Arthur Janov - o Grito Primal
May 7, 2017 | Author: José Luiz Donegar Cherutti | Category: N/A
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ARTHUR JANOV
O GRITO PRIMAL TERAPIA PRIMAL: A CURA DAS NEUROSES Tradução de LUIZ CORÇÃO
editora artenova sa.
Do original norte-americano THE PRIMAL SCREAM Copyright © 1970 by Arthur Janov
Copyright 1974 da edição em português Editora Artenova S.A.
Tradução Luiz Corção
Revisão Salvador Pittaro
Capa Studio Artenova
Reservados todos os direitos desta tradução. Proibida a reprodução, parcial, sem expressa autorização da Editora Artenova S.A.
editora artenova SA rua prefeito olímpio de melo, 1774 tels. pbx 228-7124 228-7125 end. telegráfico ARTNOVA são cristovão rio gb departamento jornalístico departamento gràfico departamento editorial
Composto e impresso no Brasil — Printed in Brazil
Este livro é dedicado aos meus pacientes, que foram suficientemente íntegros para reconhecerem que estavam doentes e que queriam parar a luta, e aos jovens do mundo que são a esperança da humanidade.
NOTA DO TRADUTOR A palavra PRIMAL existe na língua inglesa, mas ainda não se encontra dicionarizada em português, nem mesmo nos compêndios especializados de psiquiatria ou psicanálise a que recorremos. Achamos que não será descabido usá-la mesmo que isso signifique a cunhagem de uma nova expressão que talvez venha acabar fazendo parte do linguajar todo especial dessa especialidade da medicina. Os dicionários Michaelis, Random House e Webster consignam PRIMAL como: primitivo, primordial, primevo. Pelo auxílio que me prestaram na preparação deste livro, quero agradecer a Karol Karkley, minha assistente de pesquisas, e a Ann Farnell Blow que me auxiliou na revisão. Agradeço também aos meus filhos, Ricky e Ellen, que me auxiliaram na tarefa de criá-los. Eles me ensinaram o verdadeiro significado de "integridade". Sou também reconhecido a Tony Velie por sua valiosa assistência na organização do livro.
Mas existe uma pessoa que tornou possível este livro: minha esposa Vivian que, trabalhando como diretora de treinamento no Instituto Primal, auxiliou-me na elucidação e no desenvolvimento de muitas teorias cruciais.
Sumário
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 9 A DESCOBERTA DA DOR PRIMAL ............................................................ 9 1 - O PROBLEMA.............................................................................................. 12 2 - AS NEUROSES ............................................................................................. 15 A Cena Primal........................................................................................ 21 O Eu Verdadeiro e o Falso..................................................................... 26 DISCUSSÃO............................................................................................ 27 3 - A DOR ......................................................................................................... 30 4 - A DOR E AS LEMBRANÇAS .......................................................................... 35 5 - A NATUREZA DA TENSÃO ........................................................................... 40 6 - O SISTEMA DE DEFESA ............................................................................... 48 Discussão .............................................................................................. 54 7 - A NATUREZA DO SENTIMENTO .................................................................. 57 8 - A CURA ....................................................................................................... 68 A Primeira Hora .................................................................................... 69 O Segundo Dia ...................................................................................... 73 O Terceiro Dia ....................................................................................... 74 Depois do Terceiro Dia.......................................................................... 75 O Grito Primal ....................................................................................... 78 A Resistência ......................................................................................... 79 A Primal Simbólica ................................................................................ 79 Variações em Estilos Primais ................................................................ 82
A Experiência de Grupo ........................................................................ 86 Ficando Bom ......................................................................................... 87 Discussão .............................................................................................. 88 Kathy ..................................................................................................... 91 9 - A RESPIRAÇÃO, A VOZ E O GRITO ............................................................ 102 10 - AS NEUROSES E A DOENÇA PSICOSSOMÁTICA ...................................... 108 O Desaparecimento dos Sintomas...................................................... 112 Discussão ............................................................................................ 118 11 - O FATO DE SER NORMAL ....................................................................... 120 12 - O PACIENTE PÓS-PRIMAL ....................................................................... 133 Relação com os pais ............................................................................ 141 Gary..................................................................................................... 143 13 - A RELAÇÃO DA TERAPIA PRIMAL COM OUTROS MÉTODOS TERAPÊUTICOS .............................................................................................. 177 A Escola Freudiana ou Psicanalítica .................................................... 177 Wilhelm Reich ..................................................................................... 180 A Escola Behaviorista ou de Condicionamento .................................. 182 A Escola Racional ................................................................................ 185 A Terapia da Realidade ....................................................................... 187 Meditação Transcendental ................................................................. 190 Existencialismo ................................................................................... 191 Psicodrama ......................................................................................... 197 Laura ................................................................................................... 199 14 - INSIGHT E TRANSFERÊNCIA EM PSICOTERAPIA ..................................... 205 A Natureza do Insight ........................................................................ 205 Discussão ............................................................................................ 210
A Transferência ................................................................................... 211 Phillip .................................................................................................. 213 15 - SONO, SONHOS E SÍMBOLOS ................................................................. 223 Discussão ............................................................................................ 230 16 - A NATUREZA DO AMOR ......................................................................... 233 17 - SEXUALISMO, HOMOSSEXUALISMO, BISSEXUALISMO .......................... 240 Amor e Sexo ........................................................................................ 243 Frigidez e Impotência.......................................................................... 244 Perversões .......................................................................................... 249 Lenny................................................................................................... 250 Jim ....................................................................................................... 253 Homossexualismo ............................................................................... 258 Identidade e Homossexualismo.......................................................... 261 Bissexualismo e Homossexualismo Latentes ...................................... 262 Discussão ............................................................................................ 264 Elizabeth ............................................................................................. 266 18 - OS FUNDAMENTOS DO MEDO E DA RAIVA ........................................... 275 A Raiva ................................................................................................ 275 Ciúme e Inveja .................................................................................... 280 Medo................................................................................................... 281 Contrafobia ......................................................................................... 284 Medos Infantis .................................................................................... 286 Discussão ............................................................................................ 287 Kim ...................................................................................................... 288 Suicídio ................................................................................................ 293
19 - DROGAS E VÍCIO ..................................................................................... 297 Dietilamida do Ácido Lisérgico (LSD-25) ............................................. 297 Heroina ............................................................................................... 303 Discussão ............................................................................................ 306 Maconha ............................................................................................. 308 Sally ..................................................................................................... 310 Voracidade .......................................................................................... 314 20 - PSICOSE: DROGA E ANTIDROGA ............................................................ 317 21 - CONCLUSÕES ......................................................................................... 323 APÊNDICE A ................................................................................................... 333 TOM .................................................................................................... 333 Conclusões .......................................................................................... 353 APÊNDICE B ................................................................................................... 357 INSTRUÇÕES PARA OS NOVOS PACIENTES PRIMAIS .......................... 357
INTRODUÇÃO
A DESCOBERTA DA DOR PRIMAL Alguns anos atrás eu ouvi algo que iria mudar o curso de minha vida profissional e as vidas de meus pacientes. O que ouvi, e que mudou a natureza da psicoterapia atual, foi um grito fantástico que irrompeu de dentro de um jovem, deitado no chão, durante uma sessão de terapia, e que só podia ser comparado ao que escapa de uma pessoa prestes a ser assassinada. Este livro é sobre aquele grito e o seu significado no esclarecimento dos segredos das neuroses. O jovem que emitiu o grito será aqui chamado de Danny Wilson, um estudante de vinte e dois anos. Ele não era psicótico e nem tampouco histérico. Era um estudante medíocre, ensimesmado, susceptível e calado. Durante uma pausa em nossa sessão de terapia de grupo, ele nos contou a história de um homem chamado Ortiz que representava nos palcos londrinos uma peça na qual ele se apresentava de fraldas, bebendo leite na mamadeira. Durante todo o espetáculo Ortiz gritava: "Mamãe! Papai! Mamãe! Papai!" em altos brados. No final do ato ele vomitava. Oferecia-se, então, aos espectadores sacos plásticos para que pudessem seguir o exemplo do ator. A fascinação de Danny pela peça levou-me a uma tentativa elementar, que antes não me ocorrera. Pedi-lhe que gritasse "Mamãe! Papai!" Ele recusou, alegando que não via sentido em tal criancice, coisa com a qual eu concordava. Mesmo assim insisti e ele acabou cedendo. Quando começou a chamar pelos pais, foi se transformando. Subitamente pôs-se a espernear, contorcendo-se no chão, em agonia. Sua respiração era rápida e espasmódica: "Mamãe! Papai!" gritava quase involuntariamente, em altos brados. Parecia estar em estado de coma ou de hipnose. As contorções foram substituídas por pequenas convulsões, até que finalmente ele soltou o grito de agonia mortal, lancinante, que abalou as paredes de meu consultório. Todo esse episódio durou apenas alguns minutos, e nem Danny nem eu tivemos uma noção exata do que acontecera. Tudo que ele depois conseguiu dizer foi o seguinte: "Consegui! Não entendo muito bem, mas sinto-o!" O que acontecera com Danny deixou-me perplexo durante meses. Eu já fazia terapia de insight havia dezessete anos, como assistente social psiquiátrico e como psicólogo. Trabalhei numa clínica psiquiátrica freudiana e também num departamento da Administração dos Veteranos, de tendência menos freudiana. Durante muitos anos fiz parte da equipe do departamento de psiquiatria do Hospital
Infantil de Los Angeles. Nunca, durante todo esse tempo, havia presenciado coisa semelhante. Como eu gravara a sessão de grupo naquela noite, tive oportunidade de ouvir várias vezes o que se passara durante os meses seguintes, numa tentativa de entender o que havia acontecido. Mas tudo foi inútil. Algum tempo depois consegui afinal compreender um pouco mais. Um homem de trinta e nove anos, a quem chamaremos de Gary Hillard, contava com muito sentimento como seus pais o criticavam, não podendo amá-lo e prejudicando-lhe a vida. Insisti com ele para que gritasse por eles. Resistiu, dizendo que sabia que não o amavam, e portanto não fazia sentido chamar por eles. Pedi-lhe que satisfizesse o meu capricho. Meio contrariado ele começou a chamar "Papai! Mamãe!" Logo sua respiração acelerou-se, ficando mais profunda. Seu apelo transformou-se em uma representação involuntária, na qual ele se contorceu em convulsões, até chegar a um grito. Ambos ficamos chocados. O que eu pensara ser um acidente, uma idiossincrasia de um paciente, acabava de se repetir de um modo idêntico. Mais tarde, quando se acalmou, Gary sentiu-se inundado de insights. Disseme que toda sua vida parecia subitamente tomar um sentido. Esse homem, geralmente sem sofisticação, começou a se transformar diante de meus olhos numa outra pessoa. Tornou-se alerta. Seu aparelho sensorial desabrochou. Parecia compreender o que se passava com ele. Em virtude da semelhança das duas reações, comecei a ouvir cada vez mais com maior atenção as gravações que fizera das duas sessões. Tentei analisar quais os fatores comuns ou quais as técnicas que haviam produzido tais reações. Vagarosamente comecei a perceber um certo significado. Durante os meses seguintes tentei várias modificações e táticas para pedir aos pacientes que chamassem por seus pais. Todas as vezes repetiu-se o resultado dramático. Agora eu entendo que aquele grito é a consequência da dor central e universal que habita todos os neuróticos. Chamo-a de Dor Primal por ser a dor original, primeira, sobre a qual crescem as neuroses posteriores. Em minha opinião essa dor persiste permanentemente em todo o neurótico, seja qual for a forma de sua neurose. Ela geralmente não é consciente sendo difundida através de todo o organismo e afetando os órgãos, os músculos, o sistema venoso e linfático e, finalmente, destorcendo nosso comportamento. A Terapia Primal tem por objetivo erradicar tal dor. É uma terapia revolucionária porque implica no desmoronamento do sistema neurótico em virtude de um impacto brutal. Na minha opinião as neuroses só podem ser eliminadas por um processo como esse. A Terapia Primal é um desenvolvimento de minhas observações a respeito dos motivos das transformações específicas. Devo acentuar que nenhuma teoria
precedeu à experiência clínica. Quando observei Danny e Gary contorcendo-se no chão vitimados pela Dor Primal, eu não sabia como encarar tal fenômeno. A teoria foi ampliada e aprofundada pelos frequentes relatórios dos diversos pacientes que foram curados das neuroses. Esse livro é um convite para a exploração da revolução que eles começaram.
1 - O PROBLEMA
Uma teoria é o significado que damos à observação de uma determinada sequência da realidade. Quanto mais próxima da realidade esteja a teoria, mais válida ela é. Uma teoria é válida quando nos permite estabelecer previsões por se enquadrar à natureza daquilo que está sendo observado. Desde os tempos de Freud que somos obrigados a confiar nas teorias aposteríori, isto é, usando nossos sistemas teóricos para explicar ou racionalizar o que já aconteceu. À proporção que os dados observáveis foram ganhando complexidade, nossas observações nos conduziram a um emaranhado de diferentes sistemas ou escolas teóricas. Na psicoterapia atual, a fragmentação e a especialização são abundantes. Parece que as neuroses se desenvolvem de formas tão variadas, nesta última metade do século, que a palavra "cura" já não é mais mencionada pelos psicólogos, e a palavra "neurose" foi desmembrada num grande número de áreas de problemas. Existem, portanto, livros sobre sensações, percepções, aprendizagem, cognição etc. As neuroses são hoje rotuladas, por qualquer um que tenha propensões teóricas, com nomes como fobia, depressão, sintoma psicossomático, incapacidade de funcionar, indecisão. Desde Freud que os psicólogos vêm se interessando pelos sintomas e não pelas causas. O que nos falta é uma estrutura global que nos ofereça uma diretriz concreta do procedimento a ser adotado com os pacientes durante cada hora de terapia. Antes de descobrir aquilo que iria se transformar em uma Teoria Primal, eu sabia, de um modo geral, o que devia esperar de cada um de meus pacientes. Preocupava-me, contudo, assim como outros colegas meus, com a falta de continuidade de uma sessão para outra. Parecia-me estar apenas fazendo remendos. Sempre que havia uma rotura no processo de defesa de um de meus pacientes, eu estava ali, como o lendário menino holandês. Um dia eu analisava um sonho, outro dia encorajava uma livre associação de ideias. Na semana seguinte focalizávamos acontecimentos passados, e outras vezes eu ajudava o paciente a se situar no momento atual. Como muitos de meus colegas, eu me sentia perplexo ante a complexidade dos problemas apresentados pelos pacientes atormentados. A previsão, que é o fundamento de um método teórico válido, muitas vezes tinha que ser substituída por uma espécie de confiança intuitiva. Eu acreditava, sem verbalizar tal crença, que, se houvesse um insight profundo, o paciente cedo ou tarde chegaria a conhecer-se tão bem que poderia controlar seu comportamento neurótico. No entanto, agora eu acredito que as neuroses têm muito pouco a ver com o entendimento do problema e
da própria neurose. A neurose é uma enfermidade do sentimento. Seu cerne é a supressão do sentimento e sua transmutação em uma ampla variedade de comportamentos neuróticos. A estonteante variedade dos sintomas neuróticos, que vão da insônia à perversão sexual, fizeram-nos pensar na neurose como pertencendo a categorias, porém os diferentes sintomas não implicam diferentes enfermidades. Todas as neuroses provêm da mesma causa específica e reagem ao mesmo tratamento específico. Apesar de toda a sua genialidade, Freud nos legou dois infelizes conceitos, que nós aceitamos como verdades evangélicas. Um deles é o que diz não haver um começo para a neurose. Em outras palavras, todo ser humano nasce neurótico. O outro é o que afirma que a pessoa que possui um forte sistema de defesa é consequentemente mais capaz de funcionar adequadamente na sociedade. A Terapia Primal baseia-se na hipótese de que nascemos sendo nós mesmos. Não nascemos neuróticos ou psicóticos. Apenas nascemos. A Terapia Primal implica a desmontagem das causas de tensão, dos sistemas de defesa e das neuroses. Portanto, a Terapia Primal indica que as pessoas mais saudáveis são as que não possuem sistemas de defesa. Tudo que contribui para a montagem de um forte sistema de defesa aprofunda a neurose. Quando isto acontece, a tensão neurótica é enquadrada em camadas de mecanismos de defesa que permitem à pessoa ter um funcionamento exterior melhor, ao passo que são açoitadas por uma maior tensão interna. Eu não me consolo com a racionalização de que vivemos em uma época de neuroses (ou ansiedade), sendo portanto de se esperar que as pessoas sejam neuróticas. Gostaria de sugerir que existe alguma coisa além de uma melhor atuação social, alguma coisa além do alívio dos sintomas e de uma percepção mais profunda de nossas motivações. Existe um estado de espírito bem diferente daquele que nos habituamos a conhecer: uma vida descontraída, livre de defesas, em que cada um é o que é, conhecendo sentimentos profundos e unidade interior. É esse o estado de espírito que pode ser alcançado pela Terapia Primal. As pessoas se tornam autênticas e continuam assim. Isso não quer dizer que o paciente depois de passar pela Primal nunca mais vai se sentir triste ou infeliz. O que quero dizer é que, a despeito do que lhe possa acontecer, ele há de encarar seus problemas com uma atitude realista e atual. Já não irá encobrir a realidade com falsidades. Não sofrerá mais a inexplicável tensão do medo.
A Terapia Primal já foi usada com sucesso no tratamento de uma ampla variedade de neuroses, inclusive no vício da heroína. As sessões da Terapia Primal são inter-relacionadas e, geralmente, o Terapeuta Primal pode predizer o desenvolvimento da terapia de seu paciente. As implicações dessa afirmativa tornarse-ão cada vez mais importantes, pois se podemos curar as neuroses de um modo sistemático e ordenado, também poderemos conseguir isolar os fatores que poderão ser úteis à sua prevenção.
2 - AS NEUROSES
Nós somos criaturas com necessidades. Nascemos necessitando, e a maioria morre depois de uma vida de lutas, sem termos realizado nossos anseios. Essas necessidades não são excessivas: é preciso que sejamos alimentados, acalentados e estimulados, e que nos mantenhamos protegidos para que possamos nos desenvolver em compasso próprio. Essas necessidades de caráter Primal são a realidade central do bebê. O processo neurótico começa quando tais necessidades não são atendidas durante certo tempo. Um recém-nascido não sabe que deve ser acalentado quando chora, ou que não deve ser desmamado antes do tempo, mas quando suas necessidades não são atendidas, ele sofre. A princípio o bebê fará tudo que lhe for possível para ver suas necessidades serem atendidas. Ele levantará os braços para ser acalentado, chorará quando tiver fome, esperneará e se contorcerá a fim de chamar atenção sobre si. Se suas necessidades não forem atendidas durante algum tempo, se não for acalentado, se não lhe mudarem as fraldas e não o alimentarem, ele sofrerá até que seus pais o atendam ou até que ele mesmo suprima sua dor, suprimindo sua necessidade. Se sua dor for bastante forte, ele poderá morrer, como mostram os estudos feitos em algumas instituições infantis. Como o bebe não pode, sozinho, vencer sua sensação de fome (isto é, ele não pode dispor da geladeira) ou encontrar uma afeição substituta, ele terá que separar suas sensações (fome, desejo de acalento) da consciência delas. Esta separação de si mesmo e de suas necessidades e sentimentos é uma manobra instintiva a fim de isolar a dor excessiva. Nós chamamos esta forma de procedimento de split ou cisão. O organismo faz o split a fim de proteger sua continuidade. Mas isso não quer dizer que desaparecem as necessidades que não forem atendidas. Ao contrário, elas continuam a se fazer sentir através de toda a vida, exercendo uma força, canalizando interesses, e produzindo motivações para satisfazê-las. Mas em virtude da dor que ocasionam, as necessidades foram suprimidas no inconsciente, e o indivíduo tem de procurar satisfações substitutas. Deve, então, procurar satisfazer suas necessidades de um modo simbólico. Por não ter podido exprimir-se, ele poderá ser compelido a procurar, mais tarde em sua vida, outras pessoas que o compreendam e o ouçam. Não são somente as necessidades não atendidas que persistem até atingirem um grau de intolerabilidade dissociada da consciência, mas também suas sensações são transportadas para áreas onde possam obter maior alívio ou controle. Sendo assim, certas sensações podem ser aliviadas pela urina (mais tarde pelo sexo) ou controladas pela supressão da respiração profunda. A criança não atendida está
aprendendo a disfarçar e transformar suas necessidades em atos simbólicos. Ao chegar à idade adulta poderá não sentir a necessidade de sugar o seio da mãe, por ter sido desmamado prematuramente, mas poderá se tornar um fumante inveterado. Sua necessidade de fumar é uma necessidade simbólica, e a essência das neuroses é a busca de satisfações simbólicas. A neurose é o comportamento simbólico defendendo o indivíduo da excessiva dor psicobiológica. A neurose perpetua-se automaticamente pois a satisfação simbólica não pode satisfazer às necessidades reais. Para que as verdadeiras necessidades sejam satisfeitas, é preciso que sejam sentidas e experimentadas. Infelizmente a dor fez com que essas necessidades fossem sepultadas. Quando isso acontece, o organismo estabelece um estado contínuo de alerta. Esse estado de alerta é a tensão. Ela impele o bebê e mais tarde o adulto, em direção à satisfação das necessidades da maneira que for possível. Esse estado de alerta e emergência é necessário para garantir a sobrevivência da criança. Ela pode até morrer se tiver que abdicar à esperança de ver suas necessidades atendidas. O organismo continua a viver custe o que custar, e esse preço é geralmente a neurose que encobre os sentimentos e as necessidades físicas que não foram atendidas, já que a dor é grande demais para ser suportada. Tudo que é natural é realmente necessário. Por exemplo, crescer e se desenvolver em um compasso próprio. Isso quer dizer que uma criança não deve ser desmamada prematuramente; não deve ser obrigada a andar ou a falar antes do tempo; não deve ser forçada a jogar bola antes que seu aparelho neurológico possa realizar tal ato de modo natural. As necessidades neuróticas não são necessidades naturais, pois se desenvolvem devido ao não atendimento de necessidades reais. Nós não nascemos necessitando ouvir elogios, porém se os esforços de uma criança são sempre ridicularizados desde a mais tenra idade, quando ela começar a entender que por mais que faça, nunca consegue obter a aprovação e o amor de seus pais, isso pode então resultar num anseio de elogios. Paralelamente, a necessidade da criança para se exprimir pode ser suprimida até mesmo pela falta de alguém que a ouça. Tal rejeição pode fazer com que a criança fale incessantemente. Uma criança amada é aquela cujas necessidades naturais são sempre atendidas. O amor elimina sua dor. Uma criança que não é amada sofre por não ser atendida. Uma criança amada não necessita ser elogiada pois não foi ridicularizada. Ela é apreciada pelo que é, não pelo que possa fazer para satisfazer às necessidades de seus pais. Uma criança amada não se transforma em um adulto com um desejo sexual insaciável. Ela já foi acalentada e acariciada por seus pais e não necessita usar o sexo para satisfazer essa necessidade primitiva. As necessidades verdadeiras surgem de dentro para fora, e não ao contrário. A necessidade da criança em ser acalentada e acariciada faz parte da necessidade de ser estimulada. A pele é o nosso mais vasto órgão sensorial e requer tanto estímulo como qualquer outro órgão sensorial. O estímulo insuficiente nos primeiros tempos de vida pode produzir
consequências desastrosas. Os sistemas orgânicos podem se atrofiar se não são 1 estimulados. Inversamente, como o demonstrou Krech , eles podem se desenvolver se são estimulados corretamente. Deve sempre haver estímulo físico e mental. As necessidades não satisfeitas anulam qualquer outra atividade do homem, até serem atendidas. Quando as necessidades são satisfeitas, a criança pode sentir. Ela percebe seu corpo e o ambiente em que vive. Quando as necessidades não são atendidas, a criança sente apenas tensão, que é o sentimento desligado da consciência. Sem essa ligação necessária o neurótico não sente. A neurose é a patologia do sentimento. A neurose não começa no momento em que a criança suprime seu primeiro sentimento, mas podemos dizer que o processo neurótico começa então. A criança fecha-se por etapas. Cada repressão e negação de uma necessidade faz com que a criança se feche um pouco mais. Acontece, então, um momento em que ocorre uma mudança crítica na qual a criança se desliga, na qual ela é mais falsa do que verdadeira, e ao atingir esse ponto crítico nós podemos considerá-la neurótica. Daí em diante ela operará em um sistema de personalidade dupla. O verdadeiro eu são as necessidades e os sentimentos do organismo. O falso eu é o disfarce desses sentimentos e vai se transformar na fachada que é necessária aos pacientes neuróticos a fim de conseguirem satisfazer suas próprias necessidades. Pais que se sintam inseguros por terem sido constantemente humilhados por seus pais, podem exigir dos filhos um respeito e uma submissão total. Um pai imaturo pode exigir que o filho cresça rapidamente, a fim de poder fazer o seu trabalho, e a criança torna-se, então, adulta, muito antes de estar pronta para tal, para que o pai continue a ser cuidado como criança. As exigências que tornam a criança falsa nem sempre são muito explícitas. No entanto, a necessidade de ter pais é uma exigência implícita da criança. A criança nasce de uma necessidade dos pais e começa a lutar para atendê-los desde o momento em que nasce. Ela pode ser obrigada a sorrir (para parecer feliz), a balbuciar, a acenar com as mãos, a sentar e a andar, antes do tempo, para que os pais possam dizer que têm um filho esperto. À proporção que a criança se desenvolve, essas exigências vão se tornando mais complexas. O menino terá que ser bom aluno, terá que ser prestativo e ajudar nas tarefas domésticas, terá que ser calmo e sem exigências, não deverá falar demais, deverá dizer coisas muito inteligentes e praticar atletismo. O que não poderá fazer é ser ele mesmo. A grande quantidade de transações que ocorrem entre as crianças e seus pais negarão a necessidade Primal natural da criança e ela sofrerá com isso, não podendo ser quem é e ser amada. A essas dores profundas eu chamo de Dor Primal (ou Dores). A Dor Primal engloba as necessidades e sentimentos que são reprimidos ou negados pela
1
D. Krech, C. Bennett, M. Diamonde M. Rosenzweig, "Chemical and Anatomical Plasticity of Brain", Science, Vol 146 (outubro de 1964), pp. 610-1 9.
consciência, fazendo sofrer por não poderem ser exprimidos ou satisfeitos. Todas essas Dores podem ser resumidas nesta frase: Eu não sou amada e nem posso ter esperança de receber amor enquanto for eu mesma. Cada vez que uma criança não é acalentada quando necessita sê-lo, cada vez que se exige seu silêncio, cada vez que é ridicularizada, ignorada ou obrigada a um comportamento além de sua capacidade, aumenta o volume de seu poço de sofrimentos, que chamo de Poço Primal. Cada adição a este poço torna a criança mais falsa e neurótica. À proporção que aumentam os assaltos ao sistema, a verdadeira personalidade começa a ser destruída. Um dia acontecerá alguma coisa que, mesmo não tendo um conteúdo traumatizante, poderá perturbar o equilíbrio entre o eu falso e o verdadeiro, tornando a criança neurótica. A tal acontecimento eu dou o nome de Cena Primal principal. É nessa época da vida da criança que todas as humilhações passadas, as negações, as privações se somam numa compreensão incipiente: "Não há esperança de ser amado pelo que sou." Então ela se defende contra essa catastrófica descoberta, dissociando-se de seus sentimentos, e entregando-se à neurose. Essa descoberta não é consciente, e a criança até começa a comportar-se, tanto em casa como socialmente, do modo desejado pelos pais, falando e fazendo como eles. Quando se comporta desse modo, está agindo de forma falsa, isto é, não age de acordo consigo mesmo, com suas próprias necessidades e desejos. Dentro de pouco tempo o comportamento neurótico se torna automático. A neurose implica no desligamento, no split, dos próprios sentimentos. Quanto maior for a violência dos pais sobre a criança, mais profundo será o abismo entre o eu verdadeiro e o falso. A criança começará a andar do modo indicado, só tocará seu corpo nas áreas permitidas, não será exuberante ou triste, conforme a exigência, e assim por diante. O split é, contudo, necessário a uma criança fraca. É o modo reflexivo (isto é, automático) do organismo manter sua sanidade. A neurose é pois a defesa contra a catástrofe da realidade a fim de proteger o desenvolvimento e a integridade psicofísica do organismo. A neurose implica em ser o que não se é, a fim de se obter o que não existe. Se existisse amor, a criança seria o que é, pois é isso o amor: deixar que a pessoa seja aquilo que é. Portanto não é necessário acontecer nada terrivelmente traumatizante para produzir uma neurose, já que ela pode aparecer quando se força uma criança a dizer "por favor" e "obrigada" sempre que pronunciar uma frase, a fim de provar que seus pais são pessoas finas e educadas. Também pode aparecer como uma consequência de não se permitir que a criança se queixe ou chore quando se sente infeliz. Os pais podem se precipitar para a criança e consolá-la por ansiedade. Podem não permitir que demonstre raiva, "meninas bem educadas não fazem cenas",
"meninos bem educados não respondem aos mais velhos". Também pode ser uma fonte de futuras neuroses o hábito de se exigir da criança que recite poesias nas reuniões em casa de amigos, ou de obrigá-la a resolver problemas abstratos. Qualquer que seja a forma que tome a exigência, a criança logo compreenderá o que se espera dela. Ou concorda, ou então é castigada: não recebe amor, ou o que passa por ser amor, aprovação, carinho, um sorriso. A criança acaba habituando-se a representar e sua vida se transforma em um ritual a serviço das exigências paternas. O que causa o split é o amargo desespero de não ser nunca amada. A criança tem, então, que negar essa compreensão de que suas necessidades não serão nunca satisfeitas, por mais que se esforce. Ela não pode viver sabendo que é desprezada ou que ninguém está realmente interessado nela. Para ela é intolerável saber que não há um meio de fazer com que o pai seja menos crítico e a mãe mais amorosa. A única maneira que encontra para se defender disso tudo é desenvolvendo necessidades substitutas que são neuróticas. Tomemos como exemplo um menino que está sempre sendo censurado pelos pais. No colégio ele poderá falar sem parar (e sofrer a repreensão do professor); no recreio ele poderá se vangloriar ininterruptamente (alienando as outras crianças). Mais tarde, poderá desenvolver um desejo incontrolável e exigir em altos brados algo que seja tão patentemente simbólico (para os que o observam) como "a melhor mesa do salão" em um restaurante de luxo. O lugar na mesa não poderá desfazer a "necessidade" que ele tem de se sentir importante. Se assim for ele não precisará comportar-se de tal forma toda vez que entrar num restaurante. Dissociado de sua verdadeira necessidade inconsciente (a de ser reconhecido como um ser humano digno de atenção), ele procura dar "sentido" à sua existência sendo cumprimentado pelo nome nos vários restaurantes e hotéis de luxo que frequenta. 2
As crianças nascem, pois, com necessidades biológicas reais que, por um ou outro motivo, seus pais deixam de satisfazer. Pode ser que alguns pais e mães não reconheçam as necessidades de seus filhos ou que tais pais, com o desejo de não cometerem qualquer erro, sigamos conselhos de alguma célebre autoridade em educação e só segurem os filhos em horas certas, alimentando-os pelo relógio, com uma pontualidade que faria inveja a uma companhia de aviação, desmamando-o segundo uma tabela prescrita, e educando suas necessidades fisiológicas o mais cedo possível. No entanto eu não acredito que a ignorância ou a metodologia possam ser responsáveis pela prodigiosa safra de neuroses que a humanidade vem produzindo desde que a história começou. A principal razão das crianças tornarem-se neuróticas, 2 Muitos pais cometem o erro de não tirar do berço a criança com medo de "estragá-la", e é exatamente isso que acontece quando a ignoram. Mais tarde a criança irá exigir deles, de um modo insaciável, substitutos simbólicos desses gestos, até o momento em que os pais se cansem de atendê-la. E a consequência disso é tanto inevitável como terrível .
segundo pude descobrir, é que seus pais estão empenhados em uma luta contínua contra suas próprias necessidades infantis insatisfeitas. Sendo assim uma mulher pode engravidar a fim de ser acalentada, que é realmente o que ela sempre quis durante toda sua vida. Enquanto for o centro de atenção, ela sentir-se-á feliz. Quando tiver a criança, poderá sentir-se deprimida. A gravidez servirá à sua necessidade, não tendo relação alguma com o parto de um novo ser humano sobre a terra. A criança poderá até sofrer por ter nascido, privando sua mãe de gozar a única época de sua vida em que conseguiu fazer com que outras pessoas se interessassem por ela. Como ela não está preparada para a maternidade, seu leite poderá secar, deixando o recém-nascido com a mesma sensação de privação que ela mesma sentiu. Dessa maneira os pecados dos pais recairão sobre os filhos em um ciclo aparentemente interminável. Eu chamo de luta a tentativa da criança para agradar aos pais. Essa luta começa com os pais e mais tarde se generaliza e abrange todo o mundo, espalhandose para além da família pois o indivíduo carrega consigo suas necessidades insatisfeitas, que têm de ser equacionadas. Ele procurará pais substitutos com os quais representará seu drama neurótico, ou fará com que qualquer pessoa (até mesmo seus filhos) tome o lugar dos pais que satisfarão suas necessidades. Se o pai foi um indivíduo reprimido, que nunca pôde manifestar-se verbalmente, seus filhos saberão ouvi-lo. Eles, a seu turno, sendo obrigados a ouvir, procurarão alguém que os ouça para satisfazerem sua necessidade suprimida. Esse alguém poderá muito bem ser o seu próprio filho. O campo da luta pode se transferir da necessidade verdadeira para a neurótica, do corpo para a mente, pois as necessidades mentais ocorrem quando as necessidades básicas são negadas. Mas as necessidades mentais não são necessidades reais. Em verdade, não existem necessidades puramente psicológicas. As necessidades psicológicas são necessidades neuróticas porque não atendem às verdadeiras exigências do organismo. Por exemplo, o homem que tem que ter a melhor mesa do restaurante para se sentir importante está agindo baseado em uma necessidade que se desenvolveu devido à falta de amor em sua vida, porque seus esforços verdadeiros foram ignorados ou suprimidos. Ele pode ter necessidade de ser reconhecido pelo nome pelos maîtres porque anteriormente ele era apenas mencionado numa categoria como "filho". Isso quer dizer que ele foi desumanizado pelos pais e está tentando obter simbolicamente uma reação humana através de outras relações. Se tivesse sido tratado por seus pais como um ser humano único, seria menor sua necessidade de se sentir importante. O que o neurótico faz é dar rótulo novo (a necessidade de se sentir importante) às antigas necessidades inconscientes (ser prezado e amado). Com o tempo eles acabarão acreditando que esses rótulos são sentimentos verdadeiros e que sua busca é necessária.
A fascinação de vermos nossos nomes em letreiros luminosos ou nas páginas de publicações é uma das indicações de uma profunda privação de reconhecimento como indivíduo. Essas realizações, não importando seu valor real, são uma busca simbólica do amor dos pais. A luta passa a ser a tentativa de agradar a uma determinada plateia. É essa luta que faz com que uma criança não se sinta impotente. Ela pode ser representada pelo excesso de zelo nos estudos ou no atletismo. A luta é a esperança do neurótico de receber amor. Em vez de ser ele mesmo, ele luta para ser uma outra versão de si mesmo. Mais cedo ou mais tarde a criança passa a acreditar que essa versão é o seu verdadeiro eu. O "ato" já não é mais voluntário e consciente mas sim neurótico.
A Cena Primal Há duas espécies de Cena Primal: a principal e a secundária. A Cena Primal principal é o acontecimento isolado e devastador na vida da criança. É aquele momento de solidão cósmica e gélida, a mais amarga de todas as epifanias. É o instante em que ela começa a compreender que não é amada pelo que é e não o será. Anteriormente à Cena Primal, a criança já passou por um sem-número de experiências secundárias nas quais foi ridicularizada, rejeitada, esquecida, humilhada, obrigada a representar. Chega finalmente o dia em que todos esses acontecimentos deletérios começam a ter um sentido para a criança. Um acontecimento crucial parece somar todas essas experiências passadas: "Eles não gostam de mim como sou." Essa é uma explicação catastrófica, que é negada e abafada, e em seu lugar começa a luta do falso eu. Deste momento em diante a experiência será protegida por essa frente de modo que a criança muitas vezes não saberá quando está sofrendo. Sua luta encobrirá sua Dor. Alguns pacientes conseguem lembrar uma cena crucial que foi a soma de todas as outras cenas secundárias anteriores. Para outros, houve apenas um lento e monótono acréscimo de pequenos traumas, cada um deles insignificante em si, mas que um dia se transformam em uma brecha de grandes proporções, brecha essa que pode acontecer de um modo dramático na forma de uma cena principal ou simplesmente como o resultado de um acúmulo de cenas secundárias, e faz com que um dia a criança se torne mais falsa do que verdadeira. O split ocasionado por essa cena principal significa o fim da criança como um ser integrado e entrosado. A Cena Primal principal geralmente ocorre entre os cinco e os sete anos de
idade. É nessa época que a criança aprende a generalizar partindo de experiências concretas. É nessa época que a criança começa a entender o significado de cada acontecimento isolado já sucedido. A cena principal não é necessariamente traumática, de um ponto de vista objetivo. Não é preciso que seja um acidente de automóvel ou de avião. É mais que tudo uma compreensão, uma visão rápida e brutal da verdade que aparece para a criança durante um acontecimento que pode ser até vulgar. Um paciente, por exemplo, lembra-se de ter chamado a mãe, quando era bem pequeno, e de ter sido atendido pelo pai a quem temia, em lugar da mãe. A visão foi: "Minha mãe nunca vem quando eu preciso dela". Esse raciocínio tinha por base as muitas vezes em que ele chamou pela mãe para lhe pedir um copo de água. Ela nunca vinha. Era seu pai que vinha. Um dia ele descobriu que sua mãe nunca viria quando ele precisasse dela. Sentiu-se então partido ao meio, pois querer a mãe e pedir que ela o atendesse era chamar o temido pai e receber seu castigo por estar dando trabalho. Portanto querer era receber o que não queria. Ele nunca mais a chamara pretendendo poder viver muito bem sem mãe, até o dia, em meu consultório, em que no meio de grande sofrimento chamou "mamãe!" As cenas secundárias são simplesmente pequenos acontecimentos que atingem o eu verdadeiro como críticas ou humilhações até que um dia acontece uma cena principal e o eu se rompe com a tensão. É possível que uma Cena Primal principal possa ocorrer durante os primeiros meses de vida. Isso acontece quando o evento é tão desastroso que acriança pequena não podendo defender-se tem que sofrer um split a fim de sobreviver à experiência. Esse evento produzirá uma rotura irreparável que durará até ser revivida outra vez em toda a sua intensidade. Um exemplo disso é a criança que é separada dos pais muito cedo e criada num orfanato. A Cena Primal pode ser um dado significativo pois representa centenas de experiências semelhantes, cujo resultado é sempre um grande sofrimento. Por isso, quando tais cenas são revividas durante a Terapia Primal, trazem em consequência um dilúvio de lembranças associadas. O que liga todos esses eventos é um sentimento (tal como "Não há ninguém que possa me ajudar"). Vejamos alguns exemplos de Cena Primal. A seguinte narração é a principal cena na vida de Nick. Quando tinha seis anos de idade, a Segunda Grande Guerra tinha terminado e seu pai havia voltado para casa, tendo sido desligado do Exército. Aquele seria o primeiro Natal que a família passaria junta desde Pearl Harbour, sendo por isso uma ocasião muito festiva. Nick esperava por aquele dia com a intensidade que só os muito pequenos possuem. Ele comprou uma gravata para o pai, embrulhando-a da melhor maneira possível, com um cartãozinho que ele mesmo desenhou. Às duas horas da tarde todos os presentes tinham sido abertos, menos o que ele dera ao pai. Às três todos estavam comendo o peru recheado exceto Nick.
Seu pai ignorara completamente seu presente. Finalmente alguém o descobriu debaixo da árvore e o trouxe para a sala de jantar. Como contou Nick: "Meu pai estava bêbado, e logo que viu o embrulho começou a fazer pilhérias. — Será um automóvel? O que poderá ser isso? Será uma lancha? Não. Isso só pode ser um aeroplano, embrulhado de um jeito tão grosseiro! É claro que é um aeroplano! Todos riram muito e eu tive vontade de sumir dentro do chão. Quando meu pai bebia era implacável. Ele fingiu que não sabia de quem era o presente, embora o cartão dissesse "Papai", e eu fosse o único filho. Finalmente ele acabou abrindo o embrulho, e então veio até onde eu estava sentado, balbuciando "Minha vida, meu amor, de todos os milhões de gravatas em meu guarda-roupa, esta vai ser para todo o sempre a minha favorita..." Coisa assim. Ele empilhou insulto sobre insulto. Finalmente quando ele disse pela quinta vez, 'Você não deveria ter gasto o seu dinheiro com seu velho pai', eu não aguentei mais, levantei-me e saí correndo da mesa, pensando: Eu não devia mesmo! Você está danado de certo! Objetivamente, num mundo cuja dieta diária consiste de bombas atômicas, campos de concentração e genocídio, muito pouca coisa aconteceu naquela tarde de Natal. No entanto foi o suficiente, como a última gota d’água, para condenar um homem a quase um quarto de século de distúrbios nervosos, aberrações sexuais e profundas crises de depressão. Para Nick, aquela gravata simbolizou o sentimento de que "Nada que eu faça será suficiente para fazer você gostar de mim, papai!" A Cena Primal principal traz à tona centenas de incidentes que destroem todas as esperanças da criança. Desde o dia em que ocorrem, os sentimentos verdadeiros se galvanizam formando o falso eu, e assim a criança sentirá dificuldade em reconhecer muitos de seus sentimentos. (Assim, depois de chegar à puberdade, Nick disfarçou sua necessidade de ter um pai amoroso dedicando-se a fantasias homossexuais.) O verdadeiro eu, além de tudo, suprime esses mesmos desejos verdadeiros de modo que não podem ser relacionados e equacionados. ("Objetivamente", Nick sentia pelo pai alcoólatra apenas um grande desprezo.) A Cena Primal principal é um salto qualitativo em direção à neurose. Antes do Dia de Natal de 1946, já Nick havia estado tenso. Depois, a tensão não se evaporou, do mesmo modo que suas necessidades e sentimentos reprimidos não desapareceram, já que ficaram dentro dele, codificados no seu cérebro na forma de lembranças reprimidas que permearam todo seu sistema físico, mantendo-o tenso. Essa tensão impediu-o de entender o seu comportamento, impelindo-o na luta para preencher simbolicamente aquela necessidade com o homossexualismo. Pode-se ver claramente, portanto, que o cerne da luta neurótica é a esperança, a esperança de que suas ações vão trazer-lhe amor e carinho. Essa esperança deve, no entanto, ser falsa, pois força-o a tentar buscar através da luta neurótica algo que simplesmente não existe: pais amorosos. O neurótico tenta converter o mundo em pais interessados, amigos e atuantes. Se eles em verdade tivessem sido pessoas
assim essa luta não teria sido necessária. Depois da crise de uma Cena Primal principal podem ocorrer muitas centenas de experiências danosas no decorrer da vida em família. Cada uma delas aumenta o abismo e aprofunda a neurose. Cada uma delas torna a criança menos verdadeira. Um outro paciente meu sofreu uma Cena Primal mais dramática. Peter, com seus quatro anos de idade, era frequentemente espancado por seu pai pelos motivos mais variados. Ele sofria as surras sentindo que devia ter feito coisas terríveis para merecê-las. Um dia, quando estava fazendo compras com sua mãe, houve um acidente e o carro da família foi avariado. Quando Peter chegou em casa com a mãe, seu pai estava esperando por eles, furioso. "Como é que você pôde ser tão estúpida?" foi sua primeira pergunta. Ainda assustada pelo acidente a mãe de Peter começou a chorar, aumentando ainda mais a raiva do pai. Finalmente ele a esmurrou, jogando-a ao chão. Gritando, o garotinho atirou-se sobre o pai, segurando-lhe o braço que estava em posição para um novo murro. O pai de Peter segurou-o e depois de sacudi-lo jogou-o de encontro à parede. Naquele momento Peter compreendeu que seu pai poderia matá-lo se ele o provocasse. Desse dia em diante o menino teve que prestar atenção em cada palavra que dizia na frente do pai, em cada movimento que fazia. Sua infância tornou-se uma época de terror, em que procurava continuamente aplacar a ira do pai. Mas ele ainda tinha a mãe para ampará-lo. Porém ela, depois de um certo tempo, não suportando a vida com aquele homem brutal começou a beber até ter de ser internada num hospício. Depois que foi levada de casa, Peter compreendeu que aquilo era "o fim". E de fato foi o fim de Peter como um ser normal, integrado. Durante os vinte anos que se seguiram ele comportou-se de forma simbólica com todas as pessoas que encontrava. Ele representava o sentimento "Por favor, não me bata, papai!" e esse sentimento envenenou todos os aspectos de sua vida. Um outro exemplo de neurose começando como um estado de espírito e que parece inócuo é o de Anne e sua Cena Primal principal. Um dia, quando tinha seis anos, Anne foi apanhada por uma chuvarada. Uma mulher de sua vizinhança encontrou-a toda molhada e tremendo de frio. Levou a menina para sua casa e aqueceu-a junto à lareira, acalentando-a. Anne subitamente sentiu-se "esquisita", e, sem uma palavra de agradecimento à boa senhora, fugiu da casa e saiu correndo na chuva. Em seu quarto ela soluçou durante quase uma hora e não soube explicar à sua mãe o motivo de seu choro. Ela apenas sentia-se angustiada. Depois, enxugou as lágrimas e desceu, indo ajudar a mãe a fazer o jantar. Foi apenas isso o que aconteceu. Essa foi sua Cena Primal principal. No entanto foi mais traumática do que qualquer surra, já que não podia ser integrada e compreendida. Antes do dia da chuva, Anne já havia apanhado por dizer nomes feios, por se
sujar, porque rasgava as roupas e todas essas coisas que acontecem normalmente a qualquer um de nós. Em todas essas ocasiões ela achara que havia agido de maneira errada, pedira desculpas e continuara vivendo sua vida. Mas sentira completamente todas essas experiências. No dia da chuva, no entanto, ela não fizera coisa alguma errada. Não houve necessidade de desculpas, nada que pudesse explicar o porquê daquilo que então sentira. O carinho da vizinha mostrou-lhe o vazio da vida. Ela teve uma visão do que nunca tivera em casa, de um momento dedicado a ela, de carinho, conforto e compreensão, e entendeu que nunca poderia ser o que era e alcançar o amor de sua mãe. Saiu então correndo para ir chorar em casa antes de compreender completamente o que lhe acontecia, antes do impacto devastador daquele "nunca" ser sentido. Depois de chorar, quando a menininha desceu para ajudar a mãe, sua vida verdadeira cessou. Exteriormente ela se tornou delicada, meiga, atenta. As tensões internas começaram a se avolumar. Ela tentava libertar-se de seu desconforto ajudando a mãe que estava sempre doente. Ofereceu-se para tomar conta do irmão menor. Lutou e a tensão aumentou, assim como a sua neurose. Ela não queria tomar conta do irmãozinho, ela queria ser cuidada e acalentada. Ela não queria lavar os pratos, ela queria ir brincar. Mas cedia às exigências da mãe e se acomodava. Levou toda uma vida tentando converter a mãe naquela boa vizinha que lhe oferecera amor sem quid pro quo. A luta impediu-a de sentir a verdade, isto é, que sua mãe não iria nunca ser a pessoa amorosa que ela necessitava. A menininha fora aprisionada. Se deixasse de agir com delicadeza e sujeição, desencadearia o ressentimento de sua mãe por ter que ser mãe. A humildade de que a "mamãe" fosse a menininha 3 enquanto ela mesma adotava o papel de mãe. Foi por essa esperança falsa que Anne carregou a sua cruz. Ela esperava que algum dia tivesse uma recompensa e portanto lutava pelo amor imaginário de sua mãe, mas a única coisa que recebeu foram os pratos para lavar. Nesse caso, a Cena Primal foi um acontecimento que não foi completamente vivido, permanecendo desligado e sem ser equacionado. Isso não quer dizer que só durante uma época de nossas vidas é que se produzem neuroses, mas sim que naquele momento, isto é, na Cena Primal principal, é estabelecido um curso inalterável, e cada novo trauma aumenta o abismo entre o eu verdadeiro e o falso. A principal Cena Primal é a ocasião em que o acúmulo de pequenos sofrimentos, rejeições e supressões se congelam para formar um novo estado de espírito, a neurose. É a época em que a criança começa a compreender que para
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A esperança é amplamente inconsciente e geralmente nem é percebida. Ela é, em verdade, exteriorizada na luta.
poder viver tem que abdicar de parte de si mesma. Essa compreensão, dolorosa demais para ser suportada, nunca é completamente consciente, de modo que a criança começa a agir neuroticamente sem uma centelha de entendimento do que está acontecendo consigo. Como acabamos de ver, algumas das cenas principais podem ser dramáticas. Outras não o são necessariamente. Quando a mãe diz: "Se você fizer isso outra vez eu vou mandá-la embora", não é propriamente a cena; é o seu significado que é devastador para a criança. Uma ameaça aparentemente sem gravidade ou uma pequena surra pode ser subjetivamente tão traumatizante como ser mandada para o orfanato.
O Eu Verdadeiro e o Falso Embora faça referência a um eu verdadeiro e a um eu falso devo lembrar que ambos são aspectos de um mesmo eu. O eu verdadeiro é o eu natural, o que éramos até descobrirmos que nossos pais não nos aceitavam assim. Nós nascemos verdadeiros. E ser verdadeiro não é algo que necessite de esforço. A carapaça que usamos para envolver nosso eu verdadeiro é o que os freudianos chamariam de Sistema de Defesa. Mas os freudianos acreditam que um sistema de defesa é uma necessidade dos humanos e que "uma pessoa saudável e integrada" é aquela que possui um sistema de defesa bastante forte. Eu vejo o ser normal como uma pessoa totalmente sem defesas, uma pessoa sem um eu falso. Quanto mais forte for o sistema de defesa, mais doente é a pessoa, isto é, mais falsa ela é. O faquir que anda sobre brasas ou dorme numa cama de pregos é um exemplo típico do modo como o verdadeiro eu é suprimido. Todos os dias, em minhas atividades de terapeuta, eu vejo pessoas que conseguiram fazer um completo split de sua personalidade como uma proteção contra a Dor, e que já não mais sentem seu sofrimento psicológico assim como o faquir não sente a dor física. De vez em quando o neurótico tem uma visão de si mesmo. Uma doença ou umas férias impedem-no de lutar e ele é subitamente confrontado consigo mesmo. Algumas vezes isso produz sintomas psiquiátricos, ele se sente despersonalizado, esquisito, como se tivesse perdido o rumo de sua vida. Essa despersonalização é muitas vezes o começo da realidade e ele começa a perceber que seu eu verdadeiro é uma espécie de força que lhe é estranha. Geralmente ele bate em retirada para sua habitual falsidade e logo sente-se novamente como "era antes". Se pudesse dar um passo à frente, se conseguisse sentir a realidade de sua falsidade, creio que poderia tornar-se verdadeiro.
Então, no neurótico, o eu verdadeiro está trancado junto da Dor original. Por isso é preciso que sinta a Dor a fim de libertar-se. A Dor faz com que o eu falso se desmorone, do mesmo modo que a negação da Dor criou esse eu falso. O eu falso é um sistema de superposição, por isso o corpo parece rejeitá-lo como rejeitaria um corpo estranho. O esforço é sempre no sentido do eu verdadeiro. Como os pais neuróticos não nos permitem sermos verdadeiros, nós escolhemos um caminho complicado, isto é, neurótico, para chegar à realidade. A neurose é justamente o modo falso com que tentamos ser verdadeiros. O sistema falso é que torce o corpo deformando-o, e tendo como resultado o impedimento do desenvolvimento, do crescimento. Ele suprime o verdadeiro sistema endócrino ou o superestimula desnecessariamente. Ele causa uma tensão indevida a vários órgãos vulneráveis, causando explosões periódicas. Para resumir, o sistema falso é total: não é apenas um comportamento isolado. Ser neurótico significa não ser totalmente verdadeiro. Portanto, parte alguma do organismo pode funcionar suavemente, de um modo normal. A neurose é tão abrangedora como a normalidade, pois se difunde em todas as ações, em todas as atitudes do indivíduo. Há um modo do neurótico atingir o âmago de sua luta simbólica a fim de enfrentar a Dor que o impulsiona. É a esse processo que eu chamo de Terapia Primal, e que é o ataque sistemático ao falso eu, ocasionando por fim uma nova espécie de vida, a normalidade, do mesmo modo que os ataques originais ao eu verdadeiro produziram um novo estado de espírito, a neurose. A Dor é tanto a porta de entrada como a porta de saída.
DISCUSSÃO A Teoria Primal encara a neurose como a síntese de duas personalidades ou sistemas em conflito. A função do sistema falso é suprimir o verdadeiro, mas como as necessidades verdadeiras não podem ser erradicadas, o conflito é interminável. Na tentativa de serem apaziguadas, essas necessidades se transformam em virtude do sistema falso, de modo que só podem ser satisfeitas simbolicamente. Os sentimentos reais que se tornaram dolorosos por não terem sido satisfeitos devem ser suprimidos para que a criança não seja destruída pela Dor. No entanto, paradoxalmente, essas necessidades não podem ser satisfeitas se não forem percebidas. Se encararmos essas necessidades e sentimentos reprimidos como sendo uma forma de energia que impulsiona o organismo, poderemos compreender que o neurótico é como um mecanismo que tem o motor ligado permanentemente. Nada que ele faça desligará esse motor ligado até que suas necessidades e sentimentos sejam percebidos em toda sua agonia e exatamente pelo que são. Isso quer dizer que o sistema falso tem que ser derrubado para que o verdadeiro encontre expressão.
Um exemplo bem simples como o impedimento de chorar nos primeiros anos de vida pode elucidar essa discussão. Para onde irão essas lágrimas? Para alguns elas se transformam em rinite crônica ou sinusite (que desaparecem quando, durante a Terapia Primal, a pessoa chora com todas as fibras de seu ser). Para outros, a tristeza suprimida encontra expressão nos lábios caídos e no olhar melancólico. A necessidade verdadeira nunca é sentida, pois é representada simbolicamente. É essa representação que faz com que a pessoa não reconheça sua necessidade, não podendo por conseguinte equacioná-la. Assim o neurótico continua a negar-se a satisfação de suas necessidades reais. O sistema falso transforma as necessidades verdadeiras em enfermidade. O indivíduo pode se empanzinar de comida para não sentir seu vazio interior. O alimento simboliza o amor. A voracidade, então, é um exemplo de uma transferência simbólica. Quando as necessidades verdadeiras se transformam em necessidades doentias, elas já não mais podem ser satisfeitas. Isso quer dizer que do momento que o principal desligamento se dá na Cena Primal principal, então se criam as duas personalidades em constante contradição dialética. O eu falso impede a necessidade verdadeira de emergir e de ser satisfeita. É por isso que, por exemplo, o amor e o carinho de uma professora primária podem ser apenas um paliativo, e a criança não sentirá a dor enquanto estiver sendo acarinhada e protegida pela professora interessada nela. Mas o comportamento da professora não poderá desfazer o split que foi causado pela rejeição dos pais onipotentes, durante os primeiros e cruciais anos da vida da criança. Desde que o split tenha ocorrido, o carinho da professora poderá apenas ocasionar Dor pelo que a criança nunca recebeu. A Dor Primal é desligada da consciência porque a consciência disso significa uma dor intolerável. A Dor Primal é o que a criança sente quando não pode ser ela mesma. A tensão começa quando a Dor é desligada da consciência. A Dor então se difunde. Torna-se a pressão dos sentimentos reprimidos e desligados que lutam para ser libertados. A tensão produz o homem de negócios, o viciado, o homossexual, cada um deles sofrendo a seu modo mas tendo desenvolvido uma "personalidade" a fim de procurar diminuir, e eventualmente amortecer o sofrimento. O viciado é algumas vezes mais sincero do que os outros dois exemplos citados. Ele geralmente sabe que sente Dor. A Dor Primal é a necessidade Primal não satisfeita. A Tensão é o sentimento dessas duas necessidades desligadas da consciência. A tensão opera na mente como incoerência, confusão e falta de memória, e no corpo como musculatura tensa e distorções dos processos viscerais. A tensão é a marca exterior da neurose. Ela impele a pessoa em direção ao equacionamento. No entanto, não poderá haver equacionamento até que a Dor Primal seja sentida, isto é, até que seja experimentada conscientemente.
A luta do neurótico é interminável porque aquelas necessidades primitivas permanecem insatisfeitas. A luta é a tentativa constante para impedir o organismo de necessitar. No entanto, é essa luta que nos impede de sentir a grande Dor da necessidade verdadeira e só assim pode equacioná-la. Uma pessoa pode ser amada por uma dezena de apaixonados e nunca equacionar a necessidade do amor dos pais. Uma pessoa pode fazer conferências para milhares de estudantes e continuar sentindo uma necessidade desesperada de se fazer ouvir e entender pelos pais, uma necessidade não percebida que fará com que se sinta impelido a fazer sempre mais e mais conferências. A luta é insatisfatória precisamente porque é simbólica e não verdadeira. Qualquer necessidade verdadeira ou qualquer sentimento reprimido que tenha raízes nas relações primárias com os pais têm que ser equacionados simbolicamente quando não são dirigidas para eles. A função da Terapia Primal é auxiliar as pessoas a serem verdadeiras levando-as abaixo das atividades simbólicas em direção aos seus sentimentos verdadeiros. Isso quer dizer, auxiliar as pessoas a quererem o que necessitam. Uma criança em desenvolvimento normal quer o que necessita porque sente tais necessidades. Ao se tornar neurótico essas necessidades e desejos sofrem um split (pois ele não pode ter o que necessita) e passa a querer o que não necessita. Para o adulto isso pode tomar a forma de um desejo de bebidas alcoólicas, de drogas, roupas, dinheiro, que são procurados como um alívio para a tensão das verdadeiras necessidades não reconhecidas. Mas nunca haverá bebida suficiente, ou roupas, ou dinheiro para preencher o vácuo.
3 - A DOR
Para chegarmos a entender a Teoria Primal e a Terapia Primal será importante saber como reagiremos à dor. Tentarei mostrar em breves palavras os resultados de pesquisas que muito contribuíram para a formulação da teoria. E. H. Hess, ao investigar a contração e dilatação das pupilas, quando submetidas a certos estímulos, descobriu que a contração tem lugar quando o 4 estímulo é desagradável e a dilatação quando ele é agradável. As pupilas das pessoas que se submetiam ao estudo contraíam-se quando lhes eram apresentadas fotografias de cenas de torturas e havia uma constrição automática e involuntária quando se lhes pedia que lembrassem de tais cenas dolorosas. Acredito que isso mesmo acontece de forma generalizada quando uma criança presencia cenas desagradáveis. Temos então que a fuga da dor é uma reação total do organismo que envolve os órgãos sensoriais, os processos cerebrais, o sistema muscular, etc., como foi o caso com as experiências de Hess. Eu afirmo que a fuga às grandes dores é uma atividade humana reflexiva que vai desde retirar repentinamente a mão de um fogão quente até evitar olhar para cenas especialmente horrorosas num filme tenebroso como se quiséssemos esconder do ego os sentimentos e pensamentos dolorosos. Eu acredito que este princípio é intrínseco ao desenvolvimento das neuroses. Na Cena Primal, então, o organismo da criança fecha-se contra a plena percepção e torna-se inconsciente dessa percepção da mesma forma que uma dor suficientemente física pode tornar inconsciente até mesmo os mais valentes. A Dor Primal, a mágoa não experimentada, e a neurose podem ser vistas desse ângulo como um reflexo: a instantânea reação à Dor de todo o organismo. T. X. Barber já fez experiências fisiológicas com pacientes sob hipnose. Eram pessoas aparentemente despertas que eram submetidas a um estímulo doloroso depois de hipnoticamente informadas que nada sentiriam. Diziam então não sentir dor alguma, embora todas as medidas físicas indicassem que estavam reagindo a ela. Em outras experiências ocorriam mudanças eletroencefalográficas em pessoas 5 hipnotizadas e submetidas à dor embora informassem nada sentirem. O que isso indica em termos de Teoria Primal é que o corpo e o cérebro estão 4 5
E. H. Hess e J. M. Polt, "Pupil Size in Relation to Interest Value of Visual Stimuli", Science, Vol. 132 — 1960.
T. X. Barber e J. Coules, "Electrical Skin Conductance and Galvanic Skin Response During Hypnosis", International Journal of Clinical and Experimental Hypnosis, Vol. 7 (1959).
constantemente reagindo à dor, até mesmo quando a pessoa não se dá conta que está sendo atacada por ela. As medições fisiológicas mostram que os corpos das pessoas continuam a reagir aos estímulos dolorosos mesmo depois de estarem sob a ação de analgésicos. A reação física à dor e o fato de a percebermos são dois fenômenos distintos. Quando o corpo reage fechando-se contra uma dor intolerável, ele precisa de alguma coisa para conservar escondidas e suprimidas as Dores Primais. A neurose desempenha essa função. Ela desvia o sofredor de sua Dor incutindo-lhe esperança, isto é, sobre o que ele pode fazer para satisfazer suas necessidades. Uma vez que o neurótico tem necessidades tão urgentes, embora não realizadas, suas percepções e cognições devem ser afastadas da realidade. O conceito do bloqueio da dor é importante para a minha hipótese, porque eu acredito que o sentimento, ou a sensação, é unitário, é um processo total do organismo, e quando nós bloqueamos grandes sensações críticas como as Dores Primais, nós estamos também criando dificuldades à nossa possibilidade de sentir. As sensações primais são como um depósito gigantesco de onde nos servimos. As neuroses são o tampo desse depósito. Elas servem para suprimir quase todas as sensações, todos os prazeres e todas as dores. É por isso que todos os pacientes que já passaram pela Terapia Primal dizem sempre que já estão novamente em condições de sentir. Dizem que realmente sentem prazer novamente, pela primeira vez desde a infância. Essa noção de um depósito de Dor dentro do neurótico é mais alguma coisa do que uma simples metáfora, pois é o que geralmente dizem os pacientes Primais de uma forma ou outra, como se carregassem dentro deles um depósito de dor devidamente esterilizado. Por exemplo, cada vez que o pai espanca o filho, o que ele sente é: “Papai, por favor, seja bom para mim! Por favor, não me faça ter medo de você!'' Acontece, porém, que a criança não diz isso por diversas razões. Geralmente ela está tão preocupada com a situação que não chega a se dar conta de seus sentimentos, e mesmo que se desse, a sua sinceridade ao confessar ao pai que tem medo dele redundaria talvez em um maior castigo. Sendo assim, ela esconde seus sentimentos mostrando-se mais disposta a submeter-se, a agradar comportando-se com mais delicadeza. As Dores Primais vão-se armazenando uma a uma em lâminas empilhadas de tensões que procuram libertar-se, mas isso só pode acontecer desde que haja ligações com suas origens. Não será preciso reviver cada incidente, mas é preciso que exista a sensação geral ligada aos acontecimentos. No caso acima, quando a sensação está ligada ao pai, a pessoa será bombardeada com uma lembrança depois da outra, de quando teve medo de seu pai, já que todas elas estão armazenadas no “depósito." Isto é uma prova da existência de Cenas Primais de importância capital que representam muitos acontecimentos, cada um deles ligados à sensação central.
O processo Primal é um esvaziamento metódico do depósito das Dores. Quando o depósito se esvazia eu considero a pessoa curada. Por baixo de todas as Dores Primais está a necessidade de sobreviver. A criança faz o que os pais mandam tentando agradar-lhes. Um paciente explicou: "Eu me eliminei de mim mesmo. Matei o pequenino Jimmy porque ele era bruto, selvagem e barulhento e eles queriam uma coisa mansa e delicada. Fui obrigado a livrar-me de Jimmy para poder sobreviver com os pais loucos que tinha. Matei o meu melhor amigo. Fiz um mau negócio, mas não podia fazer outra coisa." Desde que nós somos seres humanos unificados, o verdadeiro eu sempre virá à superfície para estabelecer essas ligações mentais. Se não houvesse uma necessidade intrínseca de ser íntegro, então poderíamos nos descartar em definitivo do verdadeiro eu que ficaria tranquilamente dentro de nós sem jamais tentar intrometer-se no nosso comportamento. O que alimenta a neurose é a necessidade de ser novamente íntegro, a necessidade de sermos nós mesmos. O eu que não é real representa uma barreira, representa o inimigo que deve ser finalmente destruído. É preciso um grande esforço de parte do Terapeuta Primal para obrigar o organismo a repetir as Dores primeiras. Por mais que o paciente deseje ver-se curado, existe sempre uma forte resistência contra a possibilidade de sentir novamente todas aquelas sensações dolorosas. Aliás, muitos pacientes sentem medo pensando que vão ficar loucos quando estão à beira de novamente sentir essas Dores. Para os nossos propósitos, o aspecto mais significativo da Dor Primal é que ela permanece encapsulada internamente tão pura e intensa como no dia em que começou. Permanece a salvo das contingências da vida quaisquer que tenham sido os acontecimentos. Pacientes com quarenta e cinco anos de idade continuam a experimentar as mágoas primitivas com a mesma intensidade devastadora, como se lhes estivesse acontecendo pela primeira vez aquilo que já lhes acontecera quarenta anos antes. E eu realmente acredito que assim seja. A Dor nunca foi sentida em toda a sua extensão pois foi abortada e oculta antes que todo o seu impacto se fizesse sentir. Mas essa Dor é terrivelmente paciente. Fica nos acicatando, mostrando-nos que ainda existe, pelas formas mais sutis durante toda a nossa existência. Raramente pedirá para ser libertada. O que é mais comum é a Dor passar a fazer parte da tessitura do sistema da personalidade, onde continua sem ser sentida e até mesmo irreconhecível. É então que o sistema neurótico faz surgir a Dor. Isso acontece automaticamente, já que a Dor precisa ser liberada de alguma maneira, seja ela reconhecida ou não. Essa liberação pode vir naquele sorriso perpétuo que diz "Seja bom para mim" ou na doença física que importuna com um
"cuide de mim." Pode também mostrar-se ostensivamente numa reunião social para dizer “tome conta de mim, papai!" Qualquer que seja a posição atingida por um homem, por mais que estejam amadurecidas as suas defesas, sempre que arranho um pouco o verniz da superfície, eu logo encontro por baixo uma criança magoada. Faço questão de chamar a atenção para o fato da experiência com a Dor Primal não ser apenas tomarmos conhecimento dela. É o fato de se tratar da Dor. Uma vez que somos entidades psicofísicas, eu acredito que qualquer método que separe essa unidade está destinado ao fracasso. As clínicas dietéticas, as clínicas de locução e até mesmo as clínicas de psicoterapia são exemplos de isolamento de sintomas para tratá-los como se fossem isolados do sistema total. A neurose é tanto uma doença emocional como mental. Para ficar novamente em forma é necessário reconhecer e sentir o split e soltar o grito que signifique a ligação para tornar a pessoa novamente unificada. Quanto mais intensamente for sentido o split mais intensa e intrínseca será a experiência da unificação. A hipótese Primal se relaciona com o Conglomerado da Dor Primal em tudo aquilo que nos dói hoje e que não esteja conforme a realidade. A existência desse conglomerado é o que faz com que as sensações desagradáveis permaneçam por mais tempo do que seria de se esperar de alguma coisa trivial embora desagradável. Nós todos, certamente, conhecemos pessoas de mau gênio que já amanhecem hostis sem qualquer razão aparente. De onde lhes vêm tais sentimentos diários? Eu acredito que se abastecem no reservatório das sensações Primais. Tudo aquilo que rompe a frente irreal atinge esse conglomerado e produz uma Dor sempre crescente. Temos um exemplo na paciente cuja mãe sempre lhe fazia sentir que não era bonita, cujo namorado achava e dizia com toda a naturalidade que seus bonitos olhos azuis não combinavam com seus cabelos negros. Essas coisas todas insignificantes despertaram nela o sentimento de estar sendo rejeitada e do qual não conseguia se livrar, mesmo sabendo que ninguém lhe queria mal. Usei essa situação para poder chegar até à sua Dor a que chamo de Primal. Uma pessoa pode receber dezenas de cumprimentos e elogios numa noite, mas uma pequena crítica praticamente liquidará todos eles porque terá servido para despertar sentimentos desde muito guardados de ser ela desprovida de valor, desprezada, mal querida, etc. Muitas vezes os neuróticos são atraídos para as pessoas que gostam de criticar, simplesmente porque podem lutar simbolicamente com representantes de pais críticos para resolver então problemas anteriores. Esse é o mesmo processo dinâmico pelo qual alguém pode se ligar a uma pessoa fria e alheada para, por meio dela, tornar os pais simbolicamente mais calorosos. Essa é a essência da luta neurótica, ou seja, arquitetar uma situação que se pareça com a de sua casa para tentar então resolvê-la; casar com um homem fraco e provocá-lo para tornar-se forte; encontrar um homem forte e castigá-lo impiedosamente até ele tornar-se fraco e impotente. Por que será que as pessoas simbolicamente “casam-se"
com suas “mamães" ou “papais"? É para transformá-los em pessoas reais e amadas. Já que isso não pode acontecer, o resultado é que a luta continua. Podemos, no entanto, chegar a uma dúvida nesse ponto. “Como vamos saber que o neurótico sofre realmente uma intensa dor?" Em todos os casos que vi, independentemente do diagnóstico psiquiátrico, a Dor só surge depois que a defesa tenha sido esmagada. A Dor está sempre presente e encontra- se espalhada em todo o corpo num estado tenso generalizado. Mas poderá surgir ainda uma outra dúvida. “Como podemos saber que a pessoa não está simplesmente reagindo ao mal que lhe causa o terapeuta?" Em primeiro lugar, o terapeuta não causa nenhum mal. É o ataque à defesa que permite ao paciente sentir a si mesmo, as suas necessidades, seus desejos e suas mágoas. Segundo, logo que a maior parte da barreira pensamento-sensação é destruída, a sensação desponta constantemente de forma espontânea. Terceiro, a dor leva o paciente imediatamente de volta à sua vida e quase nunca se centraliza no terapeuta. Por uma curiosa deturpação da razão, nós chegamos ao ponto de acreditar que aquele que mais tolera a dor é, sem dúvida, o mais forte e o mais virtuoso. A pessoa que sofre em silêncio é um homem de verdade, é um durão. No entanto, acontece justamente o contrário, pois o homem que não é de verdade é quem melhor suporta porque está imune à dor. O que parece estarmos dizendo é que aquele que mais se sacrifica, que melhor sabe sofrer, é certamente o ganhador da Corrida Neurótica. Parece existir uma relação direta entre o auto-sacrifício e a virtude no homem ocidental, não somente na nossa vida religiosa onde se exalta a renúncia como também no costume do homem comum que trabalha duro para sustentar a família e que talvez morra moço ainda devido ao sacrifício. Essa pessoa que não encontrou tempo para cuidar de si mesmo, que sempre se sacrificou, termina a sua vida num auto-sacrifício. É somente nesse sentido, creio eu, que se poderia dizer que a irrealidade mata.
4 - A DOR E AS LEMBRANÇAS
Quando o neurótico sofre seu primeiro split, parece que surge uma divisão no seu sistema de lembranças. Existem lembranças reais que estão armazenadas junto com a Dor e outras associadas ao sistema irreal. A função do sistema irreal é separar, filtrar ou bloquear as lembranças que possam causar a Dor. Cada nova Cena Primal força a criança muito nova a apagar um pouco a sua experiência, de forma que cada Dor grande tem em torno dela um aglomerado de associações que são bloqueadas excluindo-se da plena consciência. Quanto maior for o trauma maiores serão as probabilidades que ele venha afetar alguns aspectos das lembranças. A hipótese Primal é que essas lembranças estão armazenadas junto com a Dor e que reaparecem quando ela é sentida. Os pacientes Primais estão sempre encontrando surpresas na forma como a terapia consegue reavivar as lembranças. Houve um caso em que uma mulher começou a sua terapia revivendo experiências de seus seis meses de idade e em todos os dias subsequentes durante o tratamento, ela ia revivendo o ano seguinte até chegar à sua idade na ocasião. Durante todas as sessões as suas lembranças iam aumentando muito, sem contudo ultrapassar a idade que estava sendo objeto de exame naquele dia. Assim, quando se lembrava de haver ficado no berço, ela também lembrava-se da casa em que morava naquela ocasião, de seus avós virem brincar com ela e de seu irmão beliscando-a quando ela não podia reagir. A lembrança está intimamente associada à Dor. Existe a tendência para se esquecer aquelas que são por demais dolorosas para serem integradas e reconhecidas conscientemente. É por isso que o neurótico tem lembranças incompletas em algumas áreas críticas. Vou citar algumas sessões em que pacientes reviveram Cenas Primais. Cena número um: Uma professora primária de trinta e cinco anos vai desdobrando a cena num crescente frenesi. Está sendo levada num carrinho pelo corredor. Está escuro. Está sendo carregada para a cama. Está só. Solta um grito. (Nessa altura ela se curva como se tivesse sido atingida na barriga.) Meu Deus! Vou ficar três anos na cama. Não aguento! Não aguento! Essa cena aconteceu na sua lembrança durante o quarto mês da terapia. Chegara perturbada naquele dia sem saber a razão. À medida que falava e sentia, sua perturbação aumentava e começou então a falar na terceira pessoa. "Ela está sendo levada no carrinho pelo corredor." De repente curvou- se ao mesmo tempo que passava da terceira para a primeira pessoa. Ocorrera a mudança do eu dividido para
o eu singular. E quando gritou "Não aguento!" já estava se contorcendo de dores. O dia a que ela se referia era quando havia constatado estar sofrendo de reumatismo cardíaco e ficara na cama desde os cinco até os oito anos. Aquilo era uma experiência tão tremenda que ela recorreu ao split para torná-la mais tolerável, e desde então viu-se vivendo como se fosse duas pessoas diferentes. Aquilo era como se dissesse: "Isto não está acontecendo comigo. Está acontecendo com ela." (Como mostrei acima, nem toda Cena Primal envolve diretamente os pais, mas se eles forem bons e dedicados, então, qualquer que seja o trauma, eu acredito que não haverá um split neurótico. Recordo-me da mulher que lembrava-se das bombas caindo no seu orfanato na fronteira da Itália com a Iugoslávia. O seu sentimento principal ainda era: "Estou com medo, mamãe. Onde está você? Volte para me proteger, por favor!" Ela discutiu esse ponto depois da Primal e disse que a guerra exercera sobre ela um efeito terrível pois não tinha quem lhe explicasse o que estava acontecendo, ninguém para agasalhá-la ou protegê-la. Não conseguia se aguentar sozinha numa idade tão tenra.) A cena descrita pela mulher com o reumatismo cardíaco era apenas uma lembrança muito apagada. Lembrava-se de colorir livros, de tomar o leite na cama, mas nada de substancial. A Dor havia carregado com ela os aspectos mais profundos das lembranças levando-as para uma área submersa. Depois de reviver essa cena, ela disse que sentia os músculos da perna e os ossos dos pés. Reconheceu, de repente, por que sempre evitara tudo que era físico em sua vida. Ela havia realmente amortecido não somente o desejo consciente como também as pernas quê serviriam para satisfazer os seus instintos de correr e brincar. Foram necessários quatro meses de terapia para despertar essas lembranças, mas quando isso aconteceu, tudo foi quase automático, como se o corpo já estivesse pronto para suportar uma Dor ainda maior e resistir galhardamente ao impacto. As lembranças vieram no sentido contrário de como haviam começado. Primeiro havia a lembrança de uma experiência de split na qual ela conta o que era e o que estava lhe acontecendo. Depois vieram partes fragmentadas e discretas. Andando no carrinho pelo corredor, sendo levada para a cama, etc. Essas lembranças soltas eram como uma espoleta que ia deflagrando uma outra até que vinha então o momento decisivo e explosivo em que se manifestava o split (quando "ela" passava a ser "eu") e ela tornava-se novamente íntegra. Cena número dois. Uma mulher de vinte e três anos recordou-se do seguinte na sua segunda semana de terapia. "Eu tinha sete anos quando me levaram para visitar minha mãe num hospital ou coisa parecida. Ainda vejo o seu roupão azul e os lençóis muito brancos. Vejo seus cabelos desgrenhados como se não tivessem sido penteados. Sento-me na cama... Não sei. É só o que consigo lembrar-me." Insisto com ela que, então, prossegue. "Acho que me sentei ao lado de minha mãe. Olhei para ela... Meu Deus! Os seus olhos! Os seus olhos! Não sabe quem eu sou. Minha
mãe está louca. Ela está louca!" A memória ficou muito mais clara. Ela sempre pensara haver sonhado que a mãe tentara matá-la, mas depois já se lembrava que ela realmente tivera uma crise em que tentara matar os filhos. Suas lembranças dos acontecimentos logo se expandiram. Ficou sabendo que sua mãe estava num hospício. Sempre se lembrava de certos aspectos dos acontecimentos quando ia ao hospício, quando subia no elevador, etc., mas não conseguia realmente lembrar de ter visto a mãe e de saber a verdade sobre suas condições. Os splits que tiveram lugar nessas cenas podem ser equiparados com estados de amnésia, não tão dramáticos e completos como os casos de amnésia que chegam ao nosso conhecimento, mas, se a situação for completamente inaceitável, como, por exemplo, ao ser violentada pelo pai (como aconteceu em um de nossos casos Primais), pode haver grandes áreas onde a Dor desapareceu durante um ou dois anos depois de um acontecimento. Algumas vezes a hipnose consegue recuperar certas lembranças antigas pela supressão do fator Dor, mas eu não creio que ela possa atingir áreas e lembranças onde a Dor seja muito grande. A paciente, que foi violentada pelo pai quando ainda muito moça, só conseguiu chegar a tal lembrança depois de umas trinta sessões Primais, e assim mesmo por estágios. Um rapaz com vinte e sete anos estava rememorando sua infância durante a terapia quando tropeçou numa lembrança de haver sido atingido por um balanço, fato que ele esquecera completamente. A lembrança não era da mesma intensidade da Dor que então sofrerá. Reviveu a cena na seguinte ordem: "Não sei por que me sinto tão mal. Ninguém veio me acudir. Eu fiquei sempre só e ninguém cuidou de saber onde eu estava. Oh, mamãe! Mamãe! Quero que você goste de mim. Por favor!" Disse então que a razão por que se esquecera de tal época no lugar em que moravam era porque não queria se dar conta do quanto era rejeita. E por isso esquecera o episódio do balanço. A lembrança do balanço atingindo-o não era muito importante em si. O significado em torno do incidente era catastrófico, e foi aquela sensação de não haver alguém que o amasse que fez com que passasse toda a sua vida procurando ser amado. Quando ele, afinal, se deu conta que sua mãe nunca lhe dera a menor atenção, a lembrança do balanço voltou então com toda a força e realidade. As lembranças neuróticas muitas vezes se parecem com sonhos, e a pessoa pode ter tanto trabalho e dificuldade para lembrar-se de sua infância como aquele que tem quando se lembra de alguns sonhos. Eu acredito que para haver lembranças concretas será preciso que haja acontecimentos também concretos, isto é, o indivíduo deve estar completamente envolvido na sua experiência e não afastado dela pelo medo ou agitação. Muitos pacientes passam pela vida sem se dar conta do que se passa em torno deles. Muitas vezes chegam a reclamar que a vida passou por eles sem tocá-los. Ela só aconteceu para a parte irreal deles. Apenas atravessavam a
vida sem participar dela. Geralmente vivem dentro de alguma espécie de barreira que amortece o impacto da experiência só deixando o que for confortável. À medida que o paciente Primal começa a penetrar nessa barreira, ele pode começar a vislumbrar o que realmente significam suas experiências e seu comportamento que eram antes amortecidos pela Dor. Eu acredito que as lembranças são suprimidas até o ponto em que elas são a repetição de elementos parecidos com as Dores das Cenas Primais. Se um insulto insólito deflagra uma mágoa antiga reprimida, como de sentir-se estúpido, esse acontecimento pode ser esquecido ou então apenas vagamente lembrado. A intensidade da lembrança dependerá da relação que existir entre os sentimentos atuais e a mágoa antiga. Há muita coisa insinuando que o sistema de lembranças irreais começa com a inicial e mais importante Cena Primal. Por exemplo, um neurótico pode ter uma memória fenomenal para datas, lugares e fatos históricos, e até mesmo para sua própria vida, embora isso só sirva para esconder a frente irreal que diz, "Vejam como sou um brilhante atuante". Os aspectos mais profundos de sua memória podem estar totalmente bloqueados. As lembranças do eu irreal são seletivas e aderem à mente para aliviar a tensão, para exaltar o "ego". Isso significa que a suposta boa memória de um neurótico e apenas uma defesa contra a verdadeira memória. Um caso poderá servir para esclarecer a relação da Dor com a memória. Uma certa jovem com vinte e poucos anos estava indo muito bem na Terapia Primal e já tinha tido duas sessões em que se mostrara bem compreensiva. Ao fim da segunda semana sofreu um sério desastre de automóvel, fraturou alguns ossos e o diagnóstico era de uma concussão traumática no cérebro. Depois de recuperar os sentidos nada mais lembrava do acidente. Os seus médicos duvidavam que viesse a recuperar a memória do trauma e disseram-lhe que se não se lembrasse do acidente dentro de algumas semanas, o mais provável seria que nunca mais se lembraria. Depois de algumas semanas ela já estava boa o bastante para reiniciar a terapia. Antes da visita ela começou a ter cólicas de estômago e os intestinos ficaram paralisados durante três dias. Depois de uma Primal a respeito de uma grande Dor na sua primeira infância, ela foi automaticamente lavada à sua dor mais recente que fora o acidente do automóvel, sem que houvesse qualquer interferência estranha. Passou por todo o trauma, do princípio ao fim, com todos os detalhes, sem que fosse preciso qualquer esforço consciente. Viu o carro aproximar-se, ouviu a colisão, sentiu a pancada na cabeça e deu então aquele grito terrível que não conseguira dar antes. Discutia sem hesitação todos os detalhes do acidente. O que isso indica é que o efeito físico da concussão sozinho não pode chegar a obliterar a memória mas a Dor que o acompanha pode contribuir para apagar as lembranças dos acontecimentos catastróficos. Se esta premissa estiver certa, será possível fazer com que uma pessoa chegue a recuperar a lembrança de traumas
muito sérios, como o estupro, por meio da Terapia Primal. Eu não acredito que um neurótico consiga manter um completo sistema de memória enquanto não se liberar da Dor Primal. Logo depois de passar pela Terapia Primal parece haver uma nítida melhoria na memória e a maioria desses pacientes encontram certa facilidade em voltarem para os primeiros meses de vida para lembrarem-se sucessivamente de todos os incidentes. É como se todo o sistema da memória fosse de repente escancarado com a experiência da Dor.
5 - A NATUREZA DA TENSÃO
Em termos Primais, não existe neurose sem tensão. Com isso quero me referir à tensão que não é natural, que não encontra lugar no ser humano psicologicamente normal, e não à tensão que é natural e que todos nós precisamos ter para as atividades de rotina. A tensão não natural é aquela que é crônica, é a pressão de sentimentos ou necessidades que rejeitamos ou que não resolvemos. Sempre que discutir a tensão eu estarei me referindo à tensão neurótica. Eu chamo de graus de tensão àquilo que o neurótico sente em lugar de suas sensações reais. Quando a tensão é menor a sensação é boa, para tornar-se má logo que ela aumenta. O comportamento do neurótico é sempre orientado para que ele se sinta melhor. De onde vem a tensão e qual é a sua função? Eu acredito que a tensão, como parte da neurose, é um mecanismo que sobrevive e que mobiliza todo o corpo para atingir a um fim ou uma necessidade ou então para proteger o organismo para que ele não se dê conta de sensações catastróficas. Em ambos os casos ela tenta sempre manter a continuidade e a integridade do organismo. Quando não somos alimentados, por exemplo, isso faz nascer a tensão que nos galvaniza no sentido de ir procurar alimento para satisfazer nossa necessidade. Se não formos contidos nem estimulados, a necessidade nos obriga à ação. Se a necessidade continua nos nossos primeiros meses ou anos, a falta de satisfação torna-se dolorosa e intolerável, e para suprimir a dor a necessidade é suprimida, mas continua a existir sob a forma de tensão. Continuará sendo isso até que seja ligada à consciência e resolvida. Um movimento suprimido, como parar de correr ou ficar sentado, também permanecerá sob a forma de tensão até que seja ligado ou resolvido. Em resumo, qualquer supressão crítica de um movimento ou sensação no princípio da vida transforma-se em necessidade até que seja sentida e manifestada e, por aí, resolvida. O desligamento é mantido pelo medo. O medo se mostra quando a Dor (a necessidade ou sensação que possa resultar em Dor) está perto do consciente. O medo provoca para a ação todo o sistema de defesa e produz todas as maquinações variadas para conservar afastada a necessidade. O medo é uma reação automática que faz parte do mecanismo de sobrevivência. Ele prepara o organismo para se defender contra o golpe, da mesma forma que ficamos tensos quando nos vão dar uma injeção. Quando o sistema não pode afastar a Dor surge um medo consciente, isto é, a ansiedade. O medo também não é geralmente sentido de forma consciente. Ele torna-se parte do complexo geral de tensões.
Nós sentimos a ansiedade, mas já não sentimos o medo se ele for corretamente focalizado. Recorremos à ansiedade quando se enfraquece o sistema de defesa permitindo que o temido sentimento se aproxime da consciência. Desde que o sentimento não tenha ligação, a ansiedade fica muitas vezes fora de foco. A base da ansiedade é o medo de não ser amado. Muitos de nós mantemos afastada a ansiedade criando as espécies de personalidades que não nos deixem sentir o quanto não somos amados. A personalidade é o resultado da necessidade de proteção. A função da personalidade é satisfazer as necessidades da criança. Isso significa que ela vai tentar ser aquilo que "eles" desejam para que ela possa ser amada finalmente. A tensão nasce quando ela procura ser "eles", e é eliminada quando acontece o contrário, isto é, quando a criança tenta ser ela mesma, e isso significa ser íntegra em corpo e espírito. Vamos supor que um menino pequeno precise ser acariciado pelo pai, mas o seu pai acha que "homens" não se abraçam nem beijam. O menino tenta então mostrar-se homem para o pai, nega a sua necessidade e comporta-se com grosseria. Essa personalidade grosseira produz e conserva a tensão. O menino cresce, tem uma úlcera é tratado pela psicoterapia. No começo de seu tratamento ele mostra-se enfadonho. Logo torna-se ansioso. Eu descubro o que ele tem, isto é, localizo sua necessidade reprimida que pode ter-se tornado um latente sentimento homossexual. Pode tornar-se zangado quando eu der o nome aos bois, mas sua zanga é apenas um disfarce para a verdadeira mágoa, é uma defesa contra a sensação daquilo que ele quer. A sua zanga é uma forma de aliviar a tensão. A razão para o menino haver-se tornado grosseiro, em primeiro lugar, era porque queria ser amado pelo pai, mas essa motivação já foi, desde muito, sepultada. Desde que não lhe permitam ser grosseiro isso representa, para ele, a perda do amor e da aprovação. É o desespero Primal. Deve ser considerado simbólico qualquer comportamento presente que tenha por base sensações negadas no passado (inconscientes). Isso significa que a pessoa está tentando satisfazer uma velha necessidade por meio de alguma confrontação atual. Eu chamo de representação simbólica qualquer comportamento atual que tenha por base tais necessidades inconscientes. Nesse sentido, a personalidade é no neurótico a representação simbólica. Todo seu comportamento representa uma reação a velhos sentimentos sepultados. Só a ligação pode deter a tensão neurótica crônica. As outras atividades aliviam momentaneamente a tensão mas não servem para resolvê-la. Na minha opinião, não existe uma inata tensão básica nem tampouco ansiedade. Isso tudo são apenas consequências surgidas de anteriores condições neuróticas. O neurótico é tenso consciente ou inconscientemente. A neurose não é sinônimo de defesa. É um termo muito mais amplo que mostra como são ligadas as defesas. Os tipos neuróticos são simplesmente uma
determinada constelação das defesas de alguém. Desde que um neurótico pode usar todas as espécies de defesas na sua vida cotidiana, não existe um tipo puro. Geralmente, eles escolhem um estilo, como, por exemplo, de ser superintelectual, que, por conveniência, poderemos chamar de uma certa espécie de neurose. Toda neurose significa que existe um sistema irreal que está convertendo os verdadeiros sentimentos em tensões. A maior parte dos sentimentos e das necessidades humanas são bastante parecidas. O que é complicado é a nossa forma de defesa. Não temos, no entanto, necessidade de tratar dessas complicações desde que consigamos chegar ao que está por baixo. Enquanto existirem as Dores Primais o neurótico terá sempre que estar tenso contra elas. A sua personalidade é a forma mais ou menos estabilizada que ele encontrou para defender-se. Para eliminar essas Dores teríamos que eliminar também a personalidade. Vamos considerar isso em termos de energia. Sabemos pela lei da conservação da energia que ela não pode ser destruída. Só pode ser transformada. Eu considero as sensações Primais como energia essencialmente neuroquímica que se transforma em energia cinética ou mecânica que impele o movimento físico constante ou a pressão interna. O objetivo da Terapia Primal é mudar essa energia transformada de volta para o seu estado original de forma que deixe de existir uma força interior impelindo a pessoa para uma ação compulsiva. É por causa dessa sensação de pressão que tantos neuróticos sentem-se agitados, porque não conseguem ficar sentados tranquilamente e porque sentem necessidade de estar sempre fazendo alguma coisa. Não devemos esquecer que a tensão é um fenômeno inteiramente corporal. Cada novo sentimento bloqueado ou necessidade não realizada serve apenas para aumentar as pressões internas que afetam todo o sistema. É possível fazer desaparecer a tensão mecanicamente jogando tênis, futebol ou correndo, e na verdade, a maior parte das pessoas que estão gastando as energias nervosas estão também esgotando suas tensões. Mas não há uma forma de fugir das sensações Primais, e sendo assim, a tensão parece ser perpétua. Eu comparo as pessoas que estão sempre ocupadas em gastar as tensões com a galinha decapitada que continua a se debater. Num certo sentido, o neurótico também é um decapitado até que possa ligar seu corpo com as razões específicas para tais ações. Em vista da variedade de reações do corpo às tensões, são inúmeras as formas que existem para medi-las. O investigador E. Jacobson define a tensão em 6 termos de contração muscular. Ele acredita que a tensão prepara o corpo para uma
6 E. Jacobson, "Electrophysiology of Mental Activities", American Journal of Psychology, Vol. 44 (1932); "Variation of Blood Pressure with Skeletal Muscle Tension and Relaxation," Annals of International Medicine, Vol. 13 (1940); "The Affects and Their Pleasure-Unpleasure Qualities in Relation to Psychic Discharge Processes," em R. M. Loewenstein, ed, Drives, Affects and Behavior (New York, International Universities Press, 1953).
certa espécie de locomoção (fuga) e isso resulta na contração das fibras dos músculos. A mudança que se opera nessas fibras resulta, por sua vez, em um aumento de voltagem, ou pressão elétrica, que pode ser medida por um instrumento eletrônico conhecido como eletromiógrafo que, no entanto, ainda não é bastante preciso para medir as minúsculas mudanças. Não obstante, o que Jacobson está tentando mostrar é que toda a nossa musculatura torna-se envolvida nas tensões e fadigas do indivíduo, esteja ele acordado ou dormindo. Isso ajuda a explicar por que o neurótico muitas vezes acorda ainda mais exausto do que quando adormeceu. A tensão, além de ser um fenômeno total, também tenta concentrar-se em áreas vulneráveis. Malmo, nas suas investigações, verificou que nós em geral temos áreas vulneráveis específicas que mostram aumento no nível de tensões quando 7 debaixo de pressão . Se uma pessoa sofre de dor crônica no lado esquerdo do pescoço, por exemplo, uma situação de pressão viria criar uma tensão muito maior no mesmo lado e não no oposto. Embora a tensão seja a pressão interna que resulta da negação de sensações, cada um de nós a experimenta de modo diferente. Pode ser um tremor, um nó nos músculos do estômago, uma tensão nos músculos do corpo, um aperto no peito, os dentes rilhando, uma intranquilidade, um sentimento de acontecimento infausto, uma sensação de náusea, um nó na garganta ou dores no estômago. A tensão mantém a boca em movimento, aperta os músculos das mandíbulas, faz os olhos piscarem, dispara o coração, os pés começam a bater e os olhos a faiscar. Não precisamos nos alongar sobre esse ponto. A tensão é intolerável e se mostra das mais diferentes maneiras. São tantos os que sofrem de tensões que nós já chegamos ao ponto de acreditar que elas são uma exigência do ser humano. Tenho a certeza que isso não é assim. Infelizmente, no entanto, inúmeras teorias psicológicas baseiam as suas suposições na inevitabilidade da tensão. O sistema freudiano, por exemplo, afirma a existência de uma ansiedade básica em torno da qual temos que situar defesas para nos conservarmos sãos. Eu creio que essa ansiedade é exclusivamente uma função da não-realidade da pessoa. Foram feitas muitas experiências com animais e pessoas em que uma cigarra tocava sempre que o sujeito era submetido a um ligeiro choque elétrico. Depois, somente o ruído da cigarra era o suficiente para produzir a mesma espécie de ameaça antecipada e um alto nível de ativação física. Essa espécie de experiência é chamada de condicionamento do sujeito a alguma coisa que geralmente não deveria conter ameaça alguma, isto é, a cigarra. Da mesma forma, os sujeitos podem ser descondicionados juntando ao estímulo inócuo (a cigarra) uma recompensa ou 7
R. B. Malmo, Experimental Foundations of Clinical Psychology, ed. A Bachrach, New York, Basic Books, 1962.
situação sem choque. A Teoria Primal também trata do choque. Muitas vezes esse choque é uma primitiva realização que, se fosse sentida em toda sua extensão, teria resultados catastróficos. O choque é reprimido e aproveitado, produzindo anos de comportamento tenso depois de já não haver perigo. Uma criança de seis anos desprezada pelos pais, uma coisa que ela sente pois tais sentimentos raramente são ostensivos, pode estar em perigo sério tanto física como psicologicamente, mas já um adulto de trinta anos, que compreende agora ter sido desprezado pelos pais, realmente não está mais em perigo, embora todo o seu comportamento de adulto tenha-se baseado mais no medo do que no sentimento. Para compreendermos por que trinta anos depois de se haver defrontado com a triste realidade uma pessoa ainda reage a ela, devemos ter em mente que a criança em tenra idade é completamente inerme, e isso significa que ela pode perceber tudo de forma mais direta. Procura então cobrir-se. Poderá desenvolver sintomas ou embotar seus sentimentos, mas, mesmo assim, a dolorosa percepção continua a existir esperando a hora de vir a ser sentida. Em um caso, uma criança com dois anos e meio viu no rosto dos pais uma completa indiferença. Ela começou a perceber a completa falta de significação da existência das pessoas que a cercavam e da sua própria. Não sentia aquilo completamente. Ficou com asma. Aquela indiferença em torno dela só podia ser sentida mais tarde quando já estivesse fora de seu domínio. Aquela indiferença significava que ela teria que "morrer" para poder sobreviver com os pais. Foram necessárias muitas sessões Primais para sentir aquilo completamente. Uma vez sentido ela voltou à vida. O choque psicológico original trouxe consigo o medo, e isso converteu a sensação numa tensão vaga e generalizada. A pessoa discutida acima não era conscientemente ansiosa. Fingia de morta como um meio inconsciente para evitar a ansiedade. Os seus movimentos e expressões sem vida eram os meios que encontrava para despistar os pais. Enquanto estivesse "morta" ela estaria tensa mas não ansiosa. Na maioria das vezes a neurose (representação simbólica) amarra a 8 tensão de tal maneira que o neurótico nem mesmo percebe que está tenso. A diferença entre medo e ansiedade é uma questão de contexto e não de fisiologia. Os processos fisiológicos do medo e da ansiedade podem ser idênticos, mas no medo a pessoa reage à situação atual ao passo que na ansiedade reage ao passado como se ele fosse o presente. É no ponto em que a tensão se torna perceptível como ansiedade que as pessoas geralmente recorrem à psicoterapia.
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É muito provável que na mais tenra idade, a criança não possa diferençar entre um dano físico ou emocional desde que seu nível conceituai não esteja suficientemente maduro para permitir estabelecer uma distinção entre a dor psicológica e a física. Quando chegar a distingui-las, já terá talvez coberto suas Dores Primais com a neurose. Uma criança pequena, por exemplo, pode não saber que está sendo humilhada e sim apenas sente-se pouco à vontade quando seus pais lhe falam de certa maneira. Essa experiência é a dor não diferenciada. Será talvez somente mais tarde, em uma Terapia Primal, que ela perceberá primeiro aquelas dores vagas outra vez e poderá compreender o seu significado.
O verdadeiro medo é quando a vida se sente ameaçada. Isso ocorre sem tensão ou sem o embotamento dos sentidos ou da mente. Com o verdadeiro medo o organismo sente-se completamente preparado para enfrentar a ameaça. O medo Primal embota porque é de aspecto catastrófico. O medo Primal existe quando também existe a Dor Primal ("eles não me amam"). Isso significa que o velho medo continua no presente transformando o medo em ansiedade. A ansiedade é o velho medo sem ligação porque essa ligação significa a Dor Catastrófica. (Discutiremos isso com maiores detalhes no capítulo sobre o medo.) A reação a um caminhão que se precipita sobre nós é o medo. A ansiedade é quando sentimos que o caminhão poderá nos atropelar. Um bebê ou uma criancinha sente o medo diretamente e são governados por seus sentimentos. Com o corre do tempo, contudo, até mesmo uma demonstração de medo pode ser criticada por pais neuróticos quando dizem, "Pare com este choro. Você sabe que não há nada para ter medo." Dessa forma, o medo lhes é negado e passa a situar-se no Conglomerado Primal como mais tensão. Esse medo proibido significa que a pessoa não pode agir diretamente e de forma apropriada quanto aos seus sentimentos. Deve então inventar objetos para seu medo como sejam os negros ou outros problemas para poder centralizar seus sentimentos e aliviar a tensão. É quando forçamos o paciente neurótico a sentir, em lugar de demonstrar seus medos Primais, que nós podemos auxiliá-los para compreenderem os sentimentos que lhes causam pavor. É no ponto em que o levamos para dentro e para além de seus temores que nós o encaminhamos também às suas Dores Primais. O estudo publicado em Psychology Today (junho 1969) de autoria de Martin Seligman tem certa relação com esta noção de choque prematuro. Seligman conta sobre uma experiência de R. L. Solomon em que arreios foram amarrados em cachorros que depois receberam choques elétricos. Mais tarde foram colocados numa caixa com dois compartimentos onde deviam aprender a escapar do choque simplesmente pulando sobre uma barreira baixa da seção em que tomavam o choque para a outra onde não havia aquilo. Verificou-se depois que se um deles recebesse primeiro o choque quando ainda amarrado para não poder escapar, acontecia uma coisa estranha. Durante episódios posteriores com choques, mesmo quando estavam livres para saltarem sobre a barreira, os cachorros ficavam na seção do choque até que fossem arrastados para fora. Outros, que não estavam amarrados logo que recebiam o primeiro choque, aprendiam a saltar e fugir. Em muitos casos, a criancinha sente-se amarrada a uma situação sem saída para o trauma, e sente-se então tão desamparada como os cães amarrados. Também a criança nada pode fazer para escapar à dor constante e muitas vezes não consegue aprender mais tarde como agir em certas situações para evitar magoar-se. Quando uma criança nada encontra que lhe possa valer para alterar a situação, ela muitas vezes nada mais pode fazer senão desligar-se internamente continuando passiva e magoada como os cães amarrados que não conseguiam escapar ao primeiro choque recebido em suas
vidas. Notamos também das experiências de Solomon que se os cães eram submetidos ao choque numa situação sem saída, e mais tarde amarrados outra vez para o choque, quando mais uma vez recebiam o choque e podiam reagir livremente, logo aprendiam como escapulir. Seligman mostra que se uma criança chora para ser alimentada e não há ninguém por perto para atendê-la, então o choro torna-se uma reação irrelevante e pode ser eliminada com o tempo apenas porque o choro em nada alterou uma situação desagradável. A Teoria Primal indica que a Dor continuada por não receber, ou nunca haver conseguido satisfazer suas necessidades primitivas, tem a tendência a desligar a reação até que o indivíduo volte ao passado e atreva-se a chorar outra vez como a criança. Os efeitos das Dores Primais são considerados permanentes até que sejam sentidos, e uso esta expressão num sentido global. Isto significa que as Dores Primais não podem ser condicionadas fora do organismo. Assim, embora se possa punir ou recompensar as manifestações superficiais das Dores (fumo, bebida, drogas) isso não significará qualquer mudança. Continuarão a exigir saídas neuróticas de uma forma ou outra até que sejam completamente sentidas. O neurótico aplica-se a comportamentos singulares e simbólicos para aliviar a tensão. Assim ele pode praticar o sexo compulsivo para sentir-se amado sem jamais reconhecer as sensações primitivas de não ser amado. Embora a tensão se faça sentir em toda a parte, parece haver um determinado órgão em que ela se situa com mais força. É o estômago. Parece que a melhor maneira do neurótico aliviar suas dores internas é com a contração dos músculos do estômago e de toda a área abdominal. Wilhelm Reich fez esta descoberta muitas décadas atrás e uma grande parte de sua terapêutica girava em 9 torno do alívio das tensões abdominais de seus doentes. É no estômago que a maioria dos pacientes neuróticos situam o foco de suas tensões, e são inúmeros os provérbios que mostram isso como quando dizem, "Tive que engolir minhas palavras", "Isto está difícil de engolir" e outros. As palavras parecem ter sido literalmente empurradas pela garganta abaixo. Na grande parte dos casos, o paciente antes do Primal não se dá conta do que existe de tensão em seu estômago até que começamos a arrancar tudo aquilo. Durante a Terapia Primal é comum constatarmos a tensão abandonando o estômago para vir subindo. A pessoa vai então queixando-se de um aperto no peito ou na garganta, os dentes rilham e os maxilares doem. Depois, quando as palavras importantes já foram todas pronunciadas, tudo isso desaparece. Eu tenho certa hesitação para expressar-me desse modo, mas temos documentação em video-tapes que mostram o fenômeno da ascensão. Durante a
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Wilhelm Reich, The Discovery of the Orgone, New York, Noonday Press, 1948.
Terapia Primal as sensações que iniciam a ascensão fazem tremer toda a região abdominal. É como se elas estivessem se libertando da pressão abdominal. Movimentam-se pelo corpo acima e saem pela boca em forma de Gritos Primais. Quando isso acontece, os pacientes dizem que, pela primeira vez, estão sentindo o estômago livre quando antes estavam bloqueados pelas tensões que nem mesmo permitiam a digestão dos alimentos. Nem sempre a tensão traz como consequência a incapacidade de comer. Em alguns casos acontece até mesmo o contrário, quando as pessoas tensas se entopem de comida. Aí acontece o fenômeno duplo de subir e descer. A tensão em ascensão ocorre quando o sistema de defesa se enfraquece e as sensações se aproximam do consciente. Ela muitas vezes impede ou torna difícil a ingestão de comida. A tensão descendente, por outro lado, permite que o neurótico controle seus sentimentos por meio de alimentos, de forma que ela nunca se transforma em estado ansioso. De um modo geral, as pessoas muito gordas ou pesadas são portadoras de um conjunto de Dores muito profundas e escondidas. Parece que as camadas de gordura contribuem para formar uma parede protetora.
6 - O SISTEMA DE DEFESA
O conceito de um sistema de defesa encontra-se em muitas teorias psicológicas a começar com a de Freud. A Teoria Primal mostra que toda defesa é neurótica e que não existe qualquer uma que seja realmente sadia. A razão para se acreditar em defesas sadias está baseada na suposição de uma ansiedade básica que deve ser contida, uma coisa inerente em todo ser humano. A Teoria Primal não reconhece a noção de uma ansiedade básica nos indivíduos normais. Discutiremos isso detalhadamente mais tarde. A última parte da diferença referente a defesas entre a Teoria Primal e as outras é que ela considera as defesas como fenômenos psicológicos e não apenas ações mentais. Assim, a constrição de um vaso sanguíneo 10 pode ser uma defesa da mesma forma que a fala compulsiva. Em termos Primais, a defesa é um conjunto de comportamentos que funcionam automaticamente para bloquear as sensações Primais. Quando o abdome se aperta automaticamente, quando o indivíduo engole em seco, quando surge um tique no rosto em momentos de pressão, tudo isso significa que o corpo está reagindo contra o sentimento. Existem defesas voluntárias e involuntárias. As involuntárias são as reações automáticas da mente e do corpo à Dor Primal como fantasias, urinar na cama, gaguejar, piscar, ficar com os músculos tensos. Essas são geralmente as primeiras defesas empregadas, são as defesas que fazem parte intrínseca da criança. A contração do aparelho respiratório, por exemplo, afeta o tom e o timbre da voz. Esse processo e a voz esganiçada que daí resulta passam então a fazer parte do sistema da personalidade. Dessa forma, a personalidade passa a ser construída em torno das defesas e fica constituindo uma parte integral das mesmas. São de dois tipos as defesas involuntárias: a construção da tensão e a sua descarga. O aperto dos músculos do estômago contém as sensações e resultam em tensão. Molhar a cama durante a noite, quando as defesas conscientes são menores, é uma descarga involuntária da tensão. Outras formas involuntárias são o rilhar os dentes, suspirar, atravessar pesadelos. As defesas voluntárias entram em cena quando o mecanismo de descarga involuntária deixa de funcionar. Alguns exemplos de defesas voluntárias são fumar, beber, usar drogas e comer demais. Podem ser dominados pela força de vontade. As 10 Anna Freud, em seu Ego and the Mechanisms of Defense, diz: "Os esforços do ego infantil para evitar a 'dor' por meio da resistência direta às impressões externas pertencem à esfera da psicologia normal. Suas consequências podem ser importantes para a formação do ego e do caráter, mas elas não são patogênicas." (Os grifos são meus.)
defesas voluntárias são necessárias para aliviar a tensão em excesso. O propósito das duas formas de defesa é bloquear o sentimento verdadeiro. As defesas funcionam ininterruptamente dia e noite. O homem efeminado não se torna de repente masculino durante o sono. Sua feminilidade é um acontecimento psicofísico que existe tanto dormindo como acordado. Faz parte do organismo. Isso significa que as ações não naturais tornam-se a norma porque a pessoa não pode sentir suas inclinações naturais. Ele não poderá andar, falar ou comportar-se de qualquer outra forma até que recupere o seu eu natural. As defesas são, de um modo geral, aquilo que os pais exigem da criança. Uma delas pode falar o tempo todo e usar palavras complicadas, ao passo que a outra se faz de boba. Ambas estão reagindo a uma exigência dos pais e ambas estão fechando uma parte delas. As defesas entram em cena como um mecanismo de adaptação para manter o organismo em funcionamento. Dessa forma a neurose é considerada como parte do equipamento de adaptação que nós todos herdamos. Sendo a neurose adaptável, nós não podemos simplesmente destruí-la com uma máquina de choque. É preciso desmantelar as defesas numa sequência ordenada, pouco a pouco, até que a pessoa esteja em condições de passar sem elas. A criança fecha-se nos primeiros meses e anos porque não tem outra escolha. Uma criança que goste de falar muito e alto pode logo ser reprimida pelos pais que desejam vê-la bem educadinha e submissa. Recorrerão até à pancada para conseguirem o que desejam. Assim, a criança tem que condenar uma parte de si mesma durante toda a vida. Deve fazer o que eles querem e não o que ela quer. Essa mesma espécie de comportamento pode resultar de pais que fazem muito pelos filhos que, então, quase não precisam fazer esforço algum em proveito próprio. Ficam afogados pela bondade dos pais. Se as aparências falsas não funcionarem, se não puderem despertar nos pais uma reação humana, então a criança será forçada a recorrer a defesas mais desesperadas. Ela poderá então desligar-se de tudo à sua volta para não desagradar aos pais ou para torná-los carinhosos. Poderá começar a falar como um autômato, seus pensamentos poderão se tornar reduzidos e estreitos e seus olhos se apertarão. Em resumo, ela poderá se desumanizar completamente numa tentativa para humanizar os pais. Poderá, até mesmo, transformar-se completamente só para agradar-lhes, e então um menino pode passar a ser uma "menina". A reação completa é um conceito crucial. A necessidade de amor não é apenas alguma coisa cerebral que pode se transformar com uma mudança de ideias. Essa necessidade está em todo o sistema destorcendo o corpo e a mente. Essa distorção específica é a defesa. Se a personalidade não pode conter a tensão, os sintomas logo surgirão. A
criança poderá se masturbar, chupar o dedo, roer as unhas ou molhar a cama. São os caminhos que escolhe para se aliviar ainda mais. Muitas vezes, pensando erradamente que estão ajudando aos filhos, os pais tentam corrigir essas válvulas de escape e assim complicam o problema pois a criança recorre a meios ocultos. Um paciente contou-me que peidava constantemente porque os pais pensavam que ele tinha alguma coisa de estômago e aceitavam então aquilo pensando que era involuntário. A criancinha não pode nunca compreender que os perturbados são os pais. Não sabe que o problema deles existe independentemente de qualquer coisa que ela possa fazer por eles. Ela não sabe que não pode interferir e tudo faz para viver em paz. Já que é ridicularizada desde que se entende, ela começa a acreditar que há qualquer coisa de errado e tudo tentará para agradar, mas a tragédia é que não sabe o que fazer porque também os pais estão na mesma condição. Já que os pais não o fazem feliz, ela só pode contar com seus próprios recursos. Passa então a comer tudo que lhe fica ao alcance da mão, chupa o dedo quando não estão olhando, masturbase e, mais tarde, enche-se de drogas para aliviar os sofrimentos já que ninguém antes tentou fazer isso por ela. Já não se mostra mais neurótica pois a neurose tomou conta dela. O viciado em drogas é um exemplo de alguém que já não dispõe mais de defesas internas. É geralmente alguém que já esgotou tanto suas sensações que não dá mais importância à existência. Uma vez que não consegue defender-se como fazem outros neuróticos, ele estabelece uma relação definitiva com a agulha: Dor... agulha... alívio. Sem a agulha surge de novo a Dor, O pênis serve ao mesmo fim para o homossexual. Ambos representam um alívio da tensão. E uma ligação externa que surge para tomar o lugar da interna que nunca foi feita. Sem levar em conta a dor que existe com o uso da agulha ou nas relações dos homossexuais, a sensação simbólica é o prazer ou, mais corretamente, o alívio. A dor verdadeira e física, a dor experimentada pelo próprio, filtra-se através do sistema de defesa onde passa a ser interpretada como prazer. As variedades de formas que os neuróticos encontram para se defenderem já foram classificadas por profissionais e catalogadas em diagnósticos. Eu quero tornar claro, mais uma vez, que o sistema de defesa só é importante porque serve para esconder a Dor. Dentro da hipótese Primal só a Dor é importante. Para o neurótico, toda a sua experiência deve passar através do labirinto de suas defesas onde o que está acontecendo não é visto, não é compreendido ou então é exagerado. O mesmo processo destorcido influencia as atividades de seu corpo de forma que, finalmente, ele já não consegue interpretar ou compreender as espécies de transformações que estão se passando em seu corpo. Ele precisa então situar-se numa posição enigmática de ir procurar um estranho profissional para ajudá-lo a compreender tudo que sente dentro de si mesmo.
