Balard, Michel. a Renovação Da Civilização Pelos Carolíngios.

February 12, 2017 | Author: Agata Iasmin Vital | Category: N/A
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5 A renovação da civilização pelos Carolíngios A existencia de um grande espaço político com cerca de um milhão e duzentos mil quilómetro quadrados povoados talvez por quinze milhões de habitantes sob a autoridade de Carlos Magno e de Luís o Piedoso só podia favorecer o estabelecimento de uma civilização comum. A sua quase total coincidência com o mundo cristão romano incitou a Igreja a propor um programa de Renovatio regni Francorum. Trata-se de criar uma nova entidade política por meio do baptismo dos pagãos. Este baptismo ou esta cristianização faz com que possa falar-se de um segundo nascimento do mundo bárbaro, ou, mais precisamente, de um re-nascimento tanto a nível político através das inovações de Carlos Magno, como a nível religioso pelas reformas de Luís o Piedoso, e ainda a nível social e económico através da introdução da vassalidade nas estruturas do «Estado» e da criação de uma moeda única. Assim se explica a importância da Renovação ou do Renascimento carolíngio.

1. A noção de «Estado» • O Estado e o direito

Mal se aborda o problema da unidade política e da organização comum que administra os indivíduos, isto é, o «Estado», deparam-se-nos desde logo duas concepções. Relativamente aos Francos que dirigem o reino, o poder é exercido em conjunto pela nobreza dos homens livres e pelo rei. Estes dois elementos formam o Estado, espécie de comunidade de pessoas sem domicílio fixo, que se autopromove submetendo a si outros povos. Este «Estado» é reforçado pela prestação do juramento de fidelidade e pela guerra de conquista. Por várias vezes, Carlos Magno submete a tal juramento todos os homens com a idade de doze anos; embora a sua significação se viesse precisando melhor com o tempo, estes juramentos são em geral mal compreendidos pelos súbditos, aos olhos dos quais o soberano os exigia porque tinha necessidade de ser apoiado, e isso é interpretado como uma confissão de fraqueza. Em contrapartida, a guerra era necessária pois impedia que a nobreza, ocupada em bater-se, se arrogasse localmente demasiados poderes. Era, portanto, uma concepção concreta, a deste «Estado» que apenas resiste pela vitória. Os clérigos tentam então fazer reaparecer a noção romana de Estado com a expressão, desta vez abstracta, de respublica, «a coisa pública», o bem comum. «Renovam» 80

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esta expressão juntando-lhe a palavra Christiana. A Respublica Christiana, sob Luís o Piedoso, é constantemente afirmada. O imperador, como o diz uma capitular de 823-825, zela pela Igreja, mantém a paz e a justiça, mas o seu cargo está, na verdade, de tal forma dividido que «saiba cada um de vós onde quer que habite e seja qual for a categoria social em que se insere, que tem uma parte do nosso fardo; por isso devo ser o vosso admonitor, de todos vós, e vós deveis ser os meus auxiliares». Esta concepção era ainda demasiado elevada para ser compreendida por todos, mas jamais iria desaparecer. A unidade do Estado devia ser completada pela unidade da legislação. Carlos Magno, antes da partida de cada expedição militar, utiliza a assembleia de todos os homens livres reunidos no Campo de Maio - o chamado plaid geral -, para obter o acordo dos Grandes, leigos e eclesiásücos, para as suas decisões. Estas eram então proclamadas e postas por escrito, capítulo por capítulo (capitula), o que vale o nome de «capitulares» a estes documentos ou ordenanças oficiais. Automaticamente, elas passam a ser exequíveis, em consequência da proclamação verbal do soberano e do seu direito de banum, o direito de coacção e de punição. Carlos Magno inova quando manda redigi-las, para reforçar ou mesmo suprimir a ordem oral. As capitulares resolveram um número muitíssimo maior de questões de ordem regulamentar do que legislativa. Com efeito, no interior do Império cada povo conservara a sua lei; os Romanos mantinham a sua, o mesmo sucedendo com os Lombardos, os Hispano-Visigodos da Septimânia, os Bávaros, os Burgúndios, os Francos, etc. Carlos Magno manda redigir a lei dos Frísios e a lei dos Saxões. A personalidade das leis persistia, por conseguinte, impedindo a unidade do Império. Outro entrave a essa mesma unidade gerou-o a criação dos sub-reinos - Aquitânia, Itália, Baviera -, mas vimos já quais os motivos que levaram os imperadores carolíngios a proceder desta forma. A diversidade étnica e regional do Império foi a causa principal do colapso da unidade.

Plaid: reunião bi-anual dos homens livres por ordem do rei germânico, a fim de serem aí tomadas decisões ou prepararl e a partida de expedições militares.

O governo central e os seus agentes •

Os governos de Carlos Magno e de Luís o Piedoso são portanto uma tentativa permanente de se desenvencilharem da herança primitiva e fazê-la evoluir para uma concepção mais romana de espírito, e também mais eficaz. O palácio começa a fixar-se no domínio de Aix-la-Chapelle em 794, onde Carlos Magno passa a residir regularmente a partir de 807. A sua volta, os oficiais-mores ajudam-no no seu cargo com a confusão característica da época entre 81

Senescal: de siniskalk. o mais velho dos criados. Oficial da corte encarregado de apresentar os pratos.

Capela: esta designação decorre do facto de ali estar contida a relíquia mais insigne do reino dos Francos, a capa ou chape (daí, chapella) de São Martinho.

Pagus: este coincide com o condado na época merovíngia e torna-se, muitas vezes, uma subdivisão do condado na época carolíngia. Honra: ver p. 105.

Hoste: exército. A palavra deriva do latim hostis, o inimigo. Mali: tribunal régio, presidido pelo conde.

