Texto para consulta sobre o "poder disciplinar", conceito desenvolvido por Foucault....
A questão do poder disciplinar em Foucault. Para entender a história... ISSN 2179-4111. Ano 2, Volume mai., Série 17/05, 2011, p.01-06.
O presente trabalho pretende fazer uma breve análise sobre a teoria do poder disciplinar presente no livro “Vigiar e Punir” de Michel Foucault. O filósofo francês nos trás de forma polêmica e inovadora o nascimento de uma nova forma de poder coercitivo que fora o poder disciplinar que surgiu no Ocidente no século XVIII. De acordo com a teoria de Foucault, esta forma de poder nasce a partir de uma nova concepção da sociedade com a queda do chamado poder soberano predominante nos regimes absolutistas da Europa. A nova sociedade, filha das revoluções liberais, governada pela ideologia burguesa, vê o poder disciplinar como a forma mais cabível e eficaz de garantir a ordem, substituindo os suplícios e espetáculos de execução pública. A teoria de Foucault sobre o poder. A proposta filosófica de Michel Foucault é com certeza revolucionária e original, tendo como objeto de estudo o poder e suas formas de manifestação. Este filósofo de nosso tempo concebe o poder não de maneira vertical ou mesmo maniqueísta em uma dialética entre “opressores” ou aqueles que exercem o poder e “oprimidos” aqueles que sofrem com a coerção do mesmo. A polêmica teoria sobre o poder proposta por Foucault torna-se original, pois para o filósofo, não existe uma teoria geral ou mesmo axiomática do poder, suas análises não o consideram a realidade com característica universal. De acordo com Roberto Machado, para Foucault não existe algo unitário ou global que chamamos de poder, mas sim, formas díspares, heterogêneas em constante transformação, o poder é uma prática social e, como tal, constituída historicamente, logo, as práticas ou manifestações de poder variam em cada época ou sociedade. Para Foucalt toda teoria é provisória, acidental e dependente do estado de desenvolvimento da pesquisa, aceitando seus limites. Poderíamos entender que as teorias propostas anteriormente sobre o exercício do poder não são falsas ou errôneas, mas deram conta de explicar a sociedade de seu tempo. O próprio filósofo aceita que suas teorias também são provisórias e possíveis de serem refutadas ou mesmo derrubadas. Segundo Foucault, o poder não emana unicamente do sujeito, mas de uma rede de relações de poder que formam o sujeito, dentre outros elementos, tal como o discurso, a arquitetura ou mesmo a própria arte. O poder é concebido como uma rede, não nasce por si só, mas de relações sociais. Outro aspecto inovador da teoria de Foucault é observar este mesmo poder como algo muitas vezes positivo, inerente a natureza humana, manifestado em pequenas coisas, através de pequenos dispositivos. Em seu livro “Vigiar e Punir”, que trata sobre o nascimento da prisão e outras instituições disciplinares, o filósofo discorre de forma minuciosa e instigante sobre a questão do poder disciplinar. Na terceira parte de sua obra, Foucault explica que a partir dos séculos XVII e XVIII o poder foi exercido através de dispositivos disciplinares, o Estado ou mesmo a sociedade se utilizou do corpo, da vigilância e do adestramento para garantir a obediência e disciplinar os indivíduos.
O desaparecimento dos suplícios e a disciplina sobre o corpo. Foucault analisa e discute uma profunda metamorfose quanto à forma de punição e condenação dos presos e criminosos na Europa. Anteriormente, o espetáculo de execução publica de condenados a morte era utilizado como instrumentos disciplinar. A execução em praça pública, desde a Idade Média, com os Atos de Fé da Inquisição, gerava nos expectadores não somente o terror, mas também o medo de cometer algum tipo de crime contra a fé. Tais formas de punição estão estreitamente ligadas ao chamado poder de soberania que consiste no exercício do poder de um governante sobre um território. Modelo comum aos déspotas e monarcas da Europa entre os séculos XV a XVIII. O poder era, portanto, exercido e representado através dos suplícios, da força e da violência. Aos poucos, esta forma de condenação desapareceu cedendo espaço a uma nova forma de punição. Uma nova concepção filosófica, a partir do iluminismo e das revoluções liberais, bem como as novas teorias sobre o direito, fizeram a morte em público começar despertar terror e repúdio na população. O que levou a novas formas de condenação, o espetáculo da execução passou a ser condenado pela grande parte da sociedade. O novo modelo disciplinar de punição do criminoso consistia em não tocar ou aproximar-se do corpo do individuo. Obviamente, algumas práticas ainda persistiram como o uso do chicote ou do cassetete. A condenação dos indivíduos passou a se dar de forma mais velada e sutil. A violência não foi assumida como carro chefe da justiça, porém utilizada em último caso de forma decorosa e indesejável. O poder de soberania cedeu espaço ao chamado poder disciplinar. Discorrendo sobre a questão do poder disciplinar, Foucault identificou o corpo como objeto e alvo de poder. Citou o exemplo do soldado que reflete sua disciplina através de sua postura e do próprio corpo, como percebemos no fragmento abaixo: O poder sobre o corpo, por outro lado, tampouco deixou de existir totalmente ate meados do século XIX. Sem dúvida, a pena não mais se centralizava no suplicio como técnica de sofrimento; tomou como objeto a perda de um bem ou de um direito. Porem castigos como trabalhos forçados ou prisão - privação pura e simples da liberdade – nunca funcionaram sem certos complementos punitivos referentes ao corpo: redução alimentar, privação sexual, expiação física, masmorra. Conseqüências não tencionadas mas inevitáveis da própria prisão? Na realidade, a prisão, nos seus dispositivos mais explícitos, sempre aplicou certas medidas de sofrimento físico. A critica ao sistema penitenciário, na primeira metade do século XIX (a prisão não e bastante punitiva: em suma, os detentos tem menos fome, menos frio e privações que muitos pobres ou operários), indica um postulado que jamais foi efetivamente levantado: e justo que o condenado sofra mais que os outros homens? A pena se dissocia totalmente de um complemento de dor física. Que seria então um castigo incorporai? Permanece, por conseguinte, um fundo "suplicante" nos modernos mecanismos da justiça criminal - fundo que não esta inteiramente sob controle, mas envolvido, cada vez mais amplamente, por uma penalidade do incorporal. (FOUCAULT, 2004, p.18)
Nos perguntemos qual seria o objetivo de se disciplinar o corpo? Foucault responde ao tratar dos chamados corpos dóceis. A disciplina sobre o corpo tem por finalidade produzir indivíduos dóceis e submissos a determinados sistemas, ao mesmo tempo, estes devem oferecer uma mão-de-obra de qualidade que ajude o desenvolvimento econômico da sociedade. A disciplina tem seu aspecto político ao produzir indivíduos submissos ao poder do Estado, garantindo o “equilíbrio” e a “ordem”. O poder e a disciplina sobre o corpo possibilitam o funcionamento de instituições e grupos sociais. Desta forma, Foucault nos mostra que o corpo passa a ser considerado um objeto possível do controle disciplinar. A nova organização política e social, exige também novas formas de disciplina. A experiência decorrente dos movimentos de revolução ocorridos na Europa, demonstrou que o exercício do poder através da violência se tornou ineficaz. O controle sobre o corpo e sobre o modo de vida dos indivíduos, de forma sutil, evitava possíveis levantes e protestos, mostrando-se mais eficiente. A organização do espaço Outro aspecto do poder disciplinar se relaciona também com o espaço através das disposições e organizações do mesmo. Através da disposição dos objetos e estrutura dos prédios, o poder disciplinar é exercido através da observação