Os sistemas de defesa tornam-se mais complicados conforme for a situação da família da criança. Quando os pais são brutais, a defesa é direta e está na superfície. Quando as relações de família são mais sutis, o sistema de defesa também torna-se mais sutil. Os mais difíceis de curar são os indivíduos que conseguiram criar camadas de defesas sutis e intelectuais. A terapia de insight tem sido o tratamento central da classe intelectual. Qualquer método que complique mais a cabeça desses neuróticos só pode servir para tornar o problema mais sério. Reich mostrou-nos insights para as defesas do corpo algumas décadas atrás: "Nós podemos dizer que toda rigidez muscular contém a história e a significação de sua origem. Assim, não é necessário deduzir de sonhos ou associações a forma como se desenvolveu a armadura muscular. Ao contrário, essa própria armadura é a forma 11 pela qual a experiência infantil continua a existir como um agente perigoso." Reich explicou que a rigidez muscular não é apenas o resultado de repressão já que representa "a parte mais essencial do processo de repressão." Ele mostrou ainda que a repressão era um processo dialético no qual o corpo não apenas se torna tenso pela neurose como também serve para perpetuar essa neurose por meio da musculatura tensa. Ele não explicou bem o que mantinha o corpo tenso durante anos seguidos, mas acreditava que a neurose poderia ser bastante afastada por certos exercícios ou técnicas destinados a reduzir as tensões musculares e mais especificamente a tensão abdominal. De conformidade com a opinião Primal, as necessidades e as sensações bloqueadas começam virtualmente com o nascimento e muitas vezes antes mesmo que possam ser verbalizadas. A criança que não é levada ao colo suficientemente nos seus primeiros meses, não sabe conscientemente o que está lhe faltando, mas, mesmo assim, sente-se magoada. Sente isso em todo o seu corpo que é exatamente onde reside a necessidade. Essa necessidade não é então apenas alguma coisa mental armazenada no cérebro. Está codificada nos tecidos do corpo exercendo uma força constante em busca de satisfação. Essa força não é uma tensão. Podemos dizer que o corpo "recorda-se" de suas privações e necessidades da mesma forma que o cérebro. Para livrar-se das tensões as pessoas terão que sentir as necessidades no núcleo de tais tensões, em outras palavras, organicamente, que é exatamente onde elas se encontram. As necessidades são encontradas na musculatura, nos órgãos e no sangue. Não é bastante conhecermos nossas sensações ou necessidades inconscientes. Uma grande parte de psicoterapia moderna funciona dentro do pressuposto que é bastante tornar conscientes as sensações inconscientes para transformar uma pessoa. Eu encaro isso de modo diferente. Acho que a consciência é 11
Wilhelm Reich, The Discovery of the Orgone (New York: Noonday Press, 1942).
o resultado de um processo de sensação orgânica e que é o processo da sensação que muda uma pessoa, e não apenas o simples fato de saber quais são as necessidades. Na minha opinião, o conhecimento não se livra disso. Nós ainda não avaliamos bastante o quanto há de privações nos primeiros meses de vida e como isso afeta toda a nossa existência. Os adeptos da escola de Reich reconhecem que uma grande parte das sensações nada tem a ver com a palavra e tentam tratar das sensações reprimidas com manipulações físicas do corpo. A Terapia Primal defende a ligação das necessidades do corpo com as lembranças inconscientes armazenadas, o que representa a unidade da pessoa. As terapias de danças, yoga, movimentos do corpo, ou os exercícios destinados a libertar o corpo de tensões, de pouco servirão porque elas estão irremediavelmente entrelaçadas com lembranças Primais em acontecimentos orgânicos unitários. Os insights de encorajamento cindem o indivíduo de uma forma e a terapia de movimento do corpo faz o mesmo de outra forma. Aquilo que necessitamos é alguma coisa total, uma reunião imediata do corpo com a mente. Não há maneira para curar de forma permanente com massagens as lembranças que causaram uma torção do ombro quando elas o atingiram abaixo do nível consciente. Talvez se possa compreender isso melhor examinando como nos desenvolvemos. A criança pequena tem pouca condição para abstrair ou para raciocinar a respeito de seus problemas. Ela não pode transformar suas necessidades em fantasias específicas nem pode se livrar delas simbolicamente durante a infância. O seu corpo tem que organizar as defesas. Assim, para ela não é uma questão da mente controlar o corpo já que a criança aparentemente não desenvolveu ainda sua capacidade mental nos primeiros meses. Em lugar disso, o que parece acontecer é que algumas crianças precisam defender-se fisicamente logo depois de nascidas. Lembro-me de uma paciente que nasceu num orfanato onde não havia ninguém para cuidar dela. Durante suas sessões de terapia, mais tarde, ela tornou a viver seu tempo de berço no orfanato e lembrava-se que ficava chorando muito tempo antes que viesse alguém para atendê-la. Tornou a viver o que fez nessa ocasião. Lembrava-se que ficava sentada, com cerca de oito meses, depois de chorar durante muitos minutos, e que olhava em volta mas não via ninguém para cuidar dela, e então começava a sentir o corpo mole e finalmente adormecia. Logo aquilo tornou-se um hábito. Acordava sentindo falta de alguma coisa, começava a chorar, calava-se e deitava-se de volta no berço. Esse embrutecimento tornou-se automático nos primeiros dois anos de sua estadia no orfanato. Mais tarde, quando saiu de lá, isso se transformou e ela procurava tornar- se insensível sempre que se sentia inconfortável ou apavorada. Dizia que "era como se tivesse sido absorvida de volta num estado de estupefação. Conseguia amortecer todo o meu ser e ficava meio adormecida até mesmo quando andava." Essa apatia e falta de vida, incidentalmente, é muito notada pelos que investigam as crianças recolhidas a asilos. Acho que elas são obrigadas a se amortecerem para assim criarem uma barreira que
permita a sua sobrevivência. O que aconteceu com essa mulher lá no seu orfanato foi o resultado do sistema de proteção do corpo. As defesas corporais que a acompanharam durante sua vida tinham se desenvolvido porque o seu trauma e split haviam começado antes do desenvolvimento do intelecto e a possibilidade de defesas intelectuais. Eu não acredito que houvesse exercícios que mais tarde pudessem reavivar o seu sistema muscular. Depois de sua terapia, em que reviveu os traumas infantis que haviam enrijecido e tolhido a sua musculatura, ela sentia-se liberada e "leve." Pela primeira vez podia dançar com desembaraço sem sentir-se tolhida e morta como vinha acontecendo desde que nascera. Tornara-se mais viva depois de verificar como estivera morta. Recentemente tivemos em nossa Terapia Primal um atleta levantador de pesos. Tinha o vício de namorar seu corpo num espelho. Tudo que via era uma tensão cuidadosamente construída. Contemplava o seu sistema de defesa e tentava construí-lo fisicamente, tudo para fugir à impressão de ser fraco e desamparado. Sua atitude inconsciente funcionava da seguinte maneira: "Não tenho quem tome conta de mim. Tenho que ser forte para proteger-me." O simbolismo é: "se eu agir e tiver a aparência de um homem, eu então serei um homem." Na Terapia Primal ele começou a sentir-se como o menino fraco e desprotegido que realmente era. Tivemos que suspender todos os seus exercícios com pesos, ou seja, deixá-lo sem proteção o bastante para que ele sentisse essa fraqueza. A cura da neurose deve sempre atentar para todo o sistema. Nós, terapeutas, passamos décadas falando para a fachada irreal de nossos pacientes pensando ser possível convencê-los a abandonar as necessidades e as Dores que a produziam. Não há força na terra que consiga fazer isso. Talvez possa haver quem diga que isso não faz diferença. Que o principal é a pessoa sentir-se bem e que não há razão para achar que pode ficar melhor do que está simplesmente porque alguém diz que isso é possível. É claro que a coisa não é assim. Eu estou pensando em muita gente como os homossexuais, por exemplo, que acabaram resignando-se com a sua doença porque chegaram à conclusão sincera de não haver outra alternativa. Embora a maioria dos neuróticos não esteja satisfeita, eles sofrem apenas um ligeiro mal-estar enquanto suas defesas funcionarem. Mas é preciso que eles saibam que há uma alternativa, que há uma condição de bem-estar que eles nem podem imaginar. É possível que tenham se valido do LSD em algum período de sua vida para atingir um estado de incrível magnitude. Talvez tenham atribuído à droga essa sensação. Eu não concordo. As drogas não trazem sensações. São as pessoas que as sentem. Isto é, são as pessoas sem neuroses, e eu creio que a maior contribuição da Terapia Primal é permitir que as pessoas experimentem suas próprias sensações.
Discussão Os comportamentos neuróticos são as formas de idiossincrasias que todos nós encontramos para aliviar a tensão. Não há alteração na neurose pelo simples fato de suprimirmos um comportamento superficial. O desenvolvimento de "bons" hábitos, como, por exemplo, não comer demais, deve sempre constituir um esforço desde que a neurose exista, e isso porque a pessoa está tentando afogar a Dor Primal. A neurose é a Dor congelada. No decorrer de nossas vidas nós encontramos muitos obstáculos dolorosos que precisamos transpor, mas não existe um fim para a Dor Primal porque ela não é sentida, mas, apesar disso, podemos frequentemente ver essa Dor estampada no rosto dos neuróticos, contorcendo-o e transformando-o de tal modo que quase ficam irreconhecíveis. Embora os neuróticos nem sempre se deem conta de tudo que lhe dói, eles são sempre um feixe de nervos destroçados. Podem ser aquele médico que anda às carreiras de um gabinete para outro ou a mulher que está sempre se queixando de alguma doença. O neurótico está sempre tão ocupado tentando se afirmar que não tem tempo para perceber quem é. A neurose começa como uma forma para apaziguar pais neuróticos procurando esconder deles certas coisas na esperança que "eles" finalmente terminem por amá-lo. Não importa os anos que passem, a esperança é sempre eterna. Tem que ser porque as necessidades também são. Essas necessidades fazem com que o neurótico se comporte de forma irracional porque a verdade racional é por demais dolorosa. Enquanto a pessoa não tiver sofrido todas as suas Dores completamente ela não pode perder a esperança. Na Terapia Primal a pessoa sente todo o desespero da infância e com isso destrói todas as esperanças falsas que constituem o fundamento da luta contra a neurose. Quando começa a neurose? Em qualquer idade bem tenra. Com um, cinco e dez anos. O importante é que ela tem um começo, a ocasião em que a criança se divide de seu próprio eu e passa a levar uma existência dupla. Será que isso significa que uma cena ou um acontecimento podem transformar alguém em neurótico? É claro que não. A cena decisiva não é senão a culminação de anos de relações muito ruins entre pais e filhos. Muitos neuróticos se desligam por volta da idade de seis ou sete anos porque é então que podem perceber bem o que se passa em suas vidas. Tornaram-se dissociados ou split e não podem se integralizar novamente mediante um esforço consciente, isto é, não podem desfazer a tensão neurótica. A neurose pode ter início com um ano de idade se o trauma for muito sério e se a história pregressa o justificar. É claro que o split em muitos indivíduos ocorre antes da idade de seis anos porque os gagos de quem tratei sempre reclamavam que sua deficiência começara logo que haviam pronunciado as primeiras palavras, entre
os dois ou três anos. Outros informam que o split se deu por volta dos doze. Um paciente contou-me que conseguiu se manter bem até os treze anos quando seus pais se divorciaram e o pai tornou a casar. Exigiram que o menino chamasse a madrasta de "mamãe" e que a tratasse como tal. Em lugar de enfrentar a perda de sua verdadeira mãe ele preferiu fechar-se. Por que a neurose começa mais cedo e não até antes dos vinte, por exemplo? É porque nesses primeiros meses a criança está completamente desamparada e depende de seus pais. Representam o mundo para ela. O que eles fizerem vai decidir o caminho da criança e isso logo se tornará rígido e determinará sua maneira de enfrentar o mundo. Geralmente, quando chega a hora de começar a escola ela já está desligada e neurótica, e a sua neurose determina a sua forma de agir para com seus mestres e colegas. Uma criança tornada rígida e que foi tornada tímida e obsequiosa pelos pais muito autoritários, sentir-se-á inclinada a se comportar do mesmo jeito com os outros. O split não é geralmente uma explosão ou um acontecimento cataclísmico. Chega o dia em que a criança simplesmente torna-se mais irreal do que real. A razão para isso acontecer antes dos treze aos dezenove é que, geralmente, se a criança conseguisse isso dentro desse período sem neurose, ela poderia também encontrar algum outro apoio, como, por exemplo, o amor de alguém do sexo oposto ou algum mestre compreensivo que a ajudasse a enfrentar a pressão e as dificuldades no lar. Geralmente, quando chega nessa faixa de idade ele já se transformou numa personalidade neurótica que não pode mais ser anulada por tal ajuda mas sim apenas ser tratada por paliativos provisórios. Por que a neurose não surge com a rejeição para entrar em algum clube social, pela repetição de ano escolar ou por ser repudiado pelo namorado? Por que os acontecimentos isolados, mesmo em casa, não produzem reações tão fortes que cheguem a causar o split? Uma criança normal rejeitada por um mestre poderia atribuir o fato à sua pouca aplicação ou mau comportamento, e perceberia isso sem qualquer outra consequência. O trauma, em termos Primais, não é um acontecimento penoso como o de ser rejeitado por um clube ou uma escola. O trauma é aquilo que não é experimentado. Isto é, significa uma reação tão forte e dominadora que chega a fazer com que uma parte do acontecimento seja apagado do consciente. Soluçar nos ombros da mamãe carinhosa por haver sido rejeitado é muito diferente de perceber o quanto se é odiado pela própria mãe e quando não se tem um outro ombro amigo para consolar. Nenhuma conferência de família, mais tarde, desmanchará isso. A criança poderá compreender por que sua mãe a rejeitou antes, mas isso não modificará os seus problemas primitivos. Será que a Cena Primal significa que uma pessoa é, sem dúvida, neurótica e para todo o sempre? A Cena Primal representa o salto qualitativo, a mudança para um novo estado, para a neurose. Nenhuma quantidade de amor, de garantia ou de atenções daí em diante cancelará a neurose. Ela irá se aprofundando em cada novo
trauma ou supressão de parte dos pais. Mesmo que, por exemplo, um pai amoroso surgisse de repente quando a criança tivesse uns oito anos, o dano anterior ainda teria que ser resolvido. Um tal pai amoroso, naturalmente, sempre adianta alguma coisa porque ele não aprofunda a neurose, mas tampouco pode cancelá-la. Só a Dor pode fazer isso. Só a Dor que exigiu uma parte do próprio ser para que fosse abafada.
7 - A NATUREZA DO SENTIMENTO
O corpo tem necessidade de sentir. Começamos a sentir quando todas as nossas primeiras necessidades são realizadas, quando somos aconchegados e beijados, quando podemos nos exprimir e movimentar com liberdade e quando nos desenvolvemos dentro de um ritmo natural. Desde que sejam satisfeitas todas as suas necessidades básicas, a criança está em condições de sentir tudo que deve a cada novo dia que começa. Quando isso não acontece, as necessidades se sobrepõem a tudo o mais e impedem a criança de sentir o que se passa. Para o neurótico, o presente é apenas o gatilho que deflagra todas as antigas necessidades e mágoas numa tentativa para resolvê-las. Há duas razões para que as necessidades e os sentimentos do passado sejam inconscientes. Muitas vezes a sensação se desenvolve antes do uso dos conceitos e torna-se então irreconhecível. (O bebê, por exemplo, não sabe que não deve ser desmamado muito cedo.) Em segundo lugar, mesmo que os sentimentos fossem reconhecíveis antes da Cena Primal, eles poderiam ter sido continuamente suprimidos por pais neuróticos de forma que a criança chega a um ponto em que não sabe o que está sentindo. Se a criança não tiver liberdade para chorar, tanto por um excesso de zelo dos pais que não permitem um instante de tristeza para o filho como ainda por tentarem ridicularizá-la chamando-a de "bebê", pouco tempo levará para que ela já não saiba mais se quer chorar. E ela acaba também achando ridículas as lágrimas como um sinal de fraqueza. A supressão do sentimento não precisa ser necessariamente um ato direto da parte de um dos pais. A negação do sentimento pode ocorrer na infância antes que a criança tenha idade bastante para disfarçá-los fazendo cara alegre. A simples ausência de um dos pais para contê-la pode criar tanta Dor que depois de algum tempo a criança se desliga da Dor desligando-se também de suas necessidades. Aí então deixa de sentir necessidades, apesar dela continuar a existir em todos os minutos de sua vida e através dos anos. A necessidade continua fixa e infantil porque é mesmo infantil. Um neurótico não pode ter sentimentos adultos quando importunado pelas necessidades. Mais tarde poderá recorrer ao sexo compulsivo, por exemplo, não porque sinta necessidade dele e sim devido à sua necessidade infantil de ser amado. Depois de haver sentido todas as suas antigas necessidades pelo que elas realmente são, ele pode então sentir-se plenamente sexual, e isso é muito diferente daquilo que o neurótico imagina ser a sexualidade. O que o neurótico está representando no exemplo do sexo compulsivo é uma antiga necessidade que possivelmente não foi conceituada. Ele pode dar-lhe outro
nome (sexo) mas a necessidade é de ser acariciado. Quando um paciente se deu conta disso durante o ato sexual ele perdeu sua potência e pediu à esposa que simplesmente o abraçasse. Quando se deteve durante o ato sexual, esse homem estava sentindo verdadeiramente, mas ela não se deu conta desse insight! Ele estava conceituando a sua verdadeira necessidade e já não representava mais simbolicamente. Por aí nós vemos que o sentimento é a sensação conceituada de uma forma correta. Uma sensação de estrangulamento no estômago pode muito bem ser o sentimento de alguém pelo vazio de sua vida. O neurótico pode mudar esse sentimento por uma sensação de fome. A neurose esconde as sensações dolorosas do corpo para que não possam ser reconhecidas e deixa a pessoa em constante sofrimento. ("Eles não me amam.") Ele pode tentar aliviá-las de uma forma ou outra, mas a sensação não melhora até 12 encontrar uma ligação certa, isto é, até que se torne um sentimento. As Dores Primais são as sensações de dor. Na Terapia Primal elas tornam-se sentimentos através das ligações com as origens traumáticas específicas. Somente a ligação transforma uma sensação de dor em um verdadeiro sentimento. Reciprocamente, a desligação do pensamento do conteúdo de seus sentimentos nos primórdios da vida produz sensações contínuas e desconfortáveis como dores de cabeça, alergia, dores nas costas. Persistem porque não são ligadas. É como se os sentimentos dolorosos fossem desligados do conhecimento ("Eu estou inteiramente só. Não há ninguém que me compreenda.") e passassem a ter vida própria dentro do corpo, surgindo aqui e ali em forma de dores e incômodos. Quando a dor se transforma numa Dor sentida, ela já não é mais dolorosa, e o neurótico pode, então, senti-la. Tudo que desperte verdadeiros sentimentos em um neurótico deve também despertar a Dor. Qualquer suposta experiência de profundo sentimento que não traga Dor é apenas um pseudo-sentimento, uma representação sem qualquer ligação. Uma quantidade de pacientes, quando em fins de tratamento, informa que o ato sexual muitas vezes leva involuntariamente a uma Primal. Um deles explicou o seguinte: "Antes de me submeter à terapia, eu tinha toda a sorte de sentimentos reprimidos que extravasava por meio do sexo. Pensava que era muito sexual. Estava sempre em condições de praticá-lo. Agora eu sei que aquela minha exagerada 12
O sentimento não é sinônimo de emoção, embora essa possa ser a expressão daquele, das coisas que uma pessoa faz quando sente. A maioria das emoções é atravessar todas as condições de sentimento sem o mesmo. Infelizmente, muitos neuróticos consideram a emoção como um sinal do sentimento, e a não ser que alguém seja efusivo e exagerado, eles inclinam-se a crer que a pessoa não está realmente sentindo. Os pais neuróticos raramente contentam-se com um simples "muito obrigado" pelos presentes que dão. Sentem necessidade de grandes demonstrações de emoção para terem a certeza de que foram devidamente apreciados. Dentro dessas sutilezas as crianças não se contêm e reagem com naturalidade. Precisam, aliás, exagerar porque as reações muito sinceras podem ser consideradas pelos pais como um sinal de rejeição.
necessidade de sexo era devida a todos os outros sentimentos procurando uma saída qualquer. Eu servia-me do pênis para isso. Costumava pensar que era natural o fato do orgasmo ser doloroso. Chegava a ele muito depressa porque a pressão de todos os outros sentimentos ocultos era muito grande já que todos eles queriam sair ao mesmo tempo. Nos meus primeiros anos isso se manifestava levando-me a molhar a cama, mas eu não precisava de controle tanto para não molhar a cama como para a ejaculação prematura. Eu tinha necessidade de sofrer todos aqueles sentimentos suprimidos para conseguir livrar-me das horríveis e constantes pressões." Quando já não podia mais transformar em sexo os seus antigos sentimentos, ele modificou sua atitude a tal respeito diminuindo radicalmente a sua mania de perseguição. Aquela mesma pressão poderia, com igual facilidade, desde que houvesse as condições certas nos primórdios, ter-se transformado numa constante necessidade de falar, de usar a boca para dar saída à tensão. As pessoas geralmente não falam porque sentem necessidade e sim para aliviar uma tensão. É fácil perceber a diferença porque também é fácil perder o interesse por alguém que fala sem parar e sem propósito, apenas para satisfazer uma necessidade íntima, assim como é difícil perder o interesse por alguém que realmente sente o que diz. O falastrão neurótico não fala para mais ninguém a não ser para a sua necessidade, em realidade para os seus pais. Aqui outra vez nós nos defrontamos com o cruel paradoxo. Uma pessoa é obrigada a falar porque nunca foi ouvida, e a sua verbalização neurótica afasta todo mundo e só serve para aumentar sua necessidade (e compulsão) para ainda falar mais. Não pode sentir o que diz até acabar de falar tudo que estava acumulado, e não pode fazer isso até que sinta a grande Dor dessa necessidade. O neurótico caminha em busca de sensações até a hora de sentir. Ele pode buscar sensações agradáveis para aliviar as desagradáveis do inconsciente, ou poderá senti-las aqui ou ali em seu corpo pensando que sofre de alguma doença física. Os que recorrem ao álcool para aliviar o nó no estômago podem estar escondendo alguma coisa mais séria, como talvez uma úlcera. Aqueles que não encontram bastantes saídas para as dores interiores são obrigados a sofrê-las fisicamente. O neurótico pode não recorrer ao álcool mas passa então a usar remédios para matar as dores. Tudo é a mesma coisa, e isso porque todos os sentimentos reprimidos são dolorosos por definição. Assim, quer o neurótico esteja se deliciando com as cores de um quadro, com a euforia do álcool ou o alívio de uma pílula, ele está sempre no processo constante de trocar uma sensação por outra. Até que encontre uma ligação para o que sente ele terá que passar a vida a procurá-la. E isso pode ser encontrado em tudo que for compulsivo. O orgasmo, para o neurótico, logo se torna um narcótico, um sedativo. Se retirarmos a representação simbólica (o sedativo) é o organismo que sofre. Por que será que o neurótico anda sempre à procura de sensações? É porque ninguém reconhece seus sentimentos. As crianças podem passar por dores
permissíveis, como as de estômago, por exemplo, mas não pelas que tragam a tristeza. Assim, a mágoa da criança é dirigida. Ela deve representar simbolicamente quando tudo que está tentando dizer aos pais é que "está triste." Como exemplo disso vou citar um incidente da vida de um de meus pacientes. Estamos no casamento de um rapaz e ele é surpreendido por um senhor de idade, um velho amigo que o abraça com ternura desejando-lhe felicidades. O rapaz sentese inexplicavelmente tomado de uma profunda tristeza e desaba num pranto incontido abraçado ao seu amigo, mas não faz a menor ideia do que se passa com ele. A Teoria Primal diria que o abraço do mais velho tocou numa velha ferida do rapaz. O paciente contou-me que seu pai nunca fora carinhoso com ele, e nunca tivera quem sinceramente lhe desejasse a felicidade. Aquele vazio profundo vinha sendo carregado por ele sem sentir até a hora que o carinho do velho deflagrou a Dor. O que ele sentia era o fragmento de um sentimento total que, se fosse completamente percebido, iria inundá-lo de Dor além da profunda tristeza que sentia no momento. Os carinhos que recebeu naquele dia não alteraram a Dor que ele sentia até que pudesse descansar para sentir tudo e poder então formar um conceito de sua mágoa. A sua luta começou quando pela primeira vez percebeu que não tinha um pai carinhoso. Começou a mostrar-se independente como se, realmente, não precisasse dos carinhos do pai. Enquanto conseguisse evitar o carinho, do qual tanto precisava, ele podia também evitar a dor. O repentino carinho do velho amigo pegou-o desprevenido num momento vulnerável de emoção que era o seu casamento. Uma outra paciente contou-me o que lhe acontecera. "Era como se eu tivesse riscado um círculo em torno daquela minha imagem indesejada, que não devia mais ser vista nem ouvida e devia ser relegada ao esquecimento. Mas eram só os meus sentimentos que acompanhavam aquela dor de não ser querida. Junto com meu: sentimentos iam o amor, a força e o desejo. Eu já não existia. Sempre que me procuravam só via o vazio, o nada. Eu morri no ódio e na rejeição deles. A realidade para mim era sentir a realidade de meu próprio desprezo." Quando o neurótico se desliga de sua Dor, eu creio que ele deixa de sentir completamente. O neurótico, até que venha a sentir outra vez, não sabe que nada sente. Assim não se pode convencer a um neurótico que ele seja insensível. O único fator convincente é quando ele começa novamente a sentir. Até que tal aconteça ele pode responder que recentemente assistiu a um filme trágico que o levou às lágrimas. Afirma então que aquilo é sentimento, mas o caso era que ele não estava sentindo a sua própria tristeza e portanto aquilo não poderia ser considerado como
um pleno sentimento. Se ele chegasse a relacionar o que viu no filme com as exatas condições de sua vida, ele poderia ter uma Dor Primal ali em pleno cinema. Na verdade, muitas delas acontecem quando o paciente discute algum filme que o fez chorar. No entanto, aquilo que ele sente no cinema e depois sente no consultório são dois fenômenos distintos. As lágrimas num cinema são um fragmento do passado repudiado do neurótico. São geralmente o resultado da liberação de sentimentos mais do que sua expansão em sentimentos Primais completos. O processo de liberação é que ajuda a tornar ausente o sentimento completo. Transforma e aborta o sentimento e assim mitiga a dor. A mesma explicação se aplica à pessoa que tem frequentes acessos de cólera. É claro que ela está sentindo a raiva que está demonstrando, não é mesmo? Mas, a não ser que aquela raiva, que está sendo expelida aos poucos cada dia contra alvos aparentes, seja sentida e ligada ao seu contexto inicial, ela não pode ser um sentimento no sentido Primal. Tomemos o indivíduo que explode só porque teve que esperar um pouco. Ele pode bem ser o adulto cujos pais o mantinham numa constante espera quando era criança. Mais tarde na vida, qualquer coisa que se parecesse com aquela espera a que os pais o obrigavam podia facilmente fazer explodir uma raiva completamente fora de propósito quanto à situação. Infelizmente, essa falta de atenção de parte de outros continuará sempre a despertar a raiva até que ele consiga perceber o verdadeiro contexto de seus sentimentos iniciais a tal respeito. Até então, a raiva não pode ser considerada como um verdadeiro sentimento desde que os alvos sejam apenas símbolos e não constituam a realidade que a originou. Na minha opinião, os sentimentos seguem o princípio de tudo-ou-nada. Qualquer coisa que lembre um sentimento fará com que todo o corpo o sinta. Para um neurótico, no entanto, o erotismo poderá muitas vezes causar sensações localizadas nos órgãos genitais, e não no corpo inteiro, como sensações sexuais sentidas dos pés à cabeça. A fragmentação do neurótico explica suas risadas abafadas, os espirros suprimidos e as palavras que parecem sair da boca sem qualquer relação com o resto do rosto. Nem todos os neuróticos sofrem dessa mesma forma, mas o processo de fragmentação sempre encontrará meios para se manifestar. Existe uma série de expressões que são chamadas de sentimentos, mas que não acredito que sejam. O "sentimento" de culpa é um desses. Um neurótico poderá dizer: "Sinto-me horrorizado com essa mentira. Sou muito culpado!" Eu consideraria a culpa como uma fuga ao sentimento (Dor) porque ela deflagra comportamentos destinados a aliviar a tensão. 'Uma pessoa sadia ao fazer alguma coisa errada sentiria
o pleno impacto de seu erro e procuraria corrigir a situação. Eu creio que, na sua base, a culpa nada mais é senão o medo de perder o amor dos pais. Um paciente disse-me durante uma sessão Primal que estava furioso com o pai por havê-lo abandonado tão cedo na vida. Sentia por isso as coisas mais estranhas. Dizia que era a culpa que não lhe permitia gritar bem alto toda a sua raiva. Quando viu o que era realmente, percebeu que tinha medo de denunciar o pai completamente porque poderia perdê-lo para sempre. A motivação da culpa, portanto, é vista como comportamento em reação ao medo. A depressão é frequentemente considerada como um sentimento. Os pacientes que já passaram por Primais não registram depressões. Sentem tristeza em certos acontecimentos, mas são sentimentos específicos para determinada situação. Pelo que consegui observar, a depressão é a máscara para os sentimentos muito profundos e dolorosos que não podem ser ligados pela pessoa. A verdade é que há neuróticos que preferem matar-se para não terem que passar por tais sentimentos. A depressão é um estado de espírito muito parecido com os sentimentos Primais mas que continuam sendo experimentados como sensações físicas desagradáveis ("Estou no fundo. Sinto-me na fossa. Tenho um peso no peito, alguma coisa que me aperta. E outras expressões parecidas.") porque não há uma ligação com as origens de tal sentimento. Quando as depressões são medidas com um eletromiógrafo, elas mostram um nível muito alto de tensão que prova ser a depressão um sentimento desligado. Recentemente, o Dr. Frederick Snyder, do National Institute of Mental Health, registrou o padrão de sono dos pacientes depressivos. Eles começam suas atividades de sonho logo que adormecem, e o sono é truncado e fragmentado. Geralmente dormem menos do que as outras pessoas, o que é mais uma prova da 13 tensão existente na depressão. Qualquer incidente trivial pode deflagrar uma depressão. Uma paciente foi a uma festa e saiu cedo e deprimida. Ninguém falara com ela nem havia despertado qualquer interesse sentando-se ao seu lado. A depressão durou dias e logo tornou-se claro que nada tinha a ver com a festa, que, afinal, só tinha servido para despertar algum sentimento muito antigo, e até então oculto, que seus pais nunca se interessavam por ela nem sentavam-se ao seu lado para conversar. Quando se submeteu a uma Primal em que implorou aos pais para que o fizessem, a depressão desapareceu. Muita gente livra-se de suas depressões saindo para fazer compras, fazendo planos para algum programa ou festa, mas elas continuam a existir num estado latente esperando que as atividades terminem. Continuarão a perseguir a pessoa até que sejam sentidas as razões. Existem outros pseudo-sentimentos. Aqui temos um exemplo de rejeição:
13
G. B. Whatmore, "Tension Factors in Schizophrenia and Depression," Tension in Medicine, ed. E. Jacobson (Springfield, III., Charles Thomas, 1967).
Durante uma sessão com alunos, eu critiquei o relatório escrito por um jovem psicólogo considerando-o impreciso. Ele começou então com uma onda de defesas. "Eu não queria dizer aquilo que o Sr. entendeu. Além disso, o relatório não está terminado," e por aí além. Quando lhe perguntei como sentia-se ele respondeu, "Rejeitado," mas o que realmente sentia eram velhos sentimentos de rejeição da parte de seu pai pensando que nada podia fazer que lhe agradasse, que conquistasse o seu amor. Para não sentir toda a dor, no entanto, ele lançou uma nuvem de fumaça de explicações, projeções e desculpas para ver se afastava a Dor Primal. Não discutiu as falhas de seu trabalho. Aqueles erros significavam para ele que não era bom e nunca seria amado. Não sentiu contudo o incipiente sentimento de rejeição. Ao contrário, tentou esconder os sentimentos com o seu comportamento. O que o jovem psicólogo estava fazendo era cobrir os antigos sentimentos despertados pela crítica presente. Não havia nada inerentemente doloroso no simples fato de redigir um relatório falho que justificasse todas aquelas explicações. Suas desculpas tinham por fim manter afastada a Dor Primal. Ele realmente começou a sentir alguma coisa rejeitada, a antiga e verdadeira rejeição, mas escondeu esse sentimento e é por isso que eu digo que os neuróticos não sentem completamente. Eles ficam divididos entre sua infância e os sentimentos dessa época de modo que não podem experimentar um sentimento completo. Cada novo insulto ou crítica que recebem como adulto deflagra pedaços da antiga Dor. Mas sentir-se realmente rejeitado significa estorcer-se de Dores durante uma sessão Primal, sentir-se completamente só e indesejado como quando criança. Depois de sentir isso, já não há mais sensações de rejeição e sim apenas do que está acontecendo no presente. Assim, quando uma mulher ignorá-lo em alguma festa social, a pessoa pensará: "Ela não gostou de mim" ou então uma outra reflexão parecida, mas não se sentirá rejeitado no sentido neurótico da palavra. Isso significa que não houve uma rejeição para estragar seu dia. A vergonha é um outro pseudo-sentimento. Vamos supor que um homem chore e depois mostre-se envergonhado do que fez. Ele sente que não receberá aprovação por haver-se mostrado fraco. Tenta então esconder o que fez por trás de uma desculpa de mau comportamento de forma que não possa sentir-se repudiado. Nesse sentido, o eu irreal, tendo absorvido os valores dos pais, e mais tarde os da sociedade, está pressionando o verdadeiro eu. O orgulho é quando vence o eu irreal. O orgulho é um sentimento negativo. Mostra alguma coisa, alguma ação que muitas vezes, inconscientemente, torna as pessoas orgulhosas. É o que eles fazem. As pessoas de sentimentos não precisam fazer coisas para chegarem a sentir. Aquilo que o neurótico faz para sentir-se orgulhoso vai se modificando com a idade. Com dois significa manter enxutas as fraldas e aos trinta é matar um elefante. A mesma necessidade pode impelir os dois comportamentos. Ela permanece constante. O que fazemos ao envelhecer é tecer em torno dela círculos de defesa cada vez maiores até nos perdermos num
emaranhado de atividades simbólicas. Quando o neurótico pensa que está tendo tremendas sensações acerca de alguma situação corrente em sua vida, a intensidade desse sentimento é um peso que se acrescenta ao Conglomerado Primal. Quando isso se esvazia metodicamente por meio da Terapia Primal, a pessoa descobre como são pouco intensos os seus sentimentos. Quando houver alguma coisa com suas roupas e a lavanderia ele talvez se aborreça mas nunca ficará furioso. O neurótico esvaziado também ficará sabendo como são poucos os sentimentos dos homens. Despido da vergonha, da culpa, da rejeição e de todos os outros pseudo-sentimentos, ele compreenderá que esses pseudo-sentimentos são apenas sinônimos para o grande oculto sentimento Primal de não ser amado. Mesmo quando um neurótico pensa que está passando por uma experiência sensacional, numa terapia de grupo comum, por exemplo, ele não faz ideia da tremenda força e alcance dos sentimentos neuróticos reprimidos. As lágrimas e soluços nas terapias convencionais de grupo representam muito pouco em comparação com o gigantesco e ainda adormecido vulcão interne composto de milhares de experiências que anseiam pela liberação. A Terapia Primal vai fazendo isso por etapas. Tão cedo sejam sentidas as negações, não mais existirão as grandes profundidades de emoção que esperamos encontrar nos homens. A perspectiva Primal de um sentimento pode representar o polo oposto do ponto de vista leigo. As pessoas muito emotivas estão sempre agindo pelos sentimentos reprimidos do passado e não chegam a sentir o presente. As pessoas normais, privadas das supressões do passado, sentem apenas o presente que não é tão volátil como a emotividade neurótica porque não há por trás dele forças reprimidas. Assim, o neurótico pode rir explosivamente porque há realmente uma explosão dentro dele. Também pode não conseguir rir espontaneamente porque existe ainda lá atrás alguma espécie de tristeza. No primeiro caso o neurótico escondeu o sentimento e converteu-o em riso, mas no segundo exemplo, o riso ou a tristeza podem haver sido reprimidos por uma pessoa que tenha nivelado todas as suas emoções. Aquilo que o leigo muitas vezes vê como um sentimento verdadeiro não passa de fortes reações para ferir como a raiva, o medo, o ciúme e inveja, o orgulho e muito mais. Na terapia comum, até mesmo a posição de sentar-se ereto numa cadeira, de frente para o terapeuta, serve para evitar essas experiências de sentimentos convulsivos. Tampouco são esses sentimentos o resultado de alguma espécie de terapia de confrontação entre o paciente e o terapeuta. A única confrontação na Terapia Primal é entre o eu real e o irreal. O fato é que o neurótico é uma pessoa dotada de sentimentos, mas eles encontram-se isolados pela tensão. Ele está constantemente cheio desses sentimentos antigos sem solução e que anseiam por uma ligação final que emerge como tensão. Para que o neurótico possa sentir novamente será preciso que ele
volte para sentir o que nunca foi. Assim ele pode tentar o contato físico num grupo de encontro terapêutico especial e acreditar que está derrubando as barreiras entre ele e os outros ou então passando por uma calorosa experiência, onde aprende a sentir os outros. Não existe porém qualquer meio para uma pessoa sem sentimentos perceber a mesma coisa nos outros por maiores que sejam os contatos físicos. Primeiro temos que aprender a sentir a nós mesmos para depois então sentir os outros. Uma pessoa bloqueada poderia concebivelmente tocar alguma outra durante um dia inteiro sem conseguir sentir coisa alguma. Aliás não será coisa alguma, pois ele chegará a sentir a antiga dor, talvez por não haver contado com carinho na sua tenra infância, só que não se dará conta do que se passa. No meu ponto de vista, ser sensual é termos todos os nossos órgãos sensoriais prontos para o estímulo. Quando isso não acontece vamos então encontrar mulheres frígidas que vão para a cama com qualquer homem e ainda assim continuam sem sentir nada. A questão é que as barreiras de sentimentos não são geralmente entre pessoas exceto de forma indireta, já que são todas internas. A barreira, escudo ou membrana por trás da qual vivem tantos neuróticos é o resultado de milhares de experiências em que foram suprimidos os sentimentos e as reações. Essa barreira tornou-se mais espessa à medida que iam sendo isolados os novos sentimentos. Não existe uma forma qualquer para se romper essa barreira. A única coisa a fazer é ir voltando para o passado e tentando atingir cada uma das maiores razões destruindoa aos poucos até chegar o dia em que ela deixe de existir e já não haja mais obstáculo algum. Assim, quanto mais perto conseguirmos chegar de nós mesmos, mais perto estaremos também dos outros. Os sentimentos reais não podem ser resolvidos com o rompimento simbólico de barreiras. Uma técnica muito comum, por exemplo, é reunir as pessoas num círculo com uma no centro. Ela aprende então a romper o cordão das pessoas que estão todas de mãos dadas. Eu acredito que teoricamente a pessoa esteja aprendendo a libertar-se dessa forma. Parece uma mágica. "Se eu passar por este ritual, então vou resolver todos os meus problemas." Acredito que o ritual tenha por fim permitir que as pessoas se sintam livres, mas acho que também serve para alimentar a neurose incentivando uma saída simbólica. Há outras maneiras pelas quais o neurótico pode sentir-se livre e estou certo que deve haver um alívio momentâneo de tensão por meio do ritual simbólico, embora ele mal possa arranhar o rígido sistema de defesa. O que isto tudo significa, em resumo, é que quaisquer que sejam as ações do neurótico, elas não podem acabar com a neurose. O neurótico pode tocar sem sentir, pode escutar sem ouvir, pode ver sem perceber. Pode praticar exercícios de acariciar os outros, mas tudo isso só fará sentido quando ele sentir o que está fazendo, mas já então não terá mais necessidade dos exercícios. O ponto de vista Primal a respeito de sentimento é consideravelmente
diferente dos outros. Se, durante uma sessão de treino de sensibilidade, alguém segurar a mão de outra pessoa, isso normalmente seria considerado como uma experiência interpessoal, mas o que acontece com o neurótico nesse caso é que o contato desperta centelhas de poderosas necessidades Primais, sem contudo deflagrá-las, sendo que tais necessidades não têm nome mas frequentemente tornam as pessoas excitadas. Por quê? Apenas porque aquilo que é simplesmente um gesto de afeto humano, uma sensação agradável, mergulha no profundo conjunto emotivo de uma infância negligenciada e estéril, que acrescenta à experiência uma grande ressonância e força. Como a força não é conceituai isso naturalmente torna-se uma experiência isolada na qual a pessoa pode ser tomada pela emoção ou então pode sentir algumas inefáveis sensações místicas a que podemos chamar de experiência máxima. A Terapia Primal deflagra esse reservatório de sentimentos e liga-o à conceituação. Depois disso o fato pode ser o que realmente é, isto é, um simples contato, e não aquilo que fez dele uma história de abandono. Por aí vemos como é exagerada a reação neurótica surgida de uma necessidade insatisfeita. Eu creio que haja níveis, ou antes, camadas de defesa que permitem algumas pessoas se aproximarem mais de seus sentimentos do que outras. Tudo depende do modo como se alinhou a constelação da família, do meio cultural e ainda da formação constitucional da pessoa. Há famílias onde não se permite demonstração de sentimentos e outras em que o sexo é permitido e os sentimentos de raiva proibidos. Geralmente, no entanto, os pais neuróticos são contrários ao sentimento, e um bom índice do quanto eles tentarão cancelar nos seus filhos é o quanto eles foram obrigados a cancelar em suas vidas para poderem sobreviver. Muitas vezes isso não é um processo deliberado. Pode ser a constante repressão quando as crianças são por demais exuberantes, o olhar dos pais quando as crianças resmungam ou reclamam, o embaraço quando elas falam de sexo ou quando a filha mostra seu corpo no banho. Pode estar na atitude adotada pelo pai para não dar importância aos medos do filho ou às tristezas da filha. Pode ser a mãe tão castigada pela vida que não pode tolerar que sua filha mostre seu desespero ou necessidade de proteção. Pode estar em todas as frases estereotipadas que os pais reservam para os filhos como, por exemplo, "Não torne a me falar assim"; "não pense em fracassos, meu filho, pense só no sucesso"; "o que há com você, seu maricas? Será que não pode aguentar?" Pode estar nos milhares de acontecimentos triviais em que tudo se nega às crianças. Ou então, ainda mais tragicamente, pode estar no simples fato de a mãe ou o pai nunca terem tido quem os orientasse ou incentivasse na vida. O resultado é sempre o mesmo: o ego magoado fechado pela Dor. Eu creio que no campo da psicologia tem havido muita confusão sobre o que aconteceu com os sentimentos do neurótico. Há quem diga que ele nunca, realmente, desenvolveu toda a sua capacidade para sentir. Outros acreditam que os sentimentos primevos foram sepultados e não podem ser recuperados. Eu afirmo
que a capacidade de sentir não pode ser irremediavelmente danificada. Na verdade, o neurótico parece ser a imagem viva de um Primal no sentido que seus sentimentos não o abandonam um só minuto do dia. Eles transparecem na sua pressão alta, suas alergias, suas dores de cabeça, na tensão dos músculos, na firmeza de seu queixo, na contração dos olhos, no rosto fechado, no som de sua voz e na maneira do andar. O que nunca conseguimos fazer antes foi catar todos os sentimentos espalhados para reconstituir a peça inteira e formar um sentimento completo e claro. Acredito que a forma para conseguir isso está no Método Primal que discutiremos a seguir.
8 - A CURA
Nenhum paciente que se submete à Terapia Primal está de antemão preparado para o fato de não se tratar de um processo comum de cura. Numa conversa telefônica eles descrevem a natureza de seu problema e fornecem uma rápida história de problemas físicos anteriores. O paciente deverá então submeter-se a um rigoroso exame físico para eliminar qualquer contraindicação para a Terapia Primal como, por exemplo, patologia orgânica do cérebro. Se houver suspeita de qualquer psicose haverá uma entrevista pessoal. Pede-se ao paciente que escreva uma carta sobre si mesmo, na qual ele deve contar a história de sua vida e de sua família, seus problemas, terapia anterior e porque deseja submeter-se à Terapia Primal. Na maioria dos casos não há entrevista pessoal antes de começar o tratamento. Isso, geralmente, não é necessário porque o paciente foi orientado por algum amigo que já passou por essa terapia ou então pelo seu médico que lhe explicará como ela é. Quando dá início ao tratamento já ele sabe bastante o que deve esperar. Depois de nosso contato por telefone e do recebimento da carta, envia-se ao paciente uma lista de instruções como se vê no Apêndice B. Essas instruções especificam que ele deverá abrir mão do álcool, dos cigarros e drogas durante a duração do tratamento Primal, ou seja, um período de alguns meses. Será informado que terá três semanas de tratamento individual e diário, seguido de diversos meses de sessões de grupo. Não deve trabalhar ou frequentar a escola durante as primeiras três semanas. Necessitará de todas as suas energias para a terapia e, aliás, ficará frequentemente tão perturbado que não poderia trabalhar mesmo que quisesse. O novo paciente será a única pessoa recebida para a terapia individual durante as três semanas. Ele terá todo o tempo que necessitar todos os dias e será o único a decidir quando deverão ser suspensas as sessões que, geralmente, duram entre duas e três horas. É muito raro que alguém seja tratado durante menos de duas horas ou mais do que três e meia. A Terapia Primal é muito mais econômica do que a outra convencional de insight, não somente em termos financeiros como também no tempo que leva. O custo total em dinheiro é cerca da quinta parte do custo de uma psicanálise. Vinte e quatro horas antes de começarmos, o paciente é isolado num quarto de hotel e não deve sair dali até a hora de sua consulta no dia seguinte. Durante esse período de vinte e quatro horas ele não pode ler, não pode ver televisão nem falar ao telefone. Tem permissão para escrever. Quando temos razões para acreditar que seja um paciente muito bem defendido, nós podemos pedir-lhe que fique de vigília a
noite inteira. Essa técnica poderá ser usada de quando em quando durante as primeiras duas semanas da terapia individual. O isolamento e a vigília são técnicas importantes que muitas vezes trazem o paciente para mais perto da Primal. O objetivo do isolamento é privar o paciente de todas as suas usuais válvulas de escape de tensão ao passo que a vigília provavelmente ajudará a enfraquecer o que lhe restar de defesas. Fica com menos recursos para combater seus sentimentos. O objetivo não é permitir que o paciente se alheie. Um paciente contou-me que quando ia na metade da noite ele procurava animar-se, e sempre que parava para olhar lá fora pela janela do hotel, começava a chorar convulsivamente sem saber por que. Uma outra entrou em pânico e teve que me telefonar à meia-noite para que eu lhe garantisse que não ia ficar louca. A solidão muitas vezes torna o neurótico desesperado. Para muitos pacientes, aquela primeira noite no hotel é a primeira vez em anos que ficam sós e que pensam neles mesmos. Não têm onde ir nem o que fazer. Não encontram como representar a irrealidade. Uma das importantes funções da vigília durante a noite inteira é não permitir que os pacientes representem suas irrealidades em sonhos. A falta de sono ajuda a derrubar as defesas, em parte porque a simples fadiga torna a pessoa incapaz de representar seu ato mas principalmente porque não pode fazê-lo por intermédio dos sonhos e não pode, portanto, aliviar a tensão. Detendo esse ato simbólico, com a vigília, nós trazemos a pessoa para mais perto de suas sensações ou sentimentos. Além de tudo isso, um bom número de estudos e pesquisas já mostrou que o isolamento em si já prepara a pessoa para a dor.
A Primeira Hora O paciente chega sofrendo. Não está fumando ou tomando tranquilizantes, e sente-se cansado e apreensivo. Não tem certeza sobre o que deve esperar. Pode ser que fique esperando cinco ou dez minutos além de sua hora marcada para fazer a tensão aumentar. O gabinete a prova de som está numa semiescuridão e o telefone está desligado. O paciente deita-se no sofá. Digo-lhe que fique de braços abertos porque quero o seu corpo numa posição que não lhe permita defesa. Descobri a importância dessa posição e postura quando observei, presos recém-chegados às suas celas onde passavam os primeiros dias com as pernas cruzadas, os braços descansando na barriga e o corpo curvado sobre os joelhos como se aquilo os protegesse contra a solidão, o desespero e a dor. O que acontece a partir desse ponto, naturalmente, depende muito do paciente. A seguir dou um exemplo típico. O paciente passa a discutir sua tensão e seus problemas, sua impotência, dores de cabeça, depressão e mal-estar geral. E possível que exclame: "De que adianta tudo isto?"; "Todo mundo está bem doente e já não sobra mais ninguém"; "Já estou cansado de estar só! Não consigo fazer amigos e quando isso acontece eu
logo me encho deles!" A verdade é que o paciente sente-se infeliz e sofre. Se ele estiver muito tenso ou medroso, eu lhe peço que se entregue a tais sentimentos. Se entrar em pânico aconselho que chame um dos pais em seu auxílio. Em certas ocasiões isso produzirá uma sensação dolorosa dentro dos primeiros quinze minutos de sua primeira sessão. Peço-lhe que conte os primórdios de sua vida. Ele dirá que não se lembra muito bem. Eu insisto para que conte só o que lembra. E o paciente começa então a contar sobre a sua primeira infância. À medida que ele fala eu vou coligindo as informações. O paciente revela de duas maneiras o seu sistema de defesa. Primeiro, na maneira como fala. Pode estar intelectualizando, mostrando muito pouco sentimento, usando abstrações e, em geral, agindo como se fosse um observador de sua vida e não o próprio ator. Uma vez que está usando a sua "personalidade" (ou o eu irreal) para contar a sua vida, nós damos toda a atenção ao que ele está dizendo. A pessoa cautelosa que procura fugir pretendendo dizer, "Não me cause mais mágoa. Não sentirei senão quando parar de magoar-me." À medida que vai falando, o paciente vai também contando como eram as coisas em casa: "Eu me calava quando ele me dizia aquilo"; "Eu não lhe dava o gostinho de saber que estava me magoando"; "Mamãe era tão criança que eu tinha que assumir o comando e ficar sendo a mãe"; "Papai estava sempre me acusando e então eu tinha sempre respostas prontas para tudo"; "Eu nunca estava certo"; "Não havia afeição". Fazemos com que o paciente se aprofunde mais em alguma situação primitiva que parece lhe trazer muitas sensações. "Eu estava lá deixando ele bater em meu irmão e ... meu Deus, sinto-me tenso ... não sei o que é ..." Faço com que volte àquilo. Pode ser que ele não descubra o que é ou então que diga, "eu acho que comecei a sentir que aquilo podia me acontecer se eu respondesse como fazia meu irmão ... Ui! Sinto um nó no estômago. Seria medo?" O paciente começa a se mexer. Move as pernas e as mãos. Pisca os olhos e fecha o cenho. Suspira ou rilha os dentes. Eu então insisto com ele para que continue e que não deixe fugir. Algumas vezes ele responde que tudo já passou. Esse processo de fintas pode durar horas ou dias, mas aqui eu posso engavetar a situação presumindo que a sensação permaneça ali, e passo então para o estágio seguinte. A próxima afirmativa do paciente poderá ser: "Estou todo tenso. É isso mesmo, acho que tinha medo do velho." Nesse ponto, quando vejo que ainda se apega à mesma sensação, peço-lhe que respire profundamente com a barriga. Digolhe então que abra a boca ao máximo e conserve-a aberta. — Agora puxe essa sensação para fora de sua barriga! — O paciente começa a respirar profundamente contorcendo-se e sacudindo-se. Quando percebo que a respiração é automática eu ordeno-lhe: "Diga ao papai que você está com medo!" e a resposta talvez seja: "Não vou dizer nada a esse filho da puta!" Eu insisto. "Diga! Vamos lá, diga!" Geralmente,
durante a primeira hora, por mais simples que isso pareça, o paciente não conseguirá dizer. Se conseguir dizer gritando, isso geralmente traz uma corrente de lágrimas e contrações do estômago. É possível que logo depois comece a contar a espécie de homem que era o pai. Haverá então boas probabilidades dele vir revelar diversos insights à medida que vai falando. A reação inicial é chamada pré-Primal e pode durar alguns dias ou mesmo uma semana, mais ou menos. Trata-se, essencialmente, de um processo de limpeza cujo objetivo é fazer o paciente abrir-se e prepará-lo para entregar o seu sistema de defesa. Não há esse que simplesmente chegue e se entregue. O corpo desfaz-se de suas neuroses aos poucos e bem a contragosto. Depois de uns quinze minutos o paciente já se acalmou outra vez e pode começar a falar coisas inócuas no seu estilo usual de não comunicação. O que fala é desprovido de sentimento. Mais uma vez é levado para uma certa situação penosa em seu passado. O terapeuta, por sua vez, está também atacando todas as manifestações de defesa do paciente. Por exemplo, se o paciente fala baixinho ele diz-lhe para falar bem alto. Para o paciente muito distante de seus sentimentos, e que vive "dentro de sua cabeça" é geralmente impossível chegar a uma pre-Primal durante alguns dias, mas ainda assim, continuamos sempre atacando durante todas as sessões. A primeira hora de um intelectual, por exemplo, pode ser muito parecida como uma sessão comum constando da história, perguntas e esclarecimentos. Nunca se discutem ideias. Não discutimos a teoria Primal ou a sua validez como muitos pacientes gostariam de fazer. Cada dia faz-se uma nova tentativa para abrir mais a brecha do sistema de defesa até que o paciente não possa mais defender-se. Os seus primeiros dias de terapia são muito parecidos com seus primeiros anos devida, antes que ocorresse a Cena Primal que o enclausurou. Ele sente acontecimentos isolados e discretos, mas fragmentados. Quando todos os fragmentos se combinam para formar um todo o paciente está em seu Primal. Se o paciente se mostra inteligente, humilde, delicado, obsequioso, hostil ou dramático, em suma, seja lá qual for a frente que apresente, proibimos-lhe isso num esforço para fazê-lo passar além das defesas e entrar na sensação. Se ele levantar a perna ou voltar a cabeça, ordenamos que permaneça completamente estirado. Pode acontecer que de risadinhas ou boceje à medida que surgem as sensações mas também isso lhe proibimos mostrando impaciência. Se ele tentar mudar de assunto deve ser logo detido. Ou então ele pode, literalmente, tentar engolir a sensação, como acontece com muitos pacientes que estão sempre engolindo em seco logo que alguma sensação começa a se manifestar. É por esta razão que os obrigamos a manter a boca aberta. Enquanto o paciente discute uma nova situação do princípio de sua vida, nós continuamos atentos para os sinais da sensação. A voz poderá tremer ligeiramente
como se fosse dominada pela tensão. Repetimos o processo de insistir para que o paciente respire e sinta. Nesse instante, que pode ser uma ou duas horas depois, o paciente está abalado. Já não sabe qual é a sensação e sim apenas que se sente tenso e em expectativa, isto é, tenso contra a sensação. Eu começo com o processo de respirar e forçar. O paciente jura que hão sabe o que sente. Sente um aperto na garganta e no peito. Sente ânsias de vômito. Eu digo-lhe que é apenas uma sensação mas que não vai vomitar. (Aliás ainda não tive um paciente que realmente vomitasse apesar das ânsias.) Insisto para que diga o que sente embora ele mesmo não saiba. Ele tenta então formar uma palavra mas logo começa a torcer- se de Dor. Insisto com ele para que descarregue e ele continua fazendo força para dizer alguma coisa. Finalmente consegue. É um grito "Papai seja bonzinho", "Mamãe ajude-me!", ou então simplesmente a palavra "ódio". "Eu te odeio! Eu te odeio!" E é este o Grito Primal. Ele cai em convulsões espasmódicas, empurrado pela força dos anos de repressões e negações do sentimento. Algumas vezes o grito é apenas "Mamãe!" ou "Papai!" O simples enunciado dessa palavra traz uma torrente de Dor já que muitas "mamães" nunca permitiam que os filhos as chamassem senão de "Mãe" apenas. O fato da rendição e de voltar a ser a criancinha que precisa de sua "mamãe" muito contribui para dar vazão às sensações e sentimentos acumulados. O grito é ao mesmo tempo um grito de Dor e um acontecimento liberador em que o sistema de defesa da pessoa abre-se de forma espetacular. É o resultado da pressão para conservar reprimido o verdadeiro eu, possivelmente durante décadas. É em grande parte um ato involuntário. Todo o corpo sente aquele grito. Muitos dizem que ele é como um relâmpago e uma faísca que parecem despedaçar todo o controle inconsciente do corpo. Em um outro capítulo eu trato do grito e de seu significado com maiores detalhes. É bastante dizer aqui que o Grito Primal é a causa e o resultado de um sistema de defesa que se desmorona. Durante a primeira hora eu muitas vezes faço o paciente falar somente dos pais. Quando ele me fala a esse respeito isso automaticamente o separa de suas sensações, como se fossem duas pessoas adultas discutindo. Então, é possível que ele conte alguma coisa como, por exemplo, "Papai, eu me lembro quando você estava me ensinando a nadar e gritou comigo porque eu estava com medo de mergulhar a cabeça. Finalmente você me deu um 'caldo'." Nesse ponto pode acontecer que o paciente volte-se para mim e diga com raiva, "O senhor pode imaginar aquele estúpido filho da puta dando um 'caldo' num menino de seis anos"? Eu então lhe digo. — Pois fale para ele tudo o que sente! — E ele então desanda numa descompostura gritando como aquele menino de seis anos. Isso leva a outras associações e ele já está começando a sentir. Nós então começamos a falar como seu pai lhe ensinava outras coisas e o medo que ele tinha daquilo. "Houve uma vez que ele me obrigou a montar num cavalo enorme embora eu não soubesse cavalgar. O cavalo empinou e saiu na disparada. O guia conseguiu segurar-nos. Meu pai não disse uma palavra." Mais uma vez digo-lhe para falar com o pai como se sentei. Suas
associações tentam conservá-lo nas lições ou nas situações em que seu pai não queria que ele mostrasse ter medo. Ou então pode, de repente, virar-se para sua mãe. "E porque ela não o detinha?" Simplesmente porque era muito fraca. Nunca me protegia contra ele." O paciente já agora está às voltas com a mãe. "Mamãe, ajudeme! Eu preciso quem me ajude! Tenho medo!" Isso pode acarretar sentimentos mais profundos. Pode trazer soluços, lágrimas e dores na barriga. Mais associação daquele tempo em que ela não o protegia contra o "monstro". Mais insights mostrando como sua mãe era infantil e medrosa. Como era por demais fraca para poder ajudá-lo. Depois de duas ou três horas assim já o paciente está exausto e nós damos o dia como terminado. Ele volta então para o seu quarto no hotel. Sabe que poderá falar comigo a qualquer hora, e na primeira semana poderá desejar voltar para uma outra sessão mais tarde em vista do seu alto nível de ansiedade. Depois da primeira semana já isso não acontece tanto. Ainda não pode assistir à televisão nem ir ao cinema. Ele, aliás, não quer isso já que está pensando em si mesmo.
O Segundo Dia O paciente está exuberante de insights. "É como se toda a minha mente estivesse explodindo, pensei em tanta coisa na noite passada. Quase não dormi e não tenho fome. Quando afinal consegui dormir sonhei todo o tempo." Ele começa com tudo porque as lembranças chegam todas. Conta-me sobre coisas que já tinha esquecido, outras situações penosas que deixou de mencionar na primeira hora. Pode começar chorando dentro dos primeiros dez minutos e torna a falar sobre lembranças e insights indistintamente. Parece sofrer muito, mas ainda assim, como aliás muitos outros, "mal podia esperar pela hora da sessão." Mais uma vez estamos bombardeando o seu sistema de defesa. Não deixamos que fuja do assunto se desconfiarmos que está querendo esconder alguma coisa. Também não permitimos que fique falando à toa. Acertamos numa lembrança dolorosa: "Certa vez minha mãe levou-me para fazer compras com ela e mais duas amigas. Colocou-me um pegador de cabelos na cabeça e perguntou às amigas se eu não daria uma bela menina." E aí então ele grita, "eu sou menino sua boba!" Depois discute tudo que sua mãe fazia para torná-lo feminino. Mais lembrança, insights e sentimentos dirigidos contra ela. Depois passa a falar de seus antecedentes e daquilo que a tornou como é. Por que casou-se com um afeminado. Depois outra lembrança. "Eu ia servir ao exército e beijou-me na despedida. Enfiou-me sua língua na minha boca. Imagine o Sr. E era minha mãe! Virgem Maria! Ela sempre me preferiu a meu pai. Mamãe! Deixe-me! Deixe-me! Eu sou seu filho!" "Agora já posso compreender por que era sempre contra minhas namoradas. Queria-me só para ela. Meu Deus, que vergonha! Agora lembro-me quando fomos a um piquenique e fugimos para esconder de meu pai e
ela descansou a cabeça no meu colo. Senti uma coisa estranha. Meio nauseado. Minha mãe estava tentando seduzir-me. Fiquei enjoado e vomitei sem saber por que. Agora já sei. Lançou-me contra meu pai. A única coisa decente em minha vida. Sua cadela! Cadela!" A essa altura já o paciente está rolando no chão contorcendo-se ofegante. "Ódio! ódio, ódio, ódio!" Grita que quer matá-la. Eu ordeno. — Diga então a ela! — Ele começa a martelar o chão descontrolado e raivoso e isso pode durar uns quinze ou vinte minutos. Finalmente sossega. Está exausto e não pode mais falar. Suspendemos então a segunda sessão.
O Terceiro Dia O paciente está ficando sem defesa. Algumas vezes chega chorando para a consulta. Outras vezes encontro-o deitado no chão da sala de espera soluçando. Reclama que não suporta a dor. Que ela é demais, que não pode ler porque está sobrecarregado de lembranças e insights. Quer saber quanto tempo vai durar isso. Voltámos no entanto ao processo de reviver lembranças. "Lembro-me uma vez quando meu pai ficou zangado comigo porque eu não queria fazer o que mamãe mandava. Eu tinha só oito anos. Disse a ele para se calar. Ele me disse que nunca mais repetisse aquilo. Eu repeti. Ele apanhou a vassoura e levantou-a para mim. Eu corri. Ele perseguiu-me, alcançou-me e começou a me espancar. Meu Deus! Ele vai me matar. Papai me odeia. Ele quer me ver fora de seu caminho. Pare, papai! Pare!" O paciente está agora totalmente assoberbado pela sensação. Rolou do sofá para o chão e está gritando, entre violentas convulsões abdominais, que seu pai vai matá-lo. Pode estar suando, tentando gritar mas sem conseguir. Continua a gritar tentando vomitar gritando que vai morrer. Finalmente diz "eu vou ser bonzinho, papai. Não vou mais responder." E não torna a responder mesmo. Fica sendo um menino bonzinho. Passou por um Primal. Uma experiência total de pensamentos e sentimentos do passado. Tudo está acabado em questão de minutos e parece ser extraordinariamente doloroso. O paciente não conversa sobre seus sentimentos. Ele apenas está sentindo. A Primal é uma experiência completamente absorvente. O paciente quase não se dá conta onde se encontra no momento. O que ele experimentou durante os dois primeiros dias de sua terapia é aquilo a que chamamos de pré-Primal. São sensações importantes do passado que não são muito absorventes. Isso não significa que uma Primal total não aconteça na primeira hora. Embora seja possível, não é uma regra geral. Algumas vezes demora semanas. Quando acontece, parece que rompeu uma barreira de pensamentos e sensações e a pessoa torna-se susceptível para toda sorte de sensações e começa a ter Primais espontâneas fora da terapia. Desse ponto em diante ela está a caminho da cura. Com o decorrer dos dias ele provavelmente passará por experiências mais
profundas até atingir o ponto em que o equilíbrio crítico entre o real e o irreal se altera em favor do verdadeiro eu permitindo uma completa experiência de sensações. Daí em diante ele será absorvido por penosas situações do passado e terá muitas Primais que se estenderão por períodos de meses. Isso não significa, no entanto, que a pessoa seja completamente real. Cada Primal diminui o eu irreal e aumenta o real. Quando as Dores mais importantes forem sentidas já não haverá mais o eu irreal e podemos dizer que o paciente está normal. A nossa obrigação é provocar a Dor para apresentar uma pessoa com sensações reais.
Depois do Terceiro Dia O processo do tratamento durante as três semanas seguintes continua, em linhas gerais, como já se disse aqui. Há situações em que o paciente parece que já não tem mais sensações. Já secou. Algumas vezes está apenas num período refratário em que o corpo está descansando dos dias de dores. O organismo é um excelente regulador da Dor e nós sempre temos cuidado para não levar o paciente a mais dores quando ele se encontra nesse período refratário. Algumas vezes ele simplesmente está resistindo para não se defrontar com suas sensações e o seu sistema de defesa ainda está resistindo. Embora o paciente já tenha deixado o quarto de hotel depois da primeira semana, em regra geral, nós podemos pedir-lhe para voltar para uma vigília noturna. A ideia é de enfraquecer suas defesas outra vez. Os pacientes dizem que cada dia de terapia vai eliminando mais camadas de defesas. Esse processo ganha impulso porque desde que sente um pouco de Dor, já o paciente está preparado para tolerar mais. Cada Primal parece revelar novas lembranças escondidas que levam a outras Primais. As que se sucederem poderão, cada vez mais, ir abrangendo todo o organismo à medida que as defesas vão cedendo. O corpo só permite que o paciente sinta uma certa quantidade de Dor de cada vez, e assim, se ele não for apertado, as Primais irão se sucedendo numa sequência ordenada e segura. Se forçarmos o paciente a procurar sentir mais do que ele pode suportar o resultado só poderá ser que ele se desligará outra vez. O que acontece geralmente na sequência Primal é que com o passar dos dias o paciente vai voltando cada vez mais para a sua infância. É comum falarem com a voz correspondente à idade que estão vivendo, podendo até chegar ao choro de um bebê. A observação de tudo isso levou-me a compreender a afinidade entre a Dor e a lembrança, porque desde que a Dor desapareça, as lembranças dos pacientes pósPrimais começam dentro de poucos meses de idade. Não se trata de uma nova descoberta pois Freud já tornou isso conhecido no princípio deste século. A natureza
do trauma, porém, é por demais sutil: ser deixado no berço todo molhado; ser retirado abruptamente para qualquer coisa; ser esquecido e deixado chorando durante horas; ficar no berço, desamparado, ouvindo as vozes estridentes dos pais interrompendo seu sossego; não ser alimentado quando está com fome; não permitir que mame ou então desmamado de acordo com uma tabela e não naturalmente. O trauma resulta também de partos difíceis e isso torna necessário consultarmos novamente Otto Rank que escreveu sobre trauma dos partos no princípio deste século. Ele acreditava que o parto em si já era traumático, pois a criança abandonava o calor e a segurança do útero, ao passo que eu sou de opinião que só o parto com trauma é traumático. O parto é um processo natural e não acredito que qualquer coisa natural possa ser traumática. Assisti a uma Primal em que uma mulher estava encolhida como um feto e de repente esticou-se toda e começou a chorar como um bebê. Quando saiu do transe ela sentiu que tinha revivido seu parto muito difícil em que realmente quase sufocara, num parto que durara vinte e quatro horas. Uma outra pessoa reviveu também um parto muito difícil e depois de sentir a luta para sobreviver sabia que ela tinha começado com seu nascimento e que nunca mais acabaria. "Aquilo era como se minha mãe quisesse fazer as coisas difíceis para mim desde o princípio.” Presenciei uma outra Primal bastante elucidativa a tal respeito. Uma mulher insistia em sentir que era infeliz sem saber por que. Estava sempre queixando que não conseguia chorar. De repente, reviveu uma experiência e seus olhos ficaram cheios de lágrimas. A experiência fora uma operação que sofrerá quando tinha um ano para desobstruir os canais lacrimais. Ela estava então com trinta anos e chorava normalmente, mas revivia os acontecimentos de antes da operação e não conseguia então verter uma só lágrima. Isso mostra que o trauma existe mesmo antes que a criança possa falar. O que produz a neurose não são apenas os gritos do pai ou da mãe. O trauma parece fazer parte do sistema nervoso e é lembrado organismicamente. O sistema físico sabe que está sendo traumatizado mesmo quando não seja acompanhado pela consciência. E mais ainda, não é bastante conhecer tais ocorrências. Se foram traumáticas, elas devem ser revividas e experimentadas plenamente para poderem ser resolvidas com referência ao seu continuado efeito sobre o organismo. A partir do segundo período de três semanas, as Primais geralmente ocorrerão quase diariamente. Existe um estilo Primal que é exclusivo para cada pessoa. Alguns pacientes são levados às sensações através da conversa, ao passo que outros começam com alguma sensação física, sem explicação no momento, mas que depois se liga a alguma lembrança. Logo antes da primeira ligação que é tão dolorosa, alguns pacientes agarram-se ao sofá, outros apertam a barriga e ainda outros começam a balançar a cabeça batendo os dentes e suando muito. Alguns
curvam-se com a Dor, outros encolhem-se num canto do sofá ou então rolam para o chão em convulsões. Não existem duas primais iguais nem mesmo com a mesma pessoa. Existem as que são violentas, as apavoradas, as tranquilas e as tristes. Qualquer que seja a sua forma a terapia se dirige às antigas sensações ainda não resolvidas. É difícil explicar em palavras como podem ser diferentes as sensações. Uma paciente que antes se tratara com a terapia convencional afirmou que embora tivesse chorado muito, a experiência era inteiramente diferente de quando chorara na Primal. Ela antes chorava para aliviar as mágoas e sentir-se melhor, para proteger o eu magoado. Agora chora por causa de suas mágoas e esses sentimentos são muito mais intensos e absorventes. Durante uma sessão ela disse que sentia chorar até as pontas dos pés. Durante a terapia os pacientes logo aprendem como chegar às sensações. Um paciente pode contar um sonho que teve na noite anterior como se ele estivesse acontecendo ali naquele momento, pode sentir o terror ou desamparo e logo sentirse descontrolado ligando a sensação à sua origem. O fato de estar descontrolado ajuda muito a estabelecer a ligação porque o autocontrole geralmente significa a supressão do ego. O paciente deseja aquela Dor porque sabe que ela é a única saída para a sua neurose. Depois de algum tempo o terapeuta pouco mais tem a fazer além de permanecer em silêncio. Quando o paciente penetra numa sensação, ele está "lá no passado" revivendo tudo, sentindo os cheiros, ouvindo os sons e fazendo fisicamente o que estava fazendo quando aqueles processos foram bloqueados. Um paciente que era muito querido por ser bem controlado e nunca molhar as fraldas com ano e meio, sofria a mesma terrível necessidade de urinar durante a Primal como quando era criancinha. É preciso ser lembrado que o paciente está completamente dentro da cena do passado, e qualquer palavra do terapeuta no presente poderá fazê-lo sair de lá. Se não houver interferência, a sensação transportará o paciente de volta às suas origens, uma coisa que não pode acontecer quando a sensação está sendo discutida entre o terapeuta e o paciente. A Primal tem uma quantidade de sinais característicos. Um deles é o vocabulário. Se a pessoa usar uma linguagem de criança, como acontece muitas vezes, isso significa que ela está às voltas com uma Primal. Um homem que tinha um Ph. D, por exemplo, disse durante uma sessão, "Papai, eu tou com medo". Com aquilo eu fiquei convencido que ele não estava fingindo. Se, no entanto, o paciente grita qualquer palavrão durante uma Primal, há uma boa probabilidade que ele esteja numa pré-Primal. Uma outra qualidade das Primais é que quanto mais o paciente regride para a infância mais maduro se tornará. Isso acontece porque o fato de livrar-se do passado
permite que a pessoa se torne verdadeiramente adulta e não apenas que se comporte como tal. Em resumo, ele fica sendo o que realmente é. Muitas vezes um paciente na Primal regride à sua infância, chorando e gemendo como um bebê de um ano, e depois sai dela com uma nova qualidade de voz, mais profunda e forte, quando antes da terapia ele tinha uma voz fina e infantil. Quando um paciente começa a reviver o seu passado durante uma Primal, é comum ele perder a noção do tempo. Dizem às vezes "Parece que já fazem anos que entrei aqui no consultório". Já me aconteceu perguntar a pacientes quanto tempo eles acham que estiveram ali no consultório e receber como resposta "Acho que já estou aqui vão fazer uns trinta anos". Os pacientes acham que as Primais são um estado de coma consciente. Embora possam sair dele logo que quiserem preferem não fazê-lo. Sabem onde estão e o que está acontecendo, mas, mesmo assim, quando dentro da Primal, eles estão revivendo a história do passado e estão absorvidos por ela. Sempre, aliás, estiveram absorvidos pelo passado, mas conseguiram se iludir em lugar de senti-lo. Até mesmo em seus sonhos eles viam o passado. A Primal coloca o passado no seu lugar verdadeiro e permite que o paciente finalmente viva o seu presente.
O Grito Primal O Grito Primal não é simplesmente um grito. Tampouco é usado como alívio para tensões. Quando resulta de sentimentos profundos eu acredito que seja um processo curativo e não simplesmente um alívio de tensão. De qualquer forma, não é o grito que cura e sim a Dor. O grito é apenas uma expressão da Dor. A Dor é o agente curativo porque significa que o paciente está finalmente sentindo. No momento que ele se sente magoado a Dor desaparece. O neurótico sente-se magoado porque seu corpo está sempre preparado para a Dor. A mágoa vem da apreensão tensa. Não há engano possível quanto ao Grito Primal, pois ele possui alguma coisa profunda, rascante e involuntária. Quando o terapeuta retira, de repente, alguma porção da defesa e o paciente fica como se estivesse nu com sua Dor, ele grita porque não tem defesa contra a verdade. Embora o grito seja a reação mais comum, ele não é a única nem a perene reação à repentina vulnerabilidade à Dor. Há pessoas que gemem, rosnam, estorcem-se ou debatem-se. Os resultados são os mesmos. O que se manifesta quando a pessoa grita é um sentimento único que pode estar por baixo de milhares de experiências anteriores. Muitas vezes o paciente simplesmente sente necessidade de gritar. Grita por causa de todas as humilhações, surras e vexames por que passou. Grita agora porque muitas vezes foi ferido e nunca pôde se dar ao luxo de sangrar. É como se alguém o espetasse constantemente com um
alfinete sem que ele pudesse gritar "Ui" pelo menos uma vez.
A Resistência A Terapia Primal não funciona assim com tanta facilidade como eu talvez possa ter dado a impressão. As próprias defesas são resistências contra os sentimentos. Sendo assim, existe sempre alguma espécie de resistência enquanto existir algum resto do sistema de defesa. Muitos pacientes recusam pedir a ajuda dos pais. Podem ter gasto anos com análises e podem mesmo dizer, "Olhe aqui, já tratei disso muitos anos atrás. Já sei o que são. Não vejo razão para o que está me pedindo". A minha opinião é que eles não sabem realmente até o dia em que pedirem. Os pacientes ficam embaraçados com esses "exercícios pueris". Um jovem psicólogo chegou a comentar que era tudo muito simples. Ainda assim, saber com certeza que não se é amado é certamente uma experiência pela metade e o corpo não toma parte nela. Exigir amor já é uma outra coisa. A luta neurótica teve início porque a criança não podia mais exigir amor já que isso trazia a rejeição e a Dor. Uma vez que a luta é o desejo contínuo e simbólico de amor, trazer a pessoa de volta para o pedido direto de amor à mãe é o mesmo que afastar a luta e descobrir a Dor. Algumas vezes a resistência é física. A pessoa pede para respirar e faz isso ao contrário. Parece estar empurrando o ar para baixo em lugar de para cima e para fora. Essa impossibilidade de expirar é frequentemente encontrada em neuróticos, especialmente nos reprimidos que são obrigados a isso. A resistência física parece ser automática. A garganta aperta-se, o corpo dobra-se, o paciente enrola-se como se fosse uma bola, tudo para deixar de fora o sentimento. O ponto é que, por mais estranho que isso pareça, ninguém simplesmente deita-se e livra-se de sua neurose. Se o paciente insiste em não respirar fundo eu aperto-lhe a barriga de quando em quando, embora isso seja raro. Em caso algum, porém, isso seria feito até que o paciente esteja seguramente preso a alguma sensação, porque aquilo que estamos querendo não é a respiração e sim a sensação.
A Primal Simbólica Uma vez que a dor excessiva parece desligar-se automaticamente de nossos sistemas, o que parece acontecer nos primeiros dias da terapia é aquilo a que chamarei de Dor Simbólica. Isso acontece especialmente com gente velha cujas defesas são mais fortes. A parte física da Dor pode ser galvanizada primeiro, mas o paciente consegue estabelecer uma ligação mental. Em lugar disso ele poderá sentir uma terrível dor nas costas (o simbolismo de alguém grudado às suas costas) ou
pode tornar-se parcialmente paralisado (o simbolismo de seu desamparo) ou então sentir um peso nos ombros (talvez o ônus que vinha carregando). O simbolismo varia muito. Um paciente ficou sem poder mover seu lado esquerdo durante meia hora, e logo depois declarou que aquilo "era aquele peso morto que vinha carregando toda a sua vida". Quando o paciente tem as suas manifestações neuróticas impedidas pelo terapeuta, a neurose parece recuar para sua próxima linha de defesa, para o simbolismo físico, ou seja para as queixas psicossomáticas. Nesse caso ainda, nós vamos descobrir que as dores físicas são o resultado de suas dores mentais primitivas e logo que isso se manifesta as aflições físicas desaparecem. As aflições psicossomáticas perturbam quase todos os pacientes Primais logo no começo da terapia, e até mesmo aqueles que eram relativamente saudáveis antes. Um paciente teve diarreia logo depois de sua primeira Primal. Disse-me que as coisas estavam saindo dele antes que soubesse o que eram, e quando ficou sabendo e sentindo o que eram, a diarreia logo cessou. Quando as sensações capitais estão bloqueadas, a Dor parece atuar primeiro contra certas áreas ou partes do corpo. É por aí que vemos que a Dor está vindo. Na medida que as ligações se fazem, as mágoas psicossomáticas logo desaparecem. Um paciente sentiu-se dividido ao meio durante a sua segunda pré-Primal. Tinha os punhos fechados e os braços, rígidos e estirados, estavam tremendo. Só de olhá-lo a gente via que estava sendo puxado dos dois lados. Contudo era apenas um comportamento simbólico, simbólico por estar sentindo-se dividido sem conseguir descobrir as causas para aquilo. Mais tarde descobriu o que estava acontecendo. Estava revivendo a cena havida por ocasião do divórcio dos pais. Sentia como queria acompanhar o pai, mas não tinha coragem para manifestar-se com medo de desagradar à mãe... Sentia o quanto a odiava, mas tinha que abafar aquele sentimento porque teria que viver junto com ela em completa dependência... Sentia raiva do pai por deixá-lo, mas tinha que abafar aquilo para fazer com que ele o visitasse... Todas essas contradições tinham como resultado o esforço exercido contra o seu corpo. Tornavam-se físicos porque ele não tinha coragem de senti-los diretamente. As sensações então eram codificadas no sistema muscular em termos de seus valores simbólicos; ele estava realmente sendo dividido ao meio por estas sensações conflitantes porque todas as sensações são coisas reais, físicas. Para resolver aquilo de teria que voltar para sentir todos os elementos separados da contradição. Não era bastante "saber" que ele estava em conflito acerca do divórcio. A explicação Primal para a situação acima é que as lembranças repudiadas, ou seja, os acontecimentos por demais dolorosos para serem encarados, são depositados no cérebro e armazenados abaixo do nível de percepção de onde enviam mensagens para o corpo. Assim, um impulso de revide que nunca foi demonstrado contra um pai tirânico pode tomar a forma de músculos de braços
retesados. Durante uma sessão Primal, quando um paciente lembra-se de haver sido espancado por um pai, ele pode sentir uma certa rigidez nos braços sem saber por que. Mais tarde descobrirá a razão certa e os músculos se relaxarão. Um paciente rilhava sempre os dentes. Fazia aquilo inconscientemente dormindo. Começou a pensar na ocasião em que seu pai não cumprira a promessa de levá-lo ao jogo de futebol e inconscientemente começou a rilhar furiosamente os dentes. Na sua casa era proibido demonstrações de raiva. No meu consultório ele finalmente extravasou sua raiva em gritos e nunca mais rilhou os dentes. Aquele determinado incidente não era a causa do rilhar de dentes. Era, isso sim, uma lembrança bem viva, simplesmente representada que deflagrou todas as promessas não cumpridas pois o paciente não tinha licença para protestar em casa. Todo mundo vê em torno de si comportamentos simbólicos mas provavelmente não lhe dão esse nome. Quando uma criança sai da escola sem permissão, ela está agindo impulsivamente. O que talvez está fazendo é representar simbolicamente uma liberdade que não sente. Talvez não seja a escola que o esteja prendendo e sim antigas sensações. Se conseguir sentir isso já não precisará representar a liberdade fugindo da escola. O estágio simbólico é uma necessidade na Terapia Primal. O paciente sente parcialmente porque está sendo magoado por muitas coisas. O seu corpo fecha-se então por algum tempo e o paciente extravasa ou intravasa o resto do sentimento. O extravasamento não precisa ser específico. Pode simplesmente ser em forma de uma vaga tensão que conserva intactas algumas partes da velha personalidade. Não se deve precipitar o estágio simbólico. O sistema está se defrontando com a Dor em doses pequenas e continuará fazendo isso num processo ordenado com a ocorrência de menores graus de simbolismo à medida que aumentarem as sensações. Isso também se nota na diminuição de simbolismo nos seus sonhos. À medida que o paciente vai saindo do estágio simbólico para as sensações numa forma mais direta, ele vai perdendo o interesse pelas coisas simbólicas. O simbolismo parece ser um fenômeno total, e infelizmente, o neurótico muitas vezes passa toda a sua vida nessa terra de simbolismos impossíveis. Suas terríveis dores de cabeça podem estar lhe demonstrando toda a sua indignação, mas a despeito de anos com tais dores, ele raramente descobre o que elas são. Um paciente, depois de uma sessão muito veemente, disse o seguinte: "Eu acho que toda essa pressão na minha cabeça eram sentimentos de indignação que não podiam se espalhar para se agarrar às sensações do corpo. Era como se eu tivesse que empilhar até mesmo as minhas ideias em algum compartimento já sobrecarregado." Parece que a primeira semana é o pior período para a Terapia Primal. O paciente sente-se ansioso e infeliz e só quer saber quando tudo aquilo vai acabar. Tem a impressão que já durou uma eternidade. Houve um que disse: "Tenho a
impressão que quando entrei aqui o senhor me agarrou pelos pés e me segurou de cabeça para baixo para me esvaziar completamente." Ele se sente mais tenso do que nunca porque tem menos defesas neuróticas contra as sensações que estão vindo para a superfície. Logo que ele se tenha aberto completamente, há uma grande premência nas suas necessidades e isso obriga o terapeuta a estar sempre presente. Ao fim da terceira semana já deverá estar terminada a parte mais importante do desmantelamento de suas defesas, mas o paciente ainda não está bom. Tem ainda uma grande quantidade de tensão residual de velhos sentimentos que, por alguma razão, ainda não foram deflagrados. Já que não é necessário nem econômico conservá-lo na terapia individual, ele deve passar para o grupo pós-Primal. Talvez precise ainda de uma hora só para ele de quando em quando, mas o principal trabalho pertence a terapia de grupo. Quando digo que o mais importante já foi feito depois das primeiras semanas, isso significa que já se podem notar as modificações em personalidade e sintomatologia. Quando eu praticava a terapia convencional, geralmente precisava de três semanas só para conseguir a história do paciente e fazer alguns testes psicológicos. Agora, dentro desse período nós podemos ver coisas voltando espetacularmente ao normal de forma definitiva, como por exemplo a pressão arterial em pessoas que toda a vida foram hipertensas. Nota-se a mudança na maneira de falar, na voz e na aparência. Rostos antes inexpressivos tornam-se móveis e vivos. As ideias também mudam radicalmente nesse curto período embora não haja discussões entre terapeuta e paciente. Isso é porque as ideias irreais sempre acompanham os sistemas irreais. O objetivo principal, no entanto, é o desmoronamento das defesas nas três semanas, e isso geralmente acontece. A pessoa empresta sempre muita emoção a tudo o que diz. Até mesmo a maneira de andar se modifica.
Variações em Estilos Primais As sessões primais podem variar muito. Uma paciente, por exemplo, começou as suas com uma coisa que parecia a hora do parto. Durante o primeiro dia ela assumia a posição fetal, contraindo e distendendo o corpo, dizendo que estava sentindo correntes de ar e depois chorando exatamente como uma recém-nascida. Não fazia a menor ideia do que estava acontecendo e dizia que era um processo inteiramente involuntário. Muitos não chegam até aí. Uma paciente que não tinha lembranças de antes dos dez anos, começou a reviver o que lhe tinha acontecido com quatorze anos e foi caminhando para trás até reviver um acontecimento terrível que lhe causara o split final aos dez anos. Depois disso, no entanto, ela continuou
regredindo até chegar à idade de três anos quando começou a sentir a "pura necessidade" do amor dos pais Mais tarde disse que aquela tinha sido a sua mais dolorosa Primal. Não houve palavras durante essa sessão e sim apenas uma experiência completamente interna com o corpo enrolado, estorcendo-se e gemendo, apertando os punhos e rilhando os dentes. A Primal varia dependendo da idade do split e da profundidade da dor. Alguns pacientes conseguem ir diretamente à cena principal em que sentiram o split ao passo que outros levam meses para chegar lá. Alguns dizem que nunca conseguiram chegar a uma cena específica e muitas delas parecem ter a mesma importância na produção das neuroses. Se o split for cedo e se a Dor for grande, o paciente pode reviver a mesma cena muitas vezes. Um paciente, por exemplo, recentemente reviveu quando foi deixado num berço do hospital várias semanas apenas com nove meses de idade. Seus pais não podiam visitá-lo porque ele estava com uma doença contagiosa. No dia seguinte ele voltou àquela cena e percebeu que era um hospital. Depois viu o rosto da mãe, e por último viu seus pais saírem e sentiu-se abandonado. A neurose de toda a sua vida era para achar alguém para se agarrar. Conseguiu uma namorada e fez tudo que podia para que ela não o abandonasse. Não fazia a menor ideia que aquele seu comportamento era devido a alguma coisa que lhe tinha acontecido quando era tão pequeno ainda, pois não se lembrava daquilo. Chegou na primeira vez muito tenso porque a sua namorada abandonara-o. Quando mergulhou nas suas sensações voltou logo ao berço. Enquanto revivia a cena do berço só chorava como bebê. Teve diversas sessões sem palavras e na última dessa sequência deu um grito alto pedindo aos pais para voltarem, uma coisa que ele não tivera coragem de fazer, por alguma razão, quando ainda estava no período do berço. Nós geralmente sabemos quando uma pessoa sai da Primal. Ela abre os olhos e pisca como se estivesse saindo de alguma espécie de coma. Algumas vezes isso acontece mais normalmente e nós só notamos quando a voz volta a ser adulta. Uma surpresa constante é a maneira como a tensão muitas vezes desaparece quando a pessoa já sentiu muita Dor naquele dia. Depois de sentir uma grande Dor a pessoa inexplicavelmente sente a tensão e diz que não consegue mais lembrar. Quando percebe que a experiência foi completa ela se sente relaxada. Nós sabemos que ainda existem mais sensações para serem resolvidas se a pessoa ainda está tensa no fim de uma Primal. A tensão residual depois de uma Primal é a prova mais concreta que a neurose existia antes como amiga e benfeitora. Ela assumiu o comando e manteve-nos a salvo quando a vida começava a ser por demais penosa e depois reassume e torna o paciente tenso quando ele já sentiu Dor bastante para um dia. Há ocasiões em que as sessões são predominantemente físicas. Um paciente, quase no fim de sua terapia, iniciou uma Primal em que seu corpo começou a torcerse da direita para a esquerda em posturas bizarras, e isso durou uma hora involuntária. Levantou-se muito tenso, disse que já não era mais corcunda e descreveu tudo da seguinte maneira:
"Eu acho que não era só a minha mente que estava torta. Era também o meu corpo. Antes de entrar nisto eu dizia a mim mesmo que estava ficando louco. Alguma coisa estalou- me na cabeça e aí esta sequência física começou. Acho que foi porque minha mente finalmente desistiu da luta e de toda a irrealidade e o corpo pôde então voltar à realidade perfeitamente ereto. Eu agora ando desembaraçado como um diferente ser humano. Nunca antes em minha vida consegui cruzar as pernas como agora faço nem tampouco virar completamente o pescoço, por mais estranho que isso pareça. Agora já faço tudo isso. Só posso chegar à conclusão que estava numa espécie de camisa-de-força mental com os pensamentos bitola- dos, numa espécie de molde material que me mantinha espremido numa forma estranha." Nós já ficamos tão acostumados a ver as emoções normais que é difícil mostrar a tremenda força da Primal. A profundidade e amplidão de suas sensações são quase inacreditáveis. Também é difícil explicar a sua grande variedade e estranhas qualidades. Será bastante dizer que quando uma sensação pode convulsionar um ser humano, quando pode causar gritos dilacerantes, isso é uma prova da enorme pressão contínua existente sobre os neuróticos. O que é espantoso é que tantos neuróticos não consigam senti-la diretamente. Sentem por meio de aperto no peito, nó no estômago ou quando a cabeça parece que vai explodir. O processo Primal leva os pacientes a uma região raramente vista, até mesmo nos consultórios de psicoterapeutas. É ainda mais raramente compreendida. É uma viagem sistemática, perfeitamente planejada, do homem dentro de si mesmo. Quando os pacientes finalmente atingem as primeiras sensações catastróficas de saber que eram desprezados, odiados ou incompreendidos, o sentimento epifânico da completa solidão, eles percebiam completamente por que se haviam desligado e como se fossem crianças conseguiam passar por aquilo e continuar vivendo. Quando observamos esses pacientes em paroxismos de dor ao chegarem a tais sensações, é o mesmo que contemplar toda a profundeza do sentimento humano. Em todos os meus anos de terapia convencional eu nunca observei ou mesmo compreendi o que era realmente o sentimento. Claro que vi muito choro e agonia, mas há uma enorme distância entre o chorar e entre experiência Primal. Aqui está como um paciente contou as suas experiências na Terapia Primal: "O sentimento numa Primal que tenha qualquer associação com acontecimentos na infância, em qualquer ocasião depois do split, é um pedaço do verdadeiro eu, de um eu real que não pode ser experimentado sem voltar para antes do split. Daí a importância para a Terapia Primal das experiências ou cenas da primeira infância. Elas ajudam a sentir os pedaços do eu verdadeiro associando a dor aos incidentes específicos até a hora em que possa ser a essência do seu verdadeiro eu. Por exemplo, se eu estiver numa sessão em que minha mãe esteja me repudiando, é provável que diga, "não me mande embora, mamãe." Não há palavras para o puro sentimento dessa Primal. O sentimento é o meu próprio eu e as palavras
querem significar "mamãe, não estou bem, por favor, tire-me esta dor", e isso é uma defesa contra ser tal sentimento. Nesse ponto não há mais nada a dizer nem cenas que possam ter qualquer relação. Estamos sendo nós. No meu caso foi o que a privação total me fez. Não posso esperar comunicar com palavras o que sinto verdadeiramente com essa experiência e só isso serve para provar que não há palavras..." Parece quase indescritível reviver as Dores Primais em intensidade. Quando contemplamos os pacientes durante as sessões, quase ficamos convencidos que estão agonizantes. Eu estava tão certo disso que nunca me abalei a perguntar a um paciente se aquilo doía mesmo senão meses depois de haver começado com a Terapia Primal. Para grande surpresa minha os pacientes diziam que a despeito de todas as manifestações físicas a Dor não chegava a doer! Houve um paciente que assim a descreveu: "Não é a mesma coisa como quando a gente corta a mão e diz que está doendo. Durante a sessão a gente nem mesmo pensa se dói ou não. Apenas nos sentimos infelizes em toda a parte. Mas não dói. Talvez até mesmo se possa dizer que é uma dor agradável devido ao alívio que finalmente sentimos." O que eu acho que ele quis dizer foi que durante a sessão ninguém reflete sobre o que está fazendo. Não se raciocina quanto à sua necessidade. Ali só está o eu totalmente ocupado com alguma coisa, pela primeira vez desde que nasceu. Uma das razões por que não pode se entregar completamente é que ele não está apenas sentado numa cadeira lembrando de alguma coisa. Todo seu corpo está envolvido no processo da mesma forma que estava a criança antes de ser desligada. Há pacientes que lembram como demonstravam sua raiva nos primeiros anos deitando-se no chão, esperneando, batendo com os braços e chorando. Estavam totalmente envolvidas e nem mesmo poderiam informar se aquilo doía ou não. Aqui vai uma outra descrição de uma sessão, ocorrida já no fim da terapia. Cito isto porque ajuda a explicar o fenômeno de uma Dor não dolorosa. "Creio que a melhor maneira para eu descrever como foi a experiência seria dizer que eu não tinha consciência de coisa alguma. Eu era a minha dor e não precisava de qualquer ligação. A única coisa necessária era que eu aceitasse a experiência e não fugisse dela como fizera antes quando afinal fiquei neurótico. Aquilo era eu ser o meu verdadeiro eu." O que é interessante a respeito da experiência da Dor Primal é que a sua sensação não é dolorosa. O que mais dói talvez é a tensão contra a sensação. Isso não significa a ausência de sensações desagradáveis, mas quando é sentido pelo que representa, o resultado não se transforma em Dor. A tristeza não dói. Mas se a pessoa não consegue ficar a sós com sua tristeza, se não lhe permitem a sua infelicidade, isso então dói. A sensação ou o sentimento, então, são antíteses da dor.
A dialética do método Primal é que quanto mais dores se sente, menos dores se sofre. Não se pode ferir realmente os sentimentos de uma pessoa normal, mas podemos ferir um neurótico deflagrando as sensações reprimidas.
A Experiência de Grupo Os grupos pós-Primais reúnem-se duas vezes por semana durante três ou mais horas. Compõem-se de pacientes que já passaram pela Terapia Primal individual. Sua principal função, é estimular os participantes do grupo a novas sessões Primais. A atmosfera que prevalece entre o grupo geralmente leva a isso. A sessão de um pode deflagrar outras duas ou três de outras pessoas. Chega a ser comum duas sessões ao mesmo tempo porque um paciente, já agora sem defesas, não consegue esperar a meia hora enquanto um outro está sendo examinado. Quando acontece duas sessões Primais ao mesmo tempo isso pode resultar numa grande confusão. Os únicos que não são afetados pelo tumulto são aqueles que estão sendo examinados. Parecem não saber o que os outros estão fazendo. Pode acontecer haver seis ou sete sessões ao mesmo tempo durante uma única sessão de três horas para grupos. Em vista do processo Primal ser perturbador, ou talvez mesmo mais do que isso, o grupo tem uma outra função. Ele conforta os pacientes que podem então travar relações com outras pessoas que estão passando pela terapia. O processo de grupo pode durar meses, dependendo do paciente. Como eu tenha feito a terapia convencional de grupo durante muitos anos, antes de dedicar-me à Primal, quero desde logo dizer que esta última é muito diferente da primeira, e isso é confirmado por muitos pacientes que se submeteram às outras em suas diversas modalidades. Tudo é muito diferente na Primal, e não há um intercâmbio de insights. São muito raras as demonstrações de raiva ou medo. Quando algum passa o tempo olhando para os outros, isso é um bom sinal, pois mostra que naquele momento ele nada sente. Há muitas razões para isso, creio eu, mas a principal é que na Terapia Primal não se encontra o processo de interação. É um processo de sensações pessoais em que os insights estão sempre no ar quando a Dor foi profundamente sentida. (Ver seção de insights.) A segunda diferença é que os pacientes compreendem que as relações estão ligadas com antigas experiências, por mais desordenadas que pareçam. Terceiro, o período da terapia de grupo é aquele em que há menos defesas. Os pacientes comparecem e mostram-se aflitos para entrar em cena pois não conseguem conter seus sentimentos. São, de uma certa maneira, uma verdadeira massa de sentimentos. Os pacientes de grupos respeitam muito o que está
acontecendo em torno deles. Frequentemente, como já disse, o que está acontecendo na sessão evoca lembranças parecidas nos assistentes e apesar de todo o controle é possível que alguém caia numa Primal sem sair de seu lugar ou em algum outro canto da sala. Três horas é um período muito curto para grupos Primais. Depois de uma sessão de grupo, cuja média é em geral de meia hora, o paciente pode ficar por ali mais uma hora fazendo silenciosamente as suas ligações ao mesmo tempo que se realizam outras sessões. Pode acontecer haver seis ou oito pacientes ativos ao mesmo tempo, mas uns não se preocupam com os problemas dos outros. Sempre que terminam as sessões de grupo há um período de discussões em que conversam entre eles contando o que houve com cada um.
Ficando Bom Depois de sete ou oito meses de terapia de grupo, o paciente talvez ainda precise de Primal. Isso não é comum, pois a regra geral é que no fim de oito meses ele geralmente está bom. O que significa isso, então? A resposta é que quaisquer que sejam as suas sensações dolorosas, ele pode sempre senti-las sem precisar de auxílio. Já não existem mais defesas importantes para esconder os sentimentos. Significa o fim do comportamento simbólico. Significa definitivamente o fim de sintomas psicossomáticos que são Dores simbólicas. Significa também o fim de comportamentos evidentemente neuróticos como fumar ou beber. Mesmo que quisessem, os pacientes não poderiam fazer senão o real. Não podem mais voltar às antigas dores de cabeça porque elas eram apenas parte da defesa que mantinha os sentimentos bloqueados. Não existem mais defesas. Sentem repulsa pelo fumo. Não podem exagerar as necessidades sexuais porque não há antigos impulsos para serem canalizados pelo sexo. Já não sentem mais a necessidade de comer demais porque não precisam empurrar os sentimentos com a comida. E será que isso resiste ao tempo? Sim. Até aqui, os comportamentos irreais nunca voltaram para pacientes que tiraram todo o curso. Como é possível isso? A pessoa já é ela própria agora, e para voltar ao seu antigo comportamento ela teria que se tornar uma outra novamente. Os acontecimentos correntes de um adulto não podem produzir um split que divida a pessoa em duas. Isso acontece com crianças porque elas são frágeis e dependem dos pais para sobreviverem. Devem ser o que os pais querem. Isso raramente acontece a um adulto. Ninguém pode transformar um adulto real em alguém irreal. Quero tornar bem claro que o paciente curado não fica em êxtase nem tampouco feliz. A felicidade não é o objetivo da Terapia Primal. Os pacientes que acabam o tratamento podem sofrer ainda muitas mágoas porque deixaram para trás
todas as outras, mas, como disse um paciente, "elas são pelo menos, coisas verdadeiras que sempre têm algum fim." O fato de estar curado não significa necessariamente interesses diferentes pois muitos pacientes chegam à conclusão que podem fazer as mesmas coisas antigas mas com um sentimento inteiramente diferente. Ficar bom significa sentir o que está acontecendo agora. Os pacientes sentem quando estão se sentindo bem porque não têm tensões residuais e sentem- se completamente relaxados. Nada pode torná-los tensos. Os acontecimentos podem transformá-los mas não haverá tensão. Muitos terminam no fim de oito meses mas alguns ainda ficam durante dez ou onze meses. Tudo depende de quanto estavam doentes e das repressões do inconsciente antes do tratamento. Qualquer que seja o número de sessões a que tenham se submetido, se houver ainda sentimentos reprimidos ou bloqueados, eles continuarão a ser representados simbolicamente por toda a vida até que sejam resolvidos. Isso significa que a pessoa pode ainda ser neurótica depois de haver passado por uma série de sessões Primais. Um paciente que voltou à universidade no terceiro mês de sua Terapia Primal verificou que não conseguia entender as aulas. Começou a fingir e até mesmo se fingir de estúpido sem nada compreender do que o professor dizia. Veio para uma sessão de grupo e queixou-se como fora ridicularizado pelo assistente do professor por não compreender uma lição. Mergulhou naquele sentimento e disse: "Expliqueme isso papai. Perca algum tempo comigo." Seu pai ridicularizara-o certa vez por não haver entendido uma lição. Ele fez tudo que pôde para compreender logo e agradar ao pai para fugir à mágoa. Aquilo era um sentimento simples embora carregado de intenso efeito. A mágoa era por sentir-se estúpido e procurar esconder a deficiência. Quando a sua terapia entrou no terceiro mês, a sua defesa começou a se desintegrar e ele fingia de estúpido, como se quisesse dizer "ensine-me." E continuaria a bancar o estúpido até encontrar a sua origem.
Discussão Eu acredito que a única forma para eliminar a neurose é derrubá-la pela força e violência. A força de anos de sentimentos reprimidos e necessidades negadas, e a violência de arrancar tudo isso de um sistema irreal. Da mesma forma que a neurose resulta de um processo gradativo de desligamento, o restabelecimento requer um novo religamento gradativo. Como a Dor não permite um acesso muito rápido a essas sensações Primais, elas precisam
ser atacadas por estágios. Até que isso aconteça, certamente haverá representações simbólicas. A Terapia Primal é a neurose ao contrário. Cada dia que passa na vida de uma criancinha as mágoas vão-se amontoando e abafando seu sentimento até ela tornarse neurótica. Na Terapia Primal o paciente revive todas essas mágoas e vai abrindose até que fique bom. Uma só mágoa não faz um neurótico e uma só sessão Primal não torna ninguém normal. É o acúmulo das mágoas e as sensações daí decorrentes que finalmente transformam quantidades em novas qualidades de doença ou de saúde. Eu acredito que o processo para ficar bom encontra-se na Terapia Primal desde que a pessoa se submeta ao tratamento. Logo que o sistema de defesa é rompido o paciente não tem escolha. Tem que ficar bom. Essa inevitabilidade é análoga à da criancinha que permanece num ambiente traumático onde há uma constante supressão. A conclusão lógica então é a sua neurose com o abafamento do seu eu real e a construção de uma defesa duradoura. Se tirarmos a criança para fora do ambiente traumático antes do grande split poderemos evitar uma séria neurose. Se tirarmos o paciente das circunstâncias terapêuticas antes que ele tenha corrigido o split dificilmente haverá recuperação da saúde. Por que será que a neurose não pode ser destruída por pais carinhosos ou pelos professores? Muitos foram os pacientes que tiveram madrastas e padrastos antes dos vinte anos com os quais se davam muito bem por serem eles bons e carinhosos, mas, ainda assim, eles vieram a precisar de terapia mais tarde. E isso porque esses padrastos e madrastas nunca conseguiram corrigir defeitos antigos como gagueira, tiques, alergias, etc. A saída do lar pouco antes dos vinte anos e o encontro de boas amizades do sexo oposto não consegue desfazer a tensão e sintomas antigos, como a psoríase, por exemplo, que, aliás, reage bem à Terapia Primal. Se a bondade, o carinho, o amor e o interesse conseguissem destruir as neuroses, a psicoterapia certamente deveria conseguir isso, mas eu não acho que tal coisa esteja acontecendo. A neurose não pode ser eliminada pelo aplacamento, raciocínio, ameaças ou amor. O seu processo patológico parece engolir tudo que encontra no caminho. Ela se alimenta dos insights que lhes são oferecidos. Não é possível eliminar uma válvula neurótica sem que logo surjam outras até então escondidas. Elas podem ser aliviadas por uma droga atrás da outra mas estarão cada vez mais fortes logo que cesse o uso da droga. Possuindo, como possuo, uma sólida base científica que recomenda cuidado, eu bem sei o quanto parece impossível e estranho o que estou escrevendo. É possível que alguns leitores queiram considerar a Terapia Primal como um tratamento apenas aplicável a certas espécies de neuróticos, mas o caso é que ela se aplica a todas as neuroses, como mostrarei mais tarde, e também, possivelmente, às psicoses. Os pacientes que tratei antes com a terapia comum nunca passaram por
coisa parecida com uma Primal. Depois que descobri o método Primal, no entanto, pedi a alguns de meus antigos pacientes que voltassem para o novo tratamento e sempre conseguimos encontrar a Dor deles. A neurose torna-se compreensível, no entanto, quando consideramos as milhares de experiências em que a criança era impedida de agir normalmente. Aliás, chega a ser um milagre do sistema humano que o verdadeiro caminho ainda espere para ser trilhado. Parece que o sistema exige realidade. Na Terapia Primal o paciente é um aliado. Sua Dor já esperou tanto tempo que, geralmente, deseja vir para a superfície. O seu comportamento compulsivo parece ter sido uma busca inconsciente da ligação certa para que ele pudesse sair. Quando se apresenta a oportunidade ninguém pode detê-la e eu acho que isso explica o nosso sucesso com uma quantidade de neuróticos dos mais variados tipos. A Terapia Primal provoca uma reação ambivalente em alguns neuróticos dependendo da distância de sua Dor. Quando estão perto eles parecem ser atraídos para ela imediatamente porque sentem ser o certo. Quando não estão perto eles talvez não lhe deem importância considerando-a primitiva ou simples demais. A Terapia Primal pode parecer tão simples, no entanto, que me sinto no dever de alertar: NINGUÉM DEVE TENTAR PRATICAR A TERAPIA PRIMAL A NÃO SER QUE SEJA PERFEITAMENTE QUALIFICADO. Os resultados podem oferecer perigo. Já temos um grupo sendo treinado durante alguns meses. Os psicólogos que estão sendo treinados, e também eu, ainda temos muito que aprender para dominar os fundamentos da teoria e da técnica. Faço esse aviso para mostrar o possível perigo que pode haver com a Terapia Primal praticada por quem não esteja devidamente habilitado. Embora este livro não contenha detalhes de técnicas, quero fazer bem claro que a Terapia Primal não é uma metodologia sem base. É um programa planejado. Existem objetivos específicos que devem ser atingidos durante as primeiras três semanas e deve-se esperar certos resultados em cada mês que passa. Nós sabemos bem como o paciente come e dorme durante a terapia e o que isso significa. Dentro de certas condições terapêuticas, qualquer terapeuta seguirá sempre um caminho parecido. Essa terapia exige uma grande confiança no terapeuta. Se ele não for verdadeiro nada conseguirá, pois os pacientes sentem quando ele é ou não. O fim da neurose é muito parecido com o seu princípio. Não se trata de nada espetacular ou de alguma tremenda experiência. Acontece num dia como os outros quando o paciente sente alguma coisa que antes amarrava-o ao passado. Aqui está um fim de neurose nas palavras de um paciente: "Eu não sei bem o que esperava de tudo isso. Acho que desejava alguma coisa dramática para compensar todos os anos de infelicidade. Talvez esperasse tornar-me aquela minha fantasia neurótica, aquela
pessoa especial que afinal conseguia ser amada e apreciada. E afinal só encontro eu mesmo..." E aí temos o seu eu livre da neurose.
Kathy O que se segue é uma parte do diário de várias semanas de Terapia Primal de uma mulher de vinte e cinco anos. O fim do diário é mostrar ao leitor o que se passa com os pacientes no tratamento do dia-a-dia. Essa mulher procurou a terapia porque estava tendo alucinações resultantes de uma "triste viagem" no LSD. As alucinações persistiram durante meses depois dela haver tomado a droga. Atualmente sua terapia já terminou assim como todos os sintomas. Ela se considera uma outra pessoa. O que se segue é um relato de minhas primeiras cinco semanas em Terapia Primal. Estas notas, sem contar pequenas mudanças feitas somente com o intuito de torná-las mais claras, são o que escrevi depois de cada sessão. Passei os meus primeiros dez anos morando com minha mãe, meu pai, uma irmã mais velha e um tio. Nessa altura meus pais divorciaram-se e até aos dezesseis anos eu morei com minha mãe, minha irmã e outra mulher. Casei-me, mas ao fim de dois anos divorciei-me quando tinha vinte e três anos. Cursei quatro anos de universidade mas não me formei em coisa alguma. Tenho vinte e cinco anos. Pouco antes de iniciar a terapia eu comecei a ter fantasias visuais de facas e navalhas que vinham contra minha cabeça. Comecei a entrar em pânico quando dirigia o carro imaginando que outros carros iriam colidir com o meu. Nunca deixei que as facas me atingissem naquelas fantasias mas fiquei com medo que alguma coisa me acontecesse e resolvi procurar ajuda. Quarta-feira No começo é penoso lembrar minha infância. Fico chocada ao verificar que quase não tenho lembranças. Lembro-me sentindo-me abandonada e rejeitada na escola de meninas para onde fui enviada com minha irmã quando mamãe ficou doente. Tinha uns quatro anos e lembro-me que sentei no chão e chorei sem parar. Lembro-me que a casa em W... era escura e morei ali até os cinco anos. Vim para a cada de D... pensando se mamãe estaria lá. Ela me contou que quando chegou encontrou-me sentada acendendo fósforos. Eu mentia muito, roubava coisas nas festas, cortava as roupas de minha irmã e hoje, pela primeira vez, vi a relação de tudo isso. Eu enganava minha mãe e meu pai porque não me davam o que eu queria, porque estavam me enganando. Eles não estavam lá para cuidar de mim, não eram reais. Fingiam que tudo estava bem quando não estava. Que nós éramos uma
família, e não éramos. E eu fingia também. É por isso que sempre me lembrei de uma infância feliz. Eu fingia que era uma menina feliz porque não podia enfrentar a realidade. Lembro de haver visto papai chorando em D. Então, e depois da separação, ele andava sempre triste, parecia estar sofrendo. Na noite em que voltei de um acampamento de verão, tinha então dez anos, antes de saber da separação, ele disse-me o quanto me amava e parecia sofrer muito, mas queria firmar o laço entre nós antes de nos separarmos. Mas mamãe não se abriu. Fingia que eu precisava dela. Eu sentia-me perdida. Alguma coisa não era real... talvez tudo. Eu não contava a ninguém como me sentia. Ia enterrando tudo lá dentro e queimava fósforos. Quando chegou o fim da sessão eu estava tonta e fraca. Voltei para lá, para a minha infância, um pouco... mas tudo está tão desligado e estranho. Como pode ser que me lembre tão pouco? É como se não tivesse estado lá. Quinta-feira O princípio foi duro hoje. Uma luta para encontrar lembranças que não estavam lá. Começo a entrar em pânico... por que não consigo lembrar-me? Estou perdida. Primeiro senti-me como sou agora, depois perdida como uma criança. Tentei chamar mamãe. Sentia-me irreal. Chamei e senti que ela me segurava. Mas não sentia conforto com aquilo, apenas a sensação de estar só antes dela chegar. Comecei a perceber que estava empurrando com as mãos. Sentia-me um bebê no berço batendo as mãos. Senti-me só. Estava realmente lá na escuridão da casa em W. onde estava o berço. Era um bebê solitário. Queria mamãe mas não conseguia chamá-la. Então percebi que nunca a chamara mesmo quando era um bebê. Fiquei quietinha sentindo aquela tristeza e chorei. Então senti um frio horrível e fiquei na posição fetal para aquecer-me. De repente senti como se estivesse caindo no espaço. Estava flutuando, aterrorizada. Tinha medo de cair e bater contra alguma coisa ferindo-me. O meu corpo ainda todo enroscado começou a contrair-se para fora e para dentro. Deixei de perceber o que estava acontecendo mas sentia medo, lutei e chorei alto. Finalmente senti-me espremida passando por uma área apertada. Sentia esfregar-me nos lados. Tinha medo que quando saísse poderia me ferir, mas quando saí percebi então que estava nascendo e que tudo correra bem. Saí para fora e senti um ar fresco em torno de mim. Meu corpo desdobrou-se um pouco. Senti-me feliz e exausta. Tinha nascido! Quando estava ainda no útero eu sentia que percebia tudo embora ainda não fosse a hora para perceber. Era como se eu estivesse passando 14 por alguma coisa que só devia ter acontecido comigo dormindo. Art disse que eu fiquei contraindo-me durante quinze minutos, mas para mim parecia apenas uns 14
Nota do autor: Art é o apelido que meus pacientes usam para me chamar e por isso tornará a aparecer em outras histórias de casos.
instantes. É fantástico. Vi todos os meus temores das alturas, de quedas, do oceano. Olhei lá fora pela janela e em volta de todo o consultório. Tudo parece diferente... como se alguma coberta houvesse sido retirada. Saio do consultório sentindo-me ótima. Esta noite, ao ouvir música, comecei a chorar. Sinto como meu pai estava triste, como ambos estavam tristes e como eu era uma menininha triste. Tentei lembrar-me de mamãe. Vejo-a no piano, mas o seu rosto está sempre dissolvendo-se em alguma coisa de histórias de quadrinhos com horrores. Tento vê-la agora, mas continuo vendo o seu rosto triste e doente de vinte anos atrás. Sinto-me desolada quando percebo, pela primeira vez, o quanto ela estava doente e digna de pena. Sexta-feira Começo vendo mamãe no piano, como vi na noite passada, e, mais uma vez, o seu rosto se dissolve num horror. Não consigo fixar a imagem. Depois vejo-a com uns trinta anos. Ela olha de soslaio, paranoica, apavorada. Grito "ela está louca". Choro sem parar. Ela está louca e irreal. Uma máscara. Ela não estava lá comigo quando eu era criança porque estava louca. Ela tem que ficar sempre andando para não ficar louca. Eu devo tê-la levado à loucura obrigando-a a ficar em casa com minha irmã e comigo. Pobre mamãe. De repente fiquei pequenina olhando para minha família. Papai triste, mamãe louca e apavorada, minha irmã zangada... todas nós sozinhas. Tentei melhorar a situação dançando loucamente e fazendo graças. Estava atônita. Era muito pequena para compreender ou aceitar. Ninguém ajudava uma menininha. Sentia a loucura de mamãe. Compreendia quando fingia. Ela acha que estará bem desde que mostre-se "sadia" e que faça coisas "saudáveis". Foi só o que a sua terapia fez por ela. Chorei por minha irmã que também tentava mostrar tudo certo com seus fingimentos. Sábado Ainda não tenho recordações da infância e então passei a falar de minha aventura com a droga. As primeiras duas viagens foram alegres, cheias de êxtases, místicas, completamente irreais e muito visuais. Durante os três meses entre a segunda e a terceira, eu comecei a usar muitas anfetaminas e codeína. Na terceira vez senti-me infeliz e tomei-a para sentir-me melhor. Tinha medo de tomar sozinha, mas afinal tomei. As primeiras duas horas foram como as outras. Chegaram alguns amigos que ficaram pouco tempo. Quando saíram fiquei ansiosa. Tentei lembrar-me por que tinha medo de tomar sozinha mas só consegui ficar confusa. Não podia lembrar o que tomara. Não conseguia lembrar nada que fosse real. As alucinações
começaram a ficar apavorantes e me dominaram. Os minutos não tinham fim. O relógio dissolvia-se. Minha cabeça não funcionava. Não conseguia lembrar quem eu era. Não me restavam referências. Fiquei louca pensando que nunca mais voltaria ao mundo real. Apavorada como estava, ainda assim vi que conseguia usar o telefone, e chamei minha irmã para vir socorrer-me. Fiquei tão aliviada só de ouvir a sua voz verdadeira que já me recuperara um pouco quando ela chegou. O resto da viagem foi alegre e triste alternadamente, mas eu sabia que nunca mais seria a mesma depois de haver passado por aquela sensação de loucura. Três semanas depois, com muitos remédios no meio, despertei sentindo-me muito deprimida. Fiquei estirada na praia o dia inteiro, queimei-me muito e senti-me terrivelmente deprimida. Fui para a casa de minha mãe e comecei a chorar histericamente sentindo falta de ar. Ela deu-me um tranquilizante que me fez dormir. Despertei ainda chorando. No dia seguinte ela levou-me ao Instituto Neuropsiquiátrico da Universidade. Depois de falar com o especialista lá ele garantiu-me que eu não estava realmente doente e sim apenas reagindo às drogas que tomara. Se não tomasse mais voltaria à minha vida normal, ficaria boa. Ele deu-me uma dose cavalar de algum remédio e depois aconselhou-me a voltar ao trabalho o mais cedo possível evitando sempre ficar só. Tudo que ele me aconselhou me afastou ainda mais de minhas verdadeiras sensações e procurei esconder tudo outra vez justamente quando estava pronta para me abrir e sentir. Continuei altamente deprimida, chorando e dormindo durante cerca de um mês com a respiração muito acelerada. Depois comecei a me recompor outra vez comprimindo meus sentimentos para poder funcionar. Durante a sessão de hoje eu verifiquei que ficara transtornada porque não podia enfrentar a sensação de solidão que a droga deixara a descoberto. As minhas antigas fantasias de facas e navalhas tinham razão de ser. Se chegassem a me alcançar poderiam abrir-me as entranhas deixando escapulir as sensações. O medo de ferir-me é o mesmo que aquele de expor-me e sentir a dor que sepultei. Estou começando a sentir tudo que há em mim de dor e tristeza. Vinte e cinco anos sepultando a dor, o medo e a solidão. Percebo que quando sinto falta de ar é porque estou lutando para manter os sentimentos sepultados quando eles começam a subir, como aconteceu depois da viagem com a droga. Choro, choro, choro. Parece-me que não vou mais parar. Sinto a dor na minha cabeça cheia. Quero vomitar tudo. Estou apavorada e solitária. Percebo agora que nas duas primeiras viagens da droga e nas outras ocasiões em minha vida, quando sentia-me bem apesar de estar só, era somente porque conseguira ocultar bem meus sentimentos. Fingia que tudo estava bem, da mesma forma que fazia quando era criança, porque não podia encarar o desamparo e a solidão. Mesmo agora, depois da sessão, estou fingindo que não estou sentindo nada porque não consigo me resignar a ficar só o dia inteiro. Continuo a sepultar meus sentimentos exceto durante as sessões.
Terça-feira Hoje cheguei aqui com fortes sensações no estômago. Soltei gritos terríveis, mas não falei. Finalmente percebi que estava aterrorizada por estar só. Mamãe e papai não estavam ali. Não conseguia vencer sozinha. Era muito pequena. Vi mamãe como ela era depois de sair do sanatório quando eu tinha quatro anos. Ela era como agora, falando com as pessoas, mostrando-se alegre, falsa, uma máscara. Depois percebi por que tanto me repugna quando ela mostra seu corpo e sua fealdade, porque eu sou igual à ela, toda escondida com uma máscara cobrindo meus sentimentos e pavores. E esta a razão por que eu via a sua dor quando criança embora não pudesse enfrentá-la naquela ocasião. Minhas pernas são gordas porque eu fui empurrando meus sentimentos para baixo até chegar lá, como também ela fazia. Meus seios são grandes porque eu fingia de crescida. Sinto tensão agora em todo o corpo e quero livrar-me dela. Mergulho na tensão e sinto que é dor. Toda a minha tensão é a dor que não estou sentindo. Sinto-a agora e choro. Também descobri hoje que toda minha preocupação com minha irmã é uma preocupação por mim mesma, embora deslocada, porque ela deixou transparecer a sua mágoa e dor ao passo que eu as escondi dentro de mim. Quarta-feira Hoje de manhã cheguei com o estômago embrulhado, nervosa e perturbada. Tudo que falava parecia errado e então mergulhei em minhas sensações. Era pequenina e estava no berço. Olhei e vi mamãe ali sozinha comigo. Ela tinha o ar de sofrimento, de terror e de loucura. Eu fiquei horrorizada e senti-me igual a ela. Eu era um bebê mas estava vendo ela ali como era. Era triste demais. Eu era muito pequena para poder compreender. Aquilo não era justo. Não conseguia aguentar. Era aquela a razão para eu empurrar para baixo todos os meus sentimentos logo de saída. Um bebezinho sendo obrigada a ver a mãe louca e desamparada. Depois tentei lembrar-me de papai. Pouco consegui mas senti-me maior. Eu era um bebezinho no berço que se parecia primeiro com uma incubadora porque tinha uma coberta de plástico. Só via escuridão e sentia necessidade de papai para me segurar. Então dei com ele ali de pé muito mais alto do que eu. Era uma estátua olhando para mim. Não conseguia comunicar-me com ele. Chamei baixinho mas ele não me ouviu. Ele não me ouvia mesmo. Gritei perguntando-lhe por que não me respondia. Não podia mover-me. Não podia gritar. E aí vi mamãe perto dele. Eram como duas estátuas de cera, cascas vazias olhando para mim sem me verem nem sentirem. Então vi minha irmã ao meu lado com um sorriso estranho no rosto esticando o braço para cutucar-me. Queria que todos fossem embora. Eram horríveis e irreais. Era apavorante. Fechei os olhos e virei-me de lado para eles pensarem que eu estava dormindo e irem embora.
