AUMONT, Jacques. Moderno

April 26, 2017 | Author: fabioallan | Category: N/A
Share Embed Donate


Short Description

Tópicos...

Description

Moderno? Por que o cinema se tornou a mais singular das artes Jacques Aumont “O cinema surgiu fora da arte, como uma curiosidade científica, uma diversão popular e também como uma mídia (um meio de exploração do mundo); entretanto, foi rapidamente reivindicado como arte (e até mesmo, de modo notável, a primeira arte inventada) e como medium (um meio de criação)” (p.13). “Religioso? Eu diria, antes, místico. Religião vem de religio, que contém a ideia de laço (um laço social). O místico só se preocupa em estar no verdadeiro, o que quer que a multidão diga e pense; só lhe importa o contato imediato com Deus. O deus da crença no 'cinema moderno', a princípio identificado simplesmente com o Deus cristão, tornou-se, depois de passar pela lavagem lacaniana (portanto, remotamente pelo nietzcheísmo, via Bataille), algo como o Real. Também não pode ser conhecido, embora seja menos exultante (imagina-se mal um êxtase destinado a encontrar o Real), mas isso desempenha muito bem o velho papel da transcendência” (p.15). Assumir a tolice do cinema e transcendê-la (Clément Rosset). “O cinematógrafo era moderno: mas não se sabia disso. Não se podia enxergar isso, pois a modernidade estava nas mãos dos cientistas ou dos artistas. Para os primeiros, a invenção dos Lumières desencaminhava a ciência, e merecia, no melhor dos casos, um desdém divertido; no pior, uma vaga repulsa. Os olhos dos segundos estavam ocupados demais com o cálculo de sua própria e iminente derrota (o fauvismo, o expressionismo, o cubismo, o orfismo e outros) para perceber o ponto de junção imprevisível entre sua arte e essa modesta técnica das aparências móveis. Desencontro”. (pp.20-21). “De fato, a verdadeira modernidade do cinema dos anos 1920, e a dos anos 1930 também, por contágio, não é a da imagem, é a da velocidade – outro clichê, porém, mais recente, mais atual e ao qual a filosofia conferiu alguma notoriedade há pouco” (pp.24-25). A respeito do contexto do cinema nos anos 1920: “Com o movimento, com a fotogenia, que é seu conceito (apesar de vago), o cinema torna-se a um só tempo moderno e artístico: ele encontrou sua modernidade simplesmente ao se integrar à modernidade. (…) A modernidade artística tinha mais de meio século quando o cinema se junta a ela; ela já vinha trilhando uma história que será a da renúncia à eternidade e à beleza, do culto cada vez mais unívoco do efêmero, do 'movimento'; o moderno vai se tornar 'tradição da ruptura' (Thierry de Duve). A arte moderna vai encontrar o movimento da civilização moderna, ou seja, o ideal do progresso indefinido – com essa única mas essencial diferença de que, se o progresso técnico é cumulativo, o progresso artístico só avança por anulação. Já não se pode refazer o que foi feito. O progresso técnico faz caducar as máquinas com outras máquinas de melhor desempenho, o progresso artístico moderno, porém, faz caducar as obras com outras obras que são apenas diferentes. O cinema não chegou a esse ponto. (…) Na França, os raros cineastas e críticos que podiam na época ser sensíveis a essa conjunção histórica testemunharam isso com sua hesitação permanente, entre uma sensibilidade vindourista (para não dizer futurista) um cinema moderno de velocidade, de fotogenia, de movimento, e uma modernidade já histórica, preocupada com a tradição, até mesmo para fustigá-la, traí-la ou negá-la. Não é por acaso que, em seguida, os historiadores do cinema hesitam tanto sobre o status desse momento da estética e da ideologia do cinema” (pp.26-27). “A história da vanguarda é a de uma confusão das duas noções, a ideia arquipolítica do partido e a ideia metapolítica da 'virtualidade nos modos de experiência sensíveis, novadores de antecipações

