Bojunga, Lygia - Angélica

September 15, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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LYGIA BOJUNGA 

 ANGÉLICA 

 

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ANGÉLICA

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LYGIA BOJUNGA

ANGÉLICA deini VIlustrações ilma Pasqual asqualini

24a Edição 9ª Reimpressão

Rio de Janeiro

2013

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Copyright  1975 © Lygia Bojunga

Todos os direitos reservados à Editora CASA LYGIA BOJUNGA LTDA. Rua Eliseu Viscont V-isconti, i, 421/425 4Janeiro 21/425- RJ - Santa Sa nta Teresa Teresa 20251-250 Rio de Tel: (21) 2222-0 2222-0266 266 Fax: (21) 2222-62 2222-6207 07 e-mail : [email protected] www.casalygiabojunga.com.br Printed in Brazil /Impresso /Impresso no Brasil

Nenhuma parte part e desta obra pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar, em qualquer forma ou meio, sem a permissão da detentora do copyright . Projeto Gráfico: Lygia Bojunga Ilustrações: Vilma Vilma Pasqualini Assistente Editorial: Vera Vera Abrantes Revisão: José Tedin Tedin Programador Visual: Visual: Paulo Cesar Cabral CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.  

Bojunga, Ly Lygia, gia,

B67c Angélica /Lygia gia de Bojunga ilma Pasqualini. 24.ed. – 9ª Reimpr./Ly Reimpr . : Rio Janeiro; : ilustrações Janeiro Casa Lygia LygiaVBojunga , 2013 – 24.ed.   160 p. : il. : 19 cm   ISBN 85-89020-06-1  

1. Literatura infanto-juvenil. I. Pasqualini, Vilma. II. Título.

  03-2788.  

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CDD – 028.5 CDU – 087.5

 

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Capítulo I  O porco    Tinham dito:   – Coisa boa que é a vida!   Ele ainda era bem pequeno, não sabia direito como é que se vivia, andava andava louco pra saber melhor; melhor ; pensou um bocado, acabou perguntando:   – Como é que a gente entra na vida, hem? Tem porta pra bater? E batendo... eles abrem?   Responde esponderam ram rindo:   – A vida não tem porta, não. A gente nasce no céu e depois as cegonhas trazem a gente pra terra.   Ele nunca tinha visto uma cegonha, mas mesmo assim achou a história mal contada e acabou dizendo que não acredita acreditava. va. Então deram outra explicação:   – É o Papai Noel que traz a gente pra vida. 9

 

  Ele baixou os olhos: sabia muito bem que Papai Noel era invenção. Foi então que falaram:   – Tem por porta ta pra entrar, sim. Fica lá longe. – Apontaram.   Ele olhou desconfiad desconfiadoo pra lá.   – Se você for bonzinho, você bate na porta da vida e eles abrem. Se você não for bonzinho, eles não abrem.   Ele continua continuava va olhando pra longe. Olhando e pensando: “puxa vida, estão me enganando de novo”. novo”. Suspirou. Quando crescesse não ia deixar falarem com ele daquele jeito; quando crescesse não ia deixar ninguém rir das perguntas que ele fazia.   “E se eu fingir que estou acreditando no que a gente grande me diz? E se eu fingir que lá longe tem mesmo uma porta? E se eu for lá bater e abrirem a vida pra mim? E se eu entrar?” Riu. “Aposto que se eu entrar eles vão ficar com uma cara desse tamanho.” Caminhou decidido até a porta. Bateu. Abriram. Espiou a cara da vida e gostou. Botou o nome dele dentro de um livro enorme que guardava o nome de todo mundo que passava por ali e entrou. 10

 

  Era assim que ele fazia com tudo que não entendia: fingia que acreditava nas respostas que inventavam pra ele e pronto. E pensava: “quando eu crescer eu vou entender tudo; quando eu crescer eu não vou precisar mais fingir”. Mas por enquanto ele ainda era bem pequeno. E sozinho. Porque vida de porco é assim mesmo: eles ficam logo sozinhos; separam toda a família, uns pra serem comidos agora, outros depois.

  Pois é isso, sim: ele era um porquinho. Escuro, tinha um nó no rabo (nó cego ainda por cima), uns olhos muito vivos que olhavam tudo sem parar e um jeito de andar muito gozado porque porque era um jeito gingado e apressado.* Saiu pela vida afora cada dia descobrindo uma coisa nova: sol, fósforo, cor e gente, estrela, avião, avião, casa, máquina e barulho, bar ulho, carro passando. Andou até onde a cidade acabava acabava e lá descobriu flor e floresta, silêncio e mais cor; e, de repente, descobriu

* Que pressa que ele tinha de crescer! 11

 

um lago. Era de manhã muito cedo, todo mundo estava dormindo, o lago também. Um sono quieto, que não deixava o lago mexer nenhum pedacinho dele. A água então ficava valendo de espelho: o Porco se debruçou na água e ficou no maior entusiasmo:   – Oi! – ber berrou. rou. E toca a se olhar. De frente, de perfil, de tudo que era jeito. Piscou o olho, fez careta, tentou tirar o nó do rabo, mas sentiu tanta cócega que acabou desistindo (coisa que mais faz cócega é querer desmanchar nó de nascença), arrancou um capim do chão e enrolou no pescoço pra fingir de gravata, deu uns passos gingados, acabou resolvendo:  – Puxa vida, você você é legal, sabia? – E entrou na água pra se abraçar. Só faltou morrer de contente: nunca tinha pensado que água era tão bom. Ficou unha e carne com o lago, não queria mais saber de sair dali, achava que não ia descobrir nada melhor. Mas descobriu. Foi assim: um dia ele ia andando e, de repente, ouviu: uuuuuuuuuuuuu” . Era um apito. Pesado. Abafado. Ele já tinha ouvido uma porção de us , mas nenhum tão bom quanto aquele. Seguiu atrás do apito, andou um tempão,, acabou chegando no porto: tempão por to: quem estav estavaa fazendo u   era um navio. Parou de olho arregalado arregalado “    

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vendo o mar, vendo o porto, por to, vendo aquele navio tão branco, tão grande, cheio de bandeirinhas diferentes, fazendo um u   tão forte.   – Pra onde é que ele vai? – perguntou ao pessoal que trabalhava no cais, enchendo o navio de carga.   – Pra lá – e apontaram.   Ele olhou, mas só deu pra ver que lá  era  era longe. Tão longe que ele viu logo que nunca ia chegar lá. Então ficou o resto da tarde por ali. Andou pela beira do mar até uma prainha onde apanhou conchas. Voltou pro porto e ficou vendo o movimento do cais, vendo o navio que de noitinha foi s’embora, apitando aquele u   bonito e batendo as as bandeirinhas no vento. vento. Aí pediu uma fotografia do porto. por to. E eles deram. Tinha uma porção de coisas na fotografia: o navio, navio, o mar, o pessoal trabalhando, o céu, e tinha ele – Porco – olhando o porto.   Durante uma porção de dias ele voltou lá. Depois foi descobrir coisa nova. Estava adorando a vida; ria de tudo; pelo jeito, não tinha ninguém mais feliz do que ele.   Mas um dia disseram que ele não podia ficar à toa. 13

 

  – Não tô à toa, não: tô descobrindo as coisas – ele falou.   – Não pode: tem que ir pra escola aprender a ler e escrever escrever..   E ele então foi.

  Assim que entrou na classe foi logo dizendo oi! pros colegas e olhando todo mundo com atenção pra ver com quem é que ia enturmar. entur mar.   Mas o pessoal olhou pra ele meio de lado, responderam um oi sério e pequenininho, e no recreio ninguém enturmou com ele. Nem nos outros recreios que vieram depois.   Uma tarde o professor avisou que ia ter reunião de pais.   – Eu não tenho pai, não senhor – o Porco falou.   – Pode trazer sua mãe.   – Também não tenho, não senhor..   – Então um irmão mais velho velho..   – Mas eu não tenho irirmão... mão...   – Traz um amigo, pron pronto. to. 14

 

  – Não tenho.   Uma turminha de macacos, que sentav sentavam am no fim da sala (já sentavam ali de propósito pra fazer bagunça), começou a rir. O Porco viu que estavam rindo dele e ficou pra morrer mor rer.. Pensou: Pensou: “será que eles não me topam porque eles têm família e eu não?”. E o professor, então, com pena dele, resolveu contar uma piada, pra todo mundo rir e esquecer o assunto. Era uma piada de um papagaio que tinha a mania de se fingir de polícia. O Porco achou a piada engraçadíssima. Desatou a rir, não conseguia mais parar, riu tanto que acabou fazendo xixi na carteira. car teira. O colega do lado virou pra ele e disse:   – Porco! – E disse aquilo com força, com raiva.   A turma de macacos lá no fim da sala desabou numa gargalhada.   O Porco parou logo de rir e ficou olhando assustado pro colega: era a primeira vez que diziam o nome dele. E tinham dito de um jeito que parecia até que o nome dele dele era nome feio feio.. Sentiu o coração batendo depressa no peito. A aula acabou e o coração continuou batendo forte. O Porco Porco saiu da escola e foi 15

 

andando devagar, ouvindo a voz do colega repetir lá dentro da cabeça dele: “Porco! Porco!”   Os macacos passaram correndo. Gritaram:   – Porco! – e sumiram.   Por que que diziam o nome dele daquele jeito, botando tanta força no por ? Começou a sentir uma coisa esquisita e ruim r uim que ele nunca tinha sentido antes. De repente viu o que que era: era medo.   O Porco não tinha casa. Quando estava quente dormia na beira do lago; quando esfriava esfriava se embrulha embr ulhava va num saco de estopa que tinha achado jogado fora e ia procurar um monte de folhas secas ou um telhadinho qualquer. Mas nessa tarde ele estava tão assustado que, pela primeira vez, achou que precisava ter um canto. Só dele. Pra poder fec fechar har a porta por ta bem fechada. Pra ninguém entrar. entrar. Pra ninguém ninguém dizer pra ele: Porco! Porco!   Correu até a floresta, escolheu uma árvore bem velha que tinha um tronco oco, resolveu que ali dentro ia fazer uma casa. Arrancou Ar rancou cascas de outros troncos, troncos, emendou bem emendadas, trabalhou a noite inteira, fez com elas uma porta, por ta, pregou na árvore. Do outro lado do tronco fez uma janela – tão pequenininha que ele só podia espiar com um olho. Já era dia claro quando fez 16

 

a mudança: botou o saco de estopa dentro de casa. Entrou no tronco e fechou a porta. por ta. Bem fechada.

  E daí pra frente as coisas foram piorando. Tudo que aparecia sujo na classe, diziam logo:   – Só pode ter sido o Por Porco. co.   E se uma coisa sumia, já falav falavam: am:  – É claro claro que foi o Porco Porco..   Se viam ele sozinho estudando num canto, logo chegava chega va um pra dizer: dizer :   – Estudar pra que, Porco? Você vai ser sempre porco, sua vida vai ser sempre uma porcaria.   E basta bastava va a turminha de macacos ouvir aquilo que um já perguntava:   – Vida de porco o que é?   E os outros começa começavam vam a gritar juntos:   – Porcaria, porcaria, porcaria!   O Porco então desistiu de estudar e saiu da escola.   Naquele dia, quando passou pelo lago e se olhou, não se achou mais legal, não brincou de fazer careta, nem pensou em se abraçar. Ficou olhando a cara dele 17

 

na água do jeito que a gente olha uma coisa que não gosta; ficou ficou olhando o nó cego ce go que tinha no rabo e achando que nunca – nunca mais – ia poder desmanchar.. Depois botou força na primeira sílaba e desmanchar disse:   – Porco! – e foi embora, compreende compreendendo ndo pelo caminho afora que o maior azar da vida dele tinha sido nascer porco. Olhou a vida. Já não achava mais nada bom nem bonito. E então gritou g ritou pra tudo que via:   – Eu tenho culpa de ter nascido porco porco,, tenho?   Ninguém deu bola.   – Fui eu que escolhi nascer porco porco,, é?   Mas ninguém dav davaa bola.   Os olhos dele ardia ardiam; m; assim que ele chegasse em casa ia chorar até não poder mais. Apressou o passo: tinham dito pra ele que homem só chora chorava va trancado sozinho,, e ele (tão bobo, que acreditou) acreditou. sozinho Bobo! Tanta coisa pra nascer: rei, príncipe, pavão, carneirinho-branco-que-todo-mundo-gosta, passarinho,, dono de fábrica de automóveis. Podia passarinho Podia até ter nascido uma casa bonita, ou uma árvore ár vore que todo ano dá flor (ou dá manga), tanta coisa pra nascer e ele tinha nascido porco! Correu. Cor reu. Puxa, já não estava 18

 

aguentando segurar tanta lágrima, lág rima, tanta raiva, raiva, tanta coisa pra nascer e ele nascendo porco!   Já ia chegando em casa quando quando,, de repente, pensou: mas por que que a vida dele tinha que ser sempre uma porcaria? Por quê?   Parou, tomou fôle fôlego, go, sentou numa pedra. E se ele desse um jeito? Foi esquecendo as lágrimas, lág rimas, a raiva, mas que jeito?, esquecendo tudo que estava fazendo ele tão infeliz. Olhou pra frente, pra trás, pros lados: ninguém. Ninguém pra ajudar ele a dar um jeito. Ficou ali sentado. Olhando o chão. Sozinho.   Mas não ficou muito tempo sozinho, não: duas horas depois teve uma ideia. E antes que ela fugisse ele agarrou ela bem agarrada e disse:   – Agora você fica aqui comigo, pronto.

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Capítulo II  O disfarce    O Porco então resolveu tocar a ideia pra frente e começou a estudar sozinho o nome dele. Aprendeu as cinco letras, o cheiro, cheiro, o som, a cara, o jeito delas, e depois aprendeu o t . Aos poucos foi fazendo uma porção de combinações com as letras. Mistura Misturava va elas todas, separava, juntava outra vez certinho, juntava fazendo um som diferente, depois experimentava outro som, depois escondia o nome bem escondido no meio de outros nomes pra ver se sabia achar, e quando ficou com o nome decorado de tudo quanto é jeito fez o seguinte: todo dia ia pra porta por ta de casa e ficava ficava esperando uma noite bem preta chegar. Uma noite como ele queria: sem lua, sem estrela, só com um monte de nuvem escura tapando o céu; uma noite faltando luz e pegando todo mundo desprevenido, 20

 

sem fósforo e sem lanterna. Ele queria tudo isso junto. Pra ninguém poder ver nem um pedacinho do que ele ia fazer.

  Uma noite assim tão cheia de falta de coisas custou bastante pra chegar. Mas um dia veio. E como ela sabia muito bem que o Porco queria segredo e mistério, apareceu apareceu na maior moita, sem fazer barulho bar ulho nenhum.   – Escuta, não clareia, não – ele cochichou pra noite. – Só me arranja um vaga-lume vaga-lume pra eu poder ver o que eu quero achar, e fica assim tapando tudo até eu acabar de fazer o que eu tô querendo fazer, tá?   A noite topou. Ele então saiu na ponta do pé. Um vaga-lume apareceu e foi voando atrás.

  Foi o Porco sair que o coração dele desatou a bater que nem louco.   – Quer fazer o favor de bater de um jeito mais legal? 21

 

  O coração não ligou.   – Para de bater com essa força, sim? Você ainda acaba acordando alguém.   Mas não adianta adiantava va nada dizer aquilo pro coração: o danado batia cada vez mais forte for te (porque coração da gente é assim mesmo: é da gente, mas não liga a mínima pro que a gente pede). Batia dizendo:   – Vão descobrir, vão descobrir, vão descobrir... – E perguntava: – E se descobrem que você vai enganar todo mundo?   – Ninguém vai descobrir coisa nenhuma.   – Mas se alguém te vê?   – Ninguém vai me ver, te garanto: a noite vai me ajudar.   – Duvido: no meio do caminho ela vai clarea clarear.r.   – Quer parar de falar?   – E se você não achar o que vai procurar?   – É claro que eu vou achar.   – Tô duvidando.   – Quer parar!   Mas pelo caminho afora o coração foi batendo forte e duvidando duvidando.. Até chegarem lá no livr livroo que guardava o nome de todo mundo que entrava na vida. 22

 

E ficou batendo do mesmo jeito durante o tempo todo que o vaga-lume iluminou e o Porco procurou o nome dele. Só quando ouviu o Porco Porco pensar: “Tá aqui, achei!” é que o coração ficou quieto: queria ver o que que ia acontecer.   Devagarinho, com um medo danado de er errar, rar, o Porco pegou o nome dele e trocou o c  por  por um t . Estava ainda caprichando no tracinho do t  quando  quando o coração deu um pinote tão grande que todo mundo se assustou: o vaga-lume voou longe, a noite encolheu três nuvens (e a lua aproveitou pra aparecer) e o Porco saiu numa disparada daquelas. Correu como um doido até entrar em casa, plá! fechar a porta e deixar do lado de fora o medo que alguém fosse ver. ver. Só aí é que o coração começou a bater de novo novo de um jeito legal.   O Porco então respirou sosse sossegado: gado: agora se chamava PORTO. Fechou os olhos. Começou a se lembrar do mar, da água batendo no cais, dos guindastes, dos navios. Foi se sentindo feliz. Agora o nome dele tinha aquilo tudo: barulho bar ulho de navio apitando, de água batendo, cheiro de mar. Riu de contente. O nome dele tinha tanta coisa gostosa, que 23

 

agora, na certa, cer ta, todo mundo ia chamar por ele. Estava Estava feliz que só vendo. O dia foi clareando, ele disse o nome dele baixinho: – Porto. – Depois disse outra vez pra se acostumar: – Porto. – E achou tão bom que repetiu mais alto um pouco: – Porto.   Pegou o saco de estopa e resolveu fazer uma roupa com ele. As mangas todinhas ele encheu de flores; na frente cobriu com as conchinhas que tinha trazido da praia; atrás, pegando toda a parte de trás, desenhou um sol, um peixe, o rosto de uma menina que ele tinha visto numa janela; e pintou também uma música que ele gostava. gostava. Sobrou um pedaço de saco e ele então fez um chapéu – grande, g rande, desfiado nas pontas e, em cima, bem espetado, o retrato do porto. por to. Era uma roupa complicada, mas precisava ser assim mesmo porque era pra ele se disfarçar: Por orto to não queria que ninguém – mais ninguém – visse que ele era um porco.   O sol já ia alto quando ele acabou o disfarc disfarce.e. Se enfiou na roupa, botou o chapéu e saiu pra passear.

