ANÁLISE DO SONETO

March 8, 2018 | Author: Karen Medeiros | Category: Sonnets, Phoneme, Love, Linguistics, Languages
Share Embed Donate


Short Description

Download ANÁLISE DO SONETO...

Description

Tanto de meu estado me acho incerto Tanto de meu estado me acho incerto, Que em vivo ardor tremendo estou de frio; Sem causa, juntamente choro e rio; O mundo todo abarco e nada aperto. É tudo quanto sinto um desconcerto; Da alma um fogo me sai, da vista um rio; Agora espero, agora desconfio, Agora desvario, agora acerto. Estando em terra, chego ao Céu voando; Nu~a hora acho mil anos, e é de jeito Que em mil anos não posso achar u~a hora. Se me pergunta alguém porque assim ando, Respondo que não sei; porém suspeito Que só porque vos vi, minha Senhora.

Luís Vaz de Camões

ANÁLISE DO SONETO Para a melhor análise deste soneto é necessário considerar, primeiramente, seu aspecto formal em relação ao conteúdo, ou seja, no que a forma contribui para o significado do poema. Assim, pode-se dizer primeiramente que é formado por 14 versos decassílabos, divididos em 2 quartetos e 2 tercetos. São decassílabos heroicos, pois possuem o icto (acento) na 6ª e 10ª sílaba “Tan/to/de/meu/ es/ta/do/mea/choin/cer/to”. Possui rimas externas (incerto/aperto) e internas (desconfio/desvario). As rimas são interpoladas e emparelhadas, seguindo o seguinte esquema métrico: ABBABAABCDECDE. Rimas ricas quanto à fonética (frio/rio) e à morfologia (desconcerto/acerto), assim como pobres fonética (incerto/aperto) e morfologicamente (ando/voando). Os poemas camonianos são cheios de repetições, seja de uma ideia, uma palavra ou um som. Neste soneto, a repetição dos fonemas nasais caracteriza o “aflautamento”, expressando o choro, o sofrimento do eu-lírico “Tanto de meu estado me acho incerto, / Que

em vivo ardor tremendo estou de frio / Sem causa, juntamente choro e rio / O mundo todo abarco e nada aperto”. Há ainda em todo o soneto os fonemas oclusivos “t” e “k”, que indicam problemas, obstáculos. “Tanto de meu estado me acho incerto / Que em vivo ardor tremendo estou de frio”; “É tudo quanto sinto um desconcerto”. E ainda pode-se perceber que a maior parte do poema é construído com vogais do fechamento, indicando o sofrimento. Em um momento, porém, aparece a vogal aberta /a/, em que o eu-lírico expressa emoções como a saudade e o contentamento em relembrar de sua amada: “Que só porque vos vi, minha Senhora”. Neste verso antes do vocativo há um truncamento causado pelos fonemas consonantais oclusivos, contrastando com os sons nasais, as vogais abertas e a sibilante em “minha Senhora”. O soneto expressa o sofrimento do eu-lírico devido ao seu amor por uma moça, que ao vê-la, faz surgir em sua alma sentimentos contrários “Sem causa, juntamente choro e rio”. Por isso há o uso de consoantes oclusivas, nasalização e vogais do fechamento, existe no interior do eu-lírico uma profunda dor, que se faz presente nestas características formais. Toda sua amargura, porém, é colocada em palavras de forma muito sutil e delicada. Quando o eu-lírico diz “da vista um rio”, é uma forma delicada e bela para dizer que ele chora, o que se constitui também uma metáfora. O Idealismo Platônico, a divisão entre os dois mundos, o natural e o ideal, entre os dois planos, o sensível e o inteligível, está muito bem expresso neste soneto no seguinte verso: “Estando em terra, chego ao Céu voando”. Admite-se que só é possível alcançar o ideal através do pensamento, por isso, estando em terra, o eu-lírico alcança o Céu ideal. Nesta mesma diretriz de platonismo encontra-se a mulher deste soneto. A mulher é representada pela “Senhora”, ela é todas e nenhuma em particular, pois pertence ao mundo das idéias. A partir das mulheres que amou, Camões faz um retrato da Mulher ideal, que não é uma em específico e por isso está em maiúsculo. Neste soneto não há como provar com contundência que existiu uma relação entre o eu-lírico e sua amada, para que se diga que exista o amor sob o viés carnal. Talvez no verso “Da alma um fogo me sai, da vista um rio”, este “fogo” poderia remeter ao amor sensual, mas não há como ter certeza. A melhor leitura seria do amor espiritual, platônico, em que o eu-lírico apenas contempla sua amada a partir da memória. E quando se fala em recordar da moça, puxa-se um gancho com a temática da saudade, tão presente nos poemas camonianos. Desta forma, aparece a memória contemplativa, em que é necessário elaborar o pensamento diante de algo, exige esforço mental. Pode-se perceber que o soneto é composto por verbos no Presente do Indicativo (acho, choro, rio, sinto, espero, desconfio, suspeito) e por verbos no Gerúndio (tremendo, ando,

voando) e só no último verso aparece um verbo no Pretérito Perfeito do Indicativo (vi). A partir disto, depreende-se que o estado de conflito em que o eu-lírico se encontra no momento presente e as ações que ele comete, são causadas por um acontecimento passado, que é ter visto a sua “Senhora”: “Se me pergunta alguém porque assim ando, / Respondo que não sei; porém suspeito / Que só porque vos vi, minha Senhora”. Ainda pode-se falar que durante o poema, o eu-lírico faz a disseminação, ou seja, ele argumenta sobre como se sente nas três primeiras estrofes para no final dizer o porquê se sente desta forma, fazendo, assim, a recolha. O conflito entre os dois mundos (o sensível e o ideal) gera um impasse no eu-lírico, uma angústia que se expressa em paradoxos: “Que em vivo ardor tremendo estou de frio”. Ora, ninguém que esteja com calor vai tremer de frio. É porque suas palavras vão além, são metáforas construídas acerca da constante luta interior pelo que é terreno (o ardor, que é a carne, os desejos) e pelo que é sublime (o mundo ideal). Toda essa tortura interior (o ardor somado à saudade) faz com que este soneto tenha também características maneiristas. Uma das características que mais se ressalta é a subjetividade assim como o desconcerto do mundo que pode ser visto neste verso: “É tudo quanto sinto um desconcerto”. A subjetividade se dá pela eclosão dos sentimentos do próprio “eu” que fala no poema. O pessimismo, o conflito entre o que se pensa e o que se sente, o desequilíbrio e a imperfeição também são marcas do Maneirismo. Há ainda no soneto, uma característica chamada intensidade, que é marcada por substantivos ou adjetivos de expressão absoluta. Está presente no verso “O mundo todo abarco”.

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF