Analise Do Discurso- Apostila

August 16, 2017 | Author: Avimar Junior | Category: Linguistics, Hermeneutics, Literary Theory, Science, Semiotics
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Disciplina

Análise do Discurso Coordenador da Disciplina

Prof. Nelson Barros da Costa 5ª Edição

Copyright © 2010. Todos os direitos reservados desta edição ao Instituto UFC Virtual. Nenhuma parte deste material poderá ser reproduzida, transmitida e gravada por qualquer meio eletrônico, por fotocópia e outros, sem a prévia autorização, por escrito, dos autores. Créditos desta disciplina Coordenação Coordenador UAB Prof. Mauro Pequeno Coordenador Adjunto UAB Prof. Henrique Pequeno Coordenador do Curso Prof. Claudete Lima Coordenador de Tutoria Prof.ª Pollyanne Bicalho Ribeiro Coordenador da Disciplina Prof. Nelson Barros da Costa Conteúdo Autor da Disciplina Prof. Nelson Barros da Costa Setor TecnologiasDigitais - STD Coordenador do Setor Prof. Henrique Sergio Lima Pequeno Centro de Produção I - (Material Didático) Gerente: Nídia Maria Barone Subgerente: Paulo André Lima / José André Loureiro Transição Didática Dayse Martins Pereira Elen Cristina Bezerra Elicélia Lima Gomes Enoe Cristina Amorim Fátima Silva Souza Hellen Paula Pereira José Adriano Oliveira Karla Colares Kamille de Oliveira Viviane Sá de Lima

Formatação Camilo Cavalcante Cícero Giovany Elília Rocha Emerson Mendes Oliveira Francisco Ribeiro Givanildo Pereira Sued de Deus Publicação João Ciro Saraiva

Gerentes Audiovisual: Andrea Pinheiro Desenvolvimento: Wellington Wagner Sarmento Suporte: Paulo de Tarso Cavalcante

Design, Impressão e 3D André Lima Vieira Eduardo Ferreira Gleilson dos Santos Iranilson Pereira Luiz Fernando Soares Marllon Lima Onofre Paiva

Sumário Aula 01: Caracterização Inicial da Análise do Discurso ....................................................................... 01 Introdução............................................................................................................................................... 01 Tópico 01: O que é a Análise do Discurso ............................................................................................. 03 Tópico 02: "Análise do Discurso": O que nos diz o Título da Disciplina.............................................. 08 Tópico 03: Discurso: Uma Palavra, Dois Conceitos .............................................................................. 15 Aula 02: Contexto e Discurso ................................................................................................................... 21 Tópico 01: Contexto: Uma Palavra, Múltiplos Sentidos........................................................................ 21 Tópico 02: Materialidade Linguística E Contexto ................................................................................. 25 Tópico 03: O ethos ................................................................................................................................. 31 Tópico 04: Da Cena de Enunciação ....................................................................................................... 37 Aula 03: Contexto Interdiscursivo........................................................................................................... 44 Tópico 01: Polifonia e dialogismo ......................................................................................................... 44 Tópico 02: Intertextualidade, Interdiscursividade e Metadiscursividade............................................... 51 Aula 04: Reflexões Discursivas sobre o Ensino do Português............................................................... 68 Tópico 01: O Ensino da Língua enquanto Prática Discursiva ............................................................... 68 Tópico 02: Uma Visão Discursiva do Ensino da Língua ....................................................................... 75

ANÁLISE DO DISCURSO AULA 01: CARACTERIZAÇÃO INICIAL DA ANÁLISE DO DISCURSO INTRODUÇÃO

A Análise do Discurso foi fundada nos anos sessenta do século passado, década que ficou na história por concentrar acontecimentos de grande relevância para a Humanidade e que levaram a transformações políticas e comportamentais decisivas no mundo ocidental. É na década de 60 que se dá o auge da chamada “guerra fria”, tensão gerada pela disputa de hegemonia entre dois grandes blocos mundiais de poder. (os países organizados em torno da OTAN e aqueles pertencentes ao Pacto de Varsóvia) Também nesse período eclode uma série de movimentos de categorias que se sentiam marginalizadas ou oprimidas na sociedade da época. Na França, por exemplo, no mês de maio de 1968, ano de fundação da AD, os estudantes confrontaram a polícia criando barricadas e verdadeiras trincheiras de guerra nas ruas de Paris. Todo um status quo cultural e social foi questionado: o excessivo disciplinamento das crianças em escolas francesas; o lugar inferior da mulher diante do pai, do marido, dos filhos homens; o preconceito e a discriminação dos homossexuais, diagnosticados pelos médicos como doentes, etc. Alguns anos antes, as colônias francesas na África lutavam contra a dominação encontrando grande apoio e simpatia nesses movimentos. Esses movimentos se aliaram também aos sindicatos operários e intelectuais promovendo grandes manifestações e propagando ideias libertárias em todo o Ocidente que inauguraram novas maneiras de pensar as liberdades civis democráticas, os direitos das minorias, a igualdade entre homens e mulheres; brancos e negros; heterossexuais e homossexuais; velhos, jovens e crianças.

PARADA OBRIGATÓRIA Sendo assim, nesse momento histórico, a Análise do Discurso nasce sob o signo da polêmica. A ideia original é que ela pudesse servir como um instrumento político capaz de desmascarar as estratégias de manipulação ocultas por trás dos textos. Acreditando que a linguagem encobria interesses e ideologias inconfessáveis, a AD é proposta como recurso metodológico capaz de por a nu tais interesses e ideologias. Com o tempo, ao se distanciar dessa época de grande acirramento ideológico, a AD supera esse finalismo para se tornar, sem perder seu caráter crítico, uma reflexão sobre a discursividade e a linguagem que pode, dependendo da perspectiva, se apoiar em uma ferramenta metodológica de leitura textual mais ou menos rigorosamente formulada. A história de como a disciplina evoluiu de uma posição que tinha essa meta de modo mais unificado, nos anos 60, para se multiplicar, nos dias de hoje, em uma série de propostas diferentes, dentre as quais a que 1

apresentamos aqui, está contada em muitos textos, aos quais remetemos o leitor:

LEITURA COMPLEMENTAR COSTA, Nelson Barros da. “O primado da prática: uma quarta época para a Análise do Discurso” In: COSTA, Nelson Barros da (org.). PRÁTICAS DISCURSIVAS: EXERCÍCIOS ANALÍTICOS. p. 17-48. Campinas: Pontes, 2005. MUSSALIN, Fernanda. “A Análise do discurso”. In MUSSALIN, F.; BENTES, Anna Christina. INTRODUÇÃO À LINGÜÍSTICA 2 – DOMÍNIOS E FRONTEIRAS. p. 101-142. São Paulo: Cortez, 2001. PÊCHEUX, Michel. “A Análise de Discurso: três épocas (1983)”. In: GADET, F.; HAK, T. (orgs.). POR UMA ANÁLISE AUTOMÁTICA DO DISCURSO - UMA INTRODUÇÃO À OBRA DE MICHEL PÊCHEUX. p. : 311319. Campinas: Ed. da Unicamp, 1990. POSSENTI, S. APRESENTAÇÃO DA ANÁLISE DO DISCURSO. São José do Rio Preto: Glota, 1990.

OLHANDO DE PERTO Partiremos, portanto, de uma perspectiva mais contemporânea da Análise do Discurso, advertindo o aluno/leitor de que se trata de uma dentre muitas outras abordagens que podem ser encontradas no atual quadro acadêmico brasileiro e mundial.

FÓRUM 01 Já encontra-se aberto o Fórum 01, onde você pode discutir com o tutor os conteúdos gerais da disciplina. Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 01: CARACTERIZAÇÃO INICIAL DA ANÁLISE DO DISCURSO TÓPICO 01: O QUE É A ANÁLISE DO DISCURSO

MULTIMÍDIA Ligue o som do seu computador! OBS.: Alguns recursos de multimídia utilizados em nossas aulas, como vídeos legendados e animações, requerem a instalação da versão mais atualizada do programa Adobe Flash Player©. Para baixar a versão mais recente do programa Adobe Flash Player, clique aqui! [1]

Utilizaremos, para nos aproximarmos de uma definição da Análise do Discurso, de princípios e procedimentos da própria disciplina: a. Como qualquer outra disciplina, ela será encarada como um discurso, ou seja, um dizer e uma ação sobre o real. Numa palavra: uma prática. Não se pretende uma verdade sobre a realidade discursiva, mas uma interpretação desta realidade sob óculos peculiares. Por outro lado, esta realidade, tal como a realidade não-discursiva, não é um mundo estável, estanque e imune à própria discursividade produzida pela Análise do Discurso. b. Partindo do princípio de que o advento de qualquer discurso só existe se posicionando em um campo já habitado, procuraremos indicar em que a disciplina se aproxima e se diferencia de outras conforme suas diversas dimensões. c. Supondo que os títulos das disciplinas não são nem inteiramente transparentes ao objeto das mesmas nem rótulos inocentes e alheios a seus modos de dizer e fazer, iremos submeter a expressão Análise do Discurso a uma análise discursiva.

• As múltiplas dimensões da Análise do Discurso e sua relação com disciplinas concorrentes Podemos dizer que a Análise do Discurso tem múltiplas dimensões. De um lado trata-se de uma disciplina que se dedica a um modo de leitura de textos. Nesse sentido, ela se filia a uma linhagem de disciplinas que historicamente vêm se dedicando a essa prática, como a Hermenêutica, a Filologia e a Teoria Literária. Hermenêutica: (do grego “ermēneutikē”), trata-se de disciplina que tem por fim a interpretação correta e objetiva de textos religiosos ou filosóficos, especialmente das Sagradas Escrituras. Hermes, deus grego da comunicação e do entendimento humano, é o patrono da hermenêutica.

A FILOLOGIA (do grego antigo Φιλολογία, “amor ao estudo, à instrução”) – disciplina que estuda a língua, a literatura e a cultura de 3

um povo numa perspectiva histórica a partir de documentos escritos. Por vezes, o termo pode também denominar o estudo científico da história de uma língua ou família linguística, porém esse estudo é mais apropriadamente chamado hoje de Linguística Histórica. Assim, os filólogos propriamente ditos se dedicam ao estudo material e crítico dos textos. São ramos da filologia a Ecdótica (arte de descobrir e corrigir os erros de um documento escrito, preparando-lhe uma edição em que se procura estabelecer o texto perfeito), a Crítica Textual (estudo dos textos antigos e da sua preservação ou corrupção ao longo do tempo), a Crítica Genética (investiga a gênese da obra literária através do estudo dos mecanismos de produção e caminhos seguidos pelo escritor na preparação dos originais de sua(s) edição(ões)), Paleografia (estuda textos manuscritos antigos e medievais; estuda também a origem, a forma e a evolução da escrita) e a Epigrafia (estuda as inscrições antigas, ou epígrafos, gravados em material sólido visando decifrar, interpretar e classificar as inscrições.

Teoria Literária: Disciplina que tem como objeto o texto literário, que vai ser estudado ao nível das suas propriedades, da sua ligação com outros textos similares, do papel do autor e do gênero. A Teoria Literária ou Teoria da Literatura trabalha em conjunto com a História da Literatura tentando integrar os diversos textos numa corrente literária. Enquanto ciência, deve produzir conceitos, hipóteses explicativas, métodos e instrumentos de análise que vão lhe permitir obter um conhecimento profundo sobre uma obra, tendo em conta o gênero, a corrente e a linguagem literária em que se insere. Quanto à Hermenêutica, entendida como disciplina preocupada com a leitura “correta” dos textos ou com o estabelecimento da melhor interpretação de um texto, a distância se dá pelo fato de AD não pretender a busca do Sentido, isto é, a revelação do verdadeiro sentido de um texto. Ao contrário, a Análise do Discurso pretende liberar os múltiplos sentidos de um texto porque segundo seus princípios, conforme veremos adiante, todo texto é sempre legível de múltiplas formas. Embora a AD pretenda, sim, efetuar uma interpretação de textos, interpretação que se pretende rigorosa, na medida em que amparada em sua materialidade, esta não se pretende o desvelamento do Sentido do texto. Um ponto crucial, portanto, marca o distanciamento entre as duas disciplinas: uma vez que não considera o texto como uma unidade fechada, mas sempre aberta a múltiplas interpretações, a AD está sempre atenta à possibilidade de que o sentido pode ser sempre outro. VERSÃO TEXTUAL

Como qualquer disciplina do campo da cientificidade, a AD deve rejeitar uma leitura normativa, se recusando a tentar responder questões como "qual a melhor maneira de se descobrir o que realmente este texto quis dizer?", "como atingir o real sentido de um

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texto?", etc. Interessa para a AD o que de fato foi dito, os múltiplos sentidos liberados, o como foi dito...

Quanto à Filologia, podemos dizer que não se trata para a AD de ler o texto com o pretexto de estabelecer ou compreender seu contexto cultural. Isso pressuporia uma visão do contexto de um texto como uma moldura, numa relação de exterioridade, como se o contexto de um texto fosse uma realidade constante, muda, indiferente e pré-existente ao texto. Veremos que, para a AD, todo texto supõe seu contexto. Ele tem sempre marcas desse contexto e nele interfere diretamente. VERSÃO TEXTUAL

Embora muitos analistas estabeleçam objetivos diversos para a análise e, de algum modo, um certo finalismo tenha marcado a própria origem da disciplina, a AD deve rejeitar a ideia de pretexto, pois esta supõe uma secundarização da análise em função de fins ou objetos supostamente mais nobres.

À Teoria Literária a AD deve bastante... Esta disciplina tem grande influência nas práticas de leitura e interpretação de textos em ambiente escolar, sendo praticamente, hoje em dia, no Brasil, a responsável quase isolada pelas práticas analíticas voltadas para o texto e para o discurso com as quais os usuários leigos da língua têm contato durante a infância e a adolescência. O estudo dos textos literários historicamente desenvolveu importantes conceitos hoje apropriados pela Análise do Discurso, como gênero, intertextualidade e posicionamento. É clara, no entanto, a diferença entre as duas disciplinas em diversos aspectos. Em primeiro lugar, a apreensão da AD pretende-se muito mais abrangente, podendo inclusive tomar o próprio discurso da Teoria Literária e seu objeto como objetos de análise. No entanto, e este é o segundo lugar, a abordagem discursiva, mesmo a de textos literários, não será estética. Ou seja, sem pretender substituir e sem que o aspecto estético seja negligenciado, o texto literário não será examinado com o objetivo de apreender sua literariedade, não será julgado em suas qualidades artísticas através de conceitos como “belo” ou “bom gosto”, mas como uma enunciação (como tantas outras) que funciona ligada a uma instituição discursiva específica. Por outro lado, a Análise do Discurso é uma disciplina preocupada com a formulação de uma teoria geral da linguagem, uma vez que a prática de leitura que realiza pressupõe um modo de conceber o processo que tornou possíveis os textos de que se ocupa. E aí, por esse aspecto, a Análise do Discurso é também uma teoria do discurso, o que a aproxima das disciplinas científicas voltadas para a compreensão teórica da linguagem, como a Linguística (Linguística: Setor das Ciências Humanas cujo objetivo é descrever e explicar cientificamente as línguas naturais humanas, tanto do ponto de vista dos sistemas subjacentes (mentais ou sociais) quanto do ponto de vista dos processos históricos que 5

conduzem à mudança desses sistemas. Pode também investigar os processos de aprendizagem, produção, processamento e transposição material e variação social da linguagem verbal humana. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Semi%C3%B3tica)) e a Semiótica (Semiótica: (do grego semeiotiké ou “a arte dos sinais”) - ciência geral dos signos, estuda os fenômenos culturais como se fossem sistemas sígnicos, isto é, sistemas de significação. Ocupa-se do estudo do processo de significação ou representação, na natureza e na cultura, do conceito ou da ideia. Mais abrangente que a Linguística, a qual se restringe ao estudo dos signos linguísticos, ou seja, do sistema sígnico da linguagem verbal, esta ciência tem por objeto qualquer sistema sígnico.(http://pt.wikipedia.org/wiki/Semi% C3%B3tica)) . Sem entrar na questão do modo como compreendem a linguagem e o discurso, podemos afirmar que a AD comunga com esses campos de saber no sentido não abrir mão de princípios universais de cientificidade tais como a busca da universalidade, a validação prática de suas descobertas, crenças e criações, a investigação metódica, etc. Diferentemente dessas disciplinas, porém, na medida em que a AD pretende, mais do que propor modelos de análise, verificar os condicionamentos sóciohistóricos da produção linguística concreta, ou ainda, investigar os nexos que condicionam as formas linguísticas, ela esclarece e contribui para a emancipação crítica do falante-ouvinte. Além do mais, a AD não separa o produto do processo de produção. Para ela, a exterioridade é constitutiva do texto, isto é, o falante (escritor), o ouvinte (leitor) e o contexto social e histórico no qual estão inseridos, bem como as próprias formulações linguísticas fixadas na memória discursiva, são levados em conta na sua prática. Dessa forma, ela procura evitar tanto o distanciamento presente nas ciências, quanto o pragmatismo inerente ao senso comum, procurando descrever, explicitar e problematizar a discursividade. Diante desta, o procedimento da AD é, portanto, de reflexão crítica, pois procura problematizar continuamente as evidências e explicitar seu caráter políticoideológico (ORLANDI, 1987). Note-se que a AD não se pretende colocar como uma alternativa para a Linguística e a Semiótica - ciências positivas que pretendem descrever e explicar a linguagem verbal humana, mas como proposta crítica que pretende problematizar as formas de reflexão estabelecidas (ORLANDI, op. cit.). Um aspecto importante dessa diferença entre a Análise do Discurso e as outras perspectivas elencadas diz respeito à forma de encarar o objeto linguagem. A AD olha seu objeto como parte da totalidade social e histórica, procurando articular aquilo que a olho nu aparece como desarticulado: a linguagem, a história, a sociedade, os sujeitos. Daí o caráter interdisciplinar da Análise do Discurso que não hesita em buscar de outras áreas do saber elementos para tentar compreender a linguagem. De outra parte, consideramos que a Análise do Discurso se aproxima do saber filosófico acerca da linguagem. Naturalmente que essa aproximação tem grande relação com o fato de serem filósofos alguns de seus precursores como Mikhail Bakhtin, Louis Althusser e Michel Foucault, além de ser filósofo seu próprio fundador oficial, Michel Pêcheux. Mas seria redutor creditar unicamente a esse fato, certamente relevante, a “aura” filosófica da 6

Análise do Discurso. Pensamos que isso tem a ver com uma postura reflexiva, crítica e de não-neutralidade, a nosso ver irredutível, diante de seu objeto e do mundo. Diante, por exemplo, da descoberta de estratégias de manipulação do leitor/ouvinte ou de mascaramento de determinados mecanismos de poder, o analista não pode deixar de se posicionar e de denunciar. Mas não apenas isso. Além dessa dimensão ética, pensamos que outra herança do discurso filosófico incorporado pela AD compõe um aspecto de seu instrumental metodológico baseado na reflexão sobre seu objeto em oposição a uma linguagem meramente descritiva, que se pretenderia transparente, reflexo do real. Mais do que desvendar a realidade discursiva, o discurso da Análise do Discurso pretende problematizá-la. Essa problematização passa por um uso da linguagem que problematiza ela própria a linguagem comum das ciências positivas da linguagem. Daí o uso de metáforas, alegorias, aparentes paradoxos, construções inusitadas, de um código de linguagem aberto à visita da subjetividade, mas sempre preso ao rigor e avesso à especulação.

QUADRO COM SÍNTESE

FONTES DAS IMAGENS 1. http://www.adobe.com/products/flashplayer/ 2. http://www.adobe.com/go/getflashplayer 3. http://www.adobe.com/go/getflashplayer Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 01: CARACTERIZAÇÃO INICIAL DA ANÁLISE DO DISCURSO TÓPICO 02: "ANÁLISE DO DISCURSO": O QUE NOS DIZ O TÍTULO DA DISCIPLINA

A denominação “Análise do Discurso” dá poucas pistas para uma compreensão mais precisa dos objetivos da disciplina, diferentemente de outras e de outros segmentos do campo de saber da Linguística:

Fonte [1] Michel Pêcheux - (1938-1983): uma das figuras mais importantes da Análise do Discurso.

OBSERVAÇÃO Como se pode perceber, mesmo que não se tenha uma visão completa do que tratam as disciplinas acima, seus títulos dão alguma ideia de seus assuntos. Sabe-se, a partir do título Psicolinguística, por exemplo, que ela relaciona de alguma maneira “mente” e “linguagem”. E o que se sabe da Análise do Discurso a partir de seu título? Pouca coisa! Diante da palavra “análise”, pode-se perguntar: que tipo de análise? Linguística? Estética? Crítica? Ideológica? Independente do sentido que se possa atribuir à palavra “análise”, antecedendo a palavra “discurso”, o leitor pode supor que exista um objeto passível de análise: o “discurso”, do mesmo modo que outros objetos, como a sintaxe, a morfologia e a fonologia. Porém, em nenhuma dessas “análises” o objeto toma a forma substantiva definitivada (A definitivação é a utilização de uma expressão seguida de artigo definido. Este recurso dá à expressão um caráter de informação já conhecida.) como em “análise do discurso”. Não são conhecidas as expressões “análise do sintagma”, “análise do fonema” ou “análise do morfema” enquanto títulos de disciplinas ou setor de disciplinas. Noutras palavras, a expressão “análise do discurso” não se enquadra com sucesso no paradigma abaixo: “Análise fonológica” = análise da fonologia de uma língua “Análise morfológica” = análise da morfologia de uma língua “Análise sintática” = análise da sintaxe de uma língua “Análise do discurso” = análise do discurso de uma língua” ?

Assim, a expressão “análise do discurso” é obscura no tocante a dizer o que realmente a disciplina consiste nos limites do que um título pode dizer do que consiste uma disciplina.

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Isso se agrava pelo fato de que, diferentemente dos termos “fonologia”, “morfologia” e “sintaxe”, que são mais técnicos, o termo “discurso” é saturado nos seguintes sentidos: A) PELO SENSO COMUM: RETÓRICA, PALAVRAS VAZIAS, FALA EM SITUAÇÃO SOLENE

Estes sentidos NÃO são, naturalmente, os do termo “discurso” que está no título de nossa disciplina, embora eles devam ser considerados pela Análise do Discurso, uma vez que fazem parte, como qualquer palavra da língua, de um campo de produção de sentido, nesse caso, o que se tem chamado discurso do cotidiano. B) PELO SENTIDO DICIONARIZADO:HOUAISS: VERBETE DISCURSO

N substantivo masculino 1 mensagem oral, ger. solene e prolongada, que um orador profere perante uma assistência Ex.: d. De posse, de despedida, de formatura etc. 2 rubrica: literatura. Peça de oratória ger. para ser proferida em público, ou escrita como se fosse para esse fim; sermão, oração Ex.: Rui Barbosa ficou famoso por seus discursos. 3 série de enunciados significativos que expressam formalmente a maneira de pensar e de agir e/ou as circunstâncias identificadas com um certo assunto, meio ou grupo Ex.: 4 rubrica: literatura. Diacronismo: obsoleto. Texto em que se trata com profundidade algum assunto; estudo, tratado, dissertação Ex.: o professor aconselhou a leitura do discurso do método, de Descartes 5 rubrica: filosofia. Raciocínio que se realiza por meio de movimento seqüencial que vai de uma formulação conceitual a outra, segundo um encadeamento lógico e ordenado obs.: p. opos. A intuição 6 derivação: por metonímia. A exposição do raciocínio assim conduzido; pensamento discursivo 7 rubrica: lingüística. 9

A língua em ação, tal como é realizada pelo falante [para muitos lingüistas, a palavra discurso é sinônimo de fala e figura em igualdade de sentido na dicotomia língua/discurso. obs.: cf. fala 8 rubrica: lingüística. Segmento contínuo de fala maior do que uma sentença obs.: cf. Análise de discurso 9 rubrica: lingüística. Enunciado oral ou escrito que supõe, numa situação de comunicação, um locutor e um interlocutor 10 rubrica: lingüística. Reprodução que alguém faz das palavras atribuídas a outra pessoa Obs.: cf. discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre Como se pode ver, o verbete do dicionário (tomamos HOUAISS (2001), mas o mesmo vale para qualquer outro dicionário) já reflete a multiplicidade de sentidos do termo, ao mesmo tempo em que opera uma seleção e uma fixação, cujos critérios não são explicitados, desses sentidos. Em que medida poderemos indicar o dicionário como um auxiliar na compreensão da expressão “análise do discurso” tal como queremos explicitar aqui? Em nenhuma medida, como esperamos que se torne claro aqui. Deixando de lado os sentidos do senso comum, da literatura, da filosofia e da psicanálise, colocados em primeiro plano pelo dicionário em questão, mas que podemos descartar, consideremos aqueles que foram reservados pelos 4 últimos verbetes para a Linguística, sendo que em um deles a expressão “análise do discurso” entra como exemplo de emprego do termo.

Fonte [2] Ilustração do livro “Curso de Linguística Geral”, de Ferdinand de Saussure

O primeiro deles, de número 7, assimila o conceito a fala, opondo-o a língua, evocando a célebre dicotomia saussureana. Evidentemente, discurso não se confunde com fala. Se Análise do Discurso equivalesse a análise da fala, no sentido que Saussure dá a esse termo, aquela não passaria de um dispositivo técnico de análise da materialidade dos sons. Isso porque, para Saussure, a fala é o mecanismo psicofísico de execução da língua. Em suma, conforme a 7ª definição de Houaiss para discurso, a Análise do Discurso seria o mesmo que análise fonética, o que absolutamente não bate com a realidade (os próprios foneticistas não se diriam praticando análise do discurso). 10

Ferdinand de Saussure (1857-1913)

Na oitava definição, temos a consideração do discurso, mais uma vez, como objeto relacionado à fala. Ele é identificado como “maior do que a sentença”. Vale ainda dizer que esse sentido do dicionário, que inclusive dá como exemplo o nome de nossa disciplina, advém certamente do que é considerada a primeira utilização da expressão “análise do discurso”: “Discourse analysis” (em português “Análise do discurso” ou “Análise de discurso”) foi o título de um artigo do linguista norte-americano Zellig Sabbetai Harris, publicado no número 28 da revista Language, em 1952, traduzido para o francês e publicado no número 13 da revista francesa Langage, em 1969, apenas um ano após a fundação oficial da Análise do Discurso francesa. Visando aplicar a descrição sintática da frase ao texto, Harris considera discurso o conjunto articulado de sentenças. Assim, para Harris, do mesmo modo que, na frase, a análise sintática procede verificando as regras de articulação entre os elementos constituintes (nomes, verbos, preposições, artigos, etc.), a análise do discurso deveria proceder verificando as regras de articulação entre as frases em um texto. Desse modo, o discurso é definido como um conglomerado de frases articuladas e, portanto, como diz o dicionário, maior do que a sentença. De fato, o discurso como realidade empírica tem natureza diferente da sentença. Porém não em relação ao tamanho, mas à sua própria condição de existência. Enquanto que o discurso é uma realização concreta de uma interação entre sujeitos, a sentença é a realização de uma estrutura linguística. Nesse sentido, o discurso pode ser menor (ex.: “bom, eu... ”) ou maior (ex.: um romance), não sendo, portanto, o tamanho que os diferencia. Voltaremos mais adiante a essa questão. Para aprofundar essa discussão sugerimos o artigo “Zellig Harris: 50 anos depois”, de Carlos Alberto Faraco Zellig Harris: 50 anos depois [3], de Carlos Alberto Faraco. Passemos à definição de número 10, para depois nos voltarmos para a 9. O sentido 10 aponta para um uso muito específico da palavra discurso: “discurso direto, discurso indireto, discurso indireto livre”. A rigor, trata-se de esquemas de reportação (Ação de trazer em um enunciado fragmento de um enunciado supostamente de outro. Deriva: “reportar” e “reportado”.) , de enunciados ou de recortes de enunciados. Ou seja, fórmulas usadas para o encaixamento de trechos da enunciação alheia. São fartamente conhecidos não apenas por ser procedimento comum na enunciação, mas também por serem muito trabalhados na escola. Embora seja um fenômeno importantíssimo para a AD, como veremos na aula 03, não é esse o sentido de discurso tomado pela AD, uma vez que será preferível tomar como discurso o enunciado reportador, não o reportado nem o esquema da reportação. Ainda mais se considerarmos que o “discurso” no discurso é sempre modificado de alguma maneira, nunca se conservando tal qual ele 11

aconteceu, diferentemente do que a expressão “discurso direto” sugere. Em poucas palavras, podemos dizer que o discurso reportado não é de fato um discurso no sentido privilegiado pela AD. Por fim, analisemos a definição 9: “enunciado oral ou escrito que supõe, numa situação de comunicação, um locutor e um interlocutor”. É a que mais se aproxima de um dos sentidos preferenciais de discurso que a AD se utiliza, ainda que incompleto. Ela é criticável nos seguintes aspectos:

ASPECTO 1 a) define discurso utilizando a palavra “enunciado”, sem definir a própria palavra “enunciado”;

ASPECTO 2 b) adota o conceito de “comunicação” de modo acrítico. Veremos que a AD manifesta reservas a esse conceito;

ASPECTO 3 c) na prática, é redutor falar-se apenas em “um locutor e um interlocutor”. A interlocução é sempre múltipla e sempre co-enunciativa. Ou seja, há sempre muitas “vozes”, muitos sujeitos “falando” em qualquer enunciado, ao mesmo tempo em que, na maioria das vezes, a enunciação sempre envolve mais de um enunciador, que co-enunciam junto com o enunciador. C) PELA

LINGUÍSTICA: DISCURSO = TEXTO

Nas últimas décadas, a Linguística tem se dedicado cada vez mais aos estudos da interação linguística. Trata-se de um grande avanço, porque, no início da disciplina, a proposta era o estudo das formas, funções e regras do sistema linguístico. A partir da proposta de Ferdinand de Saussure, os linguistas europeus e americanos de grande parte do século 20 tomaram como encargo sobretudo a descrição dos sistemas linguísticos analisando sua estrutura fonológica, morfológica e sintática, considerando apenas esses níveis passíveis de sistematização. Os sistemas linguísticos que possibilitam a comunicação eram estudados independente dos usuários e do contexto de uso, seguindo a máxima de Saussure que recomendava que a Linguística deveria ter “como único e verdadeiro objeto a língua em si mesma e por si mesma”. No entanto, aproximadamente a partir da metade do século vinte, influenciada por estudos de outras áreas das ciências humanas e da filosofia, essa proposta estruturalista vai gradativamente se abrir não apenas para a consideração do uso linguístico, mas também para a análise de unidades que não se restringem ao campo da sintaxe. Começa um interesse maior pela semântica (A semântica (do grego σημαντικός, derivado de sema, sinal) refere-se ao estudo do significado, em todos os sentidos do termo. A semântica opõe-se com frequência à sintaxe, caso em que a primeira se ocupa do que algo significa, enquanto a segunda se debruça sobre as estruturas ou padrões formais do modo como esse algo é expresso.) , pela pragmática (Pragmática: Ramo da Linguística que se interessa pelas relações entre os signos e os usuários considerando a influência sobre

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aqueles do contexto situacional, da cultura dos falantes e das regras sociais.) , pela conversação, pela enunciação e pelo texto.

Fonte [4]

A Análise do Discurso, campo desde o início já interdisciplinar, que se desenvolve independentemente da Linguística, vai tanto receber influências como influenciar tais estudos. Não discutiremos no curto espaço desse curso essa influência mútua. Queremos apenas chamar atenção para o uso que muitos dos ramos pós-estruturalistas da Linguística têm feito da expressão “discurso” e de como esse uso se distancia do principal sentido de discurso trabalhado pela AD. Tanto a chamada Teoria da Enunciação (Teoria da Enunciação: Perspectiva, atribuída a Émile Benveniste, voltada para a análise dos mecanismos formais que possibilitam o uso da língua pelos sujeitos.) , quanto a Pragmática (Pragmática: Ramo da Linguística que se interessa pelas relações entre os signos e os usuários considerando a influência sobre aqueles do contexto situacional, da cultura dos falantes e das regras sociais.) , bem como a Análise da Conversação (Análise da Conversação: Ramo da Linguística que pretende descrever e analisar como as regras da fala são estrutural e socialmente (co)construídas no decorrer da interação face-à-face.) , foram muito influenciadas por uma concepção de discurso explicitada por Émile Benveniste , quando ele opõe enunciados ancorados na situação de enunciação (“discurso”) e enunciados recortados de sua situação de enunciação (“história” ou “narrativa”). Nos primeiros, próprios das situações de conversação, há a clara manifestação dos elementos de subjetividade seja dos agentes da enunciação (como “eu”, “mim”, “comigo” - e derivados: “tu”, “te”, “contigo” -, formas verbais correlativas, etc.), seja dos elementos temporais e espaciais que tomam por referência esses agentes partir da enunciação do “eu” (“agora”, “hoje”, “ontem”, “aqui”, “lá”, “acolá”, etc.). O não-discurso seria, para Benveniste, formado por aqueles enunciados em que tais marcas estão ausentes, como no caso dos textos científicos, narrativos, historiográficos, etc. Embora esses estudos sejam preciosos para a AD, eles não contemplam o seu objeto em sua integridade, pois não dão conta nem da discursividade como um todo, que não se resume às trocas verbais situacionais, nem dão conta do sentido mais amplo do discurso, isto é, das ordens ou campos discursivos que são o contexto em que se dá qualquer tipo de troca verbal. No caso da Linguística Textual, que, por conta de reformulações recentes, tem sido chamada também de “Linguística de Texto”, a problemática do uso do conceito de discurso se dá de modo diferente. É interessante notar o caminho inverso que essa disciplina seguiu em relação ao daquelas elencadas acima. Isso porque ela parte da noção de texto (termo fortemente habitado pela ideia da escrita) para tentar extrapolá-la para os 13

enunciados não-escritos. No entanto, há uma forte tendência entre os adeptos dessa disciplina em assimilarem a noção de texto a discurso, o que se dá em detrimento do sentido de discurso como instância mais ampla de produção simbólica, dentro da qual os textos adquirem sentido. A denominação “gênero textual” substituindo a de “gênero do discurso”, tal como propusera Bakhtin, é um exemplo dessa elisão da dimensão do discurso, inaceitável para a AD. Logo: O fato de estarem combinadas as palavras “análise” e “discurso”, pela locução gramatical “do”, não implica que o sentido de “análise do discurso” seja igual à soma sintático-semântica de tais termos (“análise do discurso é uma disciplina que tem por objetivo analisar o objeto discurso”); O sentido dos termos da expressão “análise do discurso” não pode ser compreendido sem a verificação do que na prática é a análise do discurso; Assim, “análise”, “do” e “discurso”, têm seus sentidos “reciclados” pelo novo contexto pragmático que o simples uso combinado desses termos adquire em determinado momento histórico; Em síntese, os conceitos expressos pelos termos em questão não são dados previamente, mas construídos por uma prática científica situada histórico e socialmente.

É preciso que se diga, aliás, antes de começar qualquer discussão, que a análise do discurso é dilacerada por uma grande variedade de perspectivas. Algumas vão até divergir quanto ao título da própria disciplina. Umas vão preferir análise DO discurso, outras análise DE discurso, outras análise DE discursoS e outras ainda análise CRÍTICA DO discurso ou análise DO discurso CRÍTICA. O fato de termos analisado apenas a primeira denominação já indica nossa opção por uma dessas perspectivas. Mas mesmo aqueles que concordam com essa denominação se dividem em variadas linhas conforme alguns critérios. Devido à exiguidade de tempo, não exploraremos essa questão, limitando-nos a explicitar nossa concepção.

FONTES DAS IMAGENS 1. 2. 3. 4.

http://www.ple.uem.br/geduem/img/pecheux.jpg http://www.infoamerica.org/teoria_imagenes/saussure_a.gif http://ojs.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/letras/article/viewFile/2889/2371 http://www.arbredor.com/vmchk/cours-de-linguistique-generale

Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 01: CARACTERIZAÇÃO INICIAL DA ANÁLISE DO DISCURSO TÓPICO 03: DISCURSO: UMA PALAVRA, DOIS CONCEITOS

Agora vejamos o que é o discurso a partir da ótica da Análise do Discurso ou, pelo menos, do que seria a ótica da Análise do Discurso sob a nossa ótica. No discurso científico tradicional, é normal a preocupação com a univocidade dos termos técnicos. No entanto, em AD, podemos identificar pelo menos dois importantes conceitos de discurso. O primeiro está relacionado à noção de acontecimento e enunciado. Vejamos: ACONTECIMENTO

Trata-se de um evento de interação simbólica. ENUNCIADO

Algo dito (não necessariamente através da oralidade) por um sujeito concreto em um momento histórico concreto, em oposição ao conceito abstrato de frase. Conforme Maingueneau (2001), mais do que um objeto diferenciado, trata-se do resultado de um modo novo de conceber a linguagem. Por essa perspectiva, o discurso nunca se repete, porque são sempre diferentes as condições de sua produção. Assim, tomemos os enunciados “eu só quero é ser feliz” abaixo:

Fonte [1]

Eu só quero é ser feliz, Andar tranquilamente na favela onde eu nasci, é. E poder me orgulhar, E ter a consciência que o pobre tem seu lugar. (...)

15

(“Rap da Felicidade”, Julinho Rasta/Kátia http://www.youtube.com/watch?v=MXU4Ph9zZWQ [2]

veja

o

clip:

Veja o leitor que, do ponto de vista gramatical, trata-se da mesma frase, pois em ambos os casos a estrutura é exatamente a mesma. No entanto, do ponto de vista discursivo, trata-se de dois enunciados ou discursos diferentes. O primeiro se encontra em um blog, encabeçando um texto que enquadra uma foto. A sua veiculação se deu através da Internet, de modo escrito. O ambiente em que ele está é colorido e as letras da expressão têm cor diferente do restante do texto. Ao passo que o outro, embora esteja apresentado por escrito aqui, tem veiculação oral, na forma melódica de uma canção, e encabeça uma estrofe que se repete várias vezes no que se costuma chamar de “refrão”.

DÚVIDA O aluno poderia questionar: os exemplos em questão não são adequados, pois não são enunciados autônomos, sendo na verdade parte de enunciados maiores. Porém, pode-se retrucar: existem realmente enunciados autônomos? É possível encontrar expressões que não sejam partes de um contexto, partes de enunciados maiores? Se alguém pronunciasse essa expressão (“Eu só quero é ser feliz”) para um interlocutor certamente seria no contexto de uma conversa (um enunciado maior); dificilmente ele a diria isolada e, mesmo se dissesse, esse dizer seria em resposta a algo que ele ouviu, a alguém, por exemplo, que, anteriormente tivesse censurado suas atitudes egocêntricas. Mas mesmo se pensarmos em enunciados supostamente autônomos, aos quais reconhecêssemos uma autoria, como uma poesia, por exemplo, devemos nos perguntar se esse tipo de texto não está sempre inserido em um contexto enunciativo mais amplo (livro de poemas, livro didático, recital, etc.).

OBSERVAÇÃO Desse modo, já temos uma boa característica do discurso: sua indissociabilidade do contexto. Qualquer enunciado é inseparável do contexto graças ao qual ele existe. Daí que, como todo contexto é único e irrepetível, os discursos nunca se repetem. O discurso é, portanto, um acontecimento e, enquanto tal, é sempre único e sempre histórico, no sentido de que é sempre marcado pelo contexto histórico. Nesse sentido, que temos chamado de específico, “discurso” é o mesmo que “enunciado” . O termo “texto” também pode ser usado com o mesmo sentido. Porém a palavra “texto” tende a ser empregada mais quando se trata de enunciados acabados, fixados e mais suscetíveis de circulação e armazenamento. Assim, dificilmente se fala em texto quando se trata de enunciados proferidos em uma conversação. Ao contrário, pode -se chamar indiferentemente de discurso, enunciado ou texto exemplares de um poema, de um romance, de uma receita de bolo, de uma notícia de jornal, etc. Seja como for, tenhamos claro que tais conceitos têm em comum o fato de serem objetos empíricos da Análise do Discurso. Isto 16

significa que é sobre estes objetos, que têm realidade material, concreta, que o analista se debruçará. O fato de nunca se repetirem não impede que os discursos componham tipos. O caso do enunciado “Eu só quero é ser feliz”, que ocorre no segundo exemplo, podemos tanto relacioná-lo a outros que têm o mesmo modo de veiculação (como outras canções populares ou outros raps). Ou seja, os discursos se enquadram em gêneros, importante categoria tipológica da qual voltaremos a falar mais adiante. Por outro lado, podemos associar o enunciado em questão a outros tantos enunciados que tematizam a felicidade do indivíduo, como o que segue abaixo, também retirado de um blog:

Fonte [3]

Ou como esse que segue abaixo, na capa de um livro de auto-ajuda:

Fonte [4]

Ou ainda, como o que se vê nos dois panfletos abaixo:

17

Fonte [5]

Apesar da diferença em termos gramaticais, um analista do discurso não pode ignorar que os enunciados “Eu só quero ser feliz” (do blog e da canção), “Eu quero ser feliz” (do blog e do livro de auto-ajuda), “Você feliz da vida” e “A felicidade sempre chega quando menos se espera” (estes últimos, dos panfletos publicitários) fazem parte do que poderíamos chamar de discurso sobre (ou da) felicidade individual. Não pode ignorar também que o acontecimento desses enunciados pressupõe um momento histórico que propicia não só que eles ocorram da forma como ocorrem, mas também que eles possam falar na idéia de felicidade individual e mesmo na própria idéia de indivíduo, algo certamente indizível na Idade Média, uma vez que nesse estágio da Humanidade conceitos como os de indivíduo, de felicidade individual, pelo menos tal como concebemos hoje, mereciam quase nenhuma importância.