vigilante e a sensação de estar sempre sob a presença do poder maior coercitivo. A prisão não mais será um ambiente escuro e sombrio, mas sim um espaço iluminado que possibilite a vigilância da vida e das atitudes dos detentos. Um simples olhar ou mesmo a vigilância sobre os presos garantem a disciplina e a submissão dos indivíduos. O novo modelo de construção utilizado nas prisões acabou servindo para outras instituições que pretendiam obter a disciplina e obediência como foi o caso das fábricas, a começar pela Inglaterra no século XVIII estendendo-se pela Europa no século XIX. De acordo com Michele Perrot, o espaço de produção era organizado de forma circular, no centro situava-se, geralmente, as peças ou a matéria prima para a confecção de produtos. Desta forma, o indivíduo que tivesse a responsabilidade de cuidar do andamento da produção poderia ver todos os operários a sua volta, evitando possíveis furtos ou indisciplina. A dinâmica do novo modelo de organização espacial, como já fora dito, foi estendida outras instituições e espaços, como escolas, hospitais, dentre outros. Os espaços fechados eram, ao mesmo tempo, arejados e amplos, permitindo a vigilância dos diversos indivíduos ali presentes. O nascimento de uma nova sociedade, a partir dos ideais iluministas e das revoluções burguesas, a privação da liberdade que se tornara tão preciosa a sociedade contemporânea, tornou-se uma forma de punição mais incisiva, substituindo os suplícios, uma vez que os direitos do homem e do cidadão passam a ser centrais na organização social. A detenção em prisões priva o indivíduo da liberdade e de seus direitos colocandoo a margem da sociedade. A punição, novamente, se daria sem o recurso da violência contra o corpo.
O controle do tempo Assim como o espaço será determinante para a formação de uma sociedade disciplinar, outro aspecto analisado por Foucault será a nova concepção de tempo bem como a sua organização. A nova sociedade regida pelo poder disciplinar utiliza-se do tempo como um de seus mecanismos de controle. A começar novamente pelo exemplo dos presídios, em um modo de vida quase monástico, todas as horas do dia dos detentos são preenchidas com diversas atividades como refeições e trabalho. Oração com horários bem delimitados e previamente determinados. Tais horários são anunciadas por algum tipo de sinal sonoro, desta forma os indivíduos voltam suas mentes para as atividades impostas pela instituição da qual estão ligados. O controle de todas as horas do dia, enquanto dispositivo do poder disciplinar, evitava qualquer tipo de organização ou mesmo de um pensamento rebelde. Uma vez que o foco eram as tarefas a serem realizadas. A possibilidade de uma ação de resistência deste modo é coibida, da mesma forma, os indivíduos que estiverem em tal situação estavam sob constante vigilância, o que inibia levantes. A vigilância por seu turno é acompanhada de rigorosas punições, o que exerce o medo sobre o indivíduo, na maioria das vezes sem o apelo da violência, utilizandose de outras formas de castigo, como a chamada solitária. Isolando o indivíduo dos outros, além da diminuição da alimentação ou da atividade sexual, o indivíduo é conduzido a momentos de forte pressão psicológica. A prisão nada mais é do que um local de privações, a perda da liberdade e do direito de ir e vir tornam-se agora os maiores receios da sociedade. Concluindo. A partir das teorias sobre o poder disciplinar de Foucault, percebemos como o exercício deste poder se deu através de diversos dispositivos e elementos que elencamos. Primeiramente, o poder sobre o corpo representou o controle sobre o indivíduos e suas necessidades biológicas. Uma vez adestrado, este será útil e submisso ao sistema que se impõe, contribuindo para o equilíbrio e a ordem. O aspecto da construção se mostrou como forma de punição eficaz através da privação dos direitos de liberdade, bem como o ir e vir, excluindo o sujeito de um determinado grupo social. Estendendo-se para outros espaços que não necessariamente pretendem punir, esta forma de poder também se manifesta através da vigilância e eminência de formas de punição que castigam o corpo não de forma física, mas psicológica e biológica. Por fim, o controle do tempo garante a disciplina dos indivíduos e seu adestramento, evitando atitudes de rebeldia. Tais dispositivos essenciais para o funcionamento do poder disciplinar estão presentes em nossa sociedade até os nossos dias, muitas vezes de forma sutil, mas que ainda garantem a ordem e a manutenção do meticuloso funcionamento da sociedade ocidental contemporânea. Para saber mais sobre o assunto. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir, Rio de Janeiro: Editora Vozes, 2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder, Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979 PERROT, Michele. Os excluídos da história, São Paulo: Paz e Terra, 1988. Victor Mariano Camacho. Graduando do 7º Período de História pela Uniabeu – Centro Universitário Nilópolis – RJ. http://fabiopestanaramos.blogspot.com.br/2011/05/questao-do-poderdisciplinar-em.html
Foucault, o corpo e o poder disciplinar Foucault, el cuerpo y el poder disciplinario *Curso de Graduação em Licenciatura em Educação Física Ex-bolsista Faperj **Prof. Adjunto, DLCS, ICHS, UFRRJ (Brasil)
Gláucio Oliveira da Gama*
[email protected]
Cláudio Oliveira da Gama*
[email protected]
Luiz Celso Pinho**
Resumo
Michel Foucault, ao diagnosticar mecanismos de poder na sociedade, qualifica o poder disciplinar, como autor dos acontecimentos decorrentes de uma atitude padronizada dos homens na modernidade. Para ele vivemos a Era dos corpos disciplinados, onde a disciplina produz, para a modelagem e controle dos corpos, ferramentas que vão nortear todo o processo de construção do poder e normatização das condutas, adotando caracteres para sua aquisição. Assim em relação aos corpos a noção de beleza exterior se tornou tão importante que marca a atualidade como a sociedade da aparência, dos rostos e corpos belos e esbeltos, tudo, graças aos mecanismos exigidos e tidos como verdadeiros pelo poder disciplinar que fazem do uso de atributos, como veículos de informação, para controlarem a sociedade. Unitermos: Michel Foucault. Corpo. Poder disciplinar http://www.efdeportes.com/ Revista Digital - Buenos Aires - Año 14 - Nº 136 - Septiembre de 2009
Introdução Ao afirmar que “em qualquer sociedade, o corpo está preso no interior de poderes muito apertados, que lhe impõem limitações, proibições ou obrigações” (FOUCAULT, 2004, p. 126), Foucault já explicita que micropoderes perpassam todo o corpo social, acarretando em transformações e modificações de condutas nos indivíduos. O corpo social, ao longo dos séculos, se consolida como algo fabricado, influenciado por uma coação calculada, esquadrinhado em cada função corpórea, com fins de automatização. O homem é o principal alvo e objeto do poder, que tem como meta, a tarefa de incorporar nos corpos características de docilidade. É dócil “um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” (Ibid, p. 126). Suas formas de modelagens são dadas através do adestramento, sendo utilizado como uma poderosa ferramenta de controle, que age de forma
disciplinadora, considerado como uma das “fórmulas gerais de dominação” (Ibid, p. 126). Assim “a disciplina, segundo a genealogia foucaultiana, diz respeito tanto a uma modalidade de poder que se caracteriza por medir, corrigir, hierarquizar, quanto torna possível um saber sobre o indivíduo” (PINHO, 1998, p. 189). Sob o olhar da disciplina existem técnicas que norteiam todos os processos de modelagem. As técnicas de controle disciplinar Fórmulas pelas quais o poder se exemplifica:
Escala. Tem como premissa o trabalho no detalhe, agindo sobre o corpo de modo infinitesimal, exercendo “sobre ele uma coerção sem folga” (FOUCAULT, 2004, p. 126).
