Biblia de Jefferson
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A Bíblia de Jefferson: tensões entre fé e razão por Clifford Goldstein
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Depois de fazer o rascunho da Declaração da Independência e do Estatuto de Liberdade Religiosa da Virgínia, e fundar a Universidade de Virgínia (para não mencionar o fato de servir como Presidente dos EUA por dois mandatos), Thomas Jefferson fez o que julgava ser uma tarefa simples: separou o "ouro da palha" nos evangelhos. Dizendo que "sua própria razão é o único oráculo dado pelos céus" (apud GAUSTAD, 1996, p. 16), ele removeu, de Mateus, Marcos, Lucas e João, tudo o que ele pensava que contradizia a razão, o senso comum e o pensamento racional. O resultado foi a Bíblia de Jefferson, uma versão altamente resumida dos evangelhos na qual o anúncio do nascimento de Jesus, a virgindade de Maria, as curas miraculosas, a ressurreição dos mortos, as alegações quanto à divindade de Cristo, a Resurreição e a Ascensão de Jesus, tudo isso e muito mais foi removido. Removido também foi o coração da teologia do Novo Testamento: a expiação de Jesus Cristo como "Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo" (João 1:29) 1:29). Tudo isso leva a pelo menos uma conclusão: a autêntica fé cristã, embora consistente com a racionalidade, deve transcender a lógica, a razão e o pensamento analítico, pois, se sujeitarmos nossas crenças apenas à lógica, à razão e ao pensamento racional, jamais seremos autênticos cristãos pela definição do Novo Testamento. E ninguém oferece melhores provas disso do que o próprio Jesus. Quer alimentando cinco mil pessoas com comida que seria suficiente apenas para uma (Mateus 14:15-21) 14:15-21), quer declarando que existia antes de Abraão (João 8:58) 8:58), quer ordenando a Pedro que fosse ao mar, lançasse o anzol, tomasse o peixe que fosse fisgado primeiro, abrisse-lhe a boca, encontrasse uma moeda e a levasse para pagar o imposto em nome dos dois (Mateus 17:27) 17:27), Jesus mostrava que alguns aspectos da realidade transcendem o que nossa mente processa como conhecimento e experiência por meio da lógica e da razão. Do nascimento à ascensão, todo o ministério de Cristo funcionou num plano que ultrapassava os limites da lógica e da razão, e aqueles que se recusarem a pelo menos olhar além desses limites, como Jefferson, permanecerão enclausurados na ignorância teológica, destituídos da luz última das realidades da verdade universal e eterna. Os limites do pensamento lógico Jesus, naturalmente, não foi o único que mostrou os limites do pensamento lógico. Desde Platão (que fez advertências quanto às contingências da razão), passando por Kant (que expôs suas fronteiras, particularmente na área da religião), até chegar aos profetas da pós-modernidade (que negam sua utilidade), a humanidade, em sua busca da verdade natural e espiritual, sempre percebeu que a "luz natural da razão" não é nem tão natural, nem tão cheia de luz assim. "A razão mais profunda", escreveu Smith (1992, p. 137), "da atual crise na filosofia é sua percepção de que a razão autônoma, a razão sem infusões de poder e vetor, é 1
GOLDSTEIN, Clifford. Love beyond reason. Ministry: International journal for Pastors. fev 1997. Disponível em: https://www.ministrymagazine.org/archive/1997/02/love-beyond-reason. Acesso em: 10 abr 2013.