OLHANDO DE PERTO Em suma, o analista deve tanto investigar como determinado enunciado muda de sentido conforme o contexto apesar de conservar a estrutura (polissemia), quanto compreender como o sentido pode permanecer apesar da variação da estrutura em diferentes contextos (paráfrase). Porém o que queremos que você perceba é que já estamos trabalhando com outro sentido de discurso. Quando remetemos diversos discursos (no sentido específico) a uma instância anônima que, digamos assim, os “dispersa” em diferentes gêneros e na “boca” de diferentes enunciadores, estamos propondo que cada um desses discursos é manifestação material de um DISCURSO, ou do que Michel Foucault chamou de formação discursiva. Este sentido “ampliado” de discurso não é estranho ao senso comum. Ele aparece quando falamos em “discurso político” ou “discurso religioso”. Porém é mais comum pensarmos nesse sentido ligado a um sistema institucional que produziria um tipo determinado de discurso. É o que se dá quando falamos de “discurso religioso”, por exemplo. Pressupõe-se, quando se utiliza essa expressão, que uma dada instituição (a Igreja Católica, a Igreja 18

Evangélica, etc.) gera a partir de um centro uma série indefinida de discursos que iremos qualificar genérica (discurso religioso) ou especificamente (discurso católico). No entanto, embora reconheça a existência e o papel dessas instâncias, a AD pensa o discurso como uma dispersão. Isso significa que o DISCURSO não se concentra em um lugar ou lugares específicos na sociedade, produzindo a partir daí seus efeitos sob seu controle. Também esse sentido de dispersão está em certo uso comum da palavra: quando, na linguagem cotidiana, falamos em “discurso machista” ou “racista”, por exemplo, não pensamos em uma instância tal como pensamos quando falamos em “discurso religioso”. Assim, o “discurso racista” pode estar presente na novela, na conversação familiar, no parlamento, na escola, em qualquer lugar. Mas a AD não deve se contentar com essas imagens de discurso do senso comum (sejam ligadas a uma instância central (político, pedagógico, etc,), sejam ligadas a um tipo de ideologia abstrata (conservador, nacionalista, etc.)), mas vai examinar como os discursos se constroem (se materializam) se atualizando historicamente, interagindo e influenciando-se reciprocamente, e, sobretudo, mediando as relações inter-humanas e condicionando a visão que temos do mundo.

Fonte [6] MICHEL FOUCAULT - (1926 — 1984) - FILÓSOFO E PROFESSOR DO COLLÈGE DE FRANCE. EXERCEU GRANDE INFLUÊNCIA SOBRE A ANÁLISE DO DISCURSO.

RESUMO: DOIS SENTIDOS DA PALAVRA DISCURSO

FÓRUM 02 Em que sentido utilizamos a palavra discurso no cotidiano? Em que esses sentidos se aproximam e se distanciam do uso em Análise do Discurso?

FONTES DAS IMAGENS 1. http://srtawill.blogspot.com/2008_08_05_archive.html 2. http://www.youtube.com/watch?v=MXU4Ph9zZWQ 3. http://www.angelamoura.hpg.ig.com.br/mensagem/eu_quero_ser_feliz. htm

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4. http://www.marisacajado.com/capa%20eu%20quero%20ser%20feliz% 20livro.jpg 5. http://3.bp.blogspot.com/_2PbB4SG2L4/Rpj0CTD3njI/AAAAAAAAAIw/BUXM-lHj_qs/s1600h/ODONTOCARD_FELICIDADE_PANFLETO+verso.jpg 6. http://www.skjstudio.com/franck/images/Foucault.jpg Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 02: CONTEXTO E DISCURSO TÓPICO 01: CONTEXTO: UMA PALAVRA, MÚLTIPLOS SENTIDOS

Se consultarmos o livro Termos-chave da Análise do Discurso (MAINGUENEAU, 2000), veremos que seu primeiro verbete, que trata justamente da Análise do Discurso, assim a define:

Disciplina que, em vez de proceder a uma análise linguística do texto em si ou a análise sociológica ou psicológica de seu 'contexto', visa a articular sua enunciação sobre um certo lugar social. Ela está, portanto, em relação com os gêneros de discurso trabalhados nos setores do espaço social (um café, uma escola, uma loja...) ou nos campos discursivos (político, científico...)

(p. 13, grifos do autor) Observemos que, conforme a definição, tem-se a preocupação em definir a AD como uma disciplina que objetiva estudar a relação entre texto e contexto, este referido pelas expressões “lugar social”, “espaço social” e “campos discursivos”. Ela não abre mão de ter como objeto a matéria verbal, uma vez que se debruça primordialmente sobre enunciados ou textos, o que a situa institucionalmente no campo da Linguística; mas também se recusa em situar-se apenas no nível puramente linguístico-textual, o que, de certo modo, a distancia de tal campo. Os 3 sentidos elencados por Maingueneau são apenas alguns dos sentidos da palavra “contexto”. Uma aula proferida por um professor, por exemplo, tem necessariamente múltiplos contextos: este pode ser a sala de aula enquanto espaço físico (as paredes, o quadro, os móveis, os aparelhos elétricos, a porta, etc.), a sala de aula enquanto lugar social (o professor, os alunos, um eventual estagiário ou ouvinte), a instituição (pode tratar-se de uma escola de 1º ou 2º grau, pública ou privada, de uma universidade pública ou privada, de um curso de graduação ou pós-graduação), o campo discursivo (o chamado “discurso pedagógico”), o contexto da nacionalidade (trata-se de uma instituição brasileira, a língua usada é o português, os assuntos são pertinentes à sociedade e à cultura brasileira), a conjuntura sócio-histórica (dá-se em um momento de economia liberal, onde o Brasil é governado por uma presidente de um partido de esquerda em uma economia mundial em estágio avançado de globalização); etc. Pode-se pensar, ainda, num contexto menos óbvio, que é o chamado contexto ideológico: se pensarmos que uma aula só se dá porque em nossa sociedade se acredita que existe algo chamado de “conhecimento” ou “saber” que tem um valor e que precisa ser disseminado por aqueles que o detêm entre aqueles que não o detêm; se admitirmos que, desde crianças, em nossa sociedade, somos convencidos a ir pra escola sob a promessa de que o saber que lá vamos adquirir nos servirá pelo resto da vida e que sem ele estaremos “perdidos”, incapazes de “sobreviver” na “civilização”, ou 21

que não conseguiremos obter a “cidadania” e seremos como cegos por falta da “luz” dos números, das letras e dos “conhecimentos gerais”, e que sem isso não haveria aulas, temos que levar em consideração que este evento discursivo é tornado possível em um contexto ideológico. Outra dimensão contextual pouco óbvia, mas nem por isso menos importante, é a dimensão interdiscursiva. Uma aula é um discurso que se relaciona com outros discursos. Não apenas porque uma aula dada por um professor pressupõe uma orientação para um público ouvinte concreto, que são os alunos; mas também porque é preciso sempre pensar que uma aula nunca é um evento isolado: a ela se seguiu uma aula e a ela se seguirão outras. Pode-se pensar na aula como um exemplar de uma linhagem histórica de eventos discursivos semelhantes que vieram se transformando no tempo até se aproximar do modelo atual. Por outro lado, o que se chama aula é uma enunciação derivada de outras, talvez de um antigo modelo de diálogo familiar, onde um único interlocutor de um grupo tinha o poder de fala e de distribuição da fala, seja para permiti-la, seja para exigi-la. Podemos pensar ainda que o que o professor fala em sala de aula se apoia e adquire legitimidade a partir de um outro discurso, o discurso científico. É ele que, na nossa sociedade, produz enunciados com poder de crença suficiente para dar suporte ao discurso pedagógico, que o comenta e o retextualiza para disseminá-lo na instituição escolar se nutrindo de seu prestígio e o reforçando.

PARADA OBRIGATÓRIA Por fim, nessa questão do contexto interdiscursivo, vale à pena mencionar o fato de que é comum o professor em sua aula trazer a manifestação de outros discursos. Por exemplo, se se trata de uma aula de literatura, certamente irão ser convocados textos literários o mais diversos, bem como textos de críticos literários e de biógrafos. Merece destaque também, pelo pouco que tem sido levado em conta na história da própria Análise do Discurso, o que podemos chamar de contexto posicional ou posicionamento. Conforme Maingueneau,

O posicionamento corresponde à posição que um locutor ocupa em um campo de discussão, os valores que ele defende (consciente ou inconscientemente) e que caracterizam reciprocamente sua identidade social e ideológica. Esses valores podem ser organizados em sistemas de pensamento (doutrinas) ou podem ser simplesmente organizados em normas de comportamento social que são mais ou menos conscientemente adotadas pelos sujeitos sociais e que os caracterizam identitariamente. Pode-se falar, portanto, em posicionamento também para o discurso político, midiático, escolar... p.392)

Também a teoria literária já há muito tempo trabalha com a ideia de posicionamento. Mas trata-se de um conceito que pode, assim como os de gênero e ethos (cf. mais adiante), ser expandido para o conjunto da discursividade. Embora os posicionamentos sejam mais claramente 22

observáveis em discursos estritamente institucionais como a Literatura, a Ciência e a Religião, também nos discursos não institucionais como a Mídia e a Pedagogia eles existem. Para prosseguir no caso anteriormente tratado, o da sala de aula, perceba-se que há diferentes posicionamentos em relação a que tipo de aula um professor deve dar. Há aqueles que pensam que uma aula deve ser não diretiva, com grande liberdade na relação entre os alunos e entre professor e alunos. Mas há também aqueles que julgam que uma tradição pedagógica deve ser mantida: o professor deve impor sua “moral” diante dos alunos, que devem se comportar de acordo com regras rigorosas. Cada um desses posicionamentos deve implicar até mesmo um ordenamento dos móveis da sala de aula e a posição física dos alunos de modos diferenciados.

Fonte [1]

Fonte [2]

OLHANDO DE PERTO Como dar conta dessa dimensão contextual assim tão ampla e múltipla? É impossível dar conta do discurso em todas essas dimensões de uma só vez. Por isso, o analista do discurso é forçado a fazer recortes e, ao mesmo tempo, admitir a existência e indissociabilidade entre o discurso e todas essas dimensões contextuais. Em princípio, não há razão para quaisquer uma delas ser privilegiada ou negligenciada. O que vem acontecendo é que uns focalizam os aspectos mais imediatos e outros os mais mediatos. Pode ser desconcertante uma perspectiva científica admitir que, por mais abrangente que será seu trabalho analítico, ela irá forçosamente deixar na sombra uma boa gama de aspectos. No entanto, é melhor assim do que se propor ilusoriamente uma totalidade inalcançável ou pretender que a dimensão explorada dispensa as outras, negligenciando sua importância e jogando-as para debaixo do tapete da ciência. Este curso consistirá em introduzir questões relativas à articulação da materialidade linguística em relação com algumas dessas dimensões contextuais, deixando ao leitor a questão de quais recortes fazer. Apesar de estarem imbricadas, propomos separá-las do seguinte modo: Contexto físico (ambiente, midium e suporte) Situação social (papéis sociais dos interlocutores) Contexto institucional

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Comunidade discursiva

Formação/ordem discursiva Posicionamento Formação ideológica Contexto histórico Contexto interdiscursivo

FONTES DAS IMAGENS 1. http://jarbacunha.files.wordpress.com/2008/06/nossa-sala-de-aula.jpg 2. http://1.bp.blogspot.com/nhsYvl5sqXs/Tck6piILSEI/AAAAAAAABd8/R9s3FHhNOKQ/s320/sala-deaula_.jpg Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 02: CONTEXTO E DISCURSO TÓPICO 02: MATERIALIDADE LINGUÍSTICA E CONTEXTO

OS GÊNEROS DO DISCURSO Na interface linguística do discurso, temos que atentar que um enunciado, se considerado do ponto de vista do acontecimento de que ele consiste, se materializa de diferentes formas conforme o contexto discursivo. Um dos aspectos mais importantes dessa materialidade, que foi evidenciado pelo pensador russo Mikhail Bakhtin, é o dos gêneros do discurso. Dimensão desde sempre negligenciada em função da priorização histórica de uma ou outra família de gêneros (Teoria Literária, Retórica ou Gramática Descritiva) ou da sequer colocação dessa realidade na reflexão sobre a língua (Gerativismo), ela é ressaltada pelo autor russo, que a resgata do domínio estrito da arte e do lugar secundário a ele relegado pelas perspectivas formalistas, para expandi-la ao todo das relações sociais, vinculando-a às situações interativas das múltiplas esferas da comunicação social (da discursividade espontânea do cotidiano àquela dos sistemas complexos da ciência, da arte, da filosofia, etc.). A retórica é a técnica ou arte de convencer o interlocutor através da oratória, ou outros meios de comunicação. Classicamente, o discurso no qual se aplica a retórica é verbal, mas há também — e com muita relevância — o discurso escrito e o discurso visual. Em verdade, a oratória é um dos meios pelos quais se manifesta a retórica, mas não o único. Pois, certamente, pode-se afirmar que há retórica na música ("Para não dizer que não falei da Flores", de Geraldo Vandré: retórica musical contra a ditadura), na pintura (O quadro "Guernica", de Picasso: retórica contra o fascismo e a guerra) e, obviamente, na publicidade. Logo, a retórica, enquanto método de persuasão, pode se manifestar por todo e qualquer meio de comunicação. A retórica aristotélica, de certa forma herdeira daquela de Sócrates, procura fazer o interlocutor convencer-se de que o emissor está correcto, através de seu próprio raciocínio. Retórica não visa distinguir o que é verdadeiro ou certo mas sim fazer com que o próprio receptor da mensagem chegue sozinho à conclusão de que a ideia implícita no discurso representa o verdadeiro ou o certo. A retórica era parte de uma das "três artes liberais" ou "trivium" ensinadas nas faculdades da Idade Média (as outras duas corresponderiam à dialética e gramática). (adaptado de http://pt.wikipedia.org/wiki/Ret%C3%B3rica [1]

A GRAMÁTICA DESCRITIVA é uma gramática que se propõe a descrever as regras de como uma língua é realmente falada, a despeito do que a gramática normativa prescreve como "correto". É a gramática que norteia o trabalho dos lingüistas que pretendem descrever a língua tal como é falada. As gramáticas descritivas estão ligadas a uma determinada comunidade linguística e reúnem as formas gramaticais 25

aceitas por estas comunidades. Como a língua sofre mudanças, muito do que é prescrito na gramática normativa já não é mais usado pelos falantes de uma língua. A gramática descritiva não tem o objetivo de apontar erros, mas sim identificar todas as formas de expressão existentes e verificar quando e por quem são produzidas.

http://pt.wikipedia.org/wiki/Gram%C3%A1tica_descritiva [2] Conforme Bakhtin (1997), os gêneros são tipos de enunciados relativamente estáveis sempre relacionados a uma esfera de atividade humana. Quanto mais complexa for uma sociedade, mais diversificada será essa esfera e, consequentemente, maior a profusão de gêneros em uso, de modo que o estudo dos gêneros utilizados muito pode nos dizer sobre o funcionamento de uma sociedade em seus aspectos econômico, cultural e intelectual. Essa estreita imbricação com as relações sociais dá ao gênero uma natureza histórica, uma vez que qualquer mudança nessas relações conduzirá a uma modificação dos gêneros a elas articulados. Daí a relativa estabilidade dos gêneros que é também, por dedução lógica, uma relativa instabilidade. Instabilidade que faz também com que os gêneros reflitam de modo sensível as mínimas mudanças na formação social. VERSÃO TEXTUAL

Para Bakhtin, os gêneros remetem a conjuntos de enunciados que, vinculados estreitamente a uma atividade social, têm em comum uma construção composicional, um estilo e um conteúdo temático. Noutras palavras, gênero são artefatos a um só tempo formais e conteudísticos, assumindo sempre uma feição própria capaz de ser projetada e identificada cognitivamente pelos usuários. Essas características praticamente tornam possível a comunicação, pois seria tremendamente oneroso termos de, a cada situação comunicativa, inventar dispositivos comunicacionais novos.

Vejamos cada um desses componentes, só separáveis para efeito didático: Conteúdo Construção composicional Estilo

DOS CONTEÚDOS: Os conteúdos são o objeto dizível através do gênero. CLIQUE AQUI PARA VER O CASO DA RECEITA

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Fonte [4]

Dizemos DIZÍVEL porque, em princípio, o gênero não se confunde com o enunciado concreto, já que se trata de uma classe de enunciados. Sendo assim, podemos afirmar que o conteúdo de um gênero é um campo de possibilidades ou de preferências. O gênero receita culinária, por exemplo, tem como conteúdo preferencial a elaboração de pratos e secundariamente a preparação de bebidas. Raramente esse conteúdo será diferente. No entanto, veja o exemplo abaixo, retirado do endereço Receitas de produtos de limpeza ecológicos [5]: CLIQUE AQUI

O exemplo mostra que o conteúdo temático de um gênero como receita pode ter uma certa variabilidade, podendo chegar às raias da metáfora, como quando usamos ou ouvimos/lemos expressões do tipo: “receita para segurar marido” ou “receita da felicidade”.

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Mas essa variabilidade depende do tipo de gênero. Há gêneros extremamente abertos a uma variedade enorme de conteúdos. Os gêneros literários, por exemplo, podem, em princípio, tratar de qualquer assunto. No caso desses gêneros, outras variáveis como o posicionamento do autor, conceito que comentamos na aula 01, vão determinar que assuntos serão preferenciais. Por outro lado, há outros que praticamente só admitem um tipo de conteúdo, como a lista telefônica, o mandato de busca e apreensão, o boletim meteorológico e a bula de remédio. Esses gêneros são tão ligados a seus conteúdos que têm sua denominação inseparável dos mesmos. VERSÃO TEXTUAL

Aliás, essa relação do gênero com o conteúdo põe problemas importantes para sua caracterização. Por exemplo: as cartas de amor formam um gênero à parte? Ou a carta íntima é um gênero aberto, podendo eventualmente tratar de amor? Tomando um dos casos citados acima: a lista telefônica é um gênero à parte, ou a lista é um gênero e a lista telefônica é apenas um dos usos desse gênero?

CONSTRUÇÃO COMPOSICIONAL As configurações de determinadas partes de um texto, bem como a presença de determinadas estruturas sintático-textuais (também chamadas “sequências discursivas” ou “tipos de discurso”), podem aparecer em muitos outros. Essa recorrência, conjuntamente com outros aspectos abordados aqui, contribuem para que consideremos que esses textos são espécies de um mesmo gênero. A receita de produtos de limpeza ecológicos que vimos acima será identificada como uma receita (mesmo se não contivesse o nome “receita”) apesar do conteúdo um tanto discrepante das expectativas que temos quanto ao conteúdo de uma receita, devido justamente a sua construção composicional, qual seja, a enumeração de elementos (ingredientes) dispostos em frases nominais encabeçadas sempre por um numeral (quantidade). Muitas vezes essas frases são constituídas por uma medida em forma de metonímia (X colher(es) de Y, X xícara(s) de Y, etc.). Após essa lista, segue-se um texto, muitas vezes “corrido”, com estruturas frasais compostas quase sempre por verbos no imperativo ou no infinitivo. Não há descrições extensas ou argumentações. O texto estabelece uma sequência de ações bem precisas que se desenrolam temporalmente no mais das vezes repletas de referências aos elementos listados antes e à suposta realidade resultante da ação do leitor. O aluno deve ter notado, nesta rápida descrição dos aspectos composicionais do gênero receita a presença de expressões como “muitas vezes”, “quase sempre” e “no mais das vezes”. O uso dessas expressões torna-se forçoso justamente devido à relativa estabilidade do gênero que, decorrente de seu caráter histórico, lhe proporciona uma plasticidade que torna inevitável uma descrição aproximativa. São estruturas responsáveis pela organização interna do enunciado seja ele oral ou escrito. A tipologia de sequências discursivas mais comum é a que as classifica como narrativas, descritivas, 28

argumentativas, injuntivas e conversacionais. Dificilmente aparecem sozinhas em um enunciado. Assim, um mesmo enunciado geralmente estrutura-se com base em uma ou mais de uma sequência discursiva. Entretanto, geralmente, uma delas é predominante.

Metonímia é a substituição de um nome por outro devido haver entre eles alguma relação de sentido. As relações mais comuns são causa/efeito (“o álcool foi a sua desgraça”, parte/todo (“um rebanho de 12 cabeças de gado”), continente/conteúdo (“pediu o prato mais caro”), instrumento/finalidade (“ele é um bom garfo”), etc. No caso das receitas, por exemplo, quando se fala numa receita culinária em “colher de sopa” a relação se dá entre o objeto e seu tamanho ou sua capacidade.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Sugerimos que você imagine que tem um blog destinado a publicar receitas de comidas populares pouco conhecidas. Escreva um e-mail a alguém que não conhece o gênero receita culinária, mas que sabe cozinhar muito bem uma comida que você provou e gostou muito, explicando como elaborar uma receita a ser publicada no blog.

DO ESTILO Do exposto, conclui-se que os gêneros não são moldes previamente acabados conforme os quais os falantes viriam modelar seus enunciados. Ao contrário, os gêneros são estreitamente ligados à enunciação concreta e, enquanto tal, sujeitos a se adaptar ao uso dos falantes. Podemos mesmo dizer que este é justamente o fator que dá a relativa es(ins)tabilidade ao gênero. As marcas singulares que os falantes dão ao gênero é o que se chama ESTILO.