Objeto. Onde “se faz mais sobre as forças do que sobre os sinais” (Ibid, p. 126).
Modalidade. Controle do tempo, espaço e movimento: “coerção ininterrupta, constante, que vela sobre os processos da atividade mais que sobre seu resultado” (Ibid, p. 126).
A modelagem dos corpos atribui caracteres de docilidade, tornando o corpo útil e produtivo ao aumentar sua submissão e obediência. Seria, portanto, uma política de coerções, uma ideologia calculada no detalhe que tem como finalidade o controle e modelagem de atitudes, gestos e comportamentos. Ressaltando que este poder coercitivo se aplica na sociedade de diferentes modos, de formas múltiplas, através “de origens diferentes, de localizações esparsas, que se recordam, se repelem, ou se imitam, apóiam-se uns sobre os outros, distinguem-se segundo seu campo de aplicação, entram em convergência e esboçam aos poucos a fachada de um método geral” (Ibid, p.127). A disciplina produz, para a modelagem e controle dos corpos, ferramentas que vão nortear todo o processo de construção do poder e normatização das condutas, adotando caracteres para sua aquisição: “constrói quadros; prescreve manobras; impõe exercícios; enfim, para realizar a combinação das forças, organiza ‘táticas’” (Ibid, p. 150). Diante destes processos progressivos é retirado cada momento do tempo dos indivíduos, perpassando uma escala gradual e evolutiva em busca do aumento de suas potencialidades, criando assim “uma nova maneira de gerir o tempo e torná-lo útil, por recorte segmentar, por seriação, por síntese e totalização” (Ibid, p. 145). A disciplina “visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto é mais útil, e inversamente” (Ibid, p. 127). Portanto, ela fornece subsídios para o aprimoramento das técnicas,
aumentando em grandeza diretamente proporcional suas utilidades, enraizadas em preceitos de docilidade. Seriam, portanto, para Foucault, “métodos que permitem o controle minucioso das operações do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes impõem uma relação de docilidade-utilidade” (Ibid, p. 126). A reprodução das disciplinas A disciplina aflora nesta modelagem de condutas revelando-se de diversas formas: 1.
Princípio da localização imediata ou quadriculamento
O poder disciplinar cria um espaço analítico para “vigiar o comportamento de cada um, apreciá-lo, sancioná-lo, medir as qualidades ou os méritos” (Ibid, p. 131). Meio para se conhecer, controlar, vigiar e também, de “articular essa distribuição sobre um aparelho de produção que tem suas exigências próprias” (Ibid, p. 132), visando a manipulação dos processos para se atingir o resultado eficaz. Na busca do melhor rendimento e aumento de produtividade, o poder disciplinar parte para o controle das atividades, disciplinando o tempo dos indivíduos: “trata-se de constituir um tempo integralmente útil” (Ibid, p. 137). Criam-se gestos idênticos e repetitivos para aumentar a precisão dos movimentos, aumenta-se a relação de afinidade entre os corpos e os objetos, para a busca do ápice, até sua utilização exaustiva: “o máximo de rapidez encontra o máximo de eficiência” (Ibid, p. 140). A rapidez é ensinada como uma virtude, uma qualidade tão importante quanto à eficiência. 2.
