Bernard Cornwell - Por Um Triz

April 13, 2019 | Author: Branca1973 | Category: Death, God, Money, Nature
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Por um Triz [Bernard Cornwell]

POR UM TRIZ BERNARD CORNWELL

Seleções do Reader’s Digest

Capítulo 1

SIR HENRY FORREST, banqueiro e vereador da cidade de Londres, quase sufocava ao entrar no Press Yard, de tal modo o cheiro era horrível, pior do que o fedor que se exalava dos detritos do esgoto de Fleet Ditch que lentamente le ntamente escorriam para o Tâmisa. Era um fedor das profundezas dos infernos, um pivete de deixar um homem sem fôlego e de lágrimas nos olhos e que fez que Sir Henry desse involuntariamente um passo atrás e tapasse o nariz com um lenço, sustendo a respiração com receio de não conseguir conter os vômitos. O guia de Sir Henry deu uma risadinha e comentou: - Eu já não noto o cheiro, mas creio que deve ser muito mau, muito mau mesmo.  Tenha cuidado com com estes degraus, degraus, tenha cuidado. cuidado. Sir Henry afastou relutantemente o lenço do nariz e fez um esforço para falar. - Porque é que chamam a este sítio o Press Yard? - Noutros tempos, era aqui que os prisioneiros eram prensados. Eram espremidos. Punham-lhes Punham-lhes pedras em cima para os persuadirem a contar a verdade. Hoje em dia, já não fazemos isso, há mais piedade e, por consequência, eles mentem com quantos dentes têm. - O guia, um dos carcereiros da prisão, era um homem gordo com calções de cabedal, um casaco sujo c munido de um pesado bastão. Soltou nova risada. - Se os interrogar, não há aqui um único homem ou mulher que se considere culpado! Sir Henry evitava respirar fundo para não ter de inalar aqueles miasmas intoxicantes de dejectos, suor e podridão. - Há sanitários aqui? - perguntou. - E bem modernos. Temos um sistema adequado de esgotos aqui em Newgate. Mas eles são uns porcalhões. Conspurcam o seu próprio ninho. - O carcereiro fechou e trancou o portão gradeado por onde tinham entrado no pátio. - Durante o dia, os condenados gozam da liberdade de passear no Press Yard. excepto nos dias festivos e em ocasiões especiais como esta. - Sorriu para dar a entender a Sir Henry que se tratava de um chiste. - Virando à sua esquerda,

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encontrará os outros cavalheiros que estão na Sala de Convívio. - A Sala de Convívio? - inquiriu Sir Henry. - Onde os condenados se reúnem durante o dia - explicou o carcereiro - E aquelas  janelas à sua esquerda são das arcas do sal. sal. Sir Henry viu, ao fundo do comprido pátio, quinze janelas gradeadas distribuídas por três andares. As celas que lhes ficavam por trás chamavam as arcas do sal. Não fazia ideia por que razão as denominavam assim, mas sabia que as quinze arcas do sal eram as celas dos condenados de Newgate. Um dos condenados, o seu olhar um mero lampejo por detrás das grades grossas, olhava fixamente para Sir Henry, que se virou logo que o carcereiro abriu abriu a pesada porta da Sala de Convívio. Convívio. - Muito agradecido, Sir Henry. - O carcereiro levou a mão à testa ao ser presenteado por Sir Henry com um xelim como recompensa por tê-lo guiado através dos caminhos labirínticos da prisão. Sir Henry foi saudado pelo curador, William Brown, um sujeito lúgubre, calvo e de grande queixada. A seu lado, com um sorriso untuoso, encontrava-se um padre de sotaina e sobrepeliz que usava uma antiquada cabeleira postiça. - Permita-me que lhe apresente o nosso capelão, o reverendo Dr. Horace Cotton - disse o curador. - Sir Henry Forrest. Sir Henry tirou o chapéu. - Um seu criado, Dr. Cotton. - Ao seu serviço, Sir Henry - respondeu o capelão com hipócrita subserviência, após uma grande vénia. - Sir Henry está aqui em missão oficial - informou o curador. - Ah! - O reverendo Cotton abriu desmesuradamente os olhos, como se considerasse estar Sir Henry ali para um acontecimento especialmente agradável - E esta é a sua primeira visita? - A primeira - confirmou Sir Henry. - Várias almas foram já ganhas para Cristo através desta provação - disse o Dr. Cotton. Sorriu, após o que se curvou numa mesura exagerada quando o curador conduziu Sir Henry para o apresentar aos restantes seis convidados para o tradicional pequeno-almoço pequeno-almoço de Newgate. O último desses convidados, convidados, Matthew Logan, dispensava apresentações, já que ele e Sir Henry eram ambos vereadores da City. O Conselho de Vereadores era o governador oficial da Prisão de Newgate. Logan pegou no braço de Sir Henry e conduziu-o conduziu-o para junto da lareira, onde podiam falar em privado. - Tem a certeza de que quer assistir a isto até ao fim? - perguntou Logan, solícito, ao seu amigo - Você está extremamente extremamente pálido. Sir Henry era um homem bem-parecido, alto e elegante, de porte altivo e rosto inteligente. Era um banqueiro rico e bem-sucedido. bem-sucedido. O ca10 belo, prematuramente encanecido, já que perfizera perfizera cinquenta anos havia poucos dias, conferia-lhe uma aparência distinta; contudo, naquele momento, parecia fraco e envelhecido, envelhecido, com um aspecto doentio.