Há gêneros extremamente dóceis às singularidades de seus usuários. É o caso dos gêneros literários. Não seria exagero afirmar que se trata de gêneros concebidos especialmente para pôr em relevo a singularidade de seu usuário, o que não significa dizer que estejam totalmente infensos aos constrangimentos institucionais, sociais, históricos, etc. Outros gêneros são assaz resistentes à manifestação da individualidade dos usuários. Os gêneros usados na burocracia (ofícios, requerimentos, declarações, etc.) e em muitas outras situações de trabalho como nos hospitais (prontuário, laudo médico, etc.) e no comércio (balancete, nota fiscal, etc.) são bons exemplos. CLIQUE AQUI, LEIA A RECEITA E IDENTIFIQUE ELEMENTOS ESTILÍSTICOS

BOLO LUIZ FELIPE DA BELA 3 xícaras de açúcar 1 vidro pequeno de leite de coco e a mesma medida de leite de vaca 4 ovos inteiros

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5 colheres de sopa de queijo parmesão (aquele que vc compra de saquinho mesmo) 5 colheres de sopa de farinha 1 colher de sopa de manteiga Bata tudo no liquidificador. Unte uma forma de furo no meio generosamente com manteiga e farinha de trigo. Bote pra assar em fogo forte e deixe esfriar com a porta do forno entreaberta. ps: Eu deletei a calda (por motivos preguiçoides & calóricos) e não senti falta. A não ser que vc seja mais doceira do que eu muuuuito. Faça um café. Coma um pedaço. Agora responda: Não dá uma felicidade imediata? Fonte do texto: Bela Caleidoscópica [7]

A descrição dos diversos gêneros textuais tem-se constituído em um ramo à parte dos estudos do discurso e da Linguística Textual. Para a Análise do Discurso, no entanto, a realidade genérica é apenas uma das dimensões da materialidade discursiva: uma descrição em si e por si mesma dessa realidade é insatisfatória. Para a AD, é necessário pensar nas implicações do que Maingueneau chama de “investimento genérico” e “cena genérica” pensados no âmbito de uma prática discursiva, conceitos que abordaremos mais adiante.

FÓRUM 03 O que são os gêneros do discurso? Qual a importância dos gêneros do discurso na nossa vida cotidiana?

FONTES DAS IMAGENS 1. http://pt.wikipedia.org/wiki/Ret%C3%B3rica 2. http://pt.wikipedia.org/wiki/Gram%C3%A1tica_descritiva 3. http://www.adobe.com/go/getflashplayer 4. http://tudogostoso.uol.com.br/receita/1075-coquetel-de-frutas-semalcool.html 5. http://www.ipemabrasil.org.br/receita.htm 6. http://www.adobe.com/go/getflashplayer 7. http://belacaleidoscopica.blogspot.com/2006/10/luiz-felipe-o-bolo.html Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 02: CONTEXTO E DISCURSO TÓPICO 03: O ETHOS

Observe a figura abaixo:

Trata-se evidentemente da figura de um macaco. No entanto, não é apenas isso. Trata-se da imagem de um macaco professor. Dizemos isso não apenas porque há um giz em sua mão e por trás dele um quadro verde escrito. Se esse macaco estivesse sem roupa, curvado, pulando e brincando com o giz, não o identificaríamos com um professor. O que acontece é que identificamos nesse macaco uma postura professoral, caracterizada não apenas por sua roupa, mas pela forma de segurar o giz, de olhar para frente, de empostar o tronco, de colocar a mão no bolso. Reconhecemos essa postura pelo fato de termos tido em nossa experiência discursiva contato direto ou indireto com indivíduos que assumiram essa postura nas instâncias pedagógicas da nossa sociedade. Toda sociedade constrói um repertório de posturas como essa que aprendemos formal ou informalmente e que fica armazenado na memória coletiva. Um habitante de uma sociedade em que não existe a figura do professor certamente não reconhecerá no macaco a postura professoral, identificando, no máximo, o aspecto humano de sua postura devido a suas roupas e o fato de estar de pé. Trata-se do fenômeno do ETHOS, que desde a antiguidade já começa a ser estudado. Já então se percebe a estreita ligação com a postura corporal e a linguagem verbal. O ethos era, para Aristóteles, a imagem que um orador deveria mostrar juntamente com o conteúdo de suas palavras. Ao dizer palavras que se pretendam sinceras, não basta ao orador dizer expressões como “nunca fui tão sincero em toda minha vida” ou “falando sinceramente”, etc. Ele deve sobretudo se mostrar sincero. Maingueneau (1989), que atualiza o conceito aristotélico, considera o ethos um importante aspecto da materialidade linguística. O autor ressalta que, sendo todo texto uma “enunciação estendida a um co-enunciador”, ele implica uma VOCALIDADE de base, um TOM de uma voz que atesta o que é dito, o ethos. Assim como na oratória é necessário não apenas dizer-se, mas também e principalmente MOSTRAR-SE não só com o tom da voz, mas também com gestos, jeitos de corpo, modo de vestir, todo enunciado se apresenta necessariamente como vinculado a uma corporalidade que lhe confere legitimidade. Qualquer texto, para ser consistente, precisa constituir-se como corpo: um jeito (do texto, do

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autor, das vozes citadas, dos elementos referidos ou personagens) de habitar os espaços sociais. Tal representação, por sua vez, baseia-se no imaginário social de um lugar e de uma época acerca do corpo. Assim, por exemplo, um texto religioso está, no mais das vezes, associado um tom profético e de autoridade, com suas maneiras características de dizer e de gesticular. Igualmente, as receitas culinárias estão muitas vezes associadas a um ethos de sabedoria e domínio de uma técnica artesanal, de um saber ancestral acerca do sabor, do cozimento e da mistura dos alimentos, etc., onde a certeza da eficácia prevalece e origina um tom de segurança com que as instruções são transmitidas; e assim por diante.

OLHANDO DE PERTO É preciso lembrar que o ethos é uma categoria social. Ele não se confunde com o estilo, pois não diz respeito a uma individualidade, mas ao que Dominique Maingueneau (2008) denomina de MUNDO ÉTICO. Nesse sentido ele não se confunde com o estilo, dado que não se refere a uma imagem singular de um indivíduo, mas se relaciona a uma maneira social de ser:

... o ethos implica uma maneira de se mover no espaço social, uma disciplina tácita do corpo apreendida através de um comportamento. O destinatário a identifica apoiando-se num conjunto difuso de representações sociais avaliadas positiva ou negativamente, em estereótipos que a enunciação contribui para confrontar ou transformar: o velho sábio, o jovem executivo dinâmico, a mocinha romântica…(p. 18)

OBSERVAÇÃO Cabe observar ainda que o fenômeno do ethos suscita, conforme Maingueneau (1995), a dimensão ANALÓGICA da comunicação, como aquela dimensão da enunciação em que, ao se dizer algo, imita-se esse algo no movimento mesmo da enunciação. Ao dizermos algo gentil, o dizemos gentilmente e os discursos mais elaborados não fazem senão efetuar um processo semelhante em nível muito mais complexo. Para entender melhor o ethos é mister comparar dois textos sobre um mesmo tema e identificar como os autores, através da escrita, tentam simular de diferentes modos o corpo falante baseando-se em um esquema ético (gestualidade, tom de voz, postura corporal, etc.): TEXTO 01: O QUE É A FÉ

FÉ SIGNIFICA ... Agora observe: a fé é o firme fundamento – a certeza – das coisas que se esperam (Hb 11:1). Portanto, a fé vem primeiro, antes de possuirmos o que desejamos.

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Uma vez que tenha recebido e tomado posse do que deseja, você não mais tem esperança de recebê-lo. Entretanto, mesmo antes de receber, você já o tem em essência; e esta essência, que é substância – a certeza de que você chegará a possuí-lo – chama-se FÉ! Então, repetindo, fé é a evidência ou a prova – "a prova das coisas que se não vêem". A fé antecede o recebimento tangível daquilo que se pede. E fé é a prova – a evidência – de que você o possuirá, antes mesmo que o veja! É a prova de coisas ainda não vistas. Você não possui, não vê, não sente – contudo a fé é para você a evidência dele e a prova de que você receberá o que pediu. E qual é esta prova – esta evidência? Será o recebimento específico da resposta, quando você vê, ouve ou sente que recebeu? Não! O que vemos, o que sentimos, não é uma evidência verdadeira. Possuir a coisa pedida, vê-la, não é fé. A fé precede a posse, porque FÉ significa confiança – certeza de que possuiremos o que pedimos. A mente humana, naturalmente, pode receber conhecimento somente por meio dos cinco sentidos. Estes são os únicos canais capazes de transmitir conhecimento à mente humana por processos naturais, a saber: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato. Mas isso não é fé. Fé é um assunto espiritual, e nada tem a ver com os cinco sentidos, que são físicos. A oração é assunto espiritual. Deus é espírito! E quando Lhe pedimos, por exemplo, a cura, temos efetivamente a evidência de que as nossas orações foram ouvidas e de que Deus as responderá da maneira que haverá de ser a melhor para nós – mas essa evidência não é algo que se pode ver, sentir ou ouvir – não é uma evidência física – mas antes um testemunho espiritual de FÉ. Fé é a nossa evidência. Certo homem se expressou muito bem neste sentido: "Fé é a certeza de que as coisas que Deus disse em sua Palavra são verdadeiras: e que Deus agirá conforme ao que disse em sua Palavra. Esta certeza, esta dependência da Palavra de Deus, esta confiança, é fé!" E esta é uma definição bíblica verdadeira. Esta obra de Deus tem sido edificada pela prática da fé! http://www.ofundobiblico.org/?page_id=74 [1] NDOP.: TRECHOS DESTACADOS PELO AUTOR. TEXTO 02: A FÉ

Fé (do Latim fides, fidelidade e do Grego pistia) é a firme opinião de que algo é verdade, sem qualquer tipo de prova ou critério objetivo de verificação, pela absoluta confiança que depositamos nesta idéia ou fonte de transmissão. A fé acompanha absoluta abstinência à dúvida pelo antagonismo inerente à natureza destes fenômenos psicológicos e lógica conceitual. Ou seja, é impossível duvidar e ter fé ao mesmo tempo. A expressão se relaciona semanticamente com os verbos crer, acreditar, confiar e apostar, embora estes três últimos não necessariamente 33

exprimam o sentimento de fé, posto que podem embutir dúvida parcial como reconhecimento de um possível engano. A relação da fé com os outros verbos, consiste em nutrir um sentimento de afeição, ou até mesmo amor, por uma hipótese a qual se acredita, ou confia, ou aposta ser verdade.[2] Portanto se uma pessoa acredita, confia ou aposta em algo, não significa necessariamente que ela tenha fé. Diante dessas considerações, embora não se observe oposição entre crença e racionalidade, como muitos parecem pensar, deve-se atentar para o fato de que tal oposição é real no caso da fé, principalmente no que diz respeito às suas implicações no processo de aquisição de conhecimento, que pode ser resumidas à oposição direta à dúvida e ao importante papel que essa última desempenha na aprendizagem. É possível nutrir um sentimento de fé em relação a um pessoa, um objeto inanimado, uma ideologia, um pensamento filosófico, um sistema qualquer, um conjunto de regras, um paradigma popular social e historicamente instituído, uma base de propostas ou dogmas de uma determinada religião. Tal sentimento não se sustenta em evidências, provas ou entendimento racional (ainda que este último critério seja amplamente discutido dentro da epistemologia e possa se refletir em sofismos ou falácias que o justifiquem de modo ilusório) e, portanto, alegações baseadas em fé não são reconhecidas pela comunidade científica como parâmetro legítimo de reconhecimento ou avaliação da verdade de um postulado. É geralmente associada a experiências pessoais e herança cultural podendo ser compartilhada com outros através de relatos, principalmente (mas não exclusivamente) no contexto religioso, e usada frequentemente como justificativa para a própria crença em que se tem fé, o que caracteriza raciocínio circular. A fé se manifesta de várias maneiras e pode estar vinculada a questões emocionais (tais como reconforto em momentos de aflição desprovidos de sinais de futura melhora, relacionando-se com esperança) e a motivos considerados moralmente nobres ou estritamente pessoais e egoístas. Pode estar direcionada a alguma razão específica (que a justifique) ou mesmo existir sem razão definida. E, como mencionado anteriormente, também não carece absolutamente de qualquer tipo de argumento racional. http://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%A9 [2]

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Leia em voz alta e expressivamente esses textos. Faz sentido ler os dois da mesma forma, com o mesmo tom de voz? Descreva as diferenças que você encontrou. Que elementos da escrita orientaram cada leitura? O conceito de ethos é utilizado não apenas nos estudos linguísticos, mas também em vários campos das ciências humanas, como a Antropologia e a Sociologia, que destacam diferentes aspectos da noção aristotélica. Mas a questão do ethos, tal como a do gênero, não interessa em si mesma para a AD. Em primeiro lugar, interessa o ethos discursivo, isto é, aquele que se materializa na enunciação verbal que naturalmente vem sempre acompanhada de uma materialidade não-verbal. Há uma tendência muito forte nos analistas principiantes de buscarem o ethos nas imagens que, 34

sobretudo em um mundo superimagético como o que vivemos hoje, tendem cada vez mais a acompanhar os textos escritos. Porém, o avanço no resgate do conceito clássico está justamente em captar o ethos nas linguagens oral e escrita, não apenas nos discursos de persuasão e convencimento no sentido estrito, como era o caso dos estudos clássicos, nem apenas nas imagens que acompanham os textos escritos, tentação à qual incorrem os analistas iniciantes, mas em toda e qualquer situação discursiva. E não apenas o ethos discursivo em si mesmo, mas sua articulação com o contexto em suas diferentes dimensões (ordem discursiva, lugares sociais, o posicionamento sócio-discursivo, a correlação de forças na interação face-à-face, as relações interdiscursivas, etc.). No caso da receita, por exemplo, a disposição em lista dos ingredientes, a especificação das quantidades e unidades de medida, a presença de verbos no imperativo ou infinitivo, a separação/contraste entre uma lista e um texto “corrido”, tudo isso é inseparável do ethos inscrito em tal gênero, que, como vimos, encarna uma espécie de lógica artesanal acerca da transformação dos alimentos. Para finalizar esta sessão, vejamos o texto abaixo:

Extraído da Revista NET – Tecnologia Cabo – Fortaleza / CE, março, 2007.

Textos do gênero publicitário como estes são geralmente multimodais, ou seja, envolvem mais de uma modalidade semiótica (simbólica). Portanto, ele conjuga uma pluralidade de ethé (plural de ethos). Mas examinemos apenas o que se traduz pelo texto escrito central intitulado “Promoção Net Satisfação

Automática”. 35

Observe

que

o

texto

mostra

uma

corporalidade/vocalidade muito ligada à imagem dos apresentadores de videomarketing, sempre dispostos a apresentar de modo dinâmico a praticidade do produto que estão vendendo. A sucessão de frases que vão acrescentando benefícios constrói uma enunciação que fala diretamente ao leitor através do pronome você e dos pontos de exclamação estabelecendo um apelo que se pretende irresistível como o conteúdo que está sendo vendido. Também em par com esse produto, que é apresentado como proporcionador de “satisfação automática”, está a estruturação das frases em dualidades de causa e consequência mediadas por conectivos sumários de modo a simular automatismo, senão vejamos: COM A NET

é

ASSIM

Você assina

e

Só tem alegria ~

______________

além

Levar até a sua casa a

de Você solicita seu pagamento em débito automático

melhor programação... e

Ganha 1 ponto adicional (...) na hora

Solicitou

,

______________

e

Você ainda concorre a um Cruzeiro...

é só Responder: Por

,

_______________

e

Participe!

Ganhou

quê a NET me dá satisfação automática? Visite o nosso site

Esperamos que você tenha compreendido que o ethos é inseparável do “conteúdo” que se pretende transmitir. Se é a “satisfação automática” que está sendo vendida, o jeito de vender esse produto se apresenta simulando eticamente um automatismo que pretende satisfazer o leitor.

FÓRUM 04 A importância do ethos na interação verbal. Os campos discursivos e a maneira corporal de dizer. O que diferencia o ethos do estilo individual?

FONTES DAS IMAGENS 1. http://www.ofundobiblico.org/?page_id=74 2. http://pt.wikipedia.org/wiki/F%C3%A9 Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 02: CONTEXTO E DISCURSO TÓPICO 04: DA CENA DE ENUNCIAÇÃO

Desde muito tempo, os estudiosos da linguagem humana já preconizam o caráter representacional da linguagem humana. Os antigos gregos propunham que o objeto da representação linguística era simultaneamente o mundo (a realidade, o cosmos) e o pensamento. Haveria uma relação reflexiva (de reflexo) entre esses três elementos (pensamento, linguagem e mundo), do seguinte modo: os dois primeiros refletiriam o último, que préexistiria àqueles. A mente e a linguagem seriam, então, espelhos da natureza. Nossa tarefa seria apenas extrair as “informações” contidas no mundo através da cognição e da língua. Essa concepção, denominada de representacionismo, pretende então que o mundo existe independentemente de nossa experiência, seja linguística, seja cognitiva. VERSÃO TEXTUAL

No que tange à linguagem, esta seria uma imagem do mundo em sua estrutura. A chamada Gramática Tradicional, que herdamos dos antigos gregos, está eivada dessa concepção. A própria ideia de separar as categorias gramaticais (“partes do discurso”) em, dentre outras, substantivos (palavras que nomeiam os seres), adjetivos (palavras que modificam os substantivos, atribuindo-lhes um estado, qualidade ou característica) e verbos (palavras que expressam processos, ação, estado, mudança de estado e fenômenos da natureza), é uma separação que toma como critério uma relação especular entre língua e mundo: uma categoria gramatical para cada aspecto da realidade.

Mas será que essa é a principal função da linguagem? A AD faz parte de uma série de perspectivas do âmbito das ciências humanas e da filosofia que contesta a concepção representacionista da linguagem. Elas preferem pensar que a linguagem participa ativamente do mundo que pretende representar. A linguagem não apenas medeia nossa relação com o mundo, mas também tem por função agir sobre esse próprio mundo. Podemos não perceber, mas a cada vez que falamos modificamos o mundo. Se existe representação na linguagem, o fato é que a representação que a enunciação opera é inseparável dessa ação sobre o mundo, incluindo nele o sujeito o qual ela pretende atingir.

OLHANDO DE PERTO É preciso ficar claro, portanto, que a ideia da linguagem como ação não invalida aquela segundo a qual a enunciação representa o mundo, desde que se entenda a representação como estando a serviço da ação sobre o mundo. Por outro lado, se de algum modo a linguagem representa o mundo, este não é um mundo estanque, acabado e pré-existente à própria linguagem. Não é a representação de uma ordem harmônica e dotada de sentido em si mesma. Trata-se de uma realidade à qual ela dá 37

sentido e da qual ela faz parte e modifica. A linguagem, enfim, representa uma realidade interferida por ela própria, sofrendo, ao mesmo tempo, interferência dessa realidade. Maingueneau traduz essa ideia de representação na de encenação. Em primeiro lugar, o autor (2001) afirma que a enunciação supõe 3 cenas: A cena englobante, que confere estatuto pragmático ao discurso, integrando-o em um tipo: publicitário, administrativo, filosófico. A cena genérica, aquela relacionada ao gênero ou subgênero de discurso no qual a enunciação está investida: o editorial, o sermão, a receita culinária, a consulta médica. A cenografia, a cena construída pelo próprio texto.

VERSÃO TEXTUAL

Pode-se perceber que as cenas não são senão representações de alguns dos contextos que vimos anteriormente. Temos, assim, que o contexto da enunciação se inscreve na própria enunciação através de sua encenação.

Antes de prosseguir vendo como se dá a encenação complexa que toda enunciação pressupõe, é preciso lembrar que uma cena enunciativa supõe sempre funções enunciativas. Veja o aluno que a ideia de cenário e de cena se utiliza de uma metáfora do sentido que tais palavras têm na dramaturgia. Pensando nesse sentido, percebemos que uma cena típica do teatro envolve personagens que dialogam num espaço que nos remete a outro espaço, tudo isso se desenrolando em uma temporalidade que, igualmente, nos remete a outra. Essa remissão só faz sentido na nossa cultura, que criou e institucionalizou uma forma de enunciar, chamada “teatro”, e que nós chamaremos de “discurso dramático”, que supõe todo um aparato para que ele possa funcionar e ser legitimado como um tipo especial de enunciação (que inclusive leve as pessoas a se demorar assistindo e, por vezes, participar, e pagar para isso). Assim, na cena teatral a que você poderá assistir através do link Sete Gatinhos (Bibelot e Aurora) [3] percebem-se várias cenas interligadas. O espaço-tempo dramático (cena genérica), posto em ação pelos atores (Flavio Barollo e Bibi Cavalcante) e o público, é tornado possível pelo espaço-tempo imaginado pelo dramaturgo (no caso, Nelson Rodrigues), diretor (Francisco de Assis) e outros – cena englobante. Tudo isso se materializa, pelo menos no recorte apresentado, graças à conversação entre os personagens Bibelot e Aurora (cenografia). A ideia de cena enunciativa é, como se pode ver, uma extrapolação desse sentido dramatúrgico. Assim como o gênero saiu de um uso restrito à literatura, a ideia de cena sai da dramaturgia para ser percebida em qualquer evento enunciativo seja oral, seja escrito; seja verbal ou não. Como dissemos acima, qualquer uma das cenas que um evento comunicativo pressupõe implica papéis enunciativos, ou seja: alguém que “fala”, que chamaremos de enunciador, alguém a quem é dirigida a 38

enunciação, mas que não é mero receptor, mas um sujeito em função do qual existe a enunciação, daí ser denominado co-enunciador, e também um espaço de enunciação, a topografia, e um tempo, a cronografia da enunciação. Nem sempre é fácil identificar esses elementos, pois muitas vezes eles são estrategicamente omitidos. Examinando a questão sob outro ângulo, podemos dizer, com Maingueneau (2001), que um texto nos interpela em três planos diferentes. Vejamos como isso acontece em uma canção como a que segue. CLIQUE AQUI PARA VER A LETRA DA CANÇÃO

Bilhete – (Ivan Lins - Vitor Martins) Quebrei o teu prato, Tranquei o meu quarto, Bebi teu licor. Arrumei a sala, Já fiz tua mala, Pus no corredor. Eu limpei minha vida, Te tirei do meu corpo, Te tirei das entranhas, Fiz um tipo de aborto E por fim nosso caso acabou, Está morto. Jogue a cópia da chave Por debaixo da porta Que é pra não ter motivo De pensar numa volta. Fique junto dos teus, Boa sorte, adeus.

