A religação dos saberes Morin

July 16, 2019 | Author: Lucas Erichsen | Category: Universo, Estrelas, Espaço Sideral, Ciência, Tempo
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Introdução às jornadas temáticas*

Na noite de 15 de nov embro embr o de de 1997, Cla ude A llègre propô propôss- me, ao tilHone, a presidência de um “conselho científico” consagrado a fazer iugrslões para o ensino de segundo grau. Dois meses antes, o ministro nif havia concedido uma longa entrevista para o suplemento sobre edui ai.no do jornal Le Monde (Le Monde de Véducation), durante a qual eu | he MiR MiRcri cri uma refor re for ma da unive unive rs idade fr ancesa. ancesa. T al suges tão tão não de despertoii uma recusa de sua parte, mas sim uma reação de prudência: “O iii.ti-. difícil é c onseg uir uir mudar muda r as mentalidade s.” E u sabia que que o minist ro tra não apenas audacioso, mas também o promotor de uma das novas ilitn i,r, polidisciplinares que apareceram na segunda metade do século  X X («'. («'. ciê c iênc ncia iass da T e r r a).* a) .*** E m v ista is ta disso, diss o, pens pe nsee i que ele el e me es colher co lher a tm i i, ,) da K dw .n," ..i.l.  A l l ^y i í - r i i m i i i i - . l ■• .n,"lo lo (i.mcPs (i.mcPs desde a cheg ada do s ocialista ocialista L ione l | ..sj.il. ..sj.il. a . j p i i i l n r , e m I ' A l é m a im r iL ãoi ium a família, classe, sociedade, nação, história, em suma, peitai....... . ã i iéueia do caráter complex o da condição huma na . A  líiM Ía f ms üjtes mlloduzem- nos nas dimensões estéticas da ex istência lltiíüaiH! i= na hu .i , 1 da qualidade poética da vida, a filosofia abre os hori jiMiilt s (Li i fUph.1i>sobre todos os problemas fundame nt ais que o ser  jf timaiii' i olm a sr .i si mesmo. Convém, pois, reconhecer o que é o ser ptífT iBiin,1jnr' jir-i ir-m r ao im ano te mpo à natureza e à cultur a, que está IfiliMii liilo .i iip it lr i orno lodo animal, mas que é o únic o ser vivo que crê titim.i » Idsi 4l#m «Im tnnr tr r eiijn aventura histórica conduziu- nos à era pliiiit I iii.i !)ií assim ir pode olirde er r à liualidade do ensino, que é ajudm ■ =s lunu a se if i onhei ri r m mui próprisi hum anidade , s ituando a no

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mun do e assumindo- a. T udo isso deve co ntr ibuir à formação da cons ciência humanis ta e ética de pertencer à humanidade , que deve ser co m pletada pela consciência do caráter de matriz que tem a Terra para a vida e, por sua vez, daquele que tem a vida para a humanidade.  A prender a viver significa preparar os espíritos para afr ontar as incer tezas e os problemas da existência humana. O ens inamento da incerteza que caracteriza o mundo deve partir das ciências: elas mostram o caráter aleatório, acidental, até mesmo cataclísmico, às vezes, da história do cos mos (colisões de galáxias, explosões de estrelas), da história da Terra, da história da vida (marcada por duas grandes catástrofes que liquidaram grande parte das espécies) e da história humana, sucessão de guerras e destruições em razão das quais todos os impérios da Antiguidade desapa receram e, enfim, a incerteza dos tempos presentes. Os problemas da vida aparecem na literatura, na poesia, no cinema, e nessas expressões artísticas o adolescente pode reconhecer suas próprias verdades e distin g uir os conflitos e tragédias que encontrar á. O romance ou o filme serão considerados não tanto sob seus aspectos f ormais mas, antes, co mo ex pe riências existenciais que se relacionam com a própria identidade do ado lescente. A poesia dará à cultura das humanidades uma dimensão mais enriquecedora, pois ela mostra que a “ver dadeira v ida” — para retomar a expressão do poeta A rthur R imba ud — não se encontra nas necessidades utilitárias às quais ning uém pode escapar, mas sim na auto- realização e na qualidade poética da existência. A filosofia, enfim, permitirá especifi car os problemas éticos da existência humana. aprendizado da cidadania necessitará de um ensinamento, total O mente inexistente hoje, do que é uma nação. A história da França situa rá o aluno em sua condição de cidadão francês no seio de sua naçjlo, de sua cultura, de sua comunidade de destino. A aprendizagem da cidadã nia incluirá também, pelas vias da história da Kt tropa e da liistúiia da eia planetária (isto ú, os tempos modernos), a possibilidade* de* desenvolvei e‘in cada 1 1 1 n a cidadania européia e a -i h »stas devem ser construídas, pois ainda não foi realmente elaborada Mnlmma ética da aventura interplanetária.

