Arqueologia conceitos

July 18, 2016 | Author: Juliana Camilo | Category: N/A
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A NATUREZA E OS PROPÓSITOS DA ARQUEOLOGIA1 Colin Renfrew e Paul Bahn...

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A NATUREZA E OS PROPÓSITOS DA ARQUEOLOGIA1 Colin Renfrew e Paul Bahn

A arqueologia é, em parte, a descoberta dos tesouros do passado, o trabalho meticuloso do cientista e o exercício da imaginação criativa. É cansar-se sob o sol em uma escavação no deserto do Iraque e trabalhar com esquimós nas neves do Alasca. É submergir em busca de navios afundados na costa da Flórida e investigar as fossas de uma cidade romana. Mas também é a tarefa habilidosa de interpretação que nos permite entender o que significavam tais coisas na história da humanidade. A arqueologia é, pois, tanto uma atividade física de campo como uma busca intelectual no laboratório e esse é seu grande atrativo. A mistura de perigo e trabalho detetivesco também a converteu em um veículo perfeito para escritores de ficção e cineastas, desde Agatha Christie com Assassinato na Mesopotâmia até Steven Spielberg com Indiana Jones. Por mais que tais imagens se afastem da realidade, captam a verdade essencial de que a arqueologia é uma busca – a busca do conhecimento de nós mesmos e do passado humano. Mas, como a arqueologia se relaciona com disciplinas como a antropologia e a história, vinculadas também ao estudo do Homem? A arqueologia é uma ciência? A arqueologia como antropologia A antropologia é, em sua definição geral, o estudo do Homem – de nossas características físicas como animais e as características únicas não biológicas que chamamos de cultura. Esta, em um sentido mais amplo, abarca o que o pioneiro da antropologia Edward Tylor resumiu, em 1871, como o conhecimento, as crenças, a arte, a moral, o direito, os costumes e qualquer outra capacidade e hábito adquirido pelo homem enquanto membro de uma sociedade. Os antropólogos também empregam o termo cultura em um sentido mais restrito, quando se referem à cultura de uma sociedade concreta, significando as características únicas não biológicas dessa sociedade e que a distingue de outras. Portanto, a antropologia é uma disciplina ampla – de fato, é tão extensa que se divide em três disciplinas menores: a antropologia física, a antropologia social ou cultural e a arqueologia. A antropologia física, chamada também de antropologia biológica, se ocupa do estudo das características biológicas ou físicas do Homem e sua evolução.

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RENFREW, C. E BAHN, P. Introduction. The Nature and Aims of Archaeology. In: Archaeology. Theories, Methods and Practice. New York: Thames and Hudson, 1991, p. 9-14. Tradução de Jairo H. Rogge.

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A antropologia social ou cultural, analisa as culturas e as sociedades humanas. Dois ramos importantes da antropologia cultural são a etnografia (o estudo em primeira mão de culturas vivas) e a etnologia (que trata da comparação entre culturas utilizando as evidências etnográficas, com o propósito de gerar princípios gerais sobre a sociedade humana). A arqueologia é o passado da antropologia cultural. Enquanto os antropólogos culturais baseiam suas conclusões na experiência da vida real dentro de comunidades contemporâneas, os arqueólogos estudam as sociedades do passado, principalmente através de seus restos materiais – as construções, utensílios e demais artefatos que constituem o que conhecemos como cultura material, deixada por eles. Por outro lado, uma das tarefas mais difíceis para os arqueólogos é saber como interpretar a cultura material em termos humanos. Como foram utilizados esses recipientes? Por que algumas casas são circulares e outras quadradas? Aqui, os métodos da arqueologia e da etnografia se superpõem. Nas últimas décadas, os arqueólogos desenvolveram a etnoarqueologia na qual, como os etnógrafos, vivem em comunidades contemporâneas, com o propósito específico de entender como tais sociedades usam a cultura material – como fabricam seus utensílios, por que constróem seus assentamentos, onde fazem isso, etc. A arqueologia como história Se a arqueologia se ocupa do passado, de que modo ela se diferencia da história? Em seu sentido mais amplo, considerando a arqueologia como um aspecto da antropologia, também forma parte da história – entendida como a crônica completa da humanidade, desde seu começo há cerca de 3 milhões de anos. É claro que, para mais de 99% desse enorme lapso de tempo a arqueologia – o estudo da cultura material do passado – é a única fonte significativa de informação se excluirmos a antropologia física, que se concentra mais em nosso progresso biológico que no material. As fontes históricas convencionais só começam com o nascimento do documento escrito, que ocorreu no sudoeste asiático há aproximadamente 3.000 anos a. C e, mais tarde, em outras áreas do mundo (na Austrália, por exemplo, não existiu até 1.788 d. C.). Por essa razão, é bastante comum a distinção que se faz entre pré-história – o período anterior a escrita – e história no sentido estrito, que supõe o estudo do passado através da evidência escrita. No entanto, a arqueologia pode contribuir muito, inclusive, para a compreensão daqueles períodos e lugares onde existem documentos, inscrições ou outras evidência literárias. Freqüentemente, é o arqueólogo quem primeiro descobre tais evidências.

