Aproximações Entre o Conceito de Rizoma Em Deleuze e Guatarri e o Cinema de Godard

February 27, 2019 | Author: Luciano C. Eguchi | Category: Gilles Deleuze, Image, Red, Time, Modernity
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Aproximações entre o conceito de rizoma em Deleuze e Guattari e o cinema de Godard

Mauro César de Castro (mestre em Filosofia  –  PUCRS)  PUCRS) GT-Deleuze

Resumo: Pretende investigar aproximações entre a concepção filosófica de rizoma conforme

Deleuze e Guattari e o cinema de Godard a partir do filme  Notre musique. musique. Para tanto, retoma as análises de Deleuze sobre o cinema moderno e a obra de Godard, e propõe o conceito de imagem-rizoma como imagem-rizoma como expressão do pensamento na obra godardiana. O rizoma se caracteriza  pelos princípios de conexão, heterogeneidade, heterogeneidade, multiplicidade, ruptura assignificante, cartografia e decalcomania. Tudo isso pode ser percebido no referido filme: pela narrativa não linear e a multiplicidade de discursos; os cortes irracionais e a ênfase no extracampo; as relações não idênticas entre imagem/som e imagem/texto; as citações e colagens livres etc. Com isso, Notre isso, Notre musique conduz musique conduz a conexões dialogantes entre as diferenças em um mundo de dissonâncias políticas e éticas. A imagem-rizoma em Godard resulta em uma obra em constante devir  –  entre  entre o ficcional e o documental, a imagem e o discurso, o eu e o outro. Palavras-chave: Imagem. Rizoma. Cinema.

Deleuze. Godard.

Introdução

Os escritos de Deleuze sobre o cinema ao mesmo tempo que rompem um relativo silêncio dos filósofos acerca do assunto e vão além das leituras reducionistas ou até mesmo pejorativas, despertam também grande interesse no campo da teoria do cinema. Seja entre filósofos ou entre cineastas e cinéfilos, Deleuze tem sido recebido como uma voz pertinente, instigante e inspiradora para se pensar e fazer cinema. Os dois volumes de sua obra dedicada à arte cinematográfica ( A ( A imagem-movimento e  A imagem-tempo), imagem-tempo), além de menções recorrentes sobre o assunto em outras obras suas, ou mesmo quando se apropria de exemplos do cinema  para tratar de outros temas, instauram um diálogo fértil entre cinema e filosofia. E é notável na obra deleuzeana ele ter proposto pensar o cinema a partir do próprio cinema, ao invés de tentar identificar nele as questões tradicionais da filosofia, isto é, trata-se menos de inquirir o

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que pensamos sobre o cinema do que o que pensa o cinema. Como afirma o próprio Deleuze (1990, p. 331-332), “Uma teoria do cinema não é ‘sobre’ o cinema, mas sobre os conceitos que o cinema suscita [...]. Os conceitos do cinema não são dados no cinema. E no entanto, são conceitos do cinema, não teorias sobre o cinema ”. Com fôlego de cinéfilo, Deleuze empreende uma vasta leitura da história do cinema sem  pretensão de exaustão (tarefa impossível), mas muito atento a um grande número de movimentos, cineastas e teóricos. A avalanche de exemplos de filmes é desconcertante até  para os iniciados na área. Entre tantos diretores abordados, alguns nomes como Eisenstein, Resnais, Welles e Godard se destacam. Este último talvez seja um dos com os quais o filósofo mais se identifica, tendo-lhe dedicado um bom espaço em sua obra sobre o cinema, sobretudo nos capítulos conclusivos do segundo volume. Com efeito, Deleuze percebe na obra de Godard a força do pensamento: “Godard transformou o cinema. O que ele faz não é pensar  sobre o cinema, não coloca um pensamento mais ou menos bom no cinema, mas faz com que o cinema pense  –   pela primeira vez, eu creio ” (DELEUZE, 2006, p. 182). Cônscios disso, escolhemos uma das últimas produções de Godard para nossa reflexão:  Notre musique ( Nossa música, 2004). Trata-se de uma produção posterior a Deleuze, mas que conserva muito do estilo de obras anteriores do diretor e, assim, as apreciações do filósofo lhe podem ser estendidas.  Não obstante, o que aqui nos propomos não é demonstrar como  Notre musique exemplifica o cinema moderno conforme as análises de Deleuze no segundo volume de sua obra sobre cinema, ainda que a ela recorramos constantemente. Nosso objetivo é trazer para a cena cinematográfica o conceito de rizoma (conforme Deleuze e Guattari na obra  Mil Platôs) a  partir do referido filme e, em consonância com a taxionomia das imagens no cinema moderno realizada por Deleuze (na obra  A imagem-tempo), propor o conceito de imagem-rizoma.  Nossa leitura também não consiste em aplicar o conceito de rizoma ao filme  Notre musique, e sim em perceber como o rizoma emana do próprio filme. Não se trata de uma associação arbitrária ou mera ilustração; conforme pretendemos demonstrar, há pontos em comum entre Deleuze e Godard que nos permitem dizer que este também pensa de modo rizomático. Se filosofar consiste em criar conceitos (DELEUZE; GUATTARI, 1992, p. 13), a imagemrizoma seria um conceito que, não tendo sido explicitado nem por Deleuze nem por Godard, nos provoca a pensar.

