BINSWANGER, Ludwing - Três Formas Da Existência Malograda (Zahar, 1977)

March 26, 2019 | Author: Raridades Psicologia | Category: Existentialism, Schizophrenia, Mind, Language Interpretation, Psychopathology
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Binswanger foi um psiquiatra renomado que iniciou a aplicação da Teoria Existencial de Martin Heidegger à Psiquiatria. E...

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Ludwig Binswanger

TRES FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA Extravagância Excentricidade Amaneiramento

ZAHAR

m EDITORES

PSYCHE

Para referência bibliográfica adicional. Ver lista no final do Volume

LUDWIG BINSWANGER

TRÊS FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA Extravagância Excentricidade Am aneiram ento Tradução de G UID O A . DE A L M E ID A

Professor de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro

ZAHAR EDITORES RIO DE JANEIRO

Título original; D rei Formen Missglückten Daseins — Verstiegenheit, Verschrobenheit, M anieriertheit

Traduzido da primeira edição alemã, publicada em 1956 por MAx NIEMEYER VERLAG, de Tübingen, Alemanha

Copyright © 1956 by Max Niem eyer Verlag

capa de ÉRIco

1977

Direitos para a

língua portuguesa

Z A H A R

adquiridos por

E D I T O R E S

Caixa Postal 207, ZC-00, Rio que se reservam a propriedade desta versão

Impresso no Brasil

A

M A R T IN HEIDEGGER

i sinal de gratidão

N o ta P re lim in a r d o T ra d u to r

A escolha dos termos extravagância, excentricidade e amaneira­ mento para traduzir Verstiegenheit, Verschrobenheit e Manieriert­ heit encontra-se justificada em notas separadas do tradutor no co­ meço de cada um dos capítulos. O termo malogrado foi escolhido de preferência a frustrado para traduzir missglückt ou mislungen, porquanto Binswanger tem em Vista não o simples desapontamento ou a não-satisfação de um desejo, tendência ou projeto do ser humano, mas o malogro ou fracasso da existência em sua totali­ dade "como ser-aí" ou "ser-no-mundo”.

ÍNDICE Prefácio I. II.

.......................................... .....................................................................

A Extravagância A Excentricidade

................................................................................... ..................................................................................

13 22

A.

Clínica e Psicopatologia ............................................................ 1. Os Psicopatas Excêntricos .............................................. 2. Excentricidade e Esquizofrenia .....................................

24 24 26

B.

A Expressão "Excentricidade" e Suas Perífrases ...........

37

C.

A Significação Antropológica da Expressão “Excentricidade" e de Suas Perífrases ................................................

41

A Significação Ontológica da Expressão "Excentricidade" e de Suas Perífrases ..............................................................

45

E.

Análise Existencial da Excentricidade .................................. Primeiro Exemplo ....................................................................... Segundo Exemplo ....................................................................... Terceiro Exemplo ....................................................................... Quarto Exemplo ......................................................................... Quinto Exemplo .........................................................................

49 51 57 61 65 71

F.

A Essência da Excentricidade ...............................................

80

G.

Tomada de Posição Quanto às ConcepçõesClínicas Excentricidade

D.

da

Excentricidade, Amaneiramento, Fanatismo ...................... III.

9

O Amaneiramento A. B.

................................................................................

92 106

As Perífrases do Amaneiramento na Linguagem Colo­ quial e na Linguagem da Psicopatologia ................

107

Para uma Compreensão e Descrição Clínicas dosJeitos Amaneirados Esquizofrênicos .............................................

11I

ÍNDICE

8 C.

A Propósito do Amaneiramento como Forma Existencial

Esquizofrênica O

...............................................................

Caso Jürg Zünd como Paradigma

D . O Maneirismo como Estilo Artístico 1. 2. E.

125

.......................

125

......................

132

Nas Artes Plásticas ......................................................... N a Arte Literária ........................................................... Excurso sobre a Desagregação .....................................

Para uma Análise Existencial ............................................

132 147 161 169

1.

A Partir da Linguagem Coloquial ...........................

2.

A Partir do Maneirismo Artístico e do Amaneira­ mento como Forma Existencial ............................ Colocações Iniciais para uma Análise Existencial do Amaneiramento ............................................................

187

F . Extravagância, Excentricidade, Amaneiramento e Esqui­ zofrenia ....................................................... .......................

203

3.

169 178

PREFÁCIO

Os três tratados aqui publicados constituem uma etapa do ca­ minho que leva à compreensão existencial-analítica do decurso e das formas da existência (Dasein) esquizofrênica. Nessa medida, constituem uma contrapartida de meus "Estudos sobre o Proble­ ma da Esquizofrenia", publicados no Schweizer Archiv für Psy­ chiatrie und Neurologie de 1945 e 1952. Esses estudos tinham por ponto de partida a descrição clínico-psiquiátrica da sintomatolo­ gia e da evolução de "casos" particulares da esquizofrenia. Seu objetivo, porém, era a compreensão existencial-analítica desses ''casos'', no sentido das transformações dos modos da existência humana em geral. Da mesma maneira, os tratados aqui reunidos têm por ponto de partida as denominações e descrições clínicopsiquiátricas de determinados sintomas esquizóide-psicopáticos e esquizofrênicos no sentido de características diagnósticas. Mas seu objetivo é, mais uma vez, a exibição e a compreensão das transfor­ mações e formas existenciais, nas quais temos que ver as incontornáveis condições de possibilidade para que o psiquiatra extraia esses ''sintomas", a titulo de características diagnósticas, do curso da existência humana e os reduza ao nível do conhecimento psi­ quiátrico. Por essa razão, tanto nos trabalhos mencionados, quanto nos presentes estudos, a primeira coisa a fazer foi, mais uma vez, re­ tirar a psicopatia esquizóide e a esquizofrenia do quadro estreito do juizo de valor biológico — como deve ser considerado o juízo médico — e do estado-de-coisas médico-psiquiátrico da doença e da morbidez, a fim de transportá-las para o quadro mais amplo da estrutura existencial ou do ser-no-mundo humano, cujo a priori foi ''trazido à luz'' por Heidegger em sua analítica existencial. Para evitar equívocos, observemos desde logo, porém, que a ana­ lítica existencial constitui tão-somente o (indispensável, é verda­ de) solo e fundamento ontológico para as nossas próprias inves­

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TRÊS FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA

tigações. Elas próprias ocupam-se apenas da estrutura fáctica ou ôntica de determinadas formas e transformações existenciais. Pos­ to que também podemos designar as múltiplas estruturas das possibilidades existenciais através da expressão francesa condition humaine, até mesmo o leitor sem formação filosófica poderá per­ ceber que, aqui, estaremos sempre tratando de temas e pesquisas concernentes ao homem puramente enquanto homem. Assim, a extravagância, a excentricidade, o amaneiramento1 revelam-se, como mostraremos, como ameaças humanas universais, isto é, irnanentes a existência humana. Por conseguinte, a extravagância, a excentricidade e o amaneiramento — voltamos a ressaltar — não são mais considerados aqui num sentido médico-psiquiátrico como "inferioridades", "desacertos" ou ''sintomas" doentios. Tudo aquilo que designarmos como psicopatia ou doença mental será uma forma determinada de semelhante frustração ou malogro, restrita ao quadro da psiquiatria enquanto ciência médica e redu­ zida ao nível do conhecimento psiquiátrico. Como mostrou W. Szilasi em sua obra profunda e, aliás, in­ dispensável para nossas investigações, Macht und Ohnmacht des Geistes (Potência e Impotência do Espírito), o sentido das ex­ pressões que, a propósito do ser-aí, se referem ao êxito ou ao su­ cesso, à frustração ou ao malogro remonta essencialmente a Pla­ tão e Aristóteles (e, mesmo, a Heráclito), mas domina também a doutrina de Kierkegaard sobre a "possibilidade'' como "a mais difícil de todas as categorias" e, sobretudo, o conjunto da analíti­ ca existencial de Heidegger. Pois o ser-aí é aquí considerado e compreendido como "a possibilidade de ser livre para seu mais próprio saber-e-poder-ser". Em vez de frustração ou malogro (do ser-aí), trata-se aqui do fato de que o ser-aí continuamente ''abdica das possibilidades de seu ser", "agarra-as" ou "equivoca-se" ao tentar agarrá-las, ou do fato de que ele pode ''extraviar-se e equi­ vocar-se a respeito de si mesmo"2. Aproveitemo-nos disso para de novo apontar para o fundo existencial-ontológico de nossas inves­ tigações ônticas. A mesma distinção vale para o traço comum aos três modos de frustração do ser-aí, a saber, os três modos pelos quais sua autêntica movimentação ( Bewegtheit) histórica pode vir a se ''pa­ ralisar" ou ''chegar ao fim". Muito embora, para nós, ''a movi­ mentação do ser-aí" não signifique, é claro, a ''movimentação de um objeto simplesmente subsistente", deixaremos, aqui também, 1 Para a justificação da escolha desses termos como tradução de Verstiegeneit, Verschrobenheit e Manieriertheit, v. as notas preliminares de cada capítulo (N. do T . ) . 2 Cf. Heidegger, Sein und Zeit, p. 144.

PREFÁCIO

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num segundo plano, o esclarecimento apriorístico ou, como diz Hei­ degger, o "esclarecimento ontológico do 'contexto vital', isto é, da extensão, da movimentação e da persistência específicas do ser-aí” e, juntamente com ísso, "o horizonte da constituição temporal desse ser-aí'',3 limitando-nos à exibição das diferentes estruturas da transformação fáctica dessa movimentação no sentido da extra­ vagância, da excentricidade e do amaneiramento. Disso tudo resulta que nosso propósito é destacar as diferen­ ças que ressaltam sobre a base desse traço comum, para saber afinal o que tanto a linguagem coloquial quanto a Psicopatologia, bem como em parte também a teoria da arte, realmente querem dizer com essas palavras. Com semelhante saber, a teoria da ex­ travagância, da excentricidade e do amaneiramento deixa de ser a mera descrição das impressões que tais formas da existência pro­ duzem no parceiro existencial, abandonando a esfera vaga das significações verbais usadas comumente para designar tais im­ pressões, para se colocar no terreno da experiência analítico-fenomenológica. Naturalmente, isso não deixará de ter um efeito re­ troativo sobre a compreensão clínico-psiquiátrica desses modos da existência frustrada como dados para um diagnóstico ou ''sinto­ mas patológicos". Para terminar, é oportuno lembrar que nosso trabalho, ao destacar as três estruturas distintas do ser-aí frustrado, de modo nenhum pretende ser exaustivo. Semelhante exaustividade só seria alcançada se cada uma dessas estruturas constituísse o tema pró­ prio de uma investigação sistemática com relação ao Quem da existência, do ser-em e da mundanidade, do ser-com, do convívio {Miteinandersein) e do ser-se-si-a-si-mesmo (Selbstsein), do de­ caimento ( Verfallen) da facticidade e do estar-jogado do ser-aí. Mas, com isso, nossas investigações teriam pretendido uma exten­ são excessiva. O que nos importava era mostrar quais as peculia­ ridades que se mostram essenciais para cada uma das diferentes estruturas. Para facilitar a compreensão, observe-se de antemão que res­ saltamos como essencial para a extravagância a desproporção entre a "amplidão da experiência"4 e a "elevação da problemática" da existência humana, ou, para falar com Ibsen, a desproporção entre 3 Ibid., pp. 374 ss. 4 Er-fahrung; ao separar desse modo a palavra alemã correspondente à nossa "experiência", Binswanger chama a atenção para sua derivação do verho "fahren", que significa “andar" ou “viajar em um veículo". Segun­ do os dicionários, o verho “erfahren" (fazer a experiência de) significa etimologicamente; "atravessar (um país, uma região), reconhecer, encon­ trar, conhecer" (N . do T .).

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TRÊS FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA

a elevação da capacidade de construir e a da própria capacidade de subir. Para a excentricidade, porém, consideramos essencial a desproporção dos contextos referenciais mundanos no sentido do ''través" ("Q uere"). O que se mostrou essencial para o amaneira­ mento foi, por sua vez, o sentimento desesperado e medroso de não poder ou não saber, ser-se-a-si-mesmo, juntamente com a busca de apoio numa imagem ( Vor-Bild) e tomada ao domínio público da "Gente" (Man) e a hiperenfatização dessa imagem modelar com o fim de ocultar o desenraizamento, o mundo inseguro e a si­ tuação ameaçada da existência. Para terminar, observemos mais uma vez expressamente que o decaimento no sentido de Heidegger desempenha um papel decisivo em todas as nossas formas de exis­ tência frustrada. O pequeno ensaio sobre a extravagância, entitulado "Vom anthropologischen Sinne der Verstiegenheit" ("Do sentido antro­ pológico da extravagância"), foi publicado pela primeira vez em Nervenarzt (20.° a n o , 1.° cad., 1949) em homenagem a meu pri­ meiro e venerado professor de psiquiatria, o professor Karl Bonhoeffer, por ocasião de seu 80.° aniversário. O ensaio encontrase também no segundo volume de meus Ausgmiählte Vorträge und Aufsätze ( Conferências e Ensaios Escolhidos, A. FranckeVerlag, Berna 1955). O tratado sobre a excentricidade foi publicado pela primeira vez na Monatschrift für Psychiatrie und Neurologie (Verlag Karger, Basiléia), vol. 124 (1952), vol. 125 (1953), vol. 127 (1954) e vol. 128 (1954). Omitimos aqui os resumos trilíngües de cada parte. O tratado sobre o amaneiramento é publicado aqui pela pri­ meira vez. L U D W IG B IN S W A N G E R

Dr. med. Dr. Phil. h, c. Kreuzlingen, outubro de 1955.

A E X T R A V A G Â N C IA *

Não somente como ser que projeta a amplidão e nela cami­ nha, mas também como ser que projeta e sobe à altura,5 a exis­ tência humana está essencialmente envolvida pela possibilidade de ir longe demais e extraviar-se ao subir. Se indagarmos pelo sen­ * N ota preliminar do tradutor; Traduzimos a palavra alemã Verstiegen­ heit apenas aproximativamente por extravagância. Para compreendê-la em seu pleno sentido é preciso ter em mente as conotações que conserva de sua derivação do verho (sich) versteigen. Sich versteigert (que deriva por sua vez de steigen = subir) significa, em seu sentido próprio, extravagar ou extraviar-se, ir longe demais e perder-se ao subir, como por exemplo o alpinista que, ao se atrever a escalar uma passagem difícil, vê-se perdi­ do, "encalacrado" numa posição sem saída e sem retorno possível, e da qual só pode ser salvo mediante a ajuda de terceiros. Em sentido figurado, sich versteigen significa exceder-se (com atrevimento), demasiar-se, exor­ bitar, ultrapassar os limites do razoável, ir longe demais e além do razoá­ vel em suas idéias, opiniões, comportamento, etc. Por exemplo; "er vers­ tieß sich zu einer übertriebenen Forderung, zu einer überraschenden Behauptung, zu der Hoffnung, d a s s ...” = "ele foi longe demais com uma exigência exagerada, com uma afirmação surpreendente, com a espe­ rança d e ..." . O particípio passado desse verho é verstiegen que, usado como adje­ tivo, podemos traduzir como "extravagante, exagerado, exaltado, excessivo, atrevido, excêntrico, maluco, maníaco". O adjetivo tanto pode qualificar as opiniões, idéias, planos, propostas, estilo, etc. de uma pessoa, como a própria pessoa. Por exemplo; "er hat recht verstiegene Ansichten über die Ehe" = "ele tem opiniões hastante extravagantes sohre o casamento", "er hat einen verstiegenen Stil" = "ele tem um estilo extravagante, exa­ gerado, arrevezado", "er ist ein verstiegener Mensch, ein verstiegener Dich­ ter" = "ele é um homem extravagante, esquisito, maníaco, um poeta extravagante, exagerado, etc." Verstiegenheit (o substantivo abstrato for­ mado a partir de verstiegen) significa, em suma, o estado mental de quem, por seu comportamento ou por suas idéias, ultrapassa os limites do razoá­ vel e se vê perdido numa situação sem saída e da qual só pode ser salvo com a ajuda de terceiros. 5 Binswanger, L.; "Traum und Existenz", Neuer Schweizer Rundschau 1930; reproduzido em Ausgewählte Vorträge und A ufsätze, t. I, Berna

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TRÊS FORMAs DA EXISTÊNCIA MALOGRADA

tido antropológico dessa possibilidade de ir longe demais e extraviar-se ao subir, numa palavra, da "extravagância", estaremos por Isso mesmo indagando pelas condições de possibilidade da con­ versão do subir no modo de ser da extravagância. Desse modo, limitamo-nos a seguir o sentido lingüístico das expressões alemãs compostas com o prefixo ver-, cujos significados, como nos ensi­ na a etimologia, via de regra servem para denotar algo que se alterou, deteriorou e, até mesmo, se converteu em seu contrário. A indagação antropológica, porém, não pode jamais se limitar a uma única direção existencial, mas, ao contrário, e precisamente enquanto antropológica, tem sempre em vista a estrutura inteira do ser-homem. Assim, desde o início, estaremos preparados para a necessidade de compreender as condições de possibilidade da conversão do subir em extravagar — tanto mais que o subir in­ transitivo parece converter-se aqui numa ação que reflete sobrt aquele que sobe — não a partir da direção do movimento ascensional tão-somente, mas a partir de sua koinonidP ou comunidade com outras possibilidades fundamentais do ser humano. Na ver­ dade, a extravagância deriva, como procurei mostrar em outro lu­ gar,7 de uma determinada desproporção entre o subir à altura e o caminhar na amplidão adentro. Se designarmos sua proporção "bem lograda"8 como a ''proporção antropológica", teremos que designar a extravagância como uma forma de desproporção an­ tropológica, como uma proporção "malograda" entre altura e amplidão no sentido antropológico. Mas o ser-homem não se absorve totalmente no ser-no-mundo9 e, desse modo, na espacialização e temporalização do ''mundo". Muito ao contrário, ele deve ser com­ preendido, além disso, como ser-além-do-mundo no sentido do berço (Heimat) e da eternidade do amor,10 onde não há nem em cima nem embaixo, nem perto nem longe, nem antes nem depois. 1947. — Schweiz. Arch. Psychiatr. 27-30 (1931/32). — Z. Neur. 145, 61S (1933). — Bachelard, Gaston; L'mr et les Songes. Essai sur l'imagination du mouvement. Paris: Corti 1943. — Como introdução à cosrnologia fenomenológica em geral; E. Minkowski Vers une Cosmologie. Paris 1936. — Para a teoria do espaço vivido, cf. tamhém Erwin Straus; Nervenarzt 1930, cad. 11. — Dürckheim; “Untersuchungen zum gelebten Raum", N eue psychologische Studien, t. 6, cad. 4. Munique, 1932. 6 Szilasi, W.; M acht und Ohnmacht des Geistes, p. 46. Berna 1946. 7 Binswanger, L.; Heinrik Ibsen und das Problem der Selbstrealization in der Kunst. Heidelberg; Lambert Schneider, 1949. 8 Szilasi; M acht und Ohnmacht des Geistes, p. 19. 9 Heidegger, Martin; Sein und Zeit, 4.a ed. Halle, 1935. — Vom Wesen des Grundes (Husserl-Festschrift, Halle 1929). 10 Binswanger, L.; Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins. Primeiro capítulo. Zurique 1942.

EXTRAVAGÂNCIA

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Se, apesar disso, o ser-homem enquanto ser finito permanece sem­ pre — para usar uma expressão de Goethe — “angewiesen auf", isto é, referido a e na dependência de altura e amplidão, então ele só pode extravagar quando houver se evadido do berço e da eter­ nidade do amor para se absorver inteiramente no "espaço e no tempo". Pois só quando a communio do amor e a cornmunicatio da amizade já abdicaram, e o simples trato e comércio com ''o outro" e consigo mesmo assumiram a condução exclusiva de nosso ser, é que a altura e a profundeza, a proximidade e a distância, o ter-sido e o estar-por-vir (Gewesenheit und Zukünftigkeit) alcan­ çam uma significação tão decisiva que o subir pode chegar a um fim e a um agora que não admitem mais nem retrocesso nem avanço, vale dizer, onde o subir já se converteu em extravagân­ cia. Quer se trate de uma ''idéia" extravagante, de um ideal ou de um "sentimento" extravagante, de um desejo ou plano extra­ vagante, de uma afirmação, modo de ver ou atitude extravagante, de uma mera ''mania'' ou de uma ação ou de um crime extrava­ gante, aquilo que aqui desiguamos com a expressão "extravagan­ te" está condicionado pelo fato de o ser-aí ter se ''atolado" (festgefahren) numa determinada "ex-periência" ( “Er-fahrung"11) , pelo fato de não conseguir mais, para usar uma imagem de Hofmannsthal,13 ''levantar tenda", pelo fato de não conseguir mais se ''abalar". Privado da communio e da communicatio, o ser-aí não consegue mais, agora, ampliar, rever ou examinar seu "horizonte de experiências" e fica parado num ponto de vista "tacanho", isto é, estreitamente limitado. Assim, o ser-aí "empacou", é verdade, ou obstinou-se, mas ainda não extravagou.13 Pois, a condição de possibilidade da extravagância implica, além disso, que o ser-aí suba mais alto do que convém à sua amplidão, ao seu horizonte de experiências e de compreensão, ou por outras, que extensão e altura não se encontrem numa relação proporcional. O exemplo clínico-psiquiátrico clássico disso é o conceito bleuleriano da oligofrenia dos ''pretensiosos", entendida como "desproporção entre as­ 11 V. Prefácio, nota 4 (N. do T . ) . 12 Binswanger, L.; "Über das Wort von Hofmannsthal; Was Geist ist, erfasst nur der Bedrängte". Homenagem a R. A. Schröder. Schweizer Stu­ dio philosophica. Vol. VIrt, 1943. 13 Das línguas que conheço, o alemão é a única que faz, de maneira mais ou menos conseqüente, essa distinção, enquanto as línguas latinas e o inglês utilizam quase que exclusivamente expressões provenientes da esfera do mundo (aller trop loin, andar troppo lontano ou troppo oltre, to go too far ou so far as [to maintain] ). Uma exceção é o espanhol, que não somente conhece um irse demasiado lejos, mas também um tom ar su vuelo demasiado alto.

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TRÊS FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA

piração e compreensão". O exemplo clássico da poesia dramática é o construtor Solness14 de Ibsen, que "constrói mais alto do que consegue subir".16 Contudo, não devemos de modo algum enten­ der a desproporção entre altura e extensão como uma despropor­ ção entre determinadas "capacidades" ou qualidades e, sobretudo, não devemos entendê-la como uma desproporção entre ''a inteligên­ cia e a necessidade de ser admirado". Ao contrário, temos que investigá-la, como é o caso aqui, quanto às condições antropológi­ cas de sua possibilidade. Não entendemos aqui a extravagância como uma desproporção de qualidades constatável numa determi­ nada pessoa ou num determinado grupo de pessoas (massa, parti­ do, ''clique", seita, etc.), no sentido de uma "característica" a eles inerente. Não a entendemos, pois, nem como uma qualidade do ca­ ráter nem como uma ocorrência ou ''sintoma" psicológico, psicopatológico ou sociológico constatável aqui ou ali, mas, sim, como uma possibilidade existencial passível de ser compreendida "existencial-analiticamente",16 isto é, a partir da estrutura inteira da existência humana, em suma, como uma possibilidade existencial antropológica. Só quando esta houver sido compreendida, conse­ guiremos chegar a uma autêntica compreensão da "sintomatolo­ gia" extremamente rica da extravagância. Só então conseguiremos, por exemplo, entender como e em que medida podemos distinguir antropologicamente a "idéia extravagante" (como é chamada er­ roneamente) que ocorre a uma maníaco,17 o gesto, modo de falar ou ação "extravagante" (''excêntrico", ''bizarro") de um esqui­ zofrênico18 e a fobia de um neurótico — muito embora designe­ mos todos eles, na psicopatologia ou na vida quotidiana, com a única expressão: ''extravagante". Na verdade, acredito que até mesmo a demência (W ahn) esquizofrênica só se deixa compreen­ 14 Binswanger, L.; Henrik Ibsen. 15 Com que nitidez Ibsen viu (ver é sua própria expressão para a cria­ ção poética!) a significação da proporção de altura e amplidão para o malogro e o sucesso da existência humana, mostra-o o fato deter contra­ posto ao construtor Solness em O Pequeno E yolf uma figura que não quer suhir, que não quer "construir mais alto" do que sahe efetivamente subir, o construtor de estradas Bergheim. Este, como mostra sua profis­ são, não constrói como o construtor Solness torres que se erguem até o céu e em cujas alturas vertiginosas é tomado de vertigens até que um dia se vê esmagado sohre o solo, mas vai hravamente construindo sobre a terra. N ão persegue nenhuma "felicidade" inatingível, não quer mais do que sahe (aprendeu a) fazer, mas, em compensação, tamhém alcança tudo o que quer e, ao mesmo tempo, cresce a olhos vistos. 16 Binswanger, L.; Schweiz. A rch. 57, 209 (1946). 17 Binswanger, L.; Über Ideenflucht, Zurique 1933. 18 Binswanger, L.; Mschr. Psychiatr. 110, 3 /4 (1945).

EXTRAVAGÂNCIA

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der a partir do modo existencial da extravagância.19 A mesma coisa vale para os "fenômenos de massa" da extravagância. Mas voltemos à extravagância considerada como um desloca­ mento estrutural da proporção antropológica. A "atração da am­ plidão'', na direção horizontal da significação, corresponde mais à "discursividade", ao experimentar (Er-fahrenm ) , a travessia e to­ mada de posse do ''mundo", ao ''alargamento do horizonte", ao alargamento do discernimento, da visão de conjunto e da circunvisão organizadora dos meios (Einsicht, Übersicht und Umsicht) com relação ao "burburinho" do ''mundo" exterior e interior. Já a atração da altura, o subir na direção vertical da significação, corresponde mais à aspiração de superar a "gravidade da terra”, de se elevar acima da pressão e da "angústia das coisas terre­ nas", mas ao mesmo tempo também ''a aspiração de conquistar um ponto de vista ''superior", uma "visão superior das coisas", como diz Ibsen, a partir da qual o homem possa moldar, dominar, numa palavra, apropriar-se de tudo o que "experimentou". Ora, esse apropriar-se do mundo no sentido de vir-a-ser e realizar-se a si mesmo é o que chamamos decidir-se. Quer afete uma ação parti­ cular, quer afete a "vida inteira", a decisão pressupõe um subir ou elevar-se acima da situação humana particular, logo, acima do âmbito das coisas experimentadas e examinadas. Mas o que sig­ nifica esse ''acima"?211 Corno já o viu e tão eloqüentemente o des­ creveu Nietzsche, no prefácio a Humano — Demasiado Humano (vol. 1), ele não significa mais a aventurosa "circunavegação" no sentido da experiência do mundo, mas, sirn, a penosa e dolorosa escalada dos "degraus" do problema da hierarquização22 Na ascensão não se trata mais, por conseguinte, do mero aprender, conhecer, saber no sentido da experiência, mas da "to­ mada de posição" que se efetua no decidir-se, no sentido da autorealização ou do amadurecimento. Nem por isso, porém, devemos confundir o subir com um mero querer no sentido da distinção psicológica entre entendimento, sentimento e vontade.23 Ao con­ 19 Binswanger, L.; Schweiz. Arch. 1939, t. 63. 20 V. Prefácio, nota 4 (N. do T .) . 21 Esse elevar-se e ficar acima de urna situação mundana não deve ser confundido com o estar acima do rnundo-em-geral no sentido do amor! 52 Em harmonia com isso, Gaston Bachelard (cf. L ’A ir et les Songes) designa o subir na vertical também como valorisation, como apreensão e atribuição de valor. — Lembre-se a esse propósito, por exemplo, a deci­ são de Antígona. 23 Marchamos juntos com E. Minkowski quando este (cf. "La tríade psychoolgiqeu" em Vers une Cosmologie, pp. 57 ss.) contesta e comhate essa classificação “triádica” dos fenômenos psicológicos, c mesmo a pos­ sibilidade de semelhante classificação em geral.

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trário, precisamos compreender — como já o insinua a expressão "aspiração" de Bleuler — que, no subir, o fato de ser arrebatado (sobre as "asas" dos estados de ânimo, desejos, paixões, pela ''fan­ tasia" ou imaginação) transforma-se imperceptivelmente na "de­ cisão envolvendo uma tomada de posição".24 Apesar disso, temos que proceder a uma distinção antropológica nítida entre o emocio­ nal deixar-se-arrebatar por desejos, idéias, ideais e a penosa, e a fatigante escalada dos “degraus" da escala que possibilita a esses desejos, idéias, ideais uma mútua ponderação na vida, na arte, na filosofia e na ciência, e sua tradução em palavras e atos. Isso esclarece aquela forma da desproporção entre amplidão e altura que subjaz à possibilidade da "ideação maníaca". Veremos daqui a pouco que essa desproporção distingue-se de tal maneira da desproporção da extravagância que de maneira nenhuma de­ vemos falar de uma ideação ''extravagante", mas antes de uma "fuga de idéias", como aliás costumamos fazer na psicopatologia. A desproporção entre altura e amplidão, própria do ser-no-mundo caracterizado pela fuga de idéias, é em tudo diferente da despro­ porção no sentido da extravagância. Na primeira, a desproporção consiste em que o caminhar na amplidão adentro é substituído por um saltar e por um saltar por cima "ao infinito", razão por que o horizonte ou âmbito de visão se "alarga infinitamente". Já o subir à altura permanece um mero “vol imaginaire", um arrebatar-se sobre as asas de meros desejos e "fantasias", de tal forma que não se consegue chegar nem a uma visão de conjunto no sentido da experiência, nem a um aprofundamento da problemática de cada situação particular (a elevação é, por essência, ao mesmo tempo aprofundamento, a altitude é, por essência, ao mesmo tempo altura e profundidade), tornando-se assim impossível chegar a uma de­ cisão envolvendo uma tomada de posição. Essa desproporção entre amplidão e altura baseia-se numa ampliação "desproporcional" desse mundo extremamente volátil do maníaco. "Desproporcio­ nal" a saber, em relação ao "nivelamento"25 da altura (ou pro­ fundidade) autêntica da existência, ou seja, da altura que so se pode atingir após árduos esforços, no sentido da decisão e do amadurecimento. A desproporção no sentido da forma maníaca de vida26 ou, para falar existencial-analiticamente, da volatibilidade significa por isso mesmo a impossibilidade de se tomar pé de maneira autêntica na "escala" da problemática humana e, nessa 24 Por essa razao, temos que concordar plenamente com Bachelard quan­ do declara; "II est impossihle de faire la psychologie de la volonté sans aller à la racine même du vol imaginaire". 25 Binswanger, L.; Über Ideenflucht. Em especial o segundo Estudo. 26 Binswanger, L.; Schweiz. Med. Zschr. 1945, n .° 3.

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medida, também a impossibilidade de decidir, a g i r e amadurecer de maneira autêntica. Desligada da communio amorosa e da au­ têntica communicatio, longe demais e demasiado rapidamente em­ purrada para frente, bem como elevada demasiado alto, a forma de Vida maníaca alça-se a uma altura Vertiginosa, onde é impossí­ vel se chegar a toda e qualquer posição (Standpunkt), a toda e qualquer decisão ''capaz de se manter de pé por si mesma" (selb­ ständige). Nessas alturas rarefeitas, o amor e a amizade perderam seu poder e o trato ou relacionamento humano reduziu-se à forma do tratamento psiquiátrico. A extravagância dos Psicopatas esquizóides e das incontáveis formas do ser-no-mundo esquizofrênico é muito diferente.27 Aqui, a desproporção antropológica não deriva mais de uma preponde­ rância desproporcional da amplidão (do "saltar'') e da altura do mero “vol imaginaire" com relação à altura (autêntica) da ''de­ cisão'', mas, sim, de uma preponderância desproporcional da altu­ ra da decisão sobre a amplidão da ''experiência". Deixando de lado, aqui, as diferenças essenciais entre o psicopata esquizóide e o esquizofrênico, podemos dizer que ambos extravagam, por opo­ sição ao maníaco, na medida precisamente em que não se deixam elevar às ''alturas rarefeitas" dos estados de ânimo otimistas, mas, ao contrário, solitários e "sem nenhuma consideração da experiência", escalam e se deixam ficar sobre um deter­ minado degrau da "escala da problemática humana". A altu­ ra dessa escalada não está em proporção com a estreiteza e a imo­ bilidade do horizonte de experiência (entendendo-se sempre a pa­ lavra ''experiência" no sentido mais amplo do ex-perienciar,28 da em si interminável "discursividade"29). Aqui a extravagância significa mais do que a mera obstinação, precisamente na medida em que não se trata apenas de uma impossibilidade de progredir no sentido da experiência, mas de um entalamento ou de um aprisionamento num determinado nível ou degrau da problemática hu­ mana. A ''hierarquização" tão flexível da problemática humana é, aqui, ignorada em sua essência e reduzida a ou absolutizada em um determinado ''problema", em um determinado ideal, em uma determinada ideologia. Na medida em que aqui ainda se fazem "experiências" de um modo qualquer, elas não são mais avaliadas e aproveitadas como tais. Pois ''o valor" está aqui fixado de uma vez por todas. A extravagância significa, por conseguinte, absolu27 Binswanger, L.; Schweiz. Arch. 53-55, 56-59, terceiro estudo. 28 V. Prefácio, nota 4 (N. do T .) . 29 Binswanger, L.; Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins. Primeiro capítulo. Zurique 1942.

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tização de uma decisão singular. Semelhante absolutização, por sua vez, só é possível depois que o ser-aí se exilou "desesperado" do berço e da eternidade do amor e da amizade. Ela só é possível, portanto, quando nada mais sabe ou pressente da ''relatividade" de todo abaixo e acima vistos contra o fundo de uma confiança no ser isenta de dúvidas, de uma certeza ontológica imune a toda problematização. Mais ainda, semelhante absolutização só é possí­ vel depois que o ser-aí se isolou do trato e do comércio com os outros e da possibilidade de aí encontrar promoção e lições con­ tínuas. Tendo-se retraído para o mero trato e comércio consigo mesmo, também isso "vai morrendo" até se imobilizar no olhar fixado no problema, ideal ou ''nada da angústia",30 como que pe­ trificado em uma cabeça de Medusa, em demência. Em virtude disso, uma pessoa só pode ser resgatada da posição extravagante através da ''ajuda alheia", exatamente como no resgate do alpi­ nista que acaba por se enrascar na escalada (sich verstiegen hat) de um despenhadeiro.31 É verdade que o neurótico também só pode ser "resgatado" da extravagância e do entalamento de sua existên­ cia — numa fobia, por exemplo — mediante ajuda alheia, mas esta ainda tem o sentido da colaboração e da comunicação. Exa­ tamente por isso, porém, o exemplo da extravagância neurótica talvez mostre mais nitidamente do qualquer outro que a extrava­ gância — não importa que ela se dê sob a forma física ou psíquica do perder-se ao subir — se baseia sempre numa carência de dis­ cernimento (Einsicht), de visão de conjunto (Übersicht) ou da circuncisão organizadora dos meios (Umsicht) no domínio daque­ la totalidade finalizada (Bewandtnisganzheit) ou "região do mun­ do", na qual a existência extravaga. Só pode extravagar e enras­ car-se (sich v erst eigen) o alpinista que não tem uma visão de conjunto da estrutura do despenhadeiro que está escalando. Assim 30 Binswanger, L.; Estudos 1 a 4 sobre o problema da esquizofrenia, Schweiz. Archiv /. Psychiatr. u. Neur., t. 53-7Í. 31 Talvez não seja supérfluo ressaltar que, como já o formulou Hein­ rich W ölfflin em sua dissertação tão importante; Prolegomena zu einer Psychologie der A rchitektur (Kleine Schriften, p. 23, Basiléia 1946), "a imagem de nossa existência física" se apresenta sempre como o "tipo" segundo o qual julgamos todo o outro fenômeno. Isso já é válido antes de mais nada do "tipo" segundo o qual a linguagem apreende e denomina "todas as outras manifestações” de nossa existência. Mas a linguagem só consegue fazê-lo porque ao contrário do entendimento que analisa e sepa­ ra ela vê nossa existência em sua unidade e indivisa. Por isso não deve­ mos dizer que a linguagem "materializa" os "modos de manifestação" imateriais de nossa existência. Muito antes ela já vê nas manifestações materiais as psíquicas e espirituais, assim como vê ainda nas últimas as manifestações materiais.

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também, só pode extravagar e enrascar-se psíquica e espiritual­ mente a pessoa que não tem nenhum discernimento da estrutura da ''hierarquia" das possibilidades da existência humana em geral e que, na ignorância delas, se põe a subir cada vez mais alto. Por­ tanto, a extravagância jamais pode ser compreendida a partir da subjetividade apenas, mas somente na conjunção da subjetividade (transcendental) com a objetividade (transcendental). O que cha­ mamos de terapia, no fundo, consiste tão-somente em levar o doente até um ponto onde ele consiga "ver" como está constituída a estrutura total da existência humana ou do ''ser-no-mundo" e em que ponto dela extravagou. Ou seja; resgatá-lo da extravagân­ cia, trazendo-o de novo "à terra", que é o único ponto a partir do qual se pode tentar uma nova partida e uma nova escalada. O que aqui tentamos foi apenas indicar algumas diretrizes para a compreensão do sentido antropológico da extravagân­ cia. Para não nos estendermos demais, limitamo-nos predominan­ temente à sua interpretação espacial, deixando em segundo plano a interpretação temporal, que, no fundo, é muito mais importante. É óbvio, porém, que ela está sempre implicada justamente em ex­ pressões como amadurecimento, decisão, discursividade, saltar por cima, ser elevado, ''subir os degraus da escala", estar atolado e, finalmente, nas expressões ''proporção" e ''desproporção antropo­ lógica''. Afinal, altura e amplidão da existência significam tão-so­ mente dois esquemas ''especiais" para um único vetor de temporalização da existência humana finita, razão por que só "conceptualmente" se deixam separar.

A E X C E N T R IC ID A D E *

A clínica psiquiátrica e a Psicopatologia continuam hoje ainda, em larga medida, a se mover dentro dos horizontes de compreen­ são ainda obscuros da linguagem coloquial e dos modos de inter­ pretação e formas de enunciação nela pré-formados. Mas o que basta para a "prática" ordinária, a expressão e a comunicação lin­ * N ota preliminar do tradutor; A palavra alemã que traduzimos por excentricidade é Verschrobenheit. Assinalemos, porém, antes de mais nada, que o alemão também conhece a expressão sinônima Exzentrizität. Ora, como costuma acontecer com os sinônimos, não se pode dizer que suas significações sejam perfeitamente idênticas, dado que podem, conforme o contexto de seu uso, ativar conotações, produzir "efeitos de sentido" dife­ rentes devido ao modo figurado ou metafórico pelo qual cada uma, em virtude de sua etimologia, "designa" ou “significa" a "mesma coisa". Por isso mesmo é com reservas e na falta de melhor que traduzimos Versch­ robenheit por excentricidade. Mas por isso mesmo tamhém nos sentimos obrigados a chamar a atenção do leitor para a etimologia desses termos, a fim de esclarecer o modo — figurado — como cada um designa a "coisa", isto é, o comportamento humano em questão. E xcêntrico/exzen­ trisch descreve, corno é fácil de se ver, o caráter estranho, incornum, esquisito, anormal do comportamento em questão em termos de um desvio ou afastamento de um centro, de um ponto em torno do qual normal­ mente gira o comportamento das pessoas. Já verschroben, que é o particípio passado do verho (arcaico) verschrauben = aparafusar, enroscar mal, errado ou ao contrário, descreve o comportamento estranho, esqui­ sito, em termos de um desajuste do “mecanismo" psíquico humano. Assim, verschroben aproxima-se mais de expressões como “ter um parafuso frou­ xo, ou a menos", aliás também existentes em alemão (cf.; "Bei ihm ist eine Schraube los, oder locker" = ele tem um parafuso solto, ou frouxo). Notemos, para terminar, que o alemão também pode designar uma pes­ soa que, em português, diríamos “maluca”, “gira", “pancada” como “eine verdrehte Schraube” (isto é, um parafuso girado, torcido ou enroscado mal, errado, ao contrário), ou pura e simplesmente como “die Schraube" (por exemplo; “Was hat die alte Schraube gesagt?” = O que é que a ve­ lha maluca disse?).

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güísticas de nossas "impressões" através de palavras, maneiras de dizer, metáforas, símbolos usuais, isto é, provenientes da lingua­ gem da vida quotidiana, não é bastante para a compreensão ontológica da ciência. É bem verdade que a compreensão científica do ser, a tematização científica (Heidegger), se apóia e se cons­ trói sobre os projetos de compreensão pré-científicos da lingua­ gem coloquial, sobre o respectivo domínio objetivo por eles expli­ citado e sobre a linguagem conceptual neles pré-formada. Não é menos certo, porém, que só podemos falar de semelhante constru­ ção, logo, de uma tematização científica, quando podemos exami­ nar e aclarar os horizontes de compreensão e interpretação "in­ gênuos", isto é, ainda obscuros, da linguagem coloquial, sua conceptualidade e seu "vocabulário", quanto a sua origem antropo­ lógica e ontológica e, assim, quanto a seu alcance científico (sua "legitimidade") e sua conformidade ao domínio temático respecti­ vo (sua "adequação''). Muito longe de constituir tão-somente uma questão filosófica, só um semelhante exame, aclaramento e refle­ xão sobre o sentido Vem abrir caminho para o progresso de cada investigação científica especializada. Assim desaparece a confiança ingênua nas palavras, signifi­ cações e conceitos correntes da linguagem ordinária e sua com­ preensão ontológica em geral. Nos limites da clínica e da psicopatologia psiquiátrica, o ponto onde isso se deixa melhor compro­ var é assinalado pela tríade; extravagância, excentricidade, amaneiramento. Muito embora essas palavras pareçam remeter a uma conexão objetiva — a tal ponto que freqüentemente as usamos indistintamente até mesmo na prática científica —, a coisa mesma significada por elas ainda não está clara para nós, assim como tampouco o estão as diferentes nuanças nas quais a coisa mesma Vem a se expressar nas três significações Verbais mencionadas. O ■"sentido antropológico da extravagância" veio várias vezes à baila em nossos estudos sobre a esquizofrenia publicados no Schweizer Archiv für Psychiatrie und Neurologie, tendo sido submetido a uma discussão especial em um pequeno tratado publicado na re­ vista Nervenarzt (20.° ano, 1949, 1.° cad.). No que concerne ao amaneiramento, reservamos sua investigação para um momento posterior e, enquanto isso, propomo-nos examinar neste estudo a excentricidade. Lancemos primeiramente um olhar sobre a maneira pela qual a clínica psiquiátrica e a Psicopatologia procuram fazer da neces­ sidade da limitação à linguagem coloquial uma virtude científica; a clínica, mediante o acúmulo de expressões e Perífrases sempre renovadas com o objetivo de caracterizar os Psicopatas excêntri­ cos; a Psicopatologia, pela busca de uma ''fórmula'' ou ''figura

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fundamental", de uma "postura total" ou de um "humor funda­ mental" (Gruhle) com o objetivo de explicar a excentricidade esquizofrênica. Numa segunda parte, nosso objetivo é avançar até uma compreensão existencial-analítica da excentricidade enquanto fenômeno antropológico.

A.

1.

