Bertolt Brecht - Santa Joana Dos Matadouros Comp
June 2, 2016 | Author: Monica Rossetto | Category: N/A
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I O rei da carne, Pierpoint Mauler, recebe uma carta de seus amigos de Nova Iorque CHICAGO. OS MATADOUROS MAULER,
lendo uma carta. – “Parece-nos evidente, caro Pierpoint, que já há alguns dias o mercado da carne está saturado. E, no sul, as barreiras alfandegárias resistem a todas as nossas ofensivas. Acreditamos, portanto, ser prudente, querido Pierpoint, não mais envolver-se com este negócio...” Acabo de receber essas indicações de meus bons amigos de Nova Iorque. Lá vem meu sócio. Ele esconde a carta. CRIDLE – Por que esse ar tão sombrio, querido Pierpoint? MAULER: Lembra-te, Cridle, daquela caminhada Que fizemos uma vez, pelos abatedouros? Era noite. Diante de nossa máquina nova, Cridle, lembra-te, nós vimos um touro Claro e nobre, dirigindo aos céus seus grandes olhos vazios. Ele recebeu diante de nós o golpe que o abatia: E tal golpe me atingiu até o fundo do coração! Há sangue demais, Cridle, em nosso negócio! CRIDLE: Amigo, vens outra vez com tua antiga fraqueza. Quem acreditaria, Pierpoint? Tu, o maior de todos, O rei dos abatedouros, dos açougueiros o terror, A morte de um touro louro te enche de dor! Não conte, eu te rogo, tal segredo a ninguém A não ser a mim! MAULER: Oh, meu fiel amigo, Por que me levaste a visitar o abatedouro! Durante os sete anos em que estou no negócio
Eu evitei fazê-lo. Eu não posso suportar Um comércio tão sangrento, não tenho mais forças: Eu me retiro de imediato... Cridle, queres a minha parte? A terias por muito pouco; a ti, a preferência: Ninguém conhece o negócio como tu. CRIDLE: Muito pouco? Quanto? MAULER: Velhos amigos como nós dois Não podem disputar muito por valores. Dez milhões! CRIDLE: Não seria caro, se não houvesse Lennox Que, pela carne em conserva, lata a lata se bate, E estraga o mercado com seus preços baixos. Tirará nossa pele, se não tirarmos a dele. Enquanto ele estiver em pé, e só tu podes abatê-lo, Não posso aceitar tua proposta. Deverás, até lá, com tua mente fértil, Encontrar uma saída. MAULER: Não, Cridle, Esse coração treme ainda com o grito do touro! É preciso então que Lennox caia rápido, Pois quero, doravante, viver como homem de bem E não mais como açougueiro. Saiamos, Cridle, e eu te direi A forma de abater Lennox. Mas tu deverás então tirar esse peso do meu coração E tomar a frente de nosso negócio CRIDLE: Quando Lennox for derrubado Eles saem. II
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O desmoronamento das grandes indústrias da carne A - DIANTE DA FÁBRICA DE ENLATADOS DE LENNOX OS OPERÁRIOS
Nós somos setenta mil Nessas fábricas de conservas E nossos salários são tão baixos que não podemos mais [sobreviver. Ainda ontem, de surpresa, reduziram nosso pagamento E hoje, um novo aviso: “Os que não estão satisfeitos, sempre podem deixar a fábrica!” Saiamos então, e todos juntos. Ao diabo esse salário que diminui todos os dias. Silêncio Há muito tempo já esse trabalho nos nauseia: Esta fábrica é para nós um verdadeiro inferno E só pode nos manter aqui o medo, O medo duplo, de Chicago e do inverno. Mas agora, doze horas de trabalho Já não garantem nem um pão seco Nem dão para comprar um trapo velho. Melhor partir E morrer de uma vez. Silêncio Pelo que nos tomam eles? Acreditam então Que nós somos gado, dispostos a tudo? Tomam-nos por jumentos? Melhor morrer! Deixemos a fábrica Agora mesmo. Silêncio O que houve? São seis horas! Por que não abrem, corja de esfoladores? Seus bois estão aqui, bando de açougueiros! Abram! Batem no portão.
Terão eles nos esquecido? Risos. Abram! Queremos entrar Em suas imundas pocilgas E suas cozinhas infectas Para preparar guisados indigestos Para os que ainda podem pagar. Silêncio No mínimo exigimos, O salário anterior, que já não dá para nada. No mínimo A jornada de dez horas e, no mínimo... UM HOMEM QUE PASSA: O que vocês estão esperando? Não sabem que Lennox fechou? Gazeteiros de jornal aparecem na cena GAZETEIRO – Lennox, o rei da carne, forçado a fechar suas fábricas! Setenta mil operários na rua. Lennox vítima da concorrência feroz imposta por Pierpoint Mauler, rei da carne e da responsabilidade social! OS OPERÁRIOS
Desgraça! O próprio inferno Diante de nós fecha suas portas! Nós estamos perdidos. O impiedoso Mauler Aperta a garganta de nosso explorador E somos nós que sufocamos! B - UMA RUA – A Tribuna de Chicago, edição do meio-dia! O rei da carne e da responsabilidade social, Pierpoint Mauler vai inaugurar os Hospitais Pierpoint Mauler, os maiores e mais caros do mundo! Dois transeuntes olham para o fundo do palco, “vendo” Mauler. UM TRANSEUNTE, ao outro – Aquele é o Pierpoint Mauler. Mas quem são os dois que o acompanham? GAZETEIRO
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– Seguranças. Só anda escoltado, com medo de apanhar de alguém. O OUTRO
Para levar Deus ao coração de um mundo que desaba E nele restaurá-Lo, pela ação dos mais humildes. Os Chapéus Negros andam. Toque de tambores.
Para levar consolo aos miseráveis dos matadouros, os Chapéus Negros deixam a sua sede. Joana empreende sua primeira descida às profundezas.
Durante todo o dia os Chapéus Negros pregaram nos matadouros, mas, quando a noite chegou, os resultados eram quase nulos.
C - EM FRENTE AO TEMPLO DOS CHAPÉUS NEGROS
DIANTE DA FÁBRICA DE CONSERVAS LENNOX
JOANA,
à frente de um comando dos Chapéus Negros: Nesta noite de sangue e confusão, Nesse tempo de desordem organizada, De arbitrariedade consentida, E de humanidade desumanizada, Nesse tempo em que em nossas cidades Os problemas não têm fim; Nesse mundo, imenso matadouro, Em que nos chegam rumores de violência iminente; Para impedir que, em sua brutalidade, O povo, ofuscado, quebre suas ferramentas E destrua assim seu ganha-pão, Nós queremos reintegrar Deus Pois aos lugares onde realmente vivem os homens Ele não mais tem acesso: Sua glória anda pouca, Seu nome, já quase suspeito. Dos mais humildes, entretanto, ele é a única salvação! Então nós resolvemos Por ele bater nossos tambores nesses bairros; Para que ele penetre no coração da miséria E que sua voz retumbe pelos matadouros. Aos Chapéus Negros: O que faremos agora é uma última tentativa. Pela derradeira vez, nos esforçaremos
– Dizem que eles estão preparando um grande golpe sobre o mercado de carne. Para nós isso que dizer esperar e passar fome. OUTRO OPERÁRIO – A luz está acesa nos escritórios. Estão lá, calculando os lucros. Chegam os chapéus Negros. Fixam no chão uma placa na qual se lê: “Hospedagem: 20 centavos por noite. Com café: 30 centavos.” CHAPÉUS NEGROS cantando Escutem todos, escutem bem! Tu que te afundas, nós te vemos, Teu apelo por ajuda, nós o escutamos, Teu sinal, nós o percebemos. Parem os carros, detenham o trânsito Vós que soçobrais, recobrai vossa coragem, Pois os soldados de Deus avançam – ei-los! Tu que te escondes, tu que duvidas, Olha para nós! Olha, Meu irmão, antes que sucumbas! Nós te damos o que comer E nós não esquecemos Que tu não tens abrigo. E, sobretudo, não digas que tudo está perdido: Tudo será diferente, a injustiça nesse mundo Não poderá durar se todos se juntarem a nós, Marchando ao nosso lado Com o único objetivo de ajudar o próximo. Nós faremos avançar os tanques e os canhões UM OPERÁRIO
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Nós lançaremos ao mar os navios de guerra, E nos ares, os aviões Para conquistar teu pão, meu irmão. Porque vós, os pobres, formais Nesse mundo um imenso exército. Vós que nos escutais Não esperai o amanhã! Desde hoje ajudai, Ajudai ao próximo! Avante! Ao assalto! Empunhai vossos fuzis! Vós que soçobrais, recobrai vossa coragem, Pois os soldados de Deus avançam – ei-los! Cantando, os Chapéus Negros começam a distribuir seu jornal: Apelo às Armas, bem como colheres, pratos e sopa. Os operários agradecem e põem-se a escutar o discurso de Joana. JOANA – Nós somos os soldados do bom Deus. Por causa dos chapéus que usamos, somos também conhecidos como os Chapéus Negros. Nós dizemos que somos soldados, porque formamos um exército e porque, em todos os lugares em que vamos, precisamos lutar contra o crime e a miséria, contra as forças que tendem a nos aviltar. (Ela mesma começa a distribuir sopa) Bem, agora comam esta sopa quente e constatarão que depois vocês verão as coisas com um olhar diferente. Pensem agora qual esperança se pode fundar sobre a felicidade terrena. Nenhuma, absolutamente nenhuma. A desgraça vem como a chuva: ninguém a provoca, mas, entretanto, ela vem... Suas desgraças, digam-me de onde vem? UM DOS QUE COMEM – De Lennox & Cia. JOANA – O senhor Lennox tem talvez mais preocupações do que vocês! O que vocês estão perdendo? Ele, suas perdas se contam por milhões. UM OPERÁRIO – Carne não há nesta sopa, só uma aguinha clara, isso sim. Mas quente, pelo menos, está. OUTRO OPERÁRIO – Fiquem quietos, bando de glutões! Escutem a palavra de Deus! Senão vão tomar o prato de água quente de vocês.
– Silêncio! Queridos amigos, digam-me: por que vocês são pobres? UM OPERÁRIO – Sei lá! Explique você! JOANA – Eu lhes direi. Não é porque vocês não estão cheios de bens materiais – que não chegam para todos – mas porque vocês não têm idéia dos valores mais elevados. É por isso que vocês são pobres. Esses gozos vulgares aos quais vocês aspiram, comer um pouco, ter um bom lugar para morar e ir ao cinema, não são mais do que prazeres frívolos, grosseiros. Enquanto que a palavra de Deus é um prazer mais delicado, mais profundo e muito mais refinado; talvez vocês não possam nem imaginar algo mais doce do que o chantili, mas a palavra de Deus é ainda mais doce. Homens de pouca fé, os pássaros no céu não têm carteira de trabalho, as açucenas do campo não têm emprego e, entretanto, como eles cantam Sua glória, Deus lhes dá alimento. Nós, os Chapéus Negros, fazemos então a vocês uma pergunta muito prática: de que um homem precisa para crescer na vida? UM OPERÁRIO – Um colarinho engomado. JOANA – Nada disso. Para progredir na terra talvez seja necessário um bom colarinho, mas diante de Deus é preciso muito mais que isso, outras glórias. Vocês aos olhos Dele, nem mesmo um colarinho puído têm, pois deixaram suas almas no abandono. Mas então como vocês querem elevar-se, chegar ao que vocês, em sua ignorância, chamam de uma “situação melhor”? Pela força bruta, pela violência? Como se algum dia a violência tivesse trazido alguma coisa além da destruição. Vocês acham que mostrando os dentes conquistarão o paraíso na terra. Mas eu lhes digo, agindo dessa maneira o que se cria não é o paraíso, mas o caos! Um operário chega correndo. O OPERÁRIO: Uma vaga, agora mesmo, acaba de abrir! Um trabalho, um salário, esperam por vocês, Na fábrica número cinco! Que mais parece uma latrina. Corram, rápido. Um operário larga seu prato cheio e sai correndo. JOANA
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– Ei, você, onde é que você vai? Quando se ocupará de Deus? Vocês não querem nem ouvir falar, não é? UMA MOÇA DOS CHAPÉUS NEGROS – Acabou a sopa. OS OPERÁRIOS: Acabou a sopa; Era só um caldinho ralo Mas era melhor do que nada. Todos se viram e se levantam. JOANA – Fiquem sentados; acabou, mas que importa, uma vez que a grande sopa celeste não se esgota nunca. OS OPERÁRIOS: Quando, afinal, vocês Abrirão as portas de seus porões, Carniceiros, mercadores de carne humana? UM OPERÁRIOS: Com o quê, agora, pagarei A casa pequena e úmida, onde vivemos doze? Eu já paguei dezessete prestações, Mas a última, não conseguirei Seremos jogados na rua. E o chão de terra batida E nosso pedaço de grama amarela, Nunca mais os veremos, nunca mais, Nem tampouco respiraremos seu pestilento ar familiar. UM OUTRO OPERÁRIOS: Aqui estamos, em pé, nossas mãos como pás, E nossos pescoços fortes como tratores. Nossas mãos e nossos pescoços, queremos vendê-los Mas não há quem os compre. OS OPERÁRIOS: E nossas ferramentas - Gigantesca montanha de prensas e gruas – Estão trancadas, detrás desses muros! JOANA – E então, o que se passa? Quer dizer que já se vão? É porque já terminaram de comer? Adeus e obrigado. Mas por que então vocês escutaram até agora? JOANA
– Pela sopa. JOANA – Continuemos. Cantem! CHAPÉUS NEGROS cantando Avante, entrai nessa luta! No coração da batalha lutai! Cantai com louvor, que cante todo o mundo. Ainda é noite, mas logo virá o dia, Raiando com todo o esplendor, E junto virá Jesus Nosso Senhor. UMA VOZ, do fundo do palco – Estão contratando nas fábricas de Mauler! Os operários saem. Fica apenas uma mulher. JOANA, com ar sombrio: Parem a música! Acabou a sopa, lá se vão eles! Seus olhos são incapazes de elevar-se Mais alto do que a borda do prato. Eles não crêem em nada além do que está Entre suas mãos. Acreditarão em suas mãos? Vivendo cada dia, cada minuto mesmo, Na insegurança, eles não são capazes De se esquecer das preocupações mais básicas. Nada, a não ser a fome, tem sobre eles qualquer influência. Nenhuma canção os toca mais. Nenhuma palavra pode Descer até eles e penetrar seus corações. Aos que a cercam: Parece que nós, os Chapéus Negros, temos por tarefa alimentar todo um continente com nossos poucos talheres. Os trabalhadores voltam. Ao longe, ouvem-se gritos. OS OPERÁRIOS, na frente do palco – Que gritos são esses? Um imenso caudal humano emerge dos abatedouros. UMA VOZ, do fundo: Mauler e Cridle também fecharam. As indústrias Mauler optam pelo lock-out! OS OPERÁRIOS, refluindo: UM OPERÁRIO
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No meio do caminho encontramos, Enquanto corríamos atrás de trabalho, Uma multidão enorme e desesperada. Todos haviam perdido o emprego E perguntavam onde achar trabalho. UM OPERÁRIO, na frente do palco: Desgraça! De todos os lados chegam ainda Torrentes infindáveis de homens! OS CHAPÉUS NEGROS, a Joana – Vamos agora. Estamos gelados e molhados e precisamos comer. JOANA – Quero saber, antes, quem é o responsável por tudo isso. OS CHAPÉUS NEGROS – Pare! Não te metas com essas questões; Eles encherão tuas orelhas com seus gritos, Eles têm apenas idéias vulgares na cabeça, São reles glutões Preguiçosos, que fogem do trabalho. Jamais seus corações, desde o dia em que nasceram, Abrigaram sentimentos nobres. JOANA – Não! Eu quero saber (aos trabalhadores) Digam-me, por favor, por que correm de um lado a outro e não encontram trabalho? OS OPERÁRIOS: O sanguessuga Mauler e o muquirana Lennox brigam entre si, Resultado para nós: barrigas vazias. JOANA – Esse Mauler, mora aonde? OS OPERÁRIOS: Lá, onde se compram e vendem animais; Em um grande edifício: A Bolsa de Carnes JOANA: Eu vou até lá: Eu preciso saber. MARTA, dos Chapéus Negros: Não vá te meter com estes problemas. Ao fazer mil perguntas, Recebemos mil respostas.
– Não, eu quero vê-lo, esse Mauler, já que ele é a causa de tamanha miséria. OS CHAPÉUS NEGROS – Então teu destino nos parece bem negro, Oh Joana! Não te metas nas querelas terrestres! Pois quem nelas se envolve, torna-se, pronto, presa, E vê esvanecer-se sua pureza original; E o frio supremo Rouba de seu coração todo o calor. Quem abandona o lar protetor, Sua bondade perde rápido; Degrau após degrau, desce cada vez mais baixo, Na insana esperança de obter uma resposta Que jamais chegará, Tu desaparecerás na lama! Pois a lama entope as bocas Que fazem perguntas sem prudência JOANA: Eu quero saber. Os Chapéus Negros se afastam. JOANA
III Pierpoint Mauler é tocado pelo sopro de um outro mundo EM FRENTE À BOLSA DE CARNES Em baixo, Joana e Marta esperam. No alto, os fabricantes de conservas Lennox e Graham discutem. Lennox está branco como algodão. Ao fundo, ruídos da Bolsa. GRAHAM:
E então, meu velho Lennox, derrubou-te, O selvagem Mauler! De um tal monstro a investida É inexorável! A natureza, para ele, Torna-se mercadoria. Ele venderia o próprio ar. O que comeste, ele te revenderia.
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De barracos miseráveis, ele extrai rendas, De carne podre, ele faz ouro; E se lhe jogas pedras na cabeça, Em dinheiro ele as transformará. O faro para o dinheiro é nele tão potente, Tão natural, nele, esta arte contrária à natureza, Que ele não saberia jamais trair seu instinto. Saibas, no entanto, este homem não é duro E nem ama o dinheiro. Ele não pode suportar A visão da miséria, e dorme mal à noite. Vá, então, até ele e, com voz suave, Diga-lhe: Mauler, olhe para mim e de meu pescoço, Tira esta mão que me aperta e me estrangula, E pensa nos velhos tempos. Ele terá medo, eu garanto. E talvez chore... JOANA, à Marta: Tu somente, até aqui me acompanhastes. Todos me abandonaram, Gritaram-me prudência: Para eles, cruzei a última fronteira. Estranho conselho! Eu te agradeço, Marta. MARTA - Joana, eu também te recomendei prudência. JOANA – Mas tu vieste comigo. MARTA – Joana, como vais reconhecê-lo? JOANA – Saberei bem reconhecê-lo. Cridle sai da Bolsa e desce até o palco. CRIDLE: Muito bem, Lennox! Acabou a guerra de preços! Foste eliminado. Fecho minhas fábricas. Espero que o mercado recobre a saúde. Agora vou limpar a minha fábrica, Lubrificar meus cutelos; para economizar Uma agradável soma em salários, Instalar duas ou três dessas máquinas novas. A nova técnica é muito engenhosa:
O porco é colocado em uma esteira rolante Até o alto da fábrica, no último andar. Começa então o seu retalhamento. Nas facas, sozinho, o porco se precipita. Bem pensado, não achas? Ele se degola e logo, Por si mesmo, em salsicha se transforma, Pois caindo, a cada fase, Primeiro perde a pele, que vira couro, Depois seus pelos, que viram escovas, Até chegar aos ossos, moídos como farinha. E assim, por conta de seu próprio peso, chega Na lata que o espera lá embaixo. Bela invenção, não é verdade? GRAHAM : Muito bela! Mas e a lata, O que fazer com ela? Ah, época maldita! Um comércio estrangulado por montanhas de conservas, Um mercado aviltado, ainda ontem florescente!... Batendo-se por sua conquista, Quando ele não podia absorver mais nada, Vocês mesmos, com sua escalada, Fizeram desabar os preços e destruíram seu negócio. Tal qual dois grandes búfalos, que, lutando, Destroem com seus cascos o pasto que disputam. Mauler, acompanhado de seu corretor, Slift, surge de um grupo de fabricantes de conserva. OS FABRICANTES DE CONSERVAS : Trata-se de saber quem agüentará mais tempo. MAULER : Lennox está de joelhos. A Lennox: Estás perdido, confessa. E agora, Cridle, ficarás com a fábrica Conforme está previsto nos termos do contrato: “No dia em que Lennox for eliminado...” CRIDLE :
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Sim, Lennox acabou. Mas com ele acabaram Os bons dias do mercado. É preciso então, Mauler, Repensar os dez milhões de dólares Que queres por tuas ações. MAULER : O quê? A soma está inscrita Claramente no contrato Tome, veja Lennox, Isso não é um contrato? Com um preço fixado? CRIDLE : Sim, um contrato dos tempos de prosperidade! Mas e a crise? Ela não existe? Que posso fazer eu com um grande matadouro Se ninguém mais compra carne em conserva? Agora sei bem porque não podias Mais suportar a visão do gado morrendo: sua carne Não vende mais! MAULER : Não, é que meu coração se aperta Quando ouço mugir a criatura CRAHAM : Agora eu compreendo a grandeza de teus atos, Mauler, até teu coração sabe ver longe! LENNOX : Eu gostaria ainda, Mauler, de examinar Contigo... CRAHAM : Toque-lhe o coração, Lennox! Toque-o! É uma lata de lixo, mas... sensível! Ele soca Mauler no coração. MAULER – Ai! GRAHAM — Viu? Ele tem um coração! MAULER : Então, Freddy! Quer dizer que tu me socas, Pois eu proibirei Cridle De comprar-te uma única lata...