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Cinema moderno e rizoma

Deleuze descreve o surgimento do cinema moderno como resultante da crise do cinema clássico. Segundo Deleuze, esta ruptura teria se dado com o neorrealismo italiano, mas é a nouvelle vague  que teria consagrado a modernidade no cinema, entre cujos representantes encontramos Godard. No cinema clássico vigora a imagem-movimento e no moderno, a imagem-tempo. O que marca a irrupção da imagem-tempo é o fato de que o tempo deixa de ser algo representado na tela (uma imagem do tempo) para se apresentar por si mesmo (a imagem-tempo). No primeiro caso, temos o tempo deduzido indiretamente através do movimento, um cinema de ação com situações sensório-motoras que falam do tempo; no segundo, um cinema do tempo, abordado de modo direto em imagens que apresentam situações óticas e sonoras puras. Não que o cinema clássico tenha menos mérito por isso, Deleuze destaca como o cinema foi capaz de captar a imagem-movimento enquanto as outras artes, assim como a filosofia, apenas tateavam o movimento. Contudo, o advento do cinema moderno significa uma libertação do próprio cinema que, tendo tornado possível o movimento na imagem e nisso afirmado a peculiaridade desse novo gênero de arte, chega à sua maturidade. Clássico e moderno como dois momentos da história do cinema, ou melhor, como duas diferentes formas de se fazer cinema, remetem também à ideia de duas concepções de  pensamento: à primeira corresponde o paradigma da representação e à segunda, o da diferença. Em outros termos, trata-se da contraposição entre o pensamento arborescente e o rizomático. Rizoma é um termo tomado da botânica e transmutado em conceito filosófico por Deleuze e Guattari como forma de conceber a realidade, o pensamento, a linguagem etc. Ele se opõe ao conceito de árvore. A árvore indica um sistema fechado, totalizante e hierarquizante; já o rizoma, um sistema aberto, heterogêneo e múltiplo. Nesse sentido é que  podemos dizer que o cinema moderno nos apresenta uma imagem-rizoma. Deleuze não utiliza o conceito de rizoma ao analisar a obra de Godard, ou em qualquer outro momento nas obras dedicadas ao cinema, mas em  Mil Platôs a relação é sugerida. No final do  platô “Introdução: Rizoma”, eis que surge, subitamente e em tom exortativo, o exemplo de Godard como o que seja fazer rizoma: “Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de  slogans: faça rizoma e não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A velocidade transforma o ponto em linha!

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Seja rápido, mesmo parado! Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard) ”  (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48). Imagem-rizoma e Notr e musique 

Deleuze e Guattari enumeram alguns princípios que caracterizam o rizoma: conexão e heterogeneidade; multiplicidade; ruptura assignificante; cartografia e decalcomania. Seguindo esses mesmos passos, vejamos como se apresenta a imagem-rizoma em  Notre musique.  Princípios de conexão e heterogeneidade [...] qualquer ponto de um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. [...] não existe língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de línguas especiais. (DELEUZE; GUATTARI, 1995,  p. 22-23).

