A Trágica História do: Doutor Fausto

June 27, 2019 | Author: Júlio César Barbosa | Category: Fausto, Papa, Anjo, Diabo, Espírito
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Coleção Clássicos Universais

A Trágica História do

Doutor Fausto Christopher Marlowe

 Adaptação de Rodrigo Espinosa Cabral

2a edição

CAPÍTULO 1  TRASI SIME MENO NO, onde  ste livro não anda pelos campos de TRA MARTE  acompanhou  acompanhou os cartagineses, tampouco este livro  se ocupa de encontros encontros de amor no interior de castelos nem canta  uma MU MUSA SA com verso versoss cele celestiai stiais. s. Só um assun assunto to cabe aqui: narra narrarr a história de Fausto em seus bons e maus momentos. Fausto nasceu em uma família humilde, numa cidade alemã chamada Rodes. Quando cresceu foi para Wurtenberg, onde foi educado  por seu seuss paren parentes tes.. Form Formou ou-se -se em TEOLOGIA  e  e logo conquistou o diploma de doutor. Como teólogo, Fausto superou todos os seus colegas, ficando muito envaidecido com a própria inteligência. Seu orgulho o levou o mais alto que podia, mas com ASAS DE CERA , que, ao se derreterem, tramaram sua queda. Para se livrar do fracasso, Fausto recorreu a exercícios diabólicos e à magia negra. Nada era mais  NECROMANCIA  A . doce para ele do que lidar com a NECROMANCI  Na ép época oca do doss fa fato toss qu quee es estã tãoo po porr se serr na narr rrad ados os,, Fau aust stoo titinh nhaa ce cerca rca de 30 30 anos de idade. Era um jovem de uma inteligência inteligênc ia brilhante, mas que nunca estava satisfeito satisfeito com nada. Gostava muito de ler. ler. Sobretudo Filosofia. Aristóteles era como um grande amigo íntimo para ele, um amigo que lhe chegava pelos livros. livr os. Mas um dia os livros não conse guiram  gui ram ma mais is seg segura urarr sua suass inq inqui uieta etaçõe ções, s, seu seuss que questi stion onam ament entos. os.  Um médico geral geralmente mente se acha import importante, ante, mas se fosse realmente importante ele evitaria a morte ou faria um morto  voltar a viver, refletia Fausto, em seu escritório, enquanto folheava livros como o Código de Leis e a Bíblia. Via falhas em todos os

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TRASIMENO: batalha de Trasimeno em 217 a.C. na qual Aníbal venceu os romanos MARTE: para os antigos romanos, Marte era o deus da guerra MUSA: divindade, mulher ou algo que inspira um poeta TEOLOGIA: estudo de Deus, da verdade religiosa e de suas relações com o mundo ASAS DE CERA: referência ao personagem Ícaro, da mitologia grega, que fugiu do labirinto de Creta usando asas feitas de cera, mas elas derreteram quando Ícaro se aproximou do sol, o que o fez cair no mar  NECROMANCIA: contatar os espíritos para fazer previsões 2

livros, as leis lhe pareciam injustas, incapazes de satisfazer duas  partess em uma CONTENDA . A Bíblia proibia os pecados,  parte pecad os, e isso ele julgava estar em desacordo desacord o com a vida terrena. Ele sentia que tinha um coração pecador e sabia que era mortal. Segundo as  palavras  palavr as sag sagradas radas,, esse essess dois fator fatores es o lev levariam ariam ao infern inferno, o, por isso fechou a Bíblia e olhou novamente para a grande estante que contornava todas as paredes do seu escritório. Respirando fundo, Fausto puxou livros grossos e antigos da estante. Com um assopro, fez voar a poeira que cobria a capa de couro de um deles. Era um livro de METAFÍSICA . Tinha vários séculos e havia sido escrito à mão com uma letra vermelha escura que parecia ser sangue. s angue. Folhando suas páginas, Fausto via círculos, MANDALAS, desenhos, letras e caracteres ARCAICOS. Cada vez mais aquele tipo de livro lhe interessava. Mandou vir alguns deles do Oriente, pesquisou outros em ALFARRÁBIOS, SEBOS e bibliotecas de várias cidades. O poder que aquelas obras pareciam parec iam conter, o peso de suas  páginas e a sua origem que se perdia p erdia no tempo eram elementos que mexiam com o desejo de Fausto. Aqueles livros não apenas contavam histórias que causavam algum tipo de prazer, eles prometiam prazer, poder, honra e ONIPOTÊNCIA . Fausto não queria o poder de um rei ou de um imperador que só vale nos domínios de seu reino. Fausto buscava um poder maior, que pudesse ser exercido em toda a Terra. Terra. Ele queria levanle vantar o vento, descarregar as nuvens. Queria que sua mente fosse CONTENDA: disputa est á “além” ou “depois” da Física. Ramo da filosofia que METAFÍSICA:  o que está estuda o ser como ele é MANDALAS: diagramas compostos de círculos e quadrados concêntricos, usados para meditação ARCAICOS: muito antigos ALFARRÁBIOS: lugar que vende alfarrábios, livros antigos SEBOS: livrarias de livros usados ONIPOTÊNCIA: poder absoluto 3

o seu limite. Queria se transformar em um mago, um pequeno e poderoso deus e assim os dias e os meses de pesquisa e longos estudos foram se passando. Em suas horas de leitura, após centenas de páginas, sob a luz fraca das velas, lutando contra o cansaço acumulado, certo dia Fausto recebeu (ou imaginou ter recebido) a visita de dois anjos, um a sua direita e outro a sua esquerda. O da direita disse: — Ah, meu amigo Fausto, esquece esses livros condenados.  Não olhes para eles ou tua alma vai acabar aprisionada nessas pá ginas de magia negra e tu vais atrair sobre a tua cabeça a pesada ira de Deus. Lê a Bíblia, porque esses livros que lês agora não passam de BLASFÊMIA . Escuta esse anjo bom que te fala como amigo. Com os olhos vermelhos de sono, a barba por fazer e os cabelos desalinhados, Fausto olhou para a Bíblia, mas, quando ia tocá-la, ouviu a voz do anjo a sua esquerda: — Fausto, segue em frente no estudo dessa arte que contém todos os tesouros da Natureza e tu serás na Terra como Júpiter no céu, senhor e dominador de todos os elementos. Escuta esse anjo mau que te fala como amigo. Assim como apareceram do nada, os dois anjos também desapareceram rapidamente. ESTUPEFATO com a SÚBITA  visita, Fausto começou a pensar alto: — Que loucura! Que loucura! Eu posso me comunicar com anjos, com demônios, com os espíritos! Será possível fazer que executem tarefas para mim? Será que eu consigo convencê-los a  voar até a Índia para me trazer ouro ou retirar do oceano pérolas  preciosas do Oriente ou fazer que viajem até o NOVO MUNDO e de lá retirem seus frutos magníficos e guloseimas apetitosas? BLASFÊMIA: palavras que ofendem a divindade ou a religião ESTUPEFATO: pasmado, assombrado SÚBITA: repentina NOVO MUNDO: o continente americano