: Pepê! Isso não é um jogo! Não podes misturar Questões pessoais aos negócios! CRIDLE – Pois não, Pepê! Como quiseres. GRAHAM — Mauler, tenho dois mil empregados! CRIDLE – Mande-os ao cinema! Mas Pepê, nosso contrato não é mais viável. (faz contas em uma caderneta) Quando combinamos que tu sairias do negócio, as ações estavam a 390, e tu tinhas um terço, como eu. Tu me ofereceste a 320. Não estava caro. Hoje, isto é, devido à saturação do mercado, as ações caíram para 100. Para pagar o que te devo, eu precisaria jogar essas ações no mercado. Mas, se eu fizer isso, elas cairão a 70, e onde eu conseguiria dinheiro para pagar tua parte? Eu estaria arruinado! MAULER : Já que me dizes isso, Cridle, tu me forças, então, A exigir meu dinheiro, sem mais delongas, Antes que quebres de uma vez! Creia-me, Estou tão temeroso que chego a suar frio: seis dias, Nada além. É o máximo que posso fazer. Seis dias? Não, cinco, se tu estás Realmente onde dizes. LENNOX – Mauler, olhe para mim. MAULER – Leia, então, Lennox. Veja se esse contrato diz uma só palavra sobre a crise. LENNOX – Não, nada. Ele sai. MAULER , seguindo-o com os olhos: Tive a ligeira impressão de que algo o atormentava. E eu, mergulhado em meus negócios, Não pude imaginar seu fado, Ah! Pudesse eu estar liberado De um comércio tão bestial! Tenho, Cridle, o coração torturado! Cridle se afasta. Joana fez um sinal a um segurança e lhe diz algumas palavras. CRAHAM
9 O SEGURANÇA
— Senhor Mauler, há algumas pessoas que querem
lhe falar. MAULER : A escória em farrapos, Com ar invejoso, sem dúvida? Prontos para a violência, hein? Não, diga que não estou. O SEGURANÇA — São membros da Organização dos Chapéus Negros. MAULER : O que é esta organização? O SEGURANÇA — Eles têm muitas ramificações, são numerosos e gozam de grande consideração nas camadas inferiores da população. São chamados de soldados do Bom Deus. MAULER : Já ouvi falar dessa gente. Mas que nome curioso! Soldados do Bom Deus... Mas o que eles querem comigo? O SEGURANÇA — Afirmam que têm algo a dizer ao senhor. Durante esta cena, o rumor da Bolsa continua. Ouve-se: Bois, 43; Porcos, 55; Vitelos, 59, etc. MAULER : Está bem. Diga-lhes que eu os receberei Mas que eles limitem-se a responder minhas perguntas. Nada de choros, nem desses versos sentimentais Que eles adoram cantar. O melhor para eles É causar em mim a impressão de gente honesta, Que não é acusada de nada E que não espera o impossível de mim. Mais uma coisa: não diga, em absoluto, que eu sou Mauler. O segurança vai ao encontro de Joana no outro lado do palco. O SEGURANÇA: Ele vai vê-los, mas vocês não devem Perguntar nada, respondam apenas Quando ele lhes perguntar. JOANA, dirigindo-se direto a Mauler – O senhor é o Mauler!
– Não sou eu. (aponta para Slift) É ele! JOANA, apontando para Mauler – O senhor é o Mauler! MAULER – Não, é ele. JOANA, – É o senhor. MAULER – Como me reconheceste? JOANA: De todos, é o que tem a cara mais ensangüentada. Slift ri. MAULER – Rindo, Slift? (Enquanto isso, Graham sai. Para Joana:) Quanto recebes por dia? JOANA, – Vinte centavos, além da comida e do uniforme. MAULER: O tecido é bem fininho e, suponho, Slift, que a sopa seja rala. Sim, o tecido não é grosso Nem é grossa a sopa. JOANA: Por que joga, Senhor Mauler, seus trabalhadores na rua? MAULER, a Slift: Que eles trabalhem por nada, não é notável? Já viste algo igual? Que trabalhem por nada e sem se lamentar? Não vejo em seus olhos nem medo da miséria Nem de dormir sob as pontes alguma noite. A Joana: Vós sois, Chapéus Negros, gente estranha. Pouco me importa o que esperam de mim. Dizem, eu sei, que o sangrento Mauler, - É assim, na verdade, que a escória me chama – Despojou Lennox, e pôs em apuros Cridle que, cá entre nós, não é homem de bem. Creiam-me: esses são assuntos profissionais Que não vos interessam. Mas, sobre outra questão, adoraria vossa opinião. Pretendo renunciar a esse negócio sangrento Logo que eu possa: renunciar sem retorno. MAULER
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Pois eu vi – e isso vos interessará – Morrer, há pouco, um boi e fiquei tão comovido Que quis largar tudo; A parte – doze milhões – que eu tinha na usina, Cedi por dez ao homem que vêem aqui. Isso não é bom? E conforme vosso espírito? SLIFT : Vendo morrer o boi, ele decidiu abater O rico Cridle, no lugar do pobre animal. Isso não é bom? Os fabricantes de conservas explodem em gargalhadas. MAULER: Riam todos. Seu riso não me atinge, Eu os verei chorar um dia. JOANA: Senhor Mauler, por que fechou os matadouros? Eu preciso saber. MAULER: Poderia eu ir mais longe? Porque ele é sangrento É que eu tirei as minhas mãos deste imenso negócio. Diga-me que está certo E que isso te agrada. Não, não me digas nada. Eu sei, confesso, que com tal decisão As pessoas sofreram. Eles não têm mais trabalho, Eu sei. Mas este mal era inevitável. São, de resto, pessoas extremamente más, A canalha. Melhor para ti que não os veja. Mas, diga, isso de se retirar do negócio, É bom, não é? JOANA: Não sei se o senhor fala sério. MAULER: É que adquiri o maldito hábito De disfarçar a voz, mas não digas nada, eu sinto Que tu não gostas de mim.
Dirigindo-se aos outros: Parece-me que fui tocado pelo sopro de um outro mundo. Ele se aproxima dos industriais, tomando-lhes o dinheiro que trazem consigo e dando-o a Joana. Dêem o dinheiro, dêem o dinheiro, vamos, dêem! Corja de carniceiros! Ele continua mexendo nos bolsos deles para dar dinheiro à Joana. Tome para os pobres, minha filha. Mas é uma gentileza, sem nenhuma obrigação: Eu não sofro de insônia... Seu rosto me agrada, Talvez por isso te ajude. Tamanha inocência!... Embora já tenhas vivido mais de vinte anos. MARTA, a Joana: Joana, não creias que seja de boa fé. Desculpe-me. Eu também vou embora. Deverias, tu também, Abandonar esta empreitada. Marta sai. JOANA – Isso é uma gota no oceano, Senhor Mauler. O senhor não poderia realmente ajudá-los? MAULER: Repita por toda a parte: eu aprovo vossa ação, E desejaria que fossem mais numerosos. Mas tendes consideração demais pelo destino dos pobres: Eles são maus. O homem, aliás, não me comove. Nenhum é inocente. São todos carniceiros. Deixai disso. JOANA – Senhor Mauler, nos matadouros dizem que o senhor é o responsável pela miséria deles. MAULER: Eu tenho grande piedade pelos bois: o homem, ele é mau. Ele não é maduro ainda, para o que pretendes fazer, O mundo não poderá mudar se antes não mudarem os homens. Um instante, por favor. Ele fala com Slift em voz baixa.
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Chame ela de lado, dê dinheiro a ela, Diga “para seus pobres”; ela poderá Aceitar sem pudor; e depois a siga, Veja então o que ela compra. Se isso falhar - E eu adoraria que não desse certo – Leve-a aos matadouros; e mostre a ela Como os pobres são maus e covardes, Semelhantes a bestas, cheios de traições, Responsáveis, enfim, por suas vidas miseráveis. Isso pode funcionar. A Joana: Aqui está meu corretor, Sullivan Slift; ele te fará ver algumas coisas. A Slift: Mal posso suportar a existência de seres Semelhantes a esta moça, que nada têm Além de seus vinte centavos por dia e seu chapéu negro, E que não têm nenhum medo. Ele sai. SLIFT: Em teu lugar não gostaria, De saber o que queres saber, Mas volte aqui amanhã, Se quiseres mesmo saber. JOANA, vendo Mauler se afastar: Este homem não é mau. É o primeiro que nossos tambores desalojaram Das trevas da vilania; Ele ouviu nosso chamado. SLIFT, saindo – Um conselho: não te metas com as gentes dos matadouros; é a escória, em uma palavra, é o lixo do mundo. JOANA — Eu quero vê-los. IV
O corretor Sullivan Slift mostra à Joana Dark como os pobres são maus: Joana desce às profundezas pela segunda vez BAIRRO DOS MATADOUROS SLIFT:
Joana, agora eu vou te mostrar Como eles são maus Essa gente da qual tens piedade, E verás que tua piedade é descabida. Slift e Joana contornam o muro de uma fábrica, sobre o qual se lê: “Fábrica de Conservas de Carne Mauler e Cridle”: O nome de Mauler aparece riscado. Dois homens saem por uma portinhola. Slift e Joana escutam. UM CONTRAMESTRE, a um jovem operário – Um de nossos homens, Luckerniddle, caiu, faz quatro dias, na caldeira; é pavoroso, mas não pudemos parar as máquinas a tempo, e ele entrou na faca e virou toicinho. Aqui estão seu casaco e seu boné: pegue-os e façaos desaparecer. Estão ocupando inutilmente um cabide no vestiário, o que causa má impressão. É preciso queimá-los, o quanto antes melhor. Entrego a você porque sei que é de confiança: se alguém encontrá-los em algum lugar, perderei meu emprego. Quando a fábrica reabrir você, é claro, se quiser, ficará com a vaga de Luckerniddle. O JOVEM OPERÁRIO – O senhor pode confiar em mim, senhor Smith. (O contramestre volta para a fábrica pela portinhola.) É uma pena, este homem será mandado para os quatro cantos do mundo sob a forma de toicinho. Mas seu casaco ainda está bom e isso também é uma pena. O amigo Pedaço-de-Toicinho não precisa mais dele, já que agora ele está em embalado, vestido com uma lata, e para mim, ele cairá bem... Azar, peguei para mim. Ele veste o casaco, e enrola o seu, assim como o seu boné, em um jornal. JOANA, vacilando: Estou me sentindo mal.
12 SLIFT:
Aí está a vida como ela é. (Ele pára o jovem operário.) Onde você conseguiu este casaco e este boné? Estes são os pertences de Luckerniddle, aquele que se acidentou? O JOVEM OPERÁRIO – Por favor, senhor, não diga mais isso. Eu tiro agora mesmo. Eu estou em uma situação muito ruim. No ano passado me deixei seduzir pelos vinte centavos a mais que se ganha na fábrica de adubo; fui trabalhar no moinho de ossos e adoeci dos pulmões e dos olhos e não consigo me curar. Já não posso mais trabalhar como antes e só consegui emprego duas vezes desde fevereiro. SLIFT: Guarde essas coisas. Venha, ao meio-dia, à cantina número 7. Você poderá comer e lhe darei um dólar se disser à mulher de Luckerniddle onde conseguiu o casaco e o boné. O JOVEM OPERÁRIO – Mas senhor, isso não lhe parece muito brutal? SLIFT: Bem, se você não está precisando disso!... O JOVEM OPERÁRIO – Pode confiar em mim, senhor. Joana e Slift seguem seu caminho. DONA LUCKERNIDDLE está sentada em frente ao portão da fábrica, lamentando-se: Faz já quatro dias que, saindo para o trabalho, ele me dizia: “Espere-me à noite com uma sopa quente!” Desde então não [voltou. Bando de açougueiros, que fizeram dele? Há quatro dias que estou aqui, No frio, mesmo à noite, esperando por ele Mas ninguém diz nada; e meu marido não sai da fábrica. Eu, de qualquer modo, lhes digo, enquanto não o vir, Eu ficarei aqui. E malditos sejam vocês Se lhe fizeram qualquer coisa! Slift caminha até ela. SLIFT: Senhora Luckerniddle, seu marido está viajando. DONA LUCKERNIDDLE: Agora inventam que ele viajou! SLIFT – Deixe-me dizer uma coisa, Senhora Luckerniddle: ele está viajando e, para nós, na fábrica, é muito desagradável vê-la
sentada aí, todo o tempo, dizendo tolices. É por isso que lhe fazemos uma proposta: note bem que, legalmente, nós não somos, de forma alguma, obrigados a fazê-la. Não procure mais saber o que se passou com seu marido e a senhora poderá almoçar, gratuitamente, em nossa cantina durante três semanas. DONA LUCKERNIDDLE – Quero saber o que aconteceu ao meu marido. SLIFT – Estamos dizendo que ele partiu para São Francisco. DONA LUCKERNIDDLE – Não, ele não foi para São Francisco. Aconteceu alguma coisa com ele aí, e vocês não querem que se saiba disso. SLIFT – Se é esta a sua opinião, senhora Luckerniddle, então a senhora não pode aceitar a refeição que a fábrica lhe oferece. Precisará nos processar. Mas reflita bem. Amanhã, se quiser me ver, me encontrará na cantina. Slift volta para junto de Joana. DONA LUCKERNIDDLE: Eu quero que me devolvam meu marido, Não tenho outro esteio, além dele. JOANA: Ela nunca aceitará. Vinte refeições são muita coisa Para aquele que tem fome, Mas existem coisas Que importam mais para ela. Joana e Slift prosseguem seu caminho. Eles chegam a uma cantina da usina e vêem diante de uma janela dois homens que olham para o interior. GLOOMB – O feitor está bem ali, pronto para encher a pança. Por causa dele deixei minha mão na máquina de cortar chapas. Esse salafrário se empanturra às nossas custas. Vamos cuidar para que essa seja a última vez. Vamos, passe-me logo teu cassetete; é capaz de o meu quebrar já no primeiro golpe. SLIFT, a Joana – Fique aqui, vou falar com ele. Quando ele se aproximar, diga-lhe que procura trabalho. Verás então o que é essa gente. (Ele vai em direção a Gloomb). Tenho a impressão de que você está prestes a cometer um ato impensado. Antes eu gostaria de fazer-lhe uma proposição interessante.
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– Não tenho tempo, meu senhor. SLIFT – Que pena. Seria vantajoso para você. GLOOMB – Rápido então. Não podemos perder esse safado. É preciso que ele pague hoje mesmo por esse sistema desumano do qual ele é o feitor. SLIFT – Gostaria de propor um meio de tirar-lhe dessa jogada. Eu sou inspetor nesta fábrica. O posto que você ocupava na sua máquina continua vago e isto é muito chato. A maior parte dos trabalhadores a considera muito perigosa, justamente porque você contou todas essas histórias a respeito de seus dedos. Naturalmente seria muito bom se nós encontrássemos alguém para esse posto. Se você, por exemplo, encontrasse alguém, estaríamos dispostos a reempregá-lo imediatamente, e lhe daríamos até um trabalho mais fácil e melhor remunerado do que o antigo. Talvez a vaga deste contramestre. Naturalmente você precisaria manter os ritmos de trabalho mesmo os dispositivos de segurança não sendo perfeitos. Ali adiante, por acaso, há uma moça que está procurando trabalho. GLOOMB – Posso confiar no que você está me dizendo? SLIFT – Sim. GLOOMB – Aquela moça ali? ... Ela não parece muito forte. O posto não é feito para gente fraca. (Ao seu companheiro:) Pensei melhor, faremos isso amanhã à noite. Uma jogada dessas é melhor de se fazer à noite. Tchau. (Ele vai em direção a Joana.) Você está procurando trabalho? JOANA – Sim. GLOOMB – Você enxerga bem? JOANA – Não. No ano passado fui trabalhar na fábrica de adubo, no moinho de ossos. Adoeci dos pulmões e dos olhos e não consigo me curar. Desde fevereiro estou sem emprego. É um bom posto? GLOOMB – É um ótimo posto. E é um trabalho que pode ser feito mesmo por pessoas como você, não muito fortes. JOANA – Não há realmente como me arranjar outro posto? Ouvi dizer que o trabalho nesta máquina era perigoso para quem não resistisse ao trabalho muito pesado. Os movimentos ficam menos firmes e pode-se prender as mãos nas serras. GLOOMB
– Nada disso é verdade. Você se surpreenderá ao ver como o trabalho é agradável. Vai se perguntar como alguém pode contar histórias tão ridículas sobre esta máquina. Slift cai na gargalhada e arrasta Joana. JOANA – Quase tenho medo de continuar. O que mais verei? Eles entram na cantina. A senhora Luckerniddle está falando com a garçonete. DONA LUCKERNIDDLE, calculando – Vinte refeições... e então eu poderia... depois do que eu iria, e então eu teria... Ela senta-se em uma mesa. A GARÇONETE – Se a senhora não for comer, tem que se retirar... DONA LUCKERNIDDLE – Espero uma pessoa que deve vir hoje ou amanhã. O que há para comer hoje? A GARÇONETE – Ervilhas. JOANA: Ela sentou-se ali. Eu imaginava que ela iria resistir. Apesar de tudo, temi que amanhã ela viesse, E eis que ela nos precedeu. Ela correu até aqui e já nos espera. SLIFT – Leve você mesmo a comida a ela, pode ser que mude de idéia. Joana procura um prato e leva à senhora Luckerniddle. JOANA – A senhora já está aqui, desde hoje? DONA LUCKERNIDDLE – Não como nada há dois dias. JOANA – Mas a senhora nem sabia que nós viríamos hoje. DONA LUCKERNIDDLE – É verdade, não sabia. JOANA – Vindo para cá ouvi dizer que aconteceu alguma coisa com o seu marido e que a fábrica é responsável. DONA LUCKERNIDDLE – O que? Vocês pensaram melhor e estão retirando a oferta? Então eu não terei mais as minhas vinte refeições? JOANA – Me pareceu que a senhora se dava bem com seu marido. Disseram-me que não tinha ninguém além dele. DONA LUCKERNIDDLE – Sim, já faz dois dias que eu não como nada. GLOOMB
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– A senhora não quer esperar até amanhã? Se a senhora desistir de procurar o seu marido, ninguém mais perguntará o que foi feito dele. (Dona Luckerniddle permanece em silêncio) Não pegue. Dona Luckerniddle arranca o prato das mãos dela e começa a comer avidamente. DONA LUCKERNIDDLE – Ele foi para São Francisco. JOANA: Porões e armazéns abarrotados de carne, Mercadoria invendável, e que já apodrece, Pois não há mais compradores! Do fundo do palco chega o jovem operário com seu casaco e seu boné. O JOVEM OPERÁRIO – Bom dia, posso comer aqui? SLIFT – Você só precisa sentar-se ali, ao lado daquela mulher. (Ele senta-se. Atrás dele:) Você tem um belo boné. (O jovem operário o esconde) De onde ele vem? O JOVEM OPERÁRIO – Eu comprei. SLIFT – E onde você comprou? O JOVEM OPERÁRIO – Eu comprei, mas não em uma loja. SLIFT – E onde você conseguiu, então? O JOVEM OPERÁRIO – De um homem que caiu dentro de uma caldeira. A senhora Luckerniddle sente náuseas. Ela se levanta e sai. DONA LUCKERNIDDLE, saindo, ao garçom – Deixe meu prato, eu volto. Eu virei todos os dias. Você só precisa perguntar a esse senhor. Ela sai. SLIFT – Durante três semanas ela virá, e comerá sem levantar os olhos do prato, como um animal. Você a viu, Joana? A imoralidade dela não tem limites! JOANA: E tu, com que habilidade torna-te mestre dela! Esta imoralidade, como vós a explorais! Não vês que nem teto eles têm, para colocar Ao abrigo da chuva, a imoralidade deles? Ela teria, esta mulher, preferido, como muitas, Continuar fiel à memória de seu marido, JOANA
E procurar por ele, como manda o costume, Um certo tempo ainda. Era seu único esteio. Mas vinte refeições, o preço era muito alto. E este jovem – em quem botaria fé Qualquer malandro -, acreditas que ele teria mostrado À mulher do morto a roupa que usava Se tivesse tido a chance de escolher? O maneta, certamente teria me prevenido Não fosse o preço a pagar por seu pequeno escrúpulo, Ele foi obrigado a vender sua cólera, Tão cara a ele, e por mais justa que fosse. Sua imoralidade é sem limites, tu me dizes? Sua pobreza também é incomensurável. O que tu me mostraste Não é a imoralidade Dos pobres: é a pobreza deles. Desejas mostrar-me a sua imoralidade, Mostrar-te-ei, eu, os sofrimentos que suportam Esses pobres sem moralidade. Que sua miséria, a vossos olhos contradiga Esta depravação que injustamente se lhes imputa. V Joana apresenta os pobres à Bolsa de Carnes A BOLSA DE CARNES : Nós todos, estamos vendendo carne! Compradores, comprem nossas latas! Carne fresca e suculenta. Fatias de toicinho Cridle-Mauler! Carne de filé Graham, verdadeira manteiga! Banha fresca do Kentucky! OS COMPRADORES: OS FABRICANTES DE CONSERVAS
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E sobre as águas fez-se um grande silêncio De todos os compradores, nenhum tinha dinheiro. OS FABRICANTES: Graças aos avanços da técnica, ao trabalho de nossos [engenheiros, E graças aos perspicazes planos dos industriais da carne Nós conseguimos reduzir em um terço O preço do toicinho Cridle-Mauler, Do filé Graham, verdadeira manteiga, E da banha de Kentucky, quase de graça. Aproveitem então, compradores, Comprem, comprem nossas latas! OS COMPRADORES: E sobre as montanhas fez-se um grande silêncio E as cozinhas dos hotéis escondem a face E as lojas se desviam com horror Os atacadistas mudam de cor. A nós, compradores, a visão da carne enlatada Causa náuseas. O estômago do país, Saturado de carne em conserva, Não a agüenta mais. SLIFT: E teus amigos de Nova Iorque, o que te escrevem? MAULER: Teorias. A dar-se-lhes ouvidos Seria necessário agora deitar por terra Todo o cartel da carne E deixá-lo estagnado durante muitas semanas, Esperando até ninguém poder Mexer nem o mindinho! E eu, Eu teria sobre as costas toda a carne! Idiotas. SLIFT: Eu riria se, em Nova Iorque, eles conseguissem Fazer cair de uma vez as taxas de importação, E abrissem assim o Sul aos nossos produtos.
