A previdência injusta.pdf

August 21, 2017 | Author: Erick Santos | Category: Class & Inequality, Economic Inequality, Poverty & Homelessness, Poverty, Brazil
Share Embed Donate


Short Description

Download A previdência injusta.pdf...

Description

BRIAN NI CHOLSON

A PREVIDÊNCIA

INJUSTA Como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil

GMCÃO

m orni

Agora todo mundo vai conhecer e entender a realidade da previdência brasileira. Neste A previdência injusta — Como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil o jornalista inglês Brian Nicholson inova ao mostrar, de maneira clara e simples, a ligação entre a previdência e a injustiça social no país. O autor propõe uma Nova Previdência, igual para todos, com uma breve transição, para reduzir o fosso entre ricos e miseráveis e resolver o problema fiscal. Dirigido ao leigo, a cada um de nós, este é um livro essencial para quem se preocupa com o próprio futuro e do país.

Por Brian Nicholson

INJUSTA A PREVIDÊNCIA C o m o o f im d o s p r iv il é g io s PODE MUDAR O BRASIL

GERAÇÃO

DEDICAÇÃO

Aos milhões de brasileiros e brasileiras que tiveram a infelicidade de nascer sem nenhum direito adquirido, numa das sociedades mais desiguais e injustas do mundo.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA C om o o fim d o s p r iv il é g io s p o d e m udar o B r a sil

Copyright © 2007 by Brian Nicholson i ã edição - julho de 2007

Distribuição N ova F ronteira Rua Bambina, 25 - Botafogo CEP: 22251-050 - Rio de Janeiro - RJ Tel.: (21) 2131-1121 - Fax: (21) 2537-2009 www.novafronteira.com.br

A G eração G eração

E d it o r ia l de

é u m s e lo d a

E d io u r o P u b l ic a ç õ e s

C omunicação Integrada C omercial L tda .

Rua Major Quedinho, 111 - 20° andar CEP: 01050-904-S ã o Paulo-SP Tel.: (11) 3256-4444 - Fax: (11) 3257-6373 www.geracaoeditorial.com.br Editor e Publisher

Luiz Fernando Emediato Diretora Editorial

Fernanda Emediato Projeto gráfico e diagram ação

Alan Maia Preparação

Hugo Almeida Revisão

Josias A. Andrade

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Nicholson, Brian A previdência injusta: como o fim dos privilégios pode mudar o Brasil / por Brian Nicholson. - São Paulo: Geração Editorial, 2007. ISBN 978-8575091562 1. Previdência social - Brasil I. Título. 07-3724 CDD: 368.400981

índices para catálogo sistemático: 1. Brasil: Previdência social 368.400981

2007 Impresso no Brasil Printed in Brazil

SUMÁRIO

UM PREFÁCIO PESSOAL..............................................................11

1 A VERGONHOSA E TEIMOSA DESIGUALDADE BRASILEIRA CAPÍTULO 1

Desigualdade tem explicação..................................................21 CAPÍTULO 2

Soluções míticas, heróicas, mirabolantes e... sensatas...............30 CAPÍTULO 3

Na pista do problema............................................................... 41

PREVIDÊNCIA NUMA SOCIEDADE INJUSTA CAPÍTULO 4

Previdência - todo mundo quer................................................ 55 CAPÍTULO 5

A previdência brasileira hoje..................................................... 61

8 BRIAN NICHOLSON

CAPÍTULO 6

O que é valor justo? O que é privilégio?................................... 77 CAPÍTULO 7

Quem são os privilegiados?....................................................... 85 CAPÍTULO 8

Será que hà mesmo um déficit?.............................................. 165

% UMA NOVA PREVIDÊNCIA PARA UMA SOCIEDADE MAIS JUSTA CAPÍTULO 9

Por que nào melhorar a previdência que temos?................... 195 CAPÍTULO 10

Princípios éticos para uma Nova Previdência......................... 201 CAPÍTULO 11

A estrutura da Nova Previdência............................................ 215 CAPÍTULO 12

Transição - como atravessar o Rubicâo?.................................242

4 DIREITO ADQUIRIDO? OU PRIVILÉGIO ADQUIRIDO? CAPÍTULO 13

Direito adquirido - uma lei a serviço de quem?.......................261 CAPÍTULO 14