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Soqueando a mesa, Fausto continuava a falar sozinho: — Farei que esses espíritos me ensinem as mais estranhas filosofias e me contem os segredos dos reis estrangeiros. Farei que amuralhem toda a Alemanha com bronze! Mandarei os espíritos revestirem as escolas públicas com seda e que os estudantes se vistam com elegância. Com o dinheiro trazido pelos espíritos, recrutarei soldados e expulsarei o príncipe de Parma da Alemanha e vou reinar absoluto como o único rei de nossas terras. Construirei extraordinárias máquinas de guerra, inventadas  para mim pelos espíritos! Seu discurso entusiasmado foi interrompido por batidas na  porta. Eram seus amigos Alemão Valdês e Cornélio. Os dois eram estudiosos do ocultismo e da magia e Fausto esperava a visita deles. Conversando, Fausto contou seus planos: — Não aguento mais os livros convencionais. A Filosofia é obscura, o Direito e a Medicina só servem para mentes estreitas, a Teologia é mais baixa do que as outras. Só me resta a Magia. Por isso peço que  vocês me ajudem nessa tarefa e eu serei tão SAGAZ  quanto AGRIPPA , de quem a sombra ainda faz que a Europa inteira lhe honre. — Sim, Fausto! — Valdês começou a falar animado. — Com esses livros, a sua inteligência e a nossa ajuda, seremos muito  poderosos. Teremos o ouro das Américas, teremos os barcos de  Veneza, as mulheres que quisermos! Teremos soldados da cavalaria alemã para nossa defesa. Mas você está certo disso, amigo? Você quer mesmo entrar nesse caminho que pode levar à glória, mas que muitos dizem ser difícil e PROFANO? SAGAZ: perspicaz, vivo, astuto AGRIPPA: Cornelius Agrippa (1485-1535) foi um humanista e mago de renome. Escreveu Picatrix , um dos textos mais importantes da cultura esotérica (ligada ao ocultismo). Agrippa seguia a corrente animista do Renascentismo, acreditando que a Natureza era um conjunto vivo que tinha uma alma universal, a Quinta-Essência, o espírito do planeta, que governa os outros quatro elementos fundamentais (ar, terra, água, fogo) PROFANO: contrário ao que é sagrado, algo que não pertença à religião

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—   Eu nunca estive tão certo de outra coisa na vida,

 Valdês! Cornélio, até então quieto, não segurou mais sua animação e disse: — Para um mago ser bem-sucedido, é preciso que tenha bons conhecimentos em Astrologia, nas línguas antigas como o latim, grego, persa e um grande entendimento dos minerais. Quem detiver esses três rudimentos será mais requisitado do que o ORÁCULO de DELFOS na antiguidade. Os espíritos já me disseram que podem resgatar o ouro dos galeões afundados e que podem encontrar os tesouros enterrados por nossos ante passados. Então, Fausto, o que estamos esperando para dominar o mundo? O que falta? — Não falta mais nada, meu amigo! Vou para um bosque fazer CONJUROS e começar nosso plano.  Valdês então aconselhou Fausto: — Sugiro um bosque bem solitário. Leva contigo as obras de Albano, do sábio Roger Bacon, o SALTÉRIO HEBREU e o  Novo Testamento. O que mais seria preciso nesta primeira prática, Cornélio? — É preciso conhecer as palavras de arte e os gestos cerimoniais — respondeu Cornélio. — Certo, então venha comigo, Fausto. Vou lhe ensinar esses  procedimentos básicos. Os três passaram horas conversando e trocando conhecimentos sobre magia e depois foram jantar. Mas, antes de dormir, Fausto quis tentar seu primeiro conjuro. ORÁCULO: pessoa ou divindade que responde às perguntas de quem o procura DELFOS: cidade da Grécia antiga CONJUROS: invocação de magia, palavras fortes para esconjurar (exorcizar) o demônio, feitiços SALTÉRIO HEBREU: o Livro de Salmos. Alguns Salmos e o Evangelho Segundo São João servem de proteção e conjuro contra espíritos malignos

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CAPÍTULO 2

nquanto Fausto e seus amigos jantavam, Wagner, o mordomo da casa, teve que atender batidas à porta. Eram dois estudantes que queriam notícias de seu professor. Fausto há muitos dias não era mais visto na Universidade e os alunos estavam curiosos com a ausência dele.  Wagner em princípio não queria dar nenhuma informação, mas os alunos insistiram e o mordomo disse que Fausto estava ocupado, jantando com Cornélio e Valdês. Os estudantes já conheciam a fama de bruxos dos dois companheiros de Fausto e  um deles disse: — Está jantando com esses dois! Será que agora Fausto está  se dedicando à arte que esses dois têm fama de fazer? Discreto, Wagner nada falou. E os dois alunos foram embora intrigados. Um deles era parente de Fausto e disse estar preocupado com a má influência dos amigos bruxos de Fausto. Disse que  pediria ao reitor para aconselhar Fausto a não mais dar crédito a  sujeitos como Cornélio e Valdês. Mais tarde, naquela noite escura, Fausto foi até o bosque pôr em prática os meses de leitura e as dicas que Valdês e Cornélio haviam lhe dado. Enquanto traçava um círculo na terra, fazendo  uso de uma varinha, Fausto ia pronunciando palavras de poder,  versos encantados, trechos de livros em latim, grego, inglês, espanhol. Dentro do círculo escreveu o nome de  JEOVÁ  em diversos ANAGRAMAS. Escreveu também o nome abreviado de todos os  santos e os símbolos das estrelas errantes que, segundo a tradição que seguia, fazem os espíritos aparecer. Falava para ele mesmo: — Fausto, não temas! Tem firmeza e executa a maior magia que souber e que puder.

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JEOVÁ: como é chamado Deus no Antigo Testamento ANAGRAMAS: palavra ou frase formada com as letras de outra palavra ou frase, por exemplo: Roma e amor  8

Respirando fundo, continuou seu conjuro, em LATIM:

— Ignis, aeris, aquae, terra, spiritus, salvete! Orientis princeps Belzebub, infern ardentis monarcha, et Demogorgon, propitiamus vos, ut appareat et surgat Mephistophilis. Quid tu moraris? Per  Jehovam, Gehennam, et par vota nostra, ipse nunc surgat nobis dicatus Mephistophilis.