Elementos intercambiáveis com função de esquematizar uma doutrina
Frente a isso o poder disciplinar “individualiza os corpos por uma localização que não os implanta, mas os distribui e os faz circular numa rede de relações” (Ibid, p. 133). Intenção de criar um conjunto, com funções que se diferem, mas que se regem do mesmo modo (homogêneo), e para um objetivo comum. A grande ferramenta utilizada pelo poder disciplinar para dissipar sua dominação é o exercício, que dentre algumas de suas características está a de servir “para economizar o tempo da vida, para acumulá-lo de uma maneira útil, e para exercer o poder sobre os homens por meio do tempo assim arrumado” (Ibid, p. 146). A composição das forças surge com uma proposta de constituir um meio produtivo que vai de certo modo “compor forças para obter um aparelho eficiente” (Ibid, p. 147). Surgindo a idéia do homem como uma máquina multissegmentar, cuja finalidade é a ação conjunta para a busca de um melhor rendimento. Este, portanto, se tornou o “ponto chave” da manipulação das condutas (controle do tempo, do espaço e das funções corpóreas), cuja função é a de moldar corpos para fins e objetivos de transformação do homem em “máquina”, tendo como seu combustível o estímulo, para o ápice e a plenitude de funções, buscando a todo
custo a melhoria do desempenho. Tornando o homem produtivo, o poder disciplinar o tem explorado para fins de dominação. Conclusão Na sociedade contemporânea, estamos submetidos a um tipo de poder disciplinar capaz de gerir todo um grupo social, com interesses que norteiam todo um aparato de ideologias, que vão moldar e normalizar condutas. O poder age “tomando os corpos dos indivíduos como alvos e pontos de aplicação, investindo-os e produzindo-os conforme uma ordem moral, social, política, produtiva e normativa capitalista-burquesa” (PRADO FILHO; TRISOTTO, 2008, p. 117). Esta sociedade faz uso de “técnicas que são simplesmente denominadas ‘disciplina’. A disciplina é uma anatomia política do ‘detalhe’, é dispositivo tático de poder, sustentado por uma racionalidade econômica ou técnica. A disciplina tornase arte e técnica de compor forças para obter um aparelho eficiente” (WELLAUSEN, 2007, p. 9-10). “Essas técnicas que permitem o controle detalhado das operações do corpo, que realizam a sujeição permanente de suas forças e lhes impõe uma relação de docilidade-utilidade, são o que Foucault chama de ‘disciplinas’. Estas visam à formação de uma relação que torna o corpo humano tanto obediente quanto útil, constituindo uma política de coerções que trabalham sobre o corpo, ‘uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos’. Essa política passa a ter domínio sobre o corpo dos outros, para que operem como se quer, através das técnicas. A disciplina, arte das técnicas para a transformação, tem por alvo os indivíduos em sua singularidade. E o poder de individualização tem como instrumento a vigilância permanente, classificatória, permitindo distribuir os indivíduos, julgá-los, medi-los, localizá-los e, por conseguinte, utilizá-los ao máximo. Desta forma, ‘a disciplina fabrica corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’” (NIEMEYER; KRUSE, 2008, p. 464). A disciplina ao agir no detalhe, vai agir sobre os corpos nas mais importantes e também atenuadas incumbências do dia a dia: do simples andar com uma vestimenta característica, ao controle, especifico, em dietas alimentares. Atualmente, investem nos corpos como “uma tecnologia política que desestabiliza fronteiras entre o familiar e o estranho nas práticas corporais contemporâneas” (FRAGA, 2006, p. 63). Foucault considera o poder capitalista como uma das formas aparentes da disciplina, exercendo uma vigilância disciplinar sobre o proletário, com o pressuposto de mantê-los sempre sobre seu domínio, tornando-os passivos e não rebeldes. Este “poder capitalista, possui uma positividade no sentido de pretender gerir a vida dos indivíduos e das populações para utilizá-los ao máximo, com um objetivo ao mesmo tempo econômico e político: torná-los úteis e dóceis, trabalhadores e obedientes.” (MACHADO, 2004, p. 30).
Na proposta de gerir grupos o poder faz uso do controle para otimizar ganhos (resultados): “máximo de rapidez e eficácia” (Ibid, p. 31), maior ganho em menor tempo. No que tange a modelagem dos corpos, as técnicas da disciplina visa a criação de “não apenas corpos padronizados, mas também subjetividades controladas” (MISKOLCI, 2006, p. 682). O controle dos corpos se tornou tão importante na atualidade que se constata através da aparência física tudo “aquilo que cada um quer mostrar de sua subjetividade” (SANT'ANNA, 2004, p. 20). A noção de beleza exterior se tornou tão importante que marca a atualidade como a sociedade da aparência, dos rostos e corpos belos e esbeltos, tudo, graças aos mecanismos exigidos e tidos como verdadeiros pelo poder disciplinar que fazem do uso de atributos, como veículos de informação, para controlarem a sociedade. Referências bibliográficas
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FRAGA, A. B. “Anatomias emergentes e o bug muscular: pedagogias do corpo no limiar do século XXI”. In: Carmen Lúcia Soares. (Org.). Corpo e História. 3 ed. Campinas: Autores Associados, 2006, v. , p. 61-77.
MACHADO, R. “Duas filosofias das ciências do homem”. In: Calomeni, T. C. B. (Org.). Michel Foucault: entre o murmúrio e a palavra. Campos, RJ: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2004, p. 15-37.
NIEMEYER, F; KRUSE, M. H. L. “Constituindo sujeitos anoréxicos: discursos da revista Capricho”. Texto contexto - enferm. , Florianópolis, v. 17, n. 3, set. 2008, p. 457-65.
PINHO, L. C. “As tramas do discurso”. In: Castelo Branco, G.; Baêta Neves, L. F.. (Org.). Michel Foucault: da arqueologia do saber à estética da existência. Londrina/Rio de Janeiro: Nau, 1998, v., p. 183-192.
PRADO FILHO, K. ; TRISOTTO, S. “O corpo problematizado de uma perspectiva histórico-política”. Maringá: Psicologia em Estudo, v. 13, n. 1, 2008, p. 115-21.
REVISTA EDUCAÇÃO – Especial Biblioteca do Professor 3: Foucault pensa a Educação, São Paulo, 1º mar. 2007.
SANT'ANNA, D. B. “É possível realizar uma história do corpo?”. In: SOARES, Carmen. (Org.). Corpo e História. Campinas: Autores Associados, 2004, v.1. p. 3-23.
WELLAUSEN, S. S. “Os dispositivos de poder e o corpo em Vigiar e punir”. In: Rago, M.; Martins, A. L. (Orgs.). Revista Aulas. Dossiê Foucault. Campinas, SP, n. 3, dez. 2006/mar. 2007, p. 1-23.
http://www.efdeportes.com/efd136/foucault-o-corpo-e-o-poder-disciplinar.htm
PUBLICADO EM 02/02/2014 POR RAFAEL TRINDADE
FOUCAULT – OS RECURSOS PARA O BOM ADESTRAMENTO “O poder disciplinar é com efeito um poder que, em vez de se apropriar e de retirar, tem como função maior ‘adestrar’; ou sem dúvida adestrar para retirar e se apropriar ainda mais e melhor. A disciplina ‘fabrica’ indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de seu exercício” – Foucault, Vigiar e Punir O poder funciona de maneira simples, não é algo majestoso, concentrado, impenetrável. Certamente é intrincado, mas ao menos é aberto, franco, talvez até modesto. Aqui se quebra o paradigma de poder que emana de uma torre central ou do salão real. O poder passa, ele flui, não é um ponto, são linhas. Por isso podemos dizer que não há distância entre nós e o poder, somos seu ponto de resistência e ao mesmo tempo fonte de propagação. “O poder esteja convosco, ele está no meio de nós“. Outra questão importante para devida compreensão deste texto e de Foucault de uma maneira geral é a hipótese repressiva. O poder produz muito mais do que reprime. Seria impossível uma sociedade de pura repressão, exigiria energia demais, esforço demais. O poder produz de forma lenta e contínua, num ritmo cadenciado. Ele só reprime em última hipótese, antes disso ele forma, treina, exercita, conduz. O sucesso do poder disciplinar se deve sem dúvida ao uso de instrumentos simples: o olhar hierárquico, a sanção normalizadora e sua combinação num procedimento que lhe é específico, o exame” (Foucault, Vigiar e Punir). Olhar hierárquico: esta categoria substitui o olhar dos palácios, onde os nobres queriam se mostrar e substitui também o olhar das fortalezas, onde se via lá fora o inimigo. Toda umaarquitetura desenvolveu-se para a observação do indivíduo: janelas, espaços, distribuições, concentrações. Contrariando a forma de círculo, de onde o poder ficaria no centro, criou-se uma pirâmide, de onde cada um sabia sua posição, mas podia observar o andar de baixo, um microscópio do comportamento. Ao mesmo tempo discreto e indiscreto, esta forma de poder procura criar corpos competentes, obedientes e morais. Quanto maior o número de pessoas, quanto maior a divisão de trabalho, maior a
vigilância hierárquica; quanto maior o número de alunos, maior a vigilância hierárquica (“quem quer ser o representante de sala deste semestre?”), quanto maior o número de funcionários, maior o número de cargos (e funcionários do mês).
Aparentemente
menos
violento
e
corporal,
mas
na
verdade,
absolutamente físico e formalizador. Sanção normalizadora: ao mesmo tempo em que se olha, se cria todo um mecanismo
penal
para
os
comportamentos.
Uma
aparelho
de
micropenalidades se forma em torno do indivíduo sujeito às instituições disciplinares: “castigo físico leve, privações ligeiras e pequenas humilhações morais” (Foucault, Vigiar e Punir). É preciso atenção para qualquer desvio: atraso, negligência, grosseria, desobediência, conversas paralelas, sujeira, indecência. O modelo ideal de aluno, soldado, trabalhador é estipulado, uma dívida eterna para aquele que nunca poderá enquadrar-se em um modelo ideal e inexistente. A avaliação é dos atos, mas a nota é para o indivíduo como um todo. O castigo é essencialmente corretivo, e portanto repetitivo, “castigar é exercitar” (Foucault, Vigiar e Punir). Duas são as consequências: distribuição segundo as aptidões (pontos positivos e negativos para os alunos, condecorações e medalhas para soldados), e submissão ao modelo. Os efeitos se dão por etapas: comparar os indivíduos, diferenciá-los de acordo com suas aptidões, medir e hierarquizar, coagir os que não se enquadram, traçar limites entre o aceitável e inaceitável, normal e anormal, saudável e doente. Exame: “a superposição das relações de poder e das de saber assume no exame todo o seu brilho visível” (Foucault, Vigiar e Punir). Este é o ponto máximo do controle normalizante, a mistura do olhar e da sanção; é através dele que o indivíduo se torna visível e objeto indivisível (atômico) da ação do poder. Através do exame se encontra a “verdade” do indivíduo. Dele, três características emergem: 1) inverte-se a visibilidade do poder: através do exame o poder se esconde, e faz brilhar aquele sobre quem atua, através do exame o sujeito se mostra como objeto, se dá, se torna números e medidas. 2) inclui a individualidade dentro de um campo documentário: nasce o indivíduo e as ciências do homem, através do exame é possível descrever o indivíduo e compará-lo aos demais; caracteriza-se grupo, coletivos e pode-se verificar os desvios dos “desajustados” 3) cada indivíduo se torna um “caso”: honra antes dada somente aos reis e realizadores de grandes feitos, agora todo ser humano tem sua vida esmiuçada, pormenorizada, detalhada, violentada por processos de marcação, classificação e objetificação.
O poder produz realidade; produz campos de objetos e rituais de verdade. O indivíduo e o conhecimento que dele se pode ter se originam nessa produção” (Foucault, Vigiar e Punir). Todas estas tecnologias de formação do homem, ou melhor, disciplinarização, foram se desenvolvendo a partir do século XVIII, por isso hoje a vemos com mais sutilezas ainda. É aqui onde vemos até que ponto nos submetemos ao poder. Todas as ciências, análises ou práticas com o radical “psico”, têm seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização” – Foucault, Vigiar e Punir Nossos passos hoje são seguidos por câmeras, laudos, exames, identificações, documentos. Qualquer cadastro exige e-mail, endereço, RG, CPF. Pior, pedimos por isso, nos mostramos abertamente, fazemos check-in, colocamos nossas fotos no Instagram, escancaramos nossa vida privada em redes sociais esperando por comentários e curtidas. “Estou aqui”, parecemos dizer, “sou assim”, queremos provar. Ao mesmo tempo em que se homogeniza, se individualiza. Somos únicos, mas somos todos iguais (veja aqui). Não se trata de uma contradição, é exatamente isso: se analisa indivíduo por indivíduo para colocá-los dentro de uma linha de normalidade e semelhança. Eis o homem moderno. https://razaoinadequada.com/2014/02/02/foucault-os-recursos-para-obom-adestramento/
PUBLICADO EM 29/12/2013 POR RAFAEL TRINDADE
FOUCAULT: QUAL O TEU SEXO? O essencial é bem isso: que o homem ocidental há três séculos tenha permanecido atado a essa tarefa que consiste em dizer tudo sobre o seu sexo” – Foucault, História da Sexualidade I “Diga-me com quem andas e eu te direi quem és”. Pois bem, temos andado muito na companhia de Foucault, mas isso implica o contrário, “ande com Foucault e não permaneça o mesmo”. Ler este pensador é abrir-se para o
diferente, o novo, o impensado. Ao começar seu livro nos deparamos com a inversão das crenças que carregava. E talvez seja esta a principal qualidade de um filósofo, virar de ponta-cabeça, brincar com os conceitos até que eles se dilatem e deem conta das intensidades que permeiam a realidade. A História da Sexualidade começa com uma hipótese contrária a do senso comum. Estamos acostumados a ouvir que o sexo é tabu, que somos reprimidos. O silêncio permeia a questão sexual. Mas Foucault nos diz o exato oposto: o sexo é cada vez mais incitado a mostrar-se, revelar-se, confessar-se. O séc. XIX e XX explicitou a questão da repressão sexual. Diz-se que silêncio prevalece. Há o mistério no ar, algo inaudito e que não pode ser revelado. Sexo = segredo. Não podemos ir ao fundo da questão, enfrentamos um estancamento, falta-nos palavras. O capitalismo, a burguesia, a industrialização (chame como quiser) apropriou-se do corpo sexual, sublimou-o e o transformou em uma máquina de trabalho. Sexo? Apenas para procriação, manutenção da espécie, nunca para diversão. O “burguês” precisa desta energia armazenada para o tempo de trabalho, para a produção de mercadorias. Deste discurso surgem as teorias mais idealistas. O “sexo verdadeiro” se esconde por baixo de uma carapaça de pó, fuligem, vergonha. No interior do macacão sujo de óleo e graxa está o homem sexualmente livre que, através de sua liberdade sexual, levará a felicidade a todos os seres do mundo. Vide Reich e as teorias freud-marxistas, Marcuse como grande representante. Amanhã gozaremos! O porvir… o porvir… Foucault não ignora estes efeitos, mas trata-se exatamente disso: efeitos. O resultado de um processo histórico inverso e muito mais elaborado. A partir do séc. XVIII e XIX o sexo não encontrou paz, pelo contrário, foi convocado para estar debaixo dos holofotes, receber toda a atenção. A própria prescrição na contra-reforma foi no sentido de todos confessarem-se ao menos uma vez ao ano, e isso implica contar, nos mínimos detalhes, sua vida sexual: desejos, atos, pensamentos, medos. Máquinas de ver, mostrar, ouvir e fazer falar se espalharam pelo ocidente. O discurso e a interpretação chegaram no nível sexual do sujeito, contribuindo ao mesmo tempo para sua formação e identificação. Passou-se inicialmente a observar, como se algo de muito importante se escondesse nesta questão. O olhos voltaram-se para as condutas, as manias, as idiossincrasias. Montou-se
