias, as ideologias,
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seu próprio trabalho.” (“Poesia de cabo a rabo II – Vinte pras duas”, Leia livros n. 53, 1982/1983).285 Em outra publicação, a revista Código (1974-1990) editada na Bahia por Erthos Albino de Souza, bem mais duradoura, os poemas e textos se intercalam com fotos, montagens, desenhos. Como era característico, a mistura de ícones da cultura pop (Mick Jagger, Yoko Ono, Caetano) convivem com referências à cultura letrada ou à música erudita (Mallarmé, Webern, Duchamp). À parte a maior sofisticação cultural e o capricho gráfico, sempre presente nas edições vinculadas ao grupo concreto, as escritas delirantes de Waly Salomão e Antonio Risério reforçam o psicodelismo então em voga. Leminski, Régis Bonvicino e Duda Machado já “pessoalizavam” a linguagem de seus textos tanto quanto os marginais (embora os criticassem): ao traduzir Ginsberg, lançam o texto do beatnik como desafio para “os marginais daqui, tão bem alinhados no verbo da vida fácil.” Num outro artigo, também Augusto de Campos vai desqualificá-los como escritores triviais. Mas, quanto aos valores estéticos veiculados pela revista, deparamo-nos com muitas confluências. Por exemplo, em entrevista, o compositor erudito Rufo Herrera enfatiza a necessidade de se “criar um trabalho paralelo, marginal”, “questionar a validez da instituição”, e da “experimentação” com as “artes integradas”, em que se propiciasse “entrosamento com o público”, no qual “o público participasse”. Mudara o nome das pessoas e o grupo mas as doutrinas parecem análogas. Logo adiante, fala John Cage defendendo o happening, próximo do teatro, e acreditando que a música serve para “mudar a mente das pessoas”. Diz ainda: “nós poderíamos ter uma música que não fosse como um objeto, mas como um processo.” Elogia a poesia concreta porque, segundo ele, proporciona liberdade ao leitor de se tornar também poeta, completando a obra de arte, como queria Marcel Duchamp. Daí a afinidade com Augusto de Campos, seja pela interrelação de linguagens, entre poesia e objeto visual, seja pela admiração pelos ready-mades. Os jovens que começavam nos anos 80 pelas mãos dos veículos concretos eram os talentosos Nelson Ascher, Alice Ruiz, Péricles Cavalcanti, Vinicius
Glauco publica também o livro Línguas na papa (Ed. Pindaíba, 1982) um pouco depois, como se fosse um concreto esculhambado – de novo reunindo de forma inusitada experimentalismo vanguardista e liberdade marginal. 285
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Dantas... cuja diferença em relação aos marginais residia sem dúvida no maior espectro cultural e nos interesses literários no geral mais amplos. Por isso, ao lado da atitude contestadora, admiravam os caminhos propostos pelos irmãos Campos: de um lado, Haroldo, recuperando o poder da palavra culta sem abrir mão da experimentação, de outro Augusto, divulgando novas informações sobre arte e música. Nessa época, morreu Hélio Oiticica (1980). Décio Pignatari escreve sobre ele belo texto (Código, n. 4) chamando-o de “artista do precário e do fazer”. Elogia seu “pique luminoso”, em que “parecia abrir novos caminhos para além da arte”, promovendo uma “revolução anti-cultural”, em que o aqui e o agora eram fundamentais. E conclui: “Os parangolés são vôos em estado de pouso”. Enfim, o que especialmente destaca na produção de Oiticica é a efemeridade do movimento e a inquietude criadora. Transparece na revista grande liberdade de atitude, em que beatniks e concretos comparecem juntos. Como já dissemos, foram os baianos que trouxeram outras dimensões ao plano piloto, ao mesmo tempo que o contexto cultural motivava a recepção de novas influências à cultura. Duda Machado traduz um poema de Cummings que poderia ser um tipo de manifesto da poesia dos anos 70 (embora publicado pela primeira vez em 1935, no volume No Thanks). A tradução em si é adaptada à gíria brasileira, o que a tornava ainda mais próxima e atual: o quente é uma revista que se foda a literatura tem que ser uma transa com tesão crua de tão pura fedendo pra cachorro obscena e imprevista mas realmente limpa uma coisa que não minta vamos fazer um esporro algo que se adiante autêntico e delirante uma coisa genuína na latrina agraciada com garra e agarrada com graça”