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  Nunca ninguém tinha visto uma roupa assim. Todo mundo chegava perto dele pra olhar, pra admirar, pra comentar.   – Que roupa diferente! Onde é que você comprou?   – Eu que fiz.   – Ah é? E como é que você se chama?   – Por orto. to.   – Porto?   – É: Por orto. to. bacana. Que nome   – Está às ordens.   Quiseram copiar a roupa dele. Quiseram copiar o nome também. Teve uma moça que começou a se chamar Porta; e teve um moço que, na pressa de copiar, se atrapalhou no t , acabou fazendo um c, ficou sendo Porco.   Ninguém mais torceu o nariz pra ele: Porto então começou vida nova.

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E cresceu.

 

Capítulo III  Por orto to sai pra procurar trabalho e acaba encontrando uma coisa bem diferente 

  Por orto to saiu de casa com uma fome danada: arranjar comida ia ficando cada dia mais difícil.   Quando passou pelo lago, parou e ficou se olhando de tudo quanto é jeito: andava procurando procurando um olhar bacana, com charminho. Lá pelas tantas encontrou um que achou bom. Ensaiou uma porção de vezes o tal olhar e depois foi embora.   Conforme a fome apertava, ele ia andando mais depressa. Tinha que arranjar ar ranjar serviço ser viço pra fazer, ganhar dinheiro,, comer. Acabou correndo dinheiro cor rendo.. Só parou quando viu uma fila comprida à beça. Informaram que aquele pessoal todo estava estava ali pra arr arrumar umar trabalho, ele ficou desanimado,, mas assim mesmo entrou na fila. Pra se desanimado 27

 

distrair começou a examinar o sujeito que estava estava na frente. Era um elefante.   Cada vez que a fila andava, o elefante suspirava. Uns suspiros muito aflitos que foram logo deixando Porto meio nervoso. Quando a fila parava, o elefante também parava de suspirar, mas em compensação ficava balançando a tromba de um lado pra outro com impaciência. No fim de uma hora Porto não resistiu mais e cutucou o elefante:   – Ei!   O elefante se virou. Era velho. Tinha enrolado e colado as orelhas que nem dois canudinhos: implicava com orelha grande.   – Tudo legal? – Por orto to perguntou.   – Legal coisa nenhuma. Minhas patas incham quando eu espero em fila. Olha só o tamanho delas. Enormes. – Suspirou aflito: – E eu implico tanto com pata grande!...   Por orto to pegou o suspiro do elefante e jogou longe.   – Não dá pra você parar de suspirar suspirar,, não?   O elefante suspirou que não. Por orto to baixou a voz: 28

 

  – Então suspira menor. Olha, cada vez que você dá um suspirão desses o pessoal da fila se encolhe de frio com a ventania do suspiro.   O elefante também baixou a voz:   – Mas o meu suspiro já nasceu grande, o que que eu posso fazer? Eu dou um azar danado: se tem coisa que eu implico é com suspiro grande. g rande.   – Como é que você se chama?   – Canarinho. – Quis encolher o ombro ombro,, mas não deu jeito, então encolheu a tromba. – Foi mamãe que escolheu o nome: ela não queria filho elefante: ela gostava era de passarinho. – Suspirou. – Eu queria tanto me chamar diferente!   Porto sentiu uma vontade danada de contar pro elefante a troca que ele tinha feito com o nome dele. Chegou até a abrir a boca pra falar. Mas depois ficou quieto: e se o elefante batesse com a língua nos dentes? e se todo mundo ficasse sabendo? e se ele tivesse que voltar a ser Porco? Se assustou só de pensar; e pra ver se o susto ia embora começou a brincar de fazedor de nome, inventando como é que o elefante ia se chamar: João? Sebastião? Manuelão? Mas viu o elefante com uma cara tão desanimada que esqueceu o brinquedo e disse: 29

 

  – Acho Canarinho um nome muito bom.   – Bom pra passarinho passarinho,, mas não pra um bicho grande como eu. – Sacudiu a tromba com impaciência.  – Puxa, e se tem coisa que eu implico é com com bicho grande.   Por orto to apalpou a barriga:   – Você tamb também ém tá com fome?   O elefante amarrou a cara e não respondeu. A fila foi andando e Porto quieto, sentindo o buraco que a fome ia cav cavando ando na barriga dele. Só depois de muito tempo é que o elefante desabafou com voz zangada:   – Uma fome deste tamanho! E eu implico demais com fome grande.   – Você trabalha em quê?   – Vivo de biscate: pego um ser servicinho vicinho aqui, outro ali. Quando aparece. Mas às vezes leva um tempão sem aparecer. aparecer. Que nem agora. Desde o Natal que não aparece nada. Ando apertando o cinto que só você vendo.   Porto olhou o cinto que o elefante usav usava. a.   – Puxa, mas que cinto bacana! É de crocodilo?   O elefante empinou o peito: adorav adoravaa aquele cinto; mesmo vivendo vivendo apertadíssimo aper tadíssimo ele não vendia o cinto de jeito nenhum. 30

 

  – É, sim: de um crocodilo que me devia dinheiro e um dia me pagou com um pedaço do rabo.   – Dele?   – É. Eu apro aproveitei veitei e fiz um cinto. Olha, no Natal a fivela estava aqui neste buraco. Agora está aqui: andou tudo isso pra trás.  – E que serviço você pegou no Natal?   – Dei uma de Papai Noel.   – Ah, é? Foi bom?   – Bom, nada! Me meteram numa roupa vermelha e branca, me enfiaram na cabeça um gorro enfeitado de algodão, me botaram barba, bigode, botas, quase morri mor ri de calor com aquilo tudo. E aí me mandaram ficar em frente de uma loja dizendo pra tudo quanto é criança que passava passava que eu é que tinha escolhido os brinquedos daquela loja. Trabalhei a semana toda e ganhei um dinheirinho legal. Mas não foi fácil. A rua r ua era cheia de lojas, e cada uma tinha um cara fingindo de Papai Noel Noel também. O dono da minha loja mandava mandava eu gritar g ritar bem alto pra ninguém ouvir mais Papai Noel nenhum e só comprar na loja dele. Mas os outros também gritav g ritavam am que só vendo pra ninguém me ouvir. Resultado: 31

 

quando o Natal acabou eu estav estavaa rouco e um bocado cansado.   – E agora? Que serviço você vai pedir?   – Pedir? Há muito tempo que eu não peço mais nada. Toda semana eu entro na fila pra ver se eles me oferecem alguma coisa. Quando chega a minha vez, você vai ver ver só, o sujeito me olha e diz: pra elefante velho não tem nada.   – Mas você não é tão velho assim.   – Sou, sim.   – Pois olha, não parece.   – É que eu pinto esses cabelinhos aqui. – Olhou pros lados pra ver se ninguém estava escutando. – E estico as rugas r ugas e prendo elas com fita colante. Olha: isso tudo aqui tá colado. Quando eu boto fita nova fica uma beleza. Mas há muito tempo que eu não tenho dinheiro pra comprar fita. Essas aqui estão uma porcaria, não grudam mais nada: toda hora cai uma ruga.   Por orto to começou a quebrar a cabeça pra ver como é que podia arr arrumar umar umas fitas novas novas pra Canarinho. Depois pensou que o negócio não era arrumar fita, era arrumar arr umar trabalho. E começou a pensar tanto naquilo, naquilo, 32

 

que esqueceu a fome, nem viu a fila andando, só acordou do pensamento quando ouviu a voz do elefante perguntando pro homem que distribuía trabalho:   – O senhor tem algum servicinho pra mim?   – Pra elefante velho não tem nada.   Canarinho baix baixou ou a cabeça e já ia indo embora quando Porto puxou ele pelo cinto e cochichou às carreiras:   – Semana que vem é Páscoa: dá uma de ovo: finge de ovo gigante pra vender ovinho de chocolate.   Mais que depressa Canarinho virou pro homem e engrossou a voz:   – Não tem nada como? A Páscoa tá chegando chegando.. No Natal o senhor não me arranjou emprego de Papai Papai Noel pra anunciar brinquedo? Então? Agora pode muito bem me arranjar emprego de ovo ovo gigante pra anunciar ovinho de chocolate.   O homem ficou logo animado animado,, arregalou cada olho assim:   – Mas que boa ideia! Com esse tamanhão todo você vai dar um ovo genial, e aposto que vai vender chocolate à beça! Já está empregado. Entra. Primeira porta. Esquerda. Esquer da. Senta. Espera. 33

 

  Canarinho e Porto trocaram uma piscadela de olho e um aperto de pata.   – Tchauzã chauzãoo – diss dissee Port Porto. o.   – Tchauzinho – o elefante respondeu. – Se tem coisa que eu implico é com um tchau grande. g rande. – E sumiu.

  O homem então se virou pro Por orto. to.   – Nome?   – Por orto. to.   – Retr etrato. ato.   Por orto to tirou do chapéu a fotografia do porto e mostrou um pontinho preto:   – Sou este aqui.   Enquanto o homem colav colavaa o retrato junto do nome, Porto sentiu de novo o buraco que a fome cavava na barriga dele.   – Você quer se empregar de quê? – o homem perguntou.   – De médico.   – Cadê o diploma? 34

 

  – Que diploma?   – Diploma de estudo.   – Não tenho estudo estudo,, não senhor.   – Você tá brincan brincando? do? Se você não tem diploma, como é que você quer ser médico?   – Quem tá brincando é o senhor, ué: se eu não pude ficar na escola, como é que eu vou ter diploma?   O homem se impacientou:   – Se não tem diploma não pode ser médico.   – Quero ser engenhei engenheiro, ro, então.   – Cadê o diploma?   – Ai, ai, ai, ai, ai!   A fome cava cavava va um buraco cada vez maior. Por orto to viu que também não ia conseguir conse guir ser engenheiro. Experimentou.   – E dentista? pode?   O homem foi ficando aborrecido:   – Precisa diploma de estudo!   – E artista?   – Não precisa.   – Então quero ser.   – Não pode: a gente aqui não dá trabalho pra artista.   – Por quê? 35

 

  – Hoje é quarta-feira. Essa pergunta só tem resposta às terças, quintas e sábados. Tenho aqui um trabalho de bombeiro. Quer?   – Querer eu quero, só que eu não sei ser bombeiro. Mas eu sei servir muito bem: posso ser garçom?   – Muita gente querendo servir servir:: não tem mais vag vaga. a.   A fome continuava cav cavando. ando. Por orto to então viu que se não arranjasse ar ranjasse comida depressa o buraco engolia ele. Quando o homem perguntou:  – Quer um emprego emprego de anúncio?   Ele respondeu correndo:   – Não sei o que é, mas quero quero.. Me dá. Depressa.   O homem então deu pra Porto duas tabuletas presas por um arame e escrito assim em cada uma:   VENHA COMER NO REST RESTAURANTE AURANTE FORMOSO É LINDO, AGRADÁVEL, GOSTOSO TEM TUDO QUE VOCÊ SONHA COMER POR PREÇOS TÃO BAIXOS QUE É PRECISO VER

E disse:   – Agora você se enfia nessas tabuletas e sai por aí, pra todo mundo ir lendo o anúncio. 36

 

  – E esse emprego paga bem?   – Almoço e jantar garantidos no Restaurante Formoso e uns trocados no fim do mês.   Estava justinh justinhoo na hora do almoço. Por orto to voou para lá.

  O Restaurante Formoso não era lindo coisa nenhuma: era até bem feio; e Porto ficou logo sabendo que eles cobrav cobravam am caríssimo. Mandaram Porto Porto comer na cozinha junto com o faxineiro; ele achou a comida ruim, mas, naquela pressa de tapar o buraco que a fome tinha cavado, limpou o prato e pediu mais. Disseram que um prato chegava, chegava, ele então disse “paciência”, bebeu água pra tapar o resto do buraco buraco,, se levantou, levantou, ajeitou as tabuletas e saiu. Com aquele jeito gingado. Andando bem devagar. Pra todo mundo poder ler com calma que o Restaurante For Formoso moso era lindo, agradável, gostoso, e tinha preços tão baixos que só vendo.   37

 

  Anda daqui, anda dali, Porto foi chegando perto de um lugar onde uma porção de plantas e árvores ár vores tinham se juntado pra fazer um mato. E de dentro daquele mato saía o som de uma flauta f lauta tocando. tocando. Era uma musiquinha tão boa que o coração de Porto quis logo sair atrás.   Devagarinho, com todo o cuidado, Por orto to começou a seguir o rastro rastro da flauta. Se enfiou enfiou pelo capim, rodeou uma árvore, pulou uma pedra, de repente achou! E ficou logo intrigado; nunca tinha visto aquele bicho que estava estava ali tocando flauta. f lauta. Era fêmea: isso ele sabia; e ela tocava tocava de pé, se equilibrando numa perna só.   Por orto to foi ouvindo, foi olhando, foi ficando encantado – não sabia se com ela, se com a flauta, se com as duas. Começou então a conversar conversar com o coração:   – Acha que ela é bonita?   – Não sei...   – Acha que ela é feia?   – Não sei...   – O que que você sabe?   – Que eu gosto do jeito dela. 38

 

  – Por quê?   – Ela sabe se equilibrar tão bem numa perna só!   – E que mais?   – Ah, sei lá, ela toca flauta com tanta certe certeza, za, olha com tanta certeza, tem cara de tanta certeza.   – Se ela olhar pra cá, faz aquele olho de charme.   – O quê?   – Olha pra ela daquele jeito bacana.   – Tá vendo? Você agora só pensa nessas bobagens.   – Bobagem por quê? Você mesmo não disse que gosta do jeito dela?   – Gosto.   – Então?   – Tá bem, eu olho.   Mas quando chegou nesse ponto da conversa a musiquinha acabou. Porto Porto desatou a bater palmas entusiasmado.   Quando a tocadora de flauta viu Porto não se assustou nem nada. Foi logo fazendo um agradecimento de corpo e dizendo: oi!   – Oi! – E de repente ficou todo atrapalhado e nem se lembrou de fazer charme nenhum. Mas disse:  – Você toca um bocado bem. 39

 

  Ela sorriu. Ele então tomou coragem e perguntou:   – Escuta aqui uma coisa, que bicho que você é, hem?   – Cegonha.   – E cegonha tem nome?   – Não sei se todas têm. Mas eu tenho. Me chamo Angélica.

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Capítulo IV  A cegonha    – Onde é que você nasceu, hem, Angélica?   – Lá. Depois daquele mar.   – Puxa, que longe!   – Pois é.   – Lá é melhor que aqui?   – Sabe? Eu acho que nenhum país é melhor que o outro: um é mais legal numa coisa, outro, noutra.   – Você tem famíl família? ia?   – Enorme: pai, mãe, avô e oito irmãos. Ficou tudo morando lá. Mas estão sempre me escrevendo. E eu pra eles. Era uma família formidável. Só tinha uma coisa ruim r uim que... – Parou de falar e ficou quieta pensando.   – Coisa ruim?   – Hmm-hmm. 41

 

  – O que que era?   Angélica fingiu que não tinha escutado a pergunta e contou outra coisa:   – No in inverno verno fazia um frio daqueles lá na minha terra. ter ra. E então, quando chegava chegava o outono, a gente ia viajar. viajar. Voav oavaa pros países mais quentes e ficava por lá lá até a prima primavera vera aparecer outra vez.   Por orto to suspirou: aquilo sim é que era vida: verão aqui, inverno inverno ali, família, asa pra voar... Quem sabe um dias desses Angélica emprestava as asas e ele saía voando,, conhecendo o mundo todinho, arranjando voando até uma família?   – Meus irmãos se chamam Lua, Luva, Luís, Lux, Ludo, Lume, Lucas e Lutero.   – Ué, e como é que você saiu Angélica?   – Mamãe disse que assim que eu nasci eles viram logo que eu ia ser diferente: tinha cara de espírito de porco.* Minha família era um bocado respeitada, a gente levava um vidão! Mas quando eu cresci e

* Porto adorou aquela história de Angélica ser espírito de porco:

ficava fica va parecendo que os dois eram parentes. 42

 

descobri a mentira que o pessoal todo mentia, minha vida ficou ruim que só vendo.   – Que mentira?   – Daí pra frente eu tinha que viver fingindo.   – Por quê?   – E se tem coisa que eu não topo é fingir. Quando é pra brincar de faz de conta, eu gosto gosto.. Mas quando é pra viver o tempo todo enganando os outros e fingindo uma coisa que eu não sou, ah isso eu não topo! De jeito nenhum. Por orto to olhou pro chão: e se Angélica não topasse aquela história dele fingir que não era porco? Ela prosseguiu:   – Minha vida foi ficando tão ruim, tão ruim...  – Por Por quê?   – ...tão ruim que eu só pensav pensavaa em deixar o meu país e ir pra bem longe. Pensava nisso o dia todo, e a noite inteira também. Às vezes, pra descansar um pouquinho o pensamento, eu fazia umas poesias.   Xi!... E o coração de Por orto to já bateu meio assustado: Angélica sabia música, sabia ler e escrev escrever, er, até poesia ela sabia fazer. E se ela achasse que ele era burro? 43

 

  – Mas o resto do tempo eu só pensava em sumir. sumir. Até que um dia resolvi vir pro Brasil. Brasil. Você tá vendo este botão aqui? – e se abaixou pra Por orto to ver o botão que ela tinha pregado no alto da cabeça.   – Legal. Pra que que serve?   – Pra abotoar as ideias. Foi presente de despedida da minha família. Meu avô disse que pra gente viver viver sozinha precisa ter as ideias muito bem abotoadas senão entra pelo cano.   Por orto to deu uma risada: tinha gostado do botão. Ela continuou:   – Aí eu abotoei muito bem abotoada a ideia de vir pra cá e vim.   – Você voou aquele mar todo?  – Mas no meio do caminho cansei. Se não é um navio ir passando e eu pegar uma carona, não chegava: as asas tinham pifado. E eu ainda viajei uma porção de dias até chegar no porto. por to.   Porto ficou feliz: Angélica chegando no porto era que nem Angélica chegando nele.   – E foi só desembarcar pra ver que aqui também mentiam a mentira que mentiam lá. E depois de pois me 44

 

disseram que não adiantava ir pra outro lugar porque era tudo a mesma coisa.   – Tudo o quê quê??   Foi aí que ela gritou:   – Esqueci da hora! Tenho que tocar numa festa de casamento ca samento a música músic a que eu estava es tava ensaiando. Tchau!   Por orto to ficou na maior aflição: então ela ia embora, ia sumir assim de repente sem explicar direito tudo que ele tinha perguntado, os dois não iam mais se ver? Segurou Angélica pela asa:   – Espera! Eu não entendi a história da mentira, do fingimento, fingimento, da coisa ruim, r uim, eu quero saber uma porção de coisas, eu quero saber se...   – Agora não posso contar mais nada, estou atrasada, tchau!   – Um momentin momentinho ho só! Você tem sobrenome sobrenome?? Onde você mora? Quem é que casa hoje, hem?   Mas ela já tinha sumido. Por orto to ficou parado. Quieto.. Um tempão. De repente tomou um susto: viu Quieto que tinha abotoado a ideia de se apaixonar por Angélica.