da comunidade por vir' (G. Agamben). A vanguarda está sempre entre política e estética” (p.28). “Tal confusão, por parte de cineastas e de teóricos da vanguarda bem intencionados, entre público 'de elite' e caráter vanguardista da produção, foi bem além dos anos 1920 e do círculo de jovens cineastas parisienses. Em certo sentido, o underground nova-iorquino, nos anos 1950 e 1960, viveu da mesma ilusão: a multidão negligencia nossas obras, porque elas estão muito à frente, são exigentes demais, puramente artísticas em demasia – daí, é fácil passar ao sofisma segundo o qual o que é desprezado pela multidão é necessariamente bom (abrigando-se, por exemplo, sob o aforismo de Cocteau, 'o que o público lhe censura, cultive-o, é você') (p.30). “Somente alguns críticos mais sensíveis (como o surrealista Benjamin Fondane) perceberam que, ao contrário, se o cinema falado devia ser levado a sério, era não como a sobrevivência dificultosa e aleatória dos valores da imagem de uma arte muda amplamente fantasmática, e sim, baseado em valores paradoxais – populares, 'baixos', idiotas – que tinham sido os do cinema desde seu estado primitivo” (pp.31-32). “O cinema do entreguerras envelhece, mas de modo ambíguo: ele não é mais de atualidade, a audácia do jovem Welles o faz caducar; entretanto, sua solidez logo cria um classicismo e, até mesmo, no duplo sentido do termo: o que é santificado pela antiguidade e o que pode desempenhar o papel de modelo estético” (p.33). “É realmente possível falar de classicismo a propósito de uma prática essencialmente fundada em modernidade, acompanhamento constante da vida moderna? Tal paradoxo, reforçado por outros mitos, como o da 'idade de ouro dos estúdios', será revirado em todos os sentidos até o fim dos anos 1950 pela escola dos Cahiers e suas vizinhas” (pp.33-34). Modelo hegeliano: primitivismo → apogeu clássico → declínio, maneirismo, barroco, moderno... Duas tendências modernas percebidas no cinema de meados do século XX: a de Welles e a de Rosellini. “Dentre seus traços de gênio precoce, Welles teve o seguinte: ele soube imediatamente como se colocar como autor, como artista, mesmo se tomando algumas liberdades com os fatos – e isso é essencialmente moderno” (p.40). Rossellini por Rivette: “um cinema da encarnação” (p.43). “Para o jovem crítico dos Cahiers [Rivette] que se prepara para se tornar cineasta, Rossellini não é o moderno de um clássico anterior, nem o fim de uma história que teria começado em um primitivismo; ele não é, tampouco, o moderno que abole uma concepção precedente da modernidade (conforme o esquema de De Duve, tradição da traição, etc.); ele é a simples modernidade, a de alguém que tem 27 ou 28 anos e define o moderno como o que é de sua época” (p.44). Stromboli e a “direção de espectadores” “Mas a própria perenidade do efeito de choque que esse filme produz não lança dúvida sobre a modernidade? Não seria preciso aqui se lembrar, justamente, da oposição colocada por Benjamin, entre romantismo e modernidade? Não è esse filme (ou Europa 51, que lhe é comparável por sua estrutura em forma de raptus sucessivos) um grande filme romântico, ou seja, um filme que visa menos uma atualidade do que uma eternidade, menos uma intervenção sobre o presente do que sobre o presente eterno?” (pp.45-46).