Ao pronunciar aquelas palavras, Fausto sentiu algo tocar seu ombro. Foi um toque firme, sem dor. Feito com algo duro. Rapidamente imaginou que pudesse ser a ponta de uma espada, mas, ao se virar, viu que era a unha comprida e vermelha do indicador de Mefistófeles! Deu um passo para trás e sentiu o coração disparar. A unha era grande e forte. Tinha uns três centímetros. Também o dedo da entidade lhe pareceu comprido, a mão grande e o braço longo com os músculos definidos. Mas, ao olhar o demônio nos olhos amarelados, Fausto viu que era mais feio e mais enigmático que  podia supor ou aguentar. Teve vontade de sair correndo, mas se  sentia protegido por seu círculo e por toda a sua preparação teórica. Por fim, firmando a voz, respirou fundo e disse: — Ordeno que retornes ao lugar de onde vieste e mudes de aparência! Porque tua figura é feia demais para conversar comigo.  Vai e volta aqui sob a aparência de um FRADE FRANCISCANO, que é uma aparência mais aceitável para um diabo. Sem sumir, o diabo se transformou na frente de Fausto. Os chifres vermelhos se transformaram no capuz marrom e o rabo se encolheu e aumentou o volume na cintura e no traLATIM: língua indo-europeia cuja existência está documentada desde o século VI a.C. (Tradução do trecho em latim): fogo, ar, água, espírito da terra, saúdo! Belzebu, príncipe do Oriente, monarca do inferno ardente e Demiurgo interceda para que aqui pareça Mefistófeles. O que os atrasa? Por Jeová e pela água consagrada que agora derramo e pelo sinal da cruz que faço agora e por meus conjuros que surja agora mesmo Mefistófeles e se ponha a meu serviço. FRADE FRANCISCANO: religioso pertencente à ordem de São Francisco, fundada por São Francisco de Assis (1182-1226), também são conhecidos como capuchinhos ou capuchos por causa do capuz que faz parte de suas roupas. 9

 seiro do demônio, que era agora a figura de um BENÉVOLO capuchinho. Fausto gostou do efeito e da transformação. Além disso, o Mefistófeles havia obedecido ao seu comando sem protestar e isso  parecia ser um bom sinal. — O que quer de mim, Fausto? — perguntou o diabo em  pele de padre. — Eu ordeno que tu sirvas a mim enquanto eu viver e que cumpras qualquer coisa que eu mandar. Mesmo que seja fazer a lua sair de sua órbita ou o oceano engolir a terra. — Eu sirvo ao grande Lúcifer e não posso servir-te, Fausto,  sem que meu mestre me dê permissão — disse Mefistófeles com a calma de um velho frade. — Mas não foi o seu mestre que o mandou aqui? — Não, eu vim por vontade própria. — Então ouviu meus conjuros? — perguntou Fausto. — Sim, e vim verificar se eu podia pegar a alma de um humano que blasfema das Sagradas Escrituras. Geralmente é fácil se apoderar desses condenados. — Não me acho um condenado — respondeu Fausto — porque confundo o inferno com o ELÍSIO. No inferno minha alma  vai ter a companhia dos antigos filósofos. Quero seguir o senhor Belzebu. Por isso, fala-me mais sobre Lúcifer. Mefistófeles deu um breve sorriso e disse: — Ele é o regente de todos os espíritos. — Mas ele não foi um anjo bom muito tempo atrás? — Sim, Fausto. Ele foi o anjo mais amado de Deus. — E como ele se tornou o príncipe do inferno? — Porque tinha ambição e foi INSOLENTE . Então Deus o expulsou do céu. BENÉVOLO: que faz o bem ELÍSIO: na mitologia grega o lugar onde moram os heróis, um lugar de muitas delícias, um paraíso INSOLENTE: desrespeitoso de uma forma ofensiva, malcriado, grosseiro 10

—  Mefistófeles, e vocês que vivem com Lúcifer, como

foram parar no inferno? — Nós somos espíritos DESGRAÇADOS que caímos do céu junto com Lúcifer porque o apoiamos em sua rebelião. Fomos condenados a viver com Lúcifer no inferno. — E como saíste de lá? — Fausto, eu não saí! Isso aqui é o inferno. Lembra que eu já vi a face de Deus. Lembra que, para quem estava acostumado às eternas alegrias dos céus, o mundo terreno é um inferno sem fim. —  Pois eu desprezo essas alegrias que nunca vi e que nunca verei. Sinto que sofras por elas, Mefistófeles. Diga a Lúcifer que eu entrego minha alma a ele, se ele me conceder  vinte e quatro anos de vida em meio a todas as  VOLUPTUOSIDADES . Estando Lúcifer sempre a me ajudar e a me alcançar qualquer coisa que eu lhe peça, responder qualquer coisa que eu lhe pergunte. Quero também que Lúcifer esteja disposto a matar meus inimigos e a ajudar meus amigos e que sempre obedeça a minha vontade. Dize a Lúcifer essas palavras e pede a ele que me encontre à meia-noite em meu escritório para dar a resposta a este pacto. — Assim farei, Fausto. CAPÍTULO 3

o caminho para casa, Fausto estava EUFÓRICO. Havia conversado de igual para igual com Mefistófeles e havia feito sua proposta. Agora era só aguardar o encontro com Lúcifer e o mundo estaria aos seus pés. Durante o trajeto, chegou a pensar que, se tivesse mais de uma alma, se tivesse tantas almas em seu

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DESGRAÇADOS: sem graça, ou seja, sem a santificação concedida por Deus VOLUPTUOSIDADES: volúpia, prazer, sensualidade EUFÓRICO: muito contente, muito entusiasmado 11

corpo como o céu tem estrelas, ele daria todas as suas almas em troca dos poderes de Belzebu. Assim poderia unir a África e a Europa, fazer uma ponte entre os continentes americano e europeu e teria todos os reis e imperadores sob o seu domínio. Porém, mais tarde, em seu gabinete, enquanto esperava por Lúcifer, Fausto estava inseguro. Não sabia se SELAR  o pacto seria a coisa mais certa a fazer. Mas pensou que já tinha ido longe demais para retroceder e que Deus o puniria de qualquer forma, mesmo que voltasse atrás. Depois pensou na grandeza e no poder que conseguiria com o pacto e decidiu seguir em frente. Se fosse  preciso, construiria até um templo para o diabo, mas, ao ter esse  pensamento, o anjo bom lhe apareceu: —  Doce Fausto, desiste dessa ideia. Ainda há tempo. A CONTRIÇÃO, a reza e o arrependimento são ferramentas muito  valiosas. São meios IDÔNEOS para o caminho do céu. — Não passam de ilusões. São frutos da demência. Só os tontos acreditam nisso! — disse o anjo mau, com uma voz rouca. — Doce Fausto, pensa no céu e nas coisas divinas! — disse o anjo bom que tinha a bela aparência de uma adolescente. A pele da cor dourada e o rosto oriental. — Não, Fausto, pensa na honra e na riqueza! — disse o anjo mau com seu olhar azul penetrante. — Saiam os dois daqui! Preciso ficar sozinho. Eles saíram e Fausto fechou os olhos e pensou na riqueza. Moedas de ouro, estátuas de bronze, colares de pérolas, anéis de diamante, taças de prata, safiras, rubis, esmeraldas, tapetes persas, carruagens, castelos, mulheres, soldados, banquetes, cidades,  países... o mundo inteiro! Depois pensou que estava seguro, pois Deus não lhe faria mal. SELAR: finalizar, encerrar CONTRIÇÃO: arrepender-se das próprias culpas e pecados, motivado pelo amor de Deus IDÔNEOS: adequados, propícios