 A T n r a , u m pla pl a ne t a e ntr nt r e out ou t r o s — A t o I N.lo podemos mais continuar pensando nessa pequena nau como filiamos. Achatada, transformada em seguida numa esfera, esfera que i t rev elou mais mais tarde achatada achatada nos pó pólos, a T erra é hoje u m objeto objeto flu fluifb, Agitada por placas em movimento e oceanos que respiram, deformáví I e deformada permanentemente, sacudida em sua rotação cuja velo■Made ve m, às às vezes, vezes, ser diminuída diminuída por um imprev imprev isível E l Nino, Nino, com a ífÍHit;ii,;io de seu eixo estabilizada devido à presença afortunada lia I »i-i ( ) solo — no s entido de “só “s ólido” — subtrai subtrai-- se lite r alme alm e nte a nos nos sipi sipi pe pe-, r v ivemos iv emos no f luido. luid o. F e liz me nte nt e , a ciênc ci ênc ia dos f luidos luido s col c oloc ocou ou • . , li tiiã tiiãã tlriH.nain ci cie sei sei tota lmente lme nte um a fatalidade. f atalidade. O es tudo desses fe uô  Ã lif li f los lo s s ubli ub linh nhaa a dif di f ic ulda ul da de e a pcr pc r c c pça pç a o diss dis s o é i n t c u a i n c n l r tiiúilnihi de apree apree nd nder er de maneira maneira racional racional o com port ame nto e a dinS dinS iiih i dr sistem sist emas as acoplados c íusláveis íusláveis em que a mtilli mt illidilo dilo de van.í  * *1* *1* tiiri tiiriiM iM sutil e í^s vezes innprccnsív innprcc nsív el o enc ade ame am e nto de causas causas r

fefiiloi Ib

he e nhie u m tema ao qual o adolescente adolescente é sensível biologicamen eu diriu e d te ma dn me io am bient e: a r sustem ia do um a

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ameaça que pesaria sobre a vida é propriamente intolerável para aqueles que logo estarão estarão na idade idade de tr ans mitir a v ida. ida. A preciosa e a indis indis pensá vel visão planetária que nos dão os satélites fazem dos problemas do meio ambiente, definitivamente, um desafio planetário, da mesma forma que para outros mitos nascidos da ciência um julgamento crítico a respeito deles é fundamental e sem isso estaríamos sujeitos a graves derivas. Ora, é bastante difícil fazer com que este julgamento seja bem fundamentado, pois trata daquilo que é incerto. Será possível propor um projeto educativo para algo que é incerto? Os participantes devem lembrar-se do testemunho dos astronautas de uma das primeiras missões da  A poio, poio , quando, pela primeira vez em órbita em volta da Lua, perderam completamente o contato com a T erra, no mom ent o e m que s ua rev oluçã oluçãoo arrasto arrastou u- os em direção direção à face oculta de nosso satélite: um instante de obscuro pânico tomou conta deles diante desta ruptura com o elo materno. Isso demonstra o quanto a consciência humana é ligada à Terra e, portanto, o quanto qualquer mudança na imag em de nosso nosso planeta planeta pode nos afetar. afetar. A geografia deve escrever novos capítulos, nos quais a psicologia não deveria mais, talvez, estar ausente!

 A T e r r a, um pla pl a ne t a e ntr nt r e outr ou tr o s — A t o I I  A div er s idade ida de pla pl a ne t ária ár ia no seio se io do s iste is tema ma s olar f oi r èv elada el ada pelas pela s grandes missões exploradoras das décadas passadas (Pioneer, (Pioneer, Voyager e muitas outras). A Terra perdeu então de certa forma sua singularidade absoluta para ganhar uma outra, mais relativa, porque resultante da comparação, e mais mais fe cunda, pela pela mes ma razão. razão. Este ex ercício, ercício, que f az de Mar te ou T itão itão primos de nosso nosso planeta planeta e que confr onta a his his tória tória da Terra e a da vida sobre ela à gênese do sistema solar como um todo, só produziu, até agora, seus primeiros frutos. Mas um abalo em nossas representações é evidente de agora em diante.  A esse ess e pr ime im e ir o c hoqu ho quee v e m juntar- se a inda in da u m s e g undo und o que qu e a pa rentemente terá outra amplitude quando sua exteiisáo tiver sido total

