Análise_ Ela canta, pobre ceifeira_Gato.docx

September 29, 2017 | Author: Marta Moreira | Category: Poetry, Subject (Grammar), Cats, Happiness & Self-Help, Thought
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Análise – “Ela canta, pobre ceifeira” e “Gato que brincas na rua” 1. A primeira parte, constituída pelas três primeiras estrofes, é focalizada no canto da ceifeira; na segunda parte – as três últimas estrofes – o sujeito poético expressa os sentimentos e emoções que aquele canto desperta nele. Dado que o sujeito poético nos revela o seu universo íntimo, o discurso é marcado pela emotividade. A função emotiva da linguagem está patente nas marcas da primeira pessoa presentes no discurso (“em mim”, “no meu coração”, “por mim”, “Minha alma”, “levandome”), nas frases curtas de tipo exclamativo, no uso da interjeição, nos verbos no infinitivo, expressando um desejo, (“poder ser tu”, “Ter a tua alegre inconsciência”). Na quarta estrofe, através do imperativo, o sujeito poético dirige um apelo a uma segunda pessoa, a ceifeira (“canta, canta sem razão”, “Derrama (…) /A tua incerta voz”); o imperativo volta a ser usado nos últimos três versos do poema; desta vez, no entanto, o apelo é dirigido, através de apóstrofes, aos elementos que rodeiam o sujeito poético (”Ó céu! / Ó campo! Ó canção!) e que, assim, aparecem personificados. 2. Objetivamente, a ceifeira canta enquanto trabalha. A alegria que o seu canto sugere é contrariada pela subjetividade expressa pelo sujeito poético através do adjetivo anteposto “pobre”, logo seguido no segundo verso, pelo adjetivo “feliz” cujo significado é, no entanto, anulado pela introdução de um discurso dubitativo (a utilização do verbo Julgar-se e do advérbio “talvez”). Nos dois versos seguintes, a “voz” da ceifeira é descrita como sendo “alegre”, porém, o nome “viuvez” tradicionalmente interpretado como símbolo de desamparo, tristeza, aliado ao adjetivo “anónima” (desconhecida, obscura, escondida), revelam-nos um novo par antitético. Ainda no domínio da antítese, encontramos outro exemplo no verso nove – “alegra e entristece”. – podemos encontrar uma explicação para a antítese do verso anterior: o contraste entre a alegria inerente ao ato de cantar e a dureza que caracteriza o trabalho árduo da ceifeira. 3. O canto da ceifeira é caracterizado através de comparações. A primeira – “Ondula como um canto de ave” [v.5] -, para além da suavidade da voz da ceifeira, sugere o caráter inconsciente da alegria que perpassa na sua voz; a segunda – “No ar limpo como um limiar” *v.6+ – sublinha a pureza do ar em que a voz da ceifeira volteia, caracterizada quer pelo adjetivo “limpo”, quer através do segundo termo da comparação – “um limiar” é um começo, um princípio onde tudo é possível e, portanto, limpo, puro. Saliente-se, ainda, a expressividade das metáforas “a sua voz (…) Ondula”, “E há curvas no enredo suave / Do som…” *vv. 7-8] que nos remetem para ondas e linhas curvas, sugerindo a harmonia do canto da ceifeira. Numa outra metáfora – “Na sua voz há o campo e a lida”[v.10] – podemos encontrar uma explicação para a antítese presente no verso 9: o contraste entre a alegria inerente ao ato de cantar e a dureza que caracteriza o a “lida”, o trabalho árduo da ceifeira. Além dos recursos estilísticos mencionados, o ritmo binário aparece em íntima relação com o caráter ondulatório da voz da ceifeira: Ondula/ como um canto de ave No ar limpo/ como um limiar,