- A estas horas da manhã nunca estou no meu melhor, Logan justificou-se justificou-se ele. - Certo - concordou Logan -, mas esta experiência não é para toda a gente, embora deva dizer que o pequeno-almoço que se segue é bom. O curador serve rins grelhados com mostarda nos dias de enforcam e nforcamento. ento. Como vai Lady Forrest? - Florence vai bem. Obrigado por perguntar. - E a sua filha? - Eleanor sobreviverá sem dúvida aos seus problemas - respondeu Sir Henry secamente. - Ainda está por provar que um coração destroçado seja fatal. - Estendeu as mãos para o lume que restava na lareira e que aguardava ser espevitado. - Pobre Eleanor. Se dependesse de mim, Logan, eu deixava-a casar; só que Florence nem quer ouvir falar disso. - As mães geralmente percebem mais dessas coisas - retorquiu Logan displicentemente; depois, o murmúrio das conversas desvaneceu-se, e os convidados voltaram-se todos para uma porta gradeada que entretanto se abrira chiando ruidosamente. Com passos pesados, um homem entrou na sala com um enorme saco de couro. Era entroncado, tinha o rosto avermelhado e envergava calções pretos e casaco preto abotoado, demasiado justo para o seu ventre proeminente, e botinas castanhas de cano de pano. Ao deparar com aquele grupo de cavalheiros, tirou respeitosamente respeitosamente o chapéu surrado. - Aquele ali - sussurrou Logan a Sir Henry - é Mr. James Botting, para os mais íntimos Jemmy, o executor. Sir Henry recordou a si próprio que as pessoas não devem ser julgadas pela sua aparência exterior, embora fosse difícil não se achar desagradável um ser tão horroroso como James Botting, cujo rosto patibular e sanguinolento era ainda desfigurado por verrugas e cicatrizes. Botting atirou o saco de couro para cima de uma mesa, abriu-o e tirou de lá oito rolos de cordel branco que dispôs em fila sobre a mesa. Seguidamente, retirou quatro sacos de algodão, com cerca de trinta centímetros quadrados de área, que colocou ao lado dos rolos de cordel e, finalmente, quatro cordas grossas. Cada corda parecia ter três ou quatro metros de comprimento e apresentava um nó corredio numa ponta e na outra um olhai entrançado. James Botting depositou as cordas sobre a mesa, depois deu um passo atrás. - Bom dia, meus senhores - saudou. - Oh, Botting! - O curador falou num tom de voz que sugeria só 11