O Mundo

mente avaliada. Trata-se da descoberta, certa desde 1995, da existência de planetas em volta de estrelas muito próximas — a algumas dezenas de anosanos- luz. luz. Me s mo limitan limitanddo- se ainda à observ observ ação ação de de enormes pla ne tas comparáveis a Júpiter e mesmo que a esperança de detectar novas “Terras” não possa se concretizar antes de alguns anos, o passo foi dado, e essa essa descoberta descoberta abre abre um imenso c apítulo apítulo de inves inves tigação. tigação. A hipó ipótes e milenar, formulada primeiramente por Epicuro, de que podem existir outros lugares e m que a v ida é possível, ve m jun juntar- se hoje hoje a poss poss ibilida ibilida de, ainda ainda fraca — é preci preciso so dizer — , de um a v erificaçã erificação. o. O século século X X foi o da descoberta da expansão do universo, e deste mergulho nas profun dezas do tempo e do espaço nasceu a cosmologia moderna. Será o sé culo X X I o da da descoberta descoberta de de outras outras “T erras ” portadoras de v ida, ida, e de de que forma de vida? T am bém para isso é preciso prepara r o adolescente, sob o risco da da criação de de mitos. PreparáPrepará- lo para a s util percepção per cepção do do luga r do home hom e m no universo, lugar tão grande e tão humilde, tal como Pascal, sem dúvi da melhor do que ninguém, soube explicar.

Uina história de mestiçagem Se existe uma construção de saberes tecida a partir de contribuições univer univer sais e enrique e nrique cida pelas pelas mais diversas culturas , só pode ser a co const n ição de nossas representações do espaço, do tempo e dos objetos que povoam o cosmos. Longe de figurar uma progressão linear que seria resultante da supremacia desta ou daquela visão de mundo, nossa visão moderna apóia-se, de fato, sobre tradições múltiplas e complementares. Podemos tirar diversas diversas lições lições dessa constataçã constata ção. o. A prime ira ir a é que a poderosa visão da cosmologia moderna, a exploração racional do sistema snlai atualmente em curso e a cartografia detalhada do universo próxi mo ou longínquo s;lo prodigiosos resultados — ainda provisórios, sem dúvv ida dú adquiridos adquiridos no de decorrei correi de uma longa longa ac umulação por gera gera-çõí*. m i 0 de confusões, às quais está exposto o adolescente devido a sua sensilulidadc extrema, sua necessidade imperiosa de encontrar um sentido r sim lacionalidade ainda mal estabelecida. Cite mos a inda a ausência de uma dislinçílo clara entre as transformações cósmicas das quais fala a t Sfni ia e a noçHo de criação ou apar ecimento a par tir do não- ser, que é dr ordem religiosa ou metafísica, e que é exprimida ou interpretada de Iniiii.r. ilileieiite s pelas grandes t radições espirituais da humanida de. Num iegc.Uo completamente diferente, citemos ainda as crenças  VajM ■ pir luuila m r iil.im a n e dulida de astrológ ica e que se a póia m com

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freqüência sobre uma mistura de necessidades psicológicas fortes e noções científicas mal digeridas. Or a, estas últimas , fundamentando- se sobre as ações a distância ev idenciadas pela física nu ma escala cósmica , diluem num holismo simplista a liberdade individual do homem, sua grandeza e também sua servidão.  A limentar o imag inár io do adolesce nte , tão pr ope ns o a ex citar- se, tão f am into de símbolos que es timulem sua criat ividade, sem saturá- lo com ilusões adulteradas, eis uma tarefa urgente para o pedagogo de hoje.