C lín ica e P sic o p a to lo g ia Os Psicopatas Excêntricos

Vamos primeiramente passar em revista as expressões com que se costuma designar na literatura clínico-psiquiátrica de lín­ gua alemã os ''psícopatas excêntricos" (''excêntricos originais" ou "degenerativos", ''fanáticos excêntricos"), seus modos de expres­ são e comportamento, suas maneiras de pensar, bem como suas peculiaridades de sentimentos e da vontade. Limitamo-nos, para isso, aos tratados e conferênc/as de Koch,32 Dickhoff,33 Birn­ baum,34 Sterz,35 Eugen Kahn,36 Kurt Schneider,37 bem como aos manuais de Kraepelin,38 Bleuler39 e Bumke.40 41 Encontramos 32 Koch J. L. A.; D ie psychopathischen Mindewertigkeiten. Ravensburg 1891/93. 33 Dickhoff Chr.; Allg. Z. Psychiat. 55, 215, 1898. 34 Birhaum, K.; Mschr. Psychiat. Neurol. 21, 308, 1907. 35 Stertz, G.; Verschrobene Fanatiker, Berliner Klin. Wschr. 1919. 36 Kahn, E.; Die psychopathischen Persönlichkeiten. Handbuch der Geis­ teskrankheiten, org. por Bumke, t. 5, parte 1, pp. 448 ss.» 1928. (Os psicopatas excêntricos.) 37 Schneider C.; Die psychopathischen Persönlichkeiten, Fanatische Psy­ chopathen. 4.® ed., p p . 76 s s ., 1940. 38 Kraepelin, E.: Psychiatrie, t. IV, parte 3, pp. 2039 ss., 8.a ed. (Oa excêntricos). J. A. Barth, Leipzig 1915. 39 Bleuler, E.: Lehrbuch der Psychiatrie. 4.a ed., pp. 369 ss. SpringerVerlag, Berlim 1937; 8.a ed., p. 397. (A excentricidade.) 40 Bumke O.; Lehrbuch der Geisteskrankheiten, l . a ed., Bergmann, Munique 1924; 7.a ed., 1948. 41 Na edição mais recente de 1948, os excêntricos desaparecem na gran­ de massa dos "psicopatas associais", que é "tão multiforme e variegada, que não é possível classificá-la em diferentes formas" (p. 130). Os excên­ tricos fazem parte aqui dos esquizoides "próximos à família hereditária esquizofrênica", entre os quais, porém, encontram-se "muitos esquizofrê­ nicos dissimulados". Os esquizóides são comumente "formais, comedidos e, até mesmo, às vezes, solenes e algo apavonados, mas sempre de tal maneira que toda familiaridade é cortada pela raiz. De todo modo fre­ qüentemente retraem-se autisticamente para dentro de si mesmos" (p. 13l i .

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aqui expressões como torto ou distorcido (schief) (''compreen­ são distorcida da situação", ''operações lógicas distorcidas"), como, por exemplo, em Bleuler, que aí segue Birnbaum e Kraepelin. Além disso, expressões como ''unilateral, exagerado, exaltado, excêntrico, estudado, sem naturalidade, extravagante, obstinado, mal-humorado, maluco, fechado, autista, alheio ao mundo, cheio de manias, formal-cerimonioso, contraditório, fantasioso, fanático, in­ transigente, contraído, forçado, frío, cheio de arestas, desgracioso, atravessado, meticuloso, sistemático, incapaz de discutir, intratá­ vel, arredio, teimoso, inflexível, difícil de tratar, egocêntrico, com planos de coisas fora da norma ou muito remotas, demonstrando compreensão e elaboração errôneas das impressões externas", e outras semelhantes. Em seguida encontramos expressões que, como se mostrará em outro lugar, pertencem ao domínio do ama­ neiramento, tais como "rebuscado, afetado, apavonado, arrevezado, empolado". Muitas vezes também é só a impressão do desvio en­ quanto tal que é ressaltada, como ocorre em expressões tais como "difícil de compreender, estranho, esdrúxulo, singular, esquisito, imprevisível, surpreendente". Birnbaum fala (loc. cit., p. 308) da "composição desigual e desarmonica", que a imagem total da ex­ centricidade exibe em razão do caráter distorcido, unilateral, exagerado das ''exteriorizações espirituais fortemente marcadas". Kraepelin e Bleuler falam da ''falta de unidade e conseqüência internas" na vida psíquica dos excêntricos. É particularmente interessante que Bleuler sublinhe expressa» mente, na sucinta menção que faz da excentricidade em seu ma­ nual, que os excêntricos são "os únicos entre aqueles que sofrem de aberração constitucional nos quais a afetividade não está mani­ festamente perturbada de maneira exclusiva ou p r i n c i p a l Por isso, também não nos admiramos de que a excentricidade aparen­ temente não tenha por base nenhum estado de ânimo unitário. Assim, Kraepelin refere-se ao humor dos excêntricos como "em geral alegre, mas às vezes também deprimido, desconfiado, ir­ ritado" (loc. cit., p. 2039). Mas o mesmo vale também para o temperamento. Pois, como vimos, os autores constatam nos ex­ cêntricos tanto um temperamento estênico, expansivo, ativo, com­ bativo, quanto um temperamento astênico, desanimado, passivo.42 Por conseguinte, se nem a afetividade, nem o humor, nem o tem42 Falar de fanáticos desanimados (m att) ou passivos não nos parece a nós mesmos, é verdade, muito recomendável, posto que se afasta muito da maneira usual de sentir a língua. Pois a linguagem coloquial liga à expressão fanático algo de ativo, ou mesmo combativo, e, em todo caso, um apego tenaz e uma vontade enérgica de se impor.

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peramento — essas três bases essenciais da "personalidade" no sentido da Psicopatologia — são decisivas para as personalidades excêntricas, então é natural por isso mesmo compreender a essên­ cia da excentricidade, não a partir do conceito da personalidade (mesmo porque se trata de um conceito tão impreciso e ambíguo), mas, sim, a partir de sua maneira peculiar de ser-aí ou ser-nomundo. 2.

Excentricidade e Esquizofrenia

O fenótipo da excentricidade no sentido de uma constituição psicopática e o da excentricidade, no sentido de um processo esquizofrênico, exibem tamanha semelhança que a maioria dos au­ tores enxerga esquizofrênicos nos excêntricos. Assim, Kraepelin constata que há "de fato um sem número de personalidades excên­ tricas; contudo a maioria delas revela-se como etapas preliminares, casos leves ou estados finais da dementia praecox”. Parece-lhe, porém, "não estar excluído" que a excentricidade tenha "eventual­ mente também" uma outra significação clínica. No entanto, o grupo de psicopatas excêntricos que ele tentou delimitar e que abrangia apenas um pequeno número de casos não trouxe apoio à suposição de um fundamento esquizofrênico, e isso por duas ra­ zões : primeiro, por causa da "manutenção satisfatória de uma abordagem descontraída'', depois por causa da ''tara psicopática imediata extraordinariamente pesada" em comparação com a dementia praecox. Talvez, acha Kraepelin, com o progresso da ex­ periência, venha a ser possível ''distinguir com maior precisão as peculiaridades da excentricidade esquizofrênica e da excentricidade psicopática (loc. cit., p. 2048). Quanto a isso, porém, deve-se observar que a manutenção satisfatória de uma abordagem des­ contraída pode também se encontrar entre os esquizofrênicos leves, principalmente no caso da schizophrenia simplex. No entanto, os esquizóides são considerados pela maioria dos autores (cf. também Bumke, p. 196) como pertencentes à família hereditária esquizo­ frênica. Mas, sobretudo, observemos que a consideração biogenética, tão importante para a clínica, naturalmente em nada nos pode adiantar para a compreensão da essência antropológica da excen­ tricidade. Se e em que medida a compreensão existencial-analítica da excentricidade pode nos colocar em condição de confirmar ou não a esperança de Kraepelin é algo que só depois poderemos ver. Também Bleuler explica que ''modos distorcidos de apreensão das relações, operações lógicas distorcidas, modos de ver e, fre­

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qüentemente também, modos de se expressar esdrúxulos aproxi­ mam exteriormente'' os excêntricos ''dos esquizofrênicos latentes, dos quais não são ainda facilmente separáveis, muito embora seja certo que semelhantes tipos também possam se fundar sobre uma anomalia inata'' (loc. cit., pp. 386 ss.). Kahn chama a atenção para o fato de que a maioria dos psicopatas excêntricos não têm formas físicas pícnicas, principalmen­ te leptosômicas ou astênicas. Eis aí, certamente, uma das mais fundamentais razões explicativas de sua "motricidade, que não raro chama a atenção, grosseira, contraída, desgraciosa". Encontramos aqui mais uma característica que os Psicopatas excêntricos têm em comum com muitos esquizofrênicos. Contudo, por mais que os clínicos enfatizem a proximidade entre a excentricidade psicopática e o processo esquizofrênico, por um lado, e a dificuldade freqüentemente insuperável de sua deli­ mitação, por outro lado, é muito raro, estranhamente, que encon­ tremos as expressões excêntrico ou excentricidade nas descrições da esquizofrenia. Essas expressões têm, portanto, que estar aqui substituídas por outras. Bleuler não usa, se não me engano, nem em sua monografia, nem na descrição da esquizofrenia no tratado, as expressões excêntrico e excentricidade. Kraepelin emprega-a aqui apenas esporadicamente, e o faz para caracterizar certas "al­ terações estranhas" dos movimentos expressivos. Ele fala, por exemplo, de "uma entonação bem excêntrica, ora cantante ora im­ perativa, ora aos arrancos ora de maneira desconexa" (loc. cit., III, 2, p. 817), de locuções e neologismos excêntricos (ibid., p. 819) e de excentricidades nos escritos dos doentes (ibid., p. 845). Se nos perguntarmos que expressões são usadas aqui ao lado de e em lugar de "excêntrico", encontraremos as seguintes expressões, que já conhecemos da descrição dos psicopatas excên­ tricos; "esquisitões maníacos" (ibid., p. 765, para a caracterização dos que sofrem de schizophrenia simplex), as expressões rude, tosco, grosseiro, afetado, desconcertante (pp. 816 e 819 para a ca­ racterização de movimentos, gestos ou saltos repentinos do pen­ samento catatônico), as expressões "arrevezado, muito estranho, complicado, amaneirado" (p. 844 para a caracterização de mani­ festações lingüísticas dos paranóides). Na monografia de Bleuler, encontramos sob a rubrica da schizophrenia simplex e da esquizo­ frenia latente as expressões intratável, irritadiço, caprichoso, es­ tranho, dando na vista, "tomando desajeitadamente entre as mãos", solitário, "exageradamente pontual", etc. (p. 195). Na descrição de estados catatônicos, encontramos para os "movimentos" as ex­ pressões "de maneira estranha", "como em geral não se faz", para a expressão de sentimentos e gestos palavras como ‘caricatural, caretas, trejeitos. Na descrição da linguagem dos esquizofrênicos,

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fala-se de anormalidades de estilo, linguagem empolada, etc. (pp. 129 ss.). Como no caso dos Psicopatas excêntricos, encontra­ mos aqui, naturalmente, "a incapacidade de levar em conta a reali­ dade", o autismo (p. 55) e, sobretudo, o artificial e apavonado, inadequado, insuficientemente modulado, reunidos sob a rubrica: ''Os jeitos amaneirados" (p. 157). A incapacidade de modulação é enfatizada mais uma vez e de modo particular no domínio da afetividade (p. 34). Ao mesmo tempo, ressalta-se a falta de unida­ de da exteriorização emocional (p. 33). No tratado, onde no es­ sencial encontramos as mesmas expressões que já encontramos na monografia, é usada a expressão, também já conhecida nossa, da rigidez afetiva (6.a ed., p. 285). Na apresentação da esquizofrenia do tratado de Bumke ( l.a ed.), também é raro encontrarmos a expressão excêntrico, por mais que Bumke acentue aqui também (cf. de novo acima, p. 196), que a excentricidade é ''aquela forma da psicopatia que talvez seja a mais difícil de se distinguir da esquizofrenia'' (p. 930). Muitas "psicopatias", nas quais "o quadro é caracterizado predominante­ mente pela teimosia, pela excessiva meticulosidade, pela rigidez dos modos de ver, frieza de sentimentos, hábitos excêntricos e ações imprevisíveis", pertencem ''na verdade", com toda probabilidade, à esquizofrenia. Aqui encontramos a excentricidade sob as rubricas "bizarria e rigidez do pensamento" (no sentido de Bleuler), sob a rubrica "falta peculiar de elasticidade" (pp. 870 ss.), bem como na discussão da "linguagem guindada" (" Stelzensprache”), uma linguagem "que exprime grandes pretensões sob forma bizarra" e pode se desenvolver até se transformar numa linguagem parti­ cular que acaba por substituir a língua materna (p. 878). Na 7.a edição também, a excentricidade dos esquizofrênicos está abonada com expressões que em larga medida serviram para a caracteriza­ ção da bizarria, do arrevezamento e da afetação — no fundo, por­ tanto, para o amaneiramento — dos Psicopatas "esquizóides". Entre os trabalhos de língua francesa, temos que citar também a monografia de nosso amigo Eugen Minkowski, entitulada; La Schizophrenie e trazendo o subtítulo; Psychopathologie des schi­ zoides et des schizophrenes 43 Vemos aqui a excentricidade, como mostram de maneira evidente os exemplos apresentados, tratada sob a rubrica "L'Autisme", e tratada em primeira linha sob o tí­ tulo da "activité autiste", da "démence" ou melhor ainda; ''déficit pragmatique” (pp. 101 ss.). Ao pensar e sentir autistas opõe-se aqui com toda razão o agir autista, sem o qual não se esgota o 43 Minkowski, E.; La Schizophrénie, Psychopathologie des Schizoides et des Schizophrènes. Payot, Paris 1927,

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conceito do autismo. E é a esse agir, enquanto "activité primitivement autiste", que se atribui de novo, com toda razão, o papel possivelmente decisivo na vida anímica esquizofrênica; “C’est peut-être elle qui constitue la clef de voute de toute la Schizophre­ nie" (p. 157). Foi somente por se ter desprezado essa “activité autiste” que se pôde identificar o autismo e a interiorização ( = devaneio ''passivo", absorção da personalidade pela vida interior, por complexos e fantasias) (ibid.). Minkowski, porém, recusa-se expressamente a dizer que, na ''activité autiste", se trata de atos de vontade isolados ou da vontade em geral (cf. em oposição a isso, mais abaixo, a concepção de Gruhle) ; "Ce qui importe ici avant tout c’est la façon dont les buts et les actes s’enchmnent et se rattachent les uns aux autres, la façon dont i/s s’extériorisent et s’adaptent an mouvment ambiant, leur opportunité, le degré de lear rnalléabilité au moment de Vexecution, etc. En un mot, nous devrons prendre pour objet de nos etudes la personnalité humaine toute entiere dans son dynamisme vivant” (p. 161). Em outras ocasiões, Minkowski fala também muito acertadamente de atos sans lendemain (p. 155, p. 165), logo, de atos que não têm con­ seqüências, mas que, ao contrário, ''vão morrendo" apesar da ener­ gia despendida. No resultado do agir, Minkowski mostra de ma­ neira particularmente clara o caráter inadequado, contraditório, es­ tranho da excentricidade — "activité autiste”. Assim, diz o se­ guinte do piano novo, bonito, caro, que a esposa de um funcioná­ rio adquiriu para os filhos, apesar dos conselhos em contrário do marido; “Le piano est la. Il jure avec le restant du mobilier, avec toute la vie du ménage, il est là comme un étranger, comme chose morte sans lendemain” (pp. 154 ss.). Aqui o autor sai, mais uma vez com razão, da esfera noética para a esfera noemática; a con­ tradição dos atos converte-se na contradição, no “jurer-avec" das coisas, o “acte sans lendemain” em “la chose sans lendemain”, e com toda razão, porquanto as duas esferas são inseparáveis e por­ que a exposição só ganha em clareza e justificação ao se ater à coisa, ao "mundo". De resto, Minkowski recorre sabidamente ao "élan vital" de Bergson e à perda do "contact vital avec la réalité" no sentido de Pierre Janet. Ao contrário das exposições clínicas representativas em lín* gua alemã da esquizofrenia, mas em consonância com a exposição da Psicopatologia da esquizofrenia e da esquizoidia por E. Min­ kowski, o fenômeno da excentricidade enquanto tal passa para o primeiro plano na Psicologia da Esquizofrenia de Gruhle.44 À con­ 44 Berze, J. e H. W. Gruhle; Psychologie der Schizophrenie. J. Springer, Berlim 1929.

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cepção puramente "orgânica" — e seguramente insustentável — da linguagem esquizofrênica, tal como defendida sobretudo por Kleist, Gruhle opõe uma concepção psicológica. Gruhle não vê nas peculiaridades lingüísticas esquizofrênicas nenhuma incapacidade (orgânica) à maneira das perturbações afásicas ou apráticas, mas, sim, um “outro querer". Se, por exemplo, um esquizofrênico diz que "a mariposa bruxeia" ("der Schmettering faltre”), não há aqui traço algum de afasia, mas, sim, ''um trocadilho divertida­ mente excêntrico entre a palavra 'mariposa' e a palavra 'bruxa', que ''a mariposa bruveia" ( “der Schmetterling faltre”), não ha estão no limite do amaneiramento, como por exemplo: "escada = intermediário necessário da abóbada da casa") pertencem segun­ do Gruhle ao domínio das excentricidades, do gracejar. ''Não um defeito, mas, sim, um 'outro querer'" (p. 118). As explanações de Gruhle adquirem um particular interesse para nós quando ele se esforça por exibir uma espécie de ''fórmu­ la" ou ''figura fundamental", um ''humor fundamental" ou uma ''postura total" esquizofrênica, logo uma estrutura específica do ser-aí esquizofrênico (pp. 149 ss.). Em conseqüência, ele não se contenta de modo algum com a constatação da "impressão imedia­ ta, que muitas vezes permite à pessoa experimentada fazer o diag­ nóstico de um esquizofrênico à primeira vista''. Não se contenta, pois, com a constatação do "sentimento da praecox” (Rümke), mas passa, além disso, a exibir ''fatores objetivamente caracterís­ ticos da postura total" (do esquizofrênico). Assim, ao se mencio­ nar pela primeira vez a palavra excentricidade, o que se tem em mente não é tanto um sintoma individual quanto uma ''caracterís­ tica da postura total em todos os domínios da atividade", no do­ mínio dos hábitos quotidianos, da esfera expressiva total, das re­ lações com a técnica de vida, com a ciência e a arte. Topamos aqui com expressões já conhecidas: tudo é aqui ''singularmente amalucado, amaneirado, estudado, sem liberdade, dez vezes sobredeterminado". Já ao designarmos alguém na vida quotidiana como ex­ cêntrico, por exemplo uma solteirona, o que temos em mente com isso é algo de "estudado, incompreensível, não natural'', algo de "exagerado, inadequado, não usual", ao que acresce ainda o pro­ posital, intencional. (Vê-se que Gruhle quer deixar de lado o "fator pejorativo" [axiológico] inerente à palavra excêntrico, o qual, como ele próprio diz, gostaria de ver substituído por "o outro''.) A componente maís importante da excentricidade é, para ele, o "deli­ beradamente invulgar", e é aqui que se encontra, a seu ver, "a chave para sua compreensão". "O esquizofrênico quer opor-se, toma sempre uma posição esquerda. Muito embora não seja total­ mente anti-social, é, no entanto, contrário às tradições, anticonven-

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cional. Mesmo nos processos hebefrênicos improdutivos, encontra­ mos sinais disso; o inculto passa a empregar a escrita latina, escre­ ve sempre sobre as linhas, fala sempre em alto alemão — o culto orna de arabescos sua escrita, usa locuções incompreensivelmente complicadas. Não se pode negar que essa atitude tem semelhanças com o espírito de contradição" (p. 151). Mas Gruhle vê também, e com razão, no ''comportamento contrário" do esquizofrênico, no negativismo, ''apenas um caso especial de sua excentricidade e des­ vio geral". E isso resulta certamente ''do sentimento fundamental alterado", "do humor esquizofrênico fundamental". Gruhle enten­ de manifestamente as últimas expressões num sentido muito am­ plo, mais existencial do que descritiVo-psicológico, e isso mais uma vez com razão. Pois, como já se observou, parece estar de antemão desprovida de toda perspectiva de sucesso a tentativa de derivar a "postura fundamental" esquizofrênica, modulada em um número infinito de humores, a partir de um determinado sentimento ou humor. Assim, continua ele em conformidade ainda com sua in­ tenção; "Assim, entendo sua excentricidade (do esquizofrênico) como um fator expressivo, a saber, da completa alteridade, do isolamento, da solidão — de certo não somente como expressão involuntária, mas como um desvio deliberado. É como se o esqui­ zofrênico fizesse aqui da necessidade uma virtude, não para se vingar da sociedade, mas apenas a fim de, por assim dizer, regalar-se, dar largas a suas energias em sua maneira peculiar de ser. Muitas obras de arte esquizofrênicas oferecem um exemplo disso.'' "Do mesmo modo como muitas formas do negativismo podem ser entendidas como casos especiais da excentricidade, o mesmo, a meu ver, vale para o autismo" (ibid.). Gruhle menciona ainda, porém, uma outra possibilidade da "proveniência" das "excentricidades", a saber, o distúrbio intelectual. É verdade que ele não teria nada aqui a objetar contra a hipótese de uma ''interação", a saber, con­ tra a tentativa de também derivar da excentricidade o transtorno intelectual, por conseguinte, contra a tentativa de ver no pensa­ mento esquizofrenicamente perturbado nada mais que um pensa­ mento excêntrico. Todavia, enquanto, segundo ele, o doente padece o distúrbio ("elementar") do pensamento, não conseguindo elimi­ ná-lo e tendo que suportar um grave sofrimento por causa dele, todas as formas da excentricidade seriam, antes, algo a que ele dá seu assentimento como adequado, mas que também poderia deixar de lado. "Justamente o fato de a excentricidade provir de diferen­ tes distúrbios e, assim, do novo retroagir sobre eles, parece-me falar me favor da concepção segundo a qual devemos analisar uma situação esquizofrênica total, sem imaginar, porém, que uma psiquê

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normal se veria em face de diversos sintomas esquizofrênicos pro­ curando de alguma maneira dominá-los" (p. 152). A partir de tudo isso, vemos como é importante descrever e compreender a essência antropológica da excentricidade, a fim de não nos deixarmos prender na descrição e ''explicação" de seus múltiplos modos de efetuação. Gruhle já se aproxima da concep­ ção existencial-analítica ao empreender exibir algo como uma es­ trutura da excentricidade. Contudo, sua distinção entre o ''outro querer" intencional no sentido da excentricidade e o ter que, pade­ cer ou "não/>oder-fazer-outra-coisa" não deve desempenhar ne­ nhum papel decisivo para a concepção antropológica. Pois a con­ sideração antropológica tem precisamente que compreender o que significa existencial-analiticamente aquele ''outro querer", ou por outras, precisa compreender como deve estar ''constituído" um ser-aí que ''quer de outra maneira", de maneira diferente dos ou­ tros. Esse querer também é algo que o ser-aí esquizofrênico padece, que se ''impõe" a ele, mesmo que o esquizofrênico não tenha sem­ pre, de modo algum, que querer isso. O importante para a concep­ ção e descrição psicopatológica, a saber, a alternativa; intenção ou distúrbio primário (''elementar") do pensamento desaparece na concepção existencial-analítica. Esta tem em vista a existência in­ teira, tendo-a em vista, por conseguinte, também em seu estar-jogado (Geworfensein), e não pergunta o que é primário e o que é secundário e nada quer explicar. Para ela, a excentricidade é uma maneira de ser na qual o ser-aí está jogado sem sua interven­ ção, não importando se essa situação se anuncia em intenções ou numa necessidade não-intencional. No mais, também Gruhle acentua a tendência geral a ver es­ quizofrênicos latentes em muitos dos excêntricos originais. O es­ quizofrênico mostrar-se-ia, porém, a partir do mundo comum (Mitwelt) — mesmo se faltasse todos os outros sintomas grossei­ ros e ao contrário dos psicopatas — como "estranhamente afas­ tado, frio, impenetrável, contraído, amarrado", de tal maneira que não conseguiríamos "jamais vir a compreendê-lo adequadamente'' (p. 154). O que há em comum entre o pubescente normal e o es­ quizofrênico é, segundo ele "a inversão (Umwertung) de todos os valores e a estranha maneira de ser que daí decorre". Mas, en­ quanto podemos penetrar por empatia no pubescente — um crité­ rio ao qual Jaspers atribui sabidamente um valor tão alto, a nossos olhos demasiado alto —, ao fator subjetivo da "cosmovisão" do esquizofrênico e ao fator objetivo de sua excentricidade acresce ainda, como terceiro fator, a impossibilidade da compreensão empatica a título de característica do estado esquizofrênico total (ibid.). Nós próprios somos da opinião de que esse terceiro fator

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muitas Vezes falha ao fazermos um diagnóstico diferencial, e isso justamente no caso da esquizofrenia latente e da schizophrenia simplex.

As coisas se passam de maneira muito diferente do exposto por Gruhle, quando Carl Schneider expõe a psicologia da esquizo­ frenia.4'5 Schneider aproxima-se, é Verdade, das concepções de Gruhle quanto à excentricidade como um ''outro querer" em suas análises perspicazes, às Vezes até mesmo excessivamente minucio­ sas (p. 199). No mais, porém, trilha caminhos bem diferentes. Entre as "características configuracionais do falar esquizofrênico", menciona as paralogias, os neologismos e, em terceiro lugar, o "jei­ to bizarro e excêntrico" (p. 37). Acresce a isso ainda, em terceiro lugar, a "linguagem quindada", o "retorcimento da expressão" (Bumke), o que, porém, assim como o jeito bizarro em geral, já se encontra a nosso Ver nas Vizinhanças do amaneiramento. A isso liga-se, então, uma série de estereotipias e jeitos arnaneirados no domínio da linguagem esquizofrênica, bem como as características não-específicas relativas ao modo de colher impressões ocasionais, de ir e vir em torno dos mesmos estados-de-coisas, de abordar um tema, e as relativas ao estilo telegráfico. Por mais minuciosas que sejam essas distinções, nem por isso se pode ignorar que elassão, em parte, exageradas, artificiais e não convincentes. Em todo caso, encontramos, na maioria dos "documentos lingüísticos" esquizofrê­ nicos pormenorizados, todas as transições entre uma e outra ca­ racterística. Em Schneider, voltamos a encontrar a excentricidade entre as ''características configuracionais do pensamento esquizofrênico, mais precisamente, ao lado da rigidez (Bleuler), da solturae l berdade do mesmo (p. 56). Quanto às características formais,es pensamento remete a coisas como o lapso, a substituição, a fusão, o palavreado delirante, sendo que para Schneider o palavreado vem em primeiro plano. Essas últimas características seriam desprovi­ das de sentido, não seriam determinadas pelos contextos-de-sentido e teriam uma natureza independente dos estados-de-coisas do pensamento. Também essa oposição entre o dotado e o destituído de sentido — importante, é verdade, para a psicologia, mas difícil de se decidir tanto em geral quanto no caso particular — torna-se, tal como a oposição gruhleana entre intencional e não-intencional, irrelevante para a análise existencial. O que importa para ela está além ou aquém dessa distinção. 45 Schneider C.; Die Psychologie der Schizophrenen. G. Thieme, Leip­ zig, 1930.

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Além disso, encontramos a excentricidade mencionada no ca­ pítulo "Da expressão na esquizofrenia", mais precisamente entre as características configuracionais da expressão. Schneider separa aqui o bizarro e o excêntrico. Para a excentricidade, apresenta um único exemplo, que só artificialmente se pode separar da bizarria, mas que é muito impressionante, a saber; um texto no qual uma doente, aliás muito ponderada em outras situações, coloca sempre, sem dar nenhuma justificação, um r em Vez do u (assim Wrnsch em vez de Wunsch [desejo], Zergnisse em vez de Zeugnisse [tes­ temunhos], arch em vez de auch [também], Arshändigung em vez de Aushändigung [entrega], Frndgegenstände em vez de Fundgegenstände [objetos achados]). Em semelhante excentrici­ dade, poderíamos observar o concurso das seguintes característi­ cas ; seqüências de pensamentos difusas, fixação em determinados comportamentos e substituições compulsivas. Está claro, porém, que, neste exemplo precisamente, não se pode chegar sem uma exploração pacientíssima a urn juízo e, assim, a uma "explicação". Os pontos de vista a partir dos quais Carl Schneider analisa as vivências e o processo esquizofrênicos são, de fato, abrangen­ tes. Estão dirigidos para o contexto dos conteúdos vivenciais, para os modos de apresentação, o processo expressivo, o contexto psí­ quico e o quadro das performances. É a partir desses pontos de vista que os "sintomas" esquizofrênicos são agrupados, analisados e compreendidos clinicamente. Uma quantidade enorme de finíssi­ mas distinções clínicas e fenomenológicas e um gigantesco aparato conceptual surgem aos nossos olhos. Esse todo não pode, segundo C. Schneider, de modo algum ser "intuído", mas tão-somente in­ ferido a partir das formas e variedades de expressão existentes. A esse todo ele chama "estado imediatamente vivenciado da vida psí­ quica'' ; ''Chamamos esquizofrênico a um estado das vivências psí­ quicas imediatas, quando ele pode ser caracterizado pela impenetrabilidade, volatilidade e indelimitabilidade, com o predomínio da impenetrabilidade" (pp. 279 ss.). A esse estado "correspondem", então, os sintomas esquizofrênicos individuais classificados segun­ do os pontos de vista acima mencionados. Mas por trás desse sis­ tema total da esquizofrenia enquanto doença — sistema esse erigi­ do com grande energia construtiva — desaparece, de fato, o es­ pecificamente esquizofrênico no sentido de um todo intuitivo. Mas será que podemos falar aqui em todo intuitivo? Em seu estudo sobre Strindberg e van Gogh,46 47 de 1922, onde podemos ver até hoje uma obra-prima sem igual em toda a 46 Jaspers, K.; Strindberg und van Gogh. E. Bircher-Verlag, Bem a, 1922. 47 N o índice da Psicopatologia Geral de Jaspers não se encontra a pala­ vra excentricidade (iVerschrobenheit). Ela aparece aí substituída pela pala-

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literatura psiquiátrica, explica Karl Jaspers; " 'Esquizofrenia' não é um conceito preciso, mas, em compensação, é um conceito infi­ nitamente rico, que assume em diferentes contextos diferentes significações. Ora designa todos os processos que são irreversíveis e que não são processos cerebrais orgânicos conhecidos do cérebro ou epilepsia, ora designa um modo de vivenciar a ser apreendido psicológico-fenomenologicamente, um mundo inteiro de estranha existência psíquica, para cujos detalhes já se encontraram nume­ rosos conceitos mais precisos, sem que se consiga caracterizá-lo satisfatoriamente como um todo. Trata-se de uma realidade enor­ me, que não identificamos mediante 'características' simples, tan­ gíveis, objetivas, mas, sim, como uma totalidade psíquica individual (cuja existência, em todo caso, o conhecedor deduz às vezes a partir de diferentes 'sintomas' por ele conhecidos, muito embora essa inferência permaneça incerta enquanto esse todo não se torna intuitivo para ele)" (pp. 123 ss.). É desse ponto que parte, agora, Jakob Wyrsch numa confe­ rência muito importante, intitulada "Sobre a Intuição na Identifi­ cação do Esquizofrênico"48. Para Wyrsch, a soma dos diferentes sintomas não constitui ainda o todo da esquizofrenia. Ao contrá­ rio, há sempre algo que vem se acrescentar ou que vai além dela, e, sem dúvida, é esse algo que nos ''permite" fazer intuitivamente o "diagnóstico". Esse diagnóstico não precisa consistir na percep­ ção e constatação de ''características particulares''. Mesmo que es­ tas existam, a pessoa experimentada não precisa de modo algum le­ vá-las em conta, e, apesar disso, ela ''enxerga" na pessoa à sua frente e em diálogo com ela "algo de caracteristicamente esquizo­ frênico". Esse enxergar não se funda em conclusões feitas a par­ tir de fenômenos expressivos, nem é tampouco um adivinhar e presumir, mas, sim, um verdadeiro reconhecimento (p. 1.173). — Isso é mostrado intuitivamente em dois exemplos e um contraexemplo. Embora a expressão "excêntrico" não ocorra aqui, tratase, no entanto, do ponto de vista da coisa mesma, justamente da excentricidade. A observação de que o esquizofrênico seria uma figura que se ''soltou" ou, mais exatamente, que foi "arrancada" vra "doidice", "maluquice" (V errücktheit). A o mesmo tempo, a expressão esquizofrenia vale para os doidos no sentido mais estrito". Jaspers distin­ gue dois tipos de comportamento associal desses "doidos". O segundo tipo corresponde em ampla medida ao dos excêntricos. D e uma tal pessoa diz-se o seguinte; "Por sua maneira de ser alternativamente esquerda, tímida e exagerada, grosseira, sempre informal, desmedida, ele é chocante para todos, de tal modo que, ao sentir a reação, só pode se fechar ainda mais" (cf. 4.a ed., p. 607). 48 Wyrsch, J.; Schweiz, med. Wschr. 46, pp. 1173 ss., 1946.

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de seu fundo já cai dentro do tema da excentricidade. Isso torna-se mais claro ainda quando se diz em seguida; ‘'Ele parece torto e desajustado em seu mundo ambiente" (p. 1176). O torto e o desadaptado — que expressão é mais intuitiva e adequada do que "inadaptado" ? —, nós o conhecemos bem a partir das expressões que caracterizam a excentricidade. Mas o elemento excêntrico ma­ nifesta-se também muito claramente no símile — pois só os símiles conseguem tornar intuitivos os fatos antropológicos — das ''ma­ rionetes", cujos cordões estão, em parte, muitos esticados e, em parte, muito frouxos. Eles não estão em seu inundo, inas, antes, como que junto a49 seu mundo, sem encontrar apoio nas obras impessoais que a tradição, os antepassados, os costumes, a condi­ ção social criaram e nas quais cresceram, razão por que nos dão uma impressão de serem tão estranhos e diferentes. Enquanto no sadio e no anormal não-esquizofrênico a palavra e a ação e o que elas significam partem de um ponto central, e as exteriorizações e realizações podem ser referidas a um centro de gravidade, de tal modo que a unidade da pessoa pode ser reconhecida até mesmo por trás de fenômenos contraditórios, o mesmo não acontece com o esquizofrênico; ''Falta ao seu comportamento uma seqüência coerente". Mas, do mesmo modo que não chamamos "desagregada'' à sucessão no teste de Rorschach, quando ela é completamente desordenada, mas, sim, quando se alternam sucessão ordenada e sucessão desordenada, assim também observa Wyrsch, muito cor­ retamente, a falta dessa "seqüência" não significa a constância do imprevisível, mas o curso paralelo e o entrecruzamento do previ­ sível e do imprevisível. Isso lembra perfeitamente as constatações de Kraepelin e Bleuler relativamente aos Psicopatas excêntricos, a saber, sobre a falta de um caráter unitário e conseqüente em sua vida psíquica! Mas quando isso ocorre, não há mais nenhuma ''unidade viva da pessoa", como diz Wyrsch do esquizofrênico. A história da vida do indivíduo não permite mais falar em "autoformação" ou "desenvolvimento" de sua pessoa, mas apenas em algo como "pisar no mesmo lugar". As exteriorizações de tais doentes parecem-nos como que "esvaziadas", como "meras formas e gestos inculcados", muito embora, entre semelhantes ''fenômenos expres­ sivos vazios, ocos, venham também às vezes irromper de novo com violência elementar outras manifestações cheias de vida". Wyrsch lembra aqui o estreitamento, a perda de poder e a mundanização que descrevemos no caso Ellen West, bem como o caso já publi­ cado de R. Kuhn.50 Ao mesmo tempo, remete às descrições relati4® Grifo meu. 50

Kuhn, R.; Mschr. Psychiat. Neurol. 112, 233, 1946.

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vas à ''vivência da falta de contacto íntimo e da paralisação do de­ senvolvimento". O que aprendemos com tudo isso, por conseguinte, não são sintomas, mas algo que se aproxima da postura total, fi­ gura ou humor fundamental de Gruhle e que hoje tentamos com­ preender e interpretar existencial-analiticamente como modo esqui­ zofrênico do ser-aí ou ser-no-mundo.51 Esse modo existencial não poderia, assim explica Wyrsch nessa passagem, "ser decomposto analiticamente, mas só pode ser enxergado intuitivamente''. Se essa "maneira-de-ser inconfundível" do ser-aí esquizofrênico "é tão-somente uma conseqüência de perdas ou alterações psicológicas, logo dos sintomas,"52 ou se nelas ''atua um distúrbio psicopatológico fundamental, impalpável, da pessoa, são questões que ainda estão, segundo Wyrsch, por se investigar. Essa investigação, como se sabe, ele a levou a cabo com sucesso três anos mais tarde em sua extensa obra sobre a pessoa do esquizofrênico (Berna, 1949).

B.

A E x p r e ssã o “ E x c e n tr ic id a d e ” e S u a s P e r ífr a se s

Enquanto o sentido antropológico da extravagância (Verstie­ genheit) podia ainda ser interpretado sem mais a partir de uma direção semântica fundamental da existência humana, o subir (Steigen), o mesmo não ocorre com a excentricidade (Verschro­ benheit). De fato, as palavras alemãs que significam extravagân­ cia e excentricidade têm em comum o sentido veiculado pelo pre­ fixo “ver-”, ou seja, o sentido de algo alterado, invertido, deterio­ rado e, mesmo, de algo transformado em seu contrário. Mas, ao contrário do extravagar, não vemos sem mais onde possa estar o sentido antropológico do alterado ou invertido na excentricidade. Além disso, uma coisa que de antemão se impõe à atenção é a constatação de que podemos falar de um Sich-Versteigen [que tra­ duzimos por extravagar, mas que também podemos traduzir, como vimos, por extraviar-se, exceder-se, etc. de modo a pôr em relevo 51 Binswanger L.; "Über die daseinsanalytische Forschungseinrichtung in der Psychiatrie." Schweiz. Arch. Neurol. Psychiat. 57, 2, 1946; Ausge­ wählte Vorträge und A ufsätze I, Francke A G ., Berna 1947. 52 A rigor, não se pode fazer semelhante indagação, posto que os con­ ceitos sintoma e pessoa por um lado, modo existencial, por outro lado, pertencem a duas perspectivas científicas muito diversas. Um modo exis­ tencial não pode ser a conseqüência de um sintoma, embora se possa construir conceptualmente os sintomas a partir de um modo existencial através de uma análise clínica, isto é, por redução ao conceito da doença.

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sua forma reflexiva — N. do T .], mas não de um Sich-Verschrauben [algo como "excentrificar-se" — N. do T.] dispondo tãosomente das expressões verschroben (excêntrico), Verschrobensein e Verschrobenheit (excentricidade). Mais precisamente, po­ demos designar como excêntrico tanto a própria pessoa, a pessoa inteira, quanto seus atos, planos, empreendimentos, idéias, etc. Em compensação, designamos como verstiegen (extravagante, exorbi­ tante) tão-somente algo na pessoa, um ideal, uma idéia, um plano, um "amor", no e com o qual ele extravagou, extraviou-se, exce­ deu-se. A expressão: “Er ist ein verstiegner Mensch” ("ele é uma pessoa extravagante") não é corrente na linguagem ordinária alemã. Uma posição lingüística intermediária entre Sichversteigen (extravagar, extraviar-se) e Verschrobensein (excentricidade) é ocupada pela expressão verbohrt [obstinado, cabeçudo, doido — derivado de bohren; furar, verrumar — N. do T .], que já encon­ tramos na primeira parte deste trabalho como sinônimo de excên­ trico. Podemos dizer que uma pessoa se obstinou numa coisa, bem como que e obstinada. O homem excêntrico, ao contrário, não se "excentrificou" (hat sich verschraubt), nem com um determinado domínio, nem em um determinado domínio. Ao contrário, a lingua­ gem coloquial limita-se, como dissemos, à expressão verschroben = excêntrico, seja relativamente à própria pessoa, seja relativa­ mente a algo nela. Correlativamente, o substantivo Verschro­ benheit ■= excentricidade designa também tanto o modo de ser inteiro de uma determinada pessoa, quanto um comportamento determinado dessa pessoa. Mas de que natureza é o ser e o com­ portar-se ao qual a linguagem ordinária conferiu o nome de ex­ centricidade ? Se, ao praticar a análise existencial, buscamos nosso ponto de partida (!) na linguagem coloquial e por ela nos deixamos guiar ao longo de um largo trajeto, é porque ela já explicitou, articulou e enunciou, como diz Goethe, ''desde o paraíso até hoje" em ''mi­ lhares de traços da linguagem e da fala"53 aquilo que nós próprios somos e em cujo meio vivemos e somos. E também porque ela o fez de modo tão profundo e preciso que seus projetos mundanos constituem nossa morada espiritual originária, nosso berço espi­ 63 Cf. a mascarada de 18 de dezembro de 1818 V. 341/36 com relação a Herder. Cf. além disso o poema de Goethe, Etimologia, onde se lê* “So wird erst nach und nach die Sprache festgerramelt, Und was ein W olk zusammen sich gestammelt, Muss ewiges G esetz für Herz und Seele sein.” ["Assim se vai a língua fixando, E o que um povo veio tartamudeando Tem que ser lei eterna para a alma e o coração."]

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r itu a l o u ''a r m a te r n o " ( G o e th e ) , sem o q u a l nossos p r ó p r io s p a s ­ sos perderiam seu solo e nosso próprio alento seu elemento vital. Mas lembro também Baudelaire; "Profondeur immense de pensée dans les locutions vulgaires, trous creusés par des générations de fourmis".54 As "locutions vulgaires” mostram-nos que a linguagem ordinária vê na excentricidade um modo concreto, especialmente intuitivo da Verdrehtheit [doidice ou maluquice, estado de q u e m , literalmente, ficou "verdreht”, isto é, girado ao contrário, ou, como dizemos vulgarmente, de quem ficou ''gira" — N. do T.]. Assim os alemães do Norte usam para designar os excên­ tricos a expressão "durchgedreht" (“girado"). Falam, não de uma pessoa excêntrica, mas de uma pessoa “girada". O prefixo "durch" [equivalente ao português "per"] significa aqui “totalmente" (girado) = gira. Os significados das expressões; Ver-dreht-sein [doidice, maluquice, lit. estar mal girado] e Ver-schroben-sein [excentricidade, lit. estar mal aparafusado] encontram-se ligados na frase; "Er ist eine verdrehte Schraube" [ele é um maluco, lit.; é um parafuso mal girado ou mal enroscado], por conseguinte, um parafuso que não foi aparafusado corretamente, adequadamente, com perícia, em suma, um parafuso que foi aparafusado “ao contrário" ou “invertido" ("verkehrt"). A perversão (das V erkehrte) desse aparafusar tem, por sua vez uma dupla significação. Ela refere-se tanto à configuração inadequada ou incorreta do próprio parafuso quanto a seu manuseio inadequado ou “sem perícia". A perversão do girar manifesta-se ademais de maneira drástica na expressão; “er ist schief gewickelt" [literalmente; ele está enrolado torto, isto é, está muito enganado ou ilu­ dido] . Essa expressão é particularmente intuitiva, não somen­ te por evocar um elemento muito intuitivo do girar ou virar, o enrolar, mas também o torto (do rolo), uma direção semântica que já encontramos tantas vezes no vocabulário clínico para designar a excentricidade. Acresce a isso que a palavra “torto" de modo algum quer dizer aqui tão-somente o torcimento ou o enviesamento espacial, ou seja, a super ou justaposição torta ou enviesada das circunvoluções do rolo, mas, sim, tal como o estar mal girado do parafuso, ao mesmo tempo o malogro ou fracasso do rolo. Se enrolar sig­ nifica o mesmo que “dar a forma de rolo" (Kluge), então a expressão alemã; "schief gewickelter Mensch" [lit.; “pessoa enrolada torto"] — tal como o significado da expressão ante­ rior; "verdrehte Schraube" [lit.; “parafuso mal girado”] indica que a formação, o modelamento, a configuração ou “construção" da pessoa em questão foi mal sucedida (ou ainda, ficou torta, tortuosa, saiu ao contrário, deu errado), 54 Baudelaire, Ch.; Ecrits intimes (Fusés), p. 8, Les Editions du Point du Jour, Paris 1946.

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TRÊS FORMAS DA EXIStÊnCIa MALOGRADA em suma, que sua forma exibe "erros” em sua estrutura e está desfigurada em seu aspecto. O sueco diz também, para excêntrico, vriden = verdreht (no sentido de "doido, maluco”) , derivado de vrída — girar, enroscar, aparafusar e, ao mesmo tempo, girar ao contrário, etc. N o holandês,55 excêntrico se diz verschroeft, verdraaid, gewrongen, opgeschroeft, verward. Os verbos correlativos são; draaien (girar), wringen (torcer), schroeven. O verbo de verward era outrora warren, que significava; confundir, perturbar e brigar, querelar. Onde o alemão fala em "ver­ schrobener Stil” (“estilo arrevezado, retorcido”), o holandês fala em “gewrongen stijl”. "Excentricidade” ( Verschroben­ heit) se diz em holandês; gewrongenheid. N o italiano, também, usa-se storto = torcido, torto, curvo, tortuoso no sentido de excêntrico, assim como o latim distortus, pode ter o significado de excêntrico tanto no sentido retórico de Cícero quanto no sentido moral de San­ to Agostinho. O mesmo vale do inglês distorted, sobretudo no sentido de desfigurado, do desfiguramento dos traços fisiognômicos e do desfiguramento do sentido de um enun­ ciado. N o francês, não encontramos nenhuma relação lingüís­ tica direta entre excêntrico e girado (coníourné, tourné). Uma pessoa excêntrica é, em francês, "un homme qui a l’esprit de travers”, onde, é verdade ainda vem se expressar, como no latim transversus, a “vira-volta” ("Um-wendung”) , mas agora tão-somente no sentido do obstacle, do atravessado, torto, enviesado, do “desviado” de seu espírito.56 Do mesmo modo, a designação inglesa; a queer fellow — esquisitão ou excêntrico remete para o torto, enviesado de sua índole espi­ ritual, que também vem a se exprimir na palavra alemã apa­ rentada quer (ou verquer) = atravessado, de través e no prefixo zwerch ( = quer) (cf. também Querkopf = caheçudo, teimoso, do contra, literalmente; cabeça atravessada).57 A linguagem nos ensina também que, ao contrário do uso lingüístico da Psicopatologia (v. seção A ), deve-se fazer uma nítida distinção entre verschroben (excêntrico, lit.: mal aparafusado) e geschraubt (arrevesado, lit.; aparafusado). Pois fazemos, por exemplo, uma distinção entre “einem gesch­ raubten = gewundenen Stil" (um estilo arrevesado, retorci­ do) e "einem verschrobenen Stil” (um estilo excêntrico). Mas só nos ocuparemos dessa distinção quando da análise do amaneiramento.