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A arqueologia como ciência Se o propósito da arqueologia é a compreensão do gênero humano, ela constitui uma disciplina humanística, uma ciência humana. E já que se ocupa do passado do Homem, é uma disciplina histórica. No entanto, diferencia-se do estudo da história escrita – ainda que a utilize – em um aspecto fundamental. O material encontrado pelo arqueólogo não nos diz, de forma direta, o que devemos pensar. O registro histórico faz declarações, oferece opiniões, emite juízos (embora essas declarações e esses juízos devam ser interpretados). Os objetos descobertos pelos arqueólogos, por sua vez, nada dizem de si mesmos diretamente. Somos nós, no presente, que devemos dar-lhes sentido. Desse ponto de vista, a prática arqueológica é muito semelhante à do cientista. O cientista recolhe dados (evidências), realiza experiências, formula uma hipótese (uma proposição para explicar os dados), contrasta a hipótese com mais dados e, como conclusão, elabora um modelo (uma descrição que parece idônea, para resumir o padrão observado nas evidências). A arqueologia é similar em muitos aspectos. O arqueólogo têm que desenvolver uma imagem do passado, do mesmo modo que o cientista deve elaborar uma visão coerente do mundo natural. Ela não aparece pronta. Em resumo, a arqueologia é tanto uma ciência como uma disciplina humanística. Esse é um dos seus encantos: reflete a capacidade inventiva do cientista moderno ao mesmo tempo que a do historiador. Os métodos técnicos da ciência arqueológica são os mais evidentes, desde a datação radiocarbônica até o estudo de resíduos de alimentos em panelas de cerâmica. São igualmente

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importantes os métodos científicos de análise por dedução. Alguns arqueólogos expressam a necessidade de definir uma teoria de alcance médio independente, que faça referência a um conjunto inequívoco de conceitos, a fim de resguardar a distância existente entre a evidência arqueológica bruta e as observações e conclusões gerais que derivam dela. É um modo de enfocar a questão. No entanto, não vemos a necessidade de fazer uma distinção entre teoria e método. Nosso objetivo é descrever, com clareza, os métodos e técnicas utilizados pelos arqueólogos na investigação do passado. Os conceitos analíticos dos arqueólogos formam parte dessa série de métodos, na mesma medida em que o são os instrumentos de laboratório. A variedade e o âmbito da arqueologia Atualmente, a arqueologia é uma igreja tolerante, que abarca muitas arqueologias diferentes unidas, no entanto, por métodos e delineamentos comuns. Já chamamos a atenção sobre a distinção existente entre a arqueologia do longo período pré-histórico e da época histórica. A princípio, essa divisão cronológica se acentua com novas subdivisões, de forma que os arqueólogos dizem especializarem-se nas etapas primitivas (a antiga Idade da Pedra ou Paleolítico, há mais de 10.000 anos) ou nas mais recentes (as grandes civilizações da América ou da China; a egiptologia; a arqueologia clássica da Grécia e Roma antigas). Um dos principais avanços das duas ou três últimas décadas foi a tomada de consciência de que a arqueologia pode contribuir não só para a compreensão da pré-história e da história antiga, senão também das etapas históricas mais recentes. Na América do Norte e na Austrália 2 desenvolve-se, de forma muito intensa, a arqueologia histórica – o estudo arqueológico dos assentamentos coloniais e pós-coloniais – na mesma medida que fazem suas análogas européias, a arqueologia medieval e pós-medieval. Deixando de lado essas subdivisões cronológicas, existem especialidades que podem colaborar em numerosos períodos arqueológicos diferentes. Um desses campos é a arqueologia ambiental, onde arqueólogos e especialistas de outras ciências estudam o emprego humano de plantas e animais e o modo como as sociedades do passado se adaptaram a um meio em contínua transformação. A arqueologia subaquática é outro âmbito que exige grande qualificação. Nos últimos trinta anos converteu-se em atividade sumamente científica, que resgata o passado na forma de navios naufragados, que dão nova luz sobre a vida na antigüidade, tanto em terra como no mar.