Minha infância era horrível e apavorante desde o início, mas eu escondia-me dela. Endureci o queixo contra aquela sensação, e ainda estou assim. Quinta-feira Comecei outra vez com uma tensão no estômago. Comecei como um bebê sentindo grande necessidade mas sem palavras. Tentei chamar mamãe mas não adiantou. Depois vi-a mas não quis que ela me segurasse porque parecia louca. Eu queria que ela e papai não fossem loucos ou de cera. Sentia-me triste porque não podia sentir apenas a necessidade sem também querer que eles mudassem primeiro. Pedi-lhes para não serem loucos e pareci muito real. Depois senti a raiva que estava por baixo daquela realidade. Gritei-lhes, então, "precisei de vocês e não recebi nenhuma ajuda ... vocês estavam muito loucos." Quem vai querer chamar seus pais para ver chegar duas pessoas malucas? Pensei que a raiva iria durar sempre, mas só com um grito ela desapareceu. Senti-me triste todo o dia e noite depois da sessão. Senti-me ludibriada e encerrada na minha tenra infância infeliz. Sexta-feira Outra vez eu era pequenina e sentia necessidade de mamãe e papai. Tinha medo e sentia frio. Estava ali paralisada, com medo que eles não cuidassem de mim, não me aconchegassem. Não podia chamar porque ainda não conseguia encará-los. Quando gritei por eles e finalmente gritei mesmo como um bebê senti doer meu ouvido esquerdo. Ele talvez abriu-se porque senti o grito atravessar-me o ouvido. Era um vagido de bebezinho que mais soava o de um cabritinho quando saiu. Quando estava ali deitada, gelada, senti como estava apertado meu estômago fazendo força contra a sensação. Até hoje os músculos de meu estômago estão tensos. Segunda-feira Sinto dores no estômago, cãibras, dores de cabeça todo o fim de semana e hoje de manhã. Senti um peso no estômago como sempre tive e que sempre me faz lembrar do passado. Tentei penetrar naquela sensação e senti-me tonta como quando fico alta ou com febre. Uma sensação de vertigem. Meu braço esquerdo começou a ficar dormente como se alguém o segurasse com muita força apertando os músculos. Gritei "deixe-me ir, deixe-me ir!" mas não adiantou. De repente a tonteira pareceu como se alguém estivesse balançando muito meu carrinho de bebê, procurando amedrontar-me. Meu cérebro dizia-me que poderia ser minha irmã, mas aí eu vi mamãe com seu rosto alterado. Aquilo não parecia estar certo. Apalpei
novamente meu braço. Sentia-me enjoada. Meus pais estavam me segurando, me torcendo, metendo-me medo. Dei um grito e soltei o braço. Senti o sangue afluir. Estava aterrorizada e confusa. Não compreendia o que tinha acontecido. Finalmente gritei "não compreendo" ... e pronto. Tinha perto de cinco anos e sentia-me confusa a respeito de meus pais. Não estavam cuidando de mim. Tudo que faziam confundiame e magoava-me. Estavam loucos e me tornavam louca. Odiava-os por isso, mas precisava deles. Não me amavam. Fingi que estava louca dançando e fazendo caretas para ocultar o sentimento. Era pequena demais para poder compreender, mas compreendia melhor do que o bebê que estava dentro de mim. Era terrivelmente doloroso. Minha cabeça estava sempre cheia, meus ouvidos, nariz e garganta, toda aquela porcaria e confusão entulhada lá dentro. Gritei como bebê e senti-me um pouco melhor. Quanto sentei-me lembrei-me de uma velha melodia e cantei-a baixinho quase sem sentir. Talvez eu quisesse que fosse assim mesmo tão simples. Terça-feira Comecei a sentir um pouco imediatamente. Estava paralisada de pé na porta entre a cozinha e a sala de jantar olhando para a sala de estar onde estavam papai e mamãe, mas logo depois não estavam mais. Eram transparentes. Preciso deles mas não posso chamar. Estou paralisada entre querê-los e ter medo de sua irrealidade. Estava só, muito só. Fingia que não precisava deles. Nunca lhes pedia coisa alguma. Nunca pedia a papai para me cortar o bife como fazia minha irmã. Hoje eu chamei. "Papai, onde está você? Eu não vejo você aqui em casa." Senti então que queria falar com mamãe, queria dizer a ela que minha cabeça está doendo. Disse afinal, e foi muito real. Também disse "eu precisava de você" que se transformou em "eu preciso de você." Senti que por mais luzes que se acendessem na casa ela ainda estava escura e vazia. Eu era só e pequenina e fingia que era grande e independente. Eles realmente não estavam lá, para mim, mesmo quando estavam. Sentia-me enganada. Por que você não cuidou de mim? Mesmo que eu gritasse e batesse com os pés eles não me ouviriam nem tampouco me veriam. Quarta-feira Senti-me ansiosa hoje de manhã. Comecei a lembrar-me mais claramente da casa em D. Depois senti-me pequenina. Fiquei de pé atrás da porta com medo da casa vazia. Não conseguia respirar e senti que não poderia andar pela casa mas fiquei imaginando todas as dependências lá embaixo. Finalmente comecei a andar pela casa e até mesmo lembrei-me do que havia nos armários. Estava realmente com medo de ir lá em cima, com medo de descobrir algum segredo horrível que me causava tanta ansiedade. Fiz força para subir, degrau por degrau. Olhei no quarto de meu tio... nada ali. Atravessei o hall para o quarto de meus pais com o coração aos
saltos. Na porta, levei um susto quando vi o quarto vazio e percebi que era assim mesmo. Estava com medo porque a casa estava vazia. Não havia lá ninguém para mim. Eu estava só. Nunca me sentira tão triste. Percebi que nunca antes correra toda a casa. Não podia enfrentar o medo e a dor então, só ... fui sentar-me em frente da TV olhando-a com raiva. Queimava os fósforos para aliviar a raiva, e quando mamãe chegou em casa eu fingi que nada havia de errado. Por dentro reagi como um bebê mas não quis fazer o mesmo por fora. Quinta-feira Durante toda a noite passada estive alarmada sem poder respirar, com o estômago apertado como cólicas. Não podia ter a sessão hoje de manhã e decidi fazer sozinha. Continuei vendo a casa em que tínhamos morado quando eu tinha dez anos. Olhei no quarto de mamãe e de papai e senti vontade de fazer uma violência, raiva ... imaginei uma briga mas não era real. Finalmente fui ao escritório. Lembreime da noite que voltara do acampamento quando percebi que havia alguma coisa errada. No dia seguinte perguntei a mamãe se eles iam se divorciar. Naquela noite pensei ouvir eles brigando lá em cima enquanto eu estava cá embaixo. Lembrandome de papai comigo quando eu estava tomando banho dizendo que gostava de mim, muito triste deixando eu perceber pela sua expressão que havia alguma coisa errada. Chorei. Hoje eu creio que chorei de dor durante duas horas. Sabia naquela noite que ia acabar o fingimento. Que logo seria inevitável. Não havia família. Tinha que ver que não estava certo, nunca estivera ... depois de dez anos de fingimentos de todos nós eu entrei em pânico. Não podia aguentar. Queria pedir a eles ... gritei não, não, não. Toda a dor que escondera em criança tinha que esconder outra vez naquela noite. Mamãe poderia ter feito sim ... se ela tivesse continuado a fingir todos nós teríamos fingido também. Era horrível. Era o fim do mundo ... de nosso mundo de fingimentos. Sexta-feira Ainda sinto dor de cabeça e de estômago. Não consegui expelir tudo ontem. Repito tudo na sessão de hoje. Só o que faltava era o grito porque não tive coragem de gritar em casa. Gritei "não" uma porção de vezes e senti-me aliviada. Segunda-feira Ainda me sinto mal na maior parte do dia. Na sessão eu mergulhei bem no fundo de minhas sensações de solidão procurando encontrar o terror, mas ele está todo na antecipação. Desde que sentisse a solidão em lugar de repeli-la, era o mesmo que sentir-se só e triste. Não é agradável mas pode-se suportar. Fui até a
minha dor de estômago trazendo-a para a cabeça, mas não sabia o que sentia. Comecei a chorar muito para ver se conseguia livrar-me da sensação. Gritei por mamãe: "Eu preciso de você. Tenho medo. Cuide de mim." Não adiantou. Entrei em pânico. Não ia conseguir livrar-me. Senti o nariz obstruído e fiquei sufocada. Não sabia bem o que sentia. Comecei a ver a cabeça rodando, fui ficando confusa e louca. Sentia-me como na viagem da droga. Tentei dizer alguma coisa simples, mas alguma coisa que não podia tolerar. Continuei a procurar as respostas e fui ficando zangada. Finalmente desisti e voltei para casa com medo e confusa. Terça-feira Resolvi voltar à Primal para ver o que não podia enfrentar. Todos os gritos que dera e as necessidades que sentira não tinham ligação. Voltei para o dia seguinte à noite que viera do acampamento. Mamãe e eu íamos para Glendale de automóvel. Perguntei se tinham pretendido divorciar-se. Senti-me gelada antes dela responder, comecei a flutuar para fora do carro, sentindo-me tonta, caindo. Percebi que estava procurando fugir à reconstituição daquela situação. Fiz força para voltar a ela. Já estava de volta no automóvel olhando-a de frente. Tornei a perguntar e senti um aperto no estômago. Ela disse sim. Eu afundei como se recebesse um soco no estômago. Impossível. Ela disse sim. Senti-me empurrada contra a porta, eles estavam me empurrando, ela estava. Finalmente percebi como percebera então. "Ela não me ama." Se ela me amasse, então não diria sim. Mentiria para mim. Me protegeria, seria irreal para mim. Precisava que ela dissesse não. Aquele era o sentimento que eu não podia enfrentar. Com vinte e cinco anos eu ficaria louca antes de reconhecer que desde os meus dez anos de idade, e provavelmente durante toda a minha vida, eu sentira que minha mãe não me amava. Sábado Comecei chorando. Vi a casa na rua O depois do divórcio. Meu quarto de dormir ... eu deitada na cama sentindo-me muito só. Gritei e chorei chamando mamãe. Não podia suportar sentir-me tão só. Continuava a sentir que ela não me amava, pois senão não teria havido o divórcio. Esfacelou-se a fantasia. Quarta-feira Comecei com o estômago embrulhado e a garganta apertada. Via a casa na rua B. Corri a casa procurando alguma coisa. Vi mamãe e minha irmã em lugares diferentes mas elas estavam imóveis como estátuas. Queria alguma coisa delas mas não conseguia. Estava isolada e só. Precisava realmente ter alguém comigo. Mamãe. Precisava de seu amor. Sentia dores nos braços e na cabeça. Depois senti-me
paralisada como um bebê. Eram as únicas duas maneiras que eu sabia para ter o amor. Vi os três na sala. Pareciam doentes, os olhos mostravam medo. Queria fechar a porta como sempre fazia. Fui para o meu quarto. Escondi-me lendo. Percebi a ligação eterna que fiz entre o amor e a dor sendo um bebê desamparado. Nunca apaixonar-se por alguém a não ser que inclua a dor nessa luta. E a necessidade, devendo dinheiro a mamãe e a papai... tinha que tirar alguma coisa deles. Quando tentei pedir amor vi que minha boca estava paralisada. Finalmente consegui pedir uma porção de vezes. Quinta-feira Minha garganta está tão apertada esta manhã que não conseguia falar quando cheguei. Sentia que toda a dor de minha infância era como se fosse um soco no estômago. Gritei. "Mamãe por que você não me ama? Ame-me por favor!" Senti que queria vê-la cuidando de mim, protegendo-me. Depois, "mamãe, por favor, não me faça sentir dor," e isso foi repetido muitas vezes. Nada adiantava. Aí então veio, "você está me magoando, estou enjoada, você está fazendo eu ficar enjoada." Rolei sentindo-me nauseada. "Então você não pode me ajudar?" Mergulhei naquela sensação ... aterrorizada por estar só e sentindo a dor. Consegui expelir um pouco para fora do estômago. Só me sentia muito triste, muito mais dor e terror do que jamais sentira. Chorei ainda mais. Depois senti meu corpo formigar, o estômago ainda não muito bom mas bem mais calmo por dentro de meu corpo. Sentei-me e passei a mão no rosto e vi que estava diferente como nunca realmente o sentira antes. A minha máscara aterrorizada já cedera. Sexta-feira Ainda sinto a mesma coisa no estômago e na garganta. Finalmente hoje senti realmente a dor e a solidão. Mas não consegui estabelecer uma ligação. De onde vem essa imensa dor? Não consigo expulsá-la. Sinto-a finalmente sempre e não apenas durante as sessões. Mas sinto que preciso livrar-me dela. Sábado Aquela sensação continua lá no grupo. Finalmente solto um grito que não consegui controlar. Choro sem parar. "Eu sabia que mamãe não estava lá para mim durante todo o tempo. Eu sabia que ela não podia remediar a minha solidão." Um alívio momentâneo por aquilo haver saído na hora certa. Mas não era tudo. Apenas mais um outro pedaço da Dor.
9 - A RESPIRAÇÃO, A VOZ E O GRITO
Freud acreditava que os sonhos eram "a estrada real para o inconsciente." Se é que há essa "estrada real", ela talvez se encontre na respiração profunda. Para alguns pacientes, o uso da técnica de respirar fundo, junto com outros métodos, realmente ajuda a liberar a tremenda força da Dor dentro do corpo. Um estudo feito cerca de uns vinte e cinco anos atrás também mostra a 15 possibilidade de alguma ligação entre a respiração e o aborrecimento. Um grupo de pessoas às quais se havia pedido que pensassem em coisas agradáveis foi subitamente convidado a pensar em coisas desagradáveis. A sua respiração tornouse mais acelerada. Mais recentemente, uma investigação sobre o problema da hiperventilação chegou à conclusão que as deficiências da respiração estavam muito ligadas à ansiedade. Além disso, durante os testes feitos a esse respeito o pesquisador fez pressão sobre a parte mais baixa do peito com a palma da mão para provocar uma inspiração mais profunda. Em quase todos os casos isso teve como resultado logo a seguir uma demonstração de emoção junto com choro e a revelação 16 de importante material histórico. Wilhelm Reich fez a observação que a inibição da respiração estava associada à inibição de sentimentos: "Pois tornou-se claro que a inibição da respiração era o mecanismo psicológico da supressão e repressão da emoção, e consequentemente o 17 mecanismo básico da neurose. Reich acreditava que os distúrbios respiratórios nos neuróticos eram o resultado de tensão abdominal e prosseguia descrevendo como isso produz a respiração insuficiente e como, quando apavorada, uma pessoa pode suster a respiração por meio de constrição do abdômen. Assim, a técnica de respiração profunda é usada durante a Terapia Primal para trazer o paciente para mais próximo de seus sentimentos. Muitos pacientes meus referiram-se a diferenças na respiração depois da terapia, e somente depois de haverem começado a respirar fundo é que perceberam como era insuficiente a sua respiração anterior. Dizem que agora já sentem como "o ar vai até o fundo" quando respiram. Dentro do contexto Primal isso significa que não mergulham em suas Dores no decorrer dos acontecimentos comuns, e mostra que uma das funções da 15 J. E. Finesinger, "The Effect of Pleasant and Unpleasant Ideas on the Respiratory Pattern in Psychoneurotic Patients," American Journal of Psychiatry, Vol. 100 (1944) 16 17
B. I. Lewis, "Hyperventilation Syndromes; Clinicai and Physiological Evaluation," Califórnia Medicine, Vol. 91 (1959). Reich, op. cit.
respiração curta é evitar a saída da Dor profunda. A respiração adequada das pessoas deveria ser instintiva, a coisa mais natural do mundo, mas mesmo assim, os neuróticos que tenho visto raramente respiram direito. Isso é porque recorreram à respiração para empurrar para baixo as sensações. Em resumo, a respiração torna-se parte do sistema anormal. A respiração neurótica é um bom exemplo de como o sistema irreal suprime o real, porque depois de sessões Primais os pacientes automaticamente passam a respirar profundamente, isto é, corretamente. Uma vez que a respiração neurótica é destinada a resistir à Dor, quando se força o paciente a respirar profundamente isso muitas vezes ajuda a remover a tampa da repressão. O resultado é a emissão de força explosiva, alguma coisa que antes estava espalhada por todo o corpo na forma de pressão alta, temperatura elevada, mãos trêmulas e outras coisas mais. As técnicas da respiração Primal tornam-se a via regia para a Dor pois vai contribuindo para levantar o bloqueio das lembranças. Nesse sentido muito importante elas representam o caminho para o inconsciente. É tentador diminuir a experiência Primal considerando-a como um simples resultado do síndrome da hiperventilação, ou seja, respirando mais do que o sistema exige tendo como resultado um aumento na oxigenação e uma diminuição de bióxido de carbono na corrente sanguínea, mas se fizermos isso estaremos desprezando dois fatores importantes. O primeiro é que as pesquisas mostraram que a sensação de dor, ou aborrecimento por si, aprofunda o processo de respirar, um fenômeno notado pelos investigadores científicos que não encontram explicação para ele. Eu acredito que a Terapia Primal explica a ligação da Dor com a profundidade da respiração. Segundo, em quase todos os casos de hiperventilação existe o acompanhamento de tonteiras. Isso não acontece durante uma Primal. Aliás, se o paciente se sentir tonto nós sabemos que não está tendo uma Primal. Eu não acredito que as técnicas respiratórias em si tenham qualquer poder intrínseco para transformar uma neurose. Elas podem aliviar a tensão por algum tempo como acontece com um suspiro, mas então elas seriam consideradas uma defesa como qualquer outro aliviador de tensão. Na maioria dos casos, as técnicas respiratórias não são necessárias ou então são raramente usadas depois dos primeiros dias da terapia. É preciso lembrar que estamos em busca da Dor e que a respiração é apenas um dos muitos artifícios que usamos para chegar a ela. A respiração e a voz que a domina parecem ser um bom indicador da neurose. Muita gente nervosa quando entrevistada na televisão geralmente sente falta de ar e não consegue respirar direito. Isso pode ser devido a alguém que tenta uma imagem que não está de acordo com a realidade.
O paciente tenso que vai começar a sua terapia pode bem encontrar-se nas mesmas condições. Mostra-se frequentemente apavorado e chega lambendo os beiços, engolindo em seco e sentindo falta de ar. Depois que o terapeuta Primal começa a atacar o seu sistema de defesa a falta de ar aumenta. A Dor que parece subir do estômago embrulhado não consegue passar além da barreira do peito que parece estar sendo apertado. A respiração profunda está começando a derrubar a barreira. Pede-se ao paciente que aspire fundo e que diga "AAAH", e logo que isso se liga à sensação que vem subindo o paciente fica entregue a si mesmo. A força embaixo, encontrando uma abertura, parece empurrar para cima automaticamente e o paciente entra num estado a que chamo de conflito respiratório. É nesse ponto que está para acontecer o rompimento mais importante. O paciente está então em vias de se transformar de predominantemente irreal para predominantemente real. O conflito respiratório geralmente tem lugar depois de algumas sessões Primais, logo antes da principal ligação que unificará a pessoa mantendo-a daí em diante inundada de sensações e insights. O conflito respiratório é um estágio involuntário na Primal em que o paciente começa a arquejar tanto que chega a parecer um animal. A respiração começa a se tornar cada vez mais rápida e pesada até que em alguns casos fica muito parecida com o arquejar de uma locomotiva, mas o paciente está tão preocupado com as sensações que muitas vezes não se dá conta da natureza de sua respiração. O conflito respiratório parece ser o resultado do impulso vindo de baixo de todas as sensações reprimidas contra as forças neuróticas que ás comprimem. O processo respiratório pode durar quinze ou vinte minutos e a pessoa parece estar numa corrida da qual depende sua vida e para a qual precisa de todo o ar que consome. Dentro de circunstâncias comuns o paciente pode desmaiar. Logo que a respiração assume vida própria o terapeuta nada mais tem a fazer senão observar. O conflito respiratório é um sinal patagnomônico que a Primal já começou. Os pacientes dizem que se sentem impotentes diante da invasão da Dor. Eles sabem que poderiam detê-la se quisessem, mas nem uma só vez ainda na Terapia Primal houve qualquer paciente que fizesse isso abortando sua Primal. Quando a respiração fica mais forte e profunda nós sentimos que o clímax está distante apenas alguns segundos ou minutos. O estômago treme e o peito arfa; as pernas dobram-se e desdobram-se e a cabeça vira de um lado para outro. Ele mostra-se, em geral, como se estivesse fugindo à sua Dor. De repente, numa imensa convulsão, a ligação parece haver se estabelecido e isso explode pela boca na forma do Grito Primal. Ele então já respira profunda e tranquilamente. Houve um paciente que disse estar voltando à vida com aquela respiração. Outros sentem-se "refrescados", "limpos" ou "puros".
Depois da ligação principal nós vemos uma respiração fácil, muito diferente da que o paciente tinha quando começou a sessão. Um paciente que era atleta de corrida rasa disse que nunca antes respirara tão bem em sua vida. O Grito apresenta uma série de efeitos marginais. Pacientes que antes não tinham coragem para tomar uma decisão em casa experimentam uma sensação de poder e autoridade. O Grito em si já parece ser uma manifestação de liberdade. Quando ouvimos as gravações de sessões Primais logo percebemos a mudança na respiração que acompanha os vários estágios da sessão. Em raras ocasiões, há pacientes que fingem o Grito que então parece vir dos pulmões e sempre se parece com um guincho. O Grito falso parece ser a continuação de uma falsa esperança. Uma vez que o Grito Primal significa o fim de uma luta, é bem pouco provável que seja emitido por alguém que ainda esteja lutando. Embora se fale frequentemente em sensações profundas, nós raramente dizemos o que esse "profundo" pode significar. Pela minha experiência, eu acho que os "sentimentos profundos" envolvem todo o organismo, particularmente a área do estômago e do diafragma. Muita gente percebe logo no princípio da vida que seus pais não gostam de ver os filhos exuberantes e cheios de vida, e então Togo aprendem a viver quase com a respiração suspensa com medo de dizer ou de fazer alguma coisa errada, de ser barulhento ou rir alto demais. Cedo ou tarde esse medo estrangula o sentimento numa garganta apertada, num peito comprimido ou num estômago embrulhado. Em vista de todo esse processo, a voz torna-se mais aguda porque é uma voz que não está ligada a todo o corpo. Em muitos casos, a fala do neurótico pode ser comparada com a do boneco do ventríloquo, com a boca movendo-se mecanicamente, sem parecer humana e como se estivesse desligada de todo o resto do sistema. Essa voz é muitas vezes trêmula pois repousa numa camada de tensão e não num sólido alicerce de sensação. A boca também parece participar muito da neurose. Os pacientes que passam pela Terapia Primal dizem perceber uma sensação diferente nos lábios. O que quero dizer é que todo o nosso sistema parece refletir a Dor. Há muita gente que quando fica zangada aperta muito os lábios e assim fica até que volta ao normal. Não é somente no rosto que se nota diferença depois das sessões Primais. Também a voz se modifica. Esse é talvez um dos sinais mais óbvios e notáveis de alguém que já passou pela terapia. As mulheres que antes falavam fino como se fossem criancinhas, passam ater uma voz mais cheia e profunda. A fala dos neuróticos muitas vezes não mostra uma nuance porque ela reflete um constante estado de tensão. Um paciente disse que costumava falar aos arrancos, sem pensar e sem sentir o que falava. Depois da Primal ele percebia o que
falava. Um paciente que tinha uma voz fina e apagada disse depois da Primal que "eu pensava que tudo em torno de mim era fino e apagado. Sentia que dentro de mim devia haver uma voz forte mas nunca tinha a coragem para usá-la." Um outro que falava pelo nariz disse: "Toda a minha vida pensei que havia algo de errado em meu nariz. Agora estou vendo que não havia nada. O caso era que eu estava filtrando meus sentimentos pelo nariz em lugar de falar abertamente." Uma indicação que a maneira de falar pode ser um bom espelho da pessoa é que ficamos ansiosos quando imaginamos estar falando com uma voz que não é a nossa. Por esta razão eu muitas vezes faço com que os pacientes de grupos troquem de voz para com isso enfraquecer suas defesas. É claro que eu considero a fala do neurótico como sendo um mecanismo de defesa. A pessoa que fala baixo pode estar fazendo assim com medo de chamar a atenção, e portanto, pode estar controlando um grito. Quando o Terapeuta Primal manda um paciente falar mais lentamente e com mais cuidado, ele está penetrando num mecanismo de defesa. Enquanto houver um bom estoque de sentimentos reprimidos, são eles que moldam e dão cor a todas as palavras que saem da boca de um neurótico, assim como também controlam a estrutura de sua boca. Quando o paciente fala durante suas primeiras horas, o que ouvimos é o funcionamento de seu sistema de defesa. Eu acho que a fala é apenas uma faceta de todas as operações de defesa da pessoa. Quando encontramos gente falando como criancinhas a minha experiência indica que devemos também encontrar imaturidade nas relações sexuais e, muitas vezes, no próprio corpo, em ambos os sexos. E assim sendo sempre que encontramos algum problema numa área, certamente iremos encontrar o mesmo em outras. A mesma coisa que inibe a voz pode também inibir a capacidade do paciente para um orgasmo completo. Vamos citar um exemplo. Um menino é criticado por tudo que diz ou faz e ao mesmo tempo, não tem permissão para retrucar ou mostrar raiva. Essa raiva suprimida permanece e vai colorir seu rosto na medida em que ele cresce. Mais tarde ele tem filhos. Todas as palavras que saem de sua boca são zangadas e são uma ameaça implícita e perpétua ao seu filho. A criança esconde então todas as facetas de seu comportamento com medo de provocar a velha raiva do pai. Sua voz torna-se medrosa e seus movimentos se restringem e isso pode afetar todos os processos do corpo, talvez até mesmo o processo do crescimento. O medo de dizer a coisa e provocar uma explosão no pai pode trazer problemas de fala na criança. Ela terá que examinar todas as palavras para fugir ao perigo e poderá ser vítima da gagueira. Uma pessoa que antes gaguejava explicou o seu problema da seguinte maneira: "A minha gagueira era realmente a minha luta. Era como se fosse o "não
eu" falando para evitar que o verdadeiro eu se manifestasse. Sempre tive que escolher cuidadosamente as minhas palavras desde que comecei a falar. No fim eu só falava o que os meus pais queriam que eu falasse. Era como se eu estivesse amarrado a eles pela boca. Eu me dava bem com eles desde que o meu verdadeiro eu não dissesse o que sentia." Esse paciente nunca gaguejou durante uma Primal já que era sempre o seu verdadeiro eu. A gagueira parece ser a prova gráfica do conflito entre os dois eus e os sintomas criados por ele. O fato dos pacientes não gaguejarem nas Primais também indica como a maneira de sentir liquida os sintomas neuróticos. Durante uma sessão de grupo, enquanto esse homem discutia seus sintomas, uma outra paciente contou-lhe que enquanto ele se agarrava aos pais com a boca ela fazia o mesmo conservando sua vagina frígida. Em outras palavras, ela estava querendo dizer que o local da luta é aquele em que a criança em crescimento focaliza a sua. Se a mulher espera ser boa e pura para os pais, a luta, ou seja a negação do sentimento, pode se canalizar para os órgãos genitais. Em outras ocasiões, como já vimos, pode ser pela boca. De qualquer forma, quando uma criança adota as mesmas atitudes de seus pais e funciona com elas em lugar de seus próprios sentimentos, nós podemos esperar que o corpo não funcione mais de uma forma real e fluida. A palavra é um processo criativo durante o qual, a cada momento, nós produzimos alguma coisa que não existia antes. O neurótico torna a criar todo o seu passado em todas as suas palavras. A pessoa normal está sempre criando um presente novo.
10 - AS NEUROSES E A DOENÇA PSICOSSOMÁTICA
A tensão é o centro das motivações do neurótico que o mantém constantemente ativo. Uma vez que a ativação é uma falsa reação, não há nenhum sinal que volte ao sistema para lhe dizer quando deve parar. Os músculos se retesam, surge a secreção dos hormônios, o cérebro torna-se alerta, tudo isso para um perigo que já não existe mais. Há uma experiência de John Lacey e seus associados que nos fornece mais 18 informação acerca dos mecanismos que funcionam na reação do corpo ao stress. O estudo tratava da aceleração e desaceleração do coração quando submetido ao stress. Verificou-se que o ritmo do coração diminui quando a pessoa está atenta e aberta a tudo que a cerca, isto é, quando ela quer aceitar tudo que se passa à sua volta, e acelera- se quando quer rejeitar. O ritmo cardíaco também torna-se acelerado durante a dor. Os pesquisadores acreditam que torna-se mais rápido para mobilizar o corpo contra o antecipado impacto da dor, e há também aumento na 19 pressão arterial. O significado do estudo é que talvez não seja a dor só que cause o aumento do ritmo cardíaco, mas sim a necessidade de rejeitá-la. Se a hipótese da Dor Primal estiver certa, daí segue-se que o corpo, especialmente o coração, sofreria com tentativas para se rejeitar tais Dores. Isso também ajudaria a explicar a existência em alta escala das síndromes de pressão arterial e cardíaca tão cedo na vida de um grande número de pessoas. Nosso corpo então está apenas trabalhando demais para combater inimigos que não são vistos nem sentidos. O coração, como músculo que é, deve estar reagindo da mesma maneira que o resto dos músculos do sistema. A tensão que é uma coisa completamente corporal deve prejudicar todo o organismo, especialmente os órgãos constitucionalmente enfraquecidos. Os anos seguidos desse stress deve combalir os indivíduos, e é por isso que aqueles que estão livres de tensões geralmente vivem mais do que os neuróticos. O sintoma que daí surge depende de muitos fatores. Um, por exemplo, é que aquilo que se torna aceitável conforme for a cultura da pessoa. Assim, nos Estados Unidos, as dores de cabeça e úlceras são muitas vezes sintomas que se explicam. Porém, mais crítico ainda é o significado simbólico do órgão ou área afetados. A 18
John I. Lacey, "Psychophysiological Approaches to the Evaluation of Psy- chotherapeutic Process and Outcome" em Research and Psychotherapy, eds. E. A. Rubenstein e N. B. Parloff (Washington, D.C. American Psychological Association National Publishing Co. 1959). 19 Ernest R. Hilgard publicou no American Psychologist de fevereiro de 1969 um estudo sobre dor e pressão arterial intitulado "Pain as Puzzle". "As condições de stress normalmente levam à sensação de dor e aumento de pressão. Desde que não se constate o aumento de pressão é quase certo que também não deve haver dor."
maior parte dos neuróticos não pode, ou não tem coragem para enfrentar os seus problemas e assim a mensagem do sentimento é simbolizada como, por exemplo, na miopia ou na asma que aparecem quando a criança não tem nem mesmo licença para respirar sozinha. Um paciente que tinha sofrido de asma em criança verificou que ela reaparecia na medida em que ele se aproximava de seus mais importantes sentimentos Primais durante a terapia. Literalmente simbólica do split neurótico é a dor de cabeça de rachar. (N. do T. Em inglês split também significa rachar.) Essa aflição é principalmente devida ao conflito entre o sentimento de um lado e a ação, em sentido contrário, do outro. Um paciente disse que "há vergonha na minha cabeça por aquilo que meu corpo sente." O neurótico então enche-se de remédios para passar a dor, sem compreender que o que ele está sentindo é a Dor Primal. As dores de cabeça se repetem porque a Dor Primal está sempre presente. Um paciente explicou o caso. "Eu costumava dizer para mamãe que minha cabeça estava matando-me, sem saber bem o que dizia. Minha cabeça estava matando-me. Eu tinha que fingir que meus sentimentos não existiam e então empilhava-os em algum lugar na minha cabeça até que sentia como se ela fosse explodir." Muitos de nós gastamos um tempo enorme matando as dores erradas, tomando remédios de toda espécie, e procurando em vão fazer desaparecer os sintomas das verdadeiras dores internas. Essas dores sintomáticas conseguiram atravessar nosso sistema de defesa para vir nos alertar, mas devido a esse mesmo sistema, o que geralmente surge é a pura dor localizada aqui ou ali, de forma que a pessoa não consegue descobrir o que lhe causa o sofrimento. Numa recente reunião da New York Academy of Science, diversos cientistas talaram sobre a possibilidade de alguma ligação entre as emoções e o câncer. Claus Bahnson, psiquiatra do Jefferson Medical College, disse: "As mais prováveis vítimas do câncer... são aqueles que não confessam suas emoções." As suas conclusões indicavam que quando os indivíduos eram vítimas de tragédias pessoais, aqueles com maiores tendências para o câncer inclinavam-se a canalizar suas reações emocionais internamente por meio do sistema nervoso. Isso, por sua vez, afetava o equilíbrio hormonal e influía no controle do desenvolvimento do câncer. Bahnson também mostrou que as vítimas de câncer, em regra geral, "não mantinham boas 20 relações com seus pais." Prosseguia dizendo que desde que tais pais não podiam ou não queriam reagir emocionalmente, seus filhos desenvolviam a tendência que preferia reprimir seus sentimentos em lugar de extravasá-los. Nessa mesma reunião houve outras conclusões corroborando essas possibilidades. W. A. Greene, da University of Rochester, encontrou em doentes de
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Claus Bahnson, Proceedings. New York Academy of Science (Primavera de 1968).
câncer um alto grau de desespero e desamparo.
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Uma particularidade interessante é que os índios Sioux que são conhecidos por darem livre vazão a todos os seus sentimentos, raramente são vítimas de câncer. A literatura psicológica está cheia de volumes sobre medicina psicossomática. Muito devemos ao pioneiro Franz Alexander pela sua obra sobre os significados 22 simbólicos das doenças somáticas. Não tenho a intenção de explorar todas as várias espécies de doenças psicossomáticas. Será bastante dizer que muitas doenças atuais que são consideradas como puramente físicas podem ser compreendidas em termos de corpos doentes ligados a um sistema totalmente doente que, dentro de circunstâncias de outra forma normais, funciona notavelmente bem e de forma saudável. A criança que tem o seu sistema físico ainda forte pode, aparentemente, suportar muita tensão. Depois de anos de uma tensão crônica os sistemas orgânicos tendem a ceder. É somente quando os indivíduos já estão chegando à maturidade, quando já se libertaram da infância, que podem ser os adultos que são física e mentalmente. Assim, a maturidade é não só dos órgãos físicos como também dos mentais. Uma mulher muito baixinha começou a crescer depois de uma Primal em que sentiu a significação de ser pequena. "Eu fiquei pequenina para que meu pai visse que eu ainda era a sua menininha para ele ter cuidados comigo. Se eu ficasse muito alta ele nunca chegaria a perceber que eu ainda era o seu bebê." Durante toda a minha carreira de terapia convencional jamais tive resultados como esse. Robert Blizzard, um pediatra de John Hopkins, chegou à conclusão da corroboração da relação que existe entre o crescimento e a estatura mental. Numa conferência em Los Angeles no dia 22 de setembro de 1969 perante a Divisão de Crianças do Centro Médico da University of South Califórnia, ele disse: "Muitos pediatras achavam que era tolice a noção que a psique poderia controlar o crescimento. Isso nada tem de tolice." Ele notou que quando uma criança de seis anos tem apenas a altura de uma de três, o nível do crescimento hormonal está muito abaixo do que deveria ser. Mostrou que muitas crianças pequenas crescem rapidamente quando são retiradas de um lar pouco satisfatório, mesmo se forem para um orfanato. Dentro de quatro a cinco dias já começarão a produzir o normal dos hormônios do crescimento, e algumas chegam até mesmo a crescer quase um palmo em um ano. Quando essas mesmas crianças foram levadas de volta ao lar anterior, logo deixaram de crescer outra vez! Os estudos feitos sobre tais lares revelaram uma grande privação em termos de amor e em alguns casos as mães chegaram a confessar que odiavam as crianças. O Dr. Blizzard diz que o único remédio para crianças com pouco crescimento é um novo ambiente. Para os adultos eu recomendaria a Terapia Primal. 21 22
W. A. Greene, idem, idem. Franz Alexander, Psychosomatic Medicine (New York, Norton, 1950).
A medida psicossomática é geralmente um problema cheio de perplexidades para o médico porque o paciente muitas vezes nem sabe que está tenso e também porque não existe nada em sua vida atual que possa indicar a causa de sua moléstia. Muitas vezes não se encontra uma causa psicológica aparente para uma moléstia repentina. Um exemplo disso é o homem próspero que, finalmente, sofre o seu primeiro ataque cardíaco. O seu médico pode atribuir aquilo ao excesso de trabalho e pode-lhe recomendar um ritmo menos intenso de vida, mas isso, justamente, poderá apressar o seu segundo ataque já que a inatividade quase que corresponde à retirada de todas as defesas, ao aumento de tensão e maior pressão interna. Assim, o segundo ataque seria o resultado de pouco ou nenhum trabalho em lugar de trabalho demais. Mais precisamente seria o resultado da pessoa não ter em que se concentrar para aliviar a tensão. Isso talvez seja a razão de mortes prematuras em indivíduos aposentados. Os médicos podem achar que a razão para os vários problemas que os pacientes trazem ao seu consultório não são psicossomáticos porque não há nenhum trauma visível. É bem possível, no entanto, que os sintomas percebidos pelo médico sejam o resultado de tensões acumuladas. A necessidade de uma medição periódica das tensões de todos nós deve ajudar bastante para a compreensão e a prevenção de muitas espécies de moléstias. Uma alta tensão continuada poderá significar a possibilidade de um desequilíbrio hormonal que seria o causador das doenças. Alguns pacientes que sofriam de hipotireoidismo antes da terapia tiveram a sua condição alterada depois dela. Já não precisavam mais tomar os remédios a que eram obrigados antes. Eu acredito que a neurose pode ser considerada um fator em quase todas as moléstias. O bloqueio de um sentimento equivale a suprimir alguns aspectos de nossa fisiologia. Raramente encontrei ainda um neurótico que seja fisicamente sadio. Os estudos recentes mostram que os indivíduos mais ansiosos são também os mais susceptíveis aos vírus. Já antevejo o dia em que a medicina não estará mais dividida entre o corpo (medicina interna) e a mente (psiquiatria). Essa divisão fez com que a medicina cuidasse dos sintomas físicos e a psiquiatria dos sintomas mentais, sem um pleno conhecimento que os sintomas são uma excrescência de um sistema psicobiológico em conflito. Em termos Primais, há muito pouca diferença entre um sintoma mental, como a fobia, e um físico, como a dor de cabeça. O sintoma é apenas uma forma idiossincrática para a pessoa resolver o seu conflito. A especialização no tratamento de sintomas representa o mesmo que tratar os seres humanos pelos seus fragmentos. Não devemos esquecer que os sintomas estão ligados aos sistemas. Se tratarmos uma úlcera ou uma depressão sem levar em conta o sistema, nós estaremos ignorando as causas. Isso não significa que devemos desprezar os sintomas, mas o alívio dos sintomas é apenas um expediente provisório.
O Desaparecimento dos Sintomas Ao passo que os sintomas como tiques, úlceras, frigidez, dores de cabeça, perversões sexuais, etc., desaparecem na Terapia Primal, devemos reconhecer que o mesmo acontece com as outras terapias. A diferença importante, porém, é que na Terapia Primal os sintomas são, geralmente, os últimos que desaparecem. Isso contrasta com a minha experiência na terapia comum onde eu algumas vezes conseguia aliviar os sintomas muito rapidamente. Isso pode ser porque a terapia comum permite que o paciente continue a funcionar normalmente e assim proporciona-lhe muitas válvulas de escape para a tensão, o que faz diminuir os sintomas. Na Terapia Primal, com as válvulas eliminadas, os sintomas podem inicialmente agravar-se porque no decorrer do tratamento ele pode ter perdido muitas de suas defesas menores. Enquanto ainda houver alguma parte do eu irreal e enquanto existir um split, os sintomas continuarão. Desaparecerão quando a pessoa estiver em condições de abandonar a terapia. Existem boas razões para a perda gradativa dos sintomas. Em primeiro lugar, vamos dizer que o sintoma de comer demais, por exemplo, é geralmente o ponto focal na vida do paciente e a saída central para a tensão neurótica. O sintoma é geralmente a última coisa que desaparece porque ele foi o primeiro que surgiu na vida do paciente. Os tiques e alergias geralmente começam antes dos cinco anos, mas a gagueira pode começar aos dois ou três junto com a palavra. O sintoma foi a forma que a criança teve para resolver o seu split. Os sintomas corporais como a prisão de ventre, a gagueira ou os tiques não devem ser considerados como simples hábitos que podem ser expulsos do organismo. Eles são as reações físicas involuntárias ao split (a sensação desligada do pensamento) que produzem pressões corporais que situam-se fora do controle e da vontade consciente. Essas pressões produzem os sintomas. A supressão de um pensamento verdadeiro, a contrapartida mental de uma sensação física, pode produzir um sintoma mental como uma ideia irreal ou uma fobia que é uma espécie mais séria de uma ideia irreal. A supressão do equivalente físico do verdadeiro pensamento (o doloroso pensamento Primal) pode produzir sintomas físicos como gases no estômago, que acabarão se transformando em úlcera ou colite. É importante compreender que a severidade dos sintomas aumenta com a quantidade e a longevidade da pressão. A pressão mental inicial pode produzir algumas ideias ou fobias irreais. Pode chegar até mesmo a produzir alucinações e ilusões. As alucinações seriam apenas as extremidades de um processo de desenvolvimento de ideias irreais que começou na mais tenra infância. À medida que os sentimentos reprimidos crescem, isso faz com que a mente se enrede em mais complexas circunvoluções. Ao mesmo tempo isso força ainda mais os órgãos vulneráveis que ajudam a esgotar um pouco das tensões. No caso de um sistema
orgânico ceder finalmente, a tensão se encaminhará para lá. Se não puder reduzir bastante a pressão, isso poderá afetar outros sistemas orgânicos. Assim, como aliás aconteceu com um paciente, poderemos constatar primeiro corrimento do nariz, sérias alergias, asma, úlcera e por aí além. Desejo ressaltar a unidade de todos os sintomas neuróticos, psicológicos e físicos. Uma sensação bloqueada pode resultar numa tensão acumulada que acabará afetando a parte interna do estômago, ou então essa mesma sensação poderá ser expelida masoquistamente resultando na exteriorização da mesma Dor. Em ambos os casos estará tornando a Dor real, e logo que isso aconteça já será possível alguma providência. Para as doenças existem os remédios. Para o ritual masoquista existe um princípio e um fim. Em ambos os casos é a transformação da Dor em alguma coisa concreta e que pode ser controlada. As doenças são os sintomas involuntários da Dor ao passo que o masoquismo é voluntário. Embora possam parecer fenômenos diferentes, elas são apenas canais diferentes para as sensações bloqueadas. O sadismo é uma outra variação em que a Dor, para não ser sentida, é infligida em outra pessoa. Alguém pode castigar sua mulher quando realmente pretende castigar sua mãe e num nível ainda mais profundo, pode talvez querer castigar sua mãe porque se sente magoado com a falta de amor. Pode ser muito complexa a dinâmica na escolha da representação sintomática. (Os sintomas psicossomáticos são um comportamento irreal.) São o resultado de circunstâncias da vida ou de nossa estrutura constitucional. Mas para entender qualquer sintoma (neste caso, o masoquismo ou doenças psicossomáticas) nós devemos ver que seja um comportamento novamente localizado. É o foco e a forma como fixamos as aparentes origens do sofrimento: "Meu marido é cruel. A vida seria diferente se ele não me batesse quando fica bêbado." "Eu ficaria muito bem se conseguisse livrar-me das dores de cabeça." Nenhuma das duas afirmativas é geralmente verdadeira. A vida continuaria a não ser boa. Os dois comportamentos se enquadram no estilo de vida do indivíduo. Servem para conservar distante a verdadeira Dor. Os sintomas são defesas porque conservam a distância a verdadeira Dor. A razão por que os sintomas significativos são os últimos que desaparecem na Terapia Primal é que o sistema de defesa, que se concretizou como entidade estável depois da principal Cena Primal, funciona numa base de tudo ou nada. Quando ainda há coisas sérias para sentir até mesmo durante os últimos estágios da Terapia Primal, o paciente frequentemente volta aos seus primeiros sintomas. Quando finalmente sente o que ocasionou o seu pleno split, é muito pouco provável que jamais tenha outra vez os sintomas. Quando uma criança muito nova se divide em sua cena principal, o excesso, a tensão sem solução, encontra uma saída no sintoma. Esse sintoma "cuida" da sensação e resolve o conflito de uma forma irreal. Tratar apenas dos sintomas, então, significa tratar o que não é real. É um trabalho sem fim quer os
sintomas sejam mentais ou físicos. É por isso que a psicanálise de sintomas demora tanto tempo. Uma visão íntima da formação do sintoma encontra-se em um estudo feito 23 por Barker e seus associados. Eles tinham descoberto antes que os sintomas como a asma, úlceras, e hipertensão tornavam-se piores quando tratados em entrevistas sob a influência de um barbitúrico usado como sedativo ou hipnótico. Os pacientes falam mais livremente com isso já que a droga parece relaxar algumas das inibições contraídas, ou seja a frente irreal. A pergunta implícita no estudo de Barker era: Por que deve alguém ficar pior (demonstrar sintomas) quando está menos inibido? Durante o decorrer de seus estudos de ataques de epilepsia com pacientes sob a 24 ação do barbitúrico, eles descreveram a situação da seguinte maneira: O paciente, que antes tivera ataques epiléticos, estava sentado numa cadeira meio reclinada com os elétrodos fixados no couro cabeludo para registrar as ondas cerebrais. Ele disse que tinha sido uma "semana dura" caracterizada por brigas com sua mulher e sua mãe. Foi-lhe dado um barbitúrico na dose de três e meio grãos por minuto durante três minutos. O relaxamento induzido no começo da injeção foi, nesse caso, transitório. Ele começou a mostrar-se cada vez mais tenso. Perguntamos o que havia com ele e a resposta foi "minha mamãe". Fez caretas, resmungou e falou coisas sem sentido de sua mãe. Parecia estar zangado e sentindo dor. Os comentários a respeito de sua mãe eram intercalados com exclamações. Perguntamos o que havia com sua mãe e a resposta foi: "Bem que desejava pegá-la a jeito. Para matá-la. Ela não presta... Está sempre me perseguindo... todo o tempo... todo o tempo..." Mal conseguia conter toda sua raiva. E continuou: "Minha mãe matou meu pai. Eu vou matá-la. Ela me põe louco." Cerrou os punhos, levantou-os e parecia não poder conter a raiva, nem tampouco exprimi-la. De repente seu rosto perdeu toda a expressão e ele soltou um grito curto e estrangulado. Depois foi tomado de um violento espasmo muscular. Ficou rígido. O rosto contraiu-se numa careta enorme, arqueou as costas com os braços cruzados no peito e as pernas esticadas e rígidas. Esse rígido espasmo muscular relaxou-se e ele começou uma série de contrações típicas de uma grande convulsão. As ondas do cérebro durante o ataque de dois minutos tinham todas as características de uma convulsão. Debaixo da hipnose, o renascimento das reações à sua mãe havia sido abortado pelo ataque epilético. (O grifo é meu) Os pesquisadores ficaram francamente admirados por tudo isso porque o 23 W. Barker e S. Wolf, "Experimental Production of Grand Mal Seizure During the Hypnoidal State Induced by Sodium Amytal," American Journal of Medical Science, Vol. 214 (1947) 24 Wayne Barker, Brain Storms (New York: Grove Press 1968)
barbitúrico usado tinha propriedades positivas contra convulsões. Chegaram à conclusão que o ataque fora causado por um conflito entre a raiva incontrolável e as restrições da consciência. Vou citar ainda algumas coisas mais do que Barker disse porque estão relacionadas com o conceito Primal. "Isso era consistente com a formulação de Freud... um ataque convulsivo, nessa opinião, reduz o nível de descarga de uma manifestação significativa para uma outra atividade neuromuscular pessoal sem significação." O que ele está realmente dizendo é que os sentimentos bloqueados resultaram num maciço acúmulo de tensão com a manifestação convulsiva final, um ataque epilético. Se ele não estivesse falando de um ataque, eu teria pensado que estava se referindo ao que acontece na Terapia Primal. É claro que um sentimento bloqueado na vida de alguém não produz a síndrome epilética da mesma forma que não pode também produzir úlceras, gagueira ou asma. Quando porém estão em causa anos de sentimentos e sensações reprimidas, devemos concluir que há um acúmulo de tensão que excede a capacidade de resistência do organismo, e isso afeta a área ou o órgão da vulnerabilidade. Para uma pessoa nascida com tendência para alergia, um acúmulo de tensão pode se transformar em asma ao passo que para uma outra cuja tendência seja para distúrbios do cérebro, isso pode se transformar em epilepsia. O que aconteceria se alguém exigisse do paciente que ele desse vazão aos seus sentimentos por meio de um grito? Acredito que com essa demonstração seria evitado o desenvolvimento de um sintoma (a solução do conflito). O bloqueamento do sentimento produziu uma atividade neuromuscular difusa, ou seja a tensão. É preciso ficar claro que uma única expressão de sentimento só impediria aquele ataque especial. Ele continuaria a ser epilético e mostraria outra vez os sintomas desde que fosse submetido ao stress. Quando todas as suas repressões antigas não mais existissem, nós poderíamos então dizer que ele tinha predisposição para a epilepsia sem ser epilético. É a mesma coisa que ser basicamente sensível ou alérgico, mas sem ter alergias. E Barker prossegue: O Dr. Herbert S. Ripley e eu tivemos uma outra entrevista com um outro paciente. Quando induzido à hipnose o paciente começou espontaneamente a reviver uma série de experiências traumáticas cheias de agressividade, de sentimentos de culpa e de desamparo, regredindo no tempo à medida que ia passando de um episódio a outro. Aquilo era como se ele estivesse espalhando no tempo, para nossa inspeção, um denso complexo de experiências correlatas altamente carregado. A revivencia das séries parecia mostrar aquilo que ele só conseguia exprimir em convulsões.
Aqui, Barker expõe, quase palavra por palavra, a hipótese Primal. Na verdade, aquele homem passou por uma experiência Primal induzida por um processo hipnótico em que os controles conscientes haviam sido afastados. Nesse caso, Barker mostra que a revivência de fortes situações emocionais do passado levaram a um ataque epilético. Ou inversamente, isso infere que fortes sentimentos não resolvidos nem exprimidos no passado levaram a um ataque epilético. Muita gente acumula tensões e alguns criam úlceras enquanto outros caem em convulsões. O problema é a tensão e não a forma para aliviá-la. Pelas descrições de Barker eu chegaria a conclusão que a hipnose e o barbitúrico enfraquecem o eu irreal que se defende. O que vem à tona então são as sensações Primais que antes eram mantidas sob controle. Um hipnotizador de palco pode em certo ponto estabelecer uma nova frente para fazer com que as pessoas façam coisas estranhas ou se mostrem diferentes, mas nas experiências de Barker nada mais foi feito senão aliviar a frente. Isso é mais uma prova de como um relaxamento (férias, aposentadoria ou doença de pouca duração) pode ser uma ameaça para alguns neuróticos, uma ameaça para todo o seu sistema físico. Ajuda a explicar por que são poucos os neuróticos que se submetem a um relax pois isso para eles significa ser dominado ou até mesmo a morte. O trabalho de Barker ainda diz mais. Os sintomas são necessários para a economia psicofísica do indivíduo. Eles resolvem os conflitos. Remover os sintomas sem remover as causas significa deixar as pessoas susceptíveis a ocorrências ainda piores provenientes de tensões acumuladas. Barker entrevistou depois um menino de dez anos que havia sido convencido por sua mãe para evitar brigas a qualquer preço. Depois de ligado à máquina de ondas cerebrais foi-lhe feita a seguinte pergunta: "Como foi que você sentiu-se quando teve que oferecer a outra face, o que significa apanhar mais ou fugir?". "Eu não queria que eles me julgassem covarde, mas mamãe acharia ruim e ficaria zangada comigo se eu me metesse em brigas..." Barker diz que ele ficou muito tenso e respondeu: “Eu não podia ficar zangado com minha mãe. Ela é minha mãe. Foi ela quem me pariu." O padrão das ondas cerebrais era de tensão bastante parecida com leves demonstrações epiléticas. Barker conclui então: “Sem a máquina, nós jamais suspeitaríamos a presença de um componente epilético naquele bloqueio de palavra mais ou menos comum. Isso estabelece uma ligação entre todos os ataques, epiléticos ou não." Os sentimentos bloqueados, em resumo, possuem a capacidade para produzir convulsões, pelo menos ao nível de atividades cerebrais. Isto significa que, sendo perturbado, o cérebro pode ter convulsões mesmo quando a pessoa não tem. Essas convulsões do cérebro podem resultar em comportamentos e sintomas neuróticos que em nada se diferenciam dos ataques epiléticos. Barker acha que até mesmo a flatulência pode ser um ataque. Uma vez que existem convulsões cerebrais em muitas qualidades de perturbações, ficamos imaginando se um sintoma como a
gagueira pode ser considerado um equivalente à epilepsia. Será que a gagueira, então, é uma epilepsia da boca? Barker quer mostrar que a palavra bloqueada e os sentimentos que a isso acompanham acumulam uma tensão que acaba chegando ao cérebro. E ficamos então pensando quais poderão ser os efeitos de anos de acúmulos de repressões da palavra e dos sentimentos. O que tem importância no estudo de Barker é que se nós formos estudar somente o gráfico do cérebro, logo concluiremos que os sintomas de epilepsia ou de gagueira, por exemplo, seriam causados por irregularidades nas ondas do cérebro. Se nos aprofundarmos, logo verificaremos que elas são o resultado do acúmulo de sentimentos bloqueados. Precisamos ter sempre cuidado em não equacionar a causa de uma doença com aquilo que estamos medindo. Assim, se encontrarmos algumas transformações nos componentes químicos do sangue ou da urina de esquizofrênicos, isso não significa necessariamente que essas transformações causam esquizofrenia. O que Barker mostra em seu excelente livro é que muitos comportamentos diferentes parecem ter uma correlação quando não houver um suave funcionamento do cérebro e que isso pode ser o resultado de sentimentos bloqueados e o subsequente acúmulo de tensão. Essa carga embaraça o cérebro obrigando-o a trabalhar muito. Em termos Primais, isso significa que as funções do cérebro cedem quando nos acontece alguma coisa que seja mais do que podemos integrar de uma só vez, ou sejam as Cenas Primais. O que tudo isso significa é que quando não podemos ser nós mesmos numa situação isso não significa simplesmente o seu fim. Torna-se internalizada em forma de tensão que acaba chegando ao cérebro onde se interrompe o funcionamento. O resultado disso poderá ser pensamentos confusos, gagueira ou epilepsia, ou então simplesmente um comportamento de seguir em frente. O sintoma neurótico é a solução idiossincrática das lutas internas do indivíduo. Nesse sentido, o estilo é o homem. O sintoma, portanto, não pode ter um significado generalizado pois só pode servir para aquela pessoa. Assim, o rilhar de dentes pode ter milhares de significações. Para um paciente era agarrar-se à vida com os dentes ao passo que para outro significava uma raiva inexplicável, mas para todos os pacientes, cada sintoma tem um significado que serve para ele e só para ele. Sendo assim não podemos generalizar sobre as pessoas que rilham os dentes. Tampouco podemos ter definições que sirvam para tudo. Somente o paciente pode dizer-nos o que significa seu sintoma. Há sintomas neuróticos que geralmente não são julgados como tais, como, por exemplo, a baixa estatura. Ninguém vai a um psicólogo porque é baixo, mas depois da terapia, nós vamos descobrir que o desenvolvimento da pessoa foi retardado mental e fisicamente. Vemos que o paciente cresceu e inferimos assim que o fato de ser baixo era realmente um sintoma, era a sua solução idiossincrática
das contradições íntimas que o afligiam. Durante os últimos dois anos não conheci caso algum de reincidência de sintomas em alguém que tivesse completado a sua Terapia Primal, e já não posso afirmar a mesma coisa sobre o meu trabalho como terapeuta convencional. Por quê? Na minha opinião, é porque os sintomas dependem da tensão. Os sintomas não voltam porque não há Dor Primal para a reincidência da tensão. Não há split que esteja dividindo o corpo e a mente. Nada mais há, em suma, que esteja submerso criando pressão no organismo. Eu poderia continuar citando uma lista sem fim de todos os sintomas erradicados pela Terapia Primal desde as cólicas menstruais até a asma, mas isso faria da Terapia Primal uma espécie de panaceia que prejudicaria a sua reputação. Um colega meu chegou a dizer-me: "Se, pelo menos, você me contasse alguns de seus fracassos, alguns sintomas que nunca desapareceram, eu estaria, talvez, mais disposto, a acreditar nas coisas incríveis que me conta." O fato é que a Terapia Primal deveria poder resolver todos os sintomas, ou então não seria válida a premissa que os sintomas são o resultado das Dores Primais. Talvez o paciente que já passou pela Primal, isento de sintomas e de tensões, possa parecer um super-homem, mas é o neurótico que está tentando mostrar-se como tal quando come o dobro do que precisa, trabalha o dobro de todo mundo, usa o dobro da energia para só conseguir infelicidade em dobro.
Discussão Todo homem representa a sua verdade. Para o neurótico elas são as Dores Primais. Uma mentira da mente significa um ferimento no corpo. Embora a mente do neurótico diga que não há nada errado, o seu corpo conta a verdade. As doenças psicossomáticas são a verdade do corpo. Com o correr do tempo nós talvez sejamos obrigados a mudar de ideia a respeito do que significa um funcionamento normal. Uma paciente, que era enfermeira, mediu a pressão arterial e tomou o pulso de outros pacientes do grupo, e verificou que os índices eram sempre abaixo dos normais. Muitos pacientes já notaram uma constante queda na sua temperatura quando em repouso. Alguns dizem que suas temperaturas estão sempre em volta de mais ou menos 35,5° C. De um modo geral os pacientes que passaram pela Primal gozam de excelente saúde e só posso atribuir isso à ausência de tensão crônica. Quando o neurótico não sucumbe à doença resultante de tensão crônica, ele poderá sucumbir ao seu hábito de procurar ver-se livre da tensão. O fumo, a comida em demasia, os remédios e as bebidas, tudo isso cobra a sua taxa. Mesmo com a
ajuda desses hábitos para esgotar a tensão, muitos neuróticos continuam a sofrer de moléstias psicossomáticas. O sistema neurótico é como um vaso gigantesco extravasando os sintomas pelas bordas. Temos feito tudo para derrotar os sintomas do melhor modo possível, mas devemos fazer claro que precisamos esvaziar o vaso das altas tensões se quisermos eliminar os sintomas. Só podemos fazer isso se compreendermos que a tensão neurótica não é normal e não cabe num sistema saudável. Os sintomas são o resultado do corpo trabalhando contra ele mesmo, da pressão entre o eu real e o irreal. Para uma saúde física e mental duradoura será preciso eliminar essa força.
11 - O FATO DE SER NORMAL
O único objetivo da Terapia Primal é fazer com que os indivíduos se tornem reais. As pessoas normais são reais por definição. Os pacientes que passaram pela Terapia Primal são reais por causa disso, mas ainda trazem consigo as cicatrizes. Foram bastante feridas durante suas vidas e não é fácil apagar as lembranças. Só o que podemos fazer é torná-las inofensivas para que não tenham mais a força que obriga os neuróticos a atos simbólicos. Depois de tantas privações por que passam os neuróticos, é óbvio que depois da Primal eles não podem ser mais uns indivíduos plenamente realizados. Como neuróticos eles viviam lutando para se realizarem e a terapia agora liberta-os para satisfazerem suas necessidades no presente. Quando me refiro a um ser humano normal, eu quero significar uma pessoa livre de defesas, sem tensões ou lutas. A minha opinião a respeito de normalidade nada tem a ver com normas estatísticas, médias, tabelas de ajustamentos sociais, conformismo ou não conformismo. Quando a pessoa é ela mesma a maneira como se comporta pode ser tão variada e infinita como o número de pessoas neste mundo. O normal é sempre ele mesmo. A Terapia Primal faz com que alguns considerem o seu íntimo em lugar do que existe em torno deles. Passarei a discutir o normal em contraste com o neurótico. Mais adiante farei um retrato de um paciente pós-Primal mostrando como ele se sente, o que faz e as espécies de relações que mantém. Já que se sente satisfeito, o ser normal relaxa-se. O neurótico insatisfeito por não haver conseguido o que queria sente-se obrigado a procurar a origem verdadeira de sua insatisfação. Com isso ele deixa de saber quais são as verdadeiras origens de sua infelicidade. Então começa a sonhar para conseguir um novo emprego, para tentar um novo grau universitário, para morar noutro lugar ou para arranjar outra namorada. Ele acredita que o seu descontentamento básico seja solucionado desde que faça qualquer daquelas coisa. Lembro-me de um paciente que começou com a terapia reclamando contra os acontecimentos políticos do país. Era um obcecado e queria se mudar para outro país. Tudo que dizia sobre a política estava certo. Não obstante, quando checou ao seu verdadeiro descontentamento, isso não fez com que ele modificasse suas ideias sobre a situação política mas conseguiu resolver a questão de mudar-se para o estrangeiro. Sentia que "não havia um bom lar para ele." Nunca tivera um bom lar. Um lar ruim é igual a uma pátria ruim. O seu sonho era encontrar aquele bom lar em algum lugar.
O neurótico nunca se satisfaz por muito tempo porque não está nunca onde está. Ele usa o presente para fazer funcionar o passado. Assim, comprará uma casa que arrumará direitinho, e quando tiver feito isso já estará querendo uma outra casa. Ou então encontrará uma namorada que logo abandonará depois de conquistá-la. Para o neurótico, o importante é a luta e não os resultados. Por isso é comum não conseguir terminar o que começa. Justifica os trabalhos insatisfatórios na base de exigirem muito dele. Mas isso é porque ele nunca termina. Terminar sem sentir-se realizado é o mesmo que ferir-se. É por isso que tanta gente encontra tantas dificuldades nos últimos meses de estudo para conseguir um grau superior. É também a razão por que muita gente não se dá por satisfeita só com dinheiro no banco. Logo depois que pagou todos os seus compromissos, ele terá que assumir outros para poder continuar a luta. É intolerável sentir-se realizado, ter dinheiro no banco e ainda assim sentir-se infeliz. A luta é o paliativo para isso. Algumas mulheres neuróticas raramente levantam-se cedo para logo terminar o serviço da casa. Se isso acontecer logo se verão diante do vazio de suas vidas. Em lugar disso preferem manter um ou dois quartos constantemente desarrumados para que possam manter a luta. Podem antegozar, para quando a casa já estiver arrumada ou limpa, sem aquele sentimento de não ter mais nada a fazer desde que liquide suas obrigações caseiras. A pessoa normal, que não precisa lutar, que não precisa de obstáculos em seu caminho para justificar a luta, sempre pode atender às coisas. O neurótico, retardando o sentimento de sua Dor, retarda também muito todo o resto de sua vida. Aliás, o sentir aquela Dor representa, para o neurótico, o princípio da vida. Até que a sinta ele deve mostrar-se arredio, não somente em termos de fugir apenas ao que fere como também a tudo que é desagradável. Desde que está sempre tentando fugir de si mesmo, ele tem a tendência para a fuga, se não a física, pelo menos mentalmente. Tem o espírito sempre cheio das coisas que vai fazer. Nunca pode parar. Movimenta-se até mesmo em sonhos, virando-se na cama ou suando muito. Pode ser tão ativado que nem mesmo consiga dormir sempre obcecado por pensamentos desagradáveis ou por negócios sem solução ainda. O ser normal pode estar conosco completamente. Nunca precisa manter uma parte sua separada, "de reserva", e portanto, pode mostrar um interesse completo. O neurótico é geralmente um remoinho de distrações. Seus olhos, da mesma forma que a mente, estão sempre girando de uma coisa para outra sem nunca se deter por algum tempo. É claro que a pessoa normal não é dividida. Isso significa que quando lhe aperta a mão nunca seus olhos estão olhando para o além. Sabe ouvir com atenção, e isso é raro numa sociedade neurótica. O neurótico, na realidade, só consegue ouvir o que quer. A maior parte do tempo está pensando no que vai dizer a seguir. Tudo o que ouve, em geral, só tem valor quando se refere a alguma coisa que lhe diga
respeito de alguma forma. Não pode ser objetivo nem aprecia devidamente o que não lhe diz respeito, e isso aplica-se também aos seus filhos. As conversas neuróticas raramente transcendem assuntos pessoais e o "eu" está sempre presente, porque o interesse do neurótico encontra-se no "eu" não realizado. A pessoa normal interessase por si mesma de forma diferente. Não é preciso que tudo no mundo se relacione com ela, mas, ainda assim, está sempre pronta a relacionar-se com o mundo. Nunca usa o seu mundo externo para cobrir o interno. O indivíduo normal nunca se sente solitário. Ele pode sentir-se só, mas é de forma muito diferente daquela que sentia antes. É uma sensação diferente em que não entra o pânico nem o medo. A solidão do neurótico não permite ficar só pois tem necessidade de companhia para fugir ao catastrófico sentimento Primal de ser rejeitado e solitário durante toda a sua vida. Os inventores do rádio no automóvel compreendiam a solidão neurótica. Isso é quase como um remédio para a Dor. É uma defesa fornecida de graça para que o neurótico não sinta a sua solidão. Para o normal esse rádio pode ser considerado como uma invasão de sua intimidade. O normal é direto e podemos sentir isso pela forma como reage. A vida do neurótico é sempre exagerada para mais ou para menos. Desde que percebe o repúdio por suas reações verdadeiras ele é obrigado a agir de forma falsa ou então de não reagir de forma alguma. Por exemplo, uma paciente convidou uma amiga neurótica para vir ver seu novo apartamento. Perguntou-lhe o que achava da decoração e a outra disse que bem desejaria que o seu tapete fosse tão bonito quando o dela. Ela só via o aposento em termos de suas próprias necessidades e a sua reação foi tipicamente neurótica. Sempre que ouvem alguma anedota, os neuróticos procuram sempre abafá-la com uma outra melhor. Sempre que alguém sente necessidade de "identificar-se" em lugar de sentir, nós presenciamos essa reação imprópria. Assim, o normal reage de forma apropriada, não porque esteja procurando produzir efeito ou porque tenha lido em algum livro de etiqueta, mas sim porque ele sente o que é apropriado. Isso significa que para ser um bom pai ele não precisa andar às voltas com o Manual dos Bons Pais. Ele será sempre uma pessoa natural e permitirá que seus filhos sejam também naturais. Uma vez que já não precisa esconder o sentimento da falta de importância, ele não precisa também lutar para ser tratado como alguém muito especial em toda a parte onde vai. Para o neurótico isso é geralmente uma ocupação de tempo integral. Parte da necessidade do neurótico é verse sempre rodeado de gente, para não sentir-se solitário, ou então entrar para clubes para esconder o sentimento de nunca haver pertencido a uma verdadeira família. Para o normal toda essa luta incessante já acabou. As lutas dos neuróticos são todas elas fabricadas. Assim uma mulher pode passar anos fazendo compras sem jamais sentir-se satisfeita com o que comprou. E é
bem provável que seja assim mesmo. Se ela tivesse conseguido o amor dos pais sem lutas, então talvez aquelas compras não fossem assim tão importantes. As compras de ocasião são a neurose de todos os norte-americanos. É muito parecida com a pílula mágica para não engordar, e conseguir alguma coisa boa com pouco esforço. O que torna as compras de ocasião especialmente deliciosas é a luta. Quanto maior for ela mais valor terá o prêmio, só que esse não é o verdadeiro prêmio para a grande luta da vida. É apenas um insignificante substituto porque os anos de luta pelo amor dos pais simplesmente resultaram em nada. As compras de ocasião são bem parecidas com a vida dos neuróticos com apenas a pequena diferença que eles finalmente conseguem o que, na maioria das vezes, não desejam. O neurótico não gosta de entrar numa loja para pagar o preço marcado porque, com isso, ele já não está recebendo um tratamento "especial". Qualquer um pode pagar o preço fixado, e quem fizer isso está passando a ser como qualquer outro. Já o normal é diferente, pois ele sempre tenta tornar a vida o mais fácil possível. Muito parecido com as compras de ocasião é a forma como o neurótico trata o dinheiro. Um paciente disse-me que nunca conseguia ter dinheiro no banco antes da terapia, porque se tivesse já não precisaria mais lutar. Ele estava lutando constantemente para tentar fugir a um sentimento primitivo em que ele nada valia. Esperara, inconscientemente, que o dinheiro ia lhe dar importância, mas claro que nunca havia dinheiro bastante para isso. Desde que tinha algum dinheiro sentia que ainda não chegava para lhe dar importância e assim estava sempre lutando para ter mais. A pessoa normal não usa o dinheiro simbolicamente para satisfazer antigos desejos. Sente-se importante porque seus pais normais sempre lhe deram o valor que merecia. O dinheiro é a preocupação natural de muitos neuróticos porque eles, por definição, devem sentir-se desprovidos de valor pois nunca lhe reconheceram mérito algum. Já que não consegue satisfazer suas verdadeiras necessidades, ele estará sempre desejando ter mais do que tem. Há outros neuróticos que não conseguem gastar dinheiro. Talvez a sua luta tenha sido para se sentirem sempre seguros. Mas, ainda assim, o dinheiro sozinho não consegue a segurança para alguém que não a tem. Essa espécie de neurótico está sempre adiando a vida esperando que algum dia as coisas estarão melhores e ele poderá então tirar umas férias. Nunca vive, e em lugar disso, está sempre se agarrando a alguma fantasia do que será a sua vida algum dia. Essa fantasia tem uma íntima ligação com a Dor e ajuda a explicar por que tanta gente está sempre adiando tanta coisa em suas vidas. A pessoa normal, por outro lado, faz as coisas agora. Não tem velhas dores que estão sempre arrastando-a para trás obrigando-a a constantes adiamentos. Os seus verdadeiros sentimentos eliminam a necessidade de fantasias fora da realidade. O homem normal é estável. Está sempre satisfeito por estar onde está e não
precisa imaginar coisas. Houve uma mulher que me contou o seguinte: "Eu costumava olhar no espelho e ficava horrorizada com minhas rugas. Corria por todos os salões de beleza e quando nada disso funcionou recorri à plástica. Sentia-me desesperada procurando fugir da sensação que estava desperdiçando minha mocidade sem jamais ter a oportunidade de possuir aquilo que aquela menininha dentro de mim tanto desejava. Quando via aquelas rugas e alguns cabelos brancos ficava desesperada por não poder ser pequenina outra vez, e então corria para todos os lados. Ia a todas as festas, tentava mostrar-me atraente, mas estava sempre correndo. Não podia parar." Já a pessoa normal sabe aceitar a sua idade porque está vivendo no presente e já teve a sua mocidade. Não passa todos os dias de sua vida tentando recapturar o que perdeu já fazem décadas. Não se preocupa demais com o futuro nem está sempre pensando no passado porque não está vivendo num tempo que simplesmente não existe. Com o neurótico, "a personalidade é a mensagem", pedindo eu aqui permissão para usar as palavras de McLuhan. A personalidade curva-se para a mensagem que tem de transmitir. Assim, a pessoa lacônica pode simplesmente dizer "papai fale comigo. Tire-me daqui." A outra mais desorganizada dirá, "mamãe, eu estou ferido. Oriente-me." O do olhar lamuriento, "mamãe, pergunte-me onde está doendo." O depressivo dirá, "não me chute quando estou por baixo." Uma vez que o normal não está mais tentando dizer alguma coisa indiretamente, a sua personalidade não está retorcida. Desde que não tenha velhas necessidades, as pessoas são apenas o que são. Não sei bem como explicar isso de outra forma senão dizendo que sem um frontispício psicológico a pessoa normal apenas vive e deixa os outros viverem. Como já disse aqui, o corpo faz parte da personalidade geral de modo que os neuróticos geralmente mostram o que são. É fácil notar neles todas as características que já apontei aqui. Todo o organismo do neurótico exprime a mensagem inconsciente. Já que não têm mensagem alguma para transmitir, nós podemos esperar um corpo bem proporcionado nos normais desde que tudo mais seja igual. As transformações físicas que notei em pacientes, depois de passarem pela Primal, levam-me a concluir que alguma coisa daquilo que acreditamos ser herdado pode realmente ser o resultado de neuroses. O indivíduo normal sabe gozar a vida. É surpreendente o pequeno número de neuróticos que consegue fazer isso sem uma ajuda artificial como a bebida, por exemplo. Um paciente explicou: "Os divertimentos prejudicam as esperanças. Eu sempre conseguia transformar tudo em coisas desagradáveis. Se tudo corria bem durante o dia, eu ficava irritado, de repente, e ia procurar uma briga. Não conseguia aguentar quando tudo corria bem. Sentia-me inconfortável como se esperasse que alguma coisa ia desabar em cima de mim. Quando olho em retrospecto penso que a
aceitação de tudo aquilo que era bom significava desistir da luta para que meus pais fossem gente boa. Se aceitasse tudo aquilo abertamente e realmente gozasse a vida, eu teria que desistir de ver a minha infelicidade reconhecida. O neurótico não procura o prazer agora. Só deseja que ele venha quando ... O mesmo pode ser dito a respeito de afeição. O normal aprecia a afeição sem reservas, mas o neurótico para fazer isso poderá estar dizendo que não precisa mais dos pais, pois já encontrou alguém para amá-lo. É terrivelmente difícil fazer o neurótico sentir que ele nunca vai ser o pequerrucho que consegue tudo que quer de seus pais. Estamos sempre ouvindo que as crianças precisam ter obrigações ou empregos para aprenderem o que é responsabilidade. As crianças são levadas a serviços para ganhar dinheiro mesmo quando não há necessidade para isso. Assim, quando a criança pede licença para ir brincar com o vizinho, a primeira coisa que os pais perguntam é se ela já fez as suas obrigações ou deveres. Os pais sempre têm medo que se deixarem as crianças fazerem tudo o que querem elas nunca farão o que devem. Assim colocam obstáculos diante de cada coisa desejada até que a criança sinta-se apreensiva a respeito de qualquer coisa que queira e procure então evitá-las. Mais tarde, na vida, essa pessoa nunca conseguirá fazer ou agir espontânea mente sem surgir logo a pergunta desagradável, "o que será que devo fazer primeiro?" Um paciente disse-me que quando ele brincava muito num dia e pediam que ele voltasse no dia seguinte, minha mãe sempre reclamava achando que era "muita excitação". Certamente ficava preocupada por eu estar gastando a minha quota de prazeres sem pagar o que era devido. A vida do indivíduo normal é muito diferente nesse caso. Ele não foge a viver o presente nem obriga os filhos a participarem da luta. Nada está certo para o neurótico porque ele nunca andou certo com os pais. Inúmeros pacientes sempre me contavam que não se lembravam de terem ouvido uma única palavra de elogio ou encorajamento de parte de seus pais. Em lugar disso, o pai neurótico sente a necessidade de deixar transparecer a sua Dor em tudo que diz ou faz porque ela está sempre com ele. O resultado de ser criticado a vida inteira assume muitas formas. Uma delas é que se dermos um presente a um neurótico ele nunca o achará a seu gosto, como também está sempre reclamando de tudo que encontra na vida. Quando lê os jornais somente as más notícias lhe interessam já que quer saber quem mais é infeliz ou está sofrendo. Numa sociedade neurótica onde as pessoas sentem necessidade de projetar para fora todas as suas misérias para que a vida lhes seja tolerável, a notícia é sempre sinônimo de tudo que é mau. O homem normal nunca se regozija com a desgraça alheia. Partilha do sofrimento alheio e procura sempre ajudar. Sempre que tentarmos encher algum vazio do neurótico devemos nos lembrar que ele é um poço sem fundo.
Nem mesmo a conquista de alguma coisa desde muito desejada satisfaz o neurótico. Um paciente meu conseguiu finalmente o seu Ph. D. e entrou numa séria crise de depressão. Pensava que depois de oito anos de uma luta terrível ele ia afinal conseguir alguma coisa com o seu diploma, mas mesmo com ele na mão ainda não se sentia amado ou importante. Disse-me que aquele diploma era para ele um milagre, mas ainda assim não conseguia senti-lo. O mesmo não acontece com o normal que nunca espera alguma coisa externa em seu favor e portanto deixa as coisas correrem naturalmente. Para o neurótico, o desapontamento anda sempre de mãos dadas com a esperança. O neurótico, por exemplo, sente-se desapontado com as festas de Natal quando, de certa forma, elas têm por fim fazer-lhe sentir o quanto é desejado e querido. O normal é uma pessoa saudável que não precisa estar sempre correndo atrás de médicos, porque também nunca correu atrás dos pais. Ele é mais saudável e tem mais energias e usa-as para realizar coisas verdadeiras e nunca para tentar conseguir o impossível. E sabe também quando está passando bem. Um paciente disse-me que nunca sabia se estava bom porque estava sempre muito longe dele mesmo. Quando alguém lhe perguntava como se sentia e ele não estava se sentindo mal, deduzia então que só poderia estar se sentindo bem. O normal nunca obriga os outros a participarem de seus problemas. Compreende que deve amar os filhos sem que eles tenham que pagar por isso. E portanto ele não obriga os filhos a lutarem por coisa alguma. Paradoxalmente, essas crianças são bem sucedidas na vida o que contraria a opinião que a luta no começo da vida prepara as pessoas para as outras que virão depois. Muitos neuróticos nem chegam a perceber que nunca foram obrigados a fazerem alguma coisa para serem amados pelos pais. Lutaram tantos anos para serem amados que não podem nem imaginar que isso aconteça naturalmente. O processo de condicionamento para obrigar a fazer coisas que agradem começa desde que a criança nasce quando todos tentam as artimanhas mais ridículas para fazerem uma, criança rir. Mais tarde querem que ela acene um adeus ou então dance, que faça uma gracinha para agradar aos avós sem levar em conta a sua disposição de momento. Quase todos os contatos durante a infância são para ela fazer alguma coisa que os outros querem. Essa constante necessidade dos pais ou dos avós para conseguirem sempre serem atendidos é uma sutil consequência da pouca atenção que mereceram de seus próprios pais. Quando estabelecemos uma comparação entre normais e neuróticos é de admirar que os neuróticos resistam tanto. Se houvesse algum princípio básico acerca do verdadeiro comportamento ele deveria ser alguma coisa mais ou menos assim: A realidade sempre se cerca de outras realidades da mesma forma que as irrealidades também procuram as irrealidades. As pessoas reais e normais não mantêm uma
constante relação com as irreais e vice-versa. O normal não tolera fingimentos. Ele jamais procurará agradar ou submeter-se a um neurótico para continuar como seu amigo e vice-versa. Assim, se algum dos dois não andar muito certo a relação será bem difícil. O normal não compra as brigas dos outros. Um paciente contou-me que antes ele sempre era obrigado a completar as frases de sua mulher. Ela começava a dizer alguma coisa e depois olhava-o como se implorasse e ele então logo se precipitava para ajudá-la. A reação era automática e inconsciente. O neurótico dificilmente continuará a manter alguma relação em que as suas necessidades neuróticas não estejam sendo atendidas. Ele sempre quer coisas especiais e, naturalmente, procura aproximar-se dos indivíduos que partilhem com ele aquela espécie de ideias e atitudes fora da realidade. Devemos sempre esperar, portanto, uma certa homogeneidade de pensamentos dentro de seu grupo de amigos quando se trata de assuntos econômicos, políticos ou fenômenos sociais em geral. O neurótico é obrigado a fugir da realidade até que esteja em condições de enfrentar a sua. Até que chegue essa ocasião, ele se fechará num casulo irreal mas confortável no emprego que tem, nos jornais que lê ou nos amigos que escolhe. A força da irrealidade social do neurótico depende até um certo ponto do quanto ele é obrigado a privar-se. Se um homem nunca foi amado por seu pai, ele pode ter fantasias homossexuais. Alguns podem aceitar tais fantasias ao passo que outros podem repudiá-las e até mesmo não reconhecer sua existência nem mesmo em sonhos, dormindo ou acordados. Eles podem chegar a detestar os homossexuais e até mesmo tentar conseguir leis contra eles. Dentro de seu comportamento social, então, eles exigirão providências drásticas, tudo porque estão querendo seus papais e não podem confessar. Eles podem sentir tanto medo de sua "fraqueza" até chegar a detestá-la. Podem chegar a todos os extremos. Em resumo, a repressão das próprias necessidades pode muitas vezes significar a recusa a reconhecer as necessidades alheias. Tentar mudar as filosofias sociais de alguns neuróticos seria o mesmo que querer mudar todo o seu sistema psicofísico. Os neuróticos acreditam naquilo que são obrigados a acreditar para que sua vida seja tolerável. Se tentarmos convencê-los para repudiarem seus princípios básicos será o mesmo que tentarmos fazer com que abandonem tudo que existe para eles. O indivíduo normal não se interessa pela exploração dos outros. Não deseja de ninguém coisas que não sejam reais. O neurótico que se sente indefeso diante de sua Dor, muitas vezes precisa explorar alguém para sentir uma importância que ele mesmo não sente. Precisa fazer isso para garantir-se. Está sempre precisando que outros lhe digam coisas boas sobre ele mesmo, sobre seu filho, sua casa ou suas roupas. A pessoa que não é normal nada pode dar de si, pois tudo está fechado
dentro dele. O neurótico pode fingir preocupação com outras pessoas e pode até mesmo convencer-se disso, embora tudo seja falso já que só pensa em si mesmo. Nada pode dar de si enquanto todo o seu ego estiver abafado pelo medo e pela tensão e sentir necessidades desesperadas, O normal dificilmente procura conquistar amigos para se valer deles como escora e não se sentir só no mundo. Seus amigos, geralmente, não são troféus ou propriedades. Os pacientes que terminam suas Primais dizem que se dão bem com gente verdadeira sem levar em conta suas personalidades. Eles acreditam que as pessoas de verdade são abertas e sinceras e não existe a ameaça das idiossincrasias. Um médico normal não precisa ter a sua sala de espera cheia de gente para se sentir necessário, mas esse ponto pode funcionar em dois sentidos, pois o paciente neurótico talvez se sinta apreensivo quando verificar que é o único na sala de espera e é logo atendido. Como não houve luta com a espera, ele pode chegar à conclusão que o seu médico não é tão bom como o outro que faz as pessoas esperarem uma hora. O normal que age dentro da realidade geralmente está sempre atendendo seus compromissos na hora certa porque ele vive na hora presente sem pensar no passado. O que isto significa é que ele não usará o tempo simbolicamente para sentir alguma coisa que, de outra forma, lhe escaparia. Ele nunca chega atrasado, por exemplo, para mostrar-se importante nem tampouco para não se sentir rejeitado, como acontece com o neurótico. Andar atrasado pode significar uma forma de manter viva uma falsa esperança. Essa é uma outra forma que mostra como o neurótico encara erradamente a vida. Ele pode também inventar uma atividade febril que não lhe deixe tempo para sentir. Está sempre correndo e sentindo uma pressão externa que, na realidade, é interna. Muitos neuróticos articulam sua vida de forma a nunca haver tempo para descanso ou divertimento. Planejam inúmeros projetos com o único intuito de nunca terem tempo para sentir ou refletir. As horas do dia não chegam para ele, e o resultado, então, é que estão sempre atrasados. Como já dissemos antes, existem pseudo-sentimentos que já não residem mais no normal, e isso significa que eles nunca são ciumentos, invejosos ou cheios de culpas. Creio que isso é uma outra forma de dizer que ele permite a existência alheia, a existência de sua mulher, seus filhos e seus amigos. Ele não depende deles para o seu sucesso. O normal nunca sente-se alienado porque e a Dor que causa a alienação entre um lado e outro do eu. Talvez seja a alienação de si mesmo que torna fácil para os líderes discutirem e organizarem as matanças com tanta facilidade. Como estão divorciados de sua própria humanidade, eles não conseguem sentir a humanidade alheia. A morte, evidentemente, não é uma tragédia real para aqueles que não sentem a vida. É nesse sentido que o fato de alguém estar "morto" internamente faz com que a verdadeira morte dos outros seja menos real e, portanto, menos
horrorosa. O normal parece sentir o ritmo da vida nos outros. Sabe ser delicado porque sente a Dor alheia. Sente toda a realidade que os outros podem ser capazes de sentir. O normal é sensível no verdadeiro sentido da palavra. A sensibilidade mental do neurótico é diferente da sensibilidade do normal. Quero esclarecer este ponto porque existem muitos neuróticos bastante perceptíveis e que compreendem perfeitamente as personalidades dos que os cercam. O que não conseguem, penso eu, é sentir as situações em que se encontram porque estão representando sentimentos reprimidos. Assim, por exemplo, um homem brilhante pode estar expondo algum ponto filosófico num jantar, percebendo completamente a espécie de pessoas que o ouvem ao mesmo tempo que se mostra positivamente insensível para o fato de estar ele dominando a conversa. Está ocupado demais fazendo sobressair a sua importância e necessidade de atenção. É por isso que é da máxima importância que o terapeuta não só tenha capacidade para perceber as personalidades alheias, como também que seja normal. Se não for assim ele poderá estar, representando sua necessidade de tornar-se necessário, com seus pacientes, por exemplo, e com isso prejudicando a parte boa da terapia. O normal já não sente a urgência de pensar no futuro para escapar ao vazio do presente. Um paciente contou-me que costumava dizer que não queria ser rico porque os ricos devem ser infelizes, já que podem ter tudo que desejam e portanto não precisam pensar no futuro. "Eu vejo agora que, se não pudermos aproveitar tudo a todos os momentos, então nada temos para desejar no futuro." O normal não confunde esperança com planejamento. Ele pode planejar uma situação futura, mas não se deixa empolgar pelos planos até não ter mais o presente. Parece que os neuróticos conservam as coisas no futuro para não terem que gozá-las no presente. Eu acredito que isso venha de experiências primitivas da criança, quando fazer o que bem entendiam significaria a rejeição e possivelmente o abandono pelos pais que esperavam ver as coisas feitas como eles queriam. A criança tinha que adiar o que desejava esperando para alguma ocasião no futuro. Isso talvez consiga explicar a ideia que quase todos nós alimentamos em criança: "Quando eu crescer vou ser muito feliz." Parece que muitos neuróticos continuam a pensar assim já adultos. O normal, que já desistiu das esperanças irreais e da luta para agradar, pode levar sua vida como bem entender. O neurótico "exige." O normal "necessita". Quando o neurótico exige o que realmente necessita significa sentir a Dor, e portanto, ele recorre a substitutos mais fáceis. O normal necessita de coisas simples porque deseja o que necessita e não algum substituto simbólico. O neurótico pode desejar uma bebida ou um cigarro, o prestígio ou o poder, altos cargos ou um carro veloz, tudo para cobrir as dores dos vazios, da falta de valor ou de poder. Já o normal não precisa de nada disso.
A vida parece conspirar contra o neurótico. Ele deseja muito porque recebeu pouco. Contudo, como teve que falsificar a sua personalidade nas formas mais estranhas que lhe proporcionassem um mínimo de satisfação, ele torna-se então a espécie de pessoa que afugenta as outras. As suas exigências descabidas, sua dependência e o seu narcisismo tornam-se intoleráveis para os outros. O normal, ao contrário, é sempre procurado e imitado. O neurótico é egoísta. Por mais que se faça por ele está sempre achando pouco sem perceber que seus problemas só encontrarão solução na Terapia Primal. O comportamento neurótico, no contexto Primal, significa a abdicação das necessidades pessoais em benefício daquilo que lhe é exigido pelos pais. Os desejos dos pais tornam-se a obrigação dos filhos, e os que não fazem isso são considerados maus. A criança que procura ser boa para poder ser amada, tenta ser o que seus pais querem. Faz isso com a esperança implícita que eles finalmente atenderão às necessidades dela, levando-a ao colo, por exemplo. As necessidades dos pais, no entanto, jamais poderão ser realizadas pelos filhos por mais que eles tentem. Surge assim a situação em que o filho está sempre procurando satisfazer aos pais para agradá-los e fazê-los felizes. Nunca será o bastante, já que nenhum filho pode remediar a infelicidade dos pais. As obrigações dos filhos são as necessidades dos pais. Deixar de cumpri-las significa desistir do amor dos pais. As crianças neuróticas ficam tão atrapalhadas com tantas obrigações que chegam a deixar de pensar nas suas próprias necessidades, e tendo-as perdido passam a desejar aquilo que não precisam. O assalto às necessidades dos filhos é muitas vezes bem sutil. Os pais neuróticos estão sempre lembrando aos filhos que eles devem ser felizes, que não devem reclamar, que devem ver bem como estão fazendo tanto por eles, como lhes dão tudo. Isso muitas vezes chega a convencer aos filhos. Olham em torno e veem coisas materiais, e então acreditam que têm tudo o que precisam ou desejam e chegam a esquecer que precisam desesperadamente de amor. A tragédia das obrigações é que, ao cumpri-las, a criança imagina que algum dia, quando ela fizer tudo o que eles desejam, seus pais vão lhe despejar em cima uma avalanche de amor. Como, porém, seus pais também precisam de alguma coisa que o filho nunca poderá lhes dar, esse dia nunca chega. O cumprimento das obrigações não significa fazer o que sentimos necessário. Assim, essas obrigações estão cheias de esperanças e de ódios, o ódio de ser obrigado a fazer alguma coisa que vai de encontro aos nossos sentimentos. Tendo passado toda a vida fazendo aquilo que não queria, o neurótico muitas vezes tem dificuldade para fazer o que deve. Já isso não acontece com o normal porque ele age em termos de realidades. O neurótico mostra-se, muitas vezes, indeciso porque está dividido entre
necessidades reprimidas e o cumprimento das obrigações. Já o normal pode decidir por si mesmo porque sente e sabe o que esta certo para ele. O neurótico conta com os outros para lhe mostrar as obrigações. Nem mesmo gosta de escolher no cardápio. Dessa forma ele vai manobrando a vida de modo que os outros lhe forneçam ou apontem as obrigações e nunca se deixa levar pelos seus sentimentos. O simples fato de não saber escolher o que comer num restaurante é, muitas vezes, um sinal da falta de vida num neurótico. Seria como se ele estivesse dizendo que não tinha desejos, sentimentos, nem vida. Como se estivesse pedindo a alguém que vivesse em seu lugar. O normal nunca está tentando descobrir o significado da vida já que isso vem do sentimento. Quanto mais profundo for o sentimento maior será o seu significado. O neurótico que foi obrigado a fechar-se contra o significado real catastrófico, logo no princípio de sua infância, é obrigado a uma busca constante, consciente ou não. Ele talvez tente encontrar o significado num emprego ou em viagens e, se suas defesas estiveram funcionando, poderá até mesmo imaginar a sua vida como cheia de sentido. Outros neuróticos acham que está faltando alguma coisa e saem em sua procura. Talvez estudem filosofia, mergulhem em religiões ou cultos, tudo para encontrar uma razão de ser que, afinal, pode ser encontrada com uma inspiração profunda seguida da expiração. O neurótico está sempre procurando alguma coisa porque o significado real é a Dor que deve ser evitada. Assim, a busca torna-se o significado, e como ele não pode sentir plenamente sua vida, fica então forçado a ir buscá-lo por intermédio de outras pessoas ou coisas fora dele. Pode encontrar tudo em seus filhos ou netos, nos seus feitos e sucessos. Ou também pode estar em algum cargo importante ou um negócio de vulto. O neurótico sofre quando se remove as coisas externas. É nessa hora que ele pode começar a sentir a futilidade de tudo em todos os sentidos. O normal vive dentro de si mesmo e nunca sente falta de alguma coisa. O neurótico deve sentir-se assim se conseguir parar em sua luta porque uma parte dele esta faltando. Um paciente disse-me isso ao contar-me que tinha um emprego magnífico, mas que era uma pena o fato de não interessar-se por ele. Era porque não tinha sentido para ele. O neurótico que não consegue sentir todo o significado da vida, precisa muitas vezes inventar uma super vida ou uma vida no além, lugares onde a verdadeira vida continue. Ele é obrigado a imaginar que em algum lugar existe o significado e propósito de tudo. Pode imaginar que os sábios vão descobrir para ele quando somente ele pode fazer isso. O normal descobre o seu próprio corpo e não tem, então, necessidade para imaginar algum lugar especial onde a vida realmente continue. O implícito no neurótico que procura a psicoterapia é que possivelmente isso irá ajudá-lo a encontrar uma vida mais cheia de sentido. Isso torna-se também uma longa procura. O normal já fez uma descoberta bem simples quando chegou à
conclusão que o significado da vida não é algo que se percebe e sim algo que se sente. E, sendo assim, ele não perde seu tempo em uma corrida acadêmica. A busca do neurótico pode ser exemplificada por um paciente graduado em filosofia por uma universidade. ''Eu gostava da filosofia porque nunca precisava saber das coisas com muita certeza. Nunca cheguei a compreender o quanto eu apreciava aquele estado de limbo. Eu não conseguia sentir o que estava certo na vida, e portanto o limbo era plenamente satisfatório para mim. Procurei nos céus e nas nuvens intelectuais para ver se achava algum significado extraordinário, tudo isso com o único intuito de não chegar à conclusão que todos aqueles anos passados em casa não tinham qualquer significado. Era uma coisa sem sentido. O encontro de um significado em Descartes e Spinoza foi uma agradável cobertura para tudo." O normal nunca tenta imaginar algum significado de ocasiões especiais como o Natal ou a Páscoa, e aliás, houve um paciente que lhes deu o nome de estação Primal. O neurótico pode sentir-se deprimido nesses dias festivos porque as pessoas que se reúnem não lhe dão a sensação de ser amado nem que tenha tido uma família real e carinhosa. O normal não tem necessidade de transformar a vida em alguma coisa diferente. Não precisa de recursos filosóficos. Ele sabe apenas que está vivo e que goza a vida, e nada mais. Poderíamos usar todo o resto deste livro descrevendo o normal. O normal representa, simplesmente, um caminho tranquilo e sem tropeços.
12 - O PACIENTE PÓS-PRIMAL
Qual é a qualidade especial da pessoa que se submete à Terapia Primal? Não existe nenhuma qualidade especial de paciente. Eles variam dos dezessete aos quarenta e oito com a maior porcentagem entre vinte e trinta. As suas ocupações variam indo desde antigos frades até profissionais de toda espécie inclusive muitos psicólogos e artistas. Da mesma forma que a condição de educação de classe média é um fator importante na terapia convencional, o mesmo acontece com os intelectuais na Terapia Primal. Os pacientes vêm de todas as religiões e de todas as partes do país bem como de muitas subculturas. O grosso de meus pacientes já passou por outras espécies de terapia durante muitos anos desde a psicanálise, a terapia racional, a terapia Gestalt, a existencial, o tratamento de Wilhelm Reich. Com a exceção dos métodos de Reich, todas as outras escolas usaram uma variedade de técnicas tendo como centro o uso do insight, que discutiremos mais tarde. Tivemos pacientes solteiros, casados e divorciados. O estado conjugal dos pacientes é, muitas vezes, importante. Se for mais velho e tiver família, ele vai ser mais difícil de tratar. Isso será devido ao fato dele haver lançado suas raízes irreais numa relação com uma esposa neurótica ou talvez tenha escolhido um emprego irreal junto com amigos também irreais. Em resumo, ele tem que abrir mão de muita coisa até se tornar real, e não são muitos os que estejam dispostos a isso depois de atingirem os quarenta ou cinquenta. Quando uma pessoa mais velha, entrincheirada por trás de um casamento neurótico durante uma ou duas décadas, torna-se real, o cônjuge que não estiver se tratando poderá começar a solapar o tratamento que se tornará então difícil e desagradável para o paciente. Talvez o paciente ideal para a Terapia Primal seja alguém solteiro e ainda moço sem interesses vinculados na irrealidade. No entanto, tivemos numerosos pacientes de meia idade, ainda susceptíveis a mudanças, que alcançaram grande sucesso com essa terapia. O notável é o fato de serem poucos os pacientes que façam a menor ideia a respeito do tratamento a que vão submeter-se. A despeito de sua forma revolucionária, os pacientes nunca se espantam com o método Primal. Parece que logo percebem-lhe o sentido, quaisquer que tenham sido as suas vidas pregressas. Vamos então olhar um paciente que acaba de completar a sua terapia. Como é ele? Ele passa a funcionar de maneira diferente e isso muitas vezes implica um novo emprego. Muitos deles não podem mais fazer coisas fora da realidade. Não
podem voltar à rotina de vendedores nem se dedicar a enfadonhas tarefas de papelório burocrático. Dois agentes de polícia encarregados de fiscalizar os presos soltos em liberdade condicional chegaram à conclusão que não podiam mais fazer aquilo pois o que desejavam era tentar que os seus fiscalizados se regenerassem. Dois psicólogos que estavam esperando para treinar como terapeutas primais preferiram aceitar empregos inferiores em lugar de continuarem a trabalhar no ramo da psicologia que eles consideram irreal. Um deles era conselheiro matrimonial que verificou ser impossível voltar ao seu trabalho onde só cuidava de comportamentos superficiais. Um operário resolveu entrar para uma universidade porque achava que ali teria maiores possibilidades para ganhar dinheiro. Uma professora deixou o seu emprego e transferiu-se para uma outra escola porque verificou ser impossível trabalhar com um diretor neurótico. Um dos índices comuns de normalidade entre as outras escolas de psicoterapia é o funcionamento. Isso significa que a pessoa normal é considerada como um membro eficiente e produtivo da sociedade. O ponto de vista Primal é diferente. Os pacientes pós-Primais já não se submetem mais a empregos exaustivos. Em termos Primais, o neurótico se exaure para sentir-se com algum valor, para ser reconhecido e amado. Os psicólogos Primais, por exemplo, são obrigados a passar pela terapia como parte de seu curso. Embora se mostrem dispostos a trabalhar trinta ou quarenta horas em terapia antes de seu tratamento, já não concordam em fazer o mesmo depois. Sabem que muitas vezes o neurótico tira de suas funções a sua identidade em lugar de tirá-la de seus sentimentos. Assim, uma pessoa pode ocupar os cargos mais importantes com grande eficiência, e ainda assim ser bem doente. Um paciente depois de terminar a sua terapia disse que mantinha ele mesmo e tudo em sua volta muito bem organizado para não se dar conta de sua real desorganização. "Eu tinha que continuar funcionando, planejando e trabalhando para não me desintegrar.'' As funções dessa pessoa passaram a ser a sua vida. Muitos pacientes pós-Primais chegam à conclusão que uma grande parte daquilo que julgavam necessário fazer antes já não é assim tão urgente. Por isso, os domingos ficam sendo o dia de brincar com as crianças em lugar de ir limpar a garagem. Um paciente chegou a dizer que como sentia-se dono de si mesmo pretendia levar uma vida melhor e mais descansada. Desde que leva uma vida mais tranquila, o paciente pós-Primal já não precisa lutar tanto e tem assim mais tempo para dedicar à mulher e aos filhos. Os pacientes pós-Primais fazem menos mas o que fazem é alguma coisa real de forma que sua contribuição à sociedade é muito mais benéfica. As professoras escolares, por exemplo, exigem muito menos dos alunos e ensinam-lhes muito mais. Permitem aos alunos uma inteira liberdade de expressão e ensinam-lhes coisas muito relevantes para suas vidas, pelo menos até onde isso é possível dentro do atual
regime escolar. Esses pacientes não estão tentando vender a ninguém coisas que eles não precisam. Houve um empregado que continuou no seu emprego porque achou que era real aquilo que fazia. Deixou de fazer serões porque achou que era melhor ficar com a família, já não tinha mais aquela ansiedade para comprar coisas novas e deixou de jogar para dar melhor emprego ao dinheiro. Essa questão da motivação e muito importante porque uma grande parte do mundo gira em torno de motivações neuróticas. Houve um paciente que disse que se fosse possível aproveitar a energia que existe dentro de um neurótico ela chegaria para arrastar um trem. Lembro-me de um paciente que depois de uma das suas ultimas sessões não conseguia levantar a cabeça do chão durante mais de uma hora. Ele era limpador de piscinas que dera duro a vida inteira, e costumava saudar os amigos com a exclamação neurótica Dando duro, hein?" Depois de haver destruído toda a sua motivação neurótica ele não conseguia mais mover um músculo. Tirou umas férias longas depois da terapia e quando voltou ao trabalho verificou que já não conseguia mais limpar dezesseis piscinas num dia, e achava milagroso que tivesse feito tanto antes. A neurose tornara-o imune ao cansaço. Contratou um empregado, passou a ganhar menos, mas apreciava mais a vida. Muitos são os neuróticos que produzem apenas para sentirem-se importantes em lugar de fazerem o que seja realmente importante para eles. Um psicólogo, depois do tratamento, deixou de fazer um biscate, que consistia na entrega de trabalhos a sociedades de cultura. Disse que toda a energia era usada não para comunicar-se com seus colegas e sim para ganhar prestígio. Acho que as transformações mais importantes que ocorrem com os pacientes que terminam o tratamento Primal são de ordem física. Isso é porque se trata de uma terapia psicofísica e não simplesmente um método de insight. Por exemplo, cerca de um terço das mulheres de busto relativamente reduzido chegaram à conclusão que seus seios tinham crescido quando verificaram que precisavam de maiores soutiens. Uma mulher que viera de avião, de uma cidade distante, para a terapia voltou para casa depois de algumas semanas de tratamento. O seu marido ficou espantado e certo que ela tinha tomado injeções de hormônios. Fiz com que muitas mulheres pedissem aos seus médicos que tomassem suas medidas para verificar os crescimentos alegados, e houve confirmação em todos os casos. Tivemos outros casos de desenvolvimento em adultos. Dois pacientes, rapazes com vinte e poucos anos, constataram o nascimento de barba que nunca existira antes. Muitos outros notaram odores no suor do corpo pela primeira vez. Muitos constataram o crescimento de pés e mãos. Nada disso pode ser considerado como resultado de sugestão pois nunca damos aos pacientes a menor ideia do que esperamos como resultados. A mulher das mãos, por exemplo, só percebeu que elas tinham crescido quando verificou que suas luvas velhas não lhe serviam mais.
A explicação de tudo isso deve necessariamente ficar em suspenso até que seja possível fazer-se exames fisiológicos. Um colega, bioquímico, foi de opinião que uma boa parte disso pode ser explicado em termos de transformações hormonais. Isso, por seu lado, pode finalmente afetar o mecanismo do código genético das células. A sua hipótese é que em vista da supressão do sistema e da alteração na produção do hormônio nos primórdios da vida há uma certa sequência genética que não se processa, o que poderia, por exemplo, retardar o crescimento da barba. Na opinião do bioquímico, pode ocorrer uma mudança no entrelaçamento de relações de todo o sistema hormonal possibilitando mudanças que talvez não ocorram com injeções de hormônios. A Primal pode deflagrar toda a sequência do crescimento outra vez. Teremos que esperar pelos resultados das pesquisas fisiológicas para uma boa explicação dos fenômenos observados. Enquanto ainda estamos no campo de mudanças hormonais, devo dizer que, em todos os casos de mulheres que tinham cãibras pré-menstruais ou períodos irregulares de menstruação, elas tiveram esses problemas resolvidos completamente com a Terapia Primal. Mulheres que antes eram frígidas ou com relações sexuais dolorosas, verificaram haver melhor lubrificação da vagina, algumas vezes até mesmo sem qualquer provocação sexual. Uma mulher ficou preocupada com aquilo a que chamava de um constante desejo de sexo, o que lhe acontecia pela primeira vez na vida, e que antes era apenas uma obrigação para satisfazer ao marido. São muitas as mudanças nos pacientes, e uma delas é o equilíbrio. As pessoas passam a andar mais firmes e com mais desembaraço. Já não caminham mais como robôs. Os pacientes pós-Primais também registram uma mudança completa na coordenação de movimentos. Um rapaz que jogava tênis verificou que conseguia ganhar de outros que antes eram muitos melhores do que ele. Uma certa parte disso pode ser explicado pela completa ausência de tensão, pela remoção do split que antes não permitia um funcionamento coordenado dos sistemas do corpo e da respiração. Durante uma das sessões ele percebeu que finalmente conseguia respirar em ritmo perfeito com o resto do corpo. A Primal não produz uma sensação eufórica. Produz apenas a sensação real que parece maior por causa do processo de embotamento anterior. A tensão embota toda a engrenagem sensorial que nos torna neuróticos não somente no comportamento como também no olfato e no gosto. Tampouco produz qualquer nova ou especial qualidade de sensação, mas faz
com que nossa capacidade sensorial latente seja experimentada em toda plenitude. O paciente pós-Primal torna-se mais alerta e percebe melhor as vozes e a música. Também melhora a capacidade visual. Dois pacientes que usavam óculos já não precisam mais deles. Uma paciente teve as seguintes palavras depois de sua Terapia Primal. "Toda a minha vida estava até então fora de foco. A Terapia Primal proporcionou-me as lentes para ver tudo mais nítido e claro. Sinto cheiros que nunca existiram para mim. Pela primeira vez foi-me desagradável sentir o cheiro corporal de meu marido. A minha vida era cinzenta, mas agora já vejo com nitidez todas as cores." Também se constatam mudanças de temperatura. Uma paciente disse que era como se ela tivesse passado a vida inteira sentindo frio, mas não o frio da vida. Quando ela realmente sentia o vazio e o frio de sua vida infantil com a família, punha-se a tremer convulsivamente durante mais de meia hora. Só deixou de sentir frio quando passou a sentir. A sensação é, evidentemente, uma experiência térmica real. Já houve muitas experiências de condicionamento nas quais se constatou como os vasos sanguíneos tendem a se contrair em antecipação à dor, e isso leva-nos a imaginar que a mesma coisa acontece em antecipação à Dor Primal. Embora muitos pacientes constatem essa sensação de frio quando estão à beira de uma dolorosa sensação Primal, alguns neuróticos com vulnerabilidade vascular reagem à Dor de maneira diferente. Estão sempre sentindo calor e são como caldeiras que reagem ao mundo em termos de raiva e não de medo. Em termos Primais, a pessoa que está sempre encolhida e procurando agasalhos está passando por um processo simbólico que é comum em muitos neuróticos. É o meio que usam para não sentirem frio e para se aquecerem. Por outro lado, aqueles que nunca precisam de agasalhos podem estar apenas pretendendo que não precisam do calor de ninguém nem de coisa alguma. São pessoas que se acham independentes e que consideram uma fraqueza qualquer necessidade. O paciente pós-Primal não pode ser irreal fisiologicamente. Já não usa mais agasalhos desnecessários porque seu corpo logo reagiria rejeitando-os. A reação em termos de medo ou raiva logo se torna aparente na constituição química do corpo. Se tivermos dois grupos separados, uma das pessoas que demonstram raiva e outro das que a escondem, vamos encontrar diferenças nos índices e nas qualidades de hormônios eliminados. O grupo que esconde a raiva provavelmente eliminará um hormônio chamado norepinefrina enquanto o outro eliminará a adrenalina pura. É interessante notar que os bioquímicos costumam se 25 referir ao hormônio norepinefrina como o hormônio "incompleto." 25
Indico ao leitor o trabalho de Hans Selye sobre hormônios e stress, The Stress of Life, N.York: McGraw-HilI, 1950.
Vamos então considerar os pacientes pós-primais à luz de alguns fenômenos não físicos. Tivemos um rapaz formado que era fanático pelo futebol e torcia como um louco por um determinado time. Sabia o nome e a vida esportiva e privada de todos os jogadores, mas, no seu caso, aquilo era uma simples representação simbólica ostensiva. Nunca pertencera a agremiação alguma mas pensava que daquela forma, poderia se identificar com aquele clube e passar a fazer parte de alguma coisa torcendo para que ele ganhasse para assim compensar o fato de ser ele um perdedor a vida inteira. Depois de resolver o seu problema pessoal de uma forma real não precisava mais representar simbolicamente. Áliás, esse não foi o único paciente torcedor fanático que tivemos, e com outros aconteceu também a mesma coisa. Houve um que, de apaixonado incondicional de ópera, passou a apreciar normalmente a música mais popular achando que ela é mais uma "celebração da vida", ao passo que a ópera era para ele uma verdadeira agonia. Também notamos mudanças marcantes em níveis de inteligência. Um paciente explicou-me que "se fosse esperto quando era pequeno, teria morrido porque teria percebido o quanto era odiado pelos pais. Só sobrevivi porque mostreime obtuso desligando uma parte de meu cérebro. Eu já reparei crianças que são inteligentes e espertas e que, de repente, se transformam. Creio que a razão é porque recebem a mensagem Primal e fingem não entendê-la." Os cursos universitários logo se tornam fáceis para esses pacientes, pois eles sabem que uma parte de tais cursos é como se fosse um jogo e, então, não se tornam ansiosos. Tornam-se mais articulados porque finalmente conseguiram articular coisas a que não se atreviam durante toda a vida. Tornam-se perceptivos e decididos não apenas em aparência mas também mentalmente. Caminham desempenados em lugar de tímidos e curvados. Podem ter vida social pois já não sentem mais medo quando fazem visitas. Outros que estavam sempre correndo sem destino já agora sabem como ficar em casa lendo e apreciam ficar sós. O pós-Primal passa a gozar a vida de forma mais intensa e completa. Gosta de tudo que faz. E o que acontece com a criatividade dessa gente? Será que ela também some junto com a neurose? A resposta é negativa. Ninguém perde suas qualidades artísticas. O que se modifica é o conteúdo da arte que produzem. Devemos lembrar que a imaginação neurótica significa a simbolização daquilo que é inconsciente. Assim, o neurótico sempre se manifesta de forma abstrata e indireta. O conteúdo de sua arte é a forma peculiar que suas sensações e pensamentos assumem
artisticamente depois de contornar a Dor. É claro que sem o bloqueio da Dor o conteúdo mudará. O ato criativo do neurótico é a maneira pela qual persiste em não perceber, ou antes, em sentir. A perspectiva artística do paciente pós-Primal também se transforma. Ela passa a ver e ouvir as coisas de forma diferente. A neurose não é um fator essencial para a arte. Vamos ver agora o que acontece com as relações com outras pessoas. Uma mulher que terminara a sua terapia saiu para jantar com o marido que nunca se submetera a tratamento. Não permitiu que ele escolhesse os pratos para ela e para tornar as coisas ainda piores mandou suspender o vinho que ele escolhera pedindo um outro que ela gostava. Ele ficou furioso e levantou-se da mesa. Houve uma cena e ele acusou-a de estar tentando "castrá-lo", de não querer mais reconhecer que ele era o homem, quando tudo que ela fizera fora apenas deixar de ser submissa e humilde como ele gostava, para ser uma pessoa de verdade. É interessante notar que os casais que se submetem à Terapia Primal nunca mais se separam. Não sentem mais necessidade neurótica de alguém mais porque já sentiram suas verdadeiras necessidades. Já não existe razão alguma para não se darem bem. Não exigem coisa absurdas um do outro porque não são irreais. Cada cônjuge torna-se apenas um ser humano razoável que se contenta em viver e deixar que os outros vivam. Os pacientes que se submeteram à Primal já não toleram mais fingimentos e, sendo assim, afastam-se de muitos velhos amigos. Preferem manter relações entre eles e é comum saírem casamentos dentro do grupo. As amizades deixam de ser possessivas para serem tolerantes, e isso se nota até mesmo em seus rostos. Já não são mais aquelas máscaras forçadas para esconder sentimentos. Não precisam fingir para o mundo e, portanto, o seu semblante é natural. Verificam que já não precisam de tanto dinheiro como antes. Comem menos, saem menos e levam vidas mais moderadas. Os leitores ávidos, especialmente aqueles que devoraram romances, abandonam grande parte de suas leituras. Uma paciente explicou que a necessidade de ficção, que antes a dominava, era para viver fora da realidade, e aquilo já não era mais necessário. Suas vidas já não são mais tão regimentadas. Comem quando sentem fome, compram roupas só quando precisam e procuram satisfação sexual quando sentem tal necessidade e não quando estão tensos. Isso significa menos atividade sexual mas também uma apreciação mais completa daquela que é praticada. A maior parte passa a ouvir mais música do que antes, conforme me disseram alguns diplomados universitários. Será que a vida deles torna-se monótona e insípida? A resposta é afirmativa pelos padrões neuróticos, mas devemos lembrar que a excitação nos neuróticos é o resultado da tensão. Isto quer dizer que o neurótico está constantemente num estado de excitação interna e que muitas vezes condiciona a sua vida para funcionar
com ela. Ele se entrega a toda sorte de atividades mas logo que elas cessem, a tensão se instala outra vez. De uma certa forma, a pessoa torna-se um novo ser humano depois de haver passado pela Terapia Primal. Ela nunca sente-se eufórica demais nem tampouco deprimida. Apenas sabe o que isso significa. É muito difícil encararmos uma pessoa irreal porque estamos sempre pensando estar em contato com alguém ausente. Todo contato com as pessoas que passam pela Primal torna-se agradável, pois sentimos estar falando com gente que existe. O indivíduo pós-Primal encara de forma diferente a solidão. Uma pessoa que se submeteu ao tratamento durante dois anos disse-me que a solidão já não era problema para ele. Já não sente a mesma angústia que antes da terapia. Sente-se bem em companhia de si mesmo e acha que essa é a melhor que existe. Ele não precisa recorrer ao álcool para rir ou ser amável, como acontece com tantos neuróticos. Sente um imenso alívio por estar livre de quaisquer compulsões. Delicia-se com o fato de estar livre de alergias, dores de cabeça ou quaisquer outros sintomas. Tem um verdadeiro controle da vida. Já tratei antes da questão de empregos. É um fato que muitos pacientes mudam de empregos depois de passar pela Terapia Primal. Houve um que me disse que "antes eu vivia para o emprego, mas agora vivo para mim mesmo." Geralmente a sua atitude consiste em encontrar alguma coisa que goste de fazer sem se preocupar com seu valor como carreira. Houve um que achou melhor ser sapateiro do que galgar posição importante numa companhia de seguro. Gostava de trabalhar com as mãos, mas não tinha coragem de fazer aquilo porque vinha de uma família de classe média de alguns recursos. Enquanto não encontrava trabalho, confessou-me que, pela primeira vez na vida, sentia-se aliviado por não ter um emprego. O trabalho demasiado ou as ambições intelectuais fora da realidade não fazem parte da vida de quem já passou pela Primal. Isso talvez seja uma reação a uma sociedade que faz apoteose do auto-sacrifício, mas não quer dizer, contudo, que todas as carreiras sejam abandonadas. Muitos continuam em suas profissões. Tudo depende da motivação neurótica quanto à escolha da primitiva carreira. A pouca importância dada aos empregos e carreiras é também devido a um outro fator. Durante anos, ou talvez décadas, o corpo e a mente do neurótico foram atropelados. Ele precisa de tempo para se reagrupar. Precisa de um período de cura não somente para a sua condição de neurótico como também pela dura experiência com a Terapia Primal. O fato de não ser mais neurótico depois de muitos anos é uma experiência inteiramente nova e ele precisa de tempo para poder saboreá-la.
Relação com os pais Uma das mais previsíveis mudanças devidas à Primal é a relação do paciente com os pais. Quando os filhos deixam de lutar para conquistar o amor dos pais a situação inverte-se e são os pais que saem para a conquista do amor dos filhos. Quanto mais normalmente se comportarem os filhos, mais desesperados se tornam os pais. Devemos ter sempre em mente que o filho neurótico é uma defesa para os pais, já que eles foram, usados para abafar a Dor dos mesmos. Era contra os filhos que os pais podiam se virar para sentirem-se superiores. Ela era a filha carinhosa que cuidava de sua mãe. Sem ter um filho para quem possam escrever, telefonar ou visitar, os pais logo começam a sentir a sua Dor ao mesmo tempo que verificam o vazio de suas vidas. Começam então a lutar para trazer o filho de volta àquilo que ele era. Aí já são os pais neuróticos que são realmente a criança pequena que necessita de conselhos e conforto, e de todas as coisas que nunca conseguiram de seus próprios pais. Por que será que são os filhos que se tornam os sintomas dos pais neuróticos? Por que os pais não descarregam sobre outros? Simplesmente porque os filhos são os mais indefesos e, portanto, os pais não precisam de tantas defesas para eles. Isso significa que os pais encontram mais facilidades para descarregarem sobre os filhos os seus antigos sentimentos reprimidos pois eles não podem reagir. Eu creio que a melhor maneira para chegar a uma conclusão sobre alguém é observar quais são as suas relações com os filhos. Se os pais amargaram a vida quando eram crianças, debaixo do jugo de seus pais, então, eles podem tentar mostrar-se certos cada dia de sua vida como pai, fazendo com que seus filhos sintam-se errados, ou pode mostrarse importante fazendo com que o filho se dê conta que nada vale. Pode também seguir um outro caminho igualmente destruidor fazendo com que o filho se torne importante para que ele, pai, possa sentir-se ainda mais importante. De qualquer forma que isso seja feito, o resultado é o uso de uma criança indefesa para instrumento de velhos problemas dos pais. O fim desse processo é que a criança perde a noção de suas próprias necessidades (é o split) na sua ânsia para satisfazer aos pais. Acontecem coisas muito sérias com os pais de pacientes pós-primais. Geralmente tornam-se deprimidos zangados ou doentes. A mãe de uma moça de uns vinte anos ficou muito doente e teve que ser hospitalizada sem que fosse possível diagnosticar o seu mal, até que a filha foi para a sua cabeceira. Aí tudo desapareceu. A mãe de um rapaz que era efeminado ficou furiosa com a sua agressividade e reclamou em voz alta "O que foi que aconteceu com o meu doce filhinho?" Uma outra caiu em profunda depressão quando sua filha deixou de visitá-la todas as semanas e resolveu viajar para uma escola. Tinha vivido toda a sua existência agarrada à filha e não podia imaginar ficar sozinha no mundo.
Torna-se extremamente difícil para o paciente pós-Primal tolerar toda a irrealidade dos pais, e então ele procura afastar-se deles para evitar certos conflitos. Os pais neuróticos não querem saber dos filhos como eles são porque desejam sempre moldá-los para atenderem às suas necessidades e abafar as suas dores. Um paciente chegou a dizer que fora um órfão que tinha pais, só que eles eram os pais do filho que inventavam e nunca se preocupavam com o real. As dificuldades começam durante a Primal quando o paciente descobre, pela primeira vez, o que deseja e o que, infelizmente, nunca é o que os pais também querem. É um período difícil e trágico para filhos e pais. O paciente pós-Primal não se torna deliberadamente cruel e não mostra aos pais os seus pecados. Sabe que eles não vão modificar-se e que serão sempre os mesmos, Ele vai agora cuidar só de sua vida o que, alias, é o que nós todos desejamos. Lembro-me de uma moça que passou toda a sua vida servindo de intermediário entre o pai e a mãe que viviam brigando. Quando ela deixou de exercer o pesado papel de pacificadora, descobriu que eles, finalmente, já se davam bem. O que acontece muitas vezes é que os filhos tornam-se mais valiosos para os pais quando esses últimos são obrigados a lutar pelo amor dos filhos, quando antes nunca lhe haviam reconhecido valor algum. Assim, à medida que os pacientes pósprimais tornam-se mais reais e independentes, eles constatam que são mais procurados pelos pais. Os pais nunca percebem que quando um filho, que talvez já tenha seus quarenta anos, não interfere em suas vidas, é porque ele está realmente lhes dando uma demonstração de amor. Antes da terapia os pais mediam o amor pela quantidade de visitas, de telefonemas ou de presentes caros. Quando o filho já não cuida da quantidade e sim da qualidade de sentimentos que lhes oferece, os pais neuróticos muitas vezes não sabem como reagir porque nunca levaram em conta os sentimentos dos filhos. O paciente pós-Primal pode manter relações com os pais em termos outros que não sejam de luta. Desde que chegue ao ponto de aceitar a si mesmo, ele já pode aceitar também os pais. Percebe que se agir como neurótico aquilo será para ele como se fosse uma sentença de prisão perpétua e ninguém escolhe isso voluntariamente. Depois de tudo por que passou ele tem uma profunda compreensão da dor dos pais, pois sabe que eles também eram vítimas. Ser pai é uma tarefa difícil pois envolve a pessoa moldar-se em si mesma e não naquilo que precisa para ela. As necessidades não satisfeitas dentro de um pai servem de prova se ele pode ou não ser um pai criador. Não importa se esse pai é um psicólogo ou psiquiatra; desde que essas necessidades sepultadas ainda estejam lá, o filho sofrerá. O vulto do sofrimento do filho dependerá do quanto o pai tenha sido obrigado a apagar-se para viver com seus pais. O que o pai verá no filho é a sua própria necessidade e a esperança que alimentava de realizá-la. O filho nunca será considerado pelo que ele é, e isso começa logo com o nome que lhe dão no batismo.
Há certos nomes que, de antemão, representam as expectativas dos pais logo que ele nasce. O pai também pode ser uma boa pessoa que tudo faz para viver bem com os filhos, mas que, devido às suas necessidades anteriores, tem que estar sempre reclamando. Há pais que falam tanto que não dão vez aos filhos para terem suas próprias ideias. Uma vez que os pais neuróticos veem refletidas nos filhos as suas próprias necessidades, o filho que mais sofre é aquele cujos pais mais necessitam. Os pais que destroem não são aqueles que parecem excêntricos e sim os que têm aspirações e ambições para os filhos. Isso não irá permitir que os filhos tenham personalidade já que eles estarão sempre muito ocupados satisfazendo as necessidades dos pais. Os pais destrutivos, em suma, são aqueles com os quais os filhos foram obrigados a transigir. "Eu farei isto se você fizer aquilo." Isso é o amor sob condições e a condição imposta é que o filho torne-se neurótico. O indivíduo que passa pela Primal vai magoar-se outra vez, especialmente com a violência e as moléstias que vê em torno dele, mas não vai ser neurótico nunca mais. Será afetado pelo que acontecer em torno dele mas esses acontecimentos não conseguirão dividi-lo. Em resumo, ele reagirá com sentimento e não com tensão. É um ser humano vulnerável, diretamente afetado pelos estímulos no mundo, mas nunca será dominado porque pode contar consigo mesmo todo o tempo. Eu sou de opinião que ele vai construir um novo mundo para viver, um mundo real destinado a resolver os problemas reais de seus habitantes.
Gary O caso que se segue vai com todos os seus detalhes para mostrar como funciona o processo da Terapia Primal. Mesmo assim, ainda foi preciso fazer alguns cortes em vista das restrições de espaço. No princípio do tratamento Gary era praticamente um paranoico. O seu primeiro grupo foi marcado por uma discussão com outro membro do grupo pois ele acreditava que essa pessoa e eu estávamos combinados para isolá-lo. Escondia seus sentimentos com demonstrações de indignação. Nós fizemos a sua raiva desaparecer e isso levou-o ao seu ferimento afastando-o da paranoia. Chamo Gary de "brigão das ruas" porque essa era a sua principal ocupação antes dos vinte anos. Agora ele já "não fica mais zangado" e essa mudança reflete-se no seu rosto e no modo de falar. Logo que chegou ele parecia ser durão tanto no comportamento como na aparência. Agora já podemos classificá-lo como "delicado." Antes da terapia ele tinha algum problema que o mantinha sempre meio encurvado, mas agora isso já desapareceu e ele anda bem desempenado.
25 de fevereiro Hoje eu explodi pela primeira vez. A sensação é como se a gente tirasse um grande peso do peito e começa então a despejar o que tem dentro. Foi tudo saindo aos borbotões em ondas e torrentes. Nunca pensei, conscientemente, em deter alguma coisa. Não tenho certeza de sentir-me expurgado, e nem sei mesmo se esta é a palavra certa, mas me sinto mais leve e mais à vontade. Depois senti-me esgotado, senti minha energia solapada, menos hostilidade e, certamente, não tinha raiva de ninguém. Toda a avalanche parece ter sido espontânea e, pelo menos, não consigo lembrar-me se foi Janov ou eu que provocamos ou quem começou, mas tenho certeza que toda essa porcaria vem fervendo em mim durante os últimos dezoito anos mais ou menos. De repente eu senti-me envolvido, como se fosse um orgasmo, aproveitando-me de tudo o que ele tinha com gritos, explosões, lamentações, palavrões, gemidos. Vomitei uma porção de coisas que julgava haver desde muito esquecido completamente, mas agora vejo que estavam apenas armazenadas, e que vinham me devorando durante todos esses anos. Disse coisas que já desejara dizer milhões de vezes antes sem nunca conseguir. Agora, esta noite, eu sinto um pouco da solidão e da dor que venho tentando afastar. Sei agora que a dor é uma coisa física, e quando somos obrigados a trazê-la à tona ficamos engasgados porque é tão nauseante sermos forçados a lembrar. O sofrimento que tenho armazenado dentro de mim deve estar podre e venenoso depois de todos esses anos, mas sei que preciso expulsá-lo para fora de mim para então poder ter a oportunidade de viver decentemente, pelo menos de agora em diante. Continuo encontrando dificuldades para encontrar-me. Hoje tirei um sono de uma hora e depois fiquei só comigo o resto do dia até a hora do jantar. Ainda não posso induzir-me a sentir realmente as coisas. Fico ruminando no meu espírito procurando alguma coisa para ocupar meu pensamento, um pedaço de um poema ou de uma canção. Continuo a lutar comigo mesmo. Acho que procuro fugir de sentimentos ou de sensações. O mais difícil mesmo é ficar só. Acho que estou chegando à conclusão que sou um chato. O resto da tarde não foi muito mal. Fiquei deitado de costas a maior parte do dia procurando tornar a viver o que já me havia recordado durante o dia todo, mas sem conseguir. Fui para o grupo à noite e tendo chegado com dez minutos de atraso levei a bronca do Janov, dizendo que não queria saber de hora de neuróticos. Eu nunca tinha pensado naquilo sob tal aspecto. Eu agora percebo como estou doente porque vejo toda aquela gente lá sem vergonha nem medo do que fazem deitados no chão. Teve um cara que me fez ficar todo enrodilhado por dentro e eu percebia toda a minha luta interna sem nada conseguir. Eu também não tenho bem certeza se
algum deles me causou alguma impressão. Cada vez percebo mais que há uma luta por dentro de mim e comigo mesmo para não sentir as coisas. Basta ver o que sinto nas tripas. Quando voltei ao motel fiz tudo para conseguir chegar à minha Primal, mas só o que consegui foram algumas lágrimas. Tentei recriar as condições propícias mas nada consegui. Sentia um tremendo aperto no estômago. Estava apertado mesmo. Tentei a tal coisa de papai, mas nada. Finalmente, um pouco mais tarde descansei e senti-me tão melhor que tornei a descansar e uma hora depois tentei novamente a Primal mas ainda nada consegui. Continuava a sentir o aperto, mas já não era tão forte. Isso tudo durou de dez até doze e trinta. 26 de fevereiro Mais uma vez, pela terceira noite consecutiva, não consigo dormir profundamente. Não tenho sonhos. Viro-me na cama e acordo algumas vezes. Acordei às 2, 6h45m e 8h15m. Saí da cama às 8h30m. Tomei um pequeno café e fiquei ouvindo o Bolero enquanto batia isto na máquina. Vou ficar só comigo mesmo até a hora da consulta na parte da tarde. A Primal de hoje foi uma devastação. Fiquei assombrado quando vi o quanto tinha armazenado em matéria de sofrimento. Isto é que eu acho verdadeiramente notável nesta terapia. Estamos sempre nos espantando com a quantidade de veneno que conseguimos acumular em nosso corpo. Creio que no meu caso o que estou fazendo agora é dizer a uma porção de gente "foda-se" o mais alto que posso e com o máximo de veneno possível. Não podia fazer isso quando era menino porque não tinha defesa. Uma outra coisa boa a respeito dessa Terapia Primal é que ela prova para a gente que os sentimentos e a Dor são coisas físicas e reais. E uma coisa que está lá nas nossas entranhas dilacerando-nos ou então também pode estar nos ombros ou no peito. Quase ficamos engasgados quando abrimos a boca para respirar. A Dor é uma coisa nojenta. Hoje cheguei a pensar que ia ficar perturbado. Não conseguia parar de xingar meus velhos e depois virei-me para os garotos. Sintome satisfeito, e aliviado por haver gritado aquilo tudo. Estou me sentindo bem mal. Sou realmente um cara bem doente mentalmente. Preciso me recompor todo. Depois de um almoço ligeiro fui de carro até a praia. Creio que já fui lá centenas de vezes, mas dessa vez eu estava bem sozinho. Eu e a praia. Caminhei na beira-mar uma boa estirada, pisando conchas e pedacinhos de pau, sentindo meus pés mergulharem na areia bem molhada. Ventava muito. Era um vento penetrante que me atravessava a roupa e ia até os ossos. Era uma delícia respirar bem fundo e fiquei com o rosto esfogueado. Não consigo explicar, mas hoje, quando estava lá, senti-me cheio de vida, como já não me sentia desde muito. Sentia-me vivo mesmo. Agora já não acho tão ruim a história de solidão. Já vejo que posso ficar só horas esquecidas sem sentir-me nervoso e tomo mais interesse pelo que se passa no
meu corpo. Já não preciso mais uma ajuda como um rádio ou livros. Mas ainda não acho que é o bastante. Esta noite fiquei só outra vez. Espero que consiga dormir, mas talvez fosse melhor se eu passasse uma outra noite horrorosa porque essa é a única forma para depois ter noites boas. Acabo de notar que quando fico raivoso as coisas que falo são palavrões, mas essa não é a parte mais interessante, e sim aquela em que começo a falar a linguagem rude e grosseira de outros tempos. Parece que estou fazendo de propósito escolhendo a única linguagem que tenho a certeza de ser bem compreendida por eles. Acho que há muita realidade no que falo e assim não preciso dar-me ao trabalho de ficar procurando palavras. Aquela que sai lá de dentro é sempre a que está certa. Acabo de pensar numa coisa que me parece importante. Quando estou atravessando uma Primal com os velhos, fico sempre esticando os braços como se quisesse alcançá-los no rosto, mas hoje, com meus irmãos, não me lembro de ter feito isso. Esmurrei o sofá para valer mas não dirigi meus socos para eles, e acho que isso é importante. Também, se é que estou bem lembrado, não lhes disse palavrões. Uma outra coisa que muito me intriga é que quando estou falando com o meu velho estou sempre batendo em mim mesmo, e batendo de verdade. Embora não dê para machucar-me fico bolando qual será a razão para eu estar batendo em mim mesmo. Deve ser a culpa. Estou tão cheio de culpas que cheguei a pedir desculpas a meus pais hoje tentando explicar-me. Mas seja lá o que for, creio que o Janov está certo quando diz que estão me magoando, pois estão mesmo. Eu sei porque estou com a Dor. 27 de fevereiro A noite passada até que foi bem boa. Dormi muito bem. Não sei se isso será bom ou mau para a terapia. Fiquei só durante um longo período de pouco mais de quatro horas que passaram com relativa facilidade. Tentei chegar à Primal sozinho, mas só o que consegui foram lágrimas. Acho que a sessão de hoje foi boa. Não tive nenhum ataque violento como nos três dias anteriores. Mesmo assim, ainda grito muito e me debato. Parece que nos últimos dois dias consegui estabelecer mais ligações. Não sei se isso está certo, mas vejo-me chegando a uma certa conclusão a respeito de alguma coisa e depois consigo estabelecer um elo com algo importante. Não tive acessos de choro hoje, mas também não senti nada que me fizesse chorar. Quando digo "senti" estou me referindo a um sentimento de necessidade física que realmente está bem viva dentro de mim. Nunca mais vou duvidar que os sentimentos sejam coisas físicas reais que acontecem dentro de mim e que passarão a acontecer do lado de fora desde que me permita senti-las assim. O estranho é que desde que eu sinta isso muitas vezes a sensação abandona-me. Por exemplo, hoje eu não tive vontade de chorar por estar só ao passo que nos últimos dias isso levava-me a fortes
crises de lágrimas. Hoje tudo se resumiu em falar. Sinto-me confuso sobre o que isso possa ser. Poderia significar 1) que eu estava bloqueando o sentimento, mas isso eu duvido porque o Janov não permitiria ou então 2) que eu poderia viver com o sentimento sem ser preciso chorar, se é que isso faz algum sentido. O que eu quero dizer, por exemplo, é o seguinte: Uma mulher tem que passar pela sensação de ser obrigada a perder um seio por causa de câncer. Ela chora a não poder mais pôr causa disso e sente toda a tristeza, mas então perde o seio mas consegue viver com a dor que isso lhe causa desde que ela a sinta ou tome conhecimento dela. Creio que isso já faz algum sentido. Foi muito chato hoje quando tive que reconhecer que havia mentido para Janov. Sentia uma dor na parte de trás da cabeça e na área do mastóide. Janov disse que era um "pensamento não sentido" e ele estava certo mesmo. O pensamento era o conhecimento que eu tinha de haver mentido e estar guardando um segredo, e a dor era porque eu não estava sentindo aquela sensação. Em resumo, eu estava doente. Consegui expelir a mentira e quase imediatamente a dor desapareceu, apenas uns dois ou três minutos depois. Eu havia passado a noite em casa quando na verdade devia ter ido para o motel. Claro que com isso criei dificuldades para a minha terapia. Só fiz por causa do dinheiro que não queria gastar, da mesma forma que meu pai. Mas realmente, se acontecer que, depois de todos os meus esforços para não ficar parecido com meu pai, eu ficar mesmo parecido com ele em algumas coisas, então já não compreendo porque me deixei ficar tão doente. O que é realmente muito estranho na Terapia Primal é o fato de a gente não poder mentir para o terapeuta pois se isso acontecer teremos certamente que acabar contandolhe a verdade. No fim já ninguém tem vontade de mentir. Isso será realmente muito bom para mim, pois toda minha vida fui um mentiroso inveterado, e desejo sinceramente não ser mais. Hoje, de 1 h45m até 5h30m fiquei só, e depois também das 6 até meia-noite. Não foi muito ruim e cada vez está ficando mais fácil. Também é possível que alguma coisa não esteja certa aí porque eu deveria sentir mais dor e sofrimento. Também pode ser que aí esteja o que há de errado comigo. Talvez eu sinta que preciso punirme por alguma coisa. 1.° de março Estava muito nervoso e inquieto na sessão de sábado de manhã. O primeiro cara do grupo fez-me ficar cheio de ansiedade. Senti uma apertura no estômago; fiquei com a garganta seca e meu corpo queria se retesar. Quando Janov me fez o sinal que era a minha vez senti mais alívio do que medo. Fiz o melhor que podia, mas não sei se fiz bem. Tudo aquilo parecia-me terrível. Era a primeira vez em toda a minha vida que eu ouvia tanta lamentação, choro e gritos sem ficar aterrorizado. Eu parecia estar por dentro e nada mais. Uma pessoa começava a gritar e aquilo
despertava um outro, e logo que as coisas estavam se aquietando um outro entrava em cena e tudo recomeçava. Finalmente tudo sossegou como se todos tivessem chegado a uma conclusão natural. Isso também só acontece na Terapia Primal. O terapeuta não perde a calma com o menor grito ou gemido do paciente. Ele, ao contrário, provoca-os. E aqui está o Janov andando no meio dos corpos deitados falando pacientemente com um e com outro, fazendo sinais para sua mulher, enquanto à sua volta todo mundo grita e chora a sua dor. E durante toda a trapalhada ele não para de tomar café. Não sei por que não desandei a dar gostosas gargalhadas diante daquilo tudo. Era tudo tão estranho! Tão fora de realidade! E foi então aí que percebi que era a minha vida, a minha vida de cérebro lavado, que me fazia pensar que tudo aquilo era irreal. Nada poderia ser mais real do que aquilo, do que aquele sofrimento realmente humano. Só que minha estúpida educação insistia em dizer-me que as pessoas não choram quando sofrem. Elas escondem os seus sofrimentos como bons palhaços que são. Então aquilo era real. Depois eu senti-me expurgado, limpo e cansado. Eu não chorava tanto quanto os outros embora tivesse chorado mais que alguns, mas mesmo aquilo não tinha importância. Passei algum tempo na praia e procurei alguma coisa boa. Fui comprar ostras e mexilhões. O vendedor falava sem parar e eu tinha a impressão que aquilo não acabava mais embora talvez tivesse durado apenas alguns minutos. De qualquer forma senti-me impaciente e nervoso. Parecia desamparado e minha garganta foi-se apertando, meu estômago foi-se embrulhando. Eu só queria dar o fora no sacana e voltar para a beira da praia com as ondas lambendo-me os pés e sentindo o cheiro de maresia. Cheguei a pensarem sair correndo deixando ali em cima do balcão as ostras já embrulhadas que ainda não estavam pagas. Não saí. Eu realmente queria uma coisa que eu e minha mulher gostávamos muito. Depois do jantar fui para o quarto onde fiquei algumas horas. Não aconteceu nada e eu sentia-me bem tranquilo. Assisti a Morangos Selvagens e chorei. Não estava pronto para aquilo. Acho que foram as relações do cara com seu pai (o médico) que despertaram alguma coisa em mim e ainda senti mais quando o próprio doutor não conseguia sentir... Fui para a cama às duas depois de ficar sentado na sala sozinho durante algum tempo. 3 de março Estou começando a segunda semana de terapia individual. Durante as últimas cinco noites tenho dormido bem, com exceção de sexta-feira. Mas há uma diferença. Muito antes de eu começar a terapia, muito tempo antes mesmo, até me parecem anos, meu sono era como se eu estivesse drogado. Não só dormia como uma pedra como também era uma pedra para acordar. Acho que era porque eu estava usando o sono para fugir de meus sofrimentos e problemas. Especialmente nos últimos seis meses, eu vinha usando o sono como uma forma de escapismo. Mas agora já durmo tranquilo e também desperto com facilidade saltando logo da cama sem aquela
agonia de antes. Se eu viver mais uns trinta anos e continuar a fumar como agora, uns trinta cigarros por dia, eu gastarei com isso uns seis mil dólares. Mesmo que a terapia me custe dois mil ou dois mil e quinhentos dólares, eu ainda estarei lucrando se com ele deixar de fumar. Aliás já deixei mesmo. Posso até viver mais de trinta anos. A sessão de hoje foi muito boa. Diria até mesmo que estava agradável, mas o que quero dizer mesmo é que sinto estar fazendo alguma coisa realmente boa para minha saúde mental. Coisa estranha a respeito de meus pais. Fico sentindo coisas diferentes mudando de raiva para tristeza, para pena, para indignação, para desprezo, para defesa, quando penso neles. Ficou muito confuso. Agora sei que eles sempre foram e são aquilo que são. Não há nada que possa mudar isso. Não há nada que faça mudar o sofrimento e a dor que me causaram. Mas também descobri alguma coisa que não sabia. Eu também lhes causei muitos sofrimentos. Talvez menos sérios, talvez menos marcantes, mas eu também retribuí. Só que comecei na defensiva e depois passei para a agressão. Mas foram eles que iniciaram tudo. E o resultado agora é um só: tristeza, desperdício e tragédia. Eu agora sinto a terrível tragédia humana de gente que vive junto, confinados em lugares apertados, agredindo-se e ferindo-se uns aos outros e deixando sempre profundas cicatrizes emocionais. Agora é que eu vejo como tudo é tão triste. O que digo é que tudo isso me faz chorar mesmo de verdade, e não são lágrimas de amargura e sim lágrimas tristes e sinceras. Não choro mais como fazia a semana atrasada na base do comofoi-que-isso-aconteceu ou antes-tivesse-sido-assim. Eu agora choro simplesmente porque sinto o trágico desperdício humano, o sofrimento e o prejuízo. Telefonei hoje para meus pais. Primeiro, quando meu pai atendeu, eu não conseguia nem falar. Consegui finalmente e estou até espantado como foi fácil falar com o cara. Com minha mãe já foi um pouco diferente. Durante a conversa conteilhe que tinha sofrido uma crise de estafa. Ela nem quis ouvir-me. Já se habituara a não me ouvir e não queria saber de nada. Não sei o que é que há com ela. É um negócio de "meu filhinho não é desses", etc. etc. Foi então que lhe contei direitinho que era um ataque mental e físico ao mesmo tempo, e aí ela pareceu mostrar alguma preocupação ou interesse, mas não alarma. Reagiu com aquelas expressões costumeiras que eu estava já farto de ouvir. De um modo geral não foi muito satisfatória a conversa. Durante o resto da tarde descansei sozinho. Susan não estava sentindo-se bem de manhã e eu resolvi fazer o jantar. Fiz arroz com cury, salada e as ostras. Elas estavam ótimas e eu comecei logo que ela chegou em casa e ficamos os dois a olhar como se abriam na água fervendo. E aí comecei a sentir uma coisa engraçada imaginando que as ostras eram criaturas, que eram muito feias, e comecei a rir muito. E então pela primeira vez, desde muito tempo, senti-me despreocupado e realmente bem disposto. Fiquei só o resto da noite.
4 de março Na sessão de hoje fiquei muito confuso quanto ao que sinto por meus pais. Sinto a dor dos sofrimentos, a dor da própria dor, a dor da tristeza. E agora posso sentir como é dolorosamente triste, realmente triste, toda a tragédia e a futilidade humana. Acho que ontem eu queria que minha mãe mostrasse algum interesse ou verdadeira preocupação. Sei que se meu filho me telefonasse dizendo que tinha tido uma crise mental, eu logo teria reagido com providências com alguma coisa que ele pudesse querer de mim. Foi nesse ponto que comecei a sentir que minha mãe já não sabia como reagir. Culpei-me um pouco por aquilo pensando que sempre houvera resistido à sua afeição no passado e que seus conselhos nunca tinham muita substância, que quase sempre eram ridículos. Fiquei confuso sem saber mais o que dizer nem a quem dizer. Só conseguia sentir a trágica tristeza de toda a trapalhada. Esqueci de dizer que também tinha telefonado para meu irmão Ted ontem logo depois que falei com minha mãe. Com ele a conversa foi um pouco maluca logo de saída. Contei-lhe o que havia e ele ficou surpreendido. Perguntou-me especificamente qual a razão de eu me submeter a tratamento e eu respondi que sentia-me infeliz e bem fodido. Ele não compreendia. Então eu perguntei se ele lembrava bem como eu era lá em Brooklyn quando dava-lhe surras, perseguia-o, sempre mandão, cruel e mau, e também com os outros companheiros. A sua resposta espantou-me quando disse que todos os irmãos eram assim, que aquilo fazia parte do crescimento. Ele não chegava a perceber o problema mais sério, o que significava ter que viver com a Dor reprimida daquela espécie de vida e o que aquilo fazia com os nossos miolos. Quando lhe disse isso ele reagiu dizendo que sempre que se sentia na merda ele logo pensava que ainda tinha sorte porque poderia ser muito pior. Ele com certeza pensa que com isso seus problemas acabam, mas duvido muito. Certamente engole a dor como faz muita gente e continua a viver sem senti-la. Continuou dizendo que todos nós na família tínhamos sorte porque as coisas não estavam ainda piores. Tínhamos sorte porque nossos pais ainda estavam vivos quando acontecem tantos desastres de automóvel, tantos incêndios. Por um momento cheguei a imaginar que ele estava falando como se eu estivesse me queixando. Mas então eu vi tudo. O que é real é real mesmo, e a Dor de um sofrimento é real. E também é real o processo de cada um se defender ou de se isolar mentalmente de outras dores. E essa é a realidade real pela qual estou passando. E portanto, não adianta eu ficar me julgando com muita sorte mediante uma teórica comparação com alguma infelicidade abstrata. Não faz a gente sentir. Apenas nos proporciona uma experiência cerebral que as coisas poderiam ser piores, mas é só pensamento e não o sentimento. Assim, o que meu irmão faz realmente, ou diz que faz, é anestesiar-se contra a dor pensando em alguma coisa diferente. Seria realmente fantástico se todos os que sofrem ficassem imaginando que as coisas poderiam ser piores e com isso diminuíssem suas dores, mas não é isso que acontece. É preciso a gente sentir, reviver ou realmente viver a Dor pela primeira vez
para poder expulsá-la de nosso sistema. Então eu contei ao Janov a conversa que tive com meu irmão. Mas agora, neste instante, ainda tenho toda essa confusão na cabeça. Já começou aquela dor, aquela mesma dor que já senti antes milhares de vezes. É uma dor estranha e quando a sinto fico num estado de perturbação ou irritabilidade, de chateação ou indecisão. Em outras palavras, é como se alguma coisa estivesse me cutucando à espera de uma decisão ou solução sem que eu saiba o que fazer. Então sinto a dor na cabeça e fico extremamente agitado não pela dor mas sim por saber que fui eu mesmo quem a provocou. Fico agitado até o ponto de querer gritar, de insistir para me fazer ouvir, ou então de bater em alguma coisa, etc. Geralmente consigo livrarme dela explodindo e depois deito-me para descansar ou recuperar. Foi nesse ponto que senti a dor e fiquei irritado, senti todo o corpo coçando e muito agitado. Tremendo em espasmos. Senti-me como se estivesse preso num casulo elástico debatendo-me com todo o corpo para fugir dali. Queria uma solução ou uma resolução acerca da confusão com meus pais. Fiquei ainda mais agitado, e quando Janov perguntou-me o que estava sentindo eu disse que era "nervoso", que era a palavra que julgava mais apropriada para toda a minha complicação. Ele disse "tortura" e eu achei que era mesmo aquela a palavra mais apropriada. Estava sendo torturada por meus pensamentos e sentimentos juntos com a dor. E logo em um minuto, ou menos, a dor saiu completamente de minha cabeça. Saí e fui falar com Ted hoje de tarde. Ele perdeu o emprego e também sentese perdido. Está mesmo perdido. É tudo o que posso dizer. Gosto muito dele mas não vejo o que posso fazer para ajudá-lo agora. Ele certamente gostaria de receber algum auxílio da família, mas eu não estou em condições. Fiquei só ouvindo e ele falou quase sozinho. Parecia estar no fim e eu não sabia o que fazer. Ele dizia que só podia trabalhar num posto de gasolina pois era a única coisa que sabia fazer. Não sei o que há com ele para que tenha pretensões tão humildes. Será que não espera alguma coisa melhor da vida? Acho que ele está mesmo bem fodido e nada mais posso fazer senão sentir pena. De noite comecei a pensar como andava imaginando que não estava ficando melhor. Já tinha parado aquela história dos gritos e não sabia se estava progredindo bem. Janov disse-me outra vez que isso era parte da moléstia. Essa ideia de estar querendo sempre ser o máximo em tudo. Não vejo o que tenho de provar. O que será? 5 de março Hoje foi um dia terrível demais. Comecei falando de fantasias homossexuais e da visita ontem a meu irmão. Que raio de merda há comigo de errado? Eu não sou o pai dele e não tenho que me meter fingindo que sou. Que raio! De qualquer forma,
eu queria mesmo era falar nessa história de homossexualismo porque suspeito, sei ou sinto, que sou vítima dessa coisa louca como acontece com tantos outros homens no país. Eu só queria compreender bem aquilo de uma vez por todas. É simplesmente um jogo intelectual de merda dizer que o homem nasce da mulher e do homem e que, portanto, ele traz em si alguma feminilidade por meio da transferência genética ou da hereditariedade. Essa expressão "portanto" é uma merda porque não explica coisa nenhuma. Eu sei disso. Aterrorizante. Realmente. Se alguém me perguntasse como me senti no primeiro dia de minha Terapia Primal, eu teria respondido "aterrorizado". Mas hoje, depois do que me aconteceu hoje, eu diria que aquilo tinha sido apenas um susto porque foi hoje que senti e vi o verdadeiro terror. Muito bem. Então eu entrei naquele tema, cheguei a um estado de agitação, e quando Janov me disse para falar o que sentia, eu disse, "sinto medo". É isso mesmo. Eu quero dizer que não fui eu quem falou a palavra medo. Foi o MEDO que disse "medo". Pensam que é maluquice? Não é não. Na Terapia Primal o verdadeiro sentimento parece que fala por si. Tudo que a gente tem a fazer é abrir a boca e deixar a palavra vir lá de dentro saindo por ali. O que estou dizendo é que ela vem sozinha. A palavra que representa o seu sentimento vem lá das entranhas, desde que a gente deixe, e fala por si mesma. Isso é real. Em outras palavras, a gente não pode mentir na Terapia Primal sem estar sabendo. Claro que a gente pode mentir se quiser, mas a gente logo sente que mentiu porque aquilo tem que vir à tona. Ontem eu passei por essa experiência. O ÓDIO saiu-me da boca. Muito bem, continuei. Logo depois disse, "Medo de ser bicha." Aquilo era incrível porque eram apenas palavras, mas não tinha certeza do que estava dizendo. Poderia ser: 1) Medo? Eu sou bicha, como se estivesse falando para o próprio medo. Ou então poderia ser: 2) Medo de ser bicha, e aí estaria omitindo o muito importante "eu tenho". E então Janov me obrigou a começar a dizer para papai que eu era bicha. Foi mais ou menos nessa altura que eu perdi o controle. Aposto que era uma porra tão terrível que eu fugi com medo do que ia sentir dentro de mim. Durante a próxima meia hora fiquei numa tortura. Comecei a sentir dores e a chorar, e aquilo era mesmo real. Mas aqui há uma coisa espantosa. Cada vez que terminava uma Primal eu ficava com uma espécie de ressaca, um sentimento misturado com uma convicção de não haver feito o que devia. Era realmente fantástico. Eu estava dizendo a mim mesmo que não tinha passado por uma Primal e que aquele troço que eu teria que enfrentar ainda estava lá mesmo para ser enfrentado. Houve uma hora que cheguei bem perto, tão perto que cheguei a gaguejar e pensei que ia vomitar. Eu creio que passei por três Primais falsas antes de receber a mensagem alta e clara de meu corpo que eu estava fingindo, que não estava chegando ao troço real onde algo estava realmente acontecendo. Nesse ponto eu fiquei apavorado. Pensei que ia ficar maluco, ou pelo menos, foi o que eu disse. Mas agora já sei por que falei aquilo. Era
porque não podia lutar com aquela parte de mim mesmo que continuava dizendo que ainda havia alguma coisa que eu teria que enfrentar. Em outras palavras, eu não podia fugir ao que dizia para mim mesmo e estava ficando muito agitado. Janov continuava a insistir para eu não oferecer resistência. Creio que ele queria dizer para eu desistir de lutar contra aquilo que sabia mas que não queria sentir. Mas eu não podia fazer nada daquilo. A verdade era que estava realmente apavorado. O que me apavorava, ou pelo menos aquilo que mais certo me parecia, era a possibilidade de ver-me como um homoerótico. Conservava na lembrança um retrato meu ao colo de meu pai e também que estava gostando, mas então olhei e vi que era um homem e fiquei enojado. Chegaram-me aos lábios as palavras "vergonha", "repulsa" e "nojo". Não sei bem o que foi que me fez ficar todo torto. Podia ter sido porque estava gostando do contato físico com um homem, podia estar sendo isso mesmo. Também podia ser que estivesse sentindo bem lá dentro algum desejo imediato de ejacular porque ainda estava sentindo na piroca uma necessidade premente de mijar. Janov diz que não deixa porque seria como se mijasse tudo que estava sentindo, e então, porque tenho confiança no cara, eu seguro a vontade de mijar e fico muito agitado. Pode ter sido um sentimento, o princípio de um sentimento, que era como se eu fosse um objeto sexual feminino. Isso está bem perto do que eu estava sentindo. Eu estava sentindo que estava gostando de ser aquilo embora por outro lado detestasse por causa do nojo e da vergonha e também pelo ultraje de ser usado daquela forma. Agora acabo de tornar a ler a última frase porque estava sentindo uma espécie de repulsão ao mesmo tempo que batia a máquina e cheguei a um ponto em que já não sabia mais o que estava batendo. Bem, pelo menos já sei o que devo enfrentar. Janov disse-me que era para lá que nós íamos. Para dentro do que era realmente aterrador. Agora, aqui há alguma coisa fantástica. Houve um ponto hoje, quando estava debaixo de grande ansiedade, medo ou coisa parecida, que comecei a sentir todo o funcionamento interno de meu corpo, especialmente na área do coração, do estômago e dos intestinos. Realmente fantástico. Sentia tudo como se fosse uma máquina funcionando, mas o que era realmente notável era eu sentir tudo como se estivesse funcionando em planos diferentes do corpo. Eu disse a Janov que eram camadas, mas agora percebo que sentia as diversas partes de meu corpo funcionarem umas sobre as outras. Não posso dizer quais eram os órgãos que sentia, mas positivamente sentia movimentos e ritmo e uma espécie de funcionamento harmonioso lá dentro de mim. Fantástico. A outra coisa de hoje foi que eu realmente senti-me todo retorcido e fiquei gritando que ia virar menina. Senti-me letárgico como se já não possuísse mais nenhum desejo de lutar. 6 de março
Na noite passada fiquei acordado o tempo todo e acertava o despertador para cada meia hora para o caso de dormir. Devia ser mais ou menos seis e meia quando adormeci. Sonhei que estava namorando, ou coisa parecida, uma mulher que era uma vagabunda mesmo. Tinha uma boceta gigantesca que eu segurava com as duas mãos para espremer ou manipular. Era como se estivesse segurando uma esponja enorme, e depois cheguei-a até a ponta do meu pau e provavelmente esfreguei-a nele. Foi nesse ponto que acordei ejaculando nas calças e, como sempre, sentindo que alguém me fodia. Contei o sonho a Janov hoje e ele perguntou-me se minha atitude com as mulheres era sempre um sentimento delas serem apenas um monte de bocetas. Disse que não, mas depois, no meio de uma conversa, referi-me à minha mãe como uma boceta estúpida, mas depois lembrei-me que sempre usava aquela expressão para Susan e sua mãe e que tinha escrito aquilo mesmo no meu diário na noite anterior. Isto tem importância. A sessão de hoje não foi, nem de perto, o terror que eu imaginava. Eu simplesmente não conseguia chegar a coisa alguma bem profunda e nem mesmo chorei. Apenas umas lágrimas escassas. Isso não me agradou porque fiquei pensando que não estava conseguindo nada. Já contei ao Janov que não fumo mais, aliás não sinto mesmo vontade. Já não tenho mais aquela estranha sensação no estômago quando minha mulher está fazendo alguma coisa que antes irritava-me. Já não sinto mais aquela necessidade de ir ter com ela para conversar fiado. Agora já vejo as nossas relações sob um aspecto diferente. Já posso ouvir meus pais falarem sem ficar impaciente nem sentir por eles a intolerância de antes. Não tenho mesmo vontade de brigar com ninguém. Não sinto mesmo nenhuma disposição para a beligerância. Claro que é ridículo dizer que não estou melhorando. Pois já não faço mais coisas que vinha fazendo desde anos, e isso só com nove sessões de terapia. Além disso tenho ainda muitas outras mudanças em muitas áreas diferentes. Portanto, devo estar maluco se tenho qualquer dúvida quanto ao meu progresso para recuperar a saúde. Isto leva-me a especular que a pessoa "doente", mesmo quando está bem a caminho da recuperação, não gosta de reconhecer isso porque prefere continuar pensando que ainda está doente. 7 de março A sessão de hoje foi um colosso. Um colosso mesmo. Não consigo lembrar-me como cheguei àquela coisa real, mas deve ter sido depois de quase uma hora que gastei em outras coisas. Finalmente comecei a sentir-me muito só, a sentir a solidão. Ocorreu-me então que os filósofos, os existencialistas e todos os outros não sabiam o que estavam dizendo quando falavam em solidão, ou quando tentavam descrevê-la. Não há razão para todas as complicadas expressões que usam, e que, em última análise, são apenas merda e nada mais. Então comecei a fazer funcionar esse sentimento, fechei os olhos, e foi aí que aconteceu alguma coisa realmente grande.
Vi-me um menininho de uns cinco ou seis anos, de pé ao lado de minha mãe que olhava para o espelho só de soutien, com papelotes, e apertando o espartilho. Eu fiquei ali só olhando. Depois cresci. O processo desse crescimento era muito parecido com aquele que Walt Disney usa para mostrar uma flor desabrochando. Em outras palavras, eu vi-me crescendo fisicamente de repente e já era um rapazinho. Então levei a mão direita à cintura como se estivesse analisando minha mãe. E aí procurei seus seios. Não tanto para chupar e sim mais para esfregar meu rosto neles procurando sempre, especialmente, enfiar os bicos nos meus olhos. Era assombroso. Janov mandou que eu perguntasse ao garoto o que ele estava fazendo. Perguntei mas ele não respondeu. Gritei então perguntando-lhe o que estava fazendo como se não pudesse acreditar. Ora imagine esfregar os bicos dos seios nos olhos. Ele não respondeu mas continuou. Eu falei sobre outras coisas, mas sempre olhando para o que o menino estava fazendo. Em outras palavras, para todos os efeitos práticos, ele existia mesmo ali no canto do quarto e ainda mais fazendo aquilo. Para mim, porém, ele estava muito longe e eu cerrava os olhos para ver o que ele estava fazendo. Aí ele diminuiu e voltou a ser o garotinho de seis anos outra vez. Estava sentado em cima das pernas cruzadas, todo encurvado e com as mãos no rosto enquanto uma torrente de lágrimas lhe descia pelas faces. Estava literalmente chorando anos e rios de lágrimas. Nesse ponto eu contei para Janov alguma coisa que me acontecera centenas de vezes. Quando estava meio tonto eu via em minha mente palavras sem sentido. Eram coisas como smplgh, oxwyong, hmply. Janov pediu-me que lhe dissesse quais as palavras que eu via, e respondi-lhe que elas estavam por trás de uma espécie de tela ou cortina como a cortina de teatro. Disse-me para abrir a cortina e dizer-lhe o que via. Lembro-me que tive medo e encontrei dificuldades para abrir. Finalmente vi umas palavras que tentei pronunciar. Então vi um cartaz pendurado em cima do rapazinho encurvado também com um letreiro que não entendia. Ele gaguejava e não conseguia se fazer entender. Durante toda essa experiência eu sentia-me num estado "altamente imaginativo vendo e sentindo". Quero dizer que sabia estar no consultório de Janov mas via e ouvia tudo que se passava no teatro de minha mente embora tivesse os olhos fechados. Estava experimentando uma peça muito simbólica e estava me aprofundando bem. Passou-se mais algum tempo com a mesma coisa do menino chorando e eu aí também já estava chorando. Então Janov perguntou-me o que mais eu via. Isso também foi notável. Vi a minha velha rua cheia de gente, mas só via as pessoas como no cinema, da cintura para cima. Era como se eu estivesse no cinema vendo aquela gente toda andando, mas ninguém falava, todos estavam sombrios e cansados e uns não viam os outros. Então vi por que o meninozinho não conseguia o que queria, e que, naturalmente, era amor. Não tinha amor porque o pai e a mãe não tinham tempo para aquilo. Todos andavam apressados sem se dar conta uns dos outros, e o menino nada conseguia. Janov mandou que eu lhe dissesse e que
procurasse confortá-lo. Eu então estiquei o braço direito e bati-lhe nas costas e nos ombros dizendo-lhe que tudo era assim. Era melhor não procurar saber a razão da falta de amor. Era mais simplesmente constatar o fato e nada mais. Procure tirar alguma coisa boa da vida. Procure uma moça e aproveite o amor os dois juntos. E outras coisas no mesmo estilo. Durante algum tempo falei outras coisas com Janov. De repente o menino levantou-se e correu para mim furioso. E corria mesmo. Parecia estar correndo desde muito anos. Fiquei nervoso, não sei por que. Comecei a gritarlhe que ficasse longe de mim. Dei pontapés e estiquei as mãos para ele não chegar perto mas ele continuava. Lembrei-me de Janov falando "desista de lutar, desista de lutar." Continuei gritando não. E ele continuava a vir. De repente sumiu. Abri os olhos e perguntei muito admirado onde estava ele e por que tinha desaparecido. Janov mandou que eu o procurasse. Olhei em todo o consultório e acabei descobrindo onde ele estava. Janov disse-me que ele estava lá dentro de mim. Eu sabia que estava mesmo, mas não queria acreditar. Fechei os olhos e tentei recompor o quadro para ver novamente o menino. Fiz o possível, mas naturalmente nada consegui. Eu sabia onde ele estava e quem era. E aí então chorei de verdade. Tinha visto minha vida desdobrar-se na minha frente, talvez muito simbolicamente, mas ainda assim, era a minha vida. Não podia haver engano. Fiquei ali sentindo-me esgotado mas um pouco feliz. Aceitava tudo o que tinha acontecido. Tudo era real. Creio que essa sessão foi um bom passo na direção que devem seguir todas as outras sessões. Sinto-me leve depois dela. É como se tivesse tirado um peso enorme de cima de mim. Estava mais leve e mais livre. Mesmo assim, ainda tenho uma dúvida de não haver enfrentado todas as coisas terríveis que começara nos dias anteriores. O tema geral era o medo do homossexualismo e creio que consegui de algum modo envolver-me profundamente nesse assunto. Passei algum tempo na praia no resto do dia, dei umas voltas e vim para casa. Susan não está falando comigo mas isso não me aflige. Cada vez mais dou-me conta de sua doença. O que me perturba muito é o seu egoísmo em me apoquentar quando sabe muito bem como é importante para mim toda essa história de Primal. E ainda assim, ela faz tudo para me contrariar. 10 de março A sessão de hoje foi muito importante. Passei por uma coma consciente, conforme diz Janov e que eu acho lindo. Já antes me referi a isso em outras palavras, mas acho que "coma consciente" é a expressão certa para usar aqui. Comecei procurando relacionar tudo que acontecera ontem. Sentia dificuldade para despertar o verdadeiro sentimento. Comecei a sentir-me perseguido por aquele sentimento estranho e não conseguia articular coisa alguma. Fiquei calado durante algum tempo.
Depois então comecei a sentir o que estava acontecendo. Primeiro, eu sabia que por baixo da raiva há uma dor que eu não queria sentir. A raiva e o fingimento são táticas de manobras de diversão que usamos para esconder os sentimentos reais de dores profundas ou de sofrimentos. Na Terapia Primal nós sabemos disso porque passamos por aí no sofá e se quisermos ficar bons não procuramos fugir à Dor ou sentimento. Por isso eu sabia que estava com um sentimento bloqueado. Só que não sabia como nem por que. Fiquei ali deitado e então descobri como e por que. Sentia necessidade de dar uma mijada. Então percebi a verdade que dizia que tudo que eu realmente sentia era a NECESSIDADE DE ESCAPAR DO SENTIMENTO ATRAVÉS DE UMA MIJADA. Eu não precisava mijar realmente considerando a quantidade de líquido que ingerira naquelas doze horas e o fato de já haver mijado cinco vezes. Assim, tudo que estava fazendo era criar a necessidade de mijar para escapar ao sentimento de uma certa Dor em minhas entranhas. Estava querendo expulsar a Dor pela uretra. Em outras palavras, em lugar de trazer a Dor à superfície eu estava tentando jogá-la fora com a urina. Aquilo era tão simples que eu estava espantado de não haver percebido antes. Então outras coisas começaram a fazer sentido como o fato de muita gente, durante toda a minha vida, sempre haver indagado por que eu urinava com tanta frequência, como se estivessem interessados pela minha saúde, ao passo que outros cumprimentavam-me pelo magnífico funcionamento dos meus rins. Tudo era tolice. Eu estava mesmo era mijando meus sofrimentos e dores. Ao mesmo tempo estava acontecendo uma outra coisa. Não conseguia respirar fundo sem engasgar e apareceu-me uma tossezinha que parecia dos brônquios. Ora, eu sabia muito bem que não havia razão para aquela tosse porque já não fumava havia umas semanas. Portanto, a porra da tosse era também uma manobra de diversão que meu corpo aprendera a praticar para desviar minha atenção das dores e sofrimentos. Fiquei verdadeiramente pasmado. Ali deitado calmamente eu havia compreendido tudo e estava começando a ligar algumas coisas importantes. 1) Existe a dor; 2) Eu quero evitar senti-la; 3) Porque sentir significa sofrimento e dor; 4) Meu corpo inventa a necessidade de mijar como tática de diversão; 5) Assim, eu concentro toda minha força para aguentar a urina; 6) Já agora não posso usar toda a minha força para sentir porque preciso dela para aguentar a urina que quer sair e se eu afrouxar vou mijar no sofá do Janov; 7) Para ter bem a certeza que toda a minha força está sendo desviada, eu "fabrico" uma tossezinha; 8) Agora já preciso concentrar-me para aguentar a urina e a tosse e não tenho mais força para sentir porque, para isso, teria que deixar de controlar a bexiga e não posso fazer isso. Assim, pus-me a salvo do sentimento transformando meu corpo em armadilha. E fico ali deitado e assombrado com tudo aquilo.
Agora lembro-me que uns cinco minutos antes eu tinha-me sentido irritado e tolhido. Agora lembro-me que estiquei-me todo para sentir-me melhor, mas o que estava fazendo mesmo era ajeitar-me para ficar bem calmo. Eu vinha me enganando através- de todos aqueles anos e ANOS! Claro que fiquei calmo quando fiz isso, mas agora já sabia que a calma não era devido à Dor que sentira. Fiquei ali deitado e assombrado por haver descoberto aquela verdade a meu respeito. Fiquei ali bastante tempo, talvez uns vinte minutos e, aos poucos, os verdadeiros sentimentos foram voltando, mas dessa vez deixei-me levar por eles. O sentimento dizia solidão. Janov mandou que eu contasse à mamãe e foi o que fiz, mas ela não conseguiu fazer nada. Ficou ali com a cabeça tristemente caída e os braços pendurados. Eu a via no meu coma consciente. Isso durou um ou dois minutos. Aí ela começou a afastar-se devagar. Acompanhei-a imaginando o que iria acontecer. Gritei-lhe pedindo que esperasse. Que não fosse embora. Que voltasse. Percebia que tinha os braços esticados em súplica. Ela continuou andando e desapareceu lentamente. Então, também lentamente, umas figuras vieram caminhando para mim. Finalmente pareciam ser Susan e sua mãe, mas depois era Susan sozinha. Fiquei com medo e gritei-lhe que não se aproximasse. Ela veio para bem perto de mim e minha mãe também estava bem ali. Eu respirava ofegante e fiquei assim um minuto até conseguir acalmar-me do medo de haver visto minha mulher surgir de onde minha mãe tinha desaparecido. Devo dizer aqui que logo que comecei a sentir aquilo, eu também gritei umas palavras que pareciam vir de minhas entranhas, "Não amor — doente precisa — casei com minha mãe." Disse essas palavras algumas vezes e, de repente, o quadro fez sentido para mim. O teatro de minha mente estava representando para mim o fato de eu haver casado com minha mãe na pessoa de outra mulher. Isso, naturalmente, era aterrador. Mas não conseguia livrar-me desse sentimento nem mesmo mijando. Além disso, quando a gente está em coma consciente a única coisa que desejamos é senti-lo. A gente sabe que não precisa ter medo dele porque já estamos lá. A parte mais difícil e chegar lá. Muito bem, então aqui estão minha mãe e minha mulher, lado a lado, cada qual dizendo como cada uma delas é maravilhosa e como gostam de mim. 14 de março Hoje, sexta-feira, tudo foi simplesmente incrível. Eu mesmo não sei bem o que aconteceu, mas preciso consignar tudo aqui por escrito. Em primeiro lugar, eu contei ao Janov o que se passara comigo ontem de tarde e de noite. Devia ser mesmo um caminho porque passei cerca de sete horas ouvindo música clássica com rapsódias boêmias, romenas e húngaras, sonatas de Enesco, concertos, sinfonias. Fiquei completamente perdido em todas as peças que ouvia. Algumas vezes levantava-me e
dançava ou então caminhava em volta da sala, e outras vezes imitava o som de alguns instrumentos. Fiquei sendo a orquestra. Estava passando por uma experiência incrível envolvido na dimensão som/música. Não sabia de mais nada. Algumas vezes chorava. Foi quando lembrei-me que a terapia individual terminaria depois de sextafeira; quando comecei a sentir-me verdadeiramente só ali na sala com a música apenas; quando senti o desejo de chamar alguém, mas não havia absolutamente ninguém que eu desejasse chamar no telefone. Sentia-me muito leve e um tanto estático. Aí chegou a Susan que trouxe com ela uma atmosfera de aborrecimento e contrariedade. Depois disso fiquei indeciso entre muitos sentimentos opostos: raiva, desprezo, solidão, irritabilidade, mau humor, egoísmo. Achei que ela representava uma invasão em tudo que era meu e que passava a ser diferente com a sua presença. Depois que ela foi para a cama eu fiquei sentado sozinho ali no escuro olhando a cidade e depois liguei a TV assistindo a um pedaço de um filme chamado The Gangster estrelando Barry Sullivan por volta de 1947. Era um filme fora do comum já que nos mostrava uma deterioração do ser humano com sua destruição pelo crime e pelo mal. Bem bonito, mesmo. Depois passei uma noite agitada. Cada vez tendo mais e mais comas simbólicos, e agora são sonhos também simbólicos. Tive um incrível. Eu estava num imenso salão de baile onde havia uma festa. Era um salão multidimensional que devia ter pelo menos cinco dimensões, e uns três ou quatro planos diferentes. Era uma coisa louca. É difícil encontrar palavras que possam descrever. As criaturas todas eram muito estranhas. Havia uma grande quantidade delas com trajes também estranhos demais. Tinha uma pessoa que estava fantasiada de alvo com os círculos brancos e pretos e a mosca no meio; uma outra era um coelho com o rabo embandeirado; outra era um personagem da TV; havia um bloco de concreto que andava; um tipo com cara de pervertido muito magro e cheio de espinhas; uma moça cujo rosto estava desfigurado porque lhe haviam jogado ácido. E uma quantidade mais. Eu estava vendo um mundo louco. Tinha pensado naquilo na noite de quintafeira. Estivera pensando como ia ser difícil voltar a um mundo de tolices e doenças, e de gente esquisita. Via-me como um desajustado porque era mais real, quando os desajustados eram eles. O gigantesco salão estava cheio das loucuras da TV e do cinema. Tinha uma moça da propaganda vestida com minissaia com um buraco na altura da boceta e os homens vinham até ela para enfiar ali e chupar uns canudos daqueles que se usa para refrigerantes. Muito bem. Então ali estou eu no meio daquela loucura que é mais do que simbólica. Vejo-me numa cama estranha com um cara ao meu lado vestido de nababo ou príncipe indiano. Tem um turbante e está cheio de joias com uma roupagem estranha. Sinto alguma coisa rolar para cima de mim... Viro-me para o cara e pergunto o que é aquilo. Não posso lembrar-me o que ele respondeu mas tenho a impressão que disse ser uma mulher. Resolvi experimentar esticando o braço para onde deviam estar seus seios e fiquei com uma teta carnuda na mão. Ataquei a
criatura que me fazia lembrar uma mulher gorda de Brueghel vestida numa espécie de pijama amarelo. Aquilo parecia um ursinho de pelúcia bem macio. Agarrei-lhe a boceta com as duas mãos e comecei a esfregá-la no meu pênis e aí acordei ejaculando. Saltei da cama pensando que já fosse tarde e que perdera minha hora com Janov, mas eram apenas seis e meia! Depois que contei isso tudo para o Janov, ele tentou fazer com que eu sentisse alguma coisa e que voltasse àquele tema de solidão. Fiz tudo que podia mas nada consegui. Pela experiência que já tinha, eu sabia que estava lutando comigo mesmo, mas as minhas defesas são tão sutis que é difícil saber. Foi então que senti um estalo. Um relâmpago. E gritei: PARE DE TOSSIR! PARE DE TOSSIR! E continuei convencendo-me para parar com a porra da tosse que era uma forma sabida para fugir ao sentimento. E deu certo. Comecei então a voltar à realidade. Ainda continuava a sensação de solidão. Eu tinha a impressão que minha mente ruminava. Estava começando a receber sinais remotos do interior do corpo dizendo-me que havia ainda alguma coisa para ser sentida, alguma coisa muito grande, e que, mais uma vez, eu estava usando alguma espécie de subterfúgio para combater. Fiquei assim ainda algum tempo numa espécie de ganido até que, finalmente, permiti que um sentimento me invadisse, ou me desse um "banho", como sugeriu Janov. Gosto mais dessa expressão em lugar de "mergulhar abaixo" porque ela é mais gráfica para mim e permite-me realmente o funcionamento de minha imaginação deixando que aquilo me "lave". Sentia uma dor aguda no coração, na cabeça e na região do mastóide. Durante a maior parte da sessão essas dores foram se alternando. Também senti dor de barriga. Tentei sentir alguma coisa e fiquei com medo de vomitar por ali tudo. Agora já sabia que era realmente ruim o que estava escondido. Comecei a falar de sexo porque tudo na frente de meus olhos indicava um tema sexual. Falei então de Sylvia e como aquilo tinha sido bom antes de se tornar uma merda, e dei de falar sobre minha história sexual em geral dizendo que eu, simplesmente, não prestava, ou então não era bastante bom. Estava falando e falando contando uma experiência natural com minha mulher, falando de sexo... e foi então que vi as palavras "adorando... eu... adoro" ou coisa parecida. Mas não conseguia estabelecer a ligação. Sabia que estava me metendo em alguma coisa grande e estava realmente começando a ficar ansioso, mas não conseguia a ligação. Parecia estar dizendo coisas sem nexo. Comecei então a lembrar-me dos casais casados que conhecera em minha vida e via todos eles na minha mente, e constatava sempre que a mulher era a mais forte, mais dominadora do que o marido infeliz. Falei sobre aquilo durante algum tempo e depois passei para o casamento de meus pais dizendo que ali o meu velho era sempre quem mandava. Via-o naquele papel que muitos cínicos gostam de representar, ou seja, manter sempre a mulher descalça e grávida. Em outras palavras, a mulher é apenas um bocado de merda. Depois falei de minhas atitudes com respeito a mulheres, mas continuava terrivelmente incapaz de fazer ligações.
Então Janov fez-me falar com mamãe porque eu estava lhe contando minha vida com ela. Percebia que ela, de certa forma, havia-me transformado num assexuado, ou mais precisamente, havia-me desmasculinizado tratando-me como se eu fosse menina, sempre dizendo que eu era "lindo" e levando-me ao toalete das senhoras quando saía comigo. Janov disse-me que falasse com ela. Eu estava falando com ela, perguntando-lhe por que me tratara assim, quando, de repente, ela me disse que queria seu papai. Ela sentou-se com as pernas cruzadas e de cabeça baixa com os punhos cerrados batendo no colo e gritando sem parar "eu quero papai..." Eu fiquei tão agitado que gritei-lhe dizendo que eu estava morto e mais outras coisas. Ela começou a ir embora e eu a chamei de volta. Aí ela encontrou meu pai já bem distante. Ela continuava chorando e chamando por seu pai e pensava que ele era o seu "papai", ao mesmo tempo que meu velho começava a despi-la, depois deitou-a e trepou em cima dela. Nesse ponto fiquei com o estômago todo embrulhado e não queria olhar. Imaginava até mesmo estar ouvindo o barulho de seus órgãos como se fosse um pistão entrando num pote de mingau. Isso durou algum tempo e eu contava tudo ao Janov. (Em outras palavras, o meu velho vinha trepando na minha velha muitos anos antes de se casarem. Ela tinha quase 30 anos quando se casou. Aquilo parecia indicar que ela ia ficar para tia e a única maneira de arranjar um casamento era mesmo aquela. Pelo menos foi o que pensei.) Nesse ponto aconteceu uma coisa espantosa. Eu vi-me sendo concebido na barriga dela. Gritei para o Janov que eu estava sendo fabricado. Desse quadro passei para um outro em que via mamãe e papai passeando na avenida e sendo cumprimentados pelas pessoas que encontravam. Na outra cena mamãe estava dizendo, "não quero..." referindo-se à criança que trazia. O velho então diz que casa e vejo quando eles se casam. Conto isso ao Janov. Na próxima cena ela está no hospital e nasce o menino. Só que esse merda sou EU. Fico pasmado, assombrado! É incrível! Até mesmo agora ainda não tenho certeza se estava fantasiando, tendo alucinações, ou então estava em coma consciente. Espero que a verdade esteja com o coma. Ela está gritando e chorando. O doutor está me levantando. Como posso saber que sou eu? Bem, estou suando da boceta de minha mãe passando pelas suas coxas gordas. Mais ainda, nasci estrangulado pelo cordão umbilical. Mamãe está gritando dizendo para me deixar morrer, dizendo que não me quer ou coisa parecida. O médico grita que estou estrangulado, que sou um "bebê azul" ou qualquer merda parecida. Na realidade, isso aconteceu. Quando chego a este ponto fico assombrado ao perceber que realmente consegui voltar ao meu primeiro dia. Não posso afirmar com certeza quanto disso era o coma consciente, quanto era excesso de imaginação ou quanto era fantasia. Mas eu quase posso afirmar, pelas outras experiências que tive, que era mesmo o coma consciente. Uma vez, talvez duas, eu percebi momentaneamente a intrusão de uma outra realidade. Digo "uma outra realidade" porque o estado de coma consciente é
um estado de realidade em que me encontro no momento. Para todos os fins ou propósitos eu sou real nele. No entanto, é bastante uma ordem incisiva "muito bem, Gary" para trazer-me de volta à outra realidade. A intrusão dessa outra realidade eu comecei a sentir quando lutava pela minha vida no sofá e alguma coisa me dizia que aquilo era o sofá do consultório de Janov. Estou me estendendo aqui porque sintome muito confuso com o que me aconteceu hoje. Se é mesmo verdade que a mente é capaz de guardar lembranças anteriores à vida consciente, então nós chegamos realmente a alguma coisa. De qualquer forma, comecei a lutar pela vida de uma forma frenética. Lembro-me que esticava os braços para cima e que fazia todos aqueles ruídos que fazem os bebês. Gritei para Janov que estava me sentindo estrangulado e queria com aquilo dizer para os médicos que estava bem vivo, mas as palavras eram difíceis de formar. Finalmente nasci! Já estava respirando. Lembro-me também que estavam me segurando pelos pés, de cabeça para baixo. Depois veio-me a calma e comecei a rir. "Consegui ... Consegui... Consegui... estou vivo." Estava respirando bem e entrei num estado de calma. Tentei então ligar as peças. Via-me claramente como um filho indesejado e ao mesmo tempo desejado e como o filhinho da mamãe. Vi retratos meus durante o crescimento, sempre junto com ela. Devo dizer que eram retratos que ela até hoje ainda conserva em seu poder. Cresci de uma forma sem exemplo. Antes, durante o coma, cresci verticalmente. Agora ali eu estava crescendo na horizontal. Da cesta para o berço, para uma caminha e para uma cama de casal. Espantoso! Numa das cenas minha mãe está brincando com minha piroca como se fosse um brinquedo entre seus dedos. Dei um grito perguntando que diabo estava ela fazendo e se pensava que eu era um brinquedo. E aí então percebi que era assim mesmo que ela me via e como pensava que eu era. Em uma outra cena eu estou na cama e ouço na sala ao lado vozes e risos de mulheres num jogo de cartas. Cheguei até mesmo a apontar o quarto com o dedo enquanto falava. Todas falam de seus filhos, como cuidam deles, como brincam com eles. Não sei como, a conversa se encaminhou para piadas em que elas contavam como brincavam com as pirocas dos filhos, e as brincadeiras sempre envolviam os maridos. Ouço fragmentos de conversas e interrogações. Acho que foi minha mãe que falou que também fazia aquilo mas que eu era muito pequeno. Não consigo lembrar-me o que foi. Alguma coisa como o que ela faria se conseguisse encontrar o que queria ... agora eu vejo o filme Night Games em que a mãe humilha o filho primeiro provocando-o até ficar com o pau duro quando começa a brincar com ele por baixo do lençol. Aí então ela arranca o lençol, zanga com ele, dá-lhe uns tapas nas mãos e vai embora. É quando lembro-me da mesma cena de minha mãe comigo, quando também me bate nas mãos e zanga na sua voz anasalada de judia. Não consigo lembrar se isso aconteceu mesmo em minha vida real, mas se não aconteceu então não posso compreender como veio se enfiar no meu coma consciente. Mais ou menos nessa altura eu voltei à realidade e fiquei ali assombrado com
o que me acontecera além de estar completamente exausto. Ainda havia uma grande quantidade de pedaços flutuando. Percebi que teria de me aprofundar ainda mais e contar a respeito de mamãe antes que me tornasse sexualmente potente. Mas não sei ainda. Estou apenas imaginando. Percebi que não tinha havido homens em minha vida que eu pudesse imitar ou tomar por modelo de forma positiva. Só tinha o velho que certamente me encheu o suficiente para eu me foder e uma porção de operários na vizinhança que não poderiam proporcionar modelo algum a ser imitado. Também lembro-me agora, embora não venha ao caso, que no princípio da sessão de hoje eu falei a respeito de minha preocupação com pensamentos de mulheres e os sonhos que costumava ter com minha tia. Eram sonhos de sua boceta enorme que me engolia pela cabeça e que corria atrás de mim ... Chegava a esfregar meu rosto nela ... Mas basta. E ali estava tudo. Fiquei com um gosto amargo na boca e com a garganta seca, como se tudo aquilo fosse bem desagradável, mas sabia que ainda havia mais ali. Várias Observações Relativas à Terapia Primal 15 de maio No dia sete ou oito de maio, aí por volta das dez horas da noite, tive uma sensação de vida. Senti toda a minha existência. Aquilo durou muito pouco, talvez uns cinco segundos. Posso chegar perto do que realmente aconteceu dizendo que foi uma experiência hilariante, deliciosa, exaustiva e eletrizante. Nem sei se vou encontrar palavras certas pois como poderá uma sociedade de gente realmente sem sentimentos conseguir o vocabulário adequado para alguma coisa que nunca experimentaram? Na mesma hora em que senti tudo aquilo vi logo que não iria encontrar palavras certas para contar tudo direitinho. Aí fico pensando se o problema está no fato de não contarmos com palavras que possam exprimir os sentimentos ou se tal problema não existe mesmo já que é inteiramente impossível traduzir os sentimentos em meras palavras feitas pelo homem. Para mim, o fato de sentir-me não foi apenas uma experiência íntima. Foi uma coisa total. Estava deitado no chão depois de haver passado por algumas sensações preliminares quando percebi que havia algo diferente na minha coluna vertebral. Não conseguia descobrir o que era por mais que tentasse, e Janov então perguntoume o que era. Eu disse-lhe que me sentia direito. E aí comecei a chorar. E chorava pela simples beleza em sentir-me direito (integral) pela segunda vez em toda a minha vida. Comecei a ligar as coisas e cheguei à conclusão que a outra ocasião tinha sido no momento exato em que nascera. Não era de admirar que eu não soubesse as palavras exatas para exprimir o que sentia. Já sentira antes mas já lá iam quase vinte e sete anos. O que disse apenas num parágrafo realmente levou dois meses de terapia para chegar a esse nível de compreensão absoluta. Foram horas agoniantes
de autoconfrontação, de lágrimas e dores. Para mim, sentir-me total era sentir exatamente onde eu estava no universo. Abri todos os canais. Percebi logo, por exemplo, que sentia a solidez e a força de minha área pélvica. Em outras palavras, conseguia sentir meu corpo, o meu eu. Também senti que minha coluna estava direitinha. É isso que quero dizer o que a gente sente quando passa por uma experiência total. Estou agora convencido que a saúde verdadeira e completa significa uma perfeita integridade mental ou emocional e física. Quando posso sentir-me é porque posso também sentir tudo. Talvez o ser humano possa desenvolver um sétimo sentido acerca dele mesmo. Imagine-se a possibilidade dessa nova espécie de vida conseguir tal sentido e realmente ser capaz de diagnosticar suas próprias moléstias. Desde que fosse completamente saudável eu não sofreria as doenças psicossomáticas ou psiconeuróticas. Conseguiria perceber o crescimento de qualquer tumor estranho dentro de meu corpo. Poderia provavelmente sentir a deterioração dos tecidos do estômago como um aviso prévio da úlcera. Por outro lado, nada disso jamais aconteceria comigo desde que eu fosse totalmente sadio e integrado. É uma especulação sem fim. O que é triste, no entanto, é perceber como meus pais atrapalharam tudo para mim e como os pais deles fizeram o mesmo com eles e assim em retrocesso até o começo. Somos vítimas da ignorância e continuamos vitimando os outros pela nossa ignorância. Sentir a grande tragédia da espécie humana é primeiro sentir a nossa própria, é ver ir à garra o nosso potencial; é sentir nossa dolorosa insignificância e imaginar o que poderíamos ter sido. Nessa mesma noite eu fui impulsionado por toda a minha existência para uma espécie de condição na qual senti na fração de um momento o que a espécie poderia ser se nós todos, os seres humanos, fôssemos saudáveis. Vi a possibilidade da duração da vida chegar talvez aos 150 anos. Vi o fim das moléstias e vi toda a humanidade concentrada nos esforços científicos para erradicar as moléstias. Vime livre de toda esta merda que tenho na cabeça com ela então desempenhando o papel para que foi destinada. Toda essa visão levou-me às lágrimas. O intelectualismo é a maldição da humanidade. Verifiquei que a minha louca corrida atrás do saber durante tantos anos cada vez mais me afastara dele. Quando me senti eu mesmo naqueles breves segundos, eu senti também minha beleza, minha majestade, minha grandeza. É um sentimento de plenitude, de plenitude completa e então, e só então, posso eu amar outra pessoa. Aí já terei amor para dar. Quando puder amar-me todo o tempo, eu poderei então também amar mulher e filhos. O amor para mim significa a graça de receber e não de desejar ou de tomar. Para mim agora tomar significa o gesto de estender os braços num gesto de tomar. Receber é simplesmente a capacidade de receber sem desejos neuróticos. Assim, o recebimento do amor poria um fim imediato ao amor condicionado de forçar as crianças a representar para os pais. Receber é simplesmente receber dos
outros apenas o que eles podem dar, sem avaliação, julgamento ou comparação. Nunca mais haveria desapontamentos por não haver recebido bastante. Cada qual saberia a sua posição e respeitaria a posição alheia, e todos evitariam os que pudessem incomodar. Isto é verdade. A pessoa sadia deve se afastar das pessoas doentes porque elas sempre podem aporrinhá-las com suas doenças. Mas isto não é tudo. Muito importante para mim foi conseguir estabelecer ligações com meus pais, com meus nervos, com minha respiração, com minha bexiga, com minha tosse, e com as doenças físicas e mentais. Durante os dois últimos meses minhas sessões primais vêm envolvendo esses elementos, algumas vezes isolados e outras misturados. Mas esta noite eu juntei-os todos. Esta ligação infinitamente complexa mas espantosamente simples veio quando eu senti tudo o que ela significava e que isso ficou registrado em mim. Eu estava tossindo e expelindo uma saliva muito grossa que parecia me engasgar. Meu nariz também estava entupido e eu parecia que ia estourar. Na verdade, meu nariz estava limpo e desimpedido, e o, que eu estava sentindo era a obstrução das narinas que ia até dentro da cabeça que também estava cheia. Com muita dificuldade consegui dizer o que estava sentindo. E foi "mamãe" que me saiu da boca. Eu estava cuspindo fora todos os pedaços de merda que me vinham sufocando a vida inteira. Eu estava escarrando merda. Para mim, essa palavra merda significa tudo isso. Significa ser rejeitado, ser ignorado, ser brutalizado, ser tonteado com gritos, ser espancado e ser trucidado pelas línguas de meus pais. Tudo isso é horrível. Sentia a merda de minha vida. Passei toda a minha vida engasgado com aquela merda que estava tentando me sair pela boca. Quando cheguei no mundo querendo amor só consegui merda, e isso prolongou-se por toda a minha vida. E agora eu sentia toda aquela merda dentro de mim. Devo dizer também que a primeira coisa que fiz naquela noite foi deixar sair. Isso é muito importante. Antes eu tinha me contido. Relaxei-me todo. Nunca percebera o quanto andava contraído. Logo que comecei a sentir entreguei-me completamente. A principal razão para eu andar sempre muito teso e rígido era que não queria deixar nada escapar por qualquer orifício de meu corpo. Esse "nada" eram os sentimentos transformados em coisas que tinham que sair. Agora que eu me entregara e que não saía nada, eu sentia perfeitamente toda aquela massa de merda dentro de mim. Durante toda a vida eu conseguia evitar que ela saísse usando todos os meios possíveis como a tosse, o pigarro, o nariz entupido, etc. Tudo isso para que não sentisse os sofrimentos. Agora, pela primeira vez em minha vida, aliás a segunda, tudo estava desimpedido. Tudo estava aberto. Assim não precisava mais gastar força e energia para me conter. Estava livre para sentir minha merda. Claro que é uma agonia. 16 de maio Cada dia fica mais claro para mim que quanto mais eu consigo recuperar
minha saúde, tanto mais todo o mundo pensa que há alguma coisa errada comigo. As roupas, as cores e as modas não são as minhas. Minha mulher diz que esse não é o Cary que ela conhece. O mesmo me aconteceu depois de uma sessão especialmente gigantesca. Toda a antiga tensão dissipou-se e eu fiquei parecendo mais moço. Logo no dia seguinte começaram a me perguntar o que havia comigo, e se eu estava doente. As pessoas parecem estar sempre querendo se meter na vida alheia. Acham que isso torna mais fácil na sociedade o estabelecimento mútuo de relações. Todo o mundo está sempre tentando coligir dados e fatos sobre os outros para formar a sua imagem, e quando os outros fazem qualquer coisa fora do figurino logo são acusados de estarem querendo ser diferentes. O que eles estão realmente querendo fazer é mostrar um pouco o que lhes vai por dentro. 17 de maio Hoje comecei a fazer ligações. A primeira coisa que senti foi uma agonia nas entranhas. Sentia que havia um grito querendo sair de lá (era o bebê Gary, o verdadeiro Gary que queria nascer) mas eu não conseguia reunir todo o meu ser para dar aquele tremendo grito. Só conseguia deixar sair um forte guincho. Sentia o sistema funcionando com toda a minha força e sentia a intensidade do grito que queria sair mas para o qual eu não conseguia reunir a colossal energia necessária, e então sentia a ligação mostrando-me que preferia a doença. Só o que precisava era aquele grito com toda a força de meus pulmões para eu nascer. Lutei com isso durante muito tempo. Finalmente levantei-me e fui para o quarto ao lado para poder ficar só. Levantei-me porque queria ficar isolado e também porque estava ouvindo tudo que os outros falavam com uma nova clareza cristalina. Ainda só conseguia fazer sair uns fios de saliva grossa e sentia que estava cheio dela, nas tripas, na cabeça e no nariz. Sentia que era aquela mesma merda já minha conhecida durante a última semana. Parecia existir uma ligação que eu teria que fazer para sair aquele tremendo peso de merda e para eu poder nascer. Eu tinha que senti-la antes de expeli-la de minhas tripas pela garganta e pela boca. Sentir aquilo significava querer mamãe e papai e isso significava estar doente. A doença que eu agora sentia não era a de estar louco, mas também a sensação física de sentir-me doente por dentro e de sentir no fundo da garganta aquele gosto revoltante de doença. De repente eu comecei a sentir-me com a necessidade daquele grito colossal que parecia estar se acumulando dentro do meu centro de gravidade, bem lá no fundo do estômago. Meu corpo parecia estar reunindo toda a força necessária e quando o grito sacudiu-me o corpo vergou-se para frente. Continuei assim durante vários gritos, todos eles trazendo aquela mania de querer mamãe e papai, e a sua forma era uma saliva pastosa e grossa. Senti uma grande dor nas entranhas e continuava a chamar mamãe e papai lá do mais profundo de meu ser e sempre que
soltava um daqueles gritos sentia aquela mesma sensação doentia de rejeição, desespero, de não ser ouvido nem notado. Nunca tinha sentido tanto assim pois senão teria ficado permanentemente louco. Pouco depois disso comecei a sentir uns sinais de outro grito. Juntei toda a minha força e quando ele saiu estremecendo-me parecia que ainda faltava alguma coisa, e que o grito não tinha saído por inteiro chamando o Gary. Senti que vinha aquela saliva mas ela parecia agora mais limpa e clara. E quando senti o líquido nas mãos senti também que o grito voltava pela garganta abaixo para dentro de minhas entranhas. O grito parecia ser um ovo, ou antes, apenas a sua gema solta. Procurei desesperadamente trazê-lo de volta porque ocorreu-me o pensamento que aquilo era para mim a própria vida. Desesperei nesse ponto porque estava completamente exausto. Dormi umas três horas e voltei ao grupo. Estava muito tonto mas sentia que aquele grito estava querendo sair a todo momento e eu ia me sentindo mais aliviado. Toda aquela força que usara para gritar ajudara muito a desobstruir as passagens entupidas do nariz e ouvidos. De qualquer forma, já sei o que há para mim: a luta para me encontrar, para nascer, para defender a minha vida. Desde a noite passada sinto-me muito mal dentro do corpo. As sessões primais deslocam blocos de doenças cimentadas. A noite de sexta-feira e a manhã de sábado fizeram-me sentir realmente toda a profundidade de minha estupidez e da doença. Sentia que só faltava aquele grito para eu ficar mais perto da cura e não conseguia soltá-lo. Sentia toda a minha tragédia de estar ao meu alcance a minha cura e eu, contudo, preferia continuar doente. Vou cuidar de mim agora mesmo de verdade. O meu instinto e a necessidade de sentir-me bom tornaram-se muito mais afiados depois dessa experiência. Uma pessoa saudável desejaria continuar sempre com sessões como as de sexta-feira e sábado. Eu quero dar o fora delas o mais cedo que me for possível. 20 de maio O grupo noturno de terça-feira foi bom para mim por ser tão doloroso. Foi uma continuação do que eu não conseguira terminar no sábado e que vinha desde então crescendo dentro de mim. Gritei chamando minha mãe e continuei gritando durante toda a sessão. Dentro de mim eu sentia o amargo desapontamento e o vazio de nunca haver sentido minha mãe dar-me o que eu precisava. Sei que nasci precisando de tudo e quando fui rejeitado pela primeira vez fiquei deformado para o resto de todos esses anos. Minhas lágrimas e gritos atingiram maior profundidade na noite passada. Quero dizer que sentia o grito vindo de minhas entranhas. Também soava diferente, como se fosse o grito de um rapazinho, claro! E quando senti aquilo comecei a chorar percebendo que sou apenas um menino, uma criança, realmente. Tudo isso dói e dói
mesmo mas não há meio de evitar. Ainda assim estou satisfeito por haver chegado até lá embaixo porque assim senti realmente a agonia do doente que precisa de ajuda. 24 de maio Hoje foi um dia importante porque consegui chegar ainda mais fundo com meu grito. Os gritos foram hoje incontroláveis e vieram bem lá de dentro de mim sacudindo-me todo. Creio que foi realmente a primeira vez que eu consegui sentir a grande necessidade e o grande vazio por não ter o amor de papai. Na terça-feira aconteceu o mesmo, só que era com mamãe. Os gritos vão mais fundos, muito mais do que antes. Uma vez que a merda de meu pai está concentrada na cabeça, o nariz fica inteiramente limpo. Derramei todas as lágrimas que me foram sempre "proibidas", e todas aquelas que contive durante todos esses anos explodiram finalmente. Com minha mãe, a doença está localizada nos intestinos e isso resulta numa tosse violenta com catarro e bile que eu vou sempre engolindo para não deixar sair o que sinto. Mas como chorei hoje! Era como se eu realmente nunca tivesse chorado assim em toda a minha vida. Às vezes eu lembrava-me que era assim que chorava quando era menino. Era assim que chorava quando queria meu pai. Finalmente, quando fiquei mais calmo, consegui deixar que todas as peças se encaixassem em seus lugares certos. A sessão da noite de sexta-feira realmente levou-me a uma nova fase de sentimentos e experiências. A segunda fase é uma maior intensidade, uma percepção mais profunda, uma dor e um sofrimento mais nítidos, um mais alto sentimento ou instinto desejando ficar bom, um cansaço mais geral, um olho mais atento para fugir da loucura alheia e uma sensação mais agradável de estar só. Creio que essa fase dois é a mesma coisa de antes com maior profundidade, dimensão e altura. E isso significa apenas a gente sentir-se um pouquinho melhor. 1.° de junho O fato de eu estar querendo um cigarro é para mim uma beleza porque não preciso de outra indicação para mostrar-me que estou querendo abafar meus sentimentos. Fico irritado e isso é uma outra indicação no mesmo sentido. Mas na realidade, o que está mesmo ali é um grito colossal. É do tamanho de meu corpo e é tão alto quanto todo o meu ser possa fazê-lo. O grito sou eu e as lágrimas que querem correr são as lágrimas de anos e que estavam guardadas. Não estou bem certo por que desejo gritar e chorar agora, mas tenho uma sensação de ser pequenino, uma sensação de desamparo e de falibilidade.
Durante as últimas semanas coisas estranhas estão acontecendo em meus sonhos. Eles não são muito difíceis de lembrar mas também não tenho certeza se alguma coisa acontece neles. Aliás tudo tem sido muito estranho com meu sono nas duas últimas semanas. É como se eu estivesse acordado sabendo que estava dormindo e também dormindo sabendo que estava mesmo dormindo. É um negócio louco assim. Uma ou duas vezes acordo (pelo menos penso) perguntando-me se estou mesmo acordado. É na "dimensão" dessa experiência que eu venho dormindo. Estou chorando agora porque sinto-me ainda mais louco quando escrevo isto. Mas, realmente, parece que o sono é para mim uma coisa com dimensão na qual funciona um novo sentido, talvez aquele sétimo sentido indefinido. Coisas estranhas acontecem com esse sentido, mas não consigo lembrar-me de nada. Já por duas vezes verifiquei que sei que estou dormindo. Em outras palavras, eu acredito que alguma coisa dentro da mente funciona quando estamos dormindo. Talvez seja, outra vez, o tal sétimo sentido indefinido. Eu não estava sonhando que dormia. Eu estava dormindo e aquilo era como se eu estivesse acordado por dentro enquanto a minha parte externa estava ali dormindo. 2 de junho Hoje eu senti-me envolvido por um movimento, o movimento e ritmo de alguma sensação que não conseguia explicar. Afinal, dentro de uns trinta ou quarenta minutos, ela veio à tona. Tinha alguma coisa a ver com desejo, nada em especial, apenas desejo. Parecia concentrar-se inteiramente em minha boca. Finalmente esse desejo manifestou-se em voz alta. De repente senti a necessidade urgente de chamar meus pais, chamar, chamar e chamar. O chamado era tão forte como se a minha própria vida estivesse dependendo de eu ser ouvido. Eu chegava a sentir meus gritos vindo de minhas entranhas mas, mesmo assim, não sentia satisfação alguma. Naquela fração de segundo do nada, vivendo aquilo que sentia, percebi completamente que estava sendo ouvido. Na realidade, naquela fração de segundo parecia que meu corpo já havia sentido o vazio, mas a minha mente tinha que passar por três alternativas a fim de estabelecer uma ligação: 1) Eu não podia ser ouvido; 2) Eu não era ouvido; 3) Eu era ouvido. A número 3 foi a ligação instantânea. Eu era ouvido, mas eles não me ouviam, eles simplesmente não estavam ligando muito. Eu digo "eles" porque o desejo, naquele ponto da experiência Primal, não era dirigido para o pai ou a mãe especialmente. O pleno impacto daquele reconhecimento total provocou em mim uma torrente de lágrimas. As lágrimas escorriam e eu respirava bem já que o nariz não estava mais obstruído. Nesse ponto ouvi o meu grito. Para mim essa é a única verdadeira maneira de chorar quando se chora com todo nosso ser. Então pareceu que minha boca parecia estar funcionando. Senti uma premente necessidade de chupar, de chupar mesmo. Aquilo era difícil de fazer.
Comecei então a pensar se seria mesmo aquilo o que eu sentia. Janov incitou-me e eu comecei a chupar entregando-me ao que o corpo me pedia. O que eu estava querendo era simplesmente mamãe, ou antes os seios da mamãe. A dor que sentia era a mesma de sempre quando sinto que a quero. E com isso chorei. Então, na minha boca já se formava uma pergunta, "por que ela não gostava de mim?" Eu já sentira a tremenda rejeição de não receber cuidados, isto é, de ter o seio para mamar, de ser levado ao colo para estar junto dos seios muitas vezes. E esta é a parte mais importante dessa experiência: muitas vezes. Estou certo que minha mãe cuidava de mim de acordo com o seu temperamento, mas não de acordo com minhas exigências de criança. E ali agora, naquela noite, eu estava sentindo outra vez aquela rejeição quando ela não me ouvia gritar. E então eu ficava ali fazendo aquela pergunta silenciosa com a boca o mais aberto que eu podia. Não conseguia compreender aquilo. Eu gritava silenciosamente perguntando-lhe por que não cuidava de mim e percebia agora que o desejo indistinto de uma hora atrás era realmente dirigido para minha mãe. O que eu queria mesmo era os seus seios suculentos enfiados na minha boca sedenta onde ainda não havia dentes. E ali agora, talvez pela segunda vez em toda a minha vida, eu estava experimentando outra vez aquele desejo esfaimado. A primeira vez fora ao nascer, vinte e seis anos antes, e a segunda era ali naquela noite. De uma certa forma, todos os elementos para um perfeito reconhecimento de minha posição naquele momento preciso estavam se reunindo. O significado de minha Primal foi para mim um impacto vindo de trás. Era como se o significado viesse de minhas entranhas e saísse pela boca com um grito meu dizendo que não podia falar. Claro que meu desejo ficou em silêncio porque isso foi antes de eu poder transformá-lo em palavras. Eu ainda não aprendera a falar. Então, mais tarde, quando já sabia falar, já estava tão confuso a respeito de amor que não sabia mais pedir. Foi só depois de tudo aquilo que meu desejo fez sentido. Foi o que descobriu tudo. Senti esta noite que não podia mais permitir-me estar pensando ser ainda uma criança, e sentia tudo que havia de horrível naquilo. Voltei a mim logo depois disso e fiquei ali pensando como minha vida teria sido completamente diferente se todos os meus desejos de criança houvessem sido satisfeitos, se minha mãe houvesse me acalentado sempre que meu corpo pedisse... 8 de junho Fiz com que todo o meu corpo se esforçasse para um tremendo grito ou uma crise de choro. Já tinha feito isso muitas vezes antes, mas nunca fora ouvido. A razão para estar repetindo aquilo ali no sábado era para não deixar sombra de dúvida que eu tinha mesmo gritado alto bastante para ser ouvido. E por isso o meu grito era tão longo e profundo. Se eu fosse acreditar que tinha sido ouvido sem que eles se importassem, isso significaria para mim a solidão, que era justamente o que estava procurando evitar. Também, se eu abandonasse a luta isso significaria que estava
sempre só e sem ter o que queria. Isso significaria também a solidão, seria o reconhecimento que nada havia para mim nem nunca houvera, e que eu fora enganado pensando que poderia conseguir alguma coisa de meus pais quando eles nada tinham para me dar. De qualquer forma tentei. Primeiro com meu pai, numa longa agonia, e depois com minha mãe. Nada dos dois. Com minha mãe houve um momento em que ia verter umas gotas de urina. Depois imaginei que talvez devesse ser esperma e aquilo fazia sentido. Outra vez, tudo que sentia era desejá-la com meu corpo de vinte e seis anos e o desejo crescera junto com o instinto de sexo. É por isso que sou impotente. É porque o meu pau está escravizado à minha mãe. No meu insano desejo de seu amor, eu atirei tudo em jogo na luta para consegui-la e aí estava incluído o meu pau. Durante as últimas horas eu venho sentindo alguma coisa muito estranha. Eu sei que meu corpo está doente com um resfriado, mas eu não sinto a doença. Ao contrário, sinto-me muito bem disposto. É como se o resfriado estivesse num outro eu e o eu verdadeiro estivesse ouvindo música e batendo esta história na máquina. Isso nunca aconteceu comigo com exceção da breve experiência de ontem. É como se não fosse mais preciso exagerar minha doença pois já não há mais a mamãe para cuidar de mim. Assim é melhor desistir e simplesmente deixar o corpo ficar doente. O meu espírito, no entanto, não precisa ficar doente só porque o corpo ficou ligeiramente afetado por um resfriado. Claro que ainda sou um doente. Mas o que quero dizer é que nas duas vezes que passei pelas Primais a minha temperatura baixou muito e eu senti-me melhor. Estou convencido agora que todas as pequenas doenças que tive a vida inteira não teriam sido tão sérias se eu tivesse contado com o amor desde que nasci... Sei bem que não existe um meio termo entre saúde e doença. Ou a gente está bem ou então ainda tem alguns vestígios da neurose. Quanto a defesas, eu também pensei que deveria tê-las, mas agora isso já não tem mais importância. Ninguém pode mais ferir-me senão fisicamente, e portanto, não preciso mais de defesas. Parece que muita gente acha os outros opressivos. Isso não é bem o que sinto. Claro que acho intolerável muita coisa que as pessoas fazem, e também muito triste. É possível que essa gente que fala assim goze de muito mais saúde do que eu e que quando eu chegar ao mesmo ponto que eles estão eu também me sentirei assim. Já posso andar bem pelas ruas. Desisti completamente de contatos sociais. Desde que comecei a terapia a minha vida social limitou-se a umas seis noites de cinema, um teatro, um restaurante, três visitas a velhos amigos e três visitas aos pais. Fora disso alguns contatos esporádicos. Quase não falo mais no telefone. O que me aconteceu foi que já não sinto mais uma tão grande necessidade de pessoas. Ao mesmo tempo acho muito bom simplesmente descansar e não me aporrinhar. E isso nunca me aconteceu na vida. Por fora eu era o Sr. Durão, o cara que não dava bola, etc. Já agora eu acho muito fácil sorrir para as pessoas
desconhecidas, um bom dia aqui e outro ali. Já senti pessoalmente a tragédia da vida em minha família vivendo todos muito juntos embora a quilômetros de distância com referência aos sentimentos e pensamentos. Essa profunda tristeza traduziu-se em mim em gostar de ser agradável e até mesmo terno. Seja como for, quando me vejo agora, sei que não há condições de voltar. Pode lá quem quiser dizer que a paixão por uma saúde completa é o mesmo que uma loucura total, mas isso eu mesmo vou descobrir quem está certo. Não voltarei de forma alguma ao que era antes em qualidades ou defeitos. E isso inclui o fumo, as doenças psiconeuróticas, o sono em demasia e a gordura. Para o inferno com a loucura. Para o inferno com as defesas. 14 de junho Hoje é o último dia de minha décima sexta semana de Terapia Primal. Não sei bem o que isso possa significar, mas sei que me sinto descansado como nunca antes em toda a minha vida. Na noite de terça-feira nada consegui, e quando penso naquilo depois do que me aconteceu hoje, eu acredito que estava tentando reviver naquela noite uma antiga Primal, qualquer uma outra Primal para chegar a uma Primal. A semana foi muito boa apesar do resfriado. O meu eu mental/emocional não toma conhecimento do resfriado já que isso só acontece com o meu eu doente e irreal. Assim, esta semana foi muito boa e também a que passou. 15 de junho Da mesma forma que o Dia das Mães do mês passado, o Dia dos Pais hoje fezme sentir a mesma agonia da tragédia de minha família comigo. Não dei a menor, atenção ao Dia das Mães como também não estou dando hoje ao Dia dos Pais. Nada significam para mim. Se ainda fosse dos que procuram a vingança, talvez a minha conduta fosse uma poética justiça. Eles me foderam desde que nasci e eu agora estou tirando a forra. Mais isso tudo é maluquice. Não existe essa história de "tirar a forra" ou de retribuir. Não existe nada e é isso o que eu sinto, e o que me faz sofrer. O que torna a tragédia ainda mais aguda para mim é que vejo como meus velhos aumentaram seus esforços para me agarrarem. Desde que me casei eles sempre aumentaram seus esforços com presentes para me manter fixo, como se fosse uma borboleta presa pelas asas numa tábua. Primeiro veio a declaração de minha mãe dizendo-me que nunca esquecesse que a casa deles continuava sendo minha. Depois foi quando, em verdade, sentiram-se na obrigação de me escreverem uma vez por semana quando eu fui para os Corpos da Paz, e isso quando haviam passado toda vida deles sem me escreverem uma linha quando eu estivera longe
deles. Agora já recorrem aos presentes de dez dólares no meu aniversário ou no de Susan, e de cinquenta para quando mudamos de casa. Merda. Tudo isso, no modo de pensar deles, é simplesmente para mostrar-me o quanto se preocupam comigo e como se preocuparam a vida inteira. Assim, não conseguem compreender por que, nos últimos três meses, eu não os visitei mais nem mesmo telefonei. Creio que gostariam se eu me sentisse culpado. Mas agora já é muito tarde para isso e para uma porção de outras coisas. Já não tenho mais condições para julgar-me culpado depois de tudo que venho fazendo aqui com Janov em horas de agonia na intimidade de minha mente perturbada. O que eu sinto, e o que tive que sentir para poder ficar bom, foi o vazio que era a minha recompensa por tudo que fazia para conseguir o amor de meus pais. Assim, quando chegamos a alguma coisa como agora, quando os filhos, moços e velhos, estão "honrando seus pais" isso não faz mais sentido. No meu caso, seria uma coisa insensata continuar no meu desejo neurótico do amor de mamãe e papai. É uma futilidade. Não posso honrar meus pais nem tampouco respeitá-los. Posso aceitá-los pelo que sempre foram comigo, sem amor e sem cuidados. Mas também compreendo que eles sofreram o mesmo que seus pais. Só que eles não percebiam, eram estúpidos e desprovidos de insight. Portanto não posso culpá-los por isso nem tampouco odiá-los. Não posso culpá-los por coisa alguma que tenha acontecido desde o dia em que tive o verdadeiro insight, porque daí em diante, a responsabilidade de conservar-me com boa saúde passou a ser minha. É por isso que esses dias são tristes porque lembram-me a grande mentira que me pregaram, aos meus irmãos e a toda a humanidade. Simplesmente não há nada. Nada mesmo. E eu sinto-me feliz por ter a liberdade de sentir esse nada. Se eu ainda estivesse muito doente, não estaria lutando assim por todas essas coisas, por um amor que nunca existiu. Não há nada que seja muito desagradável. Nada mesmo. 12 de julho Hoje termino vinte semanas de terapia. Não me sinto disposto a escrever uma conclusão a meu respeito nem tampouco alguma coisa que possa servir como testemunho, mas sempre há uma coisa que gostaria de dizer a respeito. Há vinte semanas eu estava num ponto de minha vida que era uma verdadeira confusão. Já contei aqui neste diário o que se passou comigo. Hoje, quando me vejo e sinto o que sou, não posso deixar de dizer isto. 1. Eu estou quase completamente livre de comportamentos compulsivos. Não fumo mais, deixei de comer em demasia e nunca como entre as refeições. Nunca cheguei a roer as unhas ou beber em demasia e, portanto, isso não era problema. Deixei, no entanto, de beber vinho às refeições. Houve um tempo que pensava que isso era "bem".
2. Raramente fico zangado. Antes eu zangava-me com todos que se aproximavam de mim, fossem eles inspetores de tráfego, professores, médicos, guardadores de carro, atendentes de bombas de gasolina, etc. etc. Brigava para valer por qualquer motivo, ou sem ele, até os vinte anos. Fazia questão de andar de cara fechada e de usar linguagem suja à menor provocação. Hoje posso considerar-me praticamente tímido, e isso começou com apenas duas semanas de tratamento. Não tenho nem mesmo vergonha de usar essa expressão, pois sou realmente uma pessoa bondosa. O meu trabalho coloca-me em contato com gente irritada que gosta de brigar e de xingar, mas eu mantenho-me impassível. Isso, para mim, é uma beleza. 3. Fico um pouco aborrecido quando não demonstro meus sentimentos. Aliás, a verdade é que essas ocasiões são tão raras que já nem me lembro quando foi a última vez. Mas antes, era assim que eu estava o tempo todo. Acordava assim e na hora de dormir ainda estava pior. Muito raramente tinha um dia alegre. Agora, todos os meus dias são alegres. Não é coisa forçada e sim muito natural. Acordo logo cedo, sem despertador, e chego até mesmo a sorrir para minha mulher. Já chego até a cumprimentar as pessoas que encontro e até mesmo a sorrir. Para outros isso pode parecer natural, mas para mim e para minha mulher é uma simples maravilha. 4. Sou muito proficiente, ao contrário de eficiente já que deixo isso para as máquinas, nas minhas atividades diárias. Em outras palavras, não tenho a cabeça cheia de maluquices nem nada nas tripas que me leve à loucura. Posso trabalhar oito horas por dia em qualquer lugar. Posso acordar tarde se quiser, e posso voltar para casa mais cedo se quiser. Meu trabalho é importante e sou talvez o único no meu ramo que pode fazer isso. O curioso é que quase ninguém compreende o que eu faço, mas eu já perdi completamente aquele zelo neurótico de sair contando para todo mundo o que faço, e quer compreendam ou não, o problema não é meu. Minha proficiência estende-se a outras áreas fazendo coisas aqui e ali e dando conselhos quando me pedem. 5. Minha vida está bem ordenada e estável, ao contrário de bem organizada. Isso pode parecer estranho, mas "bem ordenada" significa que gozo a vida e faço o que bem entendo. Antes tudo que era meu era atrapalhado e confuso. Agora não gasto mais tanta energia. Isto é realmente uma forma de auto conservação. Cuido de mim porque sei que valho e porque gosto de fazê-lo. 6. Sou, "naturalmente", mais inteligente com maior frequência. Isso pode parecer convencimento, mas eu antes "pensava" que era esperto e hoje sei que eu represento a minha inteligência. Assim não preciso entupir a cabeça com informações a não ser que esteja interessado no assunto. Nesse caso eu tenho uma certa esperteza natural. Aliás minhas leituras diminuíram nas últimas vinte semanas para apenas 3 romances muito bons. Antes eu era conhecido pelo meu apetite insaciável de leitura. Era comum devorar três ou quatro livros por semana. 7. Não tenho nenhuma atividade social e o que gosto mesmo é de ficar
sozinho. Antes eu não conseguia isso e até chegava a considerar a solidão como uma boa maluquice. Isso tudo mudou. Gosto de ficar só. Para mim é o máximo. Quanto mais me adianto na terapia mais aprecio a solidão. Antes a solidão para mim significava ficar só em casa lendo um livro, mas agora nem isso é preciso. Fico inteiramente só e gosto. Não tem leituras, nem discos nem TV. E é bom. 8. Gozo uma saúde física total porque estou isento de tensões. Antes eu estava sempre às voltas com doenças. Todos os anos tinha na certa resfriados sérios e bronquites. As dores de cabeça semanais eram constantes. Já não tenho mais nada disso depois que comecei a terapia. É possível que de repente me apareça uma dorzinha de cabeça, mas é só descansar um pouco e ela já passou. Também tinha uma hiperacidez gástrica constante e muito dolorosa. Já estou completamente livre disso a não ser raras sensações de azia depois de tomar suco de tomate ou laranja. Já não tomo mais remédios para isso quando antes tinha sempre um bom estoque no bolso. 9. Sinto-me geralmente alerta percebendo tudo com muita clareza. Isso pode ser uma continuação do n.º 6, mas o que quero dizer é que presto muita atenção ao que se fala em volta de mim. Posso logo perceber o perigo em qualquer conversa. Quando me sinto bem eu mesmo quase tenho as qualidades de um vidente. Isso não quer dizer que eu viva planejando golpes. Eu simplesmente percebo o que se passa em torno de mim. 10. Sou uma pessoa delicada e gosto de coisas delicadas. Nunca fui assim e nada me parecia delicado. Agora eu gosto realmente de cuidar de flores e de vê-las crescer, gosto de ouvir o riso das crianças na rua. Gosto de fazer festa a cachorros. Antes só dava alguma atenção à vida humana. Só com vinte e cinco anos tive o meu primeiro gato. Tenho perdido muito do que era irreal em mim e estou fazendo com que surja a parte real. 11. A vida não é só de lutas. Antes ninguém me convenceria disso. Para mim agora, a vida não é mais ganhar uma luta ou uma batalha. Ela consiste em abrir mão da luta e da batalha. Sempre que quero lutar começam a aparecer as dificuldades. Só o que tenho a fazer é ser o que sou e a vida será sempre bela a despeito dos altos e baixos. Isto é mais ou menos tudo o que quero deixar escrito, é possível que alguma coisa aqui precise de maiores explicações. Tudo que sei é que eu compreendo muito bem. Escrevi tudo sem muita consciência do que estava fazendo, ia escrevendo o que me vinha à cabeça. Não uso meias palavras. O meu primeiro passo, talvez, foi sair andando nu e se estou ainda parecendo um pouco irreal é talvez porque sou mesmo. Mas qualquer que seja a irrealidade que eu ainda tenha, há um novo sentido de inevitabilidade em minha vida, a qual levará ao fim toda a irrealidade. Não há nenhuma maneira de desmentir o que disse: a Terapia Primal salvou-me a vida como também não tenho meio algum para provar aos outros isso. Toda a questão de
provas, aliás, não tem razão de ser. É bastante eu saber que minha vida foi alterada para melhor porque é uma vida mais real cada dia que passa, devagar mas seguramente. E sei também que é mais real porque quanto mais sinto o mau, o podre, o feio e o desespero, mais me sinto bom, puro, belo e amável. Nunca a dialética foi tão apropriada como nesta terapia.
13 - A RELAÇÃO DA TERAPIA PRIMAL COM OUTROS MÉTODOS TERAPÊUTICOS
A Terapia Primal é uma estrutura conceituai formulada para explicar um fenômeno que ocorreu em meu consultório. Eu acredito que ela seja uma teoria singular e não alguma extensão de outra já existente, embora se possa encontrar aspectos da Teoria Primal em outros métodos psicológicos. O objetivo deste capítulo é comparar brevemente a Teoria Primal com algumas outras técnicas. Não tenho a intenção de me alongar muito nas outras teorias e sim apenas discutir certos aspectos de alguma que tenham bastante uso ou aceitação. Os conceitos de insight e transferência merecerão tratamento especial, já que representam algum papel em certas terapias.
A Escola Freudiana ou Psicanalítica Em certos aspectos, a Terapia Primal fechou um círculo voltando ao Freud primitivo. Foi ele quem destacou a importância das incidências de neuroses na mais tenra infância e também quem compreendeu a relação existente entre os sentimentos reprimidos e as aberrações mentais. Foi ainda Freud quem focalizou sistematicamente a introspecção e quem mostrou a importância dos processos internos no que eles afetam o comportamento ostensivo. Sua explicação dos sistemas de defesa ainda são notáveis marcos de contribuição no campo da psicologia. Infelizmente, os neofreudianos em suas tentativas para melhorar Freud transferiram a ênfase da tenra infância para as imediatas funções do ego. Aquilo que é agora considerado como progressiva pelos neofreudianos, é visto como regressivo em termos Primais. Freud sempre destacou em todas as suas exposições que a análise cuidava dos derivativos do inconsciente onde estavam incluídas a livre associação e a análise de sonhos. Creio que podemos logo ir diretamente ao inconsciente sem ter que examinar qualquer material derivativo. Aliás, o exame de matéria derivativa parece prolongar a terapia sem necessidade. Por ser um método muito direto, a Terapia Primal permite reduzir consideravelmente o período terapêutico. Quando os psicólogos analistas envolvem os pacientes na análise de seus sonhos ou de suas associações mentais enquanto estão ali deitados no sofá, eles estão fazendo exatamente aquilo que não deixa eles enfrentarem os seus sentimentos. Por exemplo, o sonho pode mostrar que um paciente alimenta uma hostilidade
inconsciente contra a mãe ou tem medo do pai, e isso é apontado pelo terapeuta. Mas o que ele não faz, na minha opinião, é permitir que o paciente se torne possuído de raiva que o faça gritar inteiramente descontrolado. Nos moldes freudianos isso seria considerado como conduta desintegradora. Eu creio o contrário, que é integradora já que integra os sentimentos inconscientes da pessoa de volta ao seu sistema consciente. Eu acho que é inválida qualquer espécie de análise. Quero que fique bem claro o que quero dizer exatamente quando falo da análise freudiana de material derivativo. Vamos pensar novamente no paradigma Primal. Existe uma necessidade ou sentimento que não pode ser percebido ou que não tem coragem para isso. Está bloqueado e o que aparece é alguma coisa simbólica, um pensamento ou ato substituto. A análise do material derivativo é uma análise desse domínio simbólico e pode ser evitada numa trapalhada sem fim de símbolos como os sonhos, alucinações, falsos valores, ilusões, etc. Graficamente seria representada assim:
Vamos então pensar nisto nos termos mais simples. Temos um sinal de fome, e o símbolo que surge na consciência é um pensamento de alimento, algo que virá satisfazer essa necessidade. A mente automaticamente apresenta os símbolos corretos ao corpo para que a necessidade seja logo satisfeita para garantir a sobrevivência. Mas vamos então supor que seja proibido pensar em "alimento". Então a pessoa, por medo ou pela dor é obrigada a substituir por um outro pensamento, por uma ideia simbólica. É obrigada a substituir alguma coisa irreal para consciente, porque a sua necessidade real ainda existe, mas está bloqueada. E o mesmo acontece com a necessidade de amor. A criança sente necessidade de ser aconchegada, de que se fale com ela, mas cedo aprende que não vai ser amada. A necessidade está lá e deve ser satisfeita de qualquer maneira. E então a criança substitui. Ora, qualquer substituto, desde que não seja real, tem que ser simbólico. A necessidade bloqueada será simbolizada por sonhos, ilusões, manias, atividades, etc. Todos esses símbolos originam-se na necessidade- sentimento. Algumas vezes, quando já não há mais possibilidades de satisfação, a pessoa pode tentar liquidar o sentimento por meio do álcool ou das drogas, embora os dois ainda sejam atos simbólicos resultantes da necessidade. Tratar da bebida ou das drogas sem levar em conta a necessidade é exatamente o mesmo que tratar dos sonhos sem
levar em conta as necessidades do corpo. Estou afirmando que tratar de quaisquer derivativos simbólicos é uma inutilidade, e é isso que tornou a psicanálise uma coisa tão demorada e agoniante. Já é tempo de mergulharmos através dos símbolos, de chegar até à necessidade, e com isso encurtar a terapia talvez por anos, para que as pessoas fiquem curadas. Uma das implicações centrais do que disse acima é que os testes de projeção são desnecessários, exceto em casos muito raros. Quero me referir aos testes de Rorschach, ao de Percepção Temática, etc. Todos são testes de projeção simbólica. Depende do ponto de vista teórico do psicólogo o teste que escolherá. Se ele for da escola de Jung verá uma coisa; se for de Freud, uma outra; de Adler, ainda outra. É tudo uma questão de palpite, quaisquer que sejam o número de anos que procurarmos para tornar válidos nossos testes, porque estamos inferindo um sentimento de um outro ser humano, e é somente ele, o paciente, que sabe qual é. Uma importante diferença entre as perspectivas freudianas e as Primais gira em torno do conceito do sistema de defesa. A opinião analítica indica que o sistema de defesa é necessário e saudável. Assim sendo, dificilmente encontraríamos um terapeuta freudiano forçando uma penetração e explosão dessa estrutura de defesa para liberar totalmente os sentimentos inconscientes. Em lugar disso, todos os sentimentos que surgissem seriam incorporados, explicados e finalmente compreendidos dentro da estrutura teórica de Freud. O significado do sentimento seria, dessa forma, extraído de alguma coisa completamente pessoal e abstraído em alguma coisa conceituai. É por isso que não há interpretação na Terapia Primal. Os sentimentos que vão subindo contêm seus próprios significados. A opinião Primal é que não existe um sistema de defesa que seja saudável. Todos eles são doenças. Isso não quer dizer que não se busque os sentimentos na psicanálise, mas eles geralmente não são os Primais que podem convulsionar os pacientes. Quando um paciente exibe essa espécie de "histeria" em psicanálise, isso é geralmente considerado como um rompimento das defesas, e logo se adotam medidas para reparar o sistema em lugar de fazer com que o paciente mergulhe ainda mais na "histeria". Os freudianos acreditam que existem certos instintos agressivos ou destrutivos em nós que tornam necessário estabelecer controle e equilíbrio para que a pessoa possa funcionar socialmente bem. Trabalhando dentro de tal estrutura, seria inconcebível para um terapeuta freudiano soltar as rédeas a essas forças "destrutivas". E no entanto, o terapeuta Primal desperta esses sentimentos exatamente para que o sistema de defesa controlado se esfacele. Nesse ponto as duas teorias são antagônicas, pelas razões já expostas acima. 26
Michaels resume assim o ponto de vista psicanalítico: "A medicina está, aos
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Joseph H. Michaels, "Character Structure and Character Disorders" American Handbook of Psychiatry (New York: Basic Books, 1959) Silvano Arieti, ed .
poucos, abandonando o mito da pessoa normal... somos todos relativamente neuróticos. Os princípios básicos de psicanálise afirmam que o conflito é a essência da vida e que as renúncias instintivas são o preço que se paga para sermos seres humanos e civilizados." Michaels segue parafraseando Alexander Pope, "Ser neurótico é ser humano." 27 Também Levine acredita nisso quando diz "A normalidade... não existe." O ponto de vista Primal é que a normalidade está muito na ordem das coisas e que a anormalidade é uma perversão e distorção desse estado natural livre de tensões ou ansiedades. Esse é o cerne da diferença. A psicanálise exige um sistema de defesa porque afirma a existência de uma ansiedade básica que precisa ser defendida. Já isso não acontece com a Teoria Primal pois desde que não haja ansiedades básicas não haverá também necessidade de defesas.
Wilhelm Reich Em 1942 Reich escreveu: "A neurose não é, de forma alguma, apenas a expressão de um equilíbrio psíquico perturbado, e sim a expressão de um distúrbio 28 crônico do equilíbrio Vegetativo e da mobilidade natural." Ele explica que a rigidez muscular não é simplesmente o resultado de repressão e sim que representa a parte mais essencial desse processo. "Sem exceção, os pacientes informam que atravessaram períodos de suas infâncias em que aprenderam a suprimir seu ódio, ansiedade ou amor por meio de certas práticas que influenciavam suas funções vegetativas, e que eram sustentar a respiração, tensão dos músculos abdominais, etc." Reich está mostrando que a neurose não é apenas um acontecimento físico e sim que todos os acontecimentos psíquicos também são biofísicos. O importante acerca de seu método é que ele acreditava ser possível atacar essa estrutura biofísica também fisicamente: "É possível evitar o método indireto através das manifestações psíquicas para atingir diretamente os afetos partindo da atitude do corpo. Se isso for feito, o afeto reprimido surge diante da lembrança correspondente." Assim, muitos são os terapeutas da escola de Reich que hoje estão cuidando principalmente de certas manipulações físicas que aliviam as tensões do corpo, e um paciente que passou por isso contou-me que tais exercícios frequentemente aliviavam as tensões. Como, porém, não eram acompanhados por uma ligação mental, eles não tinham efeito duradouro. Não obstante, a teoria de Reich tem muitas coisas importantes a dizer acerca 27
Maurice Levine, Psychotherapy in Medical Practice , N. Y. Macmilla (n , 1942)
28
Reich, op. cit.
dos aspectos físicos da neurose. Mais tarde, Reich enfeixou uma boa parte de sua teoria num exótico conceito sexual que muito o desacreditou aos olhos de certo setor da comunidade científica, mas se dermos certos descontos à sua inclinação sexual, verificamos que Reich chega muito perto do ponto de vista Primal. "Somos levados a lembrar a perda da espontaneidade nas crianças, o primeiro e mais importante sinal de uma final supressão sexual na idade dos quatro aos cinco anos. Quando isso acontece é sempre primeiramente debaixo de uma sensação de 'ficar morto' ou de 'ser emparedado'. Mais tarde, essa sensação de morto pode ser em parte disfarçada por uma compensação no comportamento psíquico como hilariedade superficial ou sociabilidade sem contato." Eu acredito que Reich está falando acerca do começo da neurose. O que ele diz é o que eu atribuo à Cena Primal, e até mesmo a idade é a mesma nos dois casos. O principal foco para Reich situou-se na tensão abdominal. "O tratamento da tensão abdominal tornou-se tão importante em nossos trabalhos que hoje não compreendo como foi possível conseguir curas de neuroses, mesmo parciais, sem primeiro conhecer a sintomatologia do plexo solar." Prossegue para mostrar como a tensão abdominal produz respiração deficiente e como, em ocasiões de pavor, as pessoas suspendem a respiração por meio da contração abdominal. O que Reich acreditava era que a redução da respiração reduzia também a absorção de oxigênio, permitia menos energia ao organismo e assim, no seu raciocínio, aliviava a tensão. Embora eu não tenha muita certeza que isso aconteça assim, acho que não devemos esquecer dos importantes insights de Reich quanto à relação existente entre a respiração e a neurose. Sempre que vejo um paciente pela primeira vez, procuro automaticamente localizar de onde vem a sua voz e como ele respira. Citei Reich porque acredito que com o passar do tempo a psicoterapia vem tendendo a desprezar o corpo e a sua contribuição para a neurose. Como a neurose é muitas vezes um fenômeno incorpóreo (um split partido do corpo) nós a tratamos como se realmente fosse somente alguma coisa incorpórea e mental. Assim, vamos encontrar o foco na associação de ideias nas terapias de condicionamento ou a substituição de ideias na terapia racional. Acredito, no entanto, que os adeptos de Reich dos dias de hoje talvez tenham errado na direção oposta, isto é, que há uma tendência para se desprezar os processos cerebrais quando se procura aliviar as tensões físicas. O ponto de vista Primal é que o organismo é uma unidade psicofísica. Qualquer método, para ser duradouro e bastante eficaz, deve levar essa unidade em consideração. Assim, as minhas objeções às várias técnicas como a terapia de toque, de movimento de corpo, de natação, todas elas com o fim de "liberar" o corpo, seriam as mesmas que se encontram na terapia de Reich. Eu diria que qualquer método físico implicitamente prolonga o processo neurótico por uma técnica em que as
ligações mentais são ignoradas ou, pelo menos, não são consideradas importantes, e em que o corpo é visto como entidade separada da mente. Eu não acredito que seja possível libertar o corpo, exceto temporariamente, enquanto existirem dores primais profundamente ocultas que produzam uma contínua tensão física e mental. Qualquer tentativa física para fazer isso eu considero simbólica, e já dei antes aqui um bom exemplo disso. Eu quero insistir que a mente não pode se livrar de lembranças dolorosas, que envenenam todo o sistema, por meio de exercícios destinados a tornar o corpo mais fluido e integrado. Essas lembranças, funcionando num nível abaixo da consciência, continuam a enviar impulsos para o resto do organismo prevenindo o perigo, e na minha opinião, esse perigo continuará até ser sentido e resolvido. Nesse ponto haverá um relaxamento verdadeiro e os exercícios corporais podem então ajudar. Eu também tenho as mesmas objeções aos métodos que esperam limpar a mente obrigando a pessoa a ter pensamentos "saudáveis." Será possível ignorar as lembranças primais e substituir por pensamentos "alegres", mas isso não erradica a Dor. No esquema Primal a ligação não só é desejável como também essencial. Quando enfrentamos uma neurose devemos ter sempre em mente a etiologia. O que é que torna uma pessoa tensa anos e décadas seguidas sem descanso? Hábito? Uma reação condicionada? Talvez, mas acho que é mais complicado do que isso. A tensão é o sinal de um sistema em funcionamento tentando resolver as necessidades do corpo. O sistema é insuficiente, na melhor das hipóteses, já que segue tentando de forma imprópria sem jamais entender bem que nunca vai resolver o que é necessário. É com essa rede entrelaçada que devemos tratar e não com suas partes somente, como os braços e pernas na terapia da dança, ou na fala com a terapia da palavra, etc. Devemos compreender que uma cabeça abafada, por exemplo, pode muitas vezes ser a pressão do corpo focalizada em certa área. Temos que cuidar da pressão, ou então a pessoa será obrigada a passar o resto da vida assoando o nariz para tentar aliviar a pressão da cabeça.