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Escutou o gongo do relógio. Era meia-noite. Abriu os olhos e viu Mefistófeles diante de si. Sentiu algo arder na barriga, mas não recuou: — Que bom que apareceste, Mefistófeles. Tens a resposta de teu mestre? — Sim. Em troca de tua alma, eu serei o teu escravo e te  servirei e te darei mais do que imaginas pedir. Aceitas? — Aceito, Mefistófeles. Eu darei minha alma ao príncipe das sombras. — Mas Lúcifer tem uma exigência para CONSUMAR  o pacto. — Qual? — quis saber Fausto. — Você deve redigir um contrato com o seu próprio sangue. O texto deve dizer que você entrega sua alma a Lúcifer. É uma  garantia que o mestre pede e, se você se recusar, não há pacto. Fausto pegou uma pequena faca de prata que tinha na gaveta de sua mesa e, num golpe firme, cortou seu braço. O sangue começou a escorrer e ele o recolheu em um pequeno pote de vidro. Com a pena, começou a escrever. Fausto cede sua alma...

— Mefistófeles, o sangue COAGULOU, não consigo escrever! — Espera que vou conseguir algo para aquecer o vidro.

Em um instante, o diabo tinha um fogareiro e com ele aqueceu o sangue de Fausto, dizendo: — O que eu não faço para conseguir tua alma, hein? Fausto riu, o sangue voltou a ficar líquido e o doutor continuou escrevendo o contrato, usando seu líquido vital como tinta. Por fim, disse em latim: — CONSUMMATUM EST . O contrato está assinado. A alma de Fausto agora pertence a Lúcifer. CONSUMAR: finalizar, completar  COAGULOU: solidificou CONSUMMATUM EST:  está consumado. Estas foram as últimas palavras de Cristo na cruz. Fausto as usa de modo irônico para iniciar sua condenação 13

Ao limpar o ferimento em seu braço, Fausto reparou que o  sangue que havia escorrido formava uma frase. Em seu braço, era  possível ler em vermelho:  Homo, fuge 

Fausto se perguntou o que significaria aquilo. A tradução era “foge, homem”. — Mas fugir de quem? — pensava Fausto. — Do diabo, em direção a Deus? Para quê? Para que ele me mande direto para o inferno? Prefiro ir sozinho para o inferno, e lucrando com o meu pacto. Ficou olhando o braço por mais alguns instantes. Aquelas duas palavras poderiam ser uma ilusão de sua mente, mas estavam mesmo ali escritas. Mas ele decidiu não fugir. Percebendo a quietude de Fausto e o rosto meio preocupado, Mefistófeles tratou de animar seu “cliente”. Estalou os dedos e num instante o escritório do Doutor Fausto começou a se encher de vários diabos de vários tamanhos. Havia desde pequenos seres com chifres e rabo, medindo vinte centímetros de altura, até uma diaba de um metro de oitenta de altura, com os cabelos e a pele  vermelha e os olhos verdes, vestida com uma camisola. — O que é isso? — perguntou Fausto, assustado com a in vasão a seu escritório. —  É um pequeno presente, Fausto! Para animá-lo e para mostrar um pouco do que a magia é capaz. A tribo de pequenos e grandes diabos cantava, dançava e cobria Fausto com coroas e colares e, tão repentinamente como haviam entrado, saíram. Fausto entregou o contrato para Mefistófeles e disse que o contrato detalhava a doação da alma e do corpo dele, desde que Lúcifer cumprisse com todas as cláusulas. Mefistófeles jurou pelo inferno e por Lúcifer que executaria todas as promessas e exigências contratuais. Fausto fez questão de reafirmar seus pedidos, dizendo que Mefistófeles o serviria como criado, sempre que Fausto desejasse. Por fim leu em voz alta a parte final do contrato escrito com sangue: 14

—  Eu, João Fausto, morador de Wurtenberg, Alemanha,

doutor, afirmo no presente documento que concedo meu corpo e minha alma a Lúcifer, o príncipe das trevas, e a seu ministro, Mefistófeles, e concedo aos dois o direito de, daqui a vinte e quatro anos, se eles cumprirem com as cláusulas acima, levar João Fausto em alma, corpo, sangue e efeito para sua morada, onde quer que ela se localize. Assinado, João Fausto. — Está tudo certo, Fausto. Estamos de acordo! Agora peça o que quiser. — Primeiro quero saber alguma coisa sobre o inferno. Onde ele se localiza? — Embaixo do céu — respondeu o diabo. — Certo, mas onde? — Dentro das entranhas dos elementos. É no inferno que somos torturados e que permanecemos eternamente. Ele não tem limites. O inferno nos acompanha, ele nos segue por onde andamos. — Para mim o inferno é uma FÁBULA — afirmou Fausto. — Pode pensar assim, até que a experiência mude sua ideia. — Mefistófeles, tu achas que eu serei condenado? —  É lógico! Afinal, assinaste um contrato entregando tua alma ao diabo! — Sim, cedi a alma e o corpo também. Mas eu não sou bobo. Eu não acredito que após a morte haja outra vida. Isso é bobagem,  são histórias que as velhinhas contam. — Eu sou o exemplo de que existe outra vida e de que existe o inferno, já que agora me encontro nele — explicou Mefistófeles. — Certo, você está no inferno. Então o inferno é uma beleza. Afinal, estamos aqui num escritório bem confortável. Podemos andar,  gesticular, falar. Sem dor, sem fogo, sem torturas. Para melhorar, eu  poderia ter uma mulher aqui para me fazer companhia. É isso. Companheiro Mefisto, traga para mim a mais bela mulher da Alemanha. FÁBULA: história popular que expõe as ideias de forma figurada 15 