O que provocaria um movimento de alta. Nós iríamos perder o bonde! MAULER: E quando isso ocorresse! Terias a imprudência De tirar tua parte de tamanha miséria, Quando todos te seguem com olhos de lince Para ver o que fazes? Eu não teria cara. OS COMPRADORES: Nós compradores, Temos diante de nós montanhas de latas, Frigoríficos entupidos de carne congelada. Nós queremos vender a carne em conserva E ninguém a quer! E todos os nossos clientes, cozinhas e lojas Estão cheios até as bordas. Clamamos aos berros por um consumidor que não existe. Nós não compramos mais nada! OS FABRICANTES: E nós, fabricantes, com nossos matadouros? Nossas fábricas estão cheias de bois, dia e noite nossas máquinas Ligadas no máximo: salgadeiras, cubas, caldeirões Convertem sem parar em latas de conserva As manadas mugidouras que pastam nos prados. Mas ninguém quer comprar carne enlatada. Nós estamos perdidos! OS CRIADORES: E nós, os criadores, Quem comprará agora nosso gado? Os estábulos estão cheios De porcos e bois devoradores de milho Que eles devoram ainda nos trens que os transportam, Nas estações e nos pátios, Engolindo nosso ouro junto com nosso grão. MAULER: E mesmo a faca os recusa. A morte Despreza esse gado e fecha-lhe a porta.
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- investindo contra Mauler que lê o jornal: Traidor, ave de agouro, que conspurca nosso ninho! Nós sabemos bem quem fez os preços caírem sem cessar Vendendo gado por baixo do pano. Não é de hoje que fazes tais manobras. MAULER: Açougueiros insolentes é o que sois! O animal torturado parou de mugir, E vós soluçais nas saias de vossas mães. Voltai para casa. Falai que um dentre os vossos Não pode mais suportar o grito dos bois morrendo E aos mugidos deles, preferiu o vosso. Quero apenas meu dinheiro e a paz de minh’alma UM CORRETOR – urrando, ao fundo, na entrada da bolsa: Queda gigantesca das cotações na Bolsa! Venda maciça de ações. Cridle, antigamente Mauler, Carrega em sua queda as cotações de todo o cartel!... Tumulto entre os fabricantes, que se lançam sobre Cridle, pálido como algodão. OS FABRICANTES: O que significa isso, Cridle? Levanta os olhos, olha para nós! Assim, nesta conjuntura, Tu te desfazes de tuas ações? UM CORRETOR: A cento e quinze! OS FABRICANTES: Ficaste louco? Tua morte, Cridle, provoca muitas outras! Lixo! Assassino! CRIDLE - apontando para Mauler: Falem com ele! CRAHAM – colocando-se diante de Cridle: Não é Cridle, mas um outro Quem joga a rede; nós somos os peixes! O que querem arruinar, é o cartel da carne. OS FABRICANTES
Essa gente não faz as coisas pela metade. Mauler! Fala, então! OS FABRICANTES – a Mauler: Corre o boato que teu capital, tu o retiras Do negócio e Cridle, que já se arrasta, Cala-se e aponta para o dedo para ti. MAULER – O próprio Cridle me confessou que está insolvente: se eu deixasse meu dinheiro com ele, nem que fosse por mais uma hora, quem de vocês continuaria a me levar a sério nos negócios? Ora, o que desejo, antes de qualquer coisa, é que me levem a sério. CRIDLE – dirigindo-se aos que o cercam:- Há quatro semanas apenas eu assinei um contrato com Mauler. Ele queria me vender a sua parte, por dez milhões de dólares. Isso representava um terço do total das ações. Desde aquele dia, eu acabo de saber, ele vem realizando secretamente vultosas vendas de gado a preços baixos e provocou a queda das cotações que, de toda a maneira, já vinham caindo. Ele poderia exigir seu dinheiro quando quisesse, estava acordado. Eu me propunha pagar-lhe vendendo uma parte das ações dele mesmo, que estavam valorizadas, e ficando com as outras. Veio a baixa. Hoje os papéis de Mauler não valem mais dez, mas três milhões, e o conjunto das fábricas vale dez, ao invés de trinta. Esses dez milhões são exatamente a soma que devo a Mauler – e ele a exige em vinte e quatro horas. OS FABRICANTES: Quando ages assim com Cridle, E exiges dele o pagamento sem demora, É bom que ele seja nosso adversário, Mas somos atingidos pelo que lhe acontece. Foste tu mesmo quem provocou o marasmo! Nossas latas agora não saem mais caro Que a areia dos mares. Pois tu liquidaste, Para acabar com Lennox, a preço vil, todo teu estoque. MAULER: E por que matastes tanto gado? Açougueiros alucinados sois vós! Agora, eu quero o meu dinheiro.
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Mesmo que tivésseis todos que mendigar, Eu quero meu dinheiro, pois tenho outros projetos. OS CRIADORES: Lennox já caiu! E Cridle balança! E Mauler, ele retira o seu dinheiro! OS FABRICANTES: Oitenta mil latas a cinqüenta, mas rápido! OS COMPRADORES - Nenhuma sequer! Silêncio. Ouvem-se os tambores dos Chapéus Negros e a voz de Joana. JOANA - Pierpoint Mauler! Onde está Mauler? MAULER: O que é esse barulho de tambores que de súbito me envolve? E quem chama pelo meu nome Nesse lugar, onde cada um revela Sua boca desnuda, suja de sangue? Joana e Marta avançam e cantam o seu hino de guerra. OS CHAPÉUS NEGROS cantando: Escutem todos, escutem bem! Um homem afunda sob os nossos olhos! Escutamos lá no fundo seu apelo por salvação, Uma mulher nos faz sinais de aflição. Parem os carros, detenham todo o tráfego Em torno de vós os seres naufragam, E ninguém se preocupa Não tendes, então, olhos para ver? Ele é vosso irmão, seja quem for! Levantai o nariz de vosso prato. Haveis então esquecido Os que esperam diante da porta E que esperam, para comer? Pensai convosco mesmo: sempre será assim, Nesse mundo sempre reinará a injustiça. E nós dizemos: é preciso ir sempre adiante, Com o único objetivo de ajudar o próximo. Fazer avançar os tanques e os canhões,
Lançar ao mar os navios de guerra E nos ares, os aviões Para conquistar o pão dos pobres. Os que nos escutam, Não esperem o amanhã! Cada um deve nos ajudar. Pois os bons nesse mundo Não formam um grande exército. Avante! Ao assalto! Empunhem os fuzis! Diante de nossos olhos os homens naufragam, E ninguém se preocupa. Durante esse período a batalha na bolsa continua. Uma explosão de gargalhadas toma a frente da cena, acompanhada de exclamações. OS FABRICANTES: Oitenta e sete mil latas pela metade do preço, mas rápido! OS COMPRADORES - Nenhuma sequer! OS FABRICANTES – Então, Mauler, nós estamos perdidos! JOANA – Onde está Mauler? MAULER: Slift, não saia! Graham, Meyers, fiquem diante de mim. Eu não quero que me vejam aqui. OS CRIADORES: Impossível vender um boi em Chicago, Para Illinois esse dia é um desastre! Vocês fizeram os preços subirem. E, com isso, Estimularam-nos a criar bois, Ei-nos aqui, com nossos bois Que hoje ninguém mais quer. És tu, Mauler, seu cão, o responsável Por esta catástrofe. MAULER: Por hoje basta. Não falemos mais de negócios. Ei, Graham, meu chapéu, pois preciso partir. Meu chapéu, cem dólares pelo meu chapéu.
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– Maldito sejas! Cridle sai. JOANA, atrás de mauler – Fique senhor Mauler, e escute o que eu tenho a lhe dizer. Silêncio! Não lhes agrada muito, eu bem sei, ver surgir a nós, os Chapéus Negros, nesses lugares sombrios e secretos onde os senhores tratam de seu comércio. Já me disseram o que os senhores fazem: manobras, engodos e combinações para aumentar o preço da carne. Mas se os senhores acreditaram que seus procedimentos permaneceriam ignorados, tanto hoje quanto no dia do juízo final, os senhores se enganaram. Se os senhores continuarem tergiversando, buscando desculpas, como fazem em seus jornais, então em suas costas os bois começarão a mugir contra os senhores, e diante de Deus TodoPoderoso, seus mugidos serão testemunhos. Risos OS CRIADORES – Nós criadores não encontramos nestas palavras motivo para o riso. Inverno e verão nós dependemos do tempo: nós também estamos mais próximos do Deus de nossos pais do que os senhores. JOANA – Um homem de negócios também pode ser um bandido – dependendo do ponto de vista. Mas nós lhes dissemos que é um imbecil. E os senhores, que fazem subir o preço do pão e que fazem da vida um inferno onde os homens viram demônios, são todos uns imbecis, pobres e deploráveis imbecis, nada além disso. COMPRADOR, gritando: Por vossa especulação desenfreada, Vossa imunda cobiça, Causais vossa própria queda! Bando de imbecis! OS FABRICANTES, replicando: Imbecis são vocês! Ninguém pode nada contra as crises! Bem acima de nós, destinos inelutáveis, Traçam essas desconhecidas, as leis econômicas. As crises são catástrofes naturais, Cujo ciclo pavoroso sempre recomeça. CRIDLE
OS CRIADORES:
Como? Somos asfixiados e ninguém pode fazer nada? A causa de nossos males é a imoralidade De vossas armações escusas. JOANA – E qual a causa desta imoralidade no mundo? Poderia ser diferente? Se cada um é obrigado a rachar com um machado a cabeça de seu próximo para fazê-lo ceder seu pequeno pedaço de presunto e sua migalha de pão, como não seriam os valores mais elevados esmagados em seu coração? Sempre ouço dizer, Senhores, que os pobres não têm muita moral, e é verdade. Nos baixios, nas favelas, é lá que mora a imoralidade no estado puro e, em conseqüência, a Revolução. Mas então eu lhes pergunto: de onde tirariam eles alguma moralidade, eles que nada têm? Senhores, existe também um poder de compra moral: o dinheiro, o salário. Aumentem-no, tereis a moralidade. Se continuarem a agir assim, acabarão tendo de comer sozinhos a carne que produzem, pois os que estão lá fora já não têm como comprar. OS CRIADORES, em tom de reprovação Aqui estamos com nossos bois Que hoje em dia ninguém quer. JOANA – Mas os senhores, todo-poderosos, que sentam nesse palácio, imaginando que não virão à tona suas manobras, nada querem saber da miséria que existe fora deste recinto, aí pelo mundo. Reparem então nestas gentes, a quem os senhores transformaram no que são, e a quem não querem reconhecer como irmãos; vocês, que se dobram sob o fardo de suas penas, avancem à luz do dia. Não tenham vergonha. Joana mostra aos negociantes os pobres (Luckerniddle e Gloomb) que ela trouxe, MAULER, gritando – Afastem-nos! Ele desmaia. UMA VOZ, ao fundo – Pierpoint Mauler passou mal. OS POBRES – Ele é o responsável por tudo! Os fabricantes de conservas correm para socorrer Mauler. OS FABRICANTES: Água para Pierpoint Mauler!
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Um médico para Mauler! JOANA: Mauler, vós me mostrastes a imoralidade deles, Eu vos mostro agora a pobreza dos pobres. Eles, que mantendes longe de vós, E lá, afastados dos bens indispensáveis, Invisíveis para vós, e por vós mantidos Nesta pobreza, estão tão enfraquecidos, A tal ponto dependentes de alguma comida E de um pouco de calor, para eles inacessíveis, Que viver assim pode mesmo afastá-los Da necessidade de um ideal, e reduzi-los À voracidade, ao instinto animal. MAULER, voltando a si – Eles ainda estão aí? Eu suplico que os afastem. OS FABRICANTES – Quem? Os Chapéus Negros? Quer que eles saiam? MAULER – Não, eles não. Os que estão atrás. SLIFT – Ele não abrirá os olhos enquanto não os fizerem sair. CRAHAM: Então! Não podes vê-los? No entanto foste tu, Tu quem os reduziu à tamanha miséria. E não basta que cerres as pálpebras Para que eles desapareçam. MAULER: Afastem-nos, vos rogo, eu compro! Escutai todos: Pierpoint Mauler compra! Que estas gentes tenham trabalho e que se afastem. Compro, eu, Mauler, tudo o que em oito semanas conseguirdes [fabricar. OS FABRICANTES – Ele comprou! Mauler comprou! MAULER – Ao preço do dia! CRAHAM, levantando-lhe a cabeça – E os estoques? MAULER, deitado no chão – Eu compro. CRAHAM – A cinqüenta? MAULER – A cinqüenta!
CRAHAM:
Ele comprou tudo! Vocês ouviram: Comprou tudo! CORRETOR, ao fundo, gritando em um megafone – Pierpoint Mauler reanima o mercado da carne. Torna-se comprador, ao preço do dia, de todos os estoques do cartel. Além disso, assume compromisso sobre a produção de dois meses, a contar de hoje, também ao preço de cinqüenta. O cartel entregará a Pierpoint Mauler, em 15 de novembro, pelo menos cinqüenta mil toneladas de conservas. MAULER – Agora, meus amigos, levantai-me, por favor. Eles o levantam. JOANA: É isso, levai-o agora. Nós, qual burros de carga, cumprimos nosso trabalho de [missionários, E vós, aí em cima, o que fazeis? Vós me ordenastes não dizer uma palavra, Mas quem sois vós, então Para querer fechar a boca do Bom Deus? Não se deve calar a boca de ninguém, Nem mesmo do boi que esmaga espigas com seu casco! Em todo o caso, eu vou falar. Aos pobres: Segunda-feira vocês terão novamente trabalho. OS POBRES – Gente como essa, nós nunca tínhamos visto. Mas os dois que estavam ao lado dele, como eles sim, nós conhecemos. Eles parecem bem piores. JOANA – E agora, antes de partirmos, cantemos: “Nunca faltará o pão...” OS CHAPÉUS NEGROS cantando: Nunca faltará o pão Ao que dedica a Deus sua alma. Quem em seu seio habita Jamais será infeliz. No seio de Deus não há frio, E fome nunca se passa.
20 OS COMPRADORES:
Este homem está ruim da cabeça. O estômago do país, saturado de conservas, Recusa-se a engolir mais. E ele faz meter carne em latas Que ninguém comprará. Podem esquecer seu nome. OS CRIADORES: Agora os preços subirão, açougueiros infames! Enquanto vocês não dobrarem o preço do gado Não entregaremos um só grama de carne, E vocês precisam dela. OS FABRICANTES: Podem guardar sua carniça podre! Não estamos interessados em comprar, Pois o contrato que acabam de ver firmado É apenas um pedaço de papel. O homem que o assinou não estava em seu juízo. Para tal negócio, ele não encontrará Um centavo, nenhum, de São Francisco a Nova Iorque. Os fabricantes de conserva saem. JOANA – Todos aqueles que se interessam realmente pela palavra de Deus e que querem saber o que ele diz e não apenas a cotação da Bolsa podem vir domingo à tarde assistir nosso ofício, na Rua Lincoln, às duas horas. Música a partir das 3 horas, entrada gratuita. SLIFT, ao criador: O que Mauler promete, Ele cumpre. Agora os senhores podem respirar. Nesse momento o mercado recobra a saúde. Aqueles que dão o pão, aqueles que o recebem, Escutem: saímos, enfim do ponto morto! Confiança e concórdia estavam fortemente abaladas, Os patrões vão reabrir, os operários entrarão. Sábia decisão, sabiamente acatada, Contra a desrazão, a sabedoria triunfa.
As fábricas reabrem e as chaminés fumegam! Pois efetivamente é de trabalho, não é, Que carecem tanto uns como os outros? CRIADOR, dirigindo-se à Joana Aquilo que disseste e tua intervenção Causou-nos forte impressão. Muitos criadores se transtornaram, pois nós também, Nós estamos sob uma miséria atroz. JOANA: Saibam todos: estou de olhos em Mauler. Sua consciência já despertou. Se estiverem muito necessitados, Venham comigo procurá-lo Para que ele os tire do embaraço. Não o deixaremos descansar Enquanto um homem precisar de ajuda; Pois ele pode vir em auxílio. É preciso, então, cutucá-lo. Joana e os Chapéus Negros saem, seguidos dos criadores. VI A Captura dos grilos NA CIDADE CASA DO CORRETOR SULLIVAN SLIFT, PEQUENO IMÓVEL COM DUAS SAÍDAS MAULER,
dentro da casa, discute com Slift – Fecha a porta, liga as luzes e agora repara em mim, Slift, e diga se realmente todos podem ler em meu rosto? SLIFT – Ler o quê? MAULER – Ora! A minha profissão! SLIFT – Teu ofício de açougueiro? Diga-me, Mauler, por que te impressionas com os discursos dela? MAULER:
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O que ela disse? Eu não ouvi nada. Por trás havia rostos selvagens, Máscaras da aflição, de onde se eleva uma cólera Que nos varrerá a todos, Tão forte, que mais não vi. Agora, meu caro Slift, irei confessar-te Minha verdadeira opinião sobre nossos negócios: Comprar, vender e lutar sem parar, Esfolarmos uns aos outros friamente, Esquecer todo o resto... Isso não pode mais perdurar. A urrar de aflição, eles são muito numerosos, Seu número aumenta a cada dia. Para estes que caem em nossos porões sangrentos, Não há mais consolo; Se nos apanharem um dia, lançar-nos-ão Ao chão como um peixe podre. Nós que aqui estamos, Não conheceremos a morte em nossas camas. Para limpar esse mundo, Seremos colados ao muro, um após o outro, Nós e nossa corja. SLIFT – O discurso deles te perturbou. (À parte:) Farei com que ele coma um filé muito mal passado. É sua antiga fraqueza que retorna. Talvez depois de comer carne crua ele retome seus instintos. Ele se afasta e começa a grelhar um bife no fogão. MAULER: Sempre me pergunto por que essas tolices me afetam: Discursos plenos de utopias, Fórmulas tomadas ao coração, Tagarelice vazia e fácil... Certamente porque essa gente trabalha a troco de nada, E dezoito horas por dia, Sob a chuva e de barriga vazia. SLIFT:
Em cidades como as nossas, Onde o fogo arde embaixo Enquanto congela-se em cima, Há sempre boquirrotos que acham Que as coisas não andam como deveriam. MAULER: Mas que dizem eles? Essas cidades São um braseiro jamais extinto Onde, qual onda, retorna, urrando, a humanidade; E quando da onda emana uma voz Que nada tem de bestial, por mais louca que seja, Então creio sentir Como um peixe aprisionado entre duas águas Pauladas na espinha... Não, Slift. Tudo isso são ainda meras desculpas O que temo não é Deus, É outra coisa. SLIFT – E o que é, então? MAULER: O que vive abaixo e não acima De mim! Esses seres reunidos nos matadouros, Que não sabem como passarão a noite mas, no entanto, Levantar-se-ão com a aurora e por-se-ão em marcha. SLIFT – Não queres comer um pouco de carne, caro Pierpoint? Pense que agora podes fazê-lo sem peso na consciência, pois desde essa manhã tu nada tens a ver com a morte dos bois. MAULER: Tu crês que eu deveria? Eu poderia, talvez. Eu deveria podê-lo de novo, não é? SLIFT – Come. E pense em tua situação: ela não é muito boa. Sabias que tu compraste hoje tudo aquilo que pode ser colocado dentro de uma lata de alumínio? Meu caro Mauler, vejo-te mergulhado na contemplação de teu ser grandioso, mas permita que eu te exponha simplesmente a situação, por mais externa e sem importância que ela seja.