65 Devo essas indicações a meu colega van den Berg, de Utrecht. 56 Assim diz La Rochefoucauld em suas máximas: "Un esprit droit a ntoins de peine de se soum ettre aux esprits de travers que de les conduire .” Ou; "Peu d'esprit avec de la droiture ennuie moins à la longue, que beaucoup d ’esprit avec du travers" (La Rochefoucauld, F. Oeuvres; A la Cité des Livres, t. 2, p. 101 e 110, Paris 1929). A oposição entre a retidão e a tortuosidade encontra aqui uma expressão muito feliz. 57 N ão deixa de ser interessante que o latim torqueo (torço) seja deri­ vado de uma raiz indogermânica twerk (Kluge),

EXCENTRICIDADE

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Tampouco encontramos na língua grega, tanto quanto posso ver, uma relação entre girar, girar ao contrário (iGTQÉcpeiv) e a excentricidade e a maluquice em geral. Todavia, ela conhece um modo de se expressar no qual se exprime muito bem o invertido (das Verkehrte) o louco das Ver-riickte, ou seja, des-locado) da ex-centricidade (V er­ schrobenheit). Nas Troianas de Eurípides, o arauto Talthybios repreende da seguinte maneira a figura extática da profetisa Cassandra; o v y à g a g n a ç £%eiç (pgévaç, que pode­ mos traduzir quase literalmente em alemão com nossa fra­ se; “du hast die Sinne nicht beieinander" [ “não estás em teu juízo perfeito", ou ainda “estás a disparatar”, literalmente; “não tens juntos, ou reunidos, os teus sentidos”] . Pois o â g rio ç aqui negado significa além de “inteiro, completo, incólume”, sobretudo "coerente, adequado, correspondente, conveniente”, mas também par (também no sentido de “número par"). Essa locução grega coaduna-se, pois, lingüísticamente, tanto com a expressão alemã; "verdrehte Schrau­ be" [ = maluco, literalmente; parafuso mal girado], quanto com a locução que diz que alguém tem um parafuso solto, ou seja, de que algo não está certo com ela, de que algo não se coaduna muito corretamente com algo, não se adap­ ta mais direito a outra coisa. Encontramos expressões lingüisticamente positivas para esse não-combinar, não-corresponder, não-ajustar-se corretamente, expressões aliás muito enérgicas, na língua francesa com a locução jurer avec58 — contrastar com, e na língua alemã com o símile do "assentar como o punho ao olho" (“Passen wie die Faust aufs A uge”).

C.

A S ig n ific a ç ã o A n tr o p o ló g ic a d a E x p r e ss ã o “ E x c e n tr ic id a d e ” e d e S u a s P e r ífr a se s

Consideremos agora a significação antropológica das expres­ sões descritivas que encontramos até aqui, deixando a linguagem da teoria científica, por enquanto, fora de consideração. Um olhar superficial já permite ver que quase todas provêm da oficina do homo faber, a saber, de certas possibilidades de sua lida com seu ''material" e, ao mesmo tempo, da natureza desse ''material". Aliás, vê-se logo que essa oficina não é a do alfaiate, do sapateiro ou do padeiro, mas a do serralheiro, a do encanador ou do pedreiro, do marceneiro ou do carpinteiro. Pois, com poucas exceções, nossas 58 Já encontramos também essa expressão. Cf. acima vol. 124, p. 201 E. Minkowski; "ll (le piano) jure avec le restant du rnobilier, avec toute la vie du ménage”.

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T rês FORMAS Da EXIstêNCIa MaLOGRaDa

expressões não remetem a um material macio, mole, elástico, que se possa sovar, amassar ou amoldar, como, por exemplo a massa, a lã, o pano, a seda, o couro macio, a borracha, etc., mas a um material "inelástico” (Bleuler), sem flexibilidade, rijo, teso, duro, frio e, em todo caso, resistente, corno o ferro, a pedra, a madei­ ra.59 Mas é preciso ficar claro que tais expressões devem sua origem à manipulação, ao trato manual e artesanal do ''material". Pois a "práxis" precede sempre a constatação "teórica" das propriedades de um objeto. Isso mostra-se de maneira particularmen­ te clara quando a ocupação prática não somente ''encontra resis­ tência", mas também sempre que se mostra perturbada ou malo­ grada, logo, quando se fala em estar mal aparafusado ou mal gi­ rado (o parafuso) (" Verschroben ou Verdrehtsein der Schrau­ be”), em estar mal verrumado ["Verbohrtsein" = obstinação — cf. em port. o uso de "verrumar uma idéia, um plano" — N. do T .], em ser ou estar invertido ou pelo avesso ["Verkehrtsein" = estar mal-humorado, irritadiço, ou ser errado, absurdo — tr.], em estar mal fechado ["VerscA/ossensein" = ser fechado, pouco co­ municativo, reservado — de sehliessen — fechar — tr.], em estar entortado ou torcido [Verbogen, de biegen = curvar — tr], ou então de um excesso [Über, lit.; sobre, super — tr.], quando se fala da tensão excessiva (do arco; Bogen) [Überspanntsein = exagero, exaltação, extravagância, derivado de spannen = (es)tender, esticar — tr.], de um impulso excessivo do mecanismo [Übertriebensein des Getriebes, Übertriebensein significando em seu sentido próprio: exagero, e derivando de treiben = impelir, impulsionar — tr., etc. Em todas essas expressões da perturbação ou do malogro trata-se, como se vê facilmente, de um não conse­ guir continuar com o aparafusar, o verrumar, esticar, impelir, etc., logo, de um fim ou de um limite além do qual o parafuso só pode ficar pior aparafusado, o arco ainda mais excessivamente tendido, o mecanismo ainda mais excessivamente impulsionado, etc. Esse chegar a um fim ou a um limite torna-se depois parti­ cularmente claro nas expressões que remete a um "pôr-se de tra­ vés" [in die Quere kommen: pôr-se de través, contrariar os pro­ jetos de alguém], logo, a algo que se ''põe de través em nosso ca­ minho" quando trabalhamos, andamos, etc. A isso se ligam as ex­ pressões quer [transversal, de través], verquer [de través, p.ex. na 59 A única exceção é, a meu ver, Carl Schneider, quando este fala, além da impenetrabilidade, logo da dureza, também da "volatilidade" e da “'li­ mitação”. A expressão alemã Schiefgewickeltsein [estar iludido muito enganado, inteiramente equivocado, literalmente; estar enrolado torto] indica também uma exceção, relativa ao material e ao local de trabalho. Essa expressão remete-nos à sala de fiação e ao novelo de linho.

EXCEntRiCiDADe

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expressão "das ist mir verquer gelungen”: isso me saiu de través, errado — N. do T .], Querkopf [lit.; cabeça atravessada, isto é, cabeçudo, teimoso], que er fellow, esprit de travers, etc. Há ainda outras expressões que não remetem ao chegar ao fim de um ''movimento", mas a relações puramente espaciais, tais como o não-estar-disponível da ferramenta ou do material "em seu lugar", ao excêntrico, desviado, distante relativamente a sua situa­ ção no lugar de trabalho. Outras remetem a desvios da direção ou da linha, logo ao torto, tortuoso, ou a desvios da simetria e da correspondência espaciais em geral, ou em outras palavras, ao uni­ lateral. Mas a falta de correspondência vai muito além — como, aliás, convém ao conceito grego da simetria e de suas perturba­ ções60 — da correspondência espacial e também abrange o desarmônico, o discordante, o que não combina de modo geral, em suma o que não corresponde, o que contradiz, o não estar bem dis­ posto [Nicht-recht-Beieinandersein, lit.; não estar bem ajuntado, ou estar meio desconjuntado, usado no sentido de não estar muito bem de saúde, bem disposto, etc. — N. do T .], o estar rompido ou arrancado (Abgerissensein, Kraepelin),'"tal como também encon­ tramos na locução relativa ao estar solto do parafuso e, sobretudo, na negação grega; ovx aonoç, cujo correspondente em alemão é o "Nichtbeieinanderhaben der Sinne” [ = não estar em seu per­ feito juízo, disparatar]. Muitas expressões têm origem, porém, em propriedades ma­ teriais ou formais ''perturbadoras" do próprio ''material", em sua falta de unidade ou desigualdade, em suas arestas ou em seu ca­ ráter tosco ou grosseiro, etc. Semelhante material revela-se àquele que lida com ele como não familiar, estranho, surpreendente, es­ quisito, imprevisível, numa palavra, como difícil de tratar. Por isso, é recusado pelo artesão, posto de lado como imprestável, repelido (abgestossen) como "chocante" (anstossend) (Jaspers). O que se pode dizer da origem antropológica da palavra Vers­ chrobenheit (excentricidade) e de suas paráfrases originadas na oficina do homo faber, na ocupação manual e artesanal com um determinado material do mundo ambiente (umweltlich), vale tam­ bém das paráfrases puramente psicológicas. Também elas provêm da esfera do trato ou ocupação (Umgang) quotidiana ou médicoartesanal com um determinado material — não mais, certamente, um material físico, mas um ''material humano''. Aqui se trata da esfera da personalidade no sentido do trato ou comércio com o mundo-comum, ou do tomar-alguém-por-um-lado, característico do 60

Binswanger, L.; Z. Kinderpsychiat. 14, cad. 1/2, 1947.

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TRÊS FOrMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA

mundo comum {"des mitweltlichen Nehmens-bei-etwas”)fix É apenas a partir dessa homogeneidade da significação antropológica que se torna compreensível a possibilidade e, mesmo, a obviedade da transposição, para o ser humano enquanto uma pessoa viva, de todas as expressões próprias à ''matéria morta". Por outro lado, compreendemos agora também por que jamais encontramos no vo­ cabulário clínico da excentricidade expressões provenientes da es­ fera da existência ou da comunicação e, naturalmente, antes de mais nada, da liberdade, da consciência moral, do amor, etc. O próximo é, de fato, compreendido aqui unicamente a partir do tra­ to com ele, mais precisamente, a partir da perturbação, dificuldade ou impossibilidade desse trato, e de sua redução diagnóstica a de­ terminadas peculiaridades e propriedades da pessoa com que se trata; à sua inaptidão para o trato ou dificuldade no trato, à sua resistência, impenetrabilidade (''dureza", "rigídez", "frieza"), suas contradições, seu caráter arredio, sua imprevisibilidade. Daí ori­ ginam-se expressões como ininfluenciável, incorrigível, estuda­ do, sem naturalidade, sem espontaneidade, meticuloso, intransigen­ te, fanático, incapaz de discutir, caprichoso, irritável, fantasioso, associai e, sobretudo, autista. Essas expressões remetem também a uma incapacidade de continuar a lidar com alguém em razão de se ter chegado ao fim com alguma coisa, por exemplo, com a discus­ são, a correção, a influência, com o diálogo objetivo, com o trato em geral. Aqui também alguma coisa ''atravessa-nos'' sempre, em cada caso, o ''caminho", damos de encontro com um obstáculo, com uma dificuldade ou perturbação. Em lugar da dificuldade, pertur­ bação ou malogro da atividade de lidar com ou trabalhar manual­ mente o mundo ambiente, surge a dificuldade ou impossibilidade de lidar lingüisticarnente com o mundo comum, bem como a de sua elaboração lingüística ou "pessoal”, em suma, a dificuldade ou impossibilidade do entendimento mutuo. Em ambos os casos, po­ rém, permanecemos na esfera do tomar-alguém-por-um-lado (des Nehmens bei etwas) dos manipulanda, dos utilisanda e dos discriminmda, para nos servirmos dos conceitos básicos (behavioristas) de Tolman.62 O que aprendemos ao lançar um olhar sobre a origem an­ tropológica da expressão Verschrobenheit (excentricidade) e de suas paráfrases é pois, em primeira linha, o conteúdo semântico do malogrado, do defeituoso ou desfigurado, em sum a; da impres­ tabilidade. A imprestabilidade é aquilo que nos atrapalha ou 61 pp. 62 ne,

Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins. l . a parte, 2.° cap., 266-382, Verlag Niehans, Zurique, 1942. Ricoeur, P.; Philosophie de la Volonté, t. I, pp. 196 ss., Ed. Montaig­ Paris, 1949.

EXCENtRICIDaDE

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estorva, ao lidarmos com alguma coisa ou alguém, e, ao estorvar, nos surpreende, na surpresa, nos detém ("fim", "limite") e, ao nos deteV, nos põe "mal-humorados". A mera atividade de lidar ou tratarrcom não está cheia de amar, mas de desamor. Ela mede e juiga (''discrimina") aquilo com que lida, o "manipulandum", única e exclusivamente quanto a seu fim e proveito (en­ quanto utilisandum). Seu estado de ânimo ''depende" do mero conseguir ou fracassar. Nessa medida, a atividade de lidar per­ manece sempre na ''superfície" das coisas e das pessoas. ''Não vai até o fundo delas."Aqui também, e com maior razão ainda, vale a frase de Valéry; "Toutes les fois que nous accusons ou que nous jugeons — le fond n’est pas atteint."63 Mas aqui, e aqui com maior razão ainda, podemos mostrar por que isso não ocorre. Não ocorre, não somente porque todas as nossas expressões provêm do trato humano, e só dele, mas porque as peculidaridades ("negativas") do trato por elas visadas são transformadas em propriedades da pessoa com que se trata. O trato "atemático" com a pessoa em questão ''converte-se"64 num juízo sobre essa pessoa. Nesse juízo, a pessoa recebe o pre­ dicado ''excêntrico" como uma ''sentença condenatória" proferida a partir da irritação ou mau-humor provocado pelo malogro (do trato). Assim, é verdade, abre-se caminho para uma descrição, classificação e diagnóstico psicopatológicos, embora se feche o acesso à compreensão da excentricidade como possibilidade da existência humana. "Pois o ser homem", diz com toda razão Szilasi,65 ''não está pronto e acabado de modo a persistir como algo idêntico; a única coisa idêntica do ser-aí é o fato de que ele é desprovido de predicados em todo presente. . . "66

D . A S ig n ific a ç ã o O n to lo g ic a d a E x p r e ssã o “ E xcen tlricid ad e,’ e d e S u a s P e r ífr a se s

Depois de tudo o que vimos até agora, não pode subsistir mais dúvidas quanto a essa significação. A compreensão ontológica subjacente a todas essas expressões é a compreensão do ser, 63 64 65 na, «6

Valéry, P.; Varieté II, p. 135, Gallimard, Paris 1930. Heidegger, M.; Sein und Zeit, § 69 b, Verlag Niemeyer, Halle 1927. Szilasi, W.; M acht und Ohnmacht des Geites, p. 299. Francke, Ber­ 1949. Grifo meu.

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TRÊS FORMAs DA EXistêNCiA MALOGRADA

mas não do ser entendido em primeira linha como subsistência (Vorhandenheit), nem, sobretudo, entendido como ger-aí e ser-com, mas sim como disponibilidade (Zuhandenheit) no sen­ tido das investigações clássicas de Heidegger. Remeto à sua obra Ser e Tempo, que veio à luz há mais de um quarto de século e que se tornou indispensável, entre outras coisas, também para a psiquiatria enquanto ciência. Praticamente, nenhuma das ex­ pressões dessa última — e, sobretudo, a da própria excentrici­ dade — remetem em primeira linha a uma coisa percebida ou a uma pessoa subsistente hic et nunc, mas a um "instrumento"67 já envolvido na lida do homem com as coisas. Tampouco a "maluquice" ou a excentricidade da pessoa designada em alemão como um "parafuso mal enroscado" [isto é, ''maluca", tendo um ''pa­ rafuso frouxo"] é constatada perceptivamente. mas é, sim, des­ coberta através de certas perturbações ou dificuldades do trato com ela na própria maneira de tratar-com, isto é, na própria ma­ neira de “pegar" alguém tomando-a por um lado qualquer [pelo braço ou pela mão, por seus pontos fortes ou fracos, etc. — N. do T.]. Mas a investigação só se torna ontológica quando se per­ gunta, como Heidegger o fez, ó que torna um instrumento um instrumento, numa única palavra, quando se pergunta pelo ser como instrumentalídade. A resposta a essa questão e, como se sabe, a estrutura do "ser-para", do remetimento de algo para algo, tal como a serventia, a capacidade de contribuir para al­ guma coisa ou de se empregar para algum fim, a manejabilidade, em suma a capacidade de se prestar para alguma coisa ou a algum fim. Ao instrumento se relaciona sempre, em decorrência disso, um todo instrumental (que não se deve confundir com uma soma de coisas), no qual ele pode ser o instrumento que é. Assim como é somente no martelar que se descobre a "manejabilidade'' específica do martelo, assim também é somente no trato lingüís­ tico (que se expressa na pergunta, no pedido, no comando, na sugestão, na discussão, etc.) que se descobre a possibilidade de se tratar com a pessoa. Esse modo de ser do instrumento, no qual ele se ''manifesta a partir de si mesmo", é aquilo que Hei­ degger denomina disponibilidade. Em razão disso, a disponibili­ dade não pode, como dissemos, ser descoberta ''teoricamente'', mas apenas ''na prática", isto é, na utilização. Também essa ma­ 67 A inclusão da personalidade na instrumentalidade ou na disponibili­ dade não se encontra em Heidegger. Ela é efetuada pela primeira vez nas Grundformen do autor deste livro. Cf. aí também a personalidade ou o tomar-por-algum-lado [pelo braço ou pela mão, "pela palavra", isto é, ao pé da letra, ou "pelo ponto fraco", etc. — N. do T.] próprio do mun­ do comum.

EXCEntRiCiDADE

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neira de lidar tem a sua visão (Sicht). É a circunvisão organi­ zadora dos meios (Um-sicht) relativa ao contexto de remetimentos do 'ser-para", por conseguinte, a visão que discerne a maneira pela qual o objeto disponível se encaixa na multiplicidade de remetimentös e, dessa maneira, no para-que de sua possibilidade de emprego. Ora, também o portador ou utilizador da obra está in­ serido nessa multiplicidade de remetimentos e, assim, o mundo também onde vivem portadores e utilizadores como nós mesmos (loc. cit., p. 68 ss.). Uma coisa que já aqui há de chamar nossa atenção é o fato de que a expressão Verschrobenheit (excentri­ cidade) e suas paráfrases não levam em conta esse remetimento (ao mundo comum). Ao contrário, levam-nos a encontrar o pró­ ximo, ele próprio como um instrumento, como um ''parafuso mal enroscado", como um ''rolo enrolado torto", a saber — em con­ formidade com o significado alemão dessas expressões — como uma pessoa excêntrica, isto é, no interior de um determinado con­ texto de remetimentos, como uma pessoa inacessível, difícil de se manejar e de tratar, atravessada (ver quere), excêntrica (exzentrisch), sem unidade, malograda. Ora, cada remetimento é algo que, a rigor, não se impõe à atenção, não nos solicita ou importuna, não se rebela (unauffällig, unaufdringlich, unaufsässig). É só numa perturbação do remetimento — na impossibilidade de se empregar p ara. . . — que elas nos silicitam ou se tornam "temáticas" (loc. cit., p. 74), como mostraram suficientemente nossas expressões.68 A disponibilidade não está ''no mundo", o objeto disponível não é nenhum ente intramundano. Ao contrário, a disponibilida­ de é para Heidegger — e é nisso que se mostra sua relevância ontológica — por assim dizer constitutiva do mundo em geral, da mundanidade do mundo. Conseqüentemente, "ser-no-mundo" sig­ nifica também o "absorver-se atemático — caracterizado pela cir­ cunvisão organizadora dos meios — nos remetimentos constituti­ vos da disponibilidade do todo instrumental". ''Pois o providen­ ciar (Besorgen) já é o que é em virtude de uma familiaridade com o mundo" (p. 76). O ser da disponibilidade, o remetimento é caracterizado além disso e com precisão como a finalidade (Bewandtnis). O fato de que um ente está remetido a outro ente significa ''que ele encon­ tra consigo mesmo em alguma coisa sua destinação" ("dass es mit ihm bei etwas sein Bewenden hatf’). Por conseguinte, Hei­ degger pode também dizer; "O caráter ontológico da disponibi­ 68 Cf. em particular as expressões alemãs que começam com os prefixos Ver ou Über, bem como as que dizem respeito ao "través" {die Q uere), corno Querkopf (caheçudo), esprit de travers, transversus.

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TrêS FORMAS Da EXISTÊNCIA MALOGRADA

lidade é a finalidade". E aqui é imprescindível acentuar também — e isso em vista precisamente do ser-no-mundo chamado esqui­ zofrênico — que toda totalidade finalizada69 ''remonta enl última análise a um para-quê no qual ele não tem nenhuma finalidade mais, algo que não é mais ele próprio um ente à maneira do ob­ jeto disponível no interior de um mundo, mas, sim, um ente cujo ser é determinado como um ser-no-mundo e a cuja constituição ontológica pertence a mundanidade ela própria. Esse para-quê pri­ mário não é nenhum para-isto como um possível em-quê (Wobei) de uma finalidade. O "para-quê" primário é um em-vista-de-quê (W orum-willen). Mas, o 'em-vista-de' (das ‘Um-willerí) concer­ ne sempre ao ser do ser-aí para o qual, em seu ser, se trata sempre essencialmente desse ser" (p. 84). Tudo isso vale também, como dissemos, do trato ou comércio pessoal ou social (mitweltlich). Também o para-quê do cumpri­ mentar, discutir, perguntar no ''mercado", da experimentação no laboratório psicológico, do exame no consultório médico, remon­ ta a um em-vista-de-quê, que concerne ao ser do ser-aí, para o qual se trata sempre em seu ser essencialmente desse ser. Aliás, trata-se aqui do ser-aí enquanto pertencente a uma sociedade, isto é, enquanto sociável ou “social”, enquanto se ocupa de expe­ riências científicas, ou de um exame e tratamento médicos, de um ser-aí portanto que é o em-vista-de-quê do trato ou do comércio quotidiano, da investigação cientifica, da arte terapêutica, etc. Nas expressões pré-científicas "verschroben" ou "verdrehte Schraube" [ = excêntrico, maluco, pancada, de parafuso frouxo — N. do T.], mas também em suas paráfrases e explanações clínico-descritivas, o próximo (Mitmensch) não é, justamente, com­ preendido como um ser-aí próximo a nós (Mit-dasein), para o qual se trata, assim como para mim também, desse ser, mas, sim, precisamente como uma pessoa de que se pode dispor ou tratar. "Nós" não nos encontramos aqui, por conseguinte, no mesmo ní­ vel ontológico, mas na diferença ontológica interpretada e expressa através das expressões ser-aí e ser enquanto disponível (e ser subsistente). Ora, o próximo não é de modo algum à maneira de um ''instrumento" a se manejar (no sentido mais amplo da palavra). Ao contrário, enquanto ser humano meu próximo, ele tem no fundo de seu ser, como eu próprio, o caráter ontológico 69 Por exemplo, o todo finalizado que "constitui" em sua disponibilidade os objetos disponíveis numa oficina ou na fazenda mas também, podemos acrescentar, por exemplo, o todo finalizado que "constitui" em sua dispo­ nibilidade o com-o-quê humano disponível no "mercado" (na ágora), no laboratório psicológico, no consultório médico ou na sala de plantão d« clínica.

EXCeNtRICIDADe

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do ser-aí, para o qual se trata em seu ser desse ser ele próprio. Isso posto, fica claro agora que só podemos chegar a uma com­ preensão existencial-analítica da excentricidade, se voltarmos as costas à sua concepção e interpretação como disponibilidade, como o ser de um [indivíduo de] ''parafuso frouxo", de um ''gira", ou seja, de urna pessoa com que não se pode lidar e inaccessível, vol­ tando-nos ao mesmo tempo para sua compreensão e interpretação no sentido do ser do ser-aí.7° E.

A n a lis e E x iste n c ia l da E x cen tr ic id a d e

Não devemos mais, portanto, encarar os excêntricos como pessoas "inaccessíveis", ''difíceis de tratar", mais ou menos sem serventia na sociedade, ''associais", exaltadas, excêntricas (exzentrisch), autistas e, sobretudo, não devemos mais formular em palavras as impressões que provocam em nós que lidamos com eles. Mas trata-se agora de compreender e descrever os excêntri­ cos a partir de seu ser mais próprio, como co-existentes (Mitda• seiende). Em suma; em vez do ser-disponível, o ser-no-mundo. Na medida, porém, em que ser-no-mundo significa o ''absorver-se, guiado pela circunvisão organizadora, nos remetimentos constitu­ tivos da disponibilidade do todo instrumental", teremos que bus­ car a essência da excentricidade na maneira pela qual a pessoa de que se pode dispor como tendo um ''parafuso frouxo", isto é, a pessoa excêntrica, se absorve por sua vez nos respectivos remeti­ mentos ou todos finalizados. Nessa busca, a análise existencial de modo nenhum se afasta das tentativas feitas pela linguagem coloquial e pelas descrições e Perífrases clínicas no sentido de uma melhor abordagem da essênTO Lembremos ainda que é sobretudo na segunda seção da obra citada e, em particular, no quarto capítulo intitulado Temporalidade e Quotidianidade (§§ 67-71) que Heidegger vem a se ocupar "a fundo” com a constituição existencial do ser-aí, examinando-a a partir de sua inter­ pretação temporal. (Posteriormente o tema foi ainda mais elaborado no tratado sobre a essência do fundamento, publicado na obra comemorativa do 70.° aniversário de Husserl; Husserl-Festschrift 1929.) Lembremos tam­ bém que é justamente aqui que encontramos ontologicamente interpreta­ dos os fenômenos particularmente interessantes em nosso contexto da perturbação do trato-com. . . , tais como os fenômenos do impor-se à aten­ ção (A uffälligkeit), da importunidade (Aufdringlichkeit), da rebeldia (A ufsässigkeit), da resistência da falta de serventia, da dificuldade de manejo, da impossibilidade de se superar, mas também do surpreenderse, etc.

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cia da excentricidade. A tarefa da análise existencial cônsiste, assim, tão-somente em procurar em seu núcleo essencial, isto é, na essência de seu modo-de-ser-ai, aquilo que a linguagem ordinária e a clínica circunscreveram em imagens, metáforas e expressões psicológicas. Apesar de irmos muito além das im­ pressões do excêntrico, não abandonamos, pois, de modo algum o caminho pré-traçado por elas. Conseqüentemente, não se deve esperar nenhuma descoberta revolucionária. Mas tampouco se trata aqui unicamente de uma tradução ''de uma para outra língua". Ao contrário, trata-se da conversão de uma mera opinião (doxa) num saber seguro de seu método e de seu tema. Sobretudo, é preciso que tenha ficado claro que a linguagem coloquial e a clínica já se deixavam guiar em suas locuções, me­ táforas, descrições e perífrases pelas impressões e experiências que "nós” temos ou fazemos no trato com os excêntricos relativamente ao seu trato com os objetos disponíveis (no sentido mais amplo da palavra). Uma pessoa de ''parafuso solto (eine verdrehte Schraube), uma pessoa ''enrolada torto" (schief gewickelt) [i. e., iludida, muito enganada], exaltada (überspannt), excêntrica (exzentrisch), etc. é, na verdade, no ''modo de ver" das "locutions vulgaires” e da terminologia clínica, uma pessoa que, por sua vez, desparafusa ou enrosca ao contrário, que estica excessivamente (überspannt) ou exagera tudo aquilo que ''cai em suas mãos", ou que ela ''agarra" ou ''toma entre as mãos", chegando assim por sua vez a um limite ou a um fim. Pode-se ver isso de maneira muito clara nas locuções clínicas. Lembro apenas a expressão; ''uma compreensão distorcida da situação" e ''operações lógicas distorcidas" (Bleuler) num excêntrico, bem como as expressões; planos situados num futuro remoto, ações imprevisíveis, pen­ samentos fantasiosos, comportamento contraditório, caprichoso, incompreensível, impenetrável por empatia, etc. Aqui também a linguagem e, mesmo, a teoria clínica (Gruhle), valem-se do modo de ver ou "ponto de vista" segundo o qual a pessoa a se designar como excêntrica é uma pessoa que /ida com a atividade de con­ ceber, planejar, pensar, agir, comportar-se, etc. de uma maneira diferente da "nossa" — ou seja, distorcida, girada ao contrário, mal aparafusada, excessivamente esticada —, e não se cansa de descrever nos menores detalhes essa diferença ou, mesmo, de "explicá-la" teoricamente. Ao mesmo tempo, porém, a relação do "eu e mundo" e, com maior razão ainda, a relação do ser-aí e da mundanidade ( = conjunto dos contextos de remetimentos ou dos to­ dos finalizados), continuam obscuras e opacas. Com isso, chegamos a um ponto em que podemos nos atrever a uma interpretação existencial-analítica de diferentes exemplos.

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Primeiro exemplo U m Pai P õe Debaixo da Á rvo re de N atal um Caixão para Sua Filha Cancerosa 71

A impressãoque ''nós", na atitude natural, temos do compor­ tamento desse pai é a de ''um soco na cara". Pois o caixão como presente de Natal para um familiar canceroso ''assenta", como diz a expressão alemã, "como o punho sobre o olho", quer dizer, como o soco do punho no olho. Ficamos "horrorizados" com o modo como esse pai lida com o caixão e com a filha. Ao mesmo tempo, deve ter ficado claro imediatamente que não faz a menor diferença para essa impressão, se lidamos ou tratamos com o pai em contato imediato com ele, presenciando assim a situação em questão, ou se apenas ouvimos falar dela ou dela temos notícia. Em vez do olhar temos a "imagem" que nos é comunicada. Mas o que vale para a impressãoque essa ''imagem'' faz sobre nós, a impressão de uma pessoa em alto grau excêntrica (verschroben) ou que está muito enganada, "enrolada torto" (schie gewickelt), vale também para nossa ''reação" a ela, para nossa ''tomada de posição" em face do pai com base nessa impressão, numa palavra, para a ma­ neira de lidarmos com ele. Para "descrever'' nossa impressão e reação a ele, poderíamos recorrer a quase todo o arsenal de nossas anteriores expressões e perífrases da excentricidade. Mas deixa­ remos de fazê-lo, para não cansar excessivamente o leitor, voltando-nos imediatamente para a interpretação existencial-analítica desse exemplo. À frente de nossa análise do estado de coisas enunciado na frase acima, colocaremos, mais uma vez, a caracterização original feita por Heidegger do ''ser-no-mundo" como um "absorver-se atemático, guiado pela circunvisão organizadora, nos remetimentos 71 Esse exemplo é tomado à 7.a edição (1948) do compêndio de Bumke (Bumke, O.; Lehrbuch der Geisteskrankheiten, 7.a ed., Springer, Berlim 1948), onde se encontra citado sob a rubrica; excentricidade. O prof. Bumke aquiesceu muito amavelmente ao meu pedido de indicações mais pormenorizadas sobre esse pai, todavia com a solicitação de não fazer uso delas, uma vez que se trata de uma pessoa que tem uma posição na vida pública e muito fácil de se identificar a partir de certas estereotipias. Só posso mencionar o fato de que a pessoa em questão mostra traços de excentricidade não somente nessa ação, mas também em seu comporta­ mento total. Todavia, jamais teria sido internada em qualquer sanatório. Com toda certeza, deve ter considerado o caixão como um presente "ade­ quado". N ão se sabe como a filha reagiu ao "presente".

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constitutivos da disponibilidade do todo instrumental. Mas /é de particular significação para nossa análise, agora, o que s(/ deve compreender por "circunvisão organizadora" {Umsicht). /Ela é, como já sabemos, "a visão que discerne a maneira pela qual o objeto disponível (aqui o caixão) se ajusta na multiplicidade de remetimentos (aqui a multiplicidade de remetimentos7chamada ‘festa de N atal'), discernindo assim o para-quê de sua utilidade”. Ressaltamos mais uma vez que a essa multiplicidade de remetirnentos pertence também o portador ou utilizador da ''obra"72 (aqui a filha presenteada com o caixão) ! Eis aí o único instrumental de que precisamos para a solução de nossa tarefa. Mas é preciso ter sempre em mente que não se trata mais de nossa impressão do e de nossa reação ao compor­ tamento desse pai, logo de nossa surpresa, perplexidade e, mesmo, indignação, nem tampouco de nosso juízo (objetivante) sobre o pai como uma pessoa excêntrica, sem consideração e, até, brutal, e menos ainda, finalmente, de nosso juízo se o objeto disponível, aqui o caixão, se ajusta ou não nessa multiplicidade de remetimentos chamada ''festa de Natal". Segundo o nosso juízo, dificil­ mente haverá algo "no mundo"73 que se ajuste menos nesse con­ texto de remetimentos ou todo finalizado do que um caixão para um familiar canceroso. O pai, todavia, achava o caixão, como nos contaram, ''adequado". Mas, ainda que não nos houvessem con­ tado isso, teríamos que partir do modo como o caixão se ajusta, "aos olhos" ou na visão do pai, na festa de Natal. Ou melhor, teríamos que partir do modo como deve ser compreendido um ser-aí ou ser-no-mundo para o qual o caixão e a festa de Natal não significam nenhuma ruptura ou contradição, para o qual, muito ao contrário, o caixão''se ajusta" na festa de Natal! Não obstante, é preciso que desde o início fique claro para nós que a excentricidade é apenas uma possibilidade existencial 72 Em vez de obra (W erk) e justamente com relação a esse exemplo, seria mais adequada a expressão pragma (cf. o grego prattein = agir, práxis = a lida para se providenciar alguma coisa), visto que ela desig­ na não somente coisas, mas também o desempenho e, mesmo, de modo geral, o que ó feito na ação ou o providenciado no providenciar. É nessa perspectiva, já indicada por Heidegger (Heidegger, M ; loc. cit., p. 68), que as expressões pragma e práxis são empregadas por Szilasi (Szilasi, W.; loc. cit., pp. 120 ss. 126, 246), hem como, mais recentemente, ainda que num sentido puramente intencionalista, por Ricoeur; “Le 'Pragma* ou corrélat intentionnel de l’Agir”; “L e pragma est le corrélat complet du faire" (Ricoeur, P., Philosophie de la volonté, Paris 1949, p. 195 ss., e W. Keller; Psychologie und Philosophie des Wollens, Basiléia 1954, p. 234). 73 Cf. a esse propósito, em todo caso, n, 49!

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entre muitas, quando um objeto disponível se ajusta para cada ser-aí numa multiplicidade de remetimentos, enquanto uma pessoa de fora, ao julgar a situação, diz que não se ajusta. Uma dentre essas possibilidades é a necessidade, a necessidade na qual, como diz a expressão alemã, "o diabo devora moscas" ou a gente "se agarra a uma palha", outra são as paixões como, por exemplo, a raiva, na qual não somente fazemos coisas que assentam como o punho no olho, mas literalmente damos um soco no olho de al­ guém, uma quarta possibilidade é a oligofrenia e a demência, quando se juntam coisas que a pessoa normal tem que separar de novo devido à impossibilidade de utilização da ''obra". Em todos esses casos, como se sabe, não falamos em excentricidade. A ex­ centricidade tem que ter por base — em conformidade com a im­ pressão inequívoca que só dela emana — uma possibilidade ine­ quívoca74 da existência. Que possibilidade será essa? Eis aí a questão que temos que responder. Essa questão não e, pois, de natureza psicológica ou psicopatológica, mas de natureza fenomenológico-existencial-analítíca. Não perguntamos, portanto, nem pelos motivos que podem ter levado o pai a sua ação e por seu relacionamento com a filha ou por sua atitude em face da morte, nem tampouco pela natureza de seu tipo constitutivo. Por mais naturais e justificadas que sejam essas questões do ponto de vista da psicologia e da Psicopatologia, riem por isso podemos esperar conseguir discernir com essas ques­ tões a essência da excentricidade como um modo determinado da existência humana ou do ser-no-mundo. Isso, aliás, já o mostra­ ram todas as análises que fizemos até aqui. Por outro lado, elas mostraram também onde devemos buscar o ponto de partida de nossas questões; a saber, na multiplicidade de remetimentos ou todo finalizado "em questão". Em nosso caso, por conseguinte, no todo finalizado que se formula nas seguintes palavras; ''presente de Natal para minha filha cancerosa''. É preciso ter em vista aí que um todo finalizado jamais significa uma ''realidade" estabe­ lecida de uma vez por todas, mas ''o todo categorial de uma possibilidade de ligar num contexto os objetos disponíveis".75 Em nosso caso, a condição dessa possibilidade é o ser-para inerente 74 O caráter inequívoco dessa impressão refere-se, portanto, à excentri­ cidade enquanto fenômeno existencial, mas de modo nenhum ao juízo que se faz de um determinado comportamento, modo de agir, plano, etc. enquanto excêntricos. Muito ao contrário, minha experiência ao apresen­ tar meus exemplos mostrou-me que dificilmente se poderá alcançar um consensus omnium. Tanto maior é a necessidade de pôr em marcha a "discussão" sohre a excentricidade enquanto fenômeno existencial. 75 Heidegger, M.; loc. cit., p. 144, p. 152, p. 359.

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à intenção de dar-uma-alegria com o presente exatamente na festa de Natal, aliás, uma festa de Natal que será previsivelmente a última da presentada. Esse ser-para parece estar frustrado de an­ temão, com o que se "desconjunta" o todo finalizado enquanto tal. Voltaremos a isso depois. O lugar desse ser-para "fundamentador" e, mesmo, instituidor é tomado pelo presentear de algo de que a presenteada precisa ou que pode se utilizar. Também esse ser-para é um fator — embora de modo algum indispensável — que possibilita o nosso contexto de remetimentos. Em todo caso, fenomenologicamente, ele passa para o segundo plano, atrás do ser-para inerente à intenção de dar uma alegria. O pai, porém, faz deste ser-para justamente o elemento fundamental ou instituidor do todo finalizado em questão, com o que este, é verdade, não se desconjunta de todo, embora não se conserve em sua estrutura, mas se veja restringido de maneira essencial. Na verdade, o caixão ajusta-se tão pouco nesse todo finalizado que ele é, como o pai parece se dizer, de fato ''a única coisa que ainda pode ser útil à filha", mas que ela só pode ''utilizar" depois de morta. Nesse "parece se dizer", o lugar do absorver-se atematico, guiado pela circunvisão organizadora, nos remetimentos constitu­ tivos do todo finalizado; ''presente de Natal para minha filha can­ cerosa" é tomado pela reflexão a título de uma abordagem explicitadora, igualmente guiada pela circunvisão organizadora, da coisa providenciada,76 numa palavra, pelo terna: "presente de Natal para minha filha cancerosa". O ''esquema" da reflexão é o "se. . . en­ t ã o ..." ou " s e ... p o rta n to ...". Tematicamente desenvolvido e aplicado a nosso exemplo; ''Se minha filha doente ainda precisa de alguma coisa, então é de um caixão que ela precisa, portanto vou lhe dar um de presente". Desse modo, já efetuamos, na análise de nosso exemplo, a volta que nos leva da mundanidade — entendida como o conjunto dos contextos de remetimentos em questão aqui no sentido do serpara — em direção ao para-quê, ao em-vista-de do ser-aí ou da "existência". Posto que, ''em toda compreensão do mundo, a exis­ tência (está) também compreendida e vice-versa",77 a compreensão existencial-analítica tem sempre que levar em conta "os dois as­ pectos". É só levando em conta esses "aspectos" que conseguimos nos aproximar da essência da excentricidade enquanto fenômeno existencial. Apesar de tudo o que explicamos até aqui, o ser-aí continua a existir em-vista do convívio (Miteinander) e o presente ofere­ 76 77

Heidegger, M.; loc. cit., p. 359. Heidegger, M.; loc. cit., p. 152.

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cido permanece de pé como um dado fenomenológico. O que signi­ fica isso? Ao dar seu presente de Natal, o pai abre a comunicação com a filha, ''vem ao seu encontro" num convívio. Pois o presente é, em princípio, um abrir-se em comum que envolve uma partici­ pação recíproca. Mas aqui — e é isso que é decisivo para a excen­ tricidade — o passo que se dá para o espaço aberto do convívio é de novo anulado pela própria escolha do presente, mais ainda, não somente anulado, mas convertido em seu oposto. Quer dizer; a participação em comum no presente (no sentido em que este implica um presentear e um ser presenteado) converte-se numa total falta de participação da parte da pessoa presenteada. Mais ainda; o ser-presenteado converte-se num ser-ofendido. O ''com" do convívio que estava à vista, de repente desaparece de novo78 Tocamos assim a particularidade essencial da excentricidade, sua verdadeira essência; o tema ''presente de Natal" vai aqui muito além de um ponto compatível com sua própria conseqüência, o querer dar uma alegria com o presente, ou seja, vai além do con­ vívio, ou melhor, passa por cima dele. Quando isso ocorre, como em nosso exemplo, a conseqüência do tema deixa de ser con­ seqüência! Aqui, ao passar por cima do convívio, por cima da participação em comum em algo comum,79 a conseqüência do tema transmuta-se em seu contrário, em inconseqüência. Eis aqui o verdadeiro ponto de ruptura, o ponto em que a "tensão'' {"Cespanntheit,,) do tema se converte em "exagero, exaltação" ( " Überspanntheit") e o tema ''se rompe em pedaços", o ponto em que a direção retilínea da ''abordagem explicitadora, guiada pela circunvisão organizadora, da coisa providenciada" de repente se torna uma linha torta ou subitamente se põe de través. Ou, para lembrar a perífrase da excentricidade ( Verschrobenheit) com a maluquice do "gira" ( Verdrehtheit) : aqui, ao colocar o caixão sob a árvore de Natal, a conseqüência do tema ''presente de Natal para a filha cancerosa" é girada além do limite até o qual ainda se podia preservar o convívio; ele é forçado ou girado, torcido errado (überdreht oder verdreht). Como o parafuso tor­ cido errado, ele não pode mais ser torcido, mas fica cada vez mais "entalado'' quanto mais forçamos. Com esse excesso ou erro no 78 Lemhro aqui com gratidão o impulso e o estímulo que recehi de meu amigo Wilhelm Szilasi. 79 Cf. tamhém minhas G rundform en. A forma do "Nós” (die JVirheit) no participar; o partilhar-com, o participar algo, o participar-em, etc. A expressão "convívio" (Miteinander) que, nas Grundformen, é reservada exclusivamente para a vida em comum amorosa e amistosa, é usada aqui no sentido usual em Heidegger e Szilasi que ahrange tanto o ser-com no sentido da lida e do trato quanto o cuidado assistencial (Fürsorge) dos outros (Heidegger, M.; loc. cit., p. 144, p. 152).