Complexidade Os propósitos contidos nestas linhas nasceram de uma constatação: a irrupção maciça da complexidade no desenvolvimento das ciências. Que outro assunto, a não ser o universo inteiro, apreendido modesta mente pela ciência, poderia ilustrar melhor essa evolução? Devemos entretanto ser prudentes. Desde Aristóteles e seus quatro elementos, desde a separação dos luminares da noite entre estrelas e planetas, desde a entrada em cena das galáxias, todo nosso conhecimento do cosmos esforça-se por distinguir, discernir, desfazer o emaranhado de informa ções múltiplas, por classificar e reduzir o múltiplo abundante ao mais simples inteligível. A bstenhamo- nos, pois, de ir rápido demais e de dese nhar apress adamente quadros que, por serem ex tre mamente s intéticos, não pass ariam de caricaturas. V er , observ ar, medir, estabelecer modelos, medir ainda, estabelecer novamente modelos são procedimentos claros que podem, à medida de nossas capacidades, organizar um pouco a pro fusão do real. Somente depois disso é que um alargamento do campo de visão permitirá compreender de outra forma e mais profundamente.  A ssim, considerar a T er ra como um planeta entr e outros dá provas de um olhar diferente.  A aprendizagem da complex idade é rude, pois, par a o adole sce nte , apenas o simples é inteligível inicialmente. Advcrti- lo contra as simplifi cações abusivas é desejável. Fazer com que perceba o quanto o k m I teríamos descoberto a estrutura do D N A , suporte da hereditariedade. Nno vamos esquecer também que sem os supercondutores e sem a teoii.i do magnestismo não.existiria em nossos hospitais a imagística resul tante da ressonância magnética nuclear (os “scanners IRM”). Notemos, finalmente, que nosso conhecimento sobre o efeito das radiações ioni/uutcN sobre as matérias ou tecidos biológicos ainda é insuficiente; por ex emplo, definir rig orosamente o que é um limite de ra dioativ idade tolei i' 1 1continua sendo um problema delicado e isso explica por que alguns Kiupos antinucleares sempre encontram a possibilidade de • ntrejíni .1 manipulações demagógicas da opinião pública. Por outro lado, o mrinilo de dalaeílo poi meio do carbono 14 já demonstrou mais «| tlr iiilii ir ut r m r nt r Mlíl IIIipoltrtlK ia paia a história.

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 A matér ia em mov imento

T udo o que se encontra na fronteira entre a física e a matemática, entre a mecânica dos sólidos e a dos fluidos ou a dos meios granulares, bem como o estudo das instabilidades e o dos fenômenos não lineares são campos em plena evolução. Os progressos feitos já permitiram, por exemplo, à meteorologia e à climatologia a aquisição de um rigor quan titativ o inex istente no século X IX . A física não linear e a das instabilida des são essenciais, não somente para o controle de inúmeros procedi mentos industriais (hidráulica, combustão, aeronáutica...), mas também para a compreensão de vários problemas da medicina.

 A “hipótese atômica ” Parece- me, enfim, interessante notar que o final do século X X pre senciou um desenvolvimento considerável das técnicas de observação e de manipulação dos átomos (ou moléculas) um a um, graças, por um lado, à invenção do microscópio de efeito de túnel e de seus derivados e, de outro, graças aos progressos da ótica quântica. Não se podia nem sonhar a confirmação tão surpreendente daquilo que continuamos a chamar, por excesso de prudência, de hipótese atômica. A via está agora aberta ao estudo e à utilização de objetos físicos de tamanho muito reduzido, construídos átomo por átomo, e também ao estudo das pro priedades da matéria biológica na escala da molécula, este último um campo em plena revolução há alguns poucos anos.

 A lg un s pr o ble m a s e a lg uns de bate s Interdisciplinaridade, complex idade, auto- organização, o todo e as partes, o irracional

Por ocasião deste colóquio, fazendo eco a alguns textos que Edgar Mo r in quis colocar à nossa disposição, julguei útil tecer alg uns conientá-