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Primeiro compraste ao Cartel um estoque de vinte mil toneladas de conservas. Nas semanas vindouras, deverás escoá-lo em um mercado que já não consegue absorver uma única lata. Tu as compraste a cinqüenta mas, na melhor hipótese, os preços cairão a trinta. Em quinze de novembro, quando os preços estiverem em trinta, ou a vinte e cinco, o Cartel te entregará mais cinqüenta mil toneladas a cinqüenta. MAULER: Oh! Slift, eu estou perdido! Esse é o meu fim. Sim, eu comprei! O que eu fiz! Coloquei sobre minhas costas toda a carne desse mundo! Trôpego, qual Atlas, Sob o fardo de toneladas de latas de alumínio, Cairei, esmagado, sob os arcos de alguma ponte. Ainda pela manhã, muitos de meus concorrentes balançavam, Eu fui vê-los cair, rir-me deles, dizer-lhes Que ninguém era louco o suficiente Para comprar carne em conserva. E uma vez lá, eu me escutei dizer: “Eu compro tudo”. Ah, Slift, eu comprei, eu estou perdido. SLIFT – E o que escreveram, então, teus amigos de Nova Iorque? MAULER – Que eu devo comprar carne. SLIFT – Tu deves fazer o que? MAULER – Comprar carne. SLIFT – E por que reclamas de ter comprado? MAULER – Sim, eles me escrevem para comprar. SLIFT – E tu compraste! MAULER: Oh, sim! Eu comprei carne, é verdade. Mas não foi por causa da carta. Estão erradas, de resto, essas teorias de gabinete... Não, eu não agi por razões vis. Mas esta mulher comoveu-me a tal ponto Que mal lancei os olhos, eu te juro,
Na carta que recebi de Nova Iorque essa manhã. Aqui está: “Caro Pierpoint...” SLIFT, continuando a leitura - “Estamos em condições, hoje, de anunciar-te que nosso dinheiro começa a render seus frutos: muitos são aqueles que, na Câmara, votarão contra as tarifas aduaneiras. Parece, assim, indicado, caro Pierpoint, comprar carne. Receberás, amanhã, mais notícias. MAULER: Corromper assim, É coisa que também não se deveria fazer. Facilmente nascem guerras À custa de tais atitudes. Milhares de homens sangram Por causa deste imundo dinheiro. Ah! Meu caro Slift, eu tenho a impressão De que nada de bom sairá daí. SLIFT: Tudo depende de quem escreve a carta. Corromper ou abolir as tarifas, Ou desencadear guerras, Não é qualquer um que pode. Essas pessoas são gente de bem? MAULER – É gente com liquidez. SLIFT – Quem são, então? Mauler sorri. Então pode ser que, apesar de tudo, os preços Subam? E nós acabaríamos, acredito, escapando bem. Essa seria uma saída. Mas ainda há a carne Que no mercado liquidarão cem criadores Muito ávidos. Os preços baixarão novamente. Realmente eu não vejo sentido nesta carta. MAULER: Tu compreenderás. Escuta: X comete um roubo, mas Y o surpreende, O ladrão está perdido, a não ser que golpeie Y Se ele golpear, safa-se.
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Da mesma maneira a carta – que está errada – Requer – para acertar – um crime desta ordem. SLIFT – Qual crime? MAULER: Um crime que eu não poderia cometer. Pois, a partir de hoje, quero paz em minh’alma. Que eles tirem, então, de seus delitos, grandes lucros! É verdade que o ganho seria apreciável; A operação é simples: seria preciso comprar Todo o gado que se encontrasse em pé, Persuadir os criadores da oferta excessiva, Lembrá-los de Lennox, das fábricas paradas, E comprar-lhes tudo. Isto é o principal: Sumir com o gado. Mas então, é verdade, Os enganados serão os criadores. Não, eu não quero meter o dedo neste negócio. SLIFT – Não deverias ter comprado, Pierpoint! MAULER: Ah! É verdade, Slift, não foi bom. Eu não compro mais nada, nem chapéu nem sapatos, Antes de ter saído dessa, Feliz se, no fim, tiver cem dólares no bolso. Retumbar de tambores. Joana entra acompanhada dos criadores. JOANA – Nós o faremos sair de sua toca, como quem captura um grilo. Vão para lá, para o outro lado. Quando ele me ouvir cantar aqui, tentará sair pela outra porta, para evitar me encontrar. Ele não gosta muito de me ver. (Ela ri.). Nem a mim nem aos que me acompanham. (Os criadores colocam-se diante da porta da direita. Joana diante da porta da esquerda.) Saia, Senhor Mauler, é preciso que eu lhe fale da miséria dos criadores de Illinois. Também trouxe alguns trabalhadores que adorariam perguntar-lhe quando o senhor reabrirá a sua fábrica. MAULER – A outra saída onde é, Slift? Não quero reencontrá-la e, sobretudo, àquela gente que está com ela. E por agora também não penso em reabrir a fábrica. SLIFT – Por aqui.
No interior da casa, ele se dirige à porta da direita. OS CRIADORES, diante da porta da direita – Sai, Mauler. Tu és o responsável por nossa desgraça. E nós somos, em todo o Illinois, mais de dez mil criadores que não sabem mais a qual santo rezar. Compra então o nosso gado! MAULER: Fecha a porta, Slift, eu não comprarei! Eu que já carrego toda a carne desse mundo, Toda a carne posta em conserva até hoje, Devo comprar ainda todo o gado de Sírius? É como se alguém viesse dizer a Atlas Que não mais agüenta, dobrando-se sob o peso da terra: Saturno também precisa de apoio... Quem me comprará, depois, todo esse gado? SLIFT – Vejo apenas Graham, que precisa bastante. JOANA, diante da porta da esquerda – Enquanto os criadores não forem ajudados, não sairemos daqui! MAULER – Tu dizes Graham? É verdade que ele precisa de gado? Saia, Slift, e diga-lhes que quero refletir dois minutos. Slift sai. SLIFT, aos criadores – Pierpoint Mauler está examinando vosso pedido. Ele pede-vos dois minutos de reflexão. Slift volta. MAULER – Eu não compro. (Ele calcula.) Slift, eu compro. Slift tragame tudo o que se pareça, de perto ou de longe, com um porco ou com um boi; e tudo o que cheire à banha eu compro também. Traga-me até a menor mancha de gordura, eu estou comprando e compro ao preço do dia, a cinqüenta. SLIFT
Tu que não querias mais comprar um chapéu, Vais comprar todo o gado de Illinois. MAULER: É verdade, eu vou comprar. Agora, Slift, minha decisão está tomada. Eu fiz “A”. Ele desenha um “A” na porta de um armário.
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Dominado por seus sentimentos, Alguém se equivoca: “A” é um erro. Em seguida comete “B”, tão errado quanto “A”. E eis que “A” e “B” tomados juntos, dão certo. Faça entrar os fazendeiros, que são gente de bem, Trabalham duro e vestem-se decentemente. Eles não são como os outros. Que dão medo de olhar. SLIFT, sai e se dirige aos criadores – Para salvar Illinois e impedir a ruína dos fazendeiros e criadores, Pierpoint Mauler resolveu comprar todo o gado que se encontrar no mercado. Mas seu nome não deve ser mencionado, não é preciso que as vendas sejam feitas em seu nome. OS CRIADORES – Viva Pierpoint Mauler, salvador do comércio! Eles entram na casa. JOANA, grita a eles – Digam ao senhor Mauler que os Chapéus Negros lhe agradecem, em nome de Deus, pelo que acaba de fazer. (Aos operários:) Quando os que compram gado e os que o vendem se acertarem, para vocês também haverá pão novamente. VII Os mercadores são expulsos do templo TEMPLO DOS CHAPÉUS NEGROS Sentados em uma longa mesa, os Chapéus Negros esvaziam suas latas de ferro e contam ao óbolos das viúvas e dos órfãos. OS CHAPÉUS NEGROS cantando: Recolham cantando Os trocados dos órfãos E os trocados das viúvas. Suas misérias são grandes, Eles não têm teto, Eles não têm pão, Mas Deus todo poderoso
Achará os meios de alimentá-los! BISPA SNYDER, Comandante dos Chapéus Negros, se levantando – Que mixaria! Que mixaria! (Dirigindo-se a alguns pobres, ao fundo, entre os quais dona Luckerniddle e Gloomb:) Vocês de novo? Vocês passam a vida aqui? O trabalho voltou nos matadouros! DONA LUCKERNIDDLE – Onde? Os matadouros estão fechados. GLOOMB – No começo falaram em reabri-los, mas não fizeram nada. BISPA SNYDER – Não se aproximem muito da caixa! Ele fez sinal para que eles recuem até o fundo. Entra dona Mulberry, proprietária do imóvel. DONA MULBERRY – E meu aluguel, o que foi feito dele? BISPA SNYDER – Meus caros Chapéus Negros, minha cara dona Mulberry, caros ouvintes! Para resolver o delicado problema do financiamento nós até agora apelamos aos pobres e aos mais pobres. Infelizmente, acabamos constatando que esses segmentos demonstraram, frente a Deus, uma avareza completamente inexplicável. Talvez isso tenha a ver com o fato de que eles não possuem nada. Assim eu decidi, convidar em vosso nome as pessoas ricas e bem colocadas de Chicago; que eles nos ajudem a desferir, sábado próximo, um grande golpe no ateísmo e no materialismo que reinam nesta cidade, sobretudo nas camadas inferiores da população. O dinheiro nos permitirá também pagar à nossa querida proprietária, dona Mulberry, o aluguel que ela tão gentilmente tem adiado. DONA MULBERRY – O que me agradaria muito, mas por enquanto não se preocupem. Ela sai. BISPA SNYDER – Agora, que cada um volte alegremente às suas funções, e, sobretudo, não se esqueçam de varrer a escada. (Os Chapéus Negros saem. Aos pobres:) Digam-me, os dispensados esperam ainda pacientemente na porta dos matadouros ou já começam a dar discursos revolucionários? DONA LUCKERNIDDLE – Desde ontem gritam bastante, pois eles sabem que as fábricas receberam encomendas. GLOOMB – Muitos já dizem que se não empregarem a violência não haverá trabalho para todos tão cedo.
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– Isso nos é favorável. Se vierem para cá tocados a pedradas, os reis da carne nos escutarão mais facilmente. (Aos pobres:) Vocês não poderiam ao menos cortar lenha para nós? OS POBRES – Não há mais lenha, senhora bispa. Entram os fabricantes de conservas: Cridle, Graham, Slift, Meyers. MEYERS – Eu me pergunto, Graham, onde poderia estar todo o gado! GRAHAM – É o que eu me pergunto também: onde poderia estar? SLIFT – Eu me coloco a mesma questão. GRAHAM – Até tu? E Mauler também, sem dúvida? SLIFT – Sem dúvida. BISPA SNYDER
MEYERS
Há um cretino que razia o gado E que sabe bem que estamos comprometidos A entregar carne enlatada E que, portanto, precisamos do gado. SLIFT – Quem poderia ser? GRAHAM, dando-lhe um soco na boca do estômago: Velho cão imundo! Vamos, não enrole, e vá dizer ao Pepê Que afrouxe o laço. É nosso nervo vital! SLIFT, a Snyder – O que querem de nós? GRAHAM, novo soco – Que tu achas que eles querem, Slift? (Slift simula um ar astucioso e exagera na mímica do ato de dar dinheiro). Na mosca, Slift! MEYERS, a Snyder – Desembuche! Eles se sentam no banco dos fiéis. BISPA SNYDER, no púlpito – Nós, os Chapéus Negros, ouvimos dizer que há nos matadouros cinqüenta mil pessoas sem trabalho. E que alguns entre eles começam a resmungar e a dizer: devemos nós mesmos cuidar do negócio. E já citam vossos nomes, afirmando que sois vós os responsáveis pelo desemprego! Em breve eles dirão: queremos fazer como os bolcheviques, tomar as fábricas em nossas mãos para que todos possam trabalhar e comer. Porque já começam a dizer por todos os lados que a desgraça não cai do céu como a chuva, mas que ela é provocada por aqueles que dela tiram vantagem. Nós, os Chapéus Negros, diremos a eles que a
desgraça vem como a chuva, sem que ninguém saiba como, que eles estão destinados ao sofrimento, mas que serão, um dia, recompensados por suas penas. OS FABRICANTES – Por que falar em pagamento? BISPA SNYDER – O pagamento do qual falamos é feito após a morte. OS FABRICANTES – E quanto querem pelo serviço? BISPA SNYDER – Oitocentos dólares por mês; precisamos de sopa quente e música animada. Nós também prometeremos a eles que os ricos serão punidos... após a sua morte. (Os fabricantes de conserva caem na gargalhada) E tudo isso por apenas oitocentos dólares por mês! GRAHAM – Não precisas de tanto, minha cara... Quinhentos dólares. BISPA SNYDER – Podemos dar um jeito com setecentos e cinqüenta, mais então... MEYERS – Setecentos e cinqüenta. Já é melhor. Que tal, então, quinhentos? GRAHAM – Quinhentos sim, vocês certamente precisam. (Aos outros) Eles carecem desta quantia. MEYERS, na frente do palco – Então, confesse Slift, são vocês que estão com o gado. SLIFT – Mauler e eu não compramos um centavo sequer de gado, tão certo quanto eu estou aqui. Deus é testemunha. MEYERS, a Snyder – Quinhentos dólares? Isto é muito dinheiro! Quem vai pagar? SLIFT – Ah, sim! Vocês agora terão que achar alguém que faça a doação. MEYERS – O que não será fácil. GRAHAM – Confesse, o Pepê está com o gado. SLIFT, a Snyder – Todos pobretões, Bispa Snyder! Todos riem, menos Snyder. GRAHAM, a Meyers – Essa senhora não tem senso de humor; não gosto disso. SLIFT – O essencial, bispa, é saber de que lado vocês estão! Desse lado da barricada ou do outro? BISPA SNYDER – Os Chapéus Negros, Senhor Slift, estão acima da querela. Do lado de cá, portanto.
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Entra Joana SLIFT – Aí está a nossa Santa Joana da Bolsa de Carnes! OS TRÊS, gritando alto a Joana – Ah, aí estás! Nós não estamos muito contentes contigo! Tu não poderias dizer uma palavrinha de nossa parte à Mauler? Parece que tens sobre ele alguma influência. Dizem que ele come na tua mão. É o seguinte: alguém sumiu com o gado do mercado de uma maneira que somos obrigados a ficar de olho em Mauler. Parece que podes fazê-lo agir ao teu gosto. É preciso que ele libere o gado. Se fizeres isso por nós, pagaremos o aluguel dos Chapéus Negros por quatro anos. JOANA, olhando os pobres; ela está espantada – O que fazem vocês aqui? DONA LUCKERNIDDLE, avançando: As vinte refeições foram comidas! Não te irrites, pois, ao me veres aqui, De bom grado, da tua vista sairia, Mas cruel é a fome: Renasce sempre, mal tendo sido saciada. GLOOMB, avançando: Eu te conheço: tentei te convencer A trabalhar nas serras que me cortaram o braço. Estou pronto, hoje, para fazer pior. JOANA – Por que não trabalham? Não arranjei trabalho para vocês? DONA LUCKERNIDDLE – Onde? Os matadouros estão fechados. GLOOMB - No começo falaram em reabri-los, mas não fizeram nada. JOANA, aos fabricantes: Esses pobres continuam a esperar trabalho? Silêncio dos fabricantes Eu que pensava que eles estavam arranjados! Faz já oito dias que neva nas costas deles. Esta neve os mata, mas também os esconde De todos os olhares, e eu, sem pena também Esqueci o que todos se apressam em esquecer Para rapidamente estar em paz com suas consciências. Basta que alguém diga: está acertado, Para que ninguém mais vá olhar de perto.
Dirigindo-se aos fabricantes: Mauler, entretanto, comprou-vos conservas Por minha solicitação! E não reabristes ainda? OS TRÊS – Está correto. Nós queremos reabrir nossas fábricas. SLIFT – Mas querem antes estrangular os agricultores! OS TRÊS – Como abater gado que não existe? SLIFT – Quando Mauler e eu compramos a carne de vocês, supúnhamos que iriam retomar o trabalho, e que os operários poderiam comprar a carne. Mas agora, quem comerá a carne que nós compramos? E para que nós a compramos, se os consumidores não têm com o que pagar? JOANA – Em vossas gigantescas instalações e vossas fábricas detendes as ferramentas dessa gente: deveríeis ao menos permitir que eles as usassem, senão ficam imobilizados, e nessa atitude há alguma coisa que parece exploração. Se essas pobres criaturas, que haveis atormentado ao extremo, empunharem um porrete para bater em vossas cabeça, vós então vos borrareis todos, e a religião vos parecerá de novo algo de muito bom, própria para jogar água na fervura. Mas o Bom Deus tem uma opinião muito elevada de Si mesmo para ser sempre a vossa babá para todo o serviço e para vir limpar vossas cavalariças. E eu, indo de um lado a outro, dizendo-me: ajudando aos de cima, ajudo também aos de baixo. É preciso ser muito tonta! Na verdade, qualquer um que queira ajudar aos pobres deve ajudá-los a protegerem-se de vós. Haveis perdido então todo o respeito pelo que se parece humano? E ousais anda vir à casa de Deus porque possuem o vil metal? Sabe-se bem de onde haveis tirado esse ouro e como o haveis adquirido. Saí, e rápido, senão lançar-me-ei sobre vós e golpeá-los-ei a cabeça. Não me detenham, eu sei o que faço, perdi demasiado tempo até sabêlo. (Joana sai atrás deles com o mastro de uma bandeira, que ela usa como se fosse um porrete. Os Chapéus negros aparecem na porta.) Saí! Quereis transformar a casa de Deus em um estábulo! Saí! Nada tendes a fazer aqui! Cabeças como as vossas, nós não queremos mais ver. Sois indignos e eu vos expulso! Apesar de vosso dinheiro!