dispositivos de confissão, técnicas para extrair as verdades sexuais das pessoas. Estas estratégias, de tradição ascética e monástica, já eram usadas pela igreja. Com a modernidade, o sexo não se confinou no quarto dos pais. Apesar desta ilusão, ele se espalha, se derrama nas mais variadas formas. As linhas de saber-poder se multiplicam pelas superfícies. Na família, no discurso médico, , nas oficinas, nos jornais, nas escolas, nos quartéis, na autoridade dos professores, na arquitetônica dos prédios. O sexo parece se esconder, mas apenas porque é procurado em todos os cantos, em todas as suas manifestações. Ele extrapola os limites das quatro paredes e transborda para todos os campos sociais. Torna-se questão de saúde, política, administração. Através de uma prolixidade sem fim, o homem é levado a dizer quem ele é: qual o teu sexo?Por meio de questionários, formulários, observações, prescrições, inquéritos, anotações, o ser humano sobe à superfície da palavra e diz: “meu ser sexual é este!”. A confissão é a linha de separação, é o que entregamos, extirpamos, ou melhor, violentamos em nós. A hipótese repressiva não tem o mesmo peso que a hipótese da confissão. Isso fica claro porque não há medidas para jogar o sexo em um porão escuro e esquecê-lo por lá, tudo funciona mais como um jogo de esconde-esconde, um jogo de luzes, uma sala de interrogatório. O que é próprio das sociedades modernas não é o de terem condenado o sexo, a permanecer na obscuridade, mas sim o terem-se devotado a falar dele sempre, valorizando-o como o segredo” – Foucault, História da Sexualidade I. Da infância até o último suspiro, a condição de normalidade, a evolução esperada é medida e avaliada. O médico, o pedagogo, o analista, todos têm a autoridade da sentença “isso é normal/ isso não é normal”. A lista de perversões se multiplica: loucura moral, neurose genital, aberração no sentido genésico, degenerecência, desequilíbrio psíquico. Tantos nomes para falar do que não pode ser dito? Não me parece. A lista segue, o discurso se multiplica: exibicionista,
fetichista,
zoófilos,
automonosexualistas,
mixoscopófilos,
ginecomastos, presbiófilos, invertidos sexoestéticos, mulheres disperêunicas. O sexo não se afasta, não se esconde – apesar da sensação -, na verdade ele está muito mais próximo, na superfície. O máximo de contato, para anotar tudo, comparar, medir.
A ciência sexual se utiliza de seus métodos para fazer falar: encontramos códigos para nos expressar, significantes, significados; investigamos a fundo pois sabemos o quanto ele é difuso e permeia toda a realidade; olhamos dos mais variados ângulos e esperamos o momento certo, pois sabemos de sua capacidade de latência e camuflagem; criamos máquinas interpretativas para melhor tirar seu sentido muitas vezes resistente, misturado. Dentro deste contexto, o sexo não se inscreve mais na questão religiosa da salvação, mas sim nos critério médicos de normal e patológico. A obrigação da confissão nos é, agora, imposta a partir de tantos pontos diferentes, já está tão profundamente incorporada a nós que não a percebemos mais como efeito de um poder que nos coage; parece-nos, ao contrário, que a verdade, na região mais secreta de nós próprios, não ‘demanda’ nada mais que revelar-se” – Foucault, História da Sexualidade I. Mas neste caso, o caminho se fez andando sobre ele. O discurso sexual ao mesmo tempo que descobria, produzia. Suas tabelas arbitrárias, medidas confusas, nomes exóticos foram aos poucos criando condições para eclosão de mais vários tipo de “anomalias”. A condição de anormalidade é criada e mantida a partir do momento em que você traça linhas de medidas. Dominar o sexo, pacificá-lo dando nomes, enquadrando é ao mesmo tempo criar e fabricar comportamentos sexuais. A palavra tem poder, a palavra cria. É preciso então desconsiderar a sexualidade como uma verdade escondida, isto porque ela se enquadra dentro de um contexto social-histórico e está sob influência dos mecanismos de saber-poder. Estes dispositivos “descobrem” o sexo ao mesmo tempo em que o produzem. A sexualidade é algo móvel, e talvez muito mais frágil do que pensamos, está à merce dos mecanismos de formação do sujeito moderno. É neste contexto histórico, por exemplo,que aparece o corpo sexual da criança, cujo grande herdeiros será Freud. O Complexo de Édipo é tido como algo universal, mas se encaixa perfeitamente nesta hipótese de saber-poder moderno que constitui a subjetividade dos indivíduos. Por isso hoje nós mesmos nos interrogamos: qual o nosso sexo? Ele supostamente esconde nossa verdade, aloja nossa essência. “conheça a ti mesmo” tornou-se “conheça sua identidade sexual”. A ciência sexual constituiuse como ciência do sujeito, talvez trazendo a psicanálise como grande
representante. Em vez do poder reprimir as manifestações de sexualidade natural, ele as produziu sob determinadas condições. Ainda não temos a resposta e talvez nunca a tenhamos, mas o que levou o sexo a ser nossa verdade última? Nossa sociedade insiste em fazer desta questão o último elemento para encontrarmos nossa verdadeira identidade, uma mistura de ditadura da Identidade e da Verdade. Há um sexo verdadeiro? Ou seria ele apenas mais uma sedutora mentira? https://razaoinadequada.com/2013/12/29/foucault-qual-o-teu-sexo/ PUBLICADO EM 05/01/2014 POR RAFAEL TRINDADE
FOUCAULT: ADMINISTRANDO O SEXO Fomos levados a pensar que através do sexo encontraríamos a liberdade, mas caímos em um jogo ardiloso. Quanto mais falamos (ou gritamos) sobre nossa sexualidade, quanto mais nos mostramos, mais nos embrenhamos nas malhas estendidas pelo saber-poder. Nosso sexo fala de si. O foco de luz colocado em cima dele o imobiliza, as teias de aranha se estendem, o poder se disfarça para melhor vê-lo, cheirá-lo, ouvi-lo e depois comê-lo, até que não sobre nada. Sexo se tornou nossa identidade, mas por que? O que motiva essa obsessão ocidental pelo sexo? Entender o que causa esta fixação nos faz passar longe da questão jurídica ou de poder como algo centralizado. O discurso sexual é algo que atravessa nossa sociedade horizontalmente. As relações de saber-poder se dão de forma descentralizada. Estendem seus tentáculos em numerosas direções, interligando-os e fazendo-os interagir. A sexualidade é algo onde se pode e deve intervir. Com o advento da modernidade, novos modos de vida se moldaram. Esta nova economia exigiu novos modos de produção, a nova rotina por sua vez, deu lugar a novos seres humanos. Se antes o poder do rei era organizado de forma a “fazer morrer ou deixar viver”, o novo mundo, sem rei, estava se autoestruturando em torno de “fazer viver ou deixar morrer”. A população se tornou algo administrável, um problema a ser gerido para sua máxima efetividade. A psicologia, a geografia, a medicina, economia e outros ramos do saber se desenvolveram para estudar e administrar a população. Contágio das
doenças, prostituição, distribuição geográfica, família nuclear, se tornaram problemas
desta
nova
época.
Dentro
destas
novas
disciplinas,
apareceram novos personagens a serem avaliados e condicionados. A criança ganhou teorias que versavam sobre sua natureza sexual, muito importante e alvo de cuidados especiais. A mulher ganhou seu status de mãe, figura importante, essencial para o desenvolvimento da criança. Sua natureza neurótica, altamente sedutora e sexual, também foi exaltada como merecedora de atenção. As preocupações com o crescimento populacional também surgiram nesta época, bem como as etiologias dos chamados adultos perversos, por sua desestruturação das famílias tradicionais. Um poder que tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos, reguladores e corretivos. Já não se trata de por a morte em ação no campo da soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e utilidade. Um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar, hierarquizar […] uma sociedade normalizadora é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida” – Foucault, História da Sexualidade I A centralização dos dispositivos de sexualidade nos leva a crer em um pansexualismo. Já dissemos anteriormente que o sexo não traz a essência da pessoa (veja aqui), não somos puritanos, mas o sexo não é o motor da humanidade, a pulsão não é nosso combustível. Isso decorre de uma saturação dos dispositivos de sexualidade. A família nuclear burguesa foi seu principal alvo. Com o discurso de evitar a degeneração das futuras gerações, a estrutura edípica desenvolveu-se. A saúde mental e física dos pais refletia a saúde e desenvolvimento apropriado da criança. O pecado foi trocado pela patologia, o sangue azul dos nobres deu lugar aos discursos sexuais burgueses. É neste contexto que a psicanálise se desenvolve. Centralizando o impulso sexual e codificando os discursos em torno de papai-mamãe-filhinho. Refinamento da confissão em sua melhor forma, um tipo de “pague-paracontar-sobre-sua-miséria-sexual”. A psicanálise não descobriu os segredos do inconsciente, ela sistematizou o inconsciente que era produzido na superfície da época, um significante tirânico organizando o desenvolvimento. Exatamente quando a questão do incesto também passou a ser uma questão de saúde pública.
A noção de ‘sexo’ permitiu agrupar, de acordo com uma unidade artificial, elementos anatômicos, funções biológicas, condutas, sensações e prazeres e permitiu fazer funcionar esta unidade fictícia como princípio causal, sentido onipresente segredo a descobrir a toda parte: o sexo pôde, portanto, funcionar como significante único e como significado universal” – Foucault, História da Sexualidade I Novos modos de vida exigem novos modos de produção e vice-versa. Corpos disciplinados para o trabalho braçal, caso contrário, polícia e cadeia. Para os abastados, psicanálise ouprozac. O efeito é o mesmo, aliviar tensão, manter o controle, gerir pessoas. Uma máquina de produzir indivíduos dóceis, disciplinados e úteis foi posta em prática. Além de um discurso de regulação, que abrangia, claro, todo desenvolvimento psico-sexual para satisfazer uma economia e produção. Produzir, vender, incitar o desejo, conhecer e produzir conhecimentos para então novamente produzir e vender. O problema está em apreender quais são os mecanismos positivos que, produzindo a sexualidade desta ou daquela maneira acarretam efeitos de miséria” – Foucault, Micro-física do poder Qual revista feminina hoje não fala de gozar mais? O poder tira com uma mão para dar com a outra. Somos tragados pelo jogo dos prazeres, mas só caímos em seus joguinhos depois de acreditar em nossa mais profunda miséria sexual. Os comerciais de TV, as brincadeiras e sorrisinhos, as músicas, as dançarinas dos programas de domingo. Tudo cria uma sexualidade, cria corpos, produz subjetividades. O marido no divã reclamando de sua vida sexual, a mulher histérica porque não consegue trabalhar e também cuidar do filho. A mão que acaricia é a mesma que esbofeteia. Nesse jogo de consumo de imagens, nunca alcançamos nosso objetivo. Os dispositivos de sexualidade produzem corpos, prescrevem dietas, dão diretrizes. Este mundo novo, novas instituições e novos disposições exigem corpos novos, que se comportem de maneira determinada. A tensão é elevada ao máximo, a saturação é constante, o movimento é contínuo, mas as possibilidades são reguladas e limitadas, tendo a repressão apenas como última cartada. Através destes dispositivos pode-se gerir a vida. Tudo que você disser pode e será usado contra você: “diga-me quem tu és, ou melhor, eu te direi quem tu és, repita depois de mim…”.
Sabemos que é impossível escapar das relações de poder, elas nos cercam por todos os lados. Mas é possível encontrar brechas, a liberdade está no pontos de resistência, nos pontos escuros onde o poder afrouxa suas imposições.