DESAFIO É importante que você assista ao vídeo em que o cantor e compositor da canção Ivan Lins a executa: Bilhete - Ivan Lins / Vitor Martins [4] Do começo ao fim, a canção nos interpela através das formas dêiticas de pessoa presentes em toda a canção: um eu se dirige a um tu encenando transmissão de um comunicado dramático e peremptório de um final de relacionamento decidido unilateralmente. Nos breves minutos em que a canção se desenrola, somos convidados a contemplar e “participar” dessa cena representada em forma de bilhete pondo-nos ora no lugar do coenunciador (“tu”), caso apenas a ouçamos, ora no lugar do enunciador, caso a cantemos também. Trata-se aí da cenografia, estreitamente ligada a um ethos de mulher (Embora não seja explicitado de que se trata de um eu 39

feminino, expressões como “arrumei a sala”, “te tirei das entranhas”, “fiz um tipo de aborto” nos induzem a caracterizar o enunciador como uma voz feminina.) magoada e resoluta. Provisoriamente, envolvidos por essa cenografia, esquecemos que quem “fala” tudo isso é um homem, melodicamente, isto é, se utilizando cada vogal em uma frequência e uma duração específicas formando curvas entonacionais ascendentes ou descendentes e um padrão rítmico também específicos, de modo que essa especificidade torna essa “fala” repetível. O que a cenografia nos fez esquecer foi que ela só foi possível graças a essa outra cena, que é a cena genérica. É ela que nos interpela na condição de ouvintes ou mesmo de “intérpretes”, se nos pusermos a cantarolar a canção. Embora a cenografia, enquanto cena efetivamente textualizada, seja a cena que nos “fisga” e conduz nosso imaginário a um micro-universo das brigas conjugais que nos leva a pôr de lado momentaneamente a cena genérica, esta é não meramente o seu suporte: ela legitima a cenografia e é legitimada por ela. Designam o conjunto de palavras ou expressões que têm como função “apontar” para o contexto situacional. Deste modo, essas palavras ou expressões, ao serem utilizadas num discurso, adquirem um novo significado, uma vez que o seu referente depende do contexto. Por outras palavras, a dêixis pode ser definida como o conjunto de processos lingüísticos que permitem inscrever no enunciado as marcas da sua enunciação, que é única e irrepetível. Assim, assinalam o sujeito que enuncia (enunciador), o sujeito a quem se dirige (co-enunciador), o tempo e o espaço da enunciação. O sujeito da enunciação/enunciador é o ponto central a partir do qual se estabelecem todas as coordenadas do contexto: eu é aquele que diz eu no momento em que fala; tu é a pessoa a quem o eu se dirige; agora é o momento em que o eu fala; aqui é o lugar em que o eu se encontra; isto é um objeto que se encontra perto do eu, os tempos verbais indicam um tempo anterior, simultâneo ou posterior ao momento da enunciação (ex.: escrevi, escrevo, escreverei). Com efeito, é o sistema de coordenadas referenciais (EU/TU—AQUI— AGORA) da enunciação que possibilita a atribuição de sentidos referenciais. (Adaptado http://apoioptg.blogspot.com/2007/06/deixis.html)

de

O alongamento das vogais, o ritmo lento (blues), bem como o tom sussurrado da voz do cantor, dentre outros elementos que estão presentes graças ao fato de se darem no contexto do gênero canção, contribuem para sustentar a cenografia melancólica que, por sua vez, dá sentido ao estilo desse gênero. Mas tal dispositivo composto por essa imbricação gênerocenografia nos interpela em outra cena: a cena pragmática configurada pelo que temos chamado de prática discursiva literomusical. Nessa cena habitam os compositores Ivan Lins e Vitor Martins, personas midiáticas de grande importância na instituição “MPB”.

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Ivan Lins [5]

Vitor Martins [6]

OLHANDO DE PERTO Curiosamente, no jargão da música popular, utiliza-se a própria palavra “cena” para designar esse universo. Veja os links abaixo: Cena Musical Independente [7] TV Brasil/Cena musical [8] Ao vermos o vídeo, nos pomos diretamente em contato com essa cena englobante, pois vemos o compositor em um palco, sentado ao teclado, cercado de músicos e tocando para um auditório que o aplaude no final.

PARADA OBRIGATÓRIA ATENÇÃO: a cena englobante não é esse contexto empírico e situacional em si mesmo, mas o discurso que possibilita esse contexto e que esse contexto evoca. Trata-se do mundo discursivo da música popular, que institui autoria, obras, competências; legitima enunciadores consagrados, modos de enunciação e de recepção; prestigia ou não gêneros e temáticas, timbres e dicções; funda tradições e elabora uma memória; valida suas próprias cenas ou se apóia em outras já validadas, etc, como qualquer discurso institucional. Aliás, acabamos de tocar em um assunto que merece um pouco mais de atenção: as cenas validadas. Assim, como os diversos artefatos discursivos com os quais lidamos cotidianamente se consolidam, se estabelecendo na memória coletiva, como acontece com os gêneros, o ethos e as próprias estruturas linguísticas, também as cenas enunciativas podem se “cristalizar” e servir para facilitar certas estratégias discursivas. CLIQUE AQUI PARA VER UM TEXTO

AÍ GALERA! Jogadores de futebol podem ser vítimas de estereotipação. Por exemplo, você pode imaginar um jogador de futebol dizendo “estereotipação”? E, no entanto, por que não? - Aí campeão. Uma palavrinha pra galera. - Minha saudação aos aficionados do clube e aos demais esportistas, aqui presentes ou no recesso de seus lares. - Como é? 41

- Aí, galera! - Quais são as instruções do técnico? - Nosso treinador vaticinou que, com um trabalho de contenção coordenada, com energia otimizada, na zona de preparação, aumentam as probabilidades de, recuperado o esférico, concatenarmos um contragolpe agudo com parcimônia de meios e extrema objetividade, valendo-nos da desestruturação momentânea do sistema oposto, surpreendido pela reversão inesperada do fluxo da ação. - Ahn? - É pra dividir no meio e ir pra cima pegá eles sem calça. - Certo. Você quer dizer mais alguma coisa? - Posso dirigir uma mensagem de caráter sentimental, algo banal, talvez mesmo previsível e piegas, a uma pessoa à qual sou ligado por razões, inclusive, genéticas? - Pode. - Uma saudação para a minha progenitora. - Como é?? - Alô, mamãe! - Estou vendo que você é um, um... - Um jogador que confunde o entrevistador, pois não corresponde à expectativa de que o atleta seja um ser algo primitivo com dificuldade de expressão e assim sabota a estereotipação? - Estereoquê? - Um chato? - Isso. (Luis Fernando Veríssimo. Correio Brasiliense, 2004)

O texto acima tem por objeto e ao mesmo tempo satiriza a cena validada entrevista com jogador de futebol. Como se pode notar, pelo exemplo, as cenas validadas não necessariamente são cenas marcadas positivamente na memória coletiva.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Considerando que se trata de uma crônica humorística, analise o texto de Veríssimo acima do ponto de vista das cenas envolvidas.

FONTES DAS IMAGENS 1. http://www.adobe.com/go/getflashplayer 42

2. http://www.adobe.com/go/getflashplayer 3. http://www.youtube.com/watch?v=PLyjKhcFPJI 4. http://www.youtube.com/watch?v=mCkQMFam_GI 5. http://www.jazz.com/assets/2008/5/28/ivan_linsAG330.JPG 6. http://3.bp.blogspot.com/_Zfgcvsyuh8E/SOI61FUOYpI/AAAAAAAACM Y/mDzVK3mCjS8/s400/DSC_5232VM.JPG 7. http://www.cultura.sp.gov.br/StaticFiles/CenaMusical/index2.html 8. http://tvbrasil.org.br/cenamusical/ Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 03: CONTEXTO INTERDISCURSIVO TÓPICO 01: POLIFONIA E DIALOGISMO

Devemos os conceitos de dialogismo e polifonia a Mikhail Bakhtin. Este autor, nascido em 17/11/1895, viveu uma parte da sua vida sob o antigo regime czarista da Rússia pré-revolucionária do fim do século XIX e início do século XX e a outra parte (a maior) sob o regime socialista ditatorial fundado por Vladimir Ilich Lênin em 1917 da União das Repúblicas Socialistas

Fonte [1]

Soviéticas (URSS). Estudou História e Filologia na Universidade de São Petersburgo e empreendeu profundas pesquisas teóricas sobre literatura, filologia, filosofia alemã e arte. Logo após a Revolução Soviética, que apoiou participando intensamente da efervescência intelectual que se seguiu a ela, reuniu em torno de si um grupo de intelectuais de várias áreas do conhecimento (linguistas, poetas, músicos, filósofos, etc.) que foi depois intitulado “Círculo de Bakhtin”. Com a implantação do stalinismo no regime soviético, foi perseguido, chegando a publicar em seu nome, apesar da fértil produção, apenas dois livros: “Problemas da Poética de Dostoievski” e “A Cultura Popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto da obra de François Rabelais”. Mais tarde descobriu-se que vários membros do seu grupo, como Volochínov e Medvedev, assinaram textos de sua autoria. Embora haja uma grande polêmica sobre isso, trata-se de estratégia plenamente compreensível, tendo em vista a grande repressão sofrida por Bakhtin, que chegou a ser preso e sofrer exílio interno no Cazaquistão. Bakhtin morreu aos 80 anos de idade, em Moscou, no ano de 1975.

O DIALOGISMO As ideias do Círculo se opuseram a duas concepções extremas a cerca da língua e da literatura.

1ª CONCEPÇÃO: Formalista: enfatizava a dimensão estrutural da linguagem, as regras imanentes situadas no plano social. Tratava-se justamente das ideias defendidas pelos estruturalistas e pelos formalistas russos, que tiveram Ferdinand de Saussure e Vladimir Propp, respectivamente, como seus principais mentores.

2ª CONCEPÇÃO: Subjetivismo idealista: dava ênfase ao aspecto subjetivo da linguagem e da literatura, concebendo-as uma emanação do gosto pessoal, da criação individual. A perspectiva bakhitiniana contesta os dois extremos, concebendo a linguagem como um fenômeno de natureza essencialmente interativa. Ou seja, a essência da linguagem não está nem no sistema que se impõe ao falante nem na criação individual, mas na interação entre os sujeitos que estabelece os elementos sistemáticos e assistemáticos da língua. É nisto que consiste o DIALOGISMO.

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OLHANDO DE PERTO Para Bakhtin, todo enunciado, toda forma de expressão é essencialmente dialógica. Mas o que é “dialógico”? Há uma forte tendência a ligarmos a palavra “dialógico” a diálogo, ou seja, a interação síncrona (que se dá num mesmo contexto de tempo) oral ou escrita entre duas pessoas. Mas “dialógico” não se refere apenas a esse tipo de interação. Para Bakhtin, afirmar a dialogicidade de todo e qualquer enunciado é, de certo modo, dizer que uma propriedade essencial do diálogo é na verdade essencial também da enunciação em geral. E essa propriedade é a presença da alteridade, do outro. E essa alteridade se dá na medida em que todo enunciado responde a outro já dito e antecipa outro ainda não dito. Nas palavras de Bakhtin (Volochínov):

Toda enunciação, mesmo na forma imobilizada da escrita é uma resposta a alguma coisa e é construída como tal. Toda inscrição prolonga aquelas que a precederam, trava uma polêmica com elas, conta com as reações ativas da compreensão, antecipa-as”. (In Bakhtin (Volochínov), 1988, p. 98)

Por isso, mesmo em um texto escrito, em que o autor escreve para si

Fonte [2]

mesmo (um diário íntimo, por exemplo) pressupõe-se a existência de um outro, ainda que esse outro, seja, no fundo, imaginário, uma projeção. Veja abaixo o poema “Elevação”, do poeta francês Charles Baudelaire (lê-se, aportuguesadamente: “bôdelér”) CLIQUE AQUI PARA LER O POEMA ELEVAÇÃO

Por entre os pantanais, os vales orvalhados, As montanhas, os bosques, as nuvens, os mares, Para além do ígneo sol e do éter que há nos ares Para além dos confins dos tetos estrelados, Flutuas, meu espírito, ágil peregrino, E, como um nadador que nas águas afunda, Sulcas alegremente a imensidão profunda Como um lascivo e fluido gozo masculino. Vai mais, vai mais além do lodo repelente, Vai te purificar onde o ar se faz mais fino, E bebe, qual licor translúcido e divino, O puro fogo que enche o espaço transparente. Depois do tédio e dos desgostos e das penas Que gravam com seu peso a vida dolorosa, Feliz daquele a quem uma asa vigorosa Pode lançar às várzeas claras e serenas; 45

Aquele que, ao pensar, qual pássaro veloz, De manhã rumo aos céus liberto se distende, Que paira sobre a vida e sem esforço entende A linguagem da flor e das coisas sem voz! (Tradução: Ivan Junqueira)

OBSERVAÇÃO Observe que o poema acima constitui explicitamente uma alteridade que é o próprio “espírito” do poeta (tratado por “tu”). No entanto, podemse inferir outros “tu” a quem o poeta se dirige e polemiza. O mais evidente é o próprio leitor, interlocutor onipresente em todo texto escrito. Mas há, na verdade, uma alteridade difusa por todo o poema. Tomemos apenas seu final. O poeta exalta seu espírito por compreender “sem esforço” “a linguagem da flor e das coisas mudas”. Pode-se captar nessas palavras uma polêmica com uma ideologia materialista ou cientificista (quem sabe até da própria Linguística, que já dá os primeiros passos no século XIX, período em que viveu Baudelaire), que atribuiria a capacidade da linguagem apenas aos seres humanos. Podemos dizer então que o diálogo é o tipo de interação verbal em que mais claramente se percebe a dialogicidade, porque o outro está explicitamente presente, de modo que a enunciação é construída a dois. No entanto, todas as outras modalidades de interação são co-construídas. Não haveria, na verdade, enunciação se não houvesse alteridade. Mas por que alguns tipos de interação são explicitamente dialógicos e outros parecem não se dirigir a ninguém, como o texto abaixo? “Um dos principais fatores, que tem conduzido para a corrida generalizada à globalização, tem sido o fenômeno das privatizações, um pouco por toda a parte. A privatização das empresas públicas, por um lado, e a desregulamentação (reduzindo ou desmantelando os monopólios), por outro, tem contribuído para o aumento da fluidez dos mercados e da concorrência. A liberdade de trocas tornou-se num fenômeno de moda e levou à constituição de zonas de total liberdade econômica, como é o exemplo da criação do mercado único entre os Estados Unidos e o Canadá, desde 1988, e do mercado único europeu, desde 1993. É também nesta linha que se insere a assinatura de acordos de livre-troca entre o Brasil e a Argentina e a Austrália e a Nova Zelândia. Neste novo contexto, a ideologia da economia de mercado encontra-se numa fase de expansão e assiste-se à internacionalização dos mercados e da concorrência que se acelera, por um lado, sob o efeito cumulativo de fatores favoráveis e, por outro, do próprio tempo”. “Causas e Efeitos da Globalização na Economia” in: LIMA, Fábio Uchoa de. Ambiente Econômico Global. 46

http://www.scribd.com/doc/6939549/AEG1Cad1Globalizacaoimpresso [3] A resposta pode estar justamente no discurso. Não no conceito específico, uma vez que, neste sentido, o próprio enunciado se trata de um discurso. Referimo-nos ao sentido ampliado. O texto acima emana do discurso científico e é sabido que esta instância discursiva pretende que seus enunciados se constituam como um espelho do real, isto é, que reflitam o mais fielmente possível o mundo natural ou social/humano. Trata-se de um modelo de enunciação em que o que foi enunciado sobre o mundo, no caso a economia globalizada, não deve depender de um “eu”, de um tempo ou de um espaço. O que foi dito É... independentemente de quem disse, de quando se disse e de onde foi dito. Trata-se, no entanto, de uma estratégia, pois se sabe muito bem hoje o quanto é relativo o que se diz sobre o mundo, seja de qual discurso esse dizer provém.

A POLIFONIA Eis outro conceito da teoria bakhtiniana que exerceu grande influência na Análise do Discurso dos anos 80, a chamada 3a época. Nos escritos do Círculo de Bakhtin, a polifonia denomina a pluralidade de vozes em equilíbrio presente na obra de alguns autores, notadamente Dostoiévski, romancista russo que viveu no século XIX. Diferentemente de outros Fonte [4]

autores, que organizam na obra literária todos os pontos de vista nela expressos sob a ótica do narrador, aquele autor russo distribui os diversos pontos de vista sobre o tema do romance de forma equipolente entre os personagens, não colocando o narrador ou o herói como monopolizador ou detentor do ângulo privilegiado a partir do qual é avaliado o ponto de vista dos demais personagens. O conceito de polifonia é uma metáfora cunhada da teoria musical (como foi dito acima, do Círculo, faziam parte músicos). Em música, polifonia se opõe à organização homofônica das vozes melódicas. É fácil entender a polifonia na música. Imagine uma banda qualquer, como Legião Urbana ou Cidade Negra. Normalmente quando executam uma canção, os vocalistas de tais bandas desenvolvem uma melodia e os demais instrumentistas ou vocalistas também, cada um a sua. Porém, a melodia do vocalista (pensemo-lo como um instrumentista como os outros) normalmente apoiada em uma letra, tem um estatuto principal em relação às demais melodias, que existem apenas para servir de contexto, de pano de fundo para essa melodia principal: é o que se chama de acompanhamento ou base.

OLHANDO DE PERTO Nesse caso, não se trata de uma relação polifônica a que existe entre tais melodias, pois há como que uma hierarquia entre tais fios melódicos. No entanto, quando se põem a solar simultaneamente alguns instrumentos, como a guitarra e os metais, entre estes se estabelece uma relação polifônica. Mesmo assim, na música popular, quando isso acontece, sempre se dá sobre a base de outros instrumentos como o violão e o teclado. O grau máximo de polifonia, ou a polifonia plena se daria se cada instrumento melódico (o que exclui a bateria e a percussão, 47

instrumentos não-melódicos) executasse uma melodia diferente ao mesmo tempo e em consonância com o todo. Isso raramente ocorre na música popular, mas é comum na música erudita e teve em Johan Sebastian Bach o seu grande mestre.

MULTIMÍDIA Ouça a música polifônica de J. S. Bach (http://www.youtube.com/watch?v=cH_C3Yt3NBI&feature=related [5]) e repare que cada instrumento desenvolve uma melodia diferente que por vezes se aproxima e se distancia da melodia dos demais compondo um conjunto harmonioso. Saiba mais sobre a polifonia na música em Polifonia [6]. Aplicando o conceito musical à linguagem verbal, Bakhtin vai localizar a polifonia em dois planos: no plano artístico, apontando Dostoiévski como o grande inventor do romance polifônico, como foi dito acima; no plano utópico, vislumbrando como um ideal social a ser alcançado o respeito à liberdade de expressão de pontos de vista, sejam eles quais forem, em total desierarquização. Em Análise do Discurso, o uso do conceito de polifonia tende a perder tanto o foco artístico quanto o caráter utópico para tentar dar conta da flagrante dispersão da subjetividade enunciativa nos diversos tipos de texto. Vejamos o caso do “ventriloquismo”: se, por exemplo, sou assessor de um político que me encarrega de escrever os seus discursos, terei que escrever em primeira pessoa (eu) sem que necessariamente esse «eu» se reporte a mim como pessoa física ou cidadão. No entanto, mesmo que eu não me responsabilize pelo que está ali dito, não há como negar que há a minha voz naquelas palavras: ainda que apresentem pontos de vista que pretendam ser do outro, são o ponto de vista do outro sob o meu ponto de vista. Outro exemplo é o caso do discurso citado. Na frase “ele disse muito bem: o povo de quem fui escravo não será mais escravo de ninguém” (letra da canção “Ele disse”, de Edgar Ferreira), há pelo menos duas vozes: uma responsável pelo enunciado inteiro e outra pelo enunciado reportado, atribuído a “ele”. Há, aí também, uma ambivalência de pontos de vista, pois a expressão citada representa o ponto de vista de quem foi citado e o ponto de vista de quem cita. O primeiro é marcado pela forma como foi inserido no enunciado do sujeito citante inclusive em rima com o restante do enunciado. Pode-se ainda pensar numa outra voz, emanada do discurso da História Oficial, que recortou o enunciado reportado da Carta Testamento [7], de Getúlio Vargas, que tem sido citado e recitado em detrimento de outros trechos da mesma carta com determinados propósitos. Antes de passarmos adiante, vejamos mais dois exemplos, ambos mencionados por Oswald Ducrot (DUCROT, 1987), linguista da enunciação responsável pela primeira utilização “não-bakhtiniana” do conceito de polifonia:

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“PEDRO NÃO É INTELIGENTE”

Fonte [8]

Tipo de enunciado denominado por Ducrot (linguista francês, professor da École des Hautes Études en Sciences Sociales, criador da Teoria da Argumentação, a luz da qual releu o conceito bakhtiniano de polifonia.) de “negação polêmica”, ele pressupõe duas vozes em tensão: uma (não necessariamente realizada por um discurso efetivo) afirma a inteligência de Pedro, outra a nega. O outro exemplo é a ironia. Para Ducrot, ela põe em cena duas figuras enunciativas: uma responsável pelas palavras enunciadas, mas não pelo ponto de vista que elas expressam. Trata-se da voz do que ele chama de locutor. Este enuncia palavras que expressam um ponto de vista em total oposição ao seu e que, portanto, deve ser atribuído à voz de outra figura discursiva que ele denomina enunciador. Tomemos o exemplo abaixo, fornecido por Ducrot (op. cit., p. 198): “Vocês vêm, Pedro não veio me ver” Para que o enunciado acima seja considerado irônico, é necessário imaginar o seguinte contexto: Paula, que falou essa frase, havia, no dia anterior, advertido a seus amigos que Pedro viria vê-la, mas eles se recusaram em acreditar. No dia seguinte, Pedro veio e Paula pôde, mostrando-lhes Pedro efetivamente presente, lhes dizer a frase de modo irônico. Ao produzir essa enunciação irônica, Paula assumiu a responsabilidade por ela enquanto locutor – é a ela que o me designa – apresentando-a como a expressão de um ponto de vista absurdo, porém imputa essa absurdidade ao enunciador, ou seja, seus amigos, na presença destes e do próprio Pedro, o que dota ironia de bastante agressividade.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Leia e escute com atenção a canção Mulheres de Atenas [9], de Chico Buarque. Baseado(a) no texto presente no endereço. A vida em família na Antiguidade Clássica [10]e no texto A mulher sábia é submissa. (Visite a aula online para realizar download deste arquivo.) Analise a letra procurando realizar o que está sendo solicitado nos itens abaixo: a) tente localizar as duas principais vozes apresentadas pelo autor (pergunte-se: quem fala aqui? De onde provém esse enunciado?); b) você diria que o autor de “Mulheres de Atenas” concorda com a autora de “A mulher sábia é submissa”? Justifique à luz do conceito de polifonia.

