BECKETT, Samuel - Mal Visto Mal Dito
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BECKETT, Samuel - Mal Visto Mal Dito...
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BECKETT, Samuel Mal Visto Mal Dito Do lugar onde está deitada ela vê Vénus elevar-se. De novo. Do lugar onde está deitada quando os céus estão limpos ela vê Vénus elevar-se perseguida pelo sol. Ela deseja-o nesse instante ao princípio de toda a vida. De novo. Ao crepúsculo quando os céus estão limpos ela saboreia a vingança da estrela. De Vénus. Da outra janela. Sentada rígida na sua velha cadeira ela vigia a radiosa. A sua velha cadeira de cozinha sem braços. Ela emerge dos últimos raios e mais e mais brilhante declina e apaga-se por sua vez. De novo. Ela permanece sentada ereta e rígida na escuridão que cresce lúgubre. Tudo de negro vestida. Esta incapacidade de se mover ela não a pode evitar. A caminho de um dado ponto por vezes imobiliza-se na sua trajetória. Só há retomando muito tempo depois já sem saber para onde ou para quê. De joelhos particularmente é-lhe difícil não ficar assim para sempre. Mão sobre a mão num suporte qualquer. Como os pés da cama. E sobre elas a sua cabeça. Aí então ela fica como que de pedra face à noite. Exceto o branco do seu cabelo e o pálido branco cerúleo do rosto e mãos tudo é negro. Para um olho que não necessita de luz para ver. Tudo isto no presente como se tivesse ela o infortúnio de ainda ser deste mundo. A cabana. A sua localização. Cuidado. Continuar. No centro inexistente de um lugar sem forma. Mais circular do que qualquer outra coisa enfim. Plano de certeza. Para atravessá-lo numa linha reta ela demora cinco a dez minutos. Dependendo da velocidade dela e do raio escolhido. Aqui ela que gosta de aqui ela que agora só se pode perder nunca se perde. Pedras sempre mais numerosas. Erva mesmo daninha sempre mais escassa. Magras pastagens rodeiam-na às quais lentamente ganha. Sem que ninguém se oponha. Sem que ninguém se tivesse jamais oposto. Como se condenada a invadir. Por que uma cabana num sítio destes? Por quê? Cuidado. Antes de responder que no passado remoto ao tempo da sua construção um prado de trevo crescia até às suas paredes. Donde se subentende que a culpada é ela. E dela como que de um núcleo maligno qual é a palavra errada o mal espalha. Sem ninguém preconizar, sem nunca ninguém ter
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preconizado a sua demolição. Como se condenada a sobreviver. Resposta à pergunta. Pedras de gesso de um efeito surpreendente à luz do luar. Supondo que esteja em oposição quando os céus estão limpos. Depressa então ainda sob o sortilégio de Vénus depressa para a outra janela para ver a outra maravilha surgir. Cada vez mais branca à medida que se eleva assim embranquece mais e mais as pedras. Rígida de pé com a face e mãos contra o vidro ela maravilha-se durante muito tempo. As duas zonas formam um todo grosseiramente circular. Como se desenhado por uma mão incerta. Diâmetro. Cuidado. Mil metros. Mais ou menos. Para lá o desconhecido. Felizmente. A sensação de se estar por vezes abaixo do nível do mar. Particularmente à noite quando os céus estão limpos. Mar próximo invisível. Inaudível. Toda a superfície coberta de erva. Uma vez fora da zona de pedras. Exceto onde recuou do solo de gesso. Inúmeros calhaus brancos de toda a forma e feitio. De admirável efeito na luz do luar. Quanto a animais só ovinos. Depois de uma longa hesitação. São brancos e contentam-se com pouco. Aparecem de súbito sem se saber como e de súbito desaparecem. Sem pastor perdem-se à vontade. Flores? Cuidado. Apenas alguns raros crocus no tempo dos cordeiros. E o homem? Finalmente excluído? Apesar de tudo não. Pois não se sentirá ela um dia surpreendida por não o encontrar? Surpreendida não ela está para lá da surpresa. Quantos? Um número seja o que for. Doze. Para guarnecer o círculo estreito do horizonte. Ela levanta os olhos e vê um. Volta-se e vê outro. E assim por diante. Sempre distante. Imóvel ou a afastar-se. Ela nunca viu nenhum que se aproximasse dela. Ou então se esquece. Ela esquece-se. Serão eles sempre o mesmo? Será que a veem a ela? Chega. Uma charneca teria sido mais apropriado. Se mais apropriado fosse necessário. Os cordeiros eram necessários. Com razão ou sem ela. Uma charneca tê-los-ia permitido. Cordeiros por serem brancos. E por outras razões ainda obscuras. Outra razão. E de forma que possam não existir. No tempo dos cordeiros. De forma que de um momento para o outro ela possa levantar os olhos e não encontrar nenhum. Uma charneca tê-los-ia permitido. De qualquer