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Capítulo V 

Porto luta pra provar que é homem 

  No outro dia Porto voltou ao mesmo lugar pra ver se encontra encontrava va Angélica. Encontrou. E então ela contou mais coisas. Contou que tocava tocava flauta aqui e ali pra ganhar um dinheirinho, mas que não gostava muito daquele trabalho; disse que o sonho da vida dela era trabalhar numa coisa que ela achasse bem bacana. Porto contou que ele também não gostava gostava de trabalhar de anúncio, a única vantagem é que ele comia no restaurante e – por falar nisso: Angélica não queria jantar com ele? Ela quis.

  Era a primeira vez que Por orto to convida convidava va alguém pra jantar: estava se sentindo importante à beça. E 46

 

emocionado. Porque Porque era a primeira vez também que saía com uma namorada.*   Assim que eles se sentaram, um garçom chegou junto da mesa e acendeu uma vela. Por Porto to desanimou: puxa, mas que azar! justinho na noite que ele convida convidava va Angélica Angélica pra jantar faltava luz. Virou pro garçom e disse:   – Olha, eu conheço um eletri eletricista. cista. Você quer que eu vá falar com ele pra ele vir consertar essa pifação de luz?   O garçom fez cara de gente que pensa que é importante:   – Não tá faltando luz, não. É que é chique jantar com luz de vela.   Por orto to ficou muito admirado:   – Ah, é?   Na mesa do lado começaram a rir. Porto olhou com o rabo do olho e levou um susto daqueles: eram os macacos que estavam rindo. Os tais macacos da

* Angélica ainda não sabia que era namorada de Porto, mas ele

já tinha certeza absoluta que era namorado dela. 47

 

escola. Aqueles que viviam fazendo pouco de Porto. “Será que eles estão me reconhecendo?”, pensou. E cochichou pra Angélica:   – Essa turma aí tá rindo porque eu não sabia que luz de vela é chique. Se eles continuam fazendo pouco de mim eu vou ter que brigar.   Angélica não ligou a mínima:   – Quem quiser fazer pouco da gente que faça: problema deles.   – Mas você sabia?   – O quê?   – Que esse negócio de vela é chique?   – Já tinha ouvido dizer, mas achei uma bobagem.   Por orto to ficou amolado com aquela história: Angélica sabia, os macacos sabiam, todo mundo sabia o negócio da vela, só ele é que não.   O garçom trouxe os cardápios, deu um pra cada um e ficou esperando que eles lessem e resolvessem resolves sem o que que queriam comer. Por Porto to se apavorou: pronto! agora Angélica ia ver que ele não sabia ler. Olhou o cardápio, não entendeu nada, virou ele de cabeça pra baixo pra ver se entendia melhor, a coisa ainda piorou. 48

 

  Os macacos desataram a rir outra vez. Com o canto do olho Porto viu o mais velho virar o cardápio cardápio igualzinho como ele tinha feito. Puxa, mas que raiva raiva que ele estava estava ficando daquela turma! Desviou o olhar dos macacos e viu que Angélica estava estava olhando pra ele.   – Você não sabe ler, é?   Ele quis dizer que não, mas a resposta se envergonhou toda e resolveu não sair.   – Você querendo, eu te ensino. – E continuo continuouu a estudar o cardápio pra ver o que que ia comer.   Por orto to olhou pra ela feliz: puxa, ia ser legal aprender a ler e escrever escrever com a Angélica. E ela nem tinha se importado impor tado dele ser burro. Que bacana!   – Então? Quer que eu ensine?   Quando ele foi dizer que sim, a resposta se envergonhou outra vez e não saiu. E no lugar dela apareceu uma resposta espevitada que foi logo dizendo:   – Não precisa: eu até que viv vivoo bem sem saber ler nem escrever.   – Pois podia viver melhor se soubesse soubesse.. – Virou pro garçom e pediu: – Eu queria um cremezinho de camarão. 49

 

 

E Por orto to disse: eu também.

  Enquanto comiam os camarões, Angélica contou a história dela pra Porto – e dessa vez contou direito: tintim por tintim. E enquanto comiam a sobremesa, Por orto to contou a vida dele todinha pra Angélica; contou até a história do disfarce e o problema do nó cego que ele não conseguia desmanchar. desmanchar. E então esqueceu a vela, os macacos e o cardáp cardápio. io. Quando o garçom trouxee a conta, ele nem olhou; só disse assim: troux   – Eu trabalho no restaurante, tenho direito de comer aqui.   O garçom achou a resposta esquisit esquisitaa e foi falar com o dono da casa.   O dono do Restaurante Formoso tinha os olhos arregalados, ar regalados, as sobrancelhas cabeludíssimas, cabeludíssimas, e era tão gordo que mal podia andar. Mas assim mesmo andou até a mesa de Porto, botou as mãos na cintura e perguntou:   – Você trabalha aqui no restaurant restaurante? e? (Quando ele falava, os olhos ainda se arregalavam mais; e as 50

 

sobrancelhas disparavam pra baixo e pra cima com tudo que ele dizia.)   Angélicaa foi logo ficando com vontade de rir da Angélic cara do homem.   – Trabalho de anúncio, sim senhor. Saio todo dia carregando car regando aquelas tabuletas tabuletas que dizem que o Restaurante Formoso Formoso é lindo, agradável e gostoso.   Pra quê! O dono tossiu, espirrou, fungou e desabafou:   – Você trabalha de anúncio e acha que pode trazer convidados convidados e comer às minhas custas?   Os macacos se cutucaram e piscaram um pro outro. Todo mundo mundo que qu e estav estavaa no restaurant restaurantee começou começou a olhar. E como as sobrancelhas do dono cada vez iam mais pra baixo e mais pra cima, Angélica não resistiu: tapou a cara com o guardanapo e começou a rir. Nervoso com aquilo tudo, Por Porto to gaguejou:   – Mas eu tenho direito de comer aqui. O senhor mesmo disse que...   – Você tem direito de comer lá na cozinha. Junto com o faxineiro e o lavador de pratos. Comida que sobra dos fregueses. Ou você tá pensando que é igual 51

 

aos meus fregueses e pode comer camarãozinho, e mais sobremesa, e mais não sei o quê?! Você e mais essa... essa... que bicho mesmo que ela é? Porto ficou danado.   – Alto lá! Mais consideração com a senhorita.   – E quem é você pra me dizer alto lá? Sou seu patrão, ouviu? Ninguém fala comigo desse jeito duas vezes. Está despedido! Angélica parou de rir, Por Porto to achou que tinha que bancar o– homem e fingirestou que não estava ligando:   Então pronto: despedido. despedido . E daí?   – Daí que você não vai embora sem me pagar o jantar.   Só então é que Porto e Angélica olharam a conta. Por orto to sabia ler número número,, tomou um susto daqueles:   – Puxa, mas o jantar custou muito mais do que eu ganho no fim do mês! e é de luxo   – Meu restaurante restaurant luxo,, o que que você está pensando? E você não vai embora sem me pagar.   Um dos macacos gritou entusiasmado:  – Agora é que eu quero ver! ver!   E os outros começara começaram m a rir.   Por orto to estava na maior afli aflição. ção. 52

 

53

 

  – O senhor sabe muito bem que eu não tenho esse dinheiro – disse baixinho, pra ver se os macacos não ouviam.   Mas eles ouviram, e um falou:   – Não tem dinheiro e con convida vida a namorada pra jantar. – A gargalhada aumentou.   Foi quando Angélica acabou de fazer as contas lá dentro do pensamento dela e viu que o dinheiro que vinha economizando* dav  davaa certinho cer tinho pra pagar a conta.   – O que é isso, Por orto? to? que bobagem! – disse com um ar muito superior. – Então você esqueceu aquele dinheiro que você me deu pra guardar? – Tirou de um bolsinho que tinha na asa esquerda uma porção de notas, botou em cima da mesa e disse bem alto, pra todo mundo escutar: – Os camarões estavam estavam ruins, oacho refresco também, a sobremesa piormuito ainda.mais E eudo que o seguinte: se esse jantar custa o senhor paga no fim do mês pro Porto é porque o senhor é um ladrão. Vamos, Porto? – E foram saindo,

* Um dia, quando calhasse, ela queria ir visitar a família. 54

 

enquanto o dono contav contavaa o dinheiro pra ver se estava certo. Porque ele era assim: desde que pagassem o dinheiro que ele queria, podiam dizer à vontade que ele era isso, que ele era aquilo, que ele era até um ladrão.   Angélica saiu do restaurante feliz da vida:   – Sobranc Sobrancelhudo elhudo cocoroca! Pensou que nós não tínhamos dinheiro pra pagar, mas nós tínhamos. Bem feito, bem feito, bem feito! – E ria.  desabafou: Mas Por orto to estava trombudo. Lá pelas tantas   – Puxa, que vergonha.   – O quê?   – Você pagou a conta pra mim.   – Ué: se você pagasse pra mim eu não ia achar vergonha nenhuma.    –– Ah, é diferente. Nãomas sei por quê.   – Porque é, ué.   – Porque é ué não explica nada.   – Porque é o homem que tem sempre que pagar: é por isso.   – Ih, Porto, essa ideia é tão antiguinha! 55

 

   

– Foi sempre assim. – Você agora tá parecendo o pessoal lá de casa:

quando diziacrianças, que a gente não podia mentindoeupras eles falavam “foicontinuar sempre assim”; eu respondia “mas tá errado: er rado: a gente tem que mudar”, e eles eles então ficav ficavam am zangados zangados comigo. Você já reparou como tem gente à beça que não gosta que as coisas mudem?   – Hmm.    –– PHmm. or que será, hem?   – Você já pens pensou ou niss nisso? o?   – Hmm.   – Mas que história é essa de hmm-hmm? você tá doente? ficou com dor de dente, dor de ouvido?   Ele virou pra ela de repente e disse com força:  que vergonha – Dor não de verg vergonha, dói?onha, ouviu? Ou tá pensando   – Mas, Por orto, to, vergonha de quê? Se eu...   Ele estava embalado, não deixou ela falar falar::   – Você diz vergonha de quê?, mas aposto que aí dentro da sua cabeça você tá me achando o fim da picada porque eu não sabia que luz de vela é chique, 56

 

porque eu não sei ler, porque eu sou um porco disfarçado de Porto, porque eu não tenho dinheiro pra pagardeum jantar. Mas ovocê que eupensa? tô Ah! ligando você me achar fimpensa da picada, não tô ligando, não tô ligando, não tô ligando a mínima, ouviu?   – Homem que é homem paga o jantar da namorada!   Pronto: eram os macacos outra vez. Passaram correndo, rindo,etc.assobiando, assobiando que é homem, e tal. , dizendo que homem   E Por orto, to, que quanto mais repetia que não estava ligando mais sentia que era capaz de rebentar de tanto que estava ligando, disparou atrás dos macacos, ah, se ele pegasse pe gasse um deles!, disparou pra dentro da noite, deixou Angélica pra trás.    Mas os macacos já tinham Era noite de lua cheia. Umasumido. lua tão clara, que de tudo ela ia tirando uma sombra – de Porto, das árvores, das pedras.   Cada bar barulhinho ulhinho que Por orto to ouvia já achav achavaa que era a voz de um macaco dizendo: homem que é homem... E então se virava virava depressa. A sombra dele 57

 

se virava também. Ele pensava que era a sombra de um macaco e dava um safanão nela, passava uma rasteira também. E de tanto querer quenoa sombra caísse, quem acabava caindo era ele. Rolava chão. Mas levantava logo. Apareciam mais sombras. Ele achava que tinha que brigar com cada uma. Caía e levantava. Caía e levantava.   E lá se foi Por orto, to, entrando cada vez mais dentro da noite, brigando cada vez mais forte com as sombras todas que apareciam em .volta   Brigou até cansar cansar. Aí foidele. pra casa e dormiu.   Foi só dormir que sonhou. Pra contar a ver verdade, dade, não foi sonho; foi pesadelo: uma coruja cor uja piava piava que ele não era homem e ele tinha que provar provar que era. E então desatou a brigar com a coruja. cor uja. Lutava Lutava com todo o corpo, cor po, dava dava pontapés, acabou dando uma cabeçada *

tão g rande que pra acordou   grande Custou pegargemendo. no sono outra vez. E assim que dormiu o elefante Canarinho apareceu e disse: “Porto, você não é homem.” Não precisou mais nada:

* Até hoje ele tem um galo na testa por causa dessa cabeçada. 58

 

já começou a briga de novo. Pontapés, cabeçadas, safanões. Doíam tanto que ele acordava chorando. Voltava E aparecia a lua, aparecia ao dormir. vento, aparecia todoAngélica, mundo aparecia implicando com ele: você não é homem! E ele tinha que brigar até eles desdizerem tudo. Afinal resolveu resolveu não dormir mais (com medo de sonhar e ter que brigar mais). Foi pra janelinha e ficou espiando lá fora. Espiando e pensando na vida, em tudo já tinhatinha vistodito e aprendido aprendido. das coisasque queeleAngélica e acabou. Lembrou resolvendo: “Se eu nasci homem, se eu tenho focinho de homem, corpo de homem, pata de homem – por que que eu tenho que ficar chateado se dizem que eu não sou homem? que besteira!” Pensou naquilo um tempão. Tanto tempo, que acabou até dormindo de novo.  Isso mesmo: E nãocom é queossonhou outra E logo com quem? macacos. E devez? saída eles foram dizendo que Porto não era homem. Mas dessa vez Por orto to achou que ia ser a maior bobagem do mundo brigar por causa daquilo. Riu: bobalhões! E quando viu que os macacos ficavam ficavam sem graça g raça e não diziam mais nada, ainda riu muito mais. Se sacudiu de risada. 59

 

Acabou até dando outra cabeçada. Mas não acordou, não: cabeçada de riso é coisa leve; não deixa galo, não dói, não dá nem pra gente acordar de um sonho.

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Capítulo V1 

O passeio 

 

Toque, toque, bateram na por porta. ta. Toque,

bateram outra vez. Porto acor acordou dou assustado e abriu. Era Angélica.   – Pensei tanto em você esta noite – ela disse.  – E hoje de manhã, assim assim que acabei de esco escovar var as penas, já comecei a sentir saudades de você.   Porto ficou parado parado,, o coração andando depressa, o pensamento também: ele tinha ouvido certinho? então caso da Olhou Angélica só existia dentroodapouco cabeça dele? a vida. Estavamesmo um dia bonito que só vendo. Ele então quis também dizer uma coisa bem bonita pra Angélica, mas na hora a coisa saiu assim:   – Pois é: tem gente que escov escovaa dente, tem gente que escova pena. 61

 

   

Ela tirou do bolso um pacotinho e deu pra ele. – Toma. Você diss dissee que gost gostou ou daqu daquela ela

música que eu toquei na flauta: eu então quero te dar ela de presente.   Por orto to apanhou a música. Angélica suspirou:   – Bom Bom,, vou indo. Tchau.   – Espera! – E ele se virou pra dentro de casa, procurando uma coisa qualquer. Então Angélica vinha, dava música, dizia que estava com saudades e ia embora sem de levar uma lembrancinha, Mas dentro casauma nãoflor, tinha nada. Se apav apavorou. orou.nada?  – Espera! – pediu outra vez; de jeito nenhum ia deixar Angélica ir embora de asas vazias. E então, como não tinha mesmo nada pra tirar do bolso ou de casa, Porto Porto abotoou uma ideia às carreiras. car reiras. Abotoou bem abotoada, cobriu com um pedaço de casca de árvore e estendeu presente pra Angélica, assim como quem estende um oprato de doces. – Toma pra você.   – O que que é?   – Uma ideia.   – Que ideia?   Por orto to sorriu encabulado:  – Vê, ué. 62

 

  Angélica riu e começou a tirar a casca bem devagarinho (porque ela era assim: adorava surpresas, eideia então sempre fazerJogou render). Viu alonge, pontinha e oqueria riso foi sumindo. a casca viu da a ideia inteira, arregalou os olhos.   Por orto to olhav olhavaa pra ela sentindo no peito o coração se encolher assustado: será que Angélica não ia gostar do presente?   De repente ela ber berrou rou entusiasmada:  –E Mas que ideia lega l, Por Pcomo orto! to! quem sai   o coração entãolegal, saiu dançando.   – Gostou mesmo?   – Se eu gostei? Se eu gostei? – E Angélica ria, batia asas, sapateava.   Depois cismou que gosta gostava va tanto da ideia que ia guardar ela pradeninguém mexer. fora. Encontrou alibem pertoguardada uma caixa sapato jogada Limpou ela bem limpa, desentortou a tampa, botou a ideia dentro.   – Agora a gente tem que descobrir um esconderijo pra ela.   Saíram procurando. 63

 

  Foi lá perto do lugar onde tinham se encontrado que resolveram esconder a ideia. Cavaram um buraco. Enterraram a caixa. Já iam jogando terra em cima quando Porto perguntou:   – Não é melhor fazer um furinho na caixa pra ideia poder respirar?   Fizeram. E marcaram o lugar do esconderijo com um desenho no chão.