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– Está bem! Mas conosco, modestamente, na ponta dos pés, vão-se irrevogavelmente quarenta meses de aluguel. De qualquer maneira, não temos mais um centavo. Nós iremos viver dias terríveis, como jamais viu antes o mercado do gado! Saída dos fabricantes de conservas. BISPA SNYDER, correndo sai atrás deles – Fiquem senhores, não se vão, ela não representa ninguém, não tem nenhum mandato! É apenas uma mulher que perdeu a razão! Ela está despedida! Ela fará pelos senhores tudo o que desejarem. JOANA, aos Chapéus Negros – O que acabo de fazer certamente foi pouco habilidoso. Por causa do aluguel. Mas como deixar-se levar por isso? (À dona Luckerniddle e a Gloomb:) Sentem-se lá no fundo, eu lhes trarei a sopa. BISPA SNYDER, de volta Convida a tua casa, esses pobres, Serve-lhes água de chuva e belas palavras Pois do céu não lhes vem mais do que neve E não misericórdia! A humildade, ah, tu a ignoras E cedes a teus impulsos! É mesmo muito fácil Caçar esses impuros com um gesto cheio de orgulho. Quanto ao pão que precisamos comer, Fazes-te de difícil e és muito curiosa Para saber como é feito. Queres, entretanto, comê-lo também! Vá-te então, agora, Tu que planas mais alto que as questões terrenas! Parta sob a chuva, no coração da tormenta, Vá sob a neve e continue intransigente! JOANA – Quer dizer que devo tirar meu uniforme? BISPA SNYDER – Tira o uniforme e arruma tua bagagem! Sai desta casa e livra-nos da escória que arrebanhaste; pois esses que te seguem não são mais do que escória e refugo. Doravante farás parte dela. Anda cuidar de tua vida. OS TRÊS
Joana sai; ela retorna vestida como uma jovem camponesa. Ela carrega uma mala pequena. JOANA
Irei ver o rico Mauler, Homem de boa fé e destemido. Eu pedirei sua ajuda. Eu não desejo Colocar novamente o chapéu e o uniforme negro, Nem outra vez cruzar o limiar dessa querida casa, Povoada de cânticos e palavras que despertam, Enquanto não tiver feito de Mauler um dos nossos, Trazendo-vos totalmente convertido. Mesmo que o dinheiro os carcoma como um câncer Devorando o que seu resto tem de humano, Mesmo que ele os torne surdos, fracos, prisioneiros Em uma torre de marfim, onde não escutam mais Os pedidos de salvação do resto dos humanos, É mister que haja um Justo entre eles! Ela sai. BISPA SNYDER: Infeliz ignorante! Como não vês que operários e patrões, Grupos inimigos irreconciliáveis, Enfrentam-se como gigantes? Vá, então, de um ao outro, oferece teus bons préstimos, Mediadora inútil e que cava a própria cova. DONA MULBERRY, entrando — Vocês já arranjaram o dinheiro? BISPA SNYDER – Deus encontrará logo o meio de pagar o abrigo bastante modesto – eu disse modesto, dona Mulberry – que ele encontrou sobre a terra. DONA MULBERRY — Sim, é muito justo que pague, é bem disso que se trata! Falaste a palavra exata! Se o Bom Deus paga, tudo bem. Mas se ele não paga, tudo mal. Se o Bom Deus não paga o seu aluguel, terá de se mudar, e a partir de sábado à noite, está bem, bispa Snyder? Ela sai.
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VIII Discurso de Pierpoint Mauler sobre a absoluta necessidade do capitalismo e da religião ESCRITÓRIO DE MAULER MAULER:
Chegou enfim o dia em que nosso caro Graham, E todos aqueles que como ele, Slift, queriam esperar Que o preço do gado caísse o mais baixo possível, Serão obrigados a comprar a carne Que devem nos entregar. SLIFT; Terão de pagar mais caro. Neste mercado de Chicago Todos os bois que se escutam mugir São nossos bois, e cada porco Que eles precisam nos entregar, Eles precisam comprar de nós, E na nossa mão é mais caro. MAULER: Agora, Slift, dá rédea solta a teus corretores! Deixa-os correr o mercado, Em busca de animais que, de perto ou de longe, Assemelhem-se a bois ou porcos. E os preços Subirão ainda mais. SLIFT: E tua Joana? Algo de novo? Um boato corre na bolsa: dizem Que te deitaste com ela. Eu desmenti. Desde Que ela nos expulsou do Templo, Não se fala mais dela. Dir-se-ia Que Chicago a engoliu Em sua negra e ruidosa bruma.
MAULER:
Gostei muito de vê-la expulsá-los do Templo. Ela não tem medo de nada, realmente. A mim também Teria expulsado, se eu estivesse lá. Gosto nela deste traço, e de que, em sua casa, Não se possa aceitar gente da minha laia. Faça subir, meu caro Slift, os preços a oitenta, Graham e companhia ficarão então parecidos À lama, onde enfiaremos o pé Unicamente para ver a marca que deixa. Não pretendo soltar um só grama de carne A fim de arrancar-lhes mesmo a pele desta vez: É a minha natureza quem exige. SLIFT: Estou feliz, Mauler, que tu tenhas superado Teus recentes acessos de fraqueza. Vou ver como eles compram. Ele sai. MAULER: Seria preciso esfolar esta cidade maldita E ensinar-lhes o seu ofício A essa gente, desta vez, Deixar que gritem: “É um crime!” Entra Joana, carregando uma mala. JOANA – Bom dia, senhor Mauler. Não é fácil encontrá-lo. Deixo minhas coisas nesse canto, por um momento. É que eu não estou mais com os Chapéus Negros. Houve discrepâncias entre nós. Então eu disse a mim mesma: vá dar uma olhada no que se passa com o senhor Mauler. Agora que não tenho mais o trabalho fatigante da missão, posso me interessar mais por cada homem em particular. É um belo sofá que o senhor tem aqui, mas por que o lençol em cima, e que nem mesmo está dobrado direito? Diga-me: o senhor dorme aqui mesmo, no seu escritório? Sempre achei que o senhor devia possuir um dos grandes palácios de Chicago (Mauler se cala). Mas o senhor tem razão, senhor Mauler, de ser cuidadoso, mesmo nas pequenas coisa. Mas o senhor, Senhor
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Mauler, tenho boas esperanças de que sua consciência esteja em paz nesse momento! MAULER – Então não estás mais com os Chapéus Negros? JOANA – Não, senhor Mauler, não faço mais parte. MAULER – E do que tens vivido? (Silêncio de Joana) De nada, é claro. Há quanto tempo não estás mais com os Chapéus Negros? JOANA – Oito dias. Mauler vai até o fundo do palco e chora. MAULER: Tão mudada! Apenas oito dias! Onde ela esteve? O que ela viu? E por que essas rugas em torno dos lábios? Esta cidade de onde ela saiu, Eu não conheço. Ele traz comida a ela em uma bandeja. Eu te encontro bastante mudada. Toma, eu não comerei. Queres? Joana observa a comida. JOANA – Senhor Mauler, quando nós expulsamos os ricos de nosso templo... MAULER – ... o que me agradou muito e me pareceu justo... JOANA – ... a proprietária, que vive do aluguel, nos deu prazo só até o próximo domingo. MAULER – Ah! E agora os Chapéus Negros estão em uma situação financeira difícil? JOANA – Sim. E foi por isso que eu me disse: irei ver o senhor Mauler. Ela começa a comer avidamente. MAULER – Não te inquietes. Eu irei à Bolsa encontrar o dinheiro que lhes falta. Uma vez mais, sim, eu buscarei o dinheiro a qualquer preço. Mesmo que deva cortar na carne, arrancar a pele desta cidade. É por ti que o faço. O dinheiro, é lógico, está caro. Mas eu o encontrarei. Estás de acordo? JOANA – Sim, senhor Mauler. MAULER – Vá dizer-lhes que o dinheiro está chegando. Daqui até sábado. É Mauler quem vai dá-lo. Vou agora mesmo à Bolsa para
procurar o dinheiro. Nesta história dos cinqüenta mil trabalhadores, a coisa não andou, não como eu queria. Não pude dar-lhes trabalho rapidamente. Mas contigo não será assim, e aos Chapéus Negros é preciso auxiliar; o dinheiro para vocês eu terei. Corra, vá dizer-lhes isso. JOANA – Sim, senhor Mauler! MAULER
Tome. Aqui está por escrito. Eu também, eu lamento Que o trabalho ainda demore nos matadouros, Um trabalho ruim, ainda por cima. Eles são cinqüenta mil Que permanecem lá, de pé, naqueles pátios imensos, E que, mesmo à noite, não querem partir. Joana pára de comer. Mas nesse negócio, ser ou não ser, Eis o desafio. Trata-se de saber Se eu serei o melhor de minha classe Ou se tomarei eu mesmo, na minha vez, O escuro caminho que leva aos matadouros. Eu confesso cruamente, Teria adorado ouvir-te dizer Que o que eu faço está bem, Que meu comércio não é antinatural. Confirme que foi por teus conselhos Que eu, aos fabricantes, encomendei a carne, Assim como aos criadores, e que agi bem. E como eu sei que sois pobres E que querem privar-vos Do teto que vos abriga, Eu quero dar-vos alguma coisa Para provar-vos a bondade de meu coração. JOANA – Os operários continuam esperando nos matadouros? MAULER
Por que és contra o dinheiro? E por que então, Quando não o tens, muda logo a tua cara?
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O que pensas tu do dinheiro, Quero saber, diga-me. Não enchas a cabeça de falsas idéias, Como esses bobos para os quais o dinheiro Tem não sei qual problema. Mas pensa na realidade, Na banal verdade, Pouco agradável, eu concordo, Mas mesmo assim verdade: Sobre a terra nada há de sólido, É à sorte, ou quase, sob chuva e frio, Que o gênero humano está entregue. O dinheiro é um meio De melhorar um pouco a vida, Ao menos a vida de alguns. Olha também como o mundo é feito! Que edifício! Obra dos homens, Desde que existem sobre a terra, Ainda que dia após dia se precise reconstruir O que dia após dia é destruído. Obra imensa, malgrado os sacrifícios, Tão penosa de construir, E incessantemente construída, sob gemidos. Esse sistema é o único que permite arrancar O que pode ser arrancado dos rigores desse mundo. Pouco ou muito segundo o caso. Eis porque esta obra é sempre defendida Pelos melhores entre os homens. Assim, veja bem, eu que nutro Poucas simpatias pela ordem do mundo, E que, aliás, durmo mal à noite, Se eu quisesse me retirar, Seria como um mosquito Tentando se opor a derrubada de uma montanha. Eu seria varrido, destruído na mesma hora, As coisas não deixariam de seguir o seu curso de antes.
Ou então seria preciso mudar tudo, de cima a baixo, Modificar por inteiro o plano do edifício, Atribuir ao homem um lugar totalmente diferente, Concepção inaudita à qual vós mesmos, sem dúvida, Não desejais, nem nós tampouco: Não seríamos necessários, nem Deus, Que seria suprimido por falta de utilidade. Por isso vós deveis nos ajudar em nossa obra, E se vós não precisais se expor aos sacrifícios, - O que nós não vos exigiremos de nenhuma forma – Devem dizer ao menos que eles são justificados. Em uma palavra é preciso que vós Restabeleçam Deus em sua glória, Fazendo Dele a única salvação; Por Ele batendo os tambores, Para que Ele finque pé nas favelas E para que Sua voz retumbe nos matadouros. Sim, isso será suficiente. Ele alcança o papel a Joana. Apanhe o que te dão, Mas saiba com qual objetivo foi dado! Tome isso! Saiba que representa O aluguel de quatro anos. JOANA
Senhor Mauler, Isso que o senhor falou, Eu não compreendo E nem quero compreender. Ela se levanta. Eu sei, eu deveria estar feliz De ver que alguém vem em ajuda a Deus. Mas eu faço parte daqueles Para quem essa não é uma ajuda, Daqueles a quem ninguém oferece nada. MAULER
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Leva aos Chapéus Negros este dinheiro E poderás ficar com eles. Pois esta vida sem eira nem beira não te serve. Eles fazem muita questão do dinheiro, E isso é muito bom, creia-me.
Terceira descida de Joana às profundezas. A tempestade de neve. 1. BAIRRO DOS MATADOUROS
JOANA
Joana. Perto dela Gloomb e dona Luckerniddle.
Se os Chapéus Negros quiserem o seu dinheiro, Que o aceitem. Mas eu me sentarei Em frente aos matadouros, com aqueles que esperam. Ficarei lá até que as portas sejam reabertas, E nada comerei além do que eles comem. Se for um punhado de neve o que lhes dão, Eu comerei esta neve. E o trabalho deles também, eu quero fazê-lo. Eu também não tenho dinheiro E nem uma maneira de ganhá-lo de outro modo, Pelo menos não honestamente. E se não houver trabalho, Eu serei como eles sem trabalho. E o senhor, que vive da pobreza, Sem poder suportar a visão dos pobres Que os julga sem conhecê-los, Arranjando para não ver esses condenados, Jogados aos matadouros e de tudo ignorantes, No futuro, se o senhor quiser me ver Me verá nos matadouros. Ela sai.
JOANA
MAULER
Esta noite, Mauler, A cada hora, levanta-te. Vai à janela e repara se neva; E se nevar, Saberás que neva sobre ela, Sobre ela que tu conheces. IX
Escutai o que eu sonhei, Há sete dias: Diante de mim, em um pequeno campo, Cercado de todos os lados por enormes edifícios E tão pequeno que a sombra de um arbusto O teria encoberto totalmente, Notei uma massa humana. Quantos eram eles? Eu não sei, Mais numerosos, em todo o caso, do que os pardais Que se poderia colocar em tal lugar. Eles formavam uma massa tão densa, Que o campo inflou-se e uma cascata humana Inteira ficou pendurada em suas elevadas bordas. Ela permaneceu suspensa por um instante, pulsando vida, E então uma palavra, uma palavra sem importância, Que alguém gritou em algum lugar, Fez esta massa começar a fluir. Vi depois cortejos E ruas desconhecidas, e outras familiares, Chicago! Vós também Lá estavam, desfilando; e então eu me vi: À vossa frente, sem uma palavra, com passos guerreiros, Eu marchava, a fronte ensangüentada; Depois eu gritei palavras em tom belicoso Em uma língua para mim mesma desconhecida. Ao mesmo tempo, por toda a parte, afluíam inúmeros cortejos, E eu, silhueta múltipla, marchava à sua frente. Jovem e velha, soluçando e jurando Logo fora de mim! Virtude e terror confundidos!
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Tudo o que eu pisava, modificava, Ocasionando imensas destruições, Influenciando o curso dos planetas distantes, E também perturbando o aspecto familiar de ruas bem próximas. Eu andava no mesmo passo que o cortejo, Envolvida pela neve, ao abrigo dos ataques inimigos. Rendidos pela fome, transparentes, não nos podiam alvejar, Habitando em lugar algum, estávamos fora de alcance, Habituados ao sofrimento, éramos inatingíveis. E assim andava o cortejo, abandonando este lugar insuportável Por qualquer outro. Assim foi o meu sonho. Hoje eu compreendo o seu sentido: Nós deixaremos os matadouros antes do raiar do dia. E com a aurora chegaremos a Chicago, a cidade deles, Para aí mostrar a todos, nas praças públicas, A exata extensão de nossa miséria. Faremos um chamado a todo o ser que pareça humano. O que acontecerá, eu ignoro. GLOOMB – Dona Luckerniddle, a senhora entendeu esta história? Eu não. DONA LUCKERNIDDLE – Se ela tivesse calado um pouco a boca lá nos Chapéus Negros, nós agora estaríamos comendo a nossa sopa, bem e aquecidos! 2. BOLSA DE CARNES MAULER,
aos fabricantes de conservas: Meus amigos de Nova Iorque me escreveram Que as tarifas aduaneiras no Sul Acabam de ser derrubadas.
OS CRIADORES
Desgraça! As tarifas caíram E nós não temos mais bois para vender! Eles já estão vendidos, e pior, a preço vil. MAULER: Sendo grande a demanda De conserva e de vianda E sendo os preços aceitáveis, Eu exijo que me entreguem, Senhores, sem mais delongas, Todas as conservas Previstas no contrato. GRAHAM: Ao preço antigo? MAULER: Como combinado, Graham. Oitenta mil toneladas, se eu me lembro direito Daquela hora em que perdi um pouco o juízo. OS FABRICANTES: Mas como nós poderemos Comprar gado com preços em alta? Alguém promoveu uma razia, Ninguém sabe quem foi... Mauler, libere-nos de nossos compromissos! MAULER: Estou desolado, mas preciso das conservas. Há muito gado, que eu saiba, Um pouco caro, é verdade, mas existe. Comprem-no! OS FABRICANTES: Comprar gado nestes dias! Que horror!
OS FABRICANTES
Desgraça! As tarifas caíram! E nós não temos mais carne para vender! Ela já está vendida, e pior, a preço vil. Precisamos comprar e os preços aumentam!
3. UM PEQUENO BAR NO BAIRRO DOS MATADOUROS
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Trabalhadores e trabalhadoras, ente os quais Joana. Um destacamento dos Chapéus Negros chega. Joana se levanta e, durante a cena, faz desesperadamente sinais para que saiam. JACKELINE, tenente dos Chapéus Negros, depois de entoar um cântico apressadamente: Por que não provar, meu irmão, do pão de Deus? Grande é nossa alegria, grande o nosso regozijo, Pois nós encontramos Jesus, Nosso Senhor. Vinde a ele, tu também, vinde logo! Aleluia! Uma jovem dos Chapéus Negros dirige-se aos trabalhadores. Intercala sua pregação com observações aos companheiros. MARTHA, soldado dos Chapéus Negros: - (Vocês acham que isso serve para alguma coisa?) Eu também, minhas irmãs, meus irmão, estava um dia sentada, triste, à margem do caminho, como vocês, e o velho Adão dentro de mim não tinha outro desejo do que comer e beber; mas então eu encontrei Nosso Senhor Jesus e fez-se em meu coração uma grande luz e provei uma grande alegria; hoje (eles não estão escutando nada!) basta que eu pense muito em Jesus, que nos salvou na dor, apesar de todas as nossas más ações, e eu não tenho mais fome e nem sede, tenho apenas sede da palavra de Jesus, Nosso Senhor. (Isso não serve para nada!). Onde está Jesus, reina a paz, não a violência, o amor, não o ódio. (É tudo absolutamente inútil!) Eu lhes digo: ajudem-nos a manter a marmita fervendo! OS CHAPÉUS NEGROS - Aleluia! (Jackeline faz circular a cuia de esmolas, mas ninguém contribui) Aleluia! JOANA
Por que vir aqui fazer escândalo Com tamanho frio! E se pudessem ao menos se calar! Com muito custo eu consigo agora Suportar as palavras que há pouco amava E que me soavam agradáveis. Ah, que alguma voz, que um resto de pudor lhes diga: Aqui reinam a neve e o vento: calem-se!
– Deixe-os. Eles precisam fazer isso para conseguir um pouco de calor e de comida. Bem que eu gostaria de estar com eles! DONA LUCKERNIDDLE – A música era bonitinha! GLOOMB – Bonita e curta. DONA LUCKERNIDDLE – Eles são boas pessoas. GLOOMB – Bondade curta, curta bondade. A MULHER – Por que não nos procuram para tentar nos converter? GLOOMB, fazendo o gesto de contar dinheiro – A senhora consegue manter a marmita fervendo, dona Swingburn? A MULHER – A sua música era bonita; mas eles traziam uma panela, eu esperava que eles fossem ao menos nos dar um prato de sopa. UM TRABALHADOR, surpreendendo-se pela ingenuidade – É sério? A senhora acreditou nisso? DONA LUCKERNIDDLE – Eu também, eu prefiro os atos. Discursos, já ouvi demais. Se algumas pessoas soubessem calar a boca eu saberia onde procurar abrigo esta noite. JOANA – Então não há ninguém que tente fazer alguma coisa? O TRABALHADOR – Sim, os comunistas. JOANA – Mas não são os tais que ficam incitando ao crime? O TRABALHADOR – Não. Silêncio. JOANA – Onde eles estão? GLOOMB – A dona Luckerniddle pode lhe dizer. JOANA, à dona. Luckerniddle – De onde a senhora os conhece? DONA LUCKERNIDDLE – No tempo em que eu não me fiava em gente como você eu ia bastante até eles, por causa do meu marido. UMA MULHER
4. BOLSA DE CARNES OS FABRICANTES:
Nós compramos qualquer gado! Bezerros! Gado gordo! Vitelos! Bois! Porcos! Façam as suas ofertas, por favor! OS CRIADORES: Não sobrou mais nada! Tudo o que podia ser vendido
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Foi vendido. OS FABRICANTES:
Mais nada? E nas estações? Estão abarrotadas de gado. OS CRIADORES – Vendido. OS FABRICANTES – Vendido a quem? Entra Mauler. Os fabricantes se precipitam sobre ele. É impossível encontrar um boi em Chicago, Mauler, precisamos de um prazo. MAULER: Atenham-se à nossa combinação, Os senhores devem me entregar a carne. Ele vai falar com Slift. Deixe-os totalmente à míngua. UM CRIADOR: Oitocentos bois de Kentucky a quatrocentos. OS FABRICANTES: Nem pensar! Vocês estão loucos? Quatrocentos! SLIFT – Eu compro. Quatrocentos. OS CRIADORES: Oitocentos bois a quatrocentos para Sullivan Slift. OS FABRICANTES: É Mauler. É claro que é! Era o que dizíamos! O cão! Ele nos obriga a entregar-lhe as latas E é ele quem compra o gado! Somos então obrigados a comprar de Mauler A carne que deveremos colocar em suas latas! Carniceiro sujo! Tome então a nossa carne, Corte você mesmo! MAULER: Por que se surpreendem, se são os senhores os bois, Vendo-os, o apetite desperta! GRAHAM, precipitando-se sobre Mauler: É preciso liquidá-lo, eu acertarei as contas com ele! MAULER: Ah! É assim, Graham!