indefesa. A razão nada pode fazer em termos apodíticos. Trabalhar (como ela precisa necessariamente fazer) com as variáveis das variáveis é tudo o que ela consegue." Há séculos, Epimênides ilustrou os limites da lógica quando afirmou: "Esta declaração é falsa." A declaração é falsa ou verdadeira? Se verdadeira, então a declaração afirma sua própria falsidade; se falsa, a declaração deve ser considerada verdadeira. Mas a lógica não ensina que algo não pode ser falso e verdadeiro ao mesmo tempo? Nesse contexto, obviamente, a lógica apenas não funciona. Também, será racional a teoria da relatividade especial de Einstein, que prova que, quanto mais rapidamente alguém se move, tão mais devagar o tempo passa até que, ao atingir a velocidade da luz, o próprio tempo pára? A física quântica, por sua vez, ensina que, sob certas condições, se duas partículas subatômicas são criadas por meio de uma colisão, o mero ato de observar o giro ( spin) de um membro do par fará com que, imediatamente, o giro do outro membro do par se dê em direção contrária, mesmo que estejam separados por milhões de anos-luz! "A estrutura da natureza," disse P. W. Bridgman, professor de física na Universidade Harvard, "pode ser eventualmente tal que nossos processos de pensamento não correspondam a ela suficientemente para que isso permita que desenvolvamos qualquer tipo de pensamento sobre ela" (apud SMITH, 1992, p. 80 ). A relação entre a fé e a razão Naturalmente, a razão e o pensamento racional, quaisquer que sejam suas limitações, constituem dons de Deus, e isso explica por que nenhum deles pode ser ignorado. Rejeitar ou mesmo desconfiar da própria razão sem bons motivos é arriscarse a incorrer no misticismo acéfalo que pode degenerar para comportamentos como os testemunhados em Waco ou nas igrejas em que as pessoas precisam demonstrar sua fé ao segurar cobras. Por outro lado, fazer da razão o único juiz epistemológico corre o risco de reduzir a fé a nada mais do que uma moralidade genérica, como se esta fosse o reflexo de mensagens deixadas aos terráqueos por "OVNIs." De longe, na sociedade contemporânea ocidental alimentada pelo racionalismo científico, o perigo vem muito mais deste último. Isso explica por que o estudioso evangélico Donald Bloesch (1992, p. 35) soou o alarme de que a relação entre a fé e a razão é "talvez a questão mais importante das discussões teológicas iniciais”. A chave, então, é o equilíbrio, e Jesus ajuda a estabelecer esse equilíbrio. Quando João Batista, no cárcere, perguntou se Cristo era o Messias, Jesus respondeu: "Vão e contem a João que coisas maravilhosas vocês viram e ouviram; que os cegos veem, os coxos andam, os leprosos são purificados, os surdos ouvem, os mortos se levantam e o evangelho é anunciado aos pobres" (Lucas 7:22). Em outras palavras, Jesus disse a João: “use sua razão e pensamento lógico; como eu poderia fazer essas coisas se eu não fosse o Messias? Olhar a vida de Cristo, que desafiou a razão e a lógica, e concluir que a verdade existe transcendentalmente, além da razão e da lógica, é tirar uma conclusão lógica e razoável. Embora Jesus fosse sempre coerente em termos lógicos e racionais, Ele provou que é lógico acreditar em coisas que não são necessariamente lógicas ou razoáveis. Em Cristo encontramos equilíbrio perfeito quanto a isso.
Profecia, razão e lógica De fato, a própria profecia (geralmente baseada em algo tão "irracional" quanto sonhos e visões) tem, em realidade, premissas que são lógicas e razoáveis. "Agora eu lhes digo antes que suceda," disse Jesus, "para que, quando venha a acontecer, vocês creiam que Eu sou" (João 13:19). Com essas palavras Jesus estava apelando à racionalidade que Ele próprio tinha implantado na humanidade. Jesus previa coisas antes que elas acontecessem para que, quando elas sucedessem, as pessoas tivessem razões para crer nEle. Concluir que Jesus era o Messias, especialmente após ouvir o que Ele disse acerca de si mesmo e, então, ver isso mesmo acontecer era realizar um ato racional. A profecia não pode impactar os seres humanos de modo significativo até que ela seja processada por meio do pensamento racional. Daniel 2 ilustra esse ponto. Daniel primeiramente narra e, então, interpreta um sonho do qual o próprio rei não consegue se lembrar. Tudo isso contradiz a razão. Contudo, de muitas maneiras, Daniel 2 é uma das partes mais racionais da Bíblia. Seis séculos antes de Cristo, esse capítulo corajosamente lança um esboço da história do mundo até a Europa moderna e além dela, cujas nações (conforme exemplificadas pela antiga Iugoslávia) poderiam se imiscuir "com as sementes dos homens" mas não se uniriam "umas às outras". Todo o capítulo é um apelo tão eloquente à lógica e à razão que é difícil imaginar como uma pessoa que estuda Daniel 2 possa chegar a outra conclusão senão que a Bíblia é inspirada por Deus. Racional e transracional Na vida de Cristo, como em Daniel 2, as Escrituras apresentam uma mistura do racional com o transracional, o que, essencialmente, é um tipo de metafísica cristã. Deus concede à mente bases racionais e lógicas para que creia em coisas que são aparentemente ilógicas e contrárias à razão. De fato, o evento central de toda a Bíblia, a crucifixão de Jesus, não foi apenas ilógico e contrário à razão, mas tolo, como a Bíblia a ele se refere. "Pois a pregação da cruz", escreveu Paulo, "é, para os que se perdem, tolice" (1 Cor. 1:18). A cruz leva essa mistura do racional com o transracional a seu clímax. Segundo Tarnas (1991, p. 305):