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tarefas públicas e tarefas privadas. O senescal e o escanção ocupam-se dos criados (valets) e da provisão da mesa em alimentos e vinhos. Têm como principal função a gestão dos domínios imperiais ou fisci, cujos intendentes ou domestici supervisionam. O camareiro-mor, além dos aposentos do rei, zela pela boa ordem do tesouro e administra-o por intermédio de exactores. O condestável, com os seus dois ferradores, assegura a remonta dos cavalos, os transportes de reabastecimento do exército, etc. O conde do palácio substitui o soberano nos processos em recurso que este não pode decidir durante as suas ausências da corte. O organismo que mais se assemelharia a um início de administração central é a Capela (Chapelle), que não se limita a assegurar o serviço religioso da corte, porquanto, dirigida por um capelão-mor de dignidade episcopal, integra todo um pessoal de clérigos, então os únicos letrados, que devem assegurar a legislação eclesiástica, o despacho da correspondência oficial e a promulgação dos diplomas régios. Entre todos estes escrivães e notários, aparece, no final do reinado de Carlos Magno, um protonotário que recebe também o nome de «chanceler», porque normalmente permanece de pé na Capela junto do chancel (cancelo, a vedação em pedra insculpida que separa o santuário do resto da basílica). Ocupa-se dos arquivos do palácio, recentemente criados, onde se conservam todos os documentos enviados ao rei e as cópias dos que este expediu. A ordem intimada do palácio era executada a nível do condado. Há cerca de trezentos condados no Império, divididos em pagi ou em gau. O condado é dirigido por um conde, o pagus por um vigário e o gau por um centenier (administrador da centaine, divisão territorial franca). Escolhido pelo rei, o conde pode ser por este transferido ou exonerado; é remunerado com o usufruto de rendimentos de bens fundiários imperiais ao qual se dá o nome de honor ou comitatus. Responsável por numerosas funções, este executa as ordens reais e convoca os homens livres para a expedição anual (a hoste); assegura a presidência do tribunal régio, o mall público, à razão de três sessões por ano no mínimo, em cada subdivisão do condado para as causas maiores. Com ele deviam trabalhar entre dez a doze pessoas, o que perfaz um total de três mil servidores encarregados de administrar o Império carolíngio, um pessoal tanto mais reduzido quanto se sabe que o Império Romano, só na cidade de Trèves, mantinha dois mil funcionários! Por aqui se compreende como seria difícil para Carlos Magno controlar todos os seus territórios com tão escasso enquadramento. O Império está, de facto, subadministrado. Em alguns casos, Carlos Magno recorre ao margraviado, agrupando condados que confia

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a um duque ou a um markgraf. Situados nas fronteiras, estes territorios vivem num estado de guerra permanente, tornando-se indispensável a presença de um chefe dotado de todos os poderes. As «marcas» mais importantes eram as de Espanha, da Bretanha e as que estavam estabelecidas face aos Dinamarqueses, aos Vendes e aos Avaros. Para impedir que tais agentes, em número tão reduzido, viessem a converter-se em déspotas locais, Carlos Magno reforça a instituição dos missi dominici. Estes enviados régios, circulando em número de dois ou de três, na maior parte dos casos um conde e um bispo, aparecem por volta de 779, tendo como tarefa investigar sobre eventuais abusos, propor sanções, presidir ao tribunal, etc. São eles que asseguram um mínimo de coesão ao Império, e quando não conseguem pôr cobro aos excessos de poder dos condes, Carlos Magno pode então utilizar um outro meio, a imunidade, que o imperador entende reforçar com a criação dos «avoués» leigos; a estes cabe assegurar a defesa dos bens do «imunizado», bem como administrar o seu pessoal. Desta forma, o conde já não pode exercer a sua arbitrariedade. Por último, e ainda animado pelo mesmo desejo de reforçar a solidez do seu império, Carlos Magno introduz a vassalidade no Estado, ao sistematizar a união do «benefício» com o vínculo pessoal. O monarca exorta todos os homens livres a entrarem na obediência de um senhor através da cerimónia da «recomendação». Em troca do serviço militar desse homem «recomendado», o senhor é obrigado a oferecer-lhe o usufruir vitalício de um dos seus próprios bens fundiários. O serviço do vassalo é o móbil do «benefício». Criava-se, deste modo, toda uma hierarquia de subordinações, que atingia o próprio Carlos Magno, o qual tem ligados a si os vassi dominici, a quem concede chasement nas suas terras. Por outro lado, obriga bispos e abades a entrarem, também eles, no sistema da recomendação. Com esta rede de fidelidades entrecruzando-se e culminando na sua pessoa, contava o imperador levar o edifício político a assentar no respeito da palavra dada, na fé jurada sobre os Evangelhos ou sobre relíquias, e, sobretudo, nas obrigações mútuas entre senhor e vassalo. Os meios de governação

Markgraf (margrave, «marquês»): isto é, o conde de uma «marca». Marca: zona fronteiriça indecisa, estabelecida contra os pagãos ou os Sarracenos com excepção da da Bretanha.

Imunidade: ver p. 59. Avouè: ver p. 106.

Recomendação: ver pp. 59 e 91.

Vassi dominici: vassalos particulares do rei. Chasement: chaser: instalar alguém, em regime de domicílio, nas suas terras (casatos).



Concepção e organização políticas eram sustentadas por poderosos meios de acção. O exército era entre estes o principal, na medida em que a guerra é uma instituição pública, a mais importante de todas. Teoricamente, todos os homens livres estão obrigados ao serviço militar, a expensas suas, e são convocados no Campo de Maio para 83

Broigne: túnica de couro coberta de placas de ferro cosidas.

Villa: verp. 49.

Freda: a terça parte das coimas judiciais que vai para o rei.

«Échevinage, échevin»: (almotaçaria, almotacé) do scabinat carolíngio. Corpo de magistrados municipais que julgam em nome do senhor, e em seguida dirigem a administração das comunas. Ordálio: ver p. 59.

Faida: vingança obrigatória do parente de uma vítima sobre a família do assassino. 84

