Anne Cauquelin

February 19, 2017 | Author: Esther Zamboni Rossi | Category: N/A
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O original desta obra foi publicado em francês com o título L'invention du paysage © 2000, Presses Universitaires de France. © 2007, Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, para a presente edição. Tradução Marcos M ardonilo Preparação M aria do Carmo Zanini Revisão Eliane de Abreu Santoro Regina L. S. Teixeira Produção gráfica Demétrio Zanin Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Cauquelin, Anne A invenção da paisagem /Anne Cauquelin; tradução Marcos Marcionilo. — São Paulo : Martins, 2007. — (Coleção Todas as Artes) Título original: L'invention du paysage. ISBN 978-85-99102-53-4

07-1485

CDD-111.85 índices para catálogo sistemático:

1. Paisagem : Estética : Ontologia

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Todos os direitos desta edição para o Brasil reservados à L ivraria M artins Fontes E ditora Ltda. para o selo M artins. Rua Prof. Laerte Ramos de Carvalho, 163 01325-030 São Paulo SP Brasil Tel. (11) 3116.0000 Fax (11) 3115.1072 info@martinseditora. com. br www.martinseditora.com. br

Biblioteca de Ciências Humanas e Educação-Artes Editora WMF Martins Fontes Ltda A invenção da paisagem R e g is tr o 496976 325/2010 Termo. LICITAÇÃO 24/06/2010 R$ 32,33

UFPB - Sistema de Bibliotecas

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1. Arte - Teoria 2. Natureza (Estética) 3. Paisagem na arte 4. Paisagem na literatura I. Título. II. Série.

AS FORMAS DE UMA GÊNESE

Gênese de uma forma. Quem diz gênese diz "come­ ço". Ora, é sempre difícil dizer "eu vou começar pelo co­ meço". Impossível apontar o dedo para esse "começo". Cada vez que tentamos datá-lo, o encontro repentino de algum acontecimento nos provoca, desmente de modo cruel nossa afirmação, mostra-nos a inanidade desse pre­ tenso começo. A decisão arbitrária é o único modo de evitar esse mau passo. O mesmo vale para a paisagem. Quando é que ela surgiu como noção, como conjunto estruturado, dotado de regras próprias de composição, como esquema simbólico de nosso contato próximo com a natureza? Autores confiáveis situam seu nascimento por volta de 1415. A paisagem (termo e noção) nos viria da Holan­ da, transitaria pela Itália, se instalaria definitivamente em nossos espíritos com a longa elaboração das leis da pers­ pectiva e triunfaria de todo obstáculo quando, passando

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a existir por si mesma, escapasse a seu papel decorativo e ocupasse a boca de cena. Tais asserções são perfeitamente aceitáveis quando se trata apenas da pintura, isto é, da apresentação de ele­ mentos paisagísticos na moldura de um quadro. A inven­ ção da perspectiva é justamente o nó da questão. Ao fixar a ordem de apresentação e os meios de realizá-la em um corpo de doutrina, a perspectiva tida como "legítima" justi­ fica o aparecimento da paisagem no quadro: com efeito, de início encontramos na pintura - ou nos intarsia (marche­ tarias) - as severas arquiteturas das "cidades ideais". Elas não passam de praças desertas, de esquinas de edificações, de recortes de janelas, de arcos que se abrem para outros traçados, de monumentos de diversas formas, que parecem ser um repertório para a construção. Cidades-esboço, de núcleo estrito, sem nenhuma vegetação nem arbustos, sem a emoção desordenada dos corpos, nem a emoção, tem­ pestuosa, das nuvens. Ao longe, na ponta-seca do olho, o ponto de fuga. A perspectiva - que é passagem através, abertura (;per-scapere) - alcança o infinito, um "além" que sua linha evoca. Mas é um além nu, uma geometria, o nú­ mero de uma busca. A sensualidade está ausente, assim como o acaso, mas eles logo vão voltar à cena e exercerão seu encanto: aqui, uma planta se apoiará sobre um balcão; ali, o pináculo aéreo de uma árvore atrás daquele muro; enfim, um mar que, bem na linha do horizonte, virá como um falar tentador do absoluto. A paisagem parece se ins­ talar timidamente, hesitar, vacilar, para depois se afirmar.