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pensar que ainda existe vida neste século. Calma, calma. Ela é atraída por um lugar. Às vezes. Há uma pedra nesse lugar. Ela, ela é que a atrai. Bloco retangular arredondado três vezes mais alto que largo. Quatro. Da altura dela agora. Da sua diminuída altura. Quando a atrai ela obedece. Não a pode ver da sua porta. De olhos fechados podia encontrar o seu caminho. Já não fala sozinha. Nunca falou muito. Agora nada. Como se tivesse ela o infortúnio de ainda ser deste mundo. Mas quando a pedra atrai então aos pés a oração, Levem-na. Particularmente à noite quando os céus estão limpos. Com ou sem lua. Eles levam-na e detêm-na à sua frente. Ali ela também como que de pedra. Mas negra. Por vezes na luz do luar. Quase sempre só as estrelas. Invejá-laá ela? Ao intruso imaginário a habitação parece deserta. Mesmo sob constante vigilância não denuncia sinal de vida. O olho colado a uma ou à outra janela tem como única recompensa cortinas negras. Imóvel encostado à porta ele escuta durante muito tempo. Nenhum som. Bate. Ninguém responde. Vela toda a noite em vão atento ao mínimo brilho. Regressa por fim aos seus e confessa, Ninguém. Ela só se mostra aos seus. Mas ela não os tem. Sim, sim ela tem um. E que a tem. Houve um tempo em que ela não aparecia na zona das pedras. Muito tempo. Pelo que não se deixava ver a entrar ou a sair. Em que aparecia somente nas pastagens. Pelo que não se deixava ver ao abandoná-las. Senão como que por encanto. Mas a pouco e pouco ela começou a aparecer. Na zona das pedras. Primeiro obscuramente. Depois de uma forma cada vez mais distinta. Até que com toda tod a a nitidez ela podia ser vista a atravessar o limite em ambos a mbos os sentidos e a fechar a porta atrás dela. Depois um tempo em que dentro das suas paredes ela não aparecia. Muito tempo. Mas pouco a pouco ela começou a aparecer. Dentro das suas paredes. Obscuramente. Tempo em boa verdade ainda presente. Embora ela já não esteja dentro delas. Isto muito tempo. Sim dentro das suas paredes até aqui apenas à janela. A
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subitamente para como morta. E com que dificuldade se levanta quando de joelhos. Mas ali também pouco a pouco ela começa a aparecer mais nítida. Dentro das suas paredes. Bem como outros objetos. Por exemplo, debaixo da almofada _ por exemplo, num recesso profundo este ainda obscuro álbum. Talvez com tempo esteja ao seu lado quando ela o abre nos seus joelhos. Vede os dedos velhos voltar como podem as páginas. E que imagens poderão ser essas que a fazem baixar ainda mais a cabeça e a mantê-la assim hipnotizada? Por enquanto quem sabe nada mais que flores secas. Nada mais! *** Mas rápido apanhá-la onde ela melhor se deixa apanhar. Nas pastagens longe do abrigo. Ela atravessa a zona das pedras e está ali. Cada vez mais nítida à medida que avança. Rápido visto que ela sai cada vez menos. E por assim dizer apenas no Inverno. Inverno nos seus campos de Inverno ela vagueia. Longe do abrigo. De cabeça baixa ela traça o seu lento caminho ondulante através da neve Ao crepúsculo. Ainda outra vez. Sobre a neve a sua longa sombra acompanha-a. Os outros estão ali. Em volta. Os doze. Ao longe. Imóveis ou a afastarem-se. Ela levanta os olhos e vê um. Volta-se e vê outro. De novo para como morta. É agora o momento ou nunca. Mas algo proíbe. Só o tempo de acreditar entrever um início de véu negro. O rosto tem que esperar. Só o tempo antes que o olho desça. Para nada ver aos raios rasantes do sol senão neve. E como a toda a volta pouco a pouco às pegadas dela se apagam. O que é que a protege? Mesmo do seu? Desvia o olhar fixo. Incrimina o adquirido. Proíbe adivinhá-la. O quê senão a vida que termina. A dela. A do outro. Mas de forma tão outra. Ela não necessita de nada. De nada dizível. Enquanto o outro. Como necessitar no fim? Mas como? Como necessitar no fim? Períodos em que ela desaparece. Longos períodos. No tempo dos crocus seria em direção ao túmulo longínquo. Ter tal coisa na imaginação! Além do resto. Segurando pelo ramo inferior e em volta do braço a cruz e a coroa. Mas ela pode desaparecer qualquer De do
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tempo depois. Assim por diante. Qualquer outro teria renunciado. Confessa Ninguém. Ninguém mais. Qualquer outro exceto este outro. À espera que ela reapareça. De modo a retomar. Retomar a qual é a palavra errada? Qual a palavra errada? Fixo num detalhe qualquer do deserto o olho enche-se de lágrimas. A imaginação na fronteira do espírito abre as suas tristes asas. Ausente ela ouve uma noite o mar como se distante. Levanta a comprida saia para caminhar mais depressa e descobre as suas botas e meias até à barriga das pernas. Lágrimas. Último exemplo a pedra da soleira da porta que lentamente o seu pouco peso desgastou. Lágrimas. *** Antes de preteridas em benefício das meias as botinas têm tempo de estar mal abotoadas. Esgotadas as lágrimas como habitualmente acontece vede agora o abotoador em todo o seu esplendor. De prata escurecida pisciforme ele pende pelo seu gancho de um prego. Ele oscila ligeiramente sem descanso. Como se aqui sem descanso a terra ligeiramente treme-se. O cabo oval lavrado à semelhança de escamas. A haste um pouco curva conduz para cima até ao gancho o olho por enquanto ainda seco. De tão usado perdeu em parte a sua curvatura. A ponto de parecer por momentos sem préstimo. Uma brincadeira de crianças com um alicate corrigir a deformação. Tê-lo-á ela feito alguma vez? Cuidado. Uma vez por vezes. Até já não conseguir. Já não conseguir apertar as pontas. Oh não por fraqueza. Desde que pende sem préstimo do prego. Oscilando imperceptivelmente sem descanso. Reflexos de prata certos crepúsculos quando os céus estão limpos. Grande plano nesse momento. No qual desafiando a razão o prego domina. Muito tempo esta imagem até de súbito se desfocar. Ela está ali. De novo ali. Que o olho da sua vigília seja distraído por um momento. No momento da aurora ou do crepúsculo. Distraído pelo céu. Por qualquer coisa no céu. De modo que quando ele retoma a cortina possa já não estar fechada. Aberta por ela para que ela possa ver o céu. Mas
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sem ir. De volta sem regressar. Subitamente o crepúsculo. Ou a aurora. O olho fixa a janela nua. Nada no céu o distrairá dela jamais. Enquanto ela de dentro por dentro se sacia. Puff! Ocultada. Nada a ter movido. Desde já tudo confundido. Coisas e quimeras. Como desde sempre. Confundido e anulado. Apesar das precauções. Se ela pudesse ser só pura sombra. Sem mistura. Esta velha tão moribunda. Tão morta. No manicómio do crâneo e em nenhum lugar outro. Onde não existem mais precauções a tomar. Mais precauções possíveis. Internada lá em cima com o resto. Cabana e pedras. O lote completo. E o olho. Como tudo seria simples então. Se tudo pudesse ser só pura sombra. Nem ser nem ter sido nem vir a ser. Calma. Continua. Cuidado. Eis em auxílio duas luzes. Duas pequenas claraboias. Postas no telhado inclinado uma em cada água. Cada uma vertendo meia luz. Não existe teto, portanto. Necessariamente. Senão com as cortinas fechadas ela estaria às escuras. Dia e noite no escuro. E depois? Ela já não ergue os olhos. Quase nunca. Mas quando está deitada de olhos abertos ela consegue distinguir as traves. Na meia luz que as claraboias vertem.
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BECKETT, Samuel. O Despovoador / Mal Visto Mal Dito. Tradução: Eloisa Araújo Ribeiro. Martins Fontes. Ano 2008. Páginas 112. Crítica literária não é contabilidade, dizia Samuel Beckett. O despovoador (1970) e Mal visto mal dito (1981), dois de seus textos tardios reunidos neste volume, diversos, mas igualmente essenciais e radicais, o cobrem de razão. Obriga todo leitor, crítico ou não, a abandonar de vez o maniqueísmo do preto-no-branco, repensando a utilidade de esquadro e compasso. Convidam a ingressar na suspensão angustiada do cinza, lusco-fusco em que o irlandês autor de Godot sempre esteve em casa. Econômica e tensa, para melhor acomodar o caos da experiência moderna, a obra final beckettiana rechaça qualquer simplificação. Uma fenomenologia da percepção e uma arqueologia do saber aproximam O despovoador, distopia que ecoa o Inferno dantesco, e Mal visto mal dito, janela e réquiem para uma velha enclausurada. Nos rastros desses textos ficcionais, autor e leitor percorrem tentativas de explorar um labirinto muito peculiar, o "manicômio do crânio", consciência profunda ou abismos de inconsciência, onde vontade expressiva e vestígios do mundo se combinam em corredores de linguagem mais ou menos triunfante, mais ou menos arruinada. Renunciar à ilusão do controle - fio de Ariadne com o qual acenava sereno, o narrador clássico - e examinar as condições dessa falência (moderna, por certo, e mediada pela onipresença de um olhar investigativo cioso de si, observador e observado) é para onde aponta a narrativa beckettiana madura, a da "última pessoa narrativa", trabalho das três últimas décadas de sua vida.
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