expedições que duram, não raro, três meses ou mais. Na prática, porém, acabam por ser convocados só os vassalos e os homens livres que habitam perto da região onde vai ter lugar a refrega; os casos de deserção são punidos com a morte. Em geral, a infantaria desempenhava um fraco papel; frequentemente, é a cavalaria pesada que dita a decisão, graças ao seu equipamento. Com efeito, o cavaleiro usava em combate uma «broigne», uma espada comprida e uma lança. Mas como todo este armamento ficava aproximadamente pelo preço (elevadíssimo) de duas dezenas de vacas, o número destes cavaleiros era escasso. Em 811, quatro exércitos operavam no Elba, no Danúbio, no Ebro e na Bretanha. Cada exército integrava de seis a dez mil peões e entre 2500 e 3000 cavaleiros, 800 dos quais couraçados. O facto de contar, na maior parte das vezes, com tropas tão fracas numericamente explica que Carlos Magno tenha recorrido ao massacre e ao terror para garantir a vitória. Outro meio de acção de Carlos Magno era a sua riqueza, e muito particularmente a sua riqueza fundiária. E com um zelo cioso que ele gere os seus domínios (fiscos), como o demonstra a sua capitular De villis. Se esbanjava este capital a conceder terras aos seus vassalos, recuperava-as contudo em seguida, pela morte destes últimos. Mas sob Luís, o Piedoso, o engrandecimento desse capital viria a parar com o fim das guerras e, demais, o imperador faz concessões de terras em regime de plena propriedade e não a título de usufruto vitalício, o que precipita o seu decréscimo. Os outros rendimentos consistiam sobretudo em coimas judiciais (freda), coimas por recusa de ingresso no exército (heriban), impostos indirectos, nomeadamente portagens, o imposto do terrádigo, etc. O imposto directo romano, tornado consuetudinário, é mantido sob formas e vocábulos mas elucidados. Recursos, em suma, mais ligados com a guerra exterior do que com a paz interna. Para alcançar essa paz, era necessária uma justiça eficaz. E neste domínio que se revela mais forte a influência de Carlos Magno. As suas capitulares comportam prescrições numerosas destinadas a melhorar a justiça do tribunal condal. Cria, em particular, juízes profissionais, os «échevins» - almotacés -, sete por cada tribunal condal. Esforça-se por desenvolver a prova por testemunho ou por averiguação a fim de pôr cobro a um processo oral cujos principais meios de acção continuavam a ser os co-juradores ou o ordálio. Organiza o recurso ao tribunal do palácio no caso de falsos julgamentos. Todavia, apesar de todos estes esforços e a despeito da influência da Igreja que intervinha com frequência para humanizar as sentenças, a crueza das penas, a perpetuação da faida, a corrupção

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dos juízes persistiram. Nada é mais" dramático nem tão revelador como este mundo de violência em constante choque com os esforços contínuos de paz e de ordem dos imperadores carolíngios.

2. A Igreja Face ao Estado

A fraqueza desta governação que não consegue dominar este aglomerado de reinos e de povos tão diversos na sua totalidade explica o recurso contínuo à Igreja, a única força moral e material expandida por todo o Império a ponto de confundir-se com este último. Ela é o cimento de uma unidade constantemente pretendida, mas jamais alcançada. Melhor do que o serviço militar ou o juramento exigido a cada homem livre, melhor do que os condes, os missi ou os vassalos, o sermão do padre da paróquia pode transmitir a vontade régia e robustecê-la pela obediência que todo o cristão deve ao rei, até aos pontos mais recuados do Império. Ela é, portanto, o principal auxiliar do Estado, que se esforça por renovar do mesmo modo que renovou a ideia real ou a ideia imperial. Vimos a que ponto Carlos Magno, ao contrário de Luís o Piedoso, sempre quis tê-la totalmente na mão. A decisão do imperador é indispensável para a entrada no clericato; o imperador nomeia todos os bispos e por vezes até os abades, ou então nomeia, a par dos abades regulares, abades leigos; incita o clero a entrar na vassalidade, obriga os grandes dignitários a participar nos plaids gerais, a dirigir o seu contingente de homens livres na guerra, a vigiar os condes, nomeando-os missi dominici, etc. As suas capitulares legislam sobre a Igreja e estão pejadas de considerações de moral cristã. Preside, em suma, aos concílios.

Abade leigo: espécie de vassalo do príncipe que presta o serviço militar em troca da fruição de uma parte das terras monásticas.

Esta confusão do espiritual com o temporal teve como principal resultado ajudar a Igreja a acelerar a sua reforma, empreendida no século Viu. Duas gerações de grandes bispos representam este duplo renascimento da Igreja, o primeiro sob Carlos Magno com Angilramno, bispo de Metz, Teodulfo, bispo de Orleães, o segundo sob Luís, o Piedoso, com Jonas, bispo de Orleães e Agobardo, bispo de Lyon, etc. A primeira geração reorganiza, ao passo que a segunda se esforça para aplicar um programa. De igual modo, no plano intelectual, a primeira situa-se ao nível da aprendizagem das letras, enquanto a segunda vai elaborar um pensamento que conduz ao renascimento da Filosofia. 85

É esta, em particular, qué pensa a estrutura social dividindo-a em três ordens: a ordem dos clérigos, a ordem dos monges e a ordem dos leigos. • Os clérigos

Corepíscoco: bispo itinerante nomeado por um bispo titular na sua própria diocese para o ajudar a administrar o campo. Prebenda: parte da renda da mensa reservada a um cónego para cobrir a sua alimentação e manutenção. Dízimo: décima parte da colheita que verte para o clero no quadro da paróquia.

A primeira ordem compreende os bispos, os párocos e os cónegos. A reforma episcopal fica mais ou menos concluída por volta de 814 com o estabelecimento dos arcebispados em substituição das metrópoles extintas. Ao bispo .cabem então múltiplas tarefas, nomeadamente visitar todos os anos as paróquias rurais e as igrejas privadas pertencentes aos grandes proprietários que as construíram nos seus domínios, criar escolas de chantres e de leitores, zelar pelos mosteiros, nomear os corepíscocos no caso do seu bispado ser demasiado grande, pregar e defender a fé, ocupar-se, em suma, do serviço da catedral com os cónegos. Estes últimos, desde a época de Crodegango, bispo de Metz em meados do século viu, estão sujeitos a uma regra comum (generalizada no Concílio de Aix de 816). Os cónegos podem possuir alguns bens próprios, mas estão adstritos ao refeitório e dormitório comuns. As rendas dos bispos são divididas em duas partes: a mensa (ou mesa) episcopal, e a mensa capitular (ou mesa dos cónegos). Esta segunda mensa é dividida em tantas prebendas quanto o número de cónegos; a prebenda cobre as necessidades do cónego. Finalmente, surgiria uma legislação episcopal, os estatutos sinodais, que vem regulamentar a situação dos diáconos e sacerdotes. Esta ocupa-se em particular da sua instrução, ao mesmo tempo que reforça a prática do celibato. Ao nível dos meios materiais do clero paroquial, o problema da confiscação das terras da Igreja pelo soberano é solucionado por meio de uma compensação imposta em 779 no âmbito de uma capitular: doravante, toda a terra, as terras reais incluídas, era devedora do dízimo às igrejas rurais. Um quarto do dízimo deveria ir para o bispado. • Os monges