O filme  Notre musique é dividido em três partes, iniciadas pelos seguintes títulos grafados sobre a tela preta: “REINO 1 INFERNO”; “REINO 2 PURGATÓRIO”; “REINO 3 PARAÍSO”. O “Inferno”  consiste em uma sequência de rápidos e numerosos fragmentos de imagens de arquivo e da história do cinema, a maioria delas mostrando a guerra e a violência. São cerca de oito minutos de encadeamento de imagens nada gratuitas ou casuais, às vezes intercaladas com a tela preta. Aqui se pode reconhecer bem o diretor de  Histoire(s) du cinéma  (19971998) ou de  De l'origine du XXIe siècle (2000), pela variedade e argúcia na escolha das imagens e na montagem. O “Purgatório” corresponde à trama do filme propriamente dita. Diferentemente da primeira  parte, acompanhada constantemente pela música, agora esta será pouco ouvida. É o momento dos diálogos e da apresentação dos personagens, entre os quais se destacam o próprio Godard (interpretando ele mesmo) e as jovens Judith Lerner (uma jornalista israelense) e Olga Brodsky (francesa judia de origem russa). Eles estão em Sarajevo por ocasião do  Encontro  Europeu do Livro, no qual Godard irá proferir uma palestra. Judith é o ponto de conexão com a primeira parte do filme. Ela entrevista intelectuais a respeito das guerras do passado e do  presente, de Tróia à Palestina, e eles problematizam a questão da memória, do testemunho, da

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legitimidade do relato dos vencedores e da necessidade de poesia para a sobrevivência das culturas. Olga, por sua vez, é quem permitirá a entrada na terceira parte do filme após a sua morte. Ela é uma ativista que perdeu a confiança nos discursos, mas acredita que ainda vale a  pena lutar por uma revolução em nome da paz. Acaba sendo assassinada em Jerusalém ao anunciar um atentado à bomba dentro de um cinema, quando, na realidade, apenas portava livros em sua mochila. A sequência do “Paraíso” é breve e bastante silenciosa. Mostra Olga caminhando pela floresta à beira de um rio. A área é estranhamente guardada por soldados americanos, e após ela ser autorizada por um deles a cruzar uma cerca, encontra outros jovens descansando, lendo ou  brincando. O título do livro que um deles lê anuncia: Sans espoir de retour  (Street of no return, de David Goodis, 1954). Em seguida um outro oferece uma maçã a Olga e ela come  –  um clichê claramente assumido em referência ao Gênesis. Não há redenção final, apesar do sacrifício de Olga. Esta última cena parece sugerir uma reversão do paraíso, pois se Olga come da maçã, o que lhe aguarda depois? A tríade dantesca inferno-purgatório-paraíso seria reiniciada? Ou seja, o final aponta para o início do filme? Melhor do que isso, inferno-purgatório-paraíso não constituem uma linearidade narrativa, uma cronologia, e sim um fluxo temporal ao modo bergsoniano. Inferno, purgatório e paraíso são desdobramentos do presente que se lança em direção ao futuro ao mesmo tempo que retoma o passado. Conforme explica Deleuze (1990, p. 103), “As teses de Bergson sobre o tempo apresentam-se assim: o passado coexiste com o presente que ele foi; o passado se conserva em si, como passado em geral (não-cronológico); o tempo se desdobra a cada instante em presente e passado, presente que passa e passado que se conserva ”. Como imagem-rizoma, inferno-purgatório-paraíso se conectam de diferentes formas. A destruição mostrada no “Inferno” não está ausente do “Purgatório”, pelo contrário, estão lá suas marcas: as ruínas de Sarajevo, as fotografias, as lembranças, o testemunho dos sobreviventes e o temor da censura. O “Paraíso”, por sua vez, já é anunciado no “Purgatório”, como indicam as frases que aparecem na cena da palestra de Godard: “E a libertação? ”, “E a vitória? ”, “Esta noite estarei no paraíso ”. E o “Paraíso” guardado por homens armados se conecta ao “Inferno”: a  paz expressa pelo cenário bucólico do final do filme é apenas aparente, pois a ameaça da guerra e a necessidade da força armada permanecem.