A Escola Behaviorista ou de Condicionamento As técnicas de condicionamento estão ganhando sempre maior popularidade entre terapeutas, especialmente nos hospícios e nas universidades. Sem qualquer tentativa para explorar a vasta literatura nessa área, eu apenas discutirei por alto o método de condicionamento. A ideia principal é que os problemas emocionais são o resultado de adversas condições de educação. Diz-se que a neurose é fruto da falta de instrução. Assim, por motivos de recompensa ou punição, neurótico aprende certas reações ou hábitos impróprios e eles tendem a se tornar mais fortes com o tempo. Andrew Salter, em seu livro Condition Reflex Therapy, afirma:
A falta de ajustamento é falta de condicionamento e a psicoterapia é o recondicionamento. Os problemas do indivíduo são o resultado de suas experiências sociais, e quando modificamos as suas técnicas de relações sociais, nós também modificamos a sua personalidade. Não queremos dar ao indivíduo um conhecimento estratificado de seu passado a que chamamos "sondagem". O que desejamos é dar-lhe um conhecimento reflexo de seu futuro a que chamamos "hábitos". Essa afirmação de Salter parece representar a opinião geral de muitas escolas de condicionamento, embora haja entre elas muitas diferenças. Essencialmente parece ser que aprendemos a ser felizes aprendendo os hábitos emocionais, da mesma forma que aprendemos a ser infelizes. Esse método depende muito de como as pessoas funcionam. Um funcionamento adaptativo, eficiente e produtivo seria um índice de saúde emocional. Já discuti antes o funcionamento, mas torno a afirmar que ele pouco informa quanto aos sentimentos da pessoa ou tampouco se ela sente enquanto está funcionando. Pacientes que sempre funcionaram muito bem em termos de posição, status, e renda, diziam que se sentiam "mortos" e que tudo que faziam era desprovido de sentido, pois apenas movimentavam-se. Assim, embora eles pudessem haver sido mecanizados na infância por duas máquinas de condicionamento — seus pais — que premiavam o comportamento neurótico e puniam o "bom'', a Dor que isso produzia não pode ser destruída pela alteração da rota do sintoma ou do comportamento superficial. Na minha opinião, ela não desaparecerá com uma modificação na saída. São inúmeros os exemplos que podemos citar da terapia de condicionamento. Um deles é um hospício que adotou o seguinte método para os alcoólatras: Montam um bar e toda vez que um paciente bebe um gole recebe um choque elétrico doloroso e a corrente vai aumentando até que ele cuspa fora a bebida em uma bacia que está na sua frente, e então a corrente é desligada. A ideia é colocar um certo "mau" comportamento ao lado de um estímulo desagradável e com isso expulsando o hábito indesejável. Uma outra variação de condicionamento negativo é mostrar uma série de cartões a um grupo de homossexuais. Em alguns deles há fotografias de homens nus. Toda vez que um deles vira um desses cartões logo recebe um choque. Espera-se que a vista de homens nus torne-se então dolorosa e desagradável o bastante para evitar o homossexualismo. Na Inglaterra já se tentou um método de condicionamento positivo com homens homossexuais. Faziam com que eles se masturbassem até o ponto de ejaculação, e nesse momento exato surgia uma fotografia de mulher nua. Com isso esperava- se associar com as mulheres o prazer sexual expulsando-se as anteriores tendências. Essas experiências são baseadas na presunção que as pessoas aprendam novos hábitos por associações agradáveis ou desagradáveis. Embora se possa
considerar como razoável presumir que as pessoas pratiquem as coisas que são premiadas e cessem as que não são, esse método omite o dinamismo que está por trás do hábito neurótico. No caso do homossexual, por exemplo, parece que não se leva em conta a tremenda negação do amor e a grande necessidade de carinhos. Em lugar disso o paciente é castigado para não ter o que quer, e isso só serve para aprofundar a neurose. Eu penso que as técnicas de condicionamento só trarão aumento de tensão e talvez sintomas mais sérios. Não acredito que se deva tratar as doenças cuidando apenas dos sintomas. Para tratar da neurose nós precisamos cuidar das necessidades. A tensão também não é levada em consideração nos métodos de condicionamento. O método Primal é diferente dos outros. Em lugar de encarar os temores da pessoa como entidades, a Terapia Primal acredita que o medo está na pessoa. A Terapia Primal cuida de processos internos ao passo que os métodos de condicionamento só cuidam do comportamento ostensivo. Assim um medo atual é considerado pela Terapia Primal como emanando de alguma coisa histórica. Quando se trata de fobia, a Terapia Primal indica que o sentimento, que pode ser o medo neste caso, é sempre real enquanto o contexto é simbólico. A pessoa pode ter medo não realmente de altura, por exemplo, mas de alguma coisa que não compreende. A terapia de condicionamento trataria do sintoma apresentado, que era o medo de alturas, e tentaria fazer com que a pessoa ficasse mais tranquila em tais situações. A Terapia Primal tenta mostrar a ligação certa com o medo. Eu creio que é essa ligação que elimina o medo generalizado e a necessidade de procurar substitutos. Implícito em alguns dos métodos de condicionamento temos a presunção que o homem seja mais ou menos uma máquina cujo comportamento pode ser fixado ou modificado por manipulação externa sem a intervenção da consciência. As técnicas de exercícios na vida escolar ou militar parecem ser uma extensão dessa filosofia. A ideia é que a neurose pode ser alterada permanentemente mesmo que a pessoa não imagine o que possa ter feito nascer o seu comportamento irracional ou as condições que puseram um fim a ele. Além de discordar em terreno psicológico, eu quero me ocupar da proliferação e aceitação das atuais técnicas de condicionamento. Essa ideia de considerar os seres humanos como simples unidades que podem ser manobradas de qualquer forma faz parte de um Zeitgeist, parte da desumanização do homem, onde os sentimentos, os propósitos e a inteligência são apenas considerações secundárias na ânsia de se conseguir resultados. Eu acho que o tratamento mecânico dos seres humanos faz parte da doença atual e é o que causou originalmente a neurose. O meu medo é que a psicologia possa ser absorvida pela mecanização social generalizada onde os efeitos sintomáticos sociais e pessoais, como os protestos estudantis, são eliminados por técnicas de punição sem que ninguém se preocupe em indagar a razão. Para compreender os sintomas nós temos que sondar as causas. Devemos
lembrar sempre que os seres humanos possuem a história de suas vidas. Talvez parte do problema esteja no fato das técnicas de condicionamento terem funcionado em animais e que daí foram extrapoladas para os homens, sem levar em consideração que eles não são animais. Acho que a teoria do condicionamento teve uma importante função na história da educação e da psicologia, ou seja, na área da instrução. É certo que há determinadas condições que facilitam ou inibem a instrução e seria bom se tivéssemos uma teoria para isso mostrando como as pessoas aprendem, sob que condições, em que idade. Não creio, porém, que o ensino possa fazer justiça à complexidade do processo neurótico. As necessidades são tanto físicas como mentais, e não vejo como elas podem ser ignoradas e ainda assim permitir que alguém sinta estar realmente fazendo alguma coisa pela neurose. Eu vejo o processo neurótico como totalmente psicofísico, ao passo que o processo da instrução é primordialmente mental. Assim, as manipulações do sistema mental apenas não podem qualitativamente alterar o sistema, psicofísico.
A Escola Racional O método racional é a última criação de Albert Ellis. A sua terapia não é geralmente classificada como um método behaviorista, mas algumas de suas técnicas são muito parecidas. O terapeuta racional, por exemplo, pode encorajar um homossexual a tentar um comportamento heterossexual ao mesmo tempo que continue falando certas frases como "gosto de mulheres; não tenho medo; gosto de sexo." O que vale é o comportamento, e espera-se então que os hábitos mudem se emparelharmos o comportamento "desejável'' com as associações mentais certas. Basicamente, a escola racional acredita que o neurótico esteja querendo se convencer de coisas erradas, ou seja, está inconscientemente repetindo frases que levam ao comportamento irracional. Quando o paciente chega a perceber as frases e muda-as para algo mais racional, acredita-se que seu comportamento seguirá o mesmo caminho. Em uma brochura recente Albert Ellis disse o seguinte: O método do Instituto Racional é baseado na crença que os indivíduos podem aprender a viver racionalmente vendo com plena consciência que suas emoções e comportamentos autodestruidores nascem de suas próprias filosofias ilógicas. Adquirem essas ideias de forma biossocial e depois internalizam-nas por meio da repetição. O terapeuta ajuda o paciente a provocar tais crenças empregando técnicas de modificação de comportamento.29
29
Institute for Rational Therapy, brochura, 1968 .
Não é minha opinião que as pessoas vivam irracionalmente devido a filosofias ilógicas. Elas se comportam dessa maneira porque não lhes permitiram que agissem racionalmente e de acordo com seus sentimentos nos primórdios de suas vidas. Eu considero os seres humanos essencialmente racionais. As filosofias irracionais, na minha opinião, surgem para explicar ou "racionalizar" o comportamento neurótico. Quando o indivíduo nega a sua própria verdade, ele é forçado a construir um emaranhado de "inverdades". Parece que é uma ação inerentemente racional alguém agir de acordo com seus verdadeiros sentimentos, e quando os pacientes pós-Primais finalmente sentem a verdade, eles podem então tornar-se racionais acerca de muita coisa na vida sem precisar de explicações complicadas ou intelectuais. E por que não compreendiam antes? Apenas porque o fato de negar os sentimentos significa negar também a compreensão. Essa negação torna necessárias as ideias substitutas, isto é, falsas. Ellis menciona emoções autodestruidoras e nós vamos encontrar essas noções em muitas teorias. Eu não acredito que haja emoções capazes de destruir a pessoa. Ao contrário, o que destrói é a negação desses sentimentos. Os sentimentos não podem destruir o ser porque pertencem a ele. Aquilo que muitas vezes se considera como emoção destruidora, por exemplo, a raiva, é o resultado do sofrimento reprimido. A falta de sentimento é o que destrói o ser e também permite a destruição de outros. Se é verdade que o neurótico age irracionalmente porque está dizendo para si mesmo as frases erradas, então por que será que tanta gente diz as coisas certas e mesmo assim não muda? O fumante pode dizer que 70% de todos os seus colegas morrerão de câncer do pulmão, e ainda assim, fumar os seus cigarros de costume. O alcoólatra pode jurar todos os dias que o álcool apodrece o fígado e mesmo assim continua a entornar a sua pinga repetidamente. O homossexual pode dizer a si mesmo que realmente adora as mulheres embora continue a ter relações com homens. Se odeia as mulheres o seu ódio nada tem de racional. É uma generalização de um antigo sentimento Primal sepultado que não pode mudar, na minha opinião, até que o sentimento histórico seja sentido e resolvido. O ódio do homossexual pelas mulheres pode ser o resultado de anos de terríveis relações com sua mãe. Dentro de seu contexto apropriado, o ódio pode ser racional. Na minha opinião, quando se obriga um homossexual, com um ódio básico por sua mãe, a repetir para si mesmo que adora as mulheres, isso irá fortalecer a sua ideia e portanto também sua neurose. Uma paciente Primal que se submetera à terapia racional explicou-me como tinha sido o tratamento: "Lembro-me de haver dito ao médico que estava terrivelmente contrariada porque meu namorado me largara. Ele me disse que eu tinha um comportamento irracional e que eu precisava dizer a mim mesma que realmente poderia viver sem ele e que não tinha necessidade de amor para continuar vivendo. Aquilo era bem parecido com a Ciência Cristã. Eu tinha que fingir estar
sentindo uma coisa que, realmente, não sentia. Por mais que dissesse a mim mesma, eu realmente não conseguia convencer-me que poderia viver sem o meu namorado. Agora já compreendo por que. Já senti o que estava querendo com o meu namorado: era apenas um pai carinhoso." Eu creio que a diferença básica entre a prática Primal e a racional é o papel que nossa filosofia representa na neurose. Ellis acredita que as pessoas agem de acordo com uma filosofia profunda, mas inconsciente, e que precisa tornar-se consciente. O ponto de vista Primal é que as filosofias são adotadas em termos da maneira por que agimos com a Dor, isto é, a pessoa que é direita consigo mesmo tende a ter também ideias , atitudes e filosofias direitas.
A Terapia da Realidade O que eu acho essencialmente errado com as terapias de orientação ou confrontação é que elas esquecem-se da história do paciente e também que há sempre uma história por trás do comportamento neurótico. A terapia da realidade tem uma ampla aceitação atualmente devido a duas razões. A primeira é que ela é simplista e portanto agrada àqueles que não gostam de se aprofundar muito nas coisas. Segundo, e mais importante, ela se adapta perfeitamente ao modo cultural, ou seja, aos conceitos de ação e responsabilidade que, na minha opinião, é o verdadeiro Zeitgeist cultural que produz a neurose. É um método desses que quase obrigam as pessoas a se reunirem para fazerem alguma coisa, mesmo que não estejam dispostas a tal. Dá-se grande importância à ação responsável, mas essa responsabilidade sempre parece ser de alguém ou de alguma coisa e nunca da própria pessoa. Na minha opinião, a terapia da realidade foge dessa mesma realidade, da realidade do paciente. Exige que o paciente enfrente um mundo em que ele, geralmente, não está, nem pode estar, até que sinta a razão para ele estar fazendo aquilo que está mesmo. A informação seguinte de um paciente claramente indica as diferenças entre as terapias Primal e da Realidade. "Já fazem agora três anos e meio que eu entrei para a terapia da realidade pois estava então à beira de um colapso nervoso. Havia lido em Reality Therapy e compreendido bem que a neurose se instala quando as necessidades básicas humanas não são satisfeitas. Dizia o articulista que essas necessidades são: amar e ser amado e sentir que valemos alguma coisa para nós e para os outros. E para valer alguma coisa nós devemos manter um bom padrão de comportamento e isso só poderá ser fazendo o que for realista, responsável e certo. Esse conceito era compatível e conveniente para mim e logo pensei que iria me curar depressa pois toda a minha vida sempre fora orientada pelo que era 'realista, responsável e certo'.
Com vinte e dois anos eu já era professora de inglês de ginásio e também era considerada como socialmente aceitável. Mas então, onde havia eu errado, e por que estava me desintegrando daquela maneira? Pensei logo que a Terapia da Realidade iria me ajudar a ver em que ponto tinha errado. “Durante minhas sessões sempre falei das desagradáveis relações com meu namorado e com meus pais e do meu geral desencanto pela vida. Achei que o meu terapeuta dava-me toda a atenção enquanto estava lá sentado por trás de uma imponente mesa de trabalho, numa confortável poltrona de couro e fumando um cigarro atrás do outro. A solução para meus problemas parecia-lhe muito simples. Eu teria que encontrar alguém a quem quisesse de verdade e que também me fizesse sentir o meu valor. O que estava implícito na sua recomendação era que eu ia precisar de sinais externos, e não de mim mesma, para saber o que valia. "Ao fim de todas as sessões, o terapeuta perguntava sempre quais eram as providências que eu ia tomar para melhorar a minha situação, e eu, timidamente, dizia-lhe o que julgava estar certo. Iria tentar não procurar mais meu namorado; iria ser mais carinhosa com meus pais; iria me ocupar mais com meu trabalho. Em retrospecto eu vejo agora que estava fortalecendo aquele mesmo verniz de aceitação social que vinha carregando comigo a vida inteira tentando esconder o quanto me sentia infeliz por baixo dele. Sabia o que devia dizer e fazia o jogo do terapeuta direitinho com um rosto impassível. Sempre fora ótima aluna e a terapia ia ser mais uma matéria que eu aprenderia bem. "A despeito das boas notas que estava tendo na terapia, conseguindo a aprovação do terapeuta, eu via que decidir uma mudança era coisa muito mais fácil do que levá-la a cabo. Como nada conseguia resolvi parar com a terapia. Dois meses depois casei com meu namorado, e seis meses depois, através de uma quantidade de desapontamentos para nós dois, resolvemos pela separação. Voltei então ao consultório do terapeuta acreditando que meu desastre tivesse sido devido a não haver seguido seus conselhos desde o princípio. Decidimos então que eu deixaria definitivamente meu marido, que procuraria um outro emprego e começaria vida nova buscando alguém que realmente me amasse. Consegui, realmente, um novo emprego e isso ocupou todo o meu pensamento afastando-o dos outros problemas. Ainda assim, dentro de três semanas já estava de novo com o meu marido tendo imposto como condição para essa nova união que ele iria submeter-se à terapia junto comigo e que ficaríamos então gritando um com o outro durante aquela hora. Essa tensão mútua serviu para convencer ao terapeuta que deveríamos nos submeter a tratamento individual. Começamos a seguir os seus conselhos, e depois de pouco tempo já tínhamos conseguido estabelecer uma atmosfera semelhante à calma que vem antes ou depois das tempestades. "Quanto ao afastamento de meus pais, consegui convencer minha mãe para vir comigo à terapia. Tivemos só uma sessão juntas pois durante a hora inteira ela
deblaterou e acusou-me de ser uma filha ingrata, gritou como eu era uma menina boazinha antes e como agora ela sentia-se magoada e rejeitada. O terapeuta sugeriu então que esquecêssemos o passado e tentássemos melhorar o presente. Embora meus pais continuassem a não me compreender, permanecessem alheados e sempre me criticando, estabelecemos uma fachada 'socialmente aceitável' para as relações pais e filha. Contei para meu terapeuta que já visitava meus pais e considerei a missão cumprida. "Quando cheguei a esse ponto, eu já estava então com as minhas necessidades básicas sendo satisfeitas, dentro da realidade da terapia. Convenci-me de ser amada por meu marido e meus pais, embora sentisse uma agonia de um vazio e da infelicidade dentro de mim. Pensava, ou antes, sabia, que tinha algum valor pois já contava com um emprego e um marido, que estava desempregado quando começou a terapia, mas que já agora, tinha um bom emprego. Estávamos os dois fazendo o que era 'realista, responsável e certo'. E mesmo assim, ainda não havia uma verdadeira felicidade, um legítimo contentamento e também não havia paz. Só tínhamos conseguido colocar todos os nossos ressentimentos e trapalhadas da raiva recíproca que existia entre nós em um compartimento perfeitamente estanque. Concluímos a terapia simplesmente tolerando-nos. "Um ano mais tarde fui com meu marido para a Terapia Primal. Aquele tinha sido um ano de brigas violentas, desesperos e amargura e eu chegara a pensar em suicídio por diversas vezes. A terapia da realidade só servira para me 'ensinar' a modificar meu comportamento, mas de forma alguma conseguira aliviar-me das origens da minha infelicidade. Hoje já estou sentindo minhas antigas dores e estou a caminho do restabelecimento completo e não apenas de um alívio temporário. "As diferenças entre as duas terapias me parecem muito nítidas. Em lugar de toda aquela tolice da terapia da realidade durante uma hora, eu agora passo o tempo que quero às voltas com as minhas dores. Quanto mais dores sinto menos dores tenho. Agora já percebo que não preciso de conselhos e que só me adianta eu sentir a minha Dor. Os conselhos dos outros apenas obrigam-me a conformar-me com um padrão de comportamento que me é imposto sem querer saber quem sou ou como me sinto. É o padrão de uma sociedade neurótica e, infelizmente, em termos da terapia da realidade, o principal é satisfazer isso, e eu estava me conformando com o processo de continuar a ser irreal. "Na Terapia Primal, por outro lado, eu estou violentamente desfazendo-me das camadas que não são reais, da fachada e da máscara de suavidade. Ali, a única coisa que conta é destruir tudo que houver de irreal em mim para tornar-me a sentir como um perfeito ser humano. Se eu fosse atrás da terapia da realidade iria continuar neurótica a vida inteira em busca do impossível que era o amor de meus pais. Com a Terapia Primal eu já não espero mais que meu marido venha preencher o vazio deixado por meu pai. Quando estiver boa poderei permitir que meu marido
seja ele mesmo e poderei amá-lo pelo que é e não como um procurador do papai. "Na terapia da realidade minha neurose foi reforçada porque o terapeuta ficou sendo o representante de papai. Ele era bom, delicado e atencioso como eu esperava que meu pai fosse, mas que não conseguira ser. O resultado foi que fiquei dependendo mais do terapeuta do que de mim mesma. Dessa maneira, eu ficaria toda a vida naquela terapia. Na Terapia Primal eu sinto-me alheia ao terapeuta. Sinto-me com a minha solidão e a verdade é que ninguém se preocupa comigo. Só eu mesma. "A Terapia Primal faz-me enfrentar aquilo que me tornava doente e não procura ensinar-me como desviar para outros canais o meu comportamento neurótico. Ela sabe que o passado não pode ser esquecido. Ele deve ser sempre lembrado e convocado, e principalmente deve ser sentido para que eu possa ter um presente. Pela primeira vez em minha vida eu sinto a esperança de ver o vazio dentro de mim ser cheio e o pesado manto da Dor externa ser retirado de cima de mim."
Meditação Transcendental A mania mais recente entre universitários, músicos e artistas é a meditação transcendental promulgada pelos yogis indianos como Maharishi Mahesh. A meditação envolve a repetição de um mantram ao mesmo tempo que se concentra somente na imagem do Deus incluindo qualquer outra distração interna ou externa. (Mantram é uma expressão em sânscrito que significa alguma coisa pessoal entre o homem e seu Deus, mais ou menos como o nosso "Deus tenha piedadede mim".) Os exercícios de respiração entram em cena, de forma que geralmente antes da pessoa haver atingido o pico ou "transferência", quase não se percebe a sua respiração. E tudo isso é feito entre flores, mantos flutuantes e incenso. O objetivo é conseguir uma integração com Deus e encontrar o supremo relaxamento que equivale ao êxtase. A meditação tem por fim transcender o que é mundano para chegar ao espiritual com a meta da auto-realização. Vivekananda, que foi o fundador da ordem de Ramakrishna, descreve os propósitos da meditação: O maior auxílio para a vida espiritual é a meditação. Nela, nós nos despojamos de todas as condições materiais para sentir nossa natureza divina. Quanto menos se pensar no corpo melhor será. Pois é o corpo que nos arrasta para baixo. O que nos torna infelizes são as identificações, as amizades. Aqui está o segredo: "pensar que sou o espírito e não o corpo, e que todo o universo, com todas as suas relações, com tudo que é bom e tudo que é mal, não passa de uma série de pinturas, de cenas numa tela, que eu
estou contemplando."
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A única forma que encontro para classificar a meditação é chamá-la de antiPrimal. Ela envolve o desligamento em lugar de ligação, abnegação do eu em lugar de sentimento e acredita na necessidade do split entre a mente e o corpo. Parece ser de natureza solipsista, já que nada realmente existe exceto como uma tela pintada. Isto não significa que as pessoas não possam usar a meditação como relax. Tive um paciente que fora monge Vedanta durante muitos anos e que informou-me haver praticado a meditação transcendental durante doze anos e que muitas vezes entrara em estado de êxtase cujo resultado final foi um colapso e a necessidade de apelar para a terapia. Isso talvez exija uma explicação. Eu acredito que o estado de êxtase vem de uma completa supressão do eu, quando a pessoa se entrega a uma fantasia (um deus) de sua criação e com a mistura disso com a sua imaginação e o afastamento da realidade. É um estado de total irrealidade, uma espécie de psicose socialmente institucionalizada. Se, por exemplo, algum paciente viesse nos dizer que havia-se fundido com Deus e que agora ele e Deus eram uma só pessoa, nós suspeitaríamos de sua racionalidade, mas quando esse processo é sancionado por alguma teologia específica nós sempre nos inclinamos para desprezar a sua inerente irracionalidade. Devemos lembrar que podemos meditar todos os dias sem, ainda assim, reduzir a necessidade de meditação. De alguma forma o demônio da tensão surge de novo todos os dias e tem que ser afugentado com a meditação. Os rituais, as flores, as roupagens poderão parecer fazer parte do relax embora não sejam condições essenciais. Não acredito que alguém precise demonstrar que é alguém. Nós somos o que somos.
Existencialismo O existencialismo é uma outra corrente da psicologia na atualidade. Este método tem por fim desfazer um pouco a demasiada importância dada pelos freudianos aos acontecimentos da infância ao mesmo tempo que oferece uma estrutura mais dinâmica do que as terapias de condicionamento. Os existencialistas dão a máxima importância ao que é atual, e ocupam-se do homem como ser. Não podemos realmente dizer que o existencialismo seja um sistema terapêutico sistemático pois são poucas as hipóteses apresentadas que podem ser testadas, nem tampouco existe uma tentativa metódica para criar um método bem ordenado. O existencialismo é, em vez disso, altamente filosófico e tira a sua força das obras de
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Swami Vivekananda, Works (Advaita Ashrama, 1946), vol. 27.
Sartre, Binswanger e Heidegger. Abraham Maslow é um dos líderes do existencialismo atualmente, e, junto 31 com Carl Rogers, exerceram um forte impacto nas atuais ideias psicológicas. Acreditam eles existir uma tendência para a saúde psicológica a que dão o nome de auto-atualização. Maslow vê a neurose em termos de uma moléstia de deficiência, já que o neurótico é deficiente naquilo que precisa para se atualizar. Todo ser humano tem os dois grupos de forças dentro de si. Um deles agarra-se à segurança e defensiva levado pelo medo, inclina-se a regredir, tem medo de crescer e da independência... de liberdade e de separação. O outro impele-o para a integração do eu, para confiança perante o mundo externo ao mesmo tempo que sabe aceitar o seu eu inconsciente mas real.32 Eu considero essa integridade como alguma coisa que nasce conosco, mas concordo com Maslow que existe a necessidade de sermos reais ou íntegros, isto é, de sermos o que somos. Não acredito, por outro lado, que haja dentro de nós alguma coisa como uma força neurótica básica e regressiva, e que ela só aparece quando sofremos algum cerceamento. Não acredito que o medo, principalmente o medo de crescer, seja básico para a função humana. A neurose, para Maslow, é o conflito básico entre as forças defensivas e as tendências para o crescimento. Essa tendência ele a vê como "Existencial, instalada na mais profunda natureza do ser humano." Devido à necessidade de considerar o homem sempre em termos de luta, muitas teorias postulam o comportamento do homem como uma constante dialética entre algo negativo e positivo. Assim, Maslow vê a necessidade da segurança como uma "necessidade prepotente mais primordialmente necessária do que a auto-atualização." Antes que alguém corra riscos e se manifeste, será preciso que satisfaça ou domine suas necessidade de segurança mais fortes. O conflito torna-se paradigma básico para o crescimento. Eu não considero o conflito como algo básico e interno. Ao contrário, penso que a neurose resulta da pressão contra as tendências ao crescimento natural e desenvolvimento do organismo. Parece que não há uma prova concreta de coisas que se pareça com necessidade de segurança ou medo básico de independência e liberdade. Parece que aí se trata de comportamento de neuróticos, mas devemos hesitar antes de atribuir tais comportamentos a algum fator genético constitucional. O que Maslow afirma é uma coisa de certo modo parecida com a posição freudiana, ou seja, que existe uma ansiedade básica que precisa ser dominada, e a isso ele dá o nome de necessidade de segurança. Nem mesmo essas nomenclaturas, 31
C.R. Rogers, A Therapist´s View of Personal Gifts (Wallingford, Pa., Pendle Hill, 1960; On Becoming a Person (Boston: Houghton Mifflin, 1961).
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Abraham Maslow, Toward a Psychology of Being (Princeton, Van Nostrand 1962).
porém, parecem conseguir afastar Maslow de sua demonológica opinião sobre o homem. Isso talvez seja devido ao fato de nós construirmos nossas teorias psicológicas pelas observações que tiramos de neuróticos que geralmente têm sempre bastantes demônios para liquidar. Não é a deficiência de necessidades que nos mantém imaturos e neuróticos e sim a falta da satisfação das necessidades reais. De qualquer forma, eu não consigo ver como pode haver algumas necessidades especiais que só ocupam uma parte de nós. Toda necessidade é total. Quando não as satisfazemos é porque somos deficientes. O auto-atualizador de Maslow é aquele que consegue experiências máximas, os acontecimentos fora do tempo em que é transcendido, e a pessoa chega a um estado quase igual ao Nirvana. A leitura existencialista está cheia de discussões sobre essas experiências que aliás são altamente tentadoras. Muitos de nós certamente gostaríamos de transcender a miséria e a tristeza de nossas existências diárias, mas Maslow não mostra claramente como tal experiência pode ser conseguida. É antes um acontecimento místico. Em vista da falta de exemplos concretos no trabalho de Maslow, eu vou confiar nas descrições dessas experiências máximas por dois pacientes que estiveram antes em terapias existenciais de grupo. O primeiro foi um homem que ficou deprimido durante dias. Ao fim de uma semana de depressão um amigo convidou-o para escalar montanhas. Escalaram uma muito íngreme e a pessoa ficou num estado de euforia absoluta e chamou a isso, muito sério, de experiência máxima. O que fizera ele? Simplesmente sacudira e livrara-se de sua depressão. Terá ele transcendido os verdadeiros sentimentos que estavam em jogo na depressão? Duvido muito. Ele apenas deixara de lado por uns tempos aqueles sentimentos. A segunda experiência ocorreu durante uma maratona de nudismo. O homem estava passando por todos os grupos e era acariciado por todo mundo. De repente sentiu em todo o corpo uma sensação de calor. Chamou àquilo de "um instante de identificação com a humanidade." Mas o que foi realmente? Ele estava recebendo o que achava lhe ser necessário, ou seja, o calor e as críticas humanas, mas aquilo foi apenas uma experiência momentânea que não estava ligada à grande dor do que ele precisara toda a vida. O contato do grupo abafou suas tensões dolorosas e permitiu, portanto, que ele transcendesse o que era real. Seu Nirvana não era verdadeiro. Na minha opinião, a transcendência é o que os neuróticos estão sempre fazendo. Qualquer Nirvana que tenham imaginado haver atingido era certamente um estado irreal, pois o que eles precisam é a experiência de descer até seus verdadeiros sentimentos. A busca de uma experiência máxima muitas vezes parece ser apenas mais uma luta para encontrar alguma coisa única numa experiência monótona e apagada. Faz parte de uma esperança irreal. Aqueles que foram sempre bem tratados pelos pais não têm razão para
desejarem transcendência. As pessoas que terminam a Terapia Primal nunca falam dessas experiências a que Maslow se refere. Os existencialistas já estão tentanto abandonar as campanhas de ansiedades básicas e forças instintivas para se concentrarem em processos de auto-atualização, numa campanha para nos levar à saúde. Rollo May e seus companheiros explicam 33 uma parte da posição existencial : "A característica do neurótico é que a sua existência está obscurecida... coberta por nuvens e não sanciona seus atos. O objetivo do Existencialismo é que o paciente tenha uma existência real." Isso se parece com o que quer também a Terapia Primal, mas a própria linguagem do existencialismo escurece a realidade em causa. O que é exatamente a existência? O que significa para alguém ter a sua existência escurecida pelas nuvens? O compromisso é coisa importante no existencialismo. O objetivo é ajudar o paciente a livrar-se do vazio existencial e comprometer-se com alguma coisa positiva e que caminha em frente. Os existencialistas raciocinam que as pessoas podem conseguir sentir o seu eu por meio do compromisso. Mas para que alguém se comprometa com alguma coisa é preciso que esse eu exista. O neurótico está separado da maior parte de seus atos e portanto, por definição, não pode se comprometer integralmente com coisa alguma. Um empresário totalmente comprometido com o seu negócio está geralmente tentando fazer o seu eu irreal trabalhar, e se sentir o que está fazendo, é muito provável que não esteja totalmente comprometido com a sua empresa. Em termos clínicos, a posição existencial é parecida com a escola racional. Um homossexual passaria a sentir a sua heterossexualidade por meio de compromissos com atos heterossexuais. Eu acredito, porém, que a neurose não é apenas uma questão daquilo que fazemos, e sim do que somos. Uma pessoa pode praticar dezenas de atos heterossexuais e continuar sendo homossexual porque sente e tem necessidade de alguém do mesmo sexo. Um ato não vai varrer essa necessidade para sempre. Esse é o engano do homossexual latente que procura afastar suas tendências com sucessivos atos heterossexuais, tudo sem resultado. Ele pode até mesmo negar o seu desejo de amor dos pais. É possível que alguém nunca tenha praticado o homossexualismo e, ainda assim, sinta-se bastante homossexual. Discutimos isso na seção do homossexualismo. O neurótico sempre pode praticar um novo ato, mas isso dificilmente modificará sua neurose. Os existencialistas, de um modo geral, discutem os compromissos das pessoas, o seu comportamento atual e a sua filosofia. Eu não acredito que a discussão possa mudar o que ele é. Para o neurótico, a discussão é muitas vezes alguma coisa que está por cima do sentimento. Conserva a pessoa "mental" para que ela não possa sentir sua verdadeira personalidade.
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Rollo May, Ernest Angel e Henri Ellenberger, Existence (New York, Basic Books, 1960)
Em Ciências Sociais, "aproximação" refere-se à tentativa, de parte de algumas terapias, para uma fusão com outras com o fim de fortalecer suas posições. Assim, nós vamos encontrar teóricos freudianos querendo misturar seus conceitos com o contexto de uma outra teoria para assim tornar a sua mais viável, e também viceversa. Essa reconciliação de diferenças entre as várias teorias é mais aparente do que real e leva a verdades mais "estatísticas" do que biológicas. Quando examinamos a história das ideias psicológicas desde o começo do século, vamos verificar uma grande importância atribuída à primeira infância e uma focalização da introspecção. Para contrabalançar isso, os teóricos do behaviorismo e da instrução abrem mão da introspecção e da primeira infância para se concentrarem no comportamento. Houve depois tentativas dos neofreudianos para atualizar a terapia de Freud com a análise do ego, focalizando as atuais manobras defensivas do paciente. A Teoria Primal situa-se muito distante dos conceitos behavioristas. O que o behaviorismo parece fazer é abstrair o sintoma e tentar condicionar ou descondicionar o comportamento irreal. Funciona com manifestações irreais e não com causas e portanto não pode fazer mudanças verdadeiras. A afirmação Primal é que o homem não é uma compilação de padrões de hábitos nem uma massa de defesas contra os demônios ou instintos internos. Quando uma pessoa experimenta seus desejos e necessidades Primais sem medo de perder o amor, ela está experimentando o seu "ser". Quando não pode fazer isso ela é um “não ser", para usarmos a expressão existencial. Eu não acredito que qualquer espécie de esforço especial, sublimação ou compensação possa transformar um neurótico em uma pessoa com sentimentos. Para ser o que é, o neurótico deve regredir e sentir o que era antes que tivesse deixado de "ser". Como disse um paciente, "Para sermos o que somos, temos que ser o que não fomos." O contentamento ou a felicidade, que geralmente são as metas da psicoterapia, não são o resultado de insights acumulados, na minha opinião, como também não são os cânticos ou os mantrans repetidos, nem tão pouco se deriva da aquisição de hábitos "positivos." Acho eu que, se a meta terapêutica é fazer o paciente sentir-se satisfeito, esse sentimento só pode ser alcançado quando o paciente consegue finalmente descobrir o seu verdadeiro eu. Qualquer felicidade conseguida pelo eu irreal nada mais será do que uma irrealidade. A verdadeira felicidade, então, significa que a antiga infelicidade foi solucionada e não existe mais. Muitos terapeutas me informam que já constataram alguma demonstração Primal em alguma ocasião, especialmente em maratonas de terapia de grupo que duram a noite inteira. Geralmente eles são tratados como histeria, e as pessoas correm a confortá-los procurando acalmá-los em lugar de ajudá-los a expandirem-se. Se pudessem então ser orientados pela Teoria Primal, talvez essas histerias resultassem em algo mais importante. O objetivo das maratonas de terapia é
geralmente construtivo e, por estranho que pareça, muitos terapeutas "esquecem" suas teorias quando participam de maratonas. Geralmente estão tentando fatigar o sistema de defesa dos pacientes durante a maratona, e muitas vezes chegam a conseguir. Porém, sem algum conceito do que está acontecendo, a maratona muitas vezes transforma-se num exercício de exaustão em que os pacientes explodem, entregam-se e choram, tornam-se íntimos, mas, ainda assim, não chegam a fazer as ligações primais que dariam valor à maratona. Uma variação da terapia de maratona que está em plena ascensão é a maratona nudista. As sociedades profissionais já agora frequentemente incluem especialistas para acompanharem os trabalhos. A maratona nudista é uma terapia de grupo comum, só que praticada sem roupas. Destaca a parte sensual e geralmente uma boa parte do tempo passa-se em piscinas onde se sucedem contatos e carícias para que os participantes possam "sentir" as outras pessoas. O objetivo geral da maratona de grupo nu é ajudar as pessoas a se desfazerem das artificialidades que as separam, a eliminar a vergonha do corpo e aproximar as pessoas. Esse método faz parte do conceito geral que as pessoas podem aprender a sentir e podem tornar-se sensíveis e sensuais aprendendo a aceitar seus corpos por meio de diversos movimentos. Embora isso possa oferecer algum interlúdio interessante para quem leva uma vida sem sabor, eu não creio que desperte sentimentos. Isso não se transforma em terapia pelo simples fato de ser uma experiência sensual. Quero mais uma vez afirmar que não podemos avaliar o que os outros sentem. Aprendemos primeiro a sentir a nós mesmos e depois vamos nos sentir quando sentirmos os outros. Assim, se uma pessoa tiver seus sentimentos bloqueados, ela poderia possivelmente tocar e sentir outra pessoa durante um dia inteiro sem sentir coisa alguma. Ser sensual, então, significa poder perceber nossos sentimentos ou sensações. Se não fosse assim, então as mulheres frígidas que fingem promiscuidade sexual sempre tocando e acariciando alguém, ficariam finalmente saciadas. Mas isto não acontece. Devemos estabelecer a diferença entre os gestos feitos e alguma coisa sentida internamente. Para que as pessoas se aproximem mais uma das outras, é preciso que, primeiro, elas se aproximem de si mesmas. Parece que a destruição das barreiras íntimas contribuem para destruir também as que existem entre pessoas diferentes. Há quem pense que o fato de alguém despir-se torna a pessoa menos defensiva que as outras. Parece ser alguma ideia mágica alimentada por algumas pessoas que quando alguém faz certos movimentos com vestidos ou calças isso resulta no desmoronamento de barreiras que já vinham resistindo durante anos. Gastei algum tempo com esta discussão para estabelecer a diferença que existe entre experiências externas e internas. Se não fizéssemos essa distinção, poderíamos imaginar gente deitada pelo chão debatendo-se e gritando, convencidos todos que estão passando por uma experiência Primal. Devemos ter sempre em
mente que as atividades que trazem modificações básicas para os indivíduos devem emanar de seus sentimentos, e devem vir de dentro para fora. Sem isso, nada mais adianta. Desde que seja destruída a barreira dos sentimentos os estímulos de fora penetrarão em todo o sistema. Então farão sentido os exercícios de sensibilidade que mandam as pessoas ficarem de pé na grama fresca para aumentar a sua experiência sensual. Isso terá como verdadeira significação que apenas é bom ficar pisando a relva fresca e não alguma coisa mística de significado astral.
Psicodrama O psicodrama é uma técnica muito usada em terapia de grupo de várias escolas. Eu chamaria essa modalidade de um jogo de suposições. O paciente recebe um papel designado pelo terapeuta e passa a agir como se fosse outra pessoa ou então ele mesmo numa posição especial, como, por exemplo, reagindo e respondendo mal ao patrão. O paciente pode assumir o papel de sua mãe, pai, irmão ou irmã, professor. Como ele não é mesmo nada disso, terá então que representar como se fosse outro quando, às vezes, não se sente disposto nem mesmo a ser o próprio. O psicodrama tem usos limitados como, por exemplo, para fazer ficar mais à vontade um grupo que passa pela terapia convencional, mas essencialmente, ele parece oferecer mais um papel fora da realidade que a pessoa deve representar depois de já haver representado a si mesmo durante tantos anos. Nesse caso, a peça é coreografada pelo terapeuta. Eu acredito que o neurótico, muitas vezes, já foi obrigado a representar e afogar seus verdadeiros sentimentos em algo que era talvez uma peça trágica de horrores escrita, dirigida e mal produzida por seus pais. A ideia mágica e falsa a respeito do psicodrama é que se alguém pode levantar-se contra a figura da mãe num psicodrama, então poderá fazer depois o mesmo na vida real. A representação continuará e a pessoa ficará sendo para sempre mais agressiva, expressiva, etc. Acontece, porém, que a pessoa que representa um papel está fora da realidade e assim, como pode ela fazer mudanças reais na sua personalidade e na vida? Tudo que conseguirá será aprender como ser ainda mais neurótico, aperfeiçoando a sua capacidade para representar de forma que passa a agir pela "deixa" em lugar de agir pelos sentimentos. Há ocasiões em que a pessoa se enreda em seus psicodramas e realmente começa a perder o controle. Nunca vi ninguém em um psicodrama que chegasse a perder o controle de seu papel. O mais frequente é as pessoas saberem que estão representando e torna-se então um adulto brincando de "se eu fosse." Os pacientes primais não representam. Eles são realmente as criancinhas num completo descontrole.
O significado de tudo isso é que a pessoa é a sua neurose. Nunca chegamos às verdadeiras origens dos problemas com simples manipulações, modificação dos sintomas, oferecimentos simbólicos, físicos e mentais, de viagens nem obrigando a papéis ou situações. As defesas podem ser embaralhadas continuamente e só cessarão quando o paciente sentir que é ele mesmo. Até sentir a Dor, tudo será em pura perda, tanto faz que sejam psicodramas, análises de sonhos, treino de sensibilidade, meditação ou psicanálise. Não é possível discutirmos todas as outras escolas de psicologia, da mesma forma que é impossível responder a todas as perguntas que se originam na Terapia Primal. Por exemplo, será ela uma forma de hipnose? Exatamente o contrário embora algumas condições sejam as mesmas. As neuroses nascem quando os pais exigem que os filhos abram mão de seus sentimentos para tornar-se o que eles querem. Na hipnose também, uma autoridade forte pode adormecer o verdadeiro sentimento para fazer o paciente adotar uma outra identidade. A pessoa hipnotizada entrega-se à autoridade, da mesma forma que a criança neurótica entrega-se aos pais e torna-se o que eles querem. A hipnose é a manipulação da frente real, e as pessoas transformam-se completamente. A hipnose pode ser conseguida porque a pessoa já está dividida. Desde que não sinta coisa alguma, a pessoa pode ser transformada em qualquer coisa, e em compensação, desde que a pessoa sinta-se completamente integrada em si mesma ela não pode ser hipnotizada nem passar por lavagem cerebral. Não é por acaso que à medida que se aprofunda a hipnose a pessoa pode ser picada com um alfinete e nada sentir e usa-se isso para verificar se ela está mesmo hipnotizada ou não. Eu encaro isso como uma reafirmação da opinião Primal que o verdadeiro eu, tanto na hipnose como na neurose, já foi narcotizado e adormecido. A neurose, portanto, é uma forma de hipnose mais a longo prazo e universal. Se não fosse assim, como poderíamos explicar o fato do neurótico ser assolado por dores de que não se dá conta? É bem possível que, em alguns casos, a hipnose produza estados quase psicoticos. Quando alguém se torna um Liberace, nem mesmo não sabendo quem é Liberace, e não tem outra consciência, qual é a diferença entre ele e a pessoa que se tornou Napoleão num hospício? Em neuroses, psicoses e hipnoses, nós estamos tratando com a parte que surgiu no split separada do sentimento e da imposição de identidades irreais. Os pais neuróticos impõem essas identidades ou papéis aos seus filhos inconscientemente, ao passo que o hipnotizador o faz em sã consciência. E consegue fazer isso porque há pessoas que estão dispostas, e até mesmo ansiosas, de se transformarem para poderem ser o bom menino. A necessidade de ser um súdito leal foi que contribuiu para produzir os nazistas, ou gente disposta a matar os outros para servir à pátria. A Terapia Primal é o oposto da hipnose porque se propõe a amarrar a pessoa aos seus próprios sentimentos fugindo ao que os outros esperam dela. Desde que está totalmente envolvida com o presente é pouco provável que alguém possa alhear
uma parte da pessoa levando o resto para uma viagem de "identidade." Uma pessoa real nunca será nazista, Napoleão ou Liberace. Será sempre ela mesma e mais ninguém. Muitos neuróticos que terminaram o tratamento explicam que suas vidas eram antes uma espécie de transe, pois dominados como estavam pelo passado, mal se davam conta do que acontecia com suas vidas. Uma paciente disse que era como se fosse um aturdimento perpétuo e que fazia tudo que os outros queriam só para estar em paz. Pois não é isso que o indivíduo hipnotizado faz? "Eu serei tudo que você quiser que eu seja, papai."
Laura A diferença entre a Terapia Primal e as outras é explicada por Laura que passou por muitas delas. Ela faz aqui uma excelente descrição gráfica de uma Primal, mostrando como faz funcionar todo o sistema psicofisiológico. Eu comecei a Terapia Primal quatro semanas antes de completar trinta anos, e já estou me tratando durante dez semanas. Não tenho a menor dúvida quanto à sua validez. Eu represento um exemplo típico do fracasso das terapias de insight já que passei por elas durante sete anos com diferentes terapeutas e vim para a Primal sem qualquer sentimento. Em outras palavras, sete anos de terapia não conseguiram nem mesmo romper a primeira barreira para me fazer "sentir bem", isto é, real e sensível. Não vale a pena tratar aqui de minha raiva, do tempo que perdi e do dinheiro que gastei durante esse tempo todo. No último ano, e com o meu último terapeuta, um existencialista, eu cheguei à conclusão que só uma coisa conseguira naqueles sete anos. Sentia-me à beira de alguma coisa muito grande mas não conseguia senti-la. Pensei que ia ficar louca e que ia descobrir algo de terrível a meu respeito. Agora já vejo que aquilo que eu estava à beira de sentir era realmente o sentimento! Não posso começar a fazer aqui uma lista das diferenças entre esta terapia e as outras do passado. A Terapia Primal funciona. Ela não se sustenta no sentido de me fazer "sentir-me melhor" e funcionar melhor. É muito fácil funcionar bem, mas isso não indica necessariamente que estamos bem. Sei que muita gente não concorda com isto. Falando por mim e por outros que eu sei estarem funcionando muito bem, eu posso dizer sinceramente que o funcionamento não indica saúde. No meu caso, indicava apenas que: 1) aprendi desde pequena que tinha que fazer alguma coisa para ser amada; 2) acreditava que isso era assim. Só conseguiria o amor se fizesse o que me mandavam; 3) eu precisava muito do amor e continuava a fazer o
que queriam apesar de estar exausta e não gostar; 4) eu já tinha descoberto um meio muito bom para me enganar pensando que não estava muito doente já que fazia bem tudo que mandavam. Cerca de três anos atrás eu tomei noventa comprimidos para dormir querendo suicidar-me. Antes de tomar o remédio limpei toda a casa, mudei a roupa de cama, tomei um banho e lavei a cabeça. Até o último momento de meu pior estado, quando senti que a mente e os sentimentos estavam completamente separados, eu era uma perfeita dona-de-casa. Há alguma coisa mais que sempre me perturbou, e também a outros, a respeito da terapia moderna, que faz a gente funcionar e sentir-se melhor. Se meus pais não me amavam, o que era uma verdade; se estou realmente só, como de fato estou; se o mundo está com fome e convulsionado, como é óbvio que está, então por que estaria eu sentindo-me melhor? Vamos considerar a terapia racional. Fui uma vez ao Dr. K. que era terapeuta racional. Naquela ocasião pensei que ele era muito brilhante, principalmente porque foi muito duro comigo. Lembro-me de parte de nossa conversa. Eu disse que já não aguentava mais e que queria que meu namorado viesse procurar-me sem que eu tivesse que lhe pedir. O Dr. K. foi logo perguntando se eu não achava que aquilo era um sentimento ridículo e irracional. Quem estava eu pensando que era para que ele tivesse que me procurar? É já que eu queria tanto vê-lo, por que não ia procurá-lo? Assim superficialmente, não há nada ilógico no que ele dizia, mas a sua opinião era muito irreal quando pensava que se mudarmos nosso pensamento mudaremos também nossos sentimentos. Aprendi na Terapia Primal, somente por meio do sentimento, e sem precisar por que, que no fundo de tudo está a minha necessidade insatisfeita do amor de meus pais. É uma necessidade básica essa do amor deles. Se tivessem me amado teriam me deixado em paz e teriam me dado o que eu precisava. Como ambos eram também bebês e também doentes, eles só podiam me dar o que queriam e não o que eu precisava. E mais ainda, já que não eram eles mesmos integralmente, precisavam que eu representasse para eles em lugar de ser apenas o que era. Com cerca de cinco anos eu deixei de ser uma pessoa com sentimentos verdadeiros. Tornara-se claro que eu não ia conseguir o que precisava se continuasse a ser eu mesma, e então deixei de sentir e comecei a representar. Esse foi o princípio de minha doença. Tudo que fiz dessa época em diante estava cada vez mais distante do que eu realmente era ou daquilo que realmente precisava. Quanto mais me separava de meus verdadeiros sentimentos, mais doente ficava. Aprendi a representar para poder sobreviver, para não sentir a dor por não conseguir o que queria, e que era o amor deles. A doença não se cura com uma simples mudança dos sintomas ou das manifestações dessa necessidade. O Dr. K. queria que eu agisse bem e realmente, mas não parecia entender que isso não me tornaria nem real nem curada. Assim, quando não me deixou sentir as sensações do momento ele também impediu a minha cura. Logo que eu sentisse a verdadeira necessidade, não apenas uma vez,
mas todas as vezes que pudesse até que a necessidade desaparecesse, o comportamento neurótico desapareceria também, já que era apenas um disfarce para a necessidade real. Isso pode parecer milagroso, e até mesmo eu sinto isso, mas foi muito real. Pouco a pouco, na medida em que sinto mais e mais, eu passo a representar cada vez menos. Quanto mais me permito sentir-me como um bebê, na terapia e que precisa do amor dos pais, mais me sinto livre de tal necessidade, livre para ser adulta, solitária, separada e livre para gozar a companhia alheia, para não me ocupar dos outros e para saber que jamais terei o que quero de meus pais, e que ninguém pode solucionar isso para mim. Existem outras diferenças entre a Terapia Primal e as outras atuais, especialmente as diferenças de técnicas, e uma outra, ainda maior, que é a dos terapeutas, e foi essa que exerceu para mim uma grande influência. A transferência que fazemos do terapeuta para mamãe ou papai é coisa que surge automaticamente, da mesma forma que na vida, já que nunca realizamos o desejo da necessidade de mamãe e papai. Sendo assim, o terapeuta não precisa representar o papel de mamãe ou papai para que a gente sinta. Na realidade, agir como mamãe ou papai bons ou maus, em lugar de agir como uma pessoa real, só serve para enganar o paciente da mesma forma como fizeram antes os seus pais. O terapeuta deve ser real para o seu paciente, pois só assim poderá recusar os fingimentos e mentiras dele. A minha primeira terapeuta era uma senhora muito fina e muito compreensiva. Procurou fazer-me compreender como era mau o meu comportamento. Tentou ajudar-me para que eu encontrasse na vida um sentido que ela não tinha para mim junto com a família. Lá estava eu com dezesseis anos, frequentando o ginásio só em meio-expediente, com meus pais divorciados, meu pai fazendo tudo para que eu conseguisse refazer seu casamento, minha mãe morando com outra mulher junto comigo e minha irmã. Aquilo não fazia sentido para mim e hoje digo com satisfação que estava então certa no meu pensamento. O meu maior alívio é saber que a minha luta contra a insânia que via à minha volta era a única coisa que ainda me mantinha sã, já que era também o que me mantinha parcialmente em contato com meus sentimentos reais. E ainda assim, os terapeutas teriam me levado ao matadouro, como uma ovelha bem mansa, e todos eles, junto com minha família, reforçavam a minha falta de confiança em meus verdadeiros sentimentos, que era a única coisa capaz de me salvar, e também na minha total confusão. Eu sentia que todos estavam loucos em torno de mim, mas o mundo me dizia que a louca era eu. Diziam-me que eu era uma menina má, e como era criança deveria me submeter a todos aqueles fingimentos que queriam me impingir e que passariam a ser a minha realidade. Era o que estava acontecendo, mas não era a realidade. Felizmente, o cerne da realidade dentro de mim, minhas reais necessidades e sentimentos, não fugiram. Não conseguiram matar a criança de cinco anos, aquela criancinha que sabia a sua verdade e ansiava por ela bem como por sentimentos reais à sua volta. Aquela terapeuta não fazia ideia que teria chegado a
alguma coisa e a algum lugar se tivesse conseguido chegar também àquela criancinha que estava dentro de mim. Com o meu segundo terapeuta eu levei mais de dois anos falando a respeito de meu marido. Tentou muitas vezes fazer-me falar de mim mesma, mas não conseguiu. Nunca cheguei a chorar mesmo diante de meus terapeutas. Muitas vezes chegava atrasada para as sessões. Todos três terapeutas sabiam que aquilo era a minha maneira de representar alguma coisa mais profunda, mas agindo como se fossem substitutos de meus pais, como pensavam, tudo que faziam era zangarem comigo e durante os sete anos eu sempre cheguei tarde para a terapia. Com a Terapia Primal eu só cheguei atrasada uma vez. Fui logo informada por Art Janov que não seria mais recebida se chegasse atrasada outra vez. Ao fazer aquilo ele não estava parecendo ser um papai bom para mim, embora eu desejasse que o meu houvesse realmente feito a mesma coisa. Ele não estava apenas usando uma boa técnica, como ficou provado, mas estava também sendo real comigo. E mais importante ainda, ele não me deu o que eu queria e sim alguma coisa muito mais valiosa, pois deu-me o que eu precisava. Era uma vergonha o fato de nenhum de meus terapeutas anteriores haver reconhecido aquela verdade tão simples. Em fugar disso, permitiam-me que, bem ali em seus consultórios, eu continuasse a representar e dizer todas as coisas que escondiam as minhas verdadeiras necessidades. Iam ao encontro de meus desejos. Permitiam que eu divagasse sem sentido quando eu precisava deles para me ajudarem a ser tranquila e real sem representação. Eles permitiam que eu escondesse meus sentimentos quando representava para eles que eram as minhas mamães e papais. Acho espantoso que, depois de tanta confusão, as coisas se tornassem tão simples depois de algumas semanas na Terapia Primal. Nas novas terapias tão em voga atualmente, as pessoas têm liberdade para exprimir seus sentimentos, e com isso elas sentem-se aliviadas por algum tempo. Os pacientes choram em público, possivelmente pela primeira vez assim como também mostram pensamentos ocultos. Eu falo com experiência própria pois participei de muitas maratonas de fim de semana com dois terapeutas e dezesseis pessoas. Naquela ocasião experimentei um grande alívio e pensei que a experiência tinha sido boa. Só que não havia ninguém lá que soubesse dirigir-nos. Existe ainda um outro grande perigo com esses novos métodos e ele está na afeição que se desenvolve entre os participantes quando procuram confortar-se reciprocamente, o que só serve para disfarçar as necessidades reais. Essas maratonas muitas vezes aprovam representações flagrantes em lugar dos sentimentos. Logo que senti minha primeira experiência Primal eu percebi que ali estava a verdade, que eu estava sozinha e que não havia nada que eu conseguisse de quem quer que fosse que pudesse satisfazer àquela necessidade básica. Uma vez sentida a necessidade
real já não serve mais nenhum substituto. A experiência Primal é um sentimento profundo que exprime todas as necessidades que temos. Nunca senti algo parecido antes, exceto talvez num orgasmo. Depois do orgasmo, muitas mulheres chegam a chorar. Eu chorei muitas vezes. Agora vejo que é porque, nessa ocasião, a gente chega o mais perto possível do sentimento de uma necessidade real. Depois de uma Primal eu verifico que houve uma grande secreção na vagina embora não sinta contrações ali. Aliás até aqui, todo meu corpo segrega líquidos durante as Primais. É como se todas as dores estivessem fugindo de mim. Algumas sessões são mais livres do que outras. Parece que meu corpo sabe o quanto pode suportar e vai agindo de acordo. Se eu ainda não estiver em condições de sentir eu luto contra os sentimentos e chego até a chorar dizendo o que sinto. Mas o grande alívio chega quando todos os controles cedem, e nesse momento não há pensamentos. Ainda me admiro com o que acontece já que não contribuo para tal, e não consigo compreender por que aconteceu, embora goste do resultado. Não tenho mais nenhum desejo de lutar e sinto o maior alívio de toda a minha vida. As palavras e soluços jorram sem controle algum. Não penso. Só sinto. Tudo que acontece constitui surpresa para mim já que não posso controlar a direção que a Primal vai seguir, mas não é bem uma surpresa já que eu sinto que tudo é verdade, é a necessidade real e a verdadeira resposta para toda a confusão que amontoei em cima daquela necessidade. É triste pensar no tempo todo que gastei lutando contra os sentimentos, quando essa luta é uma agonia e os sentimentos representam o alívio. Também é dor. É um alívio abandonar a luta, uma luta de vinte e cinco anos. A luta evitou que eu sentisse a dor, a dor de eu estar só e de não conseguir que mamãe e papai me amem. Como já disse, as minhas Primais têm sido de intensidades variáveis, sendo que as mais livres foram muito simples e diretas. A primeira ocorreu numa terapia particular durante as três primeiras semanas de um período intensivo. Quando começou eu estava fria. Sempre fui muito fria, nos pés e nas mãos. Quando me deitei no sofá estava gelada e batia os dentes de frio quase sem me conter. Art disse-me que me entregasse ao frio que sentia em mim, e antes que me desse conta já ali estava toda enrolada como um bebê a soluçar que "queria mamãe." Não sei quanto tempo durou pois não podia controlar. Passei uma boa parte de minha vida chorando sem nunca encontrar alívio, mas aqueles soluços eram novos para mim pois pareciam-me mais reais como nunca antes experimentara. A dor era a mais doce que já me acontecera. Eu sempre agi como se fosse pequenina e tinha o pé direito sempre voltado para dentro como se me protegesse. Logo que comecei a sentir-me pequenina o pé direito, que estava virado para dentro, ficou certo. Art viu quando isso aconteceu pela primeira vez, e depois quando olhei para os pés, os dois estavam bem certinhos apontando para cima. Depois da Primal continuei ali deitada. Foi uma experiência cansativa e fiquei algum tempo sem poder falar. Minhas mãos estavam
quentes pela primeira vez, tanto quanto conseguia lembrar-me, e assim permaneceram a maior parte do tempo desde então.
14 - INSIGHT E TRANSFERÊNCIA EM PSICOTERAPIA
A Natureza do Insight 34 Em 1961, Nicholas Hobbs pronunciou o seu discurso presidencial sobre as origens do melhoramento na psicoterapia para a American Psychological Association. As questões de Hobbs a respeito dó papel do insight são importantes, já que ele representa a maior parte do que geralmente chamamos de terapia padrão. Sem levar em conta a persuasão teórica, a maior parte dos terapeutas, sem contar com os behavioristas, que usam o insight como instrumento, acreditam que se o paciente puder compreender a razão por que faz alguma coisa, ele inevitavelmente mostrará uma tendência para abandonar um comportamento neurótico e irracional. Hobbs mostrava-se preocupado porque, muitas vezes, os pacientes com muito insight não progrediam. Muitos de nós estamos de acordo com ele. Hobbs começou a duvidar da eficácia do insight como técnica importante, e citou exemplos em que ocorriam mudanças sem insight como a terapia lúdica com as crianças, a de movimento do corpo e o psicodrama. Ele notou que os terapeutas de diferentes escolas teóricas pareciam promover diferentes mas igualmente eficazes insights com os mesmos índices de melhoramentos. Ele imaginava se nas terapias de insight os pacientes simplesmente aproveitavam-se do sistema pessoal de interpretação dos terapeutas e dizia então que "O terapeuta não precisa estar certo pois é bastante 35 que seja convincente. A pergunta que Hobbs faz é: Como podem estar certas todas essas variadas interpretações? Ou será que há alguma "certa"? Hobbs define insight: "Quando um cliente afirma alguma coisa sobre ele mesmo que está de acordo com o que o terapeuta acha que ele tem." Nesse ponto do desespero, Hobbs deixa para trás o insight como um exercício infrutífero e passa a discutir o que realmente acredita ser a causa de melhoras terapêuticas nos pacientes. Ele cita o calor, a compreensão e o ouvido atento como os maiores fatores de melhoras, ou seja, em outras palavras, as relações do paciente com o terapeuta. Hobbs termina seu discurso dizendo que "Não há insights verdadeiros e sim apenas 34
Usamos em todo o livro a expressão em inglês, mas para melhor compreensão transcreveremos do Dicionário de Psicologia de Henri Piéron, ed. Globo, 1966: "Este termo designa, num animal, a capacidade de compreensão súbita de uma situação no decurso de aprendizagem por ensaio e erro. O termo que melhor lhe corresponderia em português é intuição, empregado em psicologia humana. Em português tem-se usado discernimento, apreensão súbita." 35 Nicholas Hobbs, "Sources of Cain in Psychotherapy", American Psychologist (nov. 1962).
os que são mais ou menos úteis." O que é então o insight terapêutico? Eu acredito que seja a explicação do comportamento irreal. O verdadeiro insight nada mais é senão a Dor virada pelo avesso. O insight é o núcleo da Dor. É aquilo que precisa ficar escondido para que a pessoa não tenha que se defrontar com a verdade. Assim, liberar a Dor equivale a liberar a verdade. As implicações disso são que não apenas existem simples e "úteis" insights como Hobbs acredita, como também verdades simples e precisas acerca de todas as pessoas. Vamos tomar um exemplo. Uma paciente Primal está falando sobre seu pai que ela considerava um homem essencialmente adorável. Conta como ele foi maltratado pela mãe dela e como parecia fraco. Depois de falar mais a tal respeito ela finalmente diz com um certo desprezo "Eu bem gostaria que ele ficasse firme com ela." Eu então insisto para que a paciente grite "papai, seja forte por mim!" Ela passa por uma Primal comovente falando do pai que desistiu da família e fechou-se consigo mesmo, derrotado e sem ânimo. Ele era o bebê que não conseguiu ajudar a filha e que precisava de proteção contra a mãe dela que era uma fera. Logo que ela percebe que seu pai realmente não a amava e não podia ajudá-la porque era ele quem precisava de ajuda, ela deixa sair uma torrente de insights: "Foi por isso que me casei com um cara fraco pois queria transformá-lo no meu pai forte. É por isso que choro quando meu filho abraça-me. É por isso que tenho nojo de homens que deixam suas mulheres ridicularizá-los. É por isso, é por isso..." E despeja então todos os seus insights que são as explicações para os milhares de maneiras que ela procurou para cobrir a sua Dor. Esses insights não são apenas discutíveis. Eles irrompem de um sistema de ligações e são as extremidades de uma completa experiência sobre sentimento. Os pacientes chamam a isso de uma precipitação de insights de natureza quase involuntária. São insights sentidos até a ponta dos pés como disse um paciente. A liberação da Dor torna as razões mais claras. As razões são os insights. Logo ao sentir a Dor já é quase impossível não sermos inundados por insights porque um único sentimento reprimido já causou muito comportamento neurótico. Um outro exemplo. Um paciente fala de sua raiva irracional contra sua mulher e filhos. Diz que não o deixam sossegado um só instante, estão sempre exigindo coisas, e ele nunca tem tempo para atender ao que é seu. Então eu pergunto-lhe se ele também se sentia assim com seus pais. "Claro que era. Lembro-me bem do meu pai entrando no meu quarto quando eu estava descansando ou ouvindo música. Olhava-me furioso porque eu estava ali sem fazer nada. Ainda fico furioso quando me lembro como me aporrinhava. Nem uma só vez lembrou-se de sentar para conversarmos um pouco. Só sabia me dar ordens." Disse-lhe então que se concentrasse naquilo e que se deixasse dominar, e logo percebo que ele já está sentindo. Pergunto-lhe o que desejaria dizer ao pai e ele logo se inflama e eu lhe digo
para falar direto com o pai tudo o que sente. Ele começa com uma torrente de epítetos indignados e pejorativos, mas logo cede a um sentimento mais profundo: "Papai, por favor. Sente-se um pouco aqui para conversarmos. Mostre-se bonzinho para mim pelo menos uma vez. Eu não quero zangar-me com você. Eu quero o seu amor, papai!" Nesse ponto o paciente suspira e soluça sentindo a Dor. E então começam os seus insights: "Era por isso que eu sempre pedia dinheiro a ele e a outras pessoas. Eu queria que alguém tomasse conta de mim. É por isso que nunca quero ajudar minha mulher. Estou reagindo às exigências dele. É por isso que fico zangado quando as crianças querem minha ajuda." E aí mais choro e mais gritos para o pai. "Papai, se você soubesse como eu me sentia solitário enquanto esperava que você fizesse alguma coisa por mim. Bastava chegar em casa e abraçar-me uma vez só. E por isso que eu me derreto todo quando o meu chefe me elogia. É por isso que sinto dores de estômago quando ele fica zangado comigo." Por aí nós vemos como estão entrelaçados a Dor e os insights. Aliás, os insights são realmente os componentes mentais da Dor. Aquele homem sentia suas necessidades reais que estavam depositadas por baixo de toda a sua raiva e conseguia compreender todas as suas supostas ações irracionais que resultavam dessas necessidades. Os pacientes Primais não tomam conhecimento dos insights. Não o consideram diferente. Quando um paciente está contando o que sente aos pais, ele está por dentro da situação. Não olha os seus sentimentos a distância. Em resumo, não é uma parte dividida falando de uma outra. O processo Primal é uma experiência única. A diferença entre falar com um médico a respeito de sentimentos e falar com os pais durante a Terapia Primal é da máxima importância. Quando um paciente diz "doutor, eu acho que fiz aquilo porque me julguei uma criança", há a separação do "eu" que está explicando e do "me" que está sendo explicado. Assim, o ato da explicação na terapia comum contribui para manter a neurose já que continua o split. Por mais correto que seja o insight, a neurose tornase mais profunda. O método Primal não cuida de explicações pelo terapeuta. Essas explicações muitas vezes podem ser a moléstia, especialmente na classe média em que os filhos sempre são obrigados a prestar contas de tudo que fazem. Os pais de classe média são muito complicados em tudo que fazem, incluindo as razões para punirem os filhos a quem forçam para se enquadrarem em seus moldes. Muitas vezes os filhos de operários têm mais sorte. O pai chega em casa depois de algumas cervejas, surra os filhos para começo de conversa e a vida continua. Tudo é ali às claras. Não há complicações para atrapalhar a vida das crianças. É por isso que a Terapia Primal anda mais depressa com pacientes da classe trabalhadora. Eles não precisam analisar os pais. Só o que precisam é gritar-lhes todas as surras que levaram sem motivos. Eu creio, portanto, que o processo de explicações da psicoterapia
convencional talvez torne o paciente mais neurótico. O que parece fazer é ajudá-lo a esquematizar o seu comportamento irracional em termos de alguma teoria enganando-o que está melhor porque está "compreendendo" ao mesmo tempo que produz o que eu chamo de "neurótico psicologicamente integrado". A "compreensão" na terapia convencional é apenas mais um disfarce para a Dor. Uma das principais pragas da humanidade, depois das doenças mentais, é o tratamento delas. Não há necessidade dos pacientes explicarem o que sentem e falar sobre isso ad nauseam. O que eles precisam mesmo é sentir. Desde que nos separamos dos sentimentos dos pacientes para entrarmos nos domínios da interpretação terapêutica, quase tudo pode transformar-se em verdade. O paciente que não consegue sentir aceita qualquer coisa. É obrigado a aceitar as interpretações alheias de suas ações porque ele mesmo não consegue ver a verdade. E mais ainda, a interpretação teórica feita por um terapeuta pode muito bem ser a expressão de seus sentimentos reprimidos complicadamente simbolizados em termos teóricos. Dessa forma ele pode encontrar conotações sexuais ou agressivas no que o paciente está contando e que são mais problemas do terapeuta do que do paciente. Também pode ser verdade que a interpretação de um terapeuta nada tenha a ver com sentimentos de ninguém e simplesmente venha de alguma teoria encontrada em compêndios ou elaborada por alguém algumas décadas antes. Essa teoria pode haver agradado ao terapeuta em vista de seus sentimentos reprimidos, e então ele passa a adotá-la para uso em outros. Enquanto continuar existindo a barreira para os sentimentos, tanto o paciente como o terapeuta só podem fazer conjeturas sobre o que está por baixo. Aos palpites do terapeuta damos o nome de teoria. Quando o paciente consegue aprender essa teoria na forma como é aplicada ao seu comportamento, ele pode, ser considerado "curado". Como eu penso que os insights nunca devem preceder a Dor, acho que a obrigação do terapeuta é ajudar a remover a barreira entre o pensamento e o sentimento de forma que o paciente possa, ele mesmo, estabelecer as suas ligações. De outra forma, o terapeuta pode levar anos explicando as coisas ao paciente que nunca tem a sua vez. É possível que tenhamos considerado o insight visto pelo lado errado, já que ele talvez não cause a mudança e sim seja um resultado dela. Isso torna-se claro quando consideramos que o insight é o resultado da ligação entre o sentimento e o pensamento quando aplicado a um comportamento específico. A "ligação" é o termo-chave pois é possível saber-se as coisas mentalmente sem estabelecer uma ligação e portanto, sem fazer mudança. Sem a Dor não pode haver um insight real para o neurótico. Poderíamos dizer que o insight é o resultado mental da dor que se sente. A dor está integralmente relacionada com o insight. Enquanto perdurar o processo do insight dentro de um sistema neurótico onde a Dor impede que ele
penetre todo o sistema, eu duvido que se possa esperar importantes mudanças de comportamento. Desde que exista o bloqueio da Dor, o insight só pode constituir mais uma experiência desligada e fragmentada. A Dor mantém o insight desligado mentalmente e portanto incapaz de fazer qualquer coisa boa pelo organismo. Eu comparo a terapia convencional de insight a um relatório apresentado ao governo por alguma repartição analisando o sistema econômico. O relatório, da mesma forma que o insight, é incorporado ao sistema. Ê absorvido e armazenado de forma a não exercer qualquer impacto sobre o sistema. Devemos realmente esperar que, por mais preciso que seja o insight, ou o relatório analítico, o sistema continuará a reagir de modo irracional. Ficará mastigando e absorvendo a verdade até que alguma coisa aconteça que derrube o sistema irreal. Os pacientes não querem ouvir explicações alheias. Um deles chegou a dizer que a neurose era sua invenção e que, por isso, ninguém poderia explicá-la melhor que ele. Existem diferenças importantes entre o insight na terapia comum e na Primal. Na comum, o terapeuta geralmente toma alguma parte do comportamento neurótico do paciente e infere qual é a verdadeira razão que existe por trás dele. Toma como referência o comportamento irreal. Na Terapia Primal, o comportamento irreal só é discutido com o paciente depois que ele sente o que é inconsciente. Na terapia comum o insight torna-se um fim em si cuja acumulação acabará produzindo mudanças. Além disso, o insight é unidimensional. Geralmente só trata de uma parte do comportamento e a única motivação implícita por trás dele. Na Terapia Primal, uma Dor muito grande pode levar a várias horas de insights diretos, e o mais importante é que eles aí muitas vezes convulsionam todo o sistema. São orgânicos e produzem mudanças totais. Os insights primais são convulsivos porque uma pessoa ligada (com a mente ligada ao corpo) não pode ter pensamentos dolorosos sem reações do corpo também dolorosas. Tampouco pode ele sentir dor física durante uma Primal sem tê-la ligado a uma percepção consciente. Na verdade, à medida que um paciente Primal vai progredindo ele pode tornar a contar a mesma história ao fim de sua terapia e passar por uma reação física muito maior do que quando a contou antes. A terapia comum geralmente trata de fatos conhecidos quanto ao comportamento, ao passo que na Primal tudo é desconhecido até a hora em que é sentido. Um paciente descreveu a diferença. "Parece haver dentro de mim um grande tumor doloroso. Pendurados nele há umas pontas embaraçadas que estão me estrangulando. A minha terapia anterior parecia concentrar-se no desembaraço das pontas para chegar ao cerne da doença, mas nunca conseguimos isso. Aqui parece como se tivéssemos extraído o tumor inteiro e tudo ficou então em seu lugar. Essa expressão de "tudo ficar no seu lugar" é muito comum entre os pacientes. Um paciente expressou-se de outra forma. "Meu cérebro mantinha o
corpo separado. Acho que se o meu corpo funcionasse harmoniosamente eu teria sentido toda a minha horrível Dor. Eu dei-lhes o meu cérebro e depois o corpo." Um outro paciente muito calmo e todo encurvado descreveu sua totalidade. "Quando não há ligação alguma, o corpo e a mente não se mantêm direitos e eu acho que isso se torna aparente mental e fisicamente. No meu caso eu escolhi o peito para apertá-lo contra a dor que vinha de baixo e curvei os ombros como reforço. Apertei a boca e os olhos. Quando estabeleci a ligação durante a Primal, eu não somente compreendi tudo como também automaticamente tornei-me ereto e não cheguei a perceber isso senão quando minha mulher reparou. O estranho é que se trata de uma coisa involuntária." Vamos voltar a Hobbs por um momento. Ele acha que o terapeuta deve ter mais calor humano do que insight, mas eu diria que as duas coisas muito pouco têm de comum porque a Terapia Primal não se preocupa com relações. Tudo que o paciente acaba sabendo já estava lá dentro dele e não entre o terapeuta e ele. O paciente não tem coisa alguma para aprender com o terapeuta. Quem ensina é o sentimento. Sem um sentimento profundo, o calor humano do terapeuta só pode ser fingido, mas mesmo que isso desse resultado, eu ainda assim não vejo como o fato de ser bom e amável pode anular anos de uma séria repressão neurótica.
Discussão A verdadeira pessoa que poderia lucrar alguma coisa com a terapia comum é geralmente aquela que não se beneficia dela, ou seja, a pessoa que pertence às classes trabalhadoras desarticuladas e que não reclamam. Ela precisava mais do que qualquer outra mas, infelizmente, ficou de fora. Quem mais se aproveitou da terapia foi a classe média embora a brincadeira do insight entre paciente e terapeuta venha sendo um embate com o sistema de defesa, um encontro intelectual de mentes. A pessoa que não tem facilidade de expressão nunca poderia participar dessa brincadeira e só é atendida quando há sua derrocada mental. O que conseguiu até 36 hoje está descrito num livro Social Class and Mental Illness , e consiste mais de ação do que conversa, com a terapia.de choque, os remédios, a terapia ocupacional, etc. Ficamos imaginando como pode ser científica uma terapia que só se aplica a certas camadas sociais. O certo seria que todas as ciências que se ocupam do comportamento humano não se esquecessem da maioria da raça humana. Tem havido uma tal mistura de técnicas de insight, cada uma com um método diferente, que chegamos a pensar que o comportamento pode ser discutido dentro de qualquer estrutura de referência. Eu creio que há uma realidade, um único 36
A.B. Hollingshead e F.C. Redlich, Social Class and Mental Illness (N.Y. Wiley, 1958)
conjunto preciso de verdades acerca de todos nós e que não está sujeito a interpretações.
A Transferência O processo de transferência desempenha um papel importante em muitas terapias e especialmente nos métodos analíticos. A transferência é um dos principais conceitos freudianos para mostrar ao terapeuta quais são as atitudes e comportamentos irracionais dos pacientes para com ele. Acredita- se que o paciente projeta no terapeuta a maioria de seus velhos sentimentos irracionais referentes aos seus pais. Eu não acredito que a transferência exista como um fenômeno separado e diferente do comportamento neurótico. O paciente que representa simbolicamente consigo mesmo certamente fará o mesmo com o terapeuta. Já que as relações entre paciente e terapeuta são tão intensas e contínuas, vale a pena analisarmos as neuroses do paciente face ao seu terapeuta. Além disso, a neurose pode ser intensificada porque o terapeuta é também uma autoridade, da mesma forma que os pais. A questão é o que faz o terapeuta com o comportamento neurótico do paciente. O terapeuta Primal não leva em conta a transferência já que tudo faz para que seu paciente sinta o que deseja de seus pais. Na realidade, não existe a relação paciente-terapeuta. Não creio que haja vantagem discutir aqui a transferência já que queremos chegar às necessidades básicas. A Terapia Primal desliga qualquer transferência e não permite comportamento neurótico de espécie alguma porque isso significa que o paciente está representando e não sentindo. Nós obrigamos o paciente a ser direto. Em lugar de torná-lo obsequioso ou intelectual, nós lhe dizemos para atirar-se ao chão gritando o que quer diretamente para os pais. Isso torna supérflua qualquer discussão quanto às relações paciente- terapeuta. O que é importante são os sentimentos primitivos para com os pais. Desde que os sinta estarão eliminadas a transferência e as neuroses. Quando a pessoa sofre as suas Dores Primais, ela espera alívio de parte do terapeuta. Quer que o médico seja um bom pai ou uma boa mãe. Agirá geralmente de tal forma que tentará transformar o médico no bom pai, da mesma forma que fazia com os pais que não o amavam. Acha que agora o médico pode ser o pai bom e atencioso que sempre desejou. Dessa forma, a neurose "funciona". Consegue fazer com que o paciente não sinta o que deixou de receber de seus pais. Devemos lembrar que o paciente sempre procura ajuda porque seu fingimento não está lhe dando o que precisa lá fora, mas dentro do consultório do terapeuta talvez as coisas
melhorem. Quando o terapeuta quer ajudar e oferece alguns conselhos, ele está então incentivando a transferência "positiva". Uma vez que eu acredito que a transferência é a neurose, acho que tudo que se faça com o paciente, além de ajudálo a sentir a sua Dor, só pode ser considerado como prejudicial. Os pacientes muitas vezes apaixonam-se pelos terapeutas porque eles lhe fornecem o que estão inconscientemente procurando com seu comportamento neurótico. Não é de admirar se um paciente que nunca encontrou nada na vida agarre-se à terapia durante anos seguidos desde que tenha encontrado ali um bom pai, e para isso sujeitam-se a tudo. Na minha opinião, a última coisa que um paciente deseja é uma discussão da transferência. Prefere ficar abrigado em suas relações com o analista. O terapeuta Primal, no entanto, vai até os sentimentos escondidos. Isso significa fazer cessar todos os sinais de transferência positiva ou negativa porque tudo é comportamento simbólico. Se alguém me perguntasse o que aconteceria no caso do terapeuta possuir qualquer fator positivo ou negativo, eu responderia que ele não está ali para que gostem ou não dele. Só está ali para causar a Dor e nada mais. Se não for assim, e se ele ainda não sentiu a sua Dor, o melhor que tem a fazer é abandonar a Terapia Primal. A contra- transferência não pode ser tolerada nos terapeutas primais porque isso significaria que eles ainda são neuróticos e, portanto, não podem praticar essa terapia. Nunca é demais fazer notar que o resultado de todos os comportamentos simbólicos é o desligamento do sentimento. A contratransferência é o mesmo comportamento simbólico com o fim de ser amado que o terapeuta está representando com seu paciente. Isso, é claro, vai piorar as condições do paciente que ficará esperando alguma coisa dele. Terá que agir de maneira a poder estancar a Dor do terapeuta e portanto será irreal e falso para consigo mesmo. Vamos agora tomar o exemplo de um terapeuta que se julgue afetuoso e bom e que abrace o seu choroso paciente procurando confortá-lo com palavras carinhosas. Para mim esse in loco parentis resultará no desligamento do sentimento e evitará que o paciente sinta tudo que deve sofrer para finalmente conseguir chegar onde quer. Poderá fazer com que o paciente sinta-se totalmente só sem ninguém que o conforte, e essa é a realidade comum de muitos neuróticos. O conforto de parte do terapeuta é assim contraproducente. Qualquer atitude dessa natureza só servirá para privar o paciente de sua razão para lutar. Se um terapeuta Primal segurar as mãos ou a cabeça de seu paciente, isso poderá geralmente significar que ele deseja vê-lo mais atraído para os seus pais. Isso pode ser feito quando o paciente estiver sentindo tudo que não recebeu de seus pais, e o contraste com o terapeuta servirá para aumentar a Dor. Sob o ponto de vista Primal, a razão por que a análise de transferência não
pode funcionar é que o paciente está transferindo para o médico toda a esperança real em lugar de sentir a sua solidão e desamparo. E quando o paciente conseguir de fato o que acha que precisa do terapeuta, a sua situação face à neurose pode ser desesperadora. Com essa transferência do pai para o terapeuta o paciente seguiu um caminho já conhecido pois encontrou um substituto. Na minha opinião, a própria psicoterapia comum muitas vezes contribui para manter o paciente doente pelas razões já expostas acima. Então ele já espera neuroticamente por uma nova ajuda dessa terapia. É a tentativa para satisfazer a necessidade que obriga o neurótico a modificar as pessoas, inclusive o seu terapeuta. O neurótico não pode deixar as pessoas serem o que são até que ele seja o que é. Depois que isso acontecer, já não haverá mais transferência de necessidades passadas para o presente.
Phillip Esta é a autobiografia de um homem seriamente deficiente que cresceu passando por diversos sanatórios. Como acontece com muitos outros pacientes meus, antes da terapia ele sofria de manifestações físicas que o tornavam ligeiramente corcunda. Era um delinquente renitente considerado como mau elemento e diariamente castigado. Depois, já mais Velho, teve numerosos casos sexuais culminando com um incesto. Sua patologia era muito séria sob todos os aspectos. Até mesmo quando foi enviado para uma psicoterapia com uma médica, ele conseguiu armar a situação para chegar a uma conquista sexual. No linguajar padrão dos diagnósticos ele era considerado um psicopata. Este caso serve para mostrar como um ser humano já considerado como irrecuperável pode ser reabilitado desde que receba uma terapia certa. Eu sou Phillip, e tenho hoje trinta e seis anos. Tinha três anos quando meus pais se separaram. Lembro-me quando minha mãe foi-se embora com minha irmã e eu fiquei ali sem poder compreender o que se passava. Meu pai tornou a casar quase imediatamente. Minha madrasta dizia que eu era uma criança que chorava muito, era emburrada e difícil e não queria ser tocada. Só ficava manso com doces ou balas. Retraí-me e detestava os intrusos. Com cinco anos fui para um colégio interno particular junto com meu irmão mais velho. Meu pai e minha madrasta trabalhavam de dia e ele frequentava a escola de direito à noite. Eu estava sempre em apuros pois não me sujeitava ao regime da escola. Isolei-me e passei a viver na escola como se fosse um estranho até mesmo em visitas e festas. Meu irmão fazia o que podia para me animar e gostar de tudo como ele fazia, mas eu só sabia chorar.
Numa ocasião de Natal alguns meninos mais velhos ofereceram-me doces e balas. Era raro oferecerem-me qualquer coisa mas nessa ocasião comi tudo que pude. Fomos então chamados ao gabinete do diretor antes de havermos terminado com o pacote de doces, e lembro-me que fui o último a ser chamado. Estava apavorado porque não sabia a razão do diretor estar tão zangado. O pacote pertencia a um outro menino e fora roubado. Procurei proteger-me da escova e mijei-me todo. Quando tudo acabou eu tinha um dedo roxo. O primeiro emprego que meu pai conseguiu como advogado foi trabalhar para uma fábrica de seda artificial no Sul. Ele comprou uma casa e vivemos todos juntos o ano inteiro, pela primeira vez. Meu irmão tinha um emprego de meio expediente depois que terminava as aulas. Algumas vezes me dava algum dinheiro ou então balas. Eu geralmente roubava dinheiro e balas da bolsa de minha madrasta e quando ela dava por falta eu negava. Uma noite ela encontrou uns trocados no bolso de minha calça e acordou-me para perguntar onde eu tinha conseguido o dinheiro. Eu não respondi. Meu pai veio e me passou um sermão mandando-me de volta para a cama. Eu tinha dez anos e meu irmão doze nessa ocasião. Comecei a roubar balas nas lojas. Meu irmão comprou uma espingarda de ar comprimido com o dinheiro que ganhava e nós íamos atirar com ela nos fundos da casa. Havia linhas telefônicas muito altas e nós tentávamos acertar nelas com pedras. Eu mais parecia uma menina e não tinha força para atirar muito alto, mas meu irmão não perdia uma. Uma ocasião ele estava me jogando pedras e eu pedi-lhe que parasse, mas ele não parou. Eu peguei a espingarda e acertei na sua barriga. Meu pai tirou fora o chumbo e deume uma surra de cinto. Queria que eu pedisse desculpas a meu irmão mas eu teimava em dizer que ele me provocara. Sempre andei de cabeça baixa, ombros curvados e chutando as pedras que encontrava. Estava atravessando a rua e um carro me pegou. O homem colocou-me no carro e levou-me para casa. Minha madrasta ficou zangada dizendo que se eu tivesse ido buscar o pão como ela tinha mandado, nada teria acontecido. Tinha onze anos quando nos mudamos para Charlotte. Era costume eu e meu irmão deixarmos coca-cola para o Papai Noel e seu ajudante, mas eu disse a meus pais que não acreditava mais naquilo e sabia que eram eles que deixavam os presentes. Bebi eu mesmo a coca-cola, e na manhã seguinte, quando me levantei verifiquei que meu irmão tinha recebido todos os presentes e balas. Ele ofereceu-se para dividir comigo e deu-me o brinquedo que tinha escolhido para mim no Natal. Joguei tudo contra a parede e fui mandado para o quarto. Meus pais tinham saído à noite e havia algumas pontas de cigarros no cinzeiro. Acendi um que botei fora e despejei o cinzeiro na lata do lixo. As cortinas pegaram fogo e meu irmão tentou apagar. Vieram os bombeiros e o chefe perguntou como o fogo tinha começado. Eu disse que talvez meu pai tivesse deixado um cigarro
aceso. Meu irmão contou a verdade. Meus pais queriam saber por que eu não podia ser um menino bom como meu irmão. Nós dois brigávamos muito e eu espetava-o com lápis e garfos. Minha madrasta viu as marcas no braço dele e fez o mesmo em mim para ver se era bom. Tinha doze anos quando nasceu meu meio-irmão. Mudamos para perto de New York. Eu tive que entregar os jornais de meu irmão porque ele foi para o acampamento de verão com uma turma. Vendi os jornais que não entreguei e comprei sorvete e balas. Meu pai teve que acertar tudo no fim do verão. Muitos fregueses cancelaram as assinaturas. Meu pai perguntou-me se eu não sabia fazer uma coisa certa. Minha madrasta obrigou-me a ficar sentado aos seus pés para fazer os deveres da escola. Ela estava com as pernas abertas e não estava de calcinhas. Não estava olhando quando eu espetei-lhe a boceta com o dedo, mas quando ela voltouse eu já estava olhando para os livros. Meu pai e meu irmão tinham que segurar-me para minha madrasta me beijar. Eu não gostava de ser beijado. Cuspi no seu rosto e levei um tapa. Discutimos e eu chamei ela de filha da puta. Ela atirou-me um facão de cozinha. Fugi de casa e meu pai deu parte à polícia que espalhou o alarme em seis estados. Fui apanhado e trazido para casa. Estávamos no verão e tínhamos que ir para a cama às oito horas. Minha madrasta fechava-me no quarto mas o quarto de meu irmão não era fechado, e eu podia vê-lo pelo vidro do meu quarto. Ouvia lá fora as outras crianças brincando. Meu irmão mostrava-me um pedaço de doce e fazia-me sinal para eu ir lá buscar. Eu saía pela janela passando por cima do parapeito e ia até lá. Um dia pedi a meu irmão que viesse comigo por ali, Ele ficou com medo no meio do caminho. Era uma altura de uns doze metros. Eu fui até onde ele estava e comecei a comer o seu doce, enquanto ele estava ali zangado e apavorado. Ameaçou dar-me uma surra e fazer queixa de mim se não o ajudasse. Prometi que ajudava se ele não me batesse, não fizesse queixa e ainda me pagasse cinquenta centavos. Ele acabou concordando. Mudamos para um dos arrabaldes de New York quando eu tinha treze anos. Eu tinha que tomar conta de meu meio irmão quando voltava da escola. Bebia a metade do suco de laranja de sua mamadeira, enchia com água o que faltava e depois dava para ele. Recebi uma medalha na escola dominical e nasceu minha meia irmã. Meus pais decidiram mandar-me para uma escola preparatória em New Jersey. Aprendi a ordenhar vacas, a jogar xadrez e falar alemão. Ingressei no coro da escola, joguei futebol, basquete e aprendi o boxe. Fizemos gazeta naquele dia e fomos de calções de banho para a beira do rio. Havia um salto de uns cinco metros da margem até lá embaixo. Ele era maior do que eu e começou a me provocar chamando-me de medroso. Dei-lhe um soco na boca e
ele veio para cima de mim. Atirei-me para mergulhar mas bati com a cabeça nas pedras. Fui expulso da escola e meu pai levou-me de ambulância para um hospital em New York. Minha madrasta disse que se eu ficasse em casa ela ia embora. Meu pai prometeu assinar os papéis se eu passasse no exame para entrar na Marinha. Passei, mas ele disse que não podia assinar porque eu não tinha idade ainda e aliás não podia imaginar que eu passaria quando prometeu. Chamei-o de mentiroso e disselhe que o odiava. Ele derrubava-me e eu tornava a levantar dizendo que já não podia mais me ferir porque eu o odiava mesmo. Tinha quatorze anos e ele me deu o dinheiro para a passagem de trem para eu ir morar com minha mãe na Pennsylvania. Minha mãe, minha irmã e eu dormíamos todos na mesma cama, e logo na primeira noite agarrei e beijei minha irmã. Fazia gazeta frequentemente e estava sempre fora de casa de dia e de noite. Minha mãe deixou-me do lado de fora sem poder entrar e eu passei a noite no porão depois de arrombar a casa. Ela pediu ao seu amigo que era da polícia para me dar uma surra. Eu apanhei a faca da cozinha e ameacei-o se tentasse me tocar. Veio um funcionário da Assistência Social e levoume para um Abrigo de Meninos. Fui considerado incorrigível pelo tribunal de menores e colocado num reformatório para menores delinquentes. Entrei para o exército e deixei o reformatório com 17 anos. Meu pai morreu por haver tomado uma dose muito forte de pílulas para dormir e eu fui ao seu enterro. Olhei para o seu rosto no caixão e não senti nada. Depois do enterro disse a meu tio que tinha sido promovido para cabo na companhia de saúde. Ele ficou furioso porque eu não manifestei o devido respeito pela morte de meu pai. Eu tinha vinte e ela dezoito e ficamos nos conhecendo num rink de patinação que havia perto da base. Foi a minha primeira experiência sexual e dentro de duas semanas estávamos casados. Meu filho tinha seis meses e estava sempre chorando. Dei-lhe uma surra deixando-lhe manchas nas nádegas. Minha mulher estava grávida quando me apresentei como voluntário para servir no exterior e nossa filha nasceu duas semanas antes de meu embarque. Enquanto estive fora mantive-me dentro dos preceitos religiosos, ia à missa todos os domingos e guardava só três dólares de meu pagamento mandando o resto para minha mulher. Mantive uma estrita fidelidade durante os dois anos que estive fora. Voltei para casa e no mesmo ano tive contatos sexuais com minha filha de dois anos e meio. Das cartas que recebera chegara à conclusão que minha mulher tinha andado à solta. Comecei a beber, fumar e procurar mulheres dentro desse ano. Quando um outro soldado me falou da infidelidade de minha mulher, eu ataquei-o com uma ferramenta. Compareci a um tribunal marcial. Tomei uma dose excessiva de pílulas antes do julgamento e fui enviado para a psiquiatria. Fui dispensado do serviço militar e saí do hospital. Nasceu minha segunda filha mas duvidava que fosse minha. Tinha vinte e cinco anos quando fui para o Texas tendo dito a minha mulher
que depois mandaria buscar a família quando já estivesse estabelecido. Nunca pensei em fazer isso. Trabalhei, bebi e tive diversos casos lá. Minha mulher veio ter comigo por conta própria. Dentro de seis meses estávamos separados e logo nos divorciamos. Eu encontrava-me amargo e desiludido. Tinha vinte e seis anos e fui para a Califórnia com a intenção de conseguir uma educação universitária. Quando vi Glória pela primeira vez ela estava vendendo assinaturas de revistas e eu disse que queria ajudá-la. Vivemos juntos no meu primeiro ano de universidade, e depois deixei-a quando comecei a trabalhar numa escola para crianças retardadas. Comecei a ter ligações sexuais com diversas mulheres de lá e uma delas foi contar ao diretor que estava grávida de mim. Fui despedido e cheguei a pensar que a solução seria o suicídio. Continuei com inúmeros casos amorosos, bebia muito, fumava demais e dormia pouco. Fay era universitária quando a conheci. Ofereci-me para ajudá-la em seus estudos pois estava desempregado naquela ocasião. Quando nos casamos eu só tinha uma semana de aluguel pago e ela foi trabalhar. Procurei emprego numa agência e fiquei tomando conta de uma criança afásica. Seus pais não queriam interná-la e queriam que eu a preparasse. Consegui um emprego com a prefeitura e minha mulher ficou tomando conta da criança afásica. Eu estava sempre brigando com ela por não saber como tratar a criança. Divorciamo-nos. Eu andava pensando em suicídio, e pela primeira vez, reconheci que estava doente e precisava de ajuda. O serviço de orientação da universidade fez-me entrar numa terapia de grupo. Logo aprendi a dominar as técnicas empregadas no grupo. Durante esse período minha irmã e eu discutimos muito o incesto numa base intelectual, tivemos relações sexuais e vivemos juntos durante um curto período. O grupo do meu psiquiatra terminou sem haver discutido a minha ligação com minha irmã e eu ingressei num grupo particular onde a terapia era com uma psicóloga. Conversei com ela sobre meus inúmeros casos, minha vida anterior e meu progresso na terapia. Durante um período de três meses chegamos a uma discussão sobre transferência, tivemos relações sexuais e eu larguei o meu emprego e fui morar com ela em seu apartamento em Hollywood Hills. Ela tinha quarenta e muitos e eu estava em fins dos trinta. Conheci a minha mulher atual nesse grupo e mudei-me para North Hollywood. Consegui um emprego num hospital psiquiátrico. Inscrevi-me para um emprego num órgão federal e comecei a trabalhar com pessoas na comunidade. Estava no meu terceiro casamento e bebia cada vez mais ao passo que melhorava meu padrão de vida. Nenhuma das terapias tinha conseguido curar-me. Eu sempre conseguia embrulhar todos os terapeutas e grupos. Tornara-me um mestre nas intrigas verbais, ha racionalização intelectual, nas explicações teóricas, na solução de problemas e outras técnicas. Mas continuava sendo um doente e sabia disso. Tinha progredido passando de um psicopata "irresponsável, incorrigível e sem instrução" para um psicopata "responsável, instruído, e de classe média".
Janov estava de pé ao lado de sua mesa quando entrei no seu consultório pela primeira vez. Enquanto ele falava eu tinha um sorriso no rosto. — Não fique aí olhando para mim. Não vai encontrar aqui as respostas. Escolha um sofá. — Assim foi o começo. Logo meu sorriso desapareceu e deitei-me no sofá. — O que é que sente? — Minhas respostas foram fragmentadas e irregulares. Comecei a chorar. Janov falou. — O que há com você? Vamos conversar. Parece-me bem mal. — Chorei ainda mais e ele ficou esperando. Depois falou. — Diga o que sente, mas não deve ser chorando. — Eu parei, mas ainda tinha acessos de choro. Acabei acalmando-me. — Muito bem, diga-me o que sente. — Eu respondi que sentia ansiedade e sentia-me como se flutuasse. Janov então respondeu: — Muito bem. Agora mergulhe direto. Ponha as pernas para fora. Agora mergulhe bem para dentro sem procurar controlar- se de forma alguma. Vamos lá! Vamos lá! — Eu aí comecei a respirar rapidamente. Janov: — Agora respire da barriga, bem fundo. Abra a boca e respire da barriga. Diga AAAAhhh... fundo. Bem fundo! Janov: — O que é? — Minha cabeça começa a girar. Eu não me entrego. Estou sempre pensando no medo que tenho da crítica. Meu desejo, minha ânsia, tudo que é meu... não é realmente o que está acontecendo comigo. Não quero fracassar. Não quero ser criticado. Janov: — Por quem? — Acho que é pela minha família. Retrocedo ainda mais. Acho que não me lembro antes dos três. Lembro depois dos três. Sei que tenho ressentimentos. Não posso perdoar... Janov: — Diga. — Não posso perdoar minha mãe. Largou- me com três anos. Nunca aceitei minha madrasta. Surgem as críticas. Por que não sou bom como meu irmão? Ele se conforma. Eu me rebelo. Eu não quero mesmo ser como ele. Ele não presta. Janov: — E o que diria você à sua mãe, se pudesse falar com ela agora, sua mãe verdadeira? — Eu lhe pediria que me amasse. Janov: — Pois muito bem, diga-lhe. Fale com ela, vamos, diga o que deseja. — Começo a respirar com dificuldade e sinto um bolo na garganta. Faço força. Sinto como se estivesse sendo rasgado pelo meio com as duas metades uma contra a outra. Eu estava sendo rasgado fisicamente e de todo jeito. Tento lutar. As minhas duas partes estão presas. Não consegui evitar. Abri a boca e gritei. Mamãe! Mamãe! Janov: — Chame. — Eu quero que ela volte. Começo a chorar muito. Está doendo. Engasgo-me com o que sinto. Grito que quero morrer. Janov: — Diga a ela. — Não consigo falar. Mamãe, não vá! Desligo. Não consigo evitar o choro, a sufocação e a dor. Estão me dilacerando. — Odeio... deixe-me só. Mamãe. Odeio vocês todos, seus sacanas. — Engasgo e gaguejo tentando abafar meus sentimentos, tentando controlá-los. Mas eles continuam vindo. Meu corpo dói. O nó na garganta continua. Grito. — Eu quero amor. — Desligo. Luto. Sempre sai. — Eu quero amor. — Fico mais tranquilo e sinto medo. Não tenho certeza do que sinto. Vejo que fiz uma porção de coisas sem querer, só porque queria o amor de meus pais. Tive medo outra vez. Tive medo de
não ser amado e não ser capaz de amar. Sentia-me inútil. Minha mãe me deixara e eu perguntava por que, sem saber se ela me amava. Zangava-me com ela. Queria matar. Matar-me. Sentia-me diferente dos outros. Gritei. Gritei ainda mais continuando aconter-me. Tinha medo de deixar sair. Tinha medo de descontrolarme. Tinha medo de começar a agredir. Bati no sofá e gritei. Eu me odeio! Abri a boca para gritar mas contive-me e modifiquei o som da palavra que estava com medo de pronunciar. Estava começando a sentir meu sofrimento pela primeira vez quando Janov disse: — Diga-lhes. Diga à mamãe e ao papai. Você precisa dizer a eles que está sofrendo. — Eu só conseguia engasgar-me e conter-me. A Dor era muito grande. Janov. — Não fique mais calado. Não sofra mais em silêncio. Grite. Peça socorro. Mamãe, Papai. — Gritei e tornei a gritar para sair a Dor. Depois sosseguei. Comecei a falar. Agora sei por que me odeio. Janov: —Por quê? — Porque, realmente, por baixo de tudo isso eu trocaria qualquer parte minha pelo amor deles, mas assim mesmo também os odeio. Odeio porque tenho que ser o que eles querem que eu seja para que eles me amem. Eles se foderam. Estão mais fodidos do que eu. Janov: — O que foi que você sempre desejou? O que era que você queria deles? — Eu queria que eles me amassem por mim e que me deixassem eu ser o que era sem as suas rígidas exigências que isso era bom; aquilo era ruim; você tem que vencer; não pode dizer o que realmente sente; tem que dizer o certo, o que é bem, aquilo que eles querem ouvir. Fiz muita coisa porque nunca consegui dizer "eu quero amor", porque não podia dizer. Por isso estava sempre encrencado. Lembrei-me da cena de minha mãe deixando-me sem eu poder pedir-lhe para ficar. Sentia-me desamparado e solitário, sabendo que tinha sido ali que eu desligara todos os meus sentimentos. Não chamava mamãe porque seria voltar para sentir o sofrimento que eu não queria sentir. Também fiquei sabendo por que desejava ser punido e por que destruía tudo sem querer me enquadrar na família. Continuei tentando voltar àquela cena inicial e sentir o que tinha acontecido. Pensava sempre por que tinha sido eu o único que fizera questão, e por que todo o resto da família se enquadrara. Continuava a pensar o que havia de errado comigo e descarregava em cima deles e de tudo que havia na vida. Tinha que voltar para sentir aquilo e não podia porque eles não deixavam. Todo o meu procedimento falso começou quando me desliguei e não conseguia sentir meu desamparo e minha solidão. Essa foi a minha Cena Primal e a primeira ligação que consegui. O resto é o resultado dessa origem de meu conflito. Meu corpo sentia a divisão, o dilaceramento. O meu passado, o passado que eu nunca sentira, estava me voltando rápido. Tive medo outra vez. Desliguei. Voltava para o quarto exausto e dormia horas. Quando despertava o medo ainda estava ali e continuava a sentir o nó na garganta. Tentei negar e fugir do que sentira antes. Vacilei entre correr para o consultório de Janov, como o menino apavorado que realmente era, ou então fugir da Dor que provinha da luta comigo mesmo no sofá. Tinha agora três nós. Um na garganta, um no diafragma e um no peito. Gritei Mamãe! Mamãe! e via a sua mão ir lá embaixo para arrancar-me os testículos fazendo-os sair pela boca. Ficaram
agarrados e quando puxei não adiantou. Puxei ainda mais e então eles se ligaram. O nó na garganta tornou-se cilíndrico e andava para cima e para baixo. Os três nós já estavam juntos. Entrei em pânico mas sabia que era o meu pau e meus testículos. O pau começou a ir para baixo e para cima na garganta quando respirava e masturbeime. O jato transformou-se em sêmen na boca e engasguei. Gritei sempre tentando esconder a palavra "pau" de que tinha tanto medo. "Pau, pau, pau." Qual era o sentido? Talvez eu fosse homossexual. Apavorei-me. Acabei sabendo que aquilo era o símbolo de todas as minhas manifestações sexuais destrutivas. Começaram a surgir os sentimentos algumas vezes em forma simbólica e outras em forma física. Mas não havia ligação, e eu teria que continuar indo no passado até que todos se ligassem. Comecei a sentir toda a sequência de minha vida que nunca me dera conta. Primeiro o fato de eu haver sido abandonado sem amor com a idade de três anos. Depois a palavra "pau" e o meu procedimento furioso e destrutivo por meio do sexo para disfarçar o medo que sentia de ficar sozinho. Estava só em meu quarto e fiquei apavorado. — Queria me livrar de Janov. Será que sabe o que está fazendo? Qual será o perigo se abrirmos a caixa de Pandora? Telefonei para Janov e ameacei-o com a polícia. Ele perguntou-me por que tinha telefonado e eu confessei que estava com medo. Medo de meus sentimentos. Queria ficar bom. Queria vomitar o pênis, os testículos e o sêmen. Pode ser que saúde seja a realidade. Pode ser que a realidade seja um homossexual. Não sei. Janov disse-me que seu consultório era o meu quarto e que ali eu podia ser o que quisesse. Quis correr para meu quarto para ficar seguro ali, para sentir-me eu ali. Ao caminhar para Janov senti a garganta apertar e tive vontade de chorar. Senti que era um meninozinho indo para o meu quarto onde estava certo ser meninozinho. Deitei-me no sofá e logo veio a sensação. Entreguei-me e papai apareceu. Comecei a chorar e gritar — Papai, papai, quero seu amor, — mas engasguei-me na palavra "amor" e fiquei envergonhado. Janov disse, "implore". Eu pedi e implorei o amor que precisava. Engasguei-me e senti vergonha. Precisar de amor era o mesmo que ser fraco, e aquilo doía porque eu sempre tinha me recusado a reconhecer que queria o amor de meu pai. Tinha que ser assim porque ele não me deixava pedir. Era-lhe muito doloroso e então eu preferia desligar-me para não sentir a rejeição de sempre. Mergulhei nos meus sentimentos e surgiu um quadro diante de meus olhos. Eu estava de pé num círculo de pessoas que me olhavam e eu fazia-lhe o sinal para se foderem dando gargalhadas. De repente o quadro mudou e eu me vi nu com todos olhando para mim fazendo caçoada. Era o meu lado feio. Tive medo ali sozinho tentando cobrir-me com as mãos. Não conseguia descobrir de quem eram os rostos. Janov disse-me que insistisse. Olhei bem de perto. Minha cabeça girava. Queria correr. Janov mandou-me olhar. Olhei e dei um grito de angústia. Era minha família. A minha família que me olhava e ridicularizava e eu senti-me só e vulnerável, e queria que papai me protegesse. Vi que ele também era um menino pequeno e
apavorado, como eu. Mas onde estava ele? Chamei e vi que estava morto no caixão, mas me ouvira. Pedi-lhe que não partisse. Disse-lhe que precisava dele, e pela primeira vez conversei com ele. Queria-o só para mim e foi o que lhe disse. Ele estava lá sempre que eu chamava, e eu via as primeiras cenas de minha vida com ele e dizia tudo aquilo que nunca dissera ou sentira quando ele era vivo. Em muitas sessões eu queria o pau de meu pai, ficava zangado, irritado e delicado com ele. Com o tempo veio a hora de lhe dizer adeus, fechar a tampa do caixão e começou então o processo de deixá-lo morrer e desaparecer. Minhas sessões Primais rumaram mais para o simbolismo e eu sentia-me preso e constrangido. Tentei obrigar-me a sentir o que havia, mas não consegui. Era como se meu corpo se movesse num certo ritmo cujo processo eu não podia acelerar ou diminuir. Tentei fumar, mas meu corpo tornou-se rígido de tensão e senti dor. Era como se houvesse uma batalha dentro de mim onde eu não conseguia controlar o que se passava. Algumas vezes queria que terminasse, mas logo tinha medo que aquilo acontecesse. Era preciso sentir o que estava me constrangendo. Mergulhei no sentimento e vi um retrato meu com uma coisa parecida como um túmulo de múmia às minhas costas. Eu estava caminhando pela vida, todo curvado, com o peso daquilo que controlava tudo o que eu fazia. Era a carga que me tinha sido imposta por minha família e aquilo estava me tornando louco. Como poderia sair? Eu tinha que sair! Gritei e comecei a arquear as costas com todos os músculos do corpo distendidos e chorei gritando de tanta dor. Foi então que houve a ligação física e dos sentimentos. Eu tinha sido corcunda durante anos, vergado à vontade de meus pais, mas o corpo nunca tinha aceitado plenamente a imposição daquele corpo estranho. Em cada sessão eu ia ficando mais desempenado e os músculos iam se acomodando. Um sistema inteiramente novo estava se apossando de mim e eu chegava a sentir as ligações físicas. Ficava exausto depois de cada sessão e esperava com impaciência pela fase seguinte. Não podia acreditar que aquilo tivesse um fim. Havia dias de sofrimento incrível, dias tranquilos, dias de expectativa. Eu nunca sabia o que esperar. Durante o tempo que decorria entre as fases Primais, o meu corpo parecia descansar para se preparar para a fase seguinte. Percebi que o corpo ia assumindo o controle de meu corpo à medida que o cérebro ia cedendo. Eu estava sentado num grupo quando percebi a presença de uma sensação que já vinha me acompanhando durante várias sessões. Era uma sensação de aperto na cabeça que se aprofundava nos ossos e músculos da cabeça, do pescoço e do rosto. Deitei-me no grupo, pensando que tudo terminaria em alguns minutos, quando senti medo e percebi que todo meu corpo queria libertar-se. Gritei "estou com medo!" e Janov disse que eu devia deixar vir. Meu corpo começou a se mover nas posições mais estranhas desafiando qualquer controle de minha parte e trazendo gritos de dor com o desenrolar das defesas físicas e neuróticas. Estava alagado de suor e dominado pelo poder do meu corpo com o cérebro impotente para fazer valer sua vontade. Descobri
então que o cérebro ditava o que meus pais queriam que eu fosse ou sentisse enquanto meu corpo rebelava-se e já não se sujeitava a representar conforme qualquer exigência que não merecesse sua aprovação. Pela primeira vez na minha vida eu era livre e sabia o que aquilo significava. Não precisava mais fingir. Meu corpo já não permitia. Minha cabeça já não podia mais enganar o corpo obrigando-o a submeter-se. Tentei chegar a um acordo para o meu corpo parar de contorcer-se, mas não consegui. Meu corpo decidira e eu não tinha escolha. Meu corpo é um tabernáculo que já não tolera mais a irreverência. Já sei que a grande maioria das regras, regulamentos, dogmas e controles impostos pelos pais e pela sociedade são desnecessários quando se permite que a criança seja real e responda aos comandos do corpo e do cérebro.
15 - SONO, SONHOS E SÍMBOLOS
Quando a criancinha recusa a realidade catastrófica na Cena Primal, ela deixa de ser completamente real e traça um caminho para ir se tornando cada vez mais irreal. Esse processo vai se moldando todos os dias com os pais que não querem sentir que a criança seja ela mesma e exigem que projete uma imagem inventada de acordo com aquilo que esperam. Ela pode então ser o "bom menino", o "palhaço" ou o "completo bobalhão." Quem quiser ser o eu simbólico terá que estar sempre atento. É preciso que, noite e dia, esteja sempre alerta para não deixar surgir o eu real. Durante o dia há as representações simbólicas e durante a noite os sonhos simbólicos que protegem contra os sentimentos reais até mesmo durante o sono. Se, por exemplo, uma pessoa cresceu procurando sempre agradar a uma mãe terrivelmente exigente, ela será sempre subserviente, sempre procurando desculpar-se, em suma, estará sempre fazendo tudo que lhe diga o inconsciente quando se oferece para fazer tudo que a mãe quiser desde que ela seja carinhosa. Todos esses comportamentos são uma referência simbólica que emana do sentimento central. Como a necessidade não desaparece ou se modifica durante a noite, ela se manifesta no sonho, ainda em forma simbólica. O sonho pode ser de tentar aplacar um monstro ou qualquer outra coisa impossível que nunca é alcançada. Esse impossível objetivo simbólico é na realidade o tentar fazer com que a mãe seja carinhosa. O primeiro ponto, então, a respeito de sonhos é que eles são extensões do que se passa durante a vigília e não fenômenos diferentes. São a luta simbólica da noite, a neurose da noite. Parece razoável que um neurótico não adormeça neurótico, fique bom durante a noite, e desperte neurótico na manhã seguinte. As pessoas reais, por outro lado, não têm sonhos irreais da mesma forma que não mostrarão um comportamento irreal durante o dia. O segundo ponto é que os sonhos são a única função das pessoas simbólicas. Foram precisos muitos meses de Terapia Primal para que eu percebesse que os sonhos tornam-se mais reais na medida em que a terapia progride. Quando chegavam ao fim da terapia, os pacientes tornavam-se normais não só de dia como também em sonhos à noite. A mãe era mãe, os filhos eram filhos e New York era New York. Mais ainda, os seus sonhos eram todos no presente, e não mais no passado como acontece com o sonho dos neuróticos. Isso é lógico, já que os símbolos surgem para mascarar velhos sentimentos dos tempos de criança. O ser
normal já se livrou do passado. Vive no presente dia e noite. Uma pessoa que se sente sem importância não pode realizar transações importantes durante a noite para ocultar tal sentimento. Os seus sonhos cuidarão disso. Poderá sonhar que está sendo homenageado por seus feitos. Os sonhos e as realizações concretas durante o dia são aspectos do mesmo sentimento que não foi sentido. Na Terapia Primal, quando um paciente se apresenta com um sonho assim, ele é obrigado a ir buscar o sentimento no seu cerne. O que sentirá será a dolorosa sensação que faz nascer um comportamento simbólico importante no sonho e também durante o dia. O terceiro e mais importante ponto com referência aos sonhos simbólicos é que eles servem para proteger a sanidade de quem sonha. Isto o contrasta com a hipótese freudiana que os sonhos servem para proteger o sono e proporcionar-nos descanso. Se conseguirmos compreender que o eu real, aquele que converte os sentimentos perigosos em símbolos, é que nos conserva sãos ou neuróticos, logo também compreendemos que os sonhos simbólicos são essenciais. De outra forma haveria terríveis Primais durante o sono. Algumas vezes os sentimentos reais realmente chegam bem perto até mesmo durante o sono. Os costumeiros símbolos de sonhos já não amarram os sentimentos, e o resultado são os pesadelos. O pesadelo é o sentimento Primal rompendo a defesa neurótica. As pessoas que sonham simbolizam em um novo nível que é o psicótico. Seus dragões e monstros são o que eu chamaria de simbolização psicótica. Os pesadelos são uma loucura noturna. É por isso que se torna tão agradável o despertar de um deles, e a volta ao mundo real. A sensação do pesadelo despertanos para o consciente de forma que podemos permanecer inconscientes da sensação, da mesma forma que alguns neuróticos tornam inconscientes algumas de suas sensações e pensamentos durante o dia com o uso do mecanismo de defesa. Se pensarmos nisso num nível puramente físico, vamos verificar que muitas pessoas desmaiam, ou tornam-se inconscientes, quando submetidas a intensa dor física. A Primal é a extensão e a conclusão lógicas de um pesadelo. É o sentimento de terror do pesadelo, sem o disfarce simbólico. Toda pessoa que tem pesadelos é porque está muito próxima de sua Primal. Está realmente sentindo uma boa parte do terror até mesmo depois que acorda. O coração está disparado e os músculos tensos. Só lhe faltou cair realmente numa Primal. A dor evita isso. Se um terapeuta Primal se encontrasse ali naquele momento a pessoa entraria em sua Primal e estaria a caminho para tornar-se real. O pesadelo que se repete, ou um sonho mau, é uma sensação Primal que persiste e tem de ser simbolizada da mesma forma durante anos. A sensação nesses casos é que não há quem nos socorra. Ele sente-se só no sonho, da mesma forma que sempre esteve só no mundo tentando superar coisas impossíveis. É preciso gritar por socorro.