Se o bispo carolíngio teve um papel brilhante e figurou em muitos casos nas primeiras filas da acção política, já o abade tem um perfil mais modesto. Parece, à primeira vista, que Carlos Magno alimentava uma certa desconfiança em relação aos mosteiros onde se abrigavam homens livres, o que contribuía, inevitavelmente, para diminuir o seu potencial militar. A eleição livre do abade pelos seus monges não agradava ao monarca, de forma que este nomeia, em muitos casos, além do abade regular, um 86

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abade leigo, o qual, em troca da fruição das terras abadais, lhe prestava o serviço militar. Carlos Magno utilizou os monges como missionários, essencialmente na Saxónia e na Caríntia, misturando pregação e terror, instalação da hierarquia, criação de mosteiros e baptismos forçados. Nunca encorajou, no entanto, missões para o exterior do Império, como o faria mais tarde seu filho. Luís, o Piedoso, teve, com efeito, uma atitude completamente diferente para corii os monges, por quem nutria particular veneração. São Bento de Aniana impeliu-o a pôr em prática uma reforma geral do mundo monástico. A capitular de 10 de Julho de 817 reafirmava a obrigação da Regra de São Bento de Núrsia em todos os conventos, masculinos e femininos, num desígnio de conferir ao culto e à oração um primado absoluto em detrimento das funções de evangelização e cultura. O trabalho manual torna-se de novo obrigatório, a escola monástica fica reservada aos oblatos, a clausura das religiosas é severamente observada. Pouco a pouco, esta reforma acabou por se consolidar, não totalmente isenta de alguma resistência, já que os leigos tinham uma certa repugnância em aceitar a liberdade de eleição do abade. Em todo o caso, os mosteiros tornaram-se centros de múltiplas funções: agrícola, espiritual e intelectual.

Oblatos: jovens «oferecidos» (oblati) pelos seus pais ao cuidado dos monges para que estes se encarregassem da sua educação.

A cultura

Se os mosteiros, através das suas duas escolas, interna e externa, a sua biblioteca e o seu scriptorium estiveram na base do Renascimento carolíngio, não foram, contudo, os seus iniciadores. A obra de Carlos Magno foi, neste aspecto, capital. E ele quem ordena, na célebre capitular Admonitio Generalis de 789, «que, em cada bispado, em cada mosteiro, se administre o ensino dos salmos, das notas, do canto, do cômputo, da gramática, e que se tenham livros cuidadosamente corrigidos». Nos últimos vinte anos do século viu, u m imenso esforço é levado a cabo. Era necessário, em primeiro lugar e uma vez feita a reforma eclesial, passar à reforma da liturgia. Carlos Magno pede ao papa, em 774, uma colecção inteira dos textos conciliares e decretos pontificais a fim de unificar a legislação eclesiástica num texto de base. Em 786, obtém Paulo I um sacramentário gregoriano que lhe permite eliminar as liturgias locais, galicana, visigótica ou irlandesa. Daí partiria toda uma revolução musical com a invenção da polifonia, por meio do neuma, sinal que permite marcar a altura de um som numa partitura, e do tropo, sílaba de um texto colocada sob um neuma, bem como conservar uma composição musical. Assim se lançavam as bases do contraponto melódico que durou até ao Traite d'harmonie de Rameau em 1750.

Scriptorium: ver p. 53.

Cômputo: cálculo dos dias e dos meses para as festas móveis de natureza religiosa. Sacramentário: livro litúrgico contendo as fórmulas para a administração dos sacramentos. Tropo: justaposição de uma sílaba de um texto com uma nota da melodia. Contraponto: técnica musical em que se justapõem neumas e tropos em duas ou três melodias, ou então sobre dois ritmos diferentes, sem possibilidade de suprimir as dissonâncias. 87

Epopeia: poema composto em torno de um acontecimento militar, aprendido de cor, transmitido por via oral, amplificado pela imaginação criadora dos contadores ao longo dessa mesma transmissão.

Artes liberais: ver p. 52.

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O aperfeiçoamento dbs manuscritos traduziu-se noutros tantos progressos. Alguns escribas da abadia de Córbia introduziram em 770, a partir de uma minúscula anglo-saxónica, uma letra minúscula redonda que hoje designamos por «minúscula carolina», e que ainda é actualmente, sob o nome de «romano», o carácter de base de todos os tipógrafos. Graças a esta caligrafia mais clara e mais nítida, é possível recopiar-se inúmeros manuscritos. Com o incremento do número de escolas, sobretudo depois do Concílio de Mogúncia de 813 que ordenou a criação de escolas rurais para a formação de jovens prelados, cresceu a necessidade de bíblias em abundância. Alcuíno, por exemplo, manda introduzir uma delas, e Teodulfo publica igualmente uma Bíblia crítica com as diferentes variantes dos manuscritos. Os autores pagãos não são deixados de lado. As bibliotecas manásticas do Ocidente recheiam-se na época de textos latinos clássicos e de autores da Patrística, mas pouco eu em menor número dos gregos. Muitas das edições actuais de obras antigas apoiam-se em manuscritos carolíngios do século ix. Nascimento das línguas europeias. O mais espantoso é que esta redescoberta do latim clássico se opera justamente quando as pessoas cessavam de falar essa língua. O Concílio de Tours em 813 ordenou que todos os padres passassem de futuro a pregar «em língua romana rústica ou germânica». O antigo francês ou o alto-alemão estão, por conseguinte, largamente difundidos nesta época. Na mesma ocasião em que aparecem os primeiros textos em língua germânica, o catalão começa a diferenciar-se do futuro castelhano. Na própria Gália, um fraccionamento linguístico tem lugar entre a língua ao Norte do Loire, a que se chamaria mais tarde língua de oil (langue d'oil) e outra, mais próxima do latim, que vai chamar-se «occitano» ou língua de oc (langue d'oc). Assim, as línguas europeias aparecem nitidamente constituídas no momento em que o latim ganha o seu impulso como língua morta universal. Nestas diferentes línguas nasceria uma outra cultura. Carlos Magno manda, nomeadamente, pôr por escrito os poemas épicos germânicos, dos quais, infelizmente, nada substitui. Epopeias em língua românica eram transmitidas oralmente de geração em geração, como a célebre Chanson de Roland. Provavelmente, teria existido toda uma cultura popular de iletrados, se bem que quase nada tenha restado. A primeira geração de letrados. Em conclusão, os clérigos têm praticamente o monopólio da cultura letrada e erudita. Os grandes escritores carolíngios que, finalizada a aprendizagem do saltério e dos dois ciclos das artes liberais, formam a melhor pena da época, pertencem quase todos à Igreja. As obras pedagógicas de Alcuíno, a História