O Mundo

rios sobre certas palavras cujo uso parece- me às vezes um tanto abusivo, e chama r ass im a atenção dos não- especialistas contr a o empre g o às vezes inadequado de um certo número de noções cujo conteúdo nem sempre é tão preciso quanto seria de desejar. Por exemplo: — Interdisciplinarídade: ela é às vezes uma virtude, mas não creio que seja uma necessidade, nem para fazer progredir o conhecimento, nem para fazer com que ele seja compreendido ou ensinado. As discipli nas não progridem unicamente por meio de contatos exteriores a seu campo tradicional, mas, antes, elas têm uma necessidade permanente de apro fundamento interno. — Complexidade: não creio que haja unidade ou universalidade entre os diferentes problemas complexos, a fortiori, de uma teoria da complexidade. Por meio desta palavra, agrupa-se certo número de pro blemas para os quais ainda não foi encontrada uma solução rigorosa. IJm problema “complexo” comporta geralmente diversos parâmetros, mas não necessariamente. Não se trata tampouco, obrigatoriamente, de um problema interdisciplinar. Quando nos confrontamos com um des ses problemas difíceis de resolver, tentamos lançar mão da intuição ou (lida como um sistema complex o que se auto- org anizou a partir de líti Bios, enquanto que a biologia continua fragmentada em disciplinas limentadas. Além do mais, há uma polêmica não encerrada em ■ f i o ,l interpretação genética de toda org anização viva e à parte de Hfonumia "epigenética” própria aos indivíduos, especialmente os ■üimiio- , T alv ez sejam os problemas que desper tam discussões e conp t o i i iitn os biólogos que mere çam destaque. Da í a impor tância da dc I ícuri Atlan, no decorrer dessa jornada. ( u n i u i indii ido por Jean Ga y on, é a teoria da ev olução que pf is tíiui D nó gónlio dc todos os problemas da biologia, e isso incita a li;" Um ú tnalüt ii 1 1 | i1 1,itii 1. 1 pedagógica. .1

.1

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DNA: programa ou dados ? 1 Henri Atlan



í . Limites da metáfora do programa genético  A noção de programa genético é a metáfora mais conhecida e mais fecunda da biologia atual. Ela serve para representar os mecanismos pelos quais a estrutura dos genes determina o desenvolvimento do indi v í d u o e o aparecimento de caracteres normais ou patológicos das estru turas e nas funções do organismo. Mas isso não passa de uma metáfora ijlie permite dar nome a um conjunto de mecanismos que são ainda ffiuito mal conhecidos. Kssa metáfora, tomada literalmente e levada a seu extremo, desem p e n h o u um papel importante no lançamento do projeto chamado de fjffíofflci humano, fazendo com que se acreditasse que a decifração de Um tmoma, à maneira de um livro contendo instruções de um longo prngiania, permitiria decifrar e compreender toda a natureza humana §y, no mínimo, o essencial dos mecanismos de ocorrência das doenças. | ín suma, a lisiopatologia poderia ser re duzida à ge nética, já que toda

ffcssp tçniu l,n | )uhli( lido n u BulUiin of lhe Kuropean Society for the Philosophy of  m m m ..... I H e a l t h < ' i t v , vol M - i i : Ih ê anil PhllBstipliy, I W l

í, 1995,

s /m y m

I imie

C D - R O M , F ir s t W o r l d C on g r es s

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EDGAR MORIN

doença seria reduzida a um ou diversos erros de programação, isto é, à alteração de um ou de diversos genes. Gostaria de teniar mostrar os limites dessa metáfora, bem como os perigos de sua utilização literal e, ao mesmo tempo, a fim de focalizar um jogo de interações mais sutil com o genético, sugerir uma metáfora alternativa com o objetivo de deslocar o centro de interesse dessa postu ra que explica tudo pela genética. Chegaremos a uma conclusão que é paradoxal apenas na aparência, segundo a qual o genético não está no gene. Como as outras metáforas informáticas existentes em biologia, especialmente a do cérebro como computador, a metáfora do programa genético peca pelo fato de que a questão das significações da informa ção g eralmente não é colocada. T omou- se o hábito de neg ligenciar esse problema na informática e nas ciências da programática, considerando que ele sempre é resolvido implicitamente, simplesmente pelo fato de a fonte das significações ser os indivíduos humanos que emitem e rece bem uma mensagem ou os que escrevem um programa e fazem com que o mesmo seja executado. O importante é transmitir a mensag em corretamente ou fazer com que o programa seja executado, sem preocupar- se c om a s ignificação da mensagem ou do programa, pois essa significação já está sempre lá, pro duzida pelo emissor da mensagem ou pelo programador. Portantoj não 6 de fato necessário ex plicitar a sig nificação, ne m a fonte dessa significação quando se está ocupado com a formalização do tratamento da informa ção nos prog ramas de computador . O sig nificado desses progr amas é evi dente: é o objetivo especial pelo qual foram escritos pelos autores huma nos intencionais que constituem a fonte dessa significação. Essa atitudr é justificada no caso dos programas clássicos de computador, sempre escritos com um objetivo especial, com vistas a realizar uma tarefa expli citamente definida, Mas ela não mais se justifica e portanto não se pod' mais ignorar a questão da fonte, quando se trata de máquinas iiatui.ii*> fabricadas pela evolução sem objetivo evidente e sem projeto expln ilo, seja somente pelo efeito da seleção natural, seja mesmo na iiin.Hicia dr tal efeito, como por exemplo nos casos tia evolução não ndaplaliva.