A temeridade de discutir mudanças.......................................267

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 9

CAPÍTULO 15

Parece que a sociedade apóia os direitos adquiridos.............281 CAPÍTULO 16

Algumas dúvidas finais.............................................................291

f=S|

5 CONCLUSÕES CAPÍTULO 17

Que país deixaremos para os nossos filhos?............................ 301

ÍNDICE REMISSIVO................................................................... 327

ANEXOS Os Anexos deste livro, mencionados no texto, oferecem mais informações e detalha­ mento dos cálculos. Encontram-se para download gratuito no site do livro, junto com alguns dos documentos, estudos e relatórios mencionados no texto; notícias e maté­ rias da imprensa sobre o livro, e espaço para comentários e debate sobre o tema

www.previdenciainjusta.com.br

UM PREFÁCIO PESSOAL

Por que este livro?

que levaria um inglês meio abrasileirado — mistura de jornalista e econo­ mista, que aqui aportou há 30 anos como hippie, de jeans e mochila — a dedicar mais de um ano para escrever sobre a previdência e seu papel na perpe­ tuação da desigualdade? E por que me arriscar em português, essa bela segunda língua que adquiri com a paciência dos amigos, amigas e balconistas de bote­ quim, após a temeridade de aqui chegar sem saber falar nem bom dia? Como sempre, em perguntas desse naipe, a resposta pode ser breve ou de­ morada. Superficialmente, podemos dizer que escrevi este livro porque não sei fazer outra coisa. Passei a maior parte da minha vida trabalhando como corres­ pondente estrangeiro, relatando o Brasil para o mundo, e depois em vários tipos de jornalismo econômico, principalmente escrevendo para empresários e poten­ ciais investidores. Não sei fazer sapato, muito menos vendê-los, nem dirigir multinacional ou criar gado. Por bem ou por mal, só sei pesquisar, escrever e explicar. Isso seria a resposta mais simples. Mas a resposta verdadeira é outra. Logo depois de chegar no Brasil, tive a oportunidade de passar um ano numa antiga fazenda no interior do Rio. Lugar de rara beleza, caído, mas, ainda assim, cinematográfico. Uma casa-sede com capela própria, tartarugas centená­ rias no jardim interno e samambaias de metro numa varandona enorme, de frente para magníficos terreiros de pedra cortada à mão por escravos. E tudo isso na maior decadência econômica, a terra esgotada há muito tempo pelo café. O que gerara riqueza fabulosa para poucos agora rendia pouco para ninguém, nem para os donos, nem a meia dúzia de colonos que ali moravam e trabalha­ vam, descendentes daqueles que, há três ou quatro gerações, assim fazia sem opção. E quais reais opções, eu vinha a me perguntar, tinham estes que, um sé­ culo depois da abolição, herdaram pouco além da miséria?

12 BRIAN NICHOLSON

Nos anos seguintes, viajei bastante pelo Brasil, ganhando a vida como cor­ respondente estrangeiro. Entrevistei favelados na periferia de São Paulo, prosti­ tutas mirins no interior do Pará e uma família que morava numa caixa de papelão no centro do Rio — isto num dia de Natal. O marido cuidava da filhinha no calçadão da Rua Uruguaiana enquanto a mulher — devidamente uni­ formizada, é claro — servia mesa numa casarona na Barra da Tijuca. Se Deus quisesse, voltaria à noite com restos. Ao longo dos anos conversei com políticos, diplomatas, empresários, torturados e torturadores, economistas, padres, velhi­ nhos e milhares de cidadãos anônimos. Aventurei-me na selva amazônica com o Exército brasileiro, nos alicerces de uma Itaipu ainda em construção e em fábricas do ABC rodeadas pela Tropa de Choque. Vi brucutus em praça públi­ ca e o Congresso fechado. Ouvi panelaço ecoar pela Zona Sul do Rio, exigindo “Direitas Já”, e senti a dor resignada de um povo inteiro quando morreu Tancredo Neves. E neste tempo todo, acreditei fielmente — como, aliás, acreditou a grande maioria dos meus amigos brasileiros — que a volta da democracia traria dias melhores. Que a dívida social seria resgatada. Que se iniciaria a terraplana­ gem do abismo que sempre separou ricos e pobres. Pois então... Sabemos que o Brasil avançou muito. Nestas últimas décadas as instituições democráticas se firmaram, a sociedade civil também. Para as cama­ das mais favorecidas, os avanços são inegáveis. É praxe dizer o contrário, que as coisas eram melhores, mas isso é de fechar os olhos aos enormes avanços na medicina e nas comunicações, à abertura cultural e à modernização dos produ­ tos e serviços. Em muitos sentidos, boa parte do Brasil se juntou ao resto do mundo. As melhorias vieram não somente no qualitativo, mas também no quantitativo, pelo maior acesso aos produtos e serviços básicos. Em meados dos anos 1970, aproximadamente a metade dos domicílios tinha água encanada. Hoje, são quatro em cada cinco. Um em cada quatro era conectado à rede de esgoto. Hoje, a proporção dobrou. Luz faltava num terço dos lares. Agora, em somente um em cada 20. A metade das famílias tinha geladeira e TV; hoje nove em cada dez. O brasileiro agora vive mais tempo, seus filhos têm menos proba­ bilidade de morrer na infância e mais chance de ir à escola.1 Se falarmos somente isso, e pararmos aqui, seria legítimo imaginar que esteja tudo resolvido, ou pelo menos bem encaminhado. Seria só continuar em frente. 1 Comparações baseadas em dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). “Hoje' quer dizer dados de 2005.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 13