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Os três célebres painéis de Urbino, de Baltimore e de Ber­ lim dão testemunho desse rigor apenas esboçado de uma paisagem ainda expectante. Quanto às intrincadas mar­ chetarias que apresentam as mesmas perspectivas de cida­ des ideais, é ao polimento, ao grão, ao lustro, ao calor das madeiras nobres que elas devem o poder de evocar algo como uma paisagem. Tomada exclusivamente no contexto da pintura, a pai­ sagem se reduziria, pois, a uma representação figurada, destinada a seduzir o olhar do espectador, por meio da ilu­ são de perspectiva. A inesgotável riqueza dos elementos naturais encontraria um lugar privilegiado, o quadro, pa­ ra aparecer na harmonia emoldurada de uma forma, e in­ citaria então o interesse por todos os aspectos da Natureza, como por uma realidade à qual o quadro daria acesso. Em suma, a paisagem adquiriria a consistência de uma realidade para além do quadro, de uma realidade completamente autônoma, ao passo que, de início, era apenas uma parte, um ornamento da pintura. Aqui já po­ deríamos nos admirar com tamanha autonomia para um simples elemento técnico, com um vôo desses, com uma "naturalização" dessas. Mas, para podermos nos admirar realmente, é necessário ainda sair do círculo encantado da história da arte. Abandonar as obras, os artistas - mesmo que esse sacrifício seja penoso - e perguntar pelas novas estruturas da percepção introduzidas pela perspectiva. A meu ver, só então nos fixamos no mistério da paisagem, de seu nascimento.

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Pois essa "forma simbólica" estabelecida pela pers­ pectiva1 não se limita ao domínio da arte; ela envolve de tal modo o conjunto de nossas construções mentais que só conseguiríamos ver através de seu prisma. Por isso é que ela é chamada de "simbólica": liga, num mesmo dispositi­ vo, todas as atividades humanas, a fala, as sensibilidades, os atos. Parece bem pouco verossímil que uma simples téc­ nica - é verdade que longamente regulada - possa trans­ formar a visão global que temos das coisas: a visão que mantemos da natureza, a idéia que fazemos das distâncias, das proporções, da simetria. Mas é preciso render-nos à evidência: o mundo de antes da perspectiva legítima não é o mesmo em que vivemos no Ocidente desde o século xv. Parece que se deu um salto que leva mais longe que a mera possibilidade de representação gráfica dos lugares e dos objetos, que é um salto de outra espécie: uma ordem que se instaura, a da equivalência entre um artifício e a na­ tureza. Para os ocidentais que somos, a paisagem é, com efeito, justamente "da natureza". A imagem, construída sobre a ilusão da perspectiva, confunde-se com aquilo de que ela seria a imagem. Legítima, a perspectiva também é chamada de "artificial". O que, então, é legitimado é o 1. E. Panofsky, La perspective como forme symbolique et autres essais (Paris, Les ÉditiOns dê Minuit, 1976 [em português: A perspectiva como forma simbólica, Lisboa, Edições 70, 1999]). Consciente de sua importância histórica e social pa­ ra o Ocidente, Panofsky nomeia a perspectiva como "forma simbólica". Forma no sentido de que é inevitável para todo conteúdo visual e desempenha o papel de a priori. Simbólica por unir num só feixe as aquisições culturais da Renascença que ainda estão em vigor em nossos dias e que constituem o fundo, o solo (Grund) de nossa modernidade.