Algumas pessoas que sonham tentam gritar "socorro" mas não conseguem emitir um som, e há uma boa razão para isso. O grito que querem dar é o grito Primal, e o fato dele não sair significa proteção. Como no exemplo seguinte. Durante uma sessão uma mulher contava o seu sonho da noite anterior. "Eu estava sendo atacada e alguma coisa havia me encurralado num canto do quarto. Tentei escapar para correr à casa do vizinho onde queria chamar a polícia. Estava sempre discando o número errado, e não conseguia ligar com a polícia." Fiz ela mergulhar de novo no sonho para tornar a contá-lo. Ela recusava sempre. Por algum motivo era muito apavorante. Eu insisti. Quando contou que tinha corrido para a casa do vizinho eu interrompi-a mandando que chamasse o número certo. Ela gritou que não podia. Eu insistia. Finalmente ela discou o número certo e então soltou o horripilante Grito Primal: Socorro! Gritou durante dez minutos debatendo-se no chão. Ela já vinha gritando por socorro durante vinte anos sem que seus pais a atendessem. Ela estivera sempre tão ocupada procurando ajudá-los que não sentia a sua própria 37 necessidade de ajuda. E por que não tinha conseguido gritar no sonho? Porque tinha esperança. Se ela tivesse gritado e não viesse ninguém, tudo estaria perdido e ela iria sentir-se inteiramente desamparada diante do fato que ninguém iria jamais ajudá-la. O fato de não gritar protegeu-a contra aquilo. Quando gritou no meu consultório ela amargou todos os horríveis sentimentos de desamparo e desespero. Assim, sem gritar, ela continuou na sua luta e ainda com esperança. Também servia para disfarçar seus sentimentos. O grito rompeu o disfarce irreal e contribuiu para colocá-la no caminho da realidade. Muitos neuróticos são tão bem protegidos que nunca chegam perto do grito em seus sonhos. Aliás, quase não lembram seus sonhos em virtude dos sentimentos e seus símbolos estarem tão profundamente sepultados. Os neuróticos são gritos ambulantes. Nós gritamos de formas sofisticadas. O fato de mostrar-se obsequioso significa um grito pedindo para ser tratado com carinho. Quem fala sem parar está gritando para que lhe deem atenção. Como se vê do que fica acima, a neurose não é simplesmente um desajuste social. Não podemos julgar a neurose ou a falta dela pela maneira como uma pessoa se comporta em seu emprego. Uma pessoa que funcione bem durante o dia pode ter pesadelos que mostrem eloquentemente a sua neurose. Por esta razão, as escalas de ajuste social que pretendem ser um gráfico da neurose de alguém, passam a ser irrelevantes já que mostram somente o comportamento do indivíduo durante o dia. A profundidade da Dor, a densidade do sistema de defesa e a proximidade dos sentimentos do indivíduo podem geralmente ser medidos em termos dos símbolos nos sonhos. Quanto maior for a Dor, maiores serão as probabilidades para os
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(N. do T.) Em inglês "help" significa socorro e ajuda. Daí a ligação.
símbolos serem muito complexos. Também, quanto maior for a Dor mais lutas haverá nos sonhos: passando por baixo de cercas, libertando-se de um túnel, galgando íngremes montanhas, etc. Se as sensações surgem durante o sonho a despeito dos símbolos, podemos suspeitar que a pessoa tenha uma fraca estrutura de defesa e está muito junto de seus sentimentos. Este será um caso Primal bem fácil, em geral, e a pessoa tem uma boa probabilidade para ficar boa. Por outro lado, devemos suspeitar sempre dos sonhos agradáveis nos neuróticos. Por exemplo, o sonho repetido em que a pessoa está voando e sentindo-se livre. A Dor por baixo dessa sensação pode ser muito grande. Em lugar de sonhar que é um outro Prometeu, o que seria mais real, seus sonhos de liberdade indicam uma brecha, o split do seu eu constrangido. O sonho de estar tentando desvencilhar-se de cordas que o amarram, pode indicar uma maior proximidade dos sentimentos reais da pessoa. Como é exatamente que um símbolo está ligado a um sentimento? Vamos ver alguns exemplos. Se uma criança se priva de suas necessidades infantis e procura mostrar-se crescida só para agradara seus pais que mostram assim a sua infantilidade, ela pode sonhar estar sendo servida por um exército de criados. Se uma criança for forçada a ouvir as constantes discussões dos pais a respeito de dinheiro, se for obrigada a ganhar dinheiro para as suas despesas em empregos que lhe tomem o tempo todo, ela pode sonhar que desmaiou para que uma ambulância venha ajudá-la para levá-la a um hospital onde receberá todos os cuidados necessários. Sonha isso sem mesmo perceber que está de acordo com os seus sentimentos. Seu sistema está tentando dizer-lhe o que precisa com os seus símbolos mentais. Precisamos dar muita atenção a tais símbolos. Os sonhos simbólicos continuam enquanto perdurar a Dor, da mesma forma que as viagens simbólicas das drogas ou qualquer outro comportamento simbólico. São um indício importante não somente do grau da neurose como também da extensão das melhoras terapêuticas. O simbolismo dos sonhos é uma coisa que geralmente não pode ser fingida porque os pacientes não sabem o que eles podem significar. Uma pessoa que se acha bem e que funciona normalmente, mas que, de repente tem um sonho altamente simbólico, pode não estar tão bem quanto pensa. Os sentimentos dentro de um sonho são a parte mais real da pessoa. Há uma tentação para não darmos a devida atenção a tais sentimentos porque eles se passam dentro do contexto irreal do sonho. Claro que não há nada daquelas terríveis coisas sonhadas, mas o medo que tornou as histórias necessárias é absolutamente real. De outra forma ele não estaria lá nem nos despertaria apavorados. É o verdadeiro medo que faz os uniformes nazistas aparecerem nos sonhos da mesma forma que é o pavor real que faz um paranoico imaginar que as pessoas na esquina estão todas conspirando contra ele. Como não conseguem sentir a verdadeira sensação, tanto o que sonha como o paranoico são obrigados a projetar
os seus temores em alguma coisa aparente. A ilusão paranoica e o sonho simbólico são ambos tentativas para tornar racional um sentimento inexplicável. A diferença entre o paranoico e o sonho neurótico é que o paranoico vive o seu sonho durante o dia. Acredita que seus símbolos são reais. O neurótico sabe que os seus são irreais. Muitos neuróticos sofrem pesadelos constantes. Já me ocorreu que, num certo sentido, eles dormem à noite e, com suas defesas diminuídas, chegam muito perto da loucura repetidamente. Não é de admirar que tenham medo de ir dormir. Tais pesadelos, no entanto, parecem aliviar bastante a tensão evitando que se tornem loucos durante o dia. A pessoa com uma Dor fora do comum não consegue limitar sua loucura às horas da noite. Vamos examinar um pesadelo para ver como o comportamento dormindo e o acordado são extensões um do outro. "Ontem, quando pensei que tudo ia bem, o diretor de minha escola chamou-me para falar sobre uma reclamação dos pais de um de meus alunos. Embora eu soubesse que estavam sempre reclamando e que não havia justificativa para a queixa, eu fiquei perturbada. Fiquei perturbada o dia inteiro sem conseguir me livrar daquilo. Não compreendia o que havia comigo e fui deitarme muito tensa. E sonhei o seguinte: Estou dirigindo um carro por um caminho estreito e sinuoso. De repente um carro bate no meu de lado justamente quando eu imaginava que tudo estava bem. Consigo seguir em frente, mas agora estou num túnel estreito com curvas fechadas uma atrás da outra. Em todas as curvas eu bato na parede. Sinto como se aquilo fosse o túnel do horror e estou sempre batendo nas paredes. Olho pela janela do carro e vejo uma mulher policial de moto que está me observando e esperando para multar-me. Não posso escapar. Ela está por trás de mim vendo eu bater pelas paredes. Estou apavorada. De repente acordo sentindo um grande alívio por estar fora do túnel, um enorme alívio por saber que não era verdade." É verdade. A parte da sensação em qualquer pesadelo é sempre verdadeira. O que não é verdadeiro é o contexto, o modelo mental inventado. Coloquei-a de novo no pesadelo e fiz com que repetisse com o rosto coberto como se estivesse revivendo. O mesmo terror começa a se apoderar dela. Deixo que mergulhe no terror e ser dominada por ele. Logo ela está muito perturbada e debatendo-se no sofá. Começa a falar de sua infância. "Eu fui tão boazinha durante tanto tempo, mas fiz algo errado que era inevitável que trouxe desastre de parte de minha mãe." Aí ela começa a falar de um incidente na infância quando ela fazia tudo muito bem, limpava a casa, lavava os pratos, mas acidentalmente derramou algumas gotas de perfume num móvel. A mãe ficou furiosa e a mandou para o quarto. Ela ficou deprimida porque tinha se esforçado tanto. E volta então ao sonho. "Oh, agora já sei. Quando batia com o carro nas paredes era exatamente como as coisas andavam erradas sempre lá em casa por mais que eu me esforçasse. A minha mãe estava
sempre esperando por mim, como aquela policial, até que eu cometesse um engano fatal. Por mais que eu me esforçasse sempre havia alguma coisa lá na esquina, como no sonho. Depois ela liga isso aos acontecimentos na escola justo quando pensava que ia muito bem como professora e que alguém veio e destruiu tudo. "É tudo o mesmo, a escola, o sonho e a minha vida." Aí ela sente toda aquela vida de sofrimentos e grita, "não fique zangada, mamãe, eu não sou má. Não estrague a minha vida." Ela está revivendo a escola, o sonho e a sua vida num único sentimento terrível, o terror de sua mãe e como aquilo tinha prejudicado toda a sua vida. Foi a situação na escola que deflagrou o sonho. O sentimento, nos dois casos, era inconsciente. É espantoso pensar que até mesmo no sono nossos sistemas conservam-nos inconscientes dos sentimentos perigosos, mas o organismo humano é realmente uma maravilha. O pesadelo é uma exata alegoria da situação na escola durante o dia quando tudo vai indo bem e depois desanda. Como é que o corpo sabe produzir uma tão perfeita alegoria em sonho quando a mente, ou parte dela, está perfeitamente inconsciente do sentimento que existe por trás? Eu acredito que os processos simbólicos do sistema irreal são dispositivos inconscientes, automáticos e necessários para proteger o organismo. O pesadelo daquela mulher era uma extensão do terror que ela experimentava na escola sob a forma de tensão. O sentimento produziu o sonho para cuidar daquele terror e era de esperar que o resolvesse. Seria possível ela fugir da policial do sonho? Não. Os neuróticos nunca podem. Por quê? Porque não pode a mulher livrar-se da policial no sonho? Porque os verdadeiros sentimentos de uma vida inteira conservam a policial ali. A policial era símbolo do medo de minha paciente. Ela também costumava ter pesadelos a respeito da porteira do cinema que sempre a pegava quando queria entrar sem bilhete. Só conseguiu livrar-se dela quando resolveu o terror. Eu acredito que isso explica por que em nossos pesadelos nós nunca conseguimos escapar, por que ficamos com os pés pesados como chumbo sem poder correr do inimigo e por que somos constantemente perseguidos, e a razão é que somos perseguidos por sentimentos Primais sem fim até que eles se resolvam na realidade com uma Primal. Somos condenados a ter pesadelos enquanto não solucionarmos esses sentimentos. Quando um paciente que já teve alta continua a ter pesadelos, nós devemos concluir que a sua terapia não solucionou o que ele sentia e portanto não tocou a base do comportamento simbólico e neurótico. No caso da professora, devemos notar que ela despertou automaticamente quando o que sentia no sonho era mais do que ela podia suportar. O desligamento do consciente e o subsequente comportamento neurótico parecem ser reflexos. Ela despertou para reconstituir suas defesas. Nunca soubera antes que tinha tanto medo da mãe, e não sabia porque estava sempre ocupada tentando ser a "menina boazinha da mamãe". Evitava o medo consciente da mãe sendo bem comportada e
carinhosa. A mesma defesa funcionava na escola, geralmente, porque ela era meticulosa e mantinha tudo bem limpo e arrumado, além de controlar os seus alunos. Suas defesas começaram a desmoronar quando surgiu uma queixa de fora. Assim, o pesadelo não significa medo do objeto que aparece no sonho. Nesse caso não era medo da polícia. A reação dela era desproporcionada ao simples fato de um policial multá-la. Também na queixa da mãe na escola ela exagerou a reação. Tanto a queixa como o sonho eram símbolos de seus sentimentos infantis. Depois da Primal ela disse que o fato de sentir os terrores noturnos tinha-a ajudado a compreender os terrores diurnos. Estavam terminados seus pesadelos de dia ou de noite. Desde que se sinta o terror ou as Dores Primais de qualquer espécie tudo isso desaparece para sempre só porque foram sentidos. Logo que sejam sentidos e ligados, está tudo acabado. É lógico que os neuróticos tenham um sono inquieto, um sono perturbado pelos sentimentos reais. A mesma Dor que os persegue durante o dia também forçaos a criarem tipos em sonhos para mantê-los ocupados à noite. Não é, portanto, de admirar que os neuróticos acordem de manhã mais cansados do que quando foram dormir! Teve uma noite agitada procurando fugir ao que sentia. O pobre do neurótico não tem sossego. Acorda de manhã já cansado sem poder dar conta de seu recado durante o dia e isso, por sua vez, traz ansiedade e mais problemas que vão perturbar o seu sono, e assim o ciclo não tem fim. Vamos agora examinar alguns sonhos para ver o seu simbolismo. "Meu pai vem me visitar na casa em que estou morando. É num segundo andar. Ele me dá um beijo na testa e eu caio ferindo o joelho. A ferida fica pior e mamãe fica zangada com papai por ser tão desastrado." Nesse sonho verificamos que as pessoas são reais mas a situação não é. O simbólico é o significado da situação. O que o paciente sentia dentro desse sonho era: "Eu acho que sempre soube que se aceitasse a afeição de papai isso me dividiria em dois. Mamãe e eu parecíamos ter uma combinação para deixar papai mal. Acho que eu também fiz isso para que ela me amasse. Acho que o fato de amar papai significava desistir do amor de mamãe." O sonho número dois teve lugar um mês depois da primeira Primal. "Eu estou limpando alguma coisa com Janov. Tenho cortes e arranhões na mão que estão cobertos com uma camada de cera. Digo a Janov que não consigo mover as mãos porque estão inchadas. Ele diz que posso. Tento passar mercúrio cromo mas não adianta. A cera repele-o. Percebo que os cortes são símbolos de velhos sofrimentos que ainda impedem que eu seja verdadeiramente eu. Sei que não posso mais evitar. Raspo fora a cera e uso as mãos."
Aqui nós vemos um menor uso do simbolismo e o conhecimento do significado do símbolo durante o sonho. Parece que o consciente e o inconsciente se misturam. O paciente percebe que a luta não é real mesmo em sonho e corrige-a. Em pouco tempo, talvez uns meses, podemos esperar que desapareçam os restos de vestígios da luta. Os sonhos deverão então ser tão diretos e verdadeiros como o comportamento acordado. Mais um sonho: “Estou no quintal trabalhando com meu pai. Minha mãe chama para jantar muito zangada. O jantar é triste. Tudo está calado, quieto e morto. Meu pai tenta contar uma piada e minha avó ri, um riso horrível que mostra sua dentadura postiça. Mamãe olha para vovó com esperança. Vejo que minha avó também não ama. De repente percebo tudo. Vejo a família como as cascas vazias que são. Tudo é sem vida e tristonho. Começo a chorar, peço licença, e vou para a cozinha. A comida do jantar está pronta mas ninguém procura servir. Isso me faz chorar ainda mais. Estão todos mortos demais para fazerem um esforço. "Minha mãe pergunta se eu estava chorando e meu pai diz que não. Corro para cima e tranco a porta. Procuro um pedaço de papel para escrever o sonho. Sei que é importante. Lá embaixo ouço meu pai cantando. Choro pensando que não tenho um lar em parte alguma." Há muito pouco simbolismo nesse sonho. A situação é direta e os sentimentos nela espelham exatamente o que ele sente a seu respeito e sua vida. Compreende até mesmo em sonho o que significa e o sonho explica-se por si. Parece que não existe um emaranhado de labirintos para se atravessar. O paciente parece ter sentido o vazio, a falsidade de sua vida, e como seu pai, também tenta encobrir seus verdadeiros sentimentos.
Discussão Se uma pessoa não sofre e se tem relações diretas com seus sentimentos, não vejo razão alguma para simbolizá-los. Os que terminam o tratamento Primal não têm sonhos simbólicos pela mesma razão que também não fazem viagens simbólicas de LSD. Não há Dor e não há necessidade para um disfarce simbólico. Os acontecimentos de rotina não deflagram velhos sofrimentos que surgem nos sonhos das pessoas normais porque não existem sofrimentos sem solução para se misturarem com o presente. Deve ser óbvio que não há símbolos universais, assim como também não há sintomas com significados universais. Os símbolos referem-se a específicos sentimentos dentro do indivíduo. É possível que duas pessoas tenham o mesmo
sonho e que ele tenha significados diferentes. Os pacientes que terminam a Primal necessitam menos horas de sono e dizem que seu sono é repousante. Também sonham menos. Houve um paciente que observou que ia para a cama para dormir em lugar de passar a noite tendo sonhos. Aqui está, em resumo, o que alguns de meus pacientes pós-Primais dizem a respeito de sono e de sonhos. Todos eles dizem que o sono muito profundo é geralmente neurótico já que constitui uma defesa até mesmo contra os símbolos nos sonhos neuróticos. Um paciente assim se expressou: "Eu costumava dormir como se enrolasse o meu consciente num grosso cobertor. Agora eu durmo como se estivesse coberto por uma gaze. Diz que antes considerava o sono como um estado inconsciente mas agora já vê o sono como simples repouso. Já não existe mais o inconsciente. Um paciente achava que talvez houvesse uma divisão quando julgamos o sono como algo separado da vigília, e ficamos então imaginando se a polaridade do sono versus vigília não nos permite ver que são simplesmente diferentes aspectos do mesmo estado de ser e não duas entidades distintas ligadas apenas por alguma coisa mística. Os norte-americanos nas suas lutas diárias ainda têm um sono perturbado. O 38 censo feito por Louis Harris mostrou que mais de um terço da população tem problemas com sono pouco satisfatório durante a noite. Vinte e cinco por cento sente-se por demais exausta para levantar-se de manhã. Indica ainda que mais da metade da população sente-se solitária e deprimida durante parte do dia e vinte e três por cento confessou sentimentos de "distúrbios emocionais". O trabalho duro é responsável por parte disso, os gritos com as crianças também contribuem, os cigarros e o álcool ainda ajudam e há sempre a necessidade de tranquilizantes e pílulas para dormir. 39
Um interessante estudo feito por um membro da UCLA numa conferência sobre fisiologia de cérebro mostrou que as pessoas que deixam de fumar sonham mais e com maior intensidade. Aqui nós vemos a prova para a hipótese Primal a respeito de sonhos e alívio de tensões. Quando se elimina os mais comuns aliviadores de tensões, os sonhos arcam com uma carga dupla. Também, as pesquisas sobre o sono indicam que as pessoas que tomam pílulas para dormir profundamente sonham menos do que as sem pílulas. Mas os efeitos posteriores tornam a pessoa mais irritável e deprimida obrigando a mais aliviadores de tensão como o fumo. O sistema neurótico, em suma, sempre encontra um jeito. As pessoas que não sonham bastante devido a pílulas para dormir, logo passam a sonhar mais quando deixam de tomar o remédio, e são sonhos mais 38 39
Los Angeles Times, setembro de 1968. Los Angeles Times, setembro de 1969.
perturbadores. Não se pode liquidar a neurose com remédios. É possível um alívio provisório, mas o neurótico tem que pagar o preço. Isso significa que os tranquilizadores durante o dia só servem para adiar mas garantem as inevitáveis consequências de sérios distúrbios logo que seja suspenso o tratamento. As implicações do que afirmo vão além do fenômeno do sonho e do sono. Eu quero dizer que as pílulas, por mais propaganda que recebam, não afetam seriamente as doenças mentais no final das contas. Apenas ajudam a reprimir o verdadeiro eu produzindo mais pressão interna e mais sérias neuroses. As pílulas estão nas mesmas condições que as técnicas de condicionamento que ajudam a suprimir o mau comportamento por meio de choques elétricos. Pois não é isso mesmo que os pais fazem com os seus comportamentos, e não é verdade que o resultado é uma neurose ainda mais profunda? Há estudos, por exemplo, que mostram um maior número de ataques de coração durante o sono, e é possível que existam boas razões fisiológicas para isso. Mas também podemos ficar pensando se o uso de tranquilizantes durante o dia não cria tanta pressão que precise ser aliviada pelos sonhos quando os cardíacos vulneráveis já não podem suportá-la. Os neuróticos sentem dificuldade para dormir porque são constantemente ativados pela Dor Primal que representa o oposto do sono. O uso de tranquilizantes e de pílulas para dormir é o mesmo que manter num intenso fogo uma vasilha bem tampada. Chega una hora em que alguma parte do sistema tem que ceder, o que, aliás, pode arrastar com todo o organismo.
16 - A NATUREZA DO AMOR
O conceito do amor sempre foi discutido através dos anos, e assim talvez seja bom considerá-lo sob o ponto de vista Primal. Nos seus verdadeiros alicerces, o amor significa liberdade de sentimentos para todos. Significa permitir que todos cresçam naturalmente e que se expressem com naturalidade. O essencial é que cada um seja o que quer e que permita a mesma liberdade a todo mundo. A definição Primal do amor é permitir que todos sejam o que são. E isso só pode acontecer com satisfação das necessidades. Implícita na definição de amor está a existência de uma verdadeira relação entre pessoas que se amam. Afinal de contas, podemos deixar todo mundo ser o que deseja simplesmente ignorando-os, mas a reação entre duas pessoas faz parte integral do amor. Devemos lembrar que quando estamos deixando uma pessoa ser o que ela deseja isso significa a satisfação de suas necessidades. E é isso que devem fazer os pais que amam os filhos. Mais tarde surgirão as necessidades a serem, satisfeitas, e o amor então pode ser recíproco e sincero. Infelizmente, o amor para o neurótico significa a realização de suas necessidades irreais (na forma de desejos). Significa presentes ou muitos telefonemas, ou então, ainda, "provas" de eterna dedicação. O neurótico sente que não é amado quando as suas necessidades doentias não são atendidas. Que melhor exemplo disso do que o sofrimento de um homossexual quando é abandonado pelo seu parceiro? O amor é sentimento. É quando duas pessoas conversam, tomam café juntos ou fazem amor. Quando não existe o sentimento, isto é, quando ele está bloqueado ou escondido, os neuróticos podem fazer tudo isso sem que haja qualquer resquício de amor. O amor no princípio da vida significa a satisfação das necessidades Primais. Nos primeiros meses e anos significa muito colo e carinho. A criança não dá o nome de "amor" para o colo ou aconchego, mas sente-se magoada quando não tem isso. O contato físico é condição sine qua non para a criança. Sem isso não há manifestação do amor. Não é bastante para a criança "saber" que, de certo modo, é amada por pais que não demonstram o sentimento. Ela precisa sentir. Sem isso não adianta os protestos orais. Sem isso não há amor. Os pais que trabalham duro e raramente veem os filhos, podem imaginar que estão trabalhando para eles, mas se não houver o contato mútuo, ou quando eles não se dedicam aos filhos, nós devemos concluir que estão trabalhando para seu próprio alívio. Se a criança tem necessidade da
presença de seus pais e eles estão longe trabalhando, a maior parte do tempo, então ela não está vendo suas necessidades satisfeitas. As crianças que são criadas em instituições onde existe pouco afeto ou atenção pessoal, geralmente tornam-se personalidades sem expressão e apagadas. Vivem numa apatia que continuará a existir em sua idade adulta. Essas crianças automaticamente tentam proteger-se contra a falta de amor e tornam-se fechadas para não serem mais feridas. Os estudos feitos com cães chegaram à mesma conclusão. Os animais tornamse "frios" e "duros" quando adultos, são quase assexuados e não reagem aos carinhos. As mesmas conclusões foram conseguidas com macacos nas famosas experiências de Harlow em que os animais foram segregados em três grupos. O primeiro foi criado em completo isolamento, um segundo com cães que eram 40 bonecas de pano e no terceiro elas eram feitas de arames e paus . Harlow chegou à conclusão que os macacos isolados eram os que mais sofriam. Pareciam incapazes de oferecer ou receber afeição. Os que tinham as bonecas de pano pareciam sentir-se tão bem como se fossem as verdadeiras mães. Comiam bem, não tinham medo, eram mais sociais e ativos. Harlow mostrou a importância do contato físico. Quando o macaco abraçava-se à sua mãe de pano os laços de afeição entre eles eram tão fortes como se fossem ambos reais. Por essas experiências, nós podemos chegar à conclusão que aquilo a que damos o nome de amor nos primeiros meses da vida gira em torno do tato e de contatos físicos cheios de calor. A criança mal amada pode ser aquela que não teve tais contatos. Os carinhos da tenra idade são importantes, principalmente quando consideramos que, durante décadas, muitas crianças foram criadas "pelo figurino". Os pais cuidavam dos filhos mais conforme tabelas e regras do que pelo que sentiam. Eles eram alimentados pelo horário certo e não quando choravam com fome, e não os seguravam ao colo quando choravam com medo de estragá-los. Os guias da pediatria nas últimas décadas foram influenciados pelo que escreviam os psicólogos behavioristas primitivos que achavam desaconselhável amimar e amar as crianças quando choravam pois isso seria para elas uma séria desvantagem quando, mais tarde, tivessem que enfrentar um mundo frio, duro e hostil. Já agora vemos que o certo é exatamente o contrário, e ainda mais, que não é só o ato que conta e sim os sentimentos. Quando um dos pais é tenso e nervoso e cuida da criança sem a necessária delicadeza, o resultado será o seu sofrimento no futuro, mas qualquer espécie de atenção dada a ela sempre melhora as suas condições. Um bebê sabe quando está molhado, cansado ou quando tem fome. Desde que receba atenção ele está considerando isso como amor. É o amor que faz 40
Harry F. Harlow, "Love in Infant Monkeys", Scientific American, vol. 200, N.° 6 (junho 1959).
desaparecer a dor. Quando ele tem liberdade para explorar, gritar, chupar o dedo, segurar a mãe, então nós chamamos isso de amor. Quando não tem nada disso ele torna-se inquieto. Podemos afirmar que o amor e a dor são polos opostos. O amor é que dá maior valor ao ser e a dor é que suprime esse valor. O contato e o aconchego não são só amor. Se não permitirmos que a criança demonstre seus sentimentos ela terá que emparedar uma parte de si mesma e é bem provável que todos os carinhos e aconchegos não cheguem e que ela ainda se sinta desprezada. Nunca é demais fazer sobressair a importância da livre expressão, pois isso poderá determinar a sorte da criança para toda a sua vida. E não são suficientes as demonstrações de afeto esporádicas e formais. Uma vez que os sentimentos são todos unificados, eu não acredito que seja possível proibir alguns e esperar completa exibição de outros. Tudo que a criança neurótica sentir mais tarde será menos aguçado e mais disfarçado. Se não permitirmos acessos de raiva numa criança, por exemplo, isso refletirá muito na sua forma de sentir-se feliz ou amada. Nenhuma afeição posterior remediará o que lhe foi negado antes, seja isso melhores condições de vida, mais gente em torno demonstrando afeição. Isso só será possível se os sentimentos antes recusados forem revividos. O neurótico passa uma boa parte de sua vida adulta tentando disfarçar a sua Dor com novos amores, ligações amorosas e namoros, paradoxalmente, quanto mais amores tiver, menos ele continuará sentindo. Parece ser uma perseguição sem fim porque, para ele, ser amado significa primeiro que a antiga Dor de não ser amado deve ser sentida em toda a sua intensidade. Uma vez que o amor envolve sentimentos da própria pessoa, nós não podemos transferi-lo para outrem. Quando alguém diz "Você faz-me sentir como mulher" ou "Com você eu sinto-me amada", isso geralmente significa que elas não sentem e então precisam de símbolos externos para se convencerem que são "amadas". O amor não é algo que se dê a alguém até que ela sinta-se "cheia". Tampouco não podemos ficar vazios de amor nem de sentimentos. Não é alguma coisa divisível que possa ir sendo dada aos pedacinhos nem pode ser subdividida em classes como "amor maduro" ou "amor imaturo". O neurótico mais velho pode afirmar seu imorredouro amor verbalmente, mas quando o sentimento entra em jogo os protestos de amor podem tornar-se sem sentido. E mais ainda, essas afirmações verbais de amor são súplicas disfarçadas para conseguir que suas próprias necessidades sejam satisfeitas. As pessoas com sentimentos raramente precisam de confirmações verbais e as que não os têm estão sempre precisando delas. O que o neurótico procura no amor é o seu eu que ele nunca teve permissão para ser. Ele quer alguém especial para poder sentir. Considera como amor tudo
aquilo que não teve e tudo que impede a sua integridade. Algumas vezes ele tem necessidade de contato físico e pode tentar fabricar o amor por meio do sexo, ou seja "fazer amor". Algumas vezes procura proteção e outras quer somente ser compreendido e ter com quem conversar. O dilema do neurótico é que, embora o amor não seja mais do que a livre expressão do eu, ele teve de abrir mão de seu sentimento para conseguir sentir-se amado dos pais quando era criança. O neurótico, por definição, deve acreditar que é ou que será amado, pois do contrário não continuará a luta neurótica. Em resumo, como no terceiro grupo de macacos de Harlow, a criança conserva a ilusão do amor através de sua luta para que não chegue à conclusão que só lhe restem os arames e paus. Assim, se uma criança de seis anos soubesse a verdade seria duvidoso se continuaria ou não a lutar. A promessa de amor, tanto implícita como explícita, parece ser o que conserva a criança com esperança em lugar de enfrentar a realidade de sua vida incipiente. Poderá passar toda a sua vida buscando alguma coisa que não existe, nem mesmo nunca existiu, que é o amor dos pais. Ela pode fingir-se de engraçada para alegrar os pais, de estudiosa para impressioná-los ou de inválida para exigir cuidados. O próprio fingimento impede o amor porque ele está escondendo como realmente agiria e sentiria. Pelo que observei, o neurótico torna a criar a sua primitiva situação de mal amado mais tarde na vida para representar o mesmo drama sempre esperando por um fim feliz. Quando se casa com uma figura de mãe isso não significa apenas que a deseje. O que ele deseja é uma mãe que o ame, mas não quer o amor assim direito. Primeiro ele precisa estabelecer um ritual. Pode encontrar alguma pessoa fria como sua mãe e tentar conseguir dela algum calor. Ou ela encontra alguém rude e grosso como o pai e procura torná-lo bondoso e delicado. Isso é uma representação simbólica. Se a pessoa ficar envolvida com o que realmente ame, teria que desistir porque sempre lhe restaria aquele antigo sentimento de mal amada. Em resumo, o encontro de uma pessoa agradável serviria para impedir a luta simbólica para finalmente solucionar os antigos sentimentos. Nesse sentido, o encontro de amor atual significa sentir a Dor por não conseguir o antigo amor. Até mesmo em seus sonhos, o neurótico cria a mesma luta. Sempre há obstáculos para chegar ao ente amado. Não consegue nunca chegar à "terra do amor". Uma vez que nunca teve permissão para sentir, o neurótico muitas vezes acredita que o amor deve estar em outro lugar e com alguma outra pessoa. Raramente compreende que está dentro dele mesmo. Creio que toda a sua agonia é uma tentativa para encontrar-se, mas o problema é que não sabe como. Não
consegue atingir seus sentimentos. Sendo assim, a busca do amor nada mais é do que a busca para "ser", para sentir. O desespero, a perseguição, as viagens a novos lugares são frequentemente tentativas para encontrar aquele alguém especial que vai conseguir fazer com que ele sinta alguma coisa. Infelizmente só a Dor pode conseguir isso. E assim, estamos sempre vendo, numa repetição sem fim, o mesmo triste drama, uma peça de terceira classe com um original monótono, atores incapazes e sem um epílogo feliz. Eu acredito que a luta tem por fim fazer com que a pessoa possa finalmente conseguir, mesmo sob a forma de alternativa, o amor de criancinha que tanto precisou muitos anos antes sem nunca conseguir. O que certamente não está procurando é o amor de adulto no presente. Assim, a noção Primal a respeito de amor gira em torno do fato de ser aquilo que procura a mesma coisa que sentia falta até mesmo décadas antes. O neurótico está pronto a definir como amor tudo que preencher tais requisitos. Talvez seja por isso que há tantas e tão diferentes definições do amor. É porque são muitas também as diferentes necessidades. Infelizmente, mesmo se os pais neuróticos se transformassem, de repente, em pessoas extremosas e compreensivas, nada teria mudado. O neurótico não pode usar essa espécie de amor nos anos posteriores de sua vida porque isso também seria apenas uma alternativa para o que realmente aconteceu anos antes entre a criança e os pais indiferentes. O sentimento de mal amado tem prioridade. A criança infeliz, com o seu comportamento neurótico, sua agressão, suas doenças, seus fracassos, está tentando dizer aos pais "quero ser amada para não viver mentindo." Como já vimos, a mentira é um pacto inconsciente entre a criança e os pais no qual ela concorda mentir para si mesma para poder ser o que eles querem. Concorda em fazer o que eles querem desde que, mais tarde, eles a compreendam e não lhe seja necessário mentir. Mas enquanto continuarem com as mentiras as duas partes estão convencidas que o amor existe entre elas. Ela não põe um fim à mentira com medo de perder o amor. O estranho é que mais tarde na vida, quando alguma coisa acontece para desmascarar a mentira, a pessoa tem a tendência para sentir-se mal amada. O terapeuta Primal não encontra muita simpatia logo de saída, como acontece com outros terapeutas, porque ele não participa da mentira, e assim a pessoa não tem outro remédio senão sentir-se mal amada. O neurótico, geralmente, é confuso. Acaba pensando que o amor é aquilo que seus pais indiferentes lhe deram. Se seus pais sempre mostravam-se "preocupados" com ele, o neurótico irá procurar despertar preocupações por meio de fracassos ou moléstias. Com a provocação de reações semelhantes às de seus pais, o neurótico consegue manter vivo o mito do amor. E muitas vezes está tão empenhado na luta para manter o mito que nem mesmo sente a sua infelicidade. Ele pode, por exemplo, apresentar-se para a terapia dizendo, "meus pais não eram perfeitos. Ninguém é. Mas me amavam lá à moda deles." Eu acredito que essa "à moda deles" foi que fez
da criança um neurótico. Também poderá dizer, "o papai gostava de disciplina, não era muito expansivo em suas afeições, mas nós sabíamos o quanto amava os filhos". Isso, traduzido, poderia dizer, "o papai quer perfeição, nunca faz elogio, nunca mostra afeição, mas enquanto andarmos direitinhos fazendo o que ele quer podemos considerar que somos amados". Mas não adianta que a gente tente querer convencer a nós mesmos. Quem não é amado sabe que não é. Quando alguém na terapia, com o raciocínio acima, é forçado a gritar que quer ser acalentado e acariciado pelo pai, o resultado é o sofrimento. Todas as coisas que ele julgava verdadeiras parecem desmoronar diante da Dor. Uma paciente insistia que era amada pelos pais que eram nisso muito exuberantes. Afirmava que o marido era a origem do seu problema. Na segunda semana da terapia ela sentiu. Voltou ao passado e reviveu uma cena em que fora preferida à irmã por ser mais boazinha. Durante toda a sua vida nunca sentiu que não fora amada porque fora a filha boazinha. Os pais manifestavam a sua preferência por ela de todas as formas e tudo que tinha a fazer era ser "boa". E porque era boa em lugar de ser o que era, nunca sentiu falta de amor. Mesmo assim, ela experimentou a Dor Primal, e essa Dor só se manifestava quando eu não lhe permitia que continuasse sendo a menina boazinha que sempre fora. Isto é mais um exemplo da noção Primal que o amor é permitir que as pessoas sejam o que são. Aquela moça tinha aparentemente tudo mas não era dona dela mesma. Ela era mal amada. As crianças entregam-se e sacrificam-se para poder esconder o sentimento de não serem amadas. Os pais fazem a mesma coisa para esconder quando não sentem amor pelos filhos. A entrega de si mesmo parece ser parte da ética Judaica-Cristã na qual nos entregamos a uma divindade em nome do amor. Houve uma paciente que disse: "Entreguei-me para conseguir o amor de minha mãe. Quando isso não funcionou eu tentei meu pai, e quando ele também me falhou eu virei-me para Deus." O neurótico parece estender esse processo para que possa começar a medir o amor em termos de quanto os outros se sacrificam por ele. Não é por acaso que toda a criança amada raramente dá importância ao amor. Não precisa dar o nome de amor às coisas nem duvida do amor dos pais. Não precisa da palavra porque tem o sentimento. Todos aqueles que precisam rotular as coisas com o nome de amor é porque não são amados. Se os pais quisessem evitar a luta neurótica pelo amor nos filhos, eu lhes aconselharia que mostrassem com franqueza todos os seus sentimentos e deixassem as crianças também dizer tudo que quisessem e da maneira que mais lhe agradasse. Em resumo, isso seria permitir às crianças os mesmos direitos de todas as outras pessoas. As crianças devem ter liberdade de expressão porque são seus os sentimentos, mas não podem quebrar as coisas em casa porque elas pertencem à família. Mas é difícil que uma criança seja destruidora materialmente desde que
possa sê-lo verbalmente. Quando nós dizemos tudo que a criança pode sentir e exigimos que ela examine seus sentimentos, nós já começamos a interferir com a sua capacidade de sentir. Quando se dá à criança uma total espontaneidade de todos os sentimentos, é quase certo que ela se tornará uma criança que espontaneamente irá atirar-se nos braços dos pais com beijos e abraços, e dessa forma, também os pais serão amados. Nós estamos acostumados a ver crianças recebendo ordens e não esperamos delas gestos espontâneos e afetivos. Num lar neurótico o amor torna-se um ritual. Existe o dever da afeição, o beijo da chegada ou despedida sem um sentimento espontâneo, e a reprimenda se a criança não cumpre o seu dever. O que o neurótico consegue de seu filho, geralmente, é um ato despido de sentimento quando a criança teria muito mais a dar se isso lhe fosse permitido. Por que é tão geral a perseguição ao amor? Porque se trata da perseguição ao eu que não existe. Mais precisamente, é a procura de alguém especial que lhe permita ser o que é. Já que tantos de nós tivemos nossos sentimentos ignorados ou massacrados, acabamos fazendo aquilo que não sentimos. Os casamentos precoces, os romances passageiros, creio eu, são o fruto de frustrações e desesperos íntimos para sentirmos através de outros. A procura parece não ter fim porque muito pouca gente sabe realmente o que está procurando. A perda de um ser amado atualmente não pode levar a resultados catastróficos como a tentativa de suicídio, a não ser que ela reflita uma outra perda mais antiga e mais profunda em nossa juventude. Quando o neurótico, finalmente, sente-se mal amado, ele está preparando o caminho para sentir-se amado. Quando sentir a Dor é porque está descobrindo a realidade do corpo e os seus sentimentos, e não pode haver amor sem sentimento.
17 - SEXUALISMO, HOMOSSEXUALISMO, BISSEXUALISMO
Na Teoria Primal há uma diferença entre sexo como um ato e sexo como experiência. O ato do sexo envolve todos os movimentos ostensivos feitos pelos indivíduos durante as relações sexuais. A experiência é o significado de tais movimentos. Na neurose, a experiência do ato pode ser bem diferente do próprio ato. Assim, pode-se experimentar o ato heterossexual de uma forma homossexual e com fantasias também homossexuais. E um ato homossexual entre dois homens no qual um desempenha o papel feminino pode ser experimentado como ato heterossexual. Eu caracterizo a natureza do ato em termos de sua experiência subjetiva, uma diferença que será importante quando discutirmos o tratamento das aberrações e perversões sexuais. É possível, por exemplo, encontrar pessoas que agem como se estivessem praticando o sexo sem experimentar nenhuma sensação, como é o caso das mulheres frígidas. O que dá ao sexo o seu significado, então, é a plena consciência e sensação da situação e o que o altera é o esforço neurótico para conseguir valores simbólicos do ato. A hipótese Primal é que quando há privação das necessidades e que os sentimentos são bloqueados no princípio da vida, eles surgem em forma simbólica. No sexo, isso significa que o ato será experimentado geralmente por meio da fantasia, como se satisfizesse a necessidade. Vamos discutir alguns exemplos. Um homem de trinta anos sofria de impotência. Perdia a ereção sempre que penetrava na sua mulher. Ele fora educado por uma mãe fria e "ranzinza" que só lhe dava ordens e nenhum carinho. Como escapava ao seu conhecimento que merecia carinho, ele desconhecia e não reconhecia nenhuma necessidade para tal. Casou-se com uma mulher agressiva e exigente como sua mãe e que tomou conta de sua vida transformando-o num marido passivo. Quando chegava a hora de penetrar nela, aquilo já não era mais uma questão de sexo com uma mulher. Era o meninozinho sendo amado simbolicamente pela mãe. O aspecto simbólico do ato (o incesto) não permitia que ele funcionasse como adulto. O homem não reconhecia suas primitivas necessidades de carinho e procurava a afeição maternal com outras mulheres. As mulheres eram símbolos do amor maternal e o ato do sexo com elas era simbólico, o que prejudicava o seu funcionamento. Naturalmente, se as mulheres fossem apenas fêmeas adultas não seria de esperar o mau funcionamento sexual. O problema surgia porque elas
tornavam-se símbolos da mãe. Os órgãos sexuais funcionam de maneira verdadeira quando a pessoa é real e de maneira irreal quando a pessoa também é irreal. Em todos os atos dos neuróticos há um sistema duplo que funciona: o sistema real com as suas privações e necessidades, e o sistema irreal que tenta preencher simbolicamente essas necessidades inconscientes. Assim, o eu irreal parece estar participando de sexo maduro ao mesmo tempo que a criança que existe dentro dele está querendo ser amada. E uma vez que está à procura de amor infantil, o neurótico inconscientemente é obrigado a fazer de seus parceiros a pessoa dos pais, ou seja, alguém irreal. Não é de surpreender, portanto, se a pessoa se torna impotente ou se é traída pelo seu corpo de outras formas. Um outro exemplo. Um homem não conseguia ereção com sua bela mulher enquanto ela não lhe falasse de outros homens com quem desejaria ir para a cama. A sua descrição minuciosa dos órgãos sexuais dos outros homens serviam-lhe como estímulo e excitação. A relação com sua mulher, em termos Primais, era essencialmente homossexual. Ele não tinha relações com ela e sim com as necessidades que lhe tinham sido negadas na primeira infância e que surgiam na preocupação simbólica com órgãos sexuais. Esse mesmo homem tivera um pai fraco e apagado que pouco lhe falava e nenhum carinho lhe dispensava. Tudo que ele queria tinha que pedir primeiro à sua mãe que então ia pedir ao pai. Isto é, tinha que ir através da mãe para chegar ao pai o que era essencialmente a mesma coisa que estava fazendo com o sexo. A necessidade que sentia do pai estava sempre presente, mas como lhe era negada, veio a ser simbolizada na forma de um pênis. Assim, durante o sexo a sua relação era o símbolo do amor paterno e não sua mulher. Para ser verdadeiramente heterossexual, ele teria que livrar-se daquela necessidade do pai. Mais um último exemplo. Durante o ato sexual uma mulher imaginava estar sendo dominada e brutalizada contra sua vontade. A experiência do ato era a de uma criança desamparada, uma vítima do sexo e não apenas uma parceira em igualdade de condições. Essa mulher tivera um pai sádico e brutal que a chamava de "puta" quando ela era moça, com menos de vinte anos; não lhe permitia encontros com namorados e ridicularizava a sua maquilagem. Ela não reconhecia a sua necessidade do amor paterno, mas durante o ato revia-se como vítima indefesa (do pai) pois só assim conseguia sentir alguma coisa. Em todos esses casos, o ato do sexo é simbólico, é uma tentativa para solucionar velhas necessidades. A pessoa não sente a situação em que se encontra pois está relacionada com uma fantasia. Assim, para algumas mulheres, o ato pode significar amor, e para alguns homens pode significar virilidade, poder, vingança. A função da fantasia durante o sexo é a recriação da luta primitiva entre pais e filhos. A diferença crucial, no entanto, é que durante o sexo a pessoa está tendo aquilo que
sempre imaginou encontrar ao fim da luta de toda a sua vida, ou seja, ser beijada, apertada, acariciada e amada, sentir enfim. O neurótico faz com que simbolicamente a sua luta “dê certo" proporcionando-lhe um resultado fantasiado que nunca poderia acontecer na realidade. Houve uma mulher que disse: “Minhas fantasias durante o sexo são um bom exemplo de como eu vivia só com a mente em lugar do corpo. Eu nem mesmo sentia o que se passava da cintura para baixo." Quando a pessoa sente a sua necessidade original, então a fantasia já não tem mais função. Quando o homem impotente do primeiro exemplo sentiu a profunda necessidade de uma mãe boa, humana e carinhosa, ele já não precisou mais de substitutos. Sua mulher já não era mais sua mãe pois ele sentia a realidade do que ela fora. O seu problema sexual desapareceu porque fazia parte de um ato simbólico que não tinha relação alguma com o que se passava com sua mulher. O mesmo aconteceu com o homem do segundo exemplo. Depois que sentiu como havia sido terrivelmente privado de um pai, ele já não precisava mais de símbolos tangíveis que o representassem. Os exemplos acima mostram que o sexo neurótico é simbólico e nele a pessoa raramente "vê" o seu parceiro, e o fato dele ser efetuado no escuro ainda mais aumenta o seu valor simbólico. A fantasia pode nem mesmo ser consciente. O neurótico pode pensar que seu parceiro é sua mãe ou seu pai sem perceber que está realizando a fantasia. Ninguém pode ser completamente heterossexual com a Dor Primal. Se, por exemplo, uma moça deseja o amor de seu pai, ela pode praticar o sexo com muitos homens numa tentativa para simbolicamente alcançar esse amor, mas é bem provável que surjam problemas de frigidez porque enquanto o sistema irreal está experimentando o sexo com homens, o sistema real está inconscientemente tentando apenas ser aconchegada e sentir-se amada (pelo pai). A experiência não é sexual. É infantil já que a mulher está tentando recuperar o que perdeu no passado. Uma mulher frígida declarou que "em lugar de me entulhar com comida, eu entulhava-me com os muitos pênis sempre tentando satisfazer-me de amor. Nada chegava para me sentir amada. Acho que agora já sei por que não conseguia sensação no sexo. Se, realmente, me entregasse e sentisse, eu teria também sentido toda a Dor de nunca haver sido amada. Eu teria sentido exatamente aquilo que estava procurando conseguir com o sexo. Minhas ilusões evitaram isso." Os problemas sexuais tornam-se mais complicados quando um menino sente grande necessidade de pai e de mãe. No sexo com mulheres, ele poderá agir como um menino e deixar que sua companheira (o símbolo da mãe) o manobre. Enquanto isso acontece ele pode ter fantasias homossexuais. O mesmo pode acontecer com uma mulher que não tenha contado com o amor de sua mãe. Enquanto essa necessidade não houver sido satisfeita, isso poderá interferir com todas as atividades heterossexuais.
As necessidades do passado têm predominância pelas do presente. Não é de admirar o grande número de mulheres frígidas quando vemos a criancinha que está lá dentro delas. Elas sentem necessidade de um pai bondoso e ficam zangadas e desapontadas quando um homem exige delas sexo adulto em lugar de lhes oferecer um amor paternal.
Amor e Sexo Muitas mulheres dizem que só podem ir para a cama com alguém que amem. Em uma mulher neurótica isso pode significar: "Para gozar as sensações naturais de meu corpo, eu devo convencer meu espírito que isso significa mais do que é. Para ter liberdade de sentir eu preciso ser amada." Aqui, mais uma vez, temos a expressão inconsciente da necessidade de amor como um pré-requisito para a sensação. Quando uma pessoa foi amada no princípio da vida, ela já não precisará extrair isso do sexo. O sexo poderá então ser o que é realmente, ou seja, uma relação íntima entre duas pessoas que se gostam. Será que isso significa ser o sexo alguma coisa isolada do amor? Não necessariamente, uma pessoa de juízo não vai sair por aí tentando levar todos para a cama. Desejará antes partilhar o seu eu, e isso inclui o corpo, com uma pessoa que goste, o que não significa que prefacie a relação com algum místico conceito de amor. O sexo deverá ser uma consequência natural de uma relação como qualquer outra coisa. Não precisa ser justificado pelo amor. Quando uma mulher neurótica suprime seus sentimentos, sem ligar ao que possa estar acontecendo em termos de amor, ela provavelmente não gozará plenamente o sexo, mas se for normal, já não precisará preocupar-se tanto com o sexo. Quando a criança nunca recebeu amor de seus pais, ela pode ficar muito excitada ante a perspectiva de sexo porque acha que finalmente vai encontrar o que precisa. O resultado é que pode tornar-se impulsiva e não tomar as necessárias precauções na ânsia de encontrar finalmente aquilo que nunca teve. O resultado pode ser uma gravidez não desejada, uma consequência de um impulso desesperado para satisfazer necessidades imperiosas. Quando, porém, a pessoa já gozou do amor dos pais todo o desespero do sexo parece desaparecer. Ele torna-se então uma experiência agradável. A única proteção contra a promiscuidade futura é o amor dos pais nos primeiros anos de vida. O verdadeiro amor é quando um rapaz e uma moça aceitam-se mutuamente por aquilo que são, e nisso estão incluídos os corpos. Os neuróticos exploram o corpo alheio para satisfazer suas necessidades. Isso não permite uma relação igual entre os
dois, É frequente um rapaz neurótico que se apega às partes sexuais de uma moça e não consegue vê-la como uma pessoa integral. Esse split é chamado como o complexo madona-prostituta em que as moças boas são desprovidas de sexo e as más são apenas sexuais. As mulheres normais não precisam ser seduzidas por frases. Recorrerão ao sexo quando as relações o exigirem. São muitas as mulheres que dizem amar seus maridos mas que nada sentem durante o ato sexual. Uma mulher frígida não pode amar porque ela não pode entregar-se totalmente. Só pode amar a pessoa plenamente sexual. Pode ser que haja quem duvide disso mostrando muitos supostos neuróticos que são grandes apreciadores do sexo. Mas esses mesmos neuróticos vivem debaixo de grandes tensões que eles mesmos chamam de sexo depois de havê-las tornado eróticas mentalmente, e cujo verdadeiro conteúdo é pouco mais do que um espirro. Como prova disso, eu posso citar o fato que a maioria dos pacientes que perdem a sua tensão nas primeiras semanas de terapia, perdem também a sua mania de sexo. Mais ainda, homens e mulheres que se consideravam altamente sexuais antes do tratamento, afirmam que não faziam ideia da verdadeira sensação sexual antes de aprenderem a senti-la depois da Terapia Primal. Todos são unânimes em afirmar que também a qualidade do orgasmo passa por uma transformação, onde todo o corpo parece participar.
Frigidez e Impotência De minhas observações durante quinze anos eu verifiquei a prevalência extremamente alta da frigidez e da impotência, especialmente a frigidez. Quando falo em frigidez eu quero referir-me à incapacidade para conseguir um clímax. Variam muito as formas de agir das mulheres frígidas, dependendo de sua personalidade. Algumas mulheres tornam-se promíscuas baseadas na esperança de conseguirem encontrar o homem certo que possa despertar nela sensações. Se o problema foi com a mãe, a mulher frígida simplesmente não toma conhecimento do sexo. O que ela experimenta com o seu procedimento, então, pode ser a esperança de conservar a sua dignidade e honra e assim também o amor de sua mãe. Muitas mulheres frígidas descobrem que só atingem o orgasmo pela masturbação. Esse é um bom exemplo da relação das próprias sensações sem depender de companheiro. As mulheres que fazem isso geralmente começaram a se masturbar muito cedo sempre acompanhadas das mesmas espécies de fantasias. O pênis, nesses casos, pode ser apenas símbolo de ameaça, desonra, invasão etc. e é evitado por causa de seu significado, que é geralmente inconsciente.
Um exemplo. Uma mulher é educada por uma mãe extremamente afetada que enche a sua cabeça com mitos sobre o sexo, homens e moralidade. Está sempre ouvindo que os homens são animais que só querem uma coisa. Amar e dar o fora. Além de tudo que ouve ela ainda tem uma prova no pai que é um bruto. A moça acaba acreditando em tudo que a mãe lhe conta e recusa-se a qualquer experiência de sexo até o casamento, somente para então descobrir que é frígida. Queixa-se ao seu médico que sua vagina parece anestesiada. Eu quero acreditar que essa mulher já não tem mais sensação de sexo na vagina. Ela sente medo porque não conhece a sensação sexual. Não é necessariamente um medo consciente, mas não tendo um pai a quem recorrer, e sendo obrigada a contar só com a mãe para os restos de afeição que ainda encontra em casa, ela passa a associar o sexualismo com a reprovação materna. O que fez então, foi literalmente abrir mão de parte do que sentia pela mãe. Falando de forma figurada, a vagina dela pertencia à sua mãe. Então, a falta de sensação tornou-se a sua maneira de apresentar à mãe a imagem da moça boazinha de quem ela podia orgulhar-se. Logo que ela viu que não havia mais esperanças para conquistar o amor dos pais começou então a sentir que a vagina voltava a ser sensível, e isso, aliás, acontece com muitas pacientes minhas. Por que teria a vagi na daquela mulher voltado a ser sensível só porque ela viu que não havia mais esperanças para conseguir o amor de sua mãe? Porque ela estava tentando encontrar aquele amor em todos os contatos sexuais, mostrando-se a menina boazinha que sua mãe queria, em outras palavras, sendo frígida e assexuada. Desde que desistiu daquele amor ela libertou-se também da luta para tentar consegui-lo simbolicamente por meio de uma vagina frígida. Uma mulher, que antes fora frígida, explicou essa condição quando completou a sua Terapia Primal. "Eu fui criada numa casa muito religiosa onde nunca se falava em sexo nem mesmo para condená-lo. Falava-se de mulheres "fáceis" e de promiscuidade o bastante para apavorar-me a respeito de sexo. Mais tarde, para aceitar as exigências sexuais do meu corpo, eu imaginava-me como se fosse outra pessoa durante o ato sexual. Muitas vezes o meu espírito não reconhecia o que meu corpo sentia de forma que eu imaginava cenas em que estava sendo violentada. Aí, e só aí eu sentia-me sexual." Uma mulher tinha fantasias lésbicas, em que uma outra fazia-a gozar com a língua. Ela se casara com um efeminado que preferia essa forma de relações e assim a sua fantasia tornava as coisas mais fáceis para ela. Mais uma vez, em termos Primais, a fantasia, ou seja a experiência durante o sexo, é uma tentativa para realizar as necessidades reais de ser amada e beijada pela mãe. É a realização do desejo que produz a capacidade para sentir e chegar finalmente ao heterossexualismo. Mas a fantasia irreal nunca pode realizar as necessidades reais, e então o comportamento simbólico torna-se repetitivo e compulsivo. Quando o
marido dela tentou penetrá-la com o pênis, ela tornou-se completamente frígida e o ato foi muito doloroso. Na sua inimitável linguagem, o corpo estava lhe dizendo que a Dor estava lá dentro dela. Não devemos atribuir a frigidez apenas a uma deficiente educação sexual ou a experiências fracassadas. Muitas moças são tão fechadas que quase podemos garantir a sua futura frigidez, um problema que vai se tornando cada vez mais frequente. Praticamente todas as mulheres que passam pela Terapia Primal sentemse completamente diferentes com relação aos problemas de sexo, mesmo que isso não tenha sido a razão ostensiva de haverem recorrido à terapia. Para que o leitor faça uma ideia da complexidade do problema, aqui estão as palavras de uma mulher que fora frígida e que completara um mês de Terapia Primal: "Uma coisa que aprendi nessa terapia é a maneira pela qual o corpo ajudoume o bloquear as sensações. Eu era frígida e portanto pensava comigo mesmo que a minha vagina apertada devia ser a maneira de defender-me contra mim mesma, contra toda sensação ligada a isso. Voltei para casa depois de uma sessão de grupo e abri a vagina com as mãos o máximo que consegui para ver exatamente o que ia sentir. Fiquei espantada quando me lembrei de uma coisa ao mesmo tempo que começava a sentir uma dor em torno da vagina. E de repente, achei-me então pequenina com minha mãe mudando-me as fraldas com uma certa brutalidade e beliscando-me a vagina. Lembrei-me que ela sempre fazia aquilo quando me mudava as fraldas e senti que a vagina se contraía para pôr um fim ao sofrimento. No dia seguinte eu tive minhas primeiras relações sexuais com meu marido sem qualquer sofrimento." Foi esse o ponto que Wilhelm Reich apresentou. O corpo forma uma defesa. No entanto, aquela mulher poderia ter manipulado a sua vagina durante dias seguidos sem qualquer resultado apreciável se já não tivesse passado por muitas dores que estavam abrindo o caminho para as suas lembranças das fraldas. O importante foi a ligação e não a manipulação. Ao abrir a vagina com a mão ela ajudou a desbloquear uma defesa específica, da mesma forma que afrouxando uma barriga tensa por meio de respiração profunda nós fazemos surgir as sensações. Essa situação faz-me lembrar um outro caso com um homem impotente. Durante uma de suas primeiras sessões ele foi pressionado para cair na sua mais terrível fantasia que era a de incesto com sua mãe. Durante essa fantasia ele lembrou-se quando ela o deixou sozinho na creche do colégio. Ele sentiu-se mal e aí começou a reviver a dolorosa cena. Para sentir-se melhor começou a brincar com o seu pênis. Na Primal ele ligou a solidão e o desejo da mãe com sua brincadeira com o pênis. Queria que ela voltasse para não se sentir tão solitário. Depois isso tornou-se uma fantasia desejar o sexo com sua mãe. Na medida em que ia ficando mais velho essas fantasias chegavam a apavorá-lo, e por motivos que nunca descobriu elas transformaram-se em fantasias homossexuais que continuaram até a sua idade
adulta. Durante essa Primal ele afinal descobriu o que era: "Não se aborreça mamãe, não é a você que eu quero. Eu quero homens." Esse homem sofreu fantasias homossexuais durante anos por causa do que lhe aconteceu na creche da escola. Claro que aquilo só não foi a causa, já que além de tudo ele ainda foi negligenciado e abandonado muito cedo, e isso foi o mais decisivo. Suas fantasias, dolorosas e perturbadoras, mesmo assim serviram para cobrir algo ainda mais intolerável que era os sentimentos incestuosos para com sua mãe. Muitas mulheres frígidas e homens impotentes pensam que podem funcionar melhor no sexo depois de beber. Isso acontece porque a bebida amortece as dores Primais e assim facilita a necessidade do controle do corpo pelo eu irreal. Com as dores assim reduzidas a necessidade de controle é menor. À medida que o controle diminui também diminuem os controles da mente sobre os sentimentos do corpo. Infelizmente, o álcool também amortece as sensações durante o sexo que perde então muito de seu valor. O sexo significa sentir o corpo e não controlá-lo. Se o corpo está guardando antigos sentimentos o abandono do controle significa dar-lhes liberdade. Assim algumas mulheres transformam-se em verdadeiros tigres na cama agarrando, arranhando e mordendo, pensando erradamente que isso demonstra paixão sexual. Há paixão, em verdade, mas não é sexual. É uma raiva reprimida que surge quando o corpo começa a sentir. Pode ser que o sexo para os neuróticos seja metade violência, e talvez a justaposição de sexo e violência nos anúncios de cinema não seja acidental. Mas não é necessariamente a violência que é reprimida. As mulheres que gritam no clímax de suas experiências sexuais estão apenas demonstrando tristeza reprimida. Quaisquer que sejam as dores reprimidas, a pessoa não pode sentir plena sexualidade até que todos os sentimentos neuróticos contaminantes tenham sido afastados. A frigidez sexual não é apenas um problema de sentimentos sexuais e sim um problema de sensação. A liberdade de sentir significa liberdade sexual. Ser reprimido significa repressão sexual, mesmo quando parece haver um bom funcionamento sexual. Quando uma pessoa vem para a Terapia Primal e diz que tem apenas um problema sexual, nós logo descobrimos os seus outros temores e repressões. Também quando alguém vem com outros problemas nós devemos suspeitar sempre de problemas sexuais, já que os problemas não podem ser parciais uma vez que todas as nossas partes são interligadas. Na terapia convencional eu ajudei muitas mulheres a compreender suas atitudes puritanas sobre sexo e muitas vezes aconselhei-as quanto a técnicas de sexo mas isso de pouco lhes servia. Quando se sente a Dor na Terapia Primal isso parece resolver os problemas de sexo sem qualquer recurso a técnicas. Parece que o caminho para a vagina não passa pela cabeça.
O neurótico tem um estoque de dores que não deixam as novas informações fazerem o corpo sentir. A informação sexual permanecerá mental até que o corpo seja liberado. A mulher de um médico que eu tratei alguns anos atrás tinha por costume ir a um acampamento perto de sua casa para ter relações sexuais com cinco ou seis homens sucessivamente sempre procurando aquele que a fizesse sentir. Mas nenhum conseguia isso porque ela se havia desligado e somente ela mesmo poderia tornar a ligar-se. Embora essa mulher fosse inteligente e soubesse também que suas incursões ao acampamento eram infrutíferas e perigosas, e que eu lhe mostrasse o que estava realmente fazendo, ela, ainda assim, não desistia. Era escrava de suas necessidades. Mesmo conhecendo os perigos e compreendendo o que estava fazendo, ela nem assim desistia. Queria sensações. Eu acredito ser um erro pensar que alguém possa receber uma educação liberal a respeito de sexo e com isso modificar suas atitudes quanto ao assunto para resolver problemas sexuais. Qualquer que seja a educação ou qualquer que seja a atitude para com o sexo, as falhas sexuais persistirão até que as novas atitudes cresçam do corpo e de seus sentimentos. Os fatores culturais devem ser levados em consideração em todos os problemas de sexo. A crença generalizada que as mulheres vieram ao mundo para fazer a felicidade dos homens fez nascer noções especiais como, por exemplo, a psicologia feminina. Implícito na ideia que as mulheres devem fazer a felicidade dos homens está uma outra ideia que os homens são superiores e que as mulheres devem viver para o seu homem. Isto também é pura neurose. Ninguém pode viver para outrem ou por causa de alguém mais, a não ser que seja doente, e isso é, infelizmente, o que muitos homens desejam de suas mulheres. Ninguém pode fazer uma outra pessoa sentir coisa alguma, e isso inclui sentir-se feliz. A função do ser humano é simplesmente viver. Os neuróticos acham que para excitar a mulher é preciso haver romance, luzes difusas, frases escolhidas e bebida. Assim, em lugar de cuidar do sexo tratam de seduzir a mulher. A mulher que não precisa dessa sedução, que é sincera e livre quanto aos seus desejos sexuais, é muitas vezes considerada imoral. Parte da razão para isso é que os homens que se sentem pouco machos parecem imaginar que sendo agressivos com as mulheres, conquistando-as sexualmente, eles, de certa forma, tornam-se homens de verdade. O fato de dominar uma mulher não torna um homem mais macho como também um adulto não fica mais importante pelo simples fato de dominar uma criança. Numa sociedade equilibrada, sem splits ou neuroses, não existe esse abismo entre homens e mulheres. Eles devem ser iguais com as mesmas necessidades e sentimentos. Não pode existir psicologia masculina ou feminina porque isso seria uma psicologia dividida.
Perversões Há ocasiões em que uma pessoa precisa de mais do que a simples fantasia mental durante o sexo. Um homem pode estar vestido de mulher, usar maquilagem, sair à rua, e ainda assim saber que é homem. Mas se ele dentro do vestido acreditar que é realmente mulher, então é porque deu um gigantesco passo no simbólico caminho para a irrealidade. As pressões internas podem não apenas fazer um homem fantasiar que está sendo espancado durante o sexo, como também pode chegar ao ponto de exigir que seja realmente flagelado para chegar ao orgasmo. A perversão implica que o peso das privações do passado chegou a um ponto que está fora do controle do método comum do comportamento das pessoas, para o momento do ritual, e isso afoga-as em comportamentos quase totalmente simbólicos, talvez quase uma psicose momentânea. Atendi a um homem que precisava ser amarrado e espancado para conseguir a ereção. Embora esse ritual tivesse várias facetas psicológicas, ele parecia nascer principalmente da relação com sua mãe sádica que vivia a espancá-lo. Ele então queria tornar a criar aquela relação entre os dois de uma forma quase literal com a mesma esperança inconsciente que alimentava no passado de ser espancado o bastante para encontrar descanso, prazer e bondade. Esse ritual masoquista era um drama restrito que simbolizava toda uma plêiade de experiências passadas que a pessoa procurava resolver como alternativa. Bem no seu cerne está a esperança que alguém se dê conta de seu sofrimento e que ponha um fim a ele. Parece que é necessário sangue de verdade e ferimentos para que alguns pais cheguem a perceber que os filhos precisam de ajuda. Alguns filhos levam isso mais longe roubando carros, ateando incêndios ou sendo espancados. O ritual descoberto e imaginado pelo pervertido pode ser considerado uma extensão do ritual inconsciente que o neurótico exibe em todas as suas experiências durante o dia. No ritual mais generalizado, por exemplo, ele pode fingir-se espancado e derrotado como se dissesse "não me castigue mais. Já estou liquidado." O neurótico não pervertido parece recorrer a um ritual mais generalizado. Um paciente meu que era exibicionista tentou descrever sua perversão. "É como a gente é quando é criança e que tem sempre alguém procurando aporrinhar. Minha mãe odiava os homens. Eu creio que queria ser uma menina para ela. Acabei tendo que mostrar meu pênis a mulheres na rua para provar que não era menina. Devia estar bem ruinzinho para fazer uma coisa assim." Esse homem, casado e com filhos, certamente tinha todas as provas visíveis de sua virilidade, mas aquilo não era o suficiente. Ele tinha que continuar no seu ritual até o dia em que chegou às suas origens e tornou a viver todos os esforços que fazia para conseguir de sua mãe uma palavra de carinho.
Mesmo sabendo, como sabia, esse homem era impelido ao seu ato por uma força incontrolável. Os verdadeiros desejos dele de ser macho surgiam sempre através de tudo que o cercava. O objetivo de seu ritual era ser real. Eu considero a impulsividade como sendo resultado da tensão e de velhos sentimentos que tornam irracional os atos impulsivos. A pessoa impulsiva não age pelos seus sentimentos e sim pela falta de sentimentos. Isso é o oposto do ato espontâneo que é baseado nos sentimentos. O comportamento espontâneo dificilmente é irracional, por mais rápida que seja a reação, porque ela é de uma pessoa real para condições reais. O que parece erradicar as perversões é sentir e denunciar a mensagem implícita no ritual. Por exemplo, se o exibicionista, com a exibição de seu pênis, queria dizer "eu quero ser menino, mamãe", então ele terá que sentir todas as maneiras que não lhe permitem ser o menino. Cada cena lembrada, isto é, cada sessão Primal, irá removendo mais uma peça do ritual exibicionista até que não sobrem mais impulsos. Cada cena reviverá como sua mãe estava sempre querendo impedi-lo de ser menino dizendo "não brinque com seu pênis. Não se meta com meninas", ou então conservando seus cabelos grandes e não deixando ele meter-se com esportes, etc. Cada um desses incidentes, quando sua mãe não o deixava ser o que era, um menino, servia para incentivar a perversão até que ela surgia. E todas essas perversões são metodicamente destruídas, da mesma forma que foram construídas, quando as cenas são revividas. Durante uma sessão por exemplo, um exibicionista segurou seu pênis gritando "mamãe, não tem nada sujo. Eu estou segurando em mim mesmo. Eu quero sentir-me." O exibicionismo desse homem, como aliás todas as perversões, não faziam realmente sentido. Ele estava tentando ser real mostrando o pênis, obviamente a maneira mais irreal para fazê-lo. Mas embora toda a sua história tivesse tentado fazer dele uma menina, sempre persistiu a necessidade dele ser o que era, embora de forma destorcida. As perversões são facilmente tratáveis pela Terapia Primal devido ao seu evidente simbolismo. Parecem ter sido preparadas para a Primal pois vão logo dizendo diretamente qual é a necessidade, sem ser preciso adivinhar. Simplesmente com a suspensão do ritual, a tremenda força que o impelia transforma-se imediatamente numa Primal com todas as suas ligações.
Lenny Lenny é um psicólogo formado com vinte e seis anos de idade. Embora houvesse estudado psicologia e comportamentos anormais durante anos na universidade e usasse os seus conhecimentos no cargo que ocupava, isso não lhe servia de nada para resolver os seus problemas pessoais, como já vamos ver, uma
prova irrefutável que o conhecimento sozinho não é suficiente para mudar a neurose. Quando ele entrava em seu ritual, Lenny penetrava num novo mundo onde esquecia tudo que aprendera sobre comportamento. O seu caso ajuda-nos a compreender a perversão em geral, e a impulsividade em termos específicos. Eu vim para a terapia depois de haver sido preso por exibir meu pênis e masturbar-me em público. Eu sempre fora masturbador em casa mas aquilo não conseguia aliviar a minha tensão. Passei então a fazer isso nas ruas ou então dentro do meu carro encostado às filas de ônibus onde houvesse mulheres. Sempre que ficava sozinho em casa eu sentia vontade de sair para masturbar-me. Não conseguia controlar-me de forma alguma e tornei-me exibicionista. Onde as outras pessoas recorreriam a cigarro ou bebida para aliviar a tensão, eu recorria ao pênis. Só sabia que quando estava sozinho começava a sentir-me mal e queria passar a sentir-me bem. Com o tempo, porém, as fantasias de mulheres durante as masturbações em casa já não eram bastante em vista da natureza de minha doença. Todos os sintomas antes da terapia eram físicos como asma, úlceras, sinusite e uma caspa crônica, e tudo isso desapareceu. Só pensava no corpo e em algum ato físico. Percebia que estava ficando mais doente quando já não eram suficientes os quadros mentais durante minhas masturbações, mas não sabia o que fazer. Sentia necessidade de ver as caras das mulheres em pessoa. Saía andando pela rua até encontrar uma mulher cujo rosto eu podia ficar olhando durante o meu ato. Algumas vezes ia de carro e estacionava junto dela. Durante o orgasmo eu olhava para ela para ter a certeza que estava me vendo. Com aquilo eu dava vida à minha fantasia. Depois do orgasmo eu me sentia tremendamente aliviado como se houvesse retirado um grande peso de cima de mim. Saía no carro sentindo-me livre e ia trabalhar procurando ajudar outras pessoas, como se nada houvesse acontecido. Mas era só uma questão de tempo até chegar a hora de fazer tudo outra vez. Aquilo que começou como algumas saídas na rua acabou como ocupação de tempo integral. Gastava quatro ou cinco horas por dia e não pensava noutra coisa. Via que estava ficando louco porque uma parte de meu corpo sabia que era loucura ao passo que a outra parte continuava fazendo aquilo. O que aconteceu foi que meu espírito desligou-se do corpo e os dois agiam separadamente. Durante os rituais de exibicionismo eu ficava numa espécie de nimbo. Sabia vagamente onde estava mas tudo continuava sendo um nevoeiro. Tentei lutar contra aquilo já que minha profissão e meu emprego estavam em jogo. Quando sentia o impulso eu tentava recusar-me, mas era impossível. Sentia minha consciência desmoronar. A força dentro de mim crescia dia a dia sem eu saber por que. Estava sempre tonto e nem mesmo no emprego eu conseguia raciocinar. Sentia-me como se fosse duas pessoas. Era apenas uma pessoa inconsciente que
fazia aquelas coisas. Sei agora, depois da terapia, que em breve estaria louco. Sentia, cada vez mais, que meu corpo e minha mente estavam separados, cada qual fazendo coisa diferente. Na minha condição de neurótico eu não conseguia saber o que me tornava impulsivo. Era muito doloroso. Começava a sentir a dor logo que ficava sozinho e tinha que fazer aquilo. Durante a terapia eu deixava que o impulso me envolvesse. Em lugar de me dividir fugindo do sentimento e masturbando-me, eu finalmente conseguia que a mente acompanhasse o corpo e isso levava a verdades horríveis. Lembro-me da minha primeira Primal, quando cheguei sentindo o impulso. Quase saí no carro para a rua em busca de uma mulher. O terapeuta disse-me que deixasse vir o impulso. Senti a ereção e fiquei tremendamente excitado. Pensei que ia certamente acontecer. No ápice da sensação eu comecei a gritar, "não! não! não!" Depois vi um rosto de mulher, Jesus! Era o rosto de minha mãe. Comecei a gritar. "Mamãe, mamãe! Está doendo! Está doendo! Não me deixe sozinho! Papai vai me matar." Não podia lhe dizer o medo que tinha de meu pai. Compreendi imediatamente que quando exibia o meu pênis eu queria que uma mulher estranha visse o meu rosto contorcido pelo orgasmo para verificar então que eu precisava proteção. Era minha mãe que precisava conhecer meu medo, mas eu nunca tinha coragem para lhe contar. Aliás ela estava também muito doente para eu estar a sobrecarregá-la com meus problemas. E eu então agia daquela forma maluca nas paradas de ônibus. A pressão que me levava a fazer tudo aquilo era o medo de meu pai e a necessidade de proteção de minha mãe. Logo que liguei tudo direitinho já não precisei mais fazer demonstrações. De fato, já não havia mais pressão e sim apenas dor. Antes da terapia a minha mente nunca estava junto com o corpo. Não posso compreender como terminei o ginásio. Ainda leio e escrevo muito mal. Mas era um bom atleta e tinha muita habilidade manual. Consertava as coisas. Eu tinha que ser estúpido porque quando ficava esperto e começava a estabelecer as ligações mentais com toda aquela pressão que me levava para a rua, eu acabava descobrindo-me estirado no chão do consultório do Dr. Janov debatendo-me como um peixe fora da água. Aquelas sensações eram dinamite. Vejo agora que se não tivesse a liberação sob fiança depois que fui preso, eu certamente teria ficado louco varrido. Exibia-me porque aquele era o único meio que eu tinha para afastar-me das sensações. Por mais louco que pareça, ainda mesmo depois de preso e sabendo a encrenca em que me metera, eu continuava a sair para masturbar-me em frente de mulheres enquanto aguardava o meu julgamento! Não encontrava saída. Antes da terapia eu mesmo julgava-me altamente sexual, mas agora
transformei as convulsões do orgasmo em convulsões Primais e já não sinto a mesma compulsão pelo sexo. Na minha opinião a perversão nada tem a ver com sexo. Quando masturbava-me, o que estava realmente querendo era ajuda. Era a minha maneira de pedir socorro. Aquilo que fazia não tinha a menor relação com desejo sexual. Era uma perversão diferente. Há muita gente com diferentes formas de perversão. Os homens de negócios pervertem suas necessidades de amor nas transações que fazem. Eu perverti meus sentimentos no meu pênis. Tudo que queria era que minha mãe percebesse o meu sofrimento e finalmente desse-me o que me negara em criança.
Jim Eu tenho vinte e dois anos e nasci no Alabama. Hoje moro em Los Angeles, a única cidade que sempre simbolizou para mim tudo que havia de pior em todos os sentidos. Só de pensar em ter de morar em Los Angeles eu tinha uma verdadeira sensação de repulsa. Agora ela é simplesmente uma cidade suja e tensa que nada mais significa para mim. Meu pai é oficial de carreira da Força Aérea. É também ministro presbiteriano e original de uma pequena cidade em Indiana. Minha mãe é do Mississippi. Nunca tive um lar. As minhas primeiras lembranças são do Japão onde eu uma vez fugi de casa com quatro anos e onde meu pai estava destacado. Depois disso passamos a mudar cada um ou dois anos, viajando no nosso Oldsmobile que servia de arena para as lutas da família enquanto atravessávamos os vários estados da União. O carro também servia como o lugar de onde eu não tinha jeito de fugir quando minha mãe resolvia exemplar-me com um pedaço de mangueira de borracha quando eu não andava direito. Eu finalmente consegui sumir com ela na lata de lixo de um motel em Denver. Aquelas viagens constantes poderiam ter sido bem divertidas para um garoto, e algumas vezes eram mesmo, a despeito de jamais haver paz na família. Tudo eram discussões e brigas e até mesmo eu servia de pretexto para muitas delas quando chegava a hora de escolher minhas roupas, minhas comidas, meus amigos e até mesmo meus programas de TV. Ela estava sempre ali para me dizer o que achava melhor para mim com aquela inflexão na voz que claramente me dizia que se eu não fizesse como ela queria era porque não lhe queria bem, etc. etc. Aquilo enchia e era um método terrivelmente eficaz para conseguir que eu fizesse o que fosse exatamente o que ela queria. E o caso era que eu gostava muito deles, de mamãe e de papai. Mais do que qualquer outra pessoa no mundo, de modo que ficava desesperado quando ela começava ameaçar-me com um estremecimento nas nossas relações se eu não fizesse tudo que ela queria e um moço não tem muita escolha.
Assim, antes de mais nada, todas as decisões que tomo devem ter o seu beneplácito. Se ela não gosta do que eu gosto, eu simplesmente tenho que descobrir um meio para esconder meus sentimentos para ser e fazer o que ela quer que eu faça e seja. Mamãe não gosta de homens. Não quer que eu seja homem apesar de haver nascido com uma piroca como todo homem, mesmo que ela seja ainda pequenina. Ela criou-me para ser mulher e eu recebi a mensagem desde cedo. Ela não gostava que eu fosse como era. Queria que eu fosse a seu gosto... Com esse terrível fator acompanhando-me desde pequenino eu tinha ainda o pavoroso espectro do divórcio de meus pais que me perseguiu durante esses vinte e dois anos. Agora, quando estou acabando a minha terapia, eles estão finalmente divorciando-se. Quando eu tinha sete anos e nós morávamos no Texas, meu pai chegou bêbado uma noite e ela ficou uma fera e deu-lhe uma tal surra até que ela mesmo caiu no chão extenuada e gritando que não podia apanhar assim e que ia se divorciar. Eu assisti a tudo aterrorizado, sem que nenhum deles percebesse minha presença. Tentei intervir mas não adiantou. Eu já tinha idade bastante para compreender o que significava divórcio e fiquei apavorado. Perguntei a mamãe o que ia acontecer comigo e ela disse que não sabia, continuando afazer as malas. Nenhum dos dois me ligava a mínima. Fiquei rodando pela casa com meu cavalinho de brinquedo pensando o que iria acontecer comigo. E fiquei assim até começar a minha Terapia Primal. Quando voltei da escola naquele dia, depois de toda a inquietação e agonia, eles já tinham acalmado e tudo estava bem pois papai prometera não repetir a bebedeira. Durante os quinze anos que se seguiram a cena repetiu-se um semnúmero de vezes deixando-me sempre apavorado com uma separação que nunca acontecia. Ainda não falei muito de papai porque ele nunca estava presente. Eu odiava-o porque ele não me protegia de minha mãe e deixava ela destruir-me. E gostava muito dele nos poucos momentos que passávamos juntos. Papai também queria gostar de mim mas tinha medo de mostrar seus sentimentos por causa das consequências. Com a neurose e a família que eu tinha, era preciso muito cuidado para não chegar muito perto de meus sentimentos. Precisava mostrar-me frio quando estava com a família. Permanecer aparentemente como se fosse forte e independente. Há uma diferença entre travestis e homossexuais. Eu tinha um grande medo de meninas e só dei um beijo de boa noite quando já estava no ginásio. E ela era mais velha do que eu. Eu batia muita punheta para manter baixa minha tensão, mas precisava ter cuidado pois minha mãe estava sempre vigiando e não queria que eu pegasse a piroca.
Comecei a fazer boa figura nos esportes e também a namorar. Já no fim do ginásio eu fui escolhido para orador da turma, campeão de oratória do estado, jornalista e pronto para a universidade. Sentia-me infeliz. Durante muito tempo, quando mamãe saía, eu vestia as roupas dela, tanto de cima como de baixo e dava vazão à minha fantasia de já ser como ela queria e então ela iria amar-me finalmente. Era tudo uma merda ou talvez pior ainda. Quando entrei na universidade eu reprimi essas atividades continuando com a minha fantasia e batendo punhetas como todo mundo. Mas os estudos e a atmosfera eram tão pesados que nem mesmo isso adiantava. Não tinha namoradas. A corrida rasa onde eu era campeão tomava muito tempo e prejudicava os estudos, mas não ajudava a aliviar a tensão. Como era bom no esporte e na corrida as coisas ficavam um pouco mais fáceis. No fim do primeiro ano tornei-me ativista. O treinador de corrida era cheio de preconceitos e expulsou um estudante estrangeiro só por causa da cabeleira de "Beatle". Eu já estava cheio de tudo. Naquele verão arranjei uma namorada firme pela primeira vez na minha vida. Foi a primeira pessoa com a qual senti alguma coisa. Mas não conseguia de forma alguma trepar mesmo com ela segurando meu pau quando estávamos na cama. Durante seis meses lutamos desesperadamente sem nada conseguir. Quase fiquei louco. Vivia aterrorizado de ser reprovado e ter que abandonar a universidade e comecei a escrever notas estilo Kierkegaard, à Ia Bob Dylan, Ken Kesey et al. Sentiame tenso com o que escrevia de mitos, existencialismo e o trágico heroísmo do homem da rua mas achava que aquilo era a única maneira de manter-me são. Estava tentando manter a Dor lá embaixo, e estava conseguindo. Foi nesse ponto que fiz a notável descoberta que ninguém tinha o direito de me dizer para matar alguém. Muito simples. Mas a simplicidade, como o sentimento, simplesmente tinham-me escapado desde que eu começara a preocupar-me com o que iria acontecer comigo. Fiquei tão empolgado pela simples noção que a transformei numa espécie de antidogma. Fiz algum trabalho de resistência no Arizona e tentei imaginar como sintetizar política e arte. Ir para a cadeia por causa do serviço militar ou expatriar-me para escrever meus grandes livros para o mundo e morrer com trinta e nove anos. Como fazer as duas coisas? Eram problemas sérios com sérios sentimentos por baixo. Mamãe e papai. Precisava mostrar a mamãe. Precisava ajudar para as pessoas não lutarem mais (mamãe e papai). Precisava encontrar um lar de paz, simplicidade e permanência (nós todos juntos). Precisava ser forte e eficiente (papai), e por aí além. Recusei-me a servir mas sem violência. Iria escrever e estudar até que viessem me prender. Muito passivo. No primeiro dia da terapia eu contei para Art como tive vontade de mandar meu pai a merda quando ele recusou-se a me dar o dinheiro para o tratamento. Art disse apenas "Não diga!"
E eu disse: — E também gostaria que ele me ajudasse. — Pois então peça a ele. — Pelo telefone? — Não. Peça a ele. Aqui mesmo. Tentei mas senti a garganta tapada. — Não quero fazer isso e você sabe que não quero. — Peça a ele. E eu pedi. Quando dei por mim já tinha me contorcido todo no sofá gritando para que papai viesse ajudar-me e sentindo no corpo e na mente toda a raiva que reprimira durante tanto tempo. Quando comecei a perder as forças e fui descansando, as minhas mãos começaram a formigar. Chegava a sentir meus intestinos. E aquilo era apenas o princípio. Foi o bastante para um dia. Saí sentindo-me o máximo, mas já pela tarde estava aporrinhado. Outros sentimentos começavam a surgir, agora que a tensão estava cedendo. Atenção. O que vai acontecer? No dia seguinte estava ansioso pela Primal e queria forçar a mão mas aquilo não adiantava. Durante cinco dias eu fui temperando até que finalmente, no grupo, eu fiquei tão tenso que tudo explodiu naturalmente, outra vez com papai. Queria que ele me ajudasse. No dia seguinte foram lágrimas, muitas lágrimas. Tinha-me sentido tão perdido em toda a minha vida. Nunca ninguém me ouvia. E tanto tinha me esforçado para agradar a mamãe e papai para que eles me amassem. Quando os pais são infelizes eles não têm tempo para permitirem que os filhos sejam eles mesmos. O amor exige uma atenção complicada e altruísta. Desde então venho passando por todos os sentimentos. Alguns são de raiva, alguns de solidão, outros são de tristeza e ainda há os que são sensações muito sutis de calor, cheiro, frio, gosto e tato que devem ser ligados à lembrança respectiva na mente. É um processo de afinar a mente com o corpo. É sentir todos os sentimentos reprimidos para que não haja mais nenhuns que causem medo. É um inferno e é maravilhoso. Algumas vezes os sentimentos saem fáceis, mas outras exigem dias para preparar até que a tensão ceda. Passei por um período de três semanas sentindo-me louco como aconteceu naquela ocasião em que minha garota deixou-me. Era uma separação total do sentimento efetuada pelo pensamento a cada segundo do que iria acontecer depois. Cheguei a um ponto em que quase podia ver a separação invisível entre meu corpo e o mundo em torno. Ficou mais grosso e senti que algum sentimento grande aproximava-se. Certo. Eu mesmo provocara. Merda. Era uma forma bem sofisticada para não sentir. Para controlar, para antecipar e para orientar.
Numa manhã eu fora ao consultório de Art e falara com mamãe e papai naquela Cena Primal em que lhes perguntara o que aconteceria comigo e pedira para que não se divorciassem. Pedi aquilo sentindo-me medroso como se tivesse sete anos. Quando acabei já a separação afastava-se e então descansei. Ia deixar que tudo acontecesse. Mais tarde mergulhei mais naquele sentimento e a separação foi desaparecendo ainda mais. Agora, sempre que tenho um sentimento Primal eu me sinto um pouco mais no presente. A separação foi destruída. O que estou começando a sentir como resultado da Terapia Primal é simplesmente a mim mesmo. De princípio eu me sentia mais forte de uma forma neurótica. Estava começando a gozar de alguma liberdade de sentimentos pela primeira vez em minha vida e aquilo aumentou minhas esperanças e meus sonhos. Mas esperança e sonhos são os sintomas de sentimentos reprimidos. Representam a palavra abstrata que costumávamos usar para esconder nossas necessidades. Desde que se tenha sentido toda a necessidade não há mais esperança para satisfazê-la. Não há mais necessidade de utopias políticas ou sucessos artísticos. Já não existe mais sucesso ou fracasso. Só existe a gente. Eu. Não há mais necessidade de ser um crônico e trágico fracasso para que alguém venha me consolar como papai e mamãe nunca fizeram. Ou abraçar-me e ouvir-me. Ainda não cheguei ao fim. Ainda desejo um pouco mamãe e papai. Ainda sinto necessidade de sentir. Já terminei com meu pai e pouco falta para minha mãe. Ainda tenho sonhos em que me encontro nu no banheiro das senhoras no supermercado com o pau duro e sem lugar para escondê-lo e só desejando que alguma senhora bondosa ou minha mãe intervenham. Mesmo assim é incrível como mudei. Minha voz já está uma oitava mais abaixo porque não estou mais desligado do estômago. Ouço tudo que me dizem pela primeira vez sem necessidade de repetição. Não preciso mais passar horas discutindo com amigos doentes o que está acontecendo no mundo. Já emagreci dez quilos sem pensar nisso, porque já não mais como para evitar as sensações do estômago vazio e solitário como todo o resto de mim. Já não fumo mais pois não suporto o gosto. Não acho mais graça no álcool. A comida tem gosto. Os objetos reais não são mais símbolos que despertam pensamentos e aumentam a tensão. Um policial é apenas um policial e não meu pai. Não quer dizer que goste mais deles. Simplesmente não me fazem mais raiva. O oceano é apenas o mar e não o pai e a mãe da vida. As tetas já são quase apenas tetas. Uma boceta já é quase apenas uma boceta. Não são mais os símbolos que eram e dentro em pouco não serão mais nada. Já estou bastante bem para sentir e saber o que é real e não é nada como eu esperava que fosse. Como resultado da terapia, tudo está se tornando literal. Acho graça no dinheiro porque não passa de pedaços de metal que nós trazemos conosco para
trocar por coisas. Agora tudo que e irreal já nada representa para minha vida. É como se as palavras nada mais significassem. Só os sentimentos. Fico achando que o mundo em que vivo é apenas uma cena de arte POP feita de propósito. Fico pensando que estão todos no lugar errado sem saber que estão porque já se adaptaram. Chego a encher de ter que escrever sobre isso já que ninguém se importa. Finalmente já me transformei completamente. O travestismo já é coisa do passado. Toda a minha vida me diziam que a minha sanidade era louca e eu acabei acreditando. Agora acho que os loucos são eles e eu sou o são.
Homossexualismo O ato homossexual não é um ato sexual. É baseado na negativa do sexualismo real e é uma representação simbólica da necessidade de amor por meio do sexo. Toda pessoa realmente sexual é heterossexual. O homossexual geralmente enche suas necessidades com erotismo para parecer muito sexual. Desde que perca o seu companheiro fica parecendo um viciado sem droga. Sem o seu companheiro ele está dentro da Dor que sempre existiu embora desprovida de sexo. O objetivo, contudo, não é o sexo e sim o amor. O homossexual é o mais tenso de todos os neuróticos porque foi o que mais se afastou do seu eu real. A tensão pode levá-lo à bebida, às drogas, ao sexo compulsivo e ainda fica insatisfeito. Muitos homossexuais que atendi queixavam-se de sintomas psicossomáticos. A violência que vemos nos homossexuais é o resultado da autonegação. Toda pessoa que não pode ser o que é fica muito zangada. Eu defino o homossexualismo como todo ato entre duas pessoas que é experimentado como se ocorresse entre membros do mesmo sexo. Se um homem fez amor com uma mulher, mas durante o ato está totalmente envolvido ruma fantasia sobre homens, então eu diria que a experiência é homossexual. Quando alguém realmente faz amor com uma pessoa do mesmo sexo, isso significa que ele está mais totalmente envolvido no comportamento simbólico. Não há split ou qualquer fragmento seu que o leve para o heterossexualismo. Ele desistiu da luta e torrou-se mais completamente o que não é. Há homens e mulheres com casamentos homossexuais que não reconhecem o fato. Um homem afeminado pode escolher uma mulher masculina para esposa sem dar-se conta que está realmente fazendo amor com um homem. Há alguma espécie de radar que junta essa gente. O homem que sofreu a falta do amor do pai e que não quer reconhecer seus impulsos homossexuais, pode então escolher uma mulher masculinizada, e deixará a ela o papel masculino do casal. O ponto é que o neurótico pode transformar qualquer um naquilo que ele não é. Assim, um homem pode transformar uma mulher em homem no seu espírito da mesma maneira que
transforma o policial no pai ou a professora na mãe. O que manda é a necessidade. Todo aquele que fantasia durante o sexo está mais perto de seus sentimentos do que quem representa a fantasia. Ela, pelo menos, indica o reconhecimento mental de uma necessidade, ou mais corretamente, o reconhecimento de um símbolo da necessidade. Dar vida a isso significa a total supressão da necessidade e seus símbolos. Minha experiência indica que o homossexualismo pode ser o resultado de qualquer número de permutas na interação da família. O menino homossexual pode ter um pai fraco, um pai tirano ou nenhum pai. O que importa é que ele sente necessidade de um pai amoroso. Não há razão para ir esmiuçar as específicas relações do menino. O que é preciso conhecer são as necessidades. É ela que está sendo representada no homossexualismo. Muita coisa depende da própria criança. Se ela é naturalmente atlética isso pode ser o tipo preferido pelo pai, e o contrário também pode acontecer. Se a mãe for muito carinhosa, a criança pode ficar agarrada com ela, mas se for fria já ela poderá agarrar-se com o pai. Não há constelação de família que leve ao homossexualismo. Um menino que tenha um pai bêbado e brutal pode detestar tudo que seja masculino, ao passo que um outro com o mesmo pai talvez prefira tornar-se um homem digno em oposição ao pai. Se a mãe odiar os homens isso poderá fazer a filha partilhar da mesma ideia como também se voltará contra as mulheres em geral se a mãe for de natureza odienta. Não existe uma fórmula para explicar as neuroses. O que precisamos compreender é a reação íntima da criança ao que está acontecendo. O comportamento que resulta na criança geralmente não é uma decisão consciente bem pensada. Vão-se-lhe acrescendo outras experiências para torná-lo na imagem desejada para satisfazer as necessidades reprimidas dos pais. Isso significa em termos práticos que ela deve ser o que os pais desejam para que haja paz em casa. Uma vez que a criança não pode compreender que seu pai é sádico ou que sua mãe é lésbica, ela começa a acreditar que tudo que faz está errado. Pode ir repudiando cada vez mais suas inclinações naturais até o dia em que for um completo invertido. Muitos homossexuais parecem não perceber o óbvio. Eles estão procurando substitutos. Muitos fazem a apoteose do amor homossexual como o único e verdadeiro amor, e citam então os gregos como prova. Mas se trata de amor irreal praticado por pessoas irreais. O que dá força à busca do sexo pelo homossexual em toda a sua intensidade é a necessidade de sentir-se amado afinal e assim terminar com a incômoda tensão.
Um ex-homossexual assim se expressou: "Cada novo contato sexual deixavame sempre mal satisfeito sem que eu soubesse por que. Pensei que só queria um pênis, quanto maior melhor, até o dia em que consegui. Depois queria cada vez mais. Depois de perceber como queria meu pai, eu vi então que não era um pênis o que eu queria. Acho que fiquei com a mania de gritar porque não conseguia gritar pelo sacana." Disse esse paciente que o seu comportamento homossexual, que começou muito antes dos vinte anos, era um grito constante chamando uma coisa que nunca veio e que era a ajuda dos pais. Se chegarmos à conclusão que o homossexualismo, na maioria dos casos, é essa necessidade de amor dos pais, podemos então dizer que o objetivo do homossexualismo é o heterossexualismo. Não creio que essa afirmativa seja simplesmente semântica. Significa que o objetivo de todas as neuroses é a eliminação de nossa Dor para então nos tornarmos pessoas reais e sensíveis. Quando a dor desaparece, seria de esperar que desaparecesse também o homossexualismo, e é o que acontece. O que isso indica é que nenhuma quantidade de atos heterossexuais pode alterar a condição homossexual até que a Dor seja sentida. Não adianta o sexo com dezenas de mulheres para fazer desaparecer a necessidade desesperada que alguém sinta de seu pai. Isso significa que não há carinho de espécie algum, da parte de homens ou mulheres, no momento presente, que possa alterar uma aberração sexual. O que o homossexual pode experimentar quando é beijado por uma mulher é uma coisa simbólica, é o amor de seu pai. Os beijos não chegam para tanto, sejam eles de mulher ou de homem. Podem, isso sim, piorar as condições no homossexual escondendo temporariamente a sua necessidade do pai. Os carinhos de mulher, portanto, impedem que ele sinta a sua Dor que é a única coisa importante para ele tornar-se heterossexual. O homossexual ainda teria necessidade do amor de um homem se durante sua infância tivesse contado com o amor de sua mãe? Eu acredito que não. Precisa do amor masculino porque foi privado do amor dos pais. Busca o amor do homem porque, por uma variedade de razões, a luta começou quando não conseguiu o amor do pai. Mesmo que um esplêndido e amoroso padrasto surgisse de repente na vida de um rapaz entre 13 e 19 anos, eu não acredito que isso faria diferença. Se o passado do rapaz tivesse- o obrigado a privar-se do que precisava para sobreviver a um pai sádico, por exemplo, então esse padrasto por mais amoroso que fosse já pouco poderia fazer. Isso significa que o rapaz continua a sofrer as dores Primais embora já agora viva num ambiente feliz. Esse ponto é confirmado em outras áreas além do homossexualismo. Os pacientes cujos pais se tornaram mais carinhosos com o correr dos anos ainda não conseguem desmanchar a tensão e a neurose causadas
por sofrimentos anteriores. O passado está sempre atravessado no caminho do presente. Se alguém pudesse sentir plenamente o amor no presente, isso significaria que ele poderia sentir plenamente. Mas sentir plenamente, para o neurótico, significa sentir primeiro a Dor pois é o que logo surge quando ele sente. Então, depois de sentir a Dor ele pode aceitar todo o amor presente. Enquanto houver velhas privações, elas acionarão os comportamentos destorcidos, pervertidos e simbólicos. Os casamentos homossexuais, por exemplo, podem durar anos. Os dois podem parecer satisfeitos e até mesmo sentir amor, mas continua a existir um alto nível de tensão e homossexualismo (neurose). Por quê? Simplesmente porque os amantes homossexuais estão satisfazendo-se apenas simbolicamente, sem qualquer realidade. Cada um está querendo conseguir do outro 41 o amor do pai. Desde que sintam a necessidade real cessa logo a procura simbólica . O homossexualismo não é uma doença especial e sim apenas um caminho diferente para a satisfação de uma necessidade reprimida ou insatisfeita. Quanto a "andar direito" sem solucionar a neurose, isso só serve para aprofundar a mentira. Significa pretender desistir da necessidade do amor paterno, e ninguém pode fazer isso enquanto a necessidade continuar a existir. A única forma para livrar-se dessa necessidade é senti-la.
Identidade e Homossexualismo Se uma pessoa não pode ser o que é, ele terá que sair em busca de sua identidade. Estará de antemão condenado a não encontrá-la já que nada mais é senão o próprio eu que não conseguia exprimir-se. Assim, a busca da identidade é um empreendimento neurótico levado a cabo por gente sem sentimento que geralmente precisa encontrar alguém ou alguma coisa além deles mesmos para lhes dizer o que ou quem são por dentro. O paciente pós-Primal, por exemplo, já não pode sofrer crise de identidade. Ele sente, e portanto não tem razão para querer saber quem é realmente. A Teoria Primal afirma que somente quando não tem licença de ser ela mesma é que a criança sente necessidade de copiar, conscientemente ou não, os comportamentos, os ideais, as atitudes e maneirismos de outros. Uma criança educada por pais normais não procura identificar-se com eles. Terá seus atributos próprios. Eu acredito que um menino que nasce e é criado somente entre mulheres não se tornará feminino por isso. Desde que seja amado e tenha liberdade de ser o que é, 41
Os casamentos homossexuais são geralmente instáveis simplesmente porque são simbólicos arranjos que não podem satisfazer os interessados durante muito tempo.
ele será bem masculino, mas se for criado por mulheres neuróticas ele provavelmente tornar-se-á feminino. As pessoas que estão sempre duvidando de sua identidade são aquelas que tinham que mudar a sua personalidade para agradar aos pais e conseguir deles alguma coisa que parecesse amor. Sempre que são forçadas a fingir em lugar de serem o que são isso só serve para lançar a confusão quanto às suas identidades. Nós só podemos ser quem somos. Uma implicação da Teoria Primal quanto à identidade é que um pai ou uma mãe sozinhos, que sejam seres humanos amorosos, podem muito bem criar um filho ou uma filha sem dificuldades. Uma mulher pode criar um filho muito bem sem precisar da presença de um pai, e sem que isso venha torná-lo afeminado. É melhor a falta de um pai do que a presença de um que seja frio e brutal. Eu não acredito que haja qualquer diferença importante, em termos de patologia, entre um menino que tenta imitar um machão ou um outro que tente identificar-se com mulheres. A diferença entre o homossexual ativo e o passivo parece estar somente na direção que tomam para fugir da Dor e não nos seus níveis. Quando o ativo começa a adotar atividades másculas como as motos, barba crescida, esportes pesados, isso indica que ele ainda não sente ser ele mesmo e está procurando identificar-se com o que pensa ser masculino. Talvez ainda esteja procurando o amor do pai e tente então ser o homem de verdade que ele tanto desejava. O passivo talvez tenha se desligado do pai para copiar tudo que é de sua mãe. De formas menos óbvias, muitos homens e mulheres que não conseguem sentir-se adotam as imagens ou roupagens daquilo que querem ser. A necessidade de projetar uma "imagem'' pode ser uma indicação de sentimentos íntimos bem diferentes, e vamos encontrar muitas vezes aberrações sexuais nesses sentimentos sepultados. A minha experiência clínica indica que embora um homem mostre uma boa aparência masculina, a tentativa para mostrar-se "o machão" serve para encobrira impotência ou as fantasias e terrores homossexuais. Um paciente meu, que antes era barbado, disse-me que "a luta era manter a barba bem grande para eu sentir-me como homem, mas agora já não preciso mais dela. Eu antes não compreendia, mas agora tudo está claro para mim."
Bissexualismo e Homossexualismo Latentes Desde os tempos de Freud, diversas escolas de psicologia vêm afirmando a básica bissexualidade do homem. Afirmam que todos nós somos parte heterossexuais e parte homossexuais. O objetivo de um bom sistema de defesa, então, seria suprimir as latentes tendências homossexuais e organizar boas relações
com o sexo oposto. Assim, essas teorias acreditam que o homossexualismo adolescente pode ser normal até que o indivíduo chegue ao que é chamado de estágio genital de desenvolvimento. Há algumas teorias que acham normais os sonhos homossexuais. São muitos os que foram privados do amor de pai e mãe e isso redunda numa necessidade de amor de qualquer dos sexos. Essa necessidade é tão universal que somos tentados a considerar o bissexualismo como um fenômeno geral. Eu não acredito que haja uma básica tendência genética homossexual no homem. Se isso fosse verdade, o homossexual curado continuaria a sentir as mesmas tendências, e não é isso o que acontece pelo que tenho constatado com os meus pacientes depois de passarem pela Terapia Primal. A julgar pela maneira como combinam as partes masculinas e femininas o mais sensato parece ser somente o heterossexualismo desde que se trate de um corpo são. Quando consideramos que o sexo entre homem e mulher e a essência básica da vida, torna-se difícil encontrar um raciocínio lógico para justificar o tema do bissexualismo. O homem que se sente atraído para outros homens certamente não teve o amor de seu pai de que tanto necessitava, mas não se dava conta disso porque odiava o pai que havia abandonado a família quando ele tinha dez anos. Podemos dizer que suas necessidades homossexuais latentes eram a parte mais real dele naquela ocasião e seu comportamento heterossexual era o menos real pois apenas fingia desinteresse pelos homens. O que é latente no neurótico, então, são as necessidades sem solução. Desde que fossem satisfeitas deixariam de existir de qualquer forma. Por exemplo, se uma moça não tivesse tido na sua infância o calor e os carinhos de sua mãe, nós diríamos que ela teria necessidades latentes de amor feminino. Se, mais tarde, ela for seduzida por outra mulher bastante carinhosa as tendências latentes seriam transformadas em comportamento ostensivo. A diferença entre o homossexual ostensivo e o latente, então, seria apenas o ato e não a necessidade. O que evita o ato em muitos homossexuais latentes pode ser o medo, a repulsa social, crenças religiosas, etc. Pode acontecer que não apareça ninguém no momento crítico para seduzir a moça homossexual latente, e nesse caso suas tendências continuariam latentes. Algumas vezes essas tendências são percebidas ao passo que em outras continuam completamente ignoradas para a pessoa que poderá estar muito ocupada mostrando o estado latente em lugar de senti-lo. Nas pessoas cujo meio social condene o homossexualismo é bem possível que a condição latante nem seja notada e ela permaneça escondida e criando tensão. Este conceito de latência pode ser importante para compreendermos os comportamentos no vício de drogas e no alcoolismo onde o índice de inclinações homossexuais latentes é extremamente alto em ambos os sexos. O desejo incontido para alguma espécie de alívio físico como a bebida parece ser inevitável naqueles
que fogem às tendências. O homossexual ostensivo pelo menos cedeu aos desejos aparentes e encontra, de tempos em tempos, aquilo a que enama de amor Nesse sentido, ele aceita plenamente a sua irrealidade. O bêbado e o viciado pagam um alto preço, evidentemente, quando se recusam a reconhecer as necessidades. A necessidade para alguma espécie de amor de parte de alguém do mesmo sexo pode também ser tão forte tanto no homossexual latente como no ostensivo. Não adianta fingir que isso não existe. O paradoxo do alcoólatra é que ele muitas vezes usa o amor pela bebida como sinal de sua masculinidade. A bebida só serve para mascarar suas necessidades até que ele chegue ao ponto de não sentir mais dor. Pode ser nessa hora, quando não sinta mais o medo, que ele afinal chegue a fazer aquilo que já vem querendo desde anos, e que é agarrar-se a um homem. Podemos dizer que a diferença essencial entre o homossexual latente e o ostensivo é que o latente já foi convencido a agir dentro de seu sexo. Suas ideias foram mudadas e já nem mesmo se parecem com aquilo que sente em seu íntimo. Acaba acreditando em sua própria mentira, mas não encontra jeito para espantar os sentimentos latentes da mesma forma que espantou as ideias . Embora julgue que já não precisa mais de carinhos, o alcoólatra sente necessidade de tirar isso da garrafa até que sinta algum alívio momentâneo. Pode sair de casa todas as noites em busca de um bar onde possa afogar a Dor sem chegar a perceber que é presa dela, mas se o privarmos desse comportamento simbólico isso só servirá para exacerbar a neurose. Eu acredito que se todos reconhecessem as tendências latentes que existem em alguns de nós dentro do seu verdadeiro significado da necessidade de amor dos pais e não de estranhas perversões, poderíamos conseguir muito para melhorar alguns críticos problemas sociais que nos assolam.
Discussão Eu acredito que seja essencial nós reconhecermos o comportamento sexual anormal como parte de uma neurose total e não como algum ato especial e bizarro desligado daquilo que a pessoa realmente é. Mas já não acredito que seja preciso um especialista em homossexualismo para tratar disso, da mesma forma que fosse preciso recorrer a especialista para tratar qualquer outra maneira de fugir à Dor. O tratamento do homossexualismo não significa conseguir um comportamento adequado. Para mim ele significa conseguir o verdadeiro comportamento. Talvez tenhamos tentado usar categorias e abstrações sem perceber que estávamos tratando de pessoas que já haviam encontrado meios para se protegerem dos seus sofrimentos. Muitos homossexuais deixam de recorrer à psiquiatria por julgarem que nós,
os profissionais, consideramos o seu mal sem cura, como se aquilo fosse alguma doença especial que exigisse conhecimentos também especiais. Eu não o considero diferente de qualquer outra espécie de neurose, exceto em grau de patologia. Isto significa que se nós podemos curar uma neurose, então devemos poder também curar todas elas. A psicoterapia já adotou um bom número de métodos para o tratamento das aberrações sexuais. Em vista do fracasso da terapia de insight, nós muitas vezes tentamos apenas ajudar o homossexual a aceitar a sua doença e viver com ela mais confortavelmente. Um dos atuais métodos de tratamento que parece agradar aos profissionais é o de condicionamento. Um dos que já mostramos é feito com a apresentação de fotografias de homens nus aos homossexuais ao mesmo tempo que lhe aplicam um choque elétrico bem fraco. O objetivo é despertar a aversão ao hábito. Um outro método é incentivar o homossexual à prática de atos heterossexuais ao mesmo tempo que ele se convence que não tem medo do sexo oposto. Há uma aparência de cura em alguns casos porque os métodos de condicionamento alteram alguns comportamentos anormais. Isso ajuda a complicar o que entendemos como cura, isto é, se olharmos apenas para o comportamento ostensivo. Se investigarmos por baixo do comportamento e medirmos o nível de tensão que continua a subir, nós verificaremos que apenas modificamos o hábito do sexo para enquadrá-lo mais no sistema de valores do terapeuta. É melhor tratar o homossexual latente antes que ele tenha tomado gosto. Logo que tenha encontrado satisfação em tal substituto, o mais provável será ele acreditar que finalmente encontrou o que deseja e já não quererá ser ajudado. Mas mesmo que tenha sido homossexual durante alguns anos, eu ainda acho que ele pode ser tratado, e a hora mais certa para começar a cura será quando tiver se separado do seu companheiro de sexo. Ele sofre com a sua falta e pode entregar-se à bebida, pode sair para outra cidade, sempre tentando fugir da sombra que o persegue. Eu creio que o homossexual pode ser tratado com sucesso na hora em que para de fugir e sente então a sua Dor. O homossexual é o eu simbólico sem quaisquer alicerces básicos. Evapora-se com a Dor já que era apenas uma fantasia. Eu não acredito que crianças pequenas diferenciem entre amor masculino ou feminino. Tudo que desejam é o calor humano e não as carícias especiais de uma mulher ou os abraços de um homem. Na minha opinião, o que causa a neurose é a luta para tornar-se amado que faz surgir todas as aberrações. Se a criança pudesse ser espontânea em seus carinhos e no seu comportamento geral com os pais, tenho a certeza que não precisaria de fingimentos.
Elizabeth Quando conheci Elizabeth, ela era lésbica. Tinha toda a aparência de um homem até mesmo no andar. Era viciada em metedrina. Transformou-se completamente, e hoje é funcionária da Justiça encarregada de vigiar os viciados que conseguem liberdade condicional e assim está ajudando aqueles que tão bem conheceu antes. A sua solução para a frigidez pode servir a muita gente vítima desse mesmo problema já tão comum. Meu nome é Elizabeth. Nasci numa cidade do Sul e tenho uma irmã gêmea. Tenho vinte e seis anos. Minha irmã é um ano e meio mais moça. Meu pai é professor de engenharia e minha mãe procura ajudar nas despesas da casa fazendo diversos serviços. Tinha quatro anos e meio quando surgiram os primeiros problemas, tanto quanto posso lembrar-me. Parecia ser alérgica a tudo: poeira, penas, flores, peles e alimentos com amido. Quando tínhamos seis anos mudamos para a Califórnia. Nessa altura eu comecei a roubar os níqueis de meu pai para comprar balas. Algumas vezes roubava também dinheiro da mesada de minha irmã e aí então enchia-me de doces. Passava a maior parte do tempo na escola sonhando com fantasias loucas, com príncipes encantados. Durante um curto período, quando tinha sete anos, meus pais levaram-me a um psiquiatra e nessa ocasião minha mãe disse-me que era porque eu estava sempre reclamando que ela não me amava. Alguns anos mais tarde ela disse-me que também era porque eu roubava dinheiro miúdo nas casas de colegas. O diagnóstico do médico foi que eu era uma criança que precisava muito de amor e também com grande capacidade de amar. No quinto ano minha professora incentivou-me para trabalhos artísticos. Adorava pintar cenas dos índios Hopi em cores vivas, laranja, turquesa e vermelho. A maioria era de índias Hopi segurando filhos nos braços. Não conseguia dar expressão aos seus rostos. Quando era pequena, a pintura era a única coisa que eu gostava de fazer. Ganhei alguns prêmios e meus pais matricularam-me numa escola de arte e eu fiquei entusiasmada. Tentaram ensinar-me formas e linhas. Fiquei sem a única liberdade que tinha. Meus pais achavam que eu tinha força criadora e diziam que tudo que eu tocava se transformava em ouro. Eu já não achava mais graça. Era uma chateação. Minhas mãos tornaram-se tensas. Já não faziam o que eu queria. Pensei que teria de ser perfeita para elas me obedecerem. Meus pais passavam todo o tempo que tinham livre fazendo coisas para a casa. As crianças tinham que assumir responsabilidades desde pequeninas. Tinha
sempre o raio do trabalho que éramos obrigadas a fazer. Havia um sistema de quotas para nós. Estávamos sempre arquitetando planos para fugirmos ao trabalho. Quando saía para brincar sempre sentia-me culpada pois havia trabalho ainda por terminar em casa. Nunca cuidei de meu quarto. Era uma bagunça completa. Era de gritar, e era mesmo ele que gritava por mim. Entre os treze e dezenove anos eu tive um número normal de amigos entre moças e rapazes. A verdade era que eu passava mais tempo com as moças do que com os rapazes. Sempre me apaixonava pelas meninas mais populares da escola. A minha melhor amiga era Roberta que era linda mas também fria como gelo. Brincávamos de mulher e fazíamos roupas bem escandalosas. Usávamos soutiens acolchoados e estávamos sempre preocupadas com métodos milagrosos para desenvolver nossos seios. Os que tínhamos eram uma verdadeira humilhação. Fazíamos tudo sempre juntas. Amávamo-nos ao mesmo tempo que odiávamo-nos. Na escola éramos conhecidas como as Gêmeas de Ouro em Pó. Meus pais achavam que minha amizade com Roberta estava me virando a cabeça. Quando fiz quinze anos mandaram-me para fora durante um ano porque minha mãe não podia mais comigo. Uma outra aluna da escola tomou-me sob sua proteção. Éramos as duas ginasianas inseparáveis. As nossas relações posteriores por correspondência, ou breves visitas, sempre foram muito alegres. Quando voltei, meus pais colocaram-me em outra escola esperando que a minha amizade por Roberta arrefecesse, e de fato foi o que aconteceu. No entanto, logo encontrei Janet e passava a maior parte do tempo com tolas palestras intelectuais. Cada qual julgava a outra brilhante e ela dizia que eu era o seu "alter ego" Eu geralmente dava em cima do rapaz mais difícil de conquistar, mas logo que conseguia não demorava a ver-me livre dele. Quando tinha dezessete anos entreguei a minha virgindade porque estava na moda. Não senti nada. No entanto, depois de perseguir-me e de trepar comigo, foi ele quem me deixou. Aí percebi que tinha sido usada. Fiz o que me foi possível para ocultar a mágoa. Com dezoito anos eu estava realmente confusa, perdida e infeliz. Nada havia que me satisfizesse. Uma noite entrei pelo quarto de meus pais e pedi-lhes que me levassem a um psiquiatra e foi assim que durante uns seis meses estive entregue a um que eles escolheram. No outro dia encontrei uma lista que eu fizera uma noite das coisas que queria falar com ele: meu interesse pela semântica sinto-me como se fosse ameba felicidade? desejo de gritar professores não gostam de mim desejo de devorar
— apatia análise de pessoas rapazes mais velhos — homens sou egocêntrica ódio pela sociedade. Nada realmente mudara, a não ser que eu tinha agora quem me ouvisse. Meu pai também estava às voltas com um psiquiatra e afinal meus pais resolveram divorciar-se. Fiquei arrasada. Não podia acreditar. Meu pai tornou a casar. Fui então para uma universidade onde meu pai ia ensinar durante um ano. Lá encontrei mais uma outra "grande" amiga. Bonnie e eu éramos inseparáveis. Ela era doce e etérea e, para mim, era a poesia. Era uma adoração mútua. Quando voltei para a Califórnia as coisas ficaram cada vez piores. Comecei a me afundar. Minha mãe tinha tornado a casar, e não queriam que eu morasse com eles. Minha irmã casara e convidou-me para morar com ela. Já nessa altura eu não queria mais saber de homens. Quando tivera relações com eles não conseguira sentir nada e, além disso, cada vez interessava-me mais por lésbicas. Durante o dia eu vestia-me sobriamente e trabalhava num banco. À noite soltava meus cabelos e ia juntar-me com a turma no bar. Mas também não me entregava completamente às mulheres. Continuava com aquela lésbica que era muito parecida com minha mãe. Fazíamos muitas coisas, mas eu não queria nada da cintura para baixo. Eu não conseguia me adaptar a moças ou rapazes. Falei com minha madrasta que era realmente a única amiga que eu tinha. Ela contou a meu pai e os dois levaram-me à casa do Dr. Janov. Lembro-me bem de nossa primeira entrevista. A todas as suas perguntas a minha resposta era sempre a mesma: "não sei." Resolveram então que eu mudaria para a sua cidade para começar uma terapia intensiva. Tudo terminou muito bem. Consegui um emprego. Parei de sair com moças e passei a sair com homens, mas só que eram geralmente bem mais velhos do que eu. Um deles era professor de filosofia, tinha sido ministro religioso e estava com cinquenta anos. Eu trepava com ele e ao mesmo tempo saía com seu filho de vinte anos. Aí comecei a pensar que poderia viver por minha conta e mudei-me para Los Angeles. Morei algum tempo com minha mãe e meu padrasto, mas logo encontrei emprego e mudei-me para meu apartamento. Quase todas as noites de domingo eu tinha crises de choro. Sempre me sentia despreparada para a segunda-feira. Não dava conta de meu serviço e em lugar disso estava sempre passeando e visitando minha irmã ou amigos. Uma de minhas melhores amigas era Hildie que eu conhecia desde os seis anos. Era a minha crise periódica de estabilidade. Também tinha um namorado platônico, Raymond. Passeávamos muito escalando montanhas, andando de carro, comendo fora ou indo a cinemas. No que me dizia respeito, o sexo estava fora do programa. Não me sentia atraída para ele nesse sentido. Durante seis meses frequentei um psiquiatra. Só ele falava e pregava e eu raramente abria a boca. As coisas não iam bem. Quando soube que o Dr. Janov ia mudar-se para Los Angeles eu resolvi procurá-lo. Entrei num grupo.