nesse momento ter dado pela presença dele. dele. - Um muito bom dia para si. - E está mesmo uma excelente manhã - retorquiu Botting. Não se vê uma única nuvem, Sir. Sempre são só os quatro clientes, Sir? - Só os quatro, Botting. - E eles arrastaram uma grande multidão, isso é que é verdade, uma enorme multidão. - Enorme, enorme - corroborou o curador com ar vago; depois regressou à conversa com um dos convidados convidados para o pequeno-almoço. pequeno-almoço. Logan encarou de novo Sir Henry. - Nós acompanhamos os procedimentos até certo ponto, Sir Henry, mas depois retiramo-nos para saborear os rins grelhados. Nesse momento, fez um gesto com a mão. - Está a ouvir? Sir Henry ouviu o barulho de correntes a arrastarem. O silêncio regressara à sala, e ele sentiu-se tomado por um arrepio de horror. Entrou outro carcereiro. Levou a mão à testa saudando o curador, depois foi colocarse junto a um cepo de madeira colocado no chão. Este carcereiro trazia consigo um pesado martelo. Entretanto, o xerife e o xerife-adjunto assomaram à porta, introduzindo os prisioneiros na Sala de Convívio. Eram três homens e uma mulher. A última pouco mais era do que uma criança e tinha o rosto pálido e angustiado. - Brandy, Sir? - perguntou um dos criados do curador, surgindo ao lado de Matthew Logan e Sir Henry. - Obrigado - exclamou Logan, pegando em dois dos grandes cálices e oferecendo um a Sir Henry - Aquieta o estômago. O sino da prisão começou subitamente a tocar. A rapariga estremeceu ao ouvir o sino, depois o carcereiro ordenou-lhe que colocasse um pé no cepo de madeira, de forma a poder tirar-lhe as grilhetas. Sir Henry bebeu um gole de brandy, mas receou que ele não se conservasse no estômago. Sentia a cabeça leve, como se não fizesse parte do corpo. O carcereiro bateu com o martelo os rebites da primeira grilheta, e Sir Henry viu que o tornozelo da rapariga estava coberto de feridas. O sino continuava a dobrar a finados, e não iria parar até os quatro corpos serem retirados das cordas. Sir Henry estava consciente do tremor da sua mão. Logan tinha o olhar cravado na rapariga, que tremia, assustada. - Ela roubou o colar de pérolas da patroa e deve tê-lo vendido porque nunca mais o encontraram. O tipo alto ao lado dela é um salteador de estrada. Os outros dois assassinaram um merceeiro em Southwark. Movendo-se desajeitadamente por já não estar acostumada a caminhar sem grilhetas, a rapariga afastou-se da bigorna improvisada. Botting ordenou-lhe secamente que fosse até junto dele. 12 - Bebe isso, se quiseres. - Apontou para um cálice que alguém colocara na mesa ao lado das cordas. A rapariga entornou uma parte porque as suas mãos tremiam, mas

bebeu o resto, após o que deixou cair o cálice, que retiniu nas lajes de pedra. - Os braços ao longo do corpo, rapariga - ordenou Botting. - Eu não roubei nada! - protestou ela, chorando. - Silêncio, minha filha, silêncio. - O reverendo Cotton abeirara-se dela entretanto e colocara-lhe uma mão no ombro. - Deus é o nosso refúgio e a nossa força, fo rça, minha filha, e devemos depositar Nele toda a nossa fé. Estás arrependida dos pecados que cometeste, filha? - inquiriu o capelão. - Eu não roubei nada! Sir Henry teve de respirar fundo por diversas vezes. - Conseguiu ver-se livre daqueles títulos brasileiros? - perguntou a Logan. - Vendi-os a Drummonds - respondeu Logan - Estou-lhe imensamente grato por isso, Henry, imensamente grato. - Agradeça a Eleanor. Ela é que viu um relatório num jornal de Paris e tirou as devidas conclusões. E uma rapariga esperta, a minha filha. - É uma pena isso do noivado desfeito - comentou Logan. Observava entretanto a rapariga condenada, que gritou alto quando Botting lhe atou os cotovelos atrás das costas com um pedaço de cordão, apertando-o tanto que ela gemia de dor. - As mãos para frente, rapariga! - ordenou Botting, e quando ela levantou a custo as mãos, prendeu-lhe os pulsos à frente do corpo. O salteador colocou uma moeda na mesa junto do cálice de brandy. - Assim é que é, rapaz - exclamou baixinho o carrasco. A moeda assegurava que a morte do salteador seria tão rápida quanto estivesse ao alcance de Botting. - Eleanor está muito infeliz - disse Sir Henry, agora de costas voltadas para os prisioneiros. prisioneiros. - Eu sei que está. - Sandman era um jovem muito respeitável - comentou Logan. - E continua a ser um jovem muito respeitável - concordou Sir Henry, procurando ignorar o ténue soluçar da rapariga. - Só que praticamente sem futuro agora. E Eleanor não pode contrair casamento numa família caída em e m desgraça. - Claro que não - corroborou corroborou Logan. Sir Henry abanou a cabeça. - E nada disso é culpa de Rider Sandman. Porém, agora não tem um vintém de seu. Completamente Completamente falido. Logan franziu a testa. - Mas tem rendimentos, seguramente? 13 Sir Henry abanou de novo a cabeça. - Vendeu o que tinha e dispôs do dinheiro para a sobrevivência da mãe e da irmã. - Mas decerto não faltam pretendentes a Eleanor?

- Longe disso. - Henry falava num tom deprimido. - Formam fila na rua, Logan. Mas Eleanor põe defeitos em todos. - Ela é boa nisso - comentou Logan em voz baixa, mas sem malícia, porquanto até simpatizava com a filha do seu amigo, embora a considerasse um tanto mimada. - No entanto, casará em breve, sem dúvida? - Sim, sem dúvida - retorquiu Sir Henry, já que não só a sua filha era atraente como toda a gente sabia que ele doaria um rendimento generoso ao futuro genro, razão pela qual ele próprio se sentia muitas vezes tentado a consentir que ela se casasse com Rider Sandman; porém, a mãe de Eleanor não queria ouvir falar nisso. Florence pretendia que Eleanor tivesse um título, e Rider Sandman, além de não o possuir, agora nem sequer fortuna tinha. As cogitações de Sir Henry a respeito da filha foram interrompidas por um grito lancinante da condenada. Voltou-se e viu que Botting lhe pendurava uma das grossas cordas sobre os ombros e ela esquivava-se ao seu contacto. O reverendo Cotton abriu o seu livro de orações. Todos os prisioneiros estavam agora imobilizados. O xerife e o xerife-adjunto, ambos com as vestes e correntes inerentes às funções e ostentando bengalas com castão de prata, dirigiram-se ao curador, que lhes fez uma vénia antes de entregar ao xerife uma folha de papel. papel. - "Eu sou a ressurreição e a vida ..." - ia recitando o reverendo Cotton - "quem crê em Mim, ainda que esteja morto, viverá ..." O xerife acenou com a cabeça e enfiou o papel num dos bolsos do seu manto debruado a pele. Até então, os quatro prisioneiros tinham estado ao cuidado do curador de Newgate, mas agora passavam para as mãos do xerife da City de Londres. O xerife sacou um relógio do bolso e abriu a tampa do mostrador. - Hora de avançar, acho eu. O xerife abriu a procissão à saída da Sala de Convívio. O reverendo Cotton seguia com uma mão pousada no pescoço da rapariga, guiando-a, ao mesmo tempo que lia alto a oração de finados. Os prisioneiros das celas que davam para o Press Yard soltavam gritos de revolta e de despedida à medida que eles iam passando. O xerife conduziu o cortejo por um lanço de escadas de pedra que descia para a passagem lúgubre que corria por debaixo da prisão principal. - Eu não roubei nada - gritou subitamente subitamente a rapariga. 14

- Silêncio, moça - rosnou o curador. Os homens estavam todos nervosos. Queriam que os prisioneiros cooperassem, cooperassem, e a rapariga estava quase a entrar em histeria. - "Senhor, dai-me a conhecer o meu fim" - rezava o capelão. - Por favor! - implorava a rapariga - Não, não! Por favor. Um carcereiro acercou-se dela para o caso de ela el a desfalecer, mas ela prosseguiu arrastando arrastando os pés. Sir Henry observou os prisioneiros a subirem as escadas ao fim do túnel e arrependeu-se arrependeu-se de ter ido. Ao cimo das escadas ficava o átrio, uma u ma câmara de entrada cavernosa que dava acesso à rua chamada Old Bailey. A Porta dos Devedores, que conduzia à rua, estava aberta, mas por ela não passava nenhuma claridade, porquanto o cadafalso fora erguido logo à saída. O ruído da multidão era agora tão intenso que abafava o toque do sino da prisão, porém o sino da Igreja do Santo Sepulcro, que ficava na extremidade da Newgate Street, dobrava também pelas mortes iminentes. iminentes. - Meus senhores - exclamou o xerife, voltando-se para os convidados do pequenoalmoço -, se fizerem o favor de subir as escadas do cadafalso, encontrarão cadeiras do lado direito e do lado esquerdo. Sir Henry avistou à sua frente o vão escuro do fundo do cadafalso, apoiado em toscas vigas de madeira. As pranchas da frente e dos lados do estrado estavam forradas com espessos panos de baeta preta, pelo que a única claridade provinha das frinchas das tábuas que formavam fo rmavam a plataforma elevada. Uns degraus de madeira conduziam a um pavilhão coberto construído na retaguarda do cadafalso. A cobertura destinava-se a proteger e manter secos os ilustres convidados em dias de tempo inclemente, mas naquele dia o sol brilhava o suficiente para, inclusivamente, levar Sir Henry a piscar os olhos ao emergir e mergir no pavilhão. Um enorme aplauso saudou a chegada dos convidados. Ninguém se importava com quem eles eram, e ram, mas o seu aparecimento prenunciava prenunciava a chegada dos prisioneiros. Old Bailey estava pejada de gente. Todas as janelas que davam para a rua se encontravam lotadas, e até havia gente no cimo dos telhados. - Dez xelins pelo aluguel de uma janela - informou Logan. Apontou para uma taberna fronteira ao cadafalso. - Ali a Magpie and Stump dispõe das janelas mais caras porque delas pode avistar-se até o fosso onde eles caem. - Deu uma risadinha de satisfação. Mas, claro, nós é que desfrutamos da melhor panorâmica. Sir Henry pretendia sentar-se mais atrás, mas Logan ocupara já uma das cadeiras da frente, e Sir Henry teve de sentar-se aí também. Estava assombrado. Tanta gente! Por todo o lado viam-se rostos a olharem lá para o alto, para a plataforma forrada de preto. O cadafalso 15