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girar ou torcer ( Über- oder Ver-drehtheit) da conseqüência atra­ vés da anulação do convívio, a conseqüência do tema converte-se numa penosa conseqüência (Szilasi), penosa em duplo sentido; no sentido da pertinácia com que é perseguida pelo pai, por um lado, da afronta feita ou anulação do convívio, por outro lado. Há meios para preservar a participação comum na coisa comum — nós os denominamos consideração, cortesia, tato — e há meios para dificultar ou obstar a mesma — nós os denominamos negli­ gência, falta de tato, falta de consideração, afronta, insulto. Percebemos, então, o seguinte; se dizemos que o caixão en­ quanto objeto disponível não se ajusta na multiplicidade de remetimentos ''presente de Natal", que ele assenta nela tão bem ''como o punho sobre o olho" ("il jure avec l'arbre de Noël"), e se dizemos que o excêntrico carece da circunvisão organizadora, a saber: da visão desse ajustar-se, estamos, nós outros, a julgar a partir do todo finalizado que se chama festa de Natal. Na visão do pai, porém, o caixão ajusta-se nessa multiplicidade de remetimentos, porque esta visão resulta não do todo finalizado ou, como se pode também dizer, da totalidade da situação, mas sim de um estreitamento ''específico" da mesma, ''específico" com relação à peculiar privação de seu fundamento comunicativo. Mas podemos agora expressar de maneira positiva também esse estreitamento que caracteriza negativamente a excentricidade. Isto é, podemos encará-lo enquanto fenômeno existencial; a excentricidade revelase com uma conseqüência penosa na perseguição de um tema além dos limites nos quais ainda se preserva o convívio, em outras pa­ lavras, como o forçamento (Überdrehtheit) de um tema além do ''centro de rotação" ( “Drehpunkt”) da possibilidade de participa­ ção em comum em algo comum. Nosso primeiro exemplo é tão expressivo porque, mesmo que o agente não se exprima acerca de sua ação, ele mostra da maneira mais zlara possível que a conseqüência penosa na perseguição de um tema vem justamente destruir aquilo que ele queria criar: queria criar comunicação — através do presentear — e destrói a comunicação — através da escolha do presente. Mais ainda, priva a existência do fundamento comunicativo enquanto tal.80 80 De resto, nosso exemplo do caixão é uma maneira drástica de chamar a atenção para aquilo que há muito se chama de relatividade cultural dos sintomas psiquiátricos. Para os chineses, por exemplo, como me informa uma fonte digna de crédito, um helo caixão é uma coisa da mais extrema importância, de tal modo que não raro, por exemplo, um filho presenteia sua velha mãe com um belo caixão, para tranqüilizá-la quanto a esse ponto. O caixão fica então na sala de estar e as pessoas convivem ale­ gremente com ele. Neste mesmo contexto insere-se um relato, cuja fonte não mais na memória, muito embora o fato relatado enquanto tal seja,

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Disso tudo resulta que o problema da excentricidade gira em torno do problema da abertura e do fechamento. O ser-aí existe aqui em vista do presentear, aberto portanto para o convívio. Mas, quando ''se engana em sua visão" (indem es sich "versieht”) quanto a esse em-vista-de ou quando ''se engana ao agarrar" (in­ dem es sich "vergreift”) a possibilidade ontológica desse em-vistade, ele se fecha para a possibilidade do convívio e se encerra em si mesmo. Segundo Exemplo Ao visitar, numa noite de domingo, o doente sexagenário Hae., um esquizofrênico crônico (hebefrênico-paranóide), mas ainda muito bem conservado intelectualmente, encontro-o sentado calmamente à mesa, com uma fatia de língua fria (de seu jantar) posto de través sobre a calva. Surpreso e divertido, pergunto que diabo está fazendo ali. No mais sério dos tons, mostrando apenas um brilho ''astuto" no canto dos olhos, ele retorque dizendo, que a fatia de língua é excelente para refrescar cabeça quente. Portanto, o doente vem ao nosso encontro precisamente enquanto doente, não numa experiência natural, mas, ini­ cialmente, numa experiência medical, neste contexto deter­ minado de remetimentos mundanos que é a medicina e nesta área de especialização médica que é a psiquiatria. Ele vem ao nosso encontro — ainda que a título de paciente, pelo menos num cenário "natural” — por ocasião da visita mé­ dica num sanatório. Por isso, julgamos seu comportamento “de antemão”, isto é, a partir do a priori do contexto-de-remetimentos paciente-psiquiatra, como o comportamento de um doente. N ão lhe fazemos nenhuma censura, não lhe arreba­ tamos de cima do crânio a fatia de língua fria, mas con­ servamos a distância do juízo e a paciência da observação médica. Mas, posto que o médico é “um ser humano tam­ bém” e posto que também “vê no doente o homem”, ele não pode e não quer se furtar à impressão (pessoal) do divertido ou ridículo. Todavia, permanece cônscio de que essa impressão é puramente “humana”, não constituindo, portanto, nem uma observação “médica” nem, muito menos, de acordo com a pessoa mencionada acima, perfeitamente possível na China pré-revolucionária. Um médico pediu a um pai que não contasse ao filho que este não viveria mais por muito tempo. Na visita seguinte, o médico v êpai e filho a fabricarem juntos o caixão do filho. — A pro­ pósito da relatividade cultural dos sintomas psiquiátricos, cf. sobretudo A dolf Hopp (Zeitsch. f. d. ges. Neurol, u. Psychiatr. 51, 415, 1919). Óti­ mos exemplos encontram-se também em Jakob Frostig: Das schizophrene D enken, Leipzig 1929.

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TRês FORMAS Da EXIStÊNCIa MaLOGRaDa teórico-científica. Mas, em vez de nos colocarmos no Nos do contexto de remetimentos médico-paciente e no Nós da "humanidade", nós nos colocamos mais uma vez no Nós da “experiência natural”, tão logo enxergamos no contextode-remetimentos médico apenas um "caso especial”, um setor determinado da mundanidade em geral, na medida em que esta é o conjunto das relações de significância ou dos con­ textos de remetimentos. Desse modo o a priori de nossa po­ sição, determinada naturalmente, transforma-se na evidência comum da morada natural comum81 do Nós, logo da “expe­ riência natural”. Em lugar da objetivação científica de uma pessoa dada como um objeto disponível e a ser tratado, surge aqui, pois, a compreensão e a explicitação de uma possibilidade de modificação de algo compartilhado em comum, o ser-aí como nosso ser-aí, como ser-homem ou

ser-no-mundo.

Enquanto, no primeiro exemplo, deparávamos com uma forma brutal de excentricidade, encontramos no segundo uma forma di­ vertida, engraçada. Isso já bastaria para nos advertir a não con­ fiar em nossas impressões e sua formulação lingüística, ao pro­ curarmos a essência da excentricidade.82 Também aqui conseguimos ''acompanhar até certo ponto" o ocorrido, o pragrna. A fatia de língua encaixa-se perfeitamente no contexto-de-remetimentos a que chamamos refrescarnento, do mes­ mo modo como o caixão do primeiro exemplo se ajustava dentro do contexto do presente como objeto útil. Mas quando, perguntar-se-á, poderemos dizer que a conseqüência da ação é perseguida além de um ponto compatível com ela própria, a saber, indo além ou passando por cima do convívio ? Ou por outras; até que ponto se passa aqui por cima do convívio, da possibilidade de participar em comum em algo comum? Onde é que nos defrontamos aqui com um "ponto de ruptura" no qual a retidão da conseqüência se torna distorção, se põe de través, sofre uma tensão excessiva (uma exal­ tação) ou um giro errado? Parece que o convívio não desempenha (spielt) nenhum papel aqui, pois em parte alguma se encontra ''em S1 Cf. W. Szilasi, loc. cit. Schweiz. Arch. Neurol. Psychiai. 67, cad. l, p. 77. s2 Não devemos passar em silêncio o fato de que um ou outro dos ouvin­ tes sentiu vontade de rir ao ouvir nosso primeiro exemplo. Isso já mostra que a excentricidade e o humor (W itz) estão de algum modo inter-relacionados. Essa relação reside na introdução de um traço individual estra­ nho, inesperado, na estrutura familiar de um contexto de remetimentos e na surpresa que isso provoca. Basta lembrar a concepção freudiana do dito humorístico! O tema “humor e excentricidade” necessitaria de uma investigação própria.

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jogo" ("im Spiel") uma segunda pessoa à qual o pragma pudesse remeter, à qual pudesse se referir, à qual pudesse estar destinado! Essa maneira de indagar esquece de perguntar pelo essencial, pelo ser-no-mundo enquanto tal. A questão pela maneira de serno-mundo que ''se nos antolha" aqui diz respeito não somente ao convívio como presença, mas também, exatamente da mesma ma­ neira, como ausência. "Faltar é algo que só pode ocorrer num e a um ser-com", diz Heidegger (loc. cit., p. 120) com muito acerto. Mesmo caindo no esquecimento, o convívio não é pura e simples­ mente eliminado. Ao contrário, o esquecimento, como nos ensinou Heidegger, confere ''ao desaparecimento aparente do esquecer uma presença própria". Ou por outras: o "sem os outros" (das " Ohne die ändern”) é também uma maneira do convívio (Mitei­ nander, lit.; um com o outro — N. do T .), não, é verdade, no sentido psicológico, embora certamente no sentido existencialanalítico. Se olharmos mais detalhadamente, veremos logo que o contexto em que se insere a fatia de língua constitui um compli­ cado contexto de remetimentos, no qual não somente uma, mas, sim, muitas pessoas estão envolvidas. Pois a língua remete não somente ao animal, não somente à pecuária e aos pecuaristas, não somente ao ofício do açougueiro e ao próprio açougueiro, não so­ mente ao ofício da conservação da carne e aos fornecedores, mas também à culinária e a cozinheiro, ao ofício do empregado domés­ tico, dos enfermeiros, e até mesmo ao do médico como guardião da "ordem na desordem". Não levaremos "em consideração'' aqui essa multiplicidade altamente complexa de remetimentos. É isso que, aqui também, faz da conseqüência da ação uma conseqüência penosa, isto é, exclui a participação em comum em algo comum. Se passamos aqui tão facilmente por cima da perturbação do fun­ damento comunicativo, é porque, como já mencionamos no início, partimos de antemão do a priori da psiquiatria, ou por outras, por­ que vemos, julgamos e toleramos na ação excêntrica a ação de um doente mental. Mas, com esse diagnóstico, barramos justamente, como é fácil de se ver, o caminho que leva à compreensão existen­ cial-analítica do nosso tema. Mas essa compreensão mostra-nos ainda por que podemos falar clinicamente, em semelhante caso também, em autismo, porquanto o ser-aí não somente se retira aqui do determinado contexto-de-remetimentos ''cultural" onde se in­ sere nossa ação, mas também do contexto do recebimento quoti­ diano da refeição servida por outrem, e faz de sua própria neces­ sidade momentânea o critério exclusivo de seu agir. Desse modo, o contexto-de-remetimentos enquanto tal é rompido. A fatia de lín­ gua não se encontra mais no todo finalizado da alimentação em geral, onde vinha dar sua ''história" inteira, e do jantar em parti-

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cular, em que redundava sua significação atual, mas, sim, no todo finalizado do refrescamento. Dito de outra maneira; a língua fria não é mais, agora, considerada e utilizada enquanto coisa para se comer, mas enquanto coisa para refrescar o calor. A estrutura-doenquanto83 mostra aqui uma "labilidade" que salta aos olhos. A razão dessa labilidade não é, em primeira linha, de modo algum a falta de conseqüência na perseguição de um tema, logo da reflexão, mas já é a maneira do ser-no-mundo enquanto um absorver-se atemático na disponibilidade como um todo instrumental, passando, aliás, do ponto onde ainda é possível uma participação em comum. Semelhante ser-aí existe em vista de sua necessidade e age consoante sua necessidade, como é próprio da essência do ser-aí como corporeidade. Se descrevemos esse agir como excêntrico, é porque, na conseqüência desse agir, o ser-aí se fecha em face da convivência no ''esquecimento" e se encerra consigo mesmo nesse esquecimento. A fim de fazer aparecer mais claramente ainda o fenômeno da excentricidade que se revela nesse exmplo, convém indagar por que não falaríamos em excentricidade, se o doente houvesse enfiado um lenço ou um guardanapo dentro da água fria, colocando-o sobre a cabeça, a fim de refrescá-la. Também esses prágmata têm sua "história", baseada em seu ser-para e seu em-vista-de. Mas, abstração feita do fato que essa história concerne em primeira linha, à história de sua produção ou ''fabricação", o doente não sairia de modo algum do ser-para desses prágmata, como ocorre relativamente a um pedaço de carne, portanto a algo de animal. Pois, do ser-para no sentido da alimentação e, com maior razão, da alimentação animal, para o ser-para no sentido do refrescamento é um ''salto" muito maior, um salto muito mais claro por cima do convívio, do que o salto do ser-para do ato de enxugar as mãos molhadas, de assoar o nariz e proteger a roupa contra a su­ jeira para o ser-para do refrescamento. Nos últimos casos, o ser-aí fica, por assim dizer, na superfície ou na exteríoridade do corpo, existindo em vista do mero manejo ou manipulação, do mesmo modo como no refrescamento. A ingestão de alimentos, ao contrá­ rio, não é um simples manejo de alguma coisa num plano super­ ficial ou externo, mas a incorporação de alguma coisa para a con­ servação da vida. É em torno desse ser-para e em-vista-de que gira a "história" da língua fria. O convívio está aqui excluído do ''acompanhamento", da participação em comum em algo comum, porque o que acontece aqui é, nada mais nada menos, a interrup­ 83 Cf. Sein und Zeit, pp. 148 ss.

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ção arbitrária da estrutura ''hierárquica", da ordem relativa dos projetos de compreensão "ingênuos". Quando isso ocorre, o ser-aí torna-se indisciplinado, ou por outras, fere a disciplina à qual está sujeito de uma vez por todas pela conseqüência do compreender.®4 Neste sentido podemos dizer que a excentricidade é indisciplina. Terceiro Exemplo Um professor desaconselha a seus alunos a leitura do poema Noite de Lua, de Eichendorff, porque começa com os seguintes versos; Es war als hätt der Himmel Die Erde still geküsst. [Era como se houvesse o céu beijado a terra em silêncio.]

Pois estaria claro como o dia que o céu não pode beijar a

terra. O que chama a nossa atenção ou nos surpreende aqui, a tal ponto que não podemos ''acompanhar" ou ''seguir'' sem mais, é — como nos dois primeiros exemplos — a maneira pela qual o ser-aí trata (umgeht mit) ou, mesmo, maltrata (umspringt mit) algo. Enquanto esse ''algo" era no primeiro exemplo o todo finalizado ''presente de Natal", no segundo o todo finalizado "gênero alimen­ tício", aqui é o todo finalizado ''poema". Se o pai tratava o pre­ sente de Natal como se fosse um simples objeto de uso, "sem con­ sideração" pelo outro ser-aí para o qual era destinado, e se o doen­ te tratava o alimento como se fosse um meio de refrescar a cabeça, sem consideração pelas pessoas que prepararam e serviram o ali­ mento, assim também o professor trata o poema, corno se este pre­ tendesse ser prosa (isto é, um relato factual objetivo em prosa), sem consideração pelo poeta e pelas possibilidades ontológicas poéticas ou líricas do ser-aí em geral, que também incluem os ou­ tros existentes tornados felizes e comovidos por esse poema. Além disso, deve-se observar ainda que o poeta nem sequer diz que o céu beijou a terra, mas apenas; ''era como se houvesse o céu beijado a terra em silêncio". Como nos exemplos anteriores, aqui também o todo finalizado ou multiplicidade-de-remetimentos em questão é diminuído ou restringido em um de seus remetimentos essenciais, o remetirnento ao portador, ao utilizador, ao desti84

Cf. W.

1945, p. 25.

Szilasi;

Wissenschaft als

Philosophie.

Zurique/Nova Y ork

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natário, ao desfrutador da "obra". É essa restrição que explica o fato de que um determinado traço, "aos olhos" ou no modo de ver do ser-aí descrito como excêntrico, se encaixa no ''todo", o que não acontece no modo de ver do ser-aí que se absorve no todo finalizado irrestrito, íntegro, realizado em todas as direções. Mas só essa oposição não basta de modo algum, como já observamos anteriormente, para a compreensão da excentricidade enquanto tal. O fato de que o modo existencial da poesia lírica e uma possibilidade fechada para o professor, ou de que ele se fecha a ela, remete tão-somente a uma falta de compreensão da essência do lirismo, ou se se quiser, a uma carência de dons líricos, do mesmo modo aproximadamente como o fato de uma pessoa decla­ rar que a música é para ela um ruído desagradável indica uma carência de dons musicais. Dizemos ''aproximadamente", pois a carência de receptividade para o lirismo como modo existencial é, de um panto de vista puramente existencial, muito mais grave do que uma carência de receptividade para um determinado gênero artístico. Não obstante, a carência de compreensão pela poesia lí­ rica só se avizinha dos limites da excentricidade quando o ser-aí não se contenta com a constatação; "Os poemas não me dizem nada", ou simplesmente; ''Esse poema não me diz nada", mas, além disso, rejeita o poema enquanto poema. O tratamento atemático do poema "converte-se" na interpretação do poema como coisa sem sentido. Essa interpretação é, agora, o terna da reflexão. E é só com a perseguição pertinaz e conseqüente desse tema que surge a excentricidade, como no exemplo do pai. Pois aqui também o tema é perseguido além dos limites onde ainda é possível uma participação em comum em algo comum, a comunicação, por con­ seguinte. Expliquemos isso mais uma vez, resumidamente. Quando um ser-aí, insistindo na conseqüência de seu tema e, mesmo, obstinando-se teimosamente nela, contesta, por assim dizer, ao modo existencial lírico-poético seu ''direito de existir", ele rom­ pe a comunicação com o outro ser-aí enquanto ser-aí poético, tanto no sentido do próprio poeta como no sentido daquele que participa intensamente do poema. Visto que o professor não ''participa in­ tensamente", "ele se põe a exigir razões"85 e, por não encontrar nenhuma, rejeita o poema inteiro e até mesmo a poesia em geral. Essa rejeição demonstra sua excentricidade — para repetir mais uma vez — porque, juntamente com o poeta ele próprio, são tam­ bém ''rejeitados" todos aqueles para quem a poesia lírica não é um assunto do entendimento, mas, um "assunto do coração", algo 85 Cf. Emil Staiger, Grundbegriffe der Poetik (Zurique 1946); "Só aque­ le que não participa intensamente exige razões" (p. 50).

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que merece ''o nome mais íntimo do amor''. São ''rejeitados", isto é, excluídos da comunicação, todos aqueles que não se fecham à verdade de que toda poesia se funda no insondável, "onde não é mais preciso nenhuma explicação" (loc. cit., p. 54). Finalmente, são rejeitados aqueles para quem a poesia lírica é aquela fala im­ possível da alma, ''que não quer ser 'tomada ao pé da letra' e na qual a própria linguagem ainda evita a sua própria insólita reali­ dade, preferindo furtar-se a toda abordagem lógica e gramatical"1 (loc. cit. p. 83). Aqui, também, a conseqüência do tema ou da reflexão é, pois, torcida (gedreht) além dos limites, ou dis-torcida (ver-dreht) além dos limites onde ainda é possível uma participação em co­ mum numa (determinada) coisa em comum. Aqui também, a re­ tidão da reflexão torna-se distorção ou enviesamento ("cabeçudi­ ce", ser do contra) [Schiefheit oder Quere ( " Querköpfigkeit")].. Se dissermos que semelhante "argumentação" (como a do profes­ sor) não pode ser enfrentada com nenhum contra-argumento, se lembrarmos aqui as expressões ''incapacidade de discutir" ou "in­ transigência'', não diremos nada mais além do que se exprime nas locuções alemãs do "parafuso mal torcido" [ = maluco] ou do "es­ tar enrolado torto" [ = estar muito enganado], a saber, que uma vez mal torcido o parafuso e enrolado torto o rolo, não é mais possível continuar a torcê-lo ou a enrolá-lo. Ao contrário, eles fi­ cam cada vez mais agarrados, cada vez mais entalados ou presos, quanto mais forçamos ou enrolamos. O mesmo vale naturalmente de todas as Perífrases clínicas da excentricidade, e isso não somen­ te das paráfrases que, em alemão, começam com o prefixo ver ou über [que indicam uma distorção ou um excesso — N. do T.], mas também das Perífrases que significam uma falta de adequação especial, tais como unilateral, desviante, utópico, excêntrico, etc. Quanto mais semelhante reflexão se aproximar da adequação ou da retidão ao seguir o caminho ''reto" da participação em comum em algo comum, da opinião comum ou do entendimento mútuo,, tanto mais ela se afastará da mesma na perseguição ''penosa" de sua "conseqüência". Tudo isso é válido independentemente da advertência expres­ sa, dirigida aos alunos, contra o poema. Com essa advertência ex­ plícita e sua justificação, tem-se em vista, é verdade, o convívio (precisamente no sentido de uma "advertência" e como o autênti­ co convívio do professor e seus pupilos). Do mesmo modo, no exemplo do caixão, era o convívio que se tinha em vista com o presentear enquanto tal. Mas, tanto neste como naquele exemplo, o convívio não é preservado, mas, antes, destruído. A advertência significa também, como o presente, um estar aberto em comum

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do qual participamos mutuamente enquanto advertentes e adver­ tidos. Mais aqui também, o passo que se dá no espaço aberto do convívio é de novo anulado pela advertência tal como formulada. Assim como, na experiência natural, o caixão não se ajusta no todo finalizado "festa de Natal", assim tampouco essa advertência se encaixa no todo finalizado a que chamamos ''educação". Tanto faz se falamos ou não, aqui, em falta de tacto ou de sabedoria (pedagógicas). De qualquer modo, é justamente num caso como esse que o ser-aí encerra seus coexistentes, os alunos, em seu fechamento. A tentativa de ''inclusão" na rejeição comum do poema revela-se justamente como exclusão do convívio através da oclusão ''arbitrária'' da via comum em direção ao espaço aberto dos entes em seu todo. Assim, é justamente aí que o ser-aí se enrosca (verschraubt sich) mais na coexistência, revelando-se então como um ''parafuso mal enroscado" [isto é, como uma pessoa ex­ cêntrica — N. do T.]. De semelhante pessoa pode-se dizer o que Heidegger diz do enrijecimento [Sichversteifen, no sentido de in­ transigências — N. do T.] ou da insistência em geral; semelhan­ te pessoa "se desmede temerariamente" quanto mais exclusivamen­ te, como sujeito de tudo aquilo que é, se toma a si mesma por medida. "O esquecimento desmedidamente temerário da huma­ nidade insiste em garantir a própria segurança mediante aquilo que lhe é em cada caso acessível e viável.'' Pode-se adivinhar fa­ cilmente o que significa aqui ''acessível e viável"; é a via a todos acessível, facilmente transitável, cômoda, que não faz nenhuma exigência de conteúdo e adequação, portanto, a via da penosa conseqüência do pensamento puramente formal. Pois seria possíVel reduzir a reflexão do professor ao seguinte silogismo; ''Só as pessoas podem se beijar. Ora, o céu e a terra não são pessoas. Logo, o céu e a terra não se podem beijar e aquele 'como' (-se) é sem sentido." A propósito desse exemplo, meu amigo Emil Staiger cornunicou-me um outro que pode figurar como seu “pendanf’ ; o pai do poeta Ludwig Tieck teria negado as qualidades do poeta pe­ rante Paul Gerhardt, porque seu Abendlied ( Canção do Anoite­ cer) — um dos mais belos e mais comoventes poemas da língua alemã —• contém os seguintes versos; "Agora descansam todos os bosques" e "o mundo inteiro está dormindo". Pois não podería­ mos dizer "todos os bosques" e ''o mundo inteiro", visto que os bosques e o mundo do outro hemisfério não descansariam ao mesmo tempo que os nossos bosques, e o mundo inteiro jamais dormiria ao mesmo tempo! A voz popular classificaria essa objeção — e com toda razão — de estranha e "descabida" ( “ausgefallen" ) , isto e, sem cabi­

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mento no ''quadro" que encerra "todos" e ''inteiro", que é o qua­ dro não somente da poesia, mas também do sentimento lírico. O ''todos" em ''todos os bosques" significa aqui não a soma ou tota­ lidade, mas as florestas da terra natal ou, ainda, apenas os bos­ ques nas "cercanias" deste preciso anoitecer abençoado por Deus. O mesmo vale para o "inteiro" de "o mundo inteiro". Á propósi­ to de todas essas excentricidades, devem-se lembrar as palavras muito citadas, mas jamais bastante citadas, de Pascal; "Le coeur a ses raisons que la raison ne connmt pas''. Em nosso terceiro exemplo, assim como neste, que lhe faz “pendant”, é la raison, de fato, que fala, o entendimento, mas exatamente onde "nada tem a fazer", onde, de fato, o coração ou a alma fala a linguagem dele, isto é, do entendimento, mas tornando-se “penoso'' no sentido do caráter penoso da conseqüência. Quarto Exemplo Em uma de nossas histórias de doentes da época que prece­ deu a I Guerra Mundial encontra-se o cupom de subscrição de uma editora então muito conhecida, mas não científica, de uma obra em dois volumes a ser lançada em breve e que trazia um pomposo título histórico. O sumário anunciado no cupom de subscrição continha as seguintes indicações: "Primeira parte; Psicologia individual. Apresenta pela primeira vez a pro­ va da validade da lei da conservação da energia para a vida espiritual inclusive e, pela primeira vez, aplica a esta as leis naturais (física, biologia, mecânica, etc.). Segunda parte; Ética. Postula uma síntese da moral de Cristo com a de Nietzsche, entendida como a moral da humanidade do futuro, e aplica a lei da conservação à esfera religiosa. Terceira parte; Filosofia da Historia. Leva ao resultado de que o futuro pode ser calculado e apresenta provas disso. Pois as leis naturais tamhém têm validade para a história da huma­ nidade. Quarta parte; Política. Tira aplicações úteis para a legislação, para a administração e a política interna e externa das nações civilizadas."

O autor, que então contava 37 anos de idade e que já escre­ vera um livro sobre a Tele-visão Temporal, era um discípulo do

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historiador Lamprecht (1856-1915), muito famoso em sua época, que se baseava em Wundt e procurava tipificar e periodizar a história a partir da sociologia comparativa, ou seja, de acordo com uma ''lei" de hierarquização da evolução social.86 Além disso, era um admirador do filósofo da natureza Ostwald. Naturalmente muito inteligente, quis desde sempre ''fazer tudo perfeito" e ''pro­ duzir algo de imortal". Já tendo relatado anteriormente sobre vi­ vências telepáticas, sofria agora de um surto esquizofrênico de as­ pecto maníaco. Após um semestre, esse surto provocou sua inter­ nação, para então extinguir-se após o decurso de um mês. O quadro — abstração feita de uma grande compulsão a falar, fuga de idéias e agressividade — era dominado por idéias de gran­ deza (''Nietzsche não é nada em comparação comigo", ''já per­ corri toda a evolução até o gênio") e por idéias e sentimentos de influenciamento de natureza ativa e passiva, hipnótica e elétrica. Infelizmente, perdi de vista o paciente durante a guerra. O livro, que foi em parte escrito, ainda durante o surto, em "estados de transe", como o próprio paciente dizia, foi realmente publicado. Um famoso cientista, como depois nos relatou sua mãe, compa­ rou-o, frente ao paciente, ás Confissões de Santo Agostinho e de Rousseau. Já tive o livro à minha frente. Contudo, lembro-me apenas de que seu conteúdo correspondia plenamente ao ''estilo" do programa. Quanto ao titulo, que hoje nos parece muito pre­ sunçoso, ao pretender "explicar" a história universal a partir de uma categoria da ciência natural, lembremos que o mais importan­ te dos discípulos de Lamprecht, Kurt Breysig, há oito anos es­ creveu um livro com o título; A Estruturação Hierárquica e as Leis da História Universal. Lembremos ainda que o próprio Lam­ precht pretendia analisar ou explicar causalmente o "núcleo do indivíduo" dado empiricamente. Vê-se assim que o nosso paciente apenas se orienta de acordo com a moda científica da época e, por isso, não deve, naturalmente, ser chamado de excêntrico por subsumir a história sob categorias da ciência natural e por não compreender, como costumamos fazer hoje em dia, que todo pro­ jeto de um horizonte temático "não somente é um projeto de de­ limitação de um domínio" mas, ao mesmo tempo, um ''projeto fundamentador, sobre o qual repousa o trabalho conceptual muito concreto e a problemática de cada ciência", ou por outras, que ''toda ciência tem seu próprio horizonte de compreensão que ela não consegue projetar sozinha, que ela aprofunda e alarga, care­ cendo, porém, de toda possibilidade própria para ultrapassá-lo".87 86 E. Trõltsch, D er Historismus und seine Probleme. Ges. Schriften, 3

vols., pp. 459 ss. 87

W. Szilasi; W issenschaft als Philosophie, p. 94 s.

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A excentricidade vem se mostrar pela primeira vez na maneira pela qual o autor trata ou, mesmo, "mal-trata" os métodos e dou­ trinas científicas de sua época, a saber, ao exagerá-los, estendêlos, forçá-los, torcê-los além dos limites nos quais ainda é possí­ vel o convívio, a participação em comum em algo comum. Nesse exemplo, os traços maníacos e esquizofrênicos ainda têm uma função, tanto mais que temos que falar de um "otimismo cognitivo"88 e de uma "ilusão de grandeza" maníacos, mas, ao mesmo tempo, também de uma falta de compromisso e de respon­ sabilidade do pensamento que chega ao ponto de exibir um pala­ vreado vazio. Apesar disso e, mesmo, com maior razão ainda, esse exemplo é apropriado para o confronto do método científico com o método do pensamento privado, excêntrico. O primeiro cria, o segundo destrói a coletividade. Para a compreensão do que significa o método científico não basta ver nele tão-somente um "método do pensamento”, para cujo aclaramento e determinação basta uma mera "metodologia”, como era o caso, por exemplo, no neo-kantismo. Pois a compreen­ são intelectual não deve, como o mostrou tão claramente nosso exemplo do professor, ser separada da coisa por ela pensada. Mais precisamente; a compreensão científica é projetada relativamente ao conteúdo temático (''realidade” ) e à adequação ao tema ("obje­ tividade"), assim como o mostraram tão claramente Heidegger e Szilasi "A ciência”, diz Szilasi,8» "precisa estar certa dos ele­ mentos objetivos de sua realidade objetiva e tem que efetuar em conformidade com isso o deslindamento dos limites, sempre numa determinada oposição às solicitações diretas,^® à trivialização emocional e à valoração ou revaloração arbi­ trária ou teimosa. Muito embora tenha em vista, em todas as formações apresentadas por seu campo temático, a exis­ tência humana na plenitude de suas manifestações, sua tare­ fa imediata é fixar o que há de real na existência como aqui­ lo que se conserva ao longo das mudanças e a elas se liga numa relação real determinável."

A tarefa de fixar o que se conserva nas mudanças e a elas se liga numa relação real determinável é a tarefa que tinham em vista 88 L. Binswanger; Über Ideenflucht, p. 180. 89 W. Szilasi; Machtu. Ohnmacht d. Gesites, pp. 204 ss. 90 AJjás, são a essas solicitações diretas que tamhém nos "opomos" neste trabalho, na medida em que vamos além da maneira pela qual somos “solicitados" pelos excêntricos, ou por outras, além das meras "impressões” que deles recebemos.

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historiadores como Tönnies, Taine, Lamprecht, Breysig e, de uma maneira notoriamente unilateral, também Karl Marx e, mais re­ centemente, Toynbee. Todavia, é preciso ressaltar, com Ernst Tröltsch,91 que aqui de modo algum se trata de leis, e muito me­ nos de leis naturais, mas de determinados esquemas, ''que devem ser corrigidos em cada caso pelas circunstâncias particulares". No caso desses pesquisadores, esses esquemas são em menor grau, ou não o são pura e simplesmente, tomados à ciência exata da natu­ reza, mas à história, às formas do decurso histórico enquanto tais, com o que, naturalmente, a ''natureza do homem", bem como a bio­ logia, a psicologia e a sociologia também aparecem em primeiro plano. Contudo, embora não se possa chegar aqui a um consenso de todos, a um acordo "necessário'' — como pode ocorre em alto grau, por exemplo, na matemática e na física —, o método cientí­ fico produz aqui também, graças à sua possibilidade específica da repetição, o encontro e a comunidade, e isso já pelo simples fato de conclamar ''os espíritos" para a disputa científica. Lembremos a polêmica de Lamprecht, a polêmica do materialismo e as con­ trovérsias em torno de Toynbee. Com o nosso autor — e é aí, como facilmente se pode perceber, que desejamos chegar — nem sequer a disputa é possível! Que a lei da conservação da energia também tenha validez para a vida do espírito e também possa se aplicar na esfera religiosa, que se exija uma síntese da moral de Cristo com a de Nietzsche, que o futuro se deixe "calcular" e que as ''leis naturais também tenham validez para a história da huma­ nidade", sobre tudo isso nem sequer uma disputa é possível. As­ sim, nosso autor leva o método da ciência natural de maneira conseqüente até o ponto em que ele se converte em imconseqüência e assim destrói a possibilidade da participação em comum em algo comum, logo a possibilidade da opinião partilhada em co­ mum, porque perde de vista a coisa que é objeto de sua reflexão, porque outra coisa não faz se não continuar a desenvolver esque­ mas de pensamentos tradicionais, esquecendo-se de que a única coisa que pode nos prender e obrigar no âmbito da compreensão e do discernimento partilhados em comum é a própria coisa92 Essa conseqüência ''excêntrica" do ''método", isto é, esta con­ seqüência levada até a inconseqüência, é ressaltada ainda mais por afirmações como; apresenta a prova ou provas, leva ao resultado,. etc. Não devemos também nos contentar com a constatação clínico-psiquiátrica de que se trata de "fanfarronices" de uma pessoa 91 92

E. Tröltsch, loc. cit., p. 65. W. Szilasi; loc. cit.

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''caracterizada pela fuga ordenada de idéias",93 mas temos que re­ meter para o que é esse provar: "Provar" (aqui de novo seguimos Szilasi94) "é um ato mais universal do que a demonstração matemática ou a dedução silogística. É o proporcionamento da possibilidade de todos poderem se manter na mesma compreensão, na mes­ ma maneira de perceber, na mesma correção e retidão que resultam do fato de se seguir na mesma direção.”

Nosso autor nada deixa transparecer de semelhante correção e retidão. Ele renuncia expressamente a todas as possibilidades de ativar o convívio. Mais ainda, como ele próprio declara, ele se or­ gulha de que seus contemporâneos, talvez mesmo a posteridade, não são nem serão capazes de "compreendê-lo". Assim, o que ele faz é tão-somente exagerar mais excentricamente ainda a conse­ qüência de seu pensamento. Pois um pensamento que não possi­ bilita mais uma participação em comum em algo comum, ainda que na contradição e na disputa, não é mais por isso mesmo um pensamento.95 Pelo que sei, nosso autor desde então não publicou mais ne­ nhum outro livro, pelo menos nunca mais dei com seu nome. Infelizmente, tampouco tive notícias dele, com exceção de uma breve nota bibliográfica numa revista literária mensal do ano de sua alta. O número em questão trazia o seguinte título; "X (ci­ dade onde vivia) espiritual e artística em autobiografias". Aqui também ele afirma ter conseguido a prova da existência de tele­ visão temporal. Lemos, além disso, bem no estilo de Nietzsche, o seguinte; I

"Em novembro de 1900 encontrei a formulação da lei há muito procurada (na história universal). Assim, encontro-me interiormente no zênite de minha vida.” E mais; "Aprendi a venerar Shakespeare, e Wilhelm Ostwald ('Gran­ des Homens') influenciou desde o início o meu pensamento". 93 L. Binswanger; Über Ideenflucht, p. 40 ss. 94 W. Szilasi; Wissenschaft als Philosophie, p. 19. 95 Para evitar equívocos, ressaltemos expressamente que, aqui hem como» em toda análise existencial, se trata de compreender e interpretar possibi­ lidades, logo, que aqui se trata da possibilidade de opinar, compreender e perceber em comum. O fato tão freqüentemente constatado de que um pensador, inventor, artista não é compreendido por seus contemporâneos nãp prova por isso rigorosamente nada contra a nossa exposição. Aqui trata-se apenas do fato de que as condições de possibilidade da compreen­ são permanecem preservadas, não importa qual seja o "curso efetivo da história".

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TRÊS FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA Sobre sua última escolha profissional — anteriormente exercera uma profissão não acadêmica e concluíra um outro curso universitário — escreve o seguinte; "A escolha da profissão teve lugar durante uma tarde; anotei em ficnas todas as espécies de profissão que entra­ vam em questão, rasguei o que me desagradava e sohraram três; História, Filosofia e Economia Política. Foram as que estudei."

Se voltarmos a considerar esse exemplo, veremos que aquilo que nos três primeiros exemplos, em sua maior parte, estava con­ tido apenas implicitamente, precisando ser explicitado existencialanaliticamente, ou seja, justamente, analisado, é por ele mostrado, por assim dizer, em toda sua pureza. E isso justamente porque o ser-aí assume expressamente e formula em palavras o modo de ser que denominamos excentricidade em seu traço fundamental; sua relação específica com o outro ser-aí. Se não enveredamos pelo caminho contrário e não começamos nossa investigação com esse exemplo, foi porque não queríamos nos expor à censura de pura e simplesmente "transferir" as cir­ cunstâncias desse (e do próximo) exemplo para os demais. De fato, começamos nossa investigação com a análise do exemplo do caixão, para depois vê-la confirmada nos últimos exemplos. Essa confirmação, nós a encontramos no quarto exemplo porque o autor, justamente como autor de uma obra impressa, trilha de modo conseqüente o caminho que leva ao horizonte aberto do con­ vívio, para não somente perder novamente de vista a convivência, mas também para afastá-la expressamente da participação em co­ mum em algo comum, do entendimento mútuo. Ele escreve de maneira conseqüente uma obra que, de maneira igualmente con­ seqüente, acredita que não poderá ser compreendida não só pelos contemporâneos como também pela posteridade. Mais ainda, chega mesmo a folgar prazerosamente com essa impossibilidade de ser compreendido. Evidencia-se aqui de maneira particularmente clara que, e como, a conseqüência obstinada com que alguém se fixa num "tema" se converte em inconseqüência ou se transforma em uma conseqüência penosa. Para enfrentar a objeção óbvia de aqui se tratar do ''quadro de um estado apresentando um aspecto ma­ níaco" e, em primeira linha, de um amor-próprio maniacamente intensificado e de um pensamento maníaco caracterizado pela fuga de idéias, ressalte-se que tudo isso ilumina a excentricidade de maneira especialmente clara, mas de modo nenhum pode constituir uma condição de sua possibilidade. Pois, mesmo após o desapa­ recimento do estado apresentando um aspecto maníaco, as coisas ficaram no mesmo pé. O que nos importava aqui era também mos­

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trar o fenômeno da excentricidade no decurso de uma psico­ se aguda, em outras palavras, mostrar que, no caso da excentrici­ dade, se trata de um fenômeno existencial unitário peculiar, inde­ pendentemente do fundo psicológico ou psicopatológico contra o qual ele se destaque. Todavia, abstração feita da ''conseqüência inconseqüente" do modo de comunicação no sentido do ser-aí enquanto excêntrico, surge aqui de modo particularmente claro um outro traço essencial da excentricidade, relacionado com isso, a saber, a maneira pela qual o ser-aí (m al-)trata um determinado todo finalizado. A falta de consideração pelos coexistentes, a privação, mesmo, do fun­ damento comunicativo em geral, acarreta aqui também o fato de que o todo finalizado em questão não abrange em sua plenitude o todo das doutrinas e métodos históricos da época, mas se estreita e trivializa num esquema de pensamento puramente formal. É pre­ ciso ver nisso também a razão por que, no modo de ver de nosso autor, ''a esfera religiosa'', a "moral do futuro", etc. se encaixam no conjunto da multiplicidade-de-remetimentos em questão, ou seja, o método, ao passo que, no modo de ver da experiência ''na­ tural", não se encaixam, mas se "colocam de través'', e represen­ tam mesmo uma "ruptura". De resto, este exemplo precisamente (bem como, com maior razão ainda, o que vem a seguir) devia mostrar que — para partirmos da frase acima de Szilasi — a ver­ dadeira objetividade não só é possível dentro do compreender em comum, mas — inversamente — que a verdadeira objetividade é também a condição fundamental da compreensão ou da opinião em comum. A excentricidade revela-se desse modo como a possibili­ dade imanente à essência da existência humana de chegar, por causa de sua unicidade e de sua singularidade, a um limite ou a um fim tanto com respeito ao ''objeto" quanto com respeito à comu­ nidade, limite esse além do qual não é mais possível perseguir o objeto (exagerá-lo), nem preservar ou cuidar da comunidade.

Quinto Exemplo Tomamos esse exemplo à monografia já citada de nosso ami­ go E. Minkowski sobre a esquizofrenia96 Muito embora todo psi­ quiatra disponha de exemplos semelhantes, escolhemos este, por­ 96 E. Minkowski; La Schizophrénie. Psychopathologie des Schizoides et des Schizophrènes. Paris 1927. — O caso já havia sido publicado anterior­ mente em colaboração com Rogues de Fursac em Encéphale 1923, como exmeplo para o "rationalisme morbide".

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que pode ser designado como clássico. Neste exemplo, o Ser-aí também formula em palavras e assume expressamente o modo de ser que chamamos de excentricidade. Mas, enquanto o todo fina­ lizado de que se tratava no exemplo precedente constituía uma multiplicidade-de-remetimentos no sentido de métodos, doutrinas, convicções científicas levadas ao absurdo, trata-se agora também, como logo veremos, de um semelhante todo finalizado, contudo o mesmo se revela como sendo apenas um elemento de uma multiplicidade-de-remetimentos ainda mais abrangente. Podemos desig­ nar a última como conduta de vida ou, para empregarmos a expres­ são de Gruhle, particularmente pertinente aqui, como técnica de vida. Visto que a excentricidade se revela aqui sob a figura de uma técnica de vida excêntrica afetando quase toda a conduta de vida, ela surgirá diante de nós de maneira ainda mais nítida. Trata-se de um instituteur97 (p. 104-116) de 32 anos, esqui­ zofrênico há já bastante tempo e agora adoentado. O doente tinha tomado por dever nada ler "pour ne pas deformer ma pensée”. Evita o contacto humano para não ser perturbado em suas refle­ xões e para encontrar a fonte de seus pensamentos filosóficos apenas em si mesmo. Uma das "descobertas" a que chegou por esse caminho consiste "a faire découler Vesprit de l’acüon des acides sur les terminaisons nerveuses". O doente declarou além disso que adquiriu o costume de passar primeiro tudo o que faz "pelo crivo de seus princípios” ("passer tous seus actes au crible de ses principes"). Sob a influência da idéia do aperfeiçoamento moral, evita todo trabalho prático. Basta seus pais falarem em dinheiro com ele para que ressinta isso como um ataque a seu ideal. O simples fato de ir ao médico para consultá-lo é descrito por ele como "suicídio moral". Pois o homem só deve agir so­ zinho com a sua própria vontade. Desenvolve gradativamente um “sistema" que consiste em seguir cada semana um determinado principio, hoje o da justiça, depois o da moderação e, sobretudo, o do silêncio. Só falava quando seus princípios permitiam. Atual­ mente está completamente absorvido em submeter suas ações a seus princípios e em sua regulação acertada minuto por minuto. Data seus distúrbios atuais do momento em que, de repente, es­ pontaneamente, por assim dizer "impulsivamente", começou a falar, infringindo assim seu princípio de silêncio. Outras infrações não menos catastrofais consistiram em ter, um dia, prestado serviços a seus pais, ''subordinando assim o amor universal ao próximo ao 97 Para evitar confusões com o professor de nosso terceiro exemplo, conservaremos para esse caso a expressão francesa; "instituteur” [ = pro­ fessor primário].

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amor aos pais", e, além disso, no fato de ter-se "deixado influen­ ciar" por seus pais no sentido de fazer violência a sua voz e ex­ pressar pensamentos que não corespondiam a seus princípios. Des­ se modo, perdera "o controle sobre si mesmo'' e tivera o sentimen­ to de obedecer a si mesmo ''como a uma pessoa sadia". Sentiu-se arrastado (entraíné) por sua voz e observou também que seu olhar se dirigia "contra sua vontade" para seus alunos. Finalmente, sen­ tiu repugnância pelo ensino porque suas tarefas e princípios Pareciam-lhe outorgados por seu diretor, por quem, no fundo, tinha uma grande estima. Com a constatação da "falta de unidade e conseqüência na vida psíquica do excêntrico'' (Kraepelin, Bleuler), da "falta de uma seqüência coerente do comportamento" (W yrsch), coaduna-se muito bem o fato de que o doente não so­ mente, como já sabemos, muda os princípios de seu próprio com­ portamento, mas também os princípios de seus métodos de educa­ ção, na medida em que troca o princípio de absoluta indulgência um dia pelo princípio de estrita disciplina militar, para outra Vez substituí-lo pelo princípio da suavidade e amabilidade ''liberais". O próprio Minkowski já observa que a "racionalização" ou ''a lógica" é levada aqui ao "extremo limite", o que, de um ponto de vista intelectual, conduz ao doutrinarismo e, mesmo, ao erro e, de um ponto de vista prático, ao absurdo. Observa ademais que a riqueza da vida é substituída por uma ''fórmula abstrata” e que princípios a rigor corretos acarretavam conseqüências "monstruo­ sas'', em razão de sua universalização. Tudo isso está de acordo com nossa tese da absolutização do tema, ou, para exprimi-lo de outro modo, de sua excessiva extensão até a "conseqüência peno­ sa", ou inconseqüência. Do mesmo modo, Minkowski admoestanos a evitar ver nesse "ultrapassamento dos limites" meramente "un trouble du jugement”. Pois o que está perturbado ou turvado aqui seria um fator irracional.98 Seguindo as pegadas de Bergson, descreve esse ''fator" (aqui perturbado ou ausente) como um "facteur régulateur de la vie”, como um "sentiment d'/í armo nie avec la vie”, "sentiment dJetre d’accord avec la vie et avec soi-même”, como "contact avec la réalité”, mas também, finalmente, como "contact vital avec Vambiance”. O doente estaria “prive des affinités normales”, encontrar-se-ia continuamente "en contradiction avec la vie”. Pois ''a vida" não consistiria apenas em princí­ pios rígidos e universais, mas seria sempre um fator irracional a determinar cada limite. 88 Ele cita posteriormente a excelente exposição de Divry, que culmina nas seguintes formulações; “La conscience a en quelque sorte perdu son instinct" (p. 130). “C est la logique de l instinct. . . , que ces malades oni perdue” (p. 131).