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 Notre musique  conduz a conexões dialogantes entre as diferenças em um mundo de dissonâncias políticas e éticas. Godard cita Rimbaud: “Eu é um outro ”. É a última fala da  primeira parte do filme, introduzindo o que será mostrado em seguida. Há diferentes etnias e idiomas no filme, falado em francês, inglês, árabe, hebraico, sérvio e espanhol. Por que não fazer um filme todo em francês? Podemos dizer que é uma forma de conservar o princípio de heterogeneidade, sem tentar reduzir as vozes a uma fala de identidade. O outro é talvez o grande protagonista de  Notre musique. Olga lendo o livro  Entre nous (1991), de Levinas (o filósofo da alteridade), é muito sugestivo a esse respeito. É certo que a notável semelhança física entre as atrizes que interpretam Judith Lerner (Sarah Adler) e Olga Brodsky (Nade Dieu) pode gerar a impressão equívoca de indiferenciação, entretanto a dificuldade de uma identificação rápida das personagens mantém até certo ponto no espectador a sensação de estar diante de um outro desconhecido. E ao se distinguirem, tornam-se marcantes suas diferenças: Judith é israelense, Olga é francesa judia; Judith aposta na palavra, Olga adere ao silêncio; Judith está escavando o passado, Olga lança-se no desconhecido da morte. Olga e Judith também são imagens marcantes da diferença no filme. Ou ainda, interpretando-se de outra forma, elas parecem sugerir um duplo de uma mesma personagem, no devir de uma subjetividade cindida, fazendo jus à máxima rimbaudiana.  Princípio de multiplicidade Inexistência, pois, de unidade [...]. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata, linha de fuga ou de desterritorialização [...]. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 23.25).

 Na segunda parte de Notre musique, Godard profere uma palestra sobre “o texto e a imagem ”  –   esta

relação perpassa todo o filme e é discutida por Godard tanto enquanto diretor, quanto

enquanto ator-personagem. Sua fala oferece algumas pistas para compreensão da trama, mas não chega a ser a fala reveladora, e sim um discurso entre muitos outros proferidos por diferentes personagens, os quais têm sempre um forte conteúdo político e por vezes  perpassam aquele mesmo tema. Godard dá uma aula de cinema explicando o uso da técnica do campo/contracampo. Para exemplificar, ele mostra dois fotogramas do filme  His girl  friday ( Jejum de amor , 1940), de Howard Hawks, em uma decupagem clássica: um homem e uma mulher (Rosalind Russell e Cary Grant) conversam ao telefone e são mostrados alternadamente em primeiro plano e em ângulo inverso. Godard critica esse uso, porque, segundo ele, não considera a diferença entre um homem e uma mulher, eles são tomados

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como uma imagem só. É justamente o inverso do que faz Godard enquanto diretor nesta mesma cena, em que o palestrante e os ouvintes são mostrados em vários planos e ângulos diferentes com um jogo de sobreenquadramentos e desenquadramentos que privilegiam não uma visão do todo ou uma síntese da situação, mas a proliferação de pontos de vista. Isso demonstra a pedagogia da imagem godardiana, para retomar uma expressão de Deleuze. Há um discurso e uma leitura das imagens, uma relação entre texto e imagem que não é de significado e significante. Diz Deleuze (1990, p. 293): “O que define o cinema moderno é um ‘vaivém entre a palavra e a imagem’, que deverá inventar a nova relação delas [...]” .