FONTES DAS IMAGENS 1. http://www.isfp.co.uk/images/mikhail_bakhtin.jpg 49

2. http://www.fotosimagenes.org/imagenes/baudelaire-6-thumb.jpg 3. http://www.scribd.com/doc/6939549/AEG1Cad1Globalizacaoimpresso 4. http://4.bp.blogspot.com/tIjltce_pL8/USuiU9rauAI/AAAAAAAASK8/kjI9r8MDgps/s1600/Vasily+Gri goryevich+Perov%2526%25E3%2582%25AB%25E3%2582%25A4-13.jpg 5. http://www.youtube.com/watch?v=cH_C3Yt3NBI&feature=related 6. http://pt.wikipedia.org/wiki/Polifonia 7. http://www.culturatura.com.br/dochist/Carta%20Testamento%20-% 20Getlio%20Vargas.pdf 8. http://www.opovo.com.br/opovo/vidaearte/img/832364_not_fot.jpg 9. http://www.youtube.com/watch?v=094GnJWIrCw&feature=related 10. http://www.planetaeducacao.com.br/portal/artigo.asp?artigo=405 Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 03: CONTEXTO INTERDISCURSIVO TÓPICO 02: INTERTEXTUALIDADE, INTERDISCURSIVIDADE E METADISCURSIVIDADE

A ideia do interdiscurso propõe, no âmbito da análise da articulação entre discurso e contexto, a investigação de relações específicas seja entre textos ou enunciados (relações intertextuais – texto # texto), seja entre discursos (no sentido ampliado - relações interdiscursivas – texto # discurso), seja entre o sujeito e seu próprio discurso (no sentido específico relações metadiscursivas). Discutamos um pouco cada uma delas.

DA INTERTEXTUALIDADE VERSÃO TEXTUAL

O problema do intertexto Uma outra realidade fundamental da relação entre o discurso e seu contexto interdiscursivo é a chamada intertextualidade. Curiosamente o termo nasce significando mais ou menos o mesmo que dialogismo. Porque foi essa a palavra que Julia Kristeva, introdutora das ideias de Bakhtin no Ocidente com sua obra “Séméiotiké Recherches pour une sémanalyse”, utilizou para traduzir o termo russo. Desse modo, para Kristeva, a intertextualidade é essencialmente uma permutação de textos. Para ela, o texto é uma combinatória, o lugar de reciclagem de fragmentos de textos: construir um novo texto é partir sempre de textos já construídos, que são decompostos, negados, retomados. A construção de um texto é, portanto, um processo, uma dinâmica intertextual. Mas a intertextualidade de todo texto não provém apenas do fato de que este eventualmente contém elementos emprestados, imitados ou deformados. Qualquer texto, o processo mesmo de produção textual é um trabalho de resdistribuição, desconstrução, disseminação de textos anteriores. O texto, então, é um conjunto inextricável de traços dificilmente recuperáveis, muitas vezes inconscientes, de enunciados anteriores ou contemporâneos.

Embora tenha pretendido usar o termo “intertextualidade” como sinônimo de “dialogismo”, podemos constatar que a posição de Kristeva se distancia do conceito bakhtiniano e parece se colocar mais próxima na perspectiva do que a analista do discurso francesa Jacqueline Authier-Revuz denomina de heterogeneidade constitutiva, que nos diz da propriedade essencial de todo texto ser sempre saturado pela alteridade. Para AuthierRevuz, tudo que utilizamos em textos que julgamos nossos é sempre “de segunda mão” pois, sejam as palavras, sejam estruturas, sejam gêneros, etc., trata-se de objetos que já foram utilizados por outros, marcados, portanto, pela voz de outrem. O objeto “intertexto” é, por esse ângulo, um objeto disperso; resulta inútil sua identificação e classificação, uma vez que, num texto, ele está em toda parte.

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Uma orientação diferente é a de Gérard Genette, que estabelece sua concepção de intertextualidade no seu “Palimpsestes” (GENETTE, 1989). Para esse autor, a intertextualidade é apenas um das formas de relação entre textos definidoras da instituição literária às quais cada texto singular pretende adesão. Para Genette, o objeto de uma teoria do texto literário não seriam os textos em sua singularidade, mas tudo aquilo que situa o texto no contexto de sua relação explícita ou implícita com outros textos, em uma palavra, a transtextualidade. Esta, então, incluiria cinco tipos de relações: ARQUITEXTUALIDADE

a) A ARQUITEXTUALIDADE é a relação que um texto contrai com o gênero de discurso no qual ele pretende se enquadrar. Assim, fazer um soneto é desde já contrair uma relação com outros textos do mesmo gênero; PARATEXTUALIDADE

b) A PARATEXTUALIDADE é a relação de um texto com o seu paratexto (prefácio, advertência, ilustrações etc.). Dificilmente um texto, sobretudo se ele é escrito, aparece isolado. Ele é quase sempre acompanhado por textos apostos que o contextualizam; METATEXTUALIDADE

c) A METATEXTUALIDADE é a relação estabelecida quando um texto comenta outro, sem necessariamente citá-lo ou nomeá-lo. Trata-se da relação crítica, analítica, interpretativa; HIPERTEXTUALIDADE

d) A HIPERTEXTUALIDADE é a relação de derivação entre um determinado texto (hipotexto) e um outro (hipertexto), que é construído a partir dele. É o caso da paródia e do pastiche; INTERTEXTUALIDADE

e) A INTERTEXTUALIDADE é a presença mais ou menos explícita de um texto no interior de um outro. Entram aí a citação, o plágio, a alusão. Desse modo, Genette coloca a intertextualidade em um quadro bastante restritivo, dando conta apenas das relações estritamente objetivas de pertinência entre textos. Pelo seu caráter restrito, trata-se, então, de uma concepção de natureza oposta à de Julia Kristeva, portanto, merecedora de ponderação por parte de Nathalie Piégay-Gros (PIÉGAY-GROS, 1996):

Para ser pertinente à análise, com efeito, a noção (de intertextualidade) não deve ser nem objeto de uma extensão excessiva - todo traço de heterogeneidade seria uma marca intertextual - nem de uma restrição abusiva - apenas importariam as formas explícitas, que seria necessário examinar independentemente de toda referência ao autor e à História. (p. 41)

A autora propõe uma abordagem dos fenômenos intertextuais enquanto “estratégias de escrita deliberada”, em meio à heterogeneidade generalizada de todo discurso, concepção inseparável da consideração dos “efeitos de 52

sentido” resultantes dessas estratégias. Ou seja, citar o outro, dependendo da forma como é feita, produz efeitos no real e, muitas vezes, deliberados. Daí a necessidade apontada pela autora de se investigar e sistematizar as formas de inserção do discurso alheio no discurso de um enunciador. Comentaremos a proposta classificatória de Piegay-Gros, por nós modificada visto julgarmos que ela privilegia textos literários. Em seguida, nos utilizaremos da proposta da autora para pensar outros fenômenos relativos ao interdiscurso: a interdiscursividade e a metadiscursividade. AS RELAÇÕES INTERTEXTUAIS

Como se pode notar pelo esquema, distinguem-se dois grandes tipos de relações intertextuais: aquelas fundadas sobre uma relação de COentre dois ou mais textos e as que são fundadas sobre uma relação de RETEXTUALIZAÇÃO de um ou vários textos a partir de um textomatriz, podendo ser, cada uma delas, explícita (marcada por um código tipográfico ou por menção) ou implícita (cabendo ao leitor sua recuperação). PRESENÇA

1) As relações de co-presença englobam a citação (direta, indireta ou indireta livre), ), o plágio, a referência e a alusão. a) A citação é a mais emblemática das relações intertextuais. É quando se torna mais clara a inserção de um texto em outro. Em textos escritos, um sistema de sinais tipográficos (aspas, itálico etc.) materializa essa heterogeneidade. Na oralidade, a entonação e os chamados verbos dicendi (dizer, afirmar, falar, declarar, etc.) ajudam nessa demarcação. Pode cumprir diversas funções, dentre as quais, a autoridade, o ornamento etc. Vejamos alguns exemplos:

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EXEMPLO 1 Ex.: a1) citação direta: APAGA O FOGO, MANÉ (Adoniran Barbosa) Inês saiu dizendo que ia comprar pavio pro lampião pode me esperar, mané que eu já volto já acendi o fogão botei água pra esquentar e fui pro portão só pra ver inês chegar anoiteceu e ela não voltou fui pra rua feito louco pra saber o que aconteceu Procurei na central, Procurei no hospital e no xadrez andei a cidade inteira e não encontrei inês voltei pra casa triste demais o que inês me fez não se faz pois no chão bem perto do fogão encontrei um papel escrito assim pode apagar o fogo, mané que eu não volto mais (para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=GDiXiGtPFP4 [2])

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EXEMPLO 2 Ex2.: a2) citação indireta: Miséria no Japão Composição: Pedro Luiz Somos tios da pobreza social Somos todos pára-brisas do futuro nacional Eu sou tio, ela é tia O pavio tá aceso, aqui é quente País é quente O mundo é quente E quem te DISSE que miséria é só aqui? Quem foi que disse que a miséria não ri? Quem tá PENSANDO que não se chora miséria no Japão? Quem tá FALANDO que não existem tesouros na favela A vida é bela Tá tudo estranho É tudo caro Mundo é tamanho Paraíso, pára-raios, capital Parabólicas, pirâmides, trem-bala Coisa e tal Lá faz frio, cá é noite Os açoites nos navios são história Mas não é glória Memória triste E quem resiste faz a raça evoluir Mas ainda existe guerra Querendo fazer o mundo ruir Não tem medida o amor em certos casos O ódio atinge generais, soldados rasos (para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=wttoOxnyBnI [3])

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EXEMPLO 3 Ex3.: a3) citação indireta livre COM A PERNA NO MUNDO (LUIZ GONZAGA JR.) Acreditava na vida na alegria de ser nas coisas do coração nas mãos um muito fazer Sentava bem lá no alto pivete olhando a cidade sentindo o cheiro do asfalto desceu por necessidade Ô Dina! Teu menino desceu o São Carlos pegou um sonho e partiu Pensava que era um guerreiro com terras e gentes a conquistar Havia um fogo em seus olhos um fogo de não se apagar Diz lá pra Dina que eu volto Que seu guri não fugiu Só quis saber como é Qual é Perna no mundo sumiu E hoje Depois de tantas batalhas A lama dos sapatos É a medalha Que ele tem pra mostrar O passado, meu irmão, É um pé no chão e um sabiá Presente É a porta aberta E futuro é o que virá Mas, e daí, ê ô ê ê á O moleque acabou de chegar, ê mãe ôêêá Nessa cama é que eu quero sonhar, êôêêá Eu vou me embora... Amanhã bato a perna no mundo, E lá vou eu... êôêêá É que o mundo é que é meu lugar (para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=PtE48yc_AO0 [4]) 56

OBSERVAÇÃO

Na canção que está na aba 3, observe as vozes que emergem no discurso do narrador sem nenhuma marca citacional: a de vermelha pode ser atribuída talvez a um vizinha de “Dina”, mãe do menino protagonista da história; a de azul, ao próprio menino. b) A referência, do mesmo modo que a citação, remete o leitor a um outro texto, sem, porém, convocar as palavras deste. Nesse caso, podem ser evocados títulos, personagens, lugares, épocas, etc., pertencentes a outros textos. c) Como no plágio, na alusão não é explicitada a retomada intertextual, mas, diferente dele e do mesmo modo que na referência, não há a convocação literal das palavras do outro. A alusão elabora um jogo de sugestão ao leitor, solicitando sua memória e inteligência, sem romper a continuidade do texto (op. cit.: p. 52). Assim, para que a alusão faça efeito, é necessário que o leitor relacione o que o autor disse efetivamente com o que ele deixou de dizer diretamente. Em outras palavras, o leitor deve recuperar o texto aludido por meio dos poucos índices que o autor lhe põe à disposição. Tais índices são, na maior parte das vezes, palavras, mas podem aparecer como um formato textual, uma entonação, um estilo. PRA NINGUÉM (Caetano Veloso)

Nana cantando "Nesse mesmo lugar” Tim Maia cantando "Arrastão“ Bethânia cantando "A primeira manhã" Djavan cantando "Drão“ Chico cantando "Exaltação à Mangueira" Paulinho, "Sonho de um carnaval" Gal cantando "Candeias" E Elis "Como nossos pais” Elba cantando “De volta pro aconchego”... (Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=8zoai8MJR14 [5]) LIVROS Composição: Caetano Veloso Tropeçavas nos astros desastrada Quase não tínhamos livros em casa E a cidade não tinha livraria Mas os livros que em nossa vida entraram São como a radiação de um corpo negro Apontando pra a expansão do Universo Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso (E, sem dúvida, sobretudo o verso) É o que pode lançar mundos no mundo. Tropeçavas nos astros desastrada Sem saber que a ventura e a desventura 57

Dessa estrada que vai do nada ao nada São livros e o luar contra a cultura. Os livros são objetos transcendentes Mas podemos amá-los do amor táctil Que votamos aos maços de cigarro Domá-los, cultivá-los em aquários, Em estantes, gaiolas, em fogueiras Ou lançá-los pra fora das janelas (Talvez isso nos livre de lançarmo-nos) Ou o que é muito pior por odiarmo-los Podemos simplesmente escrever um: Encher de vãs palavras muitas páginas E de mais confusão as prateleiras. Tropeçavas nos astros desastrada Mas pra mim foste a estrela entre as estrelas HTTP://WWW.YOUTUBE.COM/WATCH? VER/OUVIR: (PARA V=AKPOZZLSRSM

[6])

COMO 2 E 2 Composição:Caetano Veloso Quando você me ouvir cantar, Venha, não creia, eu não corro perigo Digo, não digo, não ligo, deixo no ar Eu sigo apenas porque eu gosto de cantar Tudo vai mal, tudo Tudo é igual quando eu canto e sou mudo Mas eu não minto, não minto Estou longe e perto Sinto alegrias tristezas e brinco Meu amor, Tudo em volta está deserto, tudo certo Tudo certo como dois e dois são cinco Quando você me ouvir chorar, Tente, não cante, não conte comigo Falo, não calo, não falo, deixo sangrar Algumas lágrimas bastam pra consolar Tudo vai mal, tudo Tudo mudou, não me iludo e contudo A mesma porta sem trinco, o mesmo teto E a mesma lua a furar nosso zinco Meu amor, Tudo em volta está deserto, tudo certo Tudo certo como dois e dois são cinco Cinco. (Para ver/ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=yjhOVaG21oA [7])

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CHÃO DE ESTRELAS Composição: Sílvio Caldas / Orestes Barbosa Minha vida era um palco iluminado Eu vivia vestido de dourado Palhaço das perdidas ilusões Cheio dos guizos falsos da alegria Andei cantando a minha fantasia Entre as palmas febris dos corações Meu barracão no morro do Salgueiro Tinha o cantar alegre de um viveiro Foste a sonoridade que acabou E hoje, quando do sol, a claridade Forra o meu barracão, sinto saudade Da mulher pomba-rola que voou Nossas roupas comuns dependuradas Na corda, qual bandeiras agitadas Pareciam estranho festival! Festa dos nossos trapos coloridos A mostrar que nos morros mal vestidos É sempre feriado nacional A porta do barraco era sem trinco Mas a lua, furando o nosso zinco Salpicava de estrelas nosso chão Tu pisavas os astros, distraída, Sem saber que a ventura desta vida É a cabrocha, o luar e o violão (Para Ouvir/ver: http://www.youtube.com/watch?v=Li5SWL5tISE [8]) c) Já o plágio é uma espécie de citação não marcada. Um texto plagia outro quando apresenta uma passagem deste, sem indicar que isto foi feito. A ideia de plágio levanta a questão da normatização social da intertextualidade: a forma e o grau da presença de um texto em outro estão sujeitos a uma regulação jurídica e moral. Assim, o plágio é condenado socialmente e será considerado tanto mais censurável e punível, tanto maior e mais literal for o trecho convocado (PIEGAY-GROS, op. cit.: p. 50). Por conta desse caráter polêmico, não daremos exemplos aqui. Sugerimos a leitura das seguintes reportagens: Plágio? "Águas de Março" teria sido inspirada em folclore [9] Ideias roubadas [10] 2) As RELAÇÕES DE RETEXTUALIZAÇÃO, de sua parte, supõem uma intimidade maior e mais integral entre dois textos. Trata-se da transformação que um texto sofre total ou parcialmente para consubstanciar -se em outro. Cada cultura elabora seus esquemas de retextualização. Os mais conhecidos são a tradução, o pastiche, a estilização, o resumo, a resenha, a recriação, a paródia, o comentário, a escrituração, a oralização, etc. Vejamos um exemplo do discurso literomusical:

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ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Descreva as alterações feitas em cada um dos textos-fonte que resultaram no texto da canção “Até amanhã”, de Belchior, e analise os possíveis propósitos do autor.

DA INTERDISCURSIVIDADE AS RELAÇÕES INTERDISCURSIVAS

Em oposição às relações intertextuais, as relações interdiscursivas, como o próprio nome indica, consistem nas relações da enunciação com o interdiscurso, isto é, com o exterior discursivo. Note-se que aqui o sentido de “discurso” é ampliado, pois se refere ao discurso enquanto sistemas discursivos anônimos (modos de dizer, gêneros, regras, fórmulas, ethé, etc.) que circulam na sociedade e constroem uma memória. A interdiscursividade é, assim, a convocação de, ou o “dar a ouvir”, elementos que fazem parte de sistemas linguageiros co-relacionados a práticas sociais externas ao discurso do qual emana uma dada enunciação.

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Assim, quando um texto faz uso de expressões populares, quando utiliza termos habitados por outras esferas, registros discursivos e até mesmo linguísticos, ou ainda quando se reporta a ethé, gestos e esquemas discursivos de outras práticas discursivas, temos RELAÇÕES INTERDISCURSIVAS ou INTERDISCURSIVIDADE.

Podemos incluir, então, como interdiscursivos mecanismos semelhantes às relações textuais, com a diferença que o objeto da interdiscursividade não é o texto, mas os elementos arrolados no início do parágrafo anterior. O esquema das relações interdiscursivas assume uma configuração mais simples dada a própria feição pouco formatada dos objetos interdiscursivos. Nesse esquema, os conceitos de Maingueneau de “captação” e “subversão” são utilizados. Para o autor (MAINGUENEAU, 1998), a CAPTAÇÃO acontece quando um locutor, pretendendo beneficiar-se da autoridade do enunciado de outro, incorpora em diversos aspectos a estrutura deste e mostra que o faz. Assim, aquele que usa da CAPTAÇÃO revela sua atitude interdiscursiva com o objetivo de marcar sua filiação a determinado estilo, escola ou doutrina estética. Na SUBVERSÃO, por sua vez, o locutor pretende desqualificar outro discurso legitimando, em contrapartida, seu próprio texto e discurso. Os dois conceitos estão ligados também à ideia de “validação” (MAINGUENEAU, 1998) e “legitimação” (MAINGUENEAU/CHARAUDEAU, 2004), conceitos que dizem respeito a elementos lingüístico-discursivos já instalados na memória coletiva, seja negativa seja positivamente. Assim, podemos, portanto, obter o seguinte esquema, das relações interdiscursivas: OBJETO INTERDISCURSIVIDADE

Captação RELAÇÕES INTERDISCURSIVAS

Subversão

Temos assim os seguintes casos:

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cenas validadas; etos; palavras (lexical); códigos de linguagem;

DE

CAPTAÇÃO INTERDISCURSIVA

a) captação interdiscursiva: um texto pode representar cenografias, gêneros, gestos, ethé validados pertencentes a outras práticas discursivas. Podemos citar como exemplo certos poemas de caráter religioso cuja cenografia se apóia em cenários referentes aos episódios bíblicos. Pode também mimetizar o etos de outros discursos para legitimar seu discurso. É o caso de um professor que, ao dar a sua aula, imita a postura do cientista.