  Depois, Porto e Angélica saíram passeando passeando..   Andaram muito. Batendo papo, rindo, achando legal as coisas que um contava pro outro.   Andaram muito mesmo. E pelo caminho afora Angélica ia dando uma aulinha de ler daqui, outra de escrever dali, uma de música depois. A toda hora escrever se espantava:   – Puxa, como você é inteligente, Porto! Como você aprende tudo correndo cor rendo..   Ele fica ficava va vermelho até não poder mais. Tão vermelho e tão contente! Parava Parava no caminho e então ensinavaa Angélica como é que num instante se fazia ensinav 64

 

uma fogueira usando só um palito de fósforo, como é que se desenhava bonito,* como é que se cozinhava uma porção de pratos. Ela então ensinava é que se cozinhava outros, andavam outra vez, elacomo ensinava Porto a dançar. Pulavam de um assunto pra outro, e num desses pulos ela perguntou:   – Você é meu namorad namorado? o?   – Eu sou. E você é minha namorada?   – Tá parecendo.  depois, Então combinaram que um diaque iamvoltando se casar. do E num outro pulo, combinaram passeio iam tratar da ideia que tinham guardado na caixa de sapato.

* Ninguém tinha ensinado Porto a desenhar, mas a gente é assim

mesmo: tem coisas que a gente já nasce sabendo. 65

 

Capítulo V1I 

A ideia 

que Por Porto to deu pra Angélica era assim:            

“Você não disse que queria trabalhar numa coisa “Você que você achasse bacana? Você não disse que um dia queria contar tua história pra mais gente ouvir? Então? Mistura as duas coisas, Angélica! Pega tudo que você me contou no restaurante,

    

faz teatrinhopor comaí.a tua história e saium mostrando Pronto: fim da ideia ideia..”

  Angélica e Por orto to então começaram a trabalhar na peça peça de teatro. Todos os os dias se encontravam encontravam e ficavam discutindo horas a fio como é que ia ser uma 66

 

cena, como é que ia ser outra. Assim que chegavam chegavam a uma conclusão iam passando pro papel as falas que inventavam personagens.   Por orto topros já tinha aprendido a escrever, mas continuava gostando mais de desenhar, e então ia desenhando no chão tudo que inventava. Desenhou um cenário que era a frente da casa da Angélica, com porta, janela, flor nascendo no jardim, avião passando no céu.  bem grande – Ei, pra Angélica, eu vou arrumar umar Aí umalençol desenhar esse arr cenário. gente pendura o lençol que nem cortina cor tina de chuveiro chuveiro de gente que tem chuv chuveiro eiro.. Quando a cortina cor tina abrir é pra mostrar que a gente tá entrando dentro de casa. Depois desenhou um sol de papelão, com olho, boca, orelha e nariz. Desenhou os irmãos da Angélica e,Foisem saberteve pora que, os oito em fila.de aí que ideiadesenhou de fazer um “trenzinho irmãos”.   – O que que você acha dessa bossa, Angélica?   – Gostei.   Começaram então a imaginar como é que ia ser o trem. Conforme iam imaginando, Angélica ia 67

 

escrevendo. Quando o trem ficou pronto, corrigiram, riscaram, escreveram escreveram de novo, novo, corrigiram cor rigiram outra vez, até acharem que estava bom.assim com todas as cenas da   Foram fazendo peça. E aos pouquinhos, muito aos pouquinhos, a ideia (que quando Angélica guardou na caixa de sapato só tinha nove nove linhas) foi crescendo que nem bolo no forno; for no; cada dia que passava crescia mais um pouco.   Às vezes eles empacavam numa cena. Quebrav Quebravam am ajeito cabeça, mas não adiantava: adiantava: a cena não saía certa cer ta de nenhum.   – Puxa, que coisa! – reclamava Por orto to – eu penso, eu desenho, eu escrevo, mas não consigo explicar o que eu quero dizer.   Angélicaa também ficav Angélic ficavaa numa afliçã afliçãoo danada:   – Por que que quando a gente pensa as coisas elas são tão fáceis, f áceis, e na hora de escrever elas ficam tão difíceis?   Era uma luta pra desempacar as cenas. Mas acabavam saindo. Umas saíam direito. direito. Outras, tortas. tor tas. Foi por isso que os dois resolveram botar na peça um explicador. explicador. Pra ver se ele explicava direito tudo aquilo que saía 68

 

tor to. E depois fizeram o explicador torto. explicador com mania de, volta e meia, dar uns toques de corneta.  pronta, Pmas, assounoum de tempo a peça ficar diabocado que ficou, Porto até Porto e Angélica quase estouraram de contentes: eles não sabiam que era tão bom fazer uma coisa difícil e ir até o fim sem desanimar.   Angélicaa queria que a peça se chamasse “A Angélic Verdade da Cegonha”, mas Porto achou que “Angélica” era mo muito melhor, a peçatreze acabou se chamando mesmo mes “Angéli Angélica”. ca”.eTinha personagens: o Explicador Explicador,, o Vô, Vô, o Pai, a Mãe, a Angélica e os oito irmãos. E era assim:

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Capítulo V111  Angélica  PRIMEIRO ATO EXPLICADOR: 

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Totorotototó!! Senhoras, senhores, crianças, bichos de toda espécie, distinto público: boa tarde! Hoje vamos apresentar uma peça chamada chamada “Angélica”. A peça tem dois d ois atos, o primeiro com noventa centímetros e o segundo com um metro e dez. Como aí fora a gente sempre apresenta as pessoas que nunca se viram, nós achamos que aqui no palco a gente tinha que fazer a mesma coisa. Então vamos começar. Quem está entrando é a Angélica. Oi, Angélica! Tudo bem? Olha, eu queria te apresentar o público. Taí.

 

ANGÉLICA:

VÔ:

ANGÉLICA:  VÔ:

 

Muito prazer. Pode não parecer, mas eu sou uma cegonha. E tem mais: uma cegonha com pai,que mãe, de irmãos. ir mãos. Esse vemavô aí eé uma meu porção avô. Boa tarde. É um prazer conhecer vocês todos. Quantos anos você tem, Vô? Uma porção. Não vou dizer quantos senão vocês vão me achar muito velho.

ANGÉLICA:

Quantas horasNão vocêvou dordizer dorme me por dia, Vô? Uma porção. quantas senão vocês vão me achar muito dorminhoco. dor minhoco. ANGÉLICA:  Quantos lanches você faz por dia, Vô? VÔ:  Poucos. ANGÉLICA:  Vô... VÔ:  Muito poucos. VÔ:

 

ANGÉLICA:

  Fala verdade,Não Vô...vou dizer quantos senão Umaaporção. vocês vão me achar muito guloso. Por falar nisso... tá na hora de fazer um lanchez lanch ezinh inho. o. Tchau. Tchau. ANGÉLICA:  Esses que acabaram de chegar são papai e mamãe. VÔ:

 

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PAI: MÃE:

Muito prazer. Muito mesmo!

PAI: MÃE: PAI:

 

MÃE: PAI:

MÃE:  PAI:

 

MÃE: PAI:

 

MÃE: PAI: MÃE: ANGÉLICA: 

OS IRMÃOS:

72

Eu um chefe de família feliz. Tãosou feliz! Meus filhos me respeitam, meus vizinhos me respeitam, todo mundo me respeita. Eu também! O quê? Te respeito. Ah, faz muito bem., eSesetem que pois eu adoro é respeito respeito, temuma outracoisa coisa que eu detesto é falta de respeito. Eu também. Aliás, nós somos a família mais respeitada deste lugar. Somos tão respeitados! Bom, já nos apresentamos, agora podemos ir embora. Então vamos. E esse trenzinho que vem aí são meus oito irmãos. Uuuuuuuuuuu!... Tchoque-tchoque, tchoque-tchoque, tchoque-tchoque...

 

EXPLICADOR:

  Desde pequenininhos que eles têm mania de andar assim: aonde vai um, vão todos.

ANGÉLICA:

 

Ei Vocês querem fazer o fav favor or de pessoal! parar e seVocês apresentar? OS IRMÃOS:  Me chamo Lutero. Oi!   E eu Luís. Oi!   Meu nome é Luva. Oi!   E o meu Lucas. Oi!   Eu sou a Lua. Alô!      LUTERO:

EEueusou souo oLudo. Lume.Oi,Olá! oi! E eu o Lux. Boa tarde, querido público.  

OS IRMÃOS:

ANGÉLICA:

Uuuuuuuuuuu!. Tchoque-tchoque, tchoque-tchoque tchoque-tchoque,, tchoque-TCHAU!! E como, às vezes, as peças não explicam

tudo quemelhor a gente nós achamos que era era mel hor terquer um saber, explicador. Taí. Qualquer coisa que vocês quiserem saber é só perguntar pra ele. E agora eu vou representar.. Até já. representar EXPLICADOR:  Como é de dia, eu vou apro aproveitar veitar um prego que eu tô vendo ali pra pendurar o 73

 

sol. Eu também tenho uma lua guardada aqui no no bolso. bolso. Vamos ver se uma hora hora dessas fica édea noite praAngélica ela podernoaparecer. aparecer Aqui atrás casa da tempo . em que a Angélica ainda não tinha nascido mas já estava pra nascer. nascer. Deixa eu abrir o pano. Pronto. Pronto. Vocês podem achar esquisito esquisito que a casa só tem dentro esse ovo, mas casa de cegonha é assim mesmo: bem vazia

LUX:

EXPLICADOR: LUX:

EXPLICADOR:

74

e... ué, Lux,aíoatrás? que que você tá fazendo escondido É que agora mesmo a mamãe vai chegar pra chocar o ovo, e como ela tem aquela mania de não perder tempo, sempre que tá chocando tá tricotando. E daí? Éuma tãomanta gozado! paradodemesmo tricotar queEla tá não sempre tamanho: eu fico aqui escondido, e tudo que ela vai tricotando de um lado eu vou puxando o fio e destricotando do outro. Gozado mesmo. Você não não toma toma jeito, jeito, não?

 

LUX:

 

EXPLICADOR: MÃE: PAI: VÔ: MÃE:

LUTERO: MÃE:

LUA:

MÃE: LUÍS: PAI:

MÃE:

Eu tô pensando em hoje acabar com a manta de vez. Ih, aí vem a família toda.   Então eu ficarninguém. aqui neste canto canto pra nãodeixa atrapalhar Cadê a escadinha? Os meninos já estão trazendo. Nunca vi um ovo tão grande. Nem eu. Não dá pra chocar sem escada de jeito nenhum. Pronto, mamãe. Pode subir. Obrigada. Me alcança o meu tricô, Luva. Ai, ai! Não vejo o dia de acabar essa manta. Mãe, quando é que a gente vai ganhar outro irmãozinho? Está pra nascer a qualquer momento. ESecomo é que Lúcio, ele vai se for macho, se chamar? for fêmea, Luneta: gosto desses nomes. Eu também gosto tanto! Que coisa esquisita, não sei como é que pode: eu tricoto, tricoto, tricoto, tricoto e a manta está sempre do mesmo tamanho. 75

 

VÔ:

LUVA: PAI:

VÔ: MÃE:

PAI: MÃE:

 

PAI: TODOS: MÃE:

RELÓGIO: TODOS: LUA: VÔ:

PAI:

76

Meu relógio bateu quatro horas. Tá na hora de fazer um lanchezinho. Eu do hora relógio Vô: todagosto horatanto ele bate de do comer. O único relógio certo é o da torre. E ele não bateu quatro horas. Bateu sim, que eu ouvi. Pois eu ouvi bater duas. E duas horas é hora hora da sesta. sesta. Vamos dor dormir. mir. Não quatro nem duas. O quebateu é quenem bateu então? Não bateu nada. Ah!... Bom, se ele não bateu nada de novo, o jeito é continuar fazendo o que a gente já estava fazendo antes. Blemblemblembom-tontim blemblem. Agora bateu! Mas que batida enrolada! Não entendi nada. Quatro horas! Hora do lanche! O que que a gente vai comer? Bateu foi três horas. E três horas é hora de quem-disse-o-quê.

 

VÔ:

 

MÃE:

PAI: LUME:

RELÓGIO: PAI:

LUTERO:

PAI: TODOS: PAI: LUVA:

Bateu quatro. Eu acho que bateu duas. Bateu três.não dá pé! Relooooooooógio! Ah, assim Relooooooooógio! quer fazer o favor de bater outra vez bem explicado pra gente poder resolver esse caso? Blem... blem... blem. Tão vendo? Eu sou o chefe da casa e sei o que digo: três Que horas:ótimo, hora de quem-disse-o-quê. eu adoro essa hora! Muito bem, muito bem, vamos ver ver:: quem é que disse o quê? Hoje a professora disse na classe que ninguém pode matar cegonha ce gonha porque são as cegonhas que trazem os bebês pro mundo. Tão vendo como nós somos respeitados? Que bom! Quem mais disse o quê? Encontrei um garoto garoto na rua r ua e ele pediu pra eu dar um jeito dele ganhar um irmão: tá cansado de ser filho único. 77

 

Tão vendo como nós somos importantes?

PAI:

TODOS: LUA:

 

LUVA: LUA: LUVA: PAI:

MÃE:

PAI: LUME:

TODOS:  PAI: VÔ: LUME:

TODOS:

78

Que bom! E o que que você disse pro garoto? Disse que ia dar um jeito, sim. Que jeito? Ah, isso eu não sei. E nem precisa saber, minha filha. Nessas horas basta a gente dizer que vai dar um Ué, jeito agorae apronto: manta não está precisa andandomais pranada. trás: eu vou tricotando e ela vai ficando menor. Quem mais disse o quê? Na hora do recreio a filha da Dona Ema disse que é mentira: que a gente não traz bebê nenhum pro mundo. Psiu!!! Fala baixo, menino! E o que que você disse? Eu dei tanta bicada nela que ela acabou dizendo pra todo mundo que eram as cegonhas que traziam os bebês, sim. Ah, bom!!!

 

MÃE:

Como é que pode? A manta está ficando cada vez menor.

PAI:

LUCAS:

PAI:

Alguém mais maisnós? alguma coisa de nós pra nósdisse contra Disse, sim. Quando a gente ia passando na casa da Dona Avestruz, ela mandou perguntar se podia pagar com uma bandeira o favor que estava nos devendo. Com uma bandeira?

MÃE: LUDO:

Eu achopai, bandeira uma coisa bonita! É sim, uma bandeira comtãoo desenho da gente carregando car regando um bebê no bico. Ela disse que esse desenho é muito conhecido e muito bonito. Ela falou que primeiro tinha pensado bordar uma almofada com esse desenho, mas depois lembrou que se fosse todoque mundo ia sentar na gente.almofada Aí ela achou era melhor bordar o desenho numa bandeira, e aí a gente bota a bandeira na frente da nossa casa e aí todo mundo que passa e vê que a gente já tem até bandeira passa a respeitar a gente ainda mais. 79

 

PAI:

MÃE:

RELÓGIO: LUÍS: VÔ:

MÃE:

TODOS: PAI:

VÔ: LUA: LUDO:

PAI: LUTERO: TODOS: VÔ:

80

Mas que ideia bonita! E eu que sempre achei que a Dona Avestruz não tinha cabeçanenhuma dela. ideia lá dentro da Eu também pensei que... ué: a manta acabou... Blem... blem. Duas horas: chegou a hora da sesta. Engraçado, o tempo está andando pra Quetrás. nem a manta. Xi!... Será que o tempo também vai acabar que nem a manta? Será? Que barulho esquisito é esse que eu tô ouvindo? Esquisitíssimo. Tô com medo, mamãe. Eu também: o barulho bar ulho tá ficando cada vez mais esquisito. Tá aumentando... tá aumentando aumentando... ... Será barulho de tempo acabando? Será? Tempo acabando? acabando?... ...

 

...ou começando? O ovo tá rebentando! O ovo tá rebentando!

MÃE: LUX:

ANGÉLICA: PAI:

ANGÉLICA: TODOS:

MÃE: PAI: OS IRMÃOS:  PAI: VÔ:

PAI: 

VÔ:

LUTERO:

 

OS IRMÃOS:

O ovo tá... Nasci!!! Você pode anunciar que nasceu, berrando mais baixo, minha filha. Nasci. Viv iva! a! Viv iva! a! Um abraço! Coisa Coisa bacana que é nascer! nascer! Outro abraço! Viv Viva! a! ÉVamos fêmea!ensinar fêmea! Vai se Luneta chamar aLuneta. andar? Vamos! Vem cá, Luneta, vem abraçar o papai. Como ela é esperta: saiu direitinho de dentro do ovo. Não, não, não, Luneta, vem por aqui. Olha, eu vouandar riscarna uma linha este giz.viu? Você só vai linha quecom eu riscar, Pront Pro nto. o. Vem. Vem. Não é por aí não, Luneta! Não é nada disso,, menina! disso Xi, ela não andou na linha! Não andou, papai. 81

 

MÃE:

OS IRMÃOS: MÃE: ANGÉLICA: MÃE: ANGÉLICA: LUTERO: LUX: LUÍS: LUA: MÃE:

PAI: VÔ:

PAI:

EXPLICADOR:

82

Que pena. Mas não há de ser nada: o resto ela vai fazer cer c ertinho. tinho. Vamos ensinar Vamos. Luneta a falar? Diz papai. Mamãe. Não: eu tô dizendo pra dizer papai. Mamãe. Xi, ela é espírito de porco, papai! Ela diferente Ela rianda diferente. difer ente. da gente. O jeito dela é todo diferente. Então é melhor ela não ter nome começando com lu . É. Vamos pensar outro nome pra ela. Mas um nome de muito boa qualidade, porque inteira. ela vai ter que usar pra vida Então vamos começar a andar de um lado pra outro. Eles estão andando assim porque disseram que quando a gente anda de um lado pra outro pensa muito melhor.

 

RELÓGIO: MÃE:

VÔ:

PAI: VÔ: MÃE: LUTERO: LUA: LUVA: LUDO: LUME:  LUCAS:  LUX: LUÍS: ANGÉLICA: PAI:

RELÓGIO:

Blem... blem... blem. Três horas outra vez! Tá na hora de o nome. Fila!resolver Fila! Os maiores na frente e os menores atrás. Assim. Cada um que passar pela recém-nascida vai dando um nome pra ela. Rosa Maria. Azul Celeste. Antuérpia. Angélica. Violeta. Esponja. Claraboia. Chuva de Prata. Sol Poente. Dó-ré-mi. Fá. Eu quero Angélica. Então pronto: pra vida inteira você vai ser Angélica. Blemblem doze vezes: estou com preguiça de bater tudo. 83

 

VÔ:

 

EXPLICADOR:

Meio-dia! Que bom, tá na hora do almoço! Vamos! Vamos todos! Ei, Lutero, aproveitaOpra levarfoi o ovo embora. Obrigado. tempo passando, passando,, passou. Angélica aprendeu a passando andar e a voar bem que só vendo; aprendeu a pensar, a ler e a escrever. E durante esse tempo que passou a bandeira da Dona Avestr vestruz uz ficou pronta. Todo dia o Vô e a Angélica bandeira e cantandosaíam umamarchando marchinha com que aa família tinha feito. Olha: aí vêm eles.

VÔ e ANGÉLICA:

       ANGÉLICA:

VÔ: ANGÉLICA:

84

Marcha, cegonha, Aprende essa lição: A nossa bandeira Não É umaé brincadeira, grande curtição. Vô, que coisa mais legal a gente ser cegonha, não é? Legalíssima. Trazer tudo quanto é bebê pro mundo – já pensou?

 

VÔ: ANGÉLICA:

VÔ: ANGÉLICA:

VÔ:

ANGÉLICA: 

VÔ: ANGÉLICA: VÔ:

 

ANGÉLICA: 

VÔ:

Pois é. Eu acho tão bacana esse negócio da nossa famíliaosviver praque baixo e pra cima indo buscar bebês estão guardados no céu. E essa história então de trazer eles no bico embrulhadinhos numa fralda eu acho o máximo – não acha, não? Vamos marchar marchar mais um pouco? pouc o? Não é à toa que os outros bichos todos inveja da gente. Nenhum carregatêm bebê. Só nós. Que legal, hem, Vô? Marcha, Marc ha, cegonha, Aprende essa lição... Vô, quando é que eu vou começar a carregar bebê? A Vô,nossa não bandeira... fica mudando de assunto. Não é brincadeira... Vô, escuta, Vô, eu já tô ficando grande: quando é que eu vou começar a carregar car regar bebê também, hem? É uma grande curtição! 85

 

ANGÉLICA: 

Vô! Ei, Vô, não some, não. Ei! Pronto: sumiu.

OS IRMÃOS:

Uuuuuuuuuuu!    Tchoque-bobalhona, tchoque-bobalhona, tchoque-boba lhona, tchoque-bobalhona... tchoque-bobalho na...

ANGÉLICA: LUCAS: OS IRMÃOS: ANGÉLICA: LUDO:

OS IRMÃOS: ANGÉLICA: LUTERO:

ANGÉLICA: LUA:

ANGÉLICA: LUTERO: LUX:

86

Que novo novo barulho de trem é esse? Que bobalhona que a Angélica é! Qua qua qua qua qua! Bobalhona por quê? Querendo saber quando é que vai começar aQua carrequa carregar garqua bebê! qua qua! E o que que tem eu querer saber? Essa história de dizer que os bebês estão guardados guar dados no céu e que são as cegonhas ce gonhas que trazem eles pro mundo é uma mentira, Angélica. Mentira? Lugar de guardar guardar bebê é barriga bar riga de mãe, sua boba. É onde? Barriga de mãe é que nem um jardim. Explica melhor, Lutero: ela não tá entendendo.

 

LUTERO:

 

ANGÉLICA:

Quando uma pessoa tem um jardim e quer ver uma flor nascer, bota uma semente na terra, nãodepois bota? A cresce láumdentro da terra, virasemente flor. Quando casal quer ver um filho nascer, o homem bota uma semente na mulher. A semente vai crescendo lá dentro da mãe. Que nem num jardim. Só que em vez de virar flor, flor, vira bebê. É mesmo?

OS IRMÃOS: ANGÉLICA:

  É. Que coisa mais bem feita! LUTERO: Pois é. ANGÉLICA: Mas barriga de mãe é um lugar tão legal pra guardar criança; por que que bolaram então essa história das cegonhas? LUÍS: Sei lá! Parece que acharam mais bacana. LUTERO: OS IRMÃOS: LUTERO:

OS IRMÃOS:

ANGÉLICA: 

O que interessa é que a bolação pegou. Que-bom-que-pegou! Todo mundo nos respeita à beça por causa dessa bolação. Tchoque-tchoquechoque-tchoque-que-bom que-bom,, tchoquetchoquetchoque-que-bom, tchoque-qu e-bom, tchoque-tc tchoque-tchoque-que... hoque-que... Mas é mentira!!! 87

 

OS IRMÃOS: ANGÉLICA:

LUTERO:

ANGÉLICA:

LUTERO:

ANGÉLICA:

Claro. Mas, se a gente sabe que é mentira, como éComo que aégente viv e espalhando essa ideia? que avive gente tem até bandeira bordada borda da com cegonha ce gonha carregando bebê? Porque é por causa dessa mentira que a gente vive bem, que a gente ganha presente, que todo mundo nos respeita, que... Mas se a gente sabe que é mentira, a gente não podetem passar mentira proséoutros! A gente que aparar e dizer: mentira! essa ideia não vale! Ah, pera lá, Angélica, e como é que a gente fica? E como é que ficam as crianças todas quando um dia descobrem a verdade? Ficam nem eu agora: comraiva umaé raiva danada.que A coisa quetômete mais a gente ver que foi enganada! E agora vocês querem que eu saia daqui e vá enganar os outros que nem eu fui enganada? Não topo! Não topo! Não mesmo! Puxa vida, tô com tanta raiva que até me engasguei. Não to-po!

88

 

LUA:

LUX: LUVA:

LUX: LUÍS:

LUX: EXPLICADOR:

Xi, ela foi embora tão engasgad engasgadaa que é capaz de nunca mais desengasgar. Será? E se a Angélica continuar não topando, como é que a gente fica?  Já pensou? Será que ela vai arranjar um jeito de viver sem enganar ninguém? Mas que jeito que pode ser? Tá hora de precisa fechar fec har oficar pano. Com licença. Masnaninguém afobado porque tudo isso que os irmãos da Angélica tão querendo saber, e a gente também, todo mundo vai ficar ficar sabendo no segundo ato dessa maravilhosa peça.  Mas antes vamos ter um intervalo pra quem quiser comer, *

beber ou fazer qualquer Totorotototó!! Atenção: coisinha. in-ter-va-lo.  Angélica não queria de jeito nenhum usar a palavra maravilhosa: achava achava que era falta de modéstia. Mas Porto cismou porque cismou que eles tinham que fazer propaganda da peça, e a maravilhosa acabou ficando. *

89

 

SEGUNDO SEG UNDO ATO EXPLICADOR:

MÃE:

LUVA:

VÔ:

PAI:

90

Tudo legal? Então deixa eu abrir o pano porque a família tá aí esperando pra continuar a história. Agora a Angélica está sempre assim. Desde o dia em que soube a verdade. Não brinca mais, não ri mais, sempre pensando... Ela fica aí junto da janela desse jeito e pensa com tanta força que a gente pode falar à vontade e ela nem escuta. Olha só. Nunca mais ela quis marchar comigo. Isso vai passar.

 

MÃE:

PAI: MÃE: TODOS:

 

LUA:

LUVA: LUA: LUÍS: LUTERO: LUDO: MÃE:

LUME: LUX: PAI: LUX:

VÔ:

Todo dia você diz que vai passar e nunca passa. Vai soufalo. o chefe da casa: sei muito bem passar: o que eu Acho melhor a gente suspirar: faz bem. Ai, ai! Outro dia a Angélica também deu um suspiro, que eu vi. Deu pra quem? Ah, eu não Masisso espirrar elasei. nunca mais espirrou. Nem tossiu nem falou. Será que ela hoje vai mesmo falar? Ela prometeu que às quatro e meia em ponto ia ter uma conversa com a gente. O tempo tá custando tanto a passar. Papai, quatro meia fica do lado de lá ou do lado deecá? Do lado de lá. Então por que que a gente não vai pra lá pra chegar mais depressa nas quatro e meia? É mesmo, mes mo, boa ideia. Vamos todos pro lado de lá. 91

 

RELÓGIO:  LUX: ANGÉLICA: LUA:

ANGÉLICA:

PAI: ANGÉLICA: 

Blem... blem... blem... blem... bl. Tá vendo? Minha ideia funcionou. Quatro e meia! meia!Ai,Táai.naAtxim. hora de falar. Atxim. Atxim. Ai, ai. Atxim. Ai...falar. Como é, Angélic Angélica? a? Você vai falar ou vai ficar aí espirrando e suspirando? Vou falar. Um, dois, três e já: bom, eu queria dizer que eu pensei tudo quanto podia pensar e acabei achando que essa história genteempurrando saber que uma é mentira da e ficar essa coisa mentira pros outros é uma coisa que não dá pé mesmo. Não dá pé pra quem? Pra ninguém. Nem pra quem mente nem pra quem é enganado. Então eu queria

combinar o seguinte: amanhã de manhã bem cedo a gente começa a espalhar a verdade. MÃE: Que verdade? ANGÉLICA:  A ver verdade dade das cegonhas: que a gente não tem nada que ver com o nascimento dos bebês. 92

 

A FAMÍLIA: ANGÉLICA:

A FAMÍLIA: PAI:

ANGÉLICA: PAI: ANGÉLICA:

LUX:

ANGÉLICA: PAI:

MÃE: PAI:

Hmm!!! A gente não vai mais ter que fingir uma coisa que não é... já pensou que legal? Hmm!!! Reunião de família! Depressa Depressa!! Vamos nos abraçar e formar a roda. Eu também quero entrar na roda. Não pode. Deixa eu entrar aqui, Lutero Lutero.. Abre aqui pra mim, Vô, Eu então deixa eu entrar junto Lua. de você. quero escutar o queaqui vocês tão falando. Deixa eu entrar. Se eu não entrar eu não vou entender nada do que vocês tão dizendo. Ai, Angélica! Não puxa a minha asa desse jeito. Deixa Entrei!eu entrar, Lux, deixa eu entrar. Atenção: desmanchar a roda. A reunião acabou. acab ou. Vou Vou disc discursa ursar.r. Que bom: eu gosto tanto de discurso! A família se reuniu, discutiu, e ficou resolvido o seguinte: ninguém vai espalhar 93

 

verdade nenhuma. nenhuma. Todo Todo mundo nos respeita por causa da nossa mentira. E se coisa que eu adoro é respeito.   tem Eu também! PAI: Se toda a vida a gente viveu mentindo desse jeito, pra que mudar? OS OUTROS: Pra quê? PAI: Nossa família não vai mudar e daqui não vai sair nenhuma verdade. Sou o chefe OS OUTROS:

OS OUTROS:  PAI:

ANGÉLICA:

PAI: ANGÉLICA: 

MÃE:

94

da casa:bem! falei,Bis! tá falado. Muito Bis! Nossa família não vai mudar e daqui não vai sair nenhuma verdade. Sou o chefe da casa: falei, tá falado. Mas, papai, se eu continuar fingindo uma coisa que eu não sou, eu vou ser tão infeliz. Bobagem. Mas, mamãe, eu não aguento dizer que eu vou dar um jeito (que eu não sei que jeito é) pra todo mundo que me pede um bebê. Se você espalhar a verdade, você vai fazer de mim a mãe mais infeliz do mundo.

 

ANGÉLICA: 

VÔ:

PAI: MÃE: LUME:

LUCAS: LUÍS: LUA: LUX: LUDO: 

LUX:

ANGÉLICA: 

Mas, Vô, você mesmo disse que viver mentindo é tão ruim. r uim. Fica do meu lado, pensa igualfilha, a mim. Ah, minha me desculpa, eu menti sempre: agora tô velho pra mudar. Mas não fica triste porque eu vou lá dentro preparar um lanchezinho bem gostoso pra você. Até já.  Já disse o que pensav pensava, a, posso ir m’embora. Eu vouAngélica, com você. Olha, se você contar a verdade verdade pra alguém, eu te dou cada bicada que você vai ver só. E eu nunca mais falo com você, viu? Nem eu. Não conta, Angélica! A genteminha tá pedindo por favor, sim?espírito Puxa, irmã, você é mesmo de porco, hem? Não fica chateada, não, Angélica. Olha: se a gente mente sempre a mesma mentira, ela acaba ficando com cara de verdade. Pois eu não acredito. 95

 

LUTERO:

Uuuuuuuuuuu!   Tá na hora de formar o trem.

LUME:

ANGÉLICA:

LUX:

OS OUTROS: ANGÉLICA: LUTERO:

ANGÉLICA: OS IRMÃOS:

EXPLICADOR:

96

Sabe, você entrar trem, Angélica? você acabaSepensando do no jeitonosso que a gente pensa. Mas eu não quero pensar do jeito que vocês pensam: eu acho que tá errado. er rado. Vem, Angélica. Você fica sendo o vagão número nove e engata aqui atrás de mim. V ai se serrAngélica! legal le gal.. Vem em.. Vem, Não! Uuuuuuuuuuu!   O trem já vai sair, Angéli Angéli-ca.. Vem ca Vem!! Eu não sei viv viver er fingindo: não vou. Tchoque-tchoque, tchoque-tchoque tchoque-tchoque,, tchoque-TCHAU! Foi nessa hora que a Angélica viu que tinha se enrolado toda: se continuasse fingindo, ia viver infeliz; se espalhasse a verdade, ia fazer a família infeliz – e isso ela também não queria de jeito nenhum. Coitada da Angélica. Daí pra frente não sossegou mais:

 

vivia pela casa toda procurando uma solução.. Olha só como ela procura. Mas solução

LUX:

não encontrou nada.tendo O tempo passou, cresceu, continuou que fingir fingir, , foiela ficando cada vez mais triste, vivia pensando. Mas um dia o Lux resolveu ir mostrar um livro pra ela. Angélica, eu li um livr livroo tão bacana! Tá aqui, ó... Conta a vida de uma porção de Falatem na gente também diztêm quebichos. o mundo uns países que enão cegonha. Aí eu pensei: taí, a Angélica devia ir morar num país assim. Se nesses lugares ninguém conhece cegonha, ninguém vai te encomendar bebê nem dizer que é você que traz as crianças, e aí você não precisa

ANGÉLICA: 

LUX: ANGÉLICA:

mais fingir nem ficar triste. E você pensa que eu já não pensei nisso, Lux?  Já, é? Outro dia mesmo eu disse que ia pra um desses países, mas aí o papai disse que não. 97

 

LUX:

ANGÉLICA:

LUX: ANGÉLICA: LUX: ANGÉLICA:  LUX:

ANGÉLICA: LUX:

Por quê? Você agora é uma cegonha grande, pode voar pra onde quiser. Pois é, masa chorar papai ,disse não,pra a mamãe começou chorar, o Vô Vôque pediu eu ficar e eu acabei prometendo que não ia. Ah, Lux, eu sou tão infeliz! Eu queria nunca ter nascido. Queria mesmo, Angélica? Queria. Então quepra quetrás? a gente não faz o tempo por voltar Será que dá pé? Dá, sim. Você vai ficar outra vez pequenininha, cada vez mais pequenininha, até acabar outra vez dentro do ovo. Quer?

  Quero. Então eu vou lá pedir pro tempo voltar pra trás. ANGÉLICA: Pera aí, Lux, vem cá! Isso não pode ser assim, não. Se o tempo anda pra trás, nós todos vamos acabar dentro do ovo outra vez: papai, mamãe, você, o Vô... Vô... 98

 

LUX: 

Que nada, Angélica. O tempo não é um só pra todos, não. Cada um tem um tempo

diferente. Ah, é? LUX: Claro. Eu agora vou tratar de descobrir o teu  tempo.  tempo. ANGÉLICA:  Você não sabe onde é que ele mora? LUX: Não, mas vou descobrir. descobrir. Vou falar com ele, explicar o teu caso e pedir pra ele dar ANGÉLICA:

EXPLICADOR: 

ANGÉLICA:

EXPLICADOR:

ANGÉLICA:

EXPLICADOR:

ANGÉLICA:

uma marchaficou a ré. ré. esperando Tchau! pra ver E Angélica o que que acontecia. Esperou, esperou, depois começou a se encolher de frio. f rio. Explicador,, me explica uma coisa: Explicador que tempo é hoje? Fim da primavera; já vamos entrar no Masverão. então como é que eu tô com tanto frio e achando tudo com cara de inverno? inverno? É que o Lux já falou com o teu tempo e ele tá andando pra trás. Ah! Então é por isso que eu tô diminuindo de tamanho. 99

 

EXPLICADOR:

LUX:

EXPLICADOR:  LUX:

EXPLICADOR:

PAI:

ANGÉLICA:

100

Fica quietinha num canto, Angélica: daqui a pouco você não vai poder mais andar. Isso mesmo. Aí. Quietinha. Angélica! Angélica, olha aqui o ovo onde você nasceu. Achei que era melhor trazer ele de d e volta pra você desnasce desnascer.r. Vou deixar deixar aqui juntinho de você, viu? Achei o teu tempo um bocado simpático. Sabe que a gente ficou amigo e que eu... Psiu! Não fala Lux:precisa gente sossego. que tá . diminuindo de tanto, tamanho sossego Então tá bem. Mas eu vou ficar escondido aqui atrás do ovo pra ver o desnascimento. E Angélica foi diminuindo cada vez mais. Chamaram uma porção de médicos, nenhum deu jeito naquela diminuição, a coisa foi tinha piorando, e quando família viu que não mesmo jeito se aapavorou e começou a chorar. Olha: aí vem todo mundo de cara inchada de chorar. Minha filhota, fala com o papai, diz o que que você tá sentindo. Pa-pai. Ma-mãe.

 

MÃE: VÔ:

LUA: MÃE: LUX: VÔ:

LUX:

VÔ:

LUX:

Agora ela só sabe falar isso e mais nada. Você gostava tanto de marchar comigo, Ang Angélic élica.a. Vem. V, em. Vamos Vamos bocadinho, bocadinho minha filha.marchar Lembraum da nossa música? Marcha, cegonha... Ela agora só sabe engatinhar engatinhar,, Vô. Ah, que tristeza! Vô... Ui, que susto que você me deu, Lux! Mania que você tem de viver viv er se escondendo atrás do ovo. Vô, vem cá, me explica uma coisa: por que que quando a Angélica vivia infeliz infeliz dizendo que não queria ter nascido ninguém ligava, ligava, e agora que cada hora ela tá chegando mais perto de não ter nascido todo mundo vive chorando? Porsabe que,que hem? Como é que você cada hora ela tá chegando mais perto de não ter nascido? Porque fui eu que falei com o tempo dela, ué. Passei uma cantada nele que você não imagina. Ele então topou e resolveu andar pra trás. Daqui a pouco a Angélica 101

 

vai entrar no ovo e desnascer. Bom, não é, Vô? Ela vai ficar contente à beça. VÔ:

OS IRMÃOS: PAI:

LUX:

A FAMÍLIA: LUX:

102

Mas então você... o Lux! culpado de você... tudo isso foi Foi o Lux! Ah, O menino levado! levado! Foi ele que fez o tempo da Angélica andar pra trás. E agora a Angélica vai desnascer. Xi!... Ah, menino impossível! O que que eu vou fazer com você agora? Isso eu não sei. O que eu sei é que eu não sou o culpado, não. Quem tem culpa de tudo são vocês, que faziam a Angélica tão infeliz que ela só queria não ter nascido. Nós?! Vocês, sim! Primeiro ela queria contar a verdade ver dade e vocês não deixaram. Depois ela queria se mudar pra um lugar sem cegonha pra poder viver sem fingir, mas vocês também não toparam. Aí ela não quis mais ter nascido. Ninguém ligou. E então eu resolvi ajudar a Angélica, pronto pronto..

 

LUA:

OS IRMÃOS: MÃE: LUVA: PAI:

 

VÔ:

LUX: 

MÃE: LUÍS:

Olha, papai, a Angélica já tá com uma perna dentro do ovo. Xi!... Não quero ver, não quero ver. Não deixa ela entrar no ovo, papai. Mas o que que eu posso fazer? Só o tempo da Angélica é que pode fazer alguma a lguma coisa. Vai lá falar com com ele, ele, Lux. Diz pra ele andar pra frente outra Mas aívez. vocês vão continuar fazendo a Angélica infeliz, e aí ela vai continuar querendo não ter nascido: não vai adiantar nada. Eu prometo que eu não faço ela infeliz. Olha, papai, a Angélica já tá com duas

pernas e uma asa dentro do ovo. OS IRMÃOS:  Xi!... LUME: Puxa ela pra fora, papai. PAI: Sai de dentro desse ovo, Angélica! LUME: Puxa com mais força, papai. VÔ: Vai lá falar com o tempo da Angélica, Lux. Anda! 103

 

LUX:

Primeiro todo mundo tem que prometer que vai ajudar a Angélica.

MÃE: VÔ:

Eu já prometi. Eu prometo, eu prometo. OS IRMÃOS:  Eu também prometo. LUA: Xi, papai, a Angélica enfiou a outra asa dentro do ovo. MÃE: Anda, Lux, corre, voa! LUX: Mas falta o papai prometer. PAI: OS IRMÃOS: PAI: MÃE: PAI:

LUX: LUME: OS IRMÃOS: PAI:

VÔ:

104

Sai daí depapai. dentro do ovo, Angélica. Sai! Promete, O quê? Promete ajudar a Angélica a ser feliz. Prometo, prometo, mas me ajuda aqui. Eu sozinho não aguento puxar. Lá vou eu: bzzzzzzzzzzzzz... Papai, papai, ela vai desnascer agorinha mesmo. Xi!... Me ajuda aju da aqui. aqui. Vamos fazer fazer força juntos. Vô, me puxa pra trás. Fila! Todos em em fila. Os maiores maiores na frente, os menores atrás. Um vai puxando a cintura do outro. Assim. Isso.

 

105

 

Agora. Força. Mais força. OS IRMÃOS:  Ai. Ui. Hmm. Ôooooo. PAI:

PAI: LUA:

TODOS: LUA: LUX: LUA:

MÃE: LUX:

Pra força nãovez. é preciso gemer desse jeito.fazer Força outra Se a Angélica sair de dentro do ovo de repente, a gente vai levar o maior tombo do mundo. Ah!!! Não disse?! Pronto. Falei com... ué: o que que vocês todos estão fazendo aí no chão? Olha, mamãe, a Angélica tá crescendo outra vez, tá ficando igualzinha como ela era antes. Que maravilha! Como é gozado crescer assim depressa

que nem balão.   Oi! A FAMÍLIA: Viva! A Angélica nasceu de novo. Oi, Angélica! Angélic a! Um abraço, minha minha filha. Viv iva! a! Viva! LUX: Pessoal, fica quieto que o papai quer falar com a Angélica. ANGÉLICA:

106

 

PAI:

Escuta, Angélica, se você quer viajar, se você quer experimentar viver num lugar que

não tem cegonha... pode, viu?é você Claro, Claro , minha filha, você o importante ser feliz. OS IRMÃOS:  Muito bem. Bis! Bis! Bis! MÃE: Claro,, minha filha, o importante é você Claro ser feliz. ANGÉLICA:  Ah, que bom! então eu vou. MÃE:

VÔ: ANGÉLICA:  MÃE:

LUX: MÃE:

ANGÉLICA:

PAI: ANGÉLICA: 

EPropraBrasil. onde você vai? Mas é tão longe, você vai ter que voar tanto até chegar lá, eu vou ficar tão preocupadaa com... preocupad Olha o que você prometeu, hem, mamãe? O quê? Ah, é mesmo! Que bom que você vai pro Brasil, minha filha. Dizem que lá é tão bonito. Você manda umas fotog fotografias? rafias? Mando,, sim, mamãe. Quando é que eu Mando posso ir? Agora mesmo se você quiser. Ah, tá bem, então eu vou lá me despedir do meu quarto e já vou. Até já. 107

 

MÃE:

VÔ: PAI:

LUTERO: MÃE:

LUX:

MÃE: ANGÉLICA:

LUX: VÔ:

108

O que que nós vamos dar pra ela de presente de despedida? PIsso or que que aboa gente nãoVocê dá otem botão? mesmo, mesmo, ideia. tem o botão aí guardado com você, Lutero? Tá aqui. A caixinha tá amassada: não fica bem dar um presente assim com defeito. Mas a Angélica não vai precisar da caixinha, só do botão... Então está bem. Dá pra ela, Vô. O meu quarto quar to disse que vai estar sempre arrumado esperando a minha visita. Não vou levar levar mala pra não carregar peso: o voo é comprido. Um abraço, mamãe. Outro, papa papai.i. Tchau, Tchau, Vô. Tchau Tchau pra vocês todos. Assim que eu chegar mando notícias.. Tudo de notícias d e bom bom pra pra vocês. vocês . Dá logo o presente dela, Vô. Você está vendo este botão, Angélica? Era do meu avô. Ele deu pra minha mãe, minha mãe me deu, e eu dei pro meu filho.

 

PAI:

 

LUTERO: ANGÉLICA: VÔ:

ANGÉLICA: 

VÔ: ANGÉLICA:  MÃE:

VÔ:

ANGÉLICA:

VÔ:

Mas nenhum de nós chegou a usar usar.. Então eu dei pro Lutero, que é o filho mais velho da casa. Mas eu também não vou usar. Botão bacana! Pra que que serve? ser ve? Pra abotoar as ideias. Abotoa muito bem abotoado. Que legal! Então a gente usa na cabeça, não é? É. Posso pregar? Pode. Luís, esconde aquela lágrima que eu deixei deix ei cair ali. Bota no bolso pra ninguém ver, meu filho. Pronto. Você vai viver sozinha, Angélica: não pode andar com as ideias desabotoadas senão a sua vida vai ser muito difícil. Ih, mas que botão gostoso da gente alisar. Por que que vocês nunca quiseram usar? É que... bom, Angélica, quer dizer... é a tal história: pra gente abotoar as ideias bem 109

 

abotoadas a gente tem que ter coragem e deixar de fingir o que não é. ANGÉLICA: VÔ: ANGÉLICA: VÔ: 

PAI:  MÃE: ANGÉLICA:

MÃE: LUX:

LUTERO:

VÔ: OS IRMÃOS: PAI:

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Hmm... E vocês vão continuar fingindo que trazem bebês? Nós... bem... nós... vamos, sim. Mas, por quê? Ah, minha filha, é mais fácil: a gente não precisa mudar. Mudar dá muito trabalho. E precisa tanta coragem! Sei... Bom, muito obrigada pelo botão. Adorei. Eu adoro vocês todos, vou sentir um bocado de saudades. Quando chegar um tempo tempo de férias eu venho aqui. Tchau. Pronto: bateu asas e voou. Vamos ficar dando tchau: ela tá olhando pra trás. Pega a bandeira ali, Vô. Dá adeus com a bandeira também. Vamos dar adeus lá na praia? Vam amos os!! Vam Vamos os!! Mas sem algazarra. Em ordem. Em fila. Cantando e marchando.

 

A FAMÍLIA:

       EXPLICADOR:

Marcha, cegonha, Aprende essa lição: A nossa bandeira Não é brincadeira, É uma grande curtição. E assim, com Angélica indo embora pra viver a vida que ela achava que devia viver, chegamos ao fim desta peça bastante agradável.  Totororototó otororototó!! Uma boa vida *

pra vocês todos. Tchau.

 Porto queria botar “peça sensacional”, mas dessa vez Angélica  Porto bateu pé: disse que era propaganda demais, demais, e o “bastante agradável” (que Porto achava o fim da picada) acabou ficando. *

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Capítulo IX 

Os atores 

 

– Bom, agora faltam os atores.

  Angélica e Por orto to então combinaram o seguinte: ela arranjav ar ranjavaa os irmãos, ir mãos, e ele, os pais e o avô. Saiu cada um pra um lado. Foi quando ia dobrando uma esquina que Porto Porto esbarrou em Canarinho.   – Meu velho! – gritou. E os dois se abraçaram. O elefante tinha emagrecido um bocado, e o tal cinto de rabo de crocodilo, que ele adorava e que todo mundo achava bacana, balançava no corpo, todo frouxo. – Então, Canarinho, tudo legal?   – Legal coisa nenhuma. Você lembra o tal emprego de ovo ovo que eu arranjei? ar ranjei?   – Sei.   – Pois quando a Páscoa acabou me pagaram em chocolate, tá bem? Eu reclamei, é claro. Eles só 112

 

disseram: ou chocolate ou nada. Topei. Se não topasse morria de fome. Desatei a comer chocolate de manhã, de tarde e de noite, e acabei com uma crise de fígado. Uma crise deste tamanho! – Balançou a tromba desanimado. desanimado. – Eu tenho horror hor ror de crises grandes; podia ter sido uma crise pequena, não é?   Por orto to sentiu uma pena danada do elefante.   – E agora, Canarinho?   – Não sei. Não sei mesmo. Quis comprar fita colante pra grudar g rudar minhas rugas: pagava pagava em chocolate. Não quiseram. Sem ruga r uga presa fiquei fiquei parecendo ainda mais velho e agora ninguém me dá emprego.   Estava bem velho, sim, e Por orto to viu logo que ele podia fazer muito bem o papel de avô da Angélica.   – Escuta, Canarinho, você quer dar uma de ator?   – Como é que é?   – Quer trabalhar numa peça de teatro chamada “Angélica”?   – Paga?   – Paga, ué. A gente vai cobrar entrada e dividir o lucro com todo mundo que trabalhar na peça.   Canarinho meio que fec fechou hou os olhos desconfiad desconfiado: o:   – Mas paga em dinheiro ou chocolate? 113

 

   

– Dinheiro. – Então tá.

  – Nós tamos precisando de mais atores. Você não tem nenhum amigo que quer trabalhar?   Canarinho pensou um pouco, depois suspirou:   – De uns tempos pra cá eu dei pra perder meus amigos todos. Não sei onde é que eles se metem: procuro, procuro e não acho nenhum.   – E os conhecidos? você também perd perdeu? eu?   Canarinho pensou com mais força e acabou se lembrando de um:   – Tem o crocodilo do cinto.   – Será que ele topa?   – Ah, na certa: ele viv vivee apertado à beça.   – Vamos lá falar com ele!   Foram.

  O nome do crocodilo era Ju Jurisprudêncio. risprudêncio. Ele não gostava do nome e então só usava a primeira letra.   Jota Crocodilo era um sujeito que não era nem muito moço nem muito velho velho.. Tinha chegado ali no rio 114

 

há muito tempo, num mês de fevereiro um bocado quente. Foi logo tomando um bom banho, gostando daquelas águas, resolvendo que aquele lugar era dele, e pronto, e acabou-se. Chamou o lugar de Rio de Fevereiro, fincou no chão uma placa dizendo PROPRIEDADE PARTICULAR,  não deixava ninguém passar ali, e quando alguém reclamava ele só dizia:   – Já disse que esse pedaço do mundo é meu, pronto, acabou-se!   E se continuavam reclamando ele ar armava mava um barulho daqueles. Era grande, com um rabo enorme, ganhava tudo que é briga. O crocodilo tinha uma mulher que falava tão pouco que nunca chegou a dizer como é que se chamava. E então todo mundo chamava ela de Mulher-do-Jota. Quando ela ficava nervosa, dava pra espirrar. espir rar. Mas bastava bastava dar um espirro espir ro que o crocodilo já brigava com ela (ele cismava com os espirros). O casal tinha três filhos, que por causa das brigas do pai casaram bem cedinho e foram logo tratando de se mudar dali.   Com aquela história de viv viver er brigando brigando,, ninguém mais queria dar emprego pro Jota. Então, quando as 115

 

coisas ficavam ficavam muito apertadas, aper tadas, com a comida faltando dentro de casa e a mulher espirrando espir rando bem depressa pra ter tempo de espirrar bastante, o crocodilo não tinha outro jeito: vendia um pedaço do rabo. Isso foi indo, foi indo, até que um dia o rabo acabou.   Daí pra frente o Jota começou a perder tudo que é briga e agora só brigava com a mulher. Ou então quando chamavam ele de crocodilo-sem-rabo. Aí, pronto: perdia o controle, se zangava, armava logo uma briga, acabava apanhando que só vendo.

  Quando Porto e Canarinho chegaram ao Rio de Fevereiro, o Jota olhou a barriga do elefante e amarrou a cara. Era sempre assim: ficava ficava pra morrer mor rer cada vez que via um pedaço dele virado cinto. Nem respondeu ao cumprimento dos dois, e quando ouviu a mulher pedir pras visitas se sentarem foi logo berrando:   – Não precisa, não precisa! Se alguém tem alguma coisa pra dizer que diga depressa, de pé e depois vá s’embora!

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  Por orto to ficou chateado com o jeito do crocodilo, mas depois pensou: “quem sabe ele tem esse jeito porque a vida dele é difícil?”; viu que o corpo do Jota acabava acabava de repente, sem rabo nenhum pra botar um ponto final; pensou: “puxa, se a gente nasceu com rabo deve ser ruim à beça ficar sem ele”; sentiu pena do crocodilo e aí a chateação foi embora e ele convidou o Jota pra trabalhar no teatro. Contou a peça como é que era, e a toda hora o crocodilo interrompia pra perguntar:   – Você tá mesmo me oferecendo emprego? e de artista ainda por cima? não é engano, não? – E quando viu que era aquilo mesmo, que não tinha engano nenhum, ficou tão feliz com a ideia, que esqueceu rabo, zanga, tudo: – Topo! Nem precisa contar mais nada: topo, sim! Ora se topo! Me dá um abraço, Porto. Você também, Canarinho: um abraço. – E abraçava os dois, abraçava a mulher, se abraçava.   Por orto to gostou da ideia e se abraçou também. Depois abraçou Canarinho, e Canarinho abraçou o Jota, e o Jota abraçou a mulher, e a mulher se abraçou, e de repente os quatro não paravam mais de se abraçar e de achar uma graça danada naquela história. Até que Porto virou pra Mulher-do-Jota e disse:

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  – Eu também queria que a senhora trabalhasse na peça pra fazer o papel de mãe da Angélica.   Pronto: foi só dizer aquilo que o Jota parou logo de se abraçar e amarrou amar rou uma cara que só vendo.   – A senhora quer? – Por orto to perguntou.   A Mulher-doMulher-do-JJota estava vibrando vibrando::   – Ah, que bom, que marav maravilha, ilha, quero sim! Eu adoro teatro! – E quando acabou de dizer aquilo ficou com vergonha de ter falado tanto e resolveu que era melhor rir e não dizer mais nada. Mas, como a fala queria sair, esbarrou no riso que vinha entrando, e a Mulher-do-Jota Mulher-do-J ota se engasgo engasgouu toda. Porto e Canarinho deram umas palmadinhas nas costas dela pra ver se o engasgo passava. O crocodilo não gostou:  – Deixa que eu bato: bato: a mulher é minha. – E bateu com tanta força, que o engasgo se apavorou e ficou quieto.   Por orto to então disse que os ensaios começav começavam am no dia seguinte, acertou o lugar e a hora, e já ia embora quando o Jota avisou:   – Mas eu vou sozinho: minha mulher fica em casa.   – Ah, Jota! – disse a mulher toda triste. Quis dizer muito mais, mas as palavras trancaram na

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garganta e só quem conseguiu garganta conse guiu sair foi uma lágrima pequenininha.   – Ah, o quê? Lugar de mulher é dentro de casa cuidando dos filhos, pronto, acabou-se! Não é, Canarinho?   – Bom...   Por orto to se meteu na conversa:   – Mas os filhos de vocês já casaram e mudaram...   – Então, cuidando das panelas, pronto, acabou-se. Não é, Canarinho?   – Bom...   O Jota foi ficando zangado, já querendo ar armar mar briga:   – Bom o quê? É ou não é?   Sem saber o que dizer, Canarinho começou a balançar a tromba. Estava Estava numa dúvida enorme enor me (logo ele que tinha horror de dúvida grande).   – É ou não é?   – Não sei, Jota... Não sei.   – Pois se você não sabe é porque é bur burro. ro.   Canarinho se aborreceu:   – Ah, pera lá: também não precisa me ofender ofender..

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  Com o rabo do olho, Por orto to via as lágrimas que a Mulher-do-Jota ia pingando no chão. Ficou nervoso e se meteu outra vez na conversa:   – Quer saber de uma coisa, Jota? Você não está sendo legal.   – Não te perguntei nada: tô falando com o Canarinho.   – Mas a questão é que eu não aguento ficar vendo você dizer essas bobagens.   – Bobagem? Você tá dizendo que eu tô dizendo bobagem?   – Tô.   – Repet epete,e, repete!   – Tá dizendo bobagem, sim senhor senhor:: essa história de você poder ir trabalhar na peça e sua mulher, que tá louca pra trabalhar também, ter que ficar trancada dentro de casa cuidando de panela o dia todo é uma história um bocado furada.   Pra quê! O crocodilo ficou uma fera:   – A mulher é minha, a casa é minha e as panelas são minhas: você não tem nada que se meter nisso, ouviu?