As

imagens no cinema não são apenas vistas, são lidas, e quando intervém o texto dito ou escrito, este não vem decodificar ou confirmar a imagem. O texto desterritorializa a imagem e viceversa. O curioso é que os fotogramas do filme de Hawks foram manipulados, já que eles não aparecem no original tal como mostrados por Godard. Nas duas cenas de Hawks que mais se aproximam do que Godard fala, os atores são enquadrados em plano médio e não em primeiro  plano. Isso não invalida o argumento de Godard, mas não deve passar despercebido que usando as imagens em primeiro plano a crítica da indiferenciação entre homem e mulher resulta mais contundente, pois gera a impressão de que a câmera de Hawks, mesmo próxima, não vê a diferença. Podemos dizer que esse uso das imagens por Godard estabelece também uma relação de campo/contracampo entre Notre musique e His girl friday no sentido discutido  por ele no decorrer de sua palestra. Através do exemplo do campo/contracampo, ele  problematiza as contraposições (imaginário/real, certeza/incerteza, imagem/texto etc.) que marcam a relação cinema/realidade. Podemos identificar aqui o princípio de multiplicidade, contra a ideia de uma unidade entre os pares contrapostos. Com efeito, o cinema não se propõe como discurso verdadeiro, mas como discurso indireto livre. Antes, é o lugar da potência do falso, como potência artística e criadora, potência de vida, como dirá Deleuze (1990, p. 163) a respeito do cinema moderno e especialmente de Godard: “contrariamente à forma do verdadeiro que é unificante [...] a potência do falso não é separável de uma irredutível multiplicidade [...] ”. Godard tira disso todo proveito em  Notre musique, principalmente ao por lado a lado imagens de ficção e documentais, assim como  personagens fictícios e reais. Ele mesmo revela, ainda em sua palestra: “Por exemplo, duas fotografias da atualidade representando um só momento da história. Vemos que, na realidade, a verdade tem duas faces ”. Esta última afirmação será repetida também por outros

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 personagens. O poeta palestino Mahmoud Darwich, em uma entrevista, defende a importância da poesia para um povo e diz: “A verdade sempre tem duas faces. Nós ouvimos a voz da vítima troiana pela boca do grego Eurípedes. Tróia não contou sua história. [...] a vitória ou a derrota não se medem em termos militares ”. Em outro momento, um homem reflete acerca da  ponte de Mostar (construída sobre o rio Neretva no século XVI, destruída em 1993 na guerra da Bósnia e que estava sendo reconstruída à época das filmagens): “É preciso restaurar o  passado e tornar possível o futuro. Combinar o sofrimento com a culpa. Duas faces. Duas faces e uma verdade: a ponte ”. Vale ainda comentar a relação entre som e imagem como marca da multiplicidade. Em Godard, a voz não conduz a imagem, assim como a música não conduz a cena. Em um filme que se intitula “nossa música ”, a música é um dos elementos mais difíceis de serem analisados. A música do filme é composta por extratos vários de compositores do século XX (à exceção do último): Jean Sibelius, Alexander Knaifel, Hans Otte, Ketil Bjørnstad, Meredith Monk, Komitas, Gyorgy Kurtág, Valentin Silvestrov, Trygve Seim, Arvo Pärt, Anouar Brahem, David Darling, Peter Tchaikovsky. O título não é nada óbvio, é mencionado apenas em uma fala um pouco enigmático de Godard ao final da cena da referida palestra: “O  princípio do cinema é ir até a luz e apontá-la para a nossa noite. Nossa música ”. Enquanto ele diz isso, vemos na tela apenas um ponto de luz em movimento, depois a tela totalmente preta, e à voz sucede uma música suave, que será pouco depois bruscamente interrompida pela  pergunta de uma ouvinte. Não vemos seu rosto, apenas a silhueta de Godard em primeiro  plano, de frente contra a luz. Ele nada responde, ouvimos apenas ruídos. É uma sequência de rupturas visuais e sonoras, em que cada elemento se expressa por si mesmo, contrapondo luz/sombra, som/silêncio, som/imagem. A técnica cinematográfica clássica buscaria uma composição harmônica dos elementos para dar unidade à cena. Godard, ao contrário, trabalha com a dissociação dos elementos e das percepções. Temos, então, uma imagem sonora pura,  pela qual o som se projeta para fora, para o extracampo. Deleuze (1990, p. 278) acentuou como Godard explora esse recurso com componentes sonoros que se deslocam e rivalizam, atravessando a imagem visual com tamanha autonomia que a imagem passa a ser lida como uma partitura  –  uma partitura atonal, acrescentaríamos. A voz off   como recurso do extracampo, tornando perceptível para o espectador a continuidade não visível do plano, coaduna com isso. Em  Notre musique, ela é explorada denotando descontinuidade como, por exemplo, quando uma fala se inicia muito antes da imagem visual

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correspondente ou se estende depois dela, e também nos diálogos, quando o ator não é mostrado enquanto fala ou a câmera é posicionada atrás dele, privilegiando a imagem do ouvinte.  Princípio de ruptura assignificante [...] contra os cortes demasiado significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma estrutura. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 25).