As latas que me deves, eu as quero agora. Mesmo que tenhas que te enfiar nelas! Eu vos ensinarei como se faz esse comércio! Doravante, de Chicago a Illinois, Qualquer vitelo, mesmo só uma pata, Terá de ser comprado de mim, e caro! Ofereço, para começar Quinhentos bois a cinqüenta e seis. Silêncio ... Já que não há demanda, Não havendo ninguém que precise de carne, Agora eu quero sessenta! E tenham o cuidado De não esquecer as minhas latas! 5. OUTRO LUGAR NOS MATADOUROS
Nos cartazes se lê: “Solidariedade com os trabalhadores sob lockout!” “Desencadeiem a Greve Geral”. Em frente a um galpão, dois homens da direção dos sindicatos discutem com um grupo de operários. Chegada de Joana. JOANA – São vocês os que defendem a causa dos desempregados? Eu posso ajudá-los. Aprendi a falar em lugares públicos e em auditórios, mesmo nos grandes. Se alguém vier perturbar a reunião, eu não tenho medo, e acho que sou capaz de defender bem uma causa, se ela for justa. Na minha opinião é preciso fazer alguma coisa imediatamente. Além disso, eu tenho propostas a fazer. UM DIRIGENTE OPERÁRIO – Escutem todos: até agora os magnatas da carne não manifestaram a menor intenção de reabrir as suas fábricas. Nós, os operários, sabemos agora de uma coisa: se tudo andar como querem os industriais da carne, uma parte de nós perderá seu emprego nos matadouros e os outros nunca recuperarão o salário anterior. Os trabalhadores das grandes empresas da cidade nos prometeram declarar, no mais tardar depois de amanhã, a greve geral. De hoje até amanhã é certo que os patrões vão lançar todo o tipo de falsas notícias: eles dirão que
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tudo está arranjado e que a greve geral não acontecerá. Essas cartas anunciam que a usina de gás, as centrais elétricas e o serviço de águas entrarão em greve em solidariedade a nós. Elas devem ser entregues às dez horas, essa noite, em diversos pontos dos matadouros, aos responsáveis que esperam nossa orientação... Esconda essa em seu casaco, Jack, e vá esperar os responsáveis defronte à cantina da senhora Schmittens. Um operário apanha a carta e sai. UM OUTRO OPERÁRIO – Dê-me a carta para as usinas Graham, eu conheço o pessoal. O DIRIGENTE OPERÁRIO – Rua vinte e seis, na esquina do Parque Michigan. O operário apanha a carta e sai. O DIRIGENTE OPERÁRIO – Rua Três, em frente ao edifício da Westinghouse! (À Joana) Quem é você? JOANA – Fui mandada embora do emprego. O DIRIGENTE OPERÁRIO – E em que trabalhava? JOANA – Eu vendia um jornal. O DIRIGENTE OPERÁRIO – E para quem trabalhava? JOANA – Eu era ambulante. UM OPERÁRIO – Pode ser uma espiã. O DIRIGENTE OPERÁRIO – Não, eu sei quem ela é. É do Exército da Salvação e os policiais a conhecem bem. Ninguém suspeitaria que ela trabalha para nós. Isso é bom, pois o endereço dado pelos camaradas das usinas Cridle para o encontro está muito vigiado. Nós não temos ninguém para passar despercebido como ela. O OUTRO DIRIGENTE OPERÁRIO – E quem te garante que ela vai levar a carta que lhe entregarmos? O DIRIGENTE OPERÁRIO – Ninguém. À Joana: Se rebenta uma só malha A rede não serve para nada. Por este buraco fogem todos os peixes. Como se rede já não houvesse: De um só golpe todas as malhas Não servem mais para nada.
– Eu já vendi jornais na rua Vinte e Quatro. Eu não sou uma espiã. Eu luto de todo o coração pela causa de vocês. O OUTRO DIRIGENTE OPERÁRIO – Pela nossa causa? Diga-me: ela não é também a sua? JOANA – Não é no interesse geral que os industriais jogam, dessa maneira, tanta gente na rua. Tudo acontece como se a miséria dos pobres fosse útil aos ricos. E poderíamos até dizer que esta pobreza seja obra deles. (os operários riem alto) Mas é desumano! E dizendo isso eu penso também em gente como Mauler! (os operários caem na gargalhada) Por que se riem? Acho que vocês estão errados em zombar e em acreditar sem provas que alguém como Mauler não é um ser humano. O OUTRO DIRIGENTE OPERÁRIO – Não é sem provas. Você pode tranqüilamente entregar-lhe a carta. Ela é sua conhecida, dona Luckerniddle? (Dona Luckerniddle faz sinal que sim). Ela é honesta, não é? DONA LUCKERNIDDLE – Honesta ela é. O DIRIGENTE OPERÁRIO, dando a carta à Joana – Vá até a fábrica Graham, galpão número cinco. Quando você vir chegarem três operários com cara de quem procura alguém, pergunte-lhes se são das usinas Cridle. A carta é para eles. JOANA
6. BOLSA DE CARNES Durante toda esta cena, ouve-se gritar ao fundo o nome das empresas que suspenderam seus pagamentos: “Encerram os pagamentos, Meyers e Cia., etc.” OS FABRICANTES – Nós não podemos mais agüentar, os preços estão a mais de setenta! OS CORRETORES – Os cabeçudos não compram, pau neles! OS FABRICANTES – Queremos dois mil bois a setenta. SLIFT, a Mauler, encostado em uma coluna – Faça subir. MAULER: Os senhores não respeitaram, estou vendo, O contrato assinado há pouco entre nós: Eu queria, com tal medida, assegurar o trabalho
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Aos operários e agora me dizem Que eles ainda esperam em frente aos matadouros. Mas os senhores se lamentarão por isso. As conservas que comprei, entreguem-me! GRAHAM: Nada poderíamos ter feito, A carne sumiu de vez do mercado! Quinhentos bois a setenta e cinco! MAULER: Não seria conveniente, Slift, subir muito mais, Eles já não agüentam, Que sangrem, sim, mas que não rebentem, Pois a queda deles Será a nossa. SLIFT: Faça subir. Eles ainda agüentam! Quinhentos bois a setenta e sete. OS FABRICANTES – Mauler paga cinqüenta pelas conservas, nós não podemos pagar oitenta a Mauler pelo gado. MAULER, a Slift – Onde está o pessoal que eu mandei para os matadouros? SLIFT – Ali está um. MAULER – Então, desembucha! O primeiro segurança faz seu relatório. O SEGURANÇA – As multidões, senhor, são incontáveis. Se perguntasse por uma Joana, se apresentariam dez ou talvez cem. A multidão anônima e sem rosto continua sentada lá, esperando. Além disso, é impossível ouvir uma voz isolada: há muita gente correndo de todos os lados, à procura de um parente que não encontram. No canto em que trabalham os sindicatos reina uma grande efervescência! MAULER – Quem trabalha? Os sindicatos? E a polícia os deixa incitar os operários? Meu Deus! Liga imediatamente para a polícia. Fala em meu nome. Pergunta para que nós pagamos impostos! Manda arrebentar a cabeça dos líderes. Ponha os pingos nos “is”. O primeiro segurança sai.
GRAHAM:
Que seja, Mauler, perdido por perdido, Mil a setenta e sete. Mas para nós, é o fim! SLIFT: Quinhentos a setenta e sete para Graham. Acima disso, tudo a oitenta. MAULER, voltando ao grupo: Este negócio, Slift, não me diverte mais. Ele pode ir longe demais. Vá só até oitenta e depois abaixe o preço. Vou soltar a carne e deixá-los partir. Isso basta. É preciso que a cidade Possa voltar a respirar. E tenho outras preocupações! Veja bem, Slift, eu me pego esgoelando-os E não tenho tanto prazer quanto esperava. Ele repara no segundo segurança. A encontraste? O SEGURANÇA – Não, eu não vi ninguém com o uniforme dos Chapéus Negros. São centenas de milhares nos matadouros. Ainda por cima está escuro. Quando se grita qualquer coisa, o vento abafa as palavras. Sem contar que a polícia está evacuando os matadouros e que começa a atirar. MAULER: Atiram? Contra quem? Mas eu sei bem, é claro. O estranho é que aqui não se ouve nada. Impossível, dizes, de achá-la? E atiram? Encontra o Jim, por telefone. Diga-lhe para que não me procure. Senão pensarão ainda Que fomos nós que exigimos que atirassem. O segundo segurança sai. MEYERS – Mil e quinhentos a oitenta. SLIFT – A oitenta, só quinhentos. MEYERS – Cinco mil a oitenta! Assassino! MAULER, que voltou para perto da coluna – Slift, eu não me sinto muito bem. Ceda, pois.
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– Nem pensar. Eles ainda agüentam. E se quiseres abrandar, serei eu quem fará subir. SLIFT
MAULER
Eu preciso de ar fresco. Continue então com o negócio, Slift, Eu não posso mais. Aja conforme o meu espírito; Prefiro abandonar tudo Do que ser a causa de uma desgraça! Oitenta e cinco, não mais. Aja conforme o meu espírito, Tu me conheces. Saindo ele encontra jornalistas. JORNALISTAS – O que há de novo, Mauler? MAULER, afastando-se – É preciso que façam chegar aos operários que eu acabo de ceder gado às fábricas. Então agora existe gado. De outra forma isso terminaria em violência. SLIFT – Quinhentos bois a noventa! OS FABRICANTES: Mauler, nós ouvimos, Queria vender a oitenta e cinco. Slift não tem ordem para isso. SLIFT: Mentirosos! Agora serei eu que vos ensinarei A vender carne enlatada Sem ter nem mesmo um quilo! E cinco mil bois a noventa e cinco! Urros. 7. NOS MATADOUROS Muita gente esperando. Entre eles, Joana. ALGUÉM – Porque estás aqui? JOANA – Tenho que entregar uma carta. Virão três pessoas. Chega um grupo de jornalistas. Um homem os guia. O HOMEM, apontando para Joana – Aqui está. (a Joana) Esses são jornalistas.
– Olá! A senhorita é Joana Dark, a jovem pregadora dos Chapéus Negros? JOANA – Não. OS JORNALISTAS – No escritório do senhor Mauler nos disseram que a senhorita jurou não sair dos matadouros enquanto as fábricas não fossem reabertas. Nós publicamos isso com manchete de oito colunas. Veja, pode ler. (Joana vira-lhes as costas. Os jornalistas lêem em voz alta) “A Madona dos matadouros, Joana Dark, declara: Deus está solidário com os operários das fábricas de conservas.” JOANA – Eu não falei nada disso. OS JORNALISTAS – Podemos lhe assegurar, senhorita Dark, que a opinião pública está do seu lado. Fora uns poucos especuladores sem escrúpulos, toda a Chicago comparte seus sentimentos. É um enorme sucesso para os Chapéus Negros. JOANA – Eu não faço mais parte dos Chapéus Negros. OS JORNALISTAS – Veja bem, isso não é possível. Para nós a senhorita faz parte. Mas nós não queremos incomodá-la e iremos ficar ali, no fundo. JOANA – Eu queria que vocês fossem embora. Eles se sentam, a alguma distância. OS TRABALHADORES, em segundo plano, nos matadouros Enquanto a miséria não chegar ao máximo, Eles não abrirão as fábricas. Mas quando a aflição for tremenda, Nesse dia sim, eles abrirão. Eles terão de nos responder. Não vão embora, esperem a resposta! CORO OPOSTO, também em segundo plano: É mentira: por maior que seja a miséria, Eles não abrirão as fábricas! Eles esperarão os lucros aumentarem! E a sua resposta sairá Dos canhões e das metralhadoras! Ninguém poderá nos ajudar, a não ser nós mesmos E a ninguém podemos apelar OS JORNALISTAS
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Que não seja um nosso igual. JOANA: Eu compreendo esse sistema, que de resto Já é a muito conhecido, desde fora. Mas a estrutura interna continua ignorada. Alguns – pouco numerosos – estão sentados lá em cima E um grande número aqui embaixo; E os do alto gritam: Subam, Para que estejamos todos no alto! Mas olhando mais de perto descobre-se, Entre os que estão em cima e os que estão embaixo, Algo de obscuro, dir-se-ia que é um caminho, Mas é apenas uma tábua, A qual logo se nota claramente Que serve de gangorra Todo o sistema é como uma balança Na qual os dois lados dependem um do outro; E uns se sentam lá em cima Só porque os outros estão embaixo. Os jornalistas, que acabaram de receber uma informação, levantam-se e dirigem-se ao fundo. UM TRABALHADOR, a Joana – O que fazias com aquela gente? JOANA – Nada. O TRABALHADOR – Mas falaste com eles! JOANA – Eles me confundiram com outra pessoa. UM VELHO HOMEM, a Joana – Você está totalmente gelada. Quer um gole de whisky? (Joana bebe) Ei, chega! Você é boa mesmo de copo, não é? JOANA – A senhora também acha, dona Luckerniddle? DONA LUCKERNIDDLE – Sim é verdade. UMA MULHER – Que audácia! JOANA – A senhora falou alguma coisa? A MULHER – Sim. Que audácia! Emborcar assim o whisky desse velho! JOANA – Segure a língua, imbecil!... Onde está o meu chale? Eles me roubaram, é claro! É o cúmulo! Eles me roubaram até o chale!
Quem foi o mão leve que pegou o meu chale? Devolvam-me imediatamente. (Ela arranca de sua vizinha o pano com o qual ela cobre a cabeça) Sim, foi você! Não adianta mentir. Já basta, dê-me meu pano. A MULHER – Socorro, ela vai me matar. UM HOMEM – Silêncio! Alguém atira um trapo para Joana. JOANA
Se dependesse só de vós Eu poderia congelar nua em pleno vento. Não fazia tanto frio em meu sonho. Quando eu cheguei aqui, com um vasto plano, Encorajada por um sonho que confirmava minhas idéias, Eu não tinha sonhado que pudesse fazer tanto frio! Se eu tivesse pelo menos o meu agasalho! Ah! É fácil para vós passar fome, Vós, que nada tendes para comer. A mim me esperam, guardam-me a sopa. E para vós é fácil passar frio; Mas eu posso, a qualquer momento, Ir para um quarto quente, Empunhar a bandeira e bater o tambor, E falar Daquele que mora lá em cima. Vós todos, o que haveis deixado? Eu, o que deixei foi uma vocação, E um ambiente, ao qual estava acostumada, Enfim, um emprego que me assegurava O pão de cada dia, um teto e o sustento. Ficar aqui sem necessidade absoluta Parece-me um jogo indigno, Quase uma comédia. Mas, confesso, o medo me aperta a garganta: Não comer, não dormir, ignorar aonde te leva a vida... Tenho fome e isso é banal, tenho frio, isso é normal, Apesar de tudo, eu não tenho o direito de ir, Mas, mais do que tudo, eu quero ir embora.
39 OS TRABALHADORES:
Fiquem, aconteça o que acontecer, Não se separem! É apenas ficando todos juntos Que poderão ajudar uns aos outros. Não creiam em nada e não escutem ninguém, A não ser a proposta Que leve a mudanças verdadeiras. E sobretudo entendam bem Que nada se faz sem luta E sem a sua própria ação. Os jornalistas retornam. OS JORNALISTAS – Olá, mocinha, o seu sucesso foi formidável: nós ouvimos que Pierpoint Mauler, o milionário que dispõe de muito gado, acaba de cedê-lo aos fabricantes, ainda que os preços continuem a subir. Nessas condições o trabalho voltará muito em breve aos matadouros. JOANA – Oh! A boa nova! DONA LUCKERNIDDLE – Vejam as mentiras sobre as quais nos alertaram. Felizmente temos a carta para mostrar a verdade. JOANA: Escutem todos! Há trabalho. O coração deles não é de gelo. Havia entre eles pelo menos um homem honesto E ele não falhou em seu dever. Quando se falou com ele como a um ser humano Ele deu uma resposta humana. Então a bondade existe. Ao longe as metralhadoras crepitam. Que barulho é esse? UM JORNALISTA – São as metralhadoras. A tropa foi encarregada de evacuar os matadouros. Agora as fábricas reabrirão. É preciso fazer com que se calem os agitadores que incitam à violência. UMA MULHER – Devemos voltar para casa agora? UM TRABALHADOR – Quem nos garante que é verdade? Que haverá trabalho de novo?
– E por que não seria verdade, se esses senhores estão dizendo? Sobre um assunto como esse não se brinca, de jeito nenhum. DONA LUCKERNIDDLE – Não digas tais tolices. Tu não compreendes nada de nada. Não ficaste tempo suficiente aqui, no frio. (Ela se levanta) Eu vou avisar aos nossos que os boatos já começaram a circular. Mas tu, espera, com a carta. Não te movas! Entendeu? Ela sai. JOANA – Mas estão atirando! UM OPERÁRIO – Pode ficar sentada tranqüilamente. Os matadouros são tão grandes que a tropa levará horas até aqui. JOANA – Quanta gente há aqui? OS JORNALISTAS – Uns cem mil. JOANA: Tanto assim? Oh! Escola desconhecida, Classe cheia de neve e que as leis ignoram, Que tem a fome por mestre e onde a miséria Fala implacavelmente da necessidade! E sois cem mil alunos, O que aprendeis? OS TRABALHADORES, no fundo do palco: Se ficardes agrupados Eles vos rebentarão. E nós vos dizemos: ficai agrupados. Se combaterdes, Os tanques deles vos esmagarão. E nós vos dizemos: combatei. Esse combate será perdido E talvez perdido Ainda o próximo combate Mas vós ireis aprender a combater E aprendereis pela experiência Que nada se faz sem luta E sem a vossa própria ação. JOANA: Parai! Chega de aprender essas lições! JOANA
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Que gélidas elas são! Não é pela violência Que se combatem a desordem e a confusão. A tentação, eu digo, é imensa! Mais uma noite como esta, Com seu silêncio opressor, e ninguém Poderá manter a sua calma. Vós, vós estivestes juntos Longas noites, ao longo dos anos, E aprendestes A alimentar friamente terríveis pensamentos. Eu digo: na escuridão se acumulam As violências e as questões nunca resolvidas, Enquanto o fraco ao fraco se alia. Mas o prato que se prepara aqui, Quem o comerá? Eu vou embora. Nada de bom pode surgir da violência. Eu não sou um deles. Se desde a infância o peso da miséria e da fome me tivessem ensinado a violência, eu seria como eles e não faria perguntas. Mas assim, eu preciso ir. Ela continua sentada. OS JORNALISTAS – Nós a aconselhamos a sair dos matadouros. Seu sucesso foi grande, mas agora a coisa está terminada. Eles saem. Do fundo ouve-se gritos que se aproximam. Os operários se levantam. OS OPERÁRIOS – Estão trazendo os sindicalistas. Os dois dirigentes operários passam, algemados, conduzidos por policiais. UM OPERÁRIO, para um dos dirigentes presos – Não liga não, William, que eles ainda poderão ter uma surpresa. UM OUTRO OPERÁRIO grita para o grupo que se afasta – Assassinos! OS OPERÁRIOS – Se eles acham que assim irão parar as coisas, estão muito enganados. Há muito tempo que já está tudo arranjado. Joana tem uma visão. Ela se vê com roupas de criminosa, longe do mundo que lhe é familiar. JOANA:
Os que me entregaram a carta, Por que foram presos? O que ela contém, esta carta? Eu não saberia fazer nada Que requeresse violência, Ou que engendrasse a violência. Isso seria desleal para com os outros homens, Violar as regras em uso. Quem agisse assim se sentiria perdido, Apartado em um mundo Tornado para ele estrangeiro. Sobre sua cabeça, os astros sem harmonia Já não seguiriam sua órbitas. Para este homem, as palavras teriam outro sentido. Perseguidor perseguido E não mais sabendo ver sem desconfiar, Toda inocência tê-lo-ia abandonado. Eu assim não poderia viver. E é por isso que parto. Por três dias viram Joana em Packingtown, No lodaçal dos matadouros; Viram-na descer de degrau em degrau Para em água límpida a lama transformar e aos humildes Aparecer. Dia após dia ela desceu, No terceiro dia sucumbiu, No final o lodo a engoliu. Direis que fazia muito frio. Ela se levanta e sai. Começa a nevar. DONA LUCKERNIDDLE, voltando – Nada além de mentiras! Onde foi a moça que estava sentada ao meu lado? UMA MULHER – Partiu! UM OPERÁRIO – Desde o começo eu disse que ela iria embora quando começasse a nevar de verdade. Chegam três operários. Eles procuram alguém que não encontram e vão embora. Enquanto a noite cai, aparece uma inscrição: A neve começa a cair.