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  – Mas, Jota, esse negócio de mulher não poder trabalhar já era.   – Pra mim continua sendo, pronto pronto,, acabou-se!   – E tem mais: se ela trabalha, vocês ganham duas vezes em vez de uma: a vida de vocês melhora. Pensa nisso, cara.   – Não penso.   – E tem mais, hem? Eu acho que você devia pedir desculpa de ter chamado o Canarinho de burro.   – Não peço.   – E tem mais...   Mas aí o Jota ber berrou: rou:   – Chega! Não quero saber de mais nada! – Agarrou a mulher e foi sumindo com ela pra dentro d’água.   Porto e Canarinho ficaram parados, um olhando pra cara do outro.   – Sujeito malcriado – resmung resmungou ou o elefante. – Só serve mesmo pra cinto.   Mas, de repente, Por orto to resolveu se zangar:   – Ah, isso não vai ficar assim. – Chegou na beira do rio e gritou: g ritou: – E tem mais, Jota: papel de pai e mãe da Angélica não pode separar: ou você começa a

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trabalhar amanhã junto com a sua mulher ou então não tem mais trabalho pra você. – Fez cara de Jota Crocodilo e disse: – Pronto Pronto,, acabou-se! – Piscou pra Canarinho, Canarinho piscou de volta, e os dois foram embora.

 

Napoleão Gonçalves era um sapo que vivia

achando. Se perguntavam uma opinião, ele pensava um pouco, depois dizia: “eu acho isso”, “eu acho aquilo”, aquilo”, não gostava de não achar nada. E com aquela mania de viver achando, uma das coisas que ele achou é que ele achava que pra ser feliz a gente precisa trabalhar nas coisas que a gente gosta.   Teve um ano que ofereceram um monte de dinheiro pra ele anunciar pasta de dente na televisão. Ele não gostava de anunciar nem gostava daquela pasta de dente: não topou o trabalho. Mas a mulher de Napoleão Gonçalves, que se chamava chamava Mimi-das-perucas e que vivia no cabeleireiro cabeleireiro penteando as perucas per ucas e comprando roupa e comprando perfume e querendo comprar o dia inteiro e sempre infeliz

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e sempre dizendo que a vizinha dela tinha mais coisas que ela e sempre querendo mais dinheiro pra comprar mais, tanto falou, tanto reclamou, tanto brigou com Napoleão Gonçalves, que ele acabou na televisão anunciando pasta de dente e se sentindo infeliz à beça.   Mimi gastou o dinheiro todo no cabelei cabeleireiro. reiro.   Outro ano ofereceram um ordenado um bocado alto pro Napoleão Gonçalves ser gerente de uma fábrica de camundongos enlatados. Ele disse que não gostava de comida em lata e não foi. Mas Mimi-das-perucas chorou, brigou, disse que queria mais perucas, disse que era uma infeliz porque só tinha dez pares de sapatos e a vizinha tinha quinze, criou tanto caso, que Napoleão Gonçalves acabou indo. E enquanto ele dav davaa duro o dia inteirinho na fábrica, Mimi-das-perucas comprava, comprava, só parava de comprar pra ir ao cabeleireiro. cabeleireiro. Até que um dia Mimi-das-perucas ficou tanto tempo debaixo daquele secador que os cabeleireiros usam, que secou a peruca, a cabeça, Mimi toda secou, morreu.   Como não tinha ninguém com quem deixar os sete filhos pequenos, Napoleão Gonçalves começou a trabalhar em casa; como gostava muito de mexer

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com madeira, resolveu ser marceneiro; e como era louco por teatro comprou uns livros pra estudar de noite. Ganhava pouco dinheiro, mas vivia feliz que só vendo e curtindo cur tindo cada dia até não poder mais. Adorava os garotos; vivia batendo papo com eles e brincando horas a fio de começar a achar: o que que vocês acham disso? o que que vocês acham daquilo? E uma das coisas que os garotos logo acharam acharam é que eles achavam que o pai era o máximo.   Quando Angélica chegou na casa de Napoleão Gonçalves encontrou o sapo serrando madeira pra fazer um armário e as crianças brincando de abrir estrada na serragem ser ragem que ia tapando o chão. chão.  – Oi, Napoleão! você você lembra de mim?   Foi tocando flauta numa festa que Angélica conheceu Napoleão Gonçalves e Mimi-das-perucas. Falaram de música, o sapo contou que tocava trombone, Angélica disse que estava estava querendo formar for mar uma banda, Napoleão adorou a ideia, disse que queria fazer parte. Mas Mimi-das-perucas viu logo que

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aquela banda não ia dar muito dinheiro, e então falou tanto, criou tanto caso, que Napoleão Gonçalves acabou desistindo desistindo..   – Puxa, se me lembro! Você vai bem, Angéli Angélica? ca? Há quanto tempo, hem? Olha, esses são os meus garotos.   Angélica e os sapinhos enturmaram num instante, e os sete começaram a contar tudo que acha achavam vam e faziam. O maior, chamado Repolho, era o mais falador de todos, e o menor, o Rabanete, tinha mania de engolir tudo que podia (e que não podia) ser engolido. Quatro deles, o Pimentão, o Pepino, o Nabo e o Jiló, já estavam achando bem que só vendo. Só um, o Poró, é que achava que achar era muito difícil: pensava, pensava, acabava sempre dizendo “não sei”.   Só quando os garotos acabaram de perguntar e contar tudo que queriam é que Napoleão entrou na conversa:   – Conta, Angélica: que que há de no novo? vo?   – De no novo vo é que a gente tá fazendo um teatro e eu vim convidar você pra trabalhar.   – Não brinca!   – No duro.

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– A gente quem? – Eu e o Por orto. to.

  – Quem é o Por orto? to?   Angélica viu que tinha coisa à beça pra contar. Bebeu água, se firmou bem numa perna só e começou do princípio: a vida que ela levava lá no país onde nasceu, a chegada no Brasil, o encontro com Porto, a ideia que ele deu pra ela, e depois contou a peça toda como é que era.   Napoleão Gonçalves estava na maior animação animação::   – E que papel que eu faço?   – Meu irmão.   – Qual deles?   – Pois aí é que está, Napoleão: a gente tá pensando em mudar a peça e só botar um irmão em vez de oito.   – Ah!! – disse a família Gonçalves todinha (e Rabanete aproveitou aproveitou a abertura aber tura do Ah!! pra engolir uma mosca que ia passando), um bocado desapontada com a ideia.   – E por quê? – perguntou Jiló.   – Pra diminuir os atores. A gente vai dividir o lucro da peça com todo mundo que trabalhar; trabalhar ; se

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trabalha muita gente, fica muito pouquinho pra cada um.   – Ah, mas isso é uma pena! – disse Napoleão Gonçalves.   – E como é que o trenzinho vai funcionar só com um ator?   – Pois é: o trem vai ter que acabar.   – Ah!! – E os Gonçalves ainda ficaram mais desapontados.   Foi mais ou menos nessa hora que Repolh epolhoo achou que trabalhar no teatro devia ser uma grande curtição. cur tição. Pela cara dos irmãos viu que eles estavam achando a mesma coisa. Virou pra Angélica e disse:   – Escuta aqui, eu tô achando o seguinte: em vez do papai ir trabalhar no teatro e ficar preocupado porque a gente tá sozinho aqui em casa, ele leva a gente junto com ele lá pra sua peça. Você deixa?   – Claro que deixo, Repolh epolho. o.   – Tá. Obrigado Obrigado.. Mas, olha, tem uma coisa: o papai tá sempre dizendo que favor com favor se paga. Então nós vamos pagar assim: em vez da gente ficar lá no teatro parado-que-nem-bobo-sem-fazer-nada, parado-que-nem-bobo-sem-fazer-nada, a gente fica fazendo fazendo de graça g raça o papel dos seus irmãos. ir mãos.

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E, se é de graça, você não precisa diminuir irmão nenhum. Tá? Mas antes da Angélica responder, Pimentão já foi dizendo:   – Eu acho a ideia muito legal. Só que tem que eu acho que deve ser meio chato trabalhar de graça. g raça.   Nabo achou a mesma coisa. Jiló achou que não. Rabanete ainda não sabia achar, e o Poró pensou e disse:   – Não sei o que que eu vou achar.   Mas Pepin epinoo achou o segui seguinte: nte:   – Pois eu acho que se a gente é pequeni pequenininho, ninho, ganha uma coisa pequenininha e pronto.   Angélica riu, gostou do palpite. Disse que era só Napoleão Gonçalves topar que ficava valendo a ideia de Pepino. Pepino. E quando Napoleão topou, os sapinhos saíram pulando pela casa, fazendo uma farra que só vendo.

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Capítulo X 

Os ensaios   

Quando no dia seguinte Porto e Angélica

chegaram no teatro que tinham ar ranjado arranjado pra ensaiar, já encontraram o elefante esperando na porta.   – Você chegou cedo, Canarin Canarinho. ho.   – Tô com pressa de ganhar dinheiro.   – Mas a gente só vai ganhar no dia da representação.   – Eu sei, e é por isso que eu quero começar de uma chegar logo   vez:– pra Por gente mim ninguém vai lá. esperar!! – foi avisando esperar de longe Napoleão Gonçalves. Vinha com a filharada toda, cada um mais alegre aleg re do que o outro.   Repolho botou logo o olho no cinto de Canarinho:   – Puxa, mas que cinto bacana!

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E Rabanete já ficou louco pra engolir a fifivela. vela. O elefante fez uma festinha no cinto:

  – Está às ordens. Mas só pra olhar olhar:: sem esse cinto eu não sou elefante.   Angélica apresentou todo mundo e não perdeu tempo: começou a distribuir os papéis. Canarinho fazia o Vô; Porto, o Explicador; Napoleão Gonçalves, o Lux, que dos irmãos era o papel mais difícil de fazer; Repolho fazia o Lutero, e os outros filhos do sapo faziam o Lume, o Ludo, o Luís, o Lucas, a Lua e a Luva.   – O Jota Crocodilo tá demorando – disse Canarinho.   Angélica e Por orto to se olharam. Eles tinham quase certeza certe za que o crocodilo não ia aparecer: aparecer : Jota Jota devia ter ficado furioso com aquela história do Porto Porto dizer “ou sua mulher também trabalha ou você nem precisa aparecer lá nos ensaios”.   – Então o jeito é começar sem eles – resolveu Porto. – Vamos pro palco.   Angélica ia ajudando o pessoal a decorar as falas e Por Porto to ia fazendo as marcações, quer dizer, ia mostrando onde é que cada um tinha que ficar na hora de dizer isso ou aquilo.

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  O ensaio já ia adiantado quando Canarinho cutucou Porto: Porto: tinha visto a cara do crocodilo aparecendo atrás de uma cadeira do teatro. O ensaio parou.   – Ei, Jota! – gritou Por orto. to. – O que que você tá fazendo escondido aí?   O crocodilo então resolveu aparecer. Trombudo que só vendo. Caminhando mais de um metro na frente da mulher. Parou no meio do palco e, sem cumprimentar ninguém, resmungou mal-humorado:   – Só vim e só deix deixei ei minha mulher vir porque a situação de dinheiro lá em casa está apertadérrima.   Pimentão olhou pra ele muito espantado e falou:   – Ih, papai, olha só, o crocodilo tá sem rabo. Será que ele esqueceu em casa?   Pronto: o Jota já se zangou:   – Se alguém falar outra vez que eu não tenho rabo eu brigo. Brigo mesmo, ouviram bem?   A Mulher-do-J Mulher-do-Jota ota deu dois espirros e já ia dando o terceiro quando ele berrou:   – Quer fazer o fa favor vor de parar de espirrar!   Ela espirrou.   – Quer fazer o fav favor or de parar!!

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  Ela ficou tão aflita com aqueles maus modos do marido na frente do pessoal todo, que espirrou espir rou mais três vezes. Porque Porque o que acontecia era o seguinte: se guinte: quanto mais o Jota embirrava com os espirros espir ros da mulher, mais os espirros da mulher embirrav embir ravam am com o Jota; e então, cada vez que o Jota dizia para, o espirro não parav parava: a: só pra implicar implicar.. A coitada da Mulher-do-Jota Mulher-do-J ota não tinha a menor culpa nessa história toda.   – Pela última vez: para!   Mais que depressa Por orto to apresentou Angélica e a família de Napoleão Gonçalves pra ver se todo mundo esquecia os tais espirros. espir ros. Esqueceram. Por Porto to então anunciou:   – E agora vamos trabalh trabalhar. ar. Daqui pra frente a gente não pode mais perder tempo com nada.

  Se encontr encontrav avam am todos os dias e ensaiavam o dia todo.   Napoleão Gonçalves e a Mulher-doMulher-do-JJota, fazendo o Lux e a Mãe, eram os atores mais

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engraçados. A cena que ela vai tricotando e ele vai puxando o fio escondido, eles faziam de um jeito tão gozado que a turma tinha que parar de ensaiar de tanto que ria. Até o Jota acabou esquecendo o mau humor e soltando umas garg gargalhadas alhadas crocodilescas que ainda faziam o pessoal rir mais. Outra cena que ficou ótima foi a cena do fim, quando Angélica vai entrando no ovo e a família puxa ela pra trás: o tombo que todos levam lev am quando o tempo começa a andar pra frente outra vez era um tombo bem-feitíssimo. bem-feitíssimo.   Cada vez que Repolh epolhoo apitava uuuuuu   e o “trenzinho dos irmãos” entrava entrava em cena, Porto Porto e Angélica vibravam: vibravam: Napoleão Gonçalves e os filhos tinham ensaiado tanto aquele tchoque-tchoque tchoque-tchoque do trem que o resultado era uma delícia. Mas um dia Rabanete berrou:   – Achei!   Todo mundo bateu palmas: era a primeira vez que Rabanete achava. achava. Ele fez uma cara muito importante e disse:   – Eu acho que a gente devia bolar ainda mais bossa pro trem.   – Então bola, ué – foi logo dizendo o pai.

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  E Rabanete bolou. In Inventou ventou umas curvas pro trem fazer no caminho; inventou também um jeito de se juntarem e se afastarem que ficava até parecendo que o trenzinho era uma sanfona. Aí, Napoleão Gonçalves, que também gostava muito de bolar, inventou um movimento de pata pros oito fazerem juntos, que era certinho um movimento movimento de rodas. E com essa história de inventa daqui, inventa dali, a Mulher-do-Jota se entusiasmou toda e resolveu:   – Eu também quero bolar!   O Jota então fechou a cara: já tinha deixado a mulher trabalhar; mas bolar ele não ia deixar; de jeito nenhum!   – Quem bola é o marido: deixa que eu bolo – resmungou.. E começou a bolar o que é que ia bolar. resmungou   Mas dessa vez a Mulher-do-J Mulher-do-Jota ota não se conformou e foi inventando inventando uma porção de coisas lá dentro da cabeça dela. Inventou uma roupa pra usar na peça que era da gente morrer mor rer de rir, inventou inventou um jeito engraçadíssimo de ficar numa perna só (que nem as cegonhas ficam) balançando o corpo de um lado pra outro como se fosse cair a qualquer momento, inventou um cacoete de dar umas

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sacudidelas de cabeça quando menos se esperav esperava; a; e depois começou a ensaiar as bolações. A turma foi vendo, foi rindo, e quando o Jota percebeu já estavam todos batendo palmas pras invenções da mulher dele.   A moda de inv inventar entar pegou. Todo dia inv inventavam entavam coisas novas novas pra botar na peça. Porto arranjou pro Explicador uma corneta cor neta velhíssima que tocava tocava numa rouquidão daquelas. Quis consertar. Não deu jeito. Então escreveu escreveu assim na corneta: cor neta: estou rouca porque me gripei.   E tev tevee um dia que, de repente, Porto parou de ensaiar e sem mais nem menos começou a desmanchar a roupa que ele sempre usava. Tirou o chapéu, arrancou as flores, as conchinhas, depois foi arrancando os desenhos todos um por um e jogando aquilo tudo fora. Os filhos de Napoleão Gonçalves arregalaram cada olho assim. E começaram logo a achar:   – Acho que o Por orto to tá inv inventando entando um jeito de porco pro Explicador.   – Eu acho que ele tá inv inventando entando um jeito de porco pra ele mesmo.

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  – Pois eu acho que ele era um porco que tinha bolado um jeito de não ser porco e agora tá virando porco de novo.   – Eu acho que isso que ele tá fazendo se chama desbolação.   – Pois eu acho que ele é porco e que ele é Por orto, to, pronto.   – Eu tô achando que daqui a pouco eu vou achar uma coisa legal à beça – disse Rabanete. – E você, Poró? O que que você acha?   Poró pensou e pensou, como era difícil achar!   – Não sei – respondeu.   Porto suspirou satisfeito: o disfarce que ele tinha inventado quando era pequeno estava todo jogado fora. Ele sabia muito bem que vida de porco é um bocado difícil, mas de repente tinha dado um estalo de coragem dentro dele e ele tinha resolvido fazer que nem Angélica: parar de fingir uma coisa que ele não era. Só no nome é que ele não mexeu: achou achou que podia ser um porco chamado Porto. O ensaio continuou e Canarinho resolveu resolveu::   – Vou fazer um relógio grandão de papelão. Cada vez vez que eu falar falar que tá na hora de alguma coisa coisa

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eu vou tirar o relógio de dentro da roupa. – E já começou a se divertir com a cara que o relógio ia ter. Canarinho estava estava gostando tanto daquele trabalho, que já tinha até esquecido a história de grudar rugas: começou a se sentir tão moço!...   Cada dia que passava caprichavam mais um pouco pra peça sair boa. E com aquela mania de bolar iam curtindo cada vez mais os ensaios. A coisa toda foi indo, tão boa, tão gostosa, que no fim de uma semana, quando acabava acabava o ensaio, eles iam embora cantando a musiquinha da peça;  

     

Marcha, cegonha, Aprende essa lição:  O nosso teatro  Não é brincadeira,

 

É uma grande cur curtição. tição.

  Até o Jota acabou adorando o trabalh trabalho, o, e depois de muito quebrar a cabeça inventou inventou o seguinte:   – O pai da Angélica viv vivee falando em respeito respeito,, não é? Então eu resolvi que cada vez que ele falar nisso, em vez de dizer respeito com um r só, ele vai

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dizer com cinco. Assim: rrrrrespeito. Ideia genial, não é?   Pela cara do pessoal, ninguém achou a ideia muito genial. Mas mesmo assim o respeito do pai da Angélica virou um respeito de cinco erres.

 

Um dia a peça ficou pronta. Eles então

prepararam umas faixas e uns cartazes e saíram pela cidade anunciando o espetáculo espetáculo.. Porto, que já tinha prática de anunciar, ia na frente chamando a atenção de todos com toques da corneta cor neta gripada e gritos de “V “Venham enham todos, venham ver!”. Angélica ia segurando a bandeira que eles tinham feito pra peça. Napoleão Gonçalves e os sete filhos iam andando um junto do outro, carregando uma faixa que dizia:

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Depois vinha Canarinho segurando com a   tromba um cartaz com o nome ANGÉLICA escrito de tudo quanto é jeito e feitio.   E por último o crocodilo e a mulher. Ele leva levava va um cartaz assim:

  Pra ninguém perceber a falta do rabo, o Jota se tapou com umas folhagens e ficou parecendo um bicho misteriosíssimo.   A Mulher-doMulher-do-JJota ia segur segurando ando um guarda-chuva torto, onde estav estavaa escrito: “QUEM É ANGÉLICA? QUEM É? QUEM É?” e uma porção de pontos de

interrogação desenhados. Ela estava tão feliz com o trabalho e com a vida nova, que naquele dia, quando saiu de casa, deixou os espirros espir ros todos dentro da gaveta: gaveta: não se lembrou de apanhar nenhum.

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Capítulo XI  A representação   

Eram quatro horas quando a peça começou;

o teatro estava lotado.   Na hora que Por orto to entrou no palco fazendo o papel de Explicador e disse aquela primeira frase: “Senhoras, senhores, crianças, bichos de toda espécie: boa tarde!”, ele nem podia falar direito direito de tão cansado. ca nsado. Também, coitado, desde cedo não parava, preparando as coisas que eles iam usar em cena, vendo as entradas, ajudando Angélica e os outros atores a dar os últimos retoques nas roupas, acudindo Canarinho que estava tão nervoso que teve uma disparada de coração. E na última hora, quando o espetáculo já ia começar, Porto ainda teve que ir correndo cor rendo na farmácia levar Rabanete:

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ele tinha engolido o botão que abotoava as ideias.   – Hoje vamos apresentar uma peça chamada *

“Angélica”. A peça tem dois atos, o primeiro com noventa no venta centímetros e o segundo com um metro e dez. Como na vida a gente sempre apresenta...   Mas, conforme os atores foram se apresentando apresentando,, Por orto to foi se acalmando, o coração sossegou, e de repente ele começou a curtir a peça que nem curtia os ensaios.   Canarinhoo é que continu Canarinh continuav avaa ner nervoso. voso. Logo depois de se apresentar, em vez de sair pelo lado, saiu pela frente: não viu os degraus de graus que separav se paravam am o palco da plateia, se estatelou no chão e não conseguia se levantar sozinho de jeito nenhum. A peça então teve que parar. Os atores foram ajudar o elefante, e aí ele saiu certinho cer tinho e a peça continuou. O público foi muito legal porque fingiu que nem tinha visto. Só um pessoalzinho sentado lá na última fila é que desatou a rir.

* Desengoliu. E o botão voltou pra dentro da caixinha.

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  O Jota esqueceu de botar os cinco er erres res no respeito.. E a voz saía tão baixinha que volta e meia respeito pediam da plateia: “fala mais alto, alto, sim?”. Aí ele começava começa va a gritar que nem louco e o público não tinha outro remédio senão pedir: “fala mais baixo, baixo, sim?”.   O sol caiu duas vezes no chão (o prego era curto).   Rabanete engoliu uma fala.   Na hora de nascer, Angélica pulou pra fora do ovo com tanta força, que um pedaço do ovo de papelão voou longe e foi cair na cabeça de uma senhora sentada na primeira fila. Mas ela nem ligou. Nem ela nem ninguém que estava estava por perto. per to. Só o tal pessoalzinho sentado na última fila é que começou a vaiar.   Porto olhou pro fundo do teatro e tomou um susto: o pessoal que estava estava ali perturbando per turbando eram os macacos. Os tais. Aqueles da escola e do restaurante. Pois eram eles mesmos. Rindo à beça de tudo que saía errado. E numa torcida daquelas pra sair uma coisa ainda mais errada.   E saiu. Foi pouco depois da Angélica nascer, justinho naquela hora que a família toda faz uma fila pra cada um ir dando um nome pra ela.

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Canarinho pisou numa ponta da roupa do    J Jota ota (nem viu, é claro). claro). Quando o Jota foi andar, andar, brrrrr!, a roupa, que era de papel fininho desenhado com penas de cegonha, rasgou toda de alto a baixo.   Uma menina da segunda fila arregalou o olho e disse:   – Olha só, mamãe, o crocodilo não tem rabo.   Não foi preciso mais nada: os macacos resolveram resolvera m que estava na hora de perturbar per turbar ainda mais. Pularam pra frente do palco e começaram a gritar:   – Crocodilo sem rabo, crocodilo sem rabo, crocodilo sem rabo...   Pra quê! O Jota perdeu a cabeça. Esqueceu peça, público, tudo, pulou pra fora do palco, se atracou com os macacos. A mulher dele ficou apavorada. apa vorada. Saiu atrás pedindo:   – Para, Jota! Não é hora de brigar! Larga esses macacos! Angélica, Por Porto, to, Napoleão e os sapinhos correram pra apartar a briga.

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  Só Canarinho ficou no palco: estav estavaa nervoso demais pra fazer qualquer coisa (e se tinha coisa que Canarinho implicava implicava era com nervosismo grande). g rande).   Foi um custo pra acalmar o Jota e acabar com a briga. Mas conseguiram.   Os macacos voltaram pro lugar deles e os atores arrastaram o crocodilo de volta pro palco. O público foi formidável: fingiu que nem tinha visto nada. Mas aí o Jota disse que não representava mais, e pronto, e acabou-se. No princípio todo mundo pensou até que era brincadeira. Mas ele falou:   – Não vou ficar aqui de roupa rasgada, com o público todinho vendo que eu não tenho rabo.  – Amarrou a cara, fincou fincou o pé no chão chão e pronto. pronto. Aí o público perdeu a paciência. Começaram as reclamações:   – A gente pagou entrada!   – Se o crocodilo cisma de não representar mais, como é que vai ser?   – A gente quer ver a peça até o fim!   Os atores cochichav cochichavam am pro Jota que ele estava fazendo um papelão.   – Toma jeito – pediam.

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Mas ele não tomava. E dizia: – Quero uma roupa no nova. va.

  Não adiantava explicar que não era hora de roupa nova; não adiantava falar, zangar, pedir juízo ao crocodilo; não adiantava o público reclamar: o Jota não ouvia nem se mexia, e ninguém mais sabia o que que ia fazer.   De repente, Canarinho teve uma ideia. Uma ideia que deixou ele um bocado triste. Mas mesmo assim ele tocou a idéia pra frente: tirou o cinto da barriga, bar riga, olhou pra ele, fez uma festinha na fivela e deu pro crocodilo:   – Toma o meu cinto de presente, Jota. Pendura ele no lugar do rabo. Fica sendo um rabo fininho mas muito melhor do que rabo nenhum. E tem outra vantagem: vantag em: é de você mesmo: não é pele emprestada de ninguém.   Antes que o Jota tivesse tempo de pensar no oferecimento, oferec imento, a mulher dele tirou agulha e linha de um bolsinho e costurou o cinto no lugar do rabo.   Pimentão falou:   – Dá uma rabanada pra ver se o rabo tá bom.   O crocodilo deu.

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  – Que tal? – perguntou a Mulher-doMulher-do-JJota baixinho. – Está gostando?   – Melhor que nada – respondeu ele ainda trombudo. trombu do. Deu outra rabanada, outra e mais outra. Gostou de voltar a ter rabo: deu mais outra. Desamarrou a cara e falou: – Então tá bem, eu represento outra vez.   Angélica, Angélic a, Por orto to e a Mulher-doMulher-do-JJota ficaram tão aliviados aliv iados que acabaram até rindo. Pra contar a verdade, o teatro inteiro também riu porque o Jota estava esta va engraçadíssimo com aquele rabo.   E Canarinho, vendo todo mundo contente outra vez, esqueceu a tristeza; esqueceu que agora ninguém mais ia olhar pra ele e dizer “que cinto bacana!” e a representação então continuou.   Mas, fora isso, o primeiro ato correu que foi uma beleza.   Durante o intervalo os atores ficaram pensando nos macacos, na briga e nas outras coisas que não tinham saído direito. direito. E pela cara e o jeito de cada um a gente via direitinho que eles estavam resolvendo lá dentro da cabeça deles que daí pra frente eles iam fazer a maior força do mundo pra não errar er rar mais nada.

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Ia ser tão bom dar pro público uma representação cem por cento!   Devem ter resolvido aquilo muito bem resolvido porque porque os macacos ficaram o segundo se gundo ato inteiro esperando um erro. Um só. Mas não saiu nenhum. Nem um bem pequenininho. O público adorou! Não parava mais de bater palmas. E tinha até gente pedindo bis quando se ouviu um grito gr ito lá no fundo da plateia:   – Angélica!   Angélica ficou toda arrepiada: era a voz do Lux. Mas do Lux de verdade. verdade. Do irmão ir mão dela que tinha ficado lá no país onde ela morava.   Lux veio voando pela plateia, Angélica desceu correndo do palco, e foi só os dois se encontrarem que não paravam mais de se abraçar.   – Como é que você veio parar aqui, Lux?   – Estou em viagem de lua de mel pela América do Sul. Resolvemos aproveitar e vir te visitar aqui no Brasil.   – Quando é que você chegou?   – Hoje de manhã. Perguntei por você em toda parte. Acabei sabendo que você estava aqui. Entramos

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pra ver a peça e tomei um susto daqueles quando vi que era a sua história; sua e minha; e do Vô e da Mãe, e de todo mundo lá de casa. Achei tão gozado me ver na peça! – E aí apresentou a mulher dele, que era uma cegonha muito engraçadinha chamada Bem-me-quer.   Todos os atores rodearam Lux e Bem-meBem-me-quer. quer. Napoleão Gonçalves ficou logo querendo saber se Lux achava que ele tinha representado Lux direito.   Mas Angélica fazia tanta pergunta que ele não podia nem responder:   – E papai? e mamãe? e o meu quarto? e a lua que nasce em frente da janela da sala? e a bandeira da Dona Avestruz?   Lux contou que depois que Angélica foi embora ele começou a pensar. Passava o dia todo pensando e acabou também achando que não dava mais pra viver daquele jeito. E explicou que não era só ele não: a Luva e o Luís também estavam mudando. Com Bem-me-quer é que nunca tinha tido prob problema: lema: ela sempre achou que a gente não pode viver querendo ser uma coisa que a gente não é. Conversa vai, conversa vem, Lux perguntou:

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– Por que que nós não vamos jantar todos   juntos pra comemorar a estreia da peça?   Os atores ficaram parados, sem saber o que responder: naquele aperto aper to que eles viviam sempre, todos tinham umas contas atrasadas que precisavam botar em dia com o dinheiro do teatro.   Mas quando Bem-me-quer disse:   – É a gente  que  que está convidando, e então...   Eles todos saíram correndo, nem esperaram ela acabar de falar.   Serviram um prato impressionantíss impressionantíssimo imo lá no restaurante onde eles foram jantar: era um prato com uma porção de andares. No térreo tér reo,, vinham as saladas todas (e era cada folha deste tamanho!). No primeiro andar, peixinhos, camarõezinhos e mais picadinho de insetos. No segundo andar vinham as carnes e uma coisa diferente que parecia farofa, mas que não era farofa, e que cada um achou que era uma coisa, e que ficou todo mundo sem saber o que que era. Foi nesse andar que, pela primeira vez, Canarinho percebeu o nó que Porto tinha no rabo. Ficou logo preocupad preocupado. o. Falou baixinho (porque não queria chamar a atenção de ninguém para aquele nó):

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  – Coisa difícil que deve ser a gente viv viver er com um nó no rabo. Ou na perna. per na. Ou na tromba. Ou nas ideias. Ou em qualquer lugar. Por que que você não tira ele fora, hem, Porto?   Por orto to também não queria que os outros ficassem prestando prestando atenção no nó, e então respondeu cochichado e apressado:   – Não sai: é cego.   – Cegueira grande?   – Enorme.   Pronto: Canarinho já perdeu o apetite: se tinha coisa que ele implicava implicava era com cegueira grande. g rande. Viu logo que se o nó continuasse ali ele não conseguia conse guia mais comer.   – Mas você já experimentou tirar ele fora?   – Antigament Antigamentee eu vivia experiment experimentando. ando. Nunca dava certo. Então desisti.  – Experimenta outra vez. vez.   – Agora?  – É. Tá todo mundo comendo: comendo: ninguém vai vai perceber.   – Mas faz cócega.   – Muita?

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– Pra mim é a coisa que mais faz cócega na vida. – Muito melhor sentir cócega do que viv viver er

com um pedaço da gente entalado num nó que não desata.   – Bom... isso é ver verdade... dade...   Porto ficou pensando naquilo e de repente sentiu uma curiosidade danada: quem sabe ele experimentava outra vez? Quem sabe o nó desatava? Começou a dar umas voltinhas com o rabo pra ver se o nó tomava jeito e ia desmanchando. Cada voltinha fazia mais cócega que a outra: Por Porto to foi ficando com uma vontade louca de rir. Mas não queria que ninguém visse o que ele estava fazendo, e então fechou a boca, os olhos e o nariz pro riso não poder sair de jeito nenhum.   No terceiro andar, Lux e Bem-me-quer resolveram que iam levar a “Angélica” pra ser representada lá na terra deles. Angélica vibrou:   – Tá vendo só que legal, Por orto? to?   Mas Por orto to nem pôde responder porque estava quase rebentando de tanta vontade de rir.   Angélica prometeu que assim que acabasse o antar ela ia desenterrar a caixa de sapato pra pegar a

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ideia da peça e dar pra Lux e Bem-me-quer Bem-me-quer.. Depois resolveu resolv eu que era melhor eles levarem a ideia com caixa e tudo.   No quarto andar, o Jota viu um espelho lá no fundo do restaurante e não resistiu: largou o jantar e foi pra frente do espelho se admirar. Estava tão feliz de ter se juntado outra vez com um pedaço dele!   Quando chegou no quinto andar, Porto se sacudia tanto com as cócegas, que Canarinho não aguentou mais: começou também a prender o riso. Foi nessa hora que Napoleão Gonçalves levantou e fez cara de discurso. Todo mundo parou de comer (até Rabanete) e olhou pra ele. O sapo passou o guardanapo pela boca e falou:   – O Lux está dizendo que eu preciso fazer um discurso, os garotos também, ficam todos falando que um jantar desses precisa discurso, eu não gosto de discurso, mas como eu já fiz a cara do discurso, o jeito agora é fazer o corpo e as pernas. Meu discurso tem seis linhas, começa com uma linha curta, tem quatro mais ou menos e a última curtíssima:

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Angélica e Por Porto to Nós todos queremos dizer pra vocês

       

que a nossa vida melhorou muito depois que a gente se conheceu e começou a trabalhar junto. Fim.

  – Que bom! – gritou Angélica. – A minha vida também tá tão legal!   Por orto to quis dizer que a vida dele também estavaa ótima, mas viu que era só dizer um a que o riso estav estourava. Então enfiou a cara debaixo da toalha. Canarinho também. O resto do pessoal achou aquele jeito dos dois muito esquisito, mas pensaram que eles estavam comovidos e resolveram deixar pra lá.   E aí a Mulher-do-Jota se levantou e disse:   – Eu também queria falar uma coisinha. É uma coisinha pequena mas muito importante pra mim.   O Jota largou o espelho e marchou pra mesa: já tinha deixado a mulher trabalhar, já tinha deixado a mulher bolar: discursar ele não ia deixar; de jeito nenhum:   – Quem fala sou eu!

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  – Um momenti momentinho, nho, Jota. Um momenti momentinho nho só. Deixa eu acabar o que eu estava falando. É o seguinte: eu queria dizer pra vocês que eu tenho um nome. Um nome que também começa por jota. Que coincidência, não é? Pois é: eu me chamo Jandira. E queria pedir a todos os presentes pra não me chamarem mais de Mulher-do-Jota. Daqui pra frente todo mundo me chama de Jandira, está bem? – Suspirou. Aliviada e satisfeita. – Pronto, era só isso.  – Sentou.   Foi ela acabar de falar que Porto ber berrou: rou:   – O nó desmanc desmanchooooooooou! hooooooooou!   E aí pronto: o riso todo que tinha juntado dentro de Por Porto to e de Canarinho saiu junto com o berro, e os dois não fizeram mais mistério da risada: riam como nunca tinham rido na vida, riam fazendo um escândalo que só vendo, riam tanto que nem dava pra explicar pros outros o que que tinha acontecido acontecido..

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OBRAS DA AUTORA Os colegas - 1972 Angélica - 1975 A bolsa amarela - 1976 A casa da madrinha - 1978 Corda bamba - 1979 O sofá estampado - 1980 Tchau - 1984 O meu amigo pintor - 1987 Nós três - 1987 Livro Livr o - um encontro - 1988 Fazendo Ana Paz - 1991 Paisagem - 1992 6 vezes Lucas - 1995 O abraço - 1995 Feito à mão - 1996 A cama - 1999 O Rio e eu - 1999 Retratos de Carolina C arolina - 2002 Aula de inglês - 2006 Sapato de salto - 2006 Dos vinte 1 - 2007 Querida - 2009

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Este livro foi composto na tipologia Centaur, no corpo 13,5. A capa em papel Cartão Car tão Supremo 250 g e miolo em papel Pólen Bold 90 g. Impresso na Armazém das Letras Gráfica e Editora Ltda.

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Quando você não quer mais ser o que você é – dá pra mudar de pele? Quando você não se conforma com o jeito j eito que a sua família vive – dá pra mudar o jeito? E quando você não arranja emprego – dá pra inventar um? Se você tem que vender um pedaço de você mesmo pra sobreviver – dá pra ficar de bom humor? E se você fica velho e sozinho no mundo – dá pra dar a volta por cima? Os personagens que levantam estas dúvidas (e outras mais) se encontram aqui neste livro.  Juntos,, criam uma peça de teatro  Juntos teatro chamada chamada  

 ANGÉLICA..  ANGÉLICA  A criatividade criatividade faz de cada um deles deles um ser mais feliz.

ISBN 85- 890 8902020- 06- 1

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