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Em consonância com a concepção "espacial" do intelecto à maneira de Bergson e seu excessivo contrastamento com a "vida", Minkowski fala, a partir deste e de um outro caso, da pensée spatiale des schizophrenes, e mesmo de um geométrisme morbide. Ele liga essa concepção à exagerada attitude antithetique desses doentes, à conduta de sua vida segundo ''idéias" que se excluetn mutuamente, o que levaria a um extremo doutrinarismo, que não conhece mais "na vida'' nenhuma medida e nenhum limite. Tal doutrinarismo teria por conseqüência, como observa Minkow­ ski muito corretamente, o sentimento do subjugamento da existên­ cia pelo mundo-comum (M itwelt), sentimento esse que já havía­ mos tomado, em nosso próprios estudos da esquizofrenia, por fio condutor de nossa investigação existencial-analítica e que havía­ mos designado como mundanização. Minkowski fala, a propósito disso e seguindo Mignard, em "le sentiment d'emprise ou d'entrainement". Se alguém se opusesse aos princípios ou idéias do doente (os pais, seu diretor), ou mesmo lhe desse tão-somente um conselho, isso seria ressentido como um ataque, sugestionamento ou subjugamento. Já fica claro aí, com se vê, que a pertinácia e a in­ flexibilidade, em suma, o caráter penoso da conseqüência do excên­ trico, de modo nenhum são sinais de força ou superioridade, mas de seu Contrário. Voltamo-nos agora para a concepção existencial-analítica. Esta distingue-se da concepção de Bergson — sem prejuízo do fato que em Bergson já se encontram certas colocações existenciais-analíticas — pelo fato de não tomar por ponto de partida ou fundamento da investigação os conceitos obscuros do irracional, da vida, do "sentimento", da "harmonia com a vida e consigo pró­ prio", do ''sentimento do contacto vivo com a realidade" ou do "meio ambiente", etc., mas, sim, como tantas vezes já se mostrou, o ser-no-mundo ou o ser-aí, a cuja constituição ontológica per­ tence a própria mundanidade e cuja estrutura foi objeto de um esclarecimento tão extenso e profundo por parte de Heidegger. A isso acresce algo que tem uma importância central para a análise da excentricidade, a saber; o fato de que Heidegger não somente não parte da separação sujeito-objeto, com também não parte da separação sujeito-sujeito, da separação do ser homem em diferen­ tes "sujeitos". Ao contrário, baseando-se num modo de indagar muito mais "originário'' ou ''primordial", chegou ao discernimento de que o ser-aí é "de modo essencial e em si mesmo" um sercom, em outras palavras, "que o ser-no-mundo do ser-aí (sic!) é, de um modo essencial, constituído pelo ser-com".99 Por isso, o ©9 Sein und Zeit, p. 120.

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ser-com, precisamente enquanto constituens essencial do ser-aí, não pode ''desaparecer" nem mesmo no modo de ser-aí da excentricidade e, assim, tampouco no caso do instituteur de Minkowski. Desse modo, o isolamento excêntrico do mundo-comum e a oposi­ ção a ele, ou seja, o autismo esquizofrênico, são também, conside­ rados existencial-analiticamente, um modo do ser-com. No exemplo do instituteur de Minkowski encontramos os tra­ ços essenciais da excentricidade — que os três primeiros exem­ plos e, por fim, o quarto nos mostraram de maneira cada vez mais clara — não somente confirmados, mas se manifestando de uma maneira particularmente crassa. Pois a esquizofrenia, como mos­ trou a primeira parte deste escrito, é o terreno no qual a excen­ tricidade por assim dizer viceja em toda sua pureza, em outras, palavras, em sua forma mais pura e ''mais perfeita". Isso vale tan­ to com relação à sua maneira peculiar de convívio, quanto com relação a maneira de lidar com cada todo finalizado em questão, bem como, com maior razão ainda, com relação à solidariedade essencial de ambas. No que concerne à maneira do convívio, con­ seguimos aqui também "acompanhar" o doente até certo ponto. Pois o dever de nos "aperfeiçoarmos espiritualmente", o dever de formarmos nossos próprios pensamentos sem derivá-los da sim­ ples leitura de escritos alheios, e de encontrar suas fontes tanto quanto possível em nós mesmos, a obrigação de nos guiarmos por certas máximas nas questões pedagógicas e em nossa conduta de vida, nada disso é de modo algum excêntrico. Portanto, aqui também se mostra — e em toda sua pureza — que só se pode falar em excentricidade quando algo que "no fundo" nos é comum, que nós todos visamos em comum, no qual pois é possível uma parti­ cipação em comum, se converte por sua perseguição pertinazmente conseqüente em conseqüência penosa ou inconseqüência. Em ou­ tras palavras, o que se atinge aqui é precisamente o contrário da­ quilo que "no fundo" era visado. Em vez da comunicação com o mundo comum através de pensamentos próprios, do aperfeiçoa­ mento e conseqüência próprios, seja na educação, seja na própria conduta de vida, em vez disso temos uma extensa destruição do fundamento comunicativo enquanto tal. É na oposição e no autoisolamento explícitos — colocados no primeiro plano pela clínica e, assim, por Gruhle também, na concepção da excentricidade, muito embora representem apenas urna, ainda que extrema, moda­ lidade da excentricidade — é nessa oposição, logo no negativismo, e no auto-isolamento que culminam as possibilidades de prejudicar o convívio, como já pudemos comprovar em todos os exemplos anteriores. Se o prejudicamento da convivência no primeiro exem­ plo se revelou como uma brutal falta de consideração, no segundo

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como esquecimento, no terceiro como fechamento, no quarto como arrogância, aqui ele se revela como a oposição explícita do ser-aí ao convívio e como o isolamento explícito em face do convívio. Essa maneira de prejudicar o convívio, a que se chama "oposição", representa tão-somente a tentativa do ser-aí — já exibida em todos os exemplos anteriores, mas que aqui se mostra explicita­ mente — de existir em vista de sua unicidade e de sua particula­ ridade, logo de seu modo singular.10° Com isso quer se dizer tãosomente que o todo finalizado no qual o ser-aí se "enrosca" ("verschraubt") aqui é a conduta de vida total e, até mesmo, o ser-no-mundo como um todo. Se Minkowski fala aqui em um "rationalisme morbide'', isso significa para nós que o ser-aí não está mais aqui aberto ( erschlossen) para o seu aí no ato decidido ( entschlossen) de assumir a respectiva situação, não é mais "livre" para arrumar o espaço (in der Einräumung) de cada margem-deação (Spielraum) de seu poder- e saber-ser fáctico, mas está de uma vez por todas "preso" a regras, fórmulas ou princípios rígi­ dos, igualmente decisivos para todas as situações. Em vez do absorver-se a-temático, guiado pela circunvisão organizadora, nos remetimentos constitutivos de cada todo finalizado, surge, então, o absorver-se penosamente conseqüente na explicitação de algo a ser providenciado segundo temas fixos. Se, porém, indagarmos o que subjaz a essa falta auto-escolhida de liberdade, a experiência clíni­ ca mostrará tanto aqui como em outros lugares que, ''por trás" de semelhante tematização "técnica" do próprio ser-aí, ou expresso mais vulgarmente, por trás de semelhante ''mania de princípios", espreita o medo de deixar-se decididamente chamar à situação no sentido do autêntico poder- e saber-se, do querer-ter-uma-consciência-moral.1101 Quer dizer; em vez de assumir na decisão a res­ pectiva situação e de se afirmar nela na confiança recíproca, na confiança no autêntico convívio, o ser-aí perde-se no tempo "va­ zio" ou na intemporalidade de rígidos princípios, regras, idéias ou ideais ''impessoais" .1012 É nisso que consiste a morbidez desse "racionalismo", ou seja, a excentricidade em uma de suas formas mais extremas.

100 Cf. a esse propósito L. Binswanger, G ru n d fo rm en ..., l . a parte, 3.° cap., p. 382 ss. 101Cf. Sein und Z eit, § 60, pp. 295 ss. 102 Podemos acrescentar tamhém; definições. Assim, para citar apenas um exemplo, o esquizofrênico crônico Franz Weher (citado por Roland Kuhn) rejeita expressamente "uma vida que não se pode nunca definir". Cf. R. Kuhn; "Daseinsanalytische Studie über de Bedeutung von Grenzen im Wahn". Mschr. Psychiat. Neur. 124, 367, 1952. Esse caso serviria para que se mostrassem facilmente as relações entre excentricidade e insônia (W ahn).

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Não esqueçamos, de resto, que em todos os exemplos anteriorres bem como neste também, o ser-aí coexistente não é de modo algum encontrado apenas no modo da excentricidade. Em todos os nossos exemplos pode-se falar também de uma participação em comum dos excêntricos em algo comum. A excentricidade do ser-aí — e isso pertence justamente à sua determinação essencial — revela-se sempre tão-somente como uma possibilidade ontológica res­ trita a determinados modos do ser-com. Assim, por exemplo, o pai no primeiro exemplo atua na vida pública, o esquizofrênico do segundo exemplo chegou a se casar, o professor do terceiro desincumbe-se de suas funções sem, pelo que sei, dar na vista, e o historiador trata corretamente de seus negócios com o seu editor. Mas também o doente do último exemplo não vive apenas em opo­ sição ao mundo-comum e em seu isolamento — sem falar nos ser­ viços eventualmente prestados a seus pais —, ao contrário, ele Vive também na comunidade do residir, do comer, do tráfego na rua, da ocupação (magistério), do relacionamento médico-paciente, etc. Tudo isso deve ser conservado em mente, para que se possa contrastar a maneira de ser que chamamos de excentricidade com outras maneiras de ser do ser-aí, por exemplo a desagregação, a confusão mental ou a “maluquice" ( Verrücktheit) em geral. Enquanto Minkowski, para terminar, menciona com Mignard o sentiment d’emprise ou d’entramement, que se observa também tantas vezes em semelhantes casos, nós, ao contrário, não falamos aqui do sentimento como um fato psicológico, mas, como já disse­ mos, de um subjugamento do ser-aí pelo mundo-comum no sentido do estar-entregue ao mundo-comum. Justamente o quinto exemplo mostra, mais uma vez em toda sua ''pureza", que as possibilidades de prejudicar o convívio -— quer à maneira da afronta, quer do esquecimento, do fechamento, da arrogância e, sobretudo, da opo­ sição direta — não enfraquecem o poder do ser-aí coexistente, mas, ao contrário, justamente aumentam o seu poderio e transfor­ mam-no, mesmo, em prepotência. A afirmação feita acima de que a excentricidade não é nenhum sinal de força, mas de fraqueza, dava — do ponto de vista de cada ser-aí — no mesmo. Nenhum traço básico essencial do ser-aí deixa-se "passar por cima", "su­ perar", "suprimir", sem reaparecer fortalecido, sob uma for­ ma qualquer, dessa supressão. Esse "fortalecimento'' do poder do ser-aí coexistente mostra-se, por conseguinte, nao somente, como no quinto exemplo, como uma pretensa tirania e, até mesmo, como uma tirania desvairada, como repressão, sujeição, sugestionamento por parte dos outros, mas já como mera alteridade, estranheza, "resistência'' dos mesmos. A isso se liga tanto o endurecimento dos excêntricos em face do mundo-comum, como também sua sen­

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sibilidade, tantas Vezes desmedida, em face dele. Os dois casos ocorrem do mesmo modo, sempre que o ser-aí se dispõe a existir em Vista de sua particularidade e unicidade, logo de sua singula­ ridade, um em-vista-de onde o ''sucesso" da existência humana tem necessariamente que fracassar. Não recordaremos aqui onde se ba­ seia o modo de experiência ''por nós" qualificado de excêntrico, tanto mais que teremos que voltar a ele com maiores detalhes, na próxima seção. Se o designamos acima, do ponto de vista do em-vista-de-quê do ser-aí, como um modo de existir em vista de sua particularidade e unicidade, então o nosso quinto exemplo, o do instituteur, expressou com toda clareza e assim tornou patente o que só a interpretação existencial-analítica foi capaz de patentear nos exemplos anteriores — abstração feita, como dissemos, até certo ponto, do exemplo do historiador. De fato, através desse emvista-de elevado a princípio, "máxima de vida", o ser-aí põe-se a solapar o fundamento sobre o qual ele existe. Ele, justamente, não o assume como o seu fundamento — como conviria à individuação no sentido do Si (Selbst) autêntico103 — e assim dele também se isola num modo de ser essencial, o ser-com. Enquanto a existência humana só pode ''ter sucesso" no jogo livre onde se enfrentam a auto-afirmação e o auto-abandono, a insistência em agir segundo a própria opinião (Eigen-Sinn) e o abandonar-se à opinião comum (Cemein-Sinn) , ao koinós losmos, e ao ''sentido do amor", ao "Tu", o ser-aí agarra-se aqui convulsivamente à sua particularidade. Sob essa ''convulsão", esse agarrar-se excessiva­ mente intenso, ou seja, excessivamente conseqüente, a um princí­ pio "gasto”, isto é, incapaz de oferecer ao ser-aí qualquer ponto de apoio, espreita, como já dissemos, a angústia existencial. Esta sur­ ge sempre que semelhante princípio é infringido e o ser-aí se vê "convocado” à situação. Em nosso caso, ela surge, pois, quando o princípio do amor universal aos homens é posto de lado "impul­ sivamente" pela manifestação de amor aos pais. De resto, nosso exemplo mostra que o problema da excentri­ cidade também tem relações com a problemática mais ampla da relação entre o pensamento do particular e o pensamento do uni­ versal, tal como determinado de modo tão claro por Heráclito e tão energicamente elaborado por Hegel. Naturalmente, nosso in­ teresse não é interpretar o instituteur a partir de Heráclito e de Hegel, o que também nos tornaria, de nossa parte, "excêntricos”. Cumpre apenas mostrar que é precisamente o princípio diametral­ mente oposto ao princípio do instituteur que precisa ser defendi­ do, e isso, aliás, com a mais profunda fundamentação filosófica. 103

Cf. Sein und Zeit, p. 339.

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Seu ponto culminante é a proposição de Hegel: "Os homens cos­ tumam achar, quando devem pensar alguma coisa, que precisa ser algo de especial; mas isso é um engano.''104 Segundo Hegel, o espírito, enquanto mera particularidade individual, perde a objeti­ vidade. Na particularidade, ele não é universal. "Só a consciência enquanto consciência do universal é consciência da verdade. A consciência, porém, da particularidade e do agir enquanto par­ ticular — uma originalidade que se converte numa peculiaridade do conteúdo ou da forma — é a inverdade (das Unwahre) e o ruim (das Schlechte). O erro consiste, pois, tão-somente na individuação do pensamento — o mal e o erro, em segregar-se do universal." Se lançarmos aqui um olhar retrospectivo sobre a tese de nosso instituteur, segundo a qual é preciso encontrar a fonte de seus pensamentos filosóficos dentro de si mesmo, percebere­ mos aqui também uma falta de confiança, a saber, de confiança na "razão universal", ou, para exprimi-lo positivamente, o medo do ser-aí de se perder na razão universal. O círculo de nossa existência move-se, no pensar e no agir, entre a Cila do universal e a Caribde do particular. A excentrici­ dade é apenas uma forma de escapar a esse estreito, justamente mediante uma afirmação penosamente conseqüente e, desse modo, estéril da mera particularidade enquanto tal. Pois nem toda autoafirmação e auto-acabamento são "excêntricos". As palavras de Ibsen — ''Pois é justamente isso que é preciso fazer: viver por si mesmo, entregar-se todo à sua obra'' —, essas palavras não devem, naturalmente — em virtude da enfatização da obra, que se move sempre no elemento do universal — ser consideradas como excên­ tricas, uma vez que só o estilo rigoroso e penoso de sua conse­ qüência leva à excentricidade. Mas há ainda um outro gênero de auto-afirmação que tem a ver com a excentricidade e, ao mesmo tempo, até mesmo preserva a convivência em alto grau, a autoafirmação prometeica. Pois a ela pertence justamente aquilo de que sentimos falta na excentricidade, o ''coração que arde numa chama sagrada". É assim o Prometeu de Goethe: “Hast doch alles selbst vollendet, Heilig glühend' H erz.” ["Pois realizaste tudo, tu mesmo, coração a arder numa chama sagrada."] 104 Cf. a esse respeito e a propósito do que se segue, meus ensaios sohre "Traum und Existenz" ("Sonho e Existência") e "Heraklits Auffassung des Menschen" ("A concepção heraclitena do homem "), Ges. Vortrage und A ufsätze, Berna 1947.

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Quando o coração arde e, sobretudo, quando arde numa cha­ ma sagrada, como faz aqui para a criação dos homens, aí, então, o ser-aí existe em vista de sua unicidade e particularidade, não na perseguição penosamente conseqüente de um ou de vários temas e princípios, para afinal atingir o contrário, a saber, a perda de sua unicidade e particularidade na insânia, mas numa ardente au­ to-afirmação e revolta contra toda prepotência, penetrado do ca­ ráter sagrado do coração e da inadiável necessidade da oOra. F.

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E ssê n c ia d a E x cen tr ic id a d e

Acreditamos que podemos contentar-nos com esses exemplos — tão poucos que se podem contar nos dedos de uma mão — tomados ao domínio imenso e inesgotável da excentricidade hu­ mana. Pois, na apreensão fenomenológica da essência, o que im­ porta — ao contrário do que ocorre na ciência natural — não é um acúmulo tão grande quanto possível de exemplos ou fatos, mas a apresentação ou rememoração "exemplar" de fatos huma­ nos singulares e a apreensão e fixação das "essências puras'' sobre semelhante "base", ou ponto de partida, exemplar.105 De qualquer modo, não somente estamos muito longe de uma pura apreensão essencial do fato existencial da excentricidade numa "ideação" ou "intuição adequada", mas nem sequer devemos es­ perar atingir esse alvo. Pois, na pesquisa existencial-analítica, temos que nos contentar com a possibilidade de ressaltar fenomenologicamente, numa compreensão existencial-analítica, a essência de uma maneira fáctica de existir ou de um determinado proces­ so existencial fáctico, destacando-a contra o fundo do ser-aí ou do ser-no-mundo em geral, a fim de descrevê-la na peculiaridade de seus traços fundamentais. A questão onde é lícito ou necessário nos deter nessa compreensão e nessa descrição compete ao tacto fenomenológico e à experiência existencial-analítica. Em todo caso, porém, a essência — quer se trate de um modo, quer de um processo existencial — só estará compreendida em sua peculiari­ dade quando esta houver sido compreendida tanto com relação à mundanidade de cada mundo — por conseguinte, com relação à estrutura do ser-para do remetimento, da finalidade ou significância — quanto com relação àquilo que está em questão para cada ser-aí em seu poder- e saber-ser. Sob o título; A essência da 105 Cf, Husserl, Ideen zu einer reinen Phänomenologie und phänomeno­ logischen Philosophie, Jb. Philosoph, phän. Forsch, t. I, p. 60, Halle 1913, bem como Log. Untersuchungen II, 1, 2.® ed., p. 439 s., Halle 1913.

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excentricidade temos em vista um resumo, bem como uma am­ pliação e um aprofundamento das investigações a que procedemos até aqui. Em nossa investigação da excentricidade, demos mais ênfase, e isso já por motivos didáticos, à compreensão da mundanidade do ser-aí enquanto excêntrico, ou por outras, à natureza peculiar da articulação das relações de remetimento (à peculiaridade do "ajustamento'' ou da "adequação"). Mas também penetramos cada vez mais profundamente na compreensão da peculiaridade do que está em questão para o ser-aí enquanto excêntrico (a particula­ ridade e a unicidade). Indicamos também a peculiaridade do pro­ cesso existencial enquanto excêntrico, compreensível a partir da­ quela modalidade de ser-para e desta modalidade do em-vista-dequê, com a constatação da chegada a um fim, do malogro ou fra­ casso do ser-aí. E, de fato, esse malogro ou fracasso do ser-aí foi observado em todos os cinco exemplos; no primeiro exemplo como fracasso do poder — e saber-ser pai, no segundo como fracasso do poder- e saber-ser são, no terceiro como fracasso do poder- e saber-ser um educador, no qiiarto e quinto como fracasso tanto do poder- e saber-ser são quanto do poder- e saber-ser um pesqui­ sador. As "descobertas'' do historiador e do instituteur eram, para falar com Minkowski, apenas as "mais monstruosas" de todas as conseqüências "penosas" ou ''malogradas", no sentido da excen­ tricidade. Mas, a rigor, não escapavam ao quadro dos exemplos precedentes. Assim o caixão, no modo de ver do pai, ajustavase no todo finalizado "festa de Natal", ou era adequado para ele. A fatia de língua fria, no modo de ver do doente, era adequada para o todo finalizado ou contexto-de-remetimentos "refrescamento", e a recusa do poema encaixava-se, no modo de ver ou "no espírito" do professor, na multiplicidade de remetimentos "razão"' ou "educação racional''. Do mesmo modo, "no espírito" do histo­ riador, a história e a "esfera "religiosa" encaixavam-se no contex­ to de remetimentos da natureza e da lei da conservação da energia, e "no espírito" do instituteur os ácidos e as terminações nervosa? encaixavam-se na multiplicidade-de-remetimentos das relações entre o corpo e a alma, a matéria e o espírito. Do mesmo modo, princípios pedagógicos diametralmente opostos encaixavam-se no todo finalizado "educação racional", e os diversos princípios da conduta de vida encaixavam-se no todo finalizado "técnica de vida racional". Todos esses encaixes ou adequações ("excêntricas") mostravam, pois, não somente a maneira particular da mundanidade do ser-aí enquanto excêntrico, mas também a maneira par­ ticular do em-vista-de do ser do ser-aí, em suma, a maneira pela

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•qual o ser-aí — enquanto excêntrico — possibilita o encontro do ente enquanto disponível.106 Para retomarmos a última formulação, podemos dizer, em re­ sumo, que a maneira pela qual o ser-aí enquanto excêntrico pos­ sibilita o encontro do ente enquanto disponível é a maneira do través e da distorção. A partir daí, é possível descrever a mundanidade da excentricidade como uni mundo do través e da dis­ torção e o ''espírito", no qual temos que compreender o ser-aí como excêntrico, como um espírito do través ou da distorção.107 Tudo o que fizemos com isso foi tão-somente interpretar existencial-analiticamente o que a linguagem ordinária já discerniu com tanta nitidez e, em consonância com sua própria preferência das expressões espaciais, expressou com tanta clareza. Todavia, em oposição ao ponto de vista da linguagem ordi­ nária, bem como à linguagem a ela ligada da clínica, não nos detivemos nas impressões que temos no trato com o excêntrico como um instrumento humano disponível, nem nas propriedades que ‘'nós", ao tomarmos uma distância "teórica", constatamos neles como sujeitos subsistentes à maneira de coisas, isto é, como sujei­ tos reificados. Muito ao contrário, deixamos, tanto quanto possível, não só que os excêntricos tomem a palavra, mas também procura­ mos compreendê-los a partir de seu próprio sér-ai e de seu pró­ prio mundo. Ao fazer isso, percebemos — como acabamos de recapitular — que à excentricidade também de modo algum falace a visão do ajustamento do objeto disponível na multiplicidade de remetimentos e, assim, no para-quê de sua utilidade, muito em­ bora essa visão e esse ajustamento estejam de tal modo modifi­ cados na excentricidade que ''nós", que lidamos com os excêntricos e os julgamos, podemos falar sem mais em falta da circunvisão organizadora e em um não-ajustar-se. 106 Cf. Heidegger, Sein und Zeit, § 18, pp. 83 ss. (Finalidade e significância; a mundanidade do mundo.) 107 A língua francesa também conhece esse espírito do través ou da dis­ torção, pois a expressão esprit de travers não somente pode significar, com o por exemplo em La Rochefoucauld, uma pessoa excêntrica, "un esprit de travers"y mas tamhém a atitude de espírito excêntrica enquanto tal, “l'esprit de travers". Cf, por exemplo Voltaire no 21.° Canto de sua Pucelle: “Connaissons-nous quels atomes divers font l'esprit just ou l'esprit d e travers?" — Aqui, o contrário do travers e juste. Em La Rochefou­ cauld era droit. O través no sentido da excentricidade significa, pois, como vemos aqui tamhém, o oposto "espacial" da retidão, bem como o oposto lógico da correção (just) , mais ainda: "a retidão" revela-se tão-somente com o uma expressão tomada à espacialidade para o correto (das R ichtige). Cf. a esse propósito, mais abaixo, as palavras de Fontane sobre a liber­ dade risonha, que faz hoje isso, amanhã aquilo, “mas sempre a coisa certa" (das R ichtige)”.

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Com o discernimento existencial-analítico da maneira pela qual os excêntricos tornam possível o encontro do ente enquanto disponível, bem como com o discernimento do fato de que o ente disponível, no modo de ver deles, se ajusta perfeitamente na res­ pectiva multiplicidade de remetimentos ou todo finalizado, a com­ preensão existencial-analítica já deixou muito para trás o contacto impressionista com os excêntricos e nossa ''reação" a esse contacto no juízo que deles fazemos e que é, ao mesmo tempo, uma sentença condenatória. Por sua vez, a compreensão existencial-analítica já atingiu um fundo sólido, a saber, o modo peculiar do ser-no-mundo dos excêntricos. Mas, nem por isso, o círculo de nossa investigação já se fechou! Ao indagar pela essência da excentricidade, não po­ demos nos contentar com o contraste peculiar entre o ser-no-mundo enquanto excêntrico e a mundanidade enquanto excêntrica, por um lado, e o ser-no-mundo e a mundanidade em geral, por outro lado. Precisamos investigar ainda de que gênero — do ponto de vista do caráter público do Nós — é o encaixar-se no sentido da excen­ tricidade ou enquanto excêntrico. Nessa indagação, pois, o lugar do Nós — tomado no sentido das ''pessoas" que lidam com os excêntricos e as julgam e condenam — é tomado pelo Nós da experiência natural, que é o "local" da abertura para o ente em sua totalidade. Visto deste ponto de vista, o ajustamento (Fügung), por exemplo, do caixão ila festa de Natal não é absolutamente um ajus­ tamento no sentido de um ajustar-se ‘'natural", isto é, adequado à "natureza da coisa", mas apenas no sentido de um ajuntar (Anfügung) que "a nada ob-liga" (unverbindlich). A linguagem ordinária também sabe disso. Quero apenas mencionar expressões como "sem naturalidade", "desarmônico" ( = ''sem sintonia"), "desajustados", desadaptado", "contraditório", mas também ex­ pressões como "desgracioso", "grosseiro", "cheio de arestas", etc. Pois, como vimos, o mundo do través é, em todo sentido, um mundo sem encanto e, assim (cf. Schiller: Sobre o Encanto e a Dignidade), um mundo sem ''leveza", um mundo das coisas ''for­ çadas", do trato difícil, um mundo onde nada se desenvolve "sua­ vemente", mas tudo sai torto e de través, dando errado. Apesar de o ser-aí mostrar enquanto ser-no-mundo uma estru­ tura na qual tudo está em conexão com tudo, parece estar de an­ temão excluída a possibilidade de compreender a peculiaridade do encaixe "excêntrico" tão-somente a partir da peculiaridade da articulação das relações de remetimento. A articulação das mesmas no sentido do "ajuntar" tem que ser compreendida a partir da estru­ tura total do ser-aí enquanto excêntrico, primeiro justamente a partir da "visão" dos excêntricos, depois a partir do modo da

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circunvisão organizadora que orienta o seu ''providenciar". À circunvisão do providenciar pertence, como sabemos, não somente a visão da ''natureza da coisa", logo da coisa a se providenciar, mas também o respeito pelos outros, a possibilidade de preservação do convívio, da participação em comum em algo comum. (As duas coisas acabam, aliás, por dar no mesmo!) Aquele ajuntar ou acres­ centar não deveria, por conseguinte, ser designado como um pro­ videnciar guiado pela circunvisão organizadora no pleno sentido da palavra, mas como um providenciar míope, de vista curta. De vista curta, é verdade, não com respeito à disponibilidade e à coisa disponível enquanto tal — pois a excentricidade consegue "ligar" as coisas mais remotas com as mais próximas —, mas, sim, com relação àquilo em favor de que (wofür) o providenciamento (Besorgen) caracterizado pela circunvisão organizadora ''tem que tomar cuidados (Sorge)'' e ao modo como tem que ''tomar cuidados". Mais ainda; embora o em-vista-de do ser do ser-aí, em con­ formidade com a estrutura do ser-no-mundo em geral, esteja re­ metido a e na dependência do ser-para, logo na mundanidade, o ser-aí excêntrico exibe, mais uma vez, uma peculiaridade na me­ dida em que está remetido a e na inteira dependência do ser-para, compreendendo-se, assim, inteiramente a partir do mundo e, nessa medida, inautenticamente. Ou por outras, ele não se compreende na individuação da existência ou do Si (Selbst) autêntico. (E muito menos, naturalmente, se compreende como parte integrante do Nós do amor!) Já aludimos a esse fato ao falarmos (cf. o quin­ to exemplo) do fato de que o ser-aí enquanto excêntrico não se deixa chamar decididamente a situação, ou, dito de outro modo, não abre a situação. Na medida em que "a situação'' permanece fechada para o excêntrico, aqui também não se pode chegar a uma articulação das relações de remetimentos no sentido da experiência natural, mas apenas a um ''ajuntar" ''que a nada ob-liga" e que não atinge a situação. Em vez de se deixar decididamente chamar à situação (em questão) num providenciamento atemático, guiado pela circunvisão organizadora, o ser-aí excêntrico decai, entregando-se (cf. de novo o quinto exemplo) à "tematização", isto é, ao ocultamento da situação em questão sob um tema universal, sob um conceito universal, um princípio, um ideal, uma regra, fórmula ou, mesmo, definição. Desse modo, porém, a individuação do ser-aí no sentído da existência ou do Si autêntico, logo o ato de tomar sobre si na existência adentro o fundamento do ser-aí, é substituído pela particularidade e pela unicidade arbitrariamente afirmadas. Isso vale sem exceção para todos os nossos exemplos, a começar pela tematização do presente de Natal como ''um objeto útil após a

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morte", logo, por sua inclusão nesse ''conceito", e terminando com os ''princípios" do instituteur. Em lugar do agir (conforme à si­ tuação), que já segundo Schelling constitui "a essência do ho­ mem", surge afinal a "mera reflexão", essa "doença do espírito humano", como também já dizia Schelliiig.108 Mas, para dar a palavra não somente à filosofia, mas também ao "senso comum", lembremos as palavras de Fontane, que aqui, como em outros lugares, acerta em cheio: "T, de novo aprontou uma boa quantidade de excentricidades e teimosias que se chamam Direito ou princípio ou conseqüência. Como são ínfimas todas essas coisas! E a que altura está, ao lado delas, a liberdade risonha, que faz hoje isso amanhã aquilo, mas sempre a coisa certa.''109 É ver­ dade que Fontane ressalta também que ele tem um pendor para a liberdade e a mudança, "mas eu o tenho sob o cntrole de meu juízo e entendimento, que são os reguladores de minha maneira de viver e agir.''1110 Vê-se, portanto, que, a rigor, o ato livre, de­ cidido, de abrir a situação e a sua tematização de modo algum se -excluem. Ao contrário, se a vida humana deve ser bem-sucedida, o que importa é a ''medida certa", a harmonia entre ambos. Essa harmonia mostra-se no fato de que a articulação das relações de remetimentos nasce e cresce como um ajustamento natural e não simplesmente ocorre como o ajuntamento (excêntrico, atravessado, torto) de um pedaço. Designamos semelhante nascer e crescer de bom grado como "vida". A esse respeito também, Fontane acerta em cheio, colocando-se numa posição diametralmente oposta aos excêntricos, quando, por exemplo, escreve que se esforça por "dei­ x ar tudo nas proporções e percentuais que a própria vida dá a 108 Cf. Schelling, Introdução às Idéias para uma Filosofia da N atureza com o Introdução ao Estudo dessa Ciência. Ohras Escolhidas em três volu­ mes, editadas por Otto Weiss, Fritz Eckardt Verlag, Leipzig 1907 1.° vol., p. 109; "Pois a essência do homem é o agir. Quanto menos ele reflete sohre si mesmo, tanto mais ativo ele é. Sua mais nohre atividade é aquela que não se conhece a si mesma. Quando ele se toma a si mesmo por objeto, não é mais o homem inteiro que age. Ele suprimiu uma parte de sua atividade a fim de poder refletir sobre a outra." E mais; "A mera reflexão pois, é uma doença do espírito humano, principalmente quando se transforma em dominação do homem inteiro, aquela que mata no germe sua existência superior, que corta pela raiz ( . . . ) sua vida espi­ ritual. Ele é um mal que acompanha oshomens pela vida adentro e nele destrói toda intuição até mesmo para os objetos maiscomuns”. — Cf. também Erich Heintel; "Epikur und die Angst vor dem Tode", W iener Z. Philos., Psychol., Pädagogik, 4, 9, 1952. 109 Theodor Fontane, Briefe an seine Familie. S. Fischer-Verlag, Ber­ lim 1924, t. I, pp. 291 ss. Grifo meu. 110 Ibid. I, p. 194.

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seus fenômenos".111 Roça, assim, um tema que filosoficamente se designa como o da relação entre a transcendência subjetiva e a transcendência objetiva e que é o único tema a partir do qual a excentricidade pode vir a ser compreendida transcendental-filosoficamente. Pois ela representa, enquanto malogro ou fracasso ne­ cessário do ser-aí inteiro, um caso especial do deslocamento dessa relação em favor da transcendência subjetiva e em prejuízo da transcendência objetiva. Se demos a palavra a um não-filósofo, foi porque não quería­ mos sobrecarregar excessivamente os leitores de uma revista psi­ quiátrica com explanações filosóficas. Basta ter mostrado que e em que medida a excentricidade representa uma forma particular e particularmente clara do malogro112 do ser-aí em geral, que abrange desde a articulação das relações de remetimentos, passan­ do pela práxis e pelo pragma, pela teoria e pela ciência, até a conduta de vida e a comunidade da vida em geral. Como vimos em nossos exemplos, os excêntricos vêm ao nosso encontro, até certo ponto, a partir de um modo de ser-no-mundo que nos é fa­ miliar, para se retirarem imediatamente de novo para um domínio com que não temos nenhuma familiaridade. Por isso, foi preciso que a compreensão existencial-analítica da excentricidade visasse desde o início a compreensão da excentricidade a partir desse virao-encontro e desse retirar-se. O que designamos como conseqüên­ cia penosa da excentricidade outra coisa não é senão esse limite entre os dois. Mas, dado que esse limite é, em ampla medida, deslocável, a excentricidade não "começa" num "ponto" determinado da estrutura total do ser-no-mundo. Muito antes, ela representa uma ameaça à possibilidade de ser bem-sucedido, ameaça essa que é própria de e peculiar ao ser-homem em seu todo, que lhe é "imanente". Naturalmente, isso deve ser levado em conta com respeito também à interpretação temporal da excentricidade, para a qual queremos agora nos voltar (se bem que tão-somente no sentido de uma tentativa tateante e a largos traços). Depois de tudo o que sabemos, não nos é lícito esperar poder compreender a excentri­ 111 Ibid. II, p. 27. 112 O leitor interessado em filosofia fica remetida a W. Szilasi, M acht und Ohnmacht des Geistes, Berna 1946, em particular II, "Considerações sobre a Existência". Aristóteles; Ética a Nicômaco. Cito apenas a seguinte passagem (p. 149); "Quando alguém considera apenas as leis e as regras da natureza, da alma, dos fatos sociais e outras coisas semelhantes, mas não tem nenhum intuição do ser-hem-sucedido do ser-homem, todos os seus esforços malogram, porquanto não têm nenhuma utilidade para a liberdade da decisão".

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cidade a partir de uma determinada "ecstase" temporal, portanto nem a partir da temporalidade do sentimento da situação (Befin­ dlichkeit) apenas, ou da temporalidade do compreender, nem a partir do providenciar guiado pela circunvisão organizadora e do decaimento ( Verfallen). Se a excentricidade não atinge jamais "a coisa certa", mas sempre ''a coisa errada", esse ''erro'' no sen­ tido da ''excentricidade", esse ''errar", ''não acertar" — por opo­ sição, por exemplo, ao ''erro" no sentido da falta de habilidade, de "'inteligência", de prudência, etc. — só se deixa compreender a partir de uma modificação da temporalização (Zeitigung) do ser-aí em geral. O ponto que se deixa mostrar mais facilmente é que a temporalidade do sentimento da situação ou do estado de de ânimo (Cestimmtheit), ou seja, o ter-sido ( Cewesenheit), não pode desempenhar na excentricidade o papel principal. Pois já vi­ mos, com base em nossos poucos exemplos, que a excentricidade pode ''medrar'' sobre o solo dos mais diferentes estados de ânimo ou humores — tanto dos eufóricos quanto dos deprimidos, tanto dos humorísticos quanto dos sarcárticos, tanto dos apaixonados quanto dos característicos da ''constatação objetiva" —, de tal modo que podemos nos lembrar da constatação de Bleuler segundo a qual os excêntricos são os "únicos, entre aqueles que sofrem de uma aberração constitucional, nos quais a afetividade não está ma­ nifestamente perturbada de maneira exclusiva ou principal". No que diz respeito à “écstase" temporal do presente, uma constatação negativa impõe-se a princípio a nós: em nenhum ponto foi possível falar do presente no sentido do presente autêntico do instante, logo da compreensão autêntica113 (e, com maior razão ainda, em nenhum ponto, do instante do amor!). Pois ao instante no sentido do presente autêntico da existência pertence o ato de­ cidido de abrir a situação, de tal modo que, nessa decisão, "o pre­ sente não somente é tirado de novo da distração nos objetos mais próximos que estamos a providenciar, mas também é mantido no futuro e no ter-sido'' (ibid.). Nem mesmo no exemplo do instituteur pode-se falar de uma semelhante "retirada", de um semelhan­ te retorno ao próprio ser-aí. Poís aqui, justamente, a situação em questão não é aberta de maneira decidida como situação, mas é encoberta por um princípio ou por uma idéia. Aqui, justamente, não se assume decididamente e não se mantém nessa decisão "aquilo que vem ao encontro na situação em termos de possibili­ dades, circunstâncias que se podem providenciar" (ibid.), como convém ao instante autentico no sentido da existência. Ao con­ 113

Cf. Sein und Zeit, p. 338.

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trário, essas possibilidades ou circunstâncias (por exemplo, ajudar os pais) são justamente "ignoradas", excluídas ou postas de lado e, isso, em favor do "princípio do amor universal aos homens". Poderíamos mostrar a mesma coisa nos outros exemplos. De fato, em todos eles, não somente se restringem as possibilidades dos remetimentos do ser-para em favor de uma determinada idéia, de um determinado conceito, mas também — e mesmo principalmen­ te — as possibilidades do convívio e de sua preservação. Isso vale sobretudo para o convívio no sentido do amor autêntico, do modo dual de ser-no-mundo, tema esse, porém, que não podemos desen­ volver aqui mais pormenorizadamente.114 Por toda parte, a perseguição penosamente conseqüente de uma reflexão universal — aquilo a que Fontane chamou ''Direito", "plano", ''conseqüência" — impede a ''liberdade de atingir o certo". Em todos os exemplos, não é nem na temporalidade do compreender, nem na temporalidade do providenciamento guiado pela circunvisão organizadora, nem tampouco apenas na tempora­ lidade no decaimento, que o ser-aí se temporaliza aqui, mas numa modificação particular da temporalização em geral, na qual a temnizadora, mas não de sua temporalização, e sim da temporalização e historização do ser-aí como um todo.Aqui também ainda se trata, é verdade, de um providenciar guiado pela circunvisão orga­ nizadora, mas não de sua temporalização, e sim da temporalização no sentido da total ordenação e subordinação do ser-aí e do ser-com a um tema, uma idéia, um conceito ou plano "intemporais". O Aonde da evolução ou écstase temporal, no sentido do esquema horizontal da temporalização, não é aqui, pois, o em-vista-de do remetimento enquanto tal, mas o tempo "vazio” — isto é, nem "havendo sido" (gewesen), nem presente, nem por-vir — da abstração ou absolutização de um conceito, uma idéia ou um prin­ cípio. Mas, visto que o ser-aí, mesmo no decaimento nessa abstra­ ção, "é aí'', é enquanto ser-no-mundo e, nessa medida, "provi­ dencia algo", temos que indagar o quê, no fundo, ele providencia aqui. A resposta só pode ser a seguinte: ele providencia uma "or­ denação" da situação, não em conformidade com suas possibili­ dades e circunstâncias, mas em conformidade com ou segundo o critério de seu próprio "parecer”, em conformidade com aquilo que o ser-aí "tem em mãos" ou em mente e no qual ele, de fato, decaiu; o conceito, plano ou propósito "voluntarioso". Nessa medida, naturalmente, aqui também o ser-aí existe em vista de si mesmo e, assim, em vista do compreender e da tempo114 Em vez disso remetemos às secções sobre "o amor e o mundo, em minhas Grundformen.

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ralização no sentido do futuro. Mas ele não faz livremente com que o futuro advenha, ele não se antecipa, pois, livremente, mas, em seu decaimento precisamente, capta por antecipação o futuro com aquilo que tem em mãos ou em mente de maneira volunta­ riosa, isto é, unicamente em vista de sua unicidade e particulari­ dade. Por isso, não pode haver aqui um autêntico futuro, do mesmo modo que não pode haver um autêntico presente. Dado, porém, que a inautenticidade não precisa ser, a rigor, uma excen­ tricidade, mas pode significar muitas outras coisas, é preciso con­ siderar a inautenticidade da excentricidade de acordo com sua pró­ pria modificação da temporalização em geral. Se o futuro inautêntico significa um mero aguardar ( Gewärtigen),115 então o aguar­ dar no sentido da excentricidade significa a confiança em que "o futuro" se deixe captar por antecipação, que ele se deixe ordenar segundo determinados princípios ou conceitos. Só agora podemos compreender por que justamente o cálculo do futuro — tal como no exemplo do historiador — desempenha também em outros casos um papel de tamanha importância na excentricidade! Basta lembrar a grande difusão das profecias astrológicas do futuro, das profe­ cias que se "lêem" nas cartas de baralho, nas linhas da mão, etc. Em tudo isso, o ser-aí ''esquiva-se" de seu mais próprio, de seu autêntico poder- e saber-ser, e enleva-se num futuro ''vazio", isto é, não projetado a partir do próprio ser-aí, mas "simulado". Entre­ gue, em seu decaimento, a semelhante simulação, ele "esquiva-se", como costumamos dizer, à sua própria responsabilidade. Mas isso também é apenas um caso limite da excentricidade. A excentrici­ dade em si não é absolutamente a falta de responsabilidade em si. Pois o excêntrico se responsabiliza, via de regra, como vimos, por aquilo que diz e faz — às vezes, inclusive, de modo "fanático". Também isso mostra, mais uma vez, como é peculiar a essência da excentricidade. Todavia, o excêntrico ''responsabiliza-se" por suas palavras e atos, não a partir do ser-aí como um todo, como con­ vém á plena responsabilidade, logo: nem a partir da situação, nem a partir do convívio, nem a partir da história, e, nessa medida, não se responsabiliza nem pela situação, nem pelo convívio, nem pela história. Mas ele responde pelo que diz e faz, baseado unicamente em seu decaimento, que o deixa entregue a um conceito, idéia ou "princípio" que o subjuga. Conseqüentemente, à essência da excen­ tricidade não somente é estranha a essência da discussão e, com maior razão ainda, a essência do dialogo autêntico, mas também a essência da historicidade enquanto essência da temporalização 115 Cf. Sein und Zeit, § 68 a ("A temporalidade do compreender"), pp. 336 ss.