 A \ ida

 A idéia de um prog rama escrito nos genes sob a f orma de seqüências nucleicas dos D N A prov ém es quematicamente das observações s eguin tes e de sua utilização implícita num raciocínio falacioso: 1) O D N A é uma escrita quaternária fac ilmente r edutível a uma seqüência binária. 2) T odo prog rama de computador seqüencial determinista é re dutí vel a uma seqüência binária. 3) Portanto: as determinações genéticas produzidas pela estrutura dos D N A funcio nam à maneira de um progr ama seqüencial escrito nos DN A dos genes. O caráter falacioso implícito nesse raciocínio é ev iden temente a recíproca do item 2, a saber: “totja seqüência binária é um I irograma.” Mas, uma vez reconhecido tal ardil, devemos nos perguntar quais são as outras possibilidades para uma seqüência binária, além i iaquela de um progr ama. Uma primeira possibilidade seria que se trata de uma seqüência íilratória. Se se entende por isso uma seqüência sem significação, a aceiI.u.no seria difícil, pois teríamos dificuldade em compreender como tais irqüências poderiam deter minar as f unções biológicas que constituem, na metáfora informática, a significação da informação genética. Mas existe uma outra possibilidade que vamos examinar agora: a de qur a seqüência binária não seja nem prog rama, nem aleatória e sim que i «ii istitua um co njunto de dados. A fim de considerar essa poss ibilidade, f  pieciso, antes, justificar a distinção programa/dados que, devido a ti ido o esforço feito pela informática teórica, foi suprimida. Será preciin, cm seguida, estipular por que tipo de programa tais dados seriam hitndos.

Í ! ’n>Ki;ima e dados: complex idade com significação  A distinção entre prog rama e dados parece evidente: um prog rama ijp tntilliplií açílo ou dr divisão, por exemplo, multiplica ou divide númefos 1 1 1 1 f lhe „io loi uccidos , () programa opera sobre os dados e trata-os. I iiii itirsmn pinguuna fni.í  sempre i nu mia opmiçno, que lerá sempre

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a mesma estrutura, ainda que utilizando dados diferentes. Mas ocorre que essa distinção, bastante intuitiva, foi apagada em informática pela teoria dos programas e sua complexidade. Sabe-se de fato que no âmbito das máquinas universais de T uring uma seqüência binária pode ser indiferentemente tratada como progra ma ou como dados. A máquina de Turing lê a seqüência e a interpreta como uma descrição binária de um objeto a ser fabricado ou de uma tarefa a ser realizada, na qual as partes programa e dados são indiscerníveis e intercambiáveis. Mas esse estado de coisas resulta do fato de que a teoria se ocupa de artefatos — objetos ou máquinas funcionais, cuja significação só é implícita sob a forma do objetivo ou da tarefa encomendada pelo pro gramador, e ela jamais é levada em conta explicitamente pela teoria. É precisamente por isso que, de maneira aparentemente paradoxal, a complexidade algorítmica máxima é realizada por uma seqüência alea tória. O que parece ser um defeito da teoria não é realmente um, qua n do se trata de artefatos, isto é, de algoritmos dos quais é sabido que pos suem uma significação, aquela que o programador lhes atribuiu sob a forma de uma tarefa a ser cumprida.  A o contrário, contentar- se com uma me dida de complex idade sem significação é uma insuficiência da teoria quando se trata de descrição de objetos naturais, que observamos sem pressupor a finalidade para a qual eles teriam sido formados. É preciso levar em conta o conteúdo semântico mais ou menos importante desses objetos, a ser definido de forma tal que uma seqüência que não fosse aleatória devesse ter unu complex idade portadora de sig nificação nula. E para f ormalizar uma tal complexidade portadora de significação, é preciso reter e explicar a dis tinção entre as partes programa e dados de uma descrição. É a parte pro grama que explicita uma fonte de significações. É ela que define iiiti.i classe de objetos que compartilham uma mesma estrutura. Ao conli.í  rio, os dados especificam um objeto particular nessa classe. Um exemplo simples permite fixar essas idéias. Suponhamos uni obje to des crito pela s eqüência se g uinte: 001 I()()()()()()I 1001 I I --* seqüência 6 produzida dobrando- se cada digito da s r qüf m i.i 01000101