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segure a barra e mande brasa
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Pólem (1974), revista de um só número, inaugura a idéia de não colocar a assinatura dos poetas sob seus textos (só através do índice se descobre quem é quem). Reconhecemos a marca dos concretos na capa: paisagem urbana paulistana onde, em meio aos prédios, entrevemos os nomes dos colaboradores em retângulos coloridos. Mas dentro, afora as referências culturais altas, verifica-se a mesma “mélange adultère de tout” com música pop e underground. Do seu conteúdo, selecionamos, por exemplo, uma carta-poema-reflexão de Hélio Oiticica para Waly Salomão, que se estende de 23/1 a 24/2/74, em que alusões sobre acontecimentos e pensamentos sucessivos de sua vida em Nova York vão sendo desdobrados, com reproduções de conversas com Haroldo e Augusto de Campos, lembranças da morte de Torquato Neto, palavras de Silviano (Santiago?) e citações de Artaud, Rimbaud, Melville (Moby Dick), Nietszche, enquanto comenta também Yoko Ono, Mick Jagger, Keith Richards, Hendrix, e outros. Termina com o envio de uma foto do amigo Romero vestindo um parangolé e retrata-o como “chuchulhante de carícias, de imponência romana e brotar feminino” (ver anexo). Ao mesmo tempo, descreve sua cama-ninho-tenda, local de vivência, quase como uma obra de arte, construção da fantasia. 286
let’s start a magazine
to hell with literature we want something redblooded lousy with pure reeking with stark and fearlessly obscene but really clean get what I mean let’s not spoil it let’s make it serious something authentic and delirious you know something genuine like a mark in a toilet graced with guts and gutted with grace
squeeze your nuts and open your face 306
A relação entre texto e imagem, poema e visualidade, ocupa quase todas as páginas da revista, que conta com a participação de Duda Machado, Iole de Freitas, Caetano Veloso, Rubens Gershman, Erthos Albino de Souza, Ivan Cardoso, Antonio Dias, Haroldo de Campos, Moacy Cirne, Rogério Duarte e outros mais. Waly também colabora com páginas de seu caderno de Babilaques, entre poema e grafismo. Augusto de Campos brinca de ready-made com anúncios de lojas de um jornal mineiro, assinando Augusto Du Champs. Chacal publica “Dois ponto três Lisboa” – mais marginal impossível: tô sem idéia. sem vontade descrever. de nada. não tenho a mínima idéia do que virá a seguir. inércia é meu sobrenome. ando tão feio. tão sem assunto. me assusto. ninguém mais há em minha volta. tô cansado da minha companhia. só falo besteira. não digo nada com nada. preciso exercitar a pena. se ela se move que seja na minha mão. trêmula e bolorenta. mesmo que seja para ser mais um papel sujo. se isso fosse uma folha em branco, você podia desenhar, descansar a vista. ou escrever um bilhete suicida. mas eu passei primeiro e... se você não se importa, rabisque por cima. por mim tanto faz.
E por aí vai seguindo o texto, como um ensejo para “matar o tempo pra não me matar.” Ao reler hoje, percebe-se a influência dos últimos escritos de Torquato Neto, ou talvez o compartilhamento dos mesmos sentimentos de falta de horizonte e de impotência – mascarados embora por uma aparente nonchalance. No começo dos anos 80, a revista Qorpo estranho é editada pelos pósconcretos (Régis Bonvicino e Julio Plaza são os responsáveis). Nela, a contradição e a crise transparecem de forma indireta. No editorial do número 3 (quando a revista muda a grafia do título para Corpo extranho): letras) qorpo estranho, agora, corpo extranho (para bom entendedor duas RESSURGE em seu palco, sob os spots, A CRIAÇÃO ARTÍSTICA em todas as áreas. e a reflexão de preferência, dos próprios criadores sobre a criação (sua e alheia). noutras palavras, crítica de oficina, ... [...] em vez de geléia, MEDULA GERAL, alguém usou a expressão mais sofisticada, “ecumenismo de qualidade” is it possible? e mais: pensar, inclusive graficamente, A MISTURA (e o confronto, por que não?) de fatos artísticos diversos, em especificidade e srcem. um veículo ao avesso, ônibus voador, p. ex., em plena década de 80.