ficava diante do pavilhão coberto; tinha nove metros de comprimento por cerca de cinco de largura e era sobrepujado por uma viga enorme que ia desde a cobertura do pavilhão até ao final da plataforma. Na face inferior da viga, à qual se encontrava encostada uma escada, estavam cravados uns ganchos de talhante. talhante. - Devem ter vindo por causa da rapariga - comentou Logan, cuja satisfação era evidente. "Quão pouco conhecemos os nossos amigos", pensou Sir Henry, que preferia ardentemente ter antes Rider Sandman ali a seu lado. Sempre gostara de Sandman. Sandman fora soldado, e Sir Henry tinha para si que ele decerto não aprovaria que alguém fosse condenado à morte com tanta ligeireza. - Devia permitir que ele e le a desposasse! desposasse! - exclamou. - O quê? - Logan teve de levantar a voz porque a turba clamava para que trouxessem os prisioneiros. prisioneiros. - Nada - respondeu Sir Henry. Naquele momento, a multidão avistou a rapariga, que vinha a subir as escadas atrás de um carcereiro. A turba soltou um rugido enorme, aterrador, e chegou-se toda à frente. Com o cérebro atordoado, Sir Henry reparou subitamente nos quatro caixões abertos que se encontravam à ponta do cadafalso. A rapariga tinha a boca aberta, e as lágrimas corriam-lhe pelo rosto enquanto Botting a conduzia para cima do alçapão, ao centro da plataforma, que rangeu sob o peso de ambos. Botting tirou do bolso um saco de algodão e enfiou-o pela cabeça da rapariga. Ela gritou e tentou afastar-se de Botting, mas o reverendo Cotton colocou-lhe uma mão no braço, ao mesmo tempo que o carrasco pegava na corda suspensa dos ombros dela e começava a subir a escada. Enfiou então o pequeno olhai num dos ganchos de talhante e voltou a descer a escada. Ajustou o baraço à volta da cabeça dela, apertou o nó corredio junto à sua orelha esquerda, depois deu um pequeno puxão na corda, como para se certificar de que ela aguentaria o seu peso. Ela gritou. Sir Henry fechou os olhos. o lhos. - "Ensinai-nos a contar assim os nossos dias" - lia o capelão em tom monocórdico "para que guiemos o coração na sabedoria." - Ámen - exclamou Sir Henry com fervor, com inusitado fervor. Os quatro prisioneiros estavam todos alinhados sobre o alçapão, com os sacos de algodão a cobrir-lhe as caras e os baraços ao pescoço. - Confessai os vossos pecados - exortava o reverendo Cotton. A multidão reclamava silêncio, na esperança de que fossem proferidas algumas últimas palavras. - Eu não fiz nada! - gritou a rapariga. - Vamos lá, Botting! - O xerife queria aquilo concluído depresdepres16