Eu tinha o hábito da pílula que meu médico havia receitado para eu não engordar, quando tinha dezessete anos. Tomava uma por dia durante cinco dias e nos fins de semana esbaldava-me na comida. Disse ao Dr. Janov: "Eu tomo as pílulas para não sentir a vida... sinto menos com elas ... sou tão sensível à vida que não posso suportá-la. Preciso da pílula para amortecer a vida. Com a pílula eu sinto-me morta. A música é muito metálica. Sinto-me dentro de uma casca." Todas as manhãs eu refletia que apenas atravessaria aquele dia sem vivê-lo. Com a pílula eu conseguia manter o meu peso e comer o que queria, sem chegar a sentir o que acontecia comigo. E isso durou sete anos. Uma manhã eu verifiquei que não poderia atravessar o dia sem a pílula. Estava viciada. Bem, eu sabia que Art estava trabalhando na sua nova ideia de Primal. Senti que ele poderia ajudar-me e larguei a pílula. Algumas semanas depois larguei os cigarros. Passei a ver Art algumas vezes sozinha e ele parecia estar me preparando para alguma coisa. Na tarde de 17 de setembro de 1967 eu escrevi: AJUDE-ME ASENTIR A DOR... ESTOU DOENTE PORQUE NÃO CONSIGO SENTIR NADA... TENHO A CERTEZA QUE PELO MENOS A DOR ME MOSTRARIA QUE AINDA ESTOU VIVA ... PORQUE REALMENTE SINTO-ME MORTA. No grupo naquela noite, eu estava lembrando uma situação que me acontecera algumas noites antes. Raymond estava me fazendo uma massagem no pescoço e nos ombros quando eu lembrei-me como sentira falta do carinho de meus pais. O médico pediu-me que tomasse parte num pequeno psicodrama com Steve, um rapaz do grupo. Deitei-me no chão de barriga para baixo. Steve começou a me contar uma história para dormir ao mesmo tempo que massageava-me os ombros. Eu queria relaxar-me para apreciar, mas fiquei tensa. Quando ele me acariciou os cabelos e a parte de trás do pescoço, eu fiquei excitada mas tive medo e esquiveime. Ele continuou a acariciar-me os cabelos e o pescoço e a tensão aumentou. Então olhei para as mãos de Steve e vi que eram as mãos de meu pai e então disse, "Meu Deus, são as mãos de meu pai... estou na cama com os lençóis amarrotados." E aí senti-me tão pequena como se tivesse seis meses e era meu pai quem me acariciava... fiquei tão excitada que pensei ter um orgasmo... então suas mãos me deixaram e eu perdi o controle e comecei a cair para dentro de mim mesmo ... pensei que ia cair para sempre. Via relâmpagos de luzes vermelhas e brancas junto com barulhos tremendos... eu estava explodindo em milhões de pedacinhos... sabia que ia morrer... aquilo era o fim ... estava sendo eletrocutada... e então, lá do fundo do meu ser, encontrei forças para gritar... ao mesmo tempo que gritava eu percebia que rolava e contorcia-me pelo chão... derrubei alguma coisa ... aí parei e disse que queria chegar ao orgasmo ... outra vez senti dentro de mim e senti meu corpo sendo eletrocutado e gritei e rolei pelo chão... Depois fiquei de costas e senti um vento fresco passando por cima de mim. Abri os olhos e olhei em volta ... aí falei calmamente "foi a Dor". Estava viva. Tinha sobrevivido. Tinha conseguido quebrar a casca e estava agora dentro de mim mesma.
Mais tarde percebi que aquilo fora a minha Cena Primal. Quando bebê, ninguém me aconchegava. Mas, no entanto, meu pai diz-me que costumava acariciar-me quando eu era bebê. Foi exatamente aí que eu desliguei. Ninguém me segurava ao colo a não ser meu pai para "acariciar-me" como se eu fosse uma mulher. A Dor terrível era porque eu precisava ter colo para poder sobreviver. Em lugar disso eu era provocada por meu pai e levada ao ponto de excitação, e então era abandonada. Quando se é bebê, a gente precisa de muito colo. Desliguei porque se ficasse ali mais tempo e sentisse eu teria explodido em pedacinhos. Em lugar disso eu dividi- me. Daquele dia em diante tornei-me tensa. Tinha desligado tão completamente que nem mesmo sentia a minha tensão. Tornei-me o símbolo daquilo que era ainda muito pequena para sentir — fragmentada. Na manhã seguinte estava supersensível a tudo. Minhas pernas ainda estavam tensas e mal conseguia ter-me em pé. Via bem onde estava. Queria falar e andar mais lentamente. Já não tinha mais pressa. Nada tinha a dizer nem lugar nenhum para ir. Sentia-me atordoada por tudo aquilo e uma tremenda pena da luta perdida. Toda a minha vida tinha sido a luta para conseguir o amor de meus pais e eu a representara através de meus amigos. Tudo era um enorme fingimento e falsidade. Meu emprego no hospital, atendendo ao telefone e marcando horas para as velhas gritarem, tornou-se insuportável e eu o abandonei. A primeira Primal que começou a fazer sentido para mim foi quando eu tentei regredir para sentir aquela primeira Dor mas nada encontrei. Sim, minha vida era vazia e eu não tinha nada. Era tudo fingido. Para não me sentir morta tornara-me dramática. Agora já o meu rosto não podia mais fazer aquelas contorções. Sentia-me viva pela primeira vez na vida. Comecei a escrever as mudanças que se operavam em mim. Tudo tornava-se real. As cores eram vivas. As paisagens pareciam quadros. Já não via o mundo através de um telescópio. Meus ouvidos estavam por demais sensíveis e não podia aguentar muito barulho. Minhas mãos estavam soltas pois já não precisavam mais agarrar-se em nada. Que liberdade! Estava realmente livre. Escrevi "Estou começando a desabrochar. Hoje eu estou saindo de meu casulo! Gosto de nascer. Há tanta coisa para aprender... mas o mais importante é que agora é agora. Ontem já era. Amanhã ainda não chegou. Agora é agora. Sentia-me com cinco anos de idade. Muito novinha. Escrevi: "Já posso engolir porque minha garganta já está ligada." As Primais começaram a suceder-se. Sentia o frio de meu corpo. O frio vinha de minha espera pelo calor de meus pais. Depois dessa Primal minha circulação aumentou. As mãos e os pés estavam vermelhos e quentes pela primeira vez na minha vida. Houve muitas Primais em que desejava meus pais. Art obrigava-me a chamar por eles e quando chamava a sensação enchia-me de como eu desejava que eles viessem mas eles não vinham. Aliás, essa sensação de querê-los perdurou até o fim do tratamento. Sempre que sentia a vontade, era num nível mais profundo e
mais real. Quando sentia o que realmente queria já não precisava mais entulhar-me de comida para encher o vazio de não conseguir o que queria. Era por isso que eu comia tanto naqueles fins de semana. Nunca estava satisfeita. Porque não era a comida que eu queria. Também nunca sentia o estômago e assim não sabia se estava cheio ou não. Essa terapia transforma alguns sonhos em realidade. Quando era glutona, eu costumava sonhar que ia sempre ser esbelta sem esforço. Nunca pensei que conseguiria livrar-me daquela mania de comer. Agora eu como o que quero e quando quero e tenho um corpo bem bonito. Eu era frígida. Gostava de beijar, abraçar, apertar, mas nunca sentia nada na vagina. Durante algum tempo nessa terapia eu estava saindo com um rapaz bem fogoso, mas aquele meu antigo padrão era sempre o mesmo. Quando trepávamos eu queria muito chegar ao fim mas não conseguia e continuava desejando intensamente um orgasmo. Art disse-me que eu pensava que o sexo era amor e que eu não queria sexo. Ainda queria papai. E era verdade. A saudade de meu pai era um sentimento que me vinha até a raiz dos cabelos. Estava poupando-me para papai. Para ele eu me conservaria num congelador. E então senti aquele calor na vagina. Dois dias mais tarde um outro sonho tornou-se realidade. Tive um orgasmo completo. Foi uma beleza. Senti-o em todas as células de meu corpo. Foi delicioso. Quando terminou tudo eu senti-me igual por fora e por dentro. Uma imensa serenidade. Sei agora que se não fosse aquilo teria continuado frígida toda a minha vida. Teria continuado inteiramente assexuada com Raymond. Meu pai e Raymond eram muito parecidos, só que eu compreendia Raymond e não conseguia compreender meu pai. Raymond tinha muitas atenções comigo e meu pai não. Raymond até mesmo lia para mim como papai costumava fazer quando eu era criança. Raymond era um pai liberal. Ele satisfazia as minhas necessidades e eu não precisava satisfazer as dele. Toda a minha vida eu receara meu pai. Era um completo estranho para mim quando eu era criança. Nunca sabia o que esperar dele. Só sabia que não devia incomodá-lo. O mais difícil para eu desistir de meu pai foi que ele era um homem basicamente bom. Um homem muito humano, em princípio. Houve algumas Primais violentas. Uma foi a sensação horrorosa que meus pais tinham me matado. Eles estavam mortos e não queriam que eu vivesse. Outro foi a que eu era escrava de meus pais. Depois tinha tremendos sentimentos de indignação e raiva contra minha mãe. Ela não brincava comigo. Eu vivia implorando. Queria que me segurasse ao colo e que me amasse. Agora já eu sentia a razão de haver escolhido minhas amigas. Queria que elas me amassem porque já tinha sepultado meus sentimentos por minha mãe. Julgava-me secretamente tão feia que me rodeava de moças bonitas. Em lugar de reconhecer a minha falta de sentimento com minha mãe eu entrei em competição com Roberta que era fria, bela e tola como minha mãe. E com todas elas era a mesma coisa, só que eu nunca ficava satisfeita pois elas afinal não eram minha mãe. Já que me sentia pouco feminina, eu procurava mulheres ainda menos
femininas do que eu. Tentei arranjar-me com mulheres macho. Com Stacy e Mary eu me sentia "mulher". Elas eram mulheres que me desejavam e queriam que eu fosse feminina. Minha mãe era sempre muito fria comigo a não ser quando entornava umas bebidas. Então abraçava-me e beijava-me com tanto sexualismo que sentia nojo. Eu ainda estava na Terapia Primal quando ela telefonou-me às duas e meia da madrugada apenas para dizer que me amava e sentia muita falta de mim. Fiquei assombrada e desliguei sem uma só palavra. No dia seguinte eu percebi então o que era ser lésbica. Minha mãe estava provocando-me para eu amá-la. A mãe quer ser amada pela filha. Minha mãe nunca me deixou sentir-me bonita ou feminina. Tentou fazer de mim sua mãe. Não me amava mas queria que eu a amasse. Então, ser alegre é quando a filha rejeita a rejeição da mãe indo para uma outra mulher para que se amem mutuamente começando assim uma representação simbólica. A diferença entre a lésbica ativa e a passiva é o grau de feminilidade desprezada. Uma ainda luta para sentir como mulher enquanto a outra procura ser homem. Uma psicótica minha amiga nessa última categoria escreveu um poema em prosa que mostra bem o que é o lesbianismo. O seu título é Gente Frágil: Este é o poço do cianureto. Esta é a fonte onde bebem os perdidos na tentativa de saciar sua sede, pensando que a busca terminou ... e o néctar transforma-se então em ácido na boca suja. O orvalho se evapora na flor que se estiola em seu caule, ou então é apanhada para ser atirada fora. A violeta torna-se uma planta de estufa, uma coisa que só vive em vasos, e perdendo a timidez que tinha na floresta ela assume o brilho da cidade... Este é o poço, este é o limbo do líquido, e o líquido são as lágrimas, e o poço é cavado no abismo de vidas despedaçadas ... Nós cantamos o amor e lembramos a primeira paixão. Sim, sim, vemos aqueles olhos que pareciam não ter fundo e que eram claros como um lago tranquilo. Sentimos outra vez a tremura e o ardor daqueles lábios que tínhamos medo de tocar... e sentimos a excitação. E é em vão que numa busca sem fim tentamos chegar à excitação de nosso primeiro amor...
Agora somos fortes — somos brilhantes — e frágeis e nossa é a superfície brilhante — a gargalhada alegre e farfalhante — o aperto de mão descuidado e as lágrimas que vêm depois. Os anos passam rápidos — e somos nós que conversamos — nós que sepultamos os sonhos de nossa juventude. Para alguns de nós o poço já secou, e somente restam os cristais salgados. E esquecemos isso... até que algum golpe solerte reabra a velha ferida para nos fazer sentir a ardência do sal ... É sim, nós somos gente alegre ... somos vivos, espertos ... e também somos frágeis! Já para o fim da terapia eu experimentei o ácido. Comecei a sentir algo muito profundo e apaguei. Apagar é realmente quando a gente se desliga de seus sentimentos. Fiquei louca. Foi um inferno verdadeiro! Senti-me como se estivesse em Sem Saída de Sartre e não conseguia descobrir a entrada para voltar à realidade. No dia seguinte quis matar-me. Não foi bem querer matar-me e sim porque, na primeira vez em minha vida, eu sentia-me terrivelmente só e apavorada. Já não podia tirar mais nada do mundo. Tinha medo de sentir-me sozinha completamente porque isso poderia destruir-me, mas, ainda assim, eu também tinha medo que impulsivamente poderia destruir-me se verificasse que não
aguentava mais. Então fui ficando só aos poucos. Durante semanas sentia-me louca. Não conseguia distinguir o real do irreal. Uma noite, no grupo, vi-me no chão querendo com todas as células de meu corpo. Bem lá do fundo de mim eu ouvia o chorinho de criança. Senti-me com dois anos. Nunca sentira assim tão plenamente, exceto o orgasmo. E então senti vertigem. O desequilíbrio continuou até que voltei a sentir todo aquele desejo. Houve algumas mudanças físicas que espero sejam permanentes, e que ocorreram durante toda a Terapia Primal. Minhas alergias desapareceram completamente. Minha pele tornou-se mais macia e as espinhas sumiram. Meus seios ficaram mais fartos e os bicos mais maduros. Meus músculos estão finalmente relaxados. Valerá a pena? Será que sinto-me realmente diferente depois de tudo isso? Bem, é a diferença entre a vida e a morte, só que eu não sabia que estava morta até que tornei-me viva. Mas agora que estou viva nada mais tenho para justificar a vida. Entrei na terapia para encontrar uma nova auto-imagem e só encontrei a mim mesma. O que é bom quanto à realidade é que ela nunca deixa ninguém mal.
18 - OS FUNDAMENTOS DO MEDO E DA RAIVA
A Raiva Um dos mitos a respeito dos seres humanos é aquele que acha que por baixo de nossos plácidos exteriores todos nós somos um ebuliente caldeirão de fúria e violência mantido e controlado somente pela sociedade. Quando falha o sistema de controle, explode a violência inata do homem e o resultado são as guerras, os holocaustos. No entanto, eu estou sempre espantado pelo que encontro de falta de agressividade e violência nas pessoas quando se lhes tiram as chamadas fachadas civilizadas. Os pacientes Primais nunca são raivosos apesar de expostos e indefesos. Não há raiva. Talvez seja o próprio processo de civilização que torne os seres humanos tão faltos de civilização entre eles, trazendo como resultado a frustração e hostilidade. Ser civilizado significa possuir o controle de nossos sentimentos, e isso pode ser a origem da raiva interna. Eu acredito que o homem raivoso é o que não foi amado, é o que não conseguiu ser o que era. Ele tem geralmente raiva dos pais que não o deixavam em paz e dele mesmo por continuar com a negação de si mesmo. Mas a necessidade é fundamental e a raiva é secundária, já que é o que acontece quando as necessidades não são atendidas. Quando olhamos para o processo Primal, nós vemos uma sequência que é quase matemática na sua falta de variação. Nas primeiras Primais há geralmente raiva, no segundo grupo aparece o sofrimento e no terceiro a necessidade de amor. O maior sofrimento é geralmente a necessidade insatisfeita. A sequência Primal é a vida de trás para diante. Primeiro, na infância, havia a necessidade de amor, depois o sofrimento por não consegui-lo e finalmente a raiva para aliviar o sofrimento. O que geralmente acontece com o neurótico é que ele saltou por cima do primeiro e do segundo e encontrou-se com uma raiva inexplicável. Mas a raiva, como a depressão, é uma reação ao sofrimento e não uma característica fundamental do homem. Algumas vezes é mais fácil a uma criança sentir raiva do que tolerar o terrível sentimento de solidão e rejeição e então ela finge que o sentimento de solidão e de falta de amor é coisa diferente: ódio. Mas os pacientes na Terapia Primal raramente sentem ódio dos pais. Geralmente querem apenas amor e querem saber por que não lhe dão isso. O neurótico depois de crescido tende a pensar que seu único sentimento é o ódio, mas quando chega na terapia ele verifica que o ódio é apenas uma outra cortina que ele lançou sobre a necessidade. Logo que sente a necessidade já quase não resta mais raiva. Nos grupos primais, por exemplo, quase nunca encontramos a troca de hostilidades entre os
seus componentes, como acontece na terapia convencional. Tampouco demonstram raiva pelo terapeuta. O que há é apenas muito sofrimento. A Teoria Primal encara a raiva como um sentimento contra alguém que está tentando destruir a vida. Devemos lembrar que os pais neuróticos estão inconscientemente matando os filhos, num certo sentido, já que estão matando suas verdadeiras personalidades. A morte psicofísica é um processo real em que a vida está sendo retirada deles. O resultado é a raiva, já que sermos alguma coisa que não somos é o mesmo que a morte. Quando o neurótico suprime a necessidade de amor e sente apenas a raiva, ele pode tentar descarregá-la em alvos simbólicos como a esposa, os filhos ou os empregados durante todas as horas do dia. Desde que não estabeleça a ligação certa com a origem de sua raiva ele poderá descarregá-la em formas irreais, as mais incríveis e repugnantes, como cuspir na cara da esposa, simplesmente porque ela duvidou de alguma coisa que dissera. Na Terapia Primal ele sentiu a raiva de nunca haver sido acreditado pelos pais, e isso veio extravasar mais tarde sobre a sua esposa. Se tornarmos a raiva real ela desaparecerá. Até que isso aconteça, muitas explosões de raiva contra as pessoas no presente serão apenas fingimentos. É claro que também há raivas verdadeiras, e que não emanam do passado. Quando alguém faz alguma coisa errada que nos contrarie, a raiva pode ser legítima, mas quando as explosões são diárias o predomínio deve estar no passado. Isso significa que o neurótico está sempre pronto a sentir aquilo que reprimiu antes. O que ficou sem solução na infância irá se infiltrando em tudo que a pessoa fizer mais tarde até que seja resolvido. Acho que é importante diferenciar entre a raiva real e a simbólica. O exemplo seguinte pode esclarecer este ponto. Uma jovem professora que tinha sempre um sorriso nos lábios e maneiras atenciosas veio procurar ajuda para um constante estado de tensão e aperto nos seus músculos. Durante a segunda sessão ela contou como seu pai sempre a criticava, irritava e ridicularizava, e de repente, ficou furiosa e começou a bater no travesseiro durante mais de cinco minutos. Depois que passou o acesso disse-me que nunca poderia imaginar a existência de tanta raiva dentro dela. A tensão, no entanto, persistia. Durante sua quinta visita ela passou a discutir outra vez sobre as injustiças do passado. Começou então a estremecer-se toda violentamente ao mesmo tempo que dava vazão ao seu ódio dizendo como ia estrangular todo mundo, como ia cortar seu pai em pedacinhos por todo o sofrimento que lhe causara sem nunca lhe permitir defender-se, como iria enfiar uma faca na mãe que permitira aquilo e por aí além. Tudo isso foi dito aos gritos em meio de convulsões e gemidos, apertando a barriga e inteiramente descontrolada.
Aquela mulher nunca em toda a sua vida havia levantado a voz para alguém. Isso não era coisa que pudesse fazer na educação que recebera em casa. Confessou afinal que depois daquela sessão sentia-se solta e imprevisível pela primeira vez em sua vida. Foram necessários alguns estágios na sua terapia. Primeiro, ela tinha uma vaga e difusa tensão durante toda a sua vida que a mantinha amarrada. A primeira Primal tratou de sondar essa tensão para sentir a parte física da raiva, para reconhecer até mesmo que estava com raiva. Depois ela amassou o travesseiro porque ainda não tinha estabelecido a ligação mental. Aquilo era uma representação simbólica. Claro que ela não tinha raiva do travesseiro que era apenas o objeto simbólico para descarregar a sua fúria, da mesma forma que acontece com crianças filhos de pais raivosos. Só que no caso da criança indefesa os pais raivosos sempre encontram uma razão para justificar a explosão. Com o correr do tempo as crianças passam a dar aos pais razões reais para as raivas. Logo que estabeleceu a principal ligação, essa mulher deixou de sentir a raiva e consequentemente desapareceu aquela tensão crônica dos músculos que sentira toda a sua vida. Nas terapias anteriores a que se submetera o método era encorajá-la a descarregar a raiva e hostilidade sobre os outros componentes do grupo. Ela sentia que estava melhorando, mas ainda sentia os ombros doerem, e isso era porque persistia a sua antiga raiva de menina. O que acontece, na minha opinião, é que o eu real, indefeso e passivo, finge que se impõe, especialmente na atmosfera segura da terapia de grupo. Na terapia, uma "boa" moça exprime a sua raiva da mesma forma que a boa moça em casa a esconde. Ambos os comportamentos representam a luta pelo amor. A diferença entre a raiva real e irreal ou simbólica é muito importante porque eu acredito que a falta de atenção a esse ponto levou a muitas distorções terapêuticas. Assim, gasta-se muito tempo na psicoterapia de crianças quando elas são obrigadas a esmurrar sacos. No nível de adultos, existem as chamadas clínicas de brigas onde os cônjuges são colocados numa sala para aprenderem argumentos de ataque e defesa nas suas discussões. Na minha opinião, tudo isso é simbólico e nada pode resolver de forma real. A mulher de quem falei acima mostrava-se zangada com seus companheiros de terapia mas, na verdade, não tinha raiva deles. As coisas que fazia serviam para despertar suas antigas raivas. Quando se sentia ignorada, criticada, interrompida ou suprimida, aquilo despertava a fúria contra os pais, mas ela continuava a ignorar que era um sentimento antigo. A força de sua raiva contra os companheiros do grupo era realmente irracional. Parecia um pouco com aquilo que se lê nos jornais da mulher que matou o marido só porque ele não levou para fora a lata do lixo, quando foi alguma coisa no passado que deflagrou a violência. Também serve para explicar por que alguns pais têm medo de espancar os filhos por
alguma coisa insignificante. Raciocinam que a sua filosofia de educação de filhos proíbe o espancamento quando a realidade é que sentem medo que isso dê vazão à violência latente das crianças. Possivelmente, uma das razões para a existência das clínicas de brigas e também do encorajamento de expressões hostis na terapia de grupo, talvez seja que a raiva ou violência é considerada como coisa natural que deve ser extraída periodicamente e a que Freud chamava de "agressão instintiva". É uma grande tentação para os psicólogos acreditarem nesse suposto instinto, porque nós realmente constatamos muita hostilidade em nossos pacientes. Nós vemos apenas essa violência porque não levamos os pacientes até bem no fundo de seus sentimentos, de suas necessidades. O que vemos é o que está por cima da necessidade, ou seja, a reação da frustração à necessidade. Já que acreditamos em um instinto agressivo nós, muitas vezes, gastamos muito tempo em nossas terapias ajudando as pessoas a cuidarem de suas agressões, isto é, a controlá-las. Eu creio que temos que fazer o contrário. Devemos deixar sentir toda a raiva para depois erradicá-la. Quando a pessoa pode sentir a si mesmo, em lugar de representar simbolicamente os seus sentimentos, ela dificilmente agirá impulsiva ou agressivamente. A dialética da raiva, como a da Dor, é que ela desaparece logo que é sentida, em caso contrário fica esperando por isso. O conceito de cada qual cuidar de si implica o split neurótico. O perigoso é esse split porque ele significa que os sentimentos reprimidos devem ser controlados. Assim, a pessoa desinibida, espontânea e descontrolada é a que mais provavelmente terá menos agressões internas. Mais uma vez, quero tornar claro que espontaneidade significa sentimento, ao passo que impulsividade é o resultado de sentimentos reprimidos. Assim, uma pessoa impulsiva pode, em verdade, agir agressivamente e portanto precisa de controle. Durante anos nós vimos considerando os indivíduos impulsivos como pessoas livres e anarquizadas, esquecendo que elas são geralmente presas a antigos sentimentos bem definidos a que estão dando vazão de maneira reduzida e não, de forma alguma, a liberdade ou anarquia que possa parecer. Uma pessoa pode ter explosões diárias durante toda a sua vida sem, contudo, perceber que é zangada. Geralmente consegue arrumar as coisas de tal modo que justifique seu acesso de raiva sem ter necessidade de sentir a sua origem. Se o neurótico não encontra alguma coisa para justificar a raiva, podemos ter certeza que ele encontrará meios para torcer qualquer coisa insignificante para manter a vazão dessa raiva. Esse despistamento, em geral, seria na direção de necessidades reprimidas e não simplesmente uma questão semântica. A raiva do neurótico pode depender de alguma situação anterior que lhe causou sofrimento. Por exemplo, eu tive uma paciente que ficava com raiva quando
os filhos não ajudavam na arrumação da casa. Dava-lhes surras e tudo, afinal, era porque sua mãe a obrigava arrumar a casa desde os oito anos. A pressão alta é um possível resultado da repressão da raiva. Quando pacientes com tendência para hipertensão terminam sessões tumultuosas é frequente notarmos uma queda na pressão. Se considerarmos isso em termos de bombeamento de maior pressão num organismo até que ela exerça alguma força sobre todo o sistema circulatório, então é fácil vermos como essa pessoa pode tornar-se potencialmente violenta desde que não existam mais restrições. Por outro lado, a elevação da pressão torna-se compreensível quando as restrições são continuamente impostas. A divisão na cultura norte-americana atual entre a ética familiar e a societal é muito nítida. O "bom" menino em casa nunca mostra sua raiva contra os pais, ao passo que o "bom" menino da sociedade mata para servir ao seu país. Um torna-se uma condição para o outro. O mesmo rapaz reprime-se e mata outros só para ser "bom". A raiva é muitas vezes semeada pelos pais que veem nos filhos a negação de suas vidas. Os pais que nunca tiveram realmente uma oportunidade para serem livres e felizes, que casaram cedo e sacrificaram-se durante anos pelos filhos, vingamse neles que são então os que sofrem, que devem pagar só porque estão vivos e porque a sua simples existência constitui a negação da liberdade dos pais. A criança começa a ser punida muito cedo. Não lhe darão licença para dizer o que querem, não podem chorar nem gritar. Recebem uma verdadeira onda de ordens que deverão cumprir para terem o direito de viver. Todos os dias ensinam-lhes que têm que cuidar de si sem pedir ajuda até que chegue o dia em que terão que cuidar dos pais, de suas responsabilidades e obrigações. Bem cedo na vida a criança compreenderá que é um empecilho e tentará desesperadamente purgar por um crime que não cometeu. Crescerá depressa demais e fará tudo para acalmar seus pais irritados que a odeiam sem qualquer razão. Uma paciente que tinha sido a causa do casamento dos pais ainda antes dos vinte anos disse: "Passei toda a existência tentando descobrir a razão para minha vida caótica, para todas aquelas críticas e recriminações pelas coisas mais triviais que eu fazia. Finalmente estudei filosofia para descobrir uma razão na vida, isto é, para disfarçar o fato de não haver uma razão plausível para o que se passava em minha casa." Há muito pouca raiva depois das Primais porque eu acredito que ela seja o contrário da esperança. A esperança nessa espécie de raiva é a de converter os país em gente boa e de bons sentimentos. Por exemplo, a fantasia de alguns pacientes meus depois de terminarem a terapia convencional era que iriam ver os pais para fazer-lhes ver tudo que de mal tinham feito contra eles, mas implícita nessa confrontação estava a esperança que os pais vissem como tinham sido horríveis e logo se tornassem diferentes e carinhosos.
Eu considero como sinal de neurose quando os meus pacientes ainda sentem raiva. Primeiro, porque isso implica uma falsa esperança. Segundo, porque a raiva implica as necessidades que continuam a existir nas criancinhas que ainda não se desligaram dos pais. Não existe a raiva de adulto, se o paciente já é realmente adulto, pela mesma razão que ele não se zangaria pelo comportamento neurótico em qualquer outra pessoa. Seria um adulto vendo objetivamente a neurose dos pais. A objetividade é a ausência de sentimentos inconscientes que fazem uma pessoa desviar a realidade da Dor encaminhando-a para a satisfação da necessidade. Seriam apenas mais dois adultos neuróticos. Só há raiva contra os pais quando a pessoa quer que eles mudem para o que ela quer. Desde que a necessidade seja satisfeita a raiva desaparece. O que realmente existe nos pacientes Primais é o grande sentido de tragédia quanto a uma infância desperdiçada. Há, ao mesmo tempo, um grande alívio já que terminou a luta de uma vida inteira. Os pacientes não se interessam por vinganças pelo que aconteceu no passado, já que dão mais importância para a nova vida que têm diante deles.
Ciúme e Inveja O ciúme e a inveja são outras duas faces da raiva, e também são causados pelo sentimento de falta de amor dos pais. Como a criança não pode mostrar uma hostilidade direta pelos pais, ela tende a se desviar para os irmãos que passam a ser apenas símbolos. Por que será a criança zangada e ciumenta? Talvez porque desde cedo os pais transmitem a elas uma noção que o amor é, de certa forma, uma quantidade limitada e que depressa se gasta. Então estão sempre mostrando os irmãos como exemplo para tudo e a criança fica então com a impressão que não está recebendo toda a sua parte e daí o ciúme. Implícito nesse sentimento está a existência de partes e isso acontece nos lares de neuróticos onde os pais não dão abertamente e sim apenas vão distribuindo aos poucos e sempre com alguma "condição." A criança é então obrigada a lutar por tudo que quiser e poderá mostrar-se zangada com os outros que estão ameaçando a sua porcentagem. A ausência de ciúme ou inveja significa um amor completo. Na minha opinião essa condição não existe naturalmente nas crianças, e aliás, nem tampouco a raiva. É possível que brigue com os irmãos, mas são geralmente os pais que mais exigem, criticam e negam o que a criança precisa. São os pais que se mostram impacientes e irritáveis com manifestações infantis e que talvez podem mostrar preferências por uns em detrimento de outros. O que os pais neuróticos veem quando olham para os filhos é a esperança, a imagem do que precisam — respeito, adulação, atenção. Estão
se ligando a um símbolo e não à criança. A criança que recebe aquilo que se parece com amor é aquela que se torna, portanto, um neurótico simbólico em lugar de alguém que pode se dizer dono de sentimentos próprios. Pois é esse filho preferido que foi completamente destruído quem, a mais das vezes, funciona bem em sua vida. O rebelde, aquele que não se conformou nem se submeteu, talvez nunca funcione bem, mas, ainda assim, talvez se aproxime mais de um ente humano do que o seu outro irmão que funciona bem. A pobre criança que é a favorita muitas vezes apanha da outra menos favorecida e passa toda a sua mocidade pagando por um crime que foi cometido pelos pais. Em um certo sentido, esse ciúme ou inveja é a forma que o filho menos favorecido procura para conseguir a sua parte. O ciúme infantil continua pela vida inteira e o filho invejoso ou ciumento, ignorado pelos pais, pode crescer e ter filhos que ele punirá e amesquinhará quando exigirem atenção de sua mãe. Essa situação persistirá até que a pessoa encontre o contexto certo para sua raiva plenamente sentida. A criança não somente se sente zangada por não ser amada como também se sente frustrada por não ter conseguido dar amor a ninguém. Além disso há ainda a amargura de nem mesmo poder pedir o amor que necessita. Um paciente disse que exigir amor na sua casa era considerado um crime e um outro tinha medo de chegarse ao pai para não ser considerado maricas. Para aqueles que acreditam que o ciúme, a inveja e a hostilidade são instintos naturais no homem, eu só posso dizer que os sonhos de meus pacientes que terminam a Primal, e também o seu comportamento diário, são completamente desprovidos de qualquer conteúdo de raiva, ciúme ou inveja. Assim, mesmo que eles conseguissem controlar isso durante o dia, seria de esperar que tudo surgisse nos sonhos quando os controles são mais frouxos, mas não é o que acontece. Isso indica que o conceito de um conglomerado instintivo de agressão deve estar errado. Se realmente há qualquer instinto, ele deverá ser pelo amor, ou seja, pela própria pessoa.
Medo Quando meu filho tinha dez anos, ele começou a ter terrores noturnos sem que eu pudesse compreender a razão. Tinha medo de um homem que estava no armário. Isso durou um mês até que eu resolvi tirar a coisa a limpo. Uma noite, quando ele ia para a cama e pediu-me que deixasse as luzes acesas e o rádio ligado eu resolvi submetê-lo a uma Primal. Obriguei-o a mergulhar naquela sensação de medo para que ela tomasse conta dele. Ele começou a tremer e a voz afinou. Dizia que não queria e que tinha medo. Eu insisti. Quando mergulhou no terror eu lhe
disse que gritasse o que sentia mas ele dizia que não podia, não podia. Tornei a insistir e finalmente ele disse, "não tenho palavras, papai. Mamãe está me segurando pelas fraldas e tentando espetar-me em alguma coisa." Estava aterrorizado e sentiase indefeso. "Eu nunca achei que o homem do armário ia matar-me com um revólver. Achava que ele ia estrangular-me." Qual era a razão? Uma tarde, antes do tal medo começar, eu estava brincando de luta com ele e o mantive preso pelos ombros de encontro ao chão. Não me pareceu que houvesse qualquer trauma e esquecemos daquilo até a hora da Primal quando suas lembranças voltaram à época em que tinha oito meses. Chegava a lembrar a cor e a forma da bacia. Depois do banho, ele estava correndo e fugindo enquanto minha mulher tentava lhe colocar as fraldas até que já zangada ela segurou-o com força. O medo vinha daquela experiência. Em termos Primais, um medo irracional aparentemente, mas constante, é geralmente uma manifestação de um medo anterior e muito mais profundo. É o medo de então e não de agora, de forma que tentar convencer alguém de alguma fobia irracional, como o medo de meu filho, seria o mesmo que tentar apagar de sua mente uma lembrança. A razão para a continuação das fobias é que elas se alimentam num conglomerado de medo da Primal. Insistindo num velho tema, os terrores neuróticos são também simbólicos. Os terrores reais não podem ser atingidos sem a ajuda e apoio, de modo que a pessoa contenta-se com substitutos. Assim surge o medo de elevadores, de cavernas, de altura, de cães, de multidões, quando, na realidade, eles têm origem no passado. Podemos dizer que os terrores atuais são como sonhos, ou seja, uma tentativa para transformar em racionais antigos sentimentos que, dentro do contexto atual, são considerados irracionais. Mas ainda assim, isso é mais do que tornar os antigos sentimentos racionais. É uma forma simbólica para controlar tais terrores. De certa forma, o neurótico deve pensar que se conseguir manter as coisas sob controle, já não precisará mais ter medo. Por isso o neurótico evita o que teme, ou o que pensa temer. Não entra em avião e evita as alturas. Essas atividades muitas vezes ajudam a controlar tais medos isolando-os em compartimentos separados. Mas se alguém chega perto do objeto de seu pavor, o que surge é um medo real simbolizado pela situação presente. O neurótico que chega à beira de um despenhadeiro pode realmente temer que perca o controle sobre seus sentimentos de auto-destruição, e não simplesmente que tenha medo de altura. Eu quero crer que haja duas razões importantes para a escolha de um medo irreal (fobia). A primeira é a verdadeira ocorrência de um trauma real como, por exemplo, um acidente de automóvel ou uma queda de algum telhado. Para o neurótico que passasse por isso, o medo de automóveis e de alturas poderia se
prolongar além do razoável e até mesmo durar a vida inteira. O que o neurótico geralmente faz é generalizar de uma única experiência para uma classe muito mais ampla de outras sem qualquer relação com o medo original. É o mesmo que acontece com o neurótico que por causa de uma experiência desagradável com a mãe generaliza isso para se estender a todas as mulheres. A segunda razão para a adoção de uma fobia pode ser o valor simbólico do medo atual. Os que se julgaram esmagados pelos pais poderão ter medo de ficarem encurralados em lugares apertados como elevadores cheios. Os que se sentiram totalmente abandonados pelos pais podem ter medo de espaços muito amplos onde poderiam perder-se ou, pelo menos, sentirem-se perdidos. Essa mesma pessoa, aliás, poderá ser a que se casa com um tipo "mandão" que vai dirigi-la para o resto da vida. Isso, na minha opinião, é importante, porque o medo neurótico é parte de todo o sistema neurótico e não apenas um acontecimento isolado. Assim, as tentativas para tratar do medo específico sem uma relação com o sistema total só serviriam para perpetuar o sistema neurótico fragmentado e desviar a atenção do paciente para longe da coisa real. Recentemente tivemos uma mulher que recorreu à nossa terapia porque tinha pavor de aranhas pretas. Não atacamos o seu medo diretamente, mas depois de algumas semanas de tratamento ela começou a falar de seus sentimentos a respeito de seu pai. Descobriu que estava sempre com medo dele. Reviveu uma cena em que tivera medo dele e gritou "papai, não me meta mais medo!" E logo a seguir, "papai, não me deixe ter medo." Ele fazia tanta caçoada de seus medos que ela já não queria demonstrá-los. Mais tarde ela ficou confusa e passou por duas sensações ao mesmo tempo. A primeira era "não me toque, papai!" e a outra "segure-me, não quero sentir-me só em toda aquela escuridão." Logo que conseguiu gritar o medo que sentia do pai seguiu-se uma torrente de insights. "Estou vendo tudo agora. Sempre tive medo, mas era tão sutil e tão inconsistente. Um dia eu vi aquela grande aranha preta no banheiro e saí correndo e gritando. Finalmente podia gritar o meu medo. Já encontrei a razão. Meu medo era real, mas eu liguei-o a uma outra coisa que não era." Quando sentem suas defesas atacadas, os pacientes Primais experimentam uma vaga ansiedade. Quando eu não permiti que um capitão dos fuzileiros praguejasse durante o tratamento, aquilo ameaçou a sua posição de homem importante. Fez com que ele se aproximasse mais do fato que era um garotinho que sofria. Ele não sabia exatamente o que sentia, exceto que tinha uma sensação de medo e desamparo desde que não pudesse gritar palavrões. A ansiedade neurótica é o medo de ficar exposto contra o sofrimento Primal. A conduta neurótica serve para ocultar o sofrimento. O homem a que me referi era de uma família de fuzileiros a que pertenciam seu pai e irmãos. Para poder viver na família era preciso ser duro, independente e livre de emoções. Ele não poderia tolerar a possibilidade de
precisar do aconchego do pai. Aquela necessidade sepultada mantinha-o tenso, e quando o disfarce tornou-se mais tênue a tensão transformou-se em ansiedade. Já o contrário aconteceu com outro homem que precisava mostrar-se agressivo. Tinha medo de deixar de ser o queridinho da mamãe se ficasse zangado, e chegava a tremer só de pensar que isso poderia acontecer. O medo trabalha para a sobrevivência. É ele que nos faz desviar de objetos que caem, mas mantém a criança viva não permitindo que ela sinta os primitivos sentimentos catastróficos que poderiam fazê-la desistir de viver. O medo é aquilo que contribui para produzir as neuroses que nos protegem de catástrofes. As pessoas que não podem continuar a ser neuróticas muitas vezes tornam-se medrosas ou ansiosas. Quando não permitimos que nossos pacientes finjam, eles ficam piores. Da mesma forma que todos os neuróticos devem mostrar- se zangados por não serem amados, também todos eles devem sentir um medo íntimo. Alguns não tomam conhecimento do medo, outros projetam o medo em fobias e ainda outros mostram o medo em formas de contrafobias. O medo mostra quando se aproxima a Dor Primal. Uma indicação disso é que quando a Dor Primal aumenta, depois de enfraquecer uma defesa, o medo também aumenta. O medo neurótico é o medo que a pessoa tem de perder a mentira com que vive. Qualquer ataque à mentira provoca o medo porque ela contém a esperança. Quando uma moça tenta ser rapaz para agradar ao pai, e quando se mete em esportes e falha, ela pode tornar-se ansiosa porque a sua personalidade real está surgindo. Quando um menino pretende ser o queridinho da mamãe, ele pode tornarse ansioso se ela fizer caçoada de sua linguagem de garoto como muito chula. O paciente Primal tem mais medo quando todo o seu jogo neurótico está quase a terminar. Nosso objetivo é provocar esse medo para que ele possa empurrálo para dentro de seus sentimentos verdadeiros. Tem medo de ser real, e é por isso que é neurótico. É muito importante o relacionamento do medo com a dor. As pessoas exibem uma fachada para não sofrerem. Se alguém for exatamente o que é, não poderá ser ferido e não precisa mostrar-se ansioso. A função do medo, real ou não, é evitar nosso sofrimento. A única forma para conquistar o medo é sentir o sofrimento. Enquanto o medo não for sentido, ele continuará.
Contrafobia A contrafobia corresponde a mergulhar naquilo que mais tememos. Assim, se uma pessoa tem medo de alturas, ela pode dedicar-se aos saltos de esqui para provar que não tem.
A atividade contrafóbica deve ser compulsiva e continuada porque a pessoa está tentando negar um medo real por meio de uma atividade simbólica. Eu considero a contrafobia como a mais séria forma de neurose porque os sentimentos reais ficam sepultados tão profundamente que obrigam a pessoa a fingir totalmente. A contrafobia, portanto, indica um estado repressivo mais total. Um saltador de esqui que eu atendi em terapia tinha um terrível pavor da morte. Em cada salto chegava muito perto da morte, mas não achava a coisa tão ruim assim. Cada um de seus saltos era uma tentativa para afogar o medo inconsciente... O que tornava a sua atividade compulsiva era que os medos reais voltavam todos os dias para exigir novas provas que realmente não existiam. Depois que quebrou uma perna num salto, ficou muito satisfeito pois já não precisava saber se tinha medo ou não. Pode ser considerada contrafóbica qualquer ação contrária a um real sentimento de medo. O sexo é um bom exemplo. Muitos homens têm medo do sexo, mas são levados a ele compulsivamente com medo de não serem considerados homens de verdade. Isto acontece especialmente com aqueles que têm tendências latentes para o homossexualismo. Para provar ao mundo que isso não existe, eles podem tentar conquistar todas as moças que veem, falar constantemente com mulheres sobre sexo, ridicularizar os bichas e brigar com outros homens. Podem ainda casar e ter muitos filhos para provar a sua virilidade, e quanto mais meninos melhor. A maior parte da raiva neurótica corresponde à contrafobia. É a reação ao medo. A mãe bate no filho que correu na frente de um carro em movimento porque o terror levou-a à raiva. A raiva, na maioria dos casos, é a negação do medo. Um "homem" não mostra medo e sim raiva que é um traço mais masculino. Quantos homens serão capazes de reconhecer e proclamar o seu medo? Para indicar as causas da contrafobia, vamos tomar o exemplo do menino de cinco anos que correu escada acima procurando o pai, ao mesmo tempo que grita por ele ao chegar à porta do quarto. Ao abri-la verifica que seu pai está fazendo uma mala. — Vou viajar e você vai ficar só com sua mãe. — A ideia de nunca mais ver seu pai pode ser catastrófica. O que faz o menino com tal sentimento de medo? Como não há lugar onde possa descarregá-lo, ninguém que possa ajudá-lo a compreender o que está acontecendo, o medo fica sepultado. Mais tarde, para se ver livre da tensão que o persegue e que é causada pelo medo sepultado, ele pode imaginar situações de medo. Pode enfrentar touros ou tomar parte em corridas de automóveis, atividades que tornam legítimas os receios latentes. Finalmente, então, ele já encontrou alguma coisa em que fixar o medo. Poderá reconhecer esse medo de tais situações que são apenas substitutas da verdadeira, isto é, que nunca mais terá um pai. Um paciente lembra-se que caiu num lago e quase afogou- se. Quando saiu foi obrigado a voltar à água para conquistar o medo. Seu pai obrigou-o a agir
contrafobicamente. A contrafobia é um traço geral de personalidade. O fato de se agir contra uma espécie de sentimento muitas vezes significa comportar-se contra diferentes espécies de sentimentos. A sociedade também nos ajuda a cair na contrafobia. Todos os dias estão nos dizendo como conquistar o medo, como dominar a frustração, como livrar-nos de inadequabilidades. Tudo que precisamos fazer é eliminar nossos sentimentos. Tais sentimentos, porém, constituem nossas vidas. Não se pode conquistar a vida e viver. Chega o dia em que isso assume um sentido literal, pois eu acredito que os contrafóbicos, aqueles que suprimiram neles mesmos os sentimentos de vida tão profundamente, podem finalmente conseguir safar-se de alguma forma. A contrafobia é aquilo que mantém vivo o medo. Negar o medo significa ter que lutar por ele simbolicamente a vida inteira. O fóbico pelo menos reconhece que tem medo, e isso já é um passo acima na escada para a saúde.
Medos Infantis Uma grande porcentagem de medos infantis ocorre quando a criança está só na cama à noite. As crianças podem ser valentes bastante para saltarem de um trampolim, mas sentem medo do escuro. Uma parte da razão é que a criança fica só. O medo é igual àquele que ocorre quando isolamos pacientes em quartos de hotel antes de iniciarem o tratamento Primal. É o medo do próprio eu. As crianças geralmente disfarçam esse medo projetando-o para fora e dizendo que o medo é de ladrões. Seu espírito concentra-se em causas aparentes como o farfalhar de folhas, uma porta que bate, uma sombra na parede. Cada uma dessas coisas ajuda a justificar o medo latente. Os pais devem ter o cuidado para não roubar dos filhos os seus medos. Sempre é fácil dizer que não há razão para medo, e uma porção de outros argumentos, mas isso só consegue sepultar o medo que tornará depois a surgir de diferentes modos desde as camas molhadas até doenças físicas. Se os pais não conseguem compreender a razão para o medo da criança, o melhor é contemporizar de qualquer modo em lugar de suprimi-lo. Muitos de nós já sofremos desses terrores noturnos quando éramos crianças e a maioria não conseguiu livrar-se deles completamente. Nós ainda temos medo do fantasma, mas em lugar de ter medo daquele que está escondido no armário, nós temos medo de alguma vaga conspiração de alguma nação ou grupo com más intenções contra nós. O conteúdo dos medos aparentes muda mas ele não tem grande importância. Sempre precisaremos do fantasma, de uma ou outra forma, até
recuperarmos a saúde. Por que é que a solidão no escuro causa tanto medo? Há aquela sensação incipiente do sono que se aproxima, e isso significa que nossas guardas afrouxarão deixando passar todos os demônios que foram afastados durante o dia. Não há nada intrinsecamente apavorante na solidão, mas o neurótico que está fugindo ou defendendo-se de si mesmo sempre está com medo. Precisa ligar o rádio ou a TV para não se sentir só. "Só" não tem para o neurótico o mesmo significado que tem para as pessoas normais. "Só" significa sentir a falta de apoio, proteção e amor de parte dos pais e é contra isso que ele deve defender-se. As crianças sentem mais medo quando os pais saem à noite, e é nessa ocasião que o pavor da morte pode surgir para associar-se ao sono, porque a falta de proteção na tenra idade pode significar morte.
Discussão Uma vez que o significado de todas as fobias é simbólico, e portanto idiossincrásico para cada pessoa, não existem significados universais para as fobias. Duas pessoas com a mesma fobia podem ter razões completamente diferentes para tal. Seria tempo perdido tentarmos descobrir os significados de fobias. Deve-se concentrar toda a atenção naquilo que é real, nos temores reais. Tornar os temores reais significa tornar as fobias desnecessárias. O que parece confirmar a hipótese Primal com respeito ao medo é a forma como as fobias desaparecem, para nunca mais voltarem sob forma alguma, logo que alguém sente o medo real. Eu quero insistir que nenhum comportamento irracional pode ser solucionado quando se trata com o irracional. A conduta irracional não pode ser combatida nem pela lógica nem pelos fatos. As situações de fato não despertam comportamento irracional nas pessoas normais. A base das fobias (os temores Primais) é uma coisa real e somente o contexto de fato torna a fobia irracional. Sempre é tentador acreditar que alguém pode ajudar a resolver um problema de fato de uma ou outra forma. Para mim, acho que é tempo perdido a ideia de aconselharmos os neuróticos apresentando-lhes compêndios com fatos. A informação pode ser de valor, mas a grande força por trás do comportamento irracional é a força Primal. Fatos esparsos, apresentados aqui e ali, não conseguem deter a maré Primal. Precisamos ter sempre em mente que não estamos tratando de temores ou raiva e sim com pessoas que sentem medo. A essência da Terapia Primal é ajudar as pessoa? para dominarem os grandes medos da primeira infância para que possam sentir tudo que lhes seja possível isento de qualquer temor.
Kim As sementes de minha neurose encontram-se na minha infância com a família. O tema que surge constantemente durante esses anos é que meus pais só cuidavam de me oferecer presentes materiais em lugar de me oferecerem seu amor. Não me lembro de haver sido uma única vez levada ao colo ou acariciada por eles quando era pequenina. E ainda assim nunca achei que eles não me amassem. Mas como posso saber que eles realmente não me amam nem nunca me amaram? Faz muito pouco tempo que minha mãe contou-me, como se aquilo fosse a coisa mais natural do mundo, como foi o primeiro encontro de meu pai comigo quando voltou da Segunda Guerra Mundial. Fez minha mãe acordar-me, viu que eu era como todas as outras crianças, e saiu do quarto. Dizem que quando me contaram isso eu chorei durante horas. Claro que não me lembro do fato, mas sei que durante um ano depois daquela noite, eu tinha uma espécie de ritual noturno em que engatinhava e batia com a cabeça na cabeceira do berço. Acho que tinha medo de ser abandonada. Com o barulho que fazia batendo com a cabeça eu queria apenas lembrar minha existência a meus pais, que dormiam no quarto ao lado. Uma outra indicação dessa falta de amor era que meu pai fazia bem claro que teria preferido um filho. Vivia chateando minha mãe porque não lhe dava um menino. Usava sempre meu cabelo curto. Quando voltava da escola enfiava-me em roupas de homem. Mais tarde acostumei-me a beber cerveja quando ia assistir a partidas de futebol com meu pai. Já que ele queria um menino, eu seria o que ele queria desde que com isso conseguisse o seu amor. Houve, finalmente, um incidente em que meu pai disse-me francamente que nunca me amaria como eu era, e depois de uma discussão pelo telefone quando eu estava na universidade, ele acabou dizendo que resolveríamos o assunto quando eu viesse para casa no verão para então ver como deveria ser a nova Kim que fosse aceitável para mim e para ele. O amor que me dispensavam tomava a forma de restrições e rígida disciplina que diziam ser "para o meu bem". Tinha que implorar tudo aquilo que as outras crianças geralmente faziam. Quando acordava de manhã já encontrava uma lista de dez obrigações para fazer antes de sair de casa, e isso fazia de mim uma criança nervosa e irritadiça. Qualquer falta era punida com pancada, quando era criança, e depois mais tarde, até antes dos vinte anos, com proibição de sair de casa durante um mês. A "administração de justiça" era sempre acompanhada de gritaria. Lembrome que depois dessas batalhas meu pai vinha ao meu quarto para perguntar por que eu me sentia tão infeliz e era tão malcriada quando tinha tudo quanto uma moça poderia desejar. Aquilo me deixava confusa. O que poderia eu querer então? Não sabia a resposta. Nunca me ocorreu
pedir-lhe apenas o seu amor. Tinha medo que se pedisse iria enfrentar uma recusa e teria então que esconder o meu sofrimento. Em lugar disso escondi o meu desejo por trás de uma raiva violenta. Nunca respondi às perguntas de meu pai. A última coisa que quero mencionar sobre a vida em casa nos primeiros tempos é que estavam sempre brigando e eu era sempre a razão para as brigas. As discussões geralmente explodiam em alguma violência entre eu e minha irmã e terminavam com meu pai me batendo. Lembro-me de uma briga entre minha mãe e eu ao fim da qual ela falou com meu pai que uma de nós duas teria que sair de casa. Concordei que seria eu. Revidava sempre com violência e sarcasmo para assim esconder meu sofrimento. O denominador comum em tudo que venho contando é sempre a falta de amor, e isso eu recusava-me a reconhecer procurando sempre esconder sob uma variedade de disfarces. Defendia-me desligando-me de todos os sentimentos para que não sofresse pela falta de amor em toda a minha vida. Esse desligamento não parecia ser uma decisão consciente e sim antes um reflexo empregado pelo corpo para proteger minha integridade, como fazia quando batia com a cabeça no berço. Toda minha vida girara em torno daquilo pelo fato de não contar com o amor de meus pais. Desde então nada se modificara e apenas havia mais sofisticação nos meus meios de defesa para cobrir a necessidade que sentia. Uma defesa, que fazia parte de mim desde a idade de quatro anos, era a existência de condições crônicas. Quando eu tinha quatro anos, meu pai ficou zangado comigo e atirou-me em cima de minha cama como se eu fosse uma bola de futebol. Lembro-me bem do medo que tive quando me vi voando no ar e caindo em cima da cama batendo de encontro à parede. Logo depois disso surgiu uma erupção de pele com grandes tumores sem qualquer razão aparente e que durou dois anos. Acredito que essa infecção, e todas as outras que sofri, foram o resultado do medo que sentia e que não queria demonstrar. Naquela ocasião em que me atirou na cama, eu percebi que meu pai poderia ferir-me seriamente, ou mesmo matar-me, desde que o quisesse. Era preciso que eu me modificasse para lhe agradar e aplacar a sua raiva. Lembro-me quando brincava com minha irmã e nós duas queríamos ser homens para recebermos carinho e atenção. Podíamos fazer aquilo em brinquedos mas não nos arriscávamos a pedir com medo da recusa. Só quando eu ficava doente meus pais pareciam preocupar-se comigo de forma positiva. Isso explica por que durante meu primeiro ano na universidade longe de casa eu sempre estava doente. Creio que estava tentando dizer a meus pais indiretamente que ainda precisava deles e queria que cuidassem de mim. A outra defesa minha foi tornar-me muito fria. Para mim o amor significava restrições. Se demonstrasse amor por meus pais, ou por qualquer outra pessoa, eu
estaria vulnerável a seus ataques. A rejeição de parte de meus pais, e especialmente de meu pai, afetou drasticamente as minhas relações com os homens. Até a idade de dezesseis anos eu competi com homens em nível intelectual e físico. Agia como rapaz e tinha uma aparência masculina. Depois fiz dos homens o reservatório de onde tentava extrair o amor que nunca recebera de meu pai. Começou a funcionar o dualismo mentecorpo. Os homens que escolhia tinham que ser atléticos e altos, e ao mesmo tempo num nível intelectual inferior ao meu. Queria sempre controlá-los ao mesmo tempo que usufruía todo o amor físico que sempre me fora negado. Não queria arriscar-me a ser rejeitada como acontecera com meu pai. O resultado foi a promiscuidade. Naquela época eu não podia compreender a razão que me fazia ir para a cama com qualquer um que se parecesse com um perfeito atleta. Essa promiscuidade terminou depois que fui rejeitada por um homem. Fiquei desarvorada. Passei a encontrar mais satisfação na companhia de mulheres bem alegres. Embora nunca me comportasse como lésbica, muitas vezes sentia-me como se fosse mesmo. Nessa ocasião surgiu-me uma infecção na vagina que impedia minhas atividades sexuais. Tentei ser menino para conquistar o amor de meu pai e depois quis ser mulher para fazer amor com todo mundo, e afinal acabei sendo neutra. A minha principal defesa por não ser amada foi a escola, pois por meio dela esperava conquistar o amor de meus pais. Meu desempenho na escola foi o máximo, sempre com altas notas, cargos e honrarias. Esperava assim ter a aprovação de meus pais já que as outras pessoas na escola me aprovavam. A intelectualidade servia-me para tentar conseguir o amor de meus pais ao mesmo tempo que também servia para distanciar-me da Dor. Sempre que tinha qualquer contrariedade pegava num livro e mergulhava nele. Conseguia então sentir a minha dor chorando quando alguma coisa acontecia com um dos personagens com quem já me havia identificado. Na universidade estudei muito a história intelectual da Europa e especialmente a da Alemanha, um país odiado por meus pais sem qualquer razão aparente. Eu queria então descobrir o que havia de errado com a Alemanha. Talvez aí descobrisse o que havia entre meus pais e eu. A Alemanha, com confusão e anarquia por dentro, sempre buscava poder e influência lá fora de suas fronteiras. Eu, que também estava confusa e não conseguia sentir a Dor interna, sempre procurava mostrar minhas qualidades a quem quisesse ver como era inteligente. Quando entrei na faculdade já não tinha mais a ilusão que o meu comportamento escolar pudesse influenciar meus pais, e, ainda por cima, a escola entediava-me. Foi aí que senti a necessidade de uma outra defesa contra a Dor que subia e fui encontrá-la nas drogas. Nos primeiros anos da faculdade fumei a maconha e depois passei para as outras drogas.
Quando fui para a faculdade em New York já a maconha e o LSD não me adiantavam e recorri à heroína para ver se conseguia alguma coisa que melhorasse meus acessos de choro e solidão. Mas nem mesmo essas drogas serviram e cheguei então ao colapso mental e físico. Saí de New York completamente arrasada e comecei a Terapia Primal dois meses depois, porque sentia que todas as minhas defesas estavam cedendo e já não podia me controlar. Já sentia que meu cérebro não funcionava e não conseguia compreender. A Terapia Primal ensinou-me que o meu sentimento de falta de amor de meus pais nunca fora resolvido e que eu tinha recorrido a substitutos de novas defesas para esconder a necessidade que sentia e fugir de minha Dor em lugar de procurar senti-la. O primeiro estágio da terapia consistiu em derrubar o que ainda restava de meu sistema de defesa já bem abalado. A simples ausência de drogas e cigarros aumentava a minha tensão a um tal ponto que todo meu corpo tremia. Embora estivesse só, numa cidade onde não conhecia ninguém, foi depois das três semanas de isolamento exigidas pela terapia que eu me senti realmente só. Sempre pensara que era solitária por minha própria escolha e que poderia deixar de sê-lo logo que quisesse. Agora, porém, eu descobria que fora solitária durante toda a minha vida e que durante esse período só desejara ser parte de alguma coisa (a família) ou, mais especificamente, de alguém (meus pais). Percebi que quando estava só antes eu sempre sentia alguém observando-me e penetrando em meus pensamentos. Acredito agora que tudo aquilo era a esperança, que ainda acalentava, que meus pais gostassem de mim. Agora sinto e sei que estou inteiramente só. Com a maior parte das defesas mais óbvias removidas, minha mente começou a se encher com as lembranças do passado. Todas elas enchiam-me de tristeza e comecei a reviver cenas do passado, deixando que elas tomassem conta de mim já que tomava parte em todas. A maioria de minhas Primais durante os primeiros meses da terapia giravam em torno do frio que sentia. Logo que me deitava o corpo começava a tremer, os dentes batiam e os pés e mãos ficavam azulados. Passei por Primais que duravam duas horas durante as quais eu apenas tremia. Primeiro pensei que aquele frio era todo exterior e só. depois percebi que era interior, que era a neurose. Tinha que livrar-me daquilo que conseguira devido à falta de amor de meus pais para então poder reviver as experiências dolorosas que estava encobrindo. Logo que as tremuras tinham quase terminado eu encontrei-me completamente sem defesas. Muitas vezes, quando via meus pais, eu desandava a chorar ao menor sinal de reprovação da parte deles. Uma noite eu fui assistir a A Gaivota de Chekhov e durante a cena em que o filho pede à mãe para não abandoná-
lo, eu senti uma coisa que me vinha do estômago e como não queria ter uma Primal ali no teatro tentei reagir mas desmaiei e tive que ser carregada para fora. Quando esses sentimentos profundamente arraigados são liberados não há jeito de contê-los, e aliás, isso só poderá resultar em completa confusão. No meu caso isso se manifesta com palavras incoerentes e uma espécie de afasia. Uma noite falei com cinco componentes do grupo de terapia e não consegui compreender coisa alguma do que diziam. Compreendia as palavras soltas mas que não faziam sentido para formar qualquer frase. Eu mal podia falar e sentia-me como se não estivesse ali, e sim em algum outro lugar. Quando tentei falar também não fazia sentido. A confusão resultante da falta de comunicação desligou-me dos outros e era um simbolismo de minha solidão. Logo que percebi aquilo caí numa Primal em que implorava aos meus pais para não me deixarem só. A confusão passou. Em outra ocasião, a confusão que surgiu com a supressão de uma sensação causou-me uma grande desorientação. O meu namorado ficou zangado comigo e, embora tivéssemos visitas, fez questão de manifestar-se. Comecei a sentir que logo se seguiria uma rejeição e que voltaria a estar só. Desliguei-me da sensação e tentei mostrar-me boa dona-de-casa. Foi aí que voltei-me e esbarrei em cheio contra a parede e fiz um "galo" na testa. Logo que consegui acalmar-me com a rejeição de meu namorado e passei a sentir a Dor maior da rejeição de meu pai, recuperei a coerência de palavra e direção. Ao acontecer o rompimento, ele foi relativamente indolor já que estava apenas sendo rejeitada por um namorado e não por meu pai. A minha grande demonstração veio cinco meses depois de começar a terapia. Estava sentada numa sessão de grupo quando meus olhos se turvaram e senti que ia desmaiar. Era uma coisa que sentia muitas vezes antes de uma Primal intensa. Logo estava deitada no sofá gritando como nunca fizera antes. Gritava pedindo a mamãe e papai que me levassem para casa. Implorava-lhes que me levassem sempre com gritos cada vez mais altos. Durante esse tempo não me dava conta do corpo. Todo o meu ser estava concentrado na voz que gritava e eu voltei a minha dor. Estava dizendo aquilo que sempre desejara dizer desde que me entendia. Nunca tivera coragem de dizer tal coisa com medo que meus pais me rejeitassem ostensivamente. Como já não tinha defesas, as palavras jorraram-me da boca. Pela primeira vez em minha vida eu estava completamente descontrolada e indefesa. Foi essa a encruzilhada definitiva na minha terapia. Durante os próximos três meses eu pedia aos meus pais, nas minhas sessões Primais, que não me fizessem sofrer. Já lhes havia confessado meu amor e estava portanto completamente vulnerável à minha Dor. Em uma das sessões eu gritei com toda a força pedindo a meu pai que não me fizesse sofrer mais. Aquilo devia ter parecido como se alguém estivesse tentando matar-me, e era mesmo o que eu
pensava. A Dor me vinha em imensas vagas diversas vezes por dia e frequentemente eu tinha que sair quase chorando. Todas as noites sonhava que meus pais me rejeitavam e até mesmo me odiavam e despertava com um soluço na garganta. Achava difícil sair da cama e quase impossível funcionar como professora durante a semana. Parecia-me que aquela Dor duraria para sempre. Agora já fazem nove meses que comecei com a terapia. Já sou uma nova pessoa, ou antes, já sou eu mesma. Os meus sintomas psicossomáticos estão começando a desaparecer. Já não sinto mais a tensão que pensara ter de suportar durante toda a minha vida. Embora tivesse atravessado um período de promiscuidade sexual eu era frígida antes, durante e depois dessa época. Não conseguia sentir coisa alguma, nem mesmo o prazer sexual. Verifico agora que quando tento conter a manifestação de um sentimento, fico absolutamente frígida, mas logo que sinto alguma coisa de mim mesmo, já não estou mais nessa condição. Não preciso mais de drogas para me esconder do fato de minha solidão absoluta. Aprendi que preciso sentir a minha Dor para poder livrar-me dela definitivamente em lugar de mantê-la afogada em drogas. Já não preciso mais de drogas. Já sinto e percebo que meus pais nunca me amaram nem jamais me amarão como sou. Escolhi ser eu mesma em lugar de tentar, consciente e inconscientemente, descobrir o que eles desejam em troca de seu amor. Sou livre.
Suicídio O recurso ao suicídio, na minha opinião, é quando falharam todas as tentativas da pessoa para matar a sua Dor. Quando a neurose não consegue aliviar a Dor, a pessoa pode ser forçada a medidas mais drásticas. Pode parecer paradoxal, mas o suicídio é o último refúgio da esperança para o neurótico decidido a ser irreal até o fim. Uma moça de vinte e nove anos que se submeteu à Terapia Primal tentou o suicídio alguns meses antes de começar o tratamento. Tinha sido abandonada pelo amante. Ela implorou, pediu e finalmente ameaçou-o, mas foi tudo em vão. Foi para casa e preparou tudo metodicamente. Separou noventa pílulas em lotes de seis que começou a engolir inteiramente desligada. Mas a certa altura, quando começou a sentir a respiração difícil, ela entrou em pânico, chamou uma amiga e pediu-lhe que viesse com o médico. Quando foi abandonada pelo amante sentiu-se desprezada e sem amor. Logo que ele saiu ela começou a reviver todo o vazio que sentira quando era criança, quando fora também rejeitada pelos pais. Tentou matar-se quando sentiu o impacto
de tudo aquilo. O desligamento muitas vezes constatado em tentativas de suicídios vem reforçar a hipótese Primal que o suicídio é um ato dividido no qual o objetivo raramente é a completa destruição do indivíduo. É uma tentativa para conservar o eu com a obliteração da Dor que a neurose não pode mais esconder. Essa mulher nunca pensou em morrer, e a prova foi que tão cedo sentiu-se mal e com a morte iminente, logo pediu socorro. Evidentemente, os neuróticos procuram matar- se simbolicamente como, aliás, fazem com tudo mais. Alguns podem estar dispostos a ir até o fim para manter intacta a neurose. Houve uma paciente que disse, "o suicídio não é assim tão irracional se considerarmos que todas as neuroses são a luta para conservar o indesejado." A neurose é o suicídio. Se alguém já deu parte ou o todo de sua vida aos pais para ser amado, já não é tão importante assim matar-se de forma mais literal. Quando a neurose falha surge a alternativa do suicídio. Muitos neuróticos parecem preferir o suicídio em lugar de continuarem a viver a vida que levam. Eu não acredito que o suicídio signifique uma ânsia de morrer apenas e sim talvez também o sentimento de não saber o que fazer para aliviar a Dor. A pessoa já cansou de lutar. Ou precisa de uma nova luta que lhe traga um alívio provisório, ou então precisa liquidar a luta definitivamente na Terapia Primal. É preciso lembrar que a neurose tanto salva como mata. Ela protege o eu real evitando sua desintegração, mas ao fazer isso ela também sepulta esse mesmo eu. A criança então cresce agarrada a um eu irreal que, paradoxalmente, está a estrangulála. Talvez fique mais claro se imaginarmos isso como uma progressão. A criancinha em primeiro lugar tenta ser amada pelo que ela é. Quando isso falha ela vai procurar o amor mostrando-se diferente do que é, mas quando até isso falha só lhe sobram duas escolhas. No princípio da vida pode ser a psicose, mas no fim da vida pode ser o suicídio. Suicídio é esperança. É uma representação tal que chega a matar o sentimento de um desespero crescente. É muitas vezes uma tentativa desesperada para evitar o sentimento catastrófico de que não há no mundo uma só pessoa querida. Vão até o suicídio numa tentativa desesperada para que haja alguém que sinta. Algumas vezes a tentativa traz os resultados desejados quando as pessoas começam a procurar, quando a família vem ajudar, quando todos parecem sentir por não haverem percebido as condições de desespero. Mas quando os amigos param com as visitas, quando a família retira-se, o quase suicida fica outra vez só com o eu que prefere destruir em lugar de sentir.
Em geral, a tentativa de suicídio é um ato de alguém que viveu fora de si e por intermédio de outros, já que não lhe permitiram viver dentro de suas necessidades e sentimentos. O centro da existência de indivíduos com mania de suicídio situa-se muitas vezes fora deles mesmos. Um rapaz que estava na Terapia Primal contou que a mãe com quem morava estava numa agitação crescente. Quanto mais ele melhorava mais deprimida ficava ela. A maior parte da vida dele tinha-se passado cuidando de sua mãe que estava sempre sofrendo de alguma coisa. Quando ele começou a ficar independente ela ficou desesperada. Ele tencionava sair de casa para morar só. Nesse ponto sua mãe tentou suborná-lo com um novo carro e depois ficou doente. Quando tudo falhou ela encenou uma fraca tentativa de suicídio com sedativos tendo porém o cuidado de chamar o médico bem a tempo. A mãe do rapaz não podia conceber ser obrigada a cuidar dela mesmo. Já havia muitos anos que estava separada do marido que havia substituído pelo filho. Desde os primeiros anos do casamento ela havia manipulado todo mundo para ficar sendo a criança dependente, precisamente o que sua mãe fizera com ela. Com a idade de cinquenta anos ela ainda estava tentando ser o bebezinho que nunca conseguira ser antes. Era o bebê que existia dentro dela que evidentemente achava ser impossível a vida sem ter alguém para se apoiar. Claro que há muitos suicídios completos e nesses casos a pessoa poderá ter sofrido de algum sério distúrbio mental e já não consegue distinguir entre o que é real ou não. Mesmo aí, no recôndito de sua mentalidade doente, ela pode agasalhar a esperança de que sua morte sirva para alguma coisa. Quando examinamos detidamente o ódio por si mesmo e as resultantes tentativas de autodestruição, chegamos a descobrir que o verdadeiramente odiado é o eu irreal. O ponto do suicídio parece chegar quando nem o eu real ou o irreal podem ser amados. O que deve ser feito com quem quer suicidar-se, na minha opinião, é ajudá-lo a sentir em toda a sua intensidade o eu que ele está querendo destruir. Logo que sinta que o eu desprezado não é realmente uma ameaça à sua existência, já não terá mais vontade de destruí-lo. O que geralmente se dá aos que pensam em suicídio é uma ajuda para esconder os verdadeiros sentimentos que lhe são mais chegados. Talvez cheguem a alguma clínica onde os esforços são dirigidos no sentido de remendar as coisas para que os pacientes continuem funcionando. Muitas vezes chegam a receitar drogas para aliviar o paciente e assim afastá-lo cada vez mais de tudo o que sente. E no entanto, são exatamente tais sentimentos que precisam ser sentidos para liquidar o eu irreal que age irracionalmente. Posso afirmar que o perigo vem do eu irreal que é quem toma mais vulto com a aproximação da crise. Acredito que enquanto a pessoa tiver um terapeuta com quem se agarrar, o perigo do suicídio será sempre menor, mas quais são as razões existentes que nos levam a crer que ela desistirá da maneira
de suicídio depois que já não tiver mais o terapeuta? As clínicas que se especializam em crises tentam solucionar a situação quando o paciente já não pode levar a vida como está acostumado, mas não é justamente isso que precisa ser eliminado em lugar de reforçado? O reforço de um sistema de defesa leva à desumanização porque separa a pessoa de seus sentimentos mais profundos. É claro que temos considerações de ordem prática já que podemos raciocinar que não há tempo para se fazer o que, de outra forma, pode ser feito rapidamente com a aproximação de uma crise. E se for o caso da pessoa não querer uma mudança radical? Eu acredito que todo mundo tem direito a ser irreal, mas pelo menos a pessoa deveria ser informada que há uma alternativa em lugar de repetidas tentativas de suicídio. Devemos também levar em consideração os efeitos societais de se permitir que um suicida em potencial ande solto pelas ruas, por trás do volante de algum carro e talvez querendo levar alguém com ele. Nessa conjuntura, vale a pena notar que os pacientes Primais não pensam em suicídio. Acabam sabendo o valor que têm e não gostam de arriscar a vida e aprendem que o eu real é bom e portanto não há razão para desejar destruí-lo. Parece paradoxal afirmar que o objetivo de quem se mata é o desejo de viver, mas as minhas experiências com pessoas que tentaram suicidar-se tornam impossível chegar-se a uma outra conclusão. Há exceções, como os portadores de moléstias incuráveis, mas, em regra geral, a tentativa para a morte é uma súplica neurótica de quem quer ser amado. E nesse sentido, essa tentativa não é senão um anseio de vida.
19 - DROGAS E VÍCIO
Dietilamida do Ácido Lisérgico (LSD-25) Para muitos jovens, o LSD, também conhecido como o ácido, é uma maneira de viver. Os efeitos do LSD parecem tão profundos, mas tão místicos, que já degenerou num culto, um Weltanschauung. Os consumidores crônicos geralmente o chamam de "uma longa viagem no espaço interior", ao passo que outros dizem ser a viagem para a realidade. Eu acredito que o LSD seja uma viagem à realidade no sentido que ele estimula intensos sentimentos reais, mas o neurótico faz com essa realidade o mesmo que faz com a realidade em geral, isto é, transforma-a em alguma coisa simbólica. Não há dúvida que o LSD estimula os sentimentos e sensações, já que temos provas clínicas disso. Recentemente o LSD foi administrado a um grupo de macacos que foram depois sacrificados e autopsiados. A maior concentração da droga foi encontrada nas áreas do cérebro conhecidas como relacionadas ao sentimento e sensações O problema com o uso do LSD é que ele abre artificialmente os indivíduos para mais realidade do que eles podem tolerar dentro de seus sistemas neuróticos, e o resultado é um pesadelo em pleno dia, é a psicose. A razão para a defesa é manter a integridade do organismo. O LSD desarticula a defesa e o resultado trágico é que os consumidores da droga estão lotando as enfermarias da neuropsiquiatria em todo o país. Geralmente, é possível reconquistar o sistema neurótico depois que passa o efeito da droga, exceto em alguns casos em que os sistemas de defesa originais já eram fracos. A resistência do sistema de defesa junto com a dose ingerida são os fatores que determinam como a pessoa vai reagir sob a ação do LSD. Pode acontecer, e já tem acontecido, que uma pessoa com um sistema de defesa reforçado não reage de forma alguma à droga. Uma das razões para o LSD ser considerado como psicodélico é a fuga simbólica. O estímulo das sensações produz uma explosão de ideias simbólicas que são muitas vezes confundidas como expansão da mente. O que precisamos compreender é que essa expansão é uma defesa. O maníaco psicótico com ideias extravagantes é um perfeito exemplo de expansão da mente fugindo das sensações.
Os pacientes maníacos atendidos por mim, muitas vezes espíritos brilhantes, chegavam a escrever quase um livro em três ou quatro semanas. O que distingue a psicose da neurose é o grau e a complexidade da simbolização. Na neurose ainda há muito contato com a realidade ao passo que na psicose isso já talvez não exista mais e a pessoa pode estar envolvida pelo simbolismo, já não podendo mais diferenciar entre símbolos e realidade. Com a continuação do processo de deterioração, a pessoa pode chegar a não saber mais quem é, onde está ou em que ano vive. Os resultados do uso do LSD parecem confirmar uma das principais hipóteses Primais, ou seja, que a neurose começa a manter-nos afastados da realidade de nossos sentimentos e que esses mesmos sentimentos, quando experimentados nos primeiros anos devida, podem levar à loucura. O estímulo de todas as sensações Primais de maneira repentina e artificial com o uso de uma droga pode levar às mesmas possibilidades de loucura. Nos primeiros tempos da pesquisa do LSD, a droga era conhecida como um agente psicotomimético (imitador de psicose). Era usado para o estudo da psicose. No princípio não houve muita preocupação porque acreditava-se que a droga produzia a psicose que, no entanto, desaparecia, quando ela não era mais administrada, mas o entusiasmo logo cessou quando apareceram casos em que isso não aconteceu. O resultado foi que o LSD foi condenado para a maior parte dos fins de pesquisa, já para não falar do seu uso generalizado. Eu acredito que o LSD não somente imita a psicose como também produz uma loucura real, embora muitas vezes passageira. Além disso, eu não acredito que as propriedades intrínsecas da droga tenham alguma coisa a ver com as reações bizarras, a não ser até onde estimulam sensações em demasia. Alguns meses atrás, uma moça de vinte e um anos que fora diagnosticada em um hospital neuropsiquiátrico como "pós-LSD esquizofrênica" veio a nós para tratamento Primal. Havia ingerido grandes doses do ácido depois de alguns cigarros de maconha e durante o efeito do ácido entrou em estado de pânico. Quando acabou o efeito da droga ela começou a sentir coisas estranhas. Sentia-se levantada da cadeira e levada para fora e outras vezes fitava desesperadamente uma lâmpada acesa sem saber o que estava vendo realmente. Foi enviada ao hospital neuropsiquiátrico para observação, ingeriu tranquilizantes e dentro de uma semana estava de volta em casa. Continuava na mesma dentro da irrealidade e depois de algumas semanas comecei a tratá-la. Caiu logo em transe Primal onde começou a reviver a experiência com o LSD por sua própria iniciativa. Começou a dizer "tudo me cheira a merda. Há merda nas paredes. Meu Deus, está em toda a parte. Eu nem posso limpar-me." (Aí tentou limpar- se mas eu lhe disse o que era) Oh! Oh! Vou ficar maluca. Quem sou eu? Quem sou eu? (Eu a
obriguei a ficar com a sensação) Ah! Já sei. Sou eu, eu sou merda, sou merda!" Nesse ponto começou a chorar e deixou sair uma série de insights mostrando que era assim mesmo que sempre se sentira, sem se dar conta. Falou sobre sua família muito pobre que consistia num pai beberrão e numa mãe espancada e infeliz. Discutiu como sentia-se insignificante. Nunca aspirara ou tentara ser alguém porque sentia-se como se fosse "um bocado de merda que não valia nada." Havia acobertado seus sentimentos e origem sob um verniz de cultura e intelectualismo falsos que o ácido certamente destruíra. Para poder sobreviver ela havia transformado a realidade em irrealidade. Um outro caso de psicose nada tinha a ver com a droga. Essa paciente fora para um colégio interno com a idade de sete anos devido ao divórcio dos pais. Prometeram-lhe que a mãe iria visitá-la com frequência, mas isso não aconteceu. Suas visitas eram poucas, vinha embriagada e em companhia de homens e depois nunca mais veio. Escreveu algumas cartas explicando por que não podia ir e depois também parou de escrever. A criança começou a sentir a realidade de seu abandono. Começou a evitar contatos sociais e para amenizar a sensação de abandono ela inventou um companheiro imaginário que estava sempre ao seu lado. Com o correr do tempo o seu companheiro começou a conversar com ela contando- lhe coisas estranhas, dizendo-lhe que algumas pessoas eram contra ela e queriam isolá-la completamente. Aos poucos ela foi mergulhando numa psicose para afugentar a realidade ameaçadora. Nos dois casos, eu acredito que foi a realidade que produziu a irrealidade. As duas pessoas estavam loucas porque não queriam ver a verdade desde que não fossem mais loucas. Na Cena Primal, defrontando-se com essa verdade, surgiu um sistema alternado que veio ajudar a esconder a realidade. Sua função era fragmentar e depois simbolizar a verdade permitindo que a criança neurótica desse vazão aos seus sentimentos sem perceber o que estava fazendo. Ela começou a fingir. Mas quando a realidade é esmagadora, tanto devido a algum acontecimento ou a uma droga como o LSD que não permite fingimento, a psicose está à espreita. Com o LSD não há muita possibilidade de fingir, já que as sensações são fortes e imediatas, pois a pessoa não pode fingir que está muito ocupada com outra coisa qualquer. Precisa haver o simbolismo mental ou físico como acontece com sonhos e ideias bizarras ou a incapacidade de levantar um braço e completa paralisação de coordenação física. No caso de estranhas mudanças no corpo podemos dizer que a pessoa tornou física a sua psicose. Isso significaria o mesmo split ou divisão como existe na psicose. Esse split foi discutido por uma antiga paciente psicótica. "Era terrível sentir que o corpo estava-se tornando meu, verme como menininha procurando compreender os movimentos de suas pernas e pés. Meu corpo sempre funcionaria independente como se não fosse meu. Será que a razão para o esquizofrênico tanto
se preocupar com o seu corpo é devido ao fato dele ser uma coisa tão estranha? Eu acho que chega a hora em que o corpo deve separar-se do apercebimento para poder ficar bem longe da Dor. Eu acredito que a distorção secreta do significado daquilo que acontece em torno de nós é esse processo automático de tornar tão separados o corpo e as sensações". Um outro exemplo da materialização da sensação foi oferecido por um paciente que, num período de um ano antes da terapia, havia tomado o LSD dez vezes. Entre outras reações ele sempre sentia uma espécie de zumbido persistente na boca durante todo o tempo da viagem. Durante a Primal teve a mesma sensação e inexplicavelmente começou a chupar o dedo polegar. O zumbido continuou, no entanto, até que ele chegou à conclusão que não era o polegar que ele queria chupar e sim o seio de sua mãe. Logo que esclareceu isso o zumbido cessou. Esse homem tinha sido desmamado prematuramente conforme alguma tabela que sua mãe seguira de algum livro sobre pediatria. Embora fumasse dois maços por dia e chupasse furiosamente seus cigarros, ele custou a acreditar que ainda sentisse aquela necessidade do seio materno, mas lembrou-se que tinha sempre alguma coisa na boca até onde sua memória alcançava. Ele tinha escondido seus sentimentos tão bem que o único momento em que mais aproximou-se da realidade foi quando tomou uma droga poderosa. Mas fica demonstrado que a simbolização se instala para proteger o organismo quando as sensações são por demais penosas. Cerca de vinte pacientes nossos tomaram LSD antes da terapia, sendo que alguns em doses repetidas. Quando começamos com a Terapia Primal tivemos alguns pacientes que tomaram o LSD durante o tratamento sem que eu soubesse disso. Eles me contaram mais tarde que acreditavam na eficácia da droga para apressar o tratamento. Como já dissemos antes, não somente são proibidos todos os remédios, e até mesmo a aspirina, durante a Terapia Primal, como também os pacientes já recebem agora instruções escritas para que não se repita o uso do LSD. Mesmo assim, a experiência com o LSD em uns sete pacientes nossos durante a terapia teve bastante valor para a compreensão das reações psicológicas ao ácido. Os pacientes Primais que ainda tinham dores antigas foram bombardeados diretamente pelo que lhes restava de sensações ou sentimentos e conseguiram ligá-los logo às suas origens, sem que houvesse simbolismo. Em alguns casos as dores continuaram num estilo de livre associação durante duas ou três horas. Dois pacientes que tomaram o LSD depois de três ou quatro meses de terapia, tiveram reações momentâneas e simbólicas. No primeiro caso o paciente teve alucinações em que via pessoas nas paredes em práticas estranhas. Ficou intrigado com o que via até que descobriu. "Estava fazendo uma exibição para mim mesmo cá fora para não sentir o que se passava por dentro. O drama realmente continha muitos sentimentos meus, especialmente a raiva. Acho que estava tentando
convencer-me que tudo aquilo nada tinha a ver comigo. Tão cedo percebi que aqueles eram os meus sentimentos eu me entreguei a eles e tudo desapareceu da parede." Antes de uma Terapia Primal, no entanto, o mais certo seria que ele continuaria com suas alucinações até passar o efeito da droga. O segundo paciente tomou o LSD no quarto mês de terapia e começou a imaginar que as pessoas estavam todas contra ele e só queriam vê-lo sofrendo. Suas mãos começaram a inchar e então veio o sentimento em que pedia ao pai que fosse carinhoso com ele. As mãos voltaram ao normal e já não imaginava mais que as outras pessoas estivessem contra ele. Se ainda tivesse muita dor bloqueando-lhe o caminho, dificilmente estabeleceria aquela simples ligação. A maior parte dos pacientes que tomaram o LSD depois de alguns meses de terapia já tinham experimentado antes, e sempre contavam as viagens simbólicas. Uma pessoa sentiu as mãos paralisadas durante uma viagem anterior enquanto uma outra se debatia no chão com terríveis dores de estômago. Uma terceira viu vermes saindo-lhe da boca e do nariz e houve ainda alguém que viu o seu esqueleto num espelho. Mais tarde, quando recordaram aquelas experiências, todos eles surpreenderam-se como o corpo automaticamente parecia simbolizar a dor. O símbolo em todos os casos referia-se a uma específica sensação reprimida. Eu desconfio então que as dores não cessam até que sejam sentidas pelo que realmente são. Os pacientes que já estavam em conclusão de terapia não sentiam muita coisa com a droga. Não tiveram alucinações nem sensações de despersonalização. As suas viagens nada tinham de místicas ou belas, já que eram apenas os sentimentos reais que vinham à superfície. Isso é uma conclusão importante pois contribui para provar a hipótese Primal referente à doença mental e à Dor Primal. Na ausência de significativa Dor Primal, não existe doença mental sob intenso estímulo. Minhas observações mostram que o LSD talvez não seja alucinógeno para uma pessoa normal, nem é tampouco psico-tomimético para os portadores de Dor Primal. O LSD não permite o estabelecimento de ligações sólidas, e somente essas ligações permitem mudanças duradouras. São muitas as razões pelas quais as ligações não podem ser estabelecidas sob a influência do LSD e a mais importante é a que significa o sofrimento da Dor Primal. Sob o LSD as pessoas podem sentir alguma coisa que minutos depois já nem se lembram mais. A droga leva-os de uma sensação a outra sem que nenhuma delas fique fortemente estabelecida no consciente. A plena consciência é indispensável para um pleno sentimento pois do contrário é uma massa de sensações que podem ser confundidas com sentimentos. Um paciente explicou que "as Primais são mais seguras do que o LSD. Quando alguém sente alguma coisa durante a Primal, isso pode durar uma hora e pode-se então estabelecer a ligação com algum acontecimento da vida. Com o LSD eu fui
continuadamente empurrado, sem conseguir concentrar-me em coisa alguma. A droga produzia tantos impulsos ao mesmo tempo que um sentimento levava a outro numa cadeia sem fim que quase me deixou maluco." Um outro que também tomara o LSD disse, "embora soubesse que sentira alguma coisa com o LSD, eu sempre queria que me confirmassem o que havia dito." Em resumo, ele não tinha a certeza do que era real, embora fosse real o que dizia e sentia. A droga amortece o pleno impacto da realidade. Nenhuma das pessoas que tomaram o LSD antes da Terapia Primal chegaram a afirmar terem conseguido chegar aos sentimentos básicos Primais com a droga. Nunca, por exemplo, uma só delas sentiu a solidão que surge na Primal, uma solidão misturada com lembranças de haver sido abandonado só no berço. Com o LSD acontecia tanta coisa que não dava para voltar as lembranças primitivas, e até mesmo com a droga, as primeiras dores realmente traumáticas sempre serão simbolizadas. O que o LSD não faz, em resumo, é permitir que aconteça o específico processo de decifração em que certos sentimentos estão ligados a lembranças especiais que são resolvidas. O homem que tinha zumbido na boca fez dez viagens de LSD sem descobrir o seu significado, ao passo que uma única sessão Primal foi o suficiente para estabelecer a ligação certa. Isso não significa que o LSD não produza muitas insights que nunca seriam alcançados dentro de condições normais, embora eles ainda sejam fragmentados e tenham lugar dentro de um sistema neurótico. Será preciso esclarecer melhor a afirmativa que o LSD não causa necessariamente a psicose em pessoas normais. Eu acredito que se dermos a alguém bastante LSD, isso poderá produzir uma tal pletora de impulsos no cérebro que cause uma completa desorientação e passageira psicose, mas o caso é que esse estado não duraria mais do que o efeito da droga sobre uma pessoa normal, ao passo que pode ser de efeito permanente para o neurótico. Nunca é demais insistir no perigo que representa para o neurótico. Até mesmo uma única dose que não produza uma psicose, pode abalar tanto o sistema de defesa que torne a pessoa susceptível a situações futuras que, de outra forma, nunca chegariam a afetá-la. Há viagens de LSD verdadeiramente aterrorizantes ou depressivas. A pessoa pode ficar apavorada com monstros ou pode ver aranhas passeando pelo seu corpo, e terá depois que recorrer aos tranquilizantes que também são muito usados nos hospitais psiquiátricos para alucinações. Eu acho que nesses casos o que está sendo tranquilizada é a Dor Primal que com isso reduz a necessidade dos simbolismos. Se todas as outras condições forem iguais, essa viagem chega perigosamente perto da Dor. É possível que a primeira viagem do LSD não seja das piores em vista das
defesas existentes, mas quando as viagens se sucedem num assalto ao sistema de defesas e surgem os problemas, elas podem tornar-se penosas. Não é de surpreender que depois de uma viagem ruim a pessoa não se atreva a tomar a droga outra vez, embora isso indique que ela está muito perto de tornar-se real. Ela desiste antes que isso aconteça talvez por sentir que o real e o irreal estão juntos e quanto mais perto se chega, para mais longe se deve fugir. Os pacientes da Terapia Primal, quando chegam bem no fim de seu tratamento, muitas vezes pensam que vão ficar loucos quando estão em vésperas de se despojar dos últimos resquícios de defesa contra o sentimento total de solidão e desespero que sempre existiu neles. Talvez não seja simples acidente o fato de termos conseguido bons resultados com pessoas que usaram o LSD algumas vezes antes da terapia. Desconfio muito dos que só fazem viagens lindas já que isso significa que o split é tão profundo que nem mesmo uma droga poderosa conseguiu afetá-lo. A pessoa que não se encontra muito perto de seus sentimentos é levada ao ácido ou à maconha repetidamente, inconscientemente impelidas pela esperança implícita que eles lhe oferecem. Todas as vezes, no entanto, ela estará fazendo viagens neuróticas as mais variadas. A substância da viagem simbólica não tem grande importância a não ser no que pode referir-se indiretamente à Dor subjacente. O que precisamos lembrar sempre é que a viagem boa para o neurótico deve ser irreal já que o estímulo dos sentimentos num neurótico com o uso de drogas significa estimular a Dor. A pessoa que faz a viagem boa ou mística não está fazendo mais do que o neurótico ebuliente faz sem precisar de drogas quando pinta na mente bonitos quadros para esconderem o que se passa em seu corpo e nos recessos de sua mente.
Heroina O LSD é uma das poucas drogas que estimulam os sentidos enquanto outras servem para amortecê-los como acontece com a heroína. Ela entra em ação quando a neurose não consegue suprimir a Dor. A neurose é o narcótico interno de quem não é viciado. O viciado de heroína geralmente já não conta mais com defesas internas para deter sua tensão, e então precisa recorrer à agulha. Com a minha experiência eu classifico os viciados de heroína em duas categorias. O número predominante deles são sem vida, letárgicos e completamente aniquilados pela tensão. Precisam amortecer todo o corpo para dominar a Dor. A outra categoria são os maníacos e hiperativos que estão sempre correndo. As duas espécies descobriram caminhos diferentes para cuidar de seu enorme sofrimento e ambas são obrigadas a recorrer às drogas quando suas defesas já não conseguem aliviar a tensão. Alguns sentem-se aliviados só com a maconha, mas ela é muito fraca para a Dor do viciado em heroína. Outros que ainda contam com algumas defesas podem se dar bem com a maconha.
De qualquer forma, não é a maconha que leva ao uso da heroína e sim a Dor. A Dor em si não justifica o uso de drogas. O ambiente cultural é positivamente um fator. Se uma pessoa perturbada for criada no Harlem, junto com o jazz onde a droga é coisa corriqueira, ela pode facilmente chegar até à heroína, ao passo que um outro criado numa fazenda de Montana poderia entregar-se ao álcool e tumultos em bares quando quisesse ver-se livre de tensões. A dinâmica interna das duas pessoas pode ser a mesma, e só o que varia é a válvula de escape. O nível de alta tensão do viciado em drogas conserva-o sempre em movimento. Não consegue fixar-se numa coisa durante o tempo necessário para o sucesso, e a longa história de seus fracassos vai aumentando seus problemas. Uma das razões para o fracasso da terapia comum com os viciados pode ser devido ao fato deles não se submeterem ao lento e tedioso processo do insight. Como sabemos, os viciados, de um modo geral, não se interessam muito pelo sexo, e não é difícil descobrir a razão. Os que sentem dor, seja ela psicológica ou física, não podem interessar-se por mulheres, e as drogas ainda aumentam essa condição assexuada. Sentir a Dor é o mesmo que sentir tudo mais e matar a dor é o mesmo que matar todos os outros sentimentos, sendo que o sexo é uma das primeiras vítimas. A relação entre o vício e o homossexualismo latente pode ser constatada com qualquer visita a um hospital de narcóticos, especialmente no caso de mulheres viciadas. Muitas delas são homossexuais ou com tendências para isso ainda reprimidas. Uma viciada explicou a situação nas seguintes palavras: "Eu, realmente, nunca desejei homens, mas sempre mantive relações sexuais com eles para não me sentir diminuída. Sei agora que sempre quis uma mãe. Quanto mais trepava com homens mais revoltada ficava. Tinha que recorrer às drogas." A necessidade de relações sexuais com homens que ela sentia era a forma que encontrara para reprimir seus sentimentos, a necessidade de sua mãe. Enquanto reprimia suas necessidades era forçada a recorrer às drogas. Quando conseguia encontrar válvulas de escape que servissem como substitutos, já não precisava tanto de drogas. Quando foi para a prisão onde não havia drogas para satisfazê-la, ela sucumbiu ao homossexualismo ostensivo. Logo que sentiu a necessidade de sua mãe numa sessão Primal ela já não precisou mais de drogas ou de sexo com outras mulheres. Aquelas que precisam de anfetaminas, de narcóticos ou barbitúricos também refletem apenas uma diferença na direção da tensão. Os de tensão muito profunda parecem precisar de alguma coisa para rompê-la e aqueles em quem a tensão é ascendente precisam de alguma coisa para reprimi-la. Há ocasiões em que a mesma pessoa pode usar as duas em ciclos alternados. O seguinte é uma citação da carta que recebi de um viciado antes de começar
o tratamento. Sempre que leio a expressão "mata a dor" aplicada à heroína, eu me lembro das inúmeras vezes que as pessoas me diziam que a heroína era uma viagem para a morte... era o suicídio lento. No entanto, foi só recentemente que eu senti o aspecto da morte na droga que serve para matar a dor. Olhava os viciados inteiramente alheios à vida, num perpétuo estado de embrutecimento, verdadeiros mortos-vivos, e sempre sentia que, para mim, a droga era apenas uma forma perigosa para a prática da medicina sem licença. Tudo que queria era aparar bem as rebarbas de uma existência cheia de ansiedade... um atalho para o perfeito estado de conforto livre de dor. Era o jeito que eu tinha para tomar o cheiro e funcionar com concentração fazendo as coisas que tinham que ser feitas. Tudo que jamais desejara fora atravessar a vida sem sofrer todas aquelas dores por que passam os homens desde muito antes de eu nascer. Passei a vida inteira mentindo para fugir a castigos e sofrimentos. Passei pela escola como gato sobre brasas, sem estudar e sem chegar perto da realidade. A única coisa que consegui fazer bem como criança foram as mágicas, e parece que desde então tudo para mim não passa de mágica e é sempre isso que estou esperando da vida. Desde muito cedo em minha vida aprendi a ser um mestre em meias verdades. Isso era fácil de fazer, já que, em minha família, ninguém se interessava pelo que realmente acontecia. Consegui os primeiros anos de universidade com relativa facilidade e sem grandes esforços driblando uns e embrulhando outros. Deixei os estudos e meti-me em negócios com grandes ideias e pequenos conhecimentos. Tomei muito dinheiro emprestado e não preciso dizer que em pouco tempo tinha gasto tudo. Empregueime e fui logo despedido. De repente tudo começou a cair em cima de mim e já não tinha mais para onde fugir. Tentei embrulhar minha mulher mas o dinheiro acabou. Foi então que encontrei o que queria. Já não precisava enfrentar nada. O mundo era belo. Não precisava pensar em fracassos... Comecei a frequentar o Harlem. Já conhecia a heroína e seus perigos mas comecei a cheirar. Tudo ficava calmo. A vida corria tranquila e sem dificuldades. Só comecei as aplicações na veia nove meses depois. Já não pensava mais em sexo. Mijei o resto do dinheiro que ainda tinha e as coisas ficaram feias. Entrei em recesso e consegui parar com a heroína. Até mesmo arranjei um emprego. Estava contente comigo mesmo pois afinal conseguira parar depois de um ano e meio de vício e sentia-me satisfeito. Continuava ainda com a maconha, mas aquilo até que era social. O emprego ia bem e tudo estava ótimo, mas o emprego pifou e eu não estava preparado para mais nada. Tentei escrever mas não saiu nada. As semanas passavam e eu estava ficando assustado. Um convidado de fim de semana era viciado e tinha a droga com ele. Tomei a primeira picada depois de um intervalo de dois anos. Senti-me ótimo outra vez. Pensei que podia controlarme e mudei-me para a Califórnia onde esperava melhorar. Já não posso mais passar sem ela... Até o mês passado eu nem pensava em largar. Senti-me tão mal e com
tanta dor quando acordei que, pela primeira vez, cheguei a compreender como as pessoas se suicidam. Não quero morrer, quero viver. Tenho que parar. Ainda tenho muito para viver. A solução não é a droga. Extingue a minha dor mas faz nascer uma outra. Droga é droga. Deve haver uma outra solução. Socorro. Trinta minutos depois de escrever esta carta ele tomou uma dose. Parece que a consciência do perigo da heroína e o desesperado desejo de parar ainda são desprovidos de sentido para a pessoa que sofre. Quando a pessoa suspende a heroína ela entra num transe parecido com uma condição Primal. De fato, o autor da carta deve ter pensado que estava presenciando um estado de suspensão da droga quando teve a sua primeira Primal, com as dores de estômago, suores, tremuras e a Dor. Eu tenho certeza que os sintomas que surgem quando se suspende a heroína são fisiológicos. No entanto, os viciados de heroína que passaram pela Primal acreditam que a maior parte dos sintomas da suspensão da droga são Primais. Quando consideramos a heroína como defesa, bem podemos compreender como a pessoa pode cair na Primal desde que a defesa seja removida. Da mesma forma que a heroína, a Terapia Primal mata a dor fazendo o viciado senti-la. Na minha experiência, o viciado é mais fácil de tratar do que muitos neuróticos que construíram uma complicada rede de defesa que terá de ser desmantelada. O tratamento do viciado é mais rápido e preciso. Há uma grande diferença com o viciado na Terapia Primal. Ele precisa ficar sob vigilância constante durante os primeiros dois meses de tratamento. Os outros pacientes que conseguiram romper as barreiras, podem sob pressão, voltar aos seus sintomas anteriores, mas quando o viciado volta ao seu sintoma, o resultado é um desastre. De nada valerão as promessas que fizer. Ninguém é mais astucioso do que um viciado quando se trata de tentar conseguir a droga. Se conseguirmos atravessar o período inicial de tratamento do viciado, o resto torna-se mais fácil, mas ainda assim, eu recomendaria dez a quinze semanas de clausura durante a Terapia Primal.
Discussão Alguns dos métodos atuais para o tratamento dos viciados em drogas inclinam-se para uma linha dura. Chamam os viciados de sem-vergonhas, estúpidos e dizem-lhe na cara que não são homens. Eu não concordo com essa atitude pois julgo que muitos deles já sofreram bastante sem ser preciso serem ainda espezinhados pela sociedade. É possível que o grupo de pressão que se encontra em alguns abrigos para tratamento de viciados ajude a condicionar o comportamento dos mesmos, mas
isso certamente nada faz para satisfazer-lhes a necessidade de amor. Quando a Dor existe, não há ameaças nem castigos que possam ajudar. Desde que desapareça a Dor Primal já não será mais necessário insultar ou implorar os viciados para que mudem de comportamento. Tampouco acredito que seja de vantagem para eles a obrigação de se comportarem "como adultos". Muitos viciados foram obrigados a serem adultos antes de serem crianças. As pressões e ameaças da sociedade de nada servem pois a maioria deles está preparada para enfrentar um mundo hostil. Eles, no entanto, não sabem defender-se da delicadeza. As pessoas não vivem se espetando diariamente só porque são fracas ou estúpidas. São doentes, e a sua doença é mais séria e real do que as chamadas doenças físicas. O uso da droga não é um desafio atrevido e sim o resultado inevitável de um corpo que sofre e que tenta encontrar alívio. Muitos centros de tratamento de viciados podem mostrar excelentes resultados com uma alta porcentagem de recuperação de seus clientes. Não acredito que seja importante que o viciado deixe de usar drogas não perigosas e tudo que puder ser feito a esse respeito certamente contribuirá para o resultado final, mas não considero como cura o fato dele abandonar o vício. Mesmo que os viciados de heroína nos centros de tratamento abandonem a droga e passem a fumar cigarros ou tomar café em grandes quantidades, eles, ainda assim, continuam sendo viciados, na minha opinião. Os altos níveis de tensão estarão sempre à espreita esperando um momento de fraqueza. Desde que ele possa dar o duro no trabalho, fumar para espantar a Dor e contar com o apoio dos que o cercam, é bem provável que fique afastado das drogas durante anos ou talvez mesmo para sempre, mas qualquer mudança em sua vida poderá trazer de volta a Dor que sempre esteve lá, e o vício voltará. A duração da abstenção não constitui indicação de qualquer suscetibilidade ao vício. Desde que encontre um firme apoio em tudo que o cerca, o indivíduo com um alto nível de tensão pode conservar-se afastado das drogas durante toda a sua vida, ao passo que outros com nível inferior atirados às ruas sem qualquer ajuda logo voltarão ao vício. Quase todos os dias recebo chamados de pessoas que estiveram durante anos em prisões e que logo voltam ao vício. Embora os abrigos espalhados por toda a parte sirvam muito para ajudar os viciados, eu ainda os considero como uma espécie de trabalho missionário. O viciado é acolhido por gente bem intencionada que talvez logicamente o considerem estúpido em lugar de doente, mas se o vício é uma doença, as suas causas devem ser investigadas muito além do simples comportamento superficial.
Maconha A maconha tem um efeito bem diferente da heroína. O que pode acontecer com as pessoas que ficam sob a sua influência depende de três fatores: 1) a quantidade fumada; 2) a profundidade do sistema de defesa e 3) a intensidade da Dor Primal que ele esconde. Com uma quantidade bastante grande de maconha será possível conseguir-se quase as mesmas reações do LSD e isso aconteceria desde que houvesse uma grande Dor subjacente exigindo uma fuga simbólica ou então no caso do sistema de defesa ser muito vulnerável. Não é raro, por exemplo, vermos alguém que já tenha tomado LSD voltar a um momentâneo estado psicótico com o subsequente uso da maconha. A viagem original do LSD para o primeiro assalto importante ao sistema de defesa trazendo a pessoa para mais perto de sua Dor, e o subsequente uso da maconha poderiam fazer desmoronar todo o sistema neurótico. É aí que está o perigo do uso continuado das duas drogas. Uma paciente que fumava maconha depois de haver tomado LSD começou a sentir um medo constante de ser cortada ao meio por uma navalhada e logo depois passou a ter medo de ser embrulhada na cama em que dormia. Esses símbolos tornaram-se compulsivos e obsessivos porque o sistema de defesa contra o medo tinha sido enfraquecido pelas drogas. Em breve os temores tornar-se-iam tão insistentes que seriam necessárias mais reações simbólicas e a pessoa entraria em colapso. Em geral, os efeitos da maconha são mais agradáveis porque o sistema de defesa apenas cede um pouco e não se desmorona completamente como pode acontecer com grandes doses de LSD, e assim a pessoa poderá experimentar um estado de euforia ou misticismo nos primeiros contatos com a droga. Aos poucos isso irá se tornando mais sério e desagradável. Os pacientes Primais que perderam seus sistemas de defesa não conseguem tolerar a maconha, conforme casos que aconteceram em nossa clínica. O neurótico comum que fuma a maconha pela primeira vez pode sentir apenas efeitos fisiológicos como palpitações e tonteiras, ou então desagradáveis reações de ansiedade. No estudo das reações a qualquer droga não devemos olhar apenas para a sua parte química. No caso da maconha, a pessoa com uma boa defesa na sua primeira experiência pode permitir que a Dor venha à tona mas não o suficiente para ameaçar todo o sistema e apenas produzindo sensações novas e estranhas. O mesmo acontece com uma outra droga mais conhecida que é a cafeína. Nós geralmente não nos consideramos viciados em cafeína apesar de muita gente não poder passar sem o seu café em diversas ocasiões. Uma pessoa bem dopada como um viciado de heroína pode tomar dez xícaras de café sem qualquer resultado aparente, mas os que terminam a sua cura Primal não podem tolerar nem mesmo
uma ou duas xícaras. Quase todos eles abandonaram o café. Desde que não exista um sistema de defesa que intervenha, qualquer substância química causa um efeito sério e direto sobre o corpo. Podemos ver assim que o sistema de defesa pode determinar num grau amplo a nossa forma de reação às drogas, já que ele filtra, amortece ou bloqueia os estímulos externos e internos cujo processo de reação é independente. Não podemos, portanto, defender o eu interno ao mesmo tempo que nos comportamos de outra forma com o externo. Tampouco podemos ser reais psicologicamente sem sofrermos os efeitos fortes e diretos de drogas como a maconha ou a cafeína. Ser real significa ser sistematicamente real; ser irreal significa ser sistematicamente irreal. Eu acredito que muitos consumidores de maconha estão tentando ser reais mas estão fazendo isso de uma forma irreal. Em um certo sentido "ficar alto" é simbólico, já que significa agir inteiramente livre, mas a verdadeira liberdade significa sentir o eu magoado e não apenas liberado provisoriamente com drogas da opressão causada pelo sistema irreal. A diferença entre o verdadeiro viciado de heroína e o fumante de maconha é que, de uma forma geral, a maconha não é a chave ou a única defesa de quem fuma, já que ele conta com outras defesas e até mesmo com a tensão, ao passo que o viciado em heroína já não tem mais defesas. Ela é a sua defesa e ele só funciona com a droga. De um modo geral, o fumante de maconha tem menos Dor do que o viciado em heroína. A maconha ajuda a erguer a repressão de forma que a pessoa às vezes sente abrir-se todos os seus órgãos sensoriais. Consegue ouvir nuances num disco ou ver cores estranhas num quadro, e esse processo também produz insights, o que já não acontece com a heroína. Uma paciente recordou-se de sua experiência com a maconha antes de fazer a sua Primal. "Numa ocasião em que estava "alta" eu, de repente, lembrei-me de meu pessoal fazendo caçoada de mim por causa da maneira como pronunciava certas palavras, e obrigavam-me então a declamar algumas frases difíceis uma porção de vezes quando havia visitas, e davam grandes gargalhadas. Percebi que desde aquela época eu ficara com medo de falar diante dos outros." Esse insight veio de uma lembrança reprimida que a maconha liberou. A cena era triste e nunca teria sido lembrada normalmente. Desde que era consciente tornava-se possível ligar o comportamento presente com a Dor do passado. Isso é o insight. Se aquela mesma lembrança tivesse ocorrido durante uma Primal, a Dor poderia ser terrível e os insights mais prolíficos e fisicamente envolvedores. Não é segredo o fato da juventude de hoje sentir uma grande atração pela maconha. Por alguma razão, a sociedade decidiu que a melhor maneira para a solução do problema é a repressão da droga em vez de procurar as causas que levam a ela. A juventude de hoje sinceramente não sabe de nenhum outro caminho para chegar ao que sentem a não ser com o uso de drogas, mormente depois do que já
lhes aconteceu antes. A questão não é saber por que se viram para as drogas e sim por que foram desligados. O que acontece a muita gente com o uso da maconha é que as defesas tornam-se maiores. São levadas a grandes gargalhadas ou a comer com voracidade, já que conseguem sentir embora não seja o sentimento real. O que a droga faz, essencialmente, é devolver a pessoa ao seu corpo. As gargalhadas incontroláveis, por exemplo, são muito mais uma experiência corporal para muitos neuróticos do que a gargalhada sem a droga. Os pacientes que terminaram suas Primais já não precisam mais de maconha ou drogas, e eu acho que essa é uma melhor solução para o problema.
Sally Quando Sally chegou ao meu consultório, vinha do hospital neuropsiquiátrico local com o diagnóstico de "psicose pós-LSD". O colapso final resultou de uma viagem do ácido seguida de intenso uso de maconha. Constituiu um rápido tratamento, como, aliás, é o caso com aqueles que se encontram à beira do colapso. Tenho vinte e um anos. A minha vida em casa em criança era uma briga constante. Meus pais estavam sempre brigando e eu me tornei nervosa ao extremo. Os meus primeiros quatro anos de escola foram num colégio católico e o resultado foi um completo desastre. As freiras não gostavam de mim e estavam sempre a castigar-me. Obrigavam-me a escrever a lição de catecismo dez vezes durante o recreio enquanto todas as outras meninas brincavam, sem que eu jamais compreendesse por que estava sendo punida. Sentia-me infeliz e urinava na aula, enfiava o dedo no nariz sem que ninguém me ajudasse. Lembro-me como sentia-me solitária ainda tão pequenina e esse pavor veio estar comigo já em idade adulta. Uma vez que a vida na escola era uma merda da mesma forma que a vida em casa, eu recorria ao único refúgio que encontrava para não enlouquecer e então cantava. Na escola isso me tornou mais querida nos primeiros anos do secundário já que tinha uma boa voz. Tomei parte no coro da igreja no domingo é no dia de S. Patrício cantando uma canção irlandesa. Quando ficava só em casa vivia num mundo de drama. Fantasiava imaginando-me estrela de cinema e ganhando prêmios. Teria ficado louca naquela ocasião se houvesse percebido que minha vida era simplesmente merda, mas a minha fantasia tornava-me a vida bela. Lembro-me que sentia dores quando cantava ou representava para mim mesma, e a dor me dizia que aquilo não era real, e era apenas um sonho. Tinha crises de choro na expectativa de ver meu sonho realizado, querendo ser alguém já que até ali era ninguém. Não tinha a menor confiança no futuro e não sabia o que seria de mim. Durante toda a minha vida continuei sendo a criancinha sem jamais chegar à realidade. Continuava a enfiar
o dedo no nariz e a chorar pedindo ajuda, pedindo para crescer, mas ninguém podia me ajudar pois eu chorava em segredo, e, aliás, não queria mesmo que me ajudassem. É engraçado a gente ser neurótica. Crescemos fisicamente, sabemos mais, compreendemos muito mais e muitas vezes chegamos até mesmo a comportarmonos como mais velhas pois é isso que esperam de nós. Mas lá bem dentro da gente continua a existir aquela criancinha que só quer ser amada e acariciada, que quer ser protegida. Há uma constante luta interna para termos aquilo que desesperadamente precisamos, ou seja, o amor, proteção e tudo mais. Queremos crescer, queremos ser adultos, mas sempre existe lá dentro de nós alguma coisa em suspenso. Comecei a terapia em janeiro, e cheguei até lá devido aos acontecimentos que tinham começado oito meses antes. Vinha tomando LSD sem sentir efeitos maus, mas na última vez que tomei aquilo deflagrou uma coisa que eu considerava loucura. Meu companheiro e eu tomamos duas cápsulas cada um. Eu estava de mau humor porque queria ir a uma festa, mas ele não quis ir e então tomamos o ácido. No fim fomos a uma outra espécie de festa. Havia lá os que já tinham, tomado a droga e outros que não tinham. Já me sentia melhor até que o LSD começou a fazer efeito e todos os meus sentidos tornaram-se mais agudos. Sentia até mesmo o meu próprio cheiro. Olhei em torno para ver se os outros também estavam sentindo. Ninguém parecia sentir. Corri ao banheiro e comecei a ensaboar-me as axilas mas nada consegui. Sentia-me suja e cheirando a merda. Quando voltei falei com meu companheiro e fomos lá para fora. De repente senti uma espécie de ataque. Sentia perder a cabeça mas logo voltava. Comecei a sentir medo. E tudo tornou a acontecer outra vez repetindo-se durante sete horas. Nunca sabia se iria então voltar ao normal. Não descobri realidades. Era uma série de visões e completo terror, e estava convencida que ia ficar completamente louca. Depois de sete horas melhorei um pouco, os ataques passaram mas eu ainda tinha muito medo. Tentei dormir mas estava sempre abrindo os olhos apavorada. Depois de alguns dias voltei ao normal. Só dois meses mais tarde comecei a sentir os efeitos marginais da droga. Tudo começou com um pesadelo. Acordei aos berros pois sonhara que tinha ficado louca. Foi um pavor horroroso e total. Não conseguia dormir e acordei meu companheiro que procurou animar-me. Eu não queria aquilo e sim saber o que estava acontecendo de errado. Precisava saber. Naquele dia e durante muitos meses seguidos vivi um verdadeiro inferno. Tinha a certeza que estava louca devido às ideias que me ocorriam. Já faziam dois meses depois que tomara o LSD e ainda me sentia como se estivesse cheia dele.