1 Professora: Ana Cristina Costa

Análise – “Ela canta, pobre ceifeira” e “Gato que brincas na rua” E há curvas/ no enredo suave Do som/ que ela tem a cantar. 4. Este canto provoca no sujeito poético uma reação paradoxal: “Ouvi-la alegre e entristece”(v.9). 5. O canto, por natureza alegre, aparece na voz da ceifeira que, na perspetiva do sujeito poético, poucas razões teria para cantar. Desta forma, o canto, metáfora da felicidade, opõese à vida que, assim, passa a conotar-se com dor e infelicidade. 6. Através dos desejos paradoxais expressos nos versos 17 a 19, o sujeito poético aspira ao impossível. Torna-se evidente que, embora inveje a inconsciência da ceifeira e a felicidade que lhe advém do facto de não pensar, o sujeito poético sabe que nunca poderá alcançá-las pois “sofre” da dor de pensar. 7. O pleonasmo “Entrai por mim dentro!” aumenta a expressividade, intensificando o desejo formulado pelo sujeito poético de se deixar invadir pelos elementos apostrofados na estrofe anterior (*…+”Ó céu!/Ó campo! Ó canção!*…+”vv.19-20. 8. A dor de pensar – [vv. 14, 20 e 21]; a efemeridade da vida – [v.21]; o desejo de dispersão / fragmentação [vv.17 e22-24]. 9. A repetição do verbo cantar (sete vezes), o uso dos nomes “voz”, “canto”, “som” e “canção” e do verbo ouvir conferem ao canto e à ceifeira um papel de centralidade no poema. 10. De facto, o canto apresenta-se como metáfora da felicidade a que o sujeito poético aspira mas nunca poderá alcançar, pois, enquanto a ceifeira se “julga” feliz, porque não pensa, não intelectualiza as suas emoções, o sujeito poético nunca poderá alcançar essa felicidade que lhe inveja, porque racionaliza as suas emoções e, portanto, não é capaz de “ser” simplesmente. Mesmo desejando ter a “alegre inconsciência” (v.17) da ceifeira, quer continuar consciente “E a consciência disso” (v. 18). 11. O poema apresenta uma versificação regular, com versos octossílabos – muito usados pelos poetas galaico-portugueses, sobretudo nas cantigas de amor – seguindo o esquema rimático abab (rima cruzada), organizados em seis quadras. O ritmo é, geralmente, binário, intimamente relacionado com a harmonia e a suavidade do canto, notando-se, com alguma frequência o recurso ao transporte (encavalgamento) que “alonga” os versos. ---------------------------------------------------

2 Professora: Ana Cristina Costa

Análise – “Ela canta, pobre ceifeira” e “Gato que brincas na rua” “Gato que brincas na rua” Gato que brincas na rua Como se fosse na cama, Invejo a sorte que é tua Porque nem sorte se chama. Bom servo das leis fatais Que regem pedras e gentes, Que tens instintos gerais E sentes só o que sentes. És feliz porque és assim, Todo o nada que és é teu. Eu vejo-me e estou sem mim, Conheço-me e não sou eu. Fernando Pessoa

Pessoa, subjugado pelo poder do pensamento e da imaginação, deseja experienciar estados de inconsciência. Este exercício exaustivo de uma inteligência esquadrinhadora leva Pessoa ortónimo a ser incapaz de sentir e, por isso mesmo, a desejar ser inconsciente para poder atingir uma felicidade cada vez mais utópica e inatingível. Essa “inveja” que o poeta sente dos seres felizes assume o auge em “ Gato que brincas na rua”, onde é o próprio animal, porque não pensa, porque não se conhece, que aparece como uma espécie de “modelo” para se atingir a felicidade (“Invejo a sorte que é tua/ Porque nem sorte se chama/ (...) És feliz porque és assim/ (...) eu vejo-me e estou sem mim, / conheço-me e não sou eu”).

Pessoa parte de uma “imagem-símbolo” para iniciar a sua reflexão:  a imagem-símbolo é o gato que brinca na rua, de forma instintiva e natural – “Como se fosse na cama”;  o sujeito poético inveja esse viver instintivo do gato, a sua racionalidade e, consequentemente, a sua felicidade;  a tomada de consciência por parte do “eu” lírico da fragmentação interior que o domina – “ Eu vejo-me e estou sem mim”;  a auto-análise permanente – “Conheço-me e não sou eu.” Aspectos temáticos: - A felicidade de não pensar; - A inveja do sujeito poético da incapacidade de racionalização do animal; - O isolamento do “eu” face às “pedras e gentes”; - O desconhecimento, a sensação de estranheza do “eu” em relação a si próprio. 3 Professora: Ana Cristina Costa

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