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Pergunta feita: quem ficará? Como nos outros dias, hoje restarão No chão as pedras, em cima, os pobres. Pierpoint Mauler cruza a fronteira da pobreza 8. UMA ESQUINA EM CHICAGO MAULER,
a um de seus seguranças Parem, façamos meia volta, o que foi? Riste, confessa. Eu disse: meia volta E tu riste. Vejam, ainda atiram. Há resistência, não lhes parece? Ah! Eu repito Não fiquem enchendo a cabeça com idéias, Só porque duas ou três vezes eu dei meia volta, Perto dos matadouros. Pensar não serve para nada. Basta. Não é para pensar que eu vos pago. Eu tenho as minhas razões. Sou conhecido nos matadouros... Mas vejo que estão pensando. Parece-me Que contratei dois idiotas. Em todo o caso, meia volta. Aquela que eu procurava terá tido o bom senso De sair das profundezas onde o inferno se instala. Assim espero. Passa um vendedor de jornais Ei! Jornal! Vejamos o que se passa na Bolsa de Carnes. Ele lê e empalidece. Essas notícias, aqui sob meus olhos, modificam tudo. Vejam o que leio, impresso, preto no branco: O gado está a trinta e ninguém compra. Está dito, preto no branco, que todos os fabricantes Quebraram juntos e saíram do mercado; Mauler e seu amigo, Slift, são os mais atingidos, É o que está escrito. Assim foi conseguido,
Sem que eu tenha procurado, um objetivo que eu saúdo E que muito me alivia. De agora em diante, nada mais posso fazer por eles; Cedi meu gado a qualquer um que o quisesse. E ninguém quis. Agora eu estou livre, Sem nenhuma exigência. E a vocês eu despeço Pois da pobreza eu cruzei a fronteira, Não preciso, então, mais de vocês. Doravante Não há mais ninguém que me queira matar. OS DOIS SEGURANÇAS – Então podemos ir? MAULER: Podem E eu também posso ir aonde queira, Até mesmo aos matadouros. Quanto a este edifício, Que nós construímos em nossas grandes cidades Sem importar o custo, em suor e em dinheiro, dele se diria Um prédio construído com grandes despesas, o mais vasto, O mais prático também; mas o arquiteto teria, Seja por aberração, seja por economia, Escolhido como material, cocô de cachorro: Que torna a permanência difícil. Ter construído a maior cloaca do mundo Constituirá a sua única glória. Aquele que sai de tal imóvel, Tem certa razão de estar alegre. UM DOS SEGURANÇAS, saindo – Bom. Este homem está perdido. MAULER: Se a desgraça abate ao homem sem caráter, A mim ela vai elevar às mais altas esferas, Até o reino do espírito. 9. UM LUGAR DESERTO NO BAIRRO DOS MATADOUROS Neva. Na borrasca, a dona Luckerniddle reencontra Joana.
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– Ah, estás aí! Onde tinhas te metido? Entregaste direitinho a carta? JOANA – Não. Eu vou embora. DONA LUCKERNIDDLE – Eu devia ter duvidado. Dê a carta aqui imediatamente. JOANA – Não, eu não a darei. É inútil tentar pegar. Lá dentro só se fala em violência. Tudo está voltando ao normal agora, mas a senhora quer continuar. DONA LUCKERNIDDLE – Ora essa! Para ti está tudo normal! E eu que disse que tu eras honesta! Sem isso não teriam te confiado a carta. Mas tu és uma traidora e teu lugar é com eles. Um lixo, isso é o que tu és! Dê-me a carta que te confiaram. (Joana desaparece na tempestade de neve) Hei! Venha! Ela foi embora! DONA LUCKERNIDDLE
10. UM OUTRO LUGAR Correndo em direção ao centro da cidade, Joana cruza com dois operários de quem ouve a conversa: O PRIMEIRO OPERÁRIO – Primeiro eles fizeram correr o boato que as fábricas reabririam a todo o vapor. Uma parte dos operários saiu dos matadouros, para poder se apresentar amanhã bem cedo ao trabalho e de repente eles falam que as fábricas nunca mais abrirão. Pierpoint Mauler as arruinou. O SEGUNDO OPERÁRIO – Os comunistas é que tinham razão. As massas não deveriam ter se dispersado. Ainda mais que amanhã todas as empresas de Chicago iriam declarar a greve geral. O PRIMEIRO OPERÁRIO – E aqui nós não ficamos sabendo. O SEGUNDO OPERÁRIO – Isso é grave: sem dúvida uma parte das ligações não funcionou. Muitos operários teriam ficado se soubessem da notícia. Eles teriam ficado apesar da violência da polícia. Errando pelos matadouros, Joana ouve vozes. UMA VOZ: Não há desculpa Para quem não chega. Ao que tropeça e cai,
A pedra não perdoa. E aquele que chega a bom porto, Que nada diga, mas entregue, Sem récitas inoportunas dos seus infortúnios, Aquilo que lhe foi confiado. Joana pára. Anda em outra direção. OUTRA VOZ: Joana pára. Nós te encarregamos, Joana, de uma missão; Nela estava nosso destino. Nós não sabíamos quem eras. De tua missão, podias dar conta, Mas também podias nos trair. Cumpriste a missão? Joana volta a andar e uma nova voz a detém. UMA VOZ – Lá onde te esperam, precisas chegar! Joana olha ao redor; ela procura se livrar das vozes que ouve de todos os lados. AS VOZES: Se rebenta uma só malha A rede não serve para nada. Por este buraco fogem todos os peixes. Como se rede já não houvesse. De um só golpe todas as malhas Não servem mais para nada. A VOZ DA DONA LUCKERNIDDLE: Eu fui a tua fiadora. Mas a carta que trazia a verdade, Tu não a entregaste. JOANA, caindo de joelhos: Luz, oh verdade! Que a neve em tempestade Inoportunamente mascarou com sua noite. Claridade que então eu deixei de ver! Oh! Quem conhecerá o poder da neve! Oh, fraqueza do corpo! Oh fome, Que sentimentos em nós deixareis sobreviver?
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Frio da noite, quem vos pode resistir? Eu preciso dar meia volta! Ela retorna sobre seus passos correndo. X Humilhação e assunção de Pierpoint Mauler TEMPLO DOS CHAPÉUS NEGROS MARTA,
a outro Chapéu Negro – Há três dias um emissário de Pierpoint Mauler, o rei da carne, veio nos dizer que Mauler em pessoa estava disposto a assumir o nosso aluguel e a organizar conosco uma grande campanha em favor dos pobres. DONA MULBERRY – Bispa Snyder, é sábado a noite. Quero que a senhora pague o meu aluguel, que aliás é muito barato, ou que deixe o imóvel. BISPA SNYDER – Dona Mulberry, estamos aguardando, a qualquer momento, o senhor Pierpoint Mauler, que prometeu nos ajudar. DONA MULBERRY – Meu caro Dick, coloque os móveis na rua. Um homem começa a levar os móveis para a rua. OS CHAPÉUS NEGROS: Estão levando, que triste, o banco dos penitentes! E já suas mãos avidamente se dirigem Ao órgão a vapor e ao púlpito, E nós gritamos à plena garganta: Ah, se ele pudesse vir, o suntuoso Mauler, Para nos salvar neste instante, Salvar-nos com o seu dinheiro! BISPA SNYDER
Há exatos oito dias Que nos matadouros onde as máquinas enferrujam, A massa espera, afastada do trabalho, Liberada, posto que sem abrigo, Exposta outra vez à neve, à chuva, Sob um plúmbeo zênite de destinos desconhecidos.
Ah, minha cara Mulberry, com sopa quente E um pouco de música, agora os pegamos. O reino de Deus está pronto na minha cabeça. Uma boa orquestra à mão e sopa Bem grossinha: terminam para Deus todas as preocupações. De um só golpe o bolchevismo também é enterrado. OS CHAPÉUS NEGROS: Romperam-se os diques da fé Em Chicago, nossa boa cidade. E as ondas de lama do materialismo Ameaçam a casa de Deus. Vejam que já balança, que já se afunda! Mas o rico Mauler virá, com certeza! Ele já está a caminho com os seus milhões! UM CHAPÉU NEGRO – Bispa, onde iremos acomodar o nosso público? Chega um pobre. É Mauler. BISPA SNYDER, investindo contra ele – A sopa, é tudo o que eles querem! Aqui não tem mais sopa! Aqui só tem a palavra de Deus! Ouvindo isso eles vão logo embora. MAULER – Eis aqui um homen marchando até o seu Deus. BISPA SNYDER – Sente lá atrás e fique quieto! Ele se senta. UM HOMEM, entrando – Pierpoint Mauler está aqui? BISPA SNYDER – Não. Mas nós o estamos esperando. O HOMEM – Os fabricantes de conservas querem falar com ele e os criadores o chamam aos gritos. Ele sai. MAULER, na frente do palco : Ouvi alguém procurando um certo Mauler. Eu o conheci: era um imbecil. Buscam-no por toda a parte, no céu e no inferno, Este homem que foi em sua vida Mais estúpido do que um vagabundo bêbado e repugnante. Ele se levanta e avança até os Chapéus Negros. Conheci bem um homem, Pediram-lhe cem dólares, ele possuía dez milhões,
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No fim, recusou-se a dar o dinheiro, Jogou no mar seus milhões, deu cabo de si mesmo. Ele pega dois Chapéus Negros pelo braço e senta-se com eles no banco dos penitentes. Ouçam então a minha confissão: Aqui jamais se ajoelhou Ninguém, meus amigos, que tenha caído tão baixo. OS CHAPÉUS NEGROS: Não perca a confiança! Homem de pouca fé! Ele virá, é certo; Se aproxima já Com os seus milhões. OS CHAPÉUS NEGROS – Ele já chegou? MAULER: Um hino, eu vos rogo! Pois eu sinto O coração ao mesmo tempo leve e pesado. DOIS MÚSICOS: Um pedacinho só. Os músicos tocam um hino. Os Chapéus Negros cantam, ar ausente, olhos voltados para a porta. BISPA SNYDER, inclinado sobre os livros de contabilidade – Não direi o que estou calculando. Silêncio! Tragam-me o livro das faturas e contas por pagar: estou nessa parte. MAULER: Eu me acuso de ter explorado o meu próximo, Abusado da força e espoliado todo o mundo Em nome da propriedade. Por sete dias apertei a garganta Desta cidade até sufocá-la. UM CHAPÉU NEGRO – É ele, Mauler! MAULER: Mas quero acrescentar que no sétimo dia Fui despojado de tudo. Aqui estou agora, Diante de vós, sem nada. Culpado, sim, mas arrependido. BISPA SNYDER – Tu és Mauler? MAULER – Sim, e dilacerado de remorsos.
BISPA SNYDER,
gritando – E sem dinheiro? (Aos Chapéus Negros:) Façam as malas. Todos os pagamentos estão suspensos. OS MÚSICOS: É deste aí então que vocês esperavam O dinheiro para nos pagar? Então nós vamos embora. Passar bem. CORO DOS CHAPÉUS NEGROS, dirigindo-se aos músicos que vão embora: Nossas orações eram pelo rico Mauler E foi Mauler o arrependido que entrou; Ele trazia o seu coração, não o seu dinheiro. E esse gesto tocou os nossos corações, Mas quebrou a nossa cara De uma vez por todas. Sentados sobre seus últimos bancos e suas últimas cadeiras os Chapéus Negros cantam desordenadamente seus últimos hinos. Sentados sobre as margens do lago Michigan, Apenas nos resta chorar. Tiremos de nossas paredes as máximas, Envolvamos em nossas bandeiras derrotadas Os livros de cânticos. Não podemos mais pagar as nossas contas, E sobre nós a neve envia suas tempestades Em um inverno no qual crescem os rigores. Eles cantam ainda “Entrai na batalha”. Mauler canta com eles, seguindo a letra por sobre o ombro de um dos Chapéus Negros. BISPA SNYDER
Silêncio! Fora, já, todos para fora! A Mauler: E tu primeiro! Onde estão os quarenta meses de aluguel Desses não-convertidos que Joana enxotou? E vejam só o que ela me trás em troca! Devolva-me, Joana, devolva-me os meus quarenta aluguéis! MAULER: Vós desejais, eu vejo, construir vossa casa
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Sobre o que há de pior em mim. Dais o nome de homem a quem vos vem ajudar. Para mim o humano era aquele a quem eu podia explorar. Mas se chamássemos de homem àquele a quem se ajuda Daria no mesmo: necessitaríeis sempre De gente a ponto de afogar-se. Vossa função seria apenas a de brincar na relva. No ciclo dos astros ou das mercadorias, Ninguém jamais pode fugir da lei. Eu sei muito bem, Bispa, Que a constatação vos enche de amargura. Concluo eu o seguinte: o Mauler que sou Não é aquele do qual precisais. Ele tenta sair. Na porta, os reis da carne vêm ao seu encontro. Estão pálidos como o linho. OS REIS DA CARNE: Perdoai-nos, nobre Mauler, por ter vindo Atrapalhar neste lugar as tuas meditações, Os complexos pensamentos de vosso imenso espírito, Mas nós estamos perdidos: Em torno de nós, o caos, e sobre nossas cabeças, Um zênite ameaçador de pensamentos desconhecidos. O que pretendeis fazer de nós? Foste vós, Mauler, quem nos derrubou. Que projeto tendes agora, que fareis? Entram os criadores em grande agitação. Eles também estão muito pálidos. OS CRIADORES: Maldito Mauler, é aqui então que te escondes? Paga nossos bois ao invés de fazer penitência. Dá o dinheiro, salva tua alma. Ah! Se não tivesses aliviado tanto os nossos bolsos, Não terias a necessidade de aliviar aqui A tua consciência. Mauler, paga-nos o gado! GRAHAM, tomando a frente : Mauler, em poucas palavras,
Relatarei o combate memorável Que, durante sete horas, desde a aurora, agigantou-se E a todos nos precipitou no abismo! MAULER: Oh! Eternos combates! Em nada são diferentes Desde os tempos antigos onde os homens Com uma barra de ferro rachavam-se as cabeças! GRAHAM: Recordai que estávamos à vossa mercê. Pelos contratos que nos obrigavam A entregar de imediato as conservas prometidas, Por vós fomos forçados, Mauler, a comprar gado, Que vos pertencia. Era vosso todo o gado. Quando, ao meio-dia, partistes, Slift apertou Ainda mais forte a nossa garganta; com voz dura, Subiu os preços a noventa e cinco. O Banco Nacional gritou: “Alto”. O ancião venerável, assumindo seus deveres, Lançou, chorando, gado canadense, No mercado perturbado. Viram-se os preços Oscilarem, hesitantes, Mas Slift, tomado de loucura, Mal viu esses bois vindo ao longe, E sobre eles atirou-se; e a noventa e cinco Comprou-os todos, como um bêbado sedento Que ao mar esvaziou sem se satisfazer E lambe avidamente cada gota que encontra. Este espetáculo atroz apavorou o ancião. Que não ficou só por muito tempo; Loew e Lévi, E Wallox e Brigham, firmas de grande renome, Acorreram todos em ajuda, comprometendo suas casas, E hipotecando até o último lápis Para trazer de Quebec, da Argentina, Em três dias, o que existisse de gado; Prometiam até o gado por nascer, E tudo o que de longe parecesse um boi, Um vitelo ou um porco, eles iriam trazer.