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transporte da imagem para o original, uma valendo pelo outro. Mais até: ela .seria a única imagem-realidade pos­ sível, aderiria perfeitamente ao conceito de natureza, sem distanciamento. A paisagem não é uma metáfora para a natureza, uma maneira de evocá-la; ela é de fato a nature­ za. Aqui se poderia dizer: "Como? Se a paisagem não é a natureza, o que seria ela, então?". Falar, portanto, de uma construção retórica (de um artifício, desta vez lingüístico) acerca da paisagem é crime de lesa-majestade. A naturezapaisagem: um só termo, um só conceito - tocar a paisagem, modelá-la ou destruí-la, é tocar a própria natureza. Aqui, convoca-se uma ontologia que torna vã toda discussão sobre uma provável gênese. Que a forma simbó­ lica "paisagem" tenha se constituído no decorrer de sécu­ los é então inadmissível, pois, se a paisagem é identificada com a natureza, ela esteve presente desde sempre. Sempre houve paisagens, não é? Que a paisagem-natureza tenha evoluído, sofrido mudanças, até se admite; assim como os climas, as estações e o solo se transformaram, mas isso de­ corre de uma natureza em evolução contínua. As "formas" evoluem, mas a partir de um dado existente desde toda a eternidade. Nada a ver, diz-se, com uma construção men­ tal. A paisagem participa da eternidade da natureza, um constante existir, antes do homem e, sem dúvida, depois dele. Em suma, a paisagem é uma substância. Para essa ontologia, a pintura é um intermediário in­ teressante, porque faz ver de maneira sensível, mostra, exi­

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be, exalta essa preeminência e anterioridade. A pintura é variação a partir do princípio. Nada além. Na verdade, se é mediadora, não é indispensável, é um adendo atrativo, às vezes emocionante e, por sorte, desvinculado, no domínio especializado que é o seu, de toda a distância que a estéti­ ca mantém "[d]a vida". Do contrário, acrescenta-se, seria preciso fiar-se ape­ nas nos críticos de arte para perceber a natureza? Con­ cepção elitista que favoreceria por demais os eruditos e privaria cada qual de sua relação com a natureza. Em tais condições, não haveria paisagem para o diletante em arte? Absurdo. Esses argumentos defendem e ilustram a relação confusa que mantemos com essa paisagem-natureza, ou com essa natureza-paisagem. Uma dupla operação se manifesta aqui: de um lado, restituir a paisagem à na­ tureza como a única forma de tomá-la visível (logo, de transformá-la por intermédio do trabalho paisagístico); de outro lado, desdobrá-la em direção do princípio inalte­ rável da natureza, apagando então a idéia de sua possível construção. Confusão bem marcada no fluxo de noções de "sítio", de "meio ambiente", de "ordenamento" ou de "integração". Pois os mesmos que querem salvaguardar a natu­ ralidade da paisagem como dado primitivo se dedicam também a proteger os "sítios" depositários de uma certa memória, histórica e cultural. Ora, o "sítio", o que "per­ manece ali", designa tanto o monumento (esse arco, essa

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cidade antiga, esse vestígio) quanto a forma geológica sin­ gular que intervém num meio natural. Nessa ótica, a paisagem é um "monumento natural de caráter artístico"; a floresta, uma "galeria de quadros natu­ rais, um museu verde". Essa definição, elaborada pelo Minis­ tério da Instrução Pública e das Belas-Artes francês em 1930, destaca a ambigüidade; reúne em uma fórmula os dois aspec­ tos antagônicos da noção de paisagem: o ordenamento cons­ truído e o princípio eterno; enuncia uma perfeita equivalência entre a arte (quadro, museu, caráter artístico) e a natureza. Uma definição dessas tinha ao menos o mérito de não eliminar a dificuldade, de reconhecer que se trata de uma forma complexa, com duas vertentes que intercambiam atributos segundo uma regra desconhecida e cuja unidade é mantida na e pela experiência ordinária. Experiência que, de minha parte, na descrição do so­ nho de minha mãe, absorvi integralmente, pensando que aquele jardim enunciava o campo que enunciava a paisa­ gem que enunciava a natureza, encontrando nessa entrada multiplicada a revelação do "belo natural". Como poderia eu de outro modo aproximar-me dele, a não ser pelo qua­ dro emoldurado de um jardim composto, pelo artifício de sua disposição perfeita? Mergulhada, aniquilada no sentimento de uma pre­ sença, sem tomar consciência, nem um único instante se­ quer, da operação que dessa forma o oferecia a mim, do aprendizado que, de muito longe, para além do jardim so­ nhado, construíra a segurança de que era exatamente aqui-