Numa era iluminada, sem precedentes, pela ciência e pela razão, as “boas novas” do Cristianismo se tornaram uma estrutura metafísica cada vez menos convincente, uma base cada vez menos segura sobre a qual construir a própria vida, e cada vez menos necessária psicologicamente. A completa improbabilidade desse conjunto de eventos tornou dolorosamente questionável que um Deus infinito e eterno pudesse repentinamente assumir a condição de um ser humano particular, em um tempo histórico determinado e em um lugar específico, só para ser ignominiosamente executado. Que uma única e breve vida vivida há dois mil anos em uma nação obscura e primitiva, em um planeta que agora se reconhece como um pedaço relativamente insignificante de matéria orbitando uma estrela entre bilhões de outras estrelas, em um universo inconcebivelmente vasto e impessoal, e que tal evento pouco perceptível pudesse ter qualquer relevância cósmica ou eterna,
são suposições que não mais oferecem uma justificativa plausível para a fé de homens racionais. Naturalmente, apenas para a razão pura, o evangelho seria irreduzivelmente insustentável, porque a razão pura sozinha não consegue compreender esse tipo de amor. Se o amor humano que, mesmo em sua forma mais sublime mal reflete o amor de Deus, frequentemente faz com que os seres humanos ajam de modo ilógico e contrário à razão, quanto mais o amor de Deus não o compeliria a agir de uma maneira que transcende os conceitos humanos de racionalidade e lógica? Foi exatamente isso que aconteceu na cruz: o amor de Deus o compeliu a agir de um modo que desafiou totalmente a razão. Crer que o Criador abandonou a eternidade e se encarnou na humanidade, apenas para ser crucificado como propiciação por nossos pecados, e que Ele fez isso movido por um amor que se autossacrifica e que nega a si mesmo é aceitar um conceito que existe numa dimensão na qual a própria razão simplesmente não consegue alcançar. O sacrifício expiatório de Cristo, que sofreu a segunda morte em nosso lugar, não é o tipo de verdade que se pode descobrir apenas com a razão pura. A lógica por si só pode levá-lo longe na busca pela verdade, mas nunca ao Gólgota. Nenhuma equação prova que "agora, portanto, não há nenhuma condenação para aqueles que estão em Cristo Jesus, que andam não segundo a carne, mas segundo o Espírito" (Rom. 8:1). A lógica sistemática, por si só, pode até lhe apontar a existência de Deus, mas nunca para a verdade que Jesus, "sendo em forma de Deus, não teve por usurpação ser igual a Deus; mas esvaziou-se, assumindo a forma de servo e se fez semelhante aos homens; e sendo achado em forma de homem, humilhou-se a si mesmo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz" (Phil. 2:6-8). Não admira que Paulo escreva: "Conforme aprouve a Deus em Sua sabedoria, o mundo não conheceu a Deus por sua sabedoria " (1 Cor. 1:21, NEB). Ao mesmo tempo, contudo, as Escrituras proporcionam evidência racional para uma coisa tão transracional quanto o evangelho. Desde o culto hebraico, que prefigurou a crucifixão séculos antes de ela acontecer, passando pelas profecias messiânicas dos salmos, Isaías e Daniel, até o poderoso testemunho do Novo Testamento, Deus concedeu ao mundo razões lógicas, racionais e incontestáveis para que este creia na "tolice" da expiação substitutiva de Cristo. De fato, com toda a luz dada por meio da Palavra profética, alguém aceitar algo tão transracional quanto o evangelho é, pode-se argumentar, a única alternativa racional a fazer. Naturalmente, a evidência lógica e racional que aponta para a crucifixão não nega a obra do Espírito Santo em prol da salvação; em vez disso, ela simplesmente mostra que o Espírito Santo pode usar a lógica e a razão para ajudar as pessoas a aceitar o que não é especialmente lógico ou racional. Jefferson, infelizmente, assumiu a posição irracional de que somente aquilo que é racional pode ser real. Jesus, ao contrário, por Sua vida e ensinamentos, mostrou que o real transcende o racional. A Bíblia resumida de Jefferson, na qual o âmago do Cristianismo se perde, prova não apenas quão limitada é, de fato, o racional, mas também que Pascal estava certo quando afirmou: "o coração tem razões que a própria razão desconhece".
BLOESCH, Donald. Theology of Word and Spirit: authority and method in theology. Downers Grove, ILL: Inter-Varsity, 1992. GAUSTAD, Edwin. Sworn on the altar of God : a religious biography of Thomas Jefferson. Grand Rapids: Eerdmans, 1996. SMITH, Huston. Beyond the post-modern mind. Wheaton, ILL: Theosophical Publishing House, 1992. TARNAS, Richard. The passion of the Western mind . New York: Ballantine, 1991.
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