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Também na América do Sul e África Negra (N. T).

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Também a etnoarqueologia, da qual já falamos anteriormente, é uma especialidade importante na arqueologia atual. Nos damos conta, agora, de que só podemos compreender o registro arqueológico – quer dizer, aquilo que encontramos – se entendermos mais detalhadamente como ele ocorre, como se forma. Os processos pós-deposicionais são, nesse momento, um foco intenso de estudo. É aqui que a etnoarqueologia adquire seu verdadeiro

sentido: no estudo de populações vivas e sua cultura material, a fim de aumentar nossa compreensão sobre o registro arqueológico. Por exemplo, o estudo das práticas de esquartejamento da caça entre caçadores-coletores atuais, feito por Lewis Binford entre os esquimós Nunamiut do Alasca, lhe proporcionou novas idéias sobre o modo como pode ter se formado o registro arqueológico, permitindo-lhe reavaliar os restos ósseos de animais comidos pelas populações pré-históricas em outras partes do mundo. Essas investigações não se limitam à comunidades simples ou grupos pequenos. Em Tucson, no Arizona, o Projeto Garbage (lixo), criado por William Rathje, implica no recolhimento do lixo de um setor da cidade e a classificação cuidadosa de seu conteúdo em laboratório. Essa desagradável tarefa proporcionou algumas revelações valiosas e inesperadas sobre o padrão de consumo da população urbana atual – e os métodos empregados são puramente arqueológicos. Objetivos e Problemas Se nossa meta consiste em conhecer o passado humano, é justamente aí que reside a nossa principal dificuldade. Os enfoques tradicionais se inclinaram a considerar o objetivo da arqueologia, sobretudo, como uma reconstrução: unir as peças de um quebra-cabeças. Mas agora não basta

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somente recriar a cultura material de períodos remotos ou completar a imagem dos períodos mais recentes. Foi definido um novo objetivo em termos de reconstrução do modo de vida das pessoas responsáveis pelo registro arqueológico. Nos interessa ter uma imagem clara de como viviam essas pessoas, como exploravam seu meio. Também queremos entender por que viviam dessa forma: por que adotaram esses padrões de comportamento e como seus modos de vida e cultura material adquiriram tais formas. Em resumo, nos interessa explicar as mudanças. Essa inclinação pelos processos de mudança cultural têm definido a chamada arqueologia processual. A arqueologia processual avança mediante o estabelecimento de uma série de questões, assim como qualquer outro estudo científico procede definindo objetivos de investigação – mediante a formulação de perguntas – passando então a respondê-las. Existem muitos problemas importantes, que nos preocupam nesse momento. Queremos compreender as circunstâncias em que nossos antepassados apareceram pela primeira vez. Isso aconteceu na África e somente lá, como tudo parece indicar? Esses homens antigos eram autênticos caçadores-coletores ou simples carniceiros?3 Quais foram as circunstâncias

pelas quais nossa

própria subespécie, Homo sapiens sapiens, evoluiu? Como explicamos o surgimento da arte paleolítica? Por que sua distribuição parece ser tão limitada? Como se deu a mudança da caça e coleta para a agricultura na Ásia ocidental, na Mesoamérica e em outras partes do mundo? Por que isso ocorreu no transcurso de poucos milênios? Como explicamos o surgimento das cidades em diferentes partes do mundo, de forma aparentemente independente? A lista de perguntas continua e, por trás dessas questões gerais, existem outras mais específicas. Queremos saber por que uma cultura determinada adotou uma forma e não outra: como surgiram suas particularidades e até que ponto elas foram influentes em seu desenvolvimento.

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Existe a hipótese de que os primeiros hominídeos, incluindo o Homo habilis, não teriam praticado a caça mas teriam aproveitado principalmente as carcaças de animais mortos por outros predadores como fonte de proteína animal.

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