“Welles, Rossellini: cristalizo, a posteriori e de modo exagerado, uma escolha que, mesmo em 1955, não parecia tão brutal. A ideia de modernidade, então, já não tem o caráter incisivo da novidade; ela significa o desejo de ser contemporâneo, de aderir a seu tempo e de esclarecê-lo, mas para isso ela se calça num modelo do passado, e começa a saber disso” (p.49). “Consciência histórica, reflexividade, relatividade do gosto (o belo moderno é plural, graduado, variável), arbitrário da decisão sobre a arte. Era preciso começar por aí para que algo como uma modernidade e, até mesmo, um modernismo cinematográfico pudesse ver o dia” (p.52). Sobre o modernismo cinematográfico dos anos 1960: “Tornou-se possível filmar com um roteiro bem insignificante (Les Godelureaus, Les amours d'une blonde); filmar sem roteiro (Moi, un noir, La punition); conceber um filme como um documentário sobre seus atores (Rivette e, de modo bem diferente, Rohmer o farão cada vez mais); não terminar uma narrativa (Les petites marguerites) ou adotar uma postura tão subjetiva que beira o ensaio (La pointe courte). Tudo ou quase tudo é possível – no âmbito, é verdade, nunca questionado do filme narrativo e representativo” (pp.52-53). Sobre O desprezo e sua natureza de Janus bifrons: “Sonha-se com o classicismo, com seus corpos gloriosos, heroizados e erotizados, mas não se tem mais do que fantoches comprados no 'mercado das mentiras' (cuja fórmula, de Brecht, é retomada no filme por Fritz Lang) ou então o corpo, enaltecido, mas mercantil, de Bardot” (p.54). Nessa concepção formalista [a do “cinema do significante”, nos termos de Barthes], a obra de arte torna-se importante por algo que não é seu conteúdo. Mais exatamente, é sempre preciso que um eventual conteúdo se manifeste como conteúdo da forma, retomando a expressão dos formalistas russos (que, como que por acaso, redescobre-se e traduz-se na época)” (p.56). Bresson → Straub Renoir → Rivette Murnau → Rohmer “A diferença entre os pintores nova-iorquinos e o cinema de autor (europeu) é simples: os primeiros trabalham em um meio artístico, que inclui e correlaciona a dimensão econômica, a dimensão midiática e a dimensão estética; os segundos trabalham em um meio que não é artístico, privado que é de uma verdadeira dimensão estética objetivável. Não que os cineastas sejam insensíveis às questões de forma e de sensação; mas a economia do cinema não é a economia da arte (a indústria do cinema não visa à arte); e as questões formais em cinema não são o objeto primeiro e confesso da atividade dos cineastas” (p.60). “O cinema interessante dos anos 1970 não dá a mínima para as aventuras da forma-cor, e cultivará, ao contrário, os dispositivos intelectuais e ideológicos, caso não encare, de modo mais direto, a ficção. O cinema hollywoodiano desse período interessa, em suas produções mais inventivas, pela tensão entre ataques deliberados contra a narrativa, mas sempre do interior da crença na ficção (ver Arthur Penn; ver, sobretudo, Sam Peckinpah e os primeiros filmes de Francis F. Coppola, apesar ou por causa de seu aspecto de rascunho) – e as primeiras manifestações do espírito que logo será batizado de pós-moderno, com seu gosto pela homenagem, pela citação ou pela referência de segunda mão (o flamejante O fantasma do paraíso, de Brian de Palma, em 1974)” (p.61). “O cinema de 1968 enfrenta exatamente esse dilema: ser expressivo como obra de ficção (e então a forma não é nada, ela se submete inteiramente ao princípio de ficção, à encenação); ou ser expressivo como obra visual (e a forma é tudo, a ficção torna-se um pretexto)” (p.62).