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Apesar de ser um pouco posterior ao recorte temporal que vínhamos obedecendo, creio que nos ajuda a perceber bastante bem o desejo de diálogo dos grupos. Por outro lado, na mesma revista, há um artigo de Nelson Ascher, “Marginalia marginal” (representando a geração que então debutava), que contrasta “duas tendências distintas”: de um lado, os marginais, cuja característica central seria a “expressão imediata e direta dos sentimentos, emoções e desejos”, e de outro os concretos, cuja poesia teria “caráter construtivo” e se dedicariam sobretudo à “criação intersemiótica”. Embora isto ainda pudesse ser evidente, a tendência, naquele momento, parecia pender para a aproximação inevitável e ao intercâmbio “ecumênico” (na expressão do próprio editorial). Outra revista do início da década de 80, a Muda, contém os mesmos colaboradores, acrescida de alguns outros (Duda Machado, Waly Salomão, Aldo Fortes, Rogério Duarte, Paulo Leminski, Régis Bonvicino, Carlos Ávila, Alice Ruiz, Antonio Risério, Erthos Albino de Souza, Omar Khouri, o ubíquo Chacal – sempre transitando entre grupos), e outros. Nela (o nome já diz...) observa-se o germinar da metamorfose e da canibalização entre concretos e marginais, seja no aspecto visual, com fotos e desenhos, seja na forma e conteúdo dos poemas. Por exemplo: e não sei se me caso e mato a poesia tapando a bocadela com a vida
(Aldo Fortes) Ou Leminski em “depondo”: poesia: é a liberdade da minha linguagem
Mais adiante, ele defende srcinalidade, radicalidade e marginalidade como valores centrais da arte: “a classe dominante zela pelas suas linguagens que nós, poetas, dinamitamos.” Nos versos de Regis Bonvicino, poesia rima com utopia e alegria. Enquanto isso, afirma Carlos Ávila em “Não quero ser o poeta”: ouso pronunciar rouco duas sílabas: VI-DA e basta
Até Antonio Risério no texto “Papo de anjo”, ao criticar novamente a “garotada carioca dourada bancando o bandido no palco”, ressalva que o esquema 308
artesanal utilizado para produzir seus livros é mais moderno, descolado do “museu-livraria”, um tipo de “action-writing” do “poeta caixeiro-viajante”, “de mão alegre em mão alegre”, vendendo na praça. Por fim, uma revista de outro espectro é Alguma poesia (Rio de Janeiro, 1978), publicada por uma cooperativa de escritores um pouco mais velhos, nem concretos nem marginais (Fernando Py, Octavio Mora, Elizabeth Veiga), em que, além dos poemas brasileiros contemporâneos, traduções são publicadas, de Auden, Dylan Thomas e outros. Mas já no número 2 (1979), um artigo de Heloísa Buarque de Hollanda, “A poesia vai à luta”, apresenta com acuidade o ideário que então se firmava: sua novidade não é apenas no âmbito da linguagem poética, mas basicamente se revela como uma nova postura frente à poesia. Parece que o que está importando não é tanto a subversão dos padrões literários, mas a subversão da ordem mesma do cotidiano. A feição fundamentalmente vitalista da nova poesia – onde inclusive a utopia parece estar ausente – privilegia a transcrição da ‘vida imediata’, constituindo quase um enorme grafitti poético.
(p. 55) Será que os ventos sopravam na direção da abertura para acordos entre bandeiras cujas cores podiam afinal complementar-se?
Outros jornais e revistas alternativos: facetas
Embora a relação de poesia e artes plásticas remonte às vanguardas modernistas, também na Europa e nos EUA, tal tendência é renovada nos anos 60 e 70 no Brasil, tanto através da impressão de publicações quase artesanais muito caprichadas, “transadas”, quanto na interação entre poema e ilustrações, ou, enfim, num tipo de livro ou revista múltipla, que transita entre esses dois mundos. Vale a pena mencionar mesmo algumas que não se debruçam especialmente sobre poesia, dada a paridade do clima cultural que nelas ressoa. No geral, as revistas alternativas se pautavam pela informalidade de tom, que conferia a elas um ar tribal, de cumplicidade entre leitores e autores dos textos, como se todos integrassem a “patota”. Gírias como “sufoco”, “papos”, “transas”, “desbunde”, “curtição” – são abundantemente empregadas. Esse ar de
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intimidade guarda analogia com o desmonte da distância entre a linguagem intelectualizada e a popular. Tivemos a curiosidade de ler muitas matérias de jornais alternativos da época, não necessariamente de literatura, com a intenção de avaliar qual a importância da poesia naquele contexto. Pois reconhecemos, na cultura como um todo, temas que reaparecem em todos os meios – política, cinema, teatro, música, artes plásticas - de forma que até as revistas e jornais que não tratam especificamente de literatura acabam se voltando para os mesmos tópicos de discussão. Um exemplo característico é o jornal alternativo Bondinho (São Paulo, 1970-1972)287, que se propunha a ser um guia cultural da cidade, sempre com uma grande comissão editorial (dentre outros, Roberto Freire, Bernardo Kucinski, Hamilton Almeida, Claudia Andujar, Carlito Maia). Os temas concentram-se na vertente da micropolítica, das identidades e grupos: a discriminação dos homossexuais, o racismo, a violência policial, o feminismo, terapias, a vida dos hippies em Arembepe, a comunidade dos Novos Baianos, a libertação do jovem em relação às pressões da família (por sinal, discussões como sexo antes do casamento e separações ocupam parte considerável das reportagens, demonstrando a novidade desses assuntos). Cinema, teatro e música pop ocupam o cenário cultural. Na verdade, a “crise existencial” – o anseio de mudar
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De acordo com as informações coletadas por Bernardo Kucinski (2003), quando
começou, a proposta editorial Bondinho era de focada na classe média, vez Mas, que a revista seria distribuída para osdoclientes da rede supermercados Pão deuma açúcar. depois de um ano, a equipe se cansou dos limites bem-comportados que tal público requeria e, em 1972, cortou os vínculos com os anunciantes, libertando-se dos “compromissos assumidos ou convenções” para fortalecer sua “vocação alternativa” (p. 240) e sua identificação com a contracultura: “A redação foi viver em comuna, numa casa do bairro da Lapa, como uma grande família, onde praticavam o amor livre, tomavam muito ácido, discutiam Willi am Reich e a nova filosofia de Roberto Freire, procuravam a vida integral; discutiam muito e trabalhavam muito.” (entrevista com Nelson Blecher, citado por Kuckinski, p. 241). Remeto ao capítulo “ Bondinho : o jornalismo existencial”, no qual o autor narra as vicissitudes desse coletivo de jornalistas advindos da revista Realidade , e que fundaram sucessivamente (após o Bondinho ) os Jornalivro , Ex- , Mais um, Extra-realidade brasileira , sempre tentando driblar a censura e as dificuldades econômicas ocasionadas, em parte, pelo bloqueio das grandes editoras ao seu perfil ideológico. Certos temas que vimos tratados em outros veículos da época também são abordados por este grupo: a poluição industrial, a anistia, os tratamentos psiquiátricos, quadrinhos do Fradim, renovação da Igreja, guerra do Vietnam, o Teatro Oficina, o tropicalismo, a repressão policial...
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urgentemente a família, o trabalho, a vida cotidiana – mantém lugar central. As artes participam desse turbilhão. Os exemplos parecem ingênuos hoje: entrevista-se um rapaz, Sérgio Prado, que fez uma grande cobra de pano para “descobrir jeitos novos de sentar, deitar, amar, não fazer nada”, inventando um espaço diferente. Ou Yoko Ono: “Como uma artista, aprecio combater o sistema usando métodos que são tão afastados do modo de pensar do sistema que o sistema não consegue reagir”. Enfim, o indivíduo ou a comunidade, como heróis que vão inovar tudo de forma simbólica, são a tônica. Janis Joplin “vivia a música”, “cantava com o corpo todo”. Ou, quando toca, “Hermeto é um instrumento e o som parece sair de dentro de seu corpo.” Manchetes como “Walmor (Chagas) tenta encontrar o homem novo” ou frases como “o underground (ou subterrâneo, na versão vernácula de Hélio Oiticica) é a consciência crítica radical da sociedade” e esta pertence ao marginalizado (segundo Luis Carlos Maciel) e mais as reportagens sobre comunidades, caronas, drogas... dão a medida do desejo de transformação que se experimentava. A importância da música como expressão tribal, seja o rock, seja a MPB (especialmente o movimento tropicalista, incluindo Tom Zé, Mautner, Capinan, Macalé) e da moda como forma de pertencer ao grupo (cabelo comprido e barba inclusas) é fundamental marca da rebeldia. No teatro, o ideal de criação coletiva prevalecia. O texto de “Gracias Señor”, do grupo de José Celso, foi inteiramente reproduzido no Bondinho, para a 288
intervenção dos leitores. Rogério Duprat, bastante presente em várias publicações do período, comparece com um texto diagramado de forma a combinar cores e desenhos,
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Segundo a transcrição de Flora Sussek ind (2007), o “convite -manifesto” da peça tinha uma “formulação bastante característica”: O único papel do teatro/ é levar as pessoas pra fora dos teatros/ Destruir teatro onde houver teatro/ Construir teatro onde não houver teatro/ Chegar na frente da televisão/ Quebrar o vídeo e dizer: qual é?/ - Eu tô vivo/ Eu estou vivo, bandeira é estar vivo! BANDEIRA É ESTAR VIVO! (p. 51). Também Carlos Basualdo, na introdução ao livro Tropicália (2007), refere-se às palavras de José Celso, no “Manifesto do Oficina”: “Para exprimir uma realidade nova e complexa era preciso reinventar formas que captassem essa nova realidade.” e, ainda, era necessário buscar uma “superteatralidade”: “uma arte teatral síntes e de todas as artes e não artes” (p. 13).
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fotos e colagens. Reproduzo um excerto (n. 32, 6 a 9 de jan 1972, p. 16), também no anexo final: Nossa geração liquidou com a idéia de arte, mas seguiu sendo artista, triste e nostálgica, voltada pro consumo massa mas marginalizada pordeque o TAMANDU-LUHAN tem esse modus operandi
Já uma equipe diferente produziu a revista de curta duração Flor do mal (1970-1971) no Rio de Janeiro, patrocinada pelo Pasquim
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mas editada pelo
poeta Tite de Lemos. Contava, na sua equipe editorial, com Waly Salomão, Torquato Neto, Capinan, Luis Carlos Maciel, Rogério Duarte, entre outros – toda uma patota de escritores ligados ao tropicalismo. Não demonstram de jeito nenhum o anti-americanismo hegemônico de outros grupos. Pelo contrário, o fascínio pela contracultura passa todo o tempo pela curiosidade por aspectos do mundo pop, encontrando ali as sementes da revolta. Isto não significava aderência ao universo de toda a indústria cultural mas uma fascinação pelos seus ícones desviantes. Uma entrevista com Alice Cooper, traduzida por José Simão, procura evidenciar o lado contestador do artista ao sistema – alguém que quer chocar o
establishment. Assim, o protótipo de revolução é principalmente comportamental. Hélio Oiticica freqüenta o jornal com suas cartas-diários intituladas “Heliotapes” ou “Babylonests”, em homenagem a Nova York, nas quais adiciona notícias sobre os brasileiros que lá encontra, como Gilberto Gil e Haroldo de Campos, e artistas dos EUA. Compara Gil a Hendrix, citando sobre ambos um verso de Yeats: “Só consigo ouvir o cantor que canta como se a fala se incendiasse”290 – de novo defendendo o vitalismo imediato, em que a técnica estaria subsumida à paixão, e a arte conduziria a um tipo de expressão intensa e apaixonada. 289
No começo da década, o surgimento de publicações como O Pasquim (1969) faz um enorme sucesso, anunciando mudança de mentalidade – como se o humor debochado fosse necessário para denunciar a caretice social assim como a própria ilusão de engajamento transformador. 290
Segundo Oiticica, a frase fora extraída do livro de Haroldo de Campos, Ideograma, em que o poeta apresenta as idéias de Fenollosa e Pound.
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Muitos trechos do jornal são desenhados e redigidos à mão, inclusive a capa, na qual a escrita ladeia fotos de meninas praticamente anônimas (uma delas achada no lixo e recortada). A escolha pelo aspecto artesanal foi buscada pelos editores de forma consciente, como resistência à era industrial. Como sempre, o assunto loucura e antipsiquiatria é central. A figura de Artaud não poderia faltar, assim como os experimentos liderados por terapeutas dispostos a mudar o mundo a partir de comunidades alternativas. Teóricos como Robert Laing e David Cooper, que acreditam poder inspirar o modo de vida contemporâneo ganham a palavra: “a única coisa que se pode fazer numa situação pré-revolucionária é estabelecer um protótipo do que poderia existir depois da revolução.” Em lugar do discurso marxista, algo mais afim ao utopismo de Fourier ganha relevo, mas não como projeção futura e sim como tentativa a ser ensaiada agora. Os fundamentos, ao invés de econômicos, tendem ao místico, com argumentos embasados na astrologia (Era de Aquário), em filosofias orientais, como o budismo e o Tao, ou em formas de exoterismo como a teosofia ou a cabala. A proposta consiste em alterar a vida a partir de conversões individuais. Assim, destaca-se a comunidade dos “Novos Baianos”, o hippismo, a cena
underground. Caetano, Mautner, Waly e Duarte publicam partes do que depois serão seus livros, numa prosa delirante, que lembra os beatniks. Chacal, que transita entre baianos e cariocas, tropicalistas e marginais, divulga o poema “Reclame” – um tipo de advertência simplista e direta: Se mundo não vai bem useolentes ou transforme o mundo. ótica olho vivo agradece a preferência.