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lo, de que eu não me enganava, de que aquilo que eu via era evidentemente uma paisagem: a natureza. Dobra onde se juntam, ponta com ponta, a natureza e sua figuração - essa dobra de sombra, essa lenta ascen­ são de uma forma da qual jamais poderíamos pensar que não fosse dada desde o início como realidade. Desfazer essa dobra? Estender o tecido amarfanhado, tatear a textura dessa forma, desfazer e refazer as evidên­ cias, testar os implícitos? Isso consiste sempre em remontar a "antes da dobra". Apoiar-se na matéria-prima da "causa mental". Decompor os elementos, que, à beira dessa flores­ ta de símbolos que é a história da edificação da paisagem, foram suas condições de possibilidade. Da Grécia a Roma, de Roma a Bizâncio, de Bizâncio à Renascença, produziram-se algumas formas que gover­ nam a percepção, orientam os juízos, instauram práticas. Esses perfis perspectivistas passam de um a outro, dese­ nham "mundos" que foram, para aqueles que os habitam, a evidência de um dado. Esse trabalho de restituição, ao explicitar a dobra, não tem, contudo, a pretensão de nos separar de nossas cren­ ças, da evidência de nossas intuições. Mesmo que saiba­ mos que o sol não se põe, diz Gadamer, seguimos dizendo que ele se põe, e não poderíamos nos separar daquilo que a língua diz com a justeza do sentimento. Inversamente, um saber não sabido, as pistas, refugos de crenças e de mundos antigos, ressoam longamente em

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nós. Saber ignorante de si mesmo, que forma, a nossa re­ velia, a maioria de nossos juízos de gosto. É para o reconhecimento dessa mescla e para o misto de composições que ela gera em nossas avaliações comuns que se volta essa "gênese".

1 A NATUREZA ECÔNOMA

No limiar de nossa pesquisa, uma surpresa nos espera. E de vulto. Na verdade, não voltamos a ela e a ela dificilmen­ te retomaremos. Há quem tenha dificuldade em acreditar nisso e tente dar mil voltas à dificuldade: é que não há, en­ tre os gregos antigos, nem palavra nem coisa semelhante, de perto ou de longe, àquilo que chamamos "paisagem"... Profunda estupefação em relação a nossa admiração secu­ lar por este céu e esta terra, as ilhas ao longe, as praias, as colinas áridas e as florestas delicadas, e a luz. Aterrorizados pelas recordações literárias e pelos es­ tereótipos de uma cultura herdada, vemos a Grécia com olhares enamorados e "caminhamos" pelas descrições da Acrópole ao sol poente. Vemos a Grécia com olhos de qua­ dro. Quem, mais que os gregos, poderia ter naturalmente presente a noção de paisagem? Quem poderia fazer res­ plandecer, com um brilho mais incomparável, a luz do sol sobre o mármore dos templos? O rochedo acima do mar

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porta suas colunas como um fruto perfeito. Harmonia, be­ leza. Unidade espontânea de uma razão nascente com sua forma visível. A Grécia é isso. É possível que nenhuma idéia de "paisagem" tenha sido formada, formulada, ela­ borada? Coisa aparentemente impensável. Contudo, é isso mesmo. Para nosso grande desconcerto. Deveríamos sondar bem essa ausência, por mais sur­ preendente e frustrante que ela seja. Não nos restaria al­ go dela nas mil dobras de nossa memória? Seríamos nós um pouco gregos em algum aspecto? Tão longa história não teria deixado marcas? E como nos haveremos com essa ausência? Porque, se a paisagem responde "ausente", a na­ tureza está lá. Haveria, então, uma distância, um "buraco" entre os dois conceitos, que hoje temos o hábito de confun­ dir em uma mesma figura? Não há dúvida de que a Natureza não era figurada na forma da paisagem. Se ela aceitava ser representada concretamente, era em termos de ordenamento, de distribui­ ção organizada. Potência atuante nos objetos animados e inanimados, a metáfora que se encarregava dela para tor­ ná-la inteligível era de ordem antropomórfica. Com efeito, Aristóteles a apresenta como uma boa do­ na de casa. Uma ecônoma cuidando das reservas cuja guar­ da lhe foi dada, distribuindo-as com medida e bom senso. Suas reservas, tesouros inestimáveis, ela as divide do melhor modo possível para a preservação dos seres que pro­ duziu (a natureza nada faz em vão), dotando o rinoceron­ te indiano de duros cascos, mais úteis para ele nos rochedos