A renovação da civilização pelos Carolíngios

dos Lombardos de Paulo Diácono, os poemas de Teodulfo, os Anuales escritos nos mosteiros são obras de clérigos. O único leigo da sua geração a escrever, e mesmo assim tardiamente, Eginardo, deixou uma biografia clássica de Carlos Magno atulhada de expressões inspiradas em Suetónio, mas de enorme valor histórico. Na segunda geração, os frutos deste renascimento intelectual são mais importantes. As obras de reflexão política de Jonas, de Agobardo, oü de Adalhardo, a poesia religiosa de Walafrid Strabon ou de Sedulius Scott, as cartas de Lupo, abade de Ferrières, revelam uma maior maturidade e uma mais manifesta originalidade. A História dos filhos de Luís o Piedoso, da autoria de Nitardo, é uma obra histórica de um leigo preocupado com a autenticidade e a exactidão: a ele se deve a conservação do texto dos «juramentos de Estrasburgo» de 842, os mais antigos testemunhos das línguas francesa e germânica. Os progressos foram tais que a destruição das bibliotecas pelos Escandinavos não comprometeram em nada semelhante renascimento.

Juramentos de Estrasburgo: ver p. 98.

I A arte carolíngia

Este renascimento viria a traduzir-se igualmente no plano arquitectónico e pictórico. O culto das relíquias, a adopção de uma nova liturgia exigiam novos tipos de igrejas ou de mosteiros. As «criptas», espécie de construções abobadadas semi-enterradas nas extremidades ocidental e oriental das naves, desenvolveram-se bastante. Acrescentam-se mausoléus à cabeceira, santuários-tribunas no primeiro piso das torres de fachada. O mais belo edifício, e de longe o mais completo é, evidentemente, a Capela de Aix, lembrando, pela sua planta e o seu simbolismo, os palácios bizantinos, o Santo Sepulcro de Jerusalém e o baptistério de São João de Latrão em Roma. Esta arte carolíngia que se pretende antiga faz alternar os mármores matizados, a pedra talhada em cubo com o tijolo alongado, como se vê na porta triunfal de Lorsch. O interior das igrejas era sumptuosamente ornamentado com mosaicos de fundo dourado como a que subsistiu em Germigny-des-Prés, ou com frescos cobrindo as paredes de alto a baixo como em Saint-Germain-d'Auxerre ou em Saint-Jean-de-Mustaür. A escultura reaparece, em relevo atenuado, nos cancelos. O trabalho do marfim e dos metais preciosos permite a criação de cálices, relicários e molduras dotadas de uma sumptuosidade destinada a criar uma impressão de pujança fora do comum. As miniaturas dos manuscritos, onde convergem influências bizantinas, irlandesas ou antigas, revelam temperamentos artísticos novos, penadas de uma delizadeza extraordinária de sugestão, como no caso do autor do Saltério de Utreque,

A abadia carolíngia de Saint-Riquier

Reconstituição segundo Effmann.

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ou atmosferas atormentadas de uma imensa intensidade como no iluminista do Evangeliário de Ebbon. Todas as bases da arte ocidental estão aqui lançadas: sentido da linha e do volume, jogo das cores, recusa da arte pela arte, afirmação de uma grandeza humana e divina.

3. Os

leigos • A aristocracia

Canção de gesta: epopeia ver p. 88.

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Face ao poderio da Igreja, a terceira ordem, a dos leigos, está em nítida posição de inferioridade. E a partir da época carolíngia que a identificação entre leigo e iletrado se instala. No seio dos Grandes, os homens cultivados são raríssimos, o que não obsta a que as famílias nobres dominem o mundo laico e evoluam graças à extensão do Império e aos favores imperiais no sentido de um verdadeiro cosmopolitismo. Através das suas alianças com a família real ou com as nobrezas locais, por meio das nomeações dos condados, elas implantam-se rapidamente um pouco por todo o lado, absorvendo antigas famílias senatoriais ou antigos chefes de tribos germânicas. Para condes, Carlos Magno escolhia quase exclusivamente Francos da Austrásia, Hispano-Visigodos, Lombardos ou Bávaros, a fim de moderar a tendência desta aristocracia a implantar-se nas regiões administradas. É neste contexto que o Austrasiano Guilherme é nomeado conde de Toulouse em 790. Este herói de canção de gesta, vitorioso contra os Sarracenos, retira-se para um convento que fundara em 804. Um pouco mais tarde, porém, vamos encontrar seu filho Bernardo, marquês da Septimânia e em seguida camareiro de Luís, o Piedoso. Conspirador arrojado e sem escrúpulos, acabaria por ser acusado de lesa-majestade por Carlos, o Calvo, e executado em 844. O seu filho mais velho, Guilherme, comete traição e é executado em Barcelona em 850. O filho mais novo, Bernardo, faz o mesmo mas consegue a indulgência do soberano e torna-se marquês da Septimânia e conde de Auvergne. Finalmente, o seu neto Guilherme consolida em definitivo a independência do ducado da Aquitânia e funda o mosteiro de Cluny em 909. Os bens desta família germânica «importada» para o Midi francês estendiam-se na altura da Austrásia à região de Toulouse, passando por Autun, Mâcon e Auvergne. Bastaram duas gerações para deitar a perder toda a política de Carlos Magno. Não obstante, pode dizer-se que até sensivelmente 840 esta aristocracia se manteve fiel aos imperadores e aos reis.