— Queres uma mulher! Por favor, eu te rogo que não fales

 sobre mulheres. —  Ora, Mefisto. Deixa de conversa. Busca uma mulher,  porque eu gosto e preciso da companhia delas. — Certo, vou buscá-la, em nome do diabo. Espera aqui.  Um minuto depois, Mefistófeles estava de volta no formato de um diabo com roupas de mulher. — Que te parece a tua mulher, Fausto? Fausto não gostou. Disse que parecia uma prostituta. Mefistófeles disse que o casamento era só uma cerimônia e que Fausto não deveria  se importar com esses rituais. Depois mostrou um livro demoníaco que ensinava alguns feitiços para fazer tempestades, trovões, raios e também EVOCAVA  a presença de soldados com armaduras. Mefistófeles foi mostrando para Fausto vários textos que  prometiam magias existentes no livro. Fausto queria ver os planetas de perto, queria conversar com os espíritos, queria conhecer todas as plantas e árvores da Terra e Mefistófeles ia dizendo que todos aqueles conhecimentos estavam no livro, apontando com o dedo cada um deles. Fausto desconfiava que talvez o livro não fosse tão completo assim ou que ele não fosse capaz de realizar os feitiços, mas resol veu que primeiro iria experimentar os feitiços para depois reclamar com Mefistófeles, se fosse o caso. CAPÍTULO 4

eia hora após ter assinado o contrato, Fausto tinha algumas dúvidas e estava irritado: — Mefisto, percebi algo horrível! Antes mesmo de fazer o feitiço para olhar os planetas de perto, eu percebi que não consigo mais enxergar as estrelas! Por quê?

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EVOCAVA: chamava

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— As estrelas foram feitas por Deus, entre outros motivos,

 para que o homem as mire. Mas você renunciou a Deus e com isso perdeu o direito de vê-las. — Se elas foram feitas para os homens, foram feitas para mim! Estou me arrependendo deste pacto! Vou renunciar à magia... Mefistófeles estava rindo de Fausto, quando surgiu no escritório o anjo bom: — Fausto, se tu te arrependeres em teu coração, Deus vai se COMPADECER . Mas o anjo mau surgiu e falou: — Tarde demais, Fausto. Você já é um espírito e Deus nada  pode fazer para ajudá-lo. Os dois anjos desapareceram antes que Mefisto pudesse protestar ou que Fausto pudesse perguntar alguma coisa mais. Fausto sentia  seu coração duro demais para que fosse possível se arrepender de algo e decidiu continuar conversando com Mefistófeles. Falaram sobre os  planetas e o diabo ia respondendo as perguntas de forma simples, sem muita elaboração e sem detalhes. Até que Fausto perguntou: — Fala sobre a Terra. Quem foi que fez a Terra? — Não vou dizer — respondeu Mefistófeles. — Mas estás obrigado a dizer tudo! Está no contrato. — Sim, desde que as respostas não sejam contra o nosso  próprio reino. Lembra, Fausto, agora você pertence ao inferno, és  um condenado. — Dessa forma, só posso concluir que foi Deus quem fez o mundo. — Não esqueça do que eu te falei. És um condenado — disse o diabo saindo do escritório. Assim que Mefistófeles saiu, Fausto falou: — Maldito Mefisto, foi você que me condenou! Será que já é tarde demais para anular o pacto? COMPADECER:  ter compaixão, piedade 17

Antes que Fausto pensasse em uma resposta, os anjos estavam de volta. O anjo mau disse: — Sim, tarde demais, doutorzinho! — Não, meu doce Fausto. Nunca é tarde para se arrepender,  para recomeçar — disse o anjo bom. — Só que, se tu voltares atrás, os demônios vão fazer picadinho de ti! — disse o anjo mau, com um riso na boca. — Se te arrependeres, eles não poderão te tocar — explicou o anjo bom. E os dois novamente saíram do escritório, deixando o doutor Fausto de Wurtenberg entregue às suas próprias ELUCUBRAÇÕES. Até que, não aguentando mais, Fausto disse: —  Meu Deus! Cristo Salvador, vem redimir minha alma angustiada, por favor! Assim que Fausto terminou de dizer sua frase, Lúcifer, Belzebu e Mefistófeles entraram em seu escritório e o cercaram. — Cristo não pode salvar a tua alma, porque ele é justo. Você assinou um contrato e somente eu posso liberá-lo desse contrato — falou Lúcifer. — Mas qual o teu nome? — quis saber Fausto, já desconfiando da resposta. — Não consegues me reconhecer? Lúcifer tinha dois metros de altura e a pele vermelha. Era musculoso, tinha chifres e um longo rabo que acabava em uma  ponta triangular. Olhando em seus olhos, Doutor Fausto se horrorizou ao perceber as pupilas coloradas. — Sou Lúcifer! — disse o demônio, soltando uma gargalhada. — Veio buscar minha alma? — Não. Vim aqui junto com Belzebu e Mefistófeles para te avisar que não deves falar INJÚRIAS. Não toques no nome de ELUCUBRAÇÕES: pensamento profundo, meditação INJÚRIAS: palavras ofensivas, xingamentos

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Deus. Pelo contrato você não pode fazer isso. Por acaso você virou  uma freirinha agora para ficar rezando? —  Não, não. Eu... Tudo bem, eu não vou mais falar em Deus. Desculpem meu erro. Isso não se repetirá. Vou seguir o estabelecido no contrato. — Faze isso, Doutor João Fausto, e serás altamente recom pensado. E agora, já que estás de acordo com as normas da casa,  vamos te oferecer um entretenimento infernal de primeira classe: OS SETE PECADOS CAPITAIS — disse Lúcifer batendo as palmas das mãos duas vezes. — Isso será tão prazeroso para mim como foi o Paraíso para Adão no primeiro dia da criação — disse Fausto. — Não fales sobre o Paraíso nem sobre a criação. Fala do diabo e nada mais! Os sete pecados capitais entram no escritório, sob a forma de diabos e diabas. CAPÍTULO 5

 F 

austo chegou a ficar boquiaberto com a diferença de cores, brilhos e formas daqueles corpos que representavam os pecados. O escritório ficou pequeno com tantos seres circulando. Mefistófeles organizou os sete pecados e o primeiro diabo a desfilar foi o Orgulho. O diabo desfilava e Lúcifer fazia comentários, enquanto o diabo subia na escrivaninha do Doutor Fausto e exibia seus músculos. — Eis o Orgulho. Ele não reconhece seus pais, é cheio de SOBERBIA , se acha melhor do que os outros. O diabo desceu da mesa e uma diaba subiu no móvel, era a Avareza. Lúcifer falou sobre ela: OS SETE PECADOS CAPITAIS: os sete principais pecados definidos pela Igreja Católica na Idade Média SOBERBIA: excesso de orgulho, arrogância, presunção