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áridos do que se tivesse chifres na testa. De resto, boa moça, ela lhe concede, contudo, um só chifre, para se defender. E como toda boa mãe de família que, por vexes, se engana na repartição, privilegiando um, ela fica sem na­ da para dar ao outro... Ou dá muito, ou o insuficiente: os monstros são erros por excesso ou falta, assim como os aci­ dentes. Um problema de gestão. Mas se recebem dons apropriados a suas constituições, os seres também são instalados em lugares específicos, pla­ nícies, rios, montanhas, desertos. A natureza se mostra ge­ nerosa (ou avarenta) em sua atribuição: há condições de vida e de sobrevivência, um meio ambiente necessário que expli­ ca as particularidades de suas formas e de suas "partes". A relação entre uma suposta paisagem e o animal que nela se instala é da ordem da economia das partes que a com­ põem. Um pântano é indispensável para um elefante, que, andando pesadamente pelo fundo lamacento, tira a tromba da água para respirar. A planície árida é necessária ao aves­ truz, para que ele possa ali esconder seus ovos. Esse curio­ so bípede de pálpebra humana, que não anda nem voa, está instalado em seu meio, o deserto de areia. Contudo, esse ambiente - o "meio" que determina os comportamentos animais e a eles está ligado de ma­ neira estrita - não apresenta nenhuma característica pela qual pudesse valer por si mesmo. Ele envolve os corpos que contém, não é um "mundo" no sentido em que não é parti­ cularmente visado por meio das formas de sensibilidade e de percepção - uma forma simbólica ou uma construção.

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Em contrapartida, o "mundo" da Natureza, aquele que os gregos apresentaram como evidência do implícito de sua visão, seu "mundo", é o do logos, essa razão lingüís­ tica que atravessa as coisas de lado a lado e que instaura um entendimento, uma escuta, mais que uma visualiza­ ção, dos objetos desse mundo. Heráclito vive nos repetin­ do isso na maior parte de seus fragmentos. Basta que um princípio (o logos como princípio da natureza) assegure a coesão, o ajuntamento dos elementos políticos, sociais, conceituais, para que a unidade esteja presente como tota­ lidade indivisível. "Pois uma só é a (coisa) sábia, possuir o conhecimento que tudo dirige através de tudo1." Dessa forma, é inútil - de verdade, com toda a certeza - destacar um fragmento dessa unidade. O invólucro visí­ vel, o lugar dos seres, é entendido - compreendido ou in­ cluído - no estado das coisas tal qual elas se apresentam ao logos integrador. O templo não está sobre o rochedo, não se situa em uma paisagem; reúne em si uma totalidade. O templo-rochedo é atravessado pela linguagem que o faz existir como parte do estado de coisas que revela ao se manter ali. Ele não designa, não significa: é o conjunto de um mundo que se deixa compreender em sua extensão. Com ele estão da­ dos, ao mesmo tempo, a história, a lenda, o mito. 1. Heráclito, "Fragmento 41", segundo Diógenes Laércio, ix, 1, em Pré-socráticos (trad, de José Cavalcante de Souza, São Paulo, Nova Cultural, 2000, coleção "Os Pensadores"), p. 92.

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Temos de reler Pausânias:
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