O princípio de ruptura assignificante é o mais evidente no cinema de Godard. O diretor é conhecido (e estranhado) justamente por isso, por ter desde sempre transgredido as convenções cinematográficas e jogado livremente com os planos, cortes, sons e imagens. Em  Notre musique isso se dá também, e com a liberdade que foi se acentuando cada vez mais ao longo da trajetória do diretor desde  À bout de souffle ( Acossado, 1960). Podemos começar observando a narrativa do filme que, apesar da aparente organização indicada pela divisão em três partes, apresenta-se muito mais como um corpo sem órgãos. Frequentemente os discursos são fragmentados e os diálogos interrompidos. Os personagens não possuem um elo comum  –  o caso extremo é a aparição quase fantasmagórica de três índios americanos no meio do filme. A sucessão dos fatos é anacrônica, não se preocupa com a relação de causa e efeito e não há fim e começo. Esses recursos permitem que qualquer ponto se conecte com qualquer outro, de modo que ruptura e conexão estão diretamente atreladas na imagem-rizoma. Deleuze interpreta isso como a instauração de um cinema do interstício em Godard: “É o método do ENTRE, ‘entre duas imagens ’, que conjura todo cinema do Um. É o método do E, ‘isso

e então aquilo ’, que conjura todo cinema do Ser = é. Entre duas ações, entre duas

afecções, entre duas percepções, entre duas imagens visuais, entre duas imagens sonoras, entre o sonoro e o visual: fazer o indiscernível, quer dizer, a fronteira ” (DELEUZE, 1990, p. 217). Cabe, então, retomar a ideia de campo/contracampo discutida acima. Campo e contracampo, imagem e texto, real e imaginário não são oposições binárias (isso ou aquilo), assim como não são superáveis numa síntese conciliadora. O “e” é até mais importante do que as partes, porque no “entre” está a potência da imagem-rizoma, e não nos polos. No “entre” o ser devém rizoma. A citação acima, de  A imagem-tempo, coincide com outra a seguir, de  Mil  Platôs, pela qual podemos perceber claramente como os estudos de Deleuze sobre o cinema herdam a concepção de rizoma: “Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é aliança,

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unicamente aliança. A árvore impõe o verbo ‘ser’, mas o rizoma tem como tecido a conjunção ‘e... e... e...’. Há nesta conjunção força suficiente para sacudir e de senraizar

o verbo ser ”

(DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 48). Assim, chegamos a uma noção central para nosso conceito de imagem-rizoma: uma imagem do “e”. Os cortes irracionais são o principal procedimento para fazer operar a ruptura assignificante na obra de Godard. Assim como o rizoma contesta os cortes significantes das estruturas, Godard se opõe aos cortes racionais. Um corte racional se dá quando a passagem de um plano a outro é feita por um encadeamento articulado de imagens que mantém o ritmo e a continuidade da narrativa visual. Há, então, o que se denomina raccord . O corte irracional (ou corte seco), pelo contrário, opera um falso raccord , isto é, a passagem de um plano a outro é  brusca. Na gramática do cinema clássico, o falso  raccord   é tido como um erro, uma má articulação, mas na  Nouvelle vague  se tornou um recurso estético admirado (AUMONT; MARIE, 2003, p. 116.251). Para Deleuze, os cortes irracionais caracterizam o cinema moderno e potencializam sua capacidade de pensar por imagens. O falso raccord   abre espaço  para o fora, o irracional, o impensado no pensamento  –   eis “o incomensurável   de Godard” (DELEUZE, 1990, p. 219). Além dos exemplos acima, percebemos os cortes irracionais em todo o encadeamento de imagens da primeira parte do filme, o “Inferno”, inclusive pelo uso da tela preta, que além de interromper a continuidade com mais força ainda, lança as imagens no abismo.  Princípio de cartografia e de decalcomania O mapa é aberto, é conectável em todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber modificações constantemente. [...] [Ao contrário do] decalque que volta sempre ao “mesmo ”. [...] é preciso sempre projetar o decalque sobre o mapa. (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 30-31).