sa. Botting dirigiu-se então para a parte de trás do pavilhão, preparando-se para descer as escadas. Naquele momento, apenas os quatro condenados e o capelão se encontravam expostos à luz do Sol. A rapariga estava agitada e, sob o pano fino de algodão que lhe escondia o rosto, Sir Henry distinguia perfeitamente perfeitamente a sua boca a abrir-se e fechar-se. Debaixo da plataforma, o carrasco abanou a corda ligada ao barrote de madeira que suportava a porta do alçapão. O barrote moveu-se, mas não se deslocou completamente. Sir Henry, sem se dar conta de que sustinha a respiração, viu a porta do alçapão estremecer. A turba soltou um grito de excitação colectiva, que se extinguiu assim que se apercebeu de que os corpos não tinham caído; então, Botting deu um puxão violento à corda e a porta do alçapão desceu completamente, deixando cair os corpos. Foi uma queda pequena, talvez de um metro e meio ou um metro e oitenta no máximo, que não matou nenhum deles. - Era mais rápido quando utilizavam a carroça em Tyburn - explicou Logan, inclinando-se inclinando-se para a frente. - Mas, desta forma, obtém-se mais Morris. Sir Henry não precisou de perguntar o que Logan queria dizer com aquilo. Os quatro baloiçavam, contorcendo-se violentamente. Estavam a realizar a dança Morris do cadafalso, os sacões prenunciadores da morte provocados pelos esforços desesperados dos condenados para se libertarem dos baraços, que os sufocam e impedem de respirar. Sir Henry não observou nada disso porque conservou os olhos fechados. A multidão aplaudia selvaticamente, porque Botting subira entretanto para os ombros do salteador a fim de apressar a sua morte. - O primeiro já lá vai - exclamou Logan enquanto Botting descia do cadáver. - E, por Deus, estou cá com um destes apetites! Dos quatro, três ainda dançavam, mas cada vez mais frouxamente. O salteador morto baloiçava, de cabeça descaída para o lado, quando Botting se içava nos tornozelos da rapariga. De súbito, Sir Henry não conseguiu aguentar por mais tempo aquele espectáculo e, descendo, cambaleante, os degraus do cadafalso, saiu para a protecção escura e fresca do átrio de pedra e vomitou. Capítulo 2

RIDER SANDMAN levantou-se tarde naquela manhã de segunda-feira, porquanto lhe tinham pago sete guinéus para jogar pelo onze de Sir John Hart contra uma equipa do Sussex. Os vencedores partilhariam entre si um prémio de cem guinéus, e Sandman obtivera sessenta e três 17

pontos no primeiro turno e trinta e dois no segundo; não obstante o onze de Sir John tinha perdido. Isso acontecera no sábado, e Sandman atento ao comportamento dos restantes batedores, apercebera-se de que o jogo fora viciado. Os corretores de apostas tinham sido espoliados porque se esperava que a equipa de Sir John vencesse facilmente ao que não era indiferente o facto de Rider Sandman alinhar por ela mas alguém apostara fortemente no onze do Sussex. Corriam rumores de que ate mesmo Sir John apostara contra a sua própria equipa Por conseguinte, o capitão Rider Sandman, retirado do 52 " Regimento de Infantaria de Sua Majestade, regressara a Londres a pé Regressara a pé porque se recusara a partilhar a carruagem com homens que tinham aceitado um suborno para perderem um jogo. Adorava críquete e era bom jogador, mas detestava corrupção e possuía um temperamento forte. Envolvera-se numa discussão acesa com os seus traiçoeiros companheiros de equipa, e enquanto eles tinham passado aquela noite na confortável mansão de Sir John e viajado confortavelmente confortavelmente para Londres de carruagem na manhã seguinte, ele não fizera nem uma coisa nem outra. Era demasiado orgulhoso Orgulhoso e pobre. Não pudera viajar na diligência porque no meio da fúria, atirara o prémio de jogo à cara de Sir John Hart Por isso, regressara regressara a casa a pé, tendo passado a noite de sábado num palheiro e caminhado todo o dia de domingo até a sola da bota direita quase se ter despegado. Chegara ao seu quarto alugado numas águas-furtadas em Drury Lane já muito tarde, despira-se completamente atara-se para cima da cama estreita e adormecera. Adormecera simplesmente. simplesmente. Na altura e m que a porta do alçapão se abrira em Old Bailey, Sandman sonhava ainda, com os ouvidos cheios do fragor de cascos e do troar dos mosquetes e dos canhões. O sonho iria terminar com a carga de cavalaria a romper por entre as filas formadas pelos casacas vermelhas, mas, de repente, o fragor dos cascos transformou-se no rumor de passos apressados e num leve bater à sua porta. Abriu os olhos e, antes mesmo de conseguir dizer alguma coisa,  já Sally Hood lhe entrava entrava pelo quarto adentro. adentro. Sally riu-se. riu-se. - Raios, parece que o acordei. acordei. Por Deus, Peço imensa desculpa! - tudo bem, Miss Hood. Que horas são? - Acabam de soar as oito e meia em St. Giles - informou - Oh, meu Deus! - Sandman sentou-se na cama, depois lembrou-se que estava

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