Queria saber por que. É praticamente impossível tentar explicar tudo que me tornou louca, a não ser que minhas defesas estavam arrasadas. Com isso quero dizer que não conseguia raciocinar. Nada me parecia certo. Não sabia se a parede era parede ou se a cadeira era cadeira. Não conseguia sentir-me. Estava sempre apavorada. Sentia-me presa de minha mente e pensava que a única solução seria a câmara de gás. Não esperava sobreviver àquela crise. Nesse intervalo as coisas iam se sucedendo em torno de mim sem que eu me desse conta. O meu companheiro estava negociando com drogas. Não tinha emprego e eu também não tinha, mas tínhamos dinheiro ilegal. Nosso apartamento estava sempre cheio de cabeludos viciados e era grande o estoque de drogas. Aquilo era o paraíso dos viciados. Eu não tomava conhecimento de nada que se passava e tampouco me importava. Durante todo esse tempo não tomei droga alguma nem mesmo sentia desejo. Só pensava no que estava acontecendo com a minha cabeça e considerava-me maluca irremediavelmente. Era aquele o ponto certo para eu ter começado com a Primal, mas infelizmente isso ainda não fora descoberto. Assim, quando entrei para uma terapia em vista do meu desespero, tudo mudou mas de forma totalmente diferente do que é agora. Foi então que aprendi a construir minhas defesas. Já não tinha mais medo o tempo todo e sim apenas durante algum tempo. Também já tinha alguém em quem me apoiar, uma pessoa que podia responder as minhas perguntas, meu terapeuta, em suma. Acreditava em tudo que ele dizia e não precisava mais ter medo. Confiava cegamente naquele homem que para mim passou a ser um Deus, um pai e um protetor de minha sanidade mental. Quando nosso grupo de terapia começou a descobrir coisas sobre a Dor Primal, senti dentro de mim uma coisa muito forte mas sentia-me infeliz. Não sabia o que queria ser ou fazer. A minha primeira experiência Primal foi deflagrada por uma decisão. Estava decidida a casar-me com meu companheiro. As coisas tinham mudado. Ele já tinha um bom emprego que nada tinha a ver com drogas e eu também tinha um bem bom. Já estávamos começando a parecer gente comum, já éramos um casal de jovens normais. Depois dessa decisão, numa noite no grupo em que estávamos conversando e que eu me sentia tão feliz, parei de repente, e olhei bem para dentro de mim, e foi aí que vi que ainda não tinha encontrado a solução. Deitei-me no chão e comecei a respirar fundo. Logo seguiram-se gritos de raiva. Sentia-me como merda. Sentei-me lembrando que as pessoas do grupo tinham-me feito perguntas e que eu respondera, mas não me lembrava de nada. Todos em volta de mim estavam alegres e me diziam que eu tinha conseguido, e repetiam aquilo muitas vezes. E eu só pensava que era uma merda porque durante
toda a minha vida só fizera mentir para mim mesma. Toda a minha vida tinha sido uma palhaçada sem o menor sentido. Eu era nada. Essa foi a minha primeira brecha para chegar à realidade. Depois dessa Primal passei por muitas outras e em todas elas livrava-me sempre de algum sofrimento grande que estava guardado bem lá dentro. Foi muito mais fácil livrar-me da esperança de conseguir o amor de meu pai porque ele sempre fora mais real. Já com minha mãe o caso era diferente. Meu pai tinha um emprego no qual permaneceu durante trinta anos, mas sempre bebia muito. Quando brigavam, o que era quase todos os dias, eu e meus irmãos ficávamos ao lado de mamãe que era quem mais sofria, mas que insistia em manter a família reunida. Livrei-me de meu pai com maior facilidade porque nunca me enganara a seu respeito. Sempre fora um sacana muito ordinário que não valia nada. Com minha mãe a coisa era diferente. Eu estava convencida que ela me amava muito e ela também pensava a mesma coisa. Assim, era-me difícil desistir de um amor que eu acreditava existir embora soubesse que tal não acontecia. Uma das minhas últimas sessões Primais foi quando eu finalmente desisti de seu amor. Estava estirada no chão gritando e sentia a Dor no meu estômago. Minha mãe saiu-me das entranhas quando eu gritava sem cessar chamando-a e perguntando-lhe porque não me amava. Eu sabia que aquela era a verdade e que toda a minha vida lutara para conquistar o seu amor. Ela me dizia em palavras que me amava, e eu sabia que se fosse boazinha chegaria um dia a ter o seu amor, mas eu não sabia ser boazinha. Eu sempre queria zangar com todo mundo e só não o fazia com medo de perder o seu amor. Depois de cada Primal a minha voz descia um pouco na escala. Houve um momento que chegou a um baixo profundo, embora durante toda a minha vida ela tivesse sido aguda e suave. Agora estava sendo a voz real. Também a visão parecia melhorar, pois já não tinha mais medo da luz. Minhas ideias tornaram-se mais claras e já conseguia falar com outras pessoas e fazer-me compreender por elas. Tinha confiança naquilo que dizia porque sabia que era eu quem estava ferido. Antes eu nunca sabia pois dentro de mim havia duas pessoas numa luta constante. Já não vejo mais lutas em minha vida pois estou sempre conformada com tudo que acontece. Posso escolher o que desejo que aconteça e posso fazer o que muito bem entendo. Encontrei a felicidade porque cheguei a compreender que vivemos num mundo irreal e que a maior parte de sua população também é irreal. É assim que
devem pensar as pessoas sadias e como nada podemos fazer quanto à vida alheia, mesmo quando isso nos oferece perigo, o melhor será não nos preocuparmos com o que eles fazem. Devemos fazer o que for possível para nos proteger e nada mais. Por mais irreal que seja o mundo eu consegui encontrar nele a minha realidade e é ela que o torna real simplesmente porque é minha.
Voracidade Eu considero a voracidade como um vício porque a pessoa que precisa estar sempre comendo considera a comida como uma espécie de injeção constante de alguma droga tranquilizante. A pessoa voraz muitas vezes nem tem fome. Come para satisfazer um impulso incontrolável que geralmente a assalta quando está sozinha. A gordura que cria com essa comida serve como camada isolante contra a Dor. Por esta razão, as pessoas gordas geralmente são pacientes difíceis para a Primal. Já falei aqui antes sobre a tensão ascendente e descendente e isso se torna evidente no tratamento das pessoas obesas. Muitas delas chegam à terapia sem ansiedades já que a sua Dor vem sendo mantida adormecida à custa de drogas, de bebidas ou comida. Com isso sempre conseguiram abafar e empurrar para dentro os sentimentos reais que estão sempre prontos para virem à tona desde que não sejam protegidos pela comida. Essa é a tensão descendente. Não é bem sentida como tensão e sim antes como uma sensação de vazio disfarçada em fome. Um paciente assim manifestou-se: "Eu comia para afastar a tensão que tentava me devorar. Toda a minha vida girou em torno da próxima refeição. Havia tão pouco em nossa família que a comida servia de tudo para mim. Era a única coisa que minha mãe fazia por mim e que eu achava boa." E ela comia para não chegar a sentir o que havia de desagradável na vida de sua família. A tensão ascendente é aquela que acontece com quem come demais e que não consegue isso durante algum tempo. Na primeira semana de terapia, por exemplo, quando o paciente não pode comer muito, as suas defesas baixam enfraquecidas pelo terapeuta e ele se torna ansioso. Começa a sonhar mais do que antes, não pode ficar parado, e logo perde o apetite bem a contragosto. Isso é porque os seus sentidos estão em ascensão e são tão fortes que impedem a ingestão de alimento. Perderá muito peso nas primeiras três semanas sem precisar se esforçar. Quando alguém come mais do que precisa, é claro que não é por causa da comida. Trata-se de algo simbólico. Há quem diga que isso equivale a encher o vazio do corpo para não sentir o vazio da vida. Outros acreditam que ainda é a criancinha que existe lá dentro e que ainda sente necessidades orais, e alguém chegou a dizer que "estava comendo para matar a fome da criancinha que não tinha comido."
Cada pessoa gorda tem uma determinada constelação que é a responsável pelo seu estado. São muitas as dinâmicas que contribuem para formar o comilão. O que é muito importante lembrar é o fato que a comida é a válvula de escape para muitas espécies de necessidades, e o mesmo acontece com o sexo. O alimento abafa a Dor que pode não ter relação alguma com qualquer privação anterior, e assim, a terapia não precisa ocupar-se disso. O alimento pode ser escolhido para abafar a dor em lugar de drogas ou bebidas conforme for a subcultura em que o indivíduo tenha vivido, e que talvez dê mais valor à comida ao mesmo tempo que proíbe as bebidas. O neurótico tem desejos falsos e, terapeuticamente, cuidar disso significa não tratar o que é real. Tivemos o exemplo de uma mulher que estava em tratamento Primal e que, de repente, começou a comer. Contou o sonho que tivera: "Minha mãe estava flutuando no espaço com uma faca de açougueiro na mão pronta para desfechar em mim. Fiquei aterrorizada e tentei escapar. Quero fingir que não sou eu e sim um monstrinho qualquer, mas não adianta. Ela vai atacar-me e eu acordo." Eu faço com que ela mergulhe no sentido do sonho passando a contá-lo como se estivesse acontecendo naquela hora. Ela torna a passar pelo terror e então compreende toda a situação. Sua mãe era muito possessiva de seu pai e queria manter-se bonitinha e esbelta para ter sempre a sua atenção. Em algum ponto de sua vida a paciente começou a sentir que sua mãe não queria vê-la esbelta e graciosa, e para fazer-lhe a vontade a menina começou a ficar gorda continuando assim durante a maior parte de sua vida. Tinha sentido o ciúme da mãe, e o seu grito Primal foi "Mamãe, não fique zangada. Eu não vou levar meu pai". E foi para isso que tornou-se obesa. A maior ameaça à sua existência era, portanto, tornar-se esbelta e graciosa. A gordura era a sua defesa e nenhuma terapia conseguia alterar aquilo até que começou a sentir-se diferente. Depois que passou pela Primal ela verificou que realmente sua mãe tinha ciúmes dela e logo depois da Primal começou a emagrecer. Isso mostra bem como pode ser complexo o problema da gordura. Algumas mulheres sentem medo de serem bonitas por causa das consequências sexuais que isso acarreta. Outras comem porque encontram a comida ao seu alcance ao passo que o amor já não está. Alguns neuróticos comem para mostrar que ninguém conseguirá enchê-los. Desde que não tiveram o que queriam na primeira infância eles chegaram à conclusão que só queriam comida. Uma mulher chegou a dizer que não vivia em seu corpo porque ali havia muita dor e insatisfação, e portanto passou a viver da cabeça enchendo o corpo com comida para abafar os sofrimentos. Há um conhecido axioma que afirma a existência de um magro dentro de cada gordo. É uma outra maneira de dizer que existe uma pessoa real dentro de cada outra irreal. Eu já descobri que quanto mais normal for o corpo, mais perto estará o neurótico de sua realidade e sua Dor. Portanto, a primeira coisa a fazer para o
tratamento Primal dos que comem muito é deixá-los passar fome para desmanchar a sua falsa frente. Durante esse período eles devem ser vigiados tão severamente como se fossem viciados, pois serão capazes de todas as astúcias quando começarmos a desmanchar suas defesas. O glutão estará em perigo até que a maioria de suas necessidades forem sentidas. Tive um paciente que chegou a confessar-me que se ficasse magro e a vida não melhorasse ele então perderia as esperanças. Quando era gordo tinha sempre a esperança de ser magro, e mais ainda, podia achar que era a gordura que causava seus fracassos sociais e não ele mesmo. Cada gordo alimenta uma esperança diferente. A única maneira de deter um apetite voraz é liberar-se das antigas necessidades compulsivas. Um livro a respeito de obesidade de autoria de um conhecido médico informa que o paciente deve ser educado para uma alimentação racional. Insiste para que leve em conta as calorias de todos os alimentos e chega então à desoladora conclusão que a pessoa deve cuidar-se durante toda a sua vida. Essa história de calorias já é por demais batida e rebatida e todos já a sabem de cor e salteado, mas tudo isso só serve para mostrar suas esperanças irreais. Enquanto o glutão puder ocupar-se com alimentos e dietas, ele nunca enfrentará o que está realmente errado, e isso explica por que nenhum método dividido para o problema da obesidade poderá ser bem sucedido. Os que olham o problema dum ponto de vista exclusivo de dietas e remédios, estão apenas considerando o corpo ao passo que o método psicológico erra também pelo outro lado. No final das contas somente um método psicofisiológico será bem sucedido. A verdade é que um colega meu que trabalha junto com uma equipe de médicos dietéticos informou-me que as recidivas para a obesidade entre seus pacientes quase equivalem às que acontecem com os viciados em drogas.
20 - PSICOSE: DROGA E ANTIDROGA
A minha experiência levou-me à conclusão de que não existe uma coisa que possa ser chamada como um latente "processo psicótico" nem tampouco ideias bizarras escondidas naquilo que Aldous Huxley chamou de "Antípodas da Mente". Bem no fundo de cada neurótico está a realidade dolorosa que é a sanidade desde que possa ser sentida. A insanidade, nesses termos, é então a defesa contra essa esmagadora realidade. Há gente que fica louca para não sentir sua verdade. Isso é uma viravolta das muitas teorias em psicologia que consideram o homem como inerentemente irracional controlado apenas pela sociedade. Toda irracionalidade, sonhos, alucinações e ilusões são para mim apenas os escudos que nos mantêm a salvo e em funcionamento. Quanto à severidade da psicose, se o ego não teve seis ou sete anos para consolidar antes da ocorrência do split, nós só podemos esperar um ego fraco como consideram os freudianos. Se continuarmos a negar à criança o apoio e amor e se ela não contar com válvulas de escape para os ferimentos Primais, esses assaltos adicionais ao ego já enfraquecido irão resultar num outro forte e irreal para proteger a criança indefesa. O ego irreal predomina então e protege a criança levando-a porém para a psicose. Essa predominância do ego irreal (o ego que não sente) responde pelo aspecto sem vida que constatamos nos neuróticos e psicóticos reprimidos. Literalmente, eles estão mais mortos do que vivos. A psicose, portanto, é um aprofundamento do split neurótico que produz uma nova qualidade de existência. A prova gráfica do split é a paranoia na qual a pessoa não consegue mais conter a dissociação dentro de si mesmo nem tampouco continuar usando o corpo como defesa. Dessa forma, ele projeta seus sentimentos para fora de si mesmo, coloca seus pensamentos em cabeças alheias ou imagina que todos conspiram contra ele ou então controlam seus pensamentos. Embora o conteúdo da paranoia seja diferente em cada um, o processo é sempre o mesmo, isto é, a proteção da pessoa contra a Dor intolerável. Por exemplo, a pessoa que não pode aguentar a sua terrível solidão pode imaginar que haja alguém sempre a vigiá-la. Tudo que a pessoa imaginária estiver pensando representa o simbolismo de seus sentimentos. Claro que é lógico esperar sofrimento depois de haver passado por uma infância sofrida. O paranoico não percebe que está reagindo às lembranças. Suas manias são reais. São as lembranças reprimidas que foram projetadas no mundo e que a Dor tornou reais. Só verá vermes saindo de uma parede se isso tiver qualquer
significação interna. Os paranoicos geralmente veem ou ouvem coisas externas que sirvam para aliviar o sofrimento interno. O sofrimento deve ser muito intenso para forçar uma pessoa a colocar uma distância tão grande entre ela e os seus sentimentos. A paranoia é ainda, de certa forma, ligada aos seus sentimentos. Pelo menos as suas manias são mais organizadas em contraste com as espécies mais desintegradas de psicóticos que só falam tolices incompreensíveis. Os paranoicos, de um modo geral, ainda conseguem estabelecer contato. Ainda conseguem citar fatos e coisas da vida real. Só se torna evidente a sua esquisitice quando é atingida uma certa área. Em termos Primais, quando os sentimentos reais são deflagrados, o sistema irreal precipita-se para transformá-los em símbolos. Embora o paranoico perceba bem os fatos da vida real, ele pode tornar-se ansioso por qualquer insignificância sempre imaginando que alguém está querendo prejudicá-lo. A razão para o paranoico ver sempre conspirações secretas contra ele em lugar de alguma coisa ostensiva, é porque ele é uma parábola de seus próprios segredos e sentimentos. Desde que projeta o segredo para o exterior ele já pode concentrar-se em alguma nova preocupação. Isso é parecido com o neurótico com a diferença que a sua fobia é um pouco mais plausível. Para podermos compreender bem as alucinações e manias, é preciso compreender primeiro a profundeza do terror Primal, uma sensação que nunca vemos já que a conservamos bem controlada a maior parte do tempo, e fazemos isso envolvendo-o em ideias agradáveis. Vamos considerar um exemplo bem comum que é a crença em um além que torne a morte menos final e irrevogável. Claro que não vamos considerar essa crença como psicótica porque ela é uma ideia socialmente institucionalizada, mas se muitos não acreditam nisso o que acontece então? Essa crença irracional, considerada assim porque não se apoia em coisa alguma que seja válida, pode existir numa pessoa que, em tudo mais, seja eminentemente racional, mas que, devido ao terror Primal, é obrigada a entrelaçar numa teia bem irracional para manter o sentimento a distância. Para estabelecer uma ponte ligando a aparente incongruência de suas ideias conflitantes mas coexistentes, ela pode ser obrigada a recorrer a uma outra noção irracional, ou seja, que existe um lado "negro" ou "irracional" em todos nós que desafia raciocínio ou explicação. E toda essa superestrutura ideológica tem por único fim evitar o sentimento real! A qualidade bizarra da mania ou da alucinação dependerá sempre da profundidade do terror. Quanto maior for o medo, mais complicado será o raciocínio para escondê-lo. Enquanto for possível alinhar os sentimentos de certa forma, a mente pode conservar-se ordenada e controlada. Quando isso não for possível, por qualquer razão, a pessoa é levada ao terror.
A Dor de todos os psicóticos é imensa porque o seu ego real e o irreal não são aceitos. A pessoa não teve outros recursos na infância senão retirar-se do mundo. Se eu quisesse mostrar em poucas palavras a diferença entre o neurótico e o psicótico eu diria que o neurótico encontrou um meio para viver confortável no mundo, ao passo que nada pode fazer isso pelo psicótico. O que acontece quando a pessoa torna-se paranoica é que devido ao stress o ego irreal já não consegue mais manter- se integrado e esfacela-se. Acontece isso quando a mente já não pode mais conter as sensações do corpo. Quando chega a esse ponto, a psique do indivíduo é reconstituída num novo nível psicótico. Houve um paciente que disse, "a loucura é quando a gente não pode mais fazer funcionar nossa neurose." O fato do paranoico muitas vezes manter diálogos consigo mesmo é uma indicação do split que já mencionei, onde um ego conversa com o outro. O neurótico geralmente consegue manter o diálogo dentro de sua cabeça, mas o psicótico já não tem tanta sorte. A percepção desse processo é explicada por um paciente que fora paranoico. "No começo de minha vida eu deixei de ouvir as mentiras de meus pais e passei então a ouvir só o que queria. A minha audição para o mundo exterior foi-se fechando tanto que cheguei a pensar que ia ficar surdo. Pouco depois só ouvia o que inventava. Eram as vozes. Depois da Primal recuperei a audição. Descobri que já não podia mais ouvir como as coisas eram realmente em minha infância e sim apenas como eu tinha que inventá-las." A dialética da paranoia, como aliás também acontece com todos os comportamentos irreais, é que quanto mais perto chegamos das verdades penosas, para mais longe precisamos fugir. Então variam as distâncias da realidade, e elas vão desde interpretar mal o que se vê até ver o que não existe. A Teoria Primal é que quanto mais estamos perto de nossos sentimentos, mais chegados estaremos à realidade exterior e mais nitidamente perceberemos os outros e os fenômenos sociais. Quanto mais bloqueado estiver a realidade interna, mais deficiente será a percepção social. Assim, o paranoico na fuga desesperada de sua própria verdade é obrigado a alterar a sua realidade exterior, e muitas vezes de forma bem estranha. O verdadeiro contato com a realidade é sempre um processo interno já que as defesas estão organizadas contra o mundo interno e não o externo. Não é dos outros que o esquizofrênico tem medo. São os outros que demonstram o medo do que sentem. É comum os pacientes depois de Primais constatarem que, pela primeira vez, podem tocar em alguma coisa real. Os paranoicos com suas projeções dão-nos boas indicações do que existe no complexo Primal, mas, na minha opinião, de nada servirá analisar essas projeções simbólicas, entrar no sistema das manias, fingir com o paciente ou procurar dissuadilo de suas irrealidades paranoicas. Não é com palavras que conseguiremos eliminar a Dor do paranoico, nem tampouco de outros doentes.
Enquanto as categorias dos diagnósticos para os psicóticos (catatônicos, esquizofrênicos, maníaco-depressivos, e paranoicos) não afetarem materialmente a espécie de tratamento que recebem, todos os diagnósticos serão irrelevantes. Se for possível estabelecer o contato com eles, então haverá probabilidades de cura. É fundamental o conceito da neurose ou da psicose como defesas. O ponto crítico surge quando se despertam os sentimentos, e a pessoa pode senti-los ou não e tornar-se com isso um doente mental. A criancinha reprime seus sentimentos, o seu ego real, e torna-se outra pessoa, alguém como seus pais desejam. Sua neurose é uma defesa. O adulto que reprime suas sensações Primais pode também entrar em colapso e tornar-se outra pessoa, só que essa pessoa pode estar totalmente fora da realidade e ser Napoleão, Mussolini ou o Papa. Um colapso nervoso é parecido com uma Primal sem o terapeuta. É quando alguém começa a perceber os sentimentos Primais e foge aterrorizado para um refúgio mental fora da realidade. Se a criancinha tivesse para quem apelar quando sentiu a sensação Primal, ela provavelmente não teria sofrido o split que a transformou em alguém diferente, e o mesmo acontece com os adultos. Ele só pode voltar para si mesmo, isto é, para a saúde e não para a doença. Segue-se um relatório do tratamento de uma psicótica com trinta e cinco anos de idade que tinha manias e alucinações, ouvia uma voz que orientava sua vida. Até aqui ela já passou por mais de sessenta Primais durante um período de doze meses e tudo indica que não voltará à sua psicose. Seus sonhos são reais e já não ouve mais a voz que acompanhou-a durante tantos anos. A vida dessa mulher foi uma coisa terrível. Foi violentada pelo pai bêbado e sádico quando tinha apenas três anos e meio. O seu split deve ter ocorrido nessa ocasião e ela só veio a lembrar-se do fato depois de umas vinte sessões Primais. Logo que se lembrou daquilo reviveu também outros aspectos de seu trauma nas sessões seguintes. Foram necessárias mais outras vinte sessões para integrar a terrível experiência. Surgiram dois egos quando se deu o split com a idade de três anos e meio. A cada ano que passava ela se tornava cada vez mais dirigida por uma voz a quem obedecia. Era a voz do ego real para mantê-la viva e que conseguiu o seu intento. Ela passa então a falar de seus egos divididos. "Estaria eu louca quando cantava como um índio na floresta? Estaria louca quando pensava que a voz me dizia o que devia ou não fazer ou ver? Eu creio que a resposta deveria ser afirmativa. Não consegui ver o mundo real em torno de mim porque vivia com a Dor. Fugia de tudo com medo da repetição dos primitivos horrores. Não queria compreender nem lembrar o que acontecera. Tinha medo de ser levada ao suicídio e então projetava os meus sentimentos de medo sobre as outras pessoas. Acredito que minha loucura tenha sido causada por Dor em demasia
e por baixo daquela loucura estava a verdadeira Dor que eu não podia suportar. Sei agora que reprimia os meus sentimentos para que nada me levasse à Dor. Já que tudo era loucura em torno de mim quando criança, estaria eu louca ao recusar-me a acreditar no que via? Pode o desejo da sobrevivência a qualquer preço ser chamado de loucura quando isso significa uma morte interna para que uma parte possa viver? Se eu tivesse percebido o horror em que vivia, percebido que não havia quem me ouvisse se falasse a verdade, duvido muito que tivesse sobrevivido." Claro que a sua loucura era uma defesa contra a sanidade. Morando com a mãe que a mantinha junto ao pai sádico e louco, suspeitando desde cedo que sua mãe não a queria ou talvez mesmo desejasse vê-la morta, era realmente uma coisa terrível, pois não tinha para onde apelar. Mais tarde contou-me: "Uma coisa impossível de acreditar era como eu era desprezada somente porque ainda estava viva ali naquela casa. Tentava mostrar-me boa e obediente mesmo sem compreender." O princípio do fim da sua Dor foi quando ela começou a sentir a sua psicose. Desde pequena ouvia uma algazarra dentro da cabeça e durante a Primal descobriu que aquilo era toda a gritaria que se acumulara desde sua mais tenra infância. Ao aproximar-se o fim de sua terapia ela escreveu: "Eu acho que foi um milagre eu ter vivido e estar viva até hoje. Estou entrando num grau de sentimento humano que certamente todas as outras pessoas possuem desde que nascem. Sei que tudo ainda é muito frágil. Tenho medo de ser novamente dividida." "Eu via o meu ego separado sem que ele me falasse. Era obrigada a segui-lo e a ouvi-lo, sempre com medo de sair daquele mundo para entrar num outro que julgava louco. Ele contava-me o que havia de belo na cor e no som. Dizia-me que tudo que sentia era porque não o seguia; que não odiava ninguém porque o ódio não era real e sim apenas o medo de sofrer. Era o medo e a expectativa da Dor." "Dizia-me que a realidade era amor porque só nela sé encontra a verdadeira compreensão e aceitação da pessoa e dos outros. Dizia-me que eu era humana e nada mais, e agora já acredito. Agora quem me apavora são as pessoas irreais porque usam-se mutuamente para provocar, acalmar ou rejeitar a sensação de não ser amada. Talvez a terapia convencional tivesse tentado forçar-me a ver tudo aquilo, mas ela não teria funcionado porque eu sei agora que as necessidades precisam ser sentidas antes de nos darmos conta da impossibilidade de serem satisfeitas." Durante a sua Primal ela se sentiu louca e cheia de manias sempre que chegava perto do sentimento de nunca ter sido amada pela mãe, de nunca ter tido um pai que lhe ouvisse os problemas, nunca ter sido acariciada por mais que fizesse. O objetivo era fazer com que ela compreendesse por que tinha se dividido para entrar naquela câmara de horrores de onde havia fugido tantos anos antes e descido a toda aquela agonia só para encontrar-se novamente. Isso só pode ser conseguido
aos poucos conforme o corpo possa acomodar, pois, de outro modo, não se chegará ao sentimento. O medo e a dor juntarão suas forças para afastar o sentimento e continuar o split. Por aí podemos ver que dentro da Terapia Primal o processo da reversão da psicose é parecido com o tratamento Primal da neurose. O psicótico, no entanto, é diferente do neurótico devido à tremenda quantidade de Dor e à fragilidade do ego real. Em vista dessa enorme Dor, o espaço de tempo necessário para tratar um psicótico pode ser o dobro ou o triplo daquele que se emprega para o neurótico. Além disso temos sempre que guardar o seu meio ambiente durante o tratamento para evitar as influências externas. Mas a nossa experiência até aqui exige um otimismo cauteloso quanto à possível recuperação já que o tratamento do neurótico e psicótico é bem parecido. É só sentir aquilo que causou o split de forma que a pessoa não precise mais transformar a realidade em irrealidade para poder funcionar. Citando mais uma vez a minha paciente psicótica: "Eu sou ainda muito ignorante a respeito de várias coisas mas o que escrevi é a verdade. Por trás de minha psicose está a falta de esperança, o fato de não ser amada e a terrível solidão. Qualquer outro louco que sinta o que eu senti gritará também como eu gritei. Esta noite, na escuridão do silêncio e da solidão, eu sinto que em tudo que faço, em tudo que vejo e falo, estou novamente tornando-me um ser humano. O mundo está se tornando belo porque eu estou me tornando naquilo que as pessoas acreditam que Deus seja. Amor sem qualquer Dor e sem mudança. "Há nos Salmos uma linha que diz: Ainda que eu venha a caminhar no vale com as sombras da morte nem mesmo assim terei medo do mal. Sei que esse vale era ali onde comecei já fazem tantos anos, onde acreditava que alguém me amasse, onde era amada por Deus e eu sentia que Ele estava em minha mente. Sinto o despontar de uma nova realidade."
21 - CONCLUSÕES
Como é espantoso verificar que a linguagem de meus sentimentos e a linguagem de minha inteligência vêm me dizendo a mesma coisa de formas diferentes. Que magnífico exemplo da divisão entre a mente e o corpo, entre os sentimentos e o pensamento ... O fato de não poder compreender porque não sente, de não sentir porque não compreende ... o medo do desconhecido. Barbara, uma paciente A Terapia Primal é essencialmente um processo dialético em que vamos amadurecendo à medida que sentimos nossas necessidades infantis, em que uma pessoa se torna calorosa quando sente sua frieza, em que se torna forte quando sente a fraqueza, em que o sentimento do passado traz-nos ao presente e em que o sentimento da morte do sistema irreal traz-nos de volta à vida. É o contrário da neurose em que temos medo e agimos com bravura, sentimo-nos pequenos e agimos como grandes e estamos sempre representando o passado no presente. Eu acredito que a Terapia Primal funciona porque o paciente finalmente tem a sua oportunidade para sentir o que vem procurando esconder durante a vida inteira. Ele já não precisa fingir que é adulto e controlado e pode ser o que nunca se atreveu, e pode falar tudo que nunca antes teve coragem para dizer. Eu afirmo que a moléstia é a repressão dos sentimentos e o remédio é poder sentir. O sistema irreal foi necessário nos primórdios da vida, mas quando chega mais tarde só serve para deturpar e estrangular. Não permitirá descanso ou sono sem terror e tensão. E esse sistema irreal que fica encarregado de aplicar os tranquilizantes ao sistema real para evitar o seu grito num momento de descuido. É o sistema irreal que entulha o outro com a comida que ele não quer nem pode digerir. É o que arrasta o real num ciclo sem fim de trabalhos e projetos. Muito metodicamente ele vai matando a pessoa de forma literal. Enquanto isso, sempre funciona bem. Mantém a Dor afastada por meio de uma barreira ao sentimento. A vida é apenas um processo de caminharmos até a hora da morte, sempre sentindo desesperadamente que o tempo está correndo sem que tenhamos começado a viver. Enquanto qualquer parte do sistema irreal tiver permissão para continuar, ele será sempre vigoroso e suprimirá o sistema real. É total em todo o sentido da palavra, e faço muita questão disso porque muitas terapias sérias cuidam de fragmentos da neurose acreditando que eles são entidades independentes sem relação com qualquer sistema. Assim, temos clínicas para fumantes e beberrões,
hospitais especiais para viciados de drogas, instituições dietéticas, hipnose do medo, condicionamento de sintomas por meio de choques ou prêmios, terapias de meditação e contato. A Teoria Primal afirma que todo o sistema tem de ser erradicado. Se isso não for feito, sempre encontraremos pais tolerantes ou ingênuos que assumem a responsabilidade pelos filhos delinquentes até que, dentro em pouco, ele está de novo às voltas com a justiça por causa de sua neurose. Os neuróticos são muito astuciosos quando querem conservar a sua condição. A nossa terapia só cuida dos sentidos, sensações e sentimentos, e tanto nos ocupamos do presente como do mais remoto passado que são, aliás, os que não nos deixam sentir o presente. Nós estamos em busca do sentido dos sentimentos que os neuróticos deixaram para trás, mas que, mesmo assim, ainda interferem na sua vida diária. São os sentimentos que trazem as lembranças dos pais e de sua falta de amor pelo filho. São esses sentimentos Primais que se introduzem na vida diária para causar perturbações. São esses sentimentos os responsáveis pelos sonhos maus, para os casamentos precipitados ou para produzir impulsos pervertidos difíceis de se resistir. São sentimentos que continuam intocados durante sessenta ou setenta anos de vida. Para curar isso é bastante senti-los. É uma curiosa contradição que o neurótico que se deixa prender pelo passado é justamente aquele que não tem passado. Foi desligado dele pela Dor Primal, e assim precisa continuar repetindo a sua história dia após dia. Por isso mesmo não muda muito durante toda a sua existência. Aos quarenta anos ainda se parece muito com o garoto de doze. O homem normal tem uma história e uma continuidade que não foi interrompida pela Dor. É tudo de si mesmo. O neurótico sempre preso ao seu passado pode ter o seu desenvolvimento físico e mental prejudicado. Logo que se livra de seus impedimentos passa então a desenvolver-se normalmente em todos os sentidos. Tudo quanto tenho observado nas pessoas que terminam a Terapia Primal leva-me a crer que elas terão vidas mais saudáveis e mais longas. Ser real significa o fim das depressões, das fobias ou ansiedades. É o fim da tensão crônica, das drogas, do álcool, do fumo, da comida exagerada. Ser real significa não ser mais preciso fingir simbolicamente. Ser real significa poder produzir mais sem os impedimentos que geralmente estão sempre presentes nas pessoas criadoras. Significa relações desinteressadas que resultarão em novos seres humanos sobre a Terra e sempre satisfeitos. Ser real é termos todas as nossas necessidades satisfeitas e também podermos satisfazer as
dos outros. O necessário é aquilo que é básico. As crianças sentem necessidades. As necessidades estão sempre relacionadas com os primeiros anos de vida. Podemos fazer o que quisermos com as necessidades, em todos os sentidos, e isso em nada modificará o seu significado. Assim, uma necessidade básica frustrada pode mais tarde transformar-se em desejo de bebida, comida ou sexo, mas a verdadeira necessidade estará sempre lá tornando os substitutos compulsivos e importunos. E isso é a Terapia Primal, ou seja, o sentimento da necessidade. Deveríamos imaginar que numa sociedade normal em que as necessidades reais fossem reconhecidas e satisfeitas, haveria muito pouco comportamento irracional para interferir. Não haveria tantas imposições ou regras porque as pessoas normais compreenderiam as necessidades e viveriam menos perigosamente. Respeitariam os direitos alheios e também as vidas. A supressão de sentimentos e necessidades exige muito controle. Quando um sistema real não é digno de confiança, todas as peças do comportamento precisam ser conferidas e examinadas, e finalmente controladas. O controle é necessário para conter o sistema real, mas a doença exige seus sintomas. Assim, um controle aqui ou ali significa um sintoma diferente em algum outro lugar. O controle total significa a construção de uma pressão interna até que o sistema desmorone. Numa sociedade irreal, aqueles que demonstram menos sentimentos podem ser considerados como modelos ao passo que os opostos são geralmente classificados como histéricos. Num ambiente irreal a paixão é suspeita e a sua falta é garantia. Isso chegou a tais extremos que todos os que cuidam da saúde em nossa sociedade, os psicólogos e os psiquiatras, já aprenderam a agir assim. A impassibilidade é uma das condições. A criança que é criada por pais impassivos, lacônicos frequentadores de cinemas ou professores que são a verdadeira essência da impassibilidade, acabam caindo nas mãos de algum terapeuta impassivo. A Terapia Primal procura mostrar que as medidas reformistas das terapias convencionais apenas ajudam a modificar a fachada, mas deixam intacta a neurose. Na minha opinião, as laboriosas e lentas terapias de insight mantém a pessoa no processo da melhora de saúde sem contudo chegarem a ficar completamente boa. Eu acho que a terapia convencional foi bem aceita pelos intelectuais de classe média devido ao seu método suave e delicado que poupa susceptibilidades sem chegar à estrutura básica. Implícito no método da psicoterapia convencional está o fato que conseguimos compreender nossos sentimentos e necessidades inconscientes e que mudamos tornando-os conscientes. A opinião Primal é que a consciência é o resultado do sentimento, e o mero conhecimento das necessidades não representa solução. Isso é porque as necessidades não se situam numa cápsula instalada no
cérebro. As expressões reprimidas, verbais ou físicas, tornam-se necessidades até que sejam resolvidas. As necessidades devem ser sentidas dentro do organismo porque elas se infiltram em todo o corpo. Se não fosse assim, não haveria sintomas psicossomáticos. Desde que seja verdade que a tensão é a necessidade Primal desligada e que ela também se encontra em todo o sistema, então torna- se claro que as necessidades são sistemáticas, pois, de outra forma, nós teríamos que concluir que as necessidades residem apenas em um bolso de cérebro e seria então bastante tornar o inconsciente consciente. Mais ainda, as necessidades não somente devem ser sentidas em todo o corpo como também devem ser satisfeitas como o foram. A razão para o adulto Primal poder finalmente livrar-se de suas necessidades é que elas ocorreram na sua infância e, uma vez satisfeitas, já não são mais verdadeiras necessidades no adulto. Um paciente era o "queridinho da mamãe" quando pequenino só porque não molhava as calças ou a cama. Quando cresceu urinava muito pouco. Durante a terapia começou a urinar quase de hora em hora até que reviveu os dias da infância em que ele conseguia se conter para ser o bem amado. Depois disso aquela necessidade desapareceu por completo. Embora seja incrível a tragédia que presenciamos no mundo de hoje, parece que ainda não há suficiente sentimento de horror. Talvez seja a neurose que permita todas as atrocidades que presenciamos quando todos nós estamos tentando fugir loucamente de nosso horror pessoal. É por isso que os pais neuróticos não conseguem ver o horror naquilo que fazem com os filhos, por que não percebem que estão lentamente matando um ser humano. Nunca se dão conta que ele está ali. O resultado societal desse mecanismo de repressão em massa é muito parecido com o que acontece individualmente quando vemos o comportamento afastado da realidade. É por isso que tanta gente passa pela lavagem de cérebro, depois de verem e ouvirem somente o que alivia a Dor, e por privarem os corpos de seus sentidos. Quando um sistema irreal não consegue satisfazer as necessidades, então ele deve poder oferecer esperança e luta em seu lugar. Dessa forma, os indivíduos se mostrarão dispostos a abrir mão das necessidades reais para partir em busca de valores simbólicos como o poder, o prestígio, a posição e o sucesso, mas a satisfação simbólica nunca é suficiente porque as necessidades persistem. Muitos psicólogos e psiquiatras desistiram das escolas doutrinárias da psicoterapia e já não mais se classificam como freudianos ou junguianos, preferindo um método eclético. O que parece não estar ainda bem claro é que o ecletismo pode ser um solipsismo invertido no qual quase tudo pode ser verdade porque nada o é. Eu diria que o ecletismo é uma defesa contra a crença numa única realidade, já que alimenta a mania que nós podemos tolerar todos os métodos. Eu acho que o que aconteceu com a psicologia foi que ela desligou dos sentimentos dos pacientes
individuais e teceu hipóteses acerca de certos comportamentos baseados em estudos feitos em animais ou em teorias de duas décadas passadas. Essas abstrações teóricas muitas vezes se mostraram ser um pouco melhor na explicação e previsão de processos psicológicos do que a opinião do paciente sobre o seu próprio comportamento. Talvez não se deve esperar que os psicólogos sejam diferentes das outras pessoas. As teorias que eles adotam são simplesmente opiniões sofisticadas do homem e do seu mundo. Essas ideias devem estar de acordo com o resto das ideias dos psicólogos, isto é, elas devem ajudar a fortalecer o sistema de defesa e a deter a Dor que, aliás, é a verdade. Assim, a não ser que o psicólogo esteja bem desprovido de defesas, é muito pouco provável que ele venha a adotar um método baseado na ausência de defesas e de ter as pessoas preparadas para a Dor total. Tentar fazer com que um psicólogo bem defendido adote um novo conjunto de ideias acerca de indivíduos, seria quase o mesmo que tentar resolver as ideias irreais e as dores do paciente só por meio de palavras. A psicoterapia, até aqui e de um modo geral, vem cuidando de interpretação. Isso sugere que os psicólogos são os detentores de um certo conjunto de verdades sobre a existência humana. Não somente eu não acredito na existência dessas verdades, como ainda também não penso que haja verdades especiais que uma pessoa possa passar para uma outra. Os problemas psicológicos, na minha estimativa, só podem ser resolvidos de dentro para fora e não ao contrário. Ninguém pode dizer a um outro o que significam os atos desse outro. Assim as terapias de confronto e de encontro estão fadadas ao fracasso nesse sentido. E quando um paciente consegue sentir, eu estou convencido que será desnecessário tudo que temos feito para compreender o comportamento humano por meio de tabelas, gráficos ou esquemas, pois tudo isso nada mais pode ser senão a simbolização das ações simbólicas das pessoas. Proponho que evitemos analisar e tratar o que é irreal para cuidar diretamente do que é real. Eu acho uma infelicidade os psicólogos haverem gasto tanto tempo com o refinamento de suas descrições do comportamento humano, com todos os seus jogos, brinquedos e artifícios, na crença que isso iria levá-los às respostas do que desejavam saber sobre tal comportamento. Descrições não são respostas. Elas não explicam o por que, por mais detalhadas que sejam, nem tampouco nos trazem um passo mais para perto da resposta. Agora que o leitor já chegou até aqui, ele pode estar imaginando quem, então, estará habilitado para praticar a Terapia Primal. A nossa experiência no preparo de psicólogos no Instituto indica que isso só pode ser feito por quem já tenha passado por ela. A razão é que somente passando por todo o processo pode alguém compreender bem o seu impacto e toda a sua técnica. Em segundo lugar, e
mais importante, é indispensável a ausência de Dor bloqueada para conseguir um bom tratamento do paciente. Todo aquele que não for psicologicamente saudável dificilmente conseguirá eliminar a Dor do paciente porque terá dificuldades em orientá-lo na direção certa. Ou então se o terapeuta estiver também escondendo alguma Dor, ele pode falhar no momento preciso em que o paciente poderia ser levado ao transe Primal. Um terapeuta Primal neurótico que queira bancar o profissional pode bombardear o paciente com insights de um vocabulário técnico, e se quiser ser agradável poderá ainda não conseguir assaltar o sistema de defesa do paciente. Faça lá o que fizer, ele nunca deve privar o paciente de seus sentimentos. Isso é coisa fácil de fazer e lembro-me de um caso logo que comecei com a Terapia Primal. O paciente era um rapaz que só fazia queixar-se da tragédia que era a sua vida e eu então respondi-lhe que ele ainda era muito moço e que tinha ainda uma vida bem grande à sua frente. Com isso eu privei-o da necessidade de sentir a tragédia dos seus vinte anos passados. O terapeuta Primal deve ser isento de defesas. Ele terá que enfrentar horas terríveis com seus pacientes e nunca deverá ser tentado a acalmar os seus sofrimentos, quando é justamente o contrário que deverá fazer. De qualquer forma, eu realmente não acredito que os pacientes queiram ser acalmados. Eles querem alguém com quem possam sentir-se realmente o que são, por maiores que sejam as suas infelicidades. Um terapeuta irreal pode, sem querer, obrigar o paciente a aceitar a sua irrealidade. O seu prestígio e posição representam a realidade para o paciente. Mesmo que ele passe meses sem falar-lhes, isso é muitas vezes reconhecido como uma prática certa. Se o terapeuta mostrar-se frio e alheado o paciente lutará para conseguir outra vez algum calor. Sê ele se mostrar com superioridade intelectual, existe uma expectativa implícita que o paciente deve curvar-se diante de suas qualidades intelectuais. O paciente nunca deve ser levado a agir de modo especial com o seu terapeuta e nunca deve imaginar que esse terapeuta tenha necessidades que devam ser satisfeitas, consciente ou inconscientemente, pelo paciente. E o que devemos esperar das qualificações profissionais de um terapeuta Primal? Ele precisa conhecer alguma coisa sobre fisiologia e neurologia para não chegar a tratar de alguma lesão orgânica do cérebro como se fosse psicológica. Deve possuir apreciação de metodologia científica para poder distinguir as provas. Deve aprender a não especular abstratamente sobre o que se passa por dentro das pessoas e sim a ser bastante aberto para animar o paciente e lhe contar o que é real. Deve ter qualidades para sentir e perceber bem e isso, naturalmente, significa que já deve ter sentido todas as suas dores. Isso automaticamente permite que ele compreenda os outros. Desde que sinta o ritmo certo de sua própria vida, ele pode também sentir a falta disso na vida dos outros. Ele sentirá e assim saberá quando os outros não sentem. Em resumo, ele deverá ter as qualidades que muitos de nós já
deixamos para trás nos primeiros anos de nossas vidas. Deve ser direto, aberto, delicado e cheio de calor humano. Não posso acreditar que um neurótico, por mais teorias que conheça, possa sinceramente ajudar um paciente também neurótico. Nunca pode saber quando o paciente está bloqueando ou não seus sentimentos desde que também ele, o terapeuta, esteja bloqueando os seus. O neurótico não vive no presente. O terapeuta Primal deve estar sempre com seu paciente para poder sentir o que ele sente e saber quando deve intervir, mas nunca conseguirá isso se perder-se em explicações ao seu doente. A irrealidade do terapeuta pode limitar a realidade do paciente da mesma forma que isso acontece entre pai e filho. Não é só o que o terapeuta faz que tem importância, e sim também o que ele é. Existem técnicas Primais específicas, mas elas de nada valem nas mãos de um neurótico, mesmo que ele conheça fisiologia, sociologia ou psicologia. O terapeuta Primal não trata de pacientes "analíticos" com deficiências de superego ou com pacientes "existenciais" em crise. Em resumo, ele não trata de categorias ou tipos teóricos. Sabemos que quando um paciente se apresenta para a terapia ele geralmente está agindo fora da realidade. Não vemos necessidade para classificar essas ações e fazemos delas algo diferente como, por exemplo, má identificação psicossexual. O terapeuta Primal não trata de um compulsivo ou um histérico, e sim de uma pessoa que, de certa forma, esconde os seus sentimentos. Ele não se ocupa muito da cobertura, a não ser como um incidente, já que se ocupa somente da realidade que está escondida. A dificuldade com o neurótico é que ele já passou a vida inteira fazendo coisas irreais e pode bem fazer o mesmo na sua escolha de terapeuta. Pode ir procurar as falsas psicoterapias e falsos psicoterapeutas para ficar pensando que está se tratando sem cuidar da Dor. A terapia é quase sempre, como tudo mais que fez na vida, apenas uma coisa simbólica e não a real. Talvez entre em alguma aula de análise de sonhos ou terapias de grupo especiais conduzidas por leigos. É muito comum o neurótico ir procurar as terapias "rápidas" já que toda a sua vida fez as coisas correndo. Esses programas todos, geralmente, têm por fim transformar as pessoas em outras novas quando o problema, na minha opinião, deverá ser transformá-las no que são. A existência de entrada e saída separadas nos consultórios é uma herança que vem dos primeiros dias da psicanálise. É bem possível que o fato dos pacientes não se encontrarem, combinando com ausência de relógios no consultório, leve a pensamentos errados quanto à legitimidade da terapia, fazendo com que o paciente imagine ser vergonhoso alguém sofrer de doença mental. É verdade que o paciente muitas vezes sai do consultório com os olhos
vermelhos e os cabelos em desalinho, mas não vejo razão para que os outros pacientes não possam constatar essa realidade. Não há razão para se esconder coisa alguma. Aliás, há até pacientes que se sentem confortados quando vêm tais cenas, pois verificam que é coisa normal. Somos levados a imaginar por que os transes Primais não ocorrem espontaneamente com os terapeutas convencionais. Uma razão importante pode ser a do psicoterapeuta sobrecarregado não ter tempo suficiente para dedicar a um só paciente para chegar ao ponto decisivo. Muitas vezes o paciente estará quase chegando a alguma coisa muito importante quando se esgotam os cinquenta minutos de seu tempo. Numa sociedade em que "tempo é dinheiro" é muito difícil a gente encontrar quem tenha tempo para um trabalho perfeito. Os nossos pacientes frequentemente observam que se sentem tranquilos só de saber que estão sozinhos na terapia individual durante um período de três semanas em que somente os seus sentimentos ditam o fim da sessão. O tempo também não é a única consideração. Quando, na terapia convencional, ocorre alguma anormalidade como uma incipiente demonstração Primal, o terapeuta geralmente tenta enquadrar o acontecimento dentro de alguma interpretação teórica preconcebida em lugar de deixar que a natureza siga o seu curso. O terapeuta Primal deve permitir-se uma perda de controle mais ou menos igual à do paciente. Deve permitir que aconteçam coisas para as quais não encontre explicações. Acontece porém que esse fato incomum pode não se manifestar dentro do contexto da psicoterapia, onde só se trata da mente do indivíduo. Ele deve também andar dentro do consultório em lugar de permanecer sentado na sua poltrona. Se fosse possível ao terapeuta deixar de tentar descobrir o seu paciente, ele teria então tempo para fazer uma grande descoberta: Não há nada para ele descobrir. O paciente não precisa de ajuda desde que esteja sentindo sua Dor. Nós, os profissionais, estamos querendo sempre acertar e fazer com que nossas teorias funcionem controlando bem os pacientes. Isso não quer dizer que as teorias não sejam importantes, e se nós estamos conseguindo Primais todos os dias é porque temos uma teoria que nos orienta, mas elas devem derivar-se das observações. Eu já posso antever a possibilidade de uma grande revolução no tratamento das moléstias psicológicas dentro de muito pouco tempo. O período relativamente curto do tratamento Primal leva-me a acreditar que em breve já não viveremos numa era de ansiedades. Já que precisamos da ajuda e cooperação dos profissionais das doenças mentais, aqui fica o nosso brado de alerta: Muito cuidado com a tendência para tentar incorporar a Teoria Primal às outras teorias que os terapeutas já conhecem bem depois de tantos anos. Se forem buscar as teorias do passado para explicar as manifestações Primais, igualando-as com alguma coisa que já foi dito décadas atrás,
isso significará engajarmo-nos na luta neurótica para fazer sentido antigo de alguma coisa nova. Embora a Teoria Primal tenha certas semelhanças com alguns outros métodos diferentes, eu peço que ela seja examinada pelo seu valor intrínseco. É claro que acredito na existência de uma verdade que é a realidade. A previsibilidade da técnica Primal leva-me a crer que o princípio da Dor pode ser uma verdade importante que estabeleça o comportamento humano. Tudo indica que há um conjunto de leis que governam esse comportamento e especialmente os processos neuróticos que são tão precisos quanto as leis que governam as ciências físicas. Não são muitas as explicações para a gravidade e também não deveria haver milhares de métodos para explicar a neurose. Eu não consigo compreender como seja possível existir uma quantidade de teorias psicológicas, todas elas válidas e todas contribuindo para alguma coisa importante e verdadeira. Se uma teoria é válida, e eu acredito na validez das noções Primais, então os outros métodos são inválidos. Quando digo que a neurose é a manifestação simbólica de sentimentos ocultos e que podemos eliminá-la pondo a descoberto os sentimentos, e quando nós fazemos isso e consistentemente, e previsivelmente, eliminamos as manifestações neuróticas, então nós estamos mostrando o valor de nossas hipóteses. Acho que a razão para havermos adotado tantos métodos psicológicos para a neurose é porque ainda não estabelecemos teorias de previsão. A falta de infinitas possibilidades para explicar o comportamento pode fazer muita gente desanimar. Diz a tradição liberal que deve haver muitos lados para todas as questões e que ninguém pode ser o único detentor da verdade. Ninguém discutirá as leis físicas que trazem a eletricidade para nossos lares, mas todos estão propensos a acreditar que o homem seja por demais complicado para ser governado por leis científicas. Quando aceitamos uma resposta estamos abrindo mão da luta para descobrir a verdade. Parece que sentimo-nos mais confortáveis com a luta. Alguns de nós preferem a terra dos neuróticos onde nada pode ser absolutamente verdadeiro porque pode levar-nos para longe de outras verdades pessoais muito dolorosas. O neurótico tem um interesse pessoal na negação da verdade e é isso que temos que encontrar quando dizemos que já descobrimos a verdade. Encontrar a verdade é o mesmo que encontrar a liberdade. Significa a eliminação da escolha neurótica que nada mais é senão a anarquia racionalizada. O neurótico que deseja ter a liberdade de ver todos os lados, muitas vezes não percebe que pode ir diretamente ao que é verdade, ao que é a sua verdade e não a minha. Só precisa viajar dentro dele mesmo, que sempre é mais perto do que a Índia. A ciência é a busca da verdade, o que não impede que ela seja encontrada. Muitas vezes nós, nas ciências sociais, contentamo-nos com as verdades estatísticas em lugar das humanas e empilhamos casos para "provar" o nosso ponto quando, a meu ver, a verdade científica afinal de contas respalda-se na previsibilidade, ou seja, em fazer com que uma cura aconteça, e não simplesmente em construir raciocínios
técnicos para explicar mais tarde por que alguém melhorou com esta ou aquela terapia. Nós ainda precisamos estudar muito e pesquisar a Teoria Primal e a sua Terapia, e é isso que vamos fazer. Mesmo assim, os resultados até aqui são bastante promissores para convencerem-se que a Terapia Primal trará efeitos duradouros para os seus pacientes porque, afinal de contas, ela não é senão a devolução da pessoa ao que ela verdadeiramente é. Depois de acontecer isso, a pessoa já não poderá mais voltar a esconder-se na sua irrealidade nem mesmo que queira. A volta à neurose, depois de Terapia Primal, seria o mesmo que perder a eminência a que chegamos, a barba que finalmente conseguimos que crescesse ou ver os seios murcharem para o que eram antes da Primal, tudo isso é difícil de acontecer, mas são avisos importantes que dizem estarmos curando uma doença psicofisiológica e não um distúrbio mental. Minha mais profunda esperança é que os profissionais aceitem enfrentar um método revolucionário para a neurose e talvez também percebam que já se passou quase um século de psicoterapia sem que se possa perceber qualquer mudança significativa na cura das moléstias mentais. Acho que já é tempo de reconhecermos que os métodos de remendos para derrubar um sistema irreal não funcionam nem jamais realmente funcionaram. Para o neurótico sofredor que talvez pense ser a Terapia Primal muito complicada ou difícil para suportar, eu diria apenas que a tarefa hercúlea é ser aquilo que a gente não é. O que há de mais fácil é sermos o que somos.
APÊNDICE A
TOM Tom figura aqui neste Apêndice porque o seu tratamento está sendo todo registrado num filme documentário sobre a Terapia Primal e aqui vão as suas observações pessoais sobre o tratamento que, aliás, ainda não tinha terminado quando saiu este livro. Ele tem trinta e cinco anos, é professor de História e divorciado. Recebeu uma educação tipicamente norte- americana. Nunca demonstrou uma neurose aparente. Tudo ia bem com ele, era responsável, bom pai, mas sentia que alguma coisa estava faltando em sua vida. Vivia procurando o que poderia ser. Já tinha passado por treinos de sensibilidade e grupos especiais de encontro. Com isso ficou sabendo muita coisa a respeito das pessoas, mas pouco serviu para os seus problemas. Não era, de forma alguma, o que se pode chamar de neurótico, embora eu viesse a descobrir mais tarde que rangia tanto os dentes durante a noite que tinha um aparelho especial para colocar na boca. Era muito delicado e respeitoso, amava seu país e seus filhos e levava-os em viagens de recreio. De um modo geral parecia feliz. Embora tivesse sempre feito aquilo que julgava certo, ainda assim sentia que a vida era vazia e não estava lhe dando o que seria de esperar. Antes de nos procurar para a terapia ele considerava-se um intelectual completamente envolvido pela história das ideias, pelos sistemas filosóficos, e citava, de cor, longos trechos de autores notáveis. Com tudo isso achava que não estava vivendo a sua vida de forma inteligente. Muitas vezes, a intelectualidade é o processo físico repressivo que funciona como se fosse uma verdadeira couraça para o corpo. Em termos Primais, a inteligência é a capacidade para pensarmos o que sentimos e vice-versa. Tom era professor universitário mas não se considerava bastante vivo e dizia que seus sentimentos eram por demais dolorosos para que pudesse perceber tudo que queria. A sua estrutura de valores mudou radicalmente no curto período de três semanas. Para entendermos essa rápida transformação, temos que nos lembrar que na Terapia Primal, logo desde a infância, as ideias fluem para a mente vindo das mais profundas experiências dos sentidos. Assim, a mente já não inventa mais sistemas de valores para esconder a Dor, e quando o espírito já não é mais usado para reprimir os
sentimentos, a pessoa torna-se real. Os velhos valores e ideias desmoronam-se porque eram principalmente estruturas falsas. Tom nunca conseguira ter seus verdadeiros pensamentos e sentimentos. Aceitava sempre o que lhe mandavam os pais e a igreja. Não adiantava querer mostrar-lhe que as ideias eram falsas ou irracionais. Essas irracionalidades eram supérfluas já que o seu espírito estava sempre de acordo com os seus sentimentos. Ao cair da tarde na véspera do início de minha terapia eu fui para um pequeno hotel muito tranquilo em Beverly Hills. Só saí do quarto no dia seguinte de manhã para ir ao consultório do Dr. Janov. Ao ficar sozinho naquele quarto muito pequenino sem poder fazer nada nem ter com quem falar, senti-me um pouco nervoso. Não tinha nada para fazer e estava inteiramente alheado do mundo. Não fazia a menor ideia do que iria conseguir com aquela terapia. Não conseguia ver um futuro e só tinha o meu passado. Dentro em pouco começaram a penetrar naquele quartinho todos os acontecimentos de importância de minha vida. Para surpresa minha todas aquelas lembranças e reflexões eram extraordinariamente nítidas embora curiosamente irreais. Desejava ver-me de novo envolvido em tudo aquilo mas não conseguia. Havia alguma coisa que me detinha. Por quê? Era como se estivesse contemplando a minha vida de muito longe através de poderoso telescópio. Confundia-me o fato de não conseguir envolver-me. Comecei a sentir que talvez não estivesse levando tudo aquilo muito a sério. Pois então aquela não era a hora de eu estar sofrendo? Tentei descobrir alguma explicação, mas nada consegui. Fui então para a cama. Segunda-feira Minha terapia começou como todas as outras por que já havia passado antes. Entrei no consultório onde mandaram-me deitar num sofá escuro num dos lados da sala. Pediram-me que explicasse porque estava ali. Eu andava muito mal satisfeito com o meu emprego nos últimos dois anos. Pensava seriamente em abandonar o magistério. Minha vida amorosa não me havia dado o que esperara dela em matéria de felicidade. Tinha passado por um casamento e duas ligações. Quando estava na metade dessas explicações Art interrompeu-me. "Não é por isso que você está aqui. Você veio porque é um perdedor. Nunca fará diferença a espécie de emprego que escolher. Continuará sendo infeliz porque é um perdedor." E só com aquela cotovelada ele abriu-me ao meio. Não tinha mais nada para explicar. Depois queria que eu lhe falasse sobre meu pai. Ele era gerente numa firma de transportes. Todo mundo gostava dele porque era muito atencioso. Mas já não era grande coisa como pai. Passava a maior parte do tempo no escritório, e raramente voltava para casa antes das sete. Nunca saía ou bebia. Era só trabalhar.
Chegava em casa, jantava, sentava-se na poltrona e adormecia. Sempre fazia coisas em casa. Também gostava de ouvir o futebol no rádio. Fora disso quase não havia mais nada para dizer. Nunca fazíamos nada juntos. Eu jogava o basquete no ginásio mas ele nunca foi para me ver. Um dia foi com mamãe a um jogo de beisebol em que eu tomava parte. Fiquei tão nervoso que não dei uma dentro. Logo depois vi o carro deles sair. Pode imaginar como senti-me. Aí fui tomado de surpresa. Art mandou que eu pedisse ajuda ao papai. Não compreendia onde ele queria chegar, mas comecei a fazer o que me pedia. Tentei algumas vezes e depois vi que não adiantava e que papai não me ajudaria. Art não insistiu e passamos adiante. Pediu-me que lhe contasse como era a minha vida em casa quando criança e eu comecei a lhe contar como era o "programa". Aquilo era apenas um esquema algumas vezes sutil e outras bem transparente e destinava-se a proporcionar o meu bem-estar por meio de forças externas e desconhecidas. Tornava-se evidente em casa, na igreja e na escola. Desde que minha mãe era quem mandava em casa, e que a casa era o elo institucional mais junto de meus primeiros anos, eu acabei associando minha mãe com o programa. Em casa ela estava sempre me perseguindo de todas as formas mais irritantes e chegava até aos berros. Eu podia sujar-me quando saía para brincar, mas não muito. Devia comportar-me como um bom menino católico respeitando os mais velhos, fazendo como fosse mandado e não tendo pensamentos sujos. Para todos os fins práticos, a casa era como se não existisse. Era cheia de antiguidades e estavam sempre me aporrinhando para não quebrar alguma coisa. Nem podia pensar em trazer para dentro dela os meus companheiros porque, em primeiro lugar, não devia ter mais do que um ou dois pois senão minha mãe ficaria nervosa. Segundo, brincar dentro de casa era como se eu fosse um liberado condicional sob constante vigilância. Tudo era proibido. Assim, sempre que quisesse brincar com meus companheiros eu tinha que ir lá para fora, e quanto mais longe melhor. Minha família era muito católica e eu, naturalmente, fui para uma escola católica onde, durante doze anos, tive freiras como professoras! Para tornar tudo ainda pior, minha mãe tinha duas irmãs que eram freiras e que ensinavam nessa escola. Assim, todas as freiras conheciam minha mãe. Para mim aquilo parecia ser uma formidável conspiração. Logo que deixasse de ser um bom menino católico o mundo desabava-me por todos os lados. Eu nem sabia ao certo onde terminava a família nem onde principiavam a igreja e a escola. Aquilo era o programa. Quando acabei de contar o programa Art perguntou-me qual fora a minha reação para aquela vida infantil. Aquilo foi como se ele tivesse atirado um fósforo aceso num poço de gasolina. Eu explodi em tiradas flamejantes que eram uma verdadeira delícia. Era como se quisesse com aquilo queimar todo o programa até não restar mais nada. E comecei então a berrar o mais alto que podia. "Foda-se o
programa! Foda-se! Foda-se! Foda-se!" E quando as chamas se extinguiram, já um pouco mais calmo, arrematei então, "E fodam-se vocês também, mamãe e papai, já que são os representantes oficiais do programa." Depois fiquei ali em silêncio ainda algum tempo já tendo, dado vazão à minha raiva. Art perguntou-me sobre minhas relações com meu irmão Bill e eu lhe disse que eram bem fraquinhas. Era três anos mais velho do que eu e não gostava de ver um guri agarrado ao seu traseiro. Durante um breve período, quando eu tinha uns dezesseis anos tivemos alguma espécie de aproximação quando íamos assistir junto a fitas de bang-bang e depois bebíamos uma cervejinha. Mas essas ocasiões eram poucas e também não durou muito tempo a nossa camaradagem. Ao ficar mais velho a imagem que tinha de Bill começou a modificar-se e já o via longe de mim como se estivesse morto. Ele me tirava o gosto de viver e fui me afastando. Parece que todas as complicações giravam em torno de mim, e quando meus pais me apertavam Bill sempre juntava-se a eles ao passo que eu nunca encontrava uma oportunidade para lhe pagar na mesma moeda. Nunca podia contar com ele para os meus problemas. Ficava zangado e sentido e sentia- me cada vez mais solitário. Assim, quando ele tinha lá suas encrencas, eu me sentia melhor e menos solitário. Bill era aquela espécie de criança que está fazendo sempre coisas espetaculares para chamar a atenção dos outros, algumas vezes até mesmo com risco de sua vida. Houve uma ocasião que me senti melhor. Nós tínhamos ido a um salão de danças com amigos seus que logo o desafiaram para beber uma caixa de cerveja. Não foi preciso muito e logo Bill começou a virar as vinte e quatro garrafas. Foi levado para casa completamente bêbado enquanto os outros cá fora entoavam canções apropriadas. Mamãe e papai ficaram horrorizados pensando no que diriam os vizinhos. Eu também estava com medo quando os vi tão zangados, mas intimamente estava também gozando ao ver Bill descer do seu pedestal. Pensei que aquilo fosse contribuir para uma melhor união entre nós dois, mas não foi o que aconteceu. Art comentou então que eu devia ter sido um garoto bem solitário, e eu concordei com ele. Não tinha ninguém para quem apelar. Gostava de sair para andar no mato com companheiros ou sozinho e conhecia tudo a palmo. Íamos nadar no rio. Às vezes fazíamos incursões em campos de fazendeiros e conseguíamos batatas e milho que levávamos para cozinhar em fogueiras ou em cima de pedras quentes. Para sobremesa tínhamos as frutas do mato. Algumas vezes pescávamos ou procurávamos cobras ou sapos. Lembro-me de uma ocasião em que levei um garoto para mostrar-lhe um mamão que ele nunca tinha visto. Comeu tanto que chegou a vomitar. Achei muito engraçado. Quando era garoto gostava muito de jogar bola e era muito disputado porque era mesmo bom de bola, e aí então sentia-me realmente bem já que raramente era assim tão disputado. Mais tarde saía à noite para algum bar ou salão de dança, e outras vezes saía
para a rua para falar com quem me aparecesse. Quanto mais velho ficava mais procurava afastar-me de casa. Durante o curso superior jamais trouxe um livro para estudar em casa. Sentia necessidade de sair. Finalmente fui para a universidade e depois disso passava muito pouco tempo em casa. Quando acabei, Art disse-me que me julgara muito passivo e acomodatício nas relações com meus pais, e eu lhe dei razão. Depois ele me perguntou se eu jamais sentira-me como se fosse mulher ou se tivera fantasias homossexuais. Fez-me a pergunta de um modo que me pareceu uma insinuação maldosa e não gostei. Respondi não a ambas as perguntas. Art não insistiu mais. Voltou novamente para o tal programa e eu fiquei nervoso e quis sair para urinar. Perguntei-lhe onde era mas ele não me deixou ir, dizendo-me que eu iria mijar o que sentia. Contive-me algum tempo mas depois não aguentei mais. Ele me disse que teríamos que parar sempre que eu quisesse mijar. Fiquei com raiva porque pensei que ele estava querendo manipular-me. Saí para urinar. Quando voltei a porta estava trancada. Bati mas ninguém abriu. Fiquei safado da vida. Bati até quase botar a porta abaixo até que ele veio abrir. Perguntei-lhe por que fizera aquilo e ele respondeu com a cara mais cínica do mundo que era para ninguém mais entrar. A minha única resposta foi Merda! e voltei para o sofá onde fiquei a falar ainda durante meia hora. Depois que cheguei em casa comecei a ficar furioso porque ele tinha me chamado de perdedor. A expressão ia-me a calhar. Cheguei até a pensar se realmente tivera fantasias homossexuais. Nunca fui muito de brigar, mas comecei a ficar furioso com Art. Antes de começarmos outra vez ele tinha me prevenido que seria necessário adiar a sessão por um dia porque estava com uma "laringite". Eu ainda não conseguia engolir aquela sua insinuação de homossexualismo e a brincadeira da porta naquela manhã ainda mais me irritava. Estava decidido a esclarecer tudo na manhã seguinte. Terça-feira Cheguei às nove e cinquenta e encontrei a porta fechada. Queria ficar só para acumular bastante raiva e então fui para o banheiro esperar até às dez. Quando cheguei a porta já estava aberta e então entrei. Art perguntou-me por que estava atrasado. Olhei para o relógio e vi que passavam três minutos. Disse-lhe que estivera ali antes e encontrara a porta fechada. Mandou-me deitar e eu lhe disse que não deitaria pois queria falar com ele cara a cara. Ele estalou os dedos e disse-me que deitasse pois estávamos perdendo tempo. O som dos dedos estalando irritaram-me ainda mais e em lugar de obedecer eu fui até a cadeira e sentei-me na sua frente dizendo-lhe que queria esclarecer algumas coisas antes. Disse-lhe que estava cheio de estar sendo manipulado e que queria dizer o que sentia. Ele me disse que eu
estava brincando. Disse-me outra vez para deitar-me no sofá. Dessa vez eu fui mas minhas ideias estavam bem atrapalhadas. Comecei com a minha raiva. Disse-lhe que por trás dela eu estava furioso comigo mesmo porque era um perdedor. Ele me perguntou o que eu sentia. Disselhe que o peito apertava e sentia a barriga ardendo. Ele disse que tinha que pedir ao meu pai para acabar com aquilo. Obrigou-me a respirar fundo com a boca aberta. Aquilo pareceu transportar-me para uma outra vida, mas nada consegui com o apelo ao meu pai. Disse-lhe que ele nunca me ajudaria. Perguntou-me como me sentia. Respondi que sentia-me solitário e desprezado. Isso fez-me ficar triste. Ele me mandou respirar mais dizendo-me para deixar a dor sair. Dessa vez a coisa funcionou. Comecei a contorcer-me de dor. Sentia o estômago em chamas e parecia que o peito estava sendo esmagado. Ele mandou que continuasse e que pedisse ajuda ao papai. Comecei a martelar o sofá como um louco e a gritar por papai até sentir-me exausto. Depois de um descanso Art perguntou-me o que eu tinha conseguido expelir. Durante algum tempo senti-me tão assombrado com a experiência que não conseguia explicar coisa alguma. Finalmente reconheci toda a culpa, o medo de ser eu mesmo e a frustração por não conseguir isso. De repente percebi o que significava o meu apelo a papai. Não tinha conseguido compreender a sua tática, mas agora estava aflito para falar. Disse-lhe que já não me parecia tão absurdo pedir o auxílio de papai pois tinha compreendido que eu estava falando ao papai que estava dentro de mim, o papai que eu sempre desejara ter. Expliquei que era uma questão de conseguir que aquele papai me aceitasse como eu era e que me ajudasse a livrar-me daquela sensação de desprezo e solidão. Ele me perguntou o que eu iria fazer a seguir e eu lhe disse que, em primeiro lugar, eu precisava aprender a sentir aquele pai que tinha dentro de mim. Sentir como era. Sentir como a gente sente as coisas boas para depois saber o que fazer daquilo. Depois disse-lhe como era bom ter um pai que pudesse ajudar, um pai que gostasse da gente. Sentia-me tão bem que ri-me muito e depois chorei durante algum tempo. Logo que consegui falar novamente, contei-lhe como sentira minha solidão e o desprezo. Depois lembrei-me da criancinha solitária num Natal quando fiquei sentado embaixo da Árvore olhando muito triste para as luzes depois que me haviam dito que naquele ano não haveria o Papai Noel pois o Bill já estava muito crescido para aquilo e eu certamente não me importaria. De uma certa maneira estavam com a razão porque eu também já sabia que tudo era fingido e a história dos presentes não era muito importante. Mas foi a maneira deles falarem que acabou com o meu amor pelo Natal e foi aí que percebi que gostava daquilo. Tudo o que eu queria do Natal era um papai e uma mamãe de verdade, que gostassem muito de mim assim mesmo como eu era. Naquele ano eu fui uma criança que teve um Natal muito triste.
Quarta-feira Hoje o Art fez-me deitar no chão. A sessão foi toda no chão, da mesma forma que todas as outras seguintes. Perguntou-me o que fizera desde a véspera e eu contei-lhe que ficara muito cansado, que ainda estava cansado, e que tinha passado todo o tempo descansando. Desde o primeiro dia eu estabelecera uma rotina. Depois da terapia eu voltaria para casa, almoçaria, descansaria mais ou menos uma hora, escreveria minhas notas sobre a sessão do dia, refletiria sobre ela, jantaria, escreveria mais, ficaria sentado sem fazer nada durante uma hora e depois iria para a cama. Verificara que concentrando-me exclusivamente na terapia, eu poderia conseguir muitos insights e lembrar-me de muitas coisas do passado que talvez ajudassem. Mas o dia anterior fora tão exaustivo que depois de escrever eu não consegui fazer mais nada. Fiquei ali deitado como se estivesse morto. Três acontecimentos vieram à minha mente e eu passei a narrá-los. O primeiro foi o dia em que papai levou Bill, um primo nosso e eu a um jogo em Cincinnati. Eu tinha uns cinco anos e estava assombrado com tudo o que via. Quando entramos no campo fiquei vidrado. Quando terminou o jogo nós saímos todos e quando íamos passando pelo portão eu me voltei para dar mais uma olhada para o campo. Queria ainda ficar lá, talvez até mesmo a noite inteira! Quando finalmente voltei-me não vi mais meu pai nem os outros. Entrei em pânico e abri o berro. As pessoas juntaram-se em torno de mim para saber o que era, mas logo apareceu papai com os outros. Tomamos um ônibus para levar-nos à estação mas eu já não me aguentava mais e queria mijar. Falei com papai mas ele disse que não podia fazer nada e que eu mijasse mesmo nas calças. Senti um grande alívio mas ao mesmo tempo lembro-me também como foi ruim voltar para casa com as calças de lã molhadas. O segundo foi nos meus primeiros anos de escola. Havia dias que eu voltava da escola e encontrava a porta fechada. Eu ia então para a porta dos fundos e batia gritando para mamãe deixar-me entrar. Então um dos vizinhos vinha e dizia que ela não estava em casa e eu não podia fazer outra coisa senão sentar-me para esperar que ela voltasse. O terceiro foi numa noite quando eu devia ter uns oito anos. Nós não tínhamos carro. As únicas ocasiões que eu tinha para andar de automóvel era quando meus avós vinham para buscar-nos. Numa noite de domingo eu estava de visita na casa de um vizinho do outro lado da rua quando eles vieram buscar-nos para dar um passeio. Meus pais disseram- lhes para não esperarem por mim e eu ainda vi quando iam saindo para dobrar a esquina. Corri e gritei o mais que pude mas não os alcancei mais. Art perguntou-me por que eu me lembrava daquilo e eu respondi que era
porque tinham sido as ocasiões em que eu me sentira solitário e abandonado. Ele me perguntou como eu sentia aquilo e eu lhe respondi que sentia um mal no estômago e no peito. Ele tentou fazer-me respirar como na véspera, mas eu estava cansado demais. Fiquei ali deitado sem movimento. Quando finalmente mexi-me ele me perguntou o que eu sentia. Disse-lhe que sentia uma dor nas costas. Ele me disse que não era uma dor física. Eu lhe disse que me sentia como se estivesse no programa quando não podia fazer isto nem aquilo. Fiquei ali deitado muito tempo pensando no programa. Finalmente disse-lhe que eu acabara descobrindo uma forma para não ser tão desprezado. Eu ia ajudar as outras pessoas em alguma coisa. Ia trabalhar para os outros. Um dia meu avô foi encontrar-me na rua segurando uma folha de papel entre os dentes enquanto dois caras a cortavam ao meio com um chicote. Mandou-me parar sem compreender o que eu estava fazendo. Então Art interrompeu-me para dizer que ele fizera aquilo porque se interessava por mim e não queria ver-me machucado. Eu respondi que ele realmente gostava de mim e eu lhe disse o quanto também gostava dele e como tinha sofrido quando ele morrera. Chorei como nunca antes em toda a minha vida. Foi o dia mais triste que tive. Depois que parei de chorar contei tudo sobre meu avô. Como tinha paciência comigo ensinando-me uma porção de coisas. Ao fim da sessão Art fez uma observação que me surpreendeu e que não conseguia compreender. Depois de chegar em casa tornei a pensar naquilo e cheguei à conclusão que ele queria apenas dizer que eu era um perdedor. Hoje foi meu dia mais difícil. Ontem eu estava zangado mas estava mais animado. Hoje voltei para o chão emburrado como uma criança com o nariz pregado na vidraça querendo participar da vida, como disse Art. Começo a sentir que vai ser uma caminhada bem longa. Depois de trabalhar tanto parece que ainda não fiz nenhum progresso. Comecei a pensar naquela história de ser um perdedor. Sempre me senti assim nos vários estágios de minha vida. Não sei sentir-me de outra forma. Parece ser uma coisa tão difícil tornar a aprender tudo que nem sei como vou conseguir. Quinta-feira Hoje eu comecei me sentindo desanimado ao perceber que toda a minha vida girara em torno de minha condição de perdedor e que teria de percorrer um caminho muito longo para construir um novo estilo de vida. Contei a Art o que achava dele considerar-me um perdedor falando com um sotaque de vagabundo do Meio Oeste. Ele me pediu então que contasse como fora o enterro de meu avô depois de me perguntar se eu comparecera à cerimônia. E eu então contei-lhe tudo
sobre o velório, sobre a morte e sobre o enterro. Disse-lhe ainda que não chorara muito. Um pouco no primeiro dia e um pouco quando vi o caixão descendo na sepultura. Mas tentei portar-me como um homem. Ele me perguntou se eu tinha dito adeus a meu avô antes dele descer à sepultura e eu disse-lhe que não por causa de tanta gente que havia ali. Ele então me disse para dizer o adeus ali mesmo e o quanto eu sentia a sua falta. E eu então disse adeus a meu avô com todo o meu amor e tudo que sentia em meu corpo. Eu chorei e conversei com meu avô até não ter mais nada para dizer. Chorei que me despenquei relembrando todos os momentos que havíamos passado juntos e tudo que ele fizera por mim. Ainda estou chorando agora ao escrever isto. Então Art me disse que eu falasse com meu pai contando- lhe como desejaria que ele tivesse sido como meu avô. Eu fiz o que ele mandava e depois contei também para Art que meus pais não queriam que eu nascesse e ele ficou tão furioso quando soube que minha mãe estava grávida que até ameaçou de cortar fora o seu pau. Depois contei ao meu pai ali tudo o que sentia e como queria que ele gostasse de minha mãe e de mim. Falei então a respeito de minha mãe e como era difícil lidar com ela que estava sempre nervosa. Aí comecei a sentir outra vez aquela mesma dor nas costas como ontem. Ele me perguntou como era e eu contei que era como se estivesse fazendo força contra alguma coisa. — Contra o quê? — Contra a solidão e o abandono. Era como se eu estivesse andando descalço sobre pedras afiadas. Ao menor descuido me cortaria todo. Aí Art me disse para eu contar à minha mãe que ela estava me cortando todo e eu larguei-me completamente com toda a força de meus pulmões. Quando acabei de gritar senti vontade de mijar. Ao voltar do banheiro Art mostrou certa surpresa dizendo-me que eu estava aprendendo bem depressa. Fiquei bem contente com isso. Quando cheguei em casa comecei a pensar como poderia explicar na terapia porque eu sempre fora perdedor. Tenho estado programando isso. Desde que eu saiba que já sou perdedor, então já não devo aborrecer-me ao ser abandonado. Já saí fora do jogo antes que eles tenham uma oportunidade para me jogar fora. Sexta-feira Hoje foi meu primeiro dia em sessão de grupo. Durante algum tempo fiquei só olhando. Depois deitei-me no chão e disse adeus para o vovô outra vez. Quando foi chegando ao fim eu senti que ele compreenderia que nós afinal tínhamos seguido nossos caminhos separados, ele para a morte e eu para a idade adulta. Senti que estávamos então bem juntos apesar de seguirmos caminhos diferentes. Art disse-me
para aprofundar-me ainda mais e eu fiz o melhor que pude com toda a gritaria e choro que ouvia em torno de mim. Não estava acostumado àquilo mas em pouco já me habituaria. Depois de todos haverem levantado Art apresentou-me a cada um e conversamos. Eu lhes disse que sabia não estar ainda em condições de contribuir com alguma coisa. Disse- lhes também que tinha acordado naquela manhã disposto a deixar de pensar em mulheres pois sabia que já estava bem fodido com todos os meus sentidos. Art voltou-se para mim e disse que eu não tinha a aparência de ser assim tão sexual. Ficou surpreendido com aquilo. Depois acrescentou que tudo era porque eu estava escondendo um latente homossexualismo. Isso foi o fim. Quando cheguei em casa tinha a cabeça estalando. O estômago estava embrulhado e não consegui comer coisa alguma. Só conseguia ficar ali sentado no chão. Sentia que tinha de ser bicha, latente ou não. Não queria viver. Queria ver-me livre daquela ideia. Comecei a pensar em tudo outra vez tentando identificar vestígios de bicha em mim. Comecei a sentir tanto dor que tive de telefonar para Art. Ele estava em Santa Bárbara. Eu queria cair numa Primal e perguntei-lhe como fazer para ter uma em casa. Ele disse que não dava certo e deu-me alguns telefones de outros que poderiam me ajudar. Eu queria saber dele se podia livrar-me daquela história de bicha, e ele disse que não havia problema. Chorei aliviado e respondi que poderia esperar até a segunda-feira para a minha Primal. Segunda-feira Tivemos dificuldades em começar hoje. Tinha conseguido abafar meus sentimentos depois de falar com Art no telefone e não conseguia funcionar. Art queria saber o que acontecera no sábado. Tentei contar quanto podia mas não consegui. Art perguntou-me então como sentia-me agora, e foi aí que eu virei uma fera com ele. Chorava e gritava. "Por que você não veio no sábado quando eu precisei? Que boa merda fez comigo! Solta-me aquela história de bicha em cima de mim e depois dá o fora da cidade. Você na certa sabia a reação que eu ia ter!" Ele mandou-me deitar outra vez dizendo que não fazia mal e que haveria uma outra oportunidade. Disse-me para lhe contar a minha vida. Contei como tinha-me apaixonado por Betty, como tinha trepado com Louise e depois casado com Phyllis. Ele falou da história da mulher mais velha e quis saber tudo de Vi. Quando cheguei ao fim do caso com Betty, à parte traumática, senti vontade de mijar. Já vinha sentindo aquilo logo que começara a falar dela. Contei para Art e ele me disse que ficasse assim mesmo sentindo e não movesse um músculo. Antes eu tinha ficado com os braços dormentes e tinha-os esticado no chão, sem saber o que fazer com eles. Art disse-me para não mover-me e apenas sentir o que se passava. Fiquei ali e
logo depois senti um aperto na barriga como se alguma coisa quisesse subir. Logo depois comecei a debater-me com braços e pernas no chão e com a cabeça rolando enquanto a tensão aumentava. Podia sentir que era um bebê no berço. Fiquei com as mãos tensas como fazem os bebês quando choram. A boca estava torcida como se eu quisesse tirar alguma coisa de uma garrafa vazia. Não falei nem gritei. Sentia falta de ar. Finalmente fiquei tão cansado que parei e fiquei ali deitado muito quieto. Depois, consciente e lentamente, repeti tudo que fizera antes com as mãos e com a boca para ter a certeza de que me lembrava. Senti-me bem tonto quando saí da Primal e não sei exatamente o que aconteceu, mas vou tentar mais ou menos. Art disse, "Não deixavam você pegar nele, não é?" Eu peguei no meu pau e respondi, "Não. Sempre me davam uns tapas." Aí mostrei como era dando-me tapas nas mãos. "Não queriam que você tivesse um pauzinho, não é?" É isso mesmo. Sentei- me e esfreguei o pau. Levantei-me e fui para a frente do espelho, arriei as calças, esfreguei o pau e disse a mamãe e papai que estava certo. Depois eu disse a Art que só podia ter um pau em segredo mas queria que ele fosse parte de toda a minha vida. "Você então sabia, não sabia?" perguntou ele. "Claro que sabia! E era por isso que tinha medo. Eles sabiam que eu sabia e trataram logo de esconder." "E foi aí que você tornou-se um bichazinho..." "Foi isso mesmo." Foi uma coisa esplêndida que senti quando esfreguei meu pau e disse a mamãe e papai que estava certo. "Fui procurar aquele sentimento na filosofia, na religião, no meu trabalho e sabe Deus onde mais, e vim encontrá-lo hoje ali no meu pau! Você é um colosso, Art! Que maravilha!" Depois de chegar em casa passei a maior parte do dia esfregando o meu pau e dizendo a mamãe e papai que estava certo. Ao sair do consultório eu vi um homem mais velho que eu caminhando pelo corredor em minha direção. Meu primeiro sentimento foi aquele antigo de passividade, incerteza e vergonha íntima ao ver um homem que parecia mais importante do que eu. Depois senti que eu tinha um pau também e minha atitude mudou. De repente senti-me confortável e à vontade. Nunca tinha-me sentido assim antes. Uma beleza! Senti a mesma coisa quando cruzei com umas mulheres na rua. Já não tenho mais o mesmo passado. Devo regredir e reconstituir todo meu passado para que se conforme com o que aprendi agora. Preciso fazer isso para conseguir continuidade em minha vida. Sem continuidade a mudança não pode processar-se direitinho. Na terapia eu quero expressar-me cada vez mais sem precisar seguir as sequências lógicas e regulares de frases completas e ligadas com as outras. Fico todo atrapalhado tentando experimentar e ao mesmo tempo duplicar alguma coisa dentro de um padrão verbal ou imaginário.
Terça-feira Hoje Art tentou fazer-me chorar como bebê, mas não conseguiu. Ia quase chegando onde ele queria mas depois a coisa me fugia. Fiquei me debatendo ali no chão durante três horas e meia. Tentei escapar querendo mijar mas não consegui. Se mijasse já não iria chorar pois meus sentimentos sairiam na mijada. Se chorasse, relaxaria os músculos e me mijaria todo. Mesmo assim, o esforço resultou em alguns insights de imenso valor. Senti a raiva de minha mãe quando eu me debatia e chorava no berço. Não aguentava aquilo e queria esconder-me. Fiquei sabendo como era nunca ter o leite suficiente e ter que chupar o ar. Senti a falta de amor nos seus rostos de americanos góticos. Queria me esconder de suas expressões frias. Enfiei-me embaixo do sofá e gritei para Art perguntando-lhe o que queria de mim. Aprendi a falar o tatibitat dos bebês e sentia a distância que existia entre meu pai e eu. Era como se ele me aparecesse ali para dizer-me que não esperasse dele carinho de pai. Lembrei-me que sempre me escondia o seu pau e não queria que eu o visse nu. Também nunca vi minha mãe nua. Quando aquilo acabou eu estava completamente exausto, tão exausto que nem mesmo podia escrever tudo que se passara. Isto aqui foi o melhor que consegui. Às vezes, quando era pequenino, eu me escondia embaixo de uma cama ou por trás de algum sofá. Gostava de ficar ali sozinho sem que minha mãe me visse. E foi o mesmo que fiz hoje enfiando-me embaixo do sofá. Agora estou lembrando. Ficava cansado de ver o rosto dela zangado. Então escondia-me para ficar só. O padrão de meu comportamento na terapia é muito típico. Começo com muita força, mas logo alguma coisa se embrulha. Depois começo a chegar ao ponto em que me torno um meninozinho indefeso. Não compreendo nada. Só vejo que minha atenção está sendo desviada do que estou fazendo realmente para ser dirigida a alguma coisa diferente. Quarta-feira Hoje debati-me no chão outra vez. Fiquei sabendo como tinha sido rígida a minha educação. Meu corpo não tinha licença para fazer o que queria. Eu estava numa camisa-de-força. Não tinha licença para nada. Nunca brinquei com minha mãe. Nunca cheguei a sugar-lhe o seio. Hoje aprendi a rolar e brincar no chão, mas houve a mesma confusão da vontade de mijar. E ainda não conseguimos chegar àquele medo do sábado outra vez.
Quinta-feira Hoje senti outra vez o medo, aquele medo de ser bicha. Não foi como o do sábado em casa, mas senti o bastante para saber o que era. Estava no chão outra vez corpo bebê, mas depois fiquei confuso. Não sabia se devia ficar zangado ou continuar sendo bebê ali mesmo no chão. Aí tive outra vez a vontade de mijar. Dessa vez fiquei zangado. Fiquei uma fúria durante muito tempo. Soquei os travesseiros e briguei com mamãe para ser dono de meu corpo. Gritei e zanguei-me com a pressão que sentia na barriga dizendo a ela que queria ser o dono de meu corpo. Continuei gritando até que, com surpresa, percebi que já tinha o que queria. Não sentia mais vontade de mijar. Já controlava o meu corpo com a raiva! Conseguira pela violência o que me pertencia por direito, era dono de meu corpo. Sexta-feira Hoje voltamos outra vez à mamãe e ao papai quando eu era menino. Contei para o Art como o papai era inteiramente desligado, como eu realmente não tinha para quem me virar, como era solitário no colégio e na universidade sem ter quem me aconselhasse e como tinha casado com alguém tão desligada como a Phyllis. Depois conversamos sobre minhas dúvidas acerca das escolas públicas. Verificamos que era um programa bom, respeitável e bem classe média, mas eu queria que o programa se fodesse. Disse ao Art que estava com medo pois ainda não sabia bem como era o meu novo eu e não queria desligar-me logo do outro que já conhecia. Depois verifiquei que teria que fazer aquilo de qualquer forma pois senão estaria enquadrado no programa e tinha que ser bicha e eu não queria ser mais bicha de maneira alguma! Ele me perguntou o que eu conseguira naquelas duas semanas e respondi-lhe que tinha conseguido meu passado e meu corpo. Ele me perguntou o que eu queria fazer e eu lhe disse que queria ensinar às pessoas tanto individual como politicamente. Cheguei em casa numa completa euforia. Estava entusiasmado com a perspectiva de fazer alguma coisa útil em minha vida. Percebi que não havia um substituto para aquilo em mulheres, fumo, bebida, dinheiro, maconha ou drogas. Sábado Hoje eles começaram no chão outra vez em grupo. Depois de alguns haverem começado a chorar chamando suas mamães, eu comecei a ficar zangado porque não podia voltar. Não havia para onde ir. Art viu-me lá sentado e mandou eu me deitar
no chão. Eu comecei a esmurrar o chão numa raiva cega e incontida. Então gritei com raiva que estava louco, que queria minha vida de volta. Art veio e disse-me que eu vinha fugindo já faziam vinte anos e que agora era difícil voltar para mamãe e papai. "Então eu posso gritar pelo vovô porque ele gostava de mim." Art ordenou-me que dissesse a eles que eu queria voltar. E foi o que eu fiz chorando e soluçando durante algum tempo. Depois eu contei ao Art a respeito de meu tio Mac em quem meu avô dera o contra porque queria ser músico e como Mac ficara odiando o vovô e entregara-se à bebida que o levara à morte. Art disse-me que era aquilo mesmo que eu estava fazendo comigo, mas eu lhe respondi que o tio Mac, pelo menos, sabia o que queria e eu ainda não sei. Comecei a pensar em Mac que fora meu tio preferido, em minha morte lenta, no que mamãe e papai me haviam feito. Senti uma dor enorme na barriga e na cabeça. Depois virei criança. Quando voltei a mim os outros estavam todos me olhando. Disseram que eu os tinha apavorado com a minha raiva. Contei para todos como vinha tentando durante toda a semana que o medo tomasse conta de meu corpo. Uma mulher observou que eu não estava deitado quando a dor chegou. Estava na minha crise infantil. Aquilo parecia uma boa ideia, tanto mais que meu sistema não estava funcionando. Quando cheguei em casa senti uma dorzinha nas costas no mesmo lugar que doía quando estava deitado lá no chão. À noite fui a uma festa. Era a primeira reunião social a que comparecia em duas semanas. Não tinha vontade de fumar nem de beber mas queria trepar. Sentiame bem, diferente e novo, e muito mais vivo. Encontrei uma linda loura chamada Francês e uma outra, moreninha, chamada Eileen num vestido muito decotado e com jóias. Mas eu preferi Francês porque ela sabia fazer maravilhas com o corpo. Fiquei vendo-a dançar e depois tentei também dançar mas não consegui e comecei a sentir outra vez aquela antiga sensação de bicha ao mesmo tempo que notava muita gente com a mesma coisa. Gostei da trepada na Francês depois da festa, mas teria preferido se ela não tivesse vindo com todos aqueles elogios sobre a minha virilidade. Quase lhe dei uns conselhos. No dia seguinte tirei um cochilo e na hora que estava acordando senti uma coisa que estava começando a perceber, da mesma forma que a gente vê a luz da manhã antes do sol surgir. Já vinha sentindo aquilo desde dias, vindo e sumindo, e tinha medo. Parecia-me terrível que aquilo fosse uma maneira para preparar-me ao que estava para vir e o que deveria fazer. Senti que o dia estava muito próximo e que devia preparar-me. Segunda-feira
O que aprendi hoje deve ser tratado de um modo geral porque era muito físico. Contei para o Art tudo que tinha acontecido no fim de semana e o que tinha sentido em casa a respeito de meu avô. Então Art disse-me para dizer adeus a todos eles dizendo-lhes que gostava muito deles todos mas que iria seguir o meu caminho e que podiam ficar descansados que eu não faria o mesmo que o tio Mac. Aí tive que ir mijar e Art disse-me para tentar puxar para cima em lugar de abafar para baixo. E foi o que fiz com tudo que tinha. Senti a pressão ir melhorando aos poucos até onde minha mente podia se desligar para o corpo tomar conta. Isso aconteceu quando senti-me bem com o pau e a minha coordenação respiratória era perfeita. Quando isso aconteceu foi que eu percebi que todos aqueles anos eu vinha respirando mal. Quando eu examinei mais aquilo percebi que eram os movimentos que eu queria fazer no berço sem conseguir e por isso tinha aquelas crises infantis. Sentiame bem no corpo inteiro com aquela respiração ritmada como se estivesse trepando, mas eu estava de costas. Aquilo fazia desaparecer toda a raiva ou frustração. Não consegui tudo nesse dia. Minhas extremidades ainda estão rígidas, mas elas chegarão lá. Terça-feira Não aconteceu muita coisa hoje. Estava muito cansado da longa e exaustiva sessão de ontem. Art percebeu e deixou- me ir depois de meia hora. Quando cheguei em casa senti aquela mesma velha tristeza. Quarta-feira Disse a Art que queria ver o que era aquela tristeza e ele me mandou mergulhar nela bem fundo. Foi o que fiz dizendo-me que não prestava, que estava perdendo meu tempo e dinheiro com a terapia e que nada ia ser diferente quando eu acabasse. Depois lamentei-me por não ter outra coisa que pudesse fazer além de ensinar. E comecei a pensar tristemente que não poderia continuar meus estudos nos cursos superiores porque não tinha dinheiro; era muito velho e não bastante inteligente. Resumi todas as minhas queixas dizendo que nada ia mudar e que nem valia a pena tentar, já que eu era um caso perdido. Art mandou que eu me aprofundasse ainda mais e eu respondi que estava mergulhando num buraco escuro onde estava só sem ninguém que me quisesse. Ele mandou que eu pedisse socorro a mamãe e papai. Eu fiz mas não valeu nada. Ele disse que eu respirasse fundo e mergulhasse ainda mais. Aí a minha barriga começou
a doer. Disse a Art que não tinha confiança em mais ninguém e que queria ficar só. Não gosto de gente em volta de mim quando estou na fossa. Não sei o que poderão me fazer. Então eu contei como me escondia embaixo do sofá quando era pequenino. Escondia-me também no "closet" ao lado do quarto de dormir. Gostava de lugares escuros e isolados onde pudesse ficar só. Disse-me que respirasse mais fundo ainda. Eu respondi que o bebê estava se afogando. A cabeça rodava-me e eu estava afundando. Art mandou que pedisse socorro a mamãe e eu pedi. Ela estava ali bem parada. Então Art disse-me que deixasse o bebê afogar-se. Eu senti um imenso peso no peito. Tinha muita dificuldade para respirar. Art disse-me para não respirar mais e deixar o bebê afogar-se. E eu deixei! Em silêncio. Sem uma lágrima. Frio como minha mãe. Mas olhando em retrospecto eu não acredito que o bebê tenha se afogado. Ele apenas foi sumindo e desapareceu de minha consciência. Então Art pediu-me que tornasse a contar as poucas vezes em que mamãe ou papai tinham mostrado algum amor por mim. Eu disse que vira verdadeiras lágrimas nos olhos dela quando estivera muito mal com pneumonia. Também contei que às vezes papai levava-nos para um passeio a pé até à estação para ver o trem chegar. Quando era pequenino eu costumava fantasiar o trem chegando todas as noites antes de eu dormir. Via quando ele vinha chegando cada vez mais perto de mim e caía no sono. Achava que desde que o trem chegasse eu podia adormecer. Disse a Art que sentia alguma ligação entre o sonho e quando estava no "closet." Nos dois casos estava no escuro e sozinho. Estava sempre sozinho. Por mais que me esforçasse, não conseguia lembrar-me ter sido alguma vez acariciado por meus pais ou recebido deles qualquer demonstração física de amor. Lembrava-me de quando me encolhia junto dela para tirar um sono no sofá. Lembrava-me esticando o braço para sentir a barba de meu pai. Lembro-me quando ele fazia a barba e do perfume que usava. Geralmente cantava alguma coisa e ria para mim. Eu quase tinha medo de me encostar nele. Quinta-feira Disse a Art que estava desolado por haver deixado o bebê afogar-se ontem sem verter uma só lágrima. Expliquei para ele que era muito raro eu receber qualquer elogio por alguma coisa feita. Ficava secretamente eufórico quando via meu nome na página do esporte, mas quando alguém me falava naquilo eu ficava encabulado. O mesmo aconteceu quando as pessoas souberam que eu ia para a Fordham. Eu teria preferido que não soubessem de nada. Nunca me orgulhava do que fazia pois não queria ser convencido. Art perguntou-me por que fazia aquilo. Respondi-lhe que não queria ser diferente dos outros já que o sucesso só poderia abrir mais o abismo entre meu pai e eu. Assim, da mesma forma que meu pai, eu me havia conformado em atrair para
mim um sentimento de pena de parte dos outros. Fiquei ali durante muito tempo conversando e pensando no coitado do meu pai. Então vi o que estava fazendo e dei um grito de espanto. Art quis saber o que era e eu então expliquei. "Pois aqui estou eu com pena de meu pai porque ele não foi um pai melhor para mim. E também de nada adiantou os outros sentirem pena dele. Pois continue, papai. Continue assim mesmo, que já não faz diferença. Agora o problema já é seu e você nada mais pode fazer. Continue sendo assim que já não me faz diferença. Já é tarde agora. Adeus, papai, é muito triste dizer adeus. Suas intenções eram boas, mas eu tenho de seguir em frente. Quando cheguei em casa almocei e depois dormi um pouco. Na hora que acordei senti uma certa disposição para estudar psicologia. E isso me trouxe lágrimas aos olhos. Sexta-feira Tiramos o dia de folga e eu levei o meu garoto para nadar no Lago Gregory. Foi muito bom mas eu não estava tranquilo. Ficamos deitados num barco no meio do lago. Eu não conseguia me descontrair por completo. Voltei à infância quando queria mamãe e ela não estava lá. Não era só ela em pessoa que não estava lá. Era também a sua alma que não estava lá. A sua alma fria e insensível que não deixava ninguém em dúvida a respeito de amor. Sábado — Grupo Fui assoberbado pelo bebê que queria sua mamãe. Era esse o tal sonho importante. É isso que vai acontecer e que venho me preparando para enfrentar. Tentei entrar nisso hoje mas consegui muito pouco. Depois fiz aquilo que estava acostumado a fazer sempre que minha mãe me escorraçava. Tive uma crise de choro e mijei-me todo. Segunda-feira Hoje eu voltei à mamãe. Comecei a sentir aquela dor de ser desprezado e de sentir-me só. Fiquei zangado e gritei. Gritei que odiava tudo e que odiava minha mãe por fazer aquilo comigo. Depois chorei amargamente sentindo o que perdia. Procurei alcançar mamãe e nada senti. Chorei gritando por ela e nada senti. Contei para Art como tinha inveja das crianças que recebiam atenção e consideração dos pais. Contei para minha mãe como a vida com ela tinha que ser nas suas condições ou senão era a condenação. Tudo muito triste e muito só.
Terça-feira — Como está você? Começou Art. — Ora, sinto-me na fossa hoje. — Como assim? — Ontem eu estava muito triste porque sentia-me só. Sempre senti-me melhor com minha avó do que com minha mãe. — Fale-me a respeito dela. — Era uma grande alma. Paciente e compreensiva. Não estava sempre zangando comigo como minha mãe. Quando tinha problemas sempre corria para ela. Ouvia-me com paciência e apoiava-me. Sempre que ficava doente na escola eu ia para a casa dela porque sabia que não ficava zangada comigo e cuidaria de mim. Dava-me logo um caldo e algum remédio caseiro. Deixava tudo que estava fazendo para me atender primeiro. Depois que o vovô morreu ela mudou-se para um apartamento. Eu ia visitá-la e fazer coisas para ela porque sabia que gostava de companhia. Depois que caiu e quebrou a bacia ela se mudou para bem perto da igreja para não perder as missas. Era também perto do meu colégio e eu ia sempre lá para ver se ela estava bem. Se faltasse alguma coisa eu dava um jeito. Eu gostava muito dela. Queria ter estado lá quando ela morreu. — Pois então diga-lhe adeus agora. E foi o que eu fiz chorando muito quase igual quando da morte de meu avô. Agradeci-lhe por tudo que fizera por mim. Senti que era mais fácil chorar por ela e meu avô do que por minha mãe e meu pai. — Agora deixe o bebê chorar sua mamãe. Só chorar. E então chorei. Não com palavras porque na noite anterior eu estava deitado no sofá e lembrei-me que as palavras me afastam do grande medo e do grande sentimento. Em lugar disso chorei com implorações sem palavras e logo senti como se estivesse inundado por um aguaceiro de primavera. Era sentimento puro sem palavras nem imagens de vovô, vovó, mamãe ou papai. Era só a pura necessidade. Chorei com todo o meu ser. Todo o meu corpo chorava soluçando e as lágrimas corriam como se fossem sangue de uma ferida aberta. Depois que parei de chorar estava banhado de felicidade. Art perguntou-me por que e eu respondi que me sentia íntegro. — O que quer você dizer com isso? — Bem, há muitas formas para se explicar isso. Eu posso ir até o princípio de meus sentimentos de quando nasci sem entrar em conflito com eles. Não precisei
deixar nenhum de fora para evitar o conflito. Agora tenho toda a gama de meus sentidos. Tenho o meu bebê, e vou tomar muito cuidado com elezinho. Vou ficar ao seu lado para apoiá-lo sempre que ele precisar. A minha história toda já está em dia. O dia inteiro senti-me como se fosse um broto que acabasse de surgir da terra. Tudo era ternura para mim. Ondas de sentimento banhavam-me o dia inteiro. Essa noite, no grupo, uma moça chorou porque sentia muita dor só de estar viva. Começamos a conversar o que nós, da comunidade Primal, devíamos fazer num mundo tão bárbaro. Eu estava bem perto de uma Primal mas não sabia como chegar lá. Não quis dar uma saída falsa e estragar toda a cena. Queria dizer a ela com toda a minha alma que eu também tinha a Dor mas que, ainda assim, queria viver pois há calor e alegria em podermos cuidar da Dor que sentimos dentro de nós. A Dor, como todas as outras experiências, é uma coisa de momento. Se aprendermos a cuidar dela, como amar e cuidar de nós mesmos, então a nossa Dor, se for autêntica, irá conduzir-nos ao calor, ao amor, à alegria seja lá o que for que esteja acontecendo neste mundo bárbaro. E isso porque a Dor não está no mundo, e sim nos nossos corpos onde podemos cuidar dela. E assim tudo dá certo. A vida torna-se um problema real que nos encaminha para a morte somente quando mantemos a Dor afastada. Eu não disse tudo isso, pois de pouco teria valido. Nós todos falamos muito, mesmo quando o que temos a dizer possui um certo grau de validez. Por isso vim para casa e escrevi, mas pensei que tinha voltado de mãos vazias porque não consegui cair no transe Primal nem mesmo dentro de tanta emoção. Estou-me tornando íntegro agora. Já sou o meu corpo. Sou uma grande sinfonia de sentimentos vários e ricos, todos eles harmoniosamente percorrendo meu corpo e se complementando. O meu sexo, a estrutura e a energia de meu corpo, minha raiva, meu medo, meu calor, minha tristeza, minha alegria, tudo isso tem seu tempo e seu contexto, e todos servindo-se mutuamente para atender às necessidades dos outros. Estou me tornando integrado agora. Tornei a nascer de minha própria linhagem. Agora eu sou o meu pai e sou a minha mãe. Sou o meu corpo e sou o que eu sinto. Quarta-feira Hoje de manhã chorei de pura necessidade. Ouvindo o adagio do Quarteto de Beethoven em Lá Menor, eu fiquei de pé no meio da sala de jantar e chorei com a música, da mesma forma que deixei o bebê chorar dentro de mim ontem na terapia. Nunca ouvi outra música que evoque um tal sentimento de dor física. Não havia imagens nem palavras. Havia a pura tristeza e dor na música e eu chorei apreciando as duas.
Quinta-feira Sentei-me para trabalhar nas minhas notas. Cheguei até à página 45 sem mamãe, triste e solitário. Pensei na viagem que estou querendo fazer até em casa. Irei querer ver mais alguém além de mamãe e papai? Não. Vou como terapia e não para divertir-me. Bem, é verdade. Quero ver a tia Millie e o tio Les. Millie foi muito boa para mim quando eu era garoto. E o Les também. Quero agradecer a eles como já agradeci ao vovô e à vovó que me ajudaram quando eu estava triste e só. Como se fosse um órfão apesar de ter pais. Bang! Caio numa triste e solitária Primal. Bang! É isso o que era a Primal em Lá Menor: triste e solitária. Bang! Já sou real outra vez. Sexta-feira É o primeiro dia hoje, desde segunda-feira, que não tenho uma Primal. Mas sinto uma aproximando-se. Hoje de manhã pensei em ir em casa para ver qual a reação do pessoal. Sem emprego. Cabelos compridos. Desmantelado. Já via mamãe com sua cara de preocupada. Depois pensei comigo mesmo. Sabe o que acontece com essa sua preocupação, mamãe? Ela me separa. Faz de mim um caso separado. Há algo errado comigo. É a sua mania de imaginar alguma coisa errada comigo para você poder ficar por cima. Se houver alguma coisa errada comigo você tira o corpo fora. Mas você sabe o que isso fez comigo, mamãe? Fez de mim um estranho. Fez de mim um triste orfãozinho com pais. Foi assim que percebi como tenho medo de sair de dentro do saco burguês. Tenho medo que mamãe e papai me deixem de fora. Estou com medo. UM MEDO MUITO GRANDE. O meninozinho triste e solitário. Segunda-feira / Sexta-feira Voltei a Woodsville para visitar meus pais. Era a primeira vez que voltava lá depois de dez anos ou mais. A visita confirmou todos os sentimentos que tinham surgido na terapia a respeito deles. Fizeram uma cena de tristeza ao serem entrevistado diante das câmaras. (Para o filme documentário que está sendo feito de meu tratamento.) A relutância nada tinha a ver com meu passado embora fossem interrogados somente sobre isso. Minha mãe tentou me chatear por causa do divórcio, de haver abandonado a Igreja Católica e de ter largado o emprego. Esperei para ver o que diria meu pai. Nada, como de costume. Ele deixou ela falar. Então eu dei um basta na chateação que estava me magoando muito. O comportamento de papai foi típico. Então mamãe tentou chamar-me de maluco e aí não aguentei mais. Depois disso as coisas começaram a melhorar na aparência, mas por dentro era tudo o mesmo. Nessa noite resolvi sair só para ter uma folga. Depois de sair de casa senti aquela velha sensação de órfão que já conhecia bem de minha juventude errante.
Fiquei imaginando como tinha conseguido aguentar tudo aquilo naquela ocasião. Voltei à velha estação dos trens, ao rio, ao mato e à grande ponte. Voltaramme todos aqueles sentimentos antigos do menino que buscava refúgio no mato. Fiquei ali na ponte chorando pelo menino que naquela ocasião não podia sentir a sua dor. Fiquei então ali e chorei para que ele visse que agora já tudo estava acabado. Senti-me reconfortado e grato àqueles lugares antigos por darem ao menino alguma ideia do que ele tanto precisava. Fui visitar meus tios e contei-lhe sobre meu tratamento pois sabia que eles se interessariam e compreenderiam. Foi maravilhoso estar novamente com eles. Senti uma enorme alegria em dizer-lhes o quanto lhes queria, o quanto eles significavam para mim e o quanto haviam feito por mim na minha adolescência. Eles ficaram satisfeitíssimos. As vibrações ficaram na sala durante toda a noite. Fui ao cemitério visitar as sepulturas de meus avós. Ajoelhei-me ali e conteilhes tudo sobre minha terapia. Fiquei muito tempo ajoelhado e chorando conversando com eles. Quando parei de chorar ainda fiquei mais algum tempo em completo silêncio. Nunca tinha visto antes a sepultura de minha avó. Já lá iam vinte anos desde a morte de meu avô. Para mim era como se fosse apenas ontem. Meu tio Mac também estava ali. Meu pobre tio Mac. Curvei-me sobre a lápide de meus avós e saí. Minha volta ao lar trouxe-me mais para perto do calor que desejo sentir, pois confirmou a realidade de minha Dor e de minha terapia. Agora só resta passar pela Dor. Do outro lado está o calor. Agora já sei onde estão o calor e o amor. Estão do outro lado da Dor. E eu tenho que atravessar. Já passei muito pela Dor para compreender isso. Agora já está mais fácil para mim. Nos meus velhos tempos eu não funcionaria nos melhores níveis para conseguir obter a piedade. Sempre confundira piedade com calor e amor. Nos meus velhos tempos eu queria ver as pessoas terem pena de mim. Queria ter delas todo o amor e afeição que não conseguia de meus pais, mas que precisava desesperadamente. Depois esperei que alguém aparecesse para ter pena de mim (mamãe) e apoiar-me e socorrer-me (papai).
Conclusões Depois de três semanas de terapia eu passei por algumas mudanças importantes. Primeiro. Antes eu vinha fumando três maços de cigarros por dia. Parei de fumar e nem tenho vontade de recomeçar. Segunda. Antes eu bebia moderadamente. Frequentava bares durante a
semana. Embora fosse raro beber demais, gostava de virar uns quatro ou cinco uísques. Tudo isso passou. Terceiro. Minhas atividades sexuais diminuíram consideravelmente. Antes eu trepava pelo menos três vezes por semana. Desde que comecei a terapia, já faz um mês e meio, só fiz isso três vezes. No entanto, embora sinta que as duas primeiras mudanças são permanentes, ainda não vejo claramente quais são os meus sentimentos quanto à vida sexual. Antes da terapia eu levava muitas mulheres para a cama e era raro ser a mesma mais do que uma vez por semana. Aquilo era uma forma para eu esconder a minha dor profunda, a dor de ser desprezado, de ser um perdedor. Ninguém pode ser um bom perdedor se olhar o fato bem de frente. É preciso fugir dele. É preciso ter uma cobertura para esconder a vergonha de ser perdedor. A minha cobertura eram as mulheres. Agora já não preciso mais disso. Mas ainda preciso pensar nos meus desejos reais. É bem possível que seja apenas uma mulher ou algumas ... não sei. Quarto. Já não tenho problemas com o sono e nem sinto mais dores de cabeça. Quinta. Uma boa porção da tensão já cedeu. Ainda resta alguma, mas sinto que está diminuindo. Sexta. Minhas relações com as pessoas estão mudando. É uma coisa muito lenta e sutil e difícil de descrever. Já não tenho mais aquela sensação de ser dominado e passivo, com a mesma intensidade que tinha antes da terapia. Aquela sensação de bicha também não é mais tão frequente. Algumas vezes fico confuso sem distinguir entre a sensação de bicha e a simples sensação de desamparo por não ser amado. A identificação das duas é coisa nova para mim. Agora já posso ver a diferença na sensação de estar só. Quando me sinto bicha eu não me sinto só. Sinto sempre uma presença ominosa que me espreita nas sombras. Na outra sensação sinto-me muito só, mas isso não me incomoda. É até mesmo agradável conforme as circunstâncias. Sinto-me mais distante em minhas relações com as pessoas, mas é uma distância que parece estar cultivando uma nova capacidade para intimidade. Ainda é muito incipiente e nova mas fico excitado com suas possibilidades futuras. Nos seus efeitos presentes isso apenas me intriga. Nas minhas relações com os outros, e também quando estou só, eu sinto o profundo e indescritível sofrimento de todo o amor perdido de que eu tanto necessitava na minha infância. Algumas vezes isso é tão grande que chega a paralisar-me. Ainda sinto isso mais do que qualquer outra coisa. Na maioria das vezes chego à beira das lágrimas ou então fico com muito medo. Para a maioria das pessoas eu talvez pareça bem triste. Estou certo que meus amigos não iniciados ainda pensam intimamente que não veem grandes resultados da terapia em mim.
Para terminar, minha orientação está passando por uma completa modificação, embora esse processo ainda não esteja completo. Mesmo assim ainda é possível apontar algumas mudanças. Uma das coisas é que já não sinto mais a necessidade de ser reconhecido no mundo profissional, como também já não sou mais dominado pela necessidade do amor de uma ou mais mulheres. Ainda não posso dizer com toda a sinceridade se essas necessidades foram ou não substituídas. Em alguns aspectos eu me sinto como se estivesse no limbo ou em alguma espécie de terra de ninguém. Mas isso não é muito desconcertante porque sinto as coisas novas que surgem. Embora ainda seja prematuro falar a tal respeito, o fato é que isso está lá e está crescendo. Sinto a mais radical transformação na minha estrutura de valores. Percebo agora, cada vez mais, os valores que estão surgindo da dinâmica de meu organismo. Esse processo é dirigido pelo corpo e não pelo espírito. Claro que o espírito tem um papel, mas ele é apenas auxiliar. Seria melhor dizer que ele não toma parte ativa no processo embora observe e registre o que está acontecendo, da mesma forma que a ciência moderna já observou na estrutura e na dinâmica do átomo e depois fabricou um sistema de prótons, nêutrons, electrons e tudo mais para registrar o que foi observado. O que estou tentando afirmar é que os conceitos de valores ou ideias com os quais tentamos controlar nosso comportamento e experiências, não se originam propriamente no pensamento. O fato de ordenarmos nossas experiências em termos de ideias é o resultado de uma doença que nos desliga dos processos orgânicos do ambiente e dos nossos mesmos. Estamos sempre com pronunciamentos e exclamações tolas e insensatas como "A mente sobre a matéria!" ou "Consiga controlar-se!" Essas e inúmeras outras observações revelam a profunda divisão de nossa opinião da vida, e o resultado é que tornamo-nos divididos do mundo ao mesmo tempo que de nós mesmos. Falando positivamente, estou afirmando que o valor dos conceitos ou ideias pelos quais queremos ordenar as nossas vidas origina-se propriamente nas experiências dos organismos das pessoas. Eles mostram as necessidades do organismo para uma existência sadia, o que é uma outra forma de dizermos que exprimem aquilo que realmente desejamos. As ideias estão em jogo e elas representam um papel importante. Mas o que é realmente importante compreendermos é que as ideias são derivadas da experiência. Por exemplo, eu não imagino reunir-me a um grupo de pessoas para depois juntar-me a elas. Em primeiro lugar eu experimento a minha sensação de estar só. E depois então é que tenho a ideia. A natureza dessa ideia é duplicar a experiência, é uma espécie de fotografia dela. Com isso eu posso identificar a experiência, relacioná-la com outras e, finalmente, agir de acordo com ela. Para mim isso é de importância capital. Isso significa que meus valores e metas, aquilo que os homens tradicionalmente
consideram a coisa mais sagrada da vida, possuem realmente uma origem na estrutura orgânica de meu ser. Portanto, será sumamente desagradável para mim permitir que esse processo de formação de valores fique ao cargo de minha mente ou da de qualquer outro, ou de alguma autoridade pública ou ainda um sistema filosófico que se considere o dono da verdade.
APÊNDICE B
INSTRUÇÕES PARA OS NOVOS PACIENTES PRIMAIS Para que a Terapia Primal seja eficiente, é preciso que o paciente coopere seguindo sem desvios as instruções muito simples que passamos a enumerar. 1. Quarenta e oito horas antes de começar a terapia é preciso abandonar completamente o fumo e as bebidas alcoólicas, inclusive cerveja e vinho. 2. Não tomar remédio algum como aspirina, pílulas sedativas, tranquilizantes, excitantes, estimulantes ou qualquer outro que possa afetar sua condição. Pare com todas as pílulas quatro ou cinco dias antes de começar a terapia e continue sem elas durante o período do tratamento. 3. Todo mundo já sabe o que é preciso fazer para aliviar a tensão. Pare com isso! Isso significa desistir de alimentação compulsiva, roer unhas, fingir-se ocupado e sempre com pressa, dormir demais, etc. 4. Vinte e quatro horas antes da terapia será preciso ficar inteiramente só, preferivelmente num quarto de hotel perto do consultório. Não fazer chamadas telefônicas, não receber amigos, não ver TV nem ir ao cinema. Eliminar todas as distrações. Entrar no hotel na tarde da véspera do começo da terapia e procurar não sair do quarto senão no dia seguinte na hora da consulta. 5. Quando começar a Terapia Primal faça tudo que lhe disser o terapeuta. De forma alguma poderá lhe acontecer qualquer coisa desagradável. Não são usados truques nem são feitas afirmativas para causarem qualquer efeito especial. Esta terapia nada tem a ver com ô Zen, o hipnotismo ou o uso de qualquer medicamento. Ela é baseada em sólidos princípios científicos já aplicados com sucesso em inúmeros indivíduos que se submeteram ao tratamento. 6. A fase inicial da terapia é aproximadamente de três semanas, e durante esse tempo ninguém deverá pretender trabalhar ou frequentar escola. Geralmente, esse será o único tratamento individual necessário, podendo no entanto haver alguma exceção que necessite horas de acompanhamento de quando em quando. Durante a primeira ou segunda semana os pacientes serão atendidos em consultas que poderão durar duas horas. Todos podem desistir a qualquer momento que desejem já que as sessões são abertas. Durante a terceira semana, conforme forem as suas necessidades, os pacientes serão atendidos diversas vezes.
7. Depois da terceira semana o paciente será colocado num grupo pos-Primal composto de pessoas que já passaram pelo tratamento. Esses reúnem-se uma ou duas vezes por semana. São indispensáveis já que fazem parte do plano terapêutico. Todos devem fazer o possível para comparecer a essas reuniões pelo período de alguns meses. Depois disso estará terminada a Terapia Primal.
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