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autêntica em geral. Essa estranheza outra coisa não significa senão o que temos repetidamente procurado compreender existencial-analiticamente na excentricidade e que a linguagem ordinária já per­ cebeu tão claramente; o fato de chegar-a-um-fim, não-conseguircontinuar ou ficar preso, o espírito do traves ou da distorção, da "maluquice" de quem está "mal-girado" (isto é, "gira") e do erro e ilusão de quem está "enrolado torto", da exaltação e do exagero da conseqüência, da falta de medida ou de forma, da "desgraciosa" rudeza, dureza, rigidez, frieza, do contraditório, desarmônico, de­ sigual. Enquanto a-historieidade, a excentricidade é o contrário da maturidade, da existência e da autêntica convivência. Tudo o que aqui foi dito da interpretação temporal da excen­ tricidade vale naturalmente, com maior razão ainda, para a inter­ pretação espacial.116 Portanto, aqui também, não devemos esperar conseguir chegar a uma caracterização inequívoca. A espacialidade da excentricidade é uma espacialidade bem diferente, conforme a consideremos a partir do ser-para do remetimento ou a partir do em-vista-de do ser-aí. Do primeiro ponto de vista, o ''espaço" da excentricidade é, no sentido da aproximação, praticamente sem li­ mites, visto que o "mais remoto", "mais desviado", o ''excêntrico" pode perfeitamente se deslocar para as proximidades do ser-disponível, e, até mesmo, para o "ponto central". Nenhuma distância oferece ''dificuldades'' para os excêntricos. Pois, na excentricidade, como vimos, tudo pode entrar em ''contacto" com tudo, um caixão com a árvore de Natal, uma fatia de carne com uma calva, etc. Nessa medida, pode-se dizer que a espacialidade do ser-para do ser-aí enquanto excêntrico não tem limites. Visto a partir do em-vista-de do ser-aí, essa amplidão sem limites da abertura (Ersehlossenheit) da excentricidade revela-se, porém, como uma enorme perda de profundidade, desde que quei­ ramos entender como profundidade a determinação dccísória ( Entschlossenheit) do ser-aí, o ato decidido de agarrar as possi­ bilidades da situação, a total mobilização do ser-aí em seu ser. Mas isso quer dizer que a excentricidade tem em comum com a extra­ vagância a deslocação estrutural da proporção antropológica, da proporção entre a amplidão e a profundidade (ou altura) .117 A ''total mobilização" do ser-aí, sua intervenção em e mobilização para ( Sich-einsetzen in und für) a situação — a qual envolve sempre a convivência — é, como sabemos, impossibilitada na excentricidade pela perseguição obstinada, "tacanha", penosamente 116 Cf. Sein und Z eit, §§ 22-24, pp. 102 ss. 117 Cf. "Extravagância" e Henrik Ibsen und das Problem der Selbstrealisation in der Kunst, Heidelberg 1949.

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conseqüente, de um tema, ideal, princípio. A estreiteza dessa men­ talidade tacanha mostra-se no fato de que a pessoa ''não vê um palmo além do nariz", mas só ''tem em vista" seu conceito, seu princípio ou sua idéia. Desse modo, ela perde, como Fontane viu tão bem, a liberdade de "atingir a coisa certa" na situação. Po­ demos, pois, dizer sem medo de nos envolver em contradições, que, no ser-aí enquanto excêntrico, à amplidão praticamente ilimitada do ser-para corresponderia um ''horizonte estreito" (e vice-versa). Estreito, a saber, com relação ao discernimento e à visão de con­ junto da situação, devido ao fato de o ser-aí em geral restringir-se a rígidos conceitos, regras, princípios, definições. Desse modo, porém, é alterada a estrutura espacial enquanto tal do ser-aí. Em vez do espaço paisagístico, da região e de sua fisionomia, surge, para falarmos com Erwin Strauss,118 o espaço geográfico, nivelado a um plano. O espaço geográfico é um espaço infinitamente amplo, mas sem nenhuma profundidade, um espaço por assim dizer de segunda mão, um espaço sem fisio­ nomia, região e paisagem, mas em compensação um espaço no qual "a gente" pode se orientar e no qual há um aqui, um em cima e um embaixo, um perto e um longe calculáveis.119 "A coisa certa" é ''atingida" aqui (na verdade, é "errada") através da mera re­ flexão ou do cálculo, através dos meios de abordagem do provi­ denciar guiado pela circunvisão organizadora, que justamente não acertam com a abordagem no sentido da decisão, da abertura de­ cidida da situação. Tal é também a razão por que não somente os próprios ex­ cêntricos, mas ''nós" também ao lidarmos com eles tão depressa atingimos um limite ou ficamos entalados. Essa "razão" é a estrei­ teza ou o limite (''existencial") de todo conceito, princípio ou ''ideal", e, sobretudo, de toda ideologia. No que diz respeito à úl­ tima, a possibilidade da participação em comum em algo comum, como convém à liberdade, é impossibilitada pela força, pela coerção ou pela sedução à participação.

118 Vom Sinn der Sinne. Berlim 1936. 119 Apontemos aqui de passagem para as relações com a análise das interpretações geográficas no texto de Rorschach. Cf. tamhém L. Bins­ wanger, "Das Raumprohlem in der Psychopathologie", Z. Neurol. Psich. 145, cad. 3/4, 1935 e Ausgew. Vorträge u. Aufsätze II, Berna 1955.

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G.

T o m a d a d e P o s iç ã o Q u a n to a s C o n c e p ç õ e s C lín ic a s d a E x cen tr ic id a d e. E x cen tr ic id a d e, A m a n e ir a m e n to , F a n a tism o

A Questão da Possibilidade de uma Experiência da Excentricidade e da Esquizofrenia Com as investigações feitas até agora, atingimos um ponto de vista a partir do qual torna-se possível um debate com as concep­ ções clínico-psicopatológicas da excentricidade. No que diz respeito à doutrina de Minkowski, já nos familiarizamos com um dos aspectos da mesma na secção A deste livro sob o título Automatisme Pragmatique. Minkowski achava que se podia ver nesse ''agir autista" "la clef de voute de la Schizophrenie" . Como exemplo paradigmático, figurava a com­ pra de um piano dispendioso, que a mulher de um simples funcionário conseguiu com obstinação impor a seu empobrecido marido, apesar de seus rogos insistentes. Desse piano dizia-se então que "il jurait afuec le restant du mobilier”. Já encontrávamos aqui as três características principais da excentricidade; a preservação deficiente do convívio, a saber, o desprezo dos pedidos instantes do marido, o nao-encaixar-se de um "utensílio" num contexto ins­ trumental ou de remetimentos, e, finalmente, o "acte sans lendemain", o ter-chegado-a-um-fim do programa, o "mal-enroscamento" que encontramos nas ações daqueles que chamamos de ''malucos'' nas expressões alemãs correspondentes (sein Ver-dreht- oder Ver­ schraubt Sein). (Tudo isso é válido para nossos exemplos.) Encontramos o outro aspecto da doutrina de Minkowski sobre a excentricidade na discussão do quinto exemplo sob o título do rationalisme morbide, muíto embora o próprio Minkowski tenha apresentado esses dois "distúrbios" separadamente, sem considerá1os como os dois lados de um único e mesmo fenômeno existencial, ou seja, da excentricidade. O exemplo paradigmático da rationalisme morbide era o instituteur de nosso último exemplo, sua ''mania de princípios". Aqui também encontramos reunidos todos os traços essenciais da excentricidade, de tal modo que não é lícito separar o automatisme pragmatique de Minkowski de seu rationalisme morbide. Muito ao contrário, é preciso reconhecê-los como traços essenciais de um unico fenômeno; a "excentricidade". O que

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é tratado sob os dois títulos é o que já descrevemos existencialanaliticamente como a indecisão do ser-aí para o seu aí no sentido da respectiva situação, ou por outras; como a falta de liberdade do ser-aí para arrumar o espaço de cada margem-de-ação de seu poder- e saber-ser fáctíco, e como fechamento ( Verschliessung) da situação mediante seu encerramento (Einschliessung) num determinado tema (no tema compra-do-piano, "objeto útil para depois, da morte", refrescamento, "razão") ou em determinados princípios pedagógicos (dureza, liberalismo) e da própria conduta de vida (silêncio, reconhecimento do amor universal pelos homens como supremo e único princípio, etc.). Em todos esses casos, trata-se tanto de um autisme pragmatique — visto que também a educação e a subordinação da vida a princípios são prágmata, "ações” — como também daquilo que Minkowski chama de rationalisme mor­ bide. Pois a perseguição obstinadamente conseqüente do tema "compra-do-piano” (apesar de uma situação financeira totalmente alterada) ou do tema ''objeto útil para depois da morte” (apesar da situação natalina) pode ser designada no sentido existencialanalítico (!) como racionalismo "mórbido" (a saber, como per­ seguição malograda, fracassada ou "mórbida" de um "pensa­ mento"). Em ligação com isso, lembremos mais uma vez o fato de que tiramos propositalmente os nossos casos exemplares não somente da esquizofrenia (o paciente Hae., o historiador, o instituteur), mas também do domínio da esquizoidia (exemplo do caixão e do piano) e do ''normal" de um ponto de vista psic opatológico (!) (exemplo do professor). Dever-se-ia mostrar assim que a essência da excentricidade precisa ser procurada e encontrada além da sepa­ ração da psicoce, da psicopatia e da normalidade, a saber, no fun­ damento do ser humano em geral. Com essa constatação, podemos agora também responder a questão se a análise existencial poderia contribuir para realizar a esperança de Kraepelin (cf. mais uma vez a 1.a parte) de que seria possível, com o progresso da experiência, "distinguir com maior precisão as peculiaridades da excentricidade esquizofrênica e da excentricidade psicopática", uma questão que havíamos inten­ cionalmente deixado em aberto nessa passagem. Naturalmente, com a constatação que acabamos de fazer, ela tem que ser respondida negativamente. O que a análise existencial almeja não é, justamen­ te, diferenciar a excentricidade segundo suas formas de manifes­ tação clínicas, mas, repetimos, exibir a excentricidade como um inequívoco fenômeno existencial além, ou melhor, aquém, de suas formas fenomenais clínicas e "normais".

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Se a excentricidade ''normal", a esquizóide e a esquizofrênica mostram a mesma ''essência", um modo existencial ineqüivocamente determinável, é preciso, então, levar em consideração outros cri­ térios, diferentes dos existenciais-analíticos e, comparados a esses, perfeitamente "secundários", a fim de possibilitar aquela distinção. Assim, por exemplo, se pensamos no caso do instituteur, só as peculiaridades psicopatológicas podem decidir se se trata em seu caso de uma excentricidade ligada à esquizofrenia ou a um psicopata esquizóide. É o quadro clínico total que decide se o diaguóstico clínico deve ou não dizer aqui: esquizofrenia. De qualquer modo, a excentricidade enquanto tal mostra aqui também "traços esquizofrênicos", relativamente às suas "proporções", isto é, rela­ tivamente à sua extensão, à conduta de vida e à profissão inteiras, relativamente ao "grau" de sua pertinácia e ao surgimento de uma angústia grave e uma ''ameaça vital" no caso de infração dos prin­ cípios excêntricos, etc. Além disso, é preciso ressaltar que uma unica ação ou expressão excêntrica enquanto tal não permite, em princípio, nenhuma decisão quanto ao diagnóstico. Basta pensar no pai, em nosso exemplo do caixão, que estaríamos inclinados a tomar muito facilmente por um esquizofrênico manifesto em razão do pragma excêntrico. Quanto à teoria gruhleana da excentricidade esquizofrênica, a redução psicológica da mesma a um "outro querer", a um ■"desvio deliberado", a "algo de deliberadamente incomum" no sentido de um sentimento fundamental alterado, de uma pos­ tura, estrutura ou humor fundamentais alterados, é preciso re­ conhecer que nossos exemplos mostraram certamente um des­ vio e um querer e agir diferentes do que convém ao nosso querer e agir "naturais". Contudo, vimos que o ser-aí excên­ trico não acentua em seu querer e agir a alteridade em face dos outros, mas sobretudo a sua particularidade, aquilo que a ele preci­ samente convém. O ser-aí excêntrico absolutamente não visa, ''pro­ posital" ou ''intencionalmente", como quer a hipótese de Gruhle, a M alteridade do querer, de modo algum está dirigido intencionalmente em primeira linha para a oposição de seu querer ao nosso. Tal não acontecia nem sequer no caso do instituteur. Abstração feita de que uma postura ou estrutura humana fundamental não pode ser redu­ zida a uma capacidade psicológica ou a uma determinada "facul­ dade" e, muito menos, a um modo particular de semelhante coisa, uma teoria ou hipótese psicológica exigiria que o querer "contráTio" não somente ocorresse aqui ou ali, como de fato ocorre, mas pudesse ser comprovado sem exceções. O mesmo é válido para a suposição de Gruhle de que os esquizofrênicos parecem, por assim dizer, "regalar-se", ''dar largas a suas energias" em seu "jeito

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peculiar''. O próprio historiador hipomaníaco-esquizofrênico não se regala (em face de nós) em seu outro querer, mas em sua ''ge­ nialidade". Ele está certamente consciente de seu "jeito peculiar'' ("genial") e nele se regala, dando largas às suas energias, mas justamente não parque seu "jeito" é diferente do nosso, mas por­ que é o seu jeito, sem precedentes, justamente; ''genial". Ele não quer, pois, ser diferente dos outros, mas ele é — por si mesmo — diferente, e porque as coisas são assim, os outros — os contem­ porâneos e os pósteros — não poderão "compreendê-lo". O mesmo vale para o instituteur que se coloca expressamente em oposição aos seus contemporâneos; ele não se opõe, de modo al­ gum, por amor da oposição, mas em vista da auto-afirmação, para permanecer fiel aos "princípios" seus enquanto seus, para haurir tudo de si mesmo, etc. Em ambos os casos, a oposição aos outros emana da excentricidade, não, inversamente, a excentricidade da vontade de alteridade, do "outro querer". Se, apesar disso, precisamos continuar a nos ocupar com a teoria gruhleana da excentricidade, é porque, por um lado, ela ti­ nha em vista um alvo semelhante ao nosso relativamente à solu­ ção do problema da excentricidade. Por outro lado, porque nela se pode mostrar com tanta nitidez a diferença entre a teoria psicopatológica e a investigação existencial-analítico-fenomenológica. E , em terceiro lugar, por um motivo muito "objetivo", a saber; a necessidade objetiva de fazer a distinção (não levada a cabo por Gruhle) entre excentricidade e amaneiramento. A meta de Gruhle era também a de ir além da "impressão imediata”, ''que muitas vezes possibilita à pessoa experimentada o diagnóstico à primeira vista de um esquizofrênico (— excên­ trico)". Ele vê o caminho que conduz a essa meta na exibição dos ''fatores objetivamente característicos da postura total" do esqui­ zofrênico. Quando se pronuncia aí, pela primeira vez, a palavra "excentricidade", o que se tem em mente não é tanto uma caracte­ rística isolada, quanto uma característica da postura total em todas as ''esferas de atividade". Se a consideração existencialanalítica também não tem em mira "fatores objetivamente caracte­ rísticos" ou ''sinais", mas traços passíveis de uma exibição ou ex­ periência fenomenológica, de uma estrutura total, a saber: do serhomem, então ela se encontra próxima à concepção fundamental’ de Gruhle — mas só a ela — na medida em que o que importa para ela também é destacar a excentricidade como um traço hu­ mano fundamental, que se pode comprovar "em todas as esferas de atividade". Gruhle fala, a esse propósito, da esfera dos hábitos (cf. a esse respeito nosso exemplo da fatia de língua fria que o doente, como se descobriu, costumava colocar "habitualmente"'

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sobre a calva), da relação com a técnica de vida (cf. o instituteur de Minkowski), das relações com a ciência (cf. o historiador) e com a arte (cf. nosso professor). Essa ''lista" não é, porém, com­ pleta, na medida em que seria também preciso mencionar as rela­ ções ("excêntricas") com a tecnica enquanto tal (pensemos no “ inventor" do perpetuum mobile, e, sobretudo, nas excentricidades nas esferas do amor e da religião). Com relação a essa última, Iembremos a figura grandioso, criada por Ibsen, do pastor Brand — também há excêntricos ''grandiosos" — com seu princípio "fa­ nático"120 do tudo-ou-nada. No que concerne, porém, às excentri­ cidades na esfera do amor lembremos em primeiro a figura de Viggi Stoteler, de Gottgried Keller, e os Exercícios intelectuais (Denkübungen) de Kleist, para sua primeira noiva, Wilhelmine Von Zenge. Os dois exemplos mostram como a perseguição con­ seqüente de um tema ou princípio pode ser, não somente penosa, mas também mortal para o amor. Aqui também, e aqui sobretudo, são válidas as palavras do ''convertido'' pastor Brand ao final do drama de Ibsen; “Im G esetz erfriert die Seele



Ohne Lieht kein Blühen auf der E rd en ”

["Na lei congela-se a alma, Sem luz nada floresce sohre a terra."]

Essas palavras poderiam ser aplicadas à excentricidade em geral. De sua verdade, já dá testemunho a linguagem ordinária na me­ dida em que ela, com vimos, não dispõe de uma única expressão para caracterizar a excentricidade que de longe ao menos lembras­ se a luz, o florescimento, ou mesmo a vegetação em geral. A linguagem ordinária já sabe que, sobre o solo da excentricidade, ''nenhuma erva cresce". Mas nós conhecemos ainda uma outra possibilidade da ex­ centricidade ''na esfera" do amor. Lembro nossa doente Ilse,121 que enfiou o braço no forno aceso a fim de mostrar ao pai "o que é o amor". Aqui também, foi apenas o tema de uma reflexão que levou a esse "sacrifício"; "Se o pai vir a que dores me exponho por amor a ele, então, em agradecimento, ele terá que, em troca, tratar melhor minha mãe." Trata-se aqui de uma intensificação ex­ cêntrica da manifestação do próprio amor, excêntrica já pelo sim­ ples fato de que se baseava na confiança na conseqüência dessa re­ flexão, sem contudo ''contar" com a "natureza" deste pai e com 120 Cf. a esse propósito mais adiante. 121 Cf. "Wahnsinn als lehensgeschichtliches Phänomen und als Geistes­ krankheit", Mschr. Psychiat. Neurol. 110, n.° 3 /4 , 1945.

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a impossibilidade de forçar uma mudança do mesmo. Aqui tam­ bém o ser-aí não conseguia abrir a situação. Em Vez disso, obede­ cia à "lei" da pura reflexão racional e a um plano dela resultante. Se podemos falar de uma oposição mortal da excentricidade e do amor é porque, onde há amor, ou bem a excentricidade não pode "Viver", ou bem, caso "Viva", tem por sua vez que morrer. Na verdade^ a última possibilidade raramente ocorre, pois a ex­ centricidade "tem uma vida tenaz."122 A única "maneira" de ''su­ perá-la" é, de fato, o amor enquanto diametralmente oposto à es­ trutura do cuidado do ser-aí em geral e, assim, também enquanto liberdade em face da situação em geral. Enquanto ser-além-domundo, o amor está também, como já mostramos de maneira su­ ficiente,123 além da situação. Disso também encontramos em Ibsen um exemplo maravilhoso. É a espera, de toda uma vida e cheia de amor, de Solvejg pela volta de seu Peer Gynt, que passa a vida inteira a oscilar de uma excentricidade para a outra. Mas, se é preciso ver no amor a única salvação contra a excentricidade, isso por sua vez remete ao fato de que a excentricidade significa a maneira de um ser-aí na qual não somente a convivência plural, no sentido do trato e comércio humanos, logo do mero ser-com, mas também no sentido da convivência autêntica, amorosa ou dual, foi sempre prejudicada, ou por outras, "diminuída'' em sua estru­ tura total. Todavia, não mencionamos ainda uma “esfera de atividade" que Gruhle colocou irrefletidamente ao lado das outras, o domínio da "esfera expressiva total". Em decorrência disso, ao lado de seus "sinais objetivos" da excentricidade, encontram-se outros do ama­ neiramento, como "amaneirado" pura e simplesmente, "floreado", ''intrincado'' (com relação a expressões lingüísticas), "estudado", "sem naturalidade", etc. Já em seu exemplo da descrição perifrástica da escada como um ''intermediário necessário da abóbada da casa", podemos nos perguntar se se trata aqui de excentricidade ou de amaneiramento. Naturalmente, é preciso ter em mente aí que, ao perguntarmos se um determinado fato ''pertence" a uma essência, muitas vezes se trata de uma questão puramente "de tato", ou seja, de uma questão do domínio da experiência fenomenológica, que não é diferente da questão se determinada obra de arte lingüística pertence à essência artística da poesia lírica, épica ou dramática, não importando a nitidez com que essas es­ 122 Aqui também Fontane acerta novamente em cheio; "Mas endireitar ortopedicamente os pensamentos tortos e aleijados de uma outra pessoa é um verdadeiro trabalho de cao" (loc. cit., p. 274).

123 cf. Grundformen..., 1.° cap.

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sências possam ser contrastadas enquanto tais. Semelhante ques­ tão repousa justamente sobre algo mais do que simples definições, que permitam julgar "segundo sinais objetivos" se um determi­ nado fato realmente exibe ou não os sinais contidos na definição. Assim como no domínio da arte, também na análise existencial, as definições rígidas devem ser consideradas como obstáculos para a pesquisa, porque a lógica pura desfigura, oculta e mesmo ignora aquilo que realmente importa, a verdadeira essência. Quando Gruhle vê no exemplo lingüístico; a mariposa bruveia "um jogo de palavras divertidamente excêntrico com a palavra mariposa e a palavra bruxa, convertida em verbo", tam­ bém esse exemplo mostra, precisamente enquanto jogo de pala­ vras, um certo jeito amaneirado (Manier). Aliás, isso fica ainda mais claro com o exemplo dado por Carl Schneider da substituição do u pelo r (Wrnsch em vez de Wunsch [desejo], Frnd em vez de Fund [achado], etc.). Nesses exemplos, o jeito amaneirado e o amaneiramento são, por assim dizer, palpáveis. Muito mais do que a excentricidade, o amaneiramento parece pressupor um des­ vio intencional ou deliberado, uma vontade de ser diferente, muito embora não se deixe de modo algum ''explicar'' e, muito menos, compreender existencial-analiticamente a partir disso. Como vere­ mos no estudo sobre o amaneiramento, as coisas aqui são incom­ paravelmente mais complicadas do que pode sonhar qualquer teoria. Todavia, pode-se atribuir precisamente à falta de contrastamento do amaneiramento com a excentricidade o fato de Gruhle ter feito do fator voluntário a coluna de sustentação de sua teoria da excentricidade. O leitor talvez tenha reparado que não apresentamos, entre os nossos cinco exemplos, nenhum do domínio da chamada esfera expressiva no sentido de Gruhle (logo, do domínio da linguagem, dos gestos, da mímica, da postura, das produções plásticas, etc.). A explicação disso, ele a encontrou no texto acima. Não que as coisas sejam tão simples que pudéssemos dizer que o amaneira­ mento significa a ''excentricidade no domínio da esfera expressi­ va". A diferença não está só nisso absolutamente! Visto que re­ servamos a análise do amaneiramento para um outro traba­ lho, observemos, apenas, por enquanto, que, em nosso caso Jürg Zünd,124 topamos com um total amaneiramento quanto ao andar, à postura, aos gestos e, aqui e ali, até mesmo quanto à expressão lingüística, e que esse amaneiramento do procedimento total do doente revelou-se muito nitidamente como ''expressão" de sua ex­ 124

Cf. Schweitz. Arch. Psychiat. Neurol. 56, 58, 59.

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centricidade existencial, de seu ser-no-mundo excêntrico. Isso já pode nos servir como uma indicação de que os termos ''expressão" e ''esfera expressiva" não devem ser usados aqui no sentido psi­ cológico, mas, sobretudo, no sentido existencial-analítico. Mas é aqui também o lugar da questão quanto às relações en­ tre excentricidade e fanatismo, que ainda não havíamos tocado na parte clínica. Aqui também não poderíamos dar-lhe uma resposta exaustiva. Vimos ai que a clínica usa correntemente a expressão complexa ''fanáticos excêntricos'', o que constitui uma indicação de que os fanáticos excêntricos representam um grupo especial e que, conseqüentemente, nem todos os fanáticos têm que ser excên­ tricos. O ser humano pode também mobilizar-se em defesa de idéias e empreendimentos não-excêntricos de uma maneira ''fanática", isto é, "encarniçadamente", com extrema energia e conseqüência. Semelhante fanatismo pode se apoderar, por exemplo, como o mostra tão claramente o pastor Brand de Ibsen, de uma genuína idéia religiosa. Mas quando, como no caso da mesma "figura", não só não se preserva, mas se mata a convivência — e isso precisa­ mente na figura do ''próximo" — nem por isso a idéia, o propó­ sito ou plano enquanto tais tornam-se excêntricos, embora se pos­ sa afirmar isso da maneira pela qual o ser-aí os leva a cabo, a sa­ ber, como a mais penosa e extrema conseqüência. Não muda nada aí o fato de que justamente os fanáticos excêntricos têm uma par­ ticular facilidade para se reunirem em seitas (religiosas, políti­ cas, ideológicas, pseudocientíficas). Pois a participação em comum em algo comum, de que se trata neste ensaio, não concerne, como já acentuamos com base no quarto exemplo, à realidade factual de uma maioria ou grande número de participantes, mas, sim, à pos­ sibilidade de uma participação em comum, do compartilhamento de uma opinião ou de um entendimento mútuo em geral. Essa possi­ bilidade, porém, está e permanece fechada mesmo para a seita — que, aliás, deve ser considerada tão-somente como uma in­ dividualidade coletiva. Se, inversamente, perguntarmos se também podemos falar em excêntricos fanáticos e não-fanáticos, cumpre do mesmo modo res­ ponder pela afirmativa. Assim, por exemplo, nosso segundo caso, o doente Hae., certamente não se mostrou fanático. Por outro lado, à excentricidade é inerente pelo menos uma tendência à con­ seqüência fanática, como mostraram sobretudo o quinto, mas tam­ bém o quarto caso. Isso tudo quer dizer, mais uma vez, que o fa­ natismo diz respeito, em primeiro lugar, a uma questão de inten­ sidade, energia e duração (psicológicas) da excentricidade, mas não à sua autêntica essência. O traço essencial, imarierite a essa essência, da conseqüência ''obstinada'', isto é, indo além do limite

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da possibilidade da convivência, na perseguição de um tema, e até mesmo de uma simples ''idéia" ocasional, não deve ser confundido com o fato psicológico ou com a propriedade caracteriológica do fanatismo. Excentricidade e fanatismo só devem ser separados quando a essência da excentricidade é determinada pela natureza peculiar de seu ser-para e de seu em-vista-de, logo, existencial-analiticamente. Eis aí uma coísa que se pode mostrar, entre outras coisas, por um retrospecto de minhas Formas Fundamentais, onde o fanatismo (cf. pp. 556 ss.) foi concebido como o oposto gnoseológico do amor e, a partir daí, como quase idêntico à excentricidade. Pode­ mos vê-lo, por exemplo, quando aí se explica que o fanático se tranqüilizaria "na névoa impenetrável da mera contingência da particularidade ou então na luz ofuscante do mero fato de ser pen­ sado da universalidade (ideologia)", ou, que, no fanatismo o ser-aí teria ''se obstinado, se aferrado ou encarniçado em vista da individuação ou da massificação, da paixão (''ruim "), não corri­ gida ou que não quer ser corrigida, do idios kosmos. Pois tampou­ co a massa (inarticulada, nivelada) — em oposição ao povo, que representa a unidade de uma multiplicidade hierarquizada — é koinós kosmos ou comunidade (de destino ou Idéia), mas, sim, idios kosmos." Como se vê, essa caracterização aplica-se perfeita­ mente à excentricidade. Para terminar, resumamos mais uma vez o que nossa interpre­ tação existencial-analítica do excêntrico descrito pela expressão alemã ''parafuso mal-esroscado" contribuiu para a compreensão dínico-psicopatológica da excentricidade. Podemos dizer que a ex­ centricidade significa uma determinada maneira de lidar com algo, não importa se esse algo é de natureza material, animal, anímica ou espiritual. O que importa é perceber que, do ponto de vista da experiência natural, o horizonte do projeto-do-mundo da excen­ tricidade está restrito a um mundo cuja significância se resume no objeto disponível como um ''utensílio" atravessado, enviesado, torto. Isso significa que, em semelhante mundo, não há absoluta­ mente "espaço" para um verdadeiro ''progresso", para a evolução, para o ato de criar ou modelar. Pois tudo isso — não importa se se trata de um ato de modelar ou criar existencial, ou de um ato artístico, ou científico, ou filosófico — pressupõe que o modo de lidar com a "coisa" seja apropriado e adequado á coisa e tenha um conteúdo real. Ou por outras, pressupõe que a pessoa que lida com ela não somente leve em consideração sua objetividade e rea­ lidade, mas obedeça-lhe e, nessa obediência, realize-se a si mesma. Não há criação ou modelamento a partir do vazio, isto e, a partir da transcendência subjetiva apenas, mas apenas a partir do con­

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curso ''adequado" da transcendência subjetiva e objetiva.125 É aqui, justamente, que podemos tocar a essência, o sentido antro­ pológico da excentricidade: o excêntrico não escuta a "natureza da coisa", ele só quer aquilo que ele, este indivíduo determinado, "meteu na cabeça", sem consideração não somente pela própria coisa, mas também pelas outras pessoas que lidam com a mesma "coisa" ("Zeug"). Mas não importa de que espécie seja a ''coisa" ("Sache'’) , uma coisa material, uma idéia, uma ação, ou mesmo a conduta de vida em geral; quem não tem consideração por ela, quem não a toma corretamente em mão, quem não lida adequada­ mente com ela — o que pressupõe sempre um aprendizado prévio com os outros, a participação no convívio, inclusive no sentido da " tradição" —, torce ou dis-torce a ''coisa", e também se equivoca a respeito dela ao manipulá-la ou ao olhar para ela. De tal modo que ela vem se pôr de través, ''dá errado'', ''sai torta'', em suma, de tal modo que ela não pode mais ser "girada e torcida", mas quanto mais a sacudimos ou a golpeamos, mais entalada ela fica, não ''sai do lugar", não avança mais, não cresce nem viceja mais. Quando o ser-aí se absorve totalmente na mera atividade de lidar com algo, com alguém ou consigo mesmo; logo, quando se absorve totalmente na simples atividade de tomar alguém por algum lado [pelo braço, pela mão, pelo ''ponto fraco", etc. — N. do T.] ; quando não há mais lugar nem para o "amor pela coisa'', nem, sobretudo, para o amor por um " tu " ; quando falta, por conseguin­ te, toda obediência à coisa e toda ''consideração" pelos outros; aí, então, ele não toca mais a coisa, nem comove mais os outros, mas sacode e golpeia (stösst) a coisa, provocando assim um choque ou escândalo (Anstoss) nos outros. Reduzido a essa maneira de lidar com os outros e com as coisas, o ser-aí fica remetido e na depen­ dência de (angewiesen auf) uma relação "inadequada" e, por isso, recíproca, de pressão e choque (Stoss) ,126 Isso vale de maneira especial para a maneira de lidar ou tratar com os outros, logo para a atividade social (mitweltlich) de tornar por um lado, visto que é esta a esfera mais sensível de toda lida ou trato. Ao lidarmos com as coisas, podemos chamar "dureza" ao choque ou pressão exerci­ da sobre elas, ou à contrapressão ou contrachoque por ela exerci­ dos. Quando é o caso, porém, do trato com os outros, ''dureza'* 125 Cf. mais uma vez W. Szilasi, M acht und Ohnmacht des Geistes. 126 Cf. nosso caso Jurg Jünd, loc. cit., hem corno o delírio de perseguição de Rousseau, em quem a redução do projeto do mundo foi mais longe ainda^ a saber —- segundo as próprias expressões de Rousseau — até a redução ao movimento de meras forças mecânicas. Cf. "Der Fall Suzanne Urban", Schweiz. Neurol. Psychiat. 69, cad. 1/2.

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pode ser tomado como falta de consideração, afronta, coação, tira­ nia, seja no sentido da opressão e do ataque desferidos contra os outros, seja no sentido da recusa, repulsa ou rejeição por parte dos outros. Pode-se também dizer o mesmo do modo como lidamos com um plano, um empreendimento ou uma idéia. Aqui também a dureza "antinatural", o caráter chocante (stossend), coercitivo, "tacanho" que pode ter o modo de proceder, refletir e pensar, encontra também uma desforra. Aqui também o empreendimento, o plano, o pensamento ''não saem do lugar", aqui também "a coisa'' torna-se resistente e dura. Conforme prevaleça a energia brutal e o impulso agressivo ou a reação suave, sensível, "que leva tudo a mal'', facilmente magoada ou ofendida, com que os excên­ tricos enfrentam o contrachoque, a recusa ou rejeição por parte dos outros, Eugen Kahn fala de excêntricos mais ativos ou mais passivos, Kretschmer e Kurt Schneider de fanáticos expansivos ou estênicos e desanimados ou astênicos. Quando estão em jogo os dois lados do ser-no-mundo excêntrico, a energia [Stossfcraft, lit.; força de choque — N. do T.] dura, por um lado, a reação suave e sensível à recusa e à rejeição por outro lado, temos sabidamente diante de nós aquela forma de excentricidade que costumamos de­ signar como querulatória e que abrange o domínio inteiro que se estende dos psicopatas querulantes à paranóia querulatória e dos esquizofrênicos querulantes latentes aos esquizofrênicos querulantes manifestos. Aqui, o ser-aí se vê sempre decaído e entregue àquilo com que lida, ao objeto e ao fim de seu providenciar, quer se trate de um utensílio disponível, quer de uma pessoa ou de uma idéia. Estar decaído e entregue significa ser incapaz de se desprender, deixarse dominar ou possuir por algo ou alguém, não se encontrar mais acima da coisa, pessoa ou idéia, mas ser avassalado por ela. O lu­ gar da liberdade da decisão e tomado pela escravidão do decaimen­ to e da entrega e quanto mais a pessoa assim decaída e entregue força e dá pancadas no ''parafuso", o empreendimento ou idéia enrascados, menos ele se deixa ''girar e torcer", cada vez mais errado ele se enrosca e cada vez mais excentricamente enroscado nisso fica o ser-aí. Isso também vale para a excentricidade no sen­ tido da "idéia supervalorizada" de Wernicke. Ao chegar ao fim de nossa investigação, lancemos rapidamen­ te um olhar retrospectivo sobie a questão quanto ao modo intuiti■vo de se dar ou de se ter acesso a existência esquizofrênica e à •excentricidade.127 A resposta dessa questão pressupõe a questão 127

Cf. na primeira seção deste ensaio (pp. 34-40), a controvérsia entre

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quanto ao trato com o excêntrico concebido metaforicamente como o "parafuso torto" ("verdrehte Schraube") e quanto ao modo dos excêntricos lidarem com os objetos ''disponíveis". Sabemos agora que tanto a nossa lida com os excêntricos quanto a lida destes com o objeto disponível podem ser determinadas mais exatamente como a lida, não no sentido do reto, do "correto", da adequação, do avanço, mas, sim, no sentido do torto ou do través, do "erra­ do", da inadequação. Quando falamos em excentricidade, falamos por conseguinte de um mundo ou de um "espírito" de tra­ vés ( esprit de travers), de um mundo ou de um "espírito", por conseguinte, contra o qual nos chocamos e com que ficamos cho­ cados. Isso quer dizer que a excentricidade já é experimentada no trato com as pesoas, ou seja, que é experimentada "através de impressões", Essa experiência, que se obtém da impressão deixada pelas pessoas excêntricas enquanto objetos disponíveis, e que já ê possível no trato, melhor dito, enquanto trato, é o que vem pos­ sibilitar por sua vez uma experiência intuitiva "demorada" (''ver­ weilende") ou seja, uma "percepção" das pessoas excêntricas como objetos subsistentes e das propriedades nelas subsistentes. Poderemos observar o grande progresso científico realizado pela pesquisa graças ás investigações de Heidegger em Ser e Tempo, se nos lembrarmos da maneira como havíamos tentado do­ minar, antes da publicação dessa obra, o problema que agora nos ocupa. Quero mencionar aqui minhas próprias formulações data­ das de 1924.128 Ainda que essas formulações possam pretender ainda hoje alguma validez, está claro que não podemos mais par­ tir dos "atos da percepção psíquica de outrem" e da pessoa alheia neles captada. Ao contrário, temos que retroceder "atrás" desses atos até o ser-aí enquanto ser-com, ou por outras, até a lida ou trato com os outros. Aliás, isso já está implícito em expressões como "impressionar" ("frappieren") ou "recuar de espanto" ("zurückprallen v o r")129 — em consonância, aliás, com nossa atual doutrina a respeito do ser repelido e ficar chocado. Todavia, não era ainda possível considerar o caráter peculiar da mundani­ dade — aqui, por conseguinte, o mundo do través ou, mais cor­ Jaspers, Gruhle, Wyrsch, por um lado, e Carl Schneider, por outro lado,, relativamente à doação intuitiva ou à possibilidade de acesso à esqui­ zofrenia.

128 Cf. "Welche Aufgaben ergeben sich für die Psychiatrie aus den Fortschritten der neuren Psychologie?", Z. Neurol. 91, 1924 e Ausgew. Vortr. u. Aufs. II, 1955. 129 Cf. a citação que se segue mais ahaixo. [Frappieren; impressionar, surpreender, desconcertar — do francês; frapper = em sentido próprio; bater, acertar, atingir, em sentido figurado; como seu derivado alemão. Zurückprallen = em sentido próprio; recochetear.]

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retamente, o mundo enquanto través —, a partir da qual apenas aquele ficar-chocado, recuar, aquele "relacionamento" ou "empatia deficientes" podiam tornar-se acessíveis à compreensão existencialanalítica. Nossas formulações de então eram as seguintes; "Nos atos da percepção psíquica de outrem, como já dissemos, a pessoa alheia enquanto tal está sempre presente a nós de algum modo e não apenas, por exemplo, uma determinada vivência alheia, uma 'parte' da pessoa, no sen­ tido do conceito de parte tal como usado nas ciências da natu­ reza. Isso quer dizer que percebemos, com hase na percep­ ção de um aspecto esquizofrênico na pessoa, a própria pessoa como esquizofrênica, ou inversamente, percebemos primaria­ mente a pessoa inteira como um esquizofrênico e só poste­ riormente atentamos para o traço esquizofrênico individual. Podemos, por exemplo, perceber a pessoa esquizofrênica com base em algo de muito peculiar a animar o seu olhar, sem que nada chame necessariamente a nossa atenção ao considerarmos cientificamente tanto o olho quanto o olhar. Ou então, já convivemos há mais tempo com semelhante pessoa e, de repente, descobrimos que estamos às voltas com uma esquizofrenia, o que não significa outra coisa senão que agora conseguimos 'vê-la' como uma pessoa esquizofrênica em razão, por exemplo, do deficiente relacionamento psíquico, da deficiente empatia com ela. O que chamamos de relacio­ namento deficiente pode, eventualmente, ser a única percep­ ção que tenho de uma pessoa estranha, de tal modo, no entanto, que ela me 'impressiona' a um ponto tal que eu, por assim dizer, recuo de espanto dentro de mim mesmo quando a porta se ahre e ela entra. Naturalmente, devo estar em condições de distinguir, desse recuo interior e seus fun­ damentos, a atração ou repulsão que experimento mera­ mente em razão da simpatia ou antipatia, mas é para isso justamente que sou psiquiatra. Um esquizofrênico pode me ser muito simpático enquanto pessoa e, apesar disso, recuo intimamente, experimento sempre uma barreira a vedar uma íntima união com ele, ao perceber sua pessoa como esqui­ zofrênico. A o nos adestrarmos na percepção de outrem, ao registrarmos e utilizarmos a mesma para posteriores juízos e inferências, podemos proceder tão exata e criticamente como o fazemos no tocante à percepção dos objetos físicos. E é óbvio que aqui também há graus de certeza, desde a mera e vaga presunção até a evidência hem como toda sorte de ilusões perceptivas!"130

Se podemos falar, nos últimos tempos, de um companheiro no tocante à fenomenologia desse "recuo íntimo", "chocar e ficar cho­ cado em face" dos excêntricos e dos esquizofrênicos em geral, é, mais uma vez, nosso amigo E. Minkowski que lembramos. 130

Loc. cit,, p. 427.

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Minkowski também parte por seu lado, do fato que “le diagnostic par pénétration" (ou seja, o diagnóstico por penetração ou "empatia") nos possibilita falar, em face dos esquizofrênicos e dos e s quizóides, de uma falta de ressonância, de ''cordas" que vibrem em uníssono, e, desse modo, de um "sentiment de vide'' ou de um vide (vazío) pura e simplesmente. Ao fazê-lo, ele logra de passagem uma formulação fenomenológica muito feliz; "nous nous heurtons ainsi au vide".131 Com esse fato fenomenológico do chocar-se e ficar-chocado — que, baseados na linguagem ordinária, pouco a pouco destacamos — ficou caracterizado um traço fundamental de nossa maneira de lidar não somente com os excêntricos, mas tam­ bém com os esquizofrênicos e esquizóides em geral. Todavia, no que tange aos excêntricos, não nos chocamos absolutamente com o vazío, mas, como mostramos, com o través! Temos que ver no (mundo ou ''espírito" do) través uma espécie de ''forma prelimi­ nar'' (“Vorform") do vazio. A excentricidade (ainda) não é u m vazio ou o girar no vazio da existência humana, mas tampouco é, como vimos, plenitude e pleno desenvolvimento ou ''movimento" (''lograr") do mesmo; ela é uma forma intermediária entre o s dois. Desse modo, nossa investigação não somente ofereceu uma contribuição à análise fenomenológica de uma forma determinada da existência humana em geral, mas também ao esclarecimento do fundamento fenomenológico de sua "diagnosticabilidade".

131 Cf. Evolution psychiatrique. Le Confus et le Vogue. N.o IV, 1952, p. 62o.

O AMANEIRAMENTO * Entre as muitas ameaças ''intrínsecas" do ser-homem e que põem em perigo o seu êxito, logo entre as muitas formas de seu malogro,132 a extravagância, a excentricidade e o amaneiramento constituem um grupo bastante peculiar. O simples fato de que as expressões extravagante, excêntrico, amaneirado são, em larga medida, usadas indistintamente, tanto na linguagem coloquial e na iinguagem da psicopatologia e da clínica psiquiátrica, quanto na ciência da arte, já demonstra que aqui se trata do caráter peculiar de um grupo.1®3 A s tentativas de uma interpretação existencialanalítica tanto da extravagância134 quanto da excentricidade,1*5 mostraram, todavia, que os três elementos desse grupo podem, por sua vez, ser contrastados entre si e que a omissão desse contrastamento tem conduzido a juízos errôneos na psicopatologia. Se designamos a extravagância, a excentricidade e o amanei­ ramento como ameaças intrínsecas do ser-homem e que põem em * N ota preliminar do tradutor; em português, é costume usar-se a pala­ vra maneirismo para designar tanto o estilo artístico, quanto o traço psicológico ou o gesto, movimento ou expressão de um indivíduo. Todavia, visto que Binswanger procura distinguir rigorosamente esses três concei­ tos, traduzindo-os terminologicamente pelas expressões Manierismus, Ma­ nieriertheit e Manier, procuraremos fazer o mesmo em português. Assim, traduziremos Manierismus por "maneirismo", M anieriertheit por "ama­ neiramento" e Manier por "jeito, ou costume amaneirado" (ou, quando o contexto o permitir, por "maneira" pura e simplesmente). Em con­ seqüência, traduziremos os adjetivos manieriert por "amaneirado" e manieristisch por "maneirista". 132 Cf. W. Szilasi, M acht und Ohnmacht des Geistes. 133 A mim também, isso passara despercebido na curta exposição "Vom anthropologischen Sinne der Verstiegenheit", ern Der Nervenarzt, ano 20. cad. l, 1949, e no presente livro. 134

ib.

135 Excentricidade, cf. acima, hem como Mschr. f. Psychiatr. vol. 124, 195-210, 1952; vol. 125, 281-299, 1953; vol. 127, 127-151, 1954; vol. 128. 281-314. 1954.