Vejamos, finalmente, outro procedimento característico de Godard, as citações. Já tratamos de como o diretor se apropria das imagens da história do cinema e também do uso da música, falta acentuar seu diálogo com a literatura e a filosofia, tão marcante em toda sua obra. Para Dubois (2004, p. 271), Godard realiza um “Trabalho de palimpsesto cinegráfico ”. Ele verifica que Godard toma a linguagem como matéria e a tela como quadro-negro, sobre o qual escreve livremente, insere colagens e grafites, escreve e reescreve, compõe e decompõe, rasura. A imagem deve ser lida, como um texto-imagem, um texto-filme. Em  Notre musique, podemos

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 perceber isso com o discurso dos livros que aparecem em cena, como é o caso dos já mencionados Entre Nous e Sans espoir de retour . No primeiro caso, Olga está diante da ponte de Mostar, ouve a explicação sobre a reconstrução e a religação dos povos enquanto lê um livro sobre a alteridade: “Entre nós”. No segundo, Olga caminha pela floresta (o paraíso) e  passa por um rapaz que lê um livro ambientado em uma cidade-inferno: “Sem esperança de retorno”. Essa presença do livro potencializa a leitura da cena e reescreve o discurso dos atos de fala. A esse respeito, como não se lembrar da cena sensacional de Une femme est une  femme (Uma mulher é uma mulher , 1961), quando Angela e Émile se comunicam por meio dos títulos dos livros? Olga também se comunica pelos livros, aliás, morre carregando seus livros, a única arma de que dispõe para seu ato de revolução. Outrossim, vemos os escritores que são personagens reais dentro de  Notre musique: o  palestino Mahmoud Darwich, o espanhol Juan Goytisolo e o francês Pierre Bergounioux. Suas falas descortinam como algumas questões centrais do filme (a guerra, a alteridade, a literatura engajada) estão inseridas em uma rede maior de discussão. Temos ainda os filósofos e escritores, cujos textos são livremente citados na fala dos personagens, sem obrigação de referenciar sua autoria, porque na realidade os personagens não citam as ideias, eles as vivenciam. Nos créditos finais Godard assume a autoria somente dos textos de Antonia Birnbaum, Wolfgang Sofsky, Dostoiévski e Blanchot, mas há ainda Hannah Arendt, Levinas, Camus, Benjamin, Rimbaud, Balzac, Kafka, Gandhi, entre outros. Identificamos nestes procedimentos o princípio de cartografia tomando as citações como um mapa de ideias. Godard não está simplesmente repetindo o dito, reproduzindo histórias e argumentos, ele recria, reescreve, desterritorializa e reterritorializa os pensadores. Escritores citados diretamente ou indiretamente, escritores em cena, personagens reais e fictícios, Godard diretor e Godard ator-personagem se conectam mutuamente, mas de modo aberto e múltiplo. Uma imagem de decalque seria sobrepor as citações sobre um eixo único de ideias, um discurso fundamental, uma narrativa fundante. Porém, como imagem-rizoma, o que encontramos em  Notre musique  são linhas de fuga. Claro que há elementos de decalque, estruturas cinematográficas e semióticas, proposições categóricas, todavia desestabilizadas. As repetições (de planos, procedimentos, textos) não se projetam em direção ao mesmo, mas ao múltiplo, são reassumidas cada vez como um outro modo de serem vistas ou lidas.