A renovação da civilização pelos Carolíngios União da vassalidade' e do «beneficio»



Como foi possível que Carlos Magno tivesse visto o perigo do crescimento do poder dos nobres e nada fizesse para o travar? E, na realidade, o seu filho quem vai romper o equilíbrio entre os bens fundiários do fisco e os bens fundiários concedidos à nobreza em regime de usufruto. A partir do seu reinado, os primeiros diminuem regularmente ém proveito dos segundos. Além disso, um simples conde pode ter sob a sua direcção três espécies de bens: as suas propriedades pessoais ou familiares, adquiridas por compra ou recebidas em dote ou testamento, depois de seus honores, bens recebidos a título temporário pelo seu serviço de conde, e por último os seus «benefícios» recebidos a título vitalício após o juramento de recomendação. Ultima fonte de poderio deste nobre: os vassalos que eventualmente reuniu à sua volta. Aliás, o próprio Carlos Magno encorajou esta evolução para uma sociedade vassálica englobando todos os homens livres, através da cerimónia da recomendação, a qual era igualmente praticada ao nível dos simples vassalos. Após o ritual da postura das mãos nas do senhor e prestado o juramento de recomendação, seguia-se a investidura do «benefício», com a ajuda de um símbolo - um torrão de terra ou um ramo guarnecido de folhas - que era suposto representar a fruição da terra concedida (e não a sua propriedade). Assim, por meio de uma cadeia de juramentos, formava-se como que uma pirâmide desde o rei aos vassalos ordinários, passando pelos vassalos régios. Carlos Magno precisou bem que os contratos concluídos nestes termos eram indissolúveis, salvo em caso de crime ou de injustiça do senhor para com o vassalo. Isto era igualmente válido para os vassalos eclesiásticos. O imperador esperava por este meio reforçar o Estado, mas o certo é que seu filho Luís, : Piedoso, deixou desenvolver-se o poderio da aristocracia. As partilhas do seu reinado obrigaram os nobres que mudavam de rei a novas prestações de juramentos, enfraque:endo com isso a força do vínculo pessoal em proveito do vínculo material.

Honores: ver pp. 82 e 105. Recomendação: como a de Tassilon em 757 «que se recomenda em vassalagem pelas mãos. Este prestou múltiplos e inúmeros juramentos, colocando as mãos sobre as relíquias dos Santos. E prometeu fidelidade ao rei Pepino e a seus filhos sobreditos, os senhores Carlos e Carlomano, do mesmo modo que por direito um vassalo deue fazê-lo com um espírito Uai e uma firme devoção, que assim manda que o seja um vassalo com o seu senhor».

Precisemos contudo que estas instituições vassálicas se aropagam sobretudo em país germânico, e muito particularmente entre o Reno e o Loire. Nas regiões meridionais da França e na Lombardia, apesar do encorajamento que merecem da parte dos reis carolíngios, elas permanecem embrionárias. Existe tão-somente o juramento de ñdelidade, mas sem nunca se lhe ligar o benefício, ressalvado o caso, evidentemente, dos agentes régios francos. O mesmo se aplica às outras categorias sociais laicas, as 3o mundo rural onde escravos, colonos e homens livres tntram, pouco a pouco, no quadro do senhorio rural. 91

B Escravo e servo

Villas: ver pp. 84 e 49.

Mali: ver p. 82.

A maior parte da população está ligada, nesta época, ao trabalho nos campos, nas grandes propriedades fundiárias aristocráticas que eram as villae. O escravo do tipo antigo só subsiste verdadeiramente no Midi, ou então passa a pertencer ao pessoal da casa para os serviços domésticos. Alojado (casatos) algumas vezes num mansus qu"e ele próprio cultiva, imperceptivelmente a sua condição económica difere cada vez mais da sua condição jurídica. O tráfico de escravos, depois de ter conhecido uma recrudescência importante sob o reinado de Carlos Magno, diminui com a cessação das guerras. Como doravante é proibido reduzir um cristão à escravatura, a única alternativa é uma verdadeira «caça ao homem» entre os Eslavos pagãos. Uma vez que a Igreja reconhece a validade do casamento dos escravos, ordena padres os escravos libertos e encoraja a liberdade em geral, a personalidade jurídica do escravo emerge. Como, em suma, é mais fácil exigir do escravo ou do colono a prestação de «corveias» uns quantos dias por ano nas terras do dono do que vigiar diariamente ao ponto de se fundir com o regime do colonato. Os colonos, com efeito, incapazes de responder às convocações no malí condal ou impedidos pelo seu patrão, caem na sujeição do seu poder de coacção. A sua condição jurídica deteriora-se até uma semi-liberdade análoga à dos escravos. Demais as terras que ocupam são designadas da mesma forma que os seus usufrutuários: manses livres, ao passo que às terras dos escravos se chamava «servis». Desde o reinado de Carlos Magno, vão-se encontrar escravos num mansus livre, e vice-versa. Nesta confusão de estatutos, a passagem da escravatura e do colonato a um novo estado chamado «servidão» faz-se de um modo imperceptível, «sem grande abalo social». O servo que se esboça no século ix, um dependente total do senhor, é um «não-livre». Daqui para diante, para distinguir o camponês livre do servo, apenas existe, dada a identidade de condição económica e a mistura dos estatutos jurídicos, um único critério: o nascimento. E-se livre ou «não-livre» por nascimento. Quanto aos pequenos proprietários livres cujas terras começam a designar-se pelo termo de «alódios», a nossa documentação raríssima não deve no entanto levar-nos a concluir que fossem em pequeno número. Eles existem, mas não os conhecemos. O grande domínio

O sistema agrário assenta no grande «domínio» que parece ter sido criado em toda a sua exemplaridade entre 92