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perigo o seu êxito, e até mesmo como formas de seu malogro, isso já mostra que nós as retiramos do quadro da Psicopatologia e da clínica psiquiátrica em geral e da esquizoidia e da esquizofrenia em particular, para colocá-las sobre o terreno da existência humana como ser-no-mundo. É só a partir da existência humana assim compreendida que se pode, a nosso ver, compreender, não somente aqui, mas por toda parte, a "sintomatologia'' esquizofrênica em sua mais íntima essência. Pois, tão logo a extravagância, a excen­ tricidade e o amaneiramento deixam de ser rotulados e diagnosti­ cados como simples "sintomas" esquizóides e esquizofrênicos e passam a ser compreendidos como peculiaridades humanas univer­ sais, a esquizoidia e a esquizofrenia também se tornam "mais pró­ ximas humanamente" de nós. Em outras palavras, elas não esca­ pam mais à estrutura fundamental do ser-homem como algo de alheio a ele ou dele alienado (alienus, aliéné), mas constituem tãosomente modos particulares de seu malogro. Para evitar eqüívocos, queremos ressaltar aqui também que, ao falarmos em compre­ ender, não se trata nem de um compreender psicológico, nem de um compreender psicopatológico, mas de um compreender existencial-analítico. A extravagância e a excentricidade já foram, dessa maneira, compreendidas como modos determinados de chegar-a-um-fim ou de ficar ''enrascado" que afetam a autêntica mo­ vimentação (Bewegetheit) histórica da existência. A. A s P e r ífr a se s d o A m a n e ir a m e n to n a L in g u a g e m C o lo q u ia l e n a L in g u a g e m d a P s ic o p a to lo g ia

Em conformidade com o objetivo e o método de nossa pesqui­ sa, partiremos aqui também da linguagem coloquial. Derivamos as expressões alemãs equivalentes a maneira, maneiras (boas, más, esquizofrênicas), amaneirado, amaneiramento, maneirista, maneirismo (Manier, Manieren, manieriert, Manieriertheit, manieristisch, Manierismus), do verbo francês manier — manejar, tomar nas ou entre as mãos, pois manier por sua vez é derivado de w tn .136 Por­ tanto, a linguagem coloquial entende originariamente por maneira 136 Para mim, é incompreensível que Max Scheffler, em seu ensaio "Über die Entstehung des Manierismus" (Das W erk, ano 31, cad. 6, p. 170, 1944) tenha acreditado poder derivar essa palavra de "Manie" (mania) levado a isso manifestamente pelo fato de compreender mania no sentido de vício ou háhito prejudicial (Süchtig K eit) e por acreditar reencontrar

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TRÊS FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA

o ato de lidar manualmente com alguma coisa ou aquilo que des­ crevi como a ''operação manual de tomar-por-um-lado" (das "grei­ fende N ehmen-bei-etwas") O plural maneiras designa o modo de se lidar ou tratar em geral no contexto do mundo ambiente, do mundo social ou do mundo privado, tanto sob um ponto de vista sociológico quanto psicopatológico. Com as expressões amaneirado e amaneiramento, a linguagem coloquial designa, por sua vez, uma maneira esquematicamente exagerada. Em contraposição, as ex­ pressões Manierismus e manieristisch (maneirismo e maneirista), mas também a expressão Manier138 (maneira, jeito amaneirado) pertencem sabidamente à história da arte. A última refere-se ao modo de compreender e representar artístico em geral, as primeiras referem-se a determinadas peculiaridades do estilo artístico e dos períodos marcados por um estilo artístico. Mas voltemos à linguagem coloquial (alemã) e perguntemonos que outras expressões estão a seu dispor para significar o que se entende pelas palavras manieriert e Manieriertheit (amaneirado e amaneiramento). Ao fazer isso, ignoramos completamente aque­ las expressões que, analogamente às palavras que servem para no maneirismo algo de semi-patológico, justamente o vicioso (das Süchtige). — Em alemão, ainda dizemos no maneirismo algo de semipatológico, jus­ tamente o vicioso (das Süchtige). — Em alemão, ainda dizemos em vez de "die Manier" (a maneira, o jeito ou estilo) muitas vezes "die Hand" ( = a m ã o ). Por exemplo; "ich finde die Hand darin (auch in einem sprachlichen Kunstwerk) bewundernswert" (lit.; "acho a mão aí (inclu­ sive numa obra de arte lingüística) admirável"). Tanto "Hand" quanto "Manier" suprem, em tais locuções, não apenas por uma forma artística, mas também por sua qualidade artística. Cf. a carta de Hofmannsthal a Bodenhausen (1 6 .2 .1 4 ); "Apesar de tudo, acho a qualidade puramente artística, a mão aí, não posso dizer de outro modo, admirável" (Briefe der Freudschaft, Eugen-Diederichs-Verlag 1953, p. 159). 137 Cf. Grundformen und Erkenntnis menschlichen Daseins, 2.a ed. 1953, pp. 275 ss. 138 Usamos aqui a palavra “M anier” ("maneira" ou "jeito") — em opo­ sição ao amaneiramento e, em certo sentido, ao maneirismo, e seguindo nisso Goethe — “num alto e respeitável sentido". Cf. o pequeno tratado de Goethe, hoje ainda, ou sobretudo hoje, muito instrutivo e importante; Einfache Nachahmung der Natur. Manier Stil (Simples imitação da natu­ reza. Maneira, Estilo) Jubiläum-Ausgabe, t. 33. Cf. para a história das expressões "estilo" e "maneira" tamhém Werner H off mann: " ‘Manier’ und 'Stil’ in der Kunst des 20. Jahrhunderts", Stud. Generale, ano 8, cad. 1, jan. 1955. Aprendemos aqui que a maniera é uma das palavras que o renascimento italiano pôs em circulação (aliás, inicialmente, como um conceito axiologicamente neutro). É só no classicismo que tem lugar aqui uma mudança, na medida em que a maniera já é compreendida como um difetto, bem como a palavra ammanierato (artificial, amaneirado) (v. l b). D o italiano, a designação maniera emigrou para o francês e só daí para o alemão.

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significar a extravagância e a excentricidade, se referem meramen­ te ao efeito exercido sobre o espectador, ouvinte ou leitor (no sen­ tido do pasmar), ou por outras, as que se referem às impressões suscitadas pelo que chama a atenção, surpreende, torna perplexo ou desconcerta, pelo estranho, esquisito, fora do comum, excêntri­ co, etc. As expressões de raiz germânica que significam amanei­ rado e amaneiramento são geschraubt e Geschraubtheit139 [literal­ mente ; aparafusado, enroscado, isto é, retorcido, alambicado, arrevesado, de Schraube — parafuso, e retorcimento, arrevesamento — N. do T.]. Vemos então que a linguagem coloquial alemã já faz uma distinção entre geschraubt (retorcido) e verschroben [excêntrico, igualmente derivado de Schraube — N. do T .], entre retorcimento e excentricidade. Veremos mais claramente onde é que ela enxerga essa distinção ao compararmos a palavra alemã geschraubt com as expressões correspondentes em outras línguas. Assim, o termo holandês equivalente a geschraubt e opgeschroefd = aufgeschraubt [que significa literalmente desaparafusado, desatarraxado, o prefixo auf- significando isoladamente ''para cima" — N, do T.]. O sentido do prefixo auf- ficará mais claro ainda numa expressão francesa equivalente a retorcido ou amaneirado. O fran­ cês não fala, por exemplo, de um style maniéré, mas de um style guindé, bem como de um aír guindé e de gestes guindés (em vez de gestes maniéres). Na palavra guinder (aparentada ao alemão winden = torcer, enroscar; guindar, içar), o significado de auf-, tomado no sentido de para cima, encontra uma expressão tão clara, porque ela significa originariamente içar (as velas, por exemplo) ou levantar, guindar por meio de um guindaste ou de uma rolda­ na (W inde). Mas o francês não conhece apenas a expressão guindé — guindado, retorcido, amaneirado ou afetado, mas tam­ bém, ao lado de guinder, se guinder, a saber, em primeiro lugar, guindar-se, elevar-se, em segundo lugar, alambicar-se, expressarse de maneira empolada, amaneirada ou afetada.140 Já sob esse ponto de vista puramente lingüístico, se guinder está mais próximo do alemão sich verst eigen (exceder-se, exorbitar, demasiar-se, ex­ traviar-se, extravagar) e da extravagância (Verstiegenheit), do que da excentricidade. Pois a língua alemã desconhece, como sa­ bemos, um ''sieh-verschrauben" [que corresponderia, em senti­ do próprio, na língua portuguesa, a expressões perfeitamente le­ gítimas como: enroscar-se ou aparafusar-se mal, e, em sentido fi­ gurado, a um "excentricizar-se" — N. do T.]. Mas, continuando 139 Cf. tamhém Excentricidade. 140 A o lado de “se guinder”, encontramos em francês a expressão "se tnaniérer”,

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a seguir o mesmo eixo semântico, o retorcimento amaneirado e o ato de se guindar [Empor-Geschraubtheit e sich empor-schrauben — o prefixo empor significando; "para cima" — N. do T.] apro­ ximam-se mais da extravagância, na medida em que os dois modos de ser-no-mundo se fundam em uma tração para cima, lá num guindar-se torcendo e retorcendo, aqui numa ascensão (malogra­ da). Em contraposição, a excentricidade conota, como vimos, aquilo que se coloca de través, torto e enviesado, como se mostra de maneira particularmente clara nas expressões Querkopf [cabeçudo, do contra — lit. cabeça atravessada] e schiefgewickelter Mensch [pessoa iludida ou que está muito enganada, lit.; pessoa enrolada torto]. A maioria das expresões italianas e espanholas para ges­ chraubt correspondem ao francês maniére. Uma exceção, tanto quanto sei, é o espanhol; um estilo amaneirado chama-se em es­ panhol “un estilo crespo", isto e, um estilo ornado ou floreado, cheio de arabescos. Encontramos outras maneiras de parafrasear o amaneiramen­ to, comuns na linguagem coloquial, quando nos voltamos para as expressões empregadas na psicopatologia e na clínica. Pois elas praticamente jamais vão além da linguagem coloquial. Já destacamos dentre as expressões relativas à excentricida­ de e encontradiças na bibliografia psicopatológica e clínico-psiquiátrica, algumas que são de alguma maneira específicas para o amaneiramento. Ou seja, além de retorcido, as expressões rebus­ cado, falso, estudado, afetado, alambicado, arrevesado, empolado, artificial, bizarro, caricatural, pretensioso. Com relação à lingua­ gem, encontramos também a expressão; ''linguagem guindada'' (Stelzensprache, lit.; linguagem sobre pernas-de-pau) de Bleuler, uma linguagem ''que exprime grandes pretensões sob uma forma bizarra" (Bumke).141 Em Gruhle,142 encontramos as expressões ''floreado", "complicado", ''estudado", "sem-naturalidade", “delibe­ radamente desviado", usadas indistintamente para a excentricidade e para o amaneiramento. Todas essas expressões lançam luz sobre aquilo que se tem em mente com a expressão alemã; “(empor-) geschraubt", ou seja, retorcido (guindado). A altura para a qual as coisas são re­ torcidas ou à qual são guindadas (guinde), ou para a qual a pes­ soa se retorce ou se guinda é uma altura antinatural, estudada, uma altura rebuscada, falsa, arbitrária. Não se trata, pois, de um modo de ser homem que tenha crescido naturalmente até essa al­ 141

Cf. texto.

142 Ibid.

AMaNEIRaMENTO

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tura o* que tenha raízes naturais, mas de um modo artificial ou mesmo artificioso. A desproporção entre uma autêntica altura e essa deformidade ou transgressão da forma encontra-se expressa de excelente maneira na palavra pretensioso = presunçoso, arrogatne, atrevido descabido (cujo equivalente francês, por sinal, é também — afetado). Temos que nos ocupar mais pormenorizada­ mente de tudo isso na interpretação existencial-analítica do ama­ neiramento.

B.

P ara u m a C o m p reen sã o e D e sc r iç ã o C lín ic a s d o s J e ito s A m a n eir a d o s E sq u iz o fr ê n ic o s

Indagar pela essência do amaneiramento esquizofrênico é uma tarefa que a clínica psiquiátrica até hoje ainda não enfrentou. Como veremos, ela contentou-se, via de regra, com hipóteses de natureza psicopatológica e construtiva — para explicar a gênese ou as causas dos jeitos amaneirados esquizofrênicos e, em parti­ cular, catatonicos — e, sobretudo, com a descrição impressionista das mesmas. Nisso, aliás, procedeu de modo semelhante à descri­ ção que já nos é familiar das excentricidades esquizofrênicas. Assim, Kraepelin, por exemplo, vê uma possível explicação da "forma morbidamente alterada" da qual decorrem as ações desses doentes, por um lado, na "insegurança e debilidade das volições conscientes de seu objeto'', por outro lado, na facili­ dade de se influenciarem os atos de vontade através de "toda sorte de estímulos"143 Em conseqüência de ''um dispêndio ex­ cessivamente forte de energia" (cf. o ato de guindar), envol­ vendo a participação de "grupos de músculos desnecessários ou de partes excessivamente grandes dos membros", essas ações morbi­ damente alteradas recebem freqüentemente "a marca daquilo a que chamamos desgracioso e pesadão", ou então ''carecem de acaba­ mento, começam e terminam abruptamente, parecendo por isso contraídos, desajeitados, abruptos".144 A semelhantes "esquisitices" chamamos jeitos amaneirados. Através deles, "as atividades de res­ pirar, falar e escrever, a postura e o andar, o modo de vestir e de trocar de roupa, de dar a mão e comer, de fumar, os gestos, o jeito de agarrar ou manejar as ferramentas, podem ser influencia­ 143 Lehrbuch, 8* ed. 1913, t. III, p. 715. 144 Tudo é em larga medida pertinente para nosso caso Jürg Zünd, que trataremos na próxima secção. — Os grifos são meus.

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TRÊS FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA

dos e mudados da mais variada maneira". Kraepelin acentua além disso a tendência manifesta dos jeitos amaneirados a persistirem décadas a fio, logo à estereotipação. É disso que resultain "as im­ pressões meio repulsivas, meio ridículas'',145 com as qnais costuma-se compor a imagem popular do "louco" (ibid., pp. 716 ss.). No tomo I da sexta edição de seu tratado sobre a Psiquiatria Geral de 1909, Kraepelin ainda arrolava os jeitos amaneirados sob a rubrica Excentricidade e Estereotipia (pp. 388 ss.) ; ''Justamente a transformação de movimentos e ações quotidianas e cos­ tumeiras por estímulos secundários mostra, tanto na vida sã quan­ to na vida doente, uma grande tendência a se tornar estereotipada. A linguagem particularmente costuma exibi-la. Os doentes ciciam, grunhem, falam um alto-alemão afetado ou um dialeto exa­ gerado, em falsete, com uma determinada entonação, com uma ar­ ticulação rítmica, com a boca fechada, deturpam e trocam determi­ nados sons, fazem um uso maciço de diminutivos e adjetivos pe­ culiares, repetem oralmente e por escrito inúmeras vezes as mes­ mas palavras e locuções, assobiam ou gorjeiam determinadas fra­ ses, choram em melodias. Designamos as manias como jeitos amaneirados, que afetam o modo de falar, comer, andar, saudar, e as­ sim por diante. Embora infinitamente variadas, costumam reapa­ recer nos mais diferentes doentes, muitas vezes de um modo es­ pantosamente semelhante. Por outro lado, sua origem num distúr­ bio fundamental [!] comum é inconfundível. Constituem, na gran­ de massa dos casos já decorridos, os últimos restos ostensivos dos antigos sintomas da doença e muitas vezes permitem, sem mais, que se infiram os estados do passado." A última observação, o ''sem mais", deve ser corrigida pelo menos a partir da obra fundamental de Klasi sobre a significação e a gênese das estereotipias (Berlim, 1922). Pois Klasi mostrou quanto esforço e quanta argúcia é preciso para se poder ''inferir os estados passados". De resto, Kraepelin já trata aqui os jeitos amaneirados na secção sobre os "Distúrbios do querer e do agir" (pp. 366 ss.), entendendo por isso a diminuição, a intensificação, o estorvamento, a facilitação dos estímulos (Antriebe) da vontade ou dos atos da vontade, bem como a possibilidade aumentada ou diminuída de se influenciar a vontade, que é algo que pertence a um domínio inteiramente diverso. A isso acrescem ainda os "dis­ túrbios no decurso dos atos de vontade", tais como os conhecemos a partir da distração, do sonho, das ''perturbações mentais deli­ rantes'', mas, sobretudo, tais como as encontramos também nas ca145 Os grifos são meus. Também voltaremos a encontrar as manias no caso Jürg Zünd.

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tatonias graves, na arterioesclerose e na paralisia. Aqui, elas já se incluem no domínio da "apraxia ideatória" de Liepmann. Bleuler menciona os jeitos amaneirados em seu "grupo das esquizofrenias" sob a rubrica "Linguagem e escrita" (pp. 121 ss.), sob a rubrica dos "jeitos amaneirados" (pp. 157 ss.), sob a rubrica dos "estados catatonicos" (pp. 174 ss.) e na secção X (A Teoria) sob a rubrica dos "sintomas complexos catatonicos" (pp. 366 ss. — cf., em oposição ao texto, o índice!). Valendo-se de excelentes exemplos, descreve a "linguagem artificial" e as múltiplas formas dos ''absurdos estilísticos". A expressão seria aqui muito facil­ mente empolada, os doentes diriam trivialidades ''expressando-se de maneira retorcida"146 ''como se estivessem em jogo os mais; altos interesses da humanidade" (p. 129). Entre os demais absur­ dos estilísticos, que em parte já conhecemos, Bleuler menciona o estilo telegráfico, a preferência por locuções estereotipadas, o es­ tilo excessivamente amplo, rebuscadamente elegante, humilde, pueril, exibindo um uso maciço de diminutivos, os ''caprichos pa­ tológicos" que não devem ser, ''provisoriamente, relacionados aos complexos", por exemplo, os caprichos que consistem em usar, em vez de outras formas verbais, quase que exclusivamente os particípios com um verbo auxiliar. Menciona além disso a perseveração, as contrações (por exemplo, "icht" em vez de "ich nicht" == "eu não"), as interrupções no meio da frase, etc. Bleuler vê a "origem" ou a "causa" de semelhantes anormalidades, em parte, na insensibilidade ou impossibilidade desses doentes (p. 130), em parte, na "mudança do complexo no curso das idéias" (p. 132), e, em parte, não haveria razão nenhuma para isso (p. 157). — Por jeitos amaneirados, Bleuler entende as "alterações ostensivas das ações costumeiras" (p. 157), seja no sentido de uma pose determinada (poses de Bismarck, de Napoleão), seja no esforço de "imitar algo de especial na postura, na mímica e no vestuário, na linguagem e na escrita" (p. 157). A maioria dos jeitos ama­ neirados teria se tornado totalmente incompreensível para nós. "Tudo o que em geral se faz pode ser modificado no sentido de jeitos amaneirados esquizofrênicos" (ibid.). Retomando a deno­ minação, que Ziehen dá aos jeitos amaneirados, de "estereotipias variantes" ( “Abänderungsstereotypien”) , Bleuler acentua com ra­ zão o fato de que nem todos os jeitos amaneirados precisam se estereotipar. Lembre-se, contudo, a constatação feita por Kraepelin de que os jeitos amaneirados tendem a se estereotipar. Assim, Bleuler distingue os doentes que, nas poses por eles assumidas, ''saem constantemente de seu papel" e aqueles que ''se mantêm de 14e Grifo meu.

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T R ês FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA

maneira conseqüente e décadas a fio" nele (p. 157). Além do ato de comer, é a linguagem que proporciona as "melhores ocasiões para a adoção de jeitos amaneirados" (entonação afetada de pala­ vras estrangeiras, acréscimo estereotipado de determinadas termi­ nações como — ismo, fala escandida, rítmica, rimas, etc.). Entre os movimentos expressivos mencionam-se os gestos exagerados, entre os quais as caretas. O "início súbito" (dos movimentos) fez com que se falasse erroneamente, a propósito da catatonia, em movimentos coréicos ou semelhantes aos do tétano. Em compen­ sação, muitos desses movimentos não se deixariam distinguir ni­ tidamente dos tiques (p. 158). Entre os ''estados catatônicos", menciona-se como síndrome particular da forma hipercinética da catatonia (p. 177), a "psico­ se de momices” (execução de gestos desconexos, caricaturais e caretas), com o que, porém, deve-se entender algo de muito dife­ rente das "formas da hebefrenia maliciosa" que apresentam "ape­ nas um sintoma isolado entre muitos semelhantes". Parece, por conseguinte, que Bleuler compreende os trejeitos dos catatônicos como sinais de hipercinese catatônica, compreendendo porém as de muitos hebefrênicos como expressão de um modo existencial uni­ tário, de uma disposição de humor existencial no sentido da ma­ lícia. Tais distinções são muito importantes para nosso tema! — No mais, segundo Bleuler, encontram-se nos estados catatônicos, além da anormalidade dos movimentos em geral (''fazer de um modo especial, como não se faz"), todos os outros sinais da cata­ tonia, tais como: ''repetições estereotipadas, verbigeração, expres­ são caricatural dos sentimentos, páthos oco, etc." (p. 176). Bleuler coloca a verbigeração entre as estereotipias, do mesmo modo como, por exemplo, a intercalação de um "hem" entre cada duas pala­ vras (assim, o pai que presenteou a filha com caixão por ocasião do Natal exibia uma característica semelhante). Quanto à síndro­ me de momices, ele tem ''sem sombra de dúvida'' uma origem se­ melhante à da síndrome de Ganser. "Trata-se de pessoas que, por uma razão qualquer (inconsciente), fingem-se de doentes mentais" (p. 178). Kraepelin vê, pois, a origem ou a causa dos jeitos amaneira­ dos em distúrbios na esfera das volições e na "motricidade", Bleu­ ler — na medida em que é de todo possível constatar uma ''razão" para isso — em distúrbios da afetividade e do pensamento, os últimos (ou ambos?) ''causados" por sua vez pela ''mudança" e pela ''maior tirania" dos ''complexos". Na parte da "Teoria" intitulada os "sintomas complexos ca­ tatônicos" (Os Jeitos Amaneirados, pp. 366 ss.), Bleuler empre­ ende mais pormenorizadamente a "explicação'' dos jeitos amanei-

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rados, bem como do amaneiramento esquizofrênico. Eles ''se expli­ cam" não pela separação, mas ''pela ação duradoura dos comple­ xos". Já o homem normal tem a tendência ''a exagerar, ou, pelo menos, acentuar fortemente as exteriorizações que correspondem aos seus desejos". Uma vez que a mestria demonstrada por Bleu­ ler na compreensão de modos existenciais de caráter humano uni­ versal e de suas transformações e reproduções esquizofrênicas fica aqui particularmente patente, citemos em sua totalidade a seguinte passagem; "O vaidoso vai se fazer notar em suas roupas e em todos os seus gestos, o orgulhoso de sua força física no andar e em todos os seus movimentos. Todavia, não apenas aqueles que são alguma coisa chamam a nossa atenção, mas ainda mais aqueles que querem ser o que não são. Na pessoa que é realmente distinta, o porte distinto, a distinção, mostra-se por si mesma em todo movimento. Ela é uma par­ te de seu ser, por isso não chama a atenção. Mas na pessoa que afeta a distinção ohserva-se a oposição entre a natureza e a afetação. Os mesmos movimentos são, em um, algo que lhe pertence, no outro, algo de estranho a ele. Quem imita a forma sem compreender o conteúdo não consegue, jus­ tamente, adequar a forma ao conteúdo. Ele dará, por exem­ plo, um peso indevido a coisas secundárias que chamam a atenção. A pessoa que possui uma cultura espiritual natural manifesta a maior independência de seus dedos uns dos outros em todos os movimentos da mão. A pessoa que gostaria de mostrar mais cultura do que tem vê apenas como o dedinho é levantado, e faz isso de maneira exagerada em toda oportunidade, hoa ou má, etc. Assim tamhém os esqui­ zofrênicos. Só que aí, quando falta o controle e os com­ plexos desenvolvem em geral uma tirania muito maior do que no normal a exageração se tornará muito mais forte ainda. Daí a afetação catatônica, o comportamento mal­ criado dos hebefrênicos, a ridícula majestadei dos megalo­ maníacos. Assim também se explica que parte dos jeitos amaneirados seja bem consciente" (loc. cit., p. 366 sq.).

Como é importante, a fim de delimitar os jeitos amaneirados em face das estereotipias, a investigação a fundo da história da vida do doente, mostra-o o exemplo da quadrilha de Bleuler, para o qual só atentei após a leitura de uma obra de Benedetti.147 Uma catatônica que vivia a se balançar havia conhe­ cido seu namorado por ocasião de uma quadrilha. Ela era 147 "Die Welt der Schizophrenen und deren psychotherapeutische Zu­ gänglichkeit", Med. Wochenschrift, ano 84, n.° 36, 1954.

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TRÊS FORMAS DA EXISTÊNCIA MALOGRADA "extremamente contraída, caladona e ausente, até que se fizesse com ela os movimentos de balançar, como na dança. De repente, ficava como que metarnorfoseada. Mal se podia reconhecer nela a doente. Começava a falar de seu namoro e da história de sua vida, tudo o que se quisesse saher, e com inteira clareza, como uma pessoa sadia. A experiência pôde ser repetida algumas vezes, até que os progressos da catatonia grave tornaram-na impossível" (op. cit., p. 368).

Esse exemplo é tanto mais importante que Reboul-Lachaux (v. abaixo), sem mais e de modo puramente dogmático, isto é, sem uma investigação detalhada da história da vida e baseando-se numa mera construção psicopatológica da esquizofrenia, conside­ ra todos os jeitos amaneirados dos esquizofrênicos (em oposição a Bleuler) como jeitos amaneirados apenas aparentes, como de fato o mostra o exemplo da quadrilha, se bem que num único caso determinado. De resto, Bleuler, assim como posteriormente Re­ boul-Lachaux, diz que não se deve falar em estereotipias nem em jeitos amaneirados quando estão ligados a vozes ou idéias deliran­ tes (p. 370). As pretensas estereotipias têm, então, a mesma signi­ ficação que têm ''as ações, por boas razões muitas vezes repetidas, do homem são (por exemplo, os trabalhadores de fábrica!)". Cita, então, a expressão muito característica; "pensamentos delusórios expressos plasticamente", com que Schuele designa certas estereo­ tipias da postura (p. 371). Finalmente, temos que levar em conta o trabalho francês já mencionado sobre o maniérisme, que tem para nós um duplo in­ teresse. Primeiro, porque descreve muito mais pormenorizadamen­ te do que Bleuler o maniérisme hors l*asile, portanto entre os sãos. Segundo, porque mostra como, de um ponto de vista clínico, pre­ cisamente não se deve agir. Pois, sob esse ponto de vista, ele fica muito aquém de Bleuler. Trata-se da dissertação de Reboul-Lachaux, impressa em Montpellier no ano de 1921, intitulada Du Maniérisme dans la démence precoce et dans les autres psychoses. A palavra francesa maniérisme abrange, como se sabe, tanto o amaneiramento, quanto os jeitos amaneirados (esquizofrênicos), bem como o maneirismo artístico. No mencionado trabalho, tem-se em vista apenas o amaneiramento (inclusive na arte) e os ''jeitos amaneirados". Como mostra esse trabalho, a língua francesa é par­ ticularmente rica de designações para o amaneiramento e os jeitos amaneirados. Além das expressões rnaniéré e guindé, bem como se rnaniérer e se guinder, encontramos uma multidão de perífrases, como inaccoutumé, singulier, factice, artificiei, calculé, étudié, pa­ radoxal, choisi, recherché, prétentieux, alambíqué, além disso os substantivos Vaffectation, la recherche, Vexagération, le manque de

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naturel, l’afféterie, la pré ciosit é (cf. Les précieuses redicules), la minauderie (minauder — afetar-se, fazer trejeitos com o objetivo de agradar), la pédanterie, la mignardise (melindre, afetação), la rnievrerie (un style mievre tem o significado de style guindé, prétentieux, effemine). O alvo e a meta dessas ''variedades" da aff ectation são, segundo nosso autor, simples e claros; "on est maniéré pour paraitre1*8 gracieux, pour paraitre délicat, pour paraitre galant, pour paraitre savant" (p. 30). Encontramos o "maniénsme'' ''dans tous les modes de l'activité". Assim como em todas as ■"poses", trata-se daquelas que afiguram uma auto-satisfação, uma superioridade (se plastronner — ufanar-se, vangloriar-se, se cam~ br er = empertigar-se) ou daquelas que querem expressar "des Sentiments d’humilité". Tudo isso acontece "pour attirer l’attent­ ion" Com respeito à escrita amaneirada existem ainda expressões particulares, como complique, entortillement gourmé (com rígidas sinuosidades), fignolé ( — cuidadosamente executado), fioritures inutiles (cf. a palavra alemã "Floskeln", flores de retórica). Aqui também — trata-se ainda de "le maniérisme hors Vasile” — tudo serve à expressão da ânsia ou da necessidade de se singulariser, de se faire remarquer. Visto que o ''maniérisme" pode mostrar-se em todas as esferas da ''atividade humana", há também ''um maniérisme uniquement intellectuel, un maniérisme de conception ou idéologique". O autor faz notar além disso que houve, na antiguidade e no estrangeiro, períodos que teriam sido particularmente ricos em amaneiramentos. Limita-se porém à história francesa e suas "époques d’affectation", como a época das précieuses e o tempo do Directoire. — Quanto à literatura e à arte, nosso autor permanece, como dissemos, dentro da esfera do amaneiramento. Isso mostra-se em sua descrição do "style Marivaux" ou da "marivaudage”. Mas quando o autor menciona o "style rococo", entre outras coisas por causa da "profusion des ornements insignifiants" e da ''maneira afetada" do entrelaçamento das guirlandas de flores, etc., fica ma­ nifesta aqui justamente a falta da distinção entre o amaneiramento e o maneirismo artístico. Finalmente, o autor fala também de um maniérisme entre as crianças e os animais, com o que chega a uma distinção importante para ele, aliás justamente com respeito ao amaneiramento esquizo­ frênico. Independentemente do maniérisme das crianças", "impliquant une idée de re eher ehe, d’aff ec tation, un désir de paraitre ‘des hommes’ ”, observavam-se nelas, muitas vezes, caretas e maneiras bizarras. Mas isso significaria para elas algo de perfeitamente normal". Pois esses modos (façons) corresponderiam à sua evo148 Grifo meu.

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lução e à activíté infantil (p. 37). O que o autor entende por maniérisme entre os animais, por exemplo, o andar em roda do pavão, é atualmente classificado como ''ritos sexuais dos animais" (Portmann). Em ambos os casos, tanto nas crianças quanto nos animais, não se trata de modo algum de verdadeiros maneirismos (Manie­ rismen), mas apenas de Vapparence de Faffectation. Estaríamos a passar dedutivamente de uma analogia das manifestações externas para uma completa analogia. Os comportamentos em questão das crianças e dos animais despertariam em nós uma "idée d’affectation". Todavia, nós acrescentaríamos a essa idéia um elemento sub­ jetivo — uma interpretação que tem origem em nosso campo. Como mostrou o capítulo sobre a excentricidade, a constatação de todos esses comportamentos repousa em "impressões subjetivas", inclusive a dos ''verdadeiros" amaneiramentos e excentricidades. Para o nosso autor, a distinção mencionada é, porém, diretriz tan­ to para sua definição do amaneiramento, como para sua compre­ ensão dos jeitos amaneirados esquizofrênicos, cuja compreensão está assim de antemão fixada numa determinada direção. Sua de­ finição diz o seguinte; “Nous comprenons par conséquent sous le nom de maniérisme les manifestations motrices traduisant l’affecta­ tion ainsi que celles qui n’en donnent que Vimpression". Ao fazer isso, o autor faz apelo tanto ao observador comum como ao clínico, que costumariam, ambos, julgar os fenômenos se­ gundo suas manifestações motoras e ''palpáveis", não importa se o fenômeno julgado como affectation é real, isto é, uma verdadeira affectation, ou se apenas evoca a aparência de semelhante fenôme­ no, com o que passa, tanto para o observador comum como em particular para o clínico, um atestado bem ruim! O autor apresenta 15 observações clínicas de casos de dementia praecox (deixaremos aqui de lado as outras formas mórbidas) com jeitos amaneirados ou maneiras bizarras e care­ tas, com o que tenta delimitar descritiva e patogenicamente as duas últimas em face das primeiras, embora todos os três grupos de sintomas sejam resultantes de um certo grau de excitação psíquica em conexão com o automatismo (p. 76). Muito embora nosso autor ressalte que, em semelhante investigação, se ela quiser ser analítica, seria preciso observar o indivíduo inteiro, ou seja, seu comportamento geral, levando em consideração suas relações com o passado, a educação, a formação, a profissão, ele se con­ tenta com perguntas e respostas muito superficiais, muito ao con­ trário das mencionadas investigações pioneiras de Bleuler sobre os jeitos amaneirados e as estereotipias e as de Kläsi sobre o sig-

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nificado e o «urgimento das estereotipias.149 Assim, ReboulLachaux limita-se à informação negativa dos doentes de que de modo algum querem se fazer interessantes, de que de modo algum fazem ''isso" intencionalmente. Ele se limita ao fato de negarem um jeito amaneirado e de que o consideram "natural" (57), de que não podem dar nenhuma razão que o explique (59, 62 ss.) ou ao fato de se esquivarem à pergunta enquanto tal (54, 75), etc. De tudo isso o autor conclui (79) que o amaneiramento na dementia praecox seria "quase sempre" uma afetação aparente (une apparence d’affectation) e não um sinal da afetação enquanto tal (et non de Vaffectation). De resto, encontrar-se-iam aqui — com essa distinção (dogmática) naturalmente! — todos os sinais do amaneiramento que se encontrariam no homem são, todavia jamais estendidos a todos os comportamentos, como por exemplo entre os "preciosos". O substrato dos jeitos amaneirados seria consti­ tuído aquí, no caso da dementia praecox, na maioria dos casos pelos gestos e pelo andar (80). O (aparente) amaneiramento po­ deria ocorrer em todas as formas da doença, mas não ocorre em todos os doentes. Ele seria antes raro, o que em nós dificilmente ocorrerá. No mais das vezes, ele surgiria no começo da doença (84), o que tampouco podemos corroborar. No que tange à "psicogênese", ao surgimento do mécanisme psychique du maniérisme entre os sãos, nosso autor acredita poder apresentar aqui um fator intelectual e um fator afetivo, a saber “un trouble — passager ou durable — léger ou profond du jugement 150 et une modification des sentiments affectifs, plus souvent en excés qii’en défaut" (130 ss.). Além disso, seria ainda preciso distinguir entre um maniérisme episódico, dirigido para um determinado objetivo (entre as crianças por exemplo) e um maniérisme habitual. Encontramos aqui uma repetição precisa da definição do maniérisme (tanto aparente quanto real) por nosso 149 O que Klasi diz das estereotipias, vale perfeitamente também para os "jeitos amaneirados"; " . . . a possibilidade de aprendermos ou não algo sobre uma particular motivação psicológica não depende somente da capa­ cidade de empatia e da compreensão do psiquiatra em questão, mas, em primeira linha, da hoa vontade e da capacidade do doente de dar informações. Conforme os métodos de investigação de uma clínica e da na­ tureza do relacionamento de um médico com o doente, o mesmo movi­ mento de resistência poderia ser ora identificado como tal e excluído das estereotipias, ora considerado como não-motivado e incluído entre elas" (loc. cit., pp. 105 ss.). A comprovação feita por Kläsi de que "os doentes, mesmo quando entram no jogo das perguntas, continuam a se esquivar e a tentar enganar com explicações superficiais" deve nos servir de advertência. 150 Grifo meu.

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autor; "affectation, recherche, manque de naturel" (131). Vemos que essa definição não se distingue das definições da linguagem coloquial. Como forma particular do amaneiramento normal, o autor menciona “le maniérisme de gêne", cuja sutil descrição ci­ tamos aqui por extenso, dado que se ajusta perfeitamente ao amaneiramento de nosso caso Jürg Zünd, mostrando, porém, ao mesmo tempo, que, sem uma investigação existencial analítica, não se pode chegar a nenhum resultado seguro. Pois o amaneiramen­ to de Jürg Zünd, que passa toda sua vida "dans Vasile", nem é apenas aparente, nem tampouco episódico, como deve ocorrer, como logo veremos, no maniérisme de gêne; "La timidíté, le fait pour qualqu’un de se trouver dans une Situation ou il ne se sent ni à sa place, ni dans son milieu peuvent provoquer chez liii une absence de naturel, de la gaucherie, un aspect emprunté, ensemble donnant Vimpression d’affectation. Ce maniérisme apparent est tout a fait épisodique, il disparait avec les circonstances qui Vont provoqué, de se fait il rentre dans le cadre du maniérisme normal"

(132).151

No maneirismo (Manierismus) normal, além da timidez, a vaidade também, como é o caso para Bleuler, teria um papel, bem como a necessidade de "exteriorizá-la": "Sans galérie, sans public, sans admirateurs le manérisme tendrait à disparaitre” (133).15a Pois o alto conceito de si mesmo já seria na definição do ama­ neiramento ; " . . . pour vouloir être recherche, pour s’efforcer dJêtre remarque, pour parmtre, il faut qu’existe un désir de superiorité, supériorité intellectuelle ou prétentions morales, dédain plus ou moins de ceux qui vous entourent” (132). Veremos, con­ tudo, no caso de Jürg Zünd, que o universo também pode ocorrer, na medida em que Jürg Zünd tende justamente — a fim de escon­ der sua inferioridade — a permanecer tanto quanto possível des­ percebido, a se comportar tanto quanto possível de modo a não chamar a atenção e, até mesmo, "a sumir no anonimato da massa". Por conseguinte, só com restrições podemos aceitar a declaração 151 Quanto a nós, não falaríamos absolutamente em "amaneiramento do constrangimento", convencidos que estamos de que é possível distinguir do amaneiramento as manifestações do constrangimento enquanto tal, e isso já de uma maneira puramente externa, isto é, em seu fenótipo, mas sobretudo em seu fundamento existencial (cf. abaixo; Para uma análise existencial do amaneiramento). 152 Grifo meu. A superestimação, que se evidencia aqui, do fator rela­ tivo ao mundo-comum no fenômeno do amaneiramento será no que se segue, como veremos, de novo algo restringida. A importância desse "fator" só pode ser corretamente focalizada na investigação existencialanalítica.

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do autor de que o primeiro elemento psicológico do amaneira­ mento (dos sãos) seria: "satisfaction de soi, sentiment d’autoappréciation, hypertonie affective, besoin de se singulariser, besoin en partie volontaire et conscient, au moins a Vorigine" (133). A isso, porém, acrescem ainda, com respeito ao amaneiramento "hors Vasile”, como já mencionamos, "une erreur de jugement, un man­ que de bon sens, de sens critique” ; "un esprit qui mérite le qualitatif de sain n’est pos maniére” (ibid.). (Essa observação mostra que tampouco deveríamos designar o "maniérisme hors Vasile” como amaneiramento do são!). Não amaneirado, porém, não bas­ taria o jogo natural de suas "facultés supérieures, de son potentiel psychique”, para expô-lo (imposer) à atenção dos outros; ''il a recours à d’autres moyens: il adopte un masque,153 il compose avec préméditation et étudie ses façons de penser, de se tenir, d’agir, de parier ou d’écrire; aussi le plus souvent choque-t-il car il ne sent pas la grâce du naturel, il n’a pas le sens du redicule; dénué d'autocritique, il est pris le Premier aux appâts quil tend” (133). Essa descrição perfeitamente justa é turvada apenas pelo fato de que o autor enxerga nisso tudo, como dissemos, um sinal de debi­ lidade, assim como também pretende ter encontrado o verdadeiro amaneiramento muitas vezes entre os débeis (mas não, em com­ pensação, entre os idiotas e os imbecis). "Le manque, le défaut ou la faiblesse du jugement” parecem também estabelecidos para o autor, no tocante ao amaneiramento, porque esses se encontrariam de preferência entre os jovens e — o que nos lembra a obra de Möbius sobre o "atraso mental da mulher" — entre as mulheres! Ao contrário do amaneiramento episódico, o amaneiramento dura­ douro representa, pois, o primeiro grau, embora leve, do patológico e, nessa medida, a transição entre o "maniérisme hors Vasile” e o " maniérisme des internes". Enquanto a carência intelectual e afe­ tiva acarretaria, entre os primeiros, "desmanifestations motrices", aqui o pressupõe o saber de um estilo que se crê seguir e que sem saber se evita!'1 "Ele significa alteridade, cisão, obrigação de se medir e se comparar.” Seu pri­ meiro pressuposto é o de transpor algo que evoluiu naturalmente, ou seja, o clássico, "para a atmosfera paralisante da intenção contemplativa” (loc. cit., p. 149). O classicismo tem em comum com ò maneirismo apenas o fato de não elaborar a impressão da "na­ tureza” (no sentido mais lato), mas a impressão das obras de arte. Nessa niedida, ambos começam com uma "concepção formal preconcebida” (p. 150). Enquanto que, para o barroco, tudo o que viVe é diguo de forma, o maneirismo é "estritamente antropocên-? trico”, isto é, gira "como que sob a força de um encanto que o aprisiona” em torno da figura do homem, "enquanto o mundo or­ gânico em torno dele recua, a paisagem que o acompanha sendo a preferência substituída pela arquitetura (portanto pela obra dos homens), o espaço pelo plano.” mas o autor dá mais um passo. Ele explica que essa arte pensa no homem para, por assim dizer, aplicar a ele, portanto a si mesmo, no lugar mais doloroso, a forma, a forma no sentido de um ser-diferente, que se introduz justamente aonde a gente se esforça por ser parecido ou mesmo V7M

,a ,Uma compreensão mais pormenorizada, cf. por exemplo; “As características, observadas na arquitetura maneirista, do alongamento e Qa *ensã° — do alongamento simultaneamente horizontal e vertical, que Produz a tensão — podem tamhém ser identificados na escultura como ongamento do corpo humano, como o estiramento da figura ha trajeT1y ,^e um traço vertical ou em profundidade, como a fixação sobre linhas fundamentais da direção paralela" (pp, 165 ss.).