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Distingue- se, por tanto, c om f acilidade uma parte programa, que consis te em dobrar cada dígito em qualquer seqüência, e uma parte dados, que é a seqüência sobre a qual o programa de dobrar é aplicado. O programa define uma classe infinita de objetos que compartilham, todos, a estru tura em dígitos dobrados. Os dados especificam nessa classe um objeto especial.  A de finiç ão clássica da complex idade alg orítmic a de um objeto pode assim ser modificada de forma a levar em conta uma medida de (omplexidade com significação, o que, juntamente com meu colega Koppel, chamamos de sofisticação. Lembremos que a complexidade algorítmica clássica de um objeto descrito por uma seqüência S é o comprimento H (S) de uma descrição mínima, feita de um programa e de dados, de tal maneira que essa des« rição colocada sob a forma de dados num a máquina de T uring é sufieicnte para gerar S. H (S) = m in /P /+ /D /, sendo que (P, D) geram S s endo colocados numa máquina de T uring. A descrição mínima (P, D) contém uma parte programa P e uma parte dados D, de comprimentos respectivos /P / e /I)/, mas o importante é o comprimento mínimo total sem que seja Heccssário disting uir de f orma absoluta e invar iante, seg uindo a m áqui na de T uring, entre a quilo que é progr ama e aquilo que são dados. Sem entrar em detalhes técnicos, definimos a sofisticação como o Õnic o comprimento da parte programa da descrição mínima. Uma das i mr.iíqüências dessa def inição corrige o defeito da teoria, em relação ao M o de que uma long a s eqüência aleatória que te m class icamente uma § 1 atuir complexidade algorítmica tem, entretanto, uma sofisticação fjiiíi .r nula. De f ato, para reproduzi- la tal qual, sua descrição mínim a ■fMitriu uma parte programa que se reduz à instr ução P R INT e uma l>iti' dados, que não passa da própria seqüência. A qui não é o momentn dr enlim em detalhes já expostos em outra ocasião e que permitem Uitw grnei .ilização dessa distinção, como: a separação entre programa e dsid.*=((0 1 1 1 , 1 medida da sofisticação que decorre dela), seja ela tão invatiiüdr .. ...... . I.k.io .1 m.iqiim.ide T uiing considerada, quantoéinv ar ian.



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te a medida clássica de complex idade algor ítmica, isto é, inva riante mais ou menos numa constância aditiva.

3. DNA : programa ou dados? Será suficiente notar aqui que essa distinção permite colocar o pro blema do papel da se qüência nucleica dos D N A nas dete rminações genéticas sob a forma de uma alternativa entre uma função de programa e uma função de dados. Essa alternativa permite então questionar o papel da maquinaria celular sempre associada aos D N A na produção de tais determinações . Se os D N A são um progr ama, essa maquinar ia celular des empenha o papel de programa tratando dados. Trata-se aí, é claro, de duas metáfo ras complementares cujos méritos respectivos para explicar as coisas foram discutidos em outro momento.  A lé m de seus mér itos próprios , a segunda me táf or a, “D N A comu dados”, tem a vantagem de provocar a discussão e de questionar a pu meira me táfora, clássica, do “D N A como prog rama”. Pois é claro que a noção clássica de programa genético teve em seu tempo um valor heu rístico e operacional inegável. Mas, como ocorre com freqüência, essa noção, utilizada de maneira não crítica, com o esquecimento de que 8# trata de uma metáfor a empreg ada para designar mecanismos descoiihr cidos, e não o conhecimento explícito de mecanismos bem identiln a dos, pode tornar- se um empecilho e impedir o progres so da pesqUn» científica sobre tais mecanismos. É nesse sentido que uma metáfora alternativa pode ser útil. Nessa qiir propomos, as determinações genéticas que res ultam da estrutura sci| ürn ciai dos D N A funcionam, portanto, não como um programa, mas t«si leiro). (N.T .)