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— Com vocês, a Avareza, também conhecida como Cobi-

ça. Só pensa em levar vantagem, só pensa no lucro, no ouro, no dinheiro. — Quem é a terceira diaba, Lúcifer? — É a Ira! Ela não tem pai nem mãe. Brotou da boca de  um leão e hoje vaga pelo mundo com uma caixa de espadas,  paus e pedras na mão. Quando não consegue ferir os outros, ela fere a si mesma. Fausto ainda olhava as cicatrizes no corpo da Ira, quando outra diaba atravessou a sala e subiu na mesa. Ele perguntou: — Quem és tu? — Sou a Inveja. Não sei ler e por isso quero queimar todos os livros. Se vejo os outros comendo, fico fraca. Para mim, tudo o que é dos outros é melhor. Ver os outros felizes me causa desgosto. Quero o que não é meu. Por que tu estás sentado e eu de pé? —  Saia já dessa mesa, sua invejosa. Quem é a quinta diaba, Lúcifer? — Não adivinhas pelas formas? O quinto pecado capital era uma criatura OBESA  e Fausto acertou ao dizer que se tratava da Gula. Ela não conseguiu subir na mesa, tentou subir na cadeira, mas esta rangeu. Por isso re solveu se apresentar do chão mesmo: — Sou a Gula. Neta do presunto e do barril de vinho, afilhada dos doces e dos salgados, filha da carne e do açúcar. Quando não tenho nada para fazer, como. Quando tenho alguma coisa para fazer, como. Vivo para comer, quando o mais sensato talvez fosse comer para viver. Fausto, convida-me para um jantar! — Nem pensar. A conta sairia muito alta! — Então, que o diabo te carregue, Fausto. — Que ele carregue a ti, glutona! — Quem és tu, sexta diaba? — Uahhh... tenho que responder agora ou pode ser depois? — disse a diaba no meio de um bocejo. 20

— É a preguiça — Lúcifer respondeu por ela. — Ela nasceu

às margens de um rio esplêndido e, de certa forma, não mais saiu desse leito. E, pelo jeito, está com tanta preguiça que não vai subir na mesa nem falar mais nada hoje. O último pecado capital subiu na mesa de uma forma muito  sensual. Era uma diaba de corpo perfeito. Lúcifer a apresentou: — É a Luxúria. Vive para o corpo, adora se exibir e está sempre buscando o prazer sexual. Mas agora chega! Todos vocês, todos os pecados capitais, fora! Voltem para o inferno! Ao comando do mestre, os sete diabos sumiram. Lúcifer  perguntou se Fausto havia gostado do desfile de pecados em seu escritório. O doutor disse que sim e pediu para conhecer o inferno. Lúcifer prometeu levá-lo no dia seguinte e, antes de se despedir, deixou com Fausto um livro com ensinamentos profanos. CAPÍTULO 6

os dias seguintes, Fausto partiu em viagem astral, sonhos ou em espírito para diversos locais. Foi conhecer o famoso monte Olimpo dos antigos gregos, contemplou as nu vens e voou em dragões alados. Na companhia de Mefistófeles, andou por Paris, pelo interior da França e entrou na Itália. Pas saram por Nápoles e seguiram rumo a Roma, onde Mefistófeles fez um convite especial para Fausto: — Vamos visitar o Papa! Vamos entrar em seus APOSENTOS  secretos e vê-lo em sua rotina. Fausto aceitou o desafio. Em frente à praça de São Pedro, Mefistófeles fez um feitiço e deixou Fausto invisível. Antes de entrarem no Vaticano, Fausto falou: — Será que seremos bem recebidos?

 N 

APOSENTOS: residência, casa, quarto

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—  Isso não importa, mas Sua Santidade é um homem

bonachão. Dentro do palácio do Vaticano, o Papa conversava com o cardeal de Lorena: — Sua Santidade, trago aqui um sofisticado prato enviado  pelo bispo de Milão — disse o cardeal oferecendo uma bandeja com uma bonita panela de prata tampada. — Obrigado, senhor — Fausto falou, antes que o Papa falasse qualquer coisa. Surpreso, o PONTÍFICE  perguntou: — Quem está aí? — Alguém que quer beber um pouco de vinho com Sua Santidade — disse Fausto, aproveitando-se da invisibilidade. O Papa ficou com uma expressão preocupada no rosto e o cardeal de Lorena falou: — Senhor, alguma alma recém-saída do PURGATÓRIO vem  pedir perdão para Sua Santidade. — Pois bem — disse o Papa se SANTIGUANDO —, con voque os cardeais, vamos fazer um exorcismo para aplacar a fúria desta pobre alma. — Hum, Sua Santidade faz o sinal da cruz! Que interessante! — disse Fausto em tom de deboche. O Papa voltou a se benzer e Fausto voltou a incomodá-lo: — Mais uma vez? Isso já está virando uma mania, hein? Se Sua Santidade se benzer de novo, eu não respondo por mim. Calado, o Papa mais uma vez fez o sinal da cruz e Fausto lhe deu um soco na cara. Depois do golpe, ele e Mefistófeles saíram correndo e rindo pelos longos corredores do Vaticano. Correram  uns trinta metros e pararam. Mefistófeles disse: PONTÍFICE: papa, sucessor de São Pedro na condução da Igreja Católica PURGATÓRIO: lugar em que as almas ficam sofrendo por algum tempo para que possam ser purificadas SANTIGUANDO: do verbo santigar, fazendo o sinal da cruz 22

— Agora eles vão nos perturbar com suas velas, sinetas e

livros de rezas. — Nada disso pode me deter, Mefisto. Nada disso pode deter Fausto! Vamos voltar e aprontar mais travessuras com eles.  No saguão onde estava o pontífice, os cardeais e bispos começavam a ladainha, enquanto eram atormentados por Fausto: — MALEDICAT DOMINUS ! Maldito seja o espírito que gol peou Sua Santidade na cara! Maldito seja o espírito que empurrou o frade Sandelo, maldito seja o espírito que bebeu o vinho de Sua Santidade. Maledicat Dominus ET OMMES SANCTI , amém! Mefisto e Fausto saíram do Vaticano rindo. Os religiosos ficaram contentes porque julgaram ter expulsado os dois. O diabo e o doutor que vendeu sua alma seguiram sua viagem pelo ar e pela terra. Os anos foram passando e Fausto visitava países, fazendo ma gias e aprendendo sobre o ocultismo. Aos poucos foi ganhando fama de sábio a ponto de chamar a atenção de sábios, monges, gurus, reis e até do imperador Carlos V, como relata a passagem abaixo. Em uma visita SOLENE , o imperador pediu que Fausto usasse  seus poderes para entrar em contato com Alexandre Magno, o famoso conquistador, cuja glória e a fama eram, para Carlos V,  um exemplo a ser seguido. Fausto disse que não poderia trazer da CRIPTA  alguém morto há muito tempo e que hoje já deveria ter virado pó, mas era possível fazer que outros espíritos assumis sem a forma e as feições de Alexandre, o Grande, e também de  sua amada, para que Carlos pudesse ter uma ideia de como era o imperador do passado.  Um dos cavaleiros do rei Carlos V não acreditava em Fausto: — Para mim esse feitiço é tão verdadeiro quanto é verdadeira a história de que Diana me transformou em um cervo. MALEDICAT DOMINUS: que o maldiga o Senhor  ET OMMES SANCTI:  e todos os santos SOLENE: com pompa, cerimônia CRIPTA: lugar secreto, subterrâneo usado para guardar relíquias ou pessoas 23