Fonte [11] Cena validada bíblica: Cristo reúne os seguidores e profere o “Sermão da Montanha”

SUBVERSÃO INTERDISCURSIVA

b) subversão interdiscursiva: textos podem incorporar parodicamente etos, cenários validados, códigos de linguagem etc. de outras formações discursivas para subvertê-los, legitimando-se por oposição. Um texto literário pode atacar o discurso religioso através de personagens apresentados como religiosos, mas praticando atos anti-religiosos.

EXEMPLO Veja o exemplo da canção Paixão e Fé [12], de Milton Nascimento e Fernando Brant, que, ao criticar uma cena religiosa, mimetiza aspectos do discurso religioso (cf. o coro, os instrumentos e a própria melodia da canção). Configura-se nessa canção a interdiscursividade entre o discurso literomusical e o discurso religioso..

DA METADISCURSIVIDADE AS RELAÇÕES METADISCURSIVAS

É

importante

distinguir

claramente

a

metadiscursividade

da

intertextualidade e da interdiscursividade. Se na primeira, o locutor pretende tomar um Outro enquanto sujeito enunciador singular, autor de um texto, mesmo que esse autor não tenha identificação assegurada ou seja hipotético; e na segunda, ele toma um outro indefinido, disperso na “atmosfera discursiva” que envolve as enunciações em geral e as formas discursivas (ethos, gêneros, gestos, etc.); na metadiscursividade, o locutor toma a si mesmo como outro, pois “a heterogeneidade enunciativa não está ligada unicamente à presença de sujeitos diversos em um mesmo enunciado; ela também pode resultar da construção pelo locutor de níveis distintos no interior de seu próprio discurso” (MAINGUENEAU, 1989, p. 93). Authier-Revuz (1990) considera que a metadiscursividade se concretiza através de gestos metalinguísticos que se dão em fórmulas como: “a palavra X...”, “o termo Y...”, “a expressão Z...”, “o adjetivo W...” etc. e também através 62

do que a autora denomina modalização autonímica em que o locutor suspende a obviedade ou transparência de determinada palavra ou expressão de seu discurso, ao tomá-la como objeto. Em poucas palavras, ele usa e menciona o signo ao mesmo tempo, tal como no exemplo abaixo: É um marginal, como se diz hoje em dia. Em que a palavra marginal é utilizada ao mesmo tempo como um falar sobre o mundo (marginal = “indivíduo à margem da sociedade”) e sobre o signo marginal. Além desse desdobramento, há também o remeter-se a uma outra fonte enunciativa em relação à qual o discurso pretende afirmar sua identidade e unidade. Neste último caso, essa alteridade pode ser representada por: UMA OUTRA LÍNGUA

“Al dente, como dizem os italianos”. UM OUTRO REGISTRO DISCURSIVO

Familiar, vulgar etc.: “para usar uma palavra dos jovens de hoje em dia...”. UM OUTRO DISCURSO

Técnico, político, marxista etc.: “...'significante', no sentido que a linguística estrutural confere ao termo...”). UMA OUTRA MODALIDADE DE SIGNIFICAÇÃO DA PALAVRA

Recorrendo-se explicitamente a um exterior linguístico ou a um outro universo discursivo (no primeiro caso, o da língua como lugar de polissemia, homonímia, metáfora etc. - “X, sem trocadilho” ou “X, para usar de um eufemismo...”; e no segundo caso, o da palavra já habitada historicamente por um ou mais discursos: “uma contradição, no sentido materialista do termo”). UMA OUTRA PALAVRA

Potencial ou explícita denotativa de reserva (“X, se se puder chamar isso de X...”), hesitação ou retificação (X, ou melhor, Y), confirmação (X, essa é a palavra exata...) etc. UM OUTRO FALANTE

(“como diria Marx...”, ) ou o interlocutor suscetível de não compreender ou de não aceitar expressões tidas como óbvias (“...X, com o perdão da palavra...”, “se você quiser, X”, “X, se você me entende”) (AUTHIER-REVUZ, 1990). Em um sentido mais amplo, o METADISCURSO consiste, como o nome indica, no processo segundo o qual o discurso de um locutor tem como objeto seu próprio discurso, constituindo a si mesmo como alteridade, ou seu próprio discurso como outro. Assim a metadiscursividade deve ser interpretada como uma consciência de si de uma prática discursiva. Não se trata do gesto de o enunciador falar apenas de sua própria enunciação, mas de referir-se a sua prática discursiva, legitimando as condições enunciativas que possibilitam seu falar.

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Nesse sentido, vale distinguir dois gestos metadiscursivos. Um, que poderíamos denominar METADISCURSIVIDADE ENUNCIATIVA, é aquele em que o locutor volta-se para seu próprio enunciado, reformulando, assinalando uma dada parte dele, manifestando insatisfação com ela, etc. O outro é aquele em que o locutor se refere ao discurso do qual faz parte sua enunciação, o qual podemos denominar METADISCURSIVIDADE PROPRIAMENTE DITA. Vejamos os dois casos nessa canção abaixo: CLIQUE AQUI PARA VISUALIZAR A CANÇÃO APENAS UM RAPAZ LATINOAMERICANO, DE BELCHIOR:

APENAS UM RAPAZ LATINO-AMERICANO Composição: BELCHIOR Eu sou apenas um rapaz Latino-Americano Sem dinheiro no banco (REFRÃO) Sem parentes importantes E vindo do interior... Mas trago, de cabeça Uma canção do rádio Em que um antigo Compositor baiano Me dizia Tudo é divino Tudo é maravilhoso...(2x) (Aqui o locutor se refere ao discurso literomusical, campo discursivo em que atua, configurando uma metadiscursividade propriamente dita) Tenho ouvido muitos discos Conversado com pessoas Caminhado meu caminho Papo, som, dentro da noite E não tenho um amigo sequer Que ainda acredite nisso Não, tudo muda! E com toda razão... (REFRÃO) Mas sei Que tudo é proibido Aliás, eu queria dizer Que tudo é permitido Até beijar você No escuro do cinema Quando ninguém nos vê...(2x)

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(Nesse caso, o locutor se refere ao

próprio texto da canção, mais especificamente à palavra “permitido”, configurando uma metadiscursividade enunciativa. )

Não me peça que eu lhe faça Uma canção como se deve Correta, branca, suave Muito limpa, muito leve Sons, palavras, são navalhas E eu não posso cantar como convém Sem querer ferir ninguém...

Mas não se preocupe meu amigo Com os horrores que eu lhe digo Isso é somente uma canção A vida realmente é diferente Quer dizer! A vida é muito pior...

E eu sou apenas um rapaz Latino-Americano Sem dinheiro no banco Por favor Não saque a arma no "saloon" Eu sou apenas o cantor... (Aqui trata-se também de metadiscursividade enunciativa, pois o locutor se refere ao próprio texto da canção, no entanto não a palavras específicas, mas ao gênero de seu enunciado.) Mas se depois de cantar (Aqui trata-se também de metadiscursividade enunciativa, pois o locutor se refere ao próprio texto da canção, no entanto não a palavras específicas, mas ao gênero de seu enunciado.) Você ainda quiser me atirar Mate-me logo! À tarde, às três Que à noite Tenho um compromisso E não posso faltar Por causa de vocês...(2x)

(REFRÃO) Mas sei que nada é divino Nada, nada é maravilhoso Nada, nada é sagrado 65

Nada, nada é misterioso, não... Na na na na na na na na...

(Para ouvir: http://www.youtube.com/watch?v=mLhpvrhFrWY [13])

OLHANDO DE PERTO O texto de Belchior é repleto de intertextualidade com outros textos da Música Popular Brasileira. Caso lhe interesse, seria um trabalho bastante agradável pesquisar os trechos de textos incorporados e as operações feitas sobre esses textos pela canção. RESUMO DA AULA 3 DIALOGISMO

POLIFONIA

INTERTEXTUALIDADE (RELAÇÃO ENTRE TEXTOS)

RELAÇÕES

INTERDISCURSIVAS(RELAÇÃO

DISCURSIVA)

RELAÇÕES METADISCURSIVAS

FÓRUM 05

66

ENTRE

TEXTO

E

EXTERIORIDADE

Nossas palavras e as palavras dos outros. A questão da autoria: temos direitos sobre as nossas palavras? Quando devemos citar e quando não devemos citar? O papel das instâncias discursivas (escola, ciência, Direito) na relação intertextual.

FONTES DAS IMAGENS 1. http://www.adobe.com/go/getflashplayer 2. http://www.youtube.com/watch?v=GDiXiGtPFP4 3. http://www.youtube.com/watch?v=wttoOxnyBnI 4. http://www.youtube.com/watch?v=PtE48yc_AO0 5. http://www.youtube.com/watch?v=8rkl3JR0y6o 6. http://www.youtube.com/watch?v=AkPozzLSrsM 7. http://www.youtube.com/watch?v=yjhOVaG21oA 8. http://www.youtube.com/watch?v=Li5SWL5tISE 9. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u13819.shtml 10. http://www.secom.unb.br/unbagencia/ag0706-27.htm 11. http://www.ceallankardec.org.br/jesus%20pregando.jpg 12. http://letras.mus.br/milton-nascimento/405855/ 13. http://www.youtube.com/watch?v=mLhpvrhFrWY Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

67

ANÁLISE DO DISCURSO AULA 04: REFLEXÕES DISCURSIVAS SOBRE O ENSINO DO PORTUGUÊS TÓPICO 01: O ENSINO DA LÍNGUA ENQUANTO PRÁTICA DISCURSIVA VERSÃO TEXTUAL

Pela ótica discursiva, o professor de português ou estudante de letras é sobretudo alguém que escolheu se envolver com uma atividade que consiste em lidar com um paradoxo: tomar distância crítica de algo que constitui a materialidade de sua própria consciência e de suas relações com o mundo social: a linguagem (Genouvrier e Peytard, 1974).

Isso porque , diferentemente de quem lida com geografia ou matemática, que tem bem claro que seu objeto de estudo não necessariamente lhe afeta de modo tão visceral, o estudante ou profissional de letras é falante da língua que supõe estar dominando ou manipulando para o ensino. Sendo ele próprio falante dessa língua, está sujeito aos mesmos desafios cuja superação deve propor aos alunos, estes também já falantes da língua. Tais desafios, por sua vez, só podem ser propostos através da linguagem, daí que esta, quando se lida com o ensino da língua materna, é ao mesmo tempo: 1. Materialidade da consciência de quem ocupa a função de professor; 2. Objeto sobre o qual se pretende refletir e que se deseja aperfeiçoar nos alunos; 3. Meio de transmissão e execução desses propósitos; 4. Materialidade da consciência de quem ocupa a função de aluno.

E como o uso da linguagem ultrapassa os limites da escola, quem se matricula em um curso de letras está, portanto, querendo ou não, se inscrevendo num percurso de situações discursivas que vão lhe exigir posicionamentos que dirão respeito a sua própria vida extra-escolar e dos quais não poderá fugir. Tais situações podem ser abordadas em dois planos em íntima associação. O DISCURSO DA SALA DE AULA

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Fonte [2]

No plano da própria natureza discursiva da situação interlocutiva mais comum no âmbito escolar, a sala de aula, o professor mantém sua inserção num tipo de interação linguística muito particular situada no âmbito de uma ordem discursiva (Foucault, 2001) com características muito bem definidas em nossa sociedade: VERSÃO TEXTUAL DO FLASH

1. Primeiramente, a situação se constitui como um espaço onde a autoridade de usar a palavra é institucionalmente concedida a um único interlocutor – o professor. Em contraponto, aos demais interlocutores a tomada da palavra é ora negada, ora facultada, ora solicitada, ora exigida. 2. Em segundo lugar, a sala de aula é o lugar em que um dos interlocutores está investido do poder de apresentar os objetos discursivos (regras, frases, textos, poesias, diálogos, etc.), que deverão ser utilizados pelos demais de forma determinada de antemão, e de autorizar ou determinar o modo de recepção e interpretação desses mesmos objetos. 3. Em terceiro lugar, em contradição com o poder e a autoridade anteriormente aludidos, a fala desse interlocutor, que é o professor, é restringida pela própria instituição que o autoriza a se comportar como tal. Isto é, o professor não tem em sala de aula a liberdade de falar qualquer coisa e de utilizar de qualquer forma o seu discurso. Apenas determinadas palavras podem e devem ser ditas, outras só podem ser ditas em ocasiões muito especiais e outras ainda não devem ser ditas em absoluto.

O discurso pedagógico a ser assumido pelo estudante de letras, futuro professor de português, é, portanto, atravessado por contradições internas e se modifica historicamente. A situação de sala de aula é um incontestável jogo de poder e enquanto tal supõe uma negociação entre os agentes em questão. Os alunos aceitam tacitamente o papel do professor de disciplinador da fala e lhe conferem esse poder conforme seja esse o seu interesse (um dos quais pode ser o de não serem punidos, ou o de tirar boas notas, ou o de apenas ouvir o que o professor tem a falar). O professor aceita esse papel embora finja que ele não lhe foi concedido e pode agir na ilusão de que é absoluto. Quanto à historicidade, é notório que as contradições no espaço escolar são contingentes às condições sociais de produção de diferentes épocas e lugares. Outrora autoritária, atualmente a interação linguística entre alunos e professor em sala de aula, influenciada por fatores extraescolares diversos, caminha para uma situação mais equilibrada ao menos em relação à questão da democratização da tomada da palavra. Assista ao vídeo abaixo e veja uma representação da ação discursiva de um professor em sala de aula. 69

http://www.youtube.com/v/-hoKDT1ksN4&hl=pt_BR&fs=1& Vídeo 1 - O filme A Sociedade dos Poetas Mortos apresenta a história de um professor que, no final dos anos 50, tenta subverter os ditames de uma escola ultra-conservadora dos Estados Unidos.

Em casos extremos a situação pode se inverter: é quando os alunos adquirem mais poder de palavra do que o professor, o que pode por em crise a situação discursiva e conduzir à casos de violência e humilhação em que o professor é a vítima.

LEITURA COMPLEMENTAR Confira uma reportagem sobre a questão da violência na escola: Violência é assunto da escola, sim! [3] No caso específico do professor de português, também as ciências da linguagem, como veremos adiante, têm questionado a adequação do tipo de objeto linguístico atualmente usado em sala de aula, pondo, ela também, em cheque a autoridade do professor como aquele que sabe a língua e interferido em sua prática. No entanto, essa intervenção, como também veremos, vem justamente no sentido de tornar o trabalho com a língua mais eficaz e produtivo, dado que o ensino tradicional, baseado no discurso normativista da gramática, tem levado os alunos ao estranhamento da linguagem, como se não se tratasse de algo que, como vimos, está intimamente ligado à própria subjetividade de cada um. Essa eficácia pode ajudar a tornar o trabalho educativo no campo da linguagem num momento prazeroso de construção do conhecimento para ambas as partes envolvidas na interação escolar. O DISCURSO NA SALA DE AULA

Se no plano da interação pedagógica, o estudante de letras e o professor se inscrevem na memória discursiva das relações dialógicas professor-aluno,

Fonte [4]

cabendo a eles, em sua experiência cotidiana como aluno/professor, posicionarem-se na correlação de forças inerente a essa interação, a questão da POSTURA FRENTE À LINGUAGEM que balizará a interação dialógica em sala de aula nos remete a diversos lugares teóricos. Nesse tópico, veremos as duas posturas mais comuns para, no tópico seguinte, apresentar a postura mais coerente com os preceitos da Análise do Discurso. A POSTURA TRADICIONAL (NORMATIVA)

A maneira mais tradicional é a de pensar a linguagem como um patrimônio, ou seja, como um conjunto de formas e normas passadas de geração em geração, pelo qual é preciso zelar para que não se corrompa, se

Fonte

desgaste ou se degenere. É essa concepção a que fundamenta a chamada GRAMÁTICA TRADICIONAL ou GRAMÁTICA NORMATIVA e, é preciso dizer, é ainda dominante nos meios educacionais de nosso país. Esta concepção, tão enraizada no senso comum, baseia-se em velhos pressupostos. Em primeiro lugar, na ideia de que existe uma língua pura. Esta língua estaria concretizada nos dicionários, que discriminariam as palavras que são “regionais”, “chulas”, “vulgares”, etc., e as que seriam realmente 70

pertencentes à Língua; e principalmente nas gramáticas e nos livros didáticos que determinariam o que pode e deve ser falado em vários aspectos da linguagem (fonético, morfológico, sintático, etc.). A gramática, por esse ponto de vista, seria uma instância disciplinadora do comportamento linguístico da sociedade. Aliás, esse é outro pressuposto dessa concepção: a de que é possível manter uma língua imune às mudanças históricas, que é possível salvaguardar a língua do poder subversivo dos usuários, especialmente os das novas gerações. Como se pode perceber, trata-se muito mais do que uma mera forma de conceber a linguagem. Consiste mesmo em um projeto linguístico-social. Há, portanto, não somente ideias pressupostas nessa concepção. Há principalmente, metas subjacentes. Uma delas é a homogeneização dos comportamentos linguísticos. Essa concepção é inimiga das variações, das mudanças, das diferenças. Outra é a tentativa de fazer de cada falante um policial de sua língua. Um policial de seu próprio comportamento linguístico e do comportamento dos outros. Hoje em dia, no Brasil, essa forma de encarar a linguagem conta com mais um meio de veiculação: trata-se dos meios de comunicação de massa (rádio, televisão, jornal). Vem com um visual modernoso, jovial, e se traveste de “serviço de utilidade pública”; apresenta-se também mais tolerante para com os chamados “erros”, admitindo uma esfera de uso em que eles podem ser “cometidos”; faz apelo aos jovens, principalmente os de classe média e alta, ilustrando suas explicações com canções dos astros da MPB e solicitando a opinião de personalidades da música e de outros meios artísticos e intelectuais. Enxergamos no prof. Pasquali Cipro Neto, a figura mais representativa dessa “nova gramática”.

MULTIMÍDIA Pausa lúdica: http://www.youtube.com/v/s5MCZ8BB_Ts&hl=pt_BR&fs=1

A VISÃO DA LINGUAGEM COMO UM SISTEMA E SUAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS

A língua está, segundo este ponto de vista, na consciência social dos falantes que, através da FALA, a põem em prática individualmente. Assim, desaparece a ideia de que alguns falantes detêm o saber da língua (os escritores, os intelectuais, os gramáticos, etc.) e outros, não. Segundo essa perspectiva, todos os falantes sabem a língua e nenhum a sabe completamente, pois a língua está no todo social. A língua seria como um jogo de xadrez: para jogar (usar), é necessário o conhecimento das regras e das funções de cada peça. - Fonte [5]

OLHANDO DE PERTO Mas o que os falantes sabem exatamente? 71

Sabem quais são as unidades fonológicas e morfológicas de sua língua, sabem o valor de cada uma delas e como combiná-las e, principalmente, unir essas formas em blocos sintáticos para usá-las comunicativamente com os outros falantes. Por essa perspectiva todas as línguas e dialetos, sejam eles falados pelos povos de cultura mais sofisticada ou pelas tribos mais rudimentares; pelas camadas socialmente favorecidas da sociedade ou pelas camadas populares do campo ou da cidade, todos eles são subsistemas de um sistema geral que lhes dá unidade e, enquanto tal, têm o mesmo grau de complexidade e de capacidade de cumprir sua função comunicativa. Entenda-se então que os critérios que determinarão o que é certo ou o que é errado são bem diferentes dos critérios utilizados pela gramática tradicional. Um primeiro seria o da comunicação, isto é, só é errado o que não cumpre o efeito essencial de qualquer ato de fala: a comunicação. Um segundo critério seria o de adequação, ou seja, todas as formas de falar são corretas e legítimas desde que adequadas ao contexto social no qual elas são realizadas. APÓS ESSE BREVE RESUMO DESSA PERSPECTIVA, ENUMEREMOS ALGUMAS IMPLICAÇÕES PEDAGÓGICAS DA CONCEPÇÃO SISTÊMICA DE LINGUAGEM (CLIQUE AQUI PARA LER).

1. Uma primeira observação é que, se todos sabemos falar uma língua já na idade de entrarmos na escola, o ensino da teoria gramatical é redundante para o desenvolvimento dessa aptidão; 2. Falar supõe o domínio de regras. É claro, são regras internalizadas, mas que as usamos sem a mínima necessidade de ter consciência delas. Essas regras contemplam todos os aspectos da língua falada: fonológicos, morfológicos, sintáticos, semânticos e pragmáticos, aspectos, aliás, infinitamente mais ricos do que qualquer gramática normativa pode contemplar; 3. Se, por um lado, a criança, ao entrar na escola, já conhece implicitamente a sua língua, por outro, ela não sabe ainda se utilizar de outros meios de expressão linguística, sendo o principal deles a escrita. Caberia, portanto, à escola o desenvolvimento do uso da escrita, não só o que se chama de alfabetização, mas o ensino da produção e da compreensão de todas as variedades de texto. 4. Se é verdade que a criança em idade de ingressar na escola já tem aptidão suficiente para um bom desempenho comunicativo, é também verdade que esse desempenho pode ser melhorado, mas não através do ensino da teoria gramatical. Saber definir um substantivo, um sujeito ou uma oração subordinada completiva nominal é bem menos importante do que saber usá-los. A psicolinguística [6] afirma que é possível saber usar algo sem a necessidade de saber conscientemente uma teoria desse algo, assim como muito de nós sabemos dirigir um automóvel ignorando quase completamente como ele funciona. 72

5. Quanto à questão dos dialetos, a ideia de que todos são funcionais e legítimos implica que a forma de falar do aluno, especialmente o das classes populares, deve ser respeitada, mas que é papel da escola torná-lo bidialetal (isto é,dominar, além do seu, o dialeto de prestígio na sociedade). Aliás, não só isso, mas torná-lo apto a se comunicar nas mais variadas formas de linguagem conforme as exigências do contexto. Então, não só o aluno deve dominar além de seu dialeto, o dialeto padrão na sociedade, mas também deve ele saber usar a linguagem para os mais diversos fins.