Nota-se que, como na maior parte dos periódicos culturais dos anos 70, não há compartimentação entre os gêneros ou formas de expressão artística: a prosa poética une-se à música, o desenho e a foto se imbricam ao texto. O jornal faz questão de parecer o que é: artesanal, personalizado, com sinais do processo de compor. Sobre o diário-reportagem dos “Novos Baianos”, redigido por Galvão (“Uma nova raça”), recorto o excerto seguinte, em que ele descreve a forma como dividiam o espaço no apartamento onde moravam: 313
A minha casa foi presente da Baby. Eu também dei a minha. Baby fez outra prá ela. é linda, pendurada no teto e toda rendada. Uma casa de aranha. Eu não lhe conto, a casa é uma cama. Minha cama é um circo. É linda, a empanada. É um cinema. O lençol é uma tela. Minha cama fica dentro de um ex-guarda-roupa embutido.
Há algo de onírico no relato, que não se afasta muito da descrição que Hélio Oiticica faz do seu “Babylonest” no apartamento em Nova York, onde ficava ouvindo música, desenhando, pensando em projetos, conversando – composto de tecidos vários e tudo o mais que acumulava, como uma pega no ninho. Uma utopia comunitária, encolhida – uterina – como a definiu Rodrigo Naves, em que relações pessoais mais livres num espaço pequeno, amigável, teriam substituído os ideais políticos de reforma estrutural da sociedade. Pois no cotidiano, na micropolítica, no “ensimesmamento” do eu e no grupo de amigos está contido todo o arco do horizonte. Enquanto a Flor ao menos durou cinco números, só terminando quando a equipe do Pasquim tomou a decisão de não editá-la mais, por razões de censura interna, um jornalzinho paralelo tentava se firmar. O Presença (1971), editado por Joel Macedo, desapareceu em poucos meses, tratando de temas muito semelhantes aos outros periódicos da contracultura (religiões orientais, pacifismos, viagens exóticas, era de Aquário, músicos como Zappa, Hendrix, etc). A diagramação se assemelha aos outros, com fotos e desenhos interagindo com os textos. O que nos interessa aqui é que dele também tomaram parte Oiticica e Torquato, onipresentes. Chamou-nos a atenção um poema deste acompanhado de uma seqüência de fotos e encimado por instruções de como se deve lê-lo que lembram uma rubrica (em
Presença, 2). Os versos fragmentados, de difícil compreensão se lidos apenas como texto, tal como se encontram transcritos nas edições posteriores de sua obra, tornam-se subitamente decodificáveis se pensarmos neles como um tipo de monólogo teatral, cuja realização depende da interação com as fotos e as indicações de performance (ver anexo). Em revista da mesma década, a Biscoitos finos (s/d), encontramos artigo de Helio Oiticica colocando em xeque o conceito de obra e propondo a fusão de todas as artes. Afirma que, assim como o samba srcinou a ideia do parangolé, no qual dança e música interagem com a forma plástica, o rock (especialmente de Hendrix, Dylan e Stones) converteu-se em referência mais importante para a sua
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criação artística do que qualquer pintor após Pollock. Na mesma toada radical, Waly Salomão publica o texto “Percussões da pedra q ronca”, que vem precedido do seguinte aviso: Para ser lido alto. Para ser lido bem alta voz para ser lido para dentro. Para ser um incendio LUZ FOGO CALOR que se aacenda através de todos os órgãos ALASTRAR Ou não quer????? Ou não quer????? Ou não quer????? PARA SER LIDO ALTO. AFÃ
O anseio performático extravasa do próprio texto, como se este pudesse imprimir energia à vida, num “afã” de ação incendiária. Numa revista caprichada como Anima (1976-1977), coordenada por Capinan e Abel Silva (publicada pela Nuvem Cigana), as fotos exibem um dos editores deitado na rede, tocando violão, sempre muito à vontade, como se o leitor freqüentasse a sua casa (ver anexo). A diagramação introduz cores, cortes, ilustrações grandes, pois a revista quer ter uma cara acolhedora e um pouco lúdica. Integram a redação Waly Salomão, Chacal, Francisco Alvim, Guilherme Mandaro, Gramiro de Matos, Charles, Ronaldo Santos, e músicos como Macalé e Paulinho da Viola, conjugando duas gerações, ao lado de Barthes e Octavio Paz. Outros estrangeiros onipresentes eram os beatniks, Foucault, por vezes Adorno ou Benjamin. Um estilo mais sisudo (ma non troppo) predomina em Almanaque –
Cadernos de literatura e ensaio (1976-1982) editada por Bento Prado Jr. e Walnice Nogueira Galvão, professores universitários de São Paulo, vinculados à Faculdade de Filosofia da USP. O que a diferencia das revistas acadêmicas contemporâneas é o ar de auto-ironia com a postura pedante dos meios intelectuais, o que costuma ser um tom muito raro numa publicação assim. Nomes de peso como Paulo Arantes, Rubens Rodrigues Torres Filho, dentre outros, colaboram com ensaios sobre os dilemas da cultura, entremeando paródias a artigos sérios, e introduzindo reflexões sobre temas mais populares, como a MPB. Cacaso, Heloísa Buarque de Hollanda e Ana Cristina Cesar participam com textos sobre poesia marginal e produção feminina. A literatura mantém espaço destacado em todos os números, em meio aos assuntos preferidos da época. Como na 315
maioria dos casos, os escritores publicados tendem a ser os próprios editores e seus amigos, uma vez que tais revistas almejavam ser o espaço de divulgação de idéias de um determinado grupo. No caso, os escritores que colaboravam mais assiduamente eram o próprio Rubens, Orides Fontela, Zulmira Ribeiro Tavares, Roberto Schwarz e Modesto Carone. Outro jornal cultural importante, com tiragem expressiva, foi o bimestral Versus (São Paulo, 1975-1979) protagonizado por Marcos Faerman, um apaixonado pela cultura latino-americana. Propunha-se a realizar uma “fusão de elementos usados livremente: jornalismo, fotografia, desenho, histórias em quadrinho, literatura, poesia”, uma vez que sua diagramação visava o “choque estético.” 291 Para realçar a impressão da opressão política dos países do Cone Sul, o jornal utilizava recursos gráficos que reforçavam o conteúdo dos textos de intelectuais, como Galeano e Arguedas. Os exilados, as minorias, os injustiçados são o núcleo principal dos interesses de Versus. De novo, o assunto dos hospitais psiquiátricos e das prisões surge várias vezes como metáfora do confinamento repressivo. Um número expressivo de escritores aparece nas páginas desta publicação (Antonio Callado, João Antonio, Antonio Torres, Affonso Ávila, e outros). A poesia comparece em praticamente todos os números. Gullar, então exilado, é entrevistado. Ao lado, trechos do Poema sujo. Poetas de cordel ganham destaque, assim como “eruditos” (Zulmira Ribeiro Tavares e Modesto Carone). Divulgam-se não apenas escritores brasileiros, mas sobretudo latino-americanos e africanos. Submetido, afinal, a um grupo político sectário, o jornal acabou instrumentalizando-se e seus principais colaboradores foram marginalizados, o 292
que ocasionou seu fim. 291
Depoimento reproduzido no capítulo “ Versus : a política como metáfora”, do livro de Bernardo Kucinski (2003). Nesta sessão, o pesquisador relata toda a história do surgimento, apogeu e dissolução do jornal, que “chegou a vender mais de 35 mil exemplares por edição, graças, sobretudo, à srcinali dade e beleza de cada edição” (ver p. 249-268). Recentemente, deparamo-nos com um artigo interessante de Jeferson Candido (2006), do grupo de pesquisadores do NELIC, que faz um levantamento de todas as contribuições de poesia ou sobre poesia no primeiro ano da revista. 292 Muitas revistas culturais ou somente literárias de pequeno porte se espalham pelo país. Outras palavras (1979) de Curitiba, editada pelo poeta Reinoldo Atem, também ecoa a movimentação cultural das grandes cidades. Já o jornalzinho Pólo Cultural (1983), se propõe a aumentar a experimentação e ser menos localista (através da figura de Leminski). Poex (1980), folheto de Belém do Pará, ainda se prende ao plano concreto ortodoxo de fazer “poesia exportação” e “superar o subdesenvolvimento”. Verbo encantado (1971), em Salvador, ed. Alvaro Guimarães, é um jornal mais duradouro e
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Poderíamos continuar ainda longamente, arrolando mais e mais periódicos de variadas vertentes, mas parece-nos que a conclusão já se constituiu. Um tom prevaleceu para grande quantidade de revistas literárias, que se aproximavam sob amplo guarda-chuva de assuntos e de preferências. Embora seus colaboradores integrassem grupos que professavam escolhas estéticas diversas, afinal infletia-se para certa direção – de modo entusiástico ou polêmico. Olhando o conjunto de revistas à distância de algumas décadas, suas diferenças diminuem, girando todas – com mais ou menos velocidade - no mesmo redemoinho.