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Durante todo o filme Godard trabalha com a conexão de imagens, às vezes até repetindo uma mesma imagem ou tomadas semelhantes em momentos diferentes, como, por exemplo, as intermitentes imagens de carros, trens e pedestres em trânsito em Sarajevo, em idas e vindas sem direção determinada. Com isso, a cidade de Sarajevo  –  território sobre o qual se inscreve a parte central do filme  –   é apresentada como uma cidade aberta com suas vias (avenidas, ferrovias) como linhas de fuga. Em Mostar, por sua vez, é reconstruída uma via destruída no  passado (a ponte), dada sua importância para a vida da cidade, para a passagem e o encontro de seus habitantes. O vermelho também estabelece uma linha de conexão quase obsessiva na tela, presente na maioria das cenas e bastante acentuado pela fotografia. Nas roupas, letreiros, carros, objetos, sangue e vários outros elementos, o vermelho acaba conectando as imagens em meio ao caos da montagem godardiana. Embora a associação ao sangue e à dor possa sugerir uma interpretação disso, parece-nos que interessa mais ao diretor o vermelho enquanto vermelho, a cor por si mesma, a imagem ótica pura. Não é um uso novo na trajetória de Godard, e Deleuze comentou isso mais de uma vez lembrando a fórmula de Week-end   (1967): “não é sangue, é vermelho”. Segundo o filósofo, não é uma metáfora ou figura, nem é puramente pictórica (DELEUZE, 1990, p. 34.220), “é a potência que se apossa de tudo que passa a seu alcance, ou a qualidade comum a objetos inteiramente diferentes. Há efetivamente um simbolismo das cores, mas este não consiste numa correspondência entre uma cor e um afeto (o verde e a esperança...). Ao contrário, a cor é o próprio afeto, isto é, a conjunção virtual de todos os objetos que ela capta ” (DELEUZE, 1985 , p. 151). O vermelho como metáfora seria mero decalque, mas enquanto cor pura projeta um mapa visual, uma espécie de cartografia da cor. Considerações finais

Compactuamos com Vasconcellos (2006, p. 170) ao afirmar que com Godard “estamos diante do devir-cinema que remete à filosofia da diferença de Gilles Deleuze”.  De fato, podemos  perceber, ao longo de todo o filme  Notre musique, como o diretor transgride o uso clássico das técnicas cinematográficas e rompe com os parâmetros da representação, afirmando a diferença na imagem. Godard, com sua linguagem alucinatória, apresenta-nos uma obra em devir –  entre o ficcional e o documental, a imagem e o discurso, o eu e o outro.

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Ao propormos a criação do conceito de imagem-rizoma, pudemos perceber que os princípios do rizoma apresentados por Deleuze e Guattari se aproximam muito da tipologia do cinema moderno tal como elaborada por Deleuze. Acreditamos que com o conceito de imagemrizoma pudemos expandir tanto a filosofia da diferença quanto a filosofia do cinema deleuzeanas. E ao relacioná-lo ao filme analisado, identificamos potencialidades próprias do cinema em produzir um pensamento da diferença.

Referências

AUMONT, J.; MARIE, M. (2003). Dicionário teórico e crítico de cinema. Tradução Eloisa Araújo Ribeiro. Campinas: Papirus. DELEUZE, G. (1985). A imagem-movimento: Cinema I. Tradução Stella Senra. São Paulo: Brasiliense.  ______. (1990). A imagem-tempo: Cinema II. Tradução Eloisa de Araujo Ribeiro. São Paulo: Brasiliense.  ______. (2006). A ilha deserta: e outros textos. Tradução Luiz Orlandi et al. São Paulo: Iluminuras. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. (1992). O que é a filosofia?. Tradução Bento Prado Jr. e Alberto Alonso Muñoz. São Paulo: Ed. 34.  ______. (1995). Mil platôs. Tradução Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e Célia Pinto Costa. São Paulo: Ed. 34. vol. 1. DUBOIS, P. (2004). Cinema, vídeo, Godard . Tradução Mateus Araújo Silva. São Paulo: Cosac Naify.  NOTRE Musique. (2004). Direção: Jean-Luc Godard. Produção: Alain Sarde e Ruth Walburger. Paris: Les Films Alain Sarde/ Périphéria/ France 3 Cinéma/ Canal Plus/ TSR/ Vega Film, 80 min., 35 mm. VASCONCELLOS, J. (2006). Deleuze e o cinema. Rio de Janeiro: Ciência Moderna.

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