Evidentemente, a Linguística conta com uma variedade muito grande de tendências, incorporando aspectos colocados de lado em seus primórdios como, por exemplo, a função pragmática da linguagem e as realidades do sentido, do texto e da enunciação. São exemplos o Funcionalismo, a Sociolinguística, a Semântica, dentre outros. No entanto, tais perspectivas ainda resistem em abordar dimensões mais amplas como as do discurso e do contexto social, dimensões que são essenciais quando se tem por tarefa ensinar a língua. Embora o conhecimento trazido pela perspectiva científica da linguagem seja fundamental para um bom ensino, uma postura estritamente técnica diante da língua pode levar a uma prática que é indiferente aos problemas práticos que o cotidiano constantemente impõe no uso da língua. Embora seja essencial, para se falar comunicativamente uma língua, o domínio de suas regras de funcionamento, é certo que não é possível falar sem conhecer as regras sociais de interação verbal e não-verbal. E isso deve ser ensinado em sala de aula.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Antes de passar para o próximo tópico, em que apresentaremos uma visão discursiva do ensino da língua materna, assista, no link abaixo, um trecho do filme “Entre os muros da escola”: Entre os muros da escola [7] e resuma as posições em conflito (do professor e dos alunos) a cerca do objeto de ensino em questão: o imperfeito do indicativo.

FÓRUM 06 O que fazer para que os alunos passem a gostar das aulas de português? É comum crianças e adolescentes detestarem “aula de português”. Segundo Luft (1995), isso se dá porque os professores de português procuram o método mais difícil para o ensino, aquele através de regras gramaticais – que tanto aterrorizam os alunos, que saem das aulas com a sensação de que nada sabem sobre o idioma.

FONTES DAS IMAGENS 1. http://www.adobe.com/go/getflashplayer

73

2. http://3.bp.blogspot.com/_Di90QOa2Prc/SpGSab8qVaI/AAAAAAAALcI /ZxKSmuCu1q8/S1600-R/deadpoets.jpg 3. http://educarparacrescer.abril.com.br/comportamento/violencia-nasescolas-426392.shtml 4. http://www.influx.com.br/imgblog/image/grammar.jpg 5. http://2.bp.blogspot.com/_EtsyjekJFqk/Rz1zQSntc1I/AAAAAAAAAO0/9mxyghmdmU/s1600-h/logo_xadrez.jpg 6. http://pt.wikipedia.org/wiki/Psicolinguística 7. http://www.youtube.com/watch?v=vhqJ3iTi-pQ Responsável: Professor Nelson Barros da Costa Universidade Federal do Ceará - Instituto UFC Virtual

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ANÁLISE DO DISCURSO AULA 04: REFLEXÕES DISCURSIVAS SOBRE O ENSINO DO PORTUGUÊS TÓPICO 02: UMA VISÃO DISCURSIVA DO ENSINO DA LÍNGUA VERSÃO TEXTUAL

É importante ver que as duas concepções resumidas no tópico anterior, apesar das profundas divergências em relação a uma série de aspectos, devem ter o seu lugar no ensino da língua portuguesa.

O PAPEL DA GRAMÁTICA NORMATIVA.

A gramática normativa deve perder o lugar de destaque que sempre teve nas salas de aula de português, mas não deve ser descartada definitivamente do ensino escolar. Perceba o aluno que os compêndios de gramática normativa geralmente se compõem de duas dimensões:

PRESCRITIVA Indica como se deve usar corretamente a língua.

METALINGUÍSTICA Onde se tecem considerações sobre a língua e se definem categorias classificatórias das unidades componentes das palavras e das frases. Temas como concordância, regência, colocação pronominal, conjugação verbal, dentre outros, são prescritivos porque indicam como usar a língua utilizando por modelo uma variedade linguística prestigiada na sociedade por motivos socioeconômicos. Essa dimensão normativa do ensino certamente tem sua razão de ser num ensino discursivamente orientado. Os alunos precisam ser conscientizados de que existe, na sociedade, um capital linguístico socialmente valorizado, nas palavras de Bourdieu (1987). Faz parte desse capital o emprego dessas regras que, portanto, devem ser dominadas pelo aluno, ficando bem claro que não tornam seu falar intrinsecamente melhor do que o falar popular ou próprio de regiões situadas na periferia dos grandes centros urbanos. Como bem já mostraram os estudos sociolinguísticos, não há línguas ou dialetos melhores, mais bonitos ou mais corretos do que outros do ponto de vista de seus sistemas linguísticos. Por outro lado, a dimensão metalinguística da gramática normativa também pode ser aproveitada. Afinal, termos como “substantivo”, “adjetivo”, “verbo”, “pronome”, bem como “frase”, “oração”, etc., bem ou mal, já se incorporaram ao léxico da linguagem comum e é necessário que o aluno saiba do que se trata. No entanto, do ponto de vista teórico, as análises e definições são francamente insatisfatórias como têm mostrado abundantemente diversas teorias linguísticas.

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DICAS Saiba mais sobre esses temas lendo os livros:

Fonte: MACAMBIRA, José Rebouças. A Fonte: SOARES, Magda. Linguagem

estrutura morfo-sintática do

e escola: uma perspectiva social.

português: aplicação do estruturalismo linguístico. 2. ed. São

São Paulo: Ática, 1986.

Paulo, Pioneira, 1974.

O PAPEL DA LINGUÍSTICA SISTÊMICA

Já a linguística científica deve fundamentar os saberes do professor em relação à dimensão estrutural da linguagem. Essa dimensão compõe o chamado “núcleo duro” da materialidade linguística.

Trata-se da formação técnica indispensável para o profissional de letras. Seria ingenuidade pensar que uma consciência discursiva da linguagem dispensa o profissional de letras desse conhecimento, pois toda a discursividade funciona sobre essa base material da linguagem. No entanto, duas advertências cabem aqui: PRIMEIRA

Diferentemente do que é prática comum no ensino normativamente orientado, em que os conteúdos metalinguísticos são objetos de ensino, os conhecimentos obtidos pela linguística moderna não devem entrar diretamente como “matéria de aula”. Não se trata de, por exemplo, em sala de aula, substituir “sujeito” por “sintagma nominal” e ensinar aos alunos o que é um “sintagma nominal”. Trata-se de exercitar o uso linguístico quer a partir de modelos estruturais, quer a partir da observação de fatos reais de língua. Em suma, a linguística deve alicerçar o trabalho pedagógico na medida em que instrumentaliza o professor no conhecimento da estrutura da língua para que ele, conhecendo-a, possa trabalhar o aprendizado de estruturas não conhecidas, seja porque não são próprias da variedade linguística do aluno, seja porque pertencem a outro registro de língua (da escrita, por exemplo); SEGUNDA

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Saber falar uma língua materna é um conhecimento implícito, não consciente, isto é, sabemos usar a língua mas não sabemos dizer como fazemos isso. Aliás, trata-se de um saber que dispensa essa consciência. É perfeitamente possível falar uma língua sem jamais ter estudado formalmente a mesma, sem saber o nome ou as funções das unidades (“verbo”, “morfema”, “frase”, “sujeito”, “predicado”, etc.). Os professores que guiam seu ensino de língua pela gramática normativa partem da falsa premissa de que explicitar uma estrutura (Suj + Verbo + Objeto direto) ou definir uma classe de palavra (“verbo é uma palavra que exprime uma ação”) fará com que os alunos aprendam a utilizar (melhor) a estrutura ou o objeto da definição. Ao contrário, o ensino de estruturas não deve ser metalinguístico, mas EPILINGUÍSTICO, isto é, não o que parte do FALAR SOBRE A LINGUAGEM, mas do t RABALHO SOBRE A LINGUAGEM, transformando estruturas, construindo expressões a partir de modelos, experimentando novas estruturas, modificando sentidos de frases alterando sua estrutura, etc.

DICAS Saiba mais sobre o assunto lendo os Parâmetros Curriculares Nacionais – Língua Portuguesa:

Fonte [2]

Clique aqui para baixar os PCNs para o seu computador: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/livro02.pdf [3]. O PAPEL DAS DISCIPLINAS DISCURSIVAS

Falaremos agora do papel de um terceiro modo de conceber a linguagem que é o discursivo. Já no início do século passado, uma percepção discursiva da linguagem começa a se contrapor à concepção fundada por Saussure através justamente dos trabalhos de Mikhail Bakhtin. Conforme temos visto, para a Análise do Discurso uma língua não pode ser reduzida a mero sistema formal indiferente às interações sociais concretas. Assim procedendo, transformamos a linguagem em mero objeto, distanciado dos falantes e a eles imposto. Encará-la como um sistema de signos abstratos que se sobrepõe aos indivíduos seja socialmente (como afirma Saussure), seja em forma de uma estrutura mental (como afirma Chomsky [4]), significa ao mesmo tempo minimizar o poder da subjetividade e ignorar a dimensão sócio-interativa da linguagem.

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OLHANDO DE PERTO Para a Análise do Discurso, a linguagem está imbricada nas relações sociais na medida em que acompanha os indivíduos em seus mínimos atos, nas mais variadas relações que eles contraem cotidianamente e que constituem sua subjetividade, sua própria consciência. A visão da linguagem como sistema de signos não dá conta da natureza complexa do fenômeno linguístico. Assim, por exemplo, os signos, embora arbitrários do ponto de vista da relação entre significante e significado, não são arbitrários em relação aos propósitos dos indivíduos e aos efeitos que estes obtêm ao usá-los. Com efeito, quando se observa a linguagem do ponto de vista do discurso, o fenômeno linguístico assume novas dimensões. Percebe-se, por esse ângulo, por exemplo, o caráter ideológico. As palavras estão carregadas de valor, umas mais, outras menos, mas todas elas carregam em si, quando em uso, marcas dos julgamentos pessoais dos que as usam, e estes julgamentos não são puramente individuais, mas determinados pela conotação social e histórica que elas assimilaram. Uma palavra seria como uma arma: em qualquer posição que esteja está sempre apontando para uma determinada direção. Há, porém, contextos em que esta ou aquelas palavras devem ou podem ser ditas. Trata-se do que Michel Foucault (1995) denominou de formações discursivas. Haveria, portanto, formações discursivas no contexto político, no contexto jurídico, no contexto acadêmico, e também no contexto escolar. As formações discursivas são espaços no âmbito de uma área social, econômica, geográfica ou linguística de uma sociedade e época que definem as regras anônimas e históricas das condições de exercício da função enunciativa. Elas não são estanques, se interpenetrando constantemente devido às práticas discursivas dos indivíduos, que inserem seu falar em diversas formações discursivas e levam elementos discursivos de uma para outra. Por outro lado, as formações discursivas impõem que os falantes inscritos formatem seu falar em gêneros do discurso (cf. Tópico 2, Aula 2). O discurso pedagógico, por exemplo, supõe gêneros tais como a aula, o livro didático, a redação ou trabalho escolar e o individuo que dele pretenda participar deve aprender a usá-los e incorporar os papéis que eles exigem. No caso do ensino superior, aliás, tais gêneros são ao mesmo tempo o instrumento e o objeto de trabalho de tal prática discursiva. As formações discursivas também não são estanques do ponto de vista de que são determinadas historicamente, isto é, estão em constante mudança, que não é “evolução”, mas resultado da interação dialética entre o falante e o contexto social, o que foi denominado por Michel Pêcheux (1990) de condições de produção do discurso. A historicidade do fenômeno linguístico, entenda-se bem, não está aqui relacionada ao aspecto meramente físico, superficial, das palavras, mas com a própria dinâmica das relações 78

sociais. Ora, enquanto fenômeno inerentemente social, a linguagem reflete e refrata as disputas sociais. O valor ideológico dos signos, por exemplo, são sempre disputados nas formações discursivas em que eles acontecem. VERSÃO TEXTUAL

Em síntese, na perspectiva discursiva, a linguagem é focalizada como uma prática social intrinsecamente relacionada com todas as demais práticas sociais. Talvez a única que acompanha todas as atividades humanas seja como trocas lingüísticas concretas, seja como materialidade do pensamento. No tocante ao ensino, se o professor reconhece que a situação discursiva que ele enfrenta e constrói cotidianamente é uma relação de poder, ele tem melhores condições de trabalhar para equilibrar as correlações de força dentro da sala de aula. Perceberá que a escola tem de ser útil ao aluno e essa utilidade deve ser calcada sobre a própria utilidade da linguagem na vida extra-escolar.

Antes de prosseguir assista a mais um trecho de “Entre os muros da escola”. Verifique que a relação professor aluno ultrapassa a simples transmissão de conhecimento entre quem detém e quem não detém o saber: http://www.youtube.com/v/ltyRqP3h-eA&hl=pt_BR&fs=1& Os alunos do extrato fílmico que você acabou de ver demonstram surpreendente capacidade de argumentação. Embora em desvantagem por ocupar uma posição hierárquica inferior, Khoumbá se vale das palavras para resistir à autoridade do professor e fazer prevalecer seu desejo de não querer ler. É claro, trata-se de uma ficção. Muitas vezes, no entanto, quando essa capacidade argumentativa ocorre de fato, o professor tende a encará-la com antipatia. Mas é preciso ver que deve caber à escola justamente simular situações interativas que desenvolvam o poder argumentativo, persuasivo, retórico, etc., a fim de fomentar habilidades multidiscursivas necessárias ao dia-a-dia. QUANTOS DE NÓS NÃO NOS EXPRESSAMOS GRAMATICALMENTE COM PERFEIÇÃO, MAS SOMOS FRANCAMENTE DESAJEITADOS EM CERTAS SITUAÇÕES DISCURSIVAS?

Compreendendo que os signos linguísticos têm o seu valor e interpretação definidos respectivamente pelo seu uso e pelo julgamento social da comunidade discursiva, e tendo consciência de que um texto nunca tem uma só leitura, o professor não abusará da autoridade de determinar uma leitura única e unilateral de um texto. Esta deve ser consensual e cabe a ele, no máximo, tentar convencer os alunos da justeza de sua leitura. Entendendo que todo texto é produzido para obter determinados fins, compreenderá que não cabe às aulas de português apenas o estudo dos nexos linguístico de frases ou textos, mas TAMBÉM a pesquisa dos propósitos explícitos e implícitos do autor através das estratégias discursivas utilizadas.

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Veja no video abaixo como o RAPPER Gabriel O Pensador retrata, do ponto de vista dos alunos, o que estes pensam da escola atual: http://www.youtube.com/embed/BD4MMZJWpYU No caso do ensino da escrita, esse profissional deverá atinar que muitas vezes a habilidade para discorrer sobre determinado assunto é questão de saber as regras da prática discursiva em questão. O discurso científico, por exemplo, exige muitas vezes a omissão das marcas enunciativas de primeira e segunda pessoas, o emprego de tempos verbais específicos, mecanismos próprios de referências a outros textos, etc. A consciência resultante de uma ótica discursiva torna o profissional de Letras apto a discutir as questões sociais que envolvem a linguagem, porque estas só são possíveis de serem formulada enquanto questões graças ao discurso. Vejamos, por exemplo, o caso dos recentes avanços da teleinformatização da sociedade contemporânea. Caso nos atenhamos à dimensão meramente linguístico-gramatical da linguagem, esse assunto não nos interessa. Afinal, na comunicação através da Internet, o sistema da língua permanece invariável, mudando apenas o “meio de transmissão” e o “modo de execução”.

Fonte [6]

Do ponto de vista discursivo, ao contrário, muita coisa muda na linguagem quando nos dispomos a exercer a interação linguística através desses meios. Em primeiro lugar, novos gêneros discursivos são criados e consequentemente novas competências, que transcendem o simples domínio do código linguístico, são exigidas. Tais gêneros, impensáveis até pouco tempo atrás, tornam possível: A comunicação escrita em tempo real (é o caso do chat); A possibilidade de um retorno quase imediato de uma composição epistolar (é o caso do e-mail); A discussão por escrito em que se pode ler separadamente e solitariamente a intervenção de cada membro do grupo (fórum ou grupo de discussão), tudo isso podendo ser feito simultaneamente. Uma aula a que os alunos podem “assistir” a quilômetros de distância do lugar de produção, ler e reler a aula, fazer e entregar as tarefas, tudo sem sair de casa.

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Os diálogos se virtualizam, isto é, perdem a corporalidade que têm normalmente na fala face-à-face e mesmo na conversação telefônica, de modo que eu posso conversar com alguém horas sem que ela tenha acesso a minha configuração física, à minha aparência, a meu estado de espírito denunciado por minha voz, meu rosto, minha compleição corporal.

Fonte [7]

Por outro lado, uma vez que a Internet conjugou a transmissão de dados verbais com a comunicação através de imagens em movimento ou não, ela inventou uma nova forma de leitura. Ela criou uma leitura MULTISSEMIÓTICA (REFERE-SE AO QUE CONJUGA DIFERENTES FORMAS DE LINGUAGEM: ESCRITA, ORAL, PICTÓRICA (IMAGEM), CINESTÉSICA (IMAGEM EM MOVIMENTO), ETC.) , em que, ao mesmo tempo em que se lê, se vê a imagem relacionada em movimento e, se quisermos, podemos escutar essa mesma mensagem lida por um locutor. Por outro lado, diferentemente da televisão, que nos enquadra em um sistema de passividade, que não possibilita interatividade, podemos, se quisermos, interferir na notícia, questionar o jornalista e verificar, sem sair do lugar, outras versões do acontecimento. Podemos ainda enviar a notícia para amigos, especialistas, para um grupo de discussão, confrontá-la cuidadosamente com outras fontes de informação. Além disso, a notícia deixa de ser estanque na medida em que ocorre uma desmaterialização de seu suporte. Ou seja, não há mais o papel que imobiliza a notícia e que a faz durar 24 horas. Pela Internet é como se lêssemos um jornal que se atualiza a cada momento acompanhando a evolução dos acontecimentos. Ser capaz de pensar sobre questões como essas deve ser parte da competência do professor e ser igualmente objeto de trabalho e ensino em sala de aula. Uma visão discursiva da realidade da linguagem, ao levar em conta fatores vitais como a subjetividade, a história e a heterogeneidade, a ordem social, a VIDA DA LÍNGUA, como diz Bakhtin, torna o lidar com a mesma um fazer que não se restringe à órbita do instrumental. Ou seja, ensinar a língua não deve se restringir a adestrar o aluno na manipulação das estruturas gramaticais, como se ensina um trabalhador a manejar uma máquina ou uma ferramenta. Doutro modo, um ensino assentado numa perspectiva 81

discursiva deverá tornar o aluno capaz de opinar sobre as questões linguageiras, mundanas e prosaicas do cotidiano discursivo, como os estrangeirismos, as gírias, os preconceitos linguísticos, os deslizes semânticos das autoridades, a nova feição midiática da gramática tradicional, a reforma ortográfica, o português das novelas, o racismo verbal, as manipulações discursivas efetuadas pelos meios de comunicação, a política linguística para os índios, o problema do letramento e da alfabetização, problemas de interpretação das leis, etc., questões que envolvem a linguagem e que precisam ser pensadas como fatos da discursividade.

ATIVIDADE DE PORTFÓLIO Elaborar em equipe de no máximo 3 alunos uma aula de 50 minutos sobre uma das três atividades discursivas abaixo: - postar num grupo do Facebook um texto explicando qual a diferença entre as tecnologias de transmissão de dados bluetooth e wi-fi; - publicar num blog um texto de utilidade pública explicando as vantagens e desvantagens do livro digital em relação ao livro comum; - responder, em uma lista de discussão, a seguinte pergunta: alguém sabe me explicar as vantagens da tecnologia blue ray em relação ao DVD? Obs.: as atividades devem solicitar que os alunos pesquisem previamente sobre os assuntos em questão, inclusive sobre os mecanismos midiáticos implicados.

FÓRUM ERRO DE PORTUGUÊS NÃO EXISTE! [8] - escritor e linguista denuncia o preconceito linguístico e considera absurdo dizer que os brasileiros não sabem português: Leia no link acima entrevista com o linguista Marcos Bagno, publicada na Revista Educação, n. 26, e discuta com o tutor e seus colegas o tema “erro de português”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS: Finalizamos assim nosso curso, lembrando que se tratou apenas de uma introdução à disciplina em que, para cada tópico abordado, abre-se um universo imenso de estudos e pesquisas que o aluno pode desbravar. A Análise do Discurso é uma disciplina nova entre os estudos da linguagem, portanto, ainda com uma enorme quantidade de problemas a resolver. Mas o campo está aberto e não faz sentido negá-lo por questões corporativas, metodológicas ou de purismo científico. Esperamos que o aluno tenha ficado motivado a se aprofundar cada vez mais no fascinante mundo da discursividade.

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