— Não senhor, quando ACTEÓN morreu, ele deixou seus chifres de cervo para Diana — e olhando para Mefistófeles, disse: — Vai buscar Alexandre e sua amada.

Irritado, o cavaleiro disse: — Bom, se vocês começarem com uma ladainha ou uma reza brava, eu vou embora.  Tão logo Mefistófeles tinha saído por uma porta, aparecia voltando por outra, a uns cinquenta metros de distância, na outra extremidade do salão. Vinha acompanhado da figura IMPONENTE  de Alexandre Magno, vestido para a guerra, com  sua armadura, ELMO e espada. Sua mulher usava um vestido dourado muito bonito. — Como vou saber se eles eram assim mesmo? — perguntou o rei. — Uma vez li que a amada de Alexandre tinha um LUNAR  no pescoço. Essa dama que está diante de nós o tem? —  Vê com teus próprios olhos, majestade —  respondeu Fausto. O soberano caminhou até a mulher que acompanhava Ale xandre e, puxando seus cabelos levemente para o lado, confirmou que ela tinha um sinal de nascença. Para Carlos V, aqueles dois não eram mais espíritos, mas os verdadeiros corpos de Alexandre e de sua amada. Irritado, o cavaleiro saiu do saguão, mas Fausto  pediu ao rei que o cavaleiro voltasse. Quando o homem retornou, todos riram. Ele tinha chifres na cabeça. Carlos V falou: — O que é isso, cavaleiro? Pelo que eu saiba, tu és solteiro! Mas  vejo agora que tens mulher e que ela te engana com outro homem! ACTEÓN: na mitologia, Acteón era um caçador que sem querer viu a deusa Diana se banhando e, para puni-lo, ela o transformou em um cervo. Ele acaba sendo caçado por seus próprios cães, que não o reconhecem e o matam IMPONENTE: majestosa, que impõe admiração ELMO: capacete dos antigos soldados LUNAR: sinal de nascença presente na pele, atribuído à influência da lua

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O cavaleiro pediu que Fausto retirasse os cornos dele. Fausto disse que aquele feitiço era uma REPRESÁLIA  pelas frequentes interrupções e piadinhas que o cavaleiro havia feito durante a visita. Disse também que não tinha interesse em retirar os chifres dele, mas Carlos V pediu que o feitiço fosse desfeito e Fausto deu o comando a Mefistófeles, removendo o adereço da cabeça do nobre. O imperador recompensou os dois magos com muitos tesouros e eles saíram. Caminhando pelos verdes campos no verão da Europa, Fausto pensava que seus anos de poder e feitiço estavam chegando ao final. Lembrou de Valdês e Cornélio e de como nunca mais havia falado com eles. Por um momento, ficou angustiado. Pensou que  poderia ter feito e conseguido muito mais coisas com seus poderes. Chegou a se arrepender de ter feito o pacto. Depois pensou que talvez  Jesus o perdoasse, já que havia perdoado o ladrão na cruz. Respirando fundo, Fausto tentou se animar. Decidiu aproveitar o final de seu período de poder, antes que Lúcifer  viesse recolher sua alma. CAPÍTULO 7

erto dia, Mefistófeles e Fausto caminhavam pelo campo na companhia do belíssimo cavalo de Fausto, quando cruzaram com um camponês. O homem disse que precisava muito do cavalo de Fausto e que pagava quarenta moedas por ele. Era  um dinheirão e era todo o dinheiro que o homem tinha. Fausto  pediu cinquenta. O homem insistiu nos quarenta e Fausto aceitou, dizendo, porém, que aquele cavalo era especial e não poderia nunca passar sobre água. — Como assim? — quis saber o camponês. — É um ótimo cavalo, mas nunca o coloque na água. — Mas ele pode beber água, certo?



REPRESÁLIA: vingança

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— Pode e deve beber toda a água que quiser, mas não pode

 passar sobre ela. O homem fechou o negócio mesmo assim e saiu trotando o lindo cavalo de Fausto, que, pelo preço da época, poderia valer até oitenta moedas se fosse um cavalo normal. Nos primeiros dias, deu tudo certo. O cavalo era ótimo. Quando via um riacho ou um lago, o homem desviava. Cerca de quinze dias após a compra, o camponês colocou o cavalo em uma barca. Precisava muito cru zar um rio. Quando a embarcação estava na metade da viagem, o cavalo se desmontou e virou um monte de palha. Sentindo-se LOGRADO, o homem foi até a casa de Fausto em  Wurtenberg. Fausto dormia. Mefistófeles não deixava o homem entrar na casa e o sujeito reclamava muito: — Perdi todo o meu dinheiro! Quarenta moedas por um fardo de palha! O doutor Fausto precisa desfazer esse negócio. Quero meu dinheiro de volta. Mefistófeles insistiu que Fausto estava dormindo, mas o camponês invadiu a casa gritando e entrou no quarto do doutor. Discutiram e o camponês sacou um facão e ATOROU a perna de Fausto. O sangue corria pelo quarto. O camponês se desesperou. Mefistófeles disse que o homem seria preso e condenado. — Dou mais quarenta moedas para vocês se me deixarem ir  sem me denunciar. Mefistófeles aceitou a proposta. O homem, com muito PESAR , entregou o saco de moedas e se foi. Com um feitiço, Mefistófeles limpou o quarto e a perna de Fausto voltou ao normal. Os dois riram muito do desespero do camponês, enquanto TILINTAVAM as moedas. Os dois seguiram sua peregrinação pelos palácios, demonstrando magias e ganhando poder, dinheiro, ouro, contatos e inLOGRADO: enganado ATOROU: cortou PESAR: lástima, pena TILINTAVAM:  faziam barulho