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Hoffmann indica também com a máscara se trai (cf. Pinder). Em face do mesmo retrato de Bronzino considerado acima, ele repara que, "ao lado" da rigidez da face, "as mãos são nervosas, inquie­ tas, espiritualizadas'', nervosia essa que a mascara deve, por con­ seguinte, ocultar. Aqui, o retrato da época estilística maneirista e o homem amaneirado de novo se tocam da maneira mais íntima. Resumindo, Hoffmann conclui o seguinte: quando, na pintura do maneirismo, ''desaparece a formação espontânea da figura humana segundo a lei de seu próprio crescimento, quando sua estruturação, sua posição, seu movimento são determinados por leis que vêm de fora'' -— até mesmo em Tintoretto — então, essa pintura coloca-se ao lado do gótico e do romano, logo ao lado da pintura da Idade Média e, até mesmo, poderia ser considerado como uma última vaga da Idade Média (p. 166). Finalmente, Hoffmann investiga a arquitetura, a escultura e a pintura maneirista do ponto de vista da luz. Constata então que aqui se tratar sempre de uma luz a pairar, a deslizar, a flutuar, mais uma vez em oposição à maioria das "pinturas'' esquizofrênicas. Para ficar mais uma vez na pintura, observe-se apenas que, no maneirismo, a luminosidade foi enormemente intensificada, e que assim também o contraste com a sombra — como, sobretudo, em Tintoretto — se mostra da maneira mais conseqüente; "Cada man­ cha de luz coloca-se ao lado de uma mancha de sombra" (p. 172) . A propósito das ''visões da luz", que são a criação do maneirismo, pode se afirmar o mesmo que se disse do espaço maneirista e de suas figuras; ''Do mesmo modo como o maneirismo faz o espaço fugir para o infinito, do mesmo modo como insere as figuras nessa fuga e em trajetórias verticais, desprendendo-as assim do real-terreno, assim também ele conduz, com as visões da luz que são sua criação, em direção a um outro mundo" (p. 173). Para Hoffmann também, o maneirismo constitui um fenômeno "no processo estilístico recorrente'', na medida em que, por exem-. pio, na Antiguidade romana, "os bustos da época dos Flávios e mesmo de Trajano, .. .mostram não somente o caráter precioso no gesto e na postura, mas também, no puramente formal, o estiramento horizontal e vertical que caracteriza o maneirismo"“ (p. 177). Já no prefácio, Hoffmann observara que sua ocupação de tan­ tos anos com o maneirismo se fundaria tão-somente em ''expe­ riências (relativas à "restratificação") de nossa própria época", na medida em que, nela também, o individual teria perdido sua validez suprema e o coletivo teria tomado seu lugar. "A organiza-' ção do Estado, a estruturação da sociedade, da economia, a rèva-

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loração dos valores espirituais, tudo segue o mesmo caminho" ( 8) Se Hoffmann inclui o alto renascimento e o primeiro barroco nn suas investigações, é para ''tornar claros o começo e o fim do novo estilo — isto é, os seus limites" (ibid.)’, o que é igualmente importante para nossa própria investigação. De resto, menciona a predileção do maneirismo, por um lado, pelo precioso e pelo lúdicojocoso, assim, por exemplo, quando as náiades esguicham finos jactos dágua de seus seios (p. 36) — mas, por outro lado tam­ bém, pela rigidez (p. 56) (ambas, mais uma vez, características análogas às das obras esquizofrênicas!), com o que aqui também se acentua a cisão interna desse estilo. A propósito da ''profundeza estranhamente dissimulada" de muitos quadros, sobretudo de Bronzino, observa que ela, juntamente com a expressão do homem (representado) "anuncia o caráter problemático e incerto da exis­ tência humana em geral" (p. 60). E quanto à mencionada "fuga espacial" do homem, observa que ela — visto que a arquitetura criaria o, espaço "seguiido a relação proporcional do homem com o todo'' — manifesta a insegurança e a angústia que se apossou do homem, por ter pressentido nexos a que ainda não pode dar seu assentimento" (p. 61 ).178 (Isso soa como uma frase da des­ crição, psiquiátrica de um esquizofrênico caracterizado 'p o r um "sentimento de fim de mundo", mas é preciso levar em conta,aqui também que, no maneirismo, se trata de uma alteração artística e "coletiva" do ''sentimento vital", ao passo que na esquizofrenia se trata em primeira linha de uma alteração individual.) Acresce a isso tudo que, na pintura maneirista, vemos o homem, como já sabemos, "forçado a seguir caminhos" ''que não são determinados por este mundo" (ibid.) : " 0 modelo da realidade é abandonado, a fim de deixar atuar mais vigorosamente a ligação anímiça, a relação simbólica" (p. 100) ; mais ainda, encontramos na pintura maneirista figuras "que estão quase que liberadas da realidade ter­ rena" (p. 175). Em todo caso o homem aqui "não é mais autô­ nomo, ele sente-se dependente de poderes maiores, que se encontrant fora dele. Ele não é nada, enquanto os poderes são desme­ didos", ao passo que, no primeiro barroco, ele se insere no todo, fazendo-se de bom grado uma parte sua" (p. 180). O maneirismo mostra "a cisão que divide o celeste e o terreno", ele é ''um estilo >, etc. Pois, abstração feita do fato que o amaneiramento, como mostra o caso Jürg Zünd, também pode se exteriorizar num "vouloir-disparaitre”, numa vontade de não dar na vista e de "igualdade”, e mesmo de "sumir no anonimato da m assa''; logo, abstração feita do fato de que o amaneiramento não precisa de modo algum consistir apenas em um "outro querer” (Gruhle), ou melhor, em um que­ rer a alteridade, no contrastamento com os demais ou na oposição aos outros; o fundamento essencial do amaneiramento não deve, finalmente, ser visto de modo algum no debate ou confronto com "os outros”, mas num debate ou confronto ("malogrado'') do ser-aí consigo mesmo. Na verdade, trata-se de um debate ou confronto (Auseinandersetzung) no sentido do guindar-se (se guinder) me­ diante meios "periféricos” no sentido da intencionalidade e autoengano, em oposição ao processo autêntico ou "central" de ipsei286 Eis aí uma das razoes para a íntima ligação entre o amaneiramento e a esquizofrenia, em particular, em sua forma hebefrêniea.

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ficaçao ou amadurecimento. Ou por outras, trata-se daquilo que, tanto relativamente ao amaneiramento quanto ao maneirismo ar­ tístico, encontramos sempre e por toda parte designado como a cisão ou divisão interna (do ser-aí), como uma "separação'* ( " a u ­ seinander")267 ou uma fissuração da existência. Posto que, no primeiro plano dessa divisão interna, estava sempre o deslocamento de algo que "evoluiu naturalmente" para "a atmosfera paralisante da intenção contemplativa", a saber: a in­ tenção (Absicht) no sentido do ato de ter em vista (Sicht) o efeito, temos que ressaltar mais uma vez aquilo que já foi frisado em face de Reboul-Lachaux: que esse ter em vista o efeito não constitui a essência, mas apenas uma conseqüência essencial desse debate ou confronto do ser-aí consigo mesmo. Mas assim também nos colocamos em oposição a Goethe, quando este relaciona "todo amaneiramento" ao "trabalhar para o efeito". Todavia, dado que as formulações de Goethe a esse respeito mais uma vez confirmam e ampliam, apesar disso, o que encontramos apresentado nesta obra, em particular a partir do ponto de vista da Teoria da Arte, é preciso, para terminar, conceder-lhes um pouco de espaço. Para Goethe, o estilo baseia-se na "essência das coisas'', nos mais fundos alicerces do conhecimento, "na medida em que nos é permitido reconhecê-la (essa essência) em figuras visíveis e tan­ gíveis".268 Em vez de "essência das coisas", também encontramos em Goethe (numa carta a Herder) a expressão existência (no sentido usual, não no sentido existencial-analítico) e, contraposta a ela, a expressão efeito, ao qual, como se viu, ele relaciona "todo amaneiramento". Essa passagem da carta, muito importante para nós, diz o seguinte: "Quanto a Homero, é como se uma venda houvesse caído de meus olhos. As descrições, as comparações, etc. parecem-nos poéticas e, no entanto, são indescritivelmente natu­ rais, embora, é verdade, desenhadas com uma assombrosa pureza e intensidade de sentimentos. Até mesmo os acontecimentos mais estranhos e falsos têm uma naturalidade que jamais senti, a não ser na proximidade dos objetos descritos. Deixa-me expressar meus sentimentos, para resumir, da seguinte maneira: enquanto elas apresentam a existência, nós usualmente apresentamos o efei­ Note-se o jogo de palavras com Auseinandersetzung (debate, con­ fronto) e Auseinander (separação). O debate ou confronto consigo mesmo supõe uma separação ou divisão interna (N . do T.) 268 Einfache Nachahumung der Natur, Manier, Stil. Jub.-Ausg. vol. 33, p . 57. — Cf. a esse propósito também Emil Staiger, Die Zeit als Einbil­ dungskraft des Dichters, pp. 114 ss., Zurique e Leipzig, 1939. Natural­ mente, o maneirismo também tem o seu estilo, se bem que, justamente, não no sentido goethiano, "repousando sobre a essência das coisas". 267

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to; enquanto elas descrevem o terrível, nós descrevemos terrivel­ mente ; enquanto elas descrevem o agradável, nós descrevemos agradavelmente, etc. Ê daí que advém todo exagero, todo amanei­ ramento, toda graça falsa, todo empolamento.2®* Pois quando tra­ balhamos com o efeito e para o efeito, não acreditamos poder torná-lo bastante sensível."270 Aqui o "jeito amaneirado" é tomado no sentido da maneira contemporânea de apresentar e expor, e em oposição ao "antigo e o único verdadeiro estilo no sentido da existência como a essência das coisas". Se o ''jeito amaneirado", enquanto o modo ou a lin­ guagem com a qual o artista aspira "expressar à sua maneira" aquilo que ele "captou com a alma", se torna "cada vez mais vazio e insignificante,"271 então a arte, como escreveu Goethe uma vez a Karl August,272 degenera "numa pompa sem alma". Por mais profundas que sejam as verdades que todas essas opiniões e modos de ver de Goethe contêm para todos os tempos e, sobretudo, para os nossos, já vimos claramente que o ''trabalhar para o efeito" e a "ausência de alma" que vai de par com ele carecem existencial-analiticamente de mais um aprofundamento, a saber: da volta ao amaneiramento como uma forma existencial específica. Por mais fundamental para a compreensão do maneirismo e do amaneiramento que seja a enfatização da oposição da essência ou do Quid, por exemplo, do terrível, ao Como, à ma­ neira de sua descrição, a oposição, pois, entre o estilo (no sen­ tido de Goethe) por um lado, e a pompa sem alma e sem estilo por outro lado, o decisivo aqui é, para resumir mais uma vez, não o "trabalhar para o efeito" ou a "busca do efeito", não o "querer brilhar e ofuscar" — que também desempenha um papel tão importante para os historiadores da arte —, mas, sim, o absor­ ver-se "positivo" ou "negativo", mas sempre desesperado, na Gen­ te, no duplo sentido do estar-concernido e mesmo avassalado por éla e do querer, intencional ou "voluntarioso", conquistar uma po­ sição ou tomar pé nela. "Todo exagero, todo amaneiramento, toda graça falsa, todo empolamento" (Goethe) devem, por conseguinte, ser compreendidos como tentativas de continuar a desempenhar "à tout prix" um papel próprio no "absorver-se" — aqui, pois, não tranqüilo, mas desesperado — ''no domínio público da Gente" e na busca desesperada de apoio num tipo "à maneira da gente"' (manhaft) ou genérico. Tudo isso está implícito nas expressões 269 Grifo meu. 270 Goethe a Herder, 17 de maio de 1787 (Italienische Reise N áp oles).. Jub-Ausg. vol. 27, pp. 4 ss. 271 Jub-Ausg. vol. 33, pp. 55 e 59. 272 Roma, 3 de fevereiro de 1887.

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aparentemente tão simples do arrevesar e do arrevesamento, do retorcer-se e guindar-se "com o auxílio de tipos, poderes ou leis provenientes de fora", quer no sentido de sua imitação, quer no sentido de evitar e combater. Já se pode ver que o desempenho de um papel próprio constitui sempre um absorver-se na Gente, uma maneira (ainda que especial) do ser-a-gente, a partir do fato que o caráter "particular" desse papel justamente não se baseia na autenticidade e na determinação da existência em suas decisões e, assim, tampouco na verdade autêntica. Ao contrário, para esse papel, vale o que Kierkegaard diz da falta de espírito e de sua apropriação da verdade; "O estar-perdido implicado pela falta de espírito é, ao contrário, o mais terrível de tudo. A desgraça está justamente em que a falta de espírito tem uma relação com o es­ pírito e este é nada. Por isso, a falta de espírito pode se apropriar até certo grau de todo o conteúdo do espírito, mas, nota bene, não como espírito, mas como brincadeira, galimatias, palavras vazias, etc. Ele pode se apropriar da verdade, mas, nota bene, não como verdade, mas como conversa fiada e mexerico."273 Lancemos aqui mais um olhar sobre a mundanidade do mundo do amaneiramento, e veremos que ela também é, como convém ao ser-em nesse mundo como retorcer, essencialmente caracterizada por seu retorcimento, isto é, pelo fracionamento, pela exageração, pela contraditoriedade e pela oposição. Esse fracionamento do mundo do amaneiramento está ligado, por seu lado, ao modo de sua temporalização e espacialização. O aguardar constante ou o ficar-alerta do ser-aí e o constante estar-apertado e oprimido por e o estar-subjugado pela proximidade e estreiteza de poderes ''es­ tranhos", de pessoas e coisas "estranhas" — a única coisa cons­ tante no ser-no-mundo amaneirado e maneirista —, tudo isso mos­ tra-se também na imprevisibilidade, contraditoriedade e oposição do mundo do amaneiramento e do maneirismo, na possibilidade da união da grosseria, da rigidez, da "insensibilidade", do arremedo e carateamento, do esgar, de um pathos vazio e da trivialidade, por um lado, com uma "expressividade capaz de remexer com os sen­ timentos", com uma movimentação e uma aflição inquietas ou com uma graça brincalhona por outro lado. O enigma da contraditorie­ dade, do duplo ou múltiplo fracionamento desse projeto do mundo resolve-se quando levamos em conta que não se trata de um pro­ jeto mundano próprio, mas alienígena, um projeto dependente da "momentaneidade" do tipo imitado ou combatido e projetado de acordo com ele. Se é verdade que esse projeto do mundo não 273

Der Begriff der Angst. Ges. W. V ol. V , p, 91.

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""paira inteiramente no ar'', também é Verdade que ele não descan­ sa sobre o fundamento de ser-aí, ou por outras, sua abertura não se baseia na "individuação originária da silente determinação, a reclamar para si a angústia". Jeito amaneirado, amaneiramento, maneirismo não representam, por isso, nenhum mundo do silêncio, mas um mundo que não consegue se satisfazer com o enunciar, expressar, comunicar e expor. F . E x tra v a g â n cia , E x cen tr ic id a d e, A m a n e ir a m e n to e E s q u iz o fr e n ia

Extravagância, excentricidade e amaneiramento são modos do malogro do ser-aí no sentido do respectivo "chegar a um fim" ou "ficar entalado'' de sua autêntica movimentação histórica, logo de sua autêntica ipseificação, juntamente com o não poder- ou sa­ ber-ser no convívio do amor e da amizade. Como modos de se­ melhante malogro, elas se encontram de fato na mais próxima pro­ ximidade das maneiras existenciais da esquizofrenia, a título de modos de ''paralisação" ou "atolamento" da autêntica movimenta­ ção histórica do ser-aí kat’exochen. Onde quer que esse malogro se mostrou — na desproporção antropológica da extravagância, no "mau espírito" do través da excentricidade, na "divisão inter­ na" do amaneiramento — pôde-se ver também, aliás de maneira cada vez mais intensa, relações existenciais com aquilo que a Psico­ patologia designa como rigidez, estupor e cisão esquizofrênicas. Acreditamos por isso ter lançado, com nossas investigações, o fun­ damento para a compreensão existencial-analítica do significado da paralisação ou do estupor, e da cisão em geral e da paralisação, ou estupor, e da cisão esquizofrênicas em particular. Nessa medida, as mesmas constituem o complemento necessário de nossos estudos a propósito do problema da esquizofrenia no Schweizer Archiv f. Psych. u. Neürol. dos anos 1945-1952 (t. 53-71), Mas tanto 1á como cá, não somente pudemos constatar que a historicidade do ser-aí, no sentido de sua ipseificação, amadurecimento e transfor­ mação autênticos, juntamente com a possibilidade do encontro ani­ mado pelo amor, estavam ameaçados ou mesmo paralisados, como também pudemos mostrar modos muito diversos de semelhante pa­ ralisação. Depois disso tudo, a expressão "paralisação” ou "estupor” não significa que o ser-aí não "mundanize" ("weitet") mais de todo, isto é, não abra mais o mundo, mas apenas que a movimen­ tação histórica do ser-aí, o autentico antecipar-a-si-mesmo, logo o

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"caminho para o futuro” está "cortado”. Isso mostrou-se, no caso de nossa Ellen West (Schweiz. Archiv f. Psych. u. Neur., t, 53-55), no fato de que ela se consumia na luta sem perspectivas entre a gula e o ideal de magreza, de tal modo que, para falar sua própria linguagem, vendo barradas "todas as saídas do palco” (de sua existência), desmoronou desesperada sobre esse palco e só pôde ver, como única saída a lhe restar, como único anteciparse-a-si-mesma, a decisão de suicidar-se. Em Jürg Zünd (ibid., t.. 56, 58, 59), a imobilização da ipseificação autêntica mostrou-se, afinal, no desejo de afundar-se no anonimato da massa, ou seja, justamente no abandono-de-si. Em Lola Voss (ibid., t. 63) a mo­ vimentação histórica do ser-aí ficou "entalada” no decaimento e entrega "supersticiosos” aos lúdicos oráculos silábicos que prece­ deram o delírio de perseguição. Em Suzanne Urban (ibid., t. 69-71), no abandono total ao terrível e medonho sob a forma do delírio de perseguição. Quanto à extravagância, nós a encontramos em nossos estu­ dos como "uma formação de ideais extravagantes”, manifestandose no começo de cada doença. Por sua vez, a excentricidade, no sentido da "labilidade dos contextos de remetimentos” — como se mostra o mundo do través — é existencial-analiticamente uma fase preliminar do "estupor" esquizofrênico na medida em que a ipseificação autêntica só é possível juntamente com uma certa "es­ tabilidade'' ou "simetria" do mundo, um mundo de "relações vitais'' naturais "estáveis", numa palavra, um mundo da reta, não do torto ou do través. Em tal mundo do través, no qual, como vimos, tudo "sai torto", o ser-aí não se antecipa mais a si mesmo num autêntico sentido. Ele não consegue mais fazer como lhe advenha de maneira autêntica nem o futuro nem o outro como um "Tu". Ao contrário, sua movimentação fica entalada no decaimento numa "obliqüidade", numa teimosia, ou no enrolamento num erro que o afastam do "Tu". Não é preciso dizer que a expressão ''fase pre­ liminar" não significa aqui que nossa tríade tenha que se "trans­ formar*' em esquizofrenia como uma forma de uma doença psíqui­ ca ou psicose. Pois a consideração existencial-analítica e a consi­ deração clínica devem ser mantidas sempre separadas, na medida em que a tarefa da primeira é destacar a pura estrutura essencial e as puras ligações essenciais de modos e transformações existen­ ciais, enquanto a última tem a ver com fatos clínicos reais e seu decurso factual. Mas é preciso compreender que, tanto aqui como de modo geral, cada "fato” só pode ser "compreendido” a partir da essência, que, como diz Husserl, atua como a "norma insupe­ rável” para o fato.

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Finalmente, as ligações do amaneiramento com a estuporação esquizofrênica são, como Vimos, particularmente estreitas na me­ dida em que também o esquizofrênico -— na repetição274 incessante do espelhamento ( = idéia ou representação anteposta, — refle­ xão) do próprio ser-aí no espelho das "pro-postas" de modelos, imagens protó-tipos, prescrições ou princípios da Gente — não somente, como Jürg Zünd e o jovem de Kleist, perde sua graça originária, mas também "sofre uma alteração incompreensível de todo o seu ser'', no sentido em que "uma força invisível, incom­ preensível" parece se assentar, "como uma rede de ferro, em tor­ no do jogo livre de seus gestos'', e mesmo era torno do "jogo liVre" da movimentação histórica de sua existência inteira. O poder dessa ''rede de ferro", do cerimonial, da couraça, do véu, do espartilho, da mascara e do esgar, nós já a compreendêramos, em nossos estudos sobre a esquizofrenia, a partir do prevalecimento do poder existencial da angústia, que fugira da koinonía do ser-aí, sobre o poder do amor e da confiança! A "força férrea” que aqui assentava em cada caso ''em torno do jogo livre'' da movimentação histórica da existência e, assim, detinha o ser-aí, impedindo-o de agarrar suas mais próprias possibilidades histó­ ricas, seu poder — e saber-ser-nós, levou no primeiro caso (Ellen West) ao suicídio, no segundo (o caso do tão inteligente Jürg Zünd) a uma duradoura "exaustão'' da ''atividade psíquica" e a um tratamento constante em sanatório, no terceiro e quarto caso (Lola Voss e Suzanne U rban), a um delírio de perseguição ''sis­ tematizado" ( "plural" ). Para concluir, temos que nos perguntar ainda se, na desco­ berta e enfatização existencial-analítica do decaimento e entrega (positivos ou negativos) do esquizofrênico a quaisquer modelos ''típicos" tomados ao domínio público da Gente, não se deve ver uma contradição com a teoria clínica do autismo esquizofrênico. , Que nao é este o caso, mostra-o o fato de que — como sempre res­ saltamos — o avTÓç do autismo não significa nenhum "Si mesmo" no sentido do poder — e saber-ser-a-si-mesmo,» mas o oposto exato, a saber: a dependcncia do domínio público da Gente, seja' na obediência declarada de suas "prescrições" e na adoçao de seus modelos, seja na oposição radical aos mesmos, no ''querer da alteridade" e no puro "negativismo", tudo isso significando, ainda que no sentido negativo da resistência, dependência! Podemos muitas vezes seguir facilmente a passagem da orientação exage­ 274 A repetição no sentido do mero repisar e copiar e, naturalmente, não no sentido da repetição de Kierkegaard, é o contrário exato de toda movimentação histórica do ser-aí.

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rada segundo os modelos da Gente para a oposiçao exagerada a eles e Vice-Versa. Sob o último aspecto, aliás, podemos fazê-lo de maneira particularmente clara em Jürg Zünd, que se transforma de um furioso combatente da sociedade ("proleta") num meticulo­ so imitador de um modelo da Gente, a saber, do "tipo" da distin­ ção. Uma exceção das ligações discutidas até aqui entre extrava­ gância, excentricidade, amaneiramento e esquizofrenia é, natural­ mente, a esquizofrenia iniciada de maneira tempestuosa, sobretudo' os casos acompanhados de sentimentos de fim de mundo. No sen­ timento de fim de mundo, com o ''mundo" desaparecem também; as pro-postas de modelos do domínio público da Gente, mas ape­ nas, para melhor ressurgirem por ocasião da reconstrução do ''mundo", ainda que justamente de uma maneira extravagante, excêntrica e amaneirada. Não há idéias, sugestões, projetos ou construções do mundo delirantes, por mais "abstrusas" que sejam, que não deixem reconhecer de algum modo e em alguma parte pro-postas de modelos ou imagens protótipos tomadas ao domínio público da Gente e de suas respectivas "modas". Isso mostra taosomente, de uma maneira particularmente clara justamente a par­ tir daqui, que a esquizofrenia, em certos casos, pode muito bem significar uma evasão para fora da Gente, mas que ela não con­ segue levar a uma ipseificação autônoma, livre no sentido da exis­ tência autêntica, nem na "vida" nem na "arte", mas só a um modo particular da elaboração extravagante, excêntrica ou amaneirada das pro-postas de modelos da Gente. Os jeitos amaneirados es­ quizofrênicos, na medida em que são verdadeiramente jeitos ama­ neirados e não estereotipias, são os exemplos mais destacados do isolamento e fixação de semelhantes pro-postas de modelos. Se o esquizofrênico de Bleuler, como inúmeros outros esquizofrênicos, "enuncia trivialidades em expressões arrevesadas, como se se tra­ tasse dos interesses supremos da humanidade", ele ainda está se­ guindo, é verdade, uma determinada pro-posta de modelo da Gente, ao se pro-por a máscara da distinção, da solenidade e da vontade de ensinar, mas ele existe também não-somente como essa máscara! Podemos dizer algo de análogo dos demais jeitos ama­ neirados esquizofrênicos. Assim, para lembrar só mais um exem­ plo, o instituteur excêntrico-esquizofrênico de Minkowski segue a pro-posta de modelo de certos princípios pedagógicos e de certos princípios do amor universal aos homens, revestindo-se, para falar figuradamente, da máscara desses princípios, mas já existe em lar­ ga medida quase que unicamente como essa máscara. Eis aí de novo, aliás, um exemplo da íntima afinidade entre a excentricidad«

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e o amaneiramento. Do mesmo modo, o jovem de Kleist, em quem podemos ver mais um paradigma esquizofrênico, ainda está a se­ guir a proposta modelar do Tirador de Espinho, mas já existe em larga medida unicamente como essa ou em essa pro-posta modelar ou máscara. Isso é atestado pela perda da graça e pela "alteração'* manifesta de seu ser inteiro. Existir como mascara, isto é, não por trás, mas em uma mas­ cara (== papel), representa o extremo oposto de uma existência autêntica e de um autêntico convívio. Pois significa o "esvazia­ mento" da existência no sentido de seu abandonar-se ao nada da. angústia e às tentativas desesperadas de combatê-la e encobri-la. Se o amaneiramento — enquanto forma existencial — , como nos antolha tão claramente o caso Jürg Zünd — já mostra uma nítida perda de plenitude e liberdade existencial, juntamente, porém, com sinais ainda claros de "reflexão'' e empenho voluntário, então fa­ lamos em feitos amaneirados esquizofrênicos quando um ser-aí se absorve completamente na pro-posta modelar ou máscara, quando, por conseguinte, a oposição entre existência e pro-posta modelar desapareceu, e o ser-aí se retraiu completamente para a máscara oií papel, ou, dito de outra maneira, quando se deixa prender inteira­ mente por eles. É só nesses casos que falamos em esvaziamento da existência e em um mundo do vazio, ou melhor, de um vazio da mundo ( em face do qual o mundo do través e do fracionamento representam ainda uma certa ''plenitude" do mundo!). A "proximidade" da esquizofrenia com relação às formas existenciais da extravagância, da excentricidade, do amaneiramen­ to, e mesmo sua eventual e total absorção nas mesmas, baseia-se,, pois, no fato de que essas formas representam, existencialmente, formas intermediárias entre uma autêntica movimentação histórica do ser-aí e uma completa paralisação dessa movimentação, formas,, pois, que ainda possibilitam ao ser-aí afirmar-se de um modo qual­ quer, durante um maíor oii menor espaço de tempo, "no mundo'* — se bem que não mais no berço (Heimat) do amor. Ele se afir­ ma, é verdade, não no sentido do sucesso do ser-aí, no desdobra­ mento de sua liberdade, plenitude e "força criadora", mas, sim, no sentido de persistir ainda no abismo daquilo que descrevemos cli­ nicamente como "vazio" ou ''paralisação da vida psíquica'', com» o processo esquizofrênico de desagregação, encalhamento ou dementação. O afundamento nesse abismo representa o ''instante'* em que essas formas existenciais não conseguem mais resistir ao assalto da angústia existencial. Em vez da desproporção entre am­ plidão e altura, em vez de um mundo do torto ou do través, em vez do existir dividido internamente ''por detrás de uma másca­

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ra" — tudo isso, é Verdade, já não representando mais nenhuma movimentação histórica ou existencial autêntica do ser-aí, mas uma movimentação no sentido da temporalização, espadalização, mundanização em geral — em vez de tudo isso, surge agora um modo existencial no qual a mobilidade do ser-aí (no sentido do antecipar-se a si mesmo, do deixar-advir do futuro, em suma, da deter­ minação pré-cursora) parou ou paralisou-se, no qual só o ter-sido ainda "joga" consigo mesmo no jogo da existência, razão por que um autêntico presente tampouco pode se temporalizar. Tal é o sentido existencial-analítico daquilo que nos impressiona como o vazio esquizofrênico e com que, no contacto com os esquizofrêni­ cos nós nos "chocamos" ("Iteuter"). Ligado a isso, é preciso ainda dizer uma palavra sobre a dis­ tinção existencial-analítica entre aquilo que designamos, na Psico­ patologia, como separação ou cisão esquizofrênica, por um lado, como vazio e estupor ou paralisação esquizofrênicos, por outro lado. A cisão esquizofrênica não é mais explicada aqui, pois, de uma maneira associativo-psicológica e dinâmico-funcional com base numa hipótese teórico-construtiva, como era o caso em E. Bleuler, o fundador da teoria da "psicose da cisão'', mas, sim, compreendi­ da existencial-analiticamente! Aliás, procura-se compreendê-la com base naquilo que compreendemos como dupla ou múltipla divisão interna ("ambi- e polivalência") do ser-aí enquanto amaneirado e do mundo do amaneiramento. Visto desse ângulo, aquilo que a psicopatologia chama de cisão ou separação siguifica a ameaça da ipseidade e da autonomia do ser-aí pela observação num tipo ge­ nérico estranho ao Si", tomado ao domínio público da Gente, num mero Como (da conduta, do falar, do julgar, etc.). Ao grau extremo (psicopatológico) dessa cisão corresponde a completa re­ núncia a uma posição própria e autônoma e a completa absorção do ser-aí em semelhante tipo. Visto que há somente uma possi­ bilidade de autêntica existência ou ipseidade, ao passo que há mi­ lhares de possibilidades de tipos gerais e, nessa medida, também de papéis e máscaras correlatos, não devemos nos admirar de que haja "mil'' possibilidades de existências e mundos esquizofrênicos. Nós também designamos semelhante ser-aí (esquizofrêni­ co) como vazio ou esvaziado com base no abandono da existência autêntica, de sua autêntica plenitude e desenvolvimento, em favor da absorção num tipo genérico "sem alma" (Goethe) e em sua cópia e exageração ("estereotipada"), ou então em sua recusa e contradição. Por paralisação ou estupor esquizofrênico, entende­ mos, por sua vez, a transformação do ser-aí como historicidade em geral em a-historicidade. O ser-aí está paralisado, embora, é

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Verdade, ainda se mundanize (temporalize, espacialize) num certo sentido, pois, de outro modo, não seria mais ser-aí, quando não mais se "desenvolve" historicamente. Vemos, pois, que todas essas expressões tomadas à psicopatologia — como "vazio'', "paralisação" ou "estupor'', "cisão", ''separação" — giram em torno dos mesmos fatos existenciaisanalíticos, desiguando-os, porém, a partir de diferentes pontos de vista. Ao mesmo tempo, em todo caso, é preciso que fique claro que a "cisão" deve ser designada — como a expressão do fato existencial-analítico do fracionamento, e sua forma mais extrema ( = esquizofrênica) — como aquele conceito, dentre os três, de mais rico conteúdo, a saber: na medida em que pode receber a mais rica autenticação e corroboração existencial-fenomenológica. Para concluir, mostraremos mais uma vez num exemplo que e em que medida a distinção existencial-analítica dos três elemen­ tos de nossa tríade concerne efetivamente a três diferentes traços essenciais de uma e a mesma essência, a saber: a essência da mo­ dificação do ser-aí no sentido da "paralisação" que acabamos de ''definir''. Quando a nossa doente Ilse,275, casada e de 39 anos, enfia a mão direita num forno aceso para mostrar ao pai, a quem ama apaixonadamente, "o poder do amor'', e a fim de movê-lo, através dessa prova de amor, a abrandar a tirania que exerce sobre a mãe essa açao parece-nos a princípio extravagante. E, de fato, é extra­ vagante porque nela se mostra uma nítida desproporção existencial-analítica entre a "altura" escarpada dessa decisão "altamente'' problemática, tomada uma Vez por todas, e a "amplidão" da experiência. A Ilse falta a necessária experiência psicológica para poder prever que, a longo prazo, nada pode alcançar com esse "feito heróico", em face de uma natureza tão tirânica como a de seu pai. O "guia de montanha'' experimentado, ou seja, aqui o conhecedor experimentado dos homens, ter-lhe-ia desaconselhado essa "escalada" temerária da alma, predizendo-lhe com toda certe­ za que não ''iria muito longe'' com esse passo "heróico'' num do­ mínio com que estava tão pouco familiarizada e que era difícil demais para ela, ou por outras, ele lhe diria que ela estaria a subir alto demais e a extravagar. Essa ação deve ser descrita como excêntrica na medida em que a filha quer, é verdade, vir amorosamente ao encontro do pai — do mesmo modo como aquele pai no exemplo do caixão

275 cf. acima.

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quer Vir amorosamente ao encontro da filha — , mas ao mesmo tempo se alheia dele com a escolha do meio. A "conseqüência penosa" na perseguição do tema, a saber, mover o pai a uma mudança de opinião e comportamento, mostra-se aqui no fato de que aquela ação, em vez de ser uma prova de amor pura e sincera, converter-se em algo de tirânico ou violento, a saber numa pressão ou coerção exercida sobre o pai. Apesar de todo o seu amor, Ilse quer, através de seu amor, forçar o pai a tratar melhor a mãe. "Se eu tomo sobre mim semelhante dor" —■ é o que ela manifestamente quer dizer ao pai — ''então você tem que tratar melhor a mãe". Desse modo, o nexo referencial entre prova de amor e mudança de opinião do pai é invertido em seu contrario (num pavor alarmante), exatamente como o desejo daquele outro pai de dar uma alegria à filha cancerosa por ocasião do Natal (em nosso primeiro exemplo da excentricidade) é trans­ formado — pela escolha, incompatível com esse desejo, do meio (o caixão) — numa afronta. Ao fazer essa análise, deixamos de lado o siguificado da ''prova de fogo"276 como uma expressão de seu amor ardente pelo pai e, ao mesmo tempo, de um ''procedi­ mento de purificação" com relação a esse amor. Pois a razão mais profunda dessa prova de fogo não concernia à mãe — essa "ra­ zão" era apenas o motivo racional —, mas a seu amor pelo pai. Mostrou-o a ''evolução" clínica posterior do caso, a saber: a con­ versão do amor pelo pai e do sacrifício por ele num delírio agudo — e, assim, levando de novo à cura — de amor, de relacionamen­ to e de prejuízo. No caso Ilse, a prova de fogo, o "sacrifício", foi, na verdade, a fase preliminar fáctica, em si dupla e mesmo multiplamente fracionada de uma psicose esquizofrênica que se estendeu por mais de um ano, ou seja, da psicose da cisão esqui­ zofrênica. A expressão "fase preliminar" não deve, no entanto, de modo algum significar tão-somente que a excentricidade no senti­ do clínico "transforma-se" no processo esquizofrênico. Muito ao ao contrário, depois de tudo o que expusemos, é preciso conser­ var em mente que aqui também procuramos compreender existencial-analiticamente uma semelhante "transformação clínica", a sa­ ber: como uma modificação da estrutura existencial que vai da es­ trutura do mundo do través ou do torto até a estrutura do delí­ rio e do mundo do delírio, ou por outras, que vai de uma estrutu­ ra no sentido do ameagarnento do ser-aí por avassaladores pode­

276 Estamos naturalmente conscientes de que a expressão "prova de fogo" não corresponde ao que ela significou na "jurisdição" cristã.

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res "estranhos ao Si" até uma estrutura do avassalamento do ser-aí por esses poderes ou do completo abandonar-se a eles.277 No que concerne, finalmente à designação da prova do fogo como amaneirada ou arrevesada, chamamos mais uma vez a aten­ ção para o fato de que ela também tem, notoriamente, seus mode­ los e protótipos. Esses protótipos pertencem à história, à história cultural e artística e à literatura, em suma, à tradição. Quem se­ gue semelhante protótipo não precisa ser, a rigor, de modo algum amaneirado, pois há um seguir genuíno no sentido da verdade do legado e da tradição, o que também vale em larga medida para o maneirismo artístico! O seguimento torna-se, porém, mera imitação, quando, em vez de ter lugar a partir da verdade do legado, ocorre a partir da inverdade, da ambigüidade, da curiosidade e da tagarelice do domínio público da Gente, como, aliás, já explicamos extensamente. No que concerne ao caso Ilse, essa prova de fogo, o "sacrifício", não se mostra em sua verdadeira figura, não se mostra em sua pureza como um testemunho ativo e um sinal vieariante, nem como instituição no sentido da instituição de uma aliança, mas numa figura cindida por uma divisão interna, a saber, por um lado como "sacrifício", por outro lado, porém, como uma ação calculada em vista do efeito, como uma ação que apela e, mesmo, alarma. Também é verdade que Ilse cometeu essa ação apenas "até um certo grau" por uma livre decisão. Ela estava, como logo veremos, em larga medida sob a "coerção > — condi­ cionada por muitos fatores — de ter que representar o papel da mártir. Pois havia declarado ao marido — informado de sua in­ tenção — que ''precisava livrar-se disso" (da "coerção" irresistí­ vel a levar a cabo a prova de fogo). Tratava-se, pois, da tentativa desesperada de, em meio ao ameaçamento existencial pelo medo (confessado) da loucura, desempenhar ainda um papel próprio, a saber, o papel "refletido” ou pré-meditado, simulado para si mesma no sentido de um "si" real, ou a "máscara" da mártir. (Era impossível dissuadi-la desse papel, assim como tampouco se podia convencer Jürg Zünd a depor o papel ou a máscara da dis­ tinção, ou o jovem de Kleist a abandonar a "máscara" do Tirador de Espinho.) Desse modo, vê-se efetuada a caracterização existencial-analítica do amaneiramento ou do arrevesamento, a autosimulação pela adoção de um papel ou pela imposição premedita­ da, refletida de uma ''máscara" tirada da publicidade da Gente ou, o que dá no mesmo, de um papel ou máscara no sentido da am­ bigüidade do ser-a-gente. 277 Cf. a esse propósito meu estudo sobre o caso Suzanne Urban, Schweiz. Archiv. /. Psych. u. Neur., t. 69, 70, 71.

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A partir do amaneiramento, é também possível compreender claramente a prova dè fogo como uma das condições existenciais analíticas da possibilidade do delírio. Pois, como mostram as pos­ teriores palavras delirantes da doente sobre os "instrumentos do martírio" com os quais os médicos querem tratá-la, sobre o seu sentimento de estar exposta ao escárnio e à zombaria dos outros, sobre os seus braços frios e transformados em barro ( ! ) e o pro­ cedimento de purificação nela efetuado, o papel de mártir por ela representado, simulado para si mesma — no sentido de um Si — por assim dizer "esvaiu-se-lhe entre as mãos" e, "tornando-se maior do que ela, dela se emancipou". Existencial-analiticamente isso siguifica que o ser-aí enquanto "delirante" não está mais ape­ nas "decaído e entregue'' à máscara ou papel, continuando a exis­ tir, por assim dizer, "por trás" da máscara, mas doravante só existe como essa máscara ou papel, ou "dentro" dela! Com isso esperamos ter conseguido mostrar nesse exemplo também onde residem o sentido e o objetivo psiquiátricos de nos­ sos três tratados, a saber, na dissolução do conceito rígido do au­ tismo como um sintoma esquizofrênico cardinal, Pransformando-o de modo a reintroduzi-lo no fluxo dos acontecimentos da existência humana e exibindo as formas e transformações existenciais nas quais esses acontecimentos tomam aquele curso que a clínica psi­ quiátrica diagnostica como esquizofrenia. Se compreendermos e soubermos de algum modo o que aqui realmente "acontece'', sere­ mos mais prudentes com os artifícios teóricos que buscam explicar a "esquizofrenia" a partir de dados diagnósticos.

FIL O SO FIA Filosofia da Arte, Virgil C. Aldrich (2.a ed.) Filosofia da Linguagem, William Alston As Questões Centrais da Filosofia, Alfred J. Ayer O Racionalismo Aplicado, G. Bachelard Estruturalismo e Marxismo, René Ballet Filosofia da Matemática, Stephen Barker (2.a ed.) História da Filosofia (8 Volumes), François Châtelet 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.

A A A O A A A O

Filosofia Pagã Filosofia Medieval Filosofia do Mundo Novo Iluminismo Filosofia e a História Filosofia do Mundo Científico e Industrial Filosofia das Ciências Sociais Século XX

Teoria do Conhecimento, Roderick M. Chistolm (2 a ed.) Dialética da Libertação, David Cooper Filosofia da História, William H . Dray Filosofia Social, Joel Feinberg A Doutrina de Epicuro, Benjamin Farrington A Necessidade da Arte, Ernest Fischer (5.a ed.) Ética, William K. Frankena ( 2 a ed.) Filosofia da Ciência Natural, Carl G. Hempei (2.a ed.) Introdução à Filosofia da Educação, George F. Kneller Introdução ao Pensamento de Michel Foucault, A. Kremer

Marietti Ideologia da Sociedade Industrial, Herbert Marcuse ( 4 a ed. Eros e Civilização, Herbert Marcuse (6.a ed.) Psicologia e Dilema Humano, Rollo May ( 2 a ed.) O Significado de Significado, C. K. Ogden e I. A. Richards (2 a ed.) Problemas do Estruturalismo, Je an Pouülon Filosofia da Lógica, Willard Quine Filosofia da Ciência Social, Richard Rudner (2.a ed.) Introdução à Filosofia Matemática, Bertrand Russell (3.a ed. Lógica, Wesley Salmon ( 3 a ed.) A Decadência do Ocidente, Oswald Spengler ( 2 a ed.) Metafísica, Richard Taylor Crítica da Tolerância Pura, Robert Paul Wolff

PSYCHE Manual de Psicologia, C. Adcock (3.a ed.) Fundamentos da Psicanálise, Frank Alexander (2.a ed.) A Interação Social, Michael Argyle As Psicoses da Criança, H . Aubin Teste dos Três Personagens, M. Backes-Thomas Introdução à Antipsiquiatria, Chantal Bosseur A Estrutura da Magia, R. Bandler e John Grinder Três Formas da Existência Malograda, L. Binswanger Psicodrama e Vida, Pierre Bour ChaVes da Psicanálise, G. P. Brabant (2.a ed.) A Etologia, Rémy Chauvin Temas de Psicopatologia, Miguel Chalub As Psicoterapias da Criança, / . Chazmd Contestações Atuais da Psicanálise, /. Chazaud ChaVes da Psicologia, J. Cosnier (2.a ed.) Problemas Psicológicos da Adolescência, Helene Deutsch (2.a ed.) Para compreender Jean Piaget, Jean-Marie Dolle Psicanálise e Pediatria, Françoise Dolto (2 a ed.) Psicanálise da Percepção Artística, Anton Ehrenzweig Gestalt-Terapia, Joen Fagan e I. L. Shepherd ( 3 a ed.) Teoria da Dissonância Cognitiva, L. Festinger A Psicologia como Filosofia Ciência e Arte, Logan J. Fox Infância Normal e Patológica, Anna Freud ( 2 a ed.) Psicologia Humanista, W. B. Frick A Missão de Freud, Erich Fromm ( 3 a ed.) A Linguagem Esquecida, Erich Fromm ( 6 a ed.) Chaves da Caracterologia, Roger Gaillat A Psicologia do Medo e do "Stress", Jeffrey Gray ( 2 a ed.) Métodos da Psicologia Social, Jean Grisez Amnésia Social, Russell Jacoby Vida e Obra de Sigmundo Freud, Ernest Jones ( 2 a ed.) Tipos Psicológicos, C. G. Jung ( 3 a ed.) A Psicologia como Ciência Biológica, Daniel P. Kimble Psicologia Analítica da Criança, F. Klein e outros Antipsiquiatria: Senso ou Contra-Senso?, Cyrillo Koupernick Psicologia da Orientação Vocacional, Paul Kline Mata-se uma Criança, Serge Leclaire O Nascimento Psicológico da Criança, M. S. Mahler e outros Psicologia e Dilema Humano, Rollo May ( 3 a ed.) A Criança Deficiente Mental, Roger Mis és

Édipo: Mito e Complexo, Patrick Mullahy (3.a ed.) Fundamentos de Psicopatologia, John C. Nemiah (2.a ed.) Modelos em Psicologia, Eva Nick e Heliana Rodrigues A Abordagem Gestáltica e Testemunha Ocular da Terapia, F. Perls A Revolução Sexual, Wilhelm Reich (4.a ed.) A Sexualidade Feminina na Doutrina Freudiana, M. Safouan A Psicologia da Infância e da Adolescência, C. I. Sandström (5.a ed.) Neurose e Classes Sociais, Michael Schneider As Sete Idades do Homem, R. R. Sears e «S*. .9. Feldman A Busca da Solidão, Philip Slater Formas de Vida, Eduard Sprang er A Agressão Humana, Anthony Storr (2.a ed.) Desvios Sexuais, Anthony Storr ( 2 a ed.) Dor e Prazer, Thomas S. Szasz A Ética da Psicanálise, Thomas S. Szasz A Fabricação da Loucura, Thomds S. Szasz Ideologia e Doença Mental, Thomas S. Szasz O Mito da Doença Mental, Thomas S. Szasz. O Indivíduo Excepcional, C. W . Telford e J. M. Sawrey ( 2 a ed.) Evolução da Psicanálise, Clara Thompson ( 3 a ed.) A Criança e o Seu Mundo, D. W . Winnicott ( 3 a ed.) Os Medos Infantis, Michel Zlotowicz

FORMAS DE VIDA Eduard Spranger

O presente livro é uma das obras maiores produzidas pela cultura ocidental neste Século. Nele se empreende uma análise tipológica da personalidade, utilizando-se do método da “compreensão” ( Verstehen), método cujo caráter empírico era sustentado por SPRANGER, e que consiste essencialmente numa percepção estética das formas culturais na vida individual, sendo motivado por um eros platônico: um amor pelos valores pessoais envolvidos.

A análise de SPRANGER das ciências do espírito encontrou aplicação em suas discussões das bases éticas da cultura e da educação modernas, exercendo enorme influência nos principais problemas éticos e culturais, enfrentando o desafio de questões tão graves como a educação para o trabalho, a educação vocacional, a orientação pessoal e vocacional, e a delinqüência juvenil. Essa análise combina uma crítica das filosofias históricas da sociedade e da cultura, com o desenvolvimento e a reformulação de uma teoria hegeliana do espírito objetivo.

A FABRICAÇÃO DA LOUCURA T hom as Szasz

Psiquiatra praticante e Professor de Psiquiatria na Universidade do Estado de Nova York, em Siracusa, Thom as Szasz é também um dos mais extraordinários dentre os críticos contemporâneos preocupados com os abusos da Psiquiatria. Neste importante livro, ele desenvolve a idéia de que, da mesma forma que na chamada Idade das Trevas os homens “criaram” feiticeiras, eles agora “criam" doentes mentais. Para o Dr. Szasz, a crença na existência de doença mental e as ações sociais a que isso conduz têm as mesmas implicações morais e desdobramentos políticos que tiveram, na Idade Média, a crença em feitiçaria e as conseqüências sociais a que isso conduziu. Em todos os casos, a sociedade isola e estigmatiza os “heréticos” ou “desviantes” para proteger-se ela mesma, embora proclame — e a maioria acredite — que assim age em benefício dos confinados. Z AHAR A cultura a serviço do progresso social

ED ITO RES

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