 A  V ida

populações, biogeografia), mas sempre de maneira implícita. Eu só fui me iniciar em biologia evolutiva contemporânea quando passei para o terceiro ciclo especializado do ensino universitário,* freqüentado somente por quatro estudantes, entre os quais dois eram estrangeiros. Foi, entretanto, uma iluminação para mim, e ela seria confirmada por minhas estadas em outros países nos quais a evolução era evidentemen te uma das dimensões fundamentais das ciências biológicas. Por que pri var de tal iluminação os alunos e universitários franceses? O te s te munho pessoal que acabo de dar mereceria, sem dúv ida, certa minimização. Alguns colegas biólogos abordam a teoria da evolu Vão em suas ativ idades de ensino, no seg undo grau e nos primeir os anos universitários. Entretanto, a coisa permanece rara e muito dependente de iniciativas locais. Os bons livros de iniciação sobre os quais os prof es sores poder iam se apoiar são pouco numerosos ; a literatura de vulgarizaçflo é com f re qüência terr ivelmente medíocre. T udo se passa como se o iispecto mais teórico das ciências biológicas devesse permanecer margi nal e devesse ser considerado como objeto de desconfiança em meio às matérias inicialme nte ensinadas. Entretanto, a teoria da evolução é, sem dúvida, a mais unificadora df* todas as teorias biológicas. E interessante fazer um paralelo com a bioquímica e a biologia molecular. Há cerca de meio século, elas de monstra ram a ex traordinária unidade material do mundo da vida. T odos es seres vivos têm em comum um pequeno número de tipos macromoIfcülares , de meta bolites* * e de processos. A té mes mo os v írus c ompar tilham com os autênticos seres vivos suas propriedades elementares de i nmposição e de funcionamento (mais exatamente, eles são compostos  j)i ii elementos análog os às células vivas, mas funcionam apenas depois tlr Introduzidos nessas células). Kssa unificação material do mundo da vida é sem precedentes na histuua Ela vai muito a lém da unificação que fora intr oduzida no s éculo

»Ç«wr>,| MHwlr»itf*, g ins*) iiiodo, A etapa do doutorado brasileiro. (N. T .) !* I ml.i Milniatii w niK.lni< ;i«| iir participa dos processos de metabolis mo ou que é forma da tin iitg miiMiin dmaiilf- as Ii.ii i’,tii i iiuiçOcs mdabólicas. (N. T.)

 A R E L IG A Ç Ã O D O S S A B E R E S







E D G A R M O R IN

 X IX pela teoria celular, pois realça a unidade e a or ig inalidade da vida em relação à matéria que a compõe. Entretanto, tal unificação material não pode ser suficiente. E preciso compreender a diversidade das coisas da vida em todos os níveis de sua organização, a complexidade das inte rações, entre elas e com o meio físico, e a própria origem das estruturas moleculares que testemunham, hoje, sobre a incrível unidade do mundo vivo. Esse já é o objeto da teoria da evolução. Essa é uma teoria histórica. Ela não pode ser ensinada como certas teorias físicas nas quais alguns princípios permitem inúmeras e magnífi cas deduções, nem como a teoria química, na qual o conhecimento de alguns elementos e de suas propriedades reativas permite explicar a estr utura e o compor tame nto dos corpos que são feitos com os mesmos. Teoria histórica, a teoria da evolução tem uma fraca capacidade de pre visão de fatos, mas uma imensa ambição explicativa: é com ela que a diversidade da vida pode tornar-se inteligível. Não se pode colocar uma teoria como essa no ponto de partida do ensino da biologia. Ela pressupõe de fato um grande número de conhe cimentos parciais, por ex emplo, em g enética, em ecologia, em paleonto logia, mas oferece, em compensação, uma elucidação coerente do coi i  junto das disciplinas biológicas . A teoria da evolução também não pos sui muitas aplicações práticas, mas ela está provavelmente destinada .1 ter cada v ez mais, no f uturo; posso apostar que no século X X I serão gas tos bilhões para compreender como evolui este tesouro que constitui .1 biodiversidade — especialmente nos países tropicais. Seja como for, a evolução continua sendo atualmente uma discipli na fundamentalmente teórica, no sentido mais belo e antigo do termo; um objeto que suscita uma curiosidade intelectual tão popular quanto universal. Isso é 0 que faz com que esse objeto seja impor tante, caso n.ln se queira que o ensino da biologia seja reduzido a um conjunto de 1 i i .irompa nhada de mov imentos incontr olados . Foi nessa enferMlliidr que se descobriu a primeira anomalia cromossômica presente In u ii i H ii a/ K pre preciso ciso saber s aber que, que , no início, os desaf desaf ios dos dos pe pe s quisado quis ado ras são geralmente diferentes dos desafios dos tecnocratas, dos responMvi i . g ove rnamentais, dos dos polí políticos e da da mídia! E aí que que a educação e a pHHHi,no íMitiam
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