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fluência sobre diversos reis, rainhas e nobres da Europa. Às vezes os truques eram simples, como trazer uma cesta de uvas maduras da Índia, quando era inverno na Alemanha e os campos estavam cobertos de neve. Às vezes eram magias mais complicadas, mas todas elas lhes rendiam admiração e lucro. Quando os vinte e quatro anos de poder chegavam ao fim, Fausto decidiu doar todos os móveis de sua casa. Wagner, o mordomo da casa, ficou preocupado, pensando que o patrão estava se despedindo da vida. O que conseguiu animá-lo foi a visita de dois estudantes. Eles tinham visto uma palestra de Fausto, alguns anos antes, sobre as mais belas mulheres da história. Na palestra Fausto concluiu que a grega Helena havia sido a mulher mais bela do mundo. Sabendo dos poderes do doutor, os estudantes queriam que Fausto lhes mostrasse Helena. Fausto concordou, pedindo apenas que os estudantes ficassem quietos durante a exibição e poderiam  VISLUMBRAR  a mulher ímpar e com a mesma EXUBERÂNCIA  que ela tinha quando Paris cruzou os mares com ela. Ao vê-la, os estudantes pensaram que aquele rosto e aquele corpo valiam os dez anos de guerra que a Grécia impôs a Troia quando Helena foi roubada pelos troianos. Fausto andava muito angustiado com o final de seu pacto, mas, ao vê-la, seu coração se acalmou. Quando os estudantes foram embora, ele pediu a Mefistófeles que pudesse ter Helena de Troia em  seus braços por uma noite. Quando a abraçava e a beijava, Fausto  pensava que os lábios dela absorviam sua alma e que ele voava com ela pelo tempo e do alto via os mares e os soldados gregos incendiando as torres sem fim de Ilion. Por ela ele poderia ferir Aquiles nos calcanhares, poderia ser Paris, poderia dar sua vida por aquele beijo. Ela era bela como a noite mais estrelada do verão. Era gentil,  graciosa e, naquele momento, ela valia toda a vida dele. VISLUMBRAR: olhar, observar atentamente EXUBERÂNCIA: grandeza, formosura

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O anjo bom, que, invisível, assistia Fausto, balançou a cabeça. Estava cada vez mais difícil salvar a alma do doutor. Quando acordou, Fausto procurou Helena em sua cama, mas a cama estava vazia. Teria sonhado? Mas as lembranças lhe pareciam tão reais! Se fosse um sonho, será que ele esqueceria dos detalhes, do cheiro, da cor dos olhos e dos cabelos dela? Isso o angustiava muito e ele lembrava que seu tempo havia chegado ao fim. Pensava que não havia perdão para ele, talvez houvesse perdão para a serpente que ofereceu a maçã para Eva no Paraíso, mas não para Fausto. Desejou que nunca tivesse aprendido a ler ou que não tivesse sido tão ambicioso. Desejou que tivesse tido uma vida mais humilde, porém mais livre. Fausto queria chorar, mas os demônios tinham lhe roubado as lágrimas e apenas um pouco de sangue corria em sua face. Ele queria  pensar em Deus, mas depois de tantos pecados não se sentia digno, não achava justo procurar por Deus e também temia a vingança de Lúcifer. Quando faltava uma hora para a meia-noite, para o final de  seus poderes, Fausto desejou que o tempo parasse, que uma hora durasse um dia e que um dia durasse uma semana e uma semana  um mês. Para que tivesse tempo de recomeçar e de se arrepender.  Talvez procurar seus amigos, mas as estrelas continuavam a se mover no céu e os ponteiros continuavam girando nos relógios. Quando faltava meia hora para o fim, Fausto desejou que a teoria de Pitágoras estivesse certa e que quando ele morresse sua alma migrasse para algum animal e que assim não fosse atormentado nem pelo céu, nem pelo inferno. Quando o relógio badalou meia-noite, Fausto quis ser uma gota de água que caísse no oceano e nele se fundisse. Assim ficaria protegido e seguro. Mas o que aconteceu foi que Satã entrou em seu escritório e abriu as portas do inferno, de onde serpentes gigantescas vieram ao  seu encontro, enrolando-se em suas pernas e pescoço, sufocando sua respiração e o arrastando para a fogueira das torturas infernais.

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 R OTEIRO DE  L   EITU RA 

1) Onde acontece a maior parte da história? 2) Quem é o protagonista? E quem são os antagonistas? 3) O capítulo 2 explica o que é um anagrama. É possível formar anagramas com o seu nome? E com a palavra Fausto, que outras palavras você consegue escrever? 4) Por que Fausto fez um pacto com o diabo? O que ele queria? 5) Quais são os sete pecados capitais? 6) Para você, qual dos sete pecados capitais é o mais grave? Marque a alternativa correta para completar as frases abaixo: 7) Fausto fala _____ dos outros e _____ de si mesmo. a) mal / mau b) bem / mal c) mal / bem d) mau / bem 8) O anjo bom é um anjo do bem. O anjo ____ é um anjo do ____. a) mal / mau b) mal / mal c) mau / mal d) mau / mau 9) Fausto gostava de ler livros que eram proibidos. Durante alguns períodos da história da humanidade, alguns livros foram considerados proibidos e foram queimados. Isso aconteceu, por exemplo, durante a Idade Média e durante a ditadura militar no Brasil. Você acha isso certo? Temos o direito de destruir algo quando não concordamos com suas ideias? Por quê? 10) Fausto tinha dois amigos que o ajudaram a fazer o pacto. Quem eram eles e o que Fausto fez com os dois? 11) O que Fausto e Mefistófeles foram fazer no Vaticano? 12) O que aconteceu com o cavalo que um camponês comprou de Fausto? 13) Se, por exemplo,você comprar uma televisão e ao chegar em casa ela não funcionar, o que acontece? Você perde o seu dinheiro? A loja é obrigada a trocá-la? Você recebe seu dinheiro de volta? A loja paga o conserto do televisor? Pesquise quais são os seus direitos nessa situação. 14) Segundo o livro, quem era Mefistófeles antes de se tornar um diabo? 30

15) Fausto conseguiu o que queria quando pensou em firmar o pacto? 16) A alma é o princípio da vida. Em sua opinião, vale a pena dar a vida para conseguir atingir seus objetivos? 17) Qual foi a coisa mais valiosa que você já conseguiu? O que você teve de dar em troca? 18) Além do português, o latim é outro idioma que aparece neste livro. Pesquise outras expressões nessa língua antiga. Elas são comuns no Direito e na Igreja, por exemplo. 19) Para Fausto, qual era a mulher mais bonita da história? E para você? 20) Forme uma dupla ou um trio e escolha um trecho do livro para apresentar para o resto da turma.

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