A renovação da civilização pelos Carolíngios

o Sena e o Reno, como o comprovam os polípticos, em particular o de Irminon, abade de Saint-Germain-des-Prés, no início do século ix. No centro, encontra-se doravante a «reserva» (terra indominicata), conjunto de terras aráveis, vinhas e pastos, com um centro de exploração chamado curtis ou «paço dominial» - casas de habitação do proprietário, anexos de exploração, o moinho, a prensa, as destilarias, etc. Toda esta área estava sob exploração directa. Mas por quem, se o número de escravos vinha diminuindo? Pelos rendeiros (tenanciers) das terras situadas na segunda parte do domínio: os «manses». Além do trabalho que fazem nas suas tenures (concessões) os rendeiros devem portanto ajudar na cultura da reserva. E uma maneira de pagarem a renda do seu mansus ao proprietário. Alguns, quando tenham recebido um «lote-corveia» incluído na reserva, devem cultivá-lo por inteiro durante todo o ciclo anual. Outros, são obrigados a determinado número de dias de trabalho na reserva, por exemplo, três dias por semana entre os Bávaros, de forma a efectuarem ali as grandes operações agrícolas: arar, semear, ceifar, vindimar, malhar o centeio ou a cevada, e assim por diante. Devem, além disso, efectuar trabalhos de valagens ou fazer carrañas com os seus próprios animais para transportes ou excedentes da reserva, também chamada domínio, a um ou outro local de venda. Acrescentemos por último, como outras modalidades de prestações, as rendas em géneros ou, mais raramente, em dinheiro. De qualquer maneira, à semelhança da época merovíngia, a floresta natural e os espaços incultos eram comuns às varas de porcos do proprietário e do rendeiro. A madeira, o mel, a carne do javali, os frutos e as bagas silvestres constituem sempre um complemento indispensável para os legumes da horta e para o pão. A economia recolectora não perde os seus direitos. Este modo de produção agrária, a que também se chamou nos Países Baixos e na Inglaterra o sistema do manoir ou vianor (domínio feudal), foi rentável. Os rendimentos foram certamente superiores a três para um, sempre que é possível obtê-los. As alfaias são insuficientes, o ferro escasseia, a ausência do estrume ou do adubo é total, excepto para as hortas, a rotação trienal das culturas está pouco difundida. Assim se explica, apesar de um certo incremento populacional no tempo de Carlos Magno, a ameaça constante da subalimentação. Os grandes domínios não são mais, por ora, do que ilhotas de cultura, superpovoados por vezes, no meio de espaços vazios. Estendem-se até ao Loire. Os desbravamentos são raríssimos, excepto nas extremidades do Império, na Baviera ou na Septimânia. Quanto aos outros tipos de exploração, a sua característica principal é a separação entre a reserva e as tenures. Na Lombardia, verificava-se a exis-

Políptico: registo de direitos e de rendas escrito primeiramente sobre tabuinhas ligadas umas às outras, e depois sobre um conjunto de folhas de papiro. Manse (mansus): teoricamente, o manse é suposto alimentar uma família de camponeses. A sua área é calculada em função disso; pode ser lavrado com um arado e uma junta de dois ou quatro bois. Aquela superfície varia gran- ' demente consoante as regiões e segundo o estatuto, servil ou livre. De qualquer modo, todas estas unidades de cultivo pertencem ao proprietário e constituem uma unidade fiscal. Ver também p. 50.

Rotação trienal: ver p. 136.

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tência de arrendamentos temporários entre proprietários e camponeses. O grande domínio produzia excedentes que era possível escoar e comercializar. • As trocas

1 libra = 20 soldos = 240 denários. 1 soldo = 12 denários. A única moeda que circula é o chamado denário. Para perfazer uma libra são necessários 240 denários. Este sistema da libra, do soldo e do denário estendeu-se a toda a Europa ocidental. Em França, durou até à Revolução, e na Inglaterra até Fevereiro de 1971. «Moeda de conta» unidade monetária fictícia que não corresponde a uma moeda realmente cunhada, mas que permite adicionar e multiplicar a moeda em geral, cunhada ou não». Vid: ver p. 50.

BBWIWWBIW Doge: o mais alto magistrado veneziano desde os finais do século viu. Eleito a título vitalício, primeiro pelo povo inteiro depois por um colégio restrito de patrícios, ele encarna a majestade da República. 94

Com efeito, nem mesmo o grande domínio clássico tinha capacidade para se bastar a si próprio; havia sempre necessidade de comprar, ou fosse o ferro para os diversos utensílios, ou o sal para a conservação da carne, ou o vinho nas regiões não vinícolas. Mas, para tanto, era necessária uma moeda de fraco poder de compra e acessível a todos. Foi esta a razão que levou Carlos Magno a adoptar definitivamente a prata como estalão monetário. Através da sua reforma do Inverno de 794, revaloriza o denário de prata em 25 por cento; daí em diante, este passa a pesar 1,70 g, a partir de uma libra de 409 g. O sistema comporta duas «moedas de conta», a libra e o soldo, utilizados nas transacções. O imperador soube, simultaneamente, suprimir as cunhagens privadas, manter em oficinas existentes em número fixo o monopólio régio. Tratava-se afinal de orientar a economia para o espaço nórdico e estimular as trocas locais. Uma capitular de Carlos Martel datada de 744 autorizou a criação de mercados rurais nos vid. Estes multiplicaram-se: aqui se trocavam os produtos de primeira necessidade com um único denário (por denarata), expressão que está na origem da palavra francesa denrée (géneros, víveres): aquilo que se compra com um denário. A estas modestas trocas regionais, justapunham-se as trocas internacionais. Os grandes mercadores judeus continuavam a importar os artigos orientais, estofos de seda, especiarias, e a vender, no exterior do Império, escravos e madeiras utilizando como locais de trânsito de mercadorias Verdun e Troyes. Os mercadores de abadias importam o sal das salinas ou os vinhos dos vinhedos mais próximos. Os Francos vendem aos Eslavos e aos Normandos armas, couraças e o gado em troca de peles e de escravos, a tal ponto que Carlos Magno, em 805, é forçado, por razões de segurança, a embargar a exportação das espadas e das «broignes». As novas correntes económicas manifestam-se pelo aparecimento de novos portos. Na desembocadura do Reno, do Mosa e do Escalda, que se convertem em grandes vias comerciais e canalizam trigos germânicos para os países do Norte, desenvolve-se sobretudo Duurstede. Na embocadura do Canche, Quentovic ganha um impulso notável graças às suas relações com a Inglaterra. A grande novidade, porém, é o aparecimento de Veneza. Depois do primeiro doge eleito, Maurício (764-787), as