“'Trabalho, leitura, fruição': em seu artigo de 1970, Daney e Oudart salientavam à porfia os dois primeiros termos, dando, além disso, do terceiro, uma versão lacaniana, portanto, igualmente intelectual. Só alguns discípulos de Lyotard tentarão reabilitar a fruição (também de maneira dogmática demais, para ser eficaz). Diferença radical dos meios, superegotização política e filosófica galopante de todo o campo cultural: a essas duas razões de um fim prematuro do modernismo em cinema é preciso acrescentar mais uma, paradoxal (pp.62-63). “É o célebre ensaio de Thierry De Duve, que define (em 1985) a modernidade como o período da história da arte ocidental para o qual 'a arte era um nome próprio'. Um nome próprio não tem sentido, mas tem uma referência: a coleção indefinida chamada Arte. Assim, o fim da modernidade é tão velho quanto ela própria, já que ela não deixou de viver do projeto de seu acabamento (negativo: a morte; positivo: a utopia)” (p.66). “Maneirismo, barroquismo, neobarroquismo: estranhamente, a crítica, que percebe sob esses termos uma decadência, um fim de reinado, pensa que é o classicismo, não a modernidade, que está doente ou moribundo” (p.68). Aki Kaurismaki → Supracitação! A ideia de modernidade obriga a uma visão hegeliana da arte (p.69). . “O fim dos anos 1980 vive o reino das carpideiras” (p.69). “(...) como a modernidade roselliniana 'necessária' (portanto, mais ou menos eterna), a ideia de uma 'arte moderna' que dura 100 anos é um oxímoro” (p.75). (…) o aspecto positivo, libertador do pós-moderno era justamente o seguinte: a liberdade do projeto (o moderno é mais constrangedor: é preciso ser um autor). Poucos cineastas pós-modernos, nada de cinema pós-moderno, mas atitudes críticas, sim. Um paradoxo a mais na estranha história das relações do cinema com a modernidade” (p.75). Sobre as proposições da arte contemporânea: “O cinema não poderia se comportar de maneira tão clara, sempre pela mesma razão: seu meio não é claramente definido, nem institucional nem idealmente. Consequentemente, a consciência histórica, no cinema, é complexa; ela só existe em um setor bem restrito, grosso modo, o cinema de autor, campo particularizado pela crítica, importante por sua visibilidade estética e até mesmo social, mas minoritária” (p.80). “Ora, a um só tempo, arte das imagens em movimento, arte do tempo, arte do espaço, arte da narrativa e talvez seja necessariamente arte de massa, há, no cinema, tal como ele foi inventado e porque ele foi inventado – em uma sociedade já industrial, em que as artes antigas eram bem antigas e bem historicizadas – uma capacidade indefinida de contemporaneidade. Aos esquemas das 'coincidências fatais' com a herança (pictórica, fotográfica, artística em geral) deveria ser assim acrescentado outro oxímoro, o do 'eterno contemporâneo': o cinema não para de inventar formas contemporâneas – a um só tempo efeitos de novidade e efeitos de atualidade” (P.82). “O cinema, como a fotografia, foi a princípio visto como um autômato sem alma própria, e quem se servia dele não podia pretender à expressão pessoal, à arte. Chega André Bazin e derruba essa axiologia, descobrindo que o automatismo era justamente a virtus artística do cinema. Depois dele, depois de Langlois, depois dos surrealistas também, que contribuíram muito para encantar a sessão de cinema, a sensibilidade do fim do século havia mudado. O cinema havia se tornado uma prática

mágica, captadora de verdade e revelando-se no escuro. Godard não diz outra coisa, em História(s) do cinema, além desse encantamento num momento em que o vemos ameaçado, desvanecendo-se” (p.83). “(...) o cinema é, primordialmente, uma projeção” (p.84). “Na verdade, a arte da instalação consiste, em boa parte, na invenção dessas condições, sempre singulares, da espectatura” (p.85). “A invasão das imagens (de um filme) pelas imagens (como objeto diegético) é, na verdade, um motivo banal no cinema recente: ela anda junto com o fascínio pelo digital (com risco da confusão quase permanente entre gênese e fenômeno)” (p.88). “E, é claro, o cinema continua a ser o reino da ficção, até mesmo nos filmes mais radicais, até mesmo junto com a alegoria, com o jornal, com o documento social, com o happening” (p.89). “Nada de noções diretoras. Desde o abalo sísmico do livro de Schefer e as neoconcepções egotistas que ele gerou, o que domina a teoria já não é o questionamento clássico sobre o grande Outro, sobre o mundo e a mundanalidade, sobre o real e o ser. O problema 'do corpo' não deu ainda totalmente cabo de seu reino na teoria – não na linha direta de uma liberação ético-política (somos mais do que nunca submissos), não na filiação de um pensamento crítico (Foucault foi esquecido, por canonização prematura), e sim como consequência, remota, mas direta, do triunfo do liberalismo, com o culto do Eu como adorável” (p.92). “Ora, o cinema, apesar de todas as renovações, os apertos, as crises, nunca mudou no fato de se dirigir à multidão. Ele continua se estruturando em torno da partilha instaurada nos anos 1920 entre cinema de ensaio ou cinema de autor e cinema de massa, industrial e de diversão – mas sempre com a ambição de juntar os dois, já que não pode reconciliá-los. (Ver, revelador, o pós-moderno no cinema: ele nunca impediu de continuar a contar histórias. Exemplo perfeito: Raul Ruiz)” (p.94). Aumont termina com um tom levemente programático a respeito do que viria a ser uma segunda modernidade no cinema.

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF