Adalberto Barreto - O Índio Que Vive em Mim

February 15, 2023 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Adalberto Barreto Jean Pierre Boyer

O ÍNDIO QUE VIVE EM MIM itinerário de um psiquiatra brasileiro

2ª Edição - 2009

 

O   Índi Ín dioo qque ue Viv V ivee em em M Mim im  é a narrativa romanceada da vida de Adalberto Barreto, filho do sertão, professor de medicina social, psiquiatra, teólogo e antropólogo. Jean Pierre Boyer, seu colega e amigo de Grenoble, construiu este livro como um tecido reatando e religando os fios dos acontecimentos. A história de uma família, de um povo perseguido pela miséria e seca, uma tribo de índios deserdados, de uma comunidade de de excluídos vivendo na favela, universo de  pobr  po brez ezaa e difi di ficu culd ldad ades es,, mas ma s ta tam m bém bé m de amor am or e esp es p eran er ança ça.. A obra nos conduz particularmente, no interior de um vasto  proj  pr ojet etoo d e saúd sa údee m enta en tall com co m unit un itár ária ia,, in inoo vad va d or e ap apai aixo xona nant ntee que associa psiquiatras, psicólogos, médiuns, sacerdotes e curandeiros. nas sessões de terapia comunitária conduzidas  porr Ada  po A dalb lber erto to,, a ci ciên ênci ciaa ddaa med m edii ci cinn a oci o cide denn ta tall est e stáá con c onju juga gada da aos rituais afro-brasileiros. esta forma e processo terapêutico  perm  pe rmit itee qque ue cada ca da fav f avel elad adoo sof s ofrr ido id o eenn cont co ntrr e nnel elee mes m esmo mo e com co m os outros o caminho de sua própria cura. Jean Pierre Boyer acompanhou e ouviu Adalberto Barreto, Barr eto, por longos períodos, e nos oferece uma obra extraordinária, que nos revela o encontro entre dois mundos e duas culturas.  

 

Copyright © 2009 Adalberto Barreto, Jean-Pierre Boyer 2a edição revisada Direção editorial: Liana Maria Sálvia Trindade Editoração eletrônica: Terceira Margem Editora a

Revisão da 2  edição: Flávia Delgado Título original (Francês): L’Indien qui est en moi  moi   Itinéraire d’un psychiatre brésilien  brésilien   Collection: Les Passeurs de frontières Fondation pour lé Progrès de 1'Homme Ed. DESCARTES & CIE, Paris, France. Dados Internacionais de d e Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Barreto, Adalberto O Índio que Vive em Mim: itinerário de um psiquiatra  bras  br asil ilei eiro ro / Adal Ad albe berr to Ba Barr rret eto, o, Je Jean an -Pi -P i erre er re Bo Boye yer; r; [ trad tr adut utor or Liana Maria SaLvia Trindade, prefácio de Leonardo Boff]. —  Boff]. —   2 a edição revisada —  revisada  —  São   São Paulo : Terceira Margem, 2009 - 157p. ISBN 978-85-87769-49-9 97 8-85-87769-49-9 Título original: L’ indien qui est en moi en  moi 1. Barreto, Adalberto 2. Boyer, Jean-Pierre 3. Psiquiatras - Brasil - Biografia I. Boyer, jean-Pierre Título I.  03.1337 CDD. 616.890092 Índice para catálogo sistemático 1. Psiquiatras : Biografia e obra

 

Sumário Prefá Pr efácio cio ....................... .................................... .......................... ......................... ......................... ........................ ........... 6 Uma Árvor Árvore, e, uma Mulher, Mulhe r, um Padrinho Padri nho ........ ............ ........ ........ ........ ........ ....... ... 10 Canindé, Terra de Adoção...................................................... 17 De Car Cariús iús a Piramb Pir ambu.................... u.................................. .......................... ........................ ................. ..... 24 A Referê Ref erênci nciaa Patern Pat ernaa ....................... ..................................... .......................... ........................ .............. 30 Impossív Impo ssível el Banir o Índio que Vive em Mim ........ ............ ........ ........ ........ ...... 43

Da Desconstrução Material à Construção dos Vínculos V ínculos .... ........ 55 Todos os Caminhos Levam a Roma ...................................... 61 Revelação da Cidade Eterna .................................................. 78 Da Psiquiatria Psiqu iatria à Cultura Cultur a Brasileira Brasil eira ........ ............ ........ ........ ........ ........ ......... ......... ....... ... 89 A In Inconto contornáv rnável el Passagem Pass agem por Canind Canindéé ........ ............ ........ ........ ........ ........ ...... 100 Quatro Varas: da d a Exclusão Exc lusão à Inclusão. In clusão. Junho de 1992 ...... ...... 11 1166 Hoje e Amanhã. Abril de 1995 ............................................ 139 Posfá Po sfácio cio ....................... .................................... .......................... ......................... ......................... .................... ....... 153

 

Prefácio Uma Nova Santidade Política Um certo número de intelectuais latino-americanos vê-se, cada vez mais, em confronto com um terrível desafio: como colocar a sua inteligência crítica a serviço da grande maioria da população que sofre de uma atroz miséria? Normalmente, as universidades servem de “coberturas” para os quadros quad ros das classes dominantes. Elasque formam os dirigentes das grandes empresas, os advogados vão defender seus interesses, os tecnocratas que ocuparão os postos elevados da burocracia oficial. Estes são os que frequentam a escola do “Faraó”, que aprendem a lógica da dominação d ominação.. Mas, a partir dos anos 60, toda a América Latina assistiu ao aparecimento de um pensamento universitário em rebelião: o  prot  pr otes esto to cont co ntrr a a her he r an ança ça d a excl ex clus usão ão que qu e car ca r acte ac terr iz izaa as sociedades, outrora colonizadas e atualmente neocolonizadas, e a luta para liberar as cadeias que nos ligam às grandes metrópoles estrangeiras, onde se decide aquilo que nós devemos produzir ou consumir, exportar e importar, pensar ou não pensar, e onde se decide sobretudo sobre o papel subalterno que nós precisamos desempenhar no mercado mundial. Estes intelectuais nos deram uma nova nov a leitura política e social da realidade latino-americana. Eles se lançaram nas práticas de libertação e foram desde o engajamento nos partidos  polí  po líti tico coss d e esqu es quer erda da at atéé as açõe aç õess d e g uerr ue rril ilha ha;; a in insu surr r ei eiçã çãoo armada, do final dos anos 60 à metade dos anos 70. Houve  pris  pr isõõ es, es , se seqq uest ue stro ros, s, tor to r tur tu r as e assa as sass ssin inat atoo s no noss só sótã tãoo s do doss órgãos da Segurança Nacional que, bem entendido, serviam também à segurança do capital. Mas, outros intelectuais têm  proc  pr ocur urad adoo in insc scre revv er-s er -see em um p roce ro cess ssoo d e li libe berr ta taçã çãoo meno me noss violento. Inserindo-se Inserindo -se nos meios populares, utilizam o ddiálogo iálogo e a interação com a cultura dos sem posses, em um caminho de ida e volta de trocas de saber - acadêmico e popular pop ular -, tendo como objetivo criar uma consciência de liberdade e esboçar um novo sonho de democracia social. Importantes setores da Igreja estão engajados nesta dinâmica. dinâmi ca. Daí nasce uma pastoral de libertação que serviu de base à teologia da libertação,  prim  pr imei eirr a te tent ntat atii va d e te teol oloo g ia auto au toel elab abor orad adaa no te terr ceir ce iroo

 

mundo.  Nest  Ne stee cont co ntex exto to é que qu e se inse in serr em a vid vi d a e a traj tr ajet etór ória ia de Adalberto e de seu irmão Aírton Barreto. Eles representam a nova tendência dos intelectuais latino-americanos, de caráter  popu  po pula larr , li libe bert rtár ária ia e d emoc em ocrr át átic ica, a, impr im pree gnad gn ados os de uma um a fort fo rtee espiritualidade que os fazem ir ao encontro de Deus, pelas faces dilaceradas dos oprimidos: negros, índios, habitantes das favelas, enfim, das vítimas da ordem vigente. O presente livro  –   O índio que Vive em Mim   – , escrito na  prim  pr imei eirr a pes p esso soaa ppor or Adal Ad albe bert rtoo e seu se u ami a migo go e ccol olab abor orad adoo r JJea eann Pierre Boyer, é um testemunho biográfico, de primeira importância, sobre o itinerário de milhares de aliados das  popu  po pula laçõ ções es m argi ar gina nali liza zadd as e opri op rimi mida dass q ue tê têm m concretamente defendido a causa da Libertação. Adalberto vem de um meio popular, mas ele ascendeu a todos os graus da evolução cultural até a escala mais avançada da crítica e do pensamento científico europeu, sem, entretanto,  perd  pe rder er o u ren re n egar eg ar su suas as orig or igen ens. s. Ne Nele le de desc scob obrr imo im o s u m microcosmo de dimensão difícil de encontrar em um intelectual do “primeiro mundo”.  mundo”.   Sua vida é uma biblioteca. Sua formação em teologia forneceu-lhe fornec eu-lhe a provisão para sonhar sobre a co construção nstrução de um mundo feito a partir da dignidade dos oprimidos. Diplomado, também, em Antropologia, aprendeu as diversas relações que os seres humanos tecem com a natureza, com os seus sonhos, com os outros e com o divino; todas elas igualmente valiosas e constitutivas de representações do mundo e de seu mistério. Doutor em Psiquiatria, aprendeu as interações entre a doença e a cura, sociedade e ambiente, e os diversos caminhos descobertos pelos homens para curar suas chagas corporais, mentais e espirituais. Mas, em nenhum momento de sua formação universitária ele esqueceu o seu ser interior, Caboclo e Sertanejo, ao contrário, contrári o, fez das situações históricas sociais por ele vividas uma fonte de aprendizagem, de questionamento de outros paradigmas, contrários às raízesintroduziu-se de sua realidade humanados e cósmica. Come grande empatia, na escola rezadores curadores, e aprendeu a sabedoria centenária de seus terapeutas populares, sabendo articulá-las na ciência

 

moderna. O movimento integrado de Quatro Varas, em Fortaleza, reúne as farmácias vivas, a casa de curas e muitos outros lugares, mostra a fecundidade destes laboratórios de  parr ad  pa adig igm m as te terr apêu ap êuti tico cos, s, p ar araa ben be n ef efíc ício io do povo, pov o, r es espe peit itad adoo em sua cultura, crenças, valores e sonhos de um mundo melhor. Adalberto Barreto não nã o traiu as suas raízes cristãs. Estas raízes são mostradas nas forças místicas que inspiram os engajamentos que vão além de qualquer lógica de interesse  pess  pe ssoa oall o u de auto au topr prom omoç oção ão.. Se há sant sa ntos os que qu e desc de scem em ao inferno, Adalberto é um destes. Não se trata de canonizá-lo nem de recuperá-lo na Igreja Grande-Instituição. Trata-se objetivamente de conhecer um outro tipo de santidade, em certo ponto ausente na história da Igreja e tantas vezes encontrada nos caminhos das igrejas, nas comunidades de  base  ba ses, s, n as past pa stor orai aiss soci so ciai aiss e nos no s nnum umer eros osos os eng engaj ajam amen ento toss ddee leigos, homens e mulheres e que encontra em Adalberto uma feliz expressão: aum santidade política. estalibertação santidadepolíticoque faz do cristianismo importante fatorÉ de social, e, aberta para uma plenitude, somente atingida no Reino de Deus, ela começa nas relações conflitantes da sociedade. Encarna-se em milhões de pobres e humildes, está atenta para livrar o menor resquício de existência que ainda resista à dominação e que procure a sua liberdade e a sua  plen  pl enit itud ude. e. Sem falsa modéstia, este livro é edificante. Ele nos faz acreditar que nem tudo perdido no interior das pode igrejas, das universidades, dos está meios intelectuais. Tudo se articular para defender a vida daqueles que estão condenados a morrer antes da hora. Tudo pode ser um instrumento de liberdade e de liberação para estes. Como também para os outros: existe no caboclo, no universitário, no sertanejo, no devoto do Padre Cícero, e em um apaixonado de Cristo como Adalberto Barreto, o fogo interior que conduz à compaixão  pelo  pe loss sofr so frim imen ento toss do p ov ovo, o, te terr n ura ur a pelo pe loss hu hum m il ildd es, es , có cóll era er a sagrada contra as injustiças sociais e paixão pela vida e liberdade. Este livro testemunha que tudo pode pod e ser encontrado no itinerário humano e espiritual de um psiquiatra do  Nord  No rdes este te que qu e perm pe rmit itiu iu que qu e o índi ín dioo n el elee pud pu d esse es se na nasc scer er totalmente, unindo o seu destino ao dos pobres de seu povo.

 

  L EONARDO BO FF   Rio de Janeiro, dia da festa de Todos os Santos, 1995.

 

Uma Árvore, uma Mulher, um Padrinho P adrinho   Qual o objetivo de extrair a história de uma pessoa; o fragmento da saga de uma família; o momento de aventura ave ntura de um povo? Onde, quando, como e com quem começar a narrativa romanesca de um homem em busca de sua identidade? Decidi começar por um episódio de minha família, como reveladora das profundas raízes que me à terra Sertão; a cultura nordestina constitui um prendem referencial rico do de sentido, em minha ação cotidiana. Estamos em meados do verão de 1891. Um vento de liberdade, de emancipação, de modernidade sopra sobre o Brasil rico do Sul: a escravidão foi abolida em 1888 pela princesa Isabel; a República decretada no ano seguinte. O desenvolvimento econômico e industrial decola o seu voo. Mesmo a pequena vila perdida da caatinga sertaneja, berço da minha família  pate  pa terr na na,, p arec ar ecee agor ag oraa at atin ingi gida da p or est es t as m udan ud ança ças. s. A esperança de encontrar trabalho na cidade ou no Sul, liberta de ameaças das secas, fornece para alguns a coragem de partir.  Nest  Ne staa noit no ite, e, Mari Ma riaa das da s Graç Gr aças as d es esco cobr bre, e, co com m o se o vi viss ssee p el elaa  prim  pr imei eirr a vez v ez,, o jjuu azei az eirr o, ou o u a árv á rvoo r e do jjuu á, situ si tuad adaa nnaa entr e ntrad adaa da vila aonde ela vai furtivamente se colocar ao abrigo dos olhares indiscretos. Todavia, ela sempre conheceu esta árvore, amiga de todos, abrigando no meio do dia, em sua sombra benfeitora, os tropeiros e vaqueiros. Quando o sol equatorial é como chumbo, antes do Angelus, a árvore é sede de numerosas transações de questões familiares ou comerciais, cobertas coberta s pelos cantos das aaves; ves; as suas folhagens, ao cair da tarde, são cúmplices das confidências amorosas. Maria das Graças espera José, o rapaz que ela ama, e sabe que este dia ficará sempre gravado em sua memória. Tomou conhecimento de que seu pai lhe havia encontrado um bom marido, um bom partido, honesto, trabalhador e com a reputação de ser um bom rapaz. Esta novidade novida de lhe traz horror, como se, ante o perigo todo, o seu ser estivesse se colocado em estado alerta. com Comoso gestos olhar medidos fixo, estendido o interior de sidemesma, de uma para pessoa revestida e movida movid a por uma determinação à toda prova, ela se aproxima da grande árvore. Em contato com a sua casca

 

rugosa, ela sai do estado de tensão quase doloroso em que se encontrava como enclausurada. A presença familiar do  juaz  ju azei eiro ro a r ea eani nima ma,, e el elaa se põ põee a olha ol harr co com m in inte terr esse es se as su suas as folhas verdes, sombras armadas de espinhos que protegem os n inhos das aves, suas frutas amarelas, “laranjas de vaqueiros”, vaqueiro s”, que tiram a sede, porém são insípidas. Ao examinar a árvore, as suas lembranças desfilam, como se a árvore libertasse os vestígios, vestígio s, as marcas deixadas nestes 15 anos passados na vila. Esta quimera a enternece. Ela já sabe que uma página foi virada e que estes instantes instante s estão entre os últimos que passará nestes lugares. Refletindo novamente sobre esta árvore original do Sertão, ela retira de sua imagem forças e reconforto ao contemplá-la. Nesta árvore, ela encontra o símbolo da resistência à adversidade, adversid ade, pois é a única árvore do  Nord  No rdes este te que qu e perm pe rman anec ecee verd ve rde, e, qual qu alqq uer ue r qu quee seja se ja a es esta taçã çãoo ou a pior das secas, graças às suas sua s raízes muito profundas. Ela fará desta árvore o seu modelo: não é no mais profundo de si mesmo onde encontr para à vontade de  pa  pai, i, def de f en ende derrencontrará a sua su a vará ida, id a,recursos sua su a esco es colh lha, a, resistir se seuu am amor or po porr Jo José sé? ? seu Isto foi dito e decidido nesta noite de 6 de janeiro, Dia dos Reis. Isto teria podido fazer arrepiar a grande árvore, da copa às raízes, como ocorre no momento do equinócio, quando sopra o vento do norte carregado de sal e iodo. Maria nada disse a seus pais, não deixou transparecer de qualquer forma as suas intenções; isto de nada serviria. Nesta época, eram os pais que decidiam e arranjavam entre eles, o casamento de seus em conta todos. Passados seisfilhos, meses,levando Maria recebeu de osuainteresse família de os festejos de seus 15 anos, conforme a tradição nordestina, cercada de faustos dignos de coroamento de uma prin princesa. cesa. Ela deveria agora aceitar como esposo a pessoa escolhida pelo seu  pai.i. Se  pa Send ndoo a mais ma is ve velh lhaa de 12 ir irmã mãos os e irm ir m ãs, ãs , de devv eria er ia ser se r a  prim  pr imei eirr a a se casa ca sar. r. O dia do casamento foi marcado e os preparativos encaminhados. As duas famílias encomendaram os violeiros  parr a toca  pa to care rem m d ur uran ante te o banq ba nquu et etee e do dois is sa sanf nfon onei eirr o s p ar araa tocarem no baile que seguiria. Cada pessoa prepara com alegria suas roupas para o casamento. Apenas Maria parecia ausente, um pouco triste. Acreditavam que ela estivesse  preo  pr eocu cupa padd a ccoo m a conf co nfec ecçã çãoo de d e sseu eu vest ve stii do, que qu e su suaa mãe m ãe e ttia ia

 

costuravam, ou estivesse entristecida com a ideia de deixar a sua vila e sua família para ir viver com seus futuros sogros em outro vilarejo, mais ao norte. Na véspera das núpcias, enquanto os homens sacrificavam uma vaca para as refeições do dia seguinte, as mulheres faziam os preparativos na cozinha para pa ra a feitura de doces e o indispensável alua,  bebida indígena, que marca as grandes ocasiões. Durante a noite, Maria e José se encontraram pela última vez sob as folhagens do juazeiro. Cada um trazia uma sacola cheia de alimentos  parr a a viag  pa vi agem em e la lamp mpar arin inas as par pa r a se gu guia iarr em na es escu curr id idão ão..  No ca cami minh nho, o, v ol olta tarr am-s am -see p el elaa ú lt ltim imaa v ez pa parr a olha ol har, r, na nass  prim  pr imei eirr as lu luze zess d o dia, di a, a g r and an d e árvo ár vorr e verd ve rdee ce cerc rcad adaa por po r  pequ  pe quen enas as casa ca sass bran br anca cas, s, com co m te telh lhas as v erme er melh lhas as imer im ersa sass na nass névoas acinzentadas de um fim de verão sem chuvas. Enfeitado com um chapéu de couro, rosado, com as bordas estreitas de vaqueiro e vestindo a sua roupa mais bonita, José, com expressão grave e olhar iluminado pela felicidade que o esperava, conduz cond uz o jumento que lavará a sua M Maria aria vestida de noiva para um outro juazeiro. Eles escolheram, para se casar e se instalar, a vila do Sertão que traz o nome de sua árvore fetiche.  No in iníc ício io d a m anhã an hã segu se guii nt nte, e, quan qu ando do desc de scob obrr iram ir am o desaparecimento da noiva, a família e todos da vila ficaram abalados. O vigário da paróquia, o noivo acompanhado de seus pais, assim como os padrinhos e as testemunhas, chegavam: “Nós não vamos transformar um dia de alegria em um dia de tragédia declara decidido decidid o o pai de“Eu Maria; dirigindo-se dirigindose para eotristeza”, seu compadre, e acrescenta: lhe  prom  pr omet etii qu q u e o seu se u fi f i lho lh o se s e casa ca sarr ia com co m um u m a das d as mi minh nhas as f il ilha has; s; a mais velha fugiu e, portanto, não honrará o meu compromisso. Proponho que a Anita, minha segunda filha, case com o seu rapaz”.  rapaz”.   Assim, teve lugar o casamento. Anita e seu marido foram muito felizes e tiveram muitos filhos. Maria das Graças nunca mais retornou à sua vila natal e nunca mais ereviu seus qual pais. era Com 15 anos, havia decididodea sua vida sabiaosagora o preço de sua liberdade, sua emancipação: voltar as costas para a sua vila, para a sua família, deixar para o passado esta parte de sua história, para

 

atingir o futuro que escolheu. Ao chegarem a Juazeiro, antes mesmo de visitar o primo irmão de José, em cuja casa eles pretendiam se hospedar, dirigiram-se para a igreja de Nossa Senhora do Socorro. Encontrando o Padre Cícero, pediram que ele consagrasse a sua união: ser casado por este padre representava a promessa garantida de felicidade futura. Ambos já haviam muito ouvido falar deste padre legendário, legendário, que escolhe escolheram ram para ser a gora a sua família. Eles, que não tinham mais conselheiro, protetor, em suma, tutor, para se apoiarem e se manterem. Nunca  pens  pe nsar aram am o u imag im agin inar aram am que qu e el elee se ap aprr es esen enta tarr ia ante an te seus se us olhos. Não é que tivessem se decepcionado com esta sorte, mas, ao contrário, ficaram surpresos. Imaginamos sempre os grandes homens como belos, de porte altivo e orgulhoso. O indivíduo que os acolhe com simplicidade e terna compreensão era de pequena pequ ena estrutura e corcunda, o seu corpo musculoso e espesso sem ser gordo, testemunhava uma força ecom vivacidade comum,Oatravés de sua batina amassada, manchaspouco e remendos. que impressionou mais os dois noivos, foi o rosto deste homem: dir-se-ia dir -se-ia que fora talhado em uma árvore do pomar tanto os vínculos de alegria como os de esforços marcavam o seu rosto cansado, queimado pelo sol como se fosse veios de certas plantas. Colocada entre os ombros, a sua cabeça sem pescoço, difundia uma doce expressão de plenitude; a boca carnuda e gulosa; as palavras emitidas com voz vibrante como proveniente das rochas, transmitem força ao receptor. Quanto ao seu olhar e as suas mãos, Maria nunca experimentara ou imaginara que pudesse haver tanta manifestação de amor, determinação e calor. A força interior que reside neste homem a teria certamente inquietado se ela não tivesse percebido que estava inteiramente a serviço de uma grande generosidade.  Nãoo h avia  Nã av ia dúvi dú vida das, s, este es te home ho mem m q ue el eles es ado ad o ta tarr am como co mo  padr  pa drin inho ho,, ou o u mai m aiss com c omoo se s e apen ap enas as eele le fo f o sse ss e ttod odaa a sua su a ffam amíí li lia, a, é um ser excepcional, um “santo vivo”, como as pessoas da vila e de todo o Nordeste o designam. Com efeito, o padre Cícero Romão Batista, até hoje denominado “Padim” ou “Padrinho Ciço”, é considerado como santo protetor dos fracos e oprimidos, o padrinho dos  pobr  po bres es do Nor No r dest de ste. e. Mito Mi to vivo vi vo,, el elee é tã tãoo conh co nhec ecii do n o Bras Br asil il

 

como o célebre cangaceiro Lampião. Ele permanece, também, no pensamento coletivo como um verdadeiro cangaceiro que luta, tendo apenas como armas a sua fé e tenacidade, símbolo da resistência do povo contra os  pode  po derr os osoo s com co m dinh di nhei eirr o e gran gr ande dess fa faze zend ndas as e co conn tra tr a as autoridades políticas ou religiosas. O início de seu renome deve-se ao conflito que lhe opôs há alguns anos ao bispo de Fortaleza, tornando-o um verdadeiro herói, objeto de  perr eg  pe egri rina naçã ção, o, r espo es pons nsáv ável el por po r cura cu rass m irac ir acuu losa lo sas. s.  Na miss mi ssaa do dom m inic in ical, al, n o mom mo m ento en to da comu co munh nhão ão,, uma um a d e suas su as fiéis, a beata Mocinha, vê assim como, todas as pessoas  pres  pr esen ente tes, s, o sang sa ngue ue cont co nter er d a hóst hó stia ia q ue o p adr ad r e lhe lh e iria ir ia oferecer. Todos gritaram “milagre”, nos domingos seguintes, assistiu-se o mesmo fenômeno. A novidade abalou o país como um tremor de terra. Os curiosos, estudiosos, e  jorn  jo rnal alis ista tass aflu af luír íram am de toda to dass as part pa rtes es,, vi vind ndoo se mi mist stur urar ar aos ao s fiéis para testemunhar a ação divina. Ante estes acontecimentos, Juazeiro tornou-se o lugar onde o sangue de Cristo havia sido vertido, uma terra de milagres. As autoridades eclesiásticas foram pedir ao Padre para declarar que tudo o que se passara passar a havia sido um embuste; arguiam que seria impossível o sangue de Cristo verter para os analfabetos analfabeto s do campo. Devido a sua recusa em obedecer, foi suspenso e  post  po stoo como co mo r eneg en egad adoo pela pe la Ig Igre reja ja.. Dian Di ante te di dist sto, o, to todo doss os se seus us atos aumentaram de importância aos olhos do povo: ele  pass  pa ssou ou a ser se r o seu se u r epres epr esen enta tant nte, e, expr ex pres essã sãoo e m odel od elo. o. A legenda e os numerosos cânticosmilagres, dos peregrinos peregri que olheautor são consagrados relatam os múltiplos dosnos quais e todas as ações por ele empreendidas em favor do povo. DizDiz se mesmo que o Padrinho está sempre vivo e que ele simplesmente se ausentou por algum tempo de Juazeiro. Retornemos ao episódio de Maria e José. No final de seu  prim  pr imei eiro ro en enco cont ntrr o, Pa Padi dim m Ciço Ci ço l he dá a sua su a b ençã en çãoo desenhando, com o polegar, o sinal da cruz, nas suas fontes. Ele os casará: a cerimônia ocorrerá dois dias depois, tendo como testemunhas o sacristão e o primo de José. união, nasceram três filhos, João, Pedro e Maria. Um Desta ano após o nascimento de sua pequena pequen a Maria, José foi vítima de um grave acidente na cooperativa de algodão na qual trabalhou desde a

 

sua chegada a Juazeiro. Morreu alguns dias depois destes ferimentos, deixando Maria das Graças, sua esposa, só, desamparada, com três filhos. A seca foi violenta. Impossível encontrar um emprego. Assim, desamparada, sem recursos, ela vai acompanhada pelos seus três filhos e pedir conselho ao Padre Cícero. Após relatar a morte de d e José e as dificuldade dificuldadess que encontra para alimentar os seus filhos, expõe o seu desejo de ir morar em Canindé, cidade de peregrinação, consagrada a São Francisco de Assis, o santo que acolhe as pessoas  pobr  po bres es.. A pres pr esen ença ça apen ap enas as do Pa Padr dree já lh lhee traz tr az co conf nf or orto to.. El Elee se aproxima das crianças, olha-as, depois pegando a pequena menina em seus braços, e com a voz ao mesmo tempo temp o calorosa e com rigor, dirige-se dirige-se à mãe da criança: “Maria “Mari a você é forte e corajosa, mas o que há em você de melhor, o que me impressionou desde o primeiro instante em que lhe vi, com o seu José, é a brava determinação que lhe reside para defender aquilo que tem valor para os seus olhos. Parta, tome o caminho com seus Euo não  pr  preo eocu cupa paçã ção o co com mosvo você cês. s. Pois Pofilhos. is é mesm me smo em Can Catenho n in indd é qqualquer ue você vo cê será feliz e que sua família criará raízes”. Depois, colocando docemente a mão sobre a cabeça da pequena, acrescenta: “Esta aqui, a Virgem Maria tem necessidade dela no Paraíso.  Nãoo m e espa  Nã es pann ta tarr á se el elaa lhe lh e d ei eixa xarr an ante tess mesm me smoo d a sua su a  part  pa rtid ida” a”..   As predições do Padim se realizaram: a pequena Maria foi tomada de febre e convulsões, e, no dia seguinte e este encontro, ela morre sem que nada nem ninguém pudesse fazer qualquer coisa que fosse por ela. Alguns dias mais tarde, a família Barreto, enlutada, instala-se em Canindé, em um hotel, onde Maria, logo que chegou, encontra trabalho. Os anos passam, os meninos crescem. João tem agora 18 anos. Ele participa à sua mãe, o seu projeto de partir para fazer fortuna na Amazônia; sonho de muitos jovens desta época. Fala-se muito sobre a borracha e minas de ouro existentes a céu aberto. Ele ficou dois anos lá, dois anos de pesadelos, trabalho extenuante, doenças, febres, violência e sem oportunidade de retorno encontrar uma companheira fundar uma família. Em seu a Canindé, encontra para Sinhá, casam-se alguns meses mais tarde. João e Sinhá tiveram seis filhos, o segundo chamar-se-á Hercílio, meu pai.

 

Esta história me foi contada inúmeras vezes, durante a minha infância. Ela representa para mim, como para toda a família, uma legenda, um mito, uma espécie de referência cultural familiar. Ser um Barreto é, em suma, ter sido feito com esta matéria particular que caracteriza o Padim, o Juazeiro e minha  bisa  bi savó vó:: aq aque uela la q ue r es esis iste te às pris pr isõe õess do ambi am bien ente te,, te tenn az, az , p or vezes teimosa, para defender sem fraquejar, como guerreiros armados, seus únicos valores, seu povo e a sua liberdade.

 

Canindé, Terra de Adoção   Fazia um ano que Isa e Hercílio estavam casados e habitando esta pequena casa branca, na entrada de Canindé, lugar onde  pela  pe la pri pr i me meir iraa vez ve z el eles es se enco en cont ntra rarr am, na trav tr aves essi siaa do rio, ri o, quase sempre seco, que margeia a cidade. Com efeito, já se  pass  pa ssar araa um an anoo que qu e esta es tava vam m casa ca sado dos. s. Al Algu guma mass se sema mana nass ap após ós as núpcias, Isa, seguindo a tradição do Sertão, espera seu  prim  pr imei eiro ro f il ilhh o. Cal Ca l culo cu louu que qu e el elee deve de veri riaa n as asce cerr ante an tess de se seuu aniversário de 19 anos. A gravidez se passa sem transtornos. Período este que foi para ela de grande felicidade, ocupada em enfeitar a sua casa e em fazer o enxoval enx oval do bebê e também em sonhar com esta criança que viria nascer, nasc er, escolher o nome da criança e os padrinhos e madrinhas de batismo. Em suma, um tempo em que, com seus sonhos, ela se prepara para ser mãe. Com a ajuda de sua mãe, de Lúcia e da vizinha (que era rezadeira e na ocasião exercia o ofício de parteira), pôs no mundo um menino denominado Absalão. Uma bela criança, viva, osólida, de cabelos negro s passa negros como os de seucólicas pai. Cinco dias após nascimento, a criança a sentir e acaba morrendo, apesar dos esforços de todos; as preces da família, os passes rituais de Lúcia e mesmo os medicamentos dados  pelo  pe lo f arma ar mace ceut utaa loca lo cal.l. Após ter sofrido três dias de diarreia e de crises incessantes, a criança morre de desidratação aguda, como muitos  pequ  pe quen enin inoo s nor no r dest de stin inoo s, sem se m qu quee a fa fata tall idad id adee lhe lh e sir si r v a pa para ra grande coisa. Isaovaç eação Hercílio não lhes deu  pr  prov ão,, t ão dur du r amen amcompreendem ente te.. Ante An te este es teporque go goll pe, pe ,Deus Isa Is a ac acr r edit ed itav avaa esta que qu e ficaria louca, de tanto que sente pena, revolta e ódio face a natureza ingrata do Sertão e a injustiça que os atingiu. Sem sua fé e ajuda de seu marido, não teria sobrevivido à sua infelicidade. Eis que 10 dias após seu filho ser enterrado, Isa retornou a seus hábitos hábito s de sair, de se sentar em frente à casa antes ant es do cair da noite. Espera seu marido, no momento em que o sol e o vento, por dos terem durante o diaum inteiro terra, a fatigados pele e a boca homen homens, s, deixam poucofustigado de aragema  parr a se r es  pa espi pirr ar ante an tess d a noit no ite. e.  Nest  Ne staa tar t arde de,, Her H ercí cíli lioo ch c h eg egou ou ma mais is cedo ce do do que qu e de d e co cost stum ume, e, de

 

seu trabalho no Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS); de tanto que estava esta va inquieto para rever a sua mulher que, presa pelo desespero, perde o apetite e o sono. Ambos aproveitam silenciosamente o momento de calma; ela se senta em um tamborete de madeira, mad eira, defronte à porta; ele se  bala  ba lanç nçav ava, a, li lige geir iram amen ente te apoi ap oiad adoo so sobr bree a r ede ed e susp su spen ensa sa,, em frente à janela, mordendo seus bigodes, cada um com seus  pens  pe nsam amen ento tos. s. E le less se olh ol h ar aram am p or um mome mo menn to, to , pr proc ocur uran andd o um e outro, na face do ser amado, um sinal, um conforto. Isa sente uma profunda ternura misturada de desespero, lembrando que foram estes seus cabelos negros ondulados e seus olhos brilhantes que fizeram bater seu coração, da  prim  pr imei eirr a vez v ez que qu e el elaa o viu v iu na miss mi ssaa domi do mini nica cal.l. E le t amb am b ém se recordou dessa primeira vez. Ela parecia tão doce, tão terna, com a pele tão branca, tão delicada, com seu escapulário dobrado e trazendo a grande medalha das filhas de Maria.  Nunc  Nu ncaa ele el e ha havi viaa sent se ntid idoo ta tant ntaa inti in timi mida dade de,, su suaa ga garr g anta an ta esta es tavv a apertada como se tivesse medo: ele se sentia ao dominado apaixonado. O latido de seu cão lhes reconduz presente:e uma nuvem de poeira chama a sua atenção, pois era raro ver qualquer movimento que seja, a esta hora, quando todo o ser ou toda a coisa parece estar em suspense, em repouso. Um  jum  ju m ento en to ma magr gro, o, con co n du duzi zido do por po r u ma jo jove vem m mul mu l at ata, a, visivelmente esgotada, dirige-se ao local. O asno traz sobre o dorso duas cestas. Chegando diante da casa, a mulher pede um pouco de água fresca para ela e suas duas filhas. Ela estava vestida com a tradicional roupa dos  perr eg  pe egri rino noss fr fran anci cisc scan anos os.. Vest Ve stid idoo m arr ar r om, cer ce r zi zido do com co m retalhos ovais, na maior parte part e de cores brancas, rosas e verdes, retalhos remendando a vestimenta que ela decidiu trajar durante um ano como expressão de seus votos. Isa e Hercílio  pude  pu derr am en entã tãoo p erce er cebe berr as cria cr iann ças. ça s. Ca Cada da um umaa d el elas as,, encolhida em uma cesta, estava pesadamente adormecida, sem dúvida mais pelo calor do que pelo embalo do animal. Após se restabelecer, a mãe das duas filhas encontra forças  parr a ffal  pa alar ar.. D Dee iim m edia ed iato to,, a n egru eg rura ra de sua su a ppel elee ret r etev evee a at aten ençã çãoo de Isa. A fronte talhada pelas rugas, o rosto e os cabelos embranquecidos de poeira, os olhos brilhantes, ela se apresenta: “Eu me chamo ch amo Maria, venho de muito longe. Faz seis meses que eu não tenho notícias de meu marido. Ele

 

deixou a nossa vila v ila para fugir da seca. Ele havia me prometido vir nos buscar, logo que encontrasse trabalho. Mas, já perdi a esperança de que ele retome um dia. Encontrando-me só, abandonada, sem meios de existência, decidi também fugir com meus filhos para encontrar como viver. Graças ao meu protetor, São Francisco de Chagas de Canindé”. Acentua fechando em suas mãos o rosário: “Já faz duas semanas que procuro tra ba tra balh lhoo , mas com as crianças torna-se muito difícil. Querem me empregar, mas não com os meus filhos. Por esta razão eu decidi confiá-los para pessoas de bem que possam alimentálos e lhes dar uma boa educação, coisa que eu não poderia fazer”!   fazer”! Depois, detendo-se um instante de falar, para tomar fôlego e também um pouco de água, olha com atenção e ardor Isa e Hercílio e lhes pede com uma súplica no olhar se eles aceitam ficar com uma de suas filhas. Isa é tocada pelas lágrimas. Diz que compreende e que não pode aceitar esta proposta, porque ainda não estava restabelecida da infelicidade de ter perdido o seu filho. Uma longa conversa se trava no meio da qual Isa acaba sendo convencida por seu marido, mas principalmente  porr Maria  po Mar ia e pelo pe lo r osto os to en ente terr n ecid ec idoo d a cri crian ançç a mai m aiss jove jo vem, m, em adotar esta pequena menina, de oito meses chamada Raimunda. Mas no momento de se separar, as duas irmãs se  põem  põ em a chor ch orar ar,, r ecus ec usan ando do a se la larg rgar ar.. T er erez ezin inha ha,, a irmã ir mã mais ma is velha, dois anos, de Raimunda, aperta bem forte a caçula em seus braços. Ante esta pungente, meus na paiscasa têmaoa lado, ideia de propor à minha avó cena materna, que morava de adotar Terezinha. Assim, a irmã da minha irmã mais velha tornou-se a tia e por consequência minha tia também. Após a Raimunda, meus pais começaram uma série de nomes em “A”, interrompida, após Absalão, com a adoção de minha irmã. Assim, segundo a tradição do Sertão que quer que os nomes das crianças tenham um ar de família, começando ou terminando da e em mesma vieram 10 ao crianças: mundo sucessivamente cada maneira, ano, pontualmente Antônio, o militar; Adalberto, vosso servidor, nascido em 3 de junho de 1949 em Salão, perto de Canindé; em função das

 

 pe r eg  per egri rina naçõ ções es prof pr ofii ss ssio iona nais is de meu me u pai, pa i, n as di diff eren er ente tess vi vila lass do Sertão, para construir uma grande barragem de água, nascem em seguida. Airton, advogado da Associação dos Direitos Humanos, que mora na favela de Pirambu; Armando, Arm ando, especialista em próteses dentárias; Abelardo, engenheiro; Aldeíde, secretária do Centro de Estudos da Família; Alice, nutricionista; Aurélio, cineasta e, enfim, Anchieta, cabeleireiro e Augusto, o caçula, que é funcionário público. A história destes dois últimos irmãos, falsos gêmeos, porém nascidos apenas com um mês de distância entre um e outro, é singular. Meus pais haviam voltado a morar em Canindé e minha mãe estava para dar à luz: a Anchieta. Meu pai, uma tarde foi comprar uns remédios para as crianças, quando percebeu que uma jovem mulher grávida, de maneira evidente, com mais de seis meses de gravidez, estava a pedir com insistência e com a força do desespero, um veneno abortivo para terminar esta gravidez indesejável, que ela chamava de forma crua: “esta m...”. Acrescentava, para convencer ao farmacêutico e a assistente, que ela vivia da  pros  pr osti titt u iç ição ão e não nã o pod po d ia ofer of erec ecer er a es esta ta cr cria iann ça um umaa vi vida da digna. Uma viva discussão discu ssão se segue na qual meu pai participa com fortes argumentos, aparentemente sem resultados. Em desespero de causa, movido por esta cena, não suportando a ideia de que ela pudesse fazer uma um a besteira para chegar a seus fins, meu pai promete cuidar do bebê desde que ele nascesse. E apresenta o seu endereço em um cartão. Isa, alguns dias após o nascimento seu filho elesahaviam que seria o último),de aprova sem (que reservas atitude combinado do marido,  pens  pe nsan ando do co como mo ele e le,, qu q u e esta es ta cri c rian ança ça ffic icar aria ia aapp enas en as al algu guns ns dia d iass com eles, o tempo de encontrar uma família capaz de os acolher. Isa, como o resto da família, apega-se a esta criança, tão loira e branca como Raimunda era morena. Esta última,  pela  pe la sua su a adoç ad oção ão,, inic in icia iarr a a ir irm m anda an dadd e e, por po r su suaa v ez, ez , terminava. Pode-se Pode -se então compreender porque Canindé é para a nossa família, e para mim mesmo, o símbolo da terra da adoção. Detenho nesta imagem, ontem, hoje, todas estas lembranças que bruscamente me retomam. Em uma quinta-feira, à tarde, durante a sessão de terapia comunitária da favela “Quatro Varas”, Maria das Chagas, uma mulher alta, magra, trazendo

 

uma camisa florida e um avental quadricular, bem novo, começa a contar a sua infelicidade: “Eu me sinto sinto muito só, sem amigos. As pessoas fogem de mim; meu marido me bate quando bebe, eu não tenho a impressão de ser uma mãe má, porém, às vezes, tenho o sentimento de que meus filhos filho s não me amam. Eu nunca soube o que é ser uma mãe. Penso que isto ocorre porque porq ue minha mãe morreu algumas semanas após meu nascimento e eu nunca conheci meu pai. Minha tia-avó que me recolheu sempre se recusou a falar sobre meus pais”. Ante as lágrimas  lágrimas   que acompanhavam acompanh avam este depoimento, depoimento, outros participante participantess evocam a sua própria história. Francisco José, um homem baixo, com ventre arredondado, como são a maioria dos nordestinos, pede o microfone: “Eu compreendo o seu sofrimento, mas não estou certo de que ele é causado apenas pelo fato de você não ter conhecido os seus  pais  pa is.. E u v ou fa fall ar enq en q ua uann to pai pa i adot ad otiv ivo: o: enco en cont ntre reii a mi minh nhaa filha aqui presente, que tem t em agora, 14 anos, em uma lixeira no meio dos ratos. Ela teria todas as razões razõe s lógicas para se sentir infeliz. Porém, ela é a alegria de toda a família e eu não acho que ela se sinta triste ou perturbada perturbad a por este fato, e não são na verdade os amigos que lhe fazem falta”. Depois, dirigindo -se à sua filha: “Diga o que pensa, eu não estou na sua pele, dificilmente posso dizer as coisas que você pensa”. Maria de Lurdes, uma morena bonita, sorr idente, idente, prossegue: “É verdade, eu nunca me senti desprezada ou um lixo porque meus jogaram lixeira, isto é problema deles, pais não verdadeiros meu. Para me mim, meus na pais são aqueles que me amaram e me reconheceram verdadeiramente verdadeir amente como eu sou. Eu adoro meu pai e minha mãe, por nada deste mundo eu queria mudar”.   mudar”. Antonieta pede então a palavra: “Eu sei o que é se sentir abandonada. Eu nunca me senti tão desesperada e só no mundo, quando da morte de minha mãe; justamente no momento em que a gente iria chegar na favela. Eu tinha 12 anos, meu irmãozinho irmãozinh o tinha apenas três anos; eu não conhecia ninguém e nem tinha coragem de pedir água e um pedaço de  pãoo par  pã pa r a algu al guém ém,, d e ta tall m odo od o qu quee eu m e sent se ntia ia in inff el eliz iz e com co m vergonha de estar sem pais. Mas, tudo mudou quando a lguém nos perguntou sobre quem nos havia trazido, e como eu disse

 

que só tinha meu irmão como família, ele me perguntou se eu aceitava agora fazer parte de sua família, de morar junto e tudo dividir. A partir deste momento, foi inacreditável o que eu senti, minha tristeza se transformou em grande alegria, nós não estávamos mais abandonados, nem a sós com a nossa tristeza de termos perdido mamãe, nós tínhamos de novo uma verdadeiraa família”. Ela prosseguiu dirigindo verdadeir dirigindo--se a Airton: “Eu me lembro, como se fosse ontem do momento de nosso encontro. Você vestia uma velha calça azul, descosturada e uma camisa branca. Olhou para as bolhas dos pés de meu irmão, ocasionadas pelos bichos-de-pé, e nos disse sorrindo: Você vê seus pés, estas pequenas bolhas rosas, se você não cuidar, elas vão florir e fazer de seus pés um verdadeiro  jard  ja rdim im”. ”.   Ouvindo esta sucessão particular de histórias me veio a ideia de reuni-los. Eu pedi então a meu vizinho para me ajudar a transportar a mesa, que servia para se escrever os ofícios dos trabalhos dos Direitos Homem, e para colocá-la da no Associação meio da palhoça onde do ocorria a reunião. Indicando com a mão que esta mesa representava o barco do abandono, pedi a todos que se sentiam ou estão se sentindo abandonados que se aproximassem da mesa. Uma dezena de  pess  pe ssoa oass le leva vann ta tarr am-s am -se, e, jun ju n ta tarr am-s am -see e este es tend nder eram am-s -see as m ãos. ão s. Esta encenação designa a dimensão do abandono. Representações gestuais que revelam a dimensão mais ampla do fenômeno do abandono. Cada um, ajudando a religar sua história com a dos outros, embarcaram todos na mesma barca. Foi então que Pedro Pequeno, conhecido na favela como “Profeta do Sertão”, ativo participante destas reuniões, interveio, tirando as mãos do bolso de sua velha calça, para retirar o cachimbo da boca: “Vocês n ão estão sós para se sentirem abandonados neste mundo. Nós todos, habitantes de favela, fomos de certo modo abandonados pela sociedade.  Nóss viv  Nó vi v em emos os r ej ejei eita tado dos, s, excl ex cluí uído dos, s, fech fe chad ados os na misé mi séri riaa d es esta ta lata de lixo, tratados como sujeiras”.  sujeiras”.   Eis aí o verdadeiro problema do abandono. As histórias  pess  pe ssoa oais is nã nãoo são sã o senã se nãoo il ilus ustr traç açõe õess de dest stee pr prob oble lem m a soci so cial al.. É  prec  pr ecis isoo fa faze zerr al algg uma um a cois co isaa p ara ar a sair sa ir di dist sto. o. Ma Mass eu p eço eç o a vocês, não façam como Noé na Bíblia que, após ter construído seu barco, escolheu os animais que queria salvar e abandonou

 

os outros. Este risco é maior do que aqueles que se acreditam; escolhidos por Deus eles constroem seus pequenos barcos, resolvem seus problemas e abandonam seus irmãos.  No d ecor ec orre rerr dest de staa sess se ssão ão te tera rapp êut êu t ic ica, a, r even ev endd o a m im m esmo es mo,, o que havia sucedido com a história da minha família, pude melhor extrair a importância de ser adotado, reconhecido por mim mesmo e como pertencente pertencent e a uma família, a um grupo. grupo. E também soube que uma adoção só é verdadeiramente bem sucedida se houver reciprocidade de sentimentos. Do mesmo modo que a nutrição é ativa no processo de adoção, através da magia das ligações que isto suscita e tece entre o adotado e sua família, do mesmo modo, todo o ser humano deve reconhecer seu grupo e deve adotá-lo para ser aceito por ele, participar ativamente em seu funcionamento para dele fazer verdadeiramente parte.  Nãoo foi  Nã fo i por po r ac acas asoo qu quee esco es colh lhii me f orm or m ar em te terr apia ap ia f am amil ilia iarr ,  pois  po is o esse es senn ci cial al da minh mi nhaa ação aç ão con co n sist si stee no que qu e el elaa traz tr az par pa r a as relações do indivíduo com um grupo, sobre a importância da organização solidária do coletivo, como apoio essencial do homem. Desta maneira, coloco-lhes coloco- lhes uma das bases de “minha religião”.   religião”.

 

De Cariús a Pirambu   Muitas vezes, no decurso das sessões de terapia comunitária, vêm as lembranças de minha infância. Em uma tarde de quinta-feira, às 14 horas, conforme ocorre há 22 anos, as  pess  pe ssoa oass se re reún únem em ne nest stee hor ho r ário ár io par pa r a part pa rtii ci cipa parr em da dass r od odas as de terapia comunitária. Nesta ocasião, reúnem-se 50 pessoas sob uma grande palhoça: as pessoas mais velhas tricoteiam em cadência, uma dezena de mães de família; um bebê no  braç  br açoo e três tr ês ou quatr qu atroo cria cr iann ças ça s sent se ntam am -se -s e ao aoss ppés és do doss ad a d ulto ul tos; s;  junt  ju ntam am os adol ad oles esce cent ntes es do gr grup upoo de arte ar tete terr apia ap ia.. O pres pr esid iden entt e da Associação Quatro Varas com a sua filha mais jovem, sentada em seus joelhos, trava uma grande conversa com um grupo de habitantes da comunidade, agrupado ou sentado no chão, em torno dele. Alguns estudantes de medicina ou  psic  ps icol olog ogia ia pro pr o long lo ngar aram am seus se us está es tági gios os o brig br igat atór ório ioss n a f av avel ela. a. Meu antigo Jean Michel, Miche l, que chegara no dia anterior de Paris, meu irmão Aírton e os dois técnicos foram encarregados de registrar todas as sessões. Como na maioria das vezes, a primeira pessoa que exprime uma dificuldade, apresenta para o conjunto de participantes um tema de reflexão e de transformação, ao mesmo tempo individuall e coletivo individua coletivo.. Hoje, a primeira a apresentar foi uma mulher de uns 40 anos, denominada Socorro, abre a reunião. Cabocla, com olhar orgulhoso, trazendo firmemente no colo o seu jovem filho, magro, os cabelos embaraçados e os olhos vermelhos do sol. Com sua voz rouca, carregada de emoção, com o microfone na mão, ela interrompe o “blá-blá“blá -blá- b  blá lá”” d as co conv nver ersa saçõ ções es me interpelando: “Doutor, eu estou muito preocupada com a atitude de meu filho. Ontem à noite ele me disse chorando choran do de raiva que era a última vez que dormiria sem comer, e que iria agir como os outros. Ele também iria roubar para ter certeza de ter alguma coisa na barriga antes de dormir. Eu não sei mais o que fazer, você se dá conta que ele tem sete anos”. anos ”.   Depois ela acrescenta: “Eu não suportaria ter um ladrão em casa. Prefiro que ele morra”.  morra”.   O apelo desta mãe revela que, apesar da miséria terrível que atravessa com a sua família, ela permanece presa a seus valores. Isto lembrou-me dois acontecimentos, ocorrido na

 

época em que eu tinha 7 anos. O Nordeste do Brasil sofria, então, de um período de muita seca, a natureza vestia cinza, não expressava senão tristeza e desolamento; o verde, como cor e símbolo da vida, havia totalmente desaparecido da superfície de nosso horizonte. Para a maior parte das pessoas, a busca de água e alimentação havia se tornado uma verdadeira obsessão. Nós habitávamos em Cariús, uma pequena cidade situada no próprio coração do Sertão. Em Cariús, como em todas as cidades do Nordeste, o governo, para evitar o êxodo massivo das populações, havia organizado aquilo que se chamava então frente de serviço encarregado de construir as estradas e as barragens. Em toda  part  pa rte, e, v iam ia m -se -s e cen ce n te tenn as de ho hom m ens en s e m ulhe ul herr es trab tr abal alha hand ndoo na terra árida e seca, para obter o suficiente para não morrer de fome. Meu pai exercia a responsabilidade de inscrever as  pess  pe ssoa oass em di difi ficu culd ldad ades es q ue podi po diam am se b enef en efic icia iarr d este es te ti tipo po de trabalho de interesse público.  Nó s ér  Nós éram amos os,, eent ntão ão,, ci cinc ncoo cr c r ia iann ças ça s em casa ca sa,, e llog ogoo ser s eria iam m seis se is.. Apesar do emprego de meu pai, a situação era muito precária. Um alto funcionário do governo encarregado de supervisionar o conjunto dos trabalhos hospedava-se em casa. Uma noite, no momento da refeição, constatando nossas dificuldades, ele convida meu pai para inscrever Raimunda na lista de frente de serviços, assim como as duas outras crianças. “Vocês sabem, é preciso ser astucioso para ganhar dinheiro. Inscreva-os, você está muito bem colocado para fazê-lo, ninguém saberá de nada, você pode estar certo de minha discrição”.   discrição”. Achei logo esta ideia formidável e, persuadido de que meu pai iria seguir judicialmente o conselho, já imaginava uma refeição de festa, como outrora, com frutas, legumes, mas, sem demora, meu pai responde: “Se agisse assim, eu destruiria dest ruiria em mim toda a autoridade e toda a possibilidade possibi lidade de exigir dos outros que agissem de maneira correta. E, também, como  pode  po derr ia enca en cara rarr o f at atoo de te terr torn to rnad adoo m eus eu s filh fi lhoo s cú cúm m plic pl ices es de uma mentira? meu dever é educá-los caminho do direito da justiça. PrefiroOcontinuar pobre, mas comnodignidade que rico, sem nenhuma dignidade”.  dignidade”.   Inicialmente, não compreendi compr eendi a atitude de meu pai; sua recusa

 

em melhorar a nossa condição de vida. Não custava nada acrescentar os nossos nomes na lista e ganhar dinheiro para que no final do mês pudéssemos escapar aos sofrimentos da miséria, não foi senão muito mais tarde que eu pude compreender as razões de sua recusa categórica. Eram sua liberdade e sua integridade que ele defendia. Sua liberdade de falar, escolher e defender os seus valores mais caros. A experiência me tem levado progressivamente a recordar de que quaisquer que sejam as circunstâncias ou as dificuldades que cada um possa encontrar, é sempre possível fazer uma escolha. E poder escolher é um modo de provar sua liberdade de sentir seu poder ou de exercer seu livre arbítrio em relação aos acontecimentos ou às situações críticas. Algum tempo após este episódio, vendo a inquietude de meus  pais  pa is pe pera rann te a si sitt uaçã ua çãoo d a f amíl am ília ia q ue vinh vi nhaa se ag agra rava vand ndo, o, eu me senti preocupado. Procurava um meio de poder ajudar os meus familiares. Neste mesmo dia, como eu gostava de ir ao mercado, minha mãe me pediu para acompanhá-la. Eu a ajudaria trazer as provisões. Percebendo uma forma arredondada em um canto sombrio, larguei a mão de minha mãe, esperando encontrar ali um tesouro que nos libertasse de nossos pesares. “O que você está fazendo? O que você  proc  pr ocur ura? a?”, ”, ela el a m e p ergu er gunn tou. to u.   Eu olhava para todos os lados, talvez pudesse encontrar uma  bols  bo lsaa chei ch eiaa de di dinh nhei eirr o. Ouvindo estas palavras, ela parou, colocou seu cesto no chão, ajoelhou-se para que pudesse me olhar na mesma altura de seu rosto e me explicou ternamente: “Meu filho, para que você a encontre, é preciso que alguém tenha perdido. Não faça nunca da sua felicidade a infelicidade do outro, verifique sempre quando você se alegrar por alguma coisa se sua alegria não foi levada pelo sofrimento de um outro”.  outro”.   As palavras de minha mãe me tocaram e aumentaram a vontade de fazer este tipo maravilhoso de trabalho que resolveriaa os nossos problemas familiares. O que ela me disse resolveri naquele espírito meade serviu  pa  par r a u mamomento outr ou traa bficou usca us ca qgravado ue não nã o no toca to cav v a a mporque ater ate r ia iall idad id e d as coisas ou a busca de soluções individuais, mas a descoberta do sentido escondido e as respostas coletivas para sair da

 

miséria, do sofrimento, sem a exploração e exclusão de ninguém. Após a evocação destas lembranças de infância, livremente relatadas, numerosas pessoas utilizaram o microfone. E o debate voltou a partir da experiência de cada um, em torno da importância dos valores, das crenças naquilo que constitui a identidade de um indivíduo e do risco que há em renegar ou renunciar a eles sob a pressão dos acontecimentos, de perder sua “alma” ou mais concretamente sua própria autoestima, seu amor próprio, sua vontade de falar... Em seguida,  prog  pr ogre ress ssiv ivam amen ente te,, f oi p os osto to em ev evid idên ênci cia, a, qu quee des d esta ta man ma n ei eirr a, em uma comunidade como aquela de “Quatro Varas” todos devem defender seus valores culturais, morais e de solidariedade, necessários ao grupo e a cada um de seus membros. Depois, como é muitas vezes o caso no final da reunião, todos juntos cantamos uma canção popular do  Nord  No rdes este te.. Tod T odoo s se s e puse pu sera ram m ddee ppéé e der d eram am-s -see aass m mão ãos. s. O fi filh lhoo de Socorro, como os outros, estava com a cabeça levantada agora, visivelmente reconfortada pelas palavras que ouviu e  pelo  pe lo que qu e se sent ntiu iu du durr ante an te esta es tass duas du as hor ho r as. as . Saindo desta reunião, estive com a responsável da farmácia viva (local de vendas de plantas medicinais produzidas na favela), que veio ao meu encontro para falar das dificuldades do momento. Antes de levar Jean Michel para a casa dos seus amigos, precisei passar na casa de meus pais para felicitá-los  pelo  pe lo seu se u an aniv iver ersá sári rioo de casa ca sam m ento en to.. Minha mãe estava particularmente em forma: ofereceu-nos  be bida  bebi da e no noss conv co nvid idou ou pa parr a o caf ca f é. Como Co mo Jean Je an Mich Mi chel el se espantasse espanta sse que ninguém da minha família tomasse café, eu lhe expus a questão que sempre se opôs aos meus pais e animou numerosas discussões na família durante a minha juventude. Desde muito tempo, lembro-me de que minha mãe sempre  prep  pr epar arav avaa p el elaa manh ma nhãã um g r an andd e b ule ul e de ca caff é, ma mass em ca casa sa ninguém bebia. Este café era sempre moído e confeccionado  parr a to  pa toda dass as pess pe ssoo as do qu quart artei eirã rão, o, q ue dese de seja javv am se se sent ntar ar à nossa mesa, movidas pela necessidade ou pelo prazer do convívio. No decorrer dos anos, minha mãe mantinha a mão aberta aos indigentes de todos os tipos, qualquer que fosse a situação financeira de nossa família. Isto tem sido sempre tema de irritação para meu pai. Não que ele seja menos

 

generoso ou hospitaleiro que a minha mãe, mas gostaria de colocar algumas moedas de lado para seus dias de velhice, enquanto minha mãe parecia se empenhar em oferecer tudo a todos aqueles que tivessem mais necessidade do que nós. Enquanto a ouvíamos contar estas lembranças, ela olhou para mim e meu amigo a migo com olhar malicioso e, depois de aguardar aguardar,, voltou- se para seu marido para repetir ainda mais uma vez o ditado que já ouvi, talvez talv ez um milhão de vezes: “Em uma casa, quando o dinheiro entra por uma porta, Deus sai pela outra”. Começando a cantarolar, ela e la me perguntou se eeuu me lembrava desta pequena canção por ela inventada sobre este assunto delicado. E nós, então, ante meu amigo surpreso e Ayrton que chegava, meu pai, minha mãe e eu entoamos em casa.  Nãoo é só eu  Nã  Nãoo é só eu,  Nã eu , te tem m tu tamb ta mbém ém Ele vem, ele quer ganhar também

 R epar  Rep arte te te teuu pão, pã o, re repa part rtee te teuu caf ca f é  Rep  R epar arta ta com co m o te teuu ir irmã mãoo  Meta  Me tade de de tu tuaa fé Parta e reparta, torne a  Rep  R epar arti tirr com co m o ir irmã mãoo que qu e sofr so free Ensine ele a sorrir Após rir muito, Jean Michel perguntou à minha mãe sobre os grupos religiosos da favela, assunto que lhe interessa  pa rtic  part icuu la larr m ente en te,, e sobr so bree sua su a p arti ar tici cipa paçã çãoo na As Asso soci ciaç ação ão,, pa para ra a renovação carismática. Colocando o fio na agulha, ela explicou como vê a sua fé e como compreende a função espiritual rememorando uma cena dela aos 10 anos de idade: “Uma noite meu pai me pediu para encher de água o balde, no  poço  po ço que qu e fica fi cavv a a uns un s 100 10 0 metr me tros os de ca casa sa.. Er Eraa um umaa n oite oi te de lua cheia. Logo que saí de casa, eu me senti ofuscada, por uma luz forte vinda do lixo. Fechei os olhos e recuei, piscando as  pálp  pá lpeb ebra ras, s, olh ol h ei de no novv o na dir direç eção ão d a luz, lu z, q ue enca en cand ndea eava va,,  parr a p erce  pa er cebb er q ue aqui aq uilo lo v inha in ha ef efet etiv ivam amen ente te da la lata ta d e li lixo xo.. Aproximei-me, pensando que deveria se tratar de um diamante que luzia muito e que se perde nestes lugares e terminei por descobrir que o raio de luz que tinha me encandeado, vinha de um caco de vidro, que no meio do lixo

 

refletia os raios da lua. Confiante nesta descoberta, eu fui encher meu balde para depois depoi s ir me deitar. Não é que uns dias mais tarde, lembrando-me desta cena, eu me pus a pensar que o ser humano é como um caco de vidro; sua função é de receber e transmitir a luz de Deus para clarear a consciência do mundo. Quanto mais o homem for transparente, mais está  prop  pr opíc ício io a d ei eixa xarr pass pa ssar ar e difu di funn dir di r a lu luzz r eceb ec ebid ida, a, q ualq ua lque uerr que seja o lugar onde se encontre; sobre uma lata de lixo, em uma favela ou em qualquer parte.”  parte.”   Ela cantou: Sou caco de vidro na escuridão Foi a luz de Cristo que me fez brilhar Sem Cristo sou cinza sempre a virar Que o vento leva para lá e para cá Com Cristo sou

 Lu z semp  Luz se mpre re a br bril ilha harr  Most  Mo stran rando do o cami ca minh nhoo  para onde passar   Que paradoxo: é em um mundo hostil, seco e árido, simbolizando a perda, perd a, a miséria e a morte, e é da boca de meus  pais  pa is que q ue eu fi f i z as minh mi nhas as pri p rim m ei eirr as uuni nive verr sid si d ades ad es de desc scoo brin br indd o e integrando os grandes princípios que, desde então, conduzem a minha vida.  No es espa paço ço de um umaa ta tarr d e, p el elaa via vi a de um umaa pe perg rgun unta ta ex expr pres essa sa  porr minh  po mi nhaa mãe m ãe,, desa de samp mpar arad ada, a, e, e , de d e uma um a co c o nvers nv ersaç ação ão em torn to rnoo de uma mesa familiar, a magia criadora da memória reatualizou e reordenou força e vitalidade vitalidad e aos valores valores que são o núcleo de minha minh a identidade e iluminam o sentido e o espírito de meu engajamento. engajamento.

 

A Referência Paterna   Recentemente, acompanhei amigos franceses na visita ao  bair  ba irro ro João Jo ão XXII XX IIII , l ocal oc al m uito ui to pob po b re de Fo Forr ta tale leza za,, p ar araa reencontrarmos a criança que eles iam adotar. Desde a nossa chegada, a enfermeira que cuidava da criança, os vizinhos e todas as pessoas da vizinhança não tinham senão uma palavra na boca: “Olha seu pai”, gritavam para o bebê; “É o pai dele...”, comentavam   outros.misturada “Pai... de pai...pai”, assistênciacomentavam  com uma emoção inveja. Orepetia pequenoa  parr ec  pa ecia ia desl de slum umbr brad adoo pela pe la repe re peti tiçã çãoo da pala pa lavr vraa e ch chor orav avaa de felicidade, fixando seus olhos negros em meu amigo, seu pai,  já adot ad otad adoo p el elaa comu co muni nida dadd e. P ouco ou co ca caso so er eraa dad da d o par pa r a a mãe mã e adotiva; como se a sorte que havia tido de ser adotado encontrado - um pai muito mais do que pais ou uma família. Este exemplo tumultuado mostra, além da dimensão afetiva e teatral, que emocionou profundamente meus amigos, o lugar esss encial do “pai” em nossa cultura brasileira. Cada uma de es nossas três raízes culturais, indígena, africana e portuguesa destaca a sua maneira, a importância da função paterna. Todo o homem importante é qualificado de “pai”, quer se trate de um chefe, de um espírito, de um Orixá, de um sacerdote, de um sábio. Expressão do machismo sul-americano, efeito do patriarcado  bras  br asil ilei eiro ro?? Aqui Aq ui p ouco ou co impo im port rtaa a anál an ális isee qu quee dist di stoo se po poss ssaa fazer. O fato está aí. Para nós, brasileiros, um pai para a família é ao mesmo tempo o teto e os muros da casa, onde a mãe asseguraria as fundações. De fato, procura-se no pai a  prot  pr oteç eção ão,, apo a poio io,, qqua uadr dros os e li limi mite tess a ser s erem em dad d ados os pa para ra cada ca da u m dos membros da família, pela sua presença e autoridade. A miséria, tal como se pode viver em uma favela, está marcada  pela  pe la ausê au sênc ncia ia d o p ai ou da r efer ef erên ênci ciaa pat pa t erna er na.. Ca Caus usaa e/ e/ou ou consequência de uma perda econômica, fazendo com que o  paii não  pa nã o po poss ssaa assu as sumi mirr suas su as r esp es p onsa on sabi bili lida dade dess o u aqui aq uilo lo que qu e consideram seus fracassos pessoais, fugindo de suas casas ou  pr  proc ocur uran ando do udesaparecido, m r ef efúg úgio io il ilu u sóri só rioo no emal alco cool olis ismo mo. Pa Paii desconhecido, “viajando”, todos os .casos, trata-se da sua ausência física ou moral, esta é a situação de três quartos das famílias residentes da favela Quatro Varas.

 

Estas famílias se assemelham às cabanas onde vivem: frágeis, vulneráveis, abertas aos ataques exteriores, como aos desmoronamentos interiores, feitas de objetos deteriorados e sem pilar central, sustentando o conjunto da construção. Meu  peit  pe itoo aper ap erta ta ai ainn da hoje ho je,, dian di ante te do doss efei ef eitt os dan da n osos os os,, desestruturantes da ausência do referencial paterno: droga, roubo, delinquência, crianças das ruas livres e entregues a si mesmas. Esta realidade confere para a presença de Airton, Aluísio, o presidente da Associação da Comunidade e para mim mesmo, uma importância imaginária que ultrapassa a simples consequência de nossas ações. Nós somos de fato os modelos, os exemplos, muito investidos pelas crianças, especialmente pelos meninos, em busca de homens para se identificar. Esta situação me faz sempre refletir sobre os diferentes níveis de nossos empreendimentos na favela. Destaco a importância que nós atribuímos nas rodas de terapia comunitária, a ideia de família extensa, aos laços de solidariedade. me eleva a lembrar que de minha própria Isto família dosinevitavelmente personagens masculinos influenciaram a minha juventude, construindo a minha identidade, orientando minhas escolhas, auxiliando a reconhecer aquilo que constitui minhas qualidades e minhas faltas. Eles preencheram minha memória de imagens, relatos e referênci r eferências. as. Minha mãe, decidindo casar-se com o meu pai, havia renunciado de fato ao exercício de sua profissão de magistério. Ela guardou um interesse marcante pelo ensino, não escondia o desejo de que seus filhos tivessem sucesso su cesso nos seus estudos e de que conquistassem uma situação conveniente. Meu pai era menos exigente sobre esta questão; considerava que a atração pelos livros e pela escola era algo  pess  pe ssoa oal,l, conc co ncer erni niaa ao in indi diví vídu duo, o, cada ca da u m po podd eria er ia,, se segu guin indo do a sua vontade, seguir ou não os estudos. Para ele, os sucessos de sua vida não tinham nada a ver com ter ou não estudado. Este ponto de vista, convenhamos, tem o mérito de sair das  prem  pr emis issa sass el elee enco en cont ntrr ava av a o s argu ar gum m ento en toss em sua su a pr próp ópri riaa experiência. Após ter aprendido o essencial na escola  —   escrever, ler e cantar - ele se pôs à solta, preferindo, muito jovem, trabalhar na pensão da família que seus pais tinham em Canindé, à

 

margem do rio, ajudando-os ou alugando seus serviços aos comerciantes da cidade. Foi curioso o modo pelo qual encontrou seu emprego no Departamento Nacional de Obras contra as Secas (DNOCS). Sempre meu pai nutriu uma paixão sem limites pelas aves. Ele herdou este gosto, como muitas outras particularidades de seu pai, que havia contraído esta “loucura” durante sua estadia na estadia  na Amazônia. Assim, na sala de refeições da pensão que ocupava o lugar de albergue, podiampodiam se admirar aves magníficas, cuidadas pelo meu pai. Aves em gaiolas ou poleiros. Animais para concurso ou de estimação. Um cliente de passagem deteve-se fascinado diante do espetáculo de uma esplêndida graúna negra, com plumagem  bril  br ilha hann te e uum m por p orte te el eleg egan ante te que qu e eera ra u m ddoo s orgu or gulh lhos os de meu me u  pai.i. T od  pa odoo s os dias di as,, o cl clie ient ntee não nã o ti tinh nhaa olho ol hoss sen se n ão pa para ra a av avee e sua conversação só concernia a este animal, sobre sua alimentação, hábitos e qualidades. Ele nunca encurtava as suas perguntas. Durante as refeições, o cliente se instalava frente à ave edias, estabelecia com uma com espécie Após alguns a ligação do ela homem avedeeradiálogo. de tal maneira que meu pai ficou comovido com esta paixão nascente, da qual reconhecia os sintomas, pois ele mesmo já havia provado da sua intensidade e exigência. Um tal desejo de posse pedia satisfações. O homem deveria partir com a sua graúna. Isto lhe pareceu evidente, seria uma obrigação dolorosa, porém imperativa. O cliente despediu-se, partindo com esta nova companhia, e ficou perturbado tanto pela felicidade da aquisição como pela gratuidade, a generosidade do gesto deste jovem homem. Entretanto, ele se sentia incomodado, não sabia como exprimir sua gratidão ao jovem rapaz que lhe fazia este presente inestimável, mesmo sendo um desconhecido. Três meses mais tarde, o homem aparece. Após lhe ter dado notícias de sua companheira de plumas, propõe para o meu  paii o empr  pa em preg egoo que qu e el elee seg se g uiu ui u o cup cu p an andd o em tod to d a a sua su a vi vida da  prof  pr ofis issi sioo nal: na l: o Dep De p arta ar tame menn to Naci Na cioo nal na l de Obr Ob r as co contr ntraa as Secas (DNOCS). A sua própria experiência incentivou incentiv ou meu pai a deixar os seus filhos escolherem livremente as suas próprias profissões. Considerava que o caráter, a coragem, o gosto pelo trabalho, o desejo de ser útil e a coletividade não se aprendiam em

 

 ba ncos  banc os esco es cola larr es. es . Ele zombava do ditado nordestino que definia como ideal,  parr a o s pai  pa pa i s, que qu e seus se us fi fill hos ho s foss fo ssem em:: sace sa cerd rdoo te te,, méd mé d ic icoo e advogado. Ele não via a escolha profissional desta maneira. Porém, o seu terceiro filho, Airton, é advogado, o segundo, este que lhes conta a história, é médico, quanto ao mais velho, embora não sendo padre, estabelece relações no céu oficiando-as como controlador de voos. Bizarramente, quando eu lembro de minha infância, as  pess  pe ssoa oass m ais ai s mar ma r cant ca ntes es que qu e me vêm vê m ao esp es p írito ír ito são sã o o s me meus us avós. Meu pai era, sem dúvida, muito próximo ou muito envolvido no cotidiano familiar para poder se destacar na memória vivida de minha própria existência. E, por este fato eu não tenho medidas para assinalar aquilo aqui lo que me levasse ou me reservasse a ser semelhante a ele. Os meus dois avós eram entre si tão diferentes, contraditórios contraditório s como complementares: um era o que ode outro era; eles me ofereciam dois estilos, duas maneiras ser não homem. Se meu avô paterno, João Neco, era forte, enérgico, pragmático, autoritário e lacônico; meu avô materno, José Luiz de Paula, era falador, brincalhão, frágil, essencialmente essencialmen te ligado às coisas do espírito. Tudo me levava a amar e temer João Neco, o filho de Maria das Graças, o aventureiro da Amazônia, participante da epopeia da borracha, da procura do ouro, que havia voltado  parr a o Cani  pa Ca nind ndéé para pa ra se inst in stal alar ar.. Resg Re sgat atou ou a p ensã en sãoo ond on d e sua su a mãe e seu irmão permaneciam empregados com a força de seu trabalho, paciência e determinação. Eu me reconhecia neste homem revestido de desejo de criar, construir. O seu interesse pelo concreto, o seu gosto pela eficácia e ação, organizavam organizav am o seu pensamento e seu modo de viver. Ele era baixo e gordo, o seu busto podia se encostar na clássica barriga redonda de nordestino, pesando sobre as suas  pern  pe rnas as cur cu r ta tas. s. Os traços de seu rosto sublinhavam sublinhav am o lado enérgico e rigoroso de sua personalidade. Olhando mais de perto, ele parecia um  java  ja vali li,, sem se m dú dúvi vidd a, p or cau ca u sa de seu se u nari na rizz ac acha hatt ado ad o e, apes ap esar ar disto, proeminente. proeminent e. Os seus cabelos negros, repicados repicado s e dduros uros no alto da cabeça e suas sobrancelhas grossas e embaraçadas,

 

moderavam um pouco o ardor do olhar que ele  prop  pr opoo si sita talm lmen ente te fi fixa xavv a n os ol olho hoss do seu se u inte in terr locu lo cuto torr , revelando uma grande força interior. Ele inspirava respeito e também um certo temor entre os  jovv ens.  jo en s. Avar Av aroo de pa pala lavr vras as,, pod po d eria er ia se p ensa en sarr qu quee el elee apen ap enas as se exprimia para dar ordens. Seu lado algoz algo z causava mal estar e desajeitado com as crianças. Se sabia se mostrar afetuoso com as meninas, facilmente com os meninos; mal controlando a suaera força. Assim, brutal tanto eu como meus irmãos havíamos aprendido a nos manter à distância. Porém, ele gostava de companhia, sabia acolher seus hóspedes, colocavacolocava os à vontade e ouvia-os com uma atenção sincera, e não faltavam nunca pessoas em sua mesa.  Na pens pe nsão ão d e meu me u s avó av ó s, a sala sa la de r efei ef eiçõ ções es,, à no noit ite, e, era er a removida para ocupar as calçadas, que davam para o leito do rio; este, muitas vezes reduzido a um fino fio de água. As mesas postas de ponta a ponta formavam uma grande mesa de reunião, coberta com toalhas bordadas pela minha avó, onde a família, os clientes e os empregados instalavam-se, misturando-se, constituindo assim, uma espécie de família extensiva. Os vizinhos vinham muitas vezes se reunir a nós  parr a brin  pa br inca car, r, conv co nver ersa sarr ou cont co ntar ar h istó is tóri rias as,, to tom m ando an do um cafezinho, chá ou suco de maracujá. Meus irmãos e eu fazíamos de tudo para sermos esquecidos e assim retardar a hora de nos deitarmos, porque nós adorávamos escutar, em tardes inteiras, as histórias dos peregrinos vindos de todo o  pa ís ou obse  país ob serr v ar o s cl clie ient ntes es estr es tran ange geir iros os.. Lembro-me da primeira vez que ouvi a fala em francês, eu tinha uns 10 anos. Como sempre, a vinda de pessoas estrangeiras constituía um acontecimento, uma atração, que  porr nad  po na d a dest de stee mun mu n do nós nó s quer qu ería íamo moss p erde er der. r. E l es er eram am quatro, vestidos vestido s de modo especial, com roupas em tons pastel. Eu não podia deixar de olhar na única mulher do grupo. Ela usava um lenço de seda negro, amarrado como um turbante, que lhe escondia os cabelos e ressaltava a brancura leitosa de sua pele. Ela era alta, bela, falava e fumava muito. O francês falado pela sua boca pareceu-me ser uma língua magnífica, cantante e encantada. Ela tinha o jeito de que se interessava por aves, porque muitas vezes voltava no meio da

 

conversa o nome corrupião, ave de canto magnífico, que meu avô guardava na gaiola da sala de refeições. Ria muito, com os seus companheiros, deformando o nome do animal, chamando-o de croupio. Eu soube mais tarde que esta mulher se chamava Simone de Beauvoir, por quem eu havia ficado muito impressionado, como que hipnotizado pelo seu encanto, sua presença e sua voz quente qu ente e grave. Este meu encontro com ela teria favorecido meu gosto pelo francês? Talvez, por um lado, porque, muito tempo depois, a lembrança da passagem destes franceses me m e retomava como a chave chave abrindo os sonhos  parr a aven  pa av entu tura ra,, viag vi agen enss em país pa íses es desc de scoo nhec nh ecid idos os.. Eu amava meu avô. Ele para mim representava uma abertura  parr a o mu  pa mund ndoo . Ele El e ti tinh nha, a, por po r outr ou troo la lado do,, um modo mo do de ser, se r, de avançar, que me dava segurança; os seus pés fortemente  pres  pr esos os na t erra er ra e o p ensa en sam m ento en to b em pr pres esoo à m at ater eria iali lidd ade ad e das da s coisas. Para arredondar arredond ar as suas rendas, ele aceitou administrar a fazenda de um coronel de Fortaleza para onde se dirigia, duas vezes por semana, no frescor da noite. Uma tarde, para minha surpresa, ele me convidou para acompanhá-lo em sua expedição noturna. Nós então partimos em sua velha camioneta que me deixou ter o prazer de destravar a manivela. A algumas centenas de metros de nosso destino, uma silhueta com braço estendido, barra o nosso caminho. Meu avô reconheceu. Era Antônio, o curandeiro da vila, homem baixo, magro e corcunda, quase se aproximando da porta do motorista, pergunta se nós teríamos uma bomba de ar, porque ele necessitava para tentar salvar a vida de um homem. Sem mais explicação, uma vez em posse deste material desejado, ele desaparece no escuro com a promessa de nos devolver este estranho instrumento de cura logo que sua tarefa fosse cumprida. Duas horas mais tarde, retorna molhado de suor mas radiante. Ele nos explica, estourando de rir, como pela  prim  pr imei eirr a vez ve z em sua su a vida vi da,, havi ha viaa exer ex erci cido do su suaa ar arte te d e cur cu r ar, graças a um instrumento de ar da camioneta. Um de seus vizinhos, operário agrícola, estava acamado há cinco dias, com violentas dores de ventre; não ia mais no banheiro, não soltava ospara gazes começava a vomitar. evidente estee homem experiente: um Adosexplicação intestinos era do doente havia se desviado, torcendo sobre si mesmo. E,  perr ce  pe cebe bend ndoo ao long lo nge, e, as lu luze zess d os f aró ar ó is m oven ov endd o -se -s e na

 

estrada, que lhe veio a ideia de utilizar a bomba de encher as câmaras de ar do carro para salvar o seu vizinho. Começamos a entender o uso não habitual que ele teve de fazer do engenho, fomos tomados pelo riso. Assim, foi com dificuldade que ele terminou de nos explicar a delicada manobraa que teve de efetuar, manobr efetuar, representando com alguns algun s gestos  prec  pr ecav avid idos os como co mo ha havi viaa po podd id idoo in intr trod oduz uzir ir a po ponn ta do tu tubo bo,,  parr a ench  pa en cher er muit mu itoo le lenn ta tam m ente en te a barr ba rrig igaa do doen do ente te to torc rcid idoo de dores, para livrar os gases. Eu E u nunca havia visto até então meu avô rir tanto; e nem assistido a uma tal risada geral. Meu avô, João Neco, tinha um dom, que ele exercia gratuitamente para aliviar as pessoas da região, que lhe valeu em toda a região a sólida reputação de “curador de engasgos”. Lembro-me do olhar suplicante e ansioso das pessoas que o  proc  pr ocur urav avam am para pa ra cura cu rarr u ma inf in f la lam m ação aç ão ou en enga gasg sgoo caus ca usad adoo  porr um espi  po es pinh nhoo de peix pe ixe, e, um os osso so d e g al alin inha ha;; apó ap ó s t er desobstruído a garganta, ele colocava o indicador e o polegar da mão direita através da garganta no local dolorido e murmurava uma espécie de encantação incompreensível que se tratava, conforme aprendi apre ndi mais tarde, de uma prece dirigida a São Pedro e anunciava ao pobre diabo: “Você pode engolir agora”. Isto era executado com uma certa apreensão que logo cedia lugar à gratidão e às lágrimas de alívio. Meu outro avô, José Luiz de Paula, chamado de Zé Caruca, tinha também um dom e, como João Neco, esta  part  pa rtic icuu la larr idad id adee r efle ef leti tiaa a sua su a m aneir an eira, a, a or orig igin inal alii dad da d e d e sua su a  perr so  pe sona nali lidd ade. ad e. Se S e um esta es tava va lig l igad adoo à mat m ater eria iali lida dade de d as coi c oisa sas, s, a eficácia dos gestos, o outro se interessava apenas pela essência das coisas, no espírito que os anima ou lhes dá sentido. Seu dom era de poder ler o caráter e os traços de  perr so  pe sona nali lidd ade ad e de um i ndiv nd ivíd íduo uo,, simp si mple lesm smen ente te,, se segu gurr ando an do a sua mão ou olhando a sua foto. Este talento de médium acompanhava a temível capacidade de pressentir a morte um ou dois dias antes que ela atingisse alguém. Esta característica era, entretanto, mais perturbadora, a sensação da morte que o invadia era tão súbita, tão t ão brutal, que o meu avô, muitas veze vezes, s, mal continha sua emoção e em consequência a revelação que lhe era feita. Um dia, chegando de uma festa dançante na qual havia sido convidado junto com os seus familiares, ele se detém no limiar da porta, subjugado pelo espetáculo de um

 

casal que dançava e lhe interrogava em voz alta, as pessoas que o rodeavam: “Desde quando se deixam dançar os mortos?” Soube-se Soube -se no dia seguinte que a dançarina em questão havia morrido brutalmente à noite. Ele frequentemente previa a morte iminente de animais. Mas, fora desta originalidade inquietante, inquietant e, Zé Caruca era um homem extremamente querido pela sua gentileza, humor e pela sua doçura. Homem baixo,ágil. franzino, esguio, de aparência frágil, ele era extremamente Quando andava, dizia-se que ele dançava, tanto era sua leveza e agidez. Ele tinha a pele clara, olhos brilhantes e a boca risonha. Duas mechas de cabelos  bran  br anco coss joga jo gadd as de cada ca da la lado do,, sobr so bree as or orel elha hass r od odea eava vam m um crânio liso e estreito; poder-se-ia dizer precisamente que se tratava de um travesso. Trabalhava no serviço ambulante dos Correios. Seu trabalho consistia em transportar as cartas e os  paco  pa cote tess nos no s cent ce ntro ross r ecua ec uado doss d a mont mo ntan anhh a, na nass pr prox oxii m idad id ades es de Canindé, onde era impossível fazê-lo em carros motorizados. Para fazer suas caminhadas, partia no final do dia e viajava à noite, atravessando o campo e a mata, muitas vezes só, por vezes acompanhado de um jumento quando a carga postal exigia; outras vezes um colega fazia a rota com ele e caçava em sua companhia no amanhecer. Destas andanças, ele trazia histórias extraordinárias de animais e espíritos encontrados no caminho: alguns dialogavam com ele, prevenindo-o dos perigos que se arriscava a encontrar, outros passavam diante dele sob a forma de bola de fogo, fazendo um alarido apavorante. Para ele, toda a coisa, todo o ser possuía algo de maravilhoso; o menor pretexto, a menor ocasião propiciava-lhe uma história, um canto, um sonho. Assim, todos os seus netos sentavam-se em círculo, em torno dele, para o escutar, brincar sonhar sonh ar e rir, sobretudo rir, porque muitas vezes nos dizia que uma das coisas mais importantes  parr a ele  pa el e er eraa f azer az er o s outr ou troo s ri rirr em e al aliv ivia iarr assi as sim m o pe peso so d a vida e dos sofrimentos. Ao contrário do vovô João Neco, que frequentava muito  pouc  po ucoo a igre ig reja ja,, v ovô ov ô Z é Car Ca r uca uc a era er a m uito ui to pie piedo doso so.. Su Suaa f é guiava seus gestos e seus pensamentos. Ele era considerado  pela  pe la sua su a hon ho n esti es tidd ad adee quas qu asee q ue do doen enti tiaa e pr pref efer eria ia p or exemplo, deixar no chão um objeto encontrado, se não  pude  pu dess ssee de dete terr mina mi narr quem qu em f osse os se o prop pr oprr ie ietá tári rio, o, com co m m edo ed o de

 

criar prejuízo se mudasse de lugar o objeto. Se eu guardo do pai de meu pai o prazer de criar, de realizar concretamente concretame nte os projetos, eu lhe devo igualmente igualmente o interesse  pela  pe la d esco es cobe berr ta d o mund mu ndoo e a noçã no çãoo de fa famí míli liaa exte ex tens nsii va, va , ta tall como eu pude vivê-la durante dois anos, quando meus avós me abrigaram na casa deles, em sua pensão, para que eu  pude  pu dess ssee cont co ntin inua uarr meu me u s estu es tudo dos, s, por po r que, qu e, n esta es ta ép époc oca, a, na vi vila la onde habitavam pais, não noão haviapela escola para mim.o Do pai de minha mãe eumeus conservo gosto brincadeira, prazer de jogar com as palavras, de falar, contar histórias, a necessidade de rir e ficar aberto ao mundo dos espíritos, cuidando sempre sempr e de ligar o espírito à materialidade materialidad e das coisas. Ele me soube transmitir a fé no homem e em Deus. Um avô fez-me viver e apreciar a terra e o fogo pelo seu  prag  pr agma mati tism smoo e seu se u car c arát áter er enér en érgi gico co e apa a paix ixon onado ado;; o outr ou troo fez f ez me sentir a sutileza do ar e a afetividade ligada ao elemento água. E, juntos, eles me ajudaram a formar o projeto de estabelecer um equilíbrio, uma harmonia entre estes quatro elementos, desenvolvendo as qualidades humanas que representam. Entre as referências paternas, está e stá a de Deus, P Pai, ai, que banhou toda a minha infância. De fato, fa to, Deus nunca foi para mim uma resposta, nem uma solução, simplesmente uma evidência. Uma presença, um modo de ver, sentir o mundo, relacionarme com os outros, uma atmosfera, uma qualidade de ar que se respira, que se aspira. Um elemento familiar indispensável, a vida que lhe dá força, gosto e sentido. Indispensável, isto quer dizer que me era impossível pensar a vida, minha vida, a de minha família, sem Deus; tanto sua presença impregnava e impregna ainda hoje nossos pensamentos, nossas ações e organiza nossas relações. Comecei desde pequeno a falar de Deus; mais exatamente Jesus ou São Francisco a quem eu me dirigia e confiava. Era como se eu tivesse dois padrinhos, dois companheiros, dois guardas da alma que eu considerava sem cessar as minhas costas. Eu“graças fazia apelo a Deus as circunstâncias repetindo a Deus”, em em sinaltodas de contentamento ou “valha meu Deus”, para pedir seu socorro quando eu arriscava de ser apreendido no meio da brincadeira de rua, sem

 

autorização ou para escapar a uma punição. Nossa vida era ritmada pelas preces, missas e festas religiosas, notadamente aquelas no mês de maio, marcadas pela procissão levando a Virgem Maria para uma estadia em cada casa diferente. A  pres  pr esen ença ça en entr tree nós nó s da mãe mã e d e Jesu Je suss da davv a lug lu g ar a gran gr andd es sessões de preces reunindo os vizinhos e amigos, o que aumentava a felicidade de estar entre as famílias eleitas. Nós íamos à missa tantas vezes quanto fosse possível. Infelizmente, por causa das remoções de meu pai, nós, por vezes, ficávamos em lugares tão recuados que o sacerdote vinha rezar a missa apenas um domingo por mês. Todas as tardes na hora do Angelus, nós nos reuníamos em tomo de nossa mãe, para orar o rosário; meu pai raramente se reunia a nós. Em casa, ele chegava muitas vezes a cantar cantigas ou canções populares, falando de Deus. Nós cantávamos muitas vezes. A atmosfera me agradava e as palavras me faziam evocar todos os momentos maravilhosos que eu devia a Deus.

Foi Deus Que deu voz ao vento  Luzz ao fi  Lu firm rmam amen ento to E deu o azul às ondas do mar  Deuu as fl  De flor ores es à prim pr imav aver eraa  Ai,i, e de  A deuu a mim mi m es estt a voz vo z Esta atmosfera me faz sempre remontar de modo embaralhado, como por reflexo, os momentos em que a  pres  pr esen ença ça de Deus De us e seu se u espí es pírr it itoo se m anif an ifes esta tarr am pa para ra mim mi m mais nitidamente, deixando um traço em minha memória. Eu me revejo de joelhos ao lado de minha mãe, vovó Sinhá, minha avó paterna, na pequena igreja de Canindé, onde eu a acompanhava acompanh ava cada manhã, durante dois anos, que eu fiquei na casa de meus avós. A recordação destas missas matinais me faz sentir, cada vez que ocorre uma sensação de frescor, de  paz,  pa z, de le levv ez ezaa e de p le leni nitu tudd e inte in teri rior or:: com co m o se o te temp mpoo dos do s homens, fora da igreja, estivesse suspenso para permitir a alma respirar, abrir-se ao sopro do alto. Eu revejo também certas festas de família, núpcias, comunhões etc... ocasiões  parr a ssee rreu  pa eunn ir e sen se n ti tirr a f el elii ci cida dadd e ddee est e star ar junto ju nto.. Deu D euss er eraa ppor or mim sempre representado como um membro da família,

 

 pr esen  pres ente te em es espí pírr it ito, o, ao qu qual al a gent ge ntee se r ef efer eree co com m  perm  pe rman anên ênci cia; a; minh mi nhas as r el elaç açõõ es com co m Deus De us eram er am n esta es ta épo ép o ca idílicas: para mim havia sempre uma confusão entre Ele e o Papai Noel. Ele era evocado em todas as ocasiões e compreendido compreend ido para justificar as razões e a forma das punições. punições. A propósito de punição, lembro-me do dia em que meu irmão Antônio e eu havíamos deixado cair a lata de água, na calçada da portadede300 casa. Era em Aracatiaçu; menos metros da nossa casa. o açude encontrava-se a O pai nos havia despertado ao mesmo tempo que ele e, enquanto ele tratava a vaca, os meninos deveriam moer o milho no moinho, para que qu e a mamãe pudesse preparar os pães  parr a o caf  pa ca f é d a manh ma nhã, ã, e tr traz azer er um umaa la lata ta chei ch eiaa d e águ ág u a da  barr  ba rrag agem. em. Nest Ne staa manh ma nhã, ã, era er a a v ez d e Ayrt Ay rton on m oer oe r o milh mi lhoo e Antônio e eu trazermos a água para encher os três potes de  barr  ba rroo nece ne cess ssár ário ioss par pa r a a jorn jo rnad ada. a. Com Co m o de hábi há bitt o, eu me  banh  ba nhei ei ao ch cheg egar ar na be beir iraa d’ág d’ águu a, a m anei an eira ra ma mais is agr ag r adáv ad ável el do mundo para se despertar; de repente, nós deveríamos apertar o passo de volta para não deixar o restante da família a espera. Eu andava na frente. A lata de ferro parecia mais  pesa  pe sada da dev de v id idoo aaoo com c ompp ri rim m ento en to do cami ca minh nhoo e o modo mo do com co m qquu e nós impúnhamos o retorno. O cabo da enxada que nós tínhamos sobre os ombros curvava-se sob o peso da água e nos feria a pele. Chegando em casa, Antônio em vez de curvar-- se para colocar no chão a lata curvar lata,, deslocou-se desloco u-se para o lado e, “tibum”, eu não pude segurar a ponta do cabo que me torcia a igam mão; caiu na os soleira porta. Evidentemente, nós  br  brig amos ostudo e co com m eçam eç amos a nos no sdab at ater er.. Mam Mamãe ãe já nos no s h avi av ia ameaçado na véspera de nos punir se voltássemos a brigar. Ela estava vermelha de raiva, mais pela nossa atitude do que  pela  pe la ág águu a pe perr did di d a. “Eu “E u n ão pun pu n ir irei ei vo você cêss ag agor oraa porq po rquu e Deu De u s não gosta que seja a raiva que decida. Isto vos dará tempo para refletir sobre o amor fraternal e de escolher na floresta a vara que corrigirá vocês amanhã. Agora abracem-se”. abracem-se”. Nós não tínhamos em casa a palmatória, utilizada geralmente no Sertão, para corrigir as crianças; nós nó s devíamos, a cada vez que  prec  pr ecis isas asse se,, esc e scol olhe herr nó n ó s mes m esm m os o iins nstr trum umen ento to de cast ca stig igo. o. No dia seguinte, não houve o castigo corporal; o que se passou,  pass  pa ssou ou.. Em ve vezz dist di sto, o, f ic icam amoo s pr priv ivad adoo s da sobr so brem emes esaa e encarregados do penoso trabalho de cortar lenha durante

 

muitos dias, porque nós dois transgredimos a regra mais importante para a minha mãe: havíamos brigado, e não nos falávamos mais, então que o perdão fosse imperativo, obrigatório, e que era absolutamente proibido não mais se falar. O desejo de se tornar sacerdote veio naturalmente. Eu compartilhava este sonho com Aírton que, como eu, estava muito voltado aente Deus  pr  priv ivil ilég égio io de esta espara tarr maai aissambição per pe r to Dele Dede le.. servir Cert Ce rtam amen te,, eu et inh inter h a oa vontade sincera e profunda de ajudar as almas e também de salvar o meu próximo da miséria. Mas, eu queria, sobretudo, se Deus quisesse me aceitar para para servi-lo, servi -lo, tornar-me um padre como Frei Teodoro, tão gentil e serviçal com os pobres e não, como o Frei Policarpo, padre alemão que eu tinha visto expulsar com vassouradas e insultos os mendigos sentados nos degraus da basílica São Francisco. De fato, nesta época eu deveria ter uns 10 anos e em todas as minhas preces eu  pedi  pe diaa par pa r a Jesu Je suss e São Sã o F ranc ra ncis isco, co, par pa r a inte in terc rced eder er ju junt ntoo ao Senhor para que ele me velasse. De tanto ouvir meu avô falar de seus encontros e seus diálogos com os espíritos, e de escutar na pensão de meus avós, as histórias dos peregrinos dizerem que tinham visto Cristo, falado com a Virgem Maria ou encontrado São Francisco, eu me sentia muito frustrado. Eu falava com Deus, com Maria e São Francisco e não compreendia por que eles não me respondiam. Certamente, em meu coração, em minha cabeça, eu tinha o sentimento de uma proximidade, de uma espécie diálogo íntimo, no exterior, eles não falavam e não sedemostravam nuncamas, a mim como uma outra pessoa. Era isto uma deficiência perceptiva que eu tivesse, ou mais grave, uma falta de mérito? Eu terminei falando sobre isto com Airton, que, como eu, ressentia duramente da frustração de não estar entre os  priv  pr ivil ileg egia iado doss que qu e podi po diam am se corr co rres espo pond nder er com co m Jesu Je suss e o s santos. Em todo o caso, eu estava intimamente convencido de que o status de sacerdote permitia estas trocas “corriqueiras”.   Quando nós soubemos que, em Portugal, crianças pequenas haviam podido, com muita frequência, ver e falar com a Virgem de Fátima, decidimos, Airton e eu, construir um altar secreto na floresta para rezar e evocar a Maria. Associado a

isto, formas de penitência bem draconianos para chegar a  

merecer a visita da mãe de Jesus. As semanas passaram. O santuário estava sempre florido e as  puni  pu niçõ ções es r efin ef inad adas as e, em part pa rtic icul ular, ar, es está táva vamo moss r esse es sent ntii dos, do s, mas tudo em vão. Assim, no final de alguns meses, nós tínhamos renunciado a querer forçar a mão do céu e compreendi que nisto havia a vaidade e o pecado do orgulho. O projeto “louco”, de poder, um dia, entrar no seminário continuava a residir em mim muito ardor ardodifícil r e determinação. Projeto “louco” porque era com improvável, de realizar financeiramente...

 

Impossível Banir o Índio que Vive em Mim   O tempo estava bonito no dia 3 de junho de 1961. Após ter  pass  pa ssad adoo p or m uito ui toss v il ilar arej ejoo s d o S er ertt ão, as m udan ud ança çass ocasionais nos levaram a permanecer algum tempo nas  prox  pr oxim imid idad ades es d a pequ pe quen enaa ci cida dade de de Sant Sa ntoo Ant An t ônio ôn io do Aracatiaçu. Meu pai voltara de Sobral, grande metrópole do Sertão, situada a 40 quilômetros, onde ficou três dias devido ao trabalho. Neste dia, festejava-se o aniversário de meus 12 seu anos. Meus pais reuniram para a refeição os vizinhos ea família. Minha mãe preparou os pratos que eu preferia: doces de milho, palmito, feijoada e no momento de cortar o bolo, meu pai se levantou e, batendo no copo com a sua faca, pediu silêncio e um pouco de atenção; o que nele não era habitual;  já qu quee era er a pou po u co incl in clin inad adoo a faze fa zerr di disc scur urso sos. s. E le me olho ol houu e anunciou com a voz embargada de emoção: “Eu tenho uma grande novidade novidad e para lhe dar, dar, meu filho. Ontem, encontrei em Sobral, o padre responsável por vocações sacerdotais  pert  pe rten ence cenn te ao gran gr ande de sem se m inár in ário io dos do s pa padr dres es di dioc oces esan anoo s. E u consegui que ele lhe inscrevesse no seminário. Você deve entrar neste seminário exatamente em um mês. Este é o seu  pres  pr esen ente te de aniv an iver ersá sárr io”. io ”. Min Mi n ha m ãe se apro ap roxi ximo mouu e m e abraçando, disse: “Você sabe, Adalberto, ninguém perde por lutar para realizar seu sonho, o importante é mantê-lo vivo. Sempre você quis seguir o caminho religioso; o destino nos conduziu para Sobral, nisto eu vejo a cumplicidade de Deus. Agora o caminho está aberto para você tomar sua vida nas mãos”. mãos”.    mais belo de minha vida: como isto tinha podido se Era o dia realizar? As semanas seguintes foram consagradas a juntar o meu enxoval para o seminário. Sobretudo para proceder às numerosas sessões, para experimentar minha batina que minha mãe e minha irmã mais velha faziam sob medida. Eu era, nesta época, muito pequeno para a minha idade, e se o fato de me ver tão frágil na batina divertia muito meus irmãos,  parr a mim,  pa mi m, apen ap enas as o f at atoo d e expe ex peri rime menn ta tarr a rou ro u pa es esti timu mula lava va a minha imaginação. Eu me via padre de uma grande igreja celebrando a missa, conduzindo seu rebanho, como São Francisco de Chagas, muito dedicado aos mais pobres e infelizes.

O tempo dos preparativos me tornava às vezes exaltado  

outras vezes triste: eu me dei conta de que durante seis meses eu não voltaria para a minha família, não poderia brincar, ou  brig  br igar ar,, como co mo ante an tes, s, com co m m eus eu s ir irm m ãos, ão s, me con conff ia iarr à m inha in ha mãe, nem me banhar nas cascatas ou nas águas dos açudes. Alguns dias antes da minha partida, meu pai, como costumava fazer regularmente, pôs-se a cortar nosso cabelo, com ajuda de sua pequena navalha, deixando curtos os cabelos acima; operação que nós denominamos “a pelada da cabeça dos meninos”.   meninos”.  Nóss ppas  Nó assá sáva vamo moss uuns ns apó ap ó s oouu tr tros os en entr tree su suas as mão mã o s exp e xperi erien ente tes. s. Quando foi a minha vez, senti que seus movimentos, geralmente vivos e precoces, se detinham em torno das minhas orelhas; seus gestos manifestavam um embaraço, como uma hesitação: por duas vezes ele espreitou a lâmina colocada sobre o couro de sua cinta, por fim ele fecha sua navalha e se senta à minha frente fren te para me falar. Era a primeira vez que ele se dirigia a mim sem testemunha. Não havia ninguém entre nós dois: “Você vai ser um homem de bem, cercado de meninos de boa família. Seu futuro está assegurado. Você sabe que isto é um empenho para a sua família”. Felizmente, no seminário, aceitaram dar -lhe -lhe uma  bols  bo lsaa devi de vidd o a seu se u s r esul es ulta tado doss esco es cola lare ress e eu pa paga gare reii uma um a  part  pa rtee d e su suaa pens pe nsão ão com co m saco sa coss chei ch eioo s de peix pe ixes es pe pesc scad adoo s no tempo das grandes chuvas. Você deve fazer um esforço semelhante ao nosso; não esqueça que seus irmãos não terão forçosamente a mesma chance que você teve. Eu, por vezes, tenho saiba que vos castigado, ameigado, e que sempresido parasevero, o bem de vocês queeueusempre tenha lhes casti seusé irmãos e você mesmo. Talvez compreendas mais tarde, quando cresceres. De fato, eu não compreendia muito bem o que me acontecia. Meu pai fazia-me recomendações, olhava-me de outra maneira. Meu projeto tinha importância, eu era reconhecido;  pela  pe la prim pr imei eira ra vez ve z eu sent se ntii q ue o pai pa i de famí fa míli liaa era er a ta tam m bém bé m meu pai, que ele me falava dirigindo-se a mim, Adalberto, e  parr a mim.  pa mi m. Po Porr que qu e an ante tes, s, eu ti tinh nhaa im impr pres essã sãoo de se serr ap apen enas as um dos meninos que incomodava seu pai, fazendo barulho, ou que era chamado, indiferentemente dos outros, para efetuar um árduo trabalho.

 No dia di a d e m inha in ha part pa rtid ida, a, n ós h avía av íam m os p assa as sado do o dia di a em  

Canindé, meus avós maternos tinham vindo nos encontrar na  pens  pe nsão ão do vov vo v ô Jo João ão Ne Neco co par pa r a esta es ta ocas oc asiã ião. o. Vendo toda a família reunida em torno de mim, meu sorriso de vencedor, de conquistador, a ponto de realizar o que esperava há muito tempo, transformou-se em lágrimas de tristeza. Eu me pus a chorar no momento moment o de dizer adeus a meu vovô, João Neco. Incomodado Incomo dado por me ver neste estado na hora de partir, ele me aabraçou propôs: “Se você nãoaoquer ir, diga me, e eu pedirei seu pai epara não levá-lo leválo mais seminário”. Eu protestei, com o rosto ro sto em lágrimas: “Não, não: eu quero absolutamente ir para lá. Então, se é isto que você quer, enxugue as suas lágrimas, e parta sem hesitar”. Por sua vez, meu outro avô me confiou no momento da partida: “Você sabe, meu pequeno, você tem apenas 12 anos, mas é preciso que aprenda que toda opção implica uma partida e um abandono”.   abandono”. Durante minha viagem de carro, olhando desfilar as paisagens verdejantess do inverno, repassei em minha cabeça as palavras verdejante de meu avô materno: opção - partida - abandono. Eu não compreendia a ligação que parecia existir entre estes três termos. Eu podia responder facilmente sobre o sentido de opção. Minha escolha era clara: consagrar minha existência aos mais pobres e para isto eu deveria estudar muito para  pode  po derr ser se r pa padr dre. e. A part pa rtid idaa era er a o preç pr eçoo a p agar ag ar pa parr a r ea eali liza zarr este projeto. Eu precisava ser forte, minhas lágrimas não deveriam ser o sinal de remorso ou de pesar. Mas por que a  pa  pala lavr vraa que aba a band ndo o no? nocoisa ? Aban Ab ando narr o quê qnunca uê,, aba a band onar ar que q uem m ? Eu me repetia uma eradona certa: eundon abandonaria minha família, os meus, meu povo. Eu retornaria como padre  just  ju stam amen ente te p ara ar a t rab ra b al alhh ar p er erto to d os r el eleg egad adoo s, do doss ex excl cluí uído doss de meu país. Cheguei ao seminário cheio de ânimo, orgulhoso por trazer a  bati  ba tinn a, de ap apro roxi xim m ar-m ar -mee dos do s futu fu turo ross pa padr dres es,, de te terr sido si do escolhido, aceito pela igreja. Fiz rapidamente amizades; havia um menino chamado Aluísio que era como eu, o menor, sempre ademeu ladome quando estávamos na fila. partidas de futebol batina faziam rir, porque nós As precisávamos levantar nossas batinas para poder correr e chutar a bola sem cair. Aprendi com entusiasmo as matérias ensinadas,

notadamente o estudo da Bíblia e dos Evangelhos. Descobri  

com paixão este mundo desconhecido, este universo muito diferente de minha família e de minha cidade. Tudo é organizado, estruturado, pontuado. Deveria seguir as regras, muito estritas, estabelecidas pelos superiores. Entretanto,  prog  pr ogre ress ssiv ivam amen ente te,, sent se ntii inst in stal alar ar-s -see um m al al-e -est star ar.. Eu aceito o rigor da disciplina como necessária para aprender as boas maneiras de ser e de pensar, para corrigir os meus erros, abandonar os maus hábitos, educar e odesta meuforma espírito controlando meu corpo, a bafar abafar meus desejos me tornar digno do privilégio de poder mais tarde servir a Deus. Ao mesmo tempo em que nos educam para uma boa causa, nos educam também contra os valores da educação de nossa família, contra nossas origens. O objetivo era eliminar tudo o que era considerado como nefasto e vulgar na educação, e não conforme o modelo ideal de um eleito de Deus. Éramos sempre repreendidos e tratados como se fôssemos índios selvagens que precisavam ser educados: “Sentem -se corretamente. Aqui não é uma tribo de índios. Tirem as mãos do bolso e parem de assobiar. Parecem que são bororos. Alguns de vocês não sabem nem o que é um banheiro, mijam na natureza como selvagens”. Todas estas alusões humilhantes e condenatórias aos índios; no início, achava até engraçado e chegava a rir. Depois passou a me incomodar, a sentir raiva e vergonha de minhas origens. Me dei conta, após alguns meses, que q ue já começava a assimilar estes ensinamentos e passei a considerar todos os aspectos negativos, não muito católicos de minha família, sobretudo; de meu pai e meu avô João Neco, que não eram muito católicos e, por isso, não frequentavam as missas e ainda tinham uma paixão pecaminosa por pássaros e brigas de galo e canário. Começava a desconfiar que os dons de mediunidade e capacidade de cura dos meus dois avós revelavam muito mais de magia negra, paga ou bruxaria, do que o dom de Deus. Passava a ficar incomodado de receber visitas no seminário de familiares e primos morenos. Evitava apresentá-los aos meus colegas seminaristas ou como saudá-los em público. a valorizar a brancura da pele se houvesse uma Passava relação entre a cor da pele e a pureza da alma. Ora, as imagens e os quadros pintados nas igrejas só representavam Jesus, a

 

Virgem Maria e os Apóstolos como pessoas de pele branca e olhos azuis. Passei a ter vergonha, vergonha, de ter correndo correndo em minha s veias, sangue de índio e de negro. Comecei a pensar pensar na árvore genealógica de minha família reconstituída por um primo, relatando a história de nossos antepassados que deu origem a família Barreto. Há três séculos, um jovem português foi aprisionado quando estava aventurando-se na floresta caçar com seu fuzil novo só, flamejante. Sentindo-se em para perigo, cercado por guerreiros ameaçadores, ele abate uma ave em seu pleno voo. Os índios desta tribo não tendo nunca visto uma arma de fogo  pros  pr ostr trar aram am-s -see dian di ante te dele de le,, cham ch aman ando do-- o de car ca r amur am uru. u. E m língua tupi este nome significa sign ifica “homem de fogo” ou “filho do trovão”. Após este tiro de fogo, ele não pode voltar entre os seus, morou muitos anos nesta tribo, teve uma mulher, uma  jovv em ín  jo índd ia e fund fu ndoo u uma um a famí fa míli lia: a: a f amíl am ília ia Barr Ba rret eto. o. Esta história tinha sido para mim, como para a minha família, um motivo de orgulho. Eu fiquei dilacerado, preso em conflito interior. Eu, amo meus pais, minha família e tudo que eu compreendo, que no seminário me ensinam a desprezar. Eu assimilei, “incorporei”, como se diz entre nós, os valores, a mística deste universo religioso, a formação; a educação que me oferecem, visa a branquear minha vida, me inculcando  parr a o meu  pa me u bbem em,, ooss val v alor ores es e o s ges g esto toss dos d os co colo loni niza zado dore res. s. Po Porr um momento, eu tive um sentimento de superioridade em relação aos outros, de estar entre os eleitos por Deus. Para mim, tudo estava claroenquanto em minhasoldados cabeça: havia os bons ée de os maus. Nossa função, da verdade, transformar os homens, de torná-los melhores, de controlar  pela  pe la f é aq aque uele less que qu e te tent ntam am esca es capa parr da dass norm no rmas as so soci ci ai ais, s, ao conservar sua originalidade. Apesar destas certezas de combater pela boa causa ca usa e para o bem de todos, em meu corpo, no fundo do meu ser, uma parte de mim mesmo resiste e me fecha dolorosamente: eu não cheguei a banir o índio que está em mim. Após 6 anos fora do Brasil, voltei para a casa da minha família. Uma manhã, na hora do café, dois ou três dias após o meu retorno, minha mãe conta o sonho que teve: “Eu lhe via em meus sonhos falando para uma Assembleia com muitas pessoas presentes que lhe ouviam com atenção. Eu

estava diante de você, que me via mas não me reconhecia. Eu  

me perguntava completamente completam ente desamparada o que é que tinha acontecido para que você não reconhecesse mais a sua mãe”. A narrativa deste sonho me transtornou profundamente, ele me deu o impulso necessário para tombar o castelo de cartas ou de pirâmide. Eu compreendo agora o sentido da palavra “abandonado” na qual me falou meu avô, no dia da minha  part  pa rtid idaa par pa r a o semi se miná nári rio. o. É como co mo se a minh mi nhaa f or orm m ação aç ão no seminário devesse se traduzir em abandonar a minha família, na ruptura dos vínculos de identificação a um povo, a uma cultura. Renunciar de alguma forma a mim mesmo e àquilo que constitui a essência, o centro de minha pessoa. Eu conhecia de cor a história dos santos, os evangelhos, a Bíblia e eu não reconhecia mais a minha mãe. O seu sonho permitiu me reconsiderar o meu. Passei a ter uma espécie de desconfiança, de vigilância frente a todos, às formas de ensinamentos e de educação religiosa ou universitária, cujo objetivo compreende sempre a uma fase importante de demolição, lutacultura, contra osua inato, de renúncia se sabe contradesua experiência age àquilo como que se os saberes, os conhecimentos diferentes, fossem incompatíveis e implicassem, não em um processo de integração mas de exclusão. Eu me dei conta de que muitas vezes esta atitude de excluir os conhecimentos consiste em retornar à tentativa de exercer um poder sobre o outro. Atitude de possessão, um encosto de um modo de pensamento que foi adquirido através da formação exclusiva de toda uma outra referência ou lógica. Assim me pareceu que apenas as posições marginais da loucura ou da revolta empreendida pudessem permitir conservar uma originalidade e um certo recuo frente a estas intrusões, posições, para desviar dos atentados desta “possessão do pensamento”. Por que querer impor à força um único modelo cultural para todos? Por que não respeitar a diversidade das formas de ser e de pensar e as riquezas que trazem estas diferenças? A vergonha de pertencer a um meio social desvalorizando selvagem, indígena, “não muito católico”, transformou-se transformou -se sem sentimentos de dívida com a minha família, com a necessidade de redescobrir e apreciar aquilo que me vem dos meus, de minha cultura. As certezas não deixam lugar para as dúvidas e para uma primeira posição de distância crítica em

 

relação à Igreja. Concluí muito mais mai s tarde, que uma parte da Igreja do terceiro mundo e do Brasil, em particular, continua a desenvolver os  prec  pr econ once ceit itoo s dos do s prim pr imei eirr o s colo co lono noss fren fr ente te ao aoss in indí díge gena nass e alimenta o modo de pensamento “colorista” para não dizer racista, porque o critério de exclusão não é a raça mas o “degradado”, os coloridos. Este é o modo de pensamento que organiza relações sociais no Brasil. Todos brasileiros dizem queasquerem muito entender como em suasos veias correm o sangue indígena africano e europeu. Esta é uma maneira de reivindicar a cultura sincrética brasileira, suas raízes e  pert  pe rten ence cess na hist hi stór ória ia do pa país ís.. Entr En tret etan anto to,, é ev evid iden ente te que qu e todo to do mundo valoriza tudo que é referido ao branco. Cada um fica atento à cor de pele do seu interlocutor. interlo cutor. A prova disto é que o  prim  pr imei eiro ro elem el emen ento to dist di stin inti tivv o pa para ra desc de scrr ever ev er um i nd ndiv ivíd íduo uo é sua cor, depois a forma ou os signos de seu tipo de mestiçagem (caboclo, cafuso, mameluco, etc.). Como se a escala dos valores fosse do mais escuro para o mais claro. Entretanto, neste primeiro ano no seminário, eu percebi que apenas um único padre tinha uma forma de ser diferente dos outros: o Padre João Stolker. Ele era professor de religião e de francês. Alto, magro, com os dentes de coelho que lhe fazia sibilar os “s”. Era muito gentil, como são geralmente os tímidos, e me levava para tocar órgão na Igreja durante o intervalo do meio dia. Um dia, no meio do curso de religião, apontando o dedo para mim, ele declara que Jesus não era loiro de olhosterazuis e amorena pele leitosa como muita gente Médio pensa, mas deveria a pele das pessoas do Oriente e se assemelhar a um bom nordestino como Adalberto. Todas estas lembranças, estas reflexões, estas emoções se encontraram de repente e foram despertadas no início de uma reunião de terapia comunitária, quando eu vi um índio, de  pequ  pe quen enoo por po r te te,, le levv ant an t ar -s -see par pa r a r ecl ec l amar am ar o mi micr crof ofon one. e. E ra a  prim  pr imei eirr a v ez que qu e a r eun eu n iã iãoo de q uint ui ntaa -fei -f eirr a o co corr ria ri a sob so b a  palh  pa lhoç oçaa que qu e nós nó s está es táva vamo moss p ara ar a te terr min mi n ar. Para todossuficientemente os presentes era grande um grande temos, enfim, um lugar paradia: nosnós reunir e acolher todos aqueles que quisessem. Eu nunca havia visto aquele homem que tomou a palavra, tremendo de emoção. Como

 

todas as pessoas que se exprimem pela primeira vez, diante diant e de uma assembleia, ele repetia muitas vezes a mesma coisa para ter certeza de ser compreendido. Via-se Via -se logo que que se tratava de um índio, com mais ou menos 60 anos. Ele trazia um pequeno chapéu, com a aba estreita, estreita, no alto da cabeça. cabeça. Notava -se, em seu rosto e olhos negros, escrita a sua inquietude e revolta. Sua pele cor de cobre, vermelha-escura, vermelha -escura, tem incisões sobre as faces com duas pregas profundas, reunidas de forma crescente de sua papada. Parecia um caju muito murcho, assim como seu nariz comprido de ave, com a forma e a cor mais amarela da noz do caju. Ele vinha da aldeia dos índios Tremembé no interior das terras situadas, a cinco horas hor as da estrada da capital. Soube pelo seu primo que mora na favela, que nas quintasfeiras as pessoas que têm dificuldades podem se exprimir e  pedi  pe dirr aju aj u da: da : ei eiss aí a í p orqu or quee el elee pedi pe diuu o micr mi crof ofon one. e. E m sua su a tri tribo bo há problemas muito graves. Os grandes proprietários de terra querem se apropriar de suas terras sob o pretexto de não  po  poss ssuí uíre m nen ne ndos hu hum mtempos. tí títu tulo lo le lega gall d o te terr rrit itór ório io que qu e el eles es oc ocuu pam pa m desde arem noite Recentemente, uma notícia publicada no jornal da cidade  próx  pr óxim imaa dest de staa tr trib ibo, o, anu an u nc ncia iavv a a d at ataa li limi mite te pa parr a r egul eg ular ariz izar ar administrativamente ti posse das terras. Como ninguém entre eles lia o jornal, a data passou e suas terras foram vendidas ou reivindicadas para indústrias e pelos ricos proprietários. O homem marca sua emoção, forçando o tom, o que fazia o alto-falante soprar, tornando difícil entender aquilo que ele tentava nos dizer. Acrescenta, entretanto, em umdoentes”. sopro: “Há muita violência entre nós e nossos filhos estão No final de seu monólogo, que durou mais de meia hora, ele se sentou visivelmente esgotado esgota do e aliviado de tanto falar, e olhou a assistência com ar constrangido e interrogador. A discussão que se segue desemboca na ideia de irmos ao local para refletirmos com o conjunto da aldeia sobre o que ele queria nos dizer e sobre a ajuda possível que lhes poderíamos trazer. Alguns dias mais tarde, nós saímos de madrugada para evitar subir o dia,oscom muito calor, o trajeto.osNós est ávamos estávamos em 30durante pessoas: habitantes da favela, membros da associação e alguns estudantes de medicina, em busca de temas para a sua dissertação em medicina social. A campanha

deles justificou o uso de um grande ônibus da universidade  

 pa r a a vi  par viag agem. em. No Noss ssoo ín índd io do p equ eq u en enoo chap ch apéu éu n a cabe ca beça ça não nã o nos tinha enganado. Era preciso cinco horas de carro pela estrada para chegar a aldeia: três horas na estrada nacional, uma hora na estrada secundária, depois uma hora de caminho de terra e areia.  Nest  Ne stee perí pe ríod odoo de seca se ca,, eu f ic icoo ai ainn da, da , u ma vez ve z ma mais is,, ab abal alad adoo ao ver ao longo da viagem, a paisagem cinzenta, quadro uniforme, manchado dechega verde nosal raros  bo  bosq sque uess demonótono, Ju Jure rema ma o u somente d e Juaz Ju azei eiro ro.. An Antt es de che garr da alde deia ia,, nós andamos à beira de uma barragem quase seca, onde subsistiam grandes cachoeiras d’ d ’ água, cujas bordas se destacam através das moitas de ervas. Porto de frescor, onde um bando de crianças brincava alegremente, próximos a um grupo de mulheres alinhadas batendo suas roupas em cadência.  Nass pro  Na pr o ximi xi mida dadd es d as prim pr imei eirr as p al alho hoça ças, s, fo fom m os ac acol olhi hidd os  pelo  pe loss la lati tido doss de al algu gunn s cã cães es m uito ui to magr ma groo s e po porr grup gr upos os d e crianças gritando, tentando se agarrar nas janelas do ônibus. Sob o alpendre da primeira casa, na entrada da aldeia, um  band  ba ndoo de g en ente te à esp es p era er a com co m r efr ef r es esco coss d e f ruta ru tass e caf ca f é. Enquanto o Aírton se entretém, junto ju nto aos dois patriarcas, com questões jurídicas que preocupam a comunidade, formando  pequ  pe quen enos os grup gr upoo s, vam va m os visi vi sita tarr d ifer if eren ente tess f am amíl ílii as qu quee compõem a tribo. Ficamos três dias nesta aldeia, três dias de encontros, discussões e também de festas. De fato, para os índios Tremembé, a vinda de amigos estrangeiros constitui um acontecimento, uma esperança, um sopro de ar fresco,  parr a r es  pa espi pirr ar, fala fa lar, r, cant ca ntar ar,, r eviv ev iver er.. As pe pess ssoo as da f av avel elaa ficaram como nós, impressionadas com a terrível miséria que golpeavam nossos hospedeiros: miséria material certamente, mas um pouco diferente daquela de Quatro Varas, havia sobretudo miséria moral e afetiva. Cada família parecia viver voltada para si mesma. A aldeia está fragmentada em centenas de casebres espalhados na mata, distantes muitas centenas de metros, umas das outras, no meioou dasdeárvores de caju. Não há nem n em centro, lugar de reunião enco ntro. encontro. Não há escola, nem a açãonem de se reunir  parr a ir à alde  pa al deia ia mai ma i s próx pr óxim ima, a, a 20km 20 km pela pe la estr es trad adaa n aci ac i onal on al.. Embora um certo número de adultos saiba ler, escrever e

 

cantar, nenhuma criança se beneficia desta instrução. Percebe-se rapidamente a existência de rivalidades, conflitos e divisões que enfraquecem e tornam vulnerável esta comunidade fragmentada, desprovida de organização, deixando cada família se defender sozinha frente aos apetites dos ricos proprietários de terra e exploradas pelos industriais exportadoress de castanha de caju, fruta que representa a única exportadore riqueza da tribo.  Na se segg und un d a noit no ite, e, a nos n osso so pped edid ido, o, eele less acei ac eita tam m dan da n çar ça r e cant ca ntar ar o Torém, manifestação tradicional que marcava outrora, fim da colheita do caju. Enquanto os da aldeia se preparam, nós nos dispusemos em círculo. Colocou-se ao meu lado Dona Rosa, senhora de 95 primaveras, considerada como a matriarca que parecia encantada por poder assistir de novo a dança do Torém. Como eu lhe pedi que desse o recado que gostaria de transmitir à sua tribo, ela endireitou a cabeça, varreu o horizonte com um olhar, firmando sua bengala no solo de areia cinza, constelado de manchas amarelas, marrons ou negras deixadas pelos pedaços do caju. Ela repetia muitas vezes,, opinando o chefe: “Não deixe nunca a terra, não deixe vezes nunca a terra”. Eu só compreendi compreend i o sentido desta frase no final do espetáculo. O Torém coloca em cena todas as espécies de animais familiares. Cada animal é imitado através de um gesto, uma música, uma mensagem. mensa gem. Chega a dança da aranha. Cada um estende a mão mã o para o outro e pede para a aranha tecer a sua teia: “Teça, teça, aranha, teça, teça, a sua teia, as mais velhas no em ar volta, e as de novas baixo”. estas jovens dançando mãosem dadas, escuVendo escutando tando este refrão, eu compreendi de súbito, a importância da mensagem comunicada através do Torém e repetida muitas vezes por Dona Rosa. É a teia que nutre a aranha, que lhe permite se deslocar, trabalhar e viver. Destruí-la é eliminar suas  poss  po ssib ibil ilid idad ades es de auto au tono nom m ia e de v ida. id a. A aran ar anha ha sem se m a te teia ia é como o índio sem a terra, uma comunidade sem a solidariedade. Eu me dei conta de que a dança da aranha contém uma mensagem que a tribo não chegou a decifrar. Estes rituais, exortando a tecer a teia das ligações entre eles, evocando o respeito às tradições: “As velhas no ar e as novas embaixo”.

Cada geração é chamada para fazer a sua teia, seguindo com  

isto o exemplo dos ancestrais. Durante a viagem de volta e no decorrer das reuniões que se seguiram, estávamos preocupados com duas coisas: de um lado, preparamos mais rápido, para evitar a expulsão das famílias, de outro lado, ajudar a comunidade a compreender o sentido profundo da mensagem transmitida pela tradição através do símbolo da teia de aranha. As manifestações de apoio aos índios Tremembé foram organizadas, numerosos artigos publicados, entrevistas concedidas. Isto tudo criou um movimento de opinião,  perm  pe rmit itin indd o que qu e Airt Ai rton on l evas ev asse se a ação aç ão p ara ar a a Jus Justi tiça ça at atéé obt ob t er o reconhecimento dos direitos de propriedade dos membros da tribo. Assim, na reunião de avaliação da comunidade de Quatro Varas, Dona Terezinha, a presidente da associação das  pess  pe ssoa oass de id idad ade, e, su sugg eriu eri u conv co nvii da darr o s ppri rinc ncip ipais ais r es espo pons nsáv ávei eiss da tribo paraboa a inauguração da casa dos anciões da favela. Esta seria uma ocasião para reuni-los fora de seu espaço conflitual. Um mês mais tarde, a comunidade de Quatro Varas recebe uns 30 chefes indígenas.  Nóss n os em  Nó empp en enha ham m os pa parr a reun re unir ir esta es tass d ua uass co comu muni nida dadd es marginalizadas: uma a tradição (Tremembé), a outra pela modernidade (a favela). Elas têm em comum as grandes dificuldades, mas cada uma parece possuir aquilo que falta à outra: de um lado, a tradição, uma identidade cultural, de outro lado, a solidariedade e a experiência de luta. Eu fiquei muito entusiasmado. Via neste encontro a  poss  po ssib ibil ilid idad adee d e uma um a tr troo ca de aj ajud udaa en entr tree a f avel av elaa e a trib tr ibo. o. Minhas esperanças foram coroadas de sucesso. Inicialmente, nossos hospedeiros tiveram uma surpresa que os abalou  prof  pr ofun unda dame ment nte. e. No meio me io da fe fest sta, a, no mom mo m ento en to d a inauguração da casa das pessoas de idade, na qual foram convidados os eleitos da cidade, eles constituíram diante de seus olhos uma teia de aranha humana na qual estavam presos. Cada pessoa era convidada a dar a mão ao seu vizinho. Depois, os jovens estendem entre as árvores e as estacas um entrelaço de cordas representando igualmente, adiante, a famosa teia de aranha. Isto porque a comunidade Quatro

Varas, após ter visitado a aldeia, adotou esta imagem como  

símbolo da solidariedade comunitária. Os índios Tremembé partiram com as camisetas impressas, com seu nome “Tremembé”, sob o desenho de uma aranha no meio de sua teia, realizado por um grupo de pessoas da favela que fazem desenhos.  Nass se  Na sem m anas an as segu se guin inte tes, s, d ezen ez enas as de p esso es soas as da asso as soci ciaç ação ão da favela foram convidadas para ajudar a aldeia para dar lugar à sua própria associação. Desde então, as trocas permaneceram numerosas e variadas. Dezenas de jovens toxicômanos foram acolhidas pela tribo para um período de desintoxicação. Quantidades importantes de palha de carnaúba foram compradas regularmente pela associação de Quatro Varas  parr a a rrea  pa eali liza zaçã çãoo de d e arte ar tesa sana nato tos, s, ffei eito toss ppel elas as pe pess ssoa oass ddee iidd ade, ad e, notadamente para confeccionar cestas que serviam para a venda de plantas medicinais. Finalmente, a associação da favela comprou a produção de castanha de vendê-la caju da tribo Tremembé e se encarregou, seguida, de em Fortaleza, para ajudar os índiosema lutarem contra a exploração das empresas que impunham tarifas. A aranha se tornou o símbolo vivo das relações de solidariedade na favela. A farmácia viva, assim como o movimento integrado de saúde mental comunitária, adquirir esta imagem e a da teia como emblema representativo do espírito de sua ação. Este animal habitualmente pouco sua mesmo tarefa: estendeu os fios entre a favela e osapreciado índios, e, fez em amim ela despertou o índio que morava em mim e que a universidade queria senão banir, pelo menos abafar.

 

Da Desconstrução Material à Construção dos Vínculos   O dia ainda não havia se levantado, quando fomos despertad os em sobressalto. Era um verdadeiro pesadelo. Os cães  puse  pu sera ram m -se -s e a la lati tir, r, dep de p oi oiss f ic icar aram am cala ca lado doss ta tant ntoo esta es tava vam m aterrorizados com o barulho de trovão que não parava e que se tomava cada vez mais ensurdecedor, tornando-se mais e mais próximos a nós. A terra se pôs a tremer. Acreditava que erar aoafim do gritavam, todo mundo  pa  par sole so leir iraa mundo, da p or orta ta.as . Foi Focrianças i entã en tãoo que qu e eu co comp mpre reen end d i o que qusaiu e se  pass  pa ssav ava: a: viam vi am-s -see o s poli po lici ciai aiss grit gr itar arem em e con co n du duzi zind ndoo os seus se us tanques com a luz acesa de seus faróis e projetores. Era horrível, terrificante. Maria aproxima-se dos carros para falar com os homens que se aproximavam para derrubar as nossas casas; como resposta recebeu um golpe de baioneta que lhe abriu a fronte. Diante desta violência, todos se juntaram para se assegurarem, depois avança-se para fazer uma muralha de nossos corpos a fim de proteger as crianças e as nossas casas. Terezinha com os olhos cheios d’ d ’ á gua parou para retomar a respiração. José Armando correu atrás, com a voz carregada de raiva e desespero: desesp ero: “Não vão conseguir nos deter”. O meu barraco foi o primeiro a ser esmagado. Tentamos de tudo conversar, suplicar, chegamos até a cantar o Hino Nacional, mas nada adiantou. Continuaram Continuar am a avançar sobre nós nós e teriam esmagado sem emoção as mulheres e as crianças que qu e recusavam a deixar as suas casas. Entre os policiais, eu reconheci um jovem cujos  pa  pais is habi ha tava vam m na n aEle fav f avel ela, a, em um lovergonha, call mai m aiss an anti tigo go, , mesm me smo ao lado dobita nosso. chorava de loca de raiva ouo de impotência. Em todo o caso, virou as costas e depressa se afastou quando eu o chamei. Por um momento, a máquina da frente encalhou na areia. O condutor ligou o motor até que este se pôs a urrar como um monstro ferido, para finalmente fazer silêncio e se calar: foi o momento que, em um único movimento, todos nós nos pusemos de joelhos e começamos a cantar e a rezar para Deus. SeurTeixeira tomou o rmicrofone: “Deus noem nos  No aiar ai ar do d o dia, diavançou a, vim v imos oseAír Aí r ton to n pa par ar a sua s ua vvel elh h a moto mo to esmouviu”. fr fren ente te do trator quebrado. Ele se apresentou apresentou como advogado e pedi pediuu  parr a f alar  pa al ar com co m o r espo es pons nsáv ável el p or aqu aq u el elaa o per pe r aç ação ão poli po lici cial al.. A

discussão foi animada. Airton levantava os braços e agitava  

em sua mão um pequeno livro verde que cada um de nós conhecia bem, como sua única arma eficaz: o texto da Lei da Constituição Brasileira, que proíbe destruir um teto qualquer que seja e no lugar que esteja sem o procedimento judiciário.  Nest  Ne stee dia d ia 15 d e mai m aioo de d e 1198 987, 7, haví ha víam amos os deci de cidid dido, o, le leva vand ndoo em em conta as circunstâncias que as nossas rodas de terapia comunitária seriam feitas no meio das casas em ruínas, no mesmo lugar onde ocorrera o drama quatro diasfale antes. Eu tomei a palavrar “Proponho que vivido cada um de nós de sua casa interior, invisível, aquela que sofre, que se sujeitou aos desgastes, talvez tão importante quanto a casa exterior. O ditado brasileiro diz: ‘Tudo aquilo que se guarda, apodrece. Que cada um se exprima e diga aquilo que viveu e sentiu’”.  sentiu’”.   Francisco começa: “O que é mais doloroso para mim é ver nestas pedras e nestes pedaços de telha, todos os meus esforços, todas as minhas economias e todas as minhas esperanças. Eu não consigo entender”. Maria de Lurdes declara: “Meu marido está traumatizado. Ele não pode voltar a este lugar. Diante dos escombros da casa queimada sob os nossos olhos pela máquina, ele se desvaneceu com o choque: como se ele estivesse sido esmagado ao mesmo tempo do que a sua casa, pela violência das emoções sentidas. Desde então, ele não é mais o mesmo; ele não dorme, não diz nada, eu vejo somente em seus olhos uma luz de ódio, fria que me assusta. Quanto a mim, eu estou igual a um zumbi, eu vivo, mas não vivo mais em mim. Só a força de Deus me faz ficar em pé”. Duzentas pessoas que vieram; muitas Era testemunhas deste ssar desastre e as infelicidades as golpeara. preciso ultrapassar ultrapa este sofrimento, sentir a força e a esperança que se extraía desta reunião. Eu peço o microfone e pergunto: “O que me toca e mais me surpreende é a energia que eu sinto em tudo aquilo que foi dito e que fizeram vocês estarem lá, hoje e a resistência de vocês ante ant e a violência sofrida”. “De onde vem esta força?” “Foi a presença de meus filhos que me impediu de fazer uma besteira.”  besteira.”   Uma avó, preto, aproxima-se microfone:e “Foi ovelha fato de nãotoda ser adeúnica atingida por estado infelicidade  porr m e sent  po se ntir ir apoi ap oiad adaa p or aque aq uele less cuja cu ja casa ca sa f o i sa salv lvaa p el elaa intervenção de Airton e que me acolheram, agora que eu estou

sem teto, isso me dá esperança e a força para continuar a  

viver”.   viver”.  “É verdade, Dona Angélica tem razão”, interveio com voz determinada, o presidente da associação comunitária. Hoje nós somos mais de 200 pessoas, certamente há a força de Deus, mas se nós não juntarmos a nossa força não iremos muito longe. Nós todos podemos, sobre as ruínas da destruição policial, construir entre nós uma solidariedade que será muito mais resistente aosconstruído.”  ataques exteriores do que qualquer muro individualmente construído.”   Como em cada sessão, as pessoas presentes davam-se as mãos, constituindo, assim, uma grande corrente humana. Eu  peço  pe ço que qu e ju junt ntos os,, em f orm or m as de prec pr ece, e, par pa r a r ep epee tirem: “Meu Deus, foram destruídas nossas casas de argila, papelão e  palh  pa lha, a, m as não nã o dest de strr u ír íram am a noss no ssaa ca casa sa in inte terr ior, io r, no noss ssaa esperança. O momento chegou de reconstruí-las e para isto é  prec  pr ecis isoo m ais ai s d o q ue argi ar gila la,, ci cime ment ntoo e p edr ed r as as.. É n eces ec essá sárr io, com a benção de Deus, acreditar na força de nossa união. A salvação de cada um de nós está no mutirão”. Com estas  pala  pa lavr vras as a mu mult ltii dão dã o se disp di sper erso sou, u, ag aguu arda ar dand ndoo o enco en contr ntroo no dia seguinte para manifestação em frente do Palácio da Justiça, a fim de apoiar a ação engajada por Airton e pela Associação dos Direitos do Homem para que houvesse a condenação da ação ilegal da polícia e obter a reparação do  prej  pr ejuu íz ízoo sofr so frid ido. o. Nest Ne stee mom mo m ent en t o ta tam m bém bé m sol so l ic icit itam amos os o comparecimento da mídia; houve muitas notícias de jornais, artigos, reportagens de rádio e televisão, atingido pela indignação me tinham  invadido, um artigo no jornal Oe raiva Povo que de Fortaleza, intituladoescrevi “Despejo nunca mais”.   mais”. Além disto, reunimos as crianças que cantavam depois de desenharem o que elas haviam vivido. Todos os desenhos foram agrupados para serem expostos em cada manifestação. De fato, os desenhos ilustram melhor aquilo que qualquer discurso passou e como foi sentida a violência da ação  poli  po lici cial. al. E ncar nc arre regg uei, ue i, no f inal, in al, os estu es tuda dant ntes es de psiq ps iquu ia iatr tria ia de escreverem, no âmbito de sua formação, a história das famílias traumatizadas. Estas diversas ações comuns permitiram obter da administração governamental um terreno e o material

 

necessário para a construção das casas, segundo a prática tradicional do mutirão. Eu vim a esta roda de terapia comunitária, com o meu amigo e antigo professor de etnologia, François Laplantine, acompanhado acompanh ado de uma amiga amiga psicóloga. Eu os havia convidado  parr a vi  pa virr em ver ve r aqu aq u il iloo q ue nós nó s fazí fa zíam amoo s em Quat Qu atrr o Var Va r as e aproveitara a sua passagem para participar da reunião de quinta-feira à itarde. e sviram oteocorrido.  Nu  Nunc ncaa p ense en sei que qu e Visitaram ser se r ía íamo moss o dterreno estr es truí uído dos a es este pont po nto. o. Laplantine e sua amiga pareciam seriamente emocionados. Eles olhavam tudo ao redor do campo de batalhas: punhados de areia, tábuas, papelões, telhas, sacos de plástico. Poder-seia reconhecer nesta quantidade de materiais heteróclitos, uma lâmpada de cabeceira dourada, um espelho quebrado, uma  bone  bo neca ca es estr trip ipad ada, a, um velh ve lhoo r ád ádio io cu curr io iosa same menn te pe pend ndur urad adoo  pelo  pe lo seu se u f i o el elét étri rico co em uma um a tá tábu bua, a, que qu e h avia av ia resi re sist stid idoo a est es t a maré, a este tremor de terra.  Nãoo n os dam  Nã da m os cont co ntaa a que qu e po ponn to v iv ivem emos os em u m mun mu n do  prot  pr oteg egid ido, o, long lo ngee da d a vio v iolê lênn ci cia, a, d a ag agrr essã es são, o, da inse in segu gurr ança an ça,, do do medo permanente do instante, do outro instante, do depois de amanhã. Estávamos chocados, perturbados perturbado s pelo espetáculo de desolação. Nós não conseguíamos extrair o sentido desta selvageria. Nós precisamos ouvir as numerosas testemunhas  parr a co  pa comp mprr ee eenn der de r o q ue hav ha v ia f er erid idoo p rofu ro funn dam da m ente en te as vítimas dos tratores. Os objetos destruídos, esmagados pelas correntes do carro, não tinham nenhum valor de mercado; objetos recuperados encontrados despejos, um valor afetivo: haviamousido presentes em de um amigo, tinham do patrão, da mãe... Estas eram as suas únicas posses, suas únicas riquezas, traços ou lembranças de breves instantes de felicidade, reunidos em alguns metros quadrados de intimidade, de propriedade, marcas de suas existências. Todas Toda s estas pessoas nos falaram de uma violação coletiva. Pouco acostumado a uma violência emocional compartilhada e ampliada pelo efeito da quantidade: nós havíamos sido tragados. Cada um reagiu a seu modo: Laplantine estava com os olhos brilhando, o olhar fixo, respirando muito forte e secando o suor da fronte e do rosto. A sua amiga não parava no lugar: visivelmente revoltada, dizia: “Isto não é possível,

estou sonhando... não é possível . Quanto a mim, sob a  

 pr essã  pres sãoo e o s efei ef eito toss da adre ad renn al alin ina, a, meu me u espí es pírr ito exp ex p lo lodi diaa p or todas as formas possíveis. Eu sentia imperiosamente a necessidade de reparar, reconstruir, curar as chagas do coração, unir todas as capacidades de recriar, construir, edificar juntas. Uma ideia se impunha: o mutirão. O mutirão é um processo de ajuda mútua, quando todos os homens de uma comunidade oferecem à coletividade um certo número de horas de trabalho, para construir as casas. Cada família, desta maneira, é beneficiada desta solidariedade, que  perm  pe rmit itee edif ed ific icar ar as habi ha bita taçõ ções es e tam t ambé bém m tec t ecer er as li liga gaçõ ções es e as relações sociais, que se solidificam no decorrer do tempo  pass  pa ssad adoo junt ju ntos os n o tr trab abal alhh o. Tive a oportunidade, anteriormente, anteriormen te, de viver esta experiência, com meu pai e meus irmãos. Nós havíamos chegado a Fortaleza. Alguns meses após nossa instalação mais do que  prec  pr ecár ária ia,, foi fo i prop pr opos ostt o a m eu pai pa i que qu e f ic icas asse se co com m o créd cr édit itoo de mutirão deixado por uma família. Esta iria se mudar para o novo quarteirão da favela de Pirambu, denominada Japão. Tratava-se de um programa de construção de alojamentos, conduzido pelo governo, com o apoio financeiro da “Aliança  parr a o Pr  pa Prog ogrr esso es so”, ”, do go gove verr n o norte-americano. Todos os materiais necessários eram fornecidos e as construções deveriam se realizar sob o regime regim e de mutirão. Meu pai aceitou o contrato. Nós devíamos 300 horas de trabalho. Estando em férias do seminário, eu me reuni todas as tardes com a equipe familiar. Esta incluía, além de meu pai, Antônio, Aírton e dois  prim  pr imos os que qu e es esta tavv am em f éria ér iass na minh mi nhaa casa ca sa.. Ao final de 15 dias, havíamos largamente pago pag o a nossa dívida. Fizemos muitos amigos e praticamente terminamos a casa em que atualmente atualment e vivem meus pais, e que está situada a algumas centenas de metros de Quatro Varas. Esta experiência me deixou um precioso ensinamento: aprendi a importância da ajuda mútua e da solidariedade em torno de uma ação concreta de construção. Ela permitiu a materialização de um projeto cuja importância vem ao espírito daqueles que a realizam. Em outras palavras, o símbolo da união de meus avós. Evidentemente, tudo o que construímos a seguir em Quatro

Varas foi em mutirão: a casa para crianças, para pessoas de  

idade, para xerografia, as duas palhoças de reunião, o laboratório de plantas medicinais da farmácia viva. Finalmente, o atelier de arteterapia para os jovens, filhos de alcoólatras. Construir no universo da precariedade, do efêmero, do inseguro, do provisório, que é o da favela, é sair da sobrevivência dia a dia e introduzir a ideia de duração do sólido, da esperança.

 

Todos os Caminhos Levam a Roma   Fiquei apenas um ano no seminário de Sobral. Havia trajado somente um ano de batina. Em seguida, de fato, no seminário de Fortaleza, sustentado pelos padres holandeses do Sagrado Coração de Jesus, o “uniforme civil” era, a rigor, uma vestimenta com as cores da instituição. Fui para Fortaleza devido às mudanças paternas. Assim, no final do terceiro ano, como todos meus colegas nordestinos, migrei Éramos para o Recife, com aosfinalidade de terminar meus estudos. apenas quatro do Ceará; os outros vinham de diferentes Estados do Nordeste: Bahia, Pernambuco, Maranhão. As  brin  br inca cade deir iras as eram er am com co m uns un s entr en tree nós, nó s, ca cari rica catt uran ur ando do as  part  pa rtic icuu la larr idad id ades es o u enf en f at atiz izan andd o pe pejo jorr at ativ ivam ament entee a r ep epuu ta taçã çãoo de uns e outros, segundo a sua proveniência. Assim, os cearenses eram denominados de “agrestes”, cujo espírito estava tão próximo da terra que pairava o rés do solo ou devido ao fato de o jovem originário do Ceará utilizar pouca água quando toma banho. Ao banhar-se, ele fecha a torneira  parr a se en  pa ensa sabo boar ar,, e só abr ab r e par pa r a se la lava varr do sa sabb ão. ão . E ste st e é u m hábito de economia de água, relacionado à penúria de água que é frequente em nosso país. Enfim, para citar apenas os termos principais de nossos rótulos, éramos qualificados como viradores, com referência à pobreza de nosso povo, obrigando a cada um a arranjar-se com pedaços de barbantes. Como se pode constatar, o seminário não era poupado de “chauvinismo” de divisões ou oposições regionais vizinhas. Excetuando estes momentos de tensão de entre grupos, que, apesar de tudo, reforçavam o sentimento presença de uma comunidade, comunidad e, de uma cultura, eu seguia com prazer e confiança o curso escolar que me conduzia, com orgulho, para o sacerdócio. Meu encontro com o Padre Reginaldo Veloso foi, para mim, o primeiro revés importante de minha escolaridade que qu e abalou minha tranquilidade, minhas certezas, minhas convicções religiosas, obrigando-me, intimamente a me defender, a escolher o meu caminho.  Nó s está  Nós es táva vam m os em 196 19 6 8, e ouv ou v ía íamo moss fa fala larr dos movi mo vime ment ntos os contestatórios da juventude que agitavam e desestabilizavam

a Europa e os Estados Unidos mas, as informações de que  

dispúnhamos eram “avaliadas” pela junta de coronéis coron éis no  pode  po derr d es esde de 1 96 9633 e apr ap r esen es enta tada dass de ta tall man ma n ei eira ra q ue tí tính nham amoo s a impressão de que se tratavam de notícias vindas de outro  plan  pl anet eta. a. Quan Qu ando do o p adre ad re Reg Re g inal in aldo do come co meço çouu a f azer az er u ma análise crítica da ação da Igreja, mostrando que esta reforçava um processo de neocolonização e colocava-se ao lado dos ricos e poderosos, vivendo nas costas dos fiéis, acentuando assim a sua miséria, eu me senti sufocado e profundamente indignado. Como era possível criticar, assim, nossa madre Igreja? Senti em meu íntimo uma violência feita de agressividade e de medo. Eu nunca havia sentido, até então, uma emoção tão intensa. Estava revoltado, queria calar, punir este indivíduo sem pudor que ousava o impensável: atacar o instrumento de Deus, nossa grande família espiritual. O Padre Reginaldo era alto, delgado, emagrecido, com as feições macilentas. Ele tinha o perfil de uma águia, com seu nariz curvo como pinça, sua fronte alta e seus cabelos negros, cuidadosamente alisados e puxados para traz. Uma leve exoftalmia acentuava esta impressão de uma grande ave  pred  pr edad ador ora, a, tr traz azen endo do em seu se u ol olha harr um bril br ilho ho e u ma te tenn são sã o  perm  pe rman anen entt e. T emos em os q ue conv co nvir ir qu quee el elee “se “s e im impu punh nha” a” ta tant ntoo fisicamente como falava falav a sem nunca procurar suas palavras ou ideias. Ele solicitava voluntariamente controvérsias, tinha resposta para tudo e não parecia embaraçado com qualquer questão. Esta segurança tinha qualquer coisa de arrogante, de  prov  pr ovoo cado ca dor, r, que qu e me arr ar r epia ep iava va.. E u ti tinh nhaa med me d o de meu me u s sentimentos de inveja, de meus também do fato de que tudo o quedesejos ele diziadestruidores, me tocava emas me desorientava. Progressivamente meus sentimentos evoluíram; os argumentos desenvolvidos pelo Padre Reginaldo, cada vez mais, faziam eco dentro de mim. Não somente compreendia que ele avançava cada vez mais, como em meu foro íntimo í ntimo eu o aprovava. Eu me sentia dilacerado, porque efetivamente não  podi  po diaa ad ader erir ir a seus se us p rop ro p ósit ós itoo s ic icon onoc ocla last stas as,, qu quee me desestabilizavam. Estava consciente de que estes propósitos representavam um risco para as minhas convicções e para as  base  ba sess de m eu eng en g aj ajam amen ento, to, mas, ma s, so sobr bret etud udo, o, pa parr a a u nida ni dade de e força da Igreja. “A religião é o ópio do povo se ela serve à ilusão de que para

tudo é necessário a espera de Deus. Convidando assim a se  

adotar uma posição passiva, de resignação face à infelicidade e a miséria do mundo. A palavra de Deus deve dar ao homem a confiança em si mesmo, em sua capacidade de lutar, de se realizar e de ajudar a encontrar soluções para seus problemas.” Acrescentava, com co m uma certa exaltação que nos excitava e nos estremecia: “Vocês vivem –   n a  –  redoma   redoma protetora da Igreja,  pe  per r su suad adid idos os dedequ que e se seggfazem uem ue m o parte cami ca minh nho da verd veexército, rdad ade. e. Vo Você cêss têm tnão êm o sentimento que deo um mas sabem muito bem se na verdade este exército é do bem ou do mal. Vocês querem ser sacerdotes que ajudam a transformar as coisas, lutando contra a pobreza e a injustiça ao lado dos fiéis, ou estar essencialmente e unicamente unic amente ligados aos rituais e ao sacerdócio?”  sacerdócio?”   Era a primeira vez que eu ouvia semelhante coisa. Eu estava, como que, na encruzilhada dos caminhos. Descobria que havia dois lados, duas maneiras de encarar a fé e a ação no interior da Igreja ou, simplesmente, a ação cristã. Compreendia que precisava escolher, mesmo que o momento de fazê-lo não tivesse ainda vindo para mim. Eu não podia servir a dois mestres ao mesmo tempo: ao Diabo e ao Bom Deus; aos ricos e aos pobres; à Igreja conservadora ou àquela da mudança. Evidentemente, o Padre Reginaldo não tardou a ser afastado de suas funções de ensino. Acusado se loucura por uns, de ter  perd  pe rdid idoo a fé po porr outr ou troo s, o u de se serr mani ma nipu pula ladd o por po r gr grup upel elho hoss comunistas, foi rejeitado pelo conjunto da congregação. Após a sua partida. Foi acolhido pela equipe do Dom Hélder Câmara, sem ter de se preocupar com as autoridades políticas, polític as,  porq  po rquu e em 1 968 96 8 n ão se ou ousa sava va ai aind ndaa pr pren ende derr os p ad adrr es es.. Mas o germe estava lá. A dúvida e a suspeita tornavam-se os motores de uma nova dinâmica. Após a expulsão do Padre Reginaldo, eu fiquei mais crítico, mais atento, até mesmo desconfiado, frente às contradições ou às incoerências de comportamentos de certos sacerdotes. No final deste  penú  pe núlt ltim imoo ano an o d o seg se g und un d o ci cicl clo, o, ti tive ve u ma alter alt eraç ação ão muit mu itoo  ba nall com  bana co m u m “sem “s emin inari arist sta” a” que qu e se form fo rmav avaa como co mo prof pr ofes esso sorr da congregação. O reitor do seminário me chamou para que

eu me explicasse sobre a pequena pequena discórdia que me oopunha punha ao  

confrade. Em seguida, ele disse que compreendia, mas que, entretanto, me infligiria uma leve punição. Eu lhe pedi para que revisse, apenas para poder po der extrair o sentido da sanção que me parecia ser uma injustiça ou uma contradição. contradiç ão. “Se o senhor me compreende, se eu não cometi nenhuma falta, então por que me pune?” Depois, citando São Paulo, argumentei: “O homem condena somente aquilo que não compreende”. meu primeiro comdosa autoridade autoridad e religiosa.Era Esteoincidente precediaconfronto quase o final cursos e, precisamente quando anunciou, antes de partir em férias, que precisaria fazer durante os feriados o pedido de inscrição para o ano seguinte. Quinze dias antes do retorno, recebi uma correspondência do reitor, que lamentava, mas que não poderia me aceitar neste ano na classe de término do seminário, porque não havia tido inscrições suficientes em minha seção para se formar uma classe. O golpe foi terrível para mim. Eu não ousaria contar  parr a o s meus  pa me us pa pais is,, mas ma s não nã o p odia od ia f ic icar ar sem se m re reaç ação ão.. As Assi sim, m, dirigi uma carta de resposta respo sta ao reitor. Este processo seria sem dúvida, em vão, mas para mim era importante expressar meu sentimento sobre esta manobra grosseira e hipócrita, empregada para me excluir e mostrar, assim, que eu não era tolo. Deplorei, então, ser afastado desta forma. Reconhecia que eu tinha o meu lado exigente e, por vezes, exasperante  parr a co  pa com m ooss meu m euss prof pr ofes esso sore res, s, mas ma s eera ra prec pr ecis isoo qu q u e fo f o sse ss e vvis ista ta a manifestação do meu interesse, de meu engajamento na missão evangélica, à qual eu me destinava. Considerei,  po rtan  port anto to,, est es t a med me d id idaa de af afas asta tam m ento en to co com m o grav gr avís íssi sim m a. Nã Nãoo levara em conta a minha vocação. O seminário, para mim, representava um espaço de construção, de diferença, no qual eu dava o melhor de mim mesmo. Eu mal podia compreender como se pode despachar alguém porque incomoda, sem lhe dar mais explicações. Terminei a carta pedindo que tivessem a honestidade de me  prec  pr ecis isar ar as razõ ra zões es ex exat atas as d e meu me u bani ba nime ment nto. o.  Nã o hou  Não ho u ve v er erda dadd ei eirr amen am ente te cons co nsoo lo n es estt a corr co rres espp ondê on dênn ci ciaa e, sem ilusão sobre as consequências que seriam dadas, passei momentos difíceis. difícei s. Eu havia feito a ideia de que Deus, o bom

 pai,i, me ap  pa apoi oiar aria ia n este es te m omen om ento to b as asea eado do n a p assa as sage gem m do  

Evangelho: “Se tu pedes pão a Deus, Ele não te dará pedras”. Intimamente, refletia: “Se este envio camuflado não é de  pedr  pe dras as,, d e qu quee se serr á?” á? ” Ante An te esta es ta adve ad verr sid si d ade, ad e, lo lonn ge d e renunciar a meu projeto de me tornar padre, fui ver Dom Delgado, bispo de Fortaleza. Este, após ter ouvido a minha história, prometeu-me que me inscreveria num seminário maior, de mentalidade nova, que estava em vias de ser montado. Este homem enérgico tinha ideias ideia s “rígidas” como a imagem de suas mãos e a de suas feições empertigadas. emp ertigadas. Desde a nossa  prim  pr imei eirr a en e n tr trev evis ista ta,, ele e le não nã o ttin inhh a ppap apas as n a lín l íngu gua; a; i a dire di reto to ao assunto: “Você quer par ticipar ticipar de uma experiência nova, então, tome consciência de que o mundo atual é um mundo técnico. Não é justo, em um país pobre, viver com o pouco dinheiro que ganham os fiéis. Romper com a tradição e a condição de se criar outras. Um padre moderno deve ap render uma profissão técnica e a exercer em meio período para ganhar a sua vida: ajudar a comunidade e não depender dela financeiramente”.   financeiramente”. Eu estava totalmente embaraçado com estas propostas. Havia imaginado as coisas de outro modo. Pensava em me consagrar essencialmente ao seminário, ao estudo da liturgia, dos sacramentos e dos textos bíblicos para estar pronto para exercer minha missão sacerdotal. Em lugar disto, propunhame a escolha de outra profissão. Qual? Eu nunca havia  pens  pe nsad adoo ni niss sso. o. “A q ue você vo cê qui qu i ser, aquela que lhe parecer adequar melhor com o seu caráter ou estar mais de acordo com o seu modo de encarar o ofício de padre. Você tem um ano  parr a re  pa refl flet etii r dur du r ante an te se seuu ú lt ltim imoo an anoo esco es cola larr , q ue v ocê oc ê deve de ve fazer fora do seminário”.  seminário”.   Eu decidi rapidamente seguir a profissão de medicina: servir, trabalhar para os outros, cuidar de corpos, salvar vidas. Parecia-me que completava o projeto de salvar as almas. Então prestei um vestibular; muito difícil para p ara ser admitido na Faculdade de Medicina, e entrar no seminário com a outra corda indispensável para o meu arco de futuro padre. Vivi quatro anos extraordinários, extremamente densos e laboriosos, no decurso do qual travei novos conhecimentos.

Durante o dia, seguia os meus estudos de medicina entre a  

universidade e o hospital; à noite aprendia Filosofia e Teologia. Mas, se agora isto me parece um tempo de louco, naquela época minha sede de aprender, de saber, era tal que eu não temia nem a fadiga do trabalho nem a sobrecarga. Eu verificava, ao contrário, que a filosofia me dava instrumentos  parr a r efle  pa ef leti tirr e r et etrr oced oc eder er em re rell ação aç ão a tudo tu do aqui aq uilo lo qu quee a Faculdade de Medicina me requeria assimilar. Quanto à teologia, suas relações com os demais estudos eram indispensáveis, indispen sáveis, porque não esquecíamos que a minha vocação  perm  pe rman anee cia ci a es esse senc ncia ialm lmen ente te sace sa cerr dota do tall e a ap apre rend ndii zag za g em d e medicina somente secundária, assessoria, dizíamos, e não o inverso. Entretanto, no n o final de dois anos, eu comecei a sentir um profundo mal-estar. Durante toda a minha infância, eu havia sido testemunha de um modo de viver, de cuidar dos doentes e infelizes, fazendo apelo ao poder de curar dos santos protetores e dos curandeiros com suas preces mágicas. Os raizeiros com suas raízes e cascas de árvores, os médiuns espíritas e os umbandistas com seus espíritos, seus rituais, seus transes. Com os estudos de medicina, fazia sentir angústia sobre o futuro, à medida que descobria a sua riqueza e complexidade. A percepção da doença e do sofrimento humano estava em oposição com a de minha própria cultura nordestina. Progressivamente, Progressiv amente, eu me dei conta de que o mundo acadêmico exigia de mim uma renúncia total às minhas crenças anteriores. Tudo se passava como se, para tornar-se um homem de ciência, eu devesse renunciar à minha própria cultura. Eu não podia mais exprimir minhas crenças sem me expor às críticas de meus colegas. Eu me sentia desarmado. Como responder às exigências de uma ciência baseada na materialidade das coisas, se o que me animava pertencia a uma outra dimensão da vida, o mundo invisível na qual a ciência não poderia aceitar? Muitas vezes eu me perguntava o que restaria de um homem se lhe tiram suas crenças e convicções que fazem dele um nordestino, um sertanejo? Eu temia ser devorado pelas “certezas” científicas. científic as. Passei a me mostrar desconfiado desconfia do frente

às grandes certezas. Elas são muitas vezes a arma mortal  

daqueles que querem minar o espírito das pessoas perdidas em suas dúvidas e caminhos libertadores. Entretanto, estes dois universos me apaixonavam. Cada um deles tinha o seu lado sedutor. Meu primeiro universo u niverso cultural nutria em mim este gosto pelas coisas maravilhosas, mágicas, onde o homem, para sobreviver, sobre viver, deveria levar em conta o lado invisível das coisas. Eu havia aprendido que o essencial é invisível se voltado deve viver os pés na te a cabeça cabeç a nas estrelas e eoque olhar paracom o infinito. Se terra, o rra, primeiro mundo vivia da verdade mítica onde o imaginário desempenhava um  pape  pa pell prin pr inci cipa pall e r edu ed u zi ziaa a r eali ea lida dade de ma mate teri rial al a u ma espé es péci ciee de miragem, sem importância, o mundo científico privilegiava a realidade material, ignorando, e até mesmo combatendo, o imaginário, o irracional. Este novo mundo exigia a morte de meu universo cultural para poder reinar como senhor absoluto. Ele quer ser a única medida, aconteça o que acontecer. Esta foi uma das minhas primeiras batalhas interiores. Eu sabia que precisava enfrentar e que a única origem possível desta luta passava por um diálogo entre aquilo que eu era e aquilo que eu me tornava. Neste estado de guerra interior, aprendi a não rejeitar nada sem antes ter examinado, questionado. O grande temor que me habitava era me encontrar esvaziado dos elementos que constituíam a base de minha existência, de minha identidade cultural. Eu não podia conceber uma vida sem autonomia criadora. Assim, um projeto, uma ambição, tomaram forma: queira me tomar um homem de saber, um cientista que acreditava em São Francisco e no Padim Ciço e ficar ligado à minha cultura de origem. Aliar tradição e modernidade. Encontrava, sob uma outra forma, a oposição de modelos  prop  pr opoo st stoo s p el eloo s m eus eu s avós av ós.. Meu Me u d esej es ejo, o, mais ma is d o qu quee n un unca ca,, impelia-me a encontrar um equilíbrio, uma harmonia, uma complementaridade entre a terra e o ar, entre o espírito e a matéria. Tudo isto explica por que após ter passado seis anos na Europa, meu primeiro trabalho de pesquisa universitária foi

sobre a peregrinação de Canindé.  

Estávamos, agora, nos anos de 1972-73, o seminário criado  porr Dom  po Do m Delg De lgad adoo havi ha viaa si sido do o que qu e pro pr o met me t era, er a, m ostr os tran andd o -se -s e amplamente aberto ao mundo moderno, tanto aquele das técnicas como o das ideias e das novas experiências. Eu me sentia como um peixe na água. O seminário convidava regularmente conferencistas. Eu não perdi nenhuma ocasião  parr a m e enr  pa en r iq ique uece cer, r, d is iscu cuti tirr ou ap aprr en ende der. r. Ce Cerr to toss de deba bate tess ficaram em minha memória. Penso, em particular, naqueles debates em que nós tivemos a ocasião de estar com Dom Hélder, com Leonardo Boff, quando ele esboçava apenas o contorno sobre a sua concepção de Teologia da Libertação. Recebemos, além do mais, padres estrangeiros, vindos de  pass  pa ssag agem em do doss país pa íses es vizi vi zinh nhos os d a Amér Am ér ic icaa Lat La t ina in a ou da Europa. Um deles, o Padre Daniel Jouffre, originário de SaintSaint Brieuc, teve mesmo uma carga de ensino no seminário. Ele era meu diretor. As ligações ligaçõe s que eu tive com ele ultrapassaram o quadro do papel institucional. Ele era para mim um confidente, um amigo, uma referência. Passávamos as tardes inteiras a discutir em francês. O prazer de falar esta língua misturava-se à descoberta de mundos, de experiências e de maneiras de ver completamente diferentes para mim: a vida no velho continente, aquilo que pode ser considerado como miséria em um país rico, a noção de climas, de estações, de ritmos diferentes. Aprendi com ele a conhecer as diferenças, aceitá-las e apreciá-las. Por exemplo: era incompreensível e chocante para mim um nordestino vivendo em uma região equatorial, que as pessoas  pu dess  pude ssem em sofr so frer er e morr mo rrer er d e fr frio io em u m país pa ís rico ri co co como mo a França. Ele falava muitas vezes da condição operária e de sua experiência como padre, trabalhando em uma fábrica e exercendo o seu sacerdócio em uma cidade operária. Este  pass  pa ssad adoo lhe lh e prop pr opoo rcio rc iono nouu se serr nom no m eado ea do co como mo r espo es pons nsáv ável el  pelo  pe loss Padr Pa dres es oper op erár ário ioss da Amér Am éric icaa La Lati tinn a e p el eloo s intercâmbios com a França. Vivíamos um período fecundo, no meio de uma formidável conspiração de ideias, abalando eprofundamente no interior da Igreja, as suas representações modelos habituais. Se, até então, o jugo da censura e do controle da ditadura militar havia poupado os meios religiosos, religiosos, sentia-se nitidamente que

a situação modificava-se rapidamente. Os representantes da  

 po líci  polí ciaa assi as sist stia iam, m, p or v ez ezes es,, aos ao s cu curr so sos, s, e m uito ui toss de nó nóss suspeitávamos que espiões estivessem infiltrados no seminário. As ameaças pairavam. A menor crítica ao regime traduzia-se infalivelmente por uma convocação ao comissariado. De uma só vez, os acontecimentos se  prec  pr ecii pita pi tarr am, am , enca en cadd eand ea ndoo -s -see uns un s n os ou outr troo s, co colo loca cann do-n do -nos os  brut  br utal alm m ente en te f rent re ntee às real re alid idad ades es p olít ol ític icas as r el elac acii on onai aiss e  pess  pe ssoa oais is muit mu itoo difí di fíce ceis is p ar araa se comp co mprr ee eend nder er e su supe perr ar. Acredito ter vivido este episódio da minha vida como uma sucessão de tremores de terra, deixando-me transtornado, abalado, profundamente colocado em questão: tive a impressão de ter envelhecido, em algumas algumas semanas, cem anos. Mas o tempo deforma e remaneja as lembranças, sobretudo quando elas são traumatizantes. Então, é preferível dar a  pala  pa lavr vraa ao a o jjoo vem ve m ssem emin inar aris ista ta que qu e eu e u er e r a na n a ép époc oca, a, pa parr a ccon onta tarr com a emoção do momento o que exatamente se passou. “Tudo em umacom belaboa manhã, a prisão as do coisas Padre Daniel começou Jouffre. Como fé elecom protestou, tomaram um rumo mais brutal. O tom de voz sobe, e, ao meio de grandes empurrões, dezenas de policiais levaram firmemente o padre, com tudo o que foi encontrado em seu quarto. Os espíritos estavam esquentados, o seminário em ebulição. Assinam-se petições, imaginam-se possíveis intervenções diplomáticas de nossos superiores ou de  polí  po líti tico coss ju junt ntoo às au auto tori rida dadd es p ol olic icia iais is.. E m su sum m a, é o pâ pâni nico co,, a confusão do combate ao mesmo tempo. Ante o golpe, fiquei imóvel, fulminado como alguém que, colidindo frente a uma vitrine transparente, toma consciência de sua existência após ter quebrado o seu nariz. Não cheguei a compreender, a realizar tudo aquilo que se passou, tanto estava persuadido que a polícia política não ousaria nunca atacar os responsáveis religiosos”.   religiosos”. Durante a madrugada do dia seguinte, eles vieram para me  busc  bu scar ar.. Tr Três ês p olic ol icia iais is ci civi vis, s, ent en t rara ra ram m em m eu quar qu arto to,, le levv aram ar am alguns livros e fotocópias, selecionando em particular os livros de capas vermelhas. Depois me mandaram que os seguisse para ser interrogado noeles comissariado. Antes de acompanhá-los, pedi a um superior do seminário para me

acompanhar,, servindo acompanhar servindo me como testemunha testemunha e advogado.  

Em minha chegada ao comissariado, recompus um pouco meu ânimo; mas eram muitos males para serem acalmados, acalmado s, o medo e a cólera que me invadiam, me davam náuseas. Os dois inspetores que nos fizeram entrar em um pequeno escritório empoeirado, empoeirad o, repleto de papeladas, papelada s, deram-me deram -me a ideia de tratarse de um pesadelo de que eu despertaria. O interrogatório durou o dia inteiro; regularmente, ofereciam-nos, ao padre superior e a mim, sanduíches e café. toda a minha vida: as Eles vistoriaram, minuciosamente, questões pareciam saltar de “pato para ganso”,  ganso”,   mas, na realidade, nenhum detalhe era negligenciado. Sem distinção eles passam tudo em revista; certamente minhas relações com o padre Daniel Jouffre e também com os meus amigos de infância, minha família, o seminário de Recife, minhas leituras, ideias, convicções, o que eu pensava sobre Che Guevara, Lênine, Trotsky e sobre o papel dos sacerdotes na sociedade. Para terminar, eles me interrogaram longamente sobre as minhas responsabilidades de coordenador do grupo pastoral da juventude de Fortaleza, que reuniu no final de semana um certo número de jovens para refletirem sobre o papel do cristianismo. Apesar da fadiga e de numerosas provocações, terminei por enfrentar e responder e desviar dos ataques e  peça  pe çass que qu e eles el es me este es tenn diam di am.. Eu r et etor ornn ei me sent se ntin indo do va vazi zio, o, sem forças, extenuando com esta prova, mas, no final das contas, eles me deixaram partir. Eu não pude impedir a pequena p equena satisfação de sair às custas de uma grande emoção e de um quarto bagunçado. Pensei em Daniel Jouffre. A experiência pela qual havia passado deixou me ainda mais inquieto, em relação a ele.  Noss ddia  No iass que q ue se segu se guir iram, am, as notí no tíci cias as q ue nos no s ch c h egar eg aram am so sobr br e a sorte do Padre Jouffre não eram boas. Os militares queriam utilizá-lo utilizálo como “exemplo”. No seminário as coisas pareciam retomar bem ou mal seu curso habitual. Entretanto, eu progressivamente progressiv amente notava que a atitude de meus colegas, assim como a dos padres que frequentavam o seminário, havia mudado mudad o a meu respeito. Alguns me evitavam ou não mais me dirigiam a palavra; outros, que eu pouco

conheci, ao contrário, vinham falar comigo, tentando com  

evidência colocar-se bem comigo ou parecendo querer se  just  ju stif ific icar ar a m eus eu s olho ol hos. s. Mas Ma s p or q ue isso is so?? Com Co m ecei ec ei a se senn ti tirr um mal-estar cada vez mais opressivo. Perguntava-me se as minhas impressões tinham mesmo fundamento, ou se em decorrência do abalo dos acontecimentos recentes e da ausência do Padre Jouffre, cujo apoio fazia-me cruelmente falta nestas circunstâncias; eu perdera a orientação e entrara numa paranoia. Foi um dos meus do Ceará,“todos que, rompendo o silêncio, responde respondeu u às colegas minhas dúvidas: estão persuadidos de que você é   um ‘dedo‘dedo -duro’” da Polícia Federal. Ele fez esta menção no momento em que eu lhe comunicava as minhas impressões. Parecia que a terra desabava sob os meus pés. Perdi o controle, o tecido da realidade, a minha realidade, aquela que eu acreditava ingenuamente compartilhar com os outros, se rasga. Senti-me só, acusado injustamente. Após ter passado um longo tempo em meu quarto, torturado por mil questões que me assalta assaltaram ram de todos os lados, dirigi-me dirigi -me resoluta resolutamente mente  parr a o escr  pa es crit itór ório io do ch chef efee hier hi erár árqq uico ui co do se sem m inár in ário io,, deci de cidi didd o a dar um fim a estas calúnias. Participei a este superior que eu recebia acusações e exprimia a ele toda a minha estupefação: “Não compreendo como isto seja possível? Vivemos todos    junt  ju ntoo s, cada ca da u m sa sabb e b em como co mo eu v ivo, iv o, o que qu e eu pens pe nso, o, o que digo e faço”. Após ter me olhado com gravidade e simpatia, ele apontou uma pasta de papéis colocada sobre sua escrivaninha. “Tenho, efetivamente, recebido uma dezena de acusações seu respeito: alguns acham queespião você ou fazdelator. o jogo da polícia, aoutros imaginam que você seja  Nãoo ac  Nã acre redi dito to em nad na d a d is isto to,, m as sa saib iba; a; pr prim imei eiro ro,, qu quee a conjectura não lhe é favorável; segundo, todos os argumentos ou provas que você adiante sobre o que tem feito, a sua boa vontade, a sua posição... voltam-se contra você mesmo. Vou ser mais preciso, porque você parece mal perceber o que eu falo. Algumas cartas fazem notar que você era o único que nunca faltava nas conferências e que para tudo colocava questões. As suas relações próximas com o Padre Jouffre também lhe acusam: quem era o melhor colocado e o melhor instrutor de nosso colega senão você? Por que a polícia lhe liberou, enquanto o Padre Daniel continua na prisão?

Mostrou-se à vista de todas as aparências formais dos seus  

depoiment os na polícia para dar a versão e ficar encoberto. Eu depoimentos sei que não é nada disso, porque eu tive ocasião de conversar com colegas que lhe acompanharam, porém todos estes elementos se encaixam tão bem uns com os outros, que adquirem adquir em a força de provas. Enfim, além disto, eu tenho dados que alguns consideram prova material de sua traição, ou seja, um extrato bancário de sua conta, que sobe a um montante que a categoria não social de sua famíliaesta ou quantia. o simples ministrava p odem podem explicar Nacurso lógicaque de você seus detratores, esta pequena fortuna não seria senão o fruto da culpa, o dinheiro dado pela polícia a judas". Respondi, sem convicção, que acreditassem sobre o a origem deste fundo bancário. Este fundo pertencia a um grupo de estudantes de Medicina, de minha turma. Estes pensaram que seria mais certo confiar a um seminarista seminarist a o dinheiro que servia  parr a p ag  pa agar ar a f est es t a e a saíd sa ídaa tr trad adic icio iona nall do fin fi n al de ano. an o. E u sabia que daqui em diante o assunto estava encerrado e que nada serviria para eu continuar a me justificar sem ter fim. Finalmente, eu me conscientizei que foi minha sinceridade, meu engajamento excessivo que foram condenados. Completamente desamparado, não sabia a qual santo me devotar. E, nestas circunstâncias, a prece e o recolhimento não eram suficientes. Pedi para me encontrar com Dom Delgado, o bispo que me havia acolhido neste novo seminário. Eu lhe tracei a situação em poucas palavras: “A polícia me acusa de ser de esquerda; no seminário, dizem que eu sou da direita ou policial infiltrado, no momento em que eu mais necessito do apoio da Igreja. Eu fui rejeitado, acusado, banido. Onde está a fraternidade cristã?”.  cristã?”.   Pela primeira vez neste caos, neste pesadelo que eu estava vivendo, recebi uma ajuda, um conforto, as palavras que me ajudaram a retomar o pé na realidade. “Vivemos um momento histórico em que é normal haver suspeitas, questionamentos sobre as pessoas que nos cercam. Se você não compreende isto, porque é estúpido, da realidade. Alémédisto, é preciso levar completamente em conta que, asfora acusações visam aquilo que você representa, os valores que traz consigo neste

momento histórico, o projetor está mais voltado sobre você, de um lado ou de outro”. Após a série de eletrochoques que  

eu havia sofrido, estas palavras deram enfim um sentido àquilo que eu passava. A meu pedido, Dom Delgado Delgado autorizou-me autorizou -me que interrompesse meus estudos, no seminário, por dois anos - o tempo necessário para que eu terminasse meus estudos em Medicina e fizesse uma pausa para refletir sobre o que me ocorrera, antes de enfrentar o retorno. “Então, Adalberto, o seminarista, o que é que você aprendeu com tudo isso?”  isso?”    Nadd a de m uito  Na ui to al aleg egre re ou muit mu itoo dete de term rmin inan ante te.. Eu es esti tive ve muit mu itoo mal antes de sair de minha decepção, de meu estresse e de certa forma de meu rancor. Eu não conseguia traduzir as etapas deste pequeno caminho de sofrimentos, senão como vítima de uma justa intriga. Tomei, dolorosamente, a consciência da importância de  pert  pe rten ence cerr a u ma f amíl am ílii a biol bi olóó gi gica ca,, r el elii gios gi osa. a... . o u a um gr upo; up o; isto porque considero impossível viver em uma comunidade, sem fraternidade, sem solidariedade. Ficara realmente traumatizado por ter sido rejeitado pelos meus colegas, no momento em que tivera mais necessidade de seu apoio. Compreendo que, em certos momentos, há necessidade de tratar as chagas e restabelecer-se antes de poder pensar sobre estas chagas e disto tirar o ensinamento que elas contêm. Muitas vezes refleti sobre este período da minha vida e sobre minha atitude. Foi preciso tempo para extrair toda a minha responsabilidade neste estrago. Uma coisa pareceu-me claramente: se me encontrei sozinho neste sofrimento é  porq  po rquu e eu es esta tava va só, só , em minh mi nhaa ca cam m inha in hada da.. Os pe peca cado doss d e orgulho são piores, porque são os mais difíceis de se reconhecer. Portanto, é preciso antes confessar que a minha ambição era solitária e exclusiva. Toda a minha energia, todos os meus atos e pensamentos eram dirigidos para Deus. O sucesso de meu projeto consistia em vir a ser um de seus melhores servidores.  Nãoo ce  Nã cess ssei ei de dese de senv nvoo lver lv er esta es ta li liga gaçã çãoo ego eg o ísta ís ta com co m o céu cé u em detrimento das relações com os meus irmãos.

Pensei muitas vezes nesta história do peregrino fiel de São  

Francisco: ele foi, um “belo dia”, vítima, como todos os habitantes da região, de uma inundação diluviana. A água não  parr av  pa avaa de d e subi su bir. r. Uma Um a ccan anoa oa p arou ar ou d ia iant ntee ddee no n o sso h omem om em que qu e declinou a da oferta que lhe era feita de levá-lo, alegando esperar que São Francisco viesse salvá-lo. A água continuava subindo. O peregrino sujeita-se a subir em um coqueiro para se proteger. Ele vê organizar-se diante dele um êxodo geral. Entre barcos que fugiam catástrofe, umFrancisco, parou paraeletrazêtrazê lo; eleos recusa repetindo: “Eudaconfio em São viráme salvar”. A maior parte das pessoas partiram. Uma lancha a motor, depois um helicóptero vieram para salvá-lo. O homem, teimoso, mantinha firme a sua posição. Finalmente, nosso herói encontrou-se no céu diante de São Francisco;  porq  po rquu e, lo logi gica cam m ente en te,, a águ á guaa aca a cabb ou por po r subm su bmerg ergir ir o co coqu quei eiro ro e afogou o peregrino. “Por que você não me salvou?”,    perg  pe rgun unto touu o p ereg er egri rino no a seu se u padr pa drin inho ho.. O sa sann to patr pa tron onoo responde furioso: “Enviei, para lhe salvar, um carro, um  ba r co  bar co,, uma um a la lanc ncha ha a moto mo torr e m esmo es mo u m h el elic icóó pter pt ero. o. Do q ue é que você precisava mais?”  mais?”   A relação com Deus passa por outros, é através das ligações humanas que a gente pode se transformar e transformar o mundo. Penso muitas vezes no jovem homem arrebatado e apaixonado que eu fui e que continua ainda vivendo em mim. A lição foi muito cruel, seu preço muito elevado nos trouxe consequências indispensáveis. Infelizmente, a humildade só é aprendida nas provações. Retornei, assim, mais uma vez para a vida civil. Abria-se Abria -se uma nova fase de minha história. Estava como que em convalescença, revigorado, animado, por uma formidável necessidade de amar e de me sentir amado. Ensinei, algumas horas, no curso de religião e ciências naturais, em uma escola próxima da casa dos meus pais, para  pode  po derr pa paga garr m eus eu s es estu tudd os e tr tran ansp spor orte tes. s. Saindo deste estabelecimento de ensino, vi Angélica, pela  prim  pr imei eirr a vez. ve z. Ela El a vinh vi nhaa r eg eguu la larr men me n te busc bu scar ar su suaa i rmã rm ã e seu se u irmão na saída das aulas.

Tendo estabelecido meu compromisso, meu projeto de me tornar padre, evitava prestar atenção às jovens moças.  

Deixava as questões referentes ao amor e à sexualidade na categoria de fantasmas e testava as pulsões, as tentações que me assaltavam, como podia, com a ajuda de Deus, ante este desconfortoo moral e desgostoso. desconfort desgostoso. Um dia eu a encontrei na saída da escola; ela queria falar comigo sobre as dificuldades escolares de sua irmã. Antes de ela mesmo pronunciar a primeira palavra, cruzando nossos olhares, invadidoaspor uma sensação de doçura e de calor no peito,fuideixando minhas pernas bambas, a emoção na garganta e o medo de que o rubor que eu sentia subir às faces me tomasse ridículo. Por um instante, acreditei que não  pode  po derr ia tirar tir ar os olho ol hoss de se seuu ro rost sto, o, ond on d e havia ha via post po stoo tod to d o o meu ser emocionado. Ela parecia igualmente perturbada, mal conseguia engolir a saliva e procurava, de forma manifesta, nas palavras, os meios de recompor a sua emoção. Nós nos enamoramos. Curiosamente, nem vergonha, nemainda culpa; viver este amornão comsenti sinceridade. Depois, eu não decidi havia  pron  pr onuu ncia nc iado do m eus eu s v oto ot o s e este es te en enco cont ntro ro me ofer of erec ecia ia a alternativa que eu não queria e não teria que encarar até então. Todos estes questionamentos, estas dúvidas, concernentes às minhas escolhas, haviam sido regularmente discutidas entre nós. Angélica era muito bonita, delgada, cativante. Tinha o andar aéreo das dançarinas, deslizando ou roçando o solo; seus gestos desprovidos de peso, tivesse conseguido escapareram da ação da gravidade. Seucomo nome,seAngélica, refletia a impressão deixada pelo seu rosto e mãos: delicadeza, fineza, doçura. Seus cabelos, cor-de-mel, trançados, levantados acima da nuca, descobriam o seu pescoço e sua fronte de tez cor de pêssego destacando a chama de seus olhos negros e o  bril  br ilho ho de se seuu so sorr rris iso. o. Eu nunca havia sentido tanta ligação, envolvimento, que faz a ausência de outrem ser dolorosa e o pensamento ficar concentradoo na existência de um outro ser. Ela era muito beia; concentrad este retrato pode parecer muito excessivo, idílico, mas é  prec  pr ecis isoo ver ve r a aut au t ênti ên tica ca ap apre reci ciaç ação ão de um enam en amoo rado ra do romântico.

Tendo deixado o seminário para seguir como “louco”, meus  

estudos de Medicina, nós dispúnhamos de tempo para nos amar, passear, fazer projetos. Ela havia decidido mudar de carreira, interromper os seus estudos no Magistério, para adotar a formação de Enfermagem. “Isto será bom”, dizia -me, “estaremos também unidos e em harmonia na atividade  prof  pr ofis issi sioo nal” na l”..   Terminei meus estudos de Medicina. Havia escolhido fazer o meu último estágio no Hospital de Canindé, mantidovezes por uma congregação religiosa, conforme ocorre muitas no Brasil. Uma vez mais, eu passava por esta cidade; ponto de  part  pa rtid idaa par pa r a uma um a n ova ov a vo volt ltaa da esp es p iral ir al.. Frequentemente, esta congregação recebia a visita de autoridades religiosas, que aproveitavam a sua estadia na cidade para se encontrarem com os doentes e médicos. Ora, um dia, o visitante esperado calhou de ser o bispo substituto de Dom Delgado, o Cardeal Carde al Lorscheider, presidente da conferência pelo episcopal da América Latina. Uma feita a apresentação diretor do hospital, DomvezAluísio  perg  pe rgun unto touu -me -m e sobr so bree o m eu t raba ra balh lhoo e a entr en trev evis ista ta duro du rouu du duas as horas. Como eu lhe participei a minha intenção de ir para São Paulo, especializar-me em Teologia e Filosofia, ele me interrompeu: “Teu lugar é em Roma; lá você poderá terminar os seus estudos e encontrar os interlocutores que lhe ajudarão a encontrar o seu caminho. Reflita e venha me encontrar, se você aceita a minha proposta”.  proposta”.   Discuti eta..longamente  pr  prop opoo st staamuitas que qu e m evezes f oi f ei eita F inal in alme ment nte, e,com fu fuii dAngélica iz izer er a Mo Monnsobre senh se nhor ora Lorscheider que havia aceito a proposta de bolsa para Roma, mas, que precisava ser honesto com ele, eu não podia mais comprometer-me em me tornar padre, quando retornasse ao Brasil, porque eu não sabia mais se era isto que desejava, no momento. “Parta sem embaraços embaraço s e temores. O iimportant mportantee não é que você venha a ser padre, mas que utilize aquilo que tem aprendido para servir a seu próximo; não existe apenas uma maneira de servir a Deus”.  Deus”.   Quando anunciei anunci ei a novidade para Angélica, Angélica, ela me olhou com tristeza e certa gravidade. Ela sabia desde o nosso primeiro encontro que os nossos caminhos caminho s podiam se afastar. afastar. Pegou de

dentro de sua bolsa uma caneta tipo Bic e escreveu em um  

guardanapo de papel vermelho, do pequeno restaurante que costumávamos frequentar, as palavras: AMOR-ROMA. Depois eia se levantou e me mostrou que ROMA era o anagrama de AMOR. Estas foram as suas últimas palavras. Ela sabia e sentia como eu, com o coração cor ação partido, que a nossa história de amor acabava ali. Este jogo de palavras era um signo, uma espécie de presságio? Fiquei só, o coração pesado. Compreendi que de eu renunciava construir uma família. O caminho quefato se impunha para mima requeria colocar minha vida privada num plano secundário, meu projeto comprometia-me publicamente servir a uma comunidade.

 

Revelação da Cidade Eterna   Roma! Roma? Roma... Eu não tinha senão este nome na boca e na cabeça no percurso da viagem; eu o repeti, como que fosse para tornar este nome real, realizá-lo impregnando-me dele, como fazem os monges tibetanos com seu mantra, da força, sentido e ressonância que este nome traz. Roma: a cidade eterna, a cidade de São Pedro, a Santa Capela, a morada de Lorscheider: São Pedro. “Lá Lembrei-me do Monsenhor encontrarádas as palavras pessoas que responderão às suas questões e lhe ajudarão a encontrar seu caminho espiritual e a forma de seu engajamento neste mundo”.   mundo”. Foi a primeira vez que eu tomei um avião. A primeira vez que me separei da família e que eu saía do Nordeste. Porém, eu não tinha apreensões: estava todo excitado, impaciente para viver uma experiência extraordinária; tão esperada. Com efeito, através esperei de muito desta que viagem. Curiosamente eu me dei conta, conversas precederam minha partida, de que eu não tinha a impressão de estar a ponto de tomar o voo  parr a a E urop  pa ur opa, a, m as some so ment ntee o sent se ntim imen ento to d e ir p ara ar a Ro Rom m a, lugar tornado familiar, não obstante desconhecido. Os fatos, as imagens, os livros deste lugar não são a sua realidade. Refleti sobre o fato que peregrinagem, na língua portuguesa, quer dizer romaria. Constatei que o meu projeto era mesmo de efetuar uma peregrinação, uma espécie de viagem iniciativa, as fontes da cristandade e encontrar a luz que dissiparia as minhas dúvidas, expulsaria os rancores e ressentimentos sentidos neste ano, em suma, apagaria os momentos sofridos que eu vivera. Preparei esta viagem com entusiasmo. Estudei assiduamente a língua italiana por diferentes métodos. Consultei as revistas de agências de viagem e os guias sobre a cidade eterna, até decorar as descrições dos diferentes monumentos da Igreja: notadamente, a Basílica de São Pedro, a Capela Sistina e o Vaticano. Cem vezes imaginei o desenrolar de minha estadia, sonhava a noite e pensava nisso durante o dia. Assim, não era de espantar que a realidade me parecesse tão desbotada, tão

decepcionante decepcionan te comparada a meus sonhos. Esta experiência me  

ensinou que preparar e imaginar muito uma viagem priva-nos da surpresa, do maravilhar-se da descoberta, nós apenas nos decepcionamos com as nossas expectativas. Uma multidão de familiares me acompanhou até o aeroporto: choros, abraços, últimas recomendações. Neste momento, eu  pude  pu de ve verd rdad adei eira ram m ente en te me medd ir a impo im port rtân ânci ciaa d e m inha in ha famí fa míli lia, a, que me aparece calorosa, gigantesca, gigante sca, inumerável no momento de me encontrar só.  No aviã av ião, o, n ão cheg ch eguu ei a f echa ec harr o s o lhos lh os,, p as asse seii m eu te temp mpoo entre meu livro de assimilação da língua italiana e a lembrança comovente dos últimos instantes antes do embarque, que me fixou no espírito. Foi em um nevoeiro interior, mas também hibernal, que descobri uma Roma fria, chuvosa, cinzenta. Em todo o trajeto que me levou do aeroporto Leonardo da Vinci ao Seminário Pio Brasileiro, via Aurélia, eu não cheguei a acreditar que era mesmo aquela Roma de minhas leituras e de minha imaginação. A visão longínqua do que parecia ser um merengue gelado, erigido em homenagem de glória a Victor Emmanuel, que os Romanos denominam “a máquina de escrever” e da cúpula em forma de mitra da Basílica São Pedro me assegurou, em meu coração a garantia, de que eu havia mesmo chegado. Instalei-me, comprei vestimentas de lá, bem quentes, e comecei paraformação a minhateológica. inscrição Uma em Psiquiatriaos e procedimentos terminar minha  prim  pr imei eirr a dece de cepç pção ão me espe es perr av ava: a: era er a para pa ra mim mi m imp im p ossí os síve vell seguir um ensinamento teórico ou prático em psiquiatria pelo fato da desorganização total do sistema. A lei italiana estava com efeito da decretação do fechamento dos hospitais  públ  pú blic icoo s, sob so b a ação aç ão do mo movi vime menn to da anti an tips psiq iquu ia iatr trii a ou d a  psiq  ps iqui uiat atri riaa de demo mocr crát átic icaa diri di rigi gida da pelo pe lo p ro roff es esso sorr Ba Basa sagl glia ia d e Triestre. Esta revolução, que obteve em um primeiro momento o aspecto de um desafio, levando a uma desordem sem nome em toda a península, traduziu para mim na impossibilidade de fazer a minha especialidade. Decidi então consagrar todo o meu tempo e energia ao ensinamento

 prop  pr opoo st stoo pela pe la I grej gr ejaa e esco es colh lhii me i nscr ns crev ever er na Univ Un iver ersi sida dade de  

São Tomás de Aquino, considerada mais aberta e menos dogmática que a Universidade Gregoriana. Assisti a todos os seminários. Desejava participar de todas as grandes discussões, descobrir as contradições, desvendar o sentido escondido das coisas. Meu objetivo não era mais “incorporar”, como se diz no Brasil, as verdades , mas melhor reter o processo de liberação, aprender a pensar, a refletir, a despertar retorno, àsminha pessoasconsciência do Sertão. para melhor servir, em meu Paralelamente, visitei Roma em todos os sentidos. Amei esta cidade, amei passear nas bordas do Tibre ao longo do castelo Santo Ângelo e andar da praça pra ça do tribunal até a ponte Cavour. Perder-me no meio das instalações do mercado Campo dei Fiori. Ou perambular ao acaso nas ruelas para me extasiar ainda mais uma vez, (eu, que sou nativo de uma região de seca) diante das inumeráveis fontes ou me sentar para escrever no terraço de um café na Piazza Novana ou Vila Medicis. Algumas vezes eu partia para seguir as mensagens do passado, através dos lugares, das pedras, das obras de arte, esperava impregnar-me da experiência ou do sentido exalado  porr es  po este tess tr traç açoo s deix de ixad ados os p el elaa fé d os h omen om ens. s.  Na re real alid idad ade, e, esta es ta cur cu r io iosi sida dadd e tur tu r ísti ís tico co-e -esp spir irit itua uall me engendrava cada vez um sentimento de contrariedade de revolta crescente. Eu ficava chocado choc ado ao encontrar no Vaticano os padres turísticos que exerciam o ofício de guias para obter as dádivas, pensar que nós tínhamos necessidade de sacerdotes no terceiro mundo para ajudar os pobres, e, encontrava aqui, em um país rico, em vias de ganhar ou antes de perder suas vidas deste modo. Quando não se é estendendo a mão, mendigando - não temos medo das palavras -, para exercer as vocações sacerdotais. Este espetáculo enervava -me e me escandalizava. Visitando o Coliseu, não cheguei a sentir a presença, a lembrança do martírio dos primeiros cristãos, como também a visita ao santuário de Maria Goretti deixou-me indiferente,

incomodado. Constateio que a evocação da vidadadesta santa servia para   reviver comércio, às custas radiação espiritual, deste ser excepcional.

A Pietá de Miguelangelo, representando Jesus nos braços de  

Maria, que parecia ter a mesma idade dele, deixou-me estupefato com uma impressão penosa da ambiguidade inadequada. Mas foi, sobretudo, na Capela Sistina, ante o fresco desenhando o último julgamento que representou a emoção mais intensa e o momento mais determinante de minhas descobertas. Eu fiquei muito impressionado e profundamente comovido com esta de Miguelangelo. a cabeça para este obra-prima painel de pedras gigantesco,Levantando sentia-me  pequ  pe quen eno, o, frág fr ágil il,, tí tími mido do,, esma es magg ad adoo pela pe la b el elez ezaa e a f orça or ça que qu e se desprendia do movimento tumultuoso de corpos atléticos desnudos, em torno da terrível figura do Cristo-juiz. Eu não  podi  po diaa ti tirr ar m eu o lhar lh ar dest de staa o bra, br a, fasc fa scin inad ado, o, f ix ixad ado, o, in inca capp az de mover, de pensar, hipnotizado, como um coelho frente a serpente. Foi apenas ao final de uma hora, com o pescoço dolorido de tanto olhar o céu da capela, que comecei a compreender, deixando meus olhos percorrerem as diferentes  part  pa rtes es de dest staa obr ob r a m onu on u men me n ta tal,l, o q ue el elaa quer qu eria ia re repr pres esen enta tar, r, minha emoção, então, longe de se dissipar, não fez senão aumentar mudando de natureza. Senti a revolta que subia em mim e me invadia, revelando-me revelando -me a mim mesmo minha própria visão do mundo e de salvação do homem. Sentia-me  prof  pr ofun unda dame ment ntee em desa de saco corr do co com m a con co n ce cepç pção ão man ma n ique iq ueis ista ta de Miguelangelo, figurando os santos sacramentos, como os únicos recursos de salvação para o homem, única passagem do inferno para o céu. Esta representação fere violentamente minha fé, no processo de liberação acessível a todo homem, quaisquer que sejam a sua convicção, religião, cor de pele ou origem. Senti com cólera aquilo que já havia começado a perceber: há muitos modos de encarar ou de interpretar o ensinamento de Cristo. A mensagem de exclusão do “último julgamento”, afirmando que fora da Igreja católica e romana, de seus rituais e sacramentos, não haveria salvação, lembrava-me lembrava -me as exclusões as quais eu já havia experimentado, rejeitado no interesse da Igreja, porque pensava diferente. Na capela, antes de sair, fechei os olhos, rezei pensando pensa ndo em São Francisco e em Cristo da Basílica de Canindé e fiz a promessa de que nunca seria

soldado de um exército que excluía os outros, mesmo se o Papa a dirigisse.  

Se, em Fortaleza, eu devia dar cursos e fazer pequenos trabalhos para pagar meus estudos, em Roma, minha bolsa  perm  pe rmit itia ia-m -mee vive vi verr co conf nfor orta tave velm lmen ente te,, sem se m n enh en h uma um a  preo  pr eocu cupa paçã çãoo ma mate terr ia iall is isto to qu quee obti ob tinn ha aqui aq ui,, lá nu nunc ncaa h avia av ia atingido. No seminário, tive um status particular: eu sou médico. Com este título pude encontrar frequentemente os  bisp  bi spos os e os car ca r deai de aiss b r asil as ilei eiro ros, s, qu quee vi vinh nham am me pedi pe dirr conselhos suasentretanto, saúdes. Além disso, eu fazia parte dos estudantes,sobre sem ser, verdadeiramente seminarista. Esta situação, que me oferecia a possibilidade de frequentar os seminaristas e também os prelados, fazia com que descobrisse em volta de mim as contradições que me incomodavam. A Igreja parecia insensível à dimensão horizontal, relacional. Ela parecia se interessar apenas pelas suas próprias ideias, seus dogmas, seus valores, privilegiando o espiritual, a verticalidade, em detrimento do interesse pelo outro. Muitos exemplos retinham minha atenção, entre os quais, um exemplo que, desde a minha chegada, foi objeto de muitas discussões. Residia em um seminário confortável, em que apenas 80 dos 250 quartos estavam ocupados, enquanto, mesmo face a numerosos estudantes do terceiro mundo, tiveram que renunciar a seus estudos por falta de lugar para os acolher em suas residências lotadas. Outro exemplo, revelador daquilo que eu acreditava ser uma contradição no interior da Igreja e a qual assinala que sou eu que estou em contradição, em desacordo com a ideologia dominante, parece reinardonoseminário: Vaticano ecom que um nos propõe adotar nos que ensinamentos, colega  bras  br asil ilei eiro ro,, d ec ecii dim di m os f azer az er uma um a exp ex p os osiç ição ão sobr so bree a no noçã çãoo de  peca  pe cadd o soci so cial al avan av ança çadd a e dese de senn volv vo lvid idaa p or Dom Do m Héld Hé lder er Câmara, arcebispo de Recife. Preparamos este trabalho com entusiasmo, citando os inúmeros textos e terminando a exposição com extratos do credo escrito por Dom Hélder: “Creio em Deus, que é pai de todos os homens... Não creio no direito do mais forte, na linguagem das armas, no poder dos  po  pode der r os oso oos.que  Não  Nã o crei cr eio qu e a guer gu errr a e a f ome om e se seja jam m in inev evit itáv ávei eis. s..... qu quee todo to do o sofrimento seja em vão... que o sonho do homem permaneça

um sonho e que a morte seja o fim. Mas, eu ouso crer no sonho so nho do próprio Deus: um novo céu, uma nova terra onde a justiça  

reinará”.   reinará”.   No f inal in al d a exp ex p os osiç ição ão,, r eceb ec ebem emos os um umaa ver ve r da dade deir iraa du duch chaa fria fr ia.. As críticas e posições defensivas choviam de todos os lados: “É preciso saber separar religião de política, atenção às despistas, aos desvios, às manipulações, às recuperações marxistas, atenção para não confundir o espiritual com o social...”.   social...”. Porém, todos os bispos que eu tive ocasião de encontrar e que trabalhavam no Vaticano só falavam de política ou de negócios, mas para lá, tratava-se dos interesses da Santa Sé e não questões sobre os miseráveis. Eu me dei conta, após esta experiência sancionada por uma nota baixa, de que eu estava cada vez mais deslocado nos debates e “grandes discussões” das quais eu participava. Encontrei-me, como Monsenhor Lorsheider me havia  prev  pr evis isto to,, com co m n um umer eroo sas sa s p rela re lada dass e te teóó lo logo goss rep reput utad ados os.. Ma Mas, s, em vez de a luz, claridade, a paz no espírito, eu encontrar estava cada veza mais perturbado. Os coração discursose eram brilhantes, todos os conferencistas davam provas de inteligência e sutileza: fiquei ainda mais admirado com o vazio que sentia. Não obtinha nenhuma resposta às minhas interrogações: as grandes ideias enunciadas, o estudo dos dogmas e dos valores espirituais não avançavam em nada. Eu não via o que isto tudo poderia me ajudar para o trabalho que me esperava no Brasil. Tivesangue uma impressão de irrealidade, tratava os religiosos de frio. Percebia seus gestos, seuscom modos de falar desencarnados. Seus propósitos sem alma, sem vida, seus  pens  pe nsam amen ento toss sem se m li ligg açõ aç õ es co conn cr cret etas as co com m o co coti tidd ia iann o, se sem m relações com a condição humana. A questão era ap enas salvar as almas, sem levar em conta suas misérias materiais. Seus sofrimentos morais ou físicos. Estes fatos me fizeram lembrar das longas filas de peregrinos levando os ex-votos para a casa dos milagres de Canindé, a fim de que Deus, por intermédio de São Francisco, curasse tanto os seus corpos como as suas almas. Pode-se facilmente ler nestas palavras o relevo de minha

decepção! Abrigava estas ideias ide ias sombrias, subindo a via Vitorio Veneto.  

O dia estava bonito neste início da primavera. O ar doce vibrante e a luz tão característica de Roma faziam brilhar ainda mais a beleza e a riqueza da cidade. cidad e. Atravessei a Piazza del Brasile e continuei com os meus pensamentos nas alamedas da Villa Borghese. Parei. Era-me impossível, nesta cidade, formar-me em Psiquiatria. O ensinamento religioso e teológico por mais brilhante que fosse não respondia às minhas expectativas maismomentos concretas,de mais pragmáticas. Lembrava-me em vários meu professor de teologia moral que me havia mostrado mostrad o a função construtiva do  peca  pe cadd o, qu que, e, no n o s ddan andd o a ccon onsc sciê iênc ncia ia de sair sa ir do d o bom bo m cam c amin inhh o, nos fazia lembrar o sentido e o interesse deste caminho. Da mesma maneira que se diz classicamente que o pecado separa o homem de Deus, eu me dei conta de que estava em pecado comigo mesmo, e que progressivamente eu me afastava de meu projeto: formar-me, aprender as técnicas para ser capaz de ajudar meu povo como médico, psiquiatra e, quem sabe, talvez como sacerdote. Agora, eu sabia entreter-me nas noites, apreciar uma boa refeição, escolher um cigarro, degustar um vinho com boas maneiras. Aprendi Aprend i o idioma italiano, mas nada fez melhorar a forma de me expressar, para me fazer compreender junto às  pess  pe ssoa oass do No Nord rdes este te.. Em que qu e esta es ta f orma or maçã çãoo d a b urgu ur gues esii a iria ir ia me servir para o meu retorno ao meu país? Sentia-me em desacordo comigo mesmo, minha chama se apagava; abafada. Sentia-me cada vez menos criativo, não sabia o que escrever  pa  par r a a mi minh nha a f amí am í li lia. a.deE uma st staa vid vigrande d a conf co nfor ortá táve vell pencostei-me areci are ciaa -me -m e va vazi zia. a. Sentei-me embaixo árvore, nela. Este contato me tranquilizou e me ajudou a sentir minhas  próp  pr ópri rias as rraí aíze zes, s, a exi e xigg ên ênci ciaa de d e min m inhh a ffé, é, d e m meu eu enga en gajj amen am ento to.. Devia liberar-me do impasse no qual eu havia perdido de vista. Decidi então pôr um término em minha experiência romana, qualquer que fosse o custo. Isto significava, explicou-mee o monsenhor Lorscheider, renunciar à bolsa, pois explicou-m era impossível transferi-la para que pudesse estudar em outro  país  pa ís.. Vendo-me resoluto, meu protetor, para não dizer meu mecenas, me propôs trabalhar como psiquiatra residente em

uma clínica na Alemanha, mantida por uma comunidade franciscana, dirigida por uma de suas primas.  

“Esta experiência, disse-me disse -me é como uma pedra de três toques: você teria tempo para refletir; aprendera no próprio terreno os os rudimentos da Psiquiatria e poderá guardar um pouco de dinheiro para ir a Lyon, seguir os estudos de Teologia e se formar em Psiquiatria.  Na sema se mann a se segu guin inte te,, cheg ch egue ueii n a Clín Cl ínic icaa Sant Sa ntoo Antô An tôni nioo Haus Ha us,, em Waldbreitbach, situada na floresta, perto de Coblence. Esta deeiaasaúde encontra-se um lugar  pe  pens nsar arcasa n a id idei de qu que e ti tinh nhaa d o para paem raís íso, o, q ua uan n do que era er a pme eq equufazia en eno. o. Estávamos arrodeados arrodeado s de prados verdes, foscos, fosco s, com as vacas  bem  be m g ord or d as, as , o s chal ch alés és fl flor orid idos os,, esp es p al alha hado doss n o hor ho r iz izoo nte, nt e, o s rios, riachos e as florestas de pinheiros verdes a perder de vista. Eu nunca havia visto os pinos, apenas com Papai Noel, nas imagens de livros. Não faltava quase nada senão as renas e um trenó cheio de presentes para completar o quadro. Assisti às sessões terapêuticas de uma psiquiatra chilena, na quaa l eu me comunicava qu “portunhol”. de cinquentenas de mulheres,emvindas de todasCuidávamos as regiões do mundo e apresentavam todas as espécies de perturbações  psíq  ps íqui uica cas; s; no fi fina nall d e dois do is mese me ses, s, a sa saud udad adee pe peso souu -m -mee fortemente no peito, a melancolia enchia-me a cabeça. O que me faltava? O calor humano, os contatos corporais, os risos, as brincadeiras, a ternura. Meu coração fechou -se. Tudo  parr ec  pa ecia ia ig igua ualm lmen ente te sér sé r io, io , fr frio io.. E u ti tinh nhaa ne nece cess ssid idad adee de expressar amor, afeto. Eu me senti mal. Tive a oportunidade de colocar artificialmente um fim a esta falta. De sejava nessa Desejava sair, irgrande para Colonha, encontrar os brasileiros cidade. Mas antes de fugir desta prova de solidão que se impunha, decidi superar o desafio, aceitando o isolamento, a consciência íntima de mim mesmo, o diálogo interior  prol  pr olon ongg ado ad o . Foi Fo i a prim pr imei eira ra v ez em que qu e eu m e sen se n ti só, só , sem se m ligações nem contato afetivos. Filho de uma família numerosa, Cresci e estudei em coletividade. Havia sempre considerado os raros momentos em que me encontrava só, na  prec  pr ece, e, n o r etir et iro, o, com co m o um luxo lu xo,, u ma reco re comp mpen ensa sa,, es espp écie éc ie de  port  po rtoo de d e ppaz az,, qquu e me m e po p o ssi ssibb il ilit itav avaa rres espp irar ir ar,, m mee po p o sici si cion onar, ar, me reencontrar.

Agora, fora do contexto familiar, arrodeado por pessoas que falavam outra língua, originárias de uma outra cultura, eu  

tinha tempo para mim. Eu que tivera sempre impressão de fazer falta, a solidão de súbito, não me pareceu ser mais um  pres  pr esen ente te,, uma um a f el elic icii da dadd e furt fu rtiv ivaa que qu e se r oub ou b a d o te tem m po coletivo. Evidentemente, o fato de ficar só fazia-me revisitar todas as minhas relações passadas, minhas escolhas, minhas necessidades, meus desejos, meus projetos. Eu tentei reencontrar as lembranças felizes os aspectos de minha história. Preguei, acima de emeu leito, umapositivos dezena de fotos que eu tive a boa ideia de trazer comigo. Espantei-me com a minha imagem que achei pouco mudada com o tempo: eu havia envelhecido, no íntimo, crescido; evidentemente eu havia mudado, mas minha aparência exterior, meu envelope, envelop e, não parecia ter mudado. Mantive esta cabeça redonda do pequeno seminarista de batina. A foto estava fixada em uma moldura no meio de seus camaradas, com as pequenas maçãs rosto aaltas as quaisherança apoia apoiavam vam os óculos espessos de de míope; pelesobre cobreada, de meus ascendentes indígenas, os cabelos sempre finos, negros e ralos no alto da cabeça achatada. Lembrei-me de que meu avô “o brincalhão” alegrava-se alegrava -se em dizer que os nordestinos tinham a cabeça chata porque, desde bem pequenos, todas as  pess  pe ssoa oass lhes lh es r epet ep etia iam m ba bate tenn do do--lhe na cabeça: “Pobre  pequ  pe quen eno, o, qu quan ando do você vo cê cres cr esce cer, r, prec pr ecii sar sa r á p arti ar tirr pa parr a o Sul, Su l, trabalhar em São Paulo”.  Paulo”.   Escrevia muito para a minha família e meus amigos, para todos aqueles que me faltavam, procurando assim verificar a solidez e a qualidade das ligações que nos uniam. Enviei mesmo, com um momento de dúvida, uma carta para Angélica. Eu me familiarizava com dificuldade e certa angústia com períodos de falsa tranquilidade a este novo modo de vida. Era preciso muitas semanas para poder apreciar o ritmo mais lento, o estilo aparentemente mais passivo, o repouso, sem  proc  pr ocur urar ar enga en gann ar o té tédi dio, o, par pa r a co conc nclu luir ir o q ue hav ha v ia  prog  pr ogra ram m ado. ad o. Reto Re torr nar na r aos ao s te temp mpos os q ue eu n ão v ia ma maii s co como mo tempos mortos, vazios, quiméricos, mas como tempos livres, disponíveis. Não relutava mais com as longas discussões

necessárias para desmanchar os conflitos, resolver as  

contradições, ter sucesso nas negociações entre as diferentes  part  pa rtes es d e m im m esmo es mo;; ne nece cess ssid idad ades es e de dese sejj o s p re reci cisa sava vam m estar em acordo. Eu havia me dado conta de que aprendi aprend i a viver, sem nunca até então ter sido solitário. Disse a mim mesmo que os dois momentos essenciais da existência, o nascimento e a morte, são vividos a sós. Tudo o que se passa entre estes momentos émeu efêmero imprevisível. Nãopúblico pudeo deixar de de considerar projetoe de ser um homem públic a serviço meu povo,o o que me fez romper o noivado, como uma ambição orgulhosa, pretensiosa. Porém, este desejo não me deixou: de fato foi este desejo que organizou as minhas escolhas, minha maneira de viver, meu itinerário. Tomei consciência de ser constituído de um fio de esperança. Sem muito perceber, estabeleci uma ética pessoal nas relações relaçõe s com o mundo e as pessoas, que visava preservar minha liberdade de instituições, palavras e ações. Eu me fiquei sinto ligado às pessoas ou a certas mas nunca constrangido ou obrigado em relação a elas. Assim, organizei a minha vida sem depender dos outros. Isto não significa que eu recuse aquilo que os outros podem me trazer ou oferecer, mas não nutri o sentimento de que alguém estivesse a meu serviço. Eu nada fiz sem que tivesse os meios próprios de fazê-lo. Não devo nada a ninguém. Tenho como princípio não contrair nenhuma dívida, nem qualquer dever do engajamento ou dependência. Desconfiei dos modelos, das teorias, dos dogmas que rompiam a imaginação, a criatividade, em vez de os liberarem, fechados neles mesmos, os quais os aderiam, excluindo os outros. Todas estas reflexões que iriam iluminar o meu futuro, tudo isto parecia desiludir a profissão de fé de um velho rapaz misantropo, libertário e egoísta querendo de maneira ávida sua independência, independê ncia, sua pequena vida solitária e tranquila. Mas isto resultava em esquecer o objetivo: servir uma comunidade  part  pa rtic icii pand pa ndoo e a inco in corp rpor oran ando do pa parr a se segg uir m eu proc pr oces esso so de liberação, agindo como instrumento de transformação.

As semanas passavam seguindo o seu curso rotineiro: trabalhava entre 8h e l6h30, seguido de passeios silenciosos,  

repletos de sonhos e meditações. No final da tarde, recebia a visita de meu colega e amigo Mourão, com o qual eu fizera meus estudos em Medicina. Ele vinha acompanhado de sua mulher e de seu filho, meu afilhado de seis meses que eu vi  pela  pe la prim pr imei eirr a vez. ve z. S ua vi vinn da me ti tirr ou do tor to r por po r de me meuu  pequ  pe quen enoo mund mu ndoo p se seuu do-e do -err emit em ita. a. Dei De i -me -m e conta co nta d e que qu e n ão havia tido tempo para visitar o país. Eu os levei a um lugar maravilhoso para passarmos o fimque de modificou semana. Estava muito feliz por reencontrar o meu amigo e conturbou meus hábitos, a regularidade de minha vida. Era o tempo de eu descer ao convívio entre os homens, eu, que vivia recluso, cercado apenas por mulheres. A presença amiga de Mourão e sua família despertaram a minha necessidade de ter contatos corporais calorosos e lúdicos que agora obtinha para preencher a lacuna destes últimos meses. Percebi que lhe dava muitas vezes vigorosos abraços, batia-lhe fraternalmente em suas mãos e colocava o meu braço em torno de seu ombro para lhe falar. Domingo, durante o nosso passeio, duas cenas, uma após a outra, nos  prov  pr ovoo cara ca ram m ac aces esso soss de r is isos os que qu e r et etor ornn avam av am,, re reat ativ ivad adoo s p el elaa incompreensão incompree nsão e olhares interrogativos das pessoas presentes.  Nass m arge  Na ar gens ns d e um belo be lo la lago go,, nó nóss no noss ap apro roxi xima mamo moss intrigados com a atitude de um grupo de idosos que jogavam  peda  pe daço çoss d e pão pã o na águ ág u a. Vim Vi m os qu quee er eraa p ara ar a al alim imen enta tarr enormes carpas, caímos na risada enquanto eles nos olhavam estupefatos. Caímos, novamente, na risada quando fomos surpreendidos na  praç  pr açaa d e Wald Wa ldbr brei eitb tbac achh co com m a cen ce n a d e cria cr ianç nças as jo jogg and an d o migalhas de pão para gordos pombos. Para nós, brasileiros, terceiros terceiro s mundistas, isto era o mundo ao inverso. Mourão, hilário, zombava: “Eu lhe vi salivar, grande guloso, você já via a carpa bem grelhada, uma delícia de peixe no seu prato e os pombos como uma galinha ao molho pardo”.  

 

Da Psiquiatria à Cultura Brasileira   Mudança de cenário! Lyon, o Rhône, uma grande cidade. Vivia o prazer de falar francês, enfim enf im os recursos para a minha formação. Fui aceito como interno no departamento de psiquiatria, com verba da categoria de estrangeiro. Eu não teria, portanto,  preo  pr eocu cupa paçã çãoo com co m din di n he heir iro. o. Por Po r acas ac aso, o, ti tivv e a sort so rtee de me encontrar junto a um grupo de seminaristas e de educadores apaixonados pela Teologia da Libertação e de residir ao lado das moradias universitárias dos seminaristas e estudantes vindos do terceiro mundo, ou de regiões onde os povos viviam na miséria, guerra ou opressão: palestinos, libaneses, indianos, do Malgaches, que, como eu, estavam de passagem antes de retornarem para seus países. Estes contatos me fizeram aprender muito. Aprendi Aprend i a escutar, compreender e aceitar a riqueza de nossas diferenças, a amar e acreditar no futuro, “a esperança é um risco a se correr, ela é mesmo o risco dos riscos”, conforme escrevera Bernanos. Eu estava lendo este autor naquele momento ao mesmo tempo te mpo em que lia os textos de Leonardo Boff. Em uma manhã, durante a refeição matinal, eu vi Max chegar afobado, com as mãos sujas de graxa. Max era um estudante de Madagascar, apreciado por todos devido a sua gentileza, sua disponibilidade para ajudar e seus dons para os serviços de mecânica. Estava sempre pronto para consertar ou reparar os velhos carros dos colegas. Naquele dia era elee que tinha necessidade de ajuda: seu carro havia quebrado, já estava atrasado para um importante exame que se realizaria do outro lado de Lyon, precisava da ajuda de braços para empurrar o seu velho carro. Fomos ver o seu carro, mas naquele instante o sino da capela tocou, soando a hora da prece da manhã. Os seminaristas pararam embaraçados e pediram desculpas para Max dizendo que não poderiam ajudá-lo porque precisavam retornar para irem a prece. Encontrei-me sozinho para empurrar a velha carroça. Fiquei revoltado com a atitude de meus colegas. E, para demonstrar o meu protesto contra esta maneira de viver, um engajamento na fé, durante três dias, recusei participar com eles das preces. Eles disseram que

estavam espantados com a minha atitude. Não compreendiam  

a minha ausência da partilha eucarística. A reação deles me obrigou a reconhecer a distância que me separa de uma espiritualidade desencarnada, afastada da realidade e fez com que me opusesse a isso. Perguntei a eles: “O que é uma  prec  pr ece? e?”. ”. Ap Apar aren ente teme menn te a m inha in ha ques qu estã tãoo deix de ixoo u -os  pert  pe rtur urba bado doss e a min mi n ha r espo es post staa ai aind ndaa mais ma is;; “Nã “Nãoo é um at atoo de amor, união, que reforça a aliança com Deus, para se colocar a serviço outro? Então significa dar dos as costas um amigo emdo dificuldade parao irque rezar? O apelo sinos aseria maior do que aquele dos homens?”  homens?”   Descobri com paixão a Psiquiatria e me dei conta de que a riqueza e a facilidade facilidad e material não protegem as pessoas contra a loucura, mesmo sabendo saben do que a miséria possa, de outro lado, favorecer a sua eclosão ou ser um componente para o desequilíbrio psíquico. Aprendi Apren di com entusiasmo os diferentes modos de tratamento. Foi uma alegria verificar ser possível ajudar verdadeiramente as pessoas quando estas estão em  plen  pl enaa co conf nfus usão, ão, ang an g ús ústi tia, a, pres pr esos os de al aluc ucin inaç açõe õess ap apav avor oran ante tes. s. Que satisfação descobrir os tratamentos que aliviam seus sofrimentos e lhes permite encontrar um sentido à sua existência; o prazer de viver. Estando interno no hospital de Vinatier, participei dos seminários de estudos de casos clínicos e de leitura de textos organizados pelo professor Guyotat e sua equipe. Como muitos de meus colegas, fiquei fascinado pela abordagem psicanalítica, mas meu entusiasmo durou pouco. A beleza das construções teóricas, a finura das interpretações, as explicações brilhantes, lembraram-me logo de minha experiência romana. Eu não compreendia como o paciente  pode  po derr ia se ben be n ef efic icia iar, r, no f inal in al d as co cont ntas as,, co com m os ef efei eito toss de sentidos dados pelo médico às suas perturbações em função de suas histórias. Parecia-me que, em seus encontros de sábios, o paciente servia apenas de pretexto para elaboração de afiná-la à teoria. Como se este trabalho intelectual de compreensão do caso  pude  pu dess ssee tr traz azer er r ique iq ueza za,, apen ap enas as p ara ar a o s cu curr ador ad ores es.. Ou Outr traa ve vez, z, sentia-me sentia -me frustrado pela ausência do concreto, do tangível: as ligações entre o espírito e a matéria, entre a inteligência e a

ação,

pareciam

muito

tênues,

incertas,

por

vezes,

 

improváveis. Após algumas semanas de trabalho, uma coisa me intrigou: um certo número de pacientes recaíam, pouco após o retorno às suas famílias. Estas se mostravam impacientes ao reencontrá-los. Durante o seminário, um professor favoreceu-me a chave que me abriu para a importância das interações entre uma pessoa e o grupo da qual faz parte. Ele falou sobre o fato de que o  paci  pa cien ente te n ão é eem m cer c erto toss ca caso soss o qquu e mais ma is so sofr free e qu quee o ped p edid idoo de ajuda é muitas vezes levado por um terceiro interlocutor. Explica sobre o princípio organizador da manutenção do equilíbrio homeostático de uma família, sobre a responsabilidade de cada um de seus membros para este equilíbrio e compreendido sobre o viés da doença. Fiquei fascinado com estas propostas que destacam a importância da família. Naquela época, sentia que as relações com a minha família haviam cortadas. Lembrei-me de meu  pa  pai; i; n a ques qu estã tãoo dsido a f amíl am ília ia nucl nu clea earr ou ampl am pla, a,dao família lug lu g ar qu que e cada ca da irmão ocupava em nossa família, as dificuldades que meus  pais  pa is ti tivv eram er am com co m o meu me u i rm rmão ão mai ma i s no novo vo e a f unçã un çãoo dest de stes es transtornos na evolução da estrutura familiar. Após este encontro, as minhas leituras de Leonardo Boff e de outros escritores cristãos progressistas vieram a ser acrescentadas às leituras leitura s dos pioneiros da abordagem familiar sistêmica: George Bateson, Jay Halley, Paul Watzlawick, Mara Selvini. Agora sensibilizado pela dimensão do papel da família nas  pert  pe rtur urba baçõ ções es r efer ef eren ente tess à Psiq Ps iqui uiat atrr ia ia,, at atéé en entã tão, o, eu não nã o compreendera nada sobre as razões destas recaídas, reconsiderei reconsid erei minha posição de curador, frente a Michele, Michele, uma das minhas primeiras pacientes que cuidara e cujo número de recaídas me desesperava. Comecei a olhar a sua mãe de outro modo. Abandonei a imagem caricatural da mãe do esquizofrênico que eu havia  proj  pr ojet etad adoo nela ne la.. Desc De scob obri ri uma um a m ulhe ul herr que qu e sof so f re e qu quee te tem m necessidade de uma ajuda pessoal para ela mesma. Percebi também que o pai de minha paciente ficou doente desde

quando ela começou a melhorar. Resolvi então trabalhar com toda a, família, aventura apaixonante de que Michele e seus  

 pa is ti  pais tira rara ram m ta tant ntos os b enef en efíc ícii os como co mo eu pr próp ópri rio. o. Meu interesse pela abordagem sistêmica me levou à elaboração de minha dissertação de especialização sobre a temática da comunicação na família do esquizofrênico, com a intenção de continuar a minha formação de terapêutico familiar. Contava aproveitar ao máximo as possibilidades que me ofereciam para refletir, aprender as técnicas, informar-me sobre os métodos eficazes, na moda. Isto é, colocar mais cordas em meu arco para que ajudasse a cumprir a minha tarefa, quando retornasse ao país. Aliás, a ideia de retorno estava presente permanentemente. Era esta ideia que orientava as minhas escolhas, leituras e pesquisas. Um seminário muito caro sobre as novas terapias em voga nos Estados Unidos foi-nos proposto por um psiquiatra de Vinatier que veio passar um ano na Califórnia. O preço caro e o número limitado de vagas fizeram-nos pensar que “sai fizeram-nos mais caro a mecha que o sebo 1”. Não recuei diante da despesa e me inscrevi com entusiasmo a estas iniciações, as novas técnicas: gestalt terapia, bioenergia, biodança.  No pr prim imei eiro ro dia, di a, ac achh ei o tr trab abal alhh o in inte terr essa es sant nte, e, ma mas, s, no fina fi nall da segunda semana, espantei-me ao constatar que o essencial deste estágio consistia em se tocar, abraçar, dançar e em seguida falar do que se passou com cada uma dessas experiências. No Brasil, estes modos de expressão são espontâneos, banais. precisovivam participar de seminários emhabituais, psicoter apia psicoterapia paraNão que era as pessoas as suas emoções, alegrias, medos, cóleras, ternura ou fraternidade. Compreendi que este estilo de iniciação era o sintoma de uma sociedade doente, que perdeu o sentido de tocar, de sentir o calor humano, que esqueceu o prazer de cantar, dançar, festejar. Eu vim para o velho continente para aprender aprende r as técnicas mais modernas e agora me dei conta do que estava em voga remetiam as maneiras de ser que eram naturais em meu país. Assim, nós somos ricos naquilo que os países ocidentais são

1 N.T.:

Expressão da língua francesa para designar que não vale a pena tanto custo para pouca coisa.

 

 po bres  pobr es e vi vice ce-v -ver ersa sa.. Per Pe r ce cebb i, entã en tãoo o p erig er igoo de que qu e este es tess us usoo s e costumes, maneiras de ser e de viver nas relações sociais, venham a se perder sob golpes de bastão, sob a ideia de  prog  pr ogre ress ssoo q ue r ej ejei eita ta a tr trad adiç ição ão e excl ex clui ui o ho home mem m de sua su a historicidade. Mas que coisa! Foi preciso partir para longe da minha casa, atravessar o oceano, para descobrir a riqueza de meu país, seus valores culturais desconhecidos. Estas reflexões remeteram-me a lembrança de uma fábula que ouvira quando era criança, da boca de um velho contador do Sertão que meu  paii con  pa co n vi vida dava va para pa ra o noss no ssoo maio ma iorr praz pr azer er,, em cer ce r ta tass noit no ites es d e lua cheia. Esta fábula conta a história de um homem chamado José que morava em uma pequena aldeia de pescadores perto de Fortaleza. Uma manhã, todo excitado, anuncia a seus amigos que recebeu em sonho a mensagem de uma alma que não pode encontrar a paz e deixar este mundo dos vivos, por não ter conseguido transmitir tr ansmitir aquilo que o retém na terra: uma ideia, a necessidade de reparar uma injustiça ou de revelar o lugar onde se escondera seu tesouro. Este último teria sido a causa desta circunstância. Seus amigos lhe perguntaram se o seu sonho se repetiu três vezes em seguida, porque todo mundo sabe que só uma mensagem transmitida três noites consecutivas vem do espírito de um defunto.  Noss  No ssoo hhom omem em,, ccon onfi firm rmaa e cont co nta: a: “Em “E m m meu euss sson onho hos, s, um velh ve lhoo homem me aparece, pede para que eu retorne ao Rio de Janeiro e vá para a plataforma número 5 às 18h30. Lá a fortuna me esperava”.  esperava”.   José, após ter longamente refletido e conversado com os seus amigos, decidiu retornar ao Rio, logo que vendeu o seu rebanho de cabras cabr as e a sua casa para poder pagar a sua viagem. Após 15 dias de preparação, ele vai ao encontro. Em vão, a fortuna não lhe sorri, nem de um modo nem de outro. Desesperado, ele se dirige para as praias ao longo do cais, e, como tinha necessidade de falar com alguém, ele se senta  pert  pe rtoo de um pe pesc scad ador or e lhe lh e r el elat ataa a su suaa tris tr iste te av aven entu tura ra.. Escutando atentamente a história de José, o velho pescador,

que não deixava de olhar fixamente para a sua linha de pesca, vira-se, olha surpreso e divertido e lhe abre a sua experiência  

na matéria. Ele explica que também teve a visão de uma alma  pern  pe rnad ada, a, qque ue lhe lh e ppar arec eceu eu trê t rêss vvez ezes es em e m seg s egui uida da,, em seu se u sson onho ho,,  parr a lhe  pa lh e d escr es crev ever er o luga lu garr em qu quee lh lhee h avia av ia es esco cond nd ido id o o seu se u tesouro. Tratava-se de um pequeno porto perto de Fortaleza.  Nest  Ne stee lug lu g ar havi ha viaa uma um a mi minn ús úscu cula la il ilhh a com co m uma um a gran gr andd e árvo ár vore re sob a qual as cabras gostavam de repousar. O tesouro fora escondido pelos grandes proprietários, temerosos de serem roubados pelo justiceiro Lampião, e, encontra-se entre as raízes da árvore. Em seguida ele declara rindo e apontando com a sua vara de pesca, com um movimento de sacudir os ombros, indicava que qu e não tinha nenhum desejo de mudar a sua vida e que também não acreditava em todas estas histórias; mas se agrada a José ir e ver, ele ficaria encantado. José estava estupefato pelo que ouvia: este pescador tranquilamente vem lhe descrever o pequeno pedaço de terra que herdara de seus pais e onde pastavam as suas cabras. O a riqueza, esper mas para era preciso que eletesouro fizesse eesta viagem,esperavam esta avam volt a por volta que ele, partisse longe para descobri-lo. Eu estava justamente neste estado de espírito: devia deixar o Brasil, partir para a Europa, estudar, para me dar conta, graças graç as a este desvio, que a riqueza, o sucesso de minha vida, “a fortuna”, esperando-me esperando -me em meu país, perto dos meus, o Sertão. E esta fortuna se chama minha cultura, sincretismo complexo que associa ao Nordeste a experiência, a história, as crenças, as metas e lendas dos índios, dos escravos africanos e dos colonos portugueses. Isto constitui a cultura original que valoriza a riqueza como produto desta mistura étnica. Cada brasileiro reivindica simbolicamente esta riqueza; seja ele loiro de olhos azuis ou negro ébano, ambos afirmam ter um pouco de sangue das três cores. Esta descoberta me levou a me interessar pela antropologia, etnologia, a encontrar François Laplantine e, para terminar,  porr r eali  po ea liza zarr o pr proj ojet etoo após ap ós te terr pass pa ssad adoo três tr ês an anos os em Lyon Ly on,, de ter subido a Paris como um provinciano cheio de ambições  parr a se  pa segu guir ir o sem se m inár in ário io de et etno nopp siq si q uiat ui atrr ia de Geor Ge orge gess Devereux. Meu amigo Laplantine falou-me dele com paixão.

Desejava compreender as relações entre o psiquismo e a cultura pensando particularmente nos curandeiros e nos  

 pr ofet  prof etas as tã tãoo n umer um eroo sos so s no No Nord rdes este te.. Para ser admitido a participar deste seminário, do Instituto de Altos Estudos, cada interessado é convidado a ir à casa do mestre, para se submeter a testes projetivos e conversar com ele. Era preciso então ser agradável, cooptado por este  prof  pr ofes esso sorr p ara ar a pode po derr segu se guir ir seu se u ensi en sinn am amen ento to.. Eu bati então uma manhã na porta de Georges Devereux, divertindo-me, mas inquieto, com este ritual pouco comum. Ele abriu a porta e me acolheu afável e familiar, tratando-me  porr “tu  po “t u ”. Se Sent nti,i, entr en tret etan anto to,, uma um a cert ce rtaa r ud udez ezaa n o prim pr imei eiro ro contato: a palavra como o olhar é direto, preciso, sem concessão, encontrei, entretanto, na voz quente e rouca, uma  pont  po ntaa d e acen ac ento to estr es tran angg ei eiro ro,, que, qu e, biza bi zarr rram amen ente te me tranquilizou. Eu soube previamente o que viria: o empreendimento estava longe de ser ganho. Coloquei-lhe meus trabalhos e projetos. sentei-me, sentei -me, conforme fui convidado, diante da mesa do célebre  pr ofes  prof esso sor, r, pa parr a enfr en fren enta tarr a prov pr ovaa d os te test stes es.. Es Estt av avaa r od odea eado do  porr li  po livr vros os:: o s mur mu r os e m esmo es mo o chão ch ão er eram am co cobb erto er toss por po r  pequ  pe quen enoo s m onte on tess de uma um a espé es péci ciee de es esta tala lagm gmit ite, e, pa parr a sabe sa berr colocá-los, isto é, aquilo, nunca acreditaria que em uma  part  pa rtic icuu la larr si simp mpll es cois co isaa pude pu dess ssee hav ha v er ta tant ntas as exig ex igên ênci cias as.. Reparei com curiosidade que uma série de estantes guardavam objetos artesanais, heteróclitos, vindos, imagino, de locais distintos. Entramos, em seguida, em uma sala ao lado; George Devereux ofereceu-me sentar-me nanhas poltrona  be  bebi bida da en enqu quan anto to q ue eupara exam ex amin inav avaa as mi minh as r es espp osta osetassuma às suas inumeráveis questões. No final de alguns minutos, ritmado pelo barulho das folhas que me arrodeavam, ele voltou a cabeça embranquecida pelo tempo, fixou o seu olhar no meu e me perguntou, descontente, com um olhar interrogativo: "Por que você quer tanto seguir o meu seminário? Você não está de acordo comigo nem com as minhas ideias, os testes projetivos mostram muito claramente que você não gosta do que faço, nem de mim”.   Respondi contrariado e um pouco penalizado: “Não é o senhor, enquanto pessoa, que me interessa, eu não o conheço,

mas li suas pesquisas, estudei seus livros e artigos, suas ideias, a sua maneira de abordar as questões que me  

interessam muito, elas me interpelam e me ajudam a refletir. Eu vim para Paris com a finalidade de seguir seus ensinamentos e não para que a minha cabeça e o meu corpo armazenassem e adotassem passivamente as ideias do outro. Em meu país existe uma noção de ‘encosto’ que significa ser  poss  po ssuí uído do,, h abit ab itad adoo pelo pe lo espí es píri rito to d e outr ou tro. o. E u m e r ec ecuu so ser se r ‘encostado’ pelo espírito de alguém, mesmo de grandes me stres”.   mestres”. Esta resposta me surpreendeu e me colocou em uma “porta sem saída”. Ela foi despejada de dentro de mim como resultado de uma reflexão que vem à consciência, ao mesmo tempo que exprime. “Tu não serás meu aluno. Não vejo v ejo como poderia aceitar como discípulo e dirigir o teu trabalho de pesquisa”; ele conclui, deixando cair no chão o maço de papéis. Apesar deste  prop  pr opóó si sito to,, pelo pe lo me meno noss cate ca tegó góri rico co e d efin ef init itiv ivo, o, eu o bti bt i ve forças para para importunar: “Eucursos”. peço ao“Desenhor, autorização assistir aos acordo.somente, Mas vocêa nunca será meu discípulo e não terá o direito de apresentar seus trabalhos durante o seminário”, declarou, aumentando o tom. Aliviado por ter chegado a este compromisso, estendi ao meu interlocutor um presente, conforme o costume do Nordeste de levar um pequeno presente a todas as pessoas que nos recebem em casa. Georges Devereux tirou embalagem  pe  pequ quen enaa escu es cult ltuu ra arte aralegrou-se, tesa sann al em m adei ad eirrda a, re repr pres esen enta tand ndoo uma um “retirante”, personagem célebre do Nordeste, fugindo da s eca e trazendo sobre um dos ombros uma trouxa na ponta de uma vara e no outro, um papagaio. Eu lhe expliquei o que representa esta estatueta, acrescentando que, no Brasil, o melhor amigo do homem não é nem o cão, nem o gato, mas a ave, especialmente o papagaio, papa gaio, porque é um companheiro com quem se pode falar. Estas poucas palavras pareceram intrigar meu hospedeiro, que, de repente, mudou de atitude, colocoume questões, mostrando-se muito interessado pelas  part  pa rtic icuu la larr idad id ades es d a cult cu ltur uraa b r asil as ileir eira. a. E le te term rmin inoo u por po r

confessar me, com uma gargalhada, seu engano. Minha recusa durante o teste de escrever uma pequena história que tivesse  

um cão ou um gato lhe havia feito crer que houvesse uma hostilidade de minha parte em relação a ele. De fato, este célebre etnólogo e psicanalista psicanal ista havia feito uma teoria sobre os  povo  po voss e as cu cult ltur uras as qu quee pref pr efer erem em o s cã cães es,, co como mo n o Ocid Oc iden ente te,, e aqueles que apreciavam mais os gatos, como é o caso do Oriente: o mundo era para ele dividido em dois campos. O teste projetivo exigia uma escolha. Foi apenas através do  pr esen  pres ente te que qu e a minh mi nhaa r ecu ec u sa te tevv e para pa ra el elee um outr ou troo sent se ntid ido. o. Após ter estudado Antropologia na Universidade de Lyon durante três anos, ano s, eu tive muito prazer e interesse em seguir o seminário deste professor, que me surpreende como r ap apidamente idamente lhe tratava por “você” e eu o chamava pelo seu  prim  pr imei eiro ro nom no m e, como co mo fazi fa ziam am n at atur ural alm m ente en te os o ut utro ros, s, de devv ido id o a sua gentileza, simplicidade que levava à afeição e abolia as  barr  ba rrei eirr as d a con co n ve venn çã ção. o. No f inal in al da m anh an h ã, ap apóó s o se semi minn ário, ári o, alguns de nós seguimos com ele, para os terraços de café do Boulevard Raspail, intermináveis debates suscitados pelos seus ensinamentos ou simplesmente para refazer o mundo. Reconhecia-se em Georges, espontaneamente, dois traços destacáveis em seu forte caráter, que provinha, segundo ele, de sua origem eslava: ele era essencialmente e apaixonadamente anticomunista e profundamente apreciador do belo sexo. Eu aprendi muito com ele. Uma manhã, o estudante que devia apresentar o resultado de suas pesquisas faltou; esta situação deixou Georges colérico. Após ter manifestado seu mau humor, perguntou pergu ntou se entre os assistentes alguém seria suscetível de substituir o imprudente. Como ninguém respondesse, responde sse, pedi para Georges se ele me autorizava a expor o estado de minha pesquisa que eu trazia, justamente comigo. Minha abordagem, etnopsiquiatra etnopsiqui atra de discurso tratava de um curandeiro do sertão que se dizia profeta, instrumento de Deus em diálogo permanente com ele. Esta apresentação provocou um rico debate e encontrei no mestre um vivo interesse pelo trabalho. Ele, após me ter felicitado, foi informado sobre o número de páginas de meu manuscrito me propôs publicá-lo no próximo número da revista Ethnoe psiquiátrica. Foi com satisfação compartilhada que a partir deste dia eu entrei no círculo fechado de seus

discípulos.  

Georges Deveraux foi a primeira personagem importante que eu encontrei. Eu me dei conta também quando tive oportunidade de conhecer os professores: Yves Pelicier, Paul Sivadon, Alexandre Minkowski... e outras pessoas de valor, que possuíam como Georges, a simplicidade, humanidade e abertura de espírito das pessoas que sabem que o importante se encontra em tudo aquilo que lhe resta para aprender e descobrir na vida e não no que eles já sabiam. Em Paris, eu me formei, conforme prometera a mim mesmo em terapia familiar. Esta experiência me fez aprender muito sobre mim e sobre as relações no interior int erior da minha família. A grade de leituras completava, harmoniosamente, a abordagem antropológica com a etnopsiquiatria, propiciando extrair as influências e implicações sobre o equilíbrio do indivíduo, do ambiente cultural e da cultura familiar com seus se us valores e suas leis próprias. Quanto mais eu avançava em meus conhecimentos mais eu me interessava em descobrir aquilo que me constituía, minha identidade cultural. Assim, em meu último semestre como interno em psiquiatria, encontrei uma paciente que havia cuidado no hospital dia no ano passado. Eu a recebia todos os dias em consulta. Esta empregada do correio havia retomado seu trabalho após sete anos de depressão grave, mediadas por tentativas de suicídio. Após quatro meses de tratamento no hospital dia, ela havia saído deste estado, sem que se soubesse precisamente o que havia sido determinante para que esta paciente que eu denominara familiarmente familiarme nte como “dama de lágrimas  lágrimas   negras”,  pois  po is de deix ixav avaa seca se carr suas su as lá lágr grim imas as mi mist stur urad adas as co com m r ímel ím el,, traçando sobre as suas faces os “i” lúgubres, suspensos nas  pálp  pá lpeb ebra ras. s. E m cad ca d a cons co nsuu lt ltaa colo co loca cava va sobr so bree a es escr criv ivan anin inhh a uma bolsa bordada que mal se lia a palavra tristeza. Em minha viagem de volta, senti uma certa apreensão que ela logo dissipou com um sorriso amigável. “Veja”, disse ela, “estou sempre sempr e bem, e isto é em parte graças a você”. Eu tinha de agradecê-lo, agradecê -lo, antes de sua partida para o Brasil estendeu-me uma caixa cai xa de chocolates e prosseguiu: “Eu vou dizer algumas coisas coisa s que podem lhe servir no decorrer de

sua carreira. O senhor sabe por que eu estou curada? .  .  “Em minha opinião é porque a senhora seguiu bem. O  

 pr ogra  prog ram m a de tr trat atam amen ento to co com m An Anaf afrr an anil il e T r anxè an xènn e”. e” .   Sorrindo, ela retifica: “Durante sete anos, todos os médicos que me atenderam prescreveram este mesmo tratamento. Aliás, eu falhei ao lhe deter quando eu vi que o senhor também o propôs, e depois eu disse a mim mesmo que isto não era essencial. O que verdadeiramente ajudou-me a mudar é que eu senti no senhor confiança, não em sua competência, porque o senhor era jovem e modesto, mas em mim, na minha capacidadee de sair do estado em que me encontrava. O senhor capacidad acreditou em mim e isto me ajudou a acreditar também. Eu não posso lhe dizer como esta mensagem foi transmitida, o que eu sei é que a sua fé em mim representou um apoio formidável”.   formidável”. Que presente! Que lição magistral! magi stral! Além de satisfação egoísta de ter sido eficaz, “a dama das lágrimas negras” levou -me ao  prin  pr inci cipp al ensi en sinn amen am ento to n o m eu es está tági gioo n a E urop ur opaa acr ac r edit ed itar ar no homem, e o outro, em si mesmo é acreditar emoDeus. Esta uma alavanca formidável, capaz de transformar mundo comé a força do desejo, do espírito, do Espírito Santo, que cada um traz em si. Parti do velho continente armado de diplomas - Teologia, Antropologia, Psiquiatria - e a cabeça repleta de lembranças, experiências, conhecimentos. Assim, instrumentos que longe de me fazer perder o fio de meu projeto foram colocados a serviço do encontro com o outro. Portanto, de mim mesmo, nesta busca de identidade que até hoje me habita e baliza o conjunto de minhas ações.

 

A Incontornável Passagem por Canindé   1982 Após tantos anos de separação, a volta do filho pródigo. Que felicidade reencontrar a doce humildade das noites equatoriais, a música do falar brasileiro, os risos, as canções, o sol, as praias, a feijoada, os maracujás, maracujá s, os abacaxis... Enfim, tudo aquilo que, através dos sentidos, despertou minhas lembranças e todo o meu ser, colocando-me novamente em harmonia com o meu ambiente. Sem contar a acolhida de minha família, minha mãe em prantos, meu pai visivelmente muito comovido. Ele se afastou para me observar com detalhe, reconhecer-me, reparar no que eu havia mudado, depois, como que tranquilizado, tranquilizad o, abraçou-me de novo. Eu senti desde os primeiros instantes que se esperava muito de mim. Compartilhei o quarto com Airton, onde passei a noite inteira conversando. Durante a minha ausência, ele havia mudado muito; não era mais o rapaz magro e tímido que eu conhecera, nem o adolescente que desabrochava, desa brochava, que se colava junto a mim para tentar descobrir em minha esteira o mundo dos adultos. Agora estava maior do que eu, com seu rosto magro, seus cabelos longos, suas barbas como ervas emaranhadas; lembrava Jesus Cristo. Tendo terminado seus estudos em direito, ele se dedicou completamente completame nte à Associação dos Direitos do Homem e passou a melhor parte de seu tempo na favela fa vela de Pirambu, situado nas na s dunas às margens do mar. Discutimos sobre nosso futuro. Contou-me sobre a luta cotidiana de cada indivíduo, assim como de toda a comunidade, contra a miséria e a insegurança: os ataques da polícia ou das milícias pagos pelos que os  prom  pr omoo viam vi am,, ou seja se ja,, os r ic icoo s prop pr oprr ie ietá tári rioo s; as re rede dess d e traficantes; as agressões; os assassinatos; a droga; o álcool; a  pros  pr osti titt uiçã ui ção; o; as cri c rian ança çass aban ab ando dona nadd as e as ffam amíli ílias as de dest strr uíd uí d as. as . “Aqui em casa as coisas são difíceis”, confessou Airton, “Mamãeoutra me diz paraquanto seguir oa meu coração, masesconde os seus aolhos olho dizem coisa, papai; ele não suas desaprovação. Eles têm medo e eu fico triste por colocá-los

neste estado. Eu devo partir. Felizmente, Leonardo Boff tem me visitado muitas vezes. Ele  

agora não é somente um apoio essencial ajudando-me através de suas reflexões e suas observações, como também é um verdadeiro amigo. Entretanto, em sua última visita teve a má ideia de confiar a mamãe que eu lhe havia mostrado o encontro com as profundezas do inferno. Porém, o fato dele vir me ver tranquilizou um pouco papai. Graças à sua ajuda, acredito que possa logo deixar a casa. Ele vai logo que for  po  poss ssív ível, el, envi en viar ar-m e 1 00 dóla dóque larr es, eseu, nespreito eces ec essá sárr ios io pa para rameses”. co com m prar pr ar  o velho casebre de-me pescador hás seis Inacreditável, Leonardo Boff, o teólogo da libertação, o homem que nutriu o meu pensamento de impaciência para retornar ao Brasil, para participar da resistência contra a miséria. O padre que desconsertou e fez estremecer os bispos da América Latina, como intermediário nas assembleias eclesiais. Os bispos reclamavam dele por se unir na ação aos homens de todas as confissões: o marxista de batina, o comunista disfarçado em padre como “o grande lobo mau disfarçado em avó”. Estas eram as denominações e denúncias de seus detratores. Este homem, então, é amigo de meu irmão e além do mais teve a modéstia de reconhecer seus limites. A este propósito, relatou-me Ayrton uma cena ocorrida na favela, que perturbou Leonardo. Os dois conversavam com uma família, bebendo Coca-Cola e cafezinho, quando em dado momento Leonardo foi jogado em um canto da parede, por uma velha mulher desdentada, desdenta da, que se  pôss a lhe  pô lh e ac acar arii ci ciar ar o braç br aço, o, a lhe lh e toca to carr a b arba, ar ba, trem tr emen endo do d e emoção com os olhos cheios de lágrimas, cochichando, com medo de ser ouvida: “Como “Com o você é belo, tão branco, tão loiro, tome-me tomeme em seus braços”. Depois, ante o seu embaraço, ela levanta em sua frente o seu vestido, suplicando: “Faça -me amor, eu lhe peço, eu tenho de tal modo necessidade necessida de de sentir sobre o meu corpo o calor de um homem”.  homem”.   “Você precisava ter visto a cara dele, quando ele se salvou e veio se reunir a mim.” O meu irmão disse-me disse -me que ele estava lívido e em seguida havia lhe confessado: “Eu me senti envergonh envergonhado, ado, tristeteria e revoltado. Eu não queriateria fazerfeito nada. Se eu fosse um santo, honrado esta mulher, amor como ela pedira”.  pedira”.  

Assim, Airton, “meu pequeno irmão”, conduziu uma ação  

com o apoio concreto de Leonardo Boff. Eu lhe invejei, mas resisti às pressões para que o seguisse. Meu tempo ainda não chegara. Precisamente, antes de entrar em casa, encontrei no corredor meu pai, que me participou da sua inquietude ante o caminho escolhido pelo meu irmão. Este já havia sido ameaçado de morte e muitas vezes fora agredido. “Desde que seu irmão  pa ssou  pass ou a o cu cupp ar o seu se u te tem m po na f avel av elaa de Pira Pi ramb mbuu que qu e nós nó s vivemos angustiados, nós somos regularmente despertados, à noite, pelas pessoas da favela que vêm procurar Airton para as ‘urgências’”. Enquanto, de um lado, meus pais me  pres  pr essi sioo nav na v am todo to doss os d ia iass p ara ar a q ue eu o s aj ajud udas asse se a co colo loca carr o meu irmão “no caminho certo”: instalado inst alado como advogado, com uma posição social confortável, antes que ele fosse conduzido a levar uma vida miserável, esfarrapado na favela, tornando-se ainda mais miserável do que as pessoas pobres a quem oferecia ajuda. Arriscava a sua vida, sem levar em co conta nta as advertências e ameaças de morte que chegavam em casa. De outro lado, meu irmão me exortava a seguir seus passos: “Tenho necessidade de você em Pirambu”, dizia, “Se você visse a miséria moral e material e o sofrimento que estas  pess  pe ssoa oass sã sãoo obri ob riga gadd as a at atur urar ar,, você vo cê te terr ia m enos eno s v onta on tadd e d e se tornar burguês”.  burguês”.   Ter estudado no estrangeiro oferece um valor mercantil aos diplomas. Eu me dei conta disto, desde o meu retorno. Do sul do país, chegavam-me propostas para ser professor, assim como convites para trabalhar em ricas clínicas do Rio e São Paulo. Eu também, a meu modo, inquietava meus pais, recusando todas estas possibilidades. Tenho talvez a cabeça chata, como dizia meu avô, mas não iria trabalhar em São Paulo, como quer o ditado. Não voltei da Europa para transformar o saber e os diplomas trazidos de lá em dinheiro e em benefícios pessoais. Pensei, durante o percurso de toda minha estada europeia, com saudades de tudo aquilo que eu gostaria de fazer quando retornasse. A questão agora era: como servir meu povo? como conseguir isto? paraminha qual objetivo? como qual estatuto? Após ter estabelecido identidade profissional, desejava encontrar minha identidade

cultural. Para isto eu necessitava ir a campo e realizar a  pesq  pe squu is isaa que qu e h avia av ia pen pe n sa sado do dur du r ant an t e a mi minh nhaa est es t ad adia ia na  

França, sobre os sistemas de crenças e práticas médicas no  Nord  No rdes este te do Br Bras asil. il. No p la lann o univ un iver ersi sitá tárr io io,, es este te t raba ra balh lhoo se traduzira, em 1985, pelo doutoramento do terceiro ciclo, em Ciências Sociais. No plano humano, era o meio de encontrar o Sertão e o Nordeste dentro de mim. Seria o meio de sentir, viver, de novo, e, ainda com mais força, fragmentos do meu ser que necessitara de maneira vital adormecer, durante o tempo de minha estadia, do além-mar. maiseuuma os preciosos conselhos Cardeal Seguindo, Lorscheider, me vez, dei tempo, dois anos, para decidir a minha inscrição ou o meu engajamento nos quadros da Igreja. Em todo caso, se decidisse ser padre, não seria um padre “made in France” ou “made in Europa”.  Europa”.   Esta escolha de retomar o estatuto precário de estudante  parr ec  pa ecia ia-m -mee inco in cont ntor ornn ável áv el.. E u nã nãoo quer qu erii a me enga en gaja jarr  prof  pr ofis issi sioo nalm na lmen ente te po porr r azõe az õess m at ater eria iais is,, ta tant ntoo q ue n ão sabi sa biaa ainda claramente como organizaria minha vida, minha ação. Eu não queria pôr o carro na frente dos bois, o engajamento e a ação antes da reflexão. Entretanto, devia reconhecer reconhe cer que esta decisão não me facilitaria a vida. Eu me dei conta de que estava longe de ter escolhido o caminho da facilidade, do conforto material e existencial. Eu, que havia me habituado a viver de meu trabalho, de maneira independente, sentia-me constrangido, que agora com mais de 30 anos, vivia sem recursos na casa de meus pais. Eu fazia por dia quatro horas de viagem de carro, ida e volta, para Canindé, onde prosseguia com a o, minha pesquisa. denhas alguma algumas snsemanas, o tempo  pe  perd rdid ido, a fadi fa diga ga e o esta esNo tadd ofinal de mi minh as fina fi nan ças ça s me m e le leva var r am a ficar durante a semana em Canindé, na casa dos franciscanos,  parr a so  pa some ment ntee vo voll ta tarr a Fort Fo rtal alez ezaa no fina fi nall da sem se m ana. an a. E stav st avaa claro para mim que este trabalho de pesquisa era um pretexto: sua realização não era um fim em si mesmo, seu desenrolar era um meio de colocar em obras as ações, de lançar os  proj  pr ojet etoo s con co n cr cret etoo s. A ques qu estã tãoo não nã o era er a r et etar arda dare rem m as mi minh nhas as  pesq  pe squu is isas as te teóó ri rica cass ou inte in tele lect ctua uais is.. Nece Ne cess ssit itav avaa que qu e o espí es píri rito to,, a reflexão, tivessem corpo, que meus projetos não fossem desencarnados, mas que se inscrevessem com eficácia no cotidiano de uma comunidade. comuni dade. Certamente, eu tinha em mente

os problemas da mortalidade infantil, cuja taxa era dramaticamente alta, nesta região equatorial do Nordeste: na  

metade das casas, ocorre devido à diarreia causada pela desidratação. Através das consultas que assisti no hospital do Canindé, observei, certa vez, o itinerário dos pacientes, não como médico, mas como sociólogo e antropólogo, e descobri a imensidade das carências sanitárias. A região de Canindé dispõe de um hospital de 200 leitos gerenciados pelos franciscanos, onde trabalhavam quatro médicos que encontraram apenas o hospital onde exerciam o ofício em tempo integral. A ajuda e os cuidados de primeira urgência, são, de fato, assegurados por 200 curadores. Esta situação comum nas regiões rurais do Nordeste propicia um lugar  priv  pr ivil ileg egia iado do às m ulh ul h er eres es.. Tod To d as as f am amíl ília iass qu quee cheg ch egav avam am ao hospital haviam inicialmente passado por uma benzedeira. Lembrei-me que meus pais me haviam contado sobre as circunstâncias nas quais seu primeiro filho recém-nascido havia morrido. Trinta anos depois, milhares de crianças continuavam a morrer da mesma maneira. Acreditar que o tempo parou, que a ciência, as descobertas médicas, não  podi  po diam am se serr ac aces essí síve veii s aos a os h abi ab i ta tant ntes es d esta es ta r egiã eg iãoo r ecu ec u ada ad a nos no s arredores de Canindé. Esta cidade, entretanto, é considerada a Lourdes do Brasil, recebendo mais de um milhão de  perr eg  pe egri rino noss por p or an ano. o. Decidi então ir ao encontro destas “curandeiras tradicionais”, como se denomina em etnologia. Junto às benzedeiras, descobri as representações representaç ões culturais da doença e da cura. Tive a impressão de retornar aos bancos da escola; eu me tornava aluno no domínio de minha própria cultura e me meus us profe professores ssores eram as velhas mulheres. Eu sou doutor onde elas são analfabetas e elas são doutoras onde eu me demonstro ignorante. Foi Dona dos Anjos, uma pequena índia reconhecida com 65 anos de idade, olhos claros, que me ensinou, ou melhor, reaprendi a encarar o mundo e as relações entre as pessoas a  part  pa rtir ir do dom do m qu quee cada ca da um te tem m em si m esm es m o. E la me r eceb ec ebia ia sempre com um bom chá e tapioca. Ficava lisonjeada, mas, sobretudo, divertia-se com as visitas do doutor, que, se

espantava: Escreve tudo o que eu digo e tudo o que eu faço . Sua casa, junto à colina, domina o Vale do Canindé. A sua casa é um pequeno cubo de pedras de alvenaria, coberta com  

uma telha ondulada, cercada por horta fechada com uma mureta; ao longo desta, cresciam as sementes do “peão roxo”,  plan  pl anta ta q ue prot pr oteg egee con co n tr traa o mal ma l o lhad lh ado. o. Dona Do na do doss An Anjo joss acolhe gratuitamente todos aqueles que precisam dela, em uma única peça de sua moradia, mobiliada com uma esteira, três cadeiras remendadas e uma mesa de fórmica. Na casa havia, ao canto, perto de uma única janela, invadida até meia altura muro, na as trepadeiras jardim; altar acima,coberto sobre com uma estantedopregada parede, um do minúsculo uma toalha branca bordada com fios de botões de ouro.  Nest  Ne stee alta al tar, r, enco en cont ntrr avam av am-s -see uma um a vela ve la bran br anca ca aces ac esa, a, u m co copp o de água, um crucifixo de madeira encostado no muro e cercado por um ramo seco de arbusto e, finalmente, pendurada  porr u m pr  po preg ego, o, a imag im agem em amar am arel elad adaa d a Vir Vi r g em Maria Mar ia.. Di Dian ante te deste altar, Dona dos Anjos oficia e repete os seus gestos rituais com a ajuda de folhas de arbustos colhidos em seu  jard  ja rdim im.. E st stas as f orm or m as de pass pa sses es m ágic ág icoo s sã sãoo he hera rann ças ça s de seu se u s ancestrais indígenas que ela efetua evocando os santos e recitando as preces entrecortadas por encantações na língua tupi. Ela completa a sua ajuda aconselhando aos que lhe  proc  pr ocur uram am o u so d e chás ch ás ou de prep pr epar araç açõõ es de p la lant ntas as,, ca casc scas as ou ervas. O que aprendi com a Dona dos Anjos e seus colegas me desconsertou. O ensinamento dos curandeiros, dirigido para  pess  pe ssoa oas, s, n a m ai aior oria ia il ilet etrr adas ad as,, não nã o está es tá cont co ntid idoo em seu se u s discursos; mas em suas práticas. Uma parte importante daquilo que havia aprendido na Universidade foi colocado em causa. Os curadores não pediam dinheiro, tudo mais aceitavam, agradecendo pelos doces ou bombons. Os tratamentos para a cura são então gratuitos. A disp disponibilidade onibilidade deles e também o seu sentimento de responsabilidade frente a tudo aquilo que se passa na comunidade são integrais. Além disto, não é preciso fazer uma enunciação clara do pedido para receber a ajuda esperada. O fato de ter ido vê-los é em si mesmo suficiente. Assim, as noções clássicas que eu havia aprendido do ato, oa trabalho, oreferentes tempo ade dinheiro, trabalho,o pagamento a disponibilidade,  bene  be nevo volê lênc ncia ia,, a n eutr eu tral alid idad adee o u imp im p li lica caçõ ções es af afet etiv ivas as fren fr entt e à

vida cotidiana da comunidade, o pedido formulado  prec  pr eced eden endo do a tod to d a ofer of erta ta ou at atoo de trat tr atam amen ento to,, to todo doss es este tess  

 pr incí  prin cípp io ioss f oram or am f orte or teme ment ntee qu ques esti tion onad adoo s. I sto m e le levo vouu a interrogar se os estudos, a educação, não serviriam para afastar o homem de sua cultura. Eles servem para conformar ou salvaguardar um poder? uma uma posição social? Envergonhei Envergonh ei me por ter tantas medalhas universitárias e me sentir incapaz de exercer um papel social efetivo na comunidade, como tinham estas mulheres. As nossas pesquisas nos mostraram que as famílias após consultarem uma benzedeira, sobre diarreia de seu bebê, se não houver melhoras, esperam em média quatro dias antes de irem a um hospital com o seu bebê eles só vão em um estado de desespero. O hiato que existe entre as medicinas científicas, hospitalares, sofisticadas, e as necessidades cotidianas de uma população às quais as benzedeiras tentam responder através de um trabalho ritual cotidiano e gratuito é da mesma ordem que o hiato que se pode observar eaouma nívelreligiosidade religioso, entre umae espiritualidade desencarnada popular material. Assim como o hiato que existe entre Jesus, filho de Deus, ao qual o clero se refere para salvar as almas dos  peca  pe cadd ores or es e São Sã o Fran Fr anci cisc scoo das da s Chag Ch agas as,, es espé pécie cie de d uplo up lo de Cristo que o povo vem ver, trazendo oferendas ou os ex-votos, ex-v otos,  parr a obte  pa ob terr aq aqui uilo lo que qu e l he fa falt ltaa par pa r a viv vi v er: er : a sa saúd úde, e, um umaa moradia, um trabalho. Tenho a impressão de que se tratam de dois universos completamente estranhos, desconhecidos, Há dos um mundo entre eles, aquele do sofrimento, daseparados. indiferença,  prec  pr econ once ceit itoo s, igno ig norr ânci ân cia. a. Como não se revoltar, não passar para a ação? Em um país onde as separações de níveis sociais são dramáticas, a ausência da dimensão social em um curso universitário faz com que o diploma de médico permita que o indivíduo se ocupe consigo mesmo: dedique-se à sua família, queira apenas enriquecer, aumentar o seu patrimônio para transmitir herdeiros, sem tenha de se colocar  pr  prob oble lema mass aos d e seus con co n sc sciê iênc ncia ia.. Graç Gr aças as que à du dup p la le legi giti tima maçã çãoo d o diploma e da função de auxiliar o outro, era preciso achar

normal que a miséria e o sofrimento de uns sejam a causa da riqueza e da glória dos outros.  

Da mesma forma, a Igreja brasileira, como a sua irmã mais velha, a irmã romana, parecem insensíveis à miséria dos fiéis. O povo vai mal, mas aqueles que os governam vivem na opulência. Os lugares de culto são luxuosos, cobertos de ouro e de esplêndidas decorações, enquanto os fiéis habitam em casebres ou barrocas. Ante esta constatação, eu fiz o voto de reunir as pessoas de  boaa von  bo vo n ta tadd e, p ara ar a conj co njuu ga garr esf es f or orço çoss e en ener ergg ia iass em torn to rnoo de  proj  pr ojet etoo s prec pr ecis isos os,, açõ aç õ es conc co ncrr et etas as.. I sto st o sign si gnif ific ica: a: es esta tabb el elec ecer er as ligações entre o hospital e os curandeiros, entre a igreja e as necessidades do povo.  No f in inal al d o pri pr i me meir iroo ano, an o, o s f at atoo s v ie ierr am modi mo diff ic icar ar minh mi nhaa situação e de repente oferecer mais possibilidades à ação que eu conduzia. Meu amigo Mourão me propôs abrir com ele, em Fortaleza, o Centro de Família, que devia reunir muitos terapeutas desejosos de organizar um conjunto de ações  pr  prev even enti tivvfamiliares. as de form fo rmaç ação ão e deesta pr at atic icar ar co conn sult sumas ltas as limitei i ndiv nd ivid idu u ai aiss e terapias Aceitei proposta, minha atividade liberal a um meio período por semana. Este tempo seria suficiente para poder atender às minhas necessidades materiais, deixando-me deixando -me mais disponível para os meus projetos de pesquisa —  pesquisa  —  ação   ação sobre Canindé. A providência, ou o tempo necessário para que as coisas amadurecessem e se colocassem no lugar, fez com que, neste mesmo momento, a Faculdade de Medicina do Ceará, abrisse o concurso para oprolongada posto de professor de Medicina Social. Minha passagem na Europa, minha formação antropológica e minha pesquisa atual designaram-me muito naturalmente para ocupá-lo. Esta mudança de situação modificou consideravelmente os dados do trabalho em curso. Decidi, desde o início, enviar para pesquisa de campo os estudantes que iriam seguir o seminário de Medicina Social; era um modo como o outro de responder ao projeto de  pree  pr eenc nche herr o hi hiat atoo exis ex istt en ente te entr en tree a Medi Me dici cina na mod mo d erna er na e a tradição. Minha situação financeira agora estava saneada, pus-me à  busc  bu scaa d e u m peq pe q ue uenn o “car “c arro ro”, ”, p ar araa r ea eali liza zarr me meus us nu num m eros er osos os

deslocamentos. Um detalhe significativo: muitos vendedores de carros recusavam a me vender o pequeno Volkswagem  

usado que eu desejava adquirir, consideravam con sideravam que um médico, além do mais professor, deveria rodar em um carro de marca Del Rey ou Cadillac. Eu fui então obrigado a esconder a minha identidade social para poder comprar o carro que desejava. O segundo ano de meu trabalho em Canindé tomou um novo rumo. Para cada estudante de Medicina, foi confiada uma tarefa na qual eles deveriam fazer uma dissertação. Alguns foram encarregados de se encontrarem cada semana com as  benz  be nzed edei eirr as par pa r a r et etir irar arem em tod to d os o s ca caso soss pr prob oble lemá máti tico coss q ue encontrassem. Estas mulheres agora são convidadas para as reuniões regulares dentro do hospital, ao lado dos estudantes de Medicina para seguirem o curso sobre as regras de higiene de base e sobre as atitudes ou as prescrições simples para a  prev  pr even ençã çãoo d e ce cert rtoo s dist di stúr úrbi bios os ag aguu do dos. s. Por Po r ex exem empl plo, o, di dian ante te de um bebê em estado de desidratação aguda, consequência de uma diarreia, elas saberiam, além do mais, fazer o diagnóstico e prescrever, prescrev er, após seu ritual, um ch cháá especial, que compreenderia compre enderia notadamente um sal de cozinha ou uma aampola mpola de clorato de sódio, cuja provisão era remetida para cada uma obter efeito. Estas disposições, assim como a confiança que  prog  pr ogre ress ssiv ivam amen ente te tr trat atav avaa -s -see entr en tree o hosp ho spit ital, al, o s mé médi dico coss e estas terapeutas populares popula res fizeram com que fossem autênticas auxiliares de saúde. Estas terapeutas se sentiam autorizadas a encaminhar as pessoas que atendiam para o hospital, agora que sabiam reparar os signos da desidratação precoce. Quanto ao hospital, admitia sem reticências os pacientes que elas enviavam. Dada à pobreza da população e ao custo dos medicamentos, a ideia que tínhamos, ante este fato, era favorecer a utilização das plantas medicinais, cujos efeitos são conhecidos desde sempre no Nordeste do Brasil. Esta ideia levou a reunir as competências e os esforços dos conhecedores de plantas medicinais, tradicionais, dos botânicos, farmacêuticos da Universidade, assim como os estudantes de Medicina que seguiam os meus ensinamentos. Este na  pu  publ blic icaç ação ão r e gula gu lar r do: do : supl su plem emen ento to trabalho sema se mana nal,l,desembocou Universidade  Abe  A bert rtaa  do cotidiano, O Povo, o France Soir do Nordeste, com

quatro páginas destacáveis, sobre medicina popular e plantas medicinais. Uma centena destas plantas foram assim  

apresentadas e estudadas sob esta forma de ensinamento  popu  po pula larr . Esta informação visava a valorizar o capital cultural, junto ao grande público. Encontrava-se na emissão de uma rádio regional e duas rádios locais que revezavam, retomando os mesmos dados. Progressivamente, passo p asso a passo, trabalhamos  parr a a ap  pa aprr oxim ox imaç ação ão da d a muni mu nici cipa pali lidd ade ad e do hos h ospi pita tall fran fr anci cisc scan anoo e os curandeiros. Este trabalho de formiga, de intermediário, realizado sob a cobertura da Universidade, terminou, no final de dois anos, por trazer seus frutos: uma farmácia viva criouse no Hospital de Canindé. A comunidade dos franciscanos que gerou o hospital oferece o terreno à municipalidade. Esta última destacou dois de seus empregados para cultivar as plantas preparadas pela Universidade, a fim de que sua produção sirva à ação dos curandeiros, agora reconhecidos pela sua utilidade. Graças à formação de fornecida pela A  pr  proj ojet etoo lev l evou oubase te temp mpo, o, ppac aciê iênn ci cia a e faculdade. per p erse seve verr an ança çarealização ppar araa aapr proo xima xideste marr as duas partes, dissipar os preconceitos, preconc eitos, as reticências, e poder finalizar as negociações no interesse da população. A peregrinação a Canindé reunia 600 mil pessoas em alguns dias, oferecia a possibilidade, com a cumplicidade das autoridades religiosas, de realizar as ações de prevenção em grande proporção. Organizamos, a partir do segundo ano, um colóquio de reflexão, reunindo especialistas em Medicina Social, antropólogos, membros do clero, sobre os temas em torno psiquiatras da tradiçãoe modernidade, tratamento cultural e espiritual. Estes colóquios eram acompanhados pela colocação de stands  e de tendas de cura e prevenção onde reuniam em um mesmo espaço: curandeiros, dentistas, especialistas em plantas medicinais e médicos. Durante este período, os violeiros contribuíram para fazer  pass  pa ssar ar as men me n sa sagg ens en s de edu ed u ca caçã çãoo san sa n it itár ária ia so sobr bree ci cinc ncoo te tema mass abordados em vista de nossas pesquisas prioritárias para a região: as diarreias, as sarnas, os vermes, a água potável e o futuro dos marginalizados. Estes violeiros, guitarristas, meio trovadores, trovador es, meio cancioneiros, gozavam de uma viva simpatia

e atraíam um numeroso público quando se apresentavam nas ruas. Estas representações ocorriam há muito tempo, até a  

chegada massiva das estações de rádio e da televisão, estes violeiros eram os principais meio de informação popular ambulante, pelas suas canções improvisadas e pelas notícias que divulgavam sobre o mundo. Decidimos apelar para este meio de comunicação tradicional. Esta associação entre tradição e modernidade demonstrava ser um grande sucesso. Um pequeno número de estudantes de Medicina encarregouse de “resumir” questões. Eles forneceriam todas asa informações úteisasconcernentes ás lhes doenças e verificariam validade das mensagens difundidas pelos violeiros, pois estes davam ao texto de suas canções o tom poético e humorístico característico de seu estilo. Assim, podia-se ouvir cantar sobre os sinais e riscos da diarreia que conduz à desidratação como uma doença muito grave para o organismo, assim como a diarreia social que seca as terras do Sertão, fazendo-a fazendo -a perder a sua força viva. O refrão, repetido em coro pelo público, destaca a importância da reidratação com sal, a única coisa capaz de ajudar o corpo a conservar a água. Este tratamento  parr a o cor  pa co r p o soci so cial al se cham ch amaa r efor ef orma ma ag agrr ár ária ia.. Ap Apen enas as esta es ta reforma pode permitir p ermitir retomar o gosto do sal da terra e manter as forças vivas do país. Outras canções comparam as desagregações causadas pelos micróbios da sarna que destroem os tecidos, levando as coceiras e aqueles causados pelos homens políticos, corrompidos e demagógicos que destroem o corpo social. O refrão lembra a responsabilidade que cada pessoa tem de limpar e sanear tanto ao plano da higiene corporal como naquele da higiene social, através do ato e de seu engajamento. O número impressionante de crianças que são levadas às ruas mendigando ou abandonadas nos impulsionou a abrir durante o período de peregrinação o ateliê que denominamos: “recreação pela recreação”. Cada criança se apresenta, explica quem é, o que encontrou de bom em sua cidade e também os  prob  pr oble lema mass q ue ne nell a exis ex iste tem. m. As tro tr o cas ca s q ue oc ocoo rrem rr em entr en tree as crianças valorizadas, assim como todos os modos de expressão,sãodesenhos, modelagens, cantos e danças. Nestes ateliês, os violeiros e os estudantes de Medicina informam

sobre as perturbações perturbaçõe s frequentes que são encontradas entre as crianças, a maneira de prevenir ou de remediá-las. Estas  

informações suscitam discussões animadas. A enquete e as entrevistas junto aos peregrinos são conduzidas pelos futuros médicos, no momento da  perr eg  pe egri rina naçã çãoo de se sete tem m bro, br o, a fi fim m d e m el elho horr com co m pree pr eend nder er o itinerário terapêutico das pessoas do Sertão, no qual a  perr eg  pe egri rina naçã çãoo e as prom pr omes essa sass f ei eita tass a Sã Sãoo F ranc ra ncis isco co ocu oc u pam pa m um lugar que não deve ser negligenciado. Alguns as interrogam em frente ao pátio da basílica, outros, na casa dos milagres, onde são recebidos os melhores exvotos, a cada ano. Eles se propõem a examinar a história dos  perr eg  pe egri rino nos, s, as suas su as d o en ença ças, s, seus se us vo voto tos, s, of ofer eren enda dass e  prom  pr omes essa sass f ei eita tass a Sã Sãoo Fran Fr anci cisc sco. o. O se sent ntid idoo e a na natu ture reza za do ex-voto que eles talharam a evolução de suas perturbações... Todas estas informações passam por triagem, são catalogadas e analisadas. Elas se tornam objeto de numerosas sessões de estudos pluridisciplinares sobre o lugar e a importância da cultura e da fé nos processos de cura e sobre os fenômenos dos “milagres”.  “milagres”.   Estas questões estão certamente no centro mesmo de meus ensinamentos. Elas se tornaram agora objeto de colóquios internacionais que nós organizamos regularmente sobre a situação de Canindé. Estas numerosas manifestações e os diversos projetos engajados nesta região, particularmente deserdada, levaram a atenção das mídias e das instituições. As informações circulam, os ideais se propagam. Cada vez mais as pessoas se interessam pelo que se passa em Canindé e procuram  part  pa rtic icii par pa r das d as açõe aç õess qque ue estã es tãoo em e m dec d ecur urso so.. F Foi oi nest ne stee mo m o me menn to que recebemos o apoio moral, financeiro e técnico de Alexandre Minkovski, célebre professor parisiense de  pedi  pe diatr atria ia e “n “neo eona natt olog ol ogia ia”. ”. Em cada ca da u ma de suas sua s es esta tadi dias as no Brasil, dizia ter grande prazer praze r em ir a Canindé para ensinar as  benz  be nzed edei eirr as e aos ao s estu es tudd an ante tess d e Medi Me dici cina na.. Su Suaa ass a ssoc ocia iaçã çãoo “A Armé” tem nos trazido uma ajuda material muito preciosa. prec iosa. O objetivo, nosso objetivo, nunca foidodedestino nos instalarmos emmeu Canindé, nem de tomar o encargo sanitário

desta região, mas antes oferecer os meios para que os agentes que atuam no terreno possam ultrapassar suas divisões, seus  prec  pr econ once ceit itoo s, p ara ar a que qu e junt ju ntoo s poss po ssam am en enco conn trar tr ar so solu luçõ ções es ao aoss  

seus problemas, respostas às suas necessidades, isto a partir de seus próprios recursos. Está sempre presente em nosso espírito que a responsabilidade da ação deve, no final das contas, retornar aos próprios interessados. Certamente, ficamos muito tocados, muito comovidos no dia da inauguraçãoo do terreno da farmácia inauguraçã farmácia-viva, -viva, no momento momento em que frente à imprensa e à televisão, as primeiras plantas foram colocadas na terra. Este significou sucesso uma ação coletiva e solidária, assimdiacomo o inícioo de nossode progressivo afastamento. Se no primeiro ano, 80% da dinâmica do  proc  pr oces esso so;; dep de p en endi diaa de nós, nó s, n o ano an o segu se guint intee pode po derr -se-s e-ii a estimar que a nossa responsabilidade respon sabilidade era 50% e que terminaria  porr ser  po se r mais ma is u m ap apoi oioo s imbó im bóli lico co e af afet etiv ivoo n o fina fi nall do qu quar artt o ano. Teria uma presença limitada nos períodos das  perr eg  pe egri rina naçõ ções es,, mom mo m ento en to priv pr ivil ileg egia iadd o p ara ar a a r ea eali liza zaçã çãoo do congresso anual de Canindé. A experiência de experiência Canindé foique para mim adeutilizar uma riqueza incrível. Foi nesta aprendi antigos continentes para novos conteúdos e associar os conhecimentos ancestrais ao saber moderno. Foi aí também que aprendi a importância vital que é para mim estar em ação. Quando o espírito, o verbo toma forma, talhamos a matéria quando os projetos avançam eu me sinto então vivo, em movimento, em transformação. transformaç ão. Uma dinâmica está está a caminho: o real alimento, o imaginário, o concreto retoma meu  pens  pe nsam amen ento to,, al alim imen enta ta a minh mi nhaa r eflex efl exão ão.. Ma Mass lo logg o, u m novo no vo lugar me chama e se faz que seja engajado, exigido e imperativo. Airton, aproveitando a abertura de minhas consultas liberais de psiquiatria, mostra-me a problemática complexa, complex a, que me insere, pede que eu atenda um bom número de doentes residentes em Quatro Varas. Trabalhando hoje neste lugar de exclusão, repenso muitas vezes no período dos projetos de Canindé, principalmente quando recebo na favela pessoas que antes conhecera em Canindé. Eu me recordo, em especial, da história de Deusdeth, que conheci em 1990, no Canindé, durante a peregrinação.

Um dos estudantes encarregados de examinar a casa dos milagres, no estudo sobre os ex-votos procurou-me para  

ajudar o vigário franciscano, Frei Joãozinho, a resolver uma história que lhe parecia ser a mais demente. Um homem denominado Sebastião tendo uns 40 anos de idade, nascido em Taperuaba, local situado a 55 km de Canindé, desejava transportar seu irmão Deusdeth, dois anos mais velho do que ele, em um caixão até a nova basílica de São Francisco no momento das cerimônias da peregrinação. Frei Joãozinho tenta dissuadi-lo mas sem sucesso. Para compreender esta história extravagante é preciso remontar para mais de 30 anos atrás. Estamos em 1958. Deusdeth foi levado pelos seus pais, ao santuário de São Francisco para fazer a sua primeira primeira comunhão, para par a cumprir cumpr ir a  prom  pr omes essa sa q ue havi ha viam am fe feit itoo a São Sã o Fran Fr anci cisc sco, o, an ante tess de seu se u nascimento, se chegassem a ter filho. Deusdeth foi conduzido ao confessionário. O confessor, um franciscano de origem alemã, pediu para que ele contasse seus pecados. Ante a questão: “Quais são os seus  peca  pe cadd os?” os ?”,, colo co loca cada da b rut ru t al alme menn te p el eloo conf co nfes esso sor, r, o jov jo v em garoto, de nove anos, atrapalhado, não sabia o que era um  peca  pe cadd o. E st staa conf co nfis issã sãoo ir irri ritt ou o fran fr anci cisc scan ano, o, qu quee p ôs um término a seu ofício, declarando: “Por   que você quer se confessar se não sabe o que é pecado? Você só retorna quando souber!”. Logo que saiu da obscuridade do confessionário, o  jovv em, comp  jo co mple lett amen am ente te deso de sori rien entt ado ad o pelo pe lo q ue lh lhee acon ac onte tece ceu, u, foi pego pela mão por uma senhora, que, o vendo perdido ao sair do confessionário, o conduz receberia a comunhão. No momentoante em oquealtar ele onde recebeelea hóstia, ele levanta a cabeça cab eça e uma voz lhe acusa de cometer o sacrilégio de ter comungado sem ter se confessado, acrescentando que seria lançado ao fogo dos infernos. Ele sente então seu corpo se tornar cada vez mais quente, como se fosse queimar. Atormentado por essa sensação, ele se levanta do banco e se precipita para cuspir a hóstia sagrada fora do santuário, gesto que choca gravemente a assistência. Em consequência, no decurso do tempo, Deusdeth não pode apagar essa lembrança, nem esquecer o castigo anunciado. Ele se casa e tem filhos. Aos 40 anos, torna-se torna -se um louco e declara

um dia desesperado: Como de qualquer qualqu er modo eu devo acabar no inferno, portanto irei para lá em seguida, nada pode ser  pior  pi or do qu quee esta es ta es espe pera ra”. ”. Apar Ap aren ente teme ment ntee in influ fluen enci ciad adoo pelo pe loss  

espíritos, ele vai para o alto da montanha para terminar com esta vida de espera que o tortura. É salvo graças à intervenção int ervenção in extremis dos parentes próximos. Considerado como louco, é levado para um psiquiatra de Sobral. Um tratamento é prescrito que ele recusa fazê-lo. Desde então, a família vive um verdadeiro pesadelo. Ele não  pode  po de se serr de deii xado xa do só: só : os f amil am ilia iare ress sã sãoo o briga br igado doss m esmo es mo a confiná-lo dentro de casa, tanto é a sua determinação em colocar termo aos seus dias. Os vizinhos vizinhos amigos vêm para vê lo e o ajudar. Tudo é tentado para convencê-lo a ter sentimentos mais razoáveis, mas se tem a impressão de não haver qualquer efeito sobre ele. Um dia, entretanto, o seu vizinho vizin ho marceneiro lhe pergunta: “Você é um bom cristão e acredita no todo poder de Deus?”. Deusdeth confirma. Com isto, o marceneiro prossegue: “Você somente pede ao Bom Deus para lhe perdoar pelas suas faltas?”.  faltas?”.    No  Nota tand ndoo“Peça o si sinn al n egat eg ativ o as assi sin n al alad ado o co com m Deusdeth a ca cabe beçç a, segue el elee lhe lhoe afirma: perdão eivo você será salvo”. conselho do vizinho. Este procedimento o abre para o aparecimento de visões. Ele vê os anjos, o Espírito Santo e a Virgem Maria, todos lhe dizem: “Deus lhe perdoa, mas você deve construir um ‘mistério’, isto é, um caixão. E você deve ser nele transportado até Canindé durante o período da  perr eg  pe egri rina naçã ção. o. Só um fr fran anci cisc scan anoo deve de ve abr ab r ir o ‘m ‘mis isté térr io’ par pa r a lhe libertar e lhe receber em confissão. Assim, você se tornará eterno".  No m omen om ento to da disc di scus ussã sãoo e n egoc eg ocia iaçã çãoo entr en tree o seu se u irm ir m ão e Frei Joãozinho, já havia feito quase um ano que Deusdeth se  prep  pr epar arar ara, a, de deit itan andd o f requ re quen ente teme ment ntee no ca caix ixão ão,, es espp ecia ec ialm lmen ente te  plan  pl anej ejad adoo pel p eloo seu s eu vizi vi zinh nho, o, com co m nu n u mer me r o sos so s ppequ equen enoo s bur b urac acos os na tampa para que não lhe faltasse ar quando ele fosse transportado para o Canindé. Ouvindo esta narrativa eu extraí os significados do ritual prescrito. As pessoas do Nordeste falam em imagens. Quando se escuta, vê--se. Aliás, as frases são muitas vezes pontuadas de “você vê viu” para assegurar que  que   o interlocutor segue o que foi dito. Expliquei, então, ao vigário, que Deusdeth havia sido

assassinado ao ser expulso do confessionário e ao tomar a hóstia quando se acreditava ainda impuro. Condenado ao  

inferno, aos nove anos, ele não vive mais enquanto morto, ele deve se apresentar para retornar à vida e ser reabilitado por um franciscano, pois foi de um franciscano que ele teve a desgraça e o pior castigo. Este ritual parece o meio simbolicamente mais apropriado  parr a se r ec  pa econ onci cili liar ar com co m os valo va lorr es de su suaa cul cu l tura tu ra.. Re Reto torr nar na r ao seu lugar entre os vivos e se tornar eterno. Esta é a maneira de significar que enfim ele saiu vitorioso da morte simbólica que o golpeou no dia de sua primeira comunhão. Este drama de Deusdeth lembra aquele de numerosos nordestinos que vivem do fato da seca, com um pé na cova. Após ter-me ouvido, o franciscano aceita receber Deusdeth e sua família e  prop  pr opõõ e q ue a ceri ce rimô môni niaa se dese de senr nrol olee a u ma ho hora ra qu quan ando do a  basí  ba síli lica ca fica fi ca d eser es erta ta,, a f im, d iz el ele, e, “de “d e que qu e não nã o seja se jamo moss atrapalhados pelos importunos”.  importunos”.   Dois dias mais tarde, Deusdeth dentro de seu caixão, entra na  ba  basí cond nduz uzid ido oo,po porque r 12 iéis acom ac eomp p anh anco h an ante tes. s.sãoFo Foi i acol ac doo  porsíli  po r lica Frei Frcaeico Jo João ãozi zinh nho, qu e of ié ris eceb ec ebe em conf nfis issã o apó ap ó solhi thido ê -lo -l libertado de maneira apropriada. Após esse ocorrido, Deusdeth pôde retomar a sua vida de agricultor e encontrar o seu lugar no interior de sua comunidade. Ele se diz sempre imortal. Acredito, aliás, que ele não mais retornará a esta morte, aquela que retira um vivo de seu grupo através do sentimento de que ele não é mais digno de fazer parte. Casou se pela segunda vez com uma moça de 16 anos. Ele vem muitas vezes nos visitar, em Quatro Varas, para curtas estadas. Uma ocasião, no ano passado, com as grandes secas, ficou seis meses e sua cooperação nos tem sido preciosa, para o cultivo do jardim consagrado às plantas medicinais. Com as  prim  pr imei eirr as chuv ch uvas as,, part pa rtiu iu p ar araa a sua su a rreg egiã ião, o, onde on de r ee eenc ncon ontr trar aria ia a sua família e seus velhos pais perto de Taperuaba.

 

Quatro Varas: da Exclusão à Inclusão. Junho de 1992   Estação de Lyon, 19 h, Jean Pierre e eu descemos prontamente do TGV vindo de Grenoble. Correndo, nós trouxemos juntos, cada um pegando em uma alça, minha grande sacola lotada de objetos artesanais e de cartas postais desenhadas pelos jovens da favela. Durante o trajeto não tínhamos descansado. Passamos em revista os diferentes episódios de minha vida e resultados para concluir o plano detalhado de meu livro que devíamos escrever sobre a minha vida. No dia seguinte, tivemos um encontro no F.P.H. com Michel Sauquet e Annick Ollitraut Bernard para tratar sobre a realização deste livro. Por um instante, o tempo urge. Devíamos retornar para a sala  paro  pa roqu quia iall pert pe rtoo de Denf De nfer ert.t. Roch Ro cher erea eau, u, ond on d e meu me u irmã ir mãoo Aírton e o padre Henri Le Boussicaud teriam, a partir de 19h30, uma conferência- debate, sobre a ação realizada em Quatro Varas. No momento em que chegávamos, o Padre Henri vez. explicava como havia encontrado Airton pela primeira Era 1983, eu havia passado dois meses no Brasil quando cheguei a Fortaleza. Soube pelos jornais que estavam ocorrendo distúrbios sérios com as forças da ordem. Estes distúrbios estavam localizados, nas imediações da favela de Pirambu. Tratavam-se, de famílias expulsas de seus vilarejos, devido à seca, que tentavam se instalar. Aqueles que me conheciam, sabiam que eu já havia permanecido seis meses com estasseis pessoas. Seis amar meses a combater, seismeses meses construir, meses para estas famílias, seis paraa aprender junto a Aírton, o que é a miséria e o que quer dizer a caridade cotidiana e a ação cristã de liberação. O que era muito divertido nesta nest a história é que eu tive a impressão de que me encontrava encontrav a com o Abbé Pierre, durante o inverno de 1954. Pois sentia o mesmo fervor, o mesmo entusiasmo, o mesmo desejo, a mesma fé e solidariedade, com uma única diferença mais de detalhe externo: a temperatura exterior, porque o calor humano era igual. O Padre Boussicaud levanta-se, sua voz fica mais firme, em grande parte, por pessoas idosas e religiosas, e aponta o dedo

no ar, e como um tribuno tribun o exulta: “Deus não está lá no alto ddoo céu, porém se há de  

esperar que ele venha descer. Deus está em cada um de nós, e  pede  pe de apen ap enas as pa parr a se ex expr prim imir ir par pa r a q ue poss po ssaa se ab abri rirr co como mo uma flor. Despertai-vos”. Despertai-vos”. Inicialmente, nos conventos, a ação que Deus espera de nós e junto aos pobres, daqueles que sofrem, como faz Aírton e como nós temos feito e continuamos a fazer com o Abbé Pierre. Não é por acaso que hoje, Ayrton, antes de construir uma comunidade de companheiro companh eiro Emmaus, em Quatro Quat Varas, esolicitou serviços para de visitar a França e aroEuropa aprenderosameus não cometer os mesmos erros que nós. O Padre Le Boussicaud senta-se senta -se e explica por que ele se sente um pouco padrinho desta comunidade: era na época em que a fábrica de couro fechou definitivamente a sua porta, para as famílias, vindas do terreno, discórdias. Houve histórias com as autoridades e a direção da fábrica. As violências e os ataques perpetrados pela polícia se multiplicaram para forçar estas a plataforma. chamado, desde famílias o início,a esvaziar para defender no planoAírton legal foi estes novos habitantes da favela e obter o reconhecimento de sua implantação. Neste momento, os residentes puseram-se a organizar para resistir, procuraram um nome para o seu novo  bair  ba irro ro.. Houv Ho uvee nu num m eros er osas as prop pr opos osta tas, s, m as fo foii a min mi n ha q ue recebeu a concordância de todos. Quatro Varas, que significa “quatro bastonetes”. Esta expressão vem de uma história que um velho homem me contou em um vilarejo do Sertão. A história faz parte do patrimônio cultural do Nordeste e se encontra sob formas muito semelhantes em numerosas regiões. Um homem sentia que a sua vida estava no fim e se  preo  pr eocu cupa pavv a co com m o f u turo tur o de sua su a f amíl am ília ia.. Re Reún únee na cabe ca bece ceir iraa da cama seus quatro filhos, que estavam sempre se disputando. Ele dá uma vara para que cada um, a seu pedido, quebre sem dificuldade. Depois o velho homem pega quatro outras varas, reúne-os e amarra-os em seu conjunto, e propõe a seus filhos que, um após outro, tentem rompê-los. Isto ninguém conseguiu fazer. “Eis aí”, termina por dizer o velho, “a única mensagem que

eu tenho para vos deixar antes de deixar esta vida: estando unidos, ligados uns aos outros, vocês serão fortes e poderão resistirr lá; indo sozinhos não poderão resisti p oderão fazêfazê-lo”. lo”.    

Quando eu terminei de contar esta lenda aos primeiros residentes, a escolha do nome Quatro Varas tornou-se evidente para todo mundo, mundo , que este nome simbolizava a força da união e da solidariedade. “Mas vocês não vieram aqui para me ouvir”, e, voltando-se  parr a Airt  pa Ai rton on,, est es t end en d e -l -lhe he o micr mi crof ofoo ne e o apr ap r es esen enta ta co como mo advogado da associação dos direitos do Homem, na comunidade Quatro Varas. Em primeiro lugar, Airton expõe a situação econômica e social do Brasil: a inflação e a organização injusta da sociedade brasileira que fazem com que apenas uma minoria de brasileiros super ricos aumentem regularmente seu  patr  pa trim imôô nio, ni o, en enqu quan anto to o núme nú mero ro d e p esso es soas as pobr po bres es au aum m ent en t a, a  pont  po ntoo de atua at ualm lmen ente te som so m ar m ai aiss d e 1 0 m il ilhõ hões es d e br bras asil ilei eirr os que vivem abaixo do nível da miséria. Ele expõe, em seguida, o caso particular do Nordeste, notadamente do Sertão, sofrendo as ondas de secas apavorantes, levando a grandes deslocamentos da população para o centro urbano, com o afluxo de famílias completamente desnutridas, que vêm aumentar as favelas das grandes cidades. Airton, continua a exposição, contando: con tando: “Foi assim que, com as grandes secas de 1983, muitas famílias de uma mesma fazenda vieram a se refugiar nas periferias de Fortaleza. Procurando lugar para viverem, eles se instalaram com bagagem, mulheres e filhos em um terreno abandonado pela inspetoria, que impede o acesso de uma usina de couro. O terreno estava situado atrás da primeira duna, no prolongamento da favela de Pirambu, que na época já contava com 200 mil habitantes. habitante s. Eis, portanto, o início da história. Em seguida, outros migrantes e excluídos de todas as espécies espécie s vieram se reunir a eles. Rapidamente, este grupo de ‘moradores’ pediu que eu os ajudasse, sabendo que eu já havia dado uma mão forte aos residentes de um bairro vizinho. Estas famílias procuravam os meios de lutar para ficarem, para não se tornarem os nômades que ninguém quer, recusando a ideia de ver se sucederem as expulsões e desarrumações. precisojuridicamente, defender palmo a palmo fisicamente, masEra também esta instalação;

resistir às pressões, às ameaças e agressões .   Ele conta, com a sua voz doce e tranquila, sobre a violência econômica, econômi ca, violência material: a questão de higiene, doenças,  

epidemias, os tratamentos. A violência da insegurança: os roubos, o alcoolismo, as drogas, a prostituição, os rompimentos das famílias. Enfim, a violência afetiva e moral, da perda de confiança e autoestima, de não entrever nenhuma saída para si e nenhum futuro digno deste nome para seus filhos: “O importante tem sido fazer com que as a s autoridades políticas e jurídicas reconheçam a existência destes homens, destas mulheres e destas crianças, seu direito de viver em qualquer  part  pa rte, e, de te terr u m te tett o. Port Po rtan anto to,, o mí mínn imo im o de me meio ioss de existência: água potável, eletricidade, esgotos, encanamentos, escolas. Cada etapa significava uma vitória, aquela da união que cria a solidariedade, a fraternidade. Foi assim que, de  bata  ba talh lhaa em ba bata tall ha, ha , foi fo i con co n st stit ituí uídd a a asso as soci ciaç ação ão da comunidade. comunidad e. Obtivemos, recentemente, que a municipalidade,  próx  pr óxim imoo às el elei eiçõ ções es,, deci de cidd a a f orr or r ar as r ue uela lass d e arei ar eiaa e calçamento favela, consideravelmente  pa  pais isag agem, em, co com mnao tam t amb b ém modi momudando difi fica carr a or orga gani niza zaçã çãoo e o m mod odoo de d ea viver na comunidade. Concretamente, mas também simbolicamente, isto criou um vínculo, um cimento entre nossas diferentes moradias. O fato de ter verdadeiras ruas em lugar de caminhos de duna, abriu-nos ao mundo exterior a circulação entre as pessoas, as bicicletas, carros, caminhões. O fato de sentir sob meus pés um solo firme deu-me um sentimento de confiança. Dessív uma ogív que fosse  po  poss ível. el.só Era Ervez, a o prim prhavia imei eirrrealizado o si sina nall ttan angí v el dtanto o que qu equeria po podd ia que exis ex isti tir r de de sólido, de permanente, que permitia sair do sentimento de  prec  pr ecar arie ieda dadd e, in inse segg uran ur ança ça d e uma um a v id idaa in inst stal alad adaa so sobr bree o  prov  pr ovis isór ório io,, apar ap aran ando do-s -see sobr so bree a arei ar eia. a. I sto st o in intr trod oduu z n a coletividade a ideia de tempo, de duração, opondo-se a uma maneira de viver estritamente no momento presente. Enfim, pude começar a encarar a existência da comunidade em perspectiva, com uma história, um futuro. Para coisas see  pa  pass ssam amque n a vocês fav fa v el ela, a, possam vou vo u ci citt arcompreender um exem ex empl ploo como d e um umaaasluta lu ta re rece cent nte

que nós travamos para fazer respeitar os direitos e a dignidade dos favelados como pessoas íntegras. Vocês poderão ver a importância de poder abordar os  

 pr oble  prob lema mass n o plan pl anoo co com m unit un itár ário io,, le leva vand ndoo em cont co ntaa toda to dass as implicações sociais, jurídicas, como também relacionais, afetivas. Isto que nos é agora possível foi graças a ajuda trazida pelo meu irmão Adalberto, psiquiatra, aqui presente e seus colegas do Centro de Estudos da Família. Uma noite, Mariazinha, uma jovem vizinha de 20 anos, veio me procurar, transtornada e aterrorizada. Eu notei que seu rosto estava inflamado e que seu nariz sangrava. Ela me contou que, tendo ido dar queixa na polícia pelas atitudes de uma vizinha, foi agredida verbalmente, depois molestada violentamente pelos oficiais da polícia presentes, que depois a prenderam, sem que ela soubesse os motivos. Quando eles enfim a libertaram, a ameaçaram de matá-la, se contasse qualquer coisa que fosse. Imediatamente, decidimos trazer um plano de ação. No dia seguinte, durante a sessão de terapia comunitária coordenada  po r Ad  por Adal albb er erto to,, o prob pr oble lema ma foi fo i evo ev o ca cado do.. De imediato, a coragem de Mariazinha liberou as falas. As outras pessoas da comunidade, que haviam guardado em segredo, as mesmas humilhações policiais que haviam sido objeto se puseram a falar. Mariazinha pôde sentir que não estava sozinha na prova que teria de enfrentar. Ela se deu conta de que testemunhando no momento do processo, seria  parr a o conj  pa co njun unto to d a comu co munn idad id adee qu quee f al alar aria ia.. To Toda dass as p es esso so as se propuseram, em seguida, a ajudá-la a se preparar. Seis outras decidiram a se constituir a suas custas. pessoas Estes atos de justiça levaram a aparte um civil formidável movimento de solidariedade. Toda a comunidade viera para apoiar suas testemunhas e minha defesa jurídica foi para uma sessão pública da Assembleia Legislativa, reunida especialmente para debater as violências policiais. A imprensa integrou-se, numerosos artigos foram publicados sobre a atitude da polícia nos bairros pobres. Meu irmão,  prof  pr ofes esso sorr da Univ Un iver ersi sida dadd e, f ez pro pr o nun nu n ci ciam amen ento toss na te tele levi visã sãoo e no rádio, para denunciar as violências e defender a dignidade e os direitos dos miseráveis. Os policiais finalmente foram condenados, e, durante algum tempo,

Quatro Varas encontrou uma certa tranquilidade. Ele explicou, em seguida, os princípios, os valores que o  

animavam e organizavam o seu engajamento. Falou da libertação, da noção de pecado social, da ação cristã reunindo, no campo das pessoas de boa vontade, qualquer que fosse a sua confissão, uma resistência ecumênica de alguma forma, à miséria e à decadência. Falou das ligações interdependentes que cada indivíduo deve estabelecer para seu equilíbrio com sua comunidade e a sua cultura.  No ssoo pr  Noss proj ojet etoo não nã o é aqu aq u el elee dos do s miss mi ssio ioná nári rios os ou dos do s co colo lo no noss vindos do Brasil para tomar o poder e trazer suas verdades, suas crenças, sua cultura e, portanto, as suas soluções para os  prob  pr oble lema mass d as popu po pula laçõ ções es domi do mina nada das. s. Ma Mas, s, ao cont co ntrá rári rio, o, a nossa participação consiste em colocar em evidência os recursos e os meios com que eles próprios próprio s possam resolver os  prob  pr oble lema mass e as n eces ec essi sidd ades ad es qu quee se apr ap r esen es enta tam. m. Acreditamoss que cada indivíduo, família, comunidade, possui Acreditamo em si mesmo os meios de responder às suas próprias necessidades, recursos vezes esquecidos ou menosprezados menospr ezados que vêm de muitas sua cultura, da experiênci experiência a de seus  pais  pa is ou de ant an t epas ep assa sado dos. s. Est E stas as expe ex peri riên ênci cias as so soci ciai aiss e cu cult ltur urai aiss  pode  po dem m ser se r valor va loriz izad adas as,, sob so b r et etud udo, o, n as situ si tuaç açõe õess d e ex excl clus usão ão em que as pessoas perderam a sua identidade e o orgulho de ser o que são”.  são”.   Guardo uma lembrança muito precisa dessa conferência, em que Aírton definiu melhor do que eu saberia fazer o essencial de nosso projeto. Tenho a impressão impre ssão que se passou um século, desde a primeiraemvez emretorno que eu ao ouvi falar Aírton de Quatro Foi justamente meu Brasil, nos Varas. falava com os olhos em chamas, sua excitação e seu entusiasmo entu siasmo eram tais, que a sua família e seus amigos estavam realmente com razão por estarem preocupados por ele. Ele havia encontrado o campo de seu compromisso e alegria. Recordo-me dos primeiros pacientes de Quatro Varas que comecei a atender desde que ele soube que eu havia aberto um consultório para o Centro de Estudos da Família, junto ao hospital universitário. Nesta época meu espírito estava essencialmente ocupado pelos projetos de Canindé. Entretanto, ante o afluxo dos pedidos, decidi, em acordo com

Aírton, que esperava por isto há muito tempo, ou seja, ir ao local e encarar as modalidades de ajuda terapêutica adaptadas adaptad as  

às necessidades da comunidade. De fato, todos os pacientes que encontrei apresentavam dificuldades, distúrbios distúr bios de identidade que estavam referidos à sua condição de vida material materi al comum, assim como as relações que se estabeleciam entre eles no contexto particular da favela. Assim, antes de isolar cada um com suas perturbações e seus tratamentos individuais, a ideia que me veio, naturalmente, foi de oferecer a estas famílias de excluídos o meio de regular os problemas no interior da coletividade, apelando para os seus próprios recursos. Foi assim que eu propus coordenar a cada quinta-feira à tarde uma sessão de terapia comunitária. A primeira ocorreu na  pequ  pe quen enaa casa ca sa da as asso soci ciaç ação ão d os Dir Di r ei eito toss do Home Ho mem, m, compreendendo uma e única sala de 15 metros quadrados onde se apertavam umas 20 pessoas, enquanto as outras  pess  pe ssoa oas, s, apes ap esar ar d e cala ca lar, r, assi as sist stia iam m ao ac acon onte teci cim m ento en to,, se amontoando nas ruelas em volta das janelas. Fiquei um pouco inquieto ao ver como as coisas se passavam. Certamente, eu não estava totalmente em terreno desconhecido, desconhec ido, havia Airton, e eu conhecia conheci a o rosto das pessoas que vinham me ver no centro da família ou na consulta do hospital universitário. Dona Geralda é uma pessoa muito conhecidaa na favela. Ela foi uma das primeiras pessoas que se conhecid instalaram na comunidade. Ela se levantou pequena, toda vestida de negro. Trazia uma expressão sobre sua visão, totalmente pelo tempo e asgrave preocupações parecendo uma fruta marcada seca. Os seus cabelos crespos e embranquecidos estavam puxados no alto da cabeça e presos juntos por dois grossos elásticos vermelhos. Em seguida, tomou a palavra para falar de seu filho Dedé. Este, sentado ao lado dela, coberto de esparadrapo, o rosto inflamado, com gazes sobre as orelhas, dava-lhe a aparência de um extraterrestre. Como eu não conhecia esta senhora, ela me explicou que com a ajuda de seus vizinhos acolheu Dedé quando ele tinha apenas três dias, tirando-o das da s mãos do pai pai que ia jogá-lo no mar. Dedé deveria ter 20 anos e era o rapaz mais servil do que normalmente seria.

Ontem à noite, ele entrou em casa com um ferimento ferimen to perto do  pesc  pe scoç oço, o, ppro rocu curr and an d o eem m tod to d a cas c asaa uma um a gran gr andd e fa faca ca de cozi co zinh nhaa  

 pa r a iirr m  par mat atar ar todo to doss os o s sseu euss ag agrr esso es sorr es qu quee o ha havi viam am am amea eaça çadd o e ferido para lhe tirarem o dinheiro. Eu me coloquei através da porta para impedi-lo de fazer besteira, mas ele estava de tal modo excitado, fora de si, que me empurrou e, caindo eu fiquei acuado no canto da mesa. De repente, ele acreditou que eu estava morta. Desesperado, derramou o querosene sobre o seu corpo e vestimenta e acendeu um fósforo. Felizmente, os vizinhos, atraídos pelosa seus depressa com cobertas apagando tochagritos, viva que estava cobriram-no se tornando ante seus olhos. Eu tinha necessidade de ajuda, não sabia o que fazer! Estou muito velha e muito fraca para ajudá-lo a se tornar um homem e tenho muito medo med o de que ele venha a fazer novamente coisas como esta. Dedé, escutando a sua mãe adotiva, abaixa a cabeça e chora docemente: “Portanto, é por ter de falar e dizer a verdade é que eu fui tentar duas vezes a morte, eu posso confessar aquilo que eu sempre neg uei: neguei: eu usopresentes drogas”.tomaram Vendo a Dona Geralda acabrunhada, as pessoas palavra, umas após outras, para testemunharem a sua afeição por Dedé e sobre a importância que ela tem para a comunidade. A gente sempre está segura de poder contar com ela, quando se  prec  pr ecis isa, a, afirm afi rmaa u ma velh ve lhaa senh se nhor ora. a. Ou Outr tras as pess pe ssoa oass  part  pa rtic icii par pa r am d as difi di ficu culd ldad ades es com co m pará pa ráve veis is qu quee el eles es tê têm m ou têm tido em sua família e os meios que eles utilizaram para saírem da crise e seus filhos, da droga. Uma pessoa fez notar que toda a vida de Dedé, assim como seus comportamentos na comunidade, são marcados pelo gesto da ajuda mútua, indispensável para a vida. Múltiplas  prop  pr opoo st stas as fora fo ram m dir di r igid ig idas as par pa r a inte in tegr grar ar De Dedé dé n o g rup ru p o d os  jovv ens  jo en s de d e su suaa id idad ade. e. Ele E le rec r eceb ebeu eu inú i núme mero ross conv co nvit ites es par p araa jjan antt ar ou sair na cidade. A partir destas diferentes intervençõe intervenções, s, uma reflexão foi conduzida sobre a importância das ligações no interior da comunidade. Alguém propôs que, antes de se separar, cantassem juntos um canto de fraternidade dando-se as mãos para constituir uma corrente. Esta primeira sessão serviria de modelo, todas as reuniões terapêuticass comunitárias se desenrolaram da mesma maneira. terapêutica

Uma “situação“situação - prob  pr oble lema ma”” é men me n ci cion onad adaa por p or um umaa pes p esso soa, a, uuma ma família ou um grupo, como os Tremembé. Cada pessoa sentada ao ser referida referid a por ter vivido uma situação semelhante  

é chamada para se exprimir, para expor a sua experiência, “seu saber”, que pode oferecer uma grande variedade de soluções possíveis para o problema levantado. Em seguida, uma reflexão é levada ao nível da comunidade comu nidade sobre os meios que ela tem para poder arcar com estas dificuldades. Enfim, a sessão termina infalivelmente infalivelmente com o ritual da corrente: dando dando-se as mãos ou abraçados, rezam-se rezam -se e cantam todos juntos para que cada mútua que um nos sinta une. a corrente de solidariedade e de ajuda Em cada reunião de quinta-fei quinta -feira, ra, os problemas da comunidade uns após outros são abordados, refletidos e tratados com os recursos que se revelam muito mais importantes que se  pode  po derr ia im imag agin inar ar.. I n ic icia ialm lmen entt e, li limi mita tavv a -se -s e a es estt ar pres pr esen ente te nas sessões das quintas-feiras à tarde. Com o tempo, mais rapidamente, eu me sentia tomado pela formidável dinâmica criada por esta forma de reunião, pela palavra e ajuda mútua. Assim, uma foi dasa medida primeiras questões por da comunidade, de tratamento dadainsistência à questão dos meninos de ma. Foi colocado evidentemente, o problema, de como se organizava uma escolaridade, a abertura de creches, a criação de asilos, em lugares que pareciam ser o fim do mundo; de outro lado, as crianças deixadas ao abandono, livres, passeando com canivetes no bolso para se defenderem ou ameaçarem alguém, com propósitos de obterem um pedaço de pão ou um par de tênis. Com colegaseducativa do Centro da Família, organizamos as tardesalguns de expressão e pedagógica. pedag ógica. Paralelamente, os  jovv ens  jo en s d a f avel av elaa colo co loca cava vam m -s -see jun ju n to tos, s, pa parr a apre ap renn de derr em como co mo ensinar as crianças na idade escolar a ler e escrever. Um certo número de jovens, filhos e filhas de alcóolicos, encontravam-se regularmente em grandes dificuldades. Durante as noites ou nos finais de semana, a presença de seus  pais  pa is alco al coóó li lico coss e viol vi olen ento toss im impe peli liam am-n -nos os a deix de ixar arem em suas su as casas, com o risco conhecido, porque frequentemente  pass  pa ssav avam am a se drog dr ogar ar,, se pro pr o st stit itui uirr ou a se envo en volv lver er em se seit itas as religiosas. Para estes jovens, um grupo de arteterapia foi criado com a palavra de ordem emblemática: “a arte constrói

o que a miséria destrói.” Este recurso permitiu que uns 20  jovv ens  jo en s dese de senv nvol olve vess ssem em a sua su a capa ca paci cidd ade ad e artí ar tíst stic icaa e cr cria iati tiva va..  

Eles puderam exprimir, através do desenho e discussões, sua  prob  pr oble lemá máti tica ca,, e ta tamb mbém ém p rogr ro gres essi siva vame ment ntee se id iden enti tifi fica carr co com m suas qualidades artísticas reconhecidas e valorizadas, que viam em seus familiares antes do que, com a imagem degradante que qu e eles tinham de seus pais. Este grupo de jovens conseguiu rapidamente vender os seus cartões postais que desenharam. Viram Vir am que de repente passaram a lhes dar valores materiais, comparáveis a seu trabalho de criação. Outroso exemplos poderiam ser citados (com o risco de entediar leitor): o atelier de serigrafia, o grupo de pessoas idosas, o grupo das mulheres. Na comunicação de boca, o ouvido, a experiência, de Quatro Varas começou a ser conhecido: o rumor atravessou o oceano. Foi da França que recebemos os  prim  pr imei eiro ross apoi ap oioo s, ta tant ntoo ao n ív ível el da r ef efle lexã xãoo quan qu anto to ao nív ní v el material. Lembramos da cadeira de solidariedade, os primeiros fios tecidos “teia de aranha”. Então, em suas muitas passagens em Canindé,pelaAlexandre Minkowaski veio, vezes repetidas, visitar-nos, em Quatro Varas. Cada vez, ele partia muito impressionado pelo que via e se mostrava muito impressionado pelo nosso  proj  pr ojet eto. o. Assi As sim, m, não nã o f oi surp su rpre reen ende dent ntee q ue te tenh nhaa menc me ncii onad on adoo nossa experiência experiênc ia ante seus alunos. Foi assim qque ue meu colega, o psiquiatra Michel Boussat falou de Quatro Varas, com seu filho, segundo ouvira de Minkowski. Assim, informado de nossa ação, Michel Boussat entrou em contato conosco e chegou a Fortaleza. Entusiasmou-se pelo nosso projeto de aliar tradição e modernidade, ajudando a comunidade a se organizar, a desenvolver seus recursos, a ter confiança nela, reforçando as ligações identificáveis de cada um com a sua  próp  pr ópri riaa ccul ultu turr a. Para Pa ra el ele, e, que qu e tr t r abal ab alho houu mu m u it itos os an anoo s em em D Dak akar ar ao lado do professor Collomb, este refrão lhe trazia lembranças. Em sua passagem seguinte a Fortaleza, ele me convidou para participar do colóquio que organizou em Toulon intitulado “Poder e Possessão”. Foi nesta ocasião que eu encontrei o meu amigo Jean Pierre Boyer. Desde os primeiros encontros, senti a corrente passar entre

nós. Simpatizamo-nos Simpatizamo-n os porque nós percebemos, percebemo s, tanto um como outro, suficiente espontaneidade, confiança e implicações  parr a tor  pa to r nar na r n ossa os sass refl re flex exõe õess f ecun ec unda das. s. Curi Cu rios osam amen ente te,, n ão  

tivemos necessidade de passar por sofridas preliminares, estes rituais de “pouco caso” entre colegas, visando a apreciá -lo  parr a depo  pa de pois is as asse segg urar ur ar o r eco ec o nhec nh ecim imen ento to m útuo út uo.. Em E m conj co njun unto to,, meu trabalho encontrou nele um interesse comparável aquele que me inspirou sua experiência clínica, com os recémnascidos ou sua pesquisa sobre as formas de ajuda terapêuticas da Umbanda. A seguir desse colóquio de 1987, Michel Boussat retorna a Fortaleza e, levando em conta a pobreza de nossos meios, decide oferecer, em nome da Associação de Psiquiatria Sem Fronteiras, o montante necessário à aquisição de um terreno situado entre a primeira e a segunda duna. Este gesto generoso  prop  pr opor orci cioo nou no u à cole co leti tivi vida dadd e, um lu luga garr comu co munn it itár árii o a el ela, a, u m local para se reunir. Sobre este terreno, a sombra do cajueiro substitui o local exíguo da Associação dos Direitos do Homem, serve como a árvore daem palavra na África (a árvore como local reúnedos os homens sua volta), o local de reunião, os que troncos coqueiros dispostos em torno, dando lugar a cadeiras para os  part  pa rtic icii pant pa ntes es.. A partir desse momento, nós pudemos construir neste terreno e, assim, instalar os símbolos de duração, de continuidade: a casa das crianças, a casa da serigrafia e a casa para o grupo de arteterapia dos jovens. Todas estas casas solicitaram tempo, porque, evidentemente, estas casas diferentes foram feitas em mutirão, ocasião construir, em comum, os vínculos tão para sólidos como asdurante casas. o trabalho Pouco tempo depois, tive o prazer e também a surpresa  porq  po rquu e algu al gum m as veze ve zess o s enco en cont ntro ross de ci cirr cuns cu nstâ tânn ci cias as terminam em trocas de endereços sem retornos - de acolher Jean Pierre Boyer e a sua família, que, no curso de seu circuito turístico, parou alguns dias na casa de uns amigos em Fortaleza. Eu o levei justamente ao terreno, em Canindé, e à favela. Ele se mostrou logo apaixonado por estas visitas, fazendo, como tem hábito, notas, sugestões, chamando a atenção sobre tal ou tal perigo.

Foi ele que, desde aquele momento, falou-me da F.P.H. (Fundação para o Progresso do Homem) e, que apoiaria nos meses seguintes, o pedido de financiamento para a pesquisa 

ação que conduzimos e que depois, ele conduziria conosco. Eu lhe repeti muitas vezes, brincando, que era o meu portafelicidade. O fato é este: a partir do momento em que q ue nós nos encontramos, a sorte começou a sorrir e a ação, a tomar um rumo diferente. O apoio material da Fundação para o Progresso do Homem, as discussões discussõ es e as reflexões que suscita e a difusão que fornece, permitem multiplicar multiplic ar os contatos com as equipes trabalhando na mesma direção que nós. A experiência de Quatro Varas começou a ser conhecida no Brasil, mas também no estrangeiro: numerosas pessoas vêm nos visitar. Os grupos de cristãos informados pelo “telefone árabe” interessaram-se interessaram -se pela nossa ação e propuseram sua cooperação. cooperaç ão. Penso particu particularmente larmente no grupo de Grenoble que, após a visita de Christiane Fénéon, retornou embalado por aquilo que havia visto, consegui con segui coletar uma soma de dinheiro importante. Desde então, estas diversas ajudas financeiras  pe  perm rmit itir iram am terreno aum au m enta en tar r o “pat “p atr r imôn im ônio io” ” djáa tínhamos. co comu mu nidade pela compra do adjacente àquele que Pudemos, agora, engajar na aventura da Farmácia Viva, utilizando a experiência de Canindé, mas, desta vez, são as  pess  pe ssoa oass da comu co muni nida dadd e q ue cult cu ltii vam va m o te terr rren eno, o, p la lant ntan andd o as ervas medicinais, depois levando-as a secar, para fazer os xaropes ou as preparações, sob a direção de Abreu Matos,  prof  pr ofes esso sorr ddaa Fac F acul ulda dadd e ddee Far F arm m ácia ác ia qu quee vei v eioo se reun re unir ir à n ossa os sa ação. Nossa ideia, o espírito do projeto, é utilizar esta terra como forma de reunir entre eles as pessoas pessoa s da comunidade em uma prática que os reatam à tradição cultural. Além de eles reatarem com a cultura tradicional, as a s plantas medicinais, para muitos rejeitados ou esquecidos, marcam como ação coletiva  parr a ca  pa cadd a p artic art icip ipan antt e o sí símb mboo lo de se en enrr ai aiza zar. r. As Assi sim m como co mo de um respeito à vida que se ajuda a impulsionar, a crescer e ampliar todas as formas de identificação que lhe permita encontrar neste modelo. Cultivando esta terra comum, cada um cultiva também a sua terra interior, redescobrindo seus recursos, suas possibilidades, exercendo-as. Muitas destas tarefas são crianças. aquelas que  po  pouc ucoo te temp mpooconfiadas ante an tess r oub ouàs b av avam am na r uEstas a e qu queesão agor ag ora a apr ap r en ende dem mháa

cuidar das plantas. Vestidas com roupas novas, escritas em suas camisetas e seus casquetes casqu etes a frase “Agente de saúde criança, farmácia-viva", farmácia -viva",  

vendem os produtos daquilo que é agora uma pequena empresa comunitária. Fomos levados a construir duas palhoças para realizar as reuniões de diferentes grupos e a pequena construção necessária para preparações e ou estocagem das plantas medicinais. Na mesma época, como eu havia feito em Canindé, pedi aos estudantes de Medicina para seguirem os seus cursos e fazerem os seus estágios em Medicina Social sobre o terreno, participando de maneira ativa, nas pesquisas e ações engajadas em Quatro Varas. Tanto nos jardins de infância como escolas, junto aos curandeiros e à farmáciaviva. Pouco tempo depois, os futuros sacerdotes vieram também  parr a a f avel  pa av elaa p ara ar a a sua su a f orm or m ação aç ão em P sico si colo logg ia e So Soci ciol olog ogii a das religiões. Eu sou cada vez mais solicitado a participar em colóquios e congressos nos quais as malas cheias de produções da favela e cartões postais do grupo de arteterapia. Estas viagens me  perm  pe rmit item em o r ecol ec olhi him m ento en to par pa r a a refl re flex exão. ão. A fim d e evit ev itar ar -me -m e fechar no “fazer” e que a ação não ultrapasse o espírito.  espírito.   Todas estas mudanças se fizeram com dificuldades e questionamentos. Muitas coisas chegam através de meu intermédio, o que reforça a ideia de patrão, chefe, daquele que tem poder. Numerosas responsabilidades e tarefas caem nas minhas costas, o que arrisca muito. Nestes termos, a ir contra o nosso projeto de liberação, inspirado em Leonardo Boff, ao qual nós atemos mais do que nunca. Assim, parece-me que um tipo de organização deve vir à luz  parr a g erar  pa er ar f orm or m as mai ma i s ad adap apta tada dass à et etap apaa at atuu al d e noss no ssoo  proj  pr ojet eto. o. Foi assim que surgiu nos debates comunitários a ideia de criar um movimento integrado de saúde mental comunitária, independente das associações da favela e do Centro de Estudos da Família, na qual sou diretor. Se me alegrava considerar Michel Boussat, Jean Pierre Boyer, Christiene Fénéon e Kris Mestas como os anjos-da-guarda,

 pa drin  padr inho hoss e m adr ad r in inhh as ou r ei eiss mago ma goss de Quat Qu atro ro Va Varr as, as , co com mo eu poderia tornar-me o pequeno patrão da favela.  

Todas estas visitas, realizações, congressos e artigos que dão conta das ações conduzidas conduzi das na favela me proporcionaram uma certa notoriedade, que se manifesta pelo afluxo de pedidos  parr a con  pa co n su sult ltas as que qu e recu re cuso so resp re spon ondd er, pr prop opon ondo do -me -m e a ap apen enas as dois dias de meio período para essa atividade. Assim como a  prop  pr opoo st staa de faze fa zerr um prog pr ogrr ama am a diár di ário io d e ci cinc ncoo minu mi nuto toss no rádio e uma emissão semanal de meia hora na televisão. Durante emissões,para todos os assuntos que tratavam estas de prevenção as crianças sobreabordados, adoção, droga, delinquência ou qualquer outra questão da atualidade, levavam-me levavam -me a fazer referências à minha experiência de Quatro Varas. Pediram-me muitas vezes para que eu escrevesse artigos em revistas especializadas ou no jornal O Povo , que solicita, aliás, regularmente, os “dossiês”  pa  parr a o se seuu suplemento semanal Universidade Aberta.   Recentemente, publicamos pub licamos neste suplemento uma série de seis números especiais sobre formação de líderesuma comunitários. Como o efeito de uma bolaa de neve, recebemos avalanche de pedidos para entrevistar equipes europeias vieram realizar filmes sobre Quatro Varas. Os jornais  L'  L'Hu Huma mani nité té Dima Di manc nche he   e  La Croi Cr oixx   publicam reportagens sobre a nossa experiência. France Culture convidou-me convidou -me em Paris para fazer uma série de emissões e decide fazer um livro a partir disso. Esta celebridade me impõe mais trabalho e a tendência para me dispersar. Mas ela apresenta a vantagem de dar peso aos  pedi  pe dido doss da comu co muni nida dade de e assi as sim m ob obte terr ma maii s faci fa cilm lmen ente te d as autoridades autoridad es a que a gente tem se batido há anos: água potável, eletricidade, rede de esgotos e verbas para pagar os instrutores, terminam finalmente por chegar. Sucessivamente, com o tempo, nas reuniões das quintasfeiras, notadamente, eu me dei conta de que muitas pessoas que habitavam na favela, participavam dos rituais afro bras  br asil ilei eiro ross ou er eram am adep ad epto toss de outr ou tras as pr prát átic icas as espi es piri ritu tuai ais. s. Tendo perdido a confiança nas instituições e não podendo apelar para as autoridades e ao espírito de justiça dos vivos, será aos espíritos dos mortos ou aos deuses que eles se

dirigem para explicar suas doenças, seus sofrimentos, encontrar uma ajuda, um conforto, uma esperança para o futuro. Cada cerimônia representa um recurso, um apoio  

existencial, um recurso eficaz. O fato de ter sido aceito, em um grupo, de ser identificado a uma filiação divina que qu e remete as qualidades humanas, precisa ser reconhecido como filho ou filha de Xangô, de Ogum, de Oxóssi; ajuda indiscutivelmente a viver, a conservar uma identidade, uma certa autoestima. Sem contar as mensagens de amor, os conselhos dados pelos espíritos que se podem consultar sem temor e sem dificuldade em cada sessão. Progressivamente, comecei a me familiarizar com estas diferentes formas de terapia familiar e de expressão cultural da fé. Já Jean Pierre Boyer me havia colocado com a pulga atrás da orelha, insistindo sobre o fato de que estas formas de terapias populares oferecidas pelos rituais de Umbanda eram de fato interessantes e dignos de atenção do mesmo modo de que outros universos simbólicos, pertencentes à cultura  bras  br asil ilei eira ra.. Devo De vo,, entr en tret etan anto to,, conf co nfes essa sarr q ue te tenn ho mai ma i s facilidade em entrar em contato os ou rezadores Canindé, os curandeiros, especialistas emcom ervas, com os do profetas do Sertão, do que com estas formas rituais organizadas. Devido à minha educação cristã, tenho menos facilidade em ter contato com as cerimônias pagãs, com as práticas arcaicas da magia negra, perigosas, baseadas no medo e na superstição. Um pai-de-santo participava ativamente do trabalho comunitário, e intervinha muitas vezes de maneira muito interessante nas reuniões de terapia das quintas-feiras. Como eu estava muito preocupado com uma de minhas pacientes paciente s que frequentava o seu terreiro, queria falar com ele sobre essa  pess  pe ssoa oa.. F oi a par pa r tir dest de stee enco en conn tr troo que qu e eu de desc scoo bri br i as pesso pe ssoas as formidáveis, verdadeiros agentes sociais, anjos- guardiães da comunidade. Eu me dei conta de que, quando havia um falecimento na família, eles se encarregavam do transporte do caixão, acompanhavam acompanh avam os doentes para o hospit hospital al e efetuavam os procedimentos importantes dessas situações. Fui convidado para participar dos rituais chamados giras. Jean Pierre em razão da sua pesquisa, já havia um pouco se debruçado nesta floresta. Mas, foi entrando neste universo e tentando compreendê-lo, compreendê -lo, que pude ap apreciar reciar toda a sua sua riqueza.

 No d ecor ec orrr er da prim pr imei eirr a gira gi ra que qu e as assi sist sti,i, o pai pa i -de-d e-sa sant ntoo m e autorizou a ficar perto dele para seguir o desenrolar das  

consultas. Eu estava situado à direita, em frente ao altar, à esquerda, esqu erda, três Ogãs, com as costas nuas traziam a força de seus colares, atuavam com convicção com seus tambores marcando um tempo sustenido e andante. Sobre o altar, reparei que através havia um arranjo de velas acesas de diferentes cores formando uma cortina de luzes. Copos cheios de mel serviam de oferendas para os espíritos. Vasos esmaltados ou estatuetas de barro pintadas figuravam as entidades invocadas durante as cerimônias e que representavam as influências das três culturas espirituais do Brasil. Entre as figuras misturadas e confusas, distingo: Jesus Cristo e Virgem Maria, São Jorge com a sua espada e o seu casquete romano, um guerreiro ameríndio enfeitado de plumas e um  pret  pr etoo ve velh lhoo com co m cach ca chim imbb o e chap ch apéu éu d e p al alhh a. Após um tempo preparatório com cantos, danças, defumações, o pai-de-santo entra em transe e incorpora o espírito de um velho africano, denominado Pai Cibamba. Ele ficou sentado, todo curvado e fumando um velho cachimbo cachim bo aceso. A sua voz, que emprestava ao preto velho (espírito de velho negro) tornara-se rouca, rouc a, falava cochichando e mastigando o final das  pala  pa lavr vras as.. Uma Um a jove jo vem m de 2 0 anos an os se ap apro roxi xim m a. T ra rata tava va -se -s e de uma jovem morena com cabelos crespos jogados para trás, amarrados na forma de rabo de cavalo: “Pai” ela diz, “eu tenho uma coisa para lhe pedir. Minha vizinha vizinh a tornou a minha vida infernal, ela já me tirou dois noivos, noivo s, ela me me detesta, o seu coração está cheio de ódio e inveja em relação a mim. Eu gostava que você fizesse alguma coisa contra ela para punila”.   la”. O Pai Cibamba escuta, com o cachimbo na mão. Depois que ela falou, fez os passes mágicos, circunscrevendo os contornos do corpo da jovem, a umas dezenas de centímetros, dando a impressão, de mergulhar no espaço que a rodeia,  bu  busc scan ando dodeeter expu ex puls lsan ando do umcom mont moas nteesuas de mmãos ás co cois isas as in invi visí síve veis is.. Depois desenhado vários círculos

acima da cabeça dela, olha-a docemente, diretamente nos olhos e diz: “Que diria sobre você a sua vizinha se ela estivesse aqui presente?” “Absolutamente nada, ela não tem  

nada a dizer sobre mim, eu não lhe fiz nunca nada.”   Ele insiste gentilmente, coloca novas questões, que  perm  pe rman anec ecem em se sem m efei ef eito to so sobr bree as conv co nvic icçõ ções es da cons co nsul ulen ente te.. Ela foi vítima de uma mulher malvada, para a qual pede à entidade espiritual que seja lançada uma sorte que a castigue. Diante desta insistência e incapacidade de colocá-la em questão, o Pai coloca a mão sobre a cabeça dela e lhe anuncia: “Eu vou lhe colocar três vezes a mesma questão”. “Porque três vezes, Pai?” Ela se inquieta. Simplesmente para lhe dar tempo, para responder Sinceramente a si mesma: “Você está certa de que a sua vizinha merece a punição puniçã o que você quer que lhe seja dada? E é que você não tem nada para se reprovar? Porque se tal for o caso, a sanção cairá sobre você mesma”.   Reflita bem e volte para me ver e dar a sua resposta. Parta, minha filha, com as bênçãos do Pai Cibamba e dos Orixás. Após 15 dias, a jovem retorna acompanhada de outra jovem mulher que parecia ser a sua irmã: “Pai eu queria lhe   agradecer pela sua ajuda dada na última vez que estive aqui. Veja, esta é a vizinha de que lhe falei. Eu contei para ela o que havia se passado e ela quis muito encontrar o senhor. Agora nós somos amigas. Decidimos parar de ficarmos  proc  pr ocur uran ando do ab abor orre reci cim m entos en tos e nos ajudar mutuamente”. O Pai Cibamba coloca a mão sobre as cabeças das duas jovens em sinal de bênçãos e lembra eternamente e afetuosamente todos os valores exigidos para uma amizade duradoura: confiança,  pa ciên  paci ênci ciaa e si sinc ncer erid idad ade. e. Eu saio destas sessões muito comovido com o cerimonial: os cantos, os ritmos, os odores do incenso e também muito tocado com o amor, o calor que vinha do espírito incorporado incorp orado  pelo  pe loss méd mé d iun iu n s em tr tran anse se.. Entretanto, o que mais me impressionou foi o requinte requint e clínico da “entidade”  “entidade”   que me deu um curso prático de terapia sistêmica. O pai-de-santo pai-d e-santo que é inculto e nunca ouviu falar de todas estas coisas deudeu - me em curso prático sobre causalidade circular. Ele responsabilidade no conflito, cuja assinalou resoluçãoa pede que cada umcompartilhada reconheça o seu

 pa pel,l, a sua  pape su a part pa rtee nest ne stee con co n fl flit ito. o. Nã Nãoo pode po denn do co conv nven ence cerr a consulente, ele utiliza a dúvida e a confusão para favorecer a reflexão e o processo de mudança na jovem moça. Que  

revelação! Durante seis anos, estudei e me dediquei a abordagem sistêmica, e assisti, agora, à mais bela demonstração de terapia breve, simples, eficaz, exemplar. Jean Pierre tem razão: as modalidades de ajuda trazidas pelos médiuns, por estes terapeutas populares, são muito interessantes. A experiência me confirmará isso, numerosas vezes. Aprendi lendo lend o os artigos dos colegas sobre a Umbanda que mais deos50terreiros milhões de brasileiros frequentam regularidade e mais de 6 mil estão na cidadecom de Fortaleza. Com a Universidade Federal do Ceará, nós decidimos engajar uma pesquisa-ação prevenção sobre Aids, com a ajuda de quatro pais e mães-de-santo das favelas. Um filme e revistas com desenhos desenho s foram os frutos desta colaboração colaboraç ão que recebera o acordo e o apoio do Ministério da Saúde e uma difusão na mídia de grande amplidão. Gostei de colher estes frutos; sentir concreta e fisicamente as ideias tomarem forma. As boas ideias se tornam realmente geniais quando elas adquirem um lugar na vida cotidiana e dão oportunidade para uma criação coletiva: o mutirão. Curiosamente, foi cometido um roubo em meu apartamento, que levou a prosseguir em minha abertura aos domínios espirituais não convencionais e às terapias culturais.  Na volt vo ltaa de um fi fina nall -de-d e-se sema mana na d e refl re flex exão ão q ue r euni eu niuu os responsáveis dos diferentes grupos da comunidade, verifiquei que o meu apartamento havia sido visitado, os móveis foram mudados de lugar e os papéis estavam em desordem. Examinando um pouco mais, constatei que o pouco dinheiro que havia deixado em minha casa e um talão de cheques haviam desaparecido. Levei a queixa à polícia, que veio ao local e interrogou-me longamente, procurou as impressões e, sem sucesso, apelou para eventuais testemunhas no imóvel. O meu irmão, tendo sido avisado do ocorrido, entrou em uma ruela de Quatro Varas. Dona Maria, uma avó mestiça, enfeitada com um diretamente nos olhoslhee lhe perguntou porxale quepreto ele olhou-o estava contrariado. Airton

explicou o que me acontecera levando Dona Maria a propor seus préstimos: “Diga a seu irmão para que venha ver, e eu tentarei tenta rei lhe dizer quem foi que deu o golpe”. Efetivamente,  

algumas horas mais tarde, pegando-me as mãos e olhando, com um ar vago, acima de minha cabeça, descreveu três  pess  pe ssoa oass que qu e d is isse se te terr em vind vi ndoo d a f avel av elaa e q ue eu conh co nhec ecia ia  bem:  be m: u ma m oça oç a e dois do is r apaz ap azes es,, u m dele de less é magr ma groo co com m a p el elee muito negra e com uma cicatriz do tamanho de uma mão na  pern  pe rnaa es esqu quer erda da..  No dia di a se segu guin inte te,, os ami a migo goss vi vier eram am em casa ca sa aco a com m panh pa nhad ados os ppoo r uma mulher chamada Fátima, uma senhora pequena, gorda,  jovi  jo vial al,, loir lo iraa com co m a pele pe le bran br anca ca,, que qu e no noss foi f oi apre ap rese senn ta tada da como co mo médium. Sabendo o que se passara, perguntou -me sobre quais foram os objetos, móveis que tinham sido desarranjados. Aproximou-se de uma estátua da Virgem Maria, que os ladrões haviam deslocado durante dura nte a sua desordem. desordem. Ela a roça, com a ponta dos dedos, de dos, e a leva, em seguida, a seu nariz, para os sentir longamente. Após ter terminado esta exploração, faz uma descrição idêntica àquela que Dona Maria havia feito na véspera. E, quando eu lhe perguntei como estas pessoas haviam entrado em casa sem quebrar a fechadura, nem a porta, esta mulher, que nunca me havia encontrado encon trado e nunca ouvira falar de Quatro Varas, disse que fechando os olhos via, no decurso de uma grande reunião, as minhas chaves colocadas ao meu lado serem roubadas, no espaço de alguns minutos, para terem as suas impressões tiradas no sabão. As precisões com que foram dadas sobre as pessoas e suspeitas logo confirmadas. Airton Pediu-lhe reparou nopara jovem que trazia foram uma cicatriz na perna esquerda. que no dia seguinte retornasse à minha casa para testemunhar a confrontação. Após essa entrevista, o rapaz sumiu e nunca mais foi visto na comunidade. Uma vez mais, fiquei muito impressionado com as ocorrências: duas mulheres, de condições sociais muito diferentes, uma vidente e outra espírita, obtiveram muito mais observações sobre o caso do que os meios sofisticados de que a polícia dispõe. Lembro muitas vezes deste caso com Fátima, que assumiu, até

1997, o posto de vice-presidente do movimento integrado de saúde mental comunitária. Pouco Pou co tempo depois, fez o seguinte seguinte comentário sobre sobr e esta ocorrência: “É preciso uum m choque, uma  

agressão que te atinja pessoalmente na tua intimidade para que nós nos encontremos e também para que tu te abras para outras representações do mundo e para a dimensão dos espíritos”.   espíritos”. Estes encontros obrigaram-me a considerar a realidade cultural dessas abordagens, mesmo que elas não sejam as minhas. Mas como integrá-los em meu sistema de representação como reconhecê-los, dar-lhes um lugar no movimento integrado de saúde mental comunitário? Estas questões me ajudaram a reconsiderar os modelos que utilizo, a relativizar a sua pertinência a um contexto, a um momento dado, a uma cultura dada e assim colocar em questão o seu estatuto de verdade absoluta ou de saber definitivo desqualificando os outros modelos. Eu me tornei, assim, mais tolerante e mais aberto a outro modo de ver a vida e as relações com o mundo. A metáfora dos três cegos que tentavam definir um elefante a  part  pa rtir ir da ex expe peri riên ênci ciaa que qu e ti tinh nham am,, o lu luga garr on ondd e se encontravam, consiste, de fato, a minha posição atual: aquele que pensa deter a verdade afirmando que o elefante é como uma grossa serpente. Acreditam nisso porque ele se encontra do lado da tromba. Mas é também pertinente que os outros que o definiram como um tronco polido sem folhas ou como um grande balão murcho que flutua a 1,50 m de altura, segundo eles se encontram atrás ou ao lado do animal. Considero agora que existem diferentes modos de perceber o mundo e de compreendê-lo. Em uma dada situação, em que o médium vira, sentira, a  pres  pr esen ença ça d e u ma enti en tida dadd e o u de um esp es p írit ír itoo p aras ar asit ita, a, nós nó s enquanto psiquiatras reparamos uma lembrança traumática, um luto difícil para viver, enfrentar. Do mesmo modo mo do que um  pint  pi ntor or,, um músi mú sico co,, p oet oe t a ou d ança an çarr ino in o nos no s da darr á um umaa representação representaç ão bem diferente, de inteligência sensível, sensív el, que tem da mesma realid r ealidade. ade. Maurício é um jovem de 20 anos. Seus cabelos crespos apareciam sobre sobr e o seu casquete de baseball ' o rosto queimado

escondido pelos óculos escuros Ray-ban, o corpo delgado. Pegou o microfone, em uma quinta-feira à tarde, e falou de seu problema de epilepsia. Foi acompanhado por um  

neurologista e foi visto recentemente por um curador que lhe disse que tinha um encosto, um espírito que o dominava que lhe “tomava a cabeça” de alguma algum a forma: “É o espírito do meu tio José Armando que me domina”, precisa assim Maurício. Sua irmã, sentada perto dele, protesta: “Você sabe muito bem que isso não tem nada a ver, pois as suas crises começaram  bem  be m ant a ntes es d a mo m o rt rtee de d e nos n osso so ti tio” o”.. Eu E u lhe l he pedi pe di,, en e n tão, para que falasse desse tio. Ele conta: “Meu tio veio do Rio para morar em nossa casa quando eu tinha oito anos. Um dia, encontrei-me sozinho em casa com ele. Ele fechou a porta e a janela e me pegou para fazer... para fazer... coisas maldosas de sexo. Após isto, ele me proibiu que eu contasse e ameaçou de me bater, se eu falasse”.   falasse”. Ele recomeçou até o dia em que, eu tendo crescido, tive coragem. Eu lhe disse que contaria tudo para minha mãe. Então ele suplicou para que eu calasse e me deu dinheiro. Ao falar de seu tio, Maurício começou a tremer, cada vez mais forte, estirou-se em sua cadeira e teve uma crise, semelhante a uma convulsão epiléptica. Após Apó s um momento de silêncio em que a assembleia parecia hipnotizada, como que atraída por este espetáculo impressionante, uma velha interveio: “Pode ser que seja epilepsia, mas há uma outra coisa, há um espírito”. Como ela me falou que sabia como tratar, eu lhe convidei para agir à sua maneira. Ela se dirigiu ao espírito que  parr ec  pa ecia ia ve ver, r, ao llad adoo do Maur Ma uríc ício io,, e pped ediu iu para pa ra que q ue el elee par pa r ti tiss sse: e: “Tu tiveste a tua vida, ele tem a sua, mesmo que queiras reparar o mal que tu fizestes, é preciso, agora, deixar este rapaz viver em paz”.  paz”.   Maurício parou as suas convulsões e pediu para falar comigo em particular. Aceitei, e afastamos um pouco do local da reunião. “Doutor Adalberto, dêdê -me um pouco de dinheiro!” Diante deste pedido, repeti, temendo ter compreendido mal. “De dinheiro?” Vendo-me Vendo -me pronunciar estas palavras, Maurício parecia perplexo, estupefato. “De dinheiro, eu lhe  pedi  pe di di dinh nhei eiro ro?? E u n ão co comp mprr ee eend ndoo , eu nã nãoo comp co mpre reen endo do”. ”. E ra

como se ele despertasse. Retornamos à sessão de terapia comunitária e reconstruímos juntos a história de Maurício, que a reviveu. Atualizou- a diante de nós e, comigo, a cena que havia passado com o seu tio. Estas crises encontraram um  

sentido e expressão “encosto”, dado pelos curadores e toda a sua pertinência. Maurício foi possuído pelo espírito de seu tio? Pela lembrança traumática de ter sido submetido ao desejo de outro? Possuído, com os pensamentos ocupados, obscurecidos pelas mensagens, não seriam as traduções de sentimentos, deixados em sofrimento? Em todo o caso, sua doença, suas convulsões manifestavam a ligação “energética” ou “simbólica”, o espírito deste tio, tanto que um meio de libertação não pôde ser encontrado. A velha médium, falando com o espírito, havia dado a chave que abria ao diálogo salvador, havia reconhecido, apoiado sem criticar o possuído. Em minha prática liberal, aconteceu, agora, de associar o talento e a competência de um médium como a Fátima, em certas circunstâncias circunstânci as clínicas em que há a questão do espírito, do encosto. Abri igualmente minha prática comunitária a esta dimensão espiritual que faz apelo à inteligência sensível: o toque, o sentido, a imagem, a emoção.  No te terr rren enoo de Qu Quat atrr o Var Va r as, as , con co n str st r uí uímo moss um umaa peq pe q uen ue n a casa ca sa  parr a o r it  pa ituu al d e Umba Um band ndaa e a casa ca sa de cur cu r a, que qu e par pa r ec ecem em grandes choupanas indígenas, divididas em muitas peças, onde terapeutas, médium- espíritas e curadores de todas as tendências, utilizando a argila, as plantas ou cristais oferecendo gratuitamente as modalidades de ajuda, as mensagens, em particular, contra o estresse.  Nó s, aliá  Nós, al iás, s, ab abri rimo mos, s, no q ua uadr droo do d epar ep arta tame ment ntoo d e saúd sa údee comunitária, uma formação de abordagem corporal terapêutica compreendendo 350 horas de curso e fornecendo um diploma de capacidade profissional aos curandeiros tradicionais que seguem este curso. Além do certificado oficial de reconhecimento, o objetivo claramente definido é que estes terapeutas populares tenham acesso, não somente ao saber médico e psicológico, mas também àquele de outros “colegas”. A formação não tem como finalidade convertê -los à outras práticas, mas de torná-los mais responsáveis, mais competentes e mais conscientes de suas possibilidades e

limites. O fato de estar progressivamente aberto ou melhor, reaberto ao mundo dos espíritos, e de associar ao cotidiano da favela,  

mas também em minhas práticas profissionais, à lógica cartesiana e científica às abordagens culturais mais sensíveis representa para mim uma etapa de evolução importante. Eu me sinto mais de acordo comigo mesmo; encontrei um equilíbrio entre a minha identidade cultural e profissional, entre tradição e modernidade. Além disso, encontrei as minhas origens, reconciliei com meus avós, o médium e o curador.

 

Hoje e Amanhã. Abril de 1995   Se hoje eu posso dizer diz er que tenho prazer em ir a Quatro Varas, isto era raro até então. Era, portanto, uma atitude masoquista de minha parte ir semanalmente, depois, quase todos os dias,  proc  pr ocur urar ar m inha in ha do dose se de sofr so frim imen ento to na f avel av ela? a? Verdadeiramente, Verdadeirame nte, não creio. O que me ajudava em minha ação einteresse me permitia ela, apesar era o pelo ligar-me trabalhoa que a cadadasdiadificuldades, acrescentava-me alguma coisa. Tinha a certeza de evoluir no futuro, à medida que o projeto avançava e que a comunidade se transformava. Isto não era feito sem dor. Foi uma sucessão de conflitos, de dúvidas, de reposições, repo sições, que colocava em questão. Para se ter a noção do processo de mudanças pelo qual me libertei, penso muitas vezes veze s no caroço da amêndoa, que, para germinar na terra, precisa amolecer, depois apodrecer a casca dura que protege seu núcleo, para que esta parte central e tenra possa se despertar e assim ir revelando seu potencial criativo. Como o caroço da amêndoa, aprofundando-me cada vez mais no mundo da favela, deixar apodrecer minha carapaça de preconceitos, de ideias idei as feitas, de crenças ou falsas verdades, enfim, de tudo aquilo que constitua as minhas defesas, minhas proteções sólidas e eficazes, para me tornar operacional, criativo e revelar a mim mesmo as qualidades e possibilidades impensáveis até então. Travado pelo grande discurso, tudo isto significava que, rapidamen te, o bom doutor tenha o dever de responder rapidamente, respond er a certas questões a granel: o que é que você faz aqui? você não tem a sua casa, o que é que procura? você quer se servir de nós como cobaias para obter dinheiro às nossas custas? Diante destas questões, questõe s, não era possível desviar ou tentar sair com teorias, grandes frases ou bons sentimentos, tais como amor, solidariedade. Estas questões tocavam o meu íntimo e apelavam para questões pessoais: o que é que você procura  parr a você  pa vo cê me mesm smo, o, n ada ad a que qu e seja se ja so some menn te p ara ar a vo você cê?? Precisamente, pora caridade  pi  pied edad ade, e, to todd os porque, esta es tarr ão se de você ac acoo rdo rdvem o com co m su a o f erta, ert cristã a, ta tant ntoeo

quanto você possa nos dar, para compensar a sua culpabilidade, porque a tua culpa é a nossa salvação, é uma verdadeira renda para a nossa sobrevivência.  

Minha resposta demorou um pouco. Inicialmente, embarquei em Quatro Varas sem tomar consciência daquilo que me levara para lá. Depois, eu me dei conta de que não era nem mais nem menos do que o prolongamento de minha pesquisa que havia se iniciado no Canindé: a busca de minhas raízes, do que me constituía, e o desafio renovado renovado de ser, ao mesm o tempo, um universitário, um cientista e um homem do sertão. Assim, em uma quinta à tarde, a frase deu o estalo: “Eu não estou aqui para resolver os seus problemas, mas para resolver os meus. Vindo aqui eu dou o meu tempo e a minha competência, competên cia, desejo que nossas trocas e nossos encontros lhes ajudem e lhes ensinem tanto quanto eles me ensinam sobre mim mesmo”. Eu me senti, de repente, aliviado. As coisas estavam claramente colocadas, eu havia me engajado, levado  pela  pe la av aven entu turr a e n ão unic un icam amen ente te pe pela la v onta on tadd e de d ar. Pen Pe n so que esta declaração tenha dado maior segurança e aberto para relações de confiança. Eu havia associado à ação conduzida no interior da comunidade para o interesse pessoal. Não poderia encontrar melhor garantia de engajamento, de ligação. Eu deveria revisar um bom número de pontos de vista, e de ideias recebidas. Não era fácil para mim relativizar os modelos nos quais podia me apoiar, persuadido persu adido de que fossem compartilhados por todos. Imaginem que o modo de pensar, de viver, de se arranjar na existência toda forma, quando nas  pr  prec ecar arie ieda daddé,e edeince in cer r te teza za d o aman amespecífico, anhã hã.. É co como mo se osseh abit abvive itan ante tes da favela, para sobreviver e resistir à violência de sua situação, tivessem desenvolvido uma cultura original, bem diferente de sua cultura de origem. A percepção do tempo não é a mesma, apenas os atos são importantes, as palavras não contam ou são vividas como perigosas, o dinheiro não deve ser guardado, mas gasto no mesmo dia, devido ao medo de ser roubado, a lei é a do mais forte e a do medo, do temor, da violência que os condicionam a cada instante. É preciso aceitar a diferença, as diferenças com toda a riqueza

de revelação que isto representa para si mesmo; aceitar também navegar pela vida, guardando no espírito o objetivo fixado. Nosso projeto que está longe de ser evidente, quando  

a vida e as relações estão essencialmente marcadas pelo imprevisto, imprevisível. Tanto eu não percebi que esta dimensão de surpresa, de incerteza, de insegurança, oferece também um espaço de liberdade, de im im provisação, de criação, que este clima me era de fato insuportável.  Nãoo p osso  Nã os so aqu aq u i ab abor orda darr toda to dass as d ific if icuu ldad ld ades es p es esso soai aiss e o s limites que eu tive de enfrentar, provar e, muitas vezes, superar. Eles se relacionam também a minha profissão de psiquiatra, cujo papel concreto e as responsabilidades eu devia assumir apenas durante um certo tempo na favela. Esta situação oferecia numerosas facetas ou telas para projetar fantasmas e  prob  pr oble lemá máti tica cass indi in divi vidu duai ais, s, em um umaa re rela laçã çãoo d e tran tr ansf sfer erên ênci cia, a, onde a imagem do patrão, do colono, estava, sem cessar,  pres  pr esen ente te n o es espí píri rito. to. Dev De v o, p er erma mann en ente tem m ente en te,, le levv ar em con co n ta estas dimensões. Cada tomada de consciência implicou uma mudança de atitude de minha parte; a compreensão em si não  po derr ia ser  pode se r suf su f ic icie ient nte. e. Por Po r exe ex e mp mplo lo,, eu r ec eceb ebia ia muit mu itaa agressividade; numerosos foram aqueles que se mostraram invejosos, aqueles que me tornaram infeliz e com mal-estar  —  até   até o momento em que um sonho me deu a explicação e a solução. Neste sonho eu lia em um livro alemão, autor desconhecido, desconhe cido, a seguinte frase: “Se eles se mostram agressivoss e ciumentos, agressivo ciumentos, é porque eles desejariam participar ou  porq  po rquu e eles el es te teme mem m se serr excl ex cluí uído dos” s”..   O fato é que sãoardor as pessoas mais no agressivas em seguida, mostraram mais e interesse trabalhoque comunitário. Repetidas vezes, minhas impaciências para ver as coisas serem concluídas, meus desejos de ir mais depressa, mais longe, tomavam a forma daquilo que eu chamava a tentação do colonizador ou do missionário, que é aquele de tomar o  pode  po derr ou o u de d e ffor orça çarr as a s coi c oisa sass par p araa qque ue el elas as se rrea eali lize zem; m; de deci cidd ir, organizar, impor. Tomei assim a consciência de que eu não podia ser o responsável porOtudo, apenas pela minha parte com na realização de um projeto. resultado dependia da relação os outros

e da forma como cada um cumpria a sua tarefa. Isto pode  parr ec  pa ecer er evid ev iden entt e, is isto to obri ob riga ga ao r esp es p ei eito to por po r si me mesm smoo e seu se u s limites, tanto quanto ao respeito do outro e de suas diferenças.  

O desejo de mudar os outros, de transformá-los, sem mudar a si mesmo, procede em nome da eficácia e do interesse geral, da mesma tentação que a colonização ou a ação missionária.  Nãoo é f ácil  Nã ác il acei ac eita tarr q ue n ão se pode po de muda mu darr as pe pess ssoa oas, s, ma mass somente lhes dar oportunidade, espaço, o meio de mudar.  Nass r elaç  Na el açõõ es com co m os jove jo venn s, suas su as n eces ec essi sidd ad ades es de segu se gurr ança an ça eram expressas provocações, levando-me repetidas vezes a pelas tomar múltiplas atitudes autoritárias. Dizer não com tranquilidade não se improvisa em um instante, é também um  proc  pr oces esso so de mu mudd ança an ça em que qu e é prec pr ecis isoo pa paga garr pe pess ssoa oalm lmen ente te.. Muitas vezes, quando aparecia um desacordo, este era dramatizado, conflitualizado. Em outras palavras, preferia romper, cortar, deter o diálogo vivido como perigoso ameaçando partir, excluir-se, antes do que arriscar a ser excluído. Tomar a palavra de improviso, assumir uma oposição, afrontar um conflito, provar que uma diferença não implica necessariamente tornar-se um inimigo ou envergonhar-se. Assim foi que, juntos, evoluímos na comunidade. Fatigante, por vezes, mesmo esgotante. As degradações, os roubos, a transgressão dos limites são as moedass correntes em uma favela, com a justificação de que se moeda trata de uma necessidade vital imperativa: “criança doente’, “não ter o que dar para comer em casa”. casa ”. Todas estas questões eram levantadas sob a forma de provocação que punha à prova a resistência de uma comunidade e de seus mais ativos defensores, até o momento em que, ante o desafio, dizia-se: “Por que é que você se mete, não é o dono? Não sou, mas sou corresponsável p corresponsável  pel eloo b em cole co leti tivv o da co comu munn idad id ade. e.”” E nfim, nf im, as dificuldades ou obstáculos encontrados no caminho eram concernentes a pessoas exteriores ao projeto que não podiam compreender ou aceitar o que nosso engajamento implicava. Este foi o caso de meu pai, que não pôde aceitar o fato de que eu procurava ter um carro, e, ao comprar outro carro, preferi antes dar o meu antigo automóvel, dentro dos quadros de um  pr  proj ojet eto, o, que para pa raeu um resp re spon onsá sáve vel da com co m unid un idad e, aJesus dar da r adizia: el ele. e. Mesmo tivesse citado ol Evangelho, quade, quando ando

“Minha família são as pessoas que caminham ao meu l ado e seguem o mesmo caminho”, ele não teria compreendido e  pens  pe nsar aria ia que qu e eu es esta tavv a zomb zo mban andd o dele de le..  

A projeção que teve Quatro Varas, através das mídias - devido ao interesse crescente suscitado pela nossa experiência conferiu-me logo como porta-voz, embaixador da comunidade, uma notoriedade indubitável. Tive de pagar o rancor de uma glória não procurada a título pessoal. Este sucesso me tem valido crítica, ataques pessoais, acusações de todos os gêneros. Fui objeto de inveja, ciúme, de rivalidades estéreis, remexendo dolorosamente as minhas relações afetivas: rupturas, conflitos, afastamentos. Senti-me ferido, magoado, infeliz, em repetidas ocasiões. Percebi nestas circunstâncias a importância do apoio da família comunitária. Minhas viagens me ajudaram a colocar um afastamento. Tive também necessidade nece ssidade de me isolar em certos finais de semana, nas aldeias dos pescadores ou afundar-me no Sertão, para me recuperar, encontrar-me, ganhar forças. Eu não praticava a psiquiatria no ambiente filtrado de um gabinete, mundo de um divã ou de uma poltrona confortável. Meu trabalho se limitava apenas às sessões das quintas quintas-feiras, -feiras, respeitando uma unidade de tempo e de lugar. Meu cliente, a comunidade da qual eu faço parte, é também o contexto de minhas práticas. O tempo de escuta não se detém ao termo de uma consulta ou de uma reunião, mas no momento em que eu deixo Quatro Varas. Isto complica consideravelmente as coisas e requer a cada instante, de minha parte, uma vigilância. Porque o meu serviço refere-se tanto às pessoas em  part  pa rtic icuu la larr com co m o as muda mu danç nças as da co com m unid un idad ade. e. De Devo vo  perm  pe rman anen entt emen em ente te m ante an terr a cabe ca beça ça n esta es tass duas du as r ef efer erên ênci cias as.. Minhas intervenções, prescrições, meus engajamentos devem levar em conta tanto a dinâmica do sujeito, como também um caso ocorrido, o que dá a ideia do trabalho de funâmbulo a que tenho por vezes de me prestar. Domingos tem 45 anos, chegou na favela com a sua mulher e seus cinco filhos. Trabalhou ao lado de um padre pentecostal, responsável por um grupo de renovação carismática. Pareceu ter sido vítima dos excessos espirituais, místicos desta comunidade. Apresentava no decorrer de nossos encontros,

manifestações miraculosas, evocando facilmente as revelações divinas e as aparições da Virgem. Entretanto, no dia em que ele se declarou profeta, filho de Deus eterno, e falou de suas visões, foi impiedosamente banido e rejeitado  

como louco. Sua mulher chamou-me para ajudá-la, pouco tempo depois de sua chegada. Domingos não dormia, não comia, não pensava em fazer amor ou em bater na mulher e nos filhos. Não suportando mais o inferno pelo qual ele fazia a sua família passar, ela pediu-me para convencê-lo a fazer um tratamento. Domingos é um dos frequentadores mais assíduos das reuniões das quintas-feiras. No final da sessão, eu tive uma longa discussão com ele que terminou por lhe  pres  pr escr crev ever er um ne neur urol olép épti tico co,, d e ação aç ão prol pr olon onga gada da,, a q ua uall aceitou tomar todos os meses. Graças a esta medicação, Domingos retomou a sua vida, ocupou-- se de novo com seus filhos, reencontrou a sua calma, ocupou a paz em casa e uma pequena atividade lucrativa. Alguns meses mais tarde, ele me interpelou durante uma reunião ele quinta-feira e me anunciou que Deus lhe havia visitado e dito que deveria parar de tomar estas injeções. Conhec endo os benefícios que tiveram, ele e sua família, com Conhecendo este tratamento, perguntei-lhe quando precisamente ele estivera com o Senhor. Ele me respondeu que isto se passara no domingo; eu lhe anunciei então que Deus havia estado comigo no dia seguinte seguint e e que havia se enganado de ficha, dizia que Domingos deveria continuar a tomar as injeções. Eis, portanto, os exercícios de “rédeas curtas”. A dinâmica relacional de mudança e introduzida pela consulta individual  pros  pr osse segu guee na reun re unii ão p ar araa se expa ex pand ndir ir o caso ca so,, at atin ingi ginn do o  pe  per r cu curr soarenosa. d e um en enco cont ntro ro impr im proo visa vi sado do sobr so bree a dun du n a em uma um a estrada Um sentimento de revolta vigiada se instala em mim senti algumas vezes cólera, outras vezes, medo, lassidão ou abatimento. O sentimento de decepção lembra-me muitas vezes a exigência exigênci a de meu desejo. Nunca tive a tentação de me deixar ser tomado. Meu lugar é lá, e foi lá (na favela) que eu fiz o meu processo de realização. A dinâmica de transformação, de liberação de uma comunidade abatida, remete em questão a cada um de seus membros; eu mesmo, como os outros, a partir de numerosos temas abordados

coletivamente. Para não citar senão alguns: a responsabilidade, o respeito, a autoridade, a lei, os limites, o dinheiro, a propriedade individual e coletiva, a família, a fé.  

Cada vez que eu me sinto perdido, desesperado, preso da dúvida, não sabendo a qual santo me dirigir, lembro-me da  prim  pr imei eirr a h is istó tóri riaa do Ser Se r tã tãoo , que qu e eu ou ouvi vi de meu me u avô av ô mate ma tern rno. o. É a história de uma pequena menina de sete anos que se  perd  pe rdeu eu na Fl Flor ores esta ta Amaz Am azôn ônic ica. a. Seus Se us p ai aiss saír sa íram am em vão vã o para pa ra  proc  pr ocur uráá -la. -l a. Ap Apóó s ttrr ês dias di as,, dese de sesp sper erad ados os,, e le less vo volt ltar aram am p ara ar a o Canindé e suplicaram para São Francisco encontrar sua filha.  No r etor et orno no,, sua su a f il ilhh a esp es p erav er avaa -os -o s em comp co mpan anhi hiaa d o m ong on g e, que a recolheu, cuidou e a conduziu para casa. Retornando a Canindé para agradecer ao santo patrono na companhia de seus pais, a menina reconhece, nas imagens pintadas da Basílica de São Francisco, o monge que a salvou. Como esta família, quando eu estou em grande dificuldade, tenho necessidade de apelar para a minha fé e a minha cultura para me encontrar, reencontrando os o s meus “espíritos”.  “espíritos”.   O trabalho de mudanças ao qual eu me dediquei semanas a fio, os golpes de bastonetes da atualidade favela,meus tem um sob pouco de processo analítico. É precisodaouvir sentimentos, minhas reações para ultrapassar minhas contradições, regular minhas contra- atitudes, minha contratransferência, estabelecendo as ligações com a minha história. A mudança se fazia a este preço, porque exigia restabelecer um espaço relacional de criação, liberada de todas tensões. Agora, repito, muitas vezes, eu tenho prazer em ir a Quatro Varas e sinto que a amendoeira, deveria dizer, as amendoeiras amendo eiras representam o projeto e figuram a minha evolução. Elas (como eu) estão saindo da terra e começando a dar os seus frutos. Estes frutos são numerosos e seu gosto é agradável. Quando o meu olhar se detém sobre o caso das verduras que  pree  pr eenc nche hem m as r u el elas as entr en tree as dun du n as, as , m inha in ha re resp spir iraç ação ão se f az mais livre, sinto-me logo mais leve, mais alegre. Este local tornou-se o centro social da favela, um lugar de encontro, de discussões, de curas, um lugar de recursos. Você deve considerar consider ar o que este espetáculo representa para as pessoas do Sertão; a água corre permanentemente, ela nutre as plantas e

refresca os homens, sem contar que graças à irrigação automática alimentada pelo lençol freático. A visão das construções lembra-me o caminho percorrido, as  

etapas enfrentadas desde a aquisição do primeiro terreno até a conclusão recente da pequena cabana que acolhe os visitantes ou as pessoas que têm necessidade de repouso ou isolamento. A Associação dos Direitos Humanos deu origem a uma comunidade dos Companheiros de Emmaus. As crianças que reúnem, brincam, trabalhando, aprendem a viver, a amar, a falar e a respeitar sua própria pessoa. De fato, a palavra mudou de status,  no decorrer das sessões de terapia comunitária e do funcionamento de reuniões. Ela  perm  pe rmit itee a comp co mprr ee eens nsão ão e pare pa rece ce mesm me smoo p or isso is so ma mais is efic ef icaz az que as surras ou a violência. Há muito tempo considerada como instrumento de poder dos ricos, dos instruídos, dos patrões, como perigosa, categórica e autoritária, a palavra está agora domesticada do mesticada e serve para se liberar, se conhecer, para mudar e sonhar. Pode-se construir com as palavras, as frases, e se fazer ações, projetos, realizações. As trocas, as discussões e diálogos de todos os tipos têm tecido a trama da comunidade, colocando suas bases e seus limites, escrevendo sua história e organizando sua memória. Atualmente, as palavras são engajadas, defensoras e também respeitadas. A história escreve-se, desenha-se, conta-se. Uma casa da memória edifica-se agora no terreno, onde se encontram, ao lado dos antigos, livros e reportagens sobre a favela. O conjunto das sessões terapêuticas das quintas-feiras registradas em vídeo que cada um pode descobrir ou revisionar. O trabalho do Movimento Integrado de Saúde Mental Comunitário (MISMEC) é agora conhecido pelas autoridades e governos que a nomeiam, devido à sua experiência considerada como piloto para o Ceará. Eles nos pedem para sensibilizar os futuros policiais aos  prob  pr oble lema mass d e excl ex clus usão ão p ar araa orga or gann iz izar ar o s ci cicl clos os de form fo rmaç ação ão de líderes comunitários. Somos solicitados a estabelecer um

 pr ogra  prog ram m a pa parr a se inst in stal alar ar o ut utra rass fa farm rmác ácia iass -viv -v ivas as,, m onta on tarr outras casas de cura em outros lugares de exclusão. Melhor ainda, a coordenação da Pastoral da Criança da CNBB, que supervisionaa a ação de 80 mil núcleos comunitários no Brasil, supervision  

 pe de que  pede qu e f or orme mem m os os r esp es p onsá on sáve veii s de dest stas as co comu munn idad id ades es,, segundo a nossa forma de terapia comunitária, como também as massagens antiestresse praticadas na favela.  No pl plan anoo ffin inan ance ceir iro, o, a comu co muni nida dadd e é agor ag oraa auto au toss ssuf ufic icie ient nte. e. A farmácia-viva, como o grupo de jovens, se autofinancia, sem necessidade de apoio financeiro externo. Além disso, eles asseguram o salário mínimo de 40 pessoas e 150 famílias se  bene  be neff icia ic iam m das bases econômicas destas “indústrias” artesanais, através das atividades anexas como a confecção  pelo  pe lo grup gr upoo d as pess pe ssoo as idos id osas as de cest ce stas as pa parr a as pl plan antt as medicinais, ou a fabricação de objetos artesanais em palha de carnaúba. Ilustramos, para terminar a questão sobre a evolução da comunidadee com um acontecimento que veio a ocorrer. Como comunidad em todas as manhãs de quinta-feira, os responsáveis do MISMEC encontram-se sob a palhoça, agora protegida de ventos e barulhos externos por uma espécie de paliçada com frestas, feita de cipós, traçadas, que ligam a borda do teto de colmo até o chão de terra batida.  No prog pr ogrr ama, am a, f oi prev pr evis isto to di disc scut utir ir as r el elaç açõe õess eeco conô nôm m ic icas as do grupo de arteterapia com o resto da comunidade e também escolher quais seriam os investimentos que os jovens desejariam fazer com os dois mil dólares que iriam receber do Banco do Estado do Ceará, relativo aos quatro mil cartões  post  po stai aiss que qu e es este tess jov jo v en enss vend ve nder eram am p ara ar a as fest fe stas as do f inal in al do ano. Porém, sob o efeito dos acontecimentos recentes, o caso de Dedé foi imediatamente lembrado. Zequinha, responsável  pela  pe la gest ge stão ão do MI MISM SME E C, com co m eçou eç ou:: “J “Jáá f az três tr ês m eses es es q ue Dedé ‘afunda o nosso banco’”, perturbando perigosamente a comunidade. Ontem ele foi à escola e, diante das crianças aterrorizadas, ameaçou a professora com uma faca. Sua mãe Dona Geralda, prossegue: prossegu e: “Ele diz que não se droga, mas isso, se vê logo, quando quan do ele toma as suas porcarias Ele me ameaça,  pa  par r a todo m e ti tira r d inhe in heir o, torn tor naan and d o -se -s e vpara iole io lent nto; o; el elee faz fa z su suje jeir iraa com orar mundo mundo”. ”.iro, Tomei palavra resumir: “Cada vez

que ameaçamos chamar a polícia ou levá-lo para o hospital, ele promete tudo o que a gente quer. Ele para p ara durante 15 dias e depois recomeça como antes. Nós já tivemos quatro reuniões  

com ele e nada foi resolvido”.  resolvido”.   De duas uma, se ele for doente, ele vai se curar em um hospital, se ele não for doente, seus atos devem então ser considerados como atos de delinquência e a polícia deve atuar. Como por acaso, neste momento, um coronel de polícia entra na palhoça. Ele tira o seu casquete coberto de estrelas  parr a sa  pa saud udar ar a assi as sist stên ênci cia. a. O que qu e nos no s im impp ress re ssio iono nouu ao o lhá lh á -lo -l o foi a expressão de bonomia bonom ia que se podia ler em seu rosto. Era difícil ignorar a sua semelhança com o sargento Garcia dos filmes do Zorro. Tinha a mesma aparência: a pança, o andar, o bigode e o sorriso. Sentou-se entre nós e escutou com atenção tudo o que foi dito. Foi convidado para nos dar uma ajuda, a maneira de se quitar uma dívida ou antes de marcar seu reconhecimento. Muito interessado em visitar o nosso trabalho, pediu para que um de nós participasse de uma reunião dos responsáveis respon sáveis pela polícia do Ceará para se refletir sobre formação dosos policiais e também para sensibilizar os novos arecrutas sobre problemas da exclusão. Decretamos de maneira unânime que não se podia humanamente humanam ente deixar Dedé se destruir ou arriscar arriscar de fazer uma grande besteira, que seria uma prova de amor e não de indiferença decidir dar hoje uma saída para a crise: hospital ou prisão. Dois jovens propuseram-se a procurar Dedé para lhe participar a nossa posição. Para a nossa surpresa, ele vem se reunir a nós e se instala perto do coronel. Após nos ter ouvido, ele sede lança um grande discurso sobrea a liberdade, seu desejo sairemdesta situação. Recusa alternativa proposta, até o momento em que o coronel da  polí  po líci cia, a, cu curv rvan andd o -s -see sob so b re el ele, e, colo co loca ca com co m afet af eto, o, so som m ente en te a mão em seus ombros e lhe diz: “Dedé, mesmo que você se considere o último dos últimos, saiba que Deus lhe ama e não lhe abandonará”.  abandonará”.   Se você for para o hospital, hospit al, a sua vida vai mudar. Tenho visto v isto rapazes bem mais atingidos que você pela droga, cuja vida foi transformada através da desintoxicação, você em seguida, retornar à comunidade, comunidad e, ser o orgulho das poderá, pessoas que

o amam e cuidar da sua mãe. Não esqueça nunca que Deus  pens  pe nsaa em você vo cê.. Deu De u s o ama am a e n ão o aban ab andd on onar ará. á. Desde quando Dedé sentiu o contato da mão do coronel,  

 ba ixou  baix ou a cab ca b eç eçaa e dep de p oi oiss escu es cuta tand ndoo as suas su as p ala alavr vras as,, se pô pôss a chorar.  No fina fi nal,l, ambo am boss le leva vant ntar aram am-s -se, e, o cor co r o nel ne l calo ca loro rosa sam m en ente te segurando-o pelos ombros, depois encaminharam-se para o centro do círculo formado pelas pessoas presentes que se levantaram. Nós todos, juntos, rezamos o Padre-Nosso e cantamos um canto popular de solidariedade. Em seguida, cada um de nós veio felicitar Dedé, abraçando-o e prometendo ir visitá-lo no hospital. Dedé partiu, acompanhado pelo oficial de polícia e pela sua mãe, para o hospital. A coincidência fez com que nos reencontrássemos, como na  prim  pr imei eirr a ses s essã sãoo de d e tter erap apia ia comu co muni nitá tári ria, a, Ded De d é e sua s ua mãe, mã e, D o na Geralda. É preciso dizer que Dedé participou regularmente regul armente da terapia, durante estes dois anos. No primeiro, pelo seu casamento, seu divórcio, no segundo ano, ao se drogar de novo. Habitando perto do terreno comunitário, ele está muito ligado ao projeto, suas dificuldades parecem acompanhar e colocar em evidência as mudanças da comunidade. De fato, que evolução. Recuando um pouco, não se pode imaginar isso. Quando a cena se desenrolou diante de meus olhos, acreditei que sonhava. Primeiro, a coletividade comunitária se sentia suficientemente sólida para tomar uma decisão em nome do interesse coletivo e dos limites transgredidos. A polícia de uniforme foi não somente acolhida aco lhida como também não rejeitada. Isto não teria, ainda não muito tempo, sido o caso, mas além disso, ela foi convidada. Então? Isto significaria traição, compromisso com o inimigo que havíamos combatido, denunciando, ainda recentemente, as suas exaltações, a violência e os abusos, ou o reconhecimento das leis, dos limites, de seus próprios limites, da importância e do interesse de entrar no mundo, na cultura dos nãoexcluídos. Acreditava estar de ponta-cabeça, ao constatar que o coronel era, de longe, a pessoa pesso a mais afetuosa e compassiva e que além

do mais, tinha a aparência de se sentir na favela como um  peix  pe ixee n’ág n’ águu a. a.    Nãoo fa  Nã farr ei a exeg ex eges esee d esta es ta hist hi stór órii a. Si Simp mple lesm smen ente te quer qu eroo que qu e vocês compreendam compreen dam que eu senti que havia um ar de mudança  

em Quatro Varas e que eu experimentava agora o prazer de estar nessa comunidade. Este refrão pode surpreender: poderse-ia ver a expressão de uma autossatisfação, um sentimento de felicidade, o signo de má realização. O livro se iniciou com a descrição das profundas raízes extraídas da terra do Sertão e longe, em minhas ascendências, as forças que nutrem minha ação e minha evolução. A árvore não é estéril e me pareceu natural, antes de ramificar o buquê, dando tempo de se apreciar os frutos. Os ciclos e as estações marcaram seu crescimento e sua renovação; mas, não nos enganemos, nosso projeto não é de fornecer um emprego, lucros, ou de ajudar aos favelados a refazer sua vida e ter sucesso em Quatro Varas. Estes resultados não são negligenciados, aliás, são as consequências materiais do processo, mas não o objetivo  prop  pr opoo st sto. o. No Noss ssaa ambi am biçã ção, o, co com m ef efei eito to,, é ou outr tra, a, co conc ncer ernn e naquilo que pomposamente denomina uma ecologia do espírito. Isto é, liberar o homem do “pecado social”; de seu isolamento, de sua exclusão, de seus sentimentos de vergonha, de medo, de ódio, de angústia. Para que ele venha de novo, acreditar nele mesmo, encontrar a sua dignidade, sua identidade, sua consciência, liberando sua palavra, suas riquezas e potencialidades curadoras, apoiando-se sobre as ligações de solidariedade comunitária com unitária e sobre os seus recursos culturais. Saindo desta reunião, Fátima, minha amiga médium, que assumia a coordenação da Casa de Cura, veio me importunar, como gosta de fazer com os seus vizinhos. Segundo ela, eu fui sucessivamente nas vidas anteriores a filha de Jean Pierre, que era então uma duquesa inglesa, depois fui seu filho, quando ele era um negociante italiano, isto há dois ou mais séculos atrás. Devo confessar que esta ideia ide ia me divertiu muito assim mostra  bem  be m a si sim m plic pl icid idad adee e a fam f amil ilii arid ar idad adee de d e no n o ssas ss as rrel elaç açõõ es d esde es de que nós nos conhecemos, como também o lado ao mesmo

tempo protetor e atencioso que ela tem a meu respeito. Ela insiste também, porque isto lhe contenta, sobre o fato de que eu tenho o espírito, o caráter e as vibrações espirituais de um velho padre teimoso e obstinado que sempre quer fazer  

construções, igrejas, igreja s, capelas. Estes traços me vieram do Padre Cruz, padre da mesma têmpera que a do Padrinho Ciço, que eu o teria encarnado no final do século XIX. Ela fala como se eu tivesse desempenhado este papel em uma peça de teatro. É verdade que construir, sobre o terreno da comunidade, o sólido, o durável, me tranquiliza, mas são, sobretudo, as ligações que se nutrem na ação realizada em conjunto que me interessam. Nosso objetivo é antes desenvolver uma  psiq  ps iqui uiat atri riaa das da s re rela laçõ ções es e não nã o dos do s esp es p aço aç o s. Há muito tempo, eu pensei p ensei realizar meu ideal, servir a Deus e aos homens me tornando padre. Esta ideia me acompanhou acomp anhou até ao meu retorno a Canindé. Agindo sobre o terreno de meu  proj  pr ojet eto, o, fe fezz -me -m e ren re n un unci ciar ar ao sace sa cerd rdóc ócio io,, a me fech fe char ar em uma um a capela, em uma igreja. Porque as religiões, que estão destinadas a ajudar aos homens a se religarem a Deus, os impelem a se excluir, a se separar, a se combater, em nome da fé. Para mim, a fé em Deus deve servir todos os homens; a reunião para ajudar Dedé foi, a este respeito, um modelo de ecumenismo, e podia-se contar: um evangelista, o coronel, dois protestantes, seis católicos, dois umbandistas, uma kardecista e três cristãos não evidentes, dos quais eu faço  part  pa rte. e. Min Mi n ha posi po siçã çãoo par pa r ec eceu eu-m -mee ser se r a ún únii ca comp co mpat atív ível el com co m aquilo que me apresentou como meu fim, minha missão, minha pulsão. Estabelecer os traços de união entre os homens, mas também entre oo saber popue lar popular e o científico a Europa e o Brasil... entre passado o futuro. Este éentre ao mesmo tempo o meu  proj  pr ojet etoo e a mi minn ha bu busc scaa p esso es soal al d e univ un iver ersi sitá tárr io cabo ca bocl cloo do Sertão, harmonizar e unir estes elementos em mim mesmo e no mundo: pelos fios da teia de aranha. Meu caminho continua, as surpresas esperam-me. Terei de olhar de frente a outras manifestações manifestações de minha cultura, a qual necessitarei me integrar, assimilar, como eu fiz descobrindo as benzedeiras, os umbandistas. umband istas. Cada vez é uma questão a ser tratada,osa busca de uma outr a harmonia, outra um novo equilíbrio entre diferentes elementos que mede constituem. Minha

 bu scaa de i den  busc de n ti tidd ad adee não nã o pod po d e se sa satt isf is f az azer er com co m um umaa suti su till dosagem, e se anunciar anunci ar como a receita do bolo de limão Picon - composta por César Cé sar na peça teatral de Pagnol —  Pagnol  —  uma  uma metade  

indígena, uma metade europeia, um pouco universitário, um quarto sertanejo; o todo salpicado de fé... Não, eu tinha de assumir plenamente cada uma destas identidades, para ser as  part  pa rtes es in inte teir iras as cabo ca bocl clas as,, univ un iver ersi sitá tári rias as e se serr ta tane neja jas. s. T ud udoo isto is to é um programa de vida! Quanto à referência lisonjeira, ao Padim Ciço, dificilmente  poss  po ssoo re recu cusa sarr ; por po r q ue es esta ta i dent de ntif ific icaç ação ão es está tá rela re laci cion onad adaa à minha cultura do Sertão, a meus antepassados, a meus valores familiares. Ao final, de todas as nossas reuniões, cantamos de mãos dadas. Também agora eu lhe proponho, antes de nos separarmos,  parr a vvoc  pa ocêê sent se ntir ir es esta ta li liga gaçã çãoo de d e soli so lida darr ie iedd ade, ad e, este es te espí es pírr it itoo de fraternidade, entrar conosco na roda, sob o ritmo de um samba; que cantemos juntos:

 De us nos  Deus no s cham ch amaa para pa ra um novo no vo mo mome ment nto. o. Para caminhar junto com o seu povo É hora de transformar o que não dá mais Sozinho, isolado, ninguém é capaz. Por isso vem, entra na roda com a gente também Você é muito importante, vem (bis).  A fo forç rçaa que qu e ho hoje je faz fa z br brot otar ar a vi vida da  Atu  A tuaa em nós nó s pela pe la tu tuaa graç gr aça. a. É Deus que nos convida a trabalhar, O amor repartir e as forças juntar (refrão).

 

Posfácio  Este livro tem uma história. A aventura na qual Adalberto e eu nos encontramos começou há sete anos. Encontramo-nos pela primeira vez em 1988, durante o colóquio realizado pela Associação Psiquiatras Sem Fronteiras, intitulado “Poder e Possessão”. Impressionei-me Impressionei -me comsuas a sua exposição sobre profeta que do sertão; no momento de intervenções e anteum o fascínio ele exercia sobre o auditório, suscitando um élan de simpatia e uma atenção que era mais do que benevolência. Suas propostas rompiam com o discurso teórico da moda dos falatórios e sutilezas de raciocínio finamente elaboradas. Ele manejava a metáfora e a anedota, tocava mais a imaginação e o coração do que a inteligência lógica, fria e polida, própria dos discursos universitários. Foi então apresentado a todos nós como professor da Faculdade de Medicina do Ceará Ceará-UFC, -UFC, em Fortaleza. Fortaleza. Durante a refeição, encontramo-nos face a face. À primeira vista, notava-se notava -se a sua aparência frágil, a pequena tez de cobre, os olhos cintilantes, maliciosos, as maçãs do rosto altas, os cabelos lisos e negros. Ele não precisava reivindicar sua origem brasileira e sua ascendência indígena. Logo em seguida, senti passar uma corrente de simpatia. O entusiasmo e a confiança comunicativa com os quais ele falava do seu trabalho, de suas convicções, convic ções, de seu povo, me havia intrigado e depois seduzido. Ao escutá-lo, a gente punha-se a acreditar na humanidade e a ter esperança. Quem poderia resistir a tanta energia colocada a serviço de tão justas causas? A conversação entabulava-se entre nós, como se já nos conhecêssemos desde muito tempo e ele se mostrava tão interessado pelas pela s minhas pesquisas e questões, quanto eu pela originalidade de seu engajamento. Prometemos calorosamente de nos visitarmos. Propostas de circunstâncias, pensei eu; no momento mal havíamos nos

conhecido. Aproveitando Aproveitan do as ocasiões, ocasiões, nó nóss nos vimos v imos frequentemente. frequentemente. Um  pequ  pe quen enoo pont po ntoo hav ha v ia si sido do la lann çado ça do sobr so bree o At Atlâ lânt ntic ico. o. Assi As sim, m,  

em minha primeira passagem por Fortaleza, ele me mostrou o trabalho que havia realizado r ealizado em Canindé; depois ele me levou  parr a a co  pa comu munn idad id adee d e Quat Qu atro ro Var Va r as, as , em m ei eioo de um umaa eno en o rme rm e favela, Pirambu. Ele me havia falado várias vezes da forma de Terapia Comunitária Comunitár ia que conduzia neste lugar de exclusão; exclusão; deixandodeixando me cada vez mais ansioso. Desejava muito ver como ele se conduzia para animar e dar sentido às trocas que ele el e suscitava no interior de uma assembleia de 80 pessoas. Isto eu obtive às minhas custas. A alquimia comunitária à qual ele se entregava, todos os dias, não consistia em um saber apenas, um saber fazer as técnicas transmissíveis e transportáveis a outros lugares ou circunstâncias. Fui surpreendido pela simplicidade do desenrolar destas sessões e pela familiaridade existente nas relações interpessoais. interpessoai s. Estava curioso para compreender os recursos da dinâmica coletiva. O essencial residia na força de sua implicação e no espírito que animava essas reuniões, consistindo, portanto, em: oferecer um espaço para a fala; favorecer, a partir de uma situação difícil vivida por alguém, a relação com a experiência que fora vivida por outros  part  pa rtic icii pant pa ntes es.. Com Co m is isto to,, extr ex traí aíaa o se sent ntid idoo e o s m ei eioo s comunitários para responder a estas dificuldades, reforçando assim, os vínculos de solidariedade. Eu descobria, assim, que sua ação terapêutica era mais de ordem relacional do que técnica. Seu exemplo e seu modo de viver reativaram questões sobre mim mesmo. Em que eu sou útil? Qual o sentido de minha vida, quais são os meus engajamentos, meus valores? O contato com ele era subversivo e, sem suscitar culpabilidade ou má consciência, despertava inveja, desejo de fazer alguma coisa, de também fazer mais. Sente-se em sua presença, como uma evidência constante e, portanto, tão facilmente esquecida, que todo ser humano tem como missão ajudar a outro, assim, ele mesmo,  po  pois dist di stoo d ecor ec orrr em a sua su a sobr so brev eviv ivên ênci cia, a, a sua su a di dign gnid idad adee e a suaisrealização.

Ele oferece com acuidade o sentimento de ser e de ter uma  part  pa rtee da huma hu mani nida dadd e, d e ser se r con co n tá távv el e d e ser se r um umaa p art ar t e relevante da evolução desta humanidade.  

Tive o prazer de escutá-lo, de segui-lo e o acompanhar em suas ações e reflexões. Professor de Medicina Social na Universidade Federal do Ceará, em Fortaleza, Psiquiatra, Teólogo, Doutor em Antropologia; Adalberto de Paula Barreto, isto, passa para todos, não o que se chama comumente um intelectual. Não que ele não pense p ense ou não tenha nada a dizer; ele fala todos os dias, na rádio regional. Aparece na televisão todas as sextasfeiras, escreve regularmente numerosos artigos. Escreve tanto no amplo  Jo  Jorn rnal al do Nord No rdes este te , como na imprensa especializada. E não sabe como recusar os múltiplos convites  parr a ppar  pa arti tici cipa parr de d e co c o ngres ngr esso sos. s. Som So m ent en t e, ei eis, s, po porr ta tann to, a ccau ausa sa,,  pelo  pe lo f ato at o de q ue o pr prin inci cipa pall p ar araa el ele, e, an ante tess de q ualq ua lque uerr ou outr traa coisa, é a ação. O pensamento está claramente a serviço do concreto: ao formalizar o agir, ao dar sentido ao ato. Trata-se continuamente continuam ente de ajustar o ato ato ao espírito que inspira a refletir sobre suas consequências e prolongamentos. Assim, ele faz com que seus alunos al unos de Medicina vão a campo.  Nãoo ac  Nã acei eita ta ensi en sinn ar aos ao s f utur ut uroo s sa sace cerr dote do tess do No Norr dest de stee ou ao aoss estudantes de Psicologia de uma universidade americana, se não for com a única condição de que o ensino ocorra no local de seu atual engajamento. A sua pedagogia faz-se de forma ativa. Ela se baseia no compromisso e participação de cada estudante a uma ação ligada a uma reflexão pessoal e às suas múltiplas incidências. Os prestaram suas cooperações para adeprevenção de estudantes certas infecções infantis, na organização grupos, integrando as crianças de rua no projeto de plantas medicinais, ou na realização de um filme sobre a prevenção de AIDS. Isto se faz com a colaboração de curandeiros e de casas espíritas de Umbanda. Pode-se Pode -se extrair através através de alguns exemploss de pretextos pedagógicos, exemplo pedagógico s, que os objetivos seguid seguidos os  porr Ad  po Adal albb erto er to Barr Ba rret etoo vão vã o al além ém da sim si m ples pl es aq aquu isiç is ição ão ou transmissão de um saber. O caráter destes objetivos é mais do que um trabalho iniciático de integração de valores, de mudanças de estado de espírito, nas relações de cada um com

o outro e com o mundo. Quando a gente fala com ele sobre a sua ação, ele emprega espontaneamente o “nós” não um “nós” de majestade ou  

visando diluir a sua responsabilidade, mas um verdadeiro “nós”. Ele quer colocar a sua liberdade e disponibilidade a serviço da ação coletiva, com as numerosas famílias que o reconhecem e que ele reconhece como sua. Assim, sua família de nascimento, que conta muito e se encontra muito presente em seu pensamento ação, sua equipe do Centro de Família, mas também seus familiares de coração, coração, seu povo do Nordeste, seja favelado, índio tremembé ou  perr eg  pe egri rino no de d e Ca Cann indé in dé.. Enf E nfii m, ssob obrr e a teia te ia ddee ar arei eia, a, os o s vínc ví ncuu los lo s do coração e da afinidade espiritual que tece sem afrouxar, sempre mais longe, seus numerosos amigos. Apaixonado Apaixon ado e entusiasta, desde a minha primeira estadia, pelo  proj  pr ojet etoo de cria cr iaçã çãoo de um m ovim ov imen entt o in inte tegg rado ra do de saúd sa údee mental comunitário, em Quatro Varas, eu o convidava constantemente para que redigisse este projeto, sob a forma de uma pesquisa-ação. Engajando-me para interceder em seu favor, junto à Fundação para o Progresso do Homem (onde eu estabelecera ligações de confiança e simpatia), para obter um apoio material e moral, pensava pen sava que minha função se limitaria a esta intermediação, colocando os interessados em contato. Fui surpreendido, comovido, mas também fiquei inquieto ao me encontrar engajado no contrato de ajuda estabelecido entre a Fundação para o Progresso do Homem e meu amigo, condição acordada entre as duas partes para que a ajuda solicitada viesse. Estava estipulado neste acordo que eu deveria efetuar umlivro acompanhamento projeto e participar na redação de um sobre a vida edoa experiência do meu colega. Desde então, nossas relações tornaram-se mais estreitas, com encontros mais frequentes. frequente s. Eu estava fazendo parte integrante do Projeto Quatro Varas, membro exterior ativo da comunidade. Escrever a dois, um texto na primeira pessoa, retraçando os contornos da história de um deles, tal era a aposta que nós quiséramos ter, o desafio que nós consideramos relevante. Como em toda a aventura, o entusiasmo e o interesse comum

que nós partilhamos para o sucesso da empresa, mascarava a realidade do engajamento necessário para o término destas tarefas. O fato de ir de surpresa em surpresa nos assegurava  

sobre o caráter dinâmico do projeto, tudo isso insinuando os temores e dúvidas diante da complexidade das questões a resolver. As dificuldades foram numerosas, dada a distância que nos separava: distância geográfica, linguística, cultural. A amizade que nos ligava e o bom domínio do francês, por Adalberto, nos convidavam a negligenciar a distância, como se o desejo de nos compreender implicasse apagar nossas diferençass de ritmo, de maneira de viver, o modo de conceber diferença a vida e as relações com o outro. Era preciso, após a tentativa de diferentes métodos, nos render à evidência: tínhamos necessidade de tempo. O envio de disquetes, depois de fitas cassetes, substituído pela pe la troca de fax, não resolvia a questão principal, aquela da confiança e do conhecimento. De fato, não era suficiente se conhecer um pouco, mas muito, para ficarmos inteirados sobre o itinerário da vida de um homem. E o significado de que evolução destepor homem, sua opresença pode ser acompreendida alguém, outro, no o mundo, leitor dessa ocorrência. Nós logo nos inteiramos de que meu trabalho não  podi  po diaa re redu duzi zirr -s -see a tr tran ansc scrr ever ev er as id idei eias as,, o s te text xtos os ou os acontecimentos. Nem seria suficiente registrar, coletar as informações, para descobrir o sentido, a mensagem contida nas experiências sociais da existência narrada. Devíamos, para responder à nossa ambição, ir além, ou melhor, verificar mais em profundidade os fatos, as realizações, as ideologias, para escrever a história de um homem. Em um primeiro momento, havíamos acreditado que  pudé  pu déss ssem emoo s esca es capa parr a esta es ta evi ev i dên dê n ci cia, a, te tent ntan ando do art ar t ic icul ular ar cronologicamente a sucessão de fatos, de encontros, de  proj  pr ojet etoo s, de suce su cess ssos os deix de ixan ando do ao le leit itor or a ta tarr efa de d esco es cobr brir ir a originalidade deste personagem principal, impressões deixadas na ação, no decurso do tempo por ele vivido. Colocar o projetor sobre o próprio Adalberto obrigava a  pa  pass arobjetiva, da in i n fo form rmaç ação ão à um con c onfi fid d ênci ên ciaa denauuma madescoberta n arr arrat atii va, va , que qde ue qqusua u er serssar sobre destino

subjetividade. A rememoração de sua história de vida e revisitar os momentos de sua vida tão distante quanto ele  poss  po ssaa se le lemb mbra rar. r. E vita vi tarr a r epet ep etiç ição ão d as p al alav avrr as e f ra rase ses, s,  

tornando de novo, vivos, os significados e os valores nelas inscritos. Este trabalho, que é preciso ser qualificado qualific ado como analítico, no sentido etimológico de desprender, remontando-o no tempo, nos fatos, foi particularmente criativo. Isto explica quem a despeito das dificuldades de nossas resistências não renunciamos à tarefa. Para Adalberto, o trabalho de criação, recriação, traria uma nova perspectiva, para ambos, sobre a sua vida. Para mim, consistia em um trabalho de criação, interpretação. Interpretação do ator que coloca o seu talento, seu estilo, a sua subjetividade a serviço de uma obra e do personagem que ele deseja encarnar. Interpretação analítica, portadora de sentido, expressando uma outra coisa do que aquilo que o  próp  pr ópri rioo Ad Adal albb erto er to,, sozi so zinh nho, o, n ão pode po deri riaa di dize zerr ou escr es crev ever er sobre ele mesmo. Análise que permite ir o mais próximo  poss  po ssív ível el d aqu aq u il iloo que qu e el elee tr tran ansm smit itee so sobr bree a su suaa o r ig igem em.. Se este trabalho revelou, em certos aspectos, embaraços e dificuldades, confesso ter tido regalias para anotar as observações, recolher as informações, procurar documentos, registrar anedotas e testemunhas. Depois, para deixar infundir, mover, ligar-se, transformar-se, transmutar em mim todos os elementos referentes ao meu amigo, para dar, através da escrita de sua história, minha versão sobre a sua presença e de seu impacto no mundo. Trata-se, para mim, de um trabalho pessoal, de um engajamento que ultrapassa a satisfação de participar em uma obra útil, em um combate geral a essencial. Eu me senti a parte  bene  be neff icia ic iadd a, p or orqu quee esta es tava va in inte terr essa es sado do,, p or minh mi nhaa pr própr ópria ia conta, em trabalhar os numerosos temas que o itinerário de meu amigo brasileiro oferece a reflexão: a solidão, a fé, o engajamento, a família, a memória, a cultura, dando-me a ocasião de me distinguir, de precisar minha diferença. Assim, o projeto inicial, ajudar Adalberto A dalberto a escrever um livro sobre a sua vida e experiência, foi transformado rápida e

certamente em uma espécie de “exa -autobiografia”, gênero  pouc  po ucoo cor co r r ente en te que qu e me p arec ar eceu eu,, entr en tret etan anto, to, ser se r a m el elhh or maneira para tornar legível e interessante o texto. Escrevi a história de Adalberto na primeira pessoa. A  

expressão que me vinha então a público, é que eu lhe servi de “negro” (isto é escravo). Reivindiquei inteiramente a escrita do livro, sua concepção, sua forma, o estilo. Por causa disto, escolhi escrever, tecer a história de meu amigo, como um tapete: a trama é romanesca, sobre ela passa e repassa a roda viva, que puxa o fio do passado ao presente, depois, do presente ao passado, deixando com o tempo, de capitulo em capítulo, aparecer os contornos e as cores de uma existência, de um destino. Este livro é, bem entendido, o fruto de um diálogo, o reflexo de uma relação, de sua dinâmica. Todo encontro autêntico gera uma transformação se o risco for assumido. O emprego da metáfora de gestação e parto justifica-se para a escrita de um livro, sobretudo quando ele é feito a dois. Porém, “os pais” encontram-se mudados, e eu transformado: eu não sou mais o mesmo. Adalberto não é mais o mesmo.  Noss  No ssaa am ambi biçã çãoo e voto vo to são sã o p ar araa q ue es este te p roce ro cess ssoo d e transformação ofereça ao leitor a oportunidade de que ocorra com ele este mesmo processo, ao entrar em contato com esta história.  

 

 

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