A renovação da civilização pelos Carolíngios

ilhotas de laguna agrupadas em r'edor do Rialto transformam-se num centro importante de comércio local e internacional no qual se inserem a madeira, os escravos, as especiarías de Alexandria, as sedas de Constantinopla, o peixe e o sal do Adriático. Em 828, dois mercadores venezianos conseguem roubar de Alexandria as relíquias de S. Marcos, santo que passa a ser o patrono da nova potência. Todo este surto de desenvolvimento era prometedor mas frágil:, pois, de momento, ainda só envolve uns quantos privilegiados. A nível regional, as trocas têm, portanto, uma influência mínima sobre a evolução urbana, a não ser nas regiões nórdicas onde o comércio fluvial está na origem do aparecimento do portus, as mais das vezes uma praia ou uma margem arenosa na qual os mercadores desembarcam os seus fardos, perto da cerca de uma abadia ou nos limites de um domínio. E o caso de Gand, que se desenvolve em redor das abadias de Saint-Pierre no Mont-Blandin e Saint-Bavon, ou, no estuário do Aa, de Saint-Bertin e Saint-Omer, que se tornam o centro de um aglomerado urbano. Noutros locais, o carácter religioso da cidade permanece dominante. Os arrabaldes vão-se desenvolvendo à volta das velhas fortificações, no interior das quais, aliás, a introdução dos cabidos de cónegos obriga a novas construções e a expulsar para fora dos muros os antigos habitantes. Houve mesmo casos em que as antigas muralhas foram derrubadas. Sob Carlos Magno, são construídos 232 mosteiros, sete catedrais e 65 palácios. Não obstante, esta renovação duraria pouco, prevalecendo, no fim de contas, a impressão de uma certa fragilidade. As bases da Idade Média são, indubitavelmente, lançadas pelos carolíngios a nível da realeza, da vassalidade, da Igreja, da cultura intelectual e artística, da servidão, da moeda; mas, no conjunto, isto não é mais do que um esboço da Europa. Este projecto viria a ser abalado pelos herdeiros de Carlos Magno.

Para aprofundar este capítulo

É de referir, em primeiro lugar, a bibliografia do capítulo II para as questões institucionais, sociais, económicas e intelectuais (em geral, essas obras cobrem toda a Idade Média). E imprescindível conhecer-se a obra monumental colectiva em quatro volumes, Karl der Grosse, Lebenswerke und Nachleben, Dusseldorf, 1965-1966. 95

Para as instituições, F. -L. GANSHOF, The Frankish Institutions under Charlemagne, Providence, 1968. Do mesmo autor, Recherches serles Capitulaties, Paris, 1958; J. -M. WALLACE HADRILL, English Kingehip and the Continent, Oxford, 1971. Sobre a Igreja, E. Amann, L'Époque carolingienne, 1941, t. 7 da col. Fliche et Martin; C. BIHLMAYER e H . TUCHLE, Histoire de l'Église, Mulhouse, t. 2, 1963; G . SCHNURER, L'église et Iq, Civilisation au Moyen Age, Paris, 1933-1938; M. AUBRUN, La Paroisse en France des origines au XV siècle, Paris, 1986. Para a cultura, J. de GHELLINCK, Littêrature latine au Moyen Age, Paris, 1939; M. LAISTNER, Tliought and Letters in Western Europe, A. D. 500-900, 2. ed., Londres, 1957. A melhor síntese é P. RICHÉ, Ecoles et enseignement dans le haut Moyen Age, Paris, 1989. Para as línguas, Ph. WOLFF, Les Origines linguistiques de VEurope occidentale, 2.~ ed., Toulose, 1983; do mesmo autor, L'Eveil intellectuel de VEurope, Paris, 1971. Para as questões artísticas, quatro livros importantes, C. HEITZ, Recherches sur les rapports entre architecture et liturgie à l'époque carolingienne, Paris, 1963, e J . HUBERT, J. PORCHER, W . -F. VOLBACH, L'Empire carolingien, Paris, 1968; C. Heitz, LArchitecture religieuse carolingienne, Paris, 1980 e idem, La France préromane, Paris, 1987. Para a sociedade, as instituições vassálicas e o senhorio rural, ver os livros citados no capítulo II. Acrescentar M. BLOCH, La Société féodale, Paris, reed. 1968. Do mesmo autor, Les Caracteres originaux de 1'histoire rurale française, Paris, 2 vols., 1961-1964 e, sobretudo, G. DUBY, L'Economie rurale et la vie des campagnes dans l'Occident médiéval (France-Anglaterre-Empire) TV'-XV siècles, 2 vols., Paris, 1962; Guerriers et paysans, Paris, 1973. Para as cidades, F. VERCAUTEREN, Les Civitates de la Belgique seconde, Bruxelas, 1 9 3 4 ; E. ENNEN, Frühgeschichte der europàischen Stadt, Bona, 1953; F. -L. GANSHOP, Etude sur le déueloppement des villes entre Loire et Rhin, Paris, 1943; A. VERHULST, «Um aspecto de continuidade entre Antiguidade e Idade Média: a origem das cidades flamengas», Journal of Medieval History, pp. 175-205, 1977; M. ROUCHE (dir.), Histoire de Douai, Lille, 1985. Importante vista de conjunto sobre as mentalidades: P. Riché, La Vie quotidienne à l'époque carolingienne, Paris, a

1973.

A evolução da investigação no domínio económico a propósito das duas grandes teses de H. PIRENNE e de M . LOMBARD pode ser entendida através dos seguintes artigos: - para o primeiro, o império de Carlos Magno é um mundo agrário fechado sobre si mesmo sem qualquer liga-

A renovação da civilização pelos Carolíngios

ção com a economia marítima. Esta tese da ruptura devida ao Islão foi em grande parte contrariada por E. SABBE: «A importação dos tecidos orientais na Europa ocidental durante a Alta Idade Média, séculos ix e x», Revue beige de Philologie et d'Histoire, t. 14, 1935; - para o segundo, as necessidades muçulmanas em ferro, madeira e escravos criaram um comércio com o império carolíngio, pagando o islão em ouro. Esta tese da injecção "de ouro muçulmano na Europa foi contestada por Ph. GRIERSON, «Carolingian Europe and the Arabs: the myth of the mancus», Revue beige de Philologie et d'Histoire, t. 23, 1954. Uma síntese das posições com a respectiva crítica foi feita por E. PERROY, «Encore Mahomet et Charlemagne», Revue historique, t. 21, 1954. Importa terminar com a síntese de J . DHONDT apresentada por M. ROUCHE, Le Haut Moyen Age, VTIP-XP siècle, Paris, 1976 e a consulta das Actes das Semanas de Espoleto, principalmente o t. 6, La Città nell'alto Medioevo, 1959; t. 8, Moneta e scambi nell'alto Medioevo, 1961; t. 7, L'Occidente e l'Islam, 1965; t. 13, Agricultura e mondo rurale in Occidente nell'alto Medioevo, 1966; e sobretodo o t. 1, Problemi della civiltà carolingia, 1954 e o t. 27, Nascità dell'Europa ed Europa carolingia: un equazione da verificare, 1981.

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