Ser autônomo
é
estar
sob
suas
próprias
regras,
é
estabelecer relações de emancipação, particular ou coletiva. É possível ir para além dos dispositivos de sexualidade. Não acreditar que dizendo-se sim ao sexo se está dizendo não ao poder; ao contrário, se está seguindo a linha do dispositivo geral da sexualidade” – Foucault, História da Sexualidade O verdadeiro sexo, o sexo imposto, é aquele que se torna ao mesmo tempo, através dos discursos de saber-poder, previsível e condicionável. Homem joga bola e usa azul, quer sexo o tempo todo. Mulher vai ao cabeleireiro e usa rosa, é recatada. Todo discurso impõe comportamentos regulados socialmente. A implicação econômica é de máxima efetividade. A sexualidade, gênero, preferências, vontades, desejos, tudo isso não é causal, é causado. Não reduzir-se ao sexo implica não centralizar seu modo de vida em torno de um único fator. A sexualidade, ampliada e supervalorizada é imposta como único modo de existência através de inúmeros dispositivos sexuais que a normatizam. Ampliar o discurso da sexualidade tornou-se uma forma tirânica de regular as subjetividades e por sua vez os encontros possíveis entre as pessoas. Ir para além destes dispositivos de saber-poder é encontrar novos modos de se posicionar no mundo, um devir-criativo mais preocupado com a ampliação dos próprios potenciais do que com a busca pela sua verdadeira identidade sexual. A verdadeira liberação sexual, se é que ainda podemos usar este termo, não se dá seguindo pela avenida construída pelo saber-poder, onde os discursos e as práticas seguem todos à mesma velocidade e sentido, ela se dá na verdade através das trilhas paralelas, que são confusas e pouco trilhadas, mas certamente muito mais singulares. https://razaoinadequada.com/2014/01/05/foucault-administrando-osexo/ PUBLICADO EM 13/01/2014 POR RAFAEL TRINDADE
FOUCAULT: CORPOS DÓCEIS
É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado” – Foucault, Vigiar e Punir O homem moderno nasceu no fim do séc. XVIII e já está para morrer, disse Foucault. Mas como nasce o homem que conhecemos hoje? Como se dá vida a este ser? Durante a era moderna, o poder descobriu o detalhe, o absolutamente ínfimo, aquilo que antes passava despercebido. Até um pouco antes da revolução francesa, e a partir daí com cada vez mais força, o homem se tornou algo que se fabrica, o poder age em cada indivíduo para fabricar corpos dóceis. “O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe” (Foucault, Vigiar e Punir). O corpo se tornou alvo do poder, descobriu-se que ele podia ser moldado, rearranjado, treinado e submetido para se tornar ao mesmo tempo tão útil quanto sujeitado. O corpo foi dobrado pelo poder, através de várias técnicas de dominação. Não que esta criação seja inédita, as relações de força agem e agiram desde sempre, mas com a modernidade o corpo passa a ser dividido, separado, medido, investigado em cada detalhe. Mais uma peça na grande máquina de produção, e como qualquer produto de produção em massa, o corpo humano passa por vários estágios até estar acabado: família, escola, quartel, fábrica; ou sua versão moderna: família, escola, faculdade, escritório. Caso alguma coisa dê errada, hospital, hospício, cadeia. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos ‘dóceis’. A disciplina aumenta as forças dos corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) […] a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e a dominação acentuada” – Foucault, Vigiar e Punir O poder separa o homem de si mesmo. Ele não reprime, ele produz, ele cria corpos, exercita habilidades, capacita, conduz. Isso se dá em várias esferas da sociedade, uma alimentando a outra, são linhas de força que entram em ressonância, não há um senhor rico e poderoso manipulando tudo, estão envolvidos políticos, padres, ricos, pobres, enfim, a sociedade como um conjunto de interesses e forças. Foucault descreve quatro mecanismos disciplinares na formação de corpos dóceis: Arte das distribuições: a produção de um corpo dócil só é possível através de uma distribuição no espaço. Arte dos arranjos. Um quadro onde cada um
ocupe um lugar e se possa tirar o máximo de cada indivíduo. A arquitetura geral passa a ter o modelo dos conventos e dos monastérios, espaços individuais; um universo isolado (ilhas de disciplina), mas enumerado e localizável. Nas fábricas, nas escolas, os corpos são distribuídos de maneira a regular os fluxos, as relações, as afecções. As ligações são ordenadas e delimitadas: cada aluno no seu lugar, cada operário devidamente posicionado na linha de montagem. Otimização do tempo e do espaço, organização do múltiplo para impor-lhe uma ordem. A massa confusa torna-se corpo de trabalho eficiente. Controle das atividades: o relógio se tornou o grande senhor do nosso tempo. Já tratamos da Ditadura do Tempo (veja aqui). Durante séculos, as ordens religiosas foram as grandes especialistas neste campo dos ritmos e atividades regulares. Hoje encontramos isto em quase todas as instituições: grade horária, relógio de ponto, sinal de entrada, saída, intervalo. O tempo é precioso, deve ser usado com destreza, o corpo dócil deve ficar concentrado, puro, firme, agir com destreza através das várias etapas. Nada de ociosidade, nada de distrações e vagabundagem. “Define-se uma espécie de esquema anátomocronológico do comportamento” (Foucault, Vigiar e Punir). O tempo possui o corpo dócil, impõe precisão, exatidão, ritmo perfeito. É preciso extrair, arrancar mais tempo do tempo, e mais força de cada segundo conquistado. Através do cálculo infinitesimal, divide-se o tempo até o infinito, submetendo também infinitamente o indivíduo. Organização das gêneses: a organização do espaço e do tempo leva diretamente à acumulação de saberes, e também dominação e sujeição. O indivíduo a ser docilizado passa por várias etapas de formação, seu processo é dividido em classes, medido por provas, melhorado por exercícios. Uma série de estágios devem ser ultrapassados até que a formação esteja concluída, desde os conteúdos mais simples até os mais complexos. O poder disciplinar concentra-se nos detalhes, acumula-se na repetição. Assim o homem “progride”, torna-se útil. A técnica que o funcionário domina é o atestado de sua submissão. O importante é o exercício, a repetição cria o “bom estudante” e o “funcionário exemplar”. Novamente vemos a ascese das práticas religiosas, cuja salvação deriva da dor. “O exercício, transformado em elemento de uma tecnologia política do corpo e da duração, não culmina num mundo do além; mas tende para a uma sujeição que nunca terminou de se completar” (Foucault, Vigiar e Punir).
Composição das forças: todo treinamento converge para um ponto máximo onde a composição de forças gera o máximo de eficiência, uma massa amorfa de indivíduos se torna agora um único corpo maquinal para guerrear, produzir, exibir conhecimento. A soma é maior que as partes individuais, mas a organização é sempre exterior, superior, quase transcendente. O sinal do professor, do supervisor ou do coronel deve ser respeitado e obedecido imediatamente. Brevidade maquinal, moral de obediência. A máquina articulada não permite refletir, o corpo treinado se acopla e reproduz. O poder produz indivíduos, age na subjetividade e nos corpos: separa, codifica, exercita, posiciona, organiza, acumula, compõe, prescreve. Age na anatomia, mecânica e economia dos corpos. Não surpreende a escola parecer tanto com o quartel. A técnica de guerra é importada ao estado. Mas já não escutamos o barulho ensurdecedor de bombas, tiros, gritos e gemidos de dor; apenas o barulho cinza dos carros, aparelhos eletrônicos e máquinas registradoras acompanhando o silêncio mórbido dos olhares mortos de corpos dóceis. https://razaoinadequada.com/2014/01/13/foucault-corpos-doceis/