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Mas Slift gritou: “Três dias não, agora, Eu quero para hoje”, e os preços subiram. Institutos de crédito, bancos, com olhos marejados, Lançaram-se um a um nesta última batalha. Eles precisavam entregar, isto é, comprar. Lévi, em um espasmo, golpeia um corretor na barriga, E Brigham arranca a barba aos gritos: “Noventa e seis”... Naquele instante, se por um acaso Um elefante se arriscasse pelo interior da Bolsa, Seria esmagado como um morango no chão. Até os simples contínuos, tomados de desespero, Lutavam a dentadas, obstinados, mudos, Em tudo semelhantes aos antigos corcéis Mordendo, na batalha, os cavalos inimigos. Ouviu-se nesse dia os jovens estagiários, Célebres, é sabido, por sua indiferença, Rangerem os dentes. E nós comprávamos sempre: Nós precisávamos comprar. Slift então gritou: “Cem”! Poderia ouvir-se um alfinete cair. E em silêncio também os bancos desmoronaram, Como definha uma esponja espremida, Casas até então sólidas e poderosas, Parando de pagar, paravam de viver. Lévi, o velho Lévi disse então em voz baixa, Mas alto o bastante para que todos ouvissem: Para pagar-lhes tomem então nossas fábricas, Porque não mais podemos honrar os contratos. E viu-se, um a um, os fabricantes apáticos Depositarem a vossos pés suas fábricas fechadas, Inúteis portanto, e então se retirarem. Os corretores, os agentes fechando suas escrivaninhas. E como contratos nulos não impõem compras, Sob nossos olhos, de imediato, a carne de boi, Que nos píncaros se encontrava, baixou, em um suspiro, Vertiginosamente. De cotação em cotação Os preços caíram e rolaram até os negros abismos,
Como a água que cai na cascata, de rocha em rocha E somente em trinta a queda parou. Aí está o que tornou o contrato sem valor Apertastes muito forte, fomos estrangulados E de que adianta estrangular um cadáver? MAULER: Foi assim então, Slift, que travaste a batalha Que deixei a teus cuidados! SLIFT: Corte-me a cabeça! MAULER: E de que me serve tua cabeça? Dá-me o chapéu, ele ao menos vale vinte e cinco centavos. O que fazer, diga-me, Com esse gado que ninguém é obrigado a comprar? OS CRIADORES: Sem querer perder a paciência, Nós queremos que nos digas Como, quando e com que dinheiro Nos pagarás o gado comprado, E que não foi ainda acertado. MAULER: Agora mesmo. Com esse chapéu e este sapato: Dez milhões o chapéu, O sapato, entrego por cinco. Só um. Do outro eu preciso. Estão satisfeitos? OS CRIADORES: Há pouco tempo, quando levamos às estações De nosso longínquo Missouri Com muito sacrifício, os vívidos vitelos, E os jovens bois de pêlos reluzentes Engordados com tanto cuidado, Toda a família nos gritava de longe Com a voz embargada pelo trabalho duro - E a voz ainda nos alcançava Mesmo com a balbúrdia dos trens que partiam:
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“Ei, rapazes, não bebam todo o dinheiro, Pois os preços do gado vão subir, esperamos” E agora, o que faremos, Como voltar para nossa terra? E que diremos a eles, mostrando o lombo vazio E nossos bolsos também? Como, neste estado, Mauler, voltar para casa? O HOMEM DE ANTES, entrando – Mauler está? Uma correspondência para ele, de Nova Iorque. MAULER – Eu costumava ser esse Mauler, a quem mandavam cartas desse tipo.(Ele abre a carta e lê de canto) “Escrevemos a você recentemente, caro Pierpoint, para que comprasse carne. Agora, ao contrário, nós aconselhamos a fazer um acordo com os criadores para reduzir o rebanho, para que os preços voltem a subir. Neste caso, nós estaremos de bom grado à sua disposição. Caro Pierpoint, nós lhe forneceremos amanhã mais detalhes. Seus amigos de Nova Iorque.” Não, Não, isso não é possível. GRAHAM – O que não é possível? MAULER – Tenho amigos em Nova Iorque que, pelo que dizem, conhecem um meio de sair desta, Mas para mim, é impraticável. Julguem vocês mesmos. Ele estende-lhes a carta. Como tudo de agora em diante Me parece diferente. Abandonai, amigos, esta caça fatigante; Seus bens, compreendei, estão para sempre perdidos; Mas nossa pobreza não é, entendei, Não ter fartura de bens terrestres, Nem todos aqui em baixo poderiam ser ricos. Nossa pobreza é termos perdido O sentido dos valores mais elevados. MEYERS – Quem são esses amigos de Nova Iorque? MAULER – Morgan, Rockfeller... GRAHAM – Mas então é Wall Street? Um murmúrio percorre o ambiente. MAULER:
Em nós a consciência, Cuja voz está a tal ponto asfixiada... OS FABRICANTES E OS CRIADORES: Desejarias, nobre Mauler, condescender, Deixando as sublimes esferas onde meditais, E voltar até nós? Pensai, pensai no caos Que ameaça a tudo engolir. E dado que de vós necessitamos, Outra vez responsável, Jogai sobre vossos ombros o jugo. MAULER: Se o faço, é muito a contragosto. Não quero, sozinho, assumir a empreitada. Pois ainda creio ouvir O rumor dos matadouros, E o barulho das metralhadoras. O negócio só é possível, Sancionado pelas instâncias superiores, Compreendido como sendo de interesse geral. O projeto teria talvez, Se assim fosse concebido, Alguma chance de sucesso. A Snyder: Existem muitas dessas lojinhas Onde se vende a Bíblia? BISPA SNYDER – Sim? MAULER – E como elas vão? BISPA SNYDER – Mal. MAULER: Ou seja, elas vão mal, mas são numerosas. Mas se fizéssemos uma grande promoção De sua instituição, vocês estariam dispostos, Providos de sopa quente e de boa música, De máximas sagradas e escolhidas com grande cuidado, De um asilo necessário para os casos mais graves, Estariam vocês dispostos a repetir aos quatro ventos
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Que nós somos uma gente valorosa, que deseja Fazer o bem, nesses tempos de desgraça? Pois serão necessárias medidas draconianas Que poderão parecer duras porque irão Derrubar alguns e, mais ainda, Digamos: a maior parte, ou melhor: quase todos Mas é o único meio de salvar o sistema De vendas e compras no qual vivemos, E que, é lógico, tem seus defeitos. BISPA SNYDER – Quase todos. Eu compreendo o senhor. Nós o faremos. MAULER, aos fabricantes: Faremos uma fusão de suas indústrias Em um só monopólio; Eu fico com a metade das ações. OS FABRICANTES – Que cérebro! MAULER, aos criadores : Escutem, meus amigos! Eles cochicham. Esta dificuldade pela qual estamos passando Está a ponto de ser superada. Miséria e fome, desordem e violência, Não tem outra causa a não ser Que há carne demais. O mercado foi saturado este ano, E é por isso que os preços caíram a zero. Então, para puxar os preços, nós decidimos, Em conjunto, criadores e industriais, Meter um freio à anarquia da criação, Limitar o rebanho oferecido no mercado, Eliminar o estoque excedente atual. Enfim, queimar um terço do gado existente. TODOS – Que solução simples! BISPA SNYDER, pedindo a palavra: Perdão, mas se o gado tem tão pouco valor Que pensam em queimá-lo, não poderíamos
Doá-lo àqueles que esperam lá fora E quem sabe utilizá-lo melhor? MAULER, sorrindo: Minha cara bispa, você não compreendeu A questão de fundo. Toda essa gente aí fora: Eles são os nossos compradores! Dirigindo-se aos outros: É incrível. Todos sorriem longamente. Eles podem nos parecer inferiores, supérfluos, E às vezes inoportunos, mas olhando bem Quem vê além das aparências das coisas, Vê que são eles os compradores! Seja como for, E mesmo que muitos não compreendam, Será preciso demitir um terço dos operários: Também de mão de obra o mercado está saturado. É preciso limitá-la. TODOS – Não há outra saída! MAULER – E também precisaremos reduzir os salários! TODOS – É o ovo de Colombo! MAULER: Qual o objetivo dessas medidas? Nesta noite de sangue e confusão, Nesse tempo de humanidade desumanizada, Em que em nossas cidades os problemas não têm fim; - Pois eis Chicago outra vez agitada A greve geral, dizem, é eminente -, Elas impedirão que em sua brutalidade Um povo, ofuscado, quebre suas ferramentas E destrua assim seu próprio ganha-pão, Elas trarão a calma e a ordem. É por isso, Chapéus Negros, que nós subvencionaremos Fartamente a sua missão que contribui Com a manutenção da ordem. Seria muito importante, é claro Que entre vocês estivesse Joana,
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Cuja face por si só já inspira confiança. UM CORRETOR, entrando precipitadamente – Escutem a boa nova! A greve que nos ameaçava foi sufocada. Foram presos os sacrílegos que perturbavam a paz e a ordem! SLIFT: Podem respirar, o mercado vai ser curado! Outra vez saímos do ponto morto E realizamos uma obra difícil. Nossos planos outra vez se impõem. As coisas retomaram o rumo que nos agrada. Música de órgão. MAULER: Abram agora a porta principal Aos homens cansados e cheios de preocupação. De sopa encham os pratos, Toquem a música e nós mesmos Seremos os primeiros a nos sentar Para elevar nossos corações a Deus. SNYDER – Abram as portas! A porta principal é aberta. OS CHAPÉUS NEGROS, cantam, olhar fixo na porta: Eles terão de vir, joguem as grandes redes! Eles saíram agora de sua última casa! Deus lançou sobre eles o frio! Deus lançou sobre eles a chuva! Eles terão de vir, joguem as grandes redes! Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos! Boas vindas a todos os que chegam a nós! Tranquem as saídas, para que nenhum escape! Eles estão a caminho, eles chegam até nós. Quando perdem o trabalho, Quando estão cegos e surdos, Ninguém pode escapar: tranquem as saídas. Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos! Boas vindas a todos os que chegam a nós! Todo aquele que aqui entrar, apanhem-no!
Lazarentos e descalços, penteados e carecas, Nenhum deles tem chapéu, Eles vêm até nós para chorar. Os que aqui chegarem, apanhem-nos! Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos! Boas vindas a todos os que chegam a nós! Vamos, estamos prontos! Já estão chegando! A miséria os traz aqui como um rebanho! São obrigados a vir, Até nós, estão chegando! Daqui eles não escapam, não deixaremos! Sejam bem-vindos, sejam bem-vindos! Boas vindas a todos os que chegam a nós! XI NOS MATADOUROS EM FRENTE AO ARMAZÉM DAS FÁBRICAS GRAHAM Os matadouros estão quase vazios. Passam apenas alguns grupos de operários. JOANA,
chega e pergunta – Vocês viram passar três homens que vinham buscar uma carta? Ao fundo ouve-se gritos que se aproximam. Passam então os dois dirigentes operários escoltados por soldados. Imóvel, Joana segue com o olhar os prisioneiros. Ela então ouve, a seu lado, dois homens conversando. UM DELES – Quem são eles? O OUTRO
Nenhum deles Pensou só em si mesmo; Perseguidos sem trégua, Eles combateram Pelo pão dos outros. UM DELES – E por que foram presos?
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– O homem injusto atravessa a rua à luz do dia, mas o justo se esconde. UM DELES – O que farão com eles? O OUTRO: O salário deles é baixo e seu trabalho útil à maioria, Nenhum, entretanto, chega ao termo de sua vida, Nenhum come seu pão tranqüilamente, Nenhum morre de barriga cheia, Nem é enterrado com decência. Todos perecem antes do tempo, Golpeados, pisoteados, Lançados em terra profana. UM DELES – Por que não se ouve falar deles? O OUTRO
O OUTRO
Quando nos jornais falarem de criminosos abatidos, Ou de malfeitores postos na cadeia, saiba que são eles. UM DELES – Sempre será assim? O OUTRO – Não. Joana se vira, os jornalistas a interpelam. OS JORNALISTAS – Vejam só, não é a nossa Madona dos matadouros? Hei, você aí! As coisas deram errado. A greve geral fez água. As fábricas reabrem, mas apenas para dois terços dos operários; o salário também, foi reduzido em um terço. E a carne vai subir. JOANA – Os operários concordaram? OS JORNALISTAS – É claro. A decisão sobre a greve geral só chegou a uma parte deles, e a esta a polícia dispersou com o uso de força. Joana cai desmaiada. XII EM FRENTE AO ARMAZÉM DA FÁBRICAS GRAHAM Um grupo de operários entra, carregando lanternas. – Ela deve estar aqui. Ela veio daquele lado e aqui ela gritou para os nossos que as empresas municipais iriam decretar OPERÁRIOS
greve. As rajadas de neve a impediram de ver os soldados. Um deles a derrubou com uma coronhada. Durante alguns segundos eu a vi distintamente. Aqui está! Seriam necessárias muitas como ela. Não, não é ela. Era uma velha operária. Esta aqui não é das nossas. Deixem ela aí no chão. Quando os soldados vierem a recolherão. XIII MORTE E CANONIZAÇÃO DE SANTA JOANA DOS MATADOUROS Agora o templo dos Chapéus Negros está ricamente mobiliado. Divididos em grupos estão os Chapéus Negros, que seguram bandeiras novas, os açougueiros (fabricantes de conservas) os criadores e os compradores. SNYDER:
Sim, a sorte nos sorriu. Deus outra vez se impôs. Nós soubemos ser sublimes E vulgares quando necessário. Nos vales e nos cimos, Em nós podem por fé. Enfim o sucesso chegou E tudo acabou bem. Um grupo de pobres entra; à sua frente, Joana, amparada por um policial. O POLICIAL: Eis aqui uma sem-teto, Recolhida doente Nos matadouros. Seu último endereço Teria sido aqui. JOANA, esticando o braço com a carta na mão, como se ainda quisesse entregá-la:
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Jamais receberá a carta Aquele que agora está morto. Por uma boa causa, um serviço tão pequeno Foi só o que em toda a minha vida Me pediram para fazer. E eu não fiz! Enquanto os pobres tomam assento nos bancos para comer a sopa, Slift discute com Snyder e com os fabricantes. SLIFT – Esta é nossa Joana. Chegou na hora certa. Vamos colocá-la em destaque, empregando todos os meios; pois ela nos ajudou a atravessar a tormenta dessas semanas difíceis, dando provas de humanidade nos matadouros, intercedendo pelos pobres e mesmo proferindo discursos contra nós. Ela será a nossa Santa Joana dos Matadouros. Nós faremos dela uma santa e não economizaremos em homenagens. Pelo contrário. Mostrá-la entre nós provará o quanto nos importam os sentimentos de humanidade. MAULER: Que tome posição em nossas fileiras Esta alma inocente e cândida E que sua bela e pura voz Misture-se aos cânticos de nosso coro, Que Joana exorcize o mal E que por nós ela interceda. BISPA SNYDER: Levanta-te, Joana dos Matadouros, Intercessora dos pobres, Consoladora dos baixios! JOANA: Que vento sopra nesses baixios? Neve, quais os gritos que abafas? Comei vossa sopa! E não desperdiceis esse resto de calor, Vós, a quem não se pode mais explorar! Comei a sopa! Ah, eu poderia levar, A vida tranqüila de um cordeiro, Se eu apenas tivesse entregue
A carta que me confiaram! OS CHAPÉUS NEGROS, dirigindo-se a Joana: Como ela ainda está perturbada, Ela que, na noite, marchava para a luz! Seus atos eram os de um ser humano, E seus erros, também humanos! JOANA, enquanto as moças dos Chapéus Negros a vestem novamente com o uniforme: Ouve-se outra vez o rugir das fábricas: Outra vez se desperdiçou a chance De colocar um freio a esses excessos. E outra vez o mundo Percorre o antigo ciclo. Quando se poderia ter alterado o curso das coisas, Eu faltei. Quando o meu esforço, por menor que fosse, Foi necessário, Eu o neguei. MAULER: Uma alma que exala sublimes impulsos Suporta mal, infelizmente, sua térrea natureza, E em sua marcha altaneira Para evadir-se ao mundano, Desta vida intolerável E atingir o inconcebível, O ideal, o infinito, Ela vai muito adiante, e ultrapassa o objetivo. JOANA: Eu falei em todos os lugares, E tinha sonhos para milhares. Eu falhei com os perseguidos, E só servi aos perseguidores. OS CHAPÉUS NEGROS: No final, toda a obra Onde o espírito não encontra, Matéria a sua altura
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Resta fragmentada Sem alma e sem vida. OS FABRICANTES: O resultado, qualquer que seja, é magnífico Sempre que espírito e negócios se aliam. JOANA: É uma grande verdade Que aprendi e que vale para todos E morrendo eu vos digo: Vossos bons sentimentos, que significam Se não se manifestam em nenhum lugar? De que serve vosso saber Se o que sabeis não tem conseqüência? Eu mesma, o que foi que eu fiz? Nada. Quaisquer que sejam as aparências, Que nada seja considerado como boa ação, Se não for uma ajuda real. Que ninguém seja tido como honrado, Exceto aquele que muda o mundo Definitivamente: isso é o que é realmente necessário. Eu, para os exploradores, caí do céu! Infelizmente! Bondade sem conseqüência! Sentimentos Que não fizeram a menor diferença! Não, eu não transformei nada. Deixando sem medo um mundo por onde passei muito rápido, Eu vos digo: Quando chegar a vossa vez de deixar esse mundo, Não tenhais a preocupação de terem sido bons - Isso não basta – Deixai um mundo bom. GRAHAM – Ela não pode proferir discursos que não sejam razoáveis. Não esqueçamos que ela esteve nos matadouros. JOANA: Pois entre os de cima e os de baixo O abismo é mais profundo Que entre o Himalaia e o fundo do mar.
E o que se passa no alto, Nunca se sabe em baixo. Mas também no alto, ignora-se o que se passa em baixo. No topo e no chão, dois pesos e duas medidas, E dois idiomas diferentes Os homens têm a mesma face E não se reconhecem mais. OS AÇOUGUEIROS E OS CRIADORES, falando alto, de maneira a encobrir a voz de Joana: Para que até o céu se levante o edifício, Precisa-se do chão, como do topo. Que cada um, então, fique no lugar Que lhe é atribuído. E sem descanso nem folga Realize seu dever, Pois se dele esquecer Perturbará nossa harmonia. O que está em baixo tem grande importância, O que está em cima está em seu justo lugar. Maldito aquele que apelar A essas massas essenciais Mas sempre insaciáveis, A essas tropas indispensáveis, Mas que não sabem o quanto, A esses elementos dos baixios! JOANA: Mas os que estão por baixo são assim mantidos Para que os de cima lá continuem. Entre os do alto a baixeza é sem limites. Mas nada mudará se eles melhorarem, Porque o sistema é construído assim: É apenas exploração e desordem, Sistema bestial, Contrário à razão. OS CHAPÉUS NEGROS, a Joana: Seja boa e se cale!
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É preciso, obedeça! OS AÇOUGUEIROS: Quem se mover no espaço Nunca poderá subir: Subir é subir sobre alguém, Chegar ao topo implica Pisar na cabeça daqueles que estão por baixo. MAULER: Deves agir, infelizmente, ou seja, ferir! OS CHAPÉUS NEGROS: Nunca esqueças do sangue que mancha teus sapatos. OS AÇOUGUEIROS: E nem pensa em tirá-los, Precisarás deles sempre! OS CHAPÉUS NEGROS: Olha para cima, sempre mais alto, Mas evita, sobretudo, de esquecer os remorsos. OS AÇOUGUEIROS: Podes fazer qualquer coisa! OS CHAPÉUS NEGROS: Mas faça-o Sempre com muito escrúpulo! Espírito contemplador, Denegrindo a ti mesmo, Não esqueças: tua consciência está lá! Atenção, comerciantes, Em suas compras, Não esqueçam, A palavra de Deus, O Verbo magnífico, Sempre necessário - Sobretudo se forem compras especulativas – Esse Verbo que, de século em século, Sempre se metamorfoseia. JOANA: Se alguém um dia vos disser
Que existe um Deus, invisível, é verdade, Do qual podeis esperar ajuda, Batei com uma pedra em seu crânio Até que arrebente. SLIFT – Escutem, é preciso fazer algo para tirar a atenção do que ela fala. Falem, digam qualquer coisa, mas que seja bem alto. BISPA SNYDER – Joana Dark, vinte e cinco anos, contraiu a serviço de Deus uma pneumonia nos matadouros de Chicago. Combatente e mártir. JOANA: E do mesmo modo, quando vos disserem, Que podeis elevar-vos moralmente Mesmo com os pés enfiados na lama, É preciso também golpear-lhes o crânio com uma pedra. Não. Onde reina a violência Não há outro recurso senão a violência. Onde vivem os homens, Só dos homens pode vir ajuda. Todos, para abafar o discurso de Joana, cantam a primeira estrofe do hino. Aos ricos concedei a riqueza! Hosana! Também a virtude, a eles concedei! Hosana! A quem tudo possui, tudo concedei! Hosana! Concedei-lhe a cidade e o Estado! Hosana! Aos vencedores, distingam com um sinal! Hosana! Enquanto eles cantam os versos, os alto-falantes começam a transmitir notícias que espalham o medo: “Bank of America e Citibank estão de pires na mão” “Revolta contra os cupins financeiros conflagra Londres” “Múltis drenam do país US$ 3,266 bilhões só em dez dias de março” “BC assalta U$ 80 bi das reservas para ajudar bancos em Wall Street” “Montadoras almoçam os R$ 8 bi do crédito e mantêm ameaça de demitir trabalhadores” “Deficit dos EUA deve chegar a US$ 9 tri entre 2010 e 2019”
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“Empresas dão calote recorde para remunerar seus acionistas” “Recessão ainda irá se agravar no Japão, diz governo ” “EUA mudam socorro para bancos; Bolsa de NY cai 4,7%” “Crise já eliminou 6 mi de empregos nos EUA” “Incertezas rondam fábricas da GM à beira do fechamento” Sob o efeito dessa terríveis notícias os personagens trocam entre si acusações e diversos insultos como esses: “Açougueiros sujos, se não tivessem degolado tantos porcos!” “Criadores miseráveis, por que criaram tanto gado?” “Alucinados, que manipulam o dinheiro a rodo, por que não empregaram mais gente e pagaram melhores salários? Quem esperam que compre a nossa carne?” “Foram os intermediários que fizeram subir tanto a carne de gado.” “Foram os especuladores de grãos que encareceram o gado.” “Foram as tarifas das estradas de ferro que nos esfolaram.” “Os bancos nos arruínam com os juros que exigem!” “Quem pode pagar tanto dinheiro para estocar o gado e pelos silos de grãos?” “Por que vocês não começaram a reduzir a produção?” “Nós começamos, foram vocês que se recusaram a reduzir também!” “Vocês são os únicos culpados!” “Enquanto não acabarem com vocês não vai melhorar!” “Faz tempo que o destino de vocês está selado!” “O que estão esperando para prender vocês?” Todos cantam a segunda e a terceira estrofes do hino. A voz de Joana já não se ouve: Concedei aos ricos misericórdia, Hosana! Nesses braços que vos estendem, Hosana! Oferecei a vossa graça, Hosana! Ajudai a quem tudo possui, Hosana! Piedade com aqueles que ignoram a fome, Hosana! Notam que Joana para de falar. Ajudai vossa classe, que vos ajuda também, Hosana! Com mãos cheias, Hosana! Esmagai o ódio, Hosana!
Juntai vosso riso aos que riem, Hosana! Que seus crimes terminam bem, Hosana! Durante esta estrofe, as mulheres tentaram oferecer a Joana um prato de sopa. Em duas tentativas ela recusa o prato; na terceira vez ela o pega, levanta e vira. Em seguida cai nos braços delas, tocada pela morte. Não dá mais sinais de vida. Snyder e Mauler vão até ela. MAULER – Dêem uma bandeira a ela. Colocam a bandeira em suas mãos, mas ela cai. BISPA SNYDER – Joana Dark, vinte e cinco anos, morta de pneumonia nos matadouros, a serviço de Deus, combatente e mártir. MAULER: Como a pureza De um ser inocente, A generosidade De uma alma sem mácula, Comove-nos profundamente, Nós que temos a alma comum! E então desperta a boa alma Que temos no fundo de nosso coração. Todos ficam muito tempo de pé, mudos de emoção. A um sinal da bispa, colocam-se suavemente todas as bandeiras sobre Joana, até cobri-la totalmente. O palco é iluminado com uma luz rosada. OS AÇOUGUEIROS E OS CRIADORES: Desde que o mundo é mundo, Um desejo vive no coração do homem, Pelo espírito, sempre ele aspira Às esferas mais elevadas. Aos astros, ao firmamento Um impulso múltiplo o atira. Infelizmente, para sua grande pena, A carne para a terra o arrasta! MAULER: Ai! Um duplo desejo dilacera meu pobre coração, Qual um punhal, até o fundo cravado. Por um nobre ideal, sinto-me atraído:
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Desejo a abnegação, desejo o altruísmo Mas à atração pelo lucro, não consigo resistir Inexplicavelmente! TODOS: Em cada homem habitam Duas almas opostas. Longe de querer escolher uma delas, Ele precisa cuidar de ambas. Homem! Luta sempre contigo mesmo! Sigas sendo este ser uno e sempre dividido! Cuida de tua alma boa, como de tua alma vil, Cuida de tua alma terna, como de tua alma grosseira, Cuida bem das duas!
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