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abrangente; Paralelo (1976) em para Portoa poesia. Alegre, também conta jornal com perfil dedocultura alternativa, mas sem maior espaço O saco (1976), cultural Ceará recebe textos literários de todo Brasil, assim como Garatuja (Campina Grande, Paraíba, com Francisco Dantas e Bráulio Tavares), Há margem (Rio Grande do Sul), Intercâmbio (1977-1980) do Ceará – este é mimeo mesmo no duro! Totem é publicado em Minas Gerais assim como Inéditos (1977) de Belo Horizonte (com Wander Piroli, Murilo Rubião, Roberto Drummond, Fábio Lucas e outros); Hera (1972), com longa duração, publicada em Feira de Santana (Bahia), por poetas sérios como Antonio Brasileiro e Roberval Pereyr, dentre outros; Grande circular (1979), à volta dos poetas de Brasília, com participação de Nicolas Behr, Chico Alvim e outros – enfim, muitos grupos decidem que fazer revistas era uma forma de resistência, como se a cultura fosse, por si mesma, capaz de mudar o estado das coisas, através da divulgação de idéias novas. Todas estas publicações e muitas outras se encontram na coleção de Imprensa Alternativa, do Arquivo da Cidade do Rio de Janeiro. 293 Esta bibliografia refere-se tanto a “Poesia em risco” quanto ao texto sobre Torquato Neto, “Começa na lua cheia”... assim como a este Apêndice. Outros itens não mencionados foram já arrolados em outros capítulos da pesquisa. Alguns livros de poesia, assim como as revistas comentadas são citados apenas no corpo do texto.
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Anexos
Lista das reproduções fotográficas:
página 1: a) livros de poesia do Chacal b) página interna de Quampérius, de Chacal c) livros de poesia marginal (diversos) página 2: a) livros de Zuca Sardan b) livros de Nicolas Behr c) páginas internas de Prato feito, de Luis Olavo Fontes e Coração de
cavalo, de Charles página 3: a) livros de poesia marginal (diversos) b) página interna de O misterioso ladrão de Tenerife, de Eudoro Augusto junto a Afonso Henriques Neto c) capa de Segunda classe, de Cacaso e Luis Olavo Fontes página 4: a) capa e contracapa do Almanaque Biotônico Vitalidade n. 1 b) índice e abertura (redigida por Charles) página 5: a) capa e página interna do Almanaque Biotônico Vitalidade n. 2 b) página interna (com poema de Zuca Sardan) página 6: a) páginas internas do Almanaque Biotônico Vitalidade n. 2 b) páginas internas de Ânima (índice e Babilaque, de Waly Salomão) página 7: a) reportagens do GAM b) capa de Flor do mal n. 1 e poema de Torquato Neto ( Presença n. 2) página 8: a) índice de Beijo e página do Jornal Dobrábil
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b) capa e página interna de Código página 9: a) capa e contracapa de Polem b) foto e texto de Hélio Oiticica sobre um parangolé, de Nova York, em
Polem página 10: a) texto de Rogério Duarte e Babilaque de Waly Salomão em Polem b) texto de Rogério Duarte em Bondinho página 11: a) capa e contracapa da Navilouca b) quarta capa e página interna da Navilouca
Fontes de ilustrações: Arquivo IMS (Biblioteca de Ana Cristina Cesar, Instituto Moreira Salles) Arquivo Cidade do Rio de Janeiro (Coleção de Maria Amélia Mello à Fundação Rioarte) Arquivo Armando Freitas Filho (biblioteca particular) Arquivo Navilouca (biblioteca de Augusto Massi)
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