Mas infelizmente, não é bem assim, e por duas razões. O Brasil progrediu, sim, mas muito, muito menos que podia, ou que precisa. E o progresso que houve deixou quase incólume o maior dos flagelos nacionais, a desigualdade, tanto que o país, depois de ostentar as mais altas taxas de crescimento econômico do mundo durante boa parte do século 20, rompeu o novo milênio tarjado da mais desigual de todas as grandes nações. Nos últimos anos houve uma pequena queda na desigualdade, graças em parte ao aumento real do salário mínimo e à expansão de programas de transferência, como o Bolsa-Família. Trata-se de uma queda real e bem-vinda, mas que ainda deixa o Brasil com uma estrutura social inaceitável por qualquer ótica de justiça social. Este livro, então, é fruto inicial da uma tentativa pessoal de entender o por­ quê deste drama perene. Como seria possível o Brasil passar de ditadura militar para democracia, de hiperinflação para estabilidade, de economia fechada a aberta, de exportador de café a exportador também de jatos, e a desigualdade quase não mudar? Em alguns momentos, até piorar? Digo “fruto inicial”porque este livro não traz todas as respostas, e certamente não aponta todas as soluções. Trata, primordialmente, da previdência, e do impac­ to dessa na desigualdade. Há uma razão muito simples para essa focalização. Se podemos chamar a desigualdade de o pior problema social do Brasil, então a ver­ dade chocante é que o maior gasto social do país pouco ou nada contribui, e em alguns anos talvez chegue a piorar, seu maior problema social. Parece tão absurda que se precisa ler duas vezes para ver se não pulou algumas palavras. Mas é assim. E o mais incrível, talvez, é que os peritos sabem disso. Escrevem teses e fazem conferências sobre o assunto. Mas o que é de amplo conhecimento dos especialis­ tas vive soterrado debaixo de complicados textos acadêmicos e matemática assus­ tadora. A mensagem morre na porta da faculdade. O grande público ressente as aposentadorias astronômicas, principalmente de uma minoria no setor público, mas simplesmente não sabe da existência generalizada dos subsídios e privilégios, e seu papel na perpetuação da desigualdade. Um livro, portanto, que nasceu com a proposta de tratar de vários aspectos da desigualdade — educação, gastos sociais, estrutura fiscal, discriminação racial e políticas de desenvolvimento, por exemplo —, acabou mirando a pre­ vidência. Não por ser ela a única coisa que o país precisa resolver para atacar a desigualdade, longe disso. Mas por ser este, o maior gasto social do país, um iníquo freio ao progresso econômico e social, quando deve ser — e pode ser — exatamente o contrário.

14 BRIAN NICHOLSON

Uma pessoa que não existe...

Neste livro, vamos conhecer a figura singela e batalhadora da dona Maria. Ela não existe. Mas, de certa maneira, todos nós já a conhecemos, já a vimos. A minha dona Maria mora preferencialmente no Vale do Jequitinhonha, longe de qualquer cidade, após quilômetros de estrada de chão. Mas há muitas opções, e cada leitor tem a liberdade de escolher a dona Maria que quiser. Dona Maria é quem aparece na televisão, sempre que haja uma seca, ou enchente na periferia, ou deslizamento em área de risco, ou cólera num mangue invadido por palafitas. Dona Maria apa­ rece também na fila do INSS, de madrugada, sem dinheiro para comprar uma se­ nha para receber o que é garantido de graça pela Constituição. Sempre que a TV traz um problema destes para dentro de nossas salas, lá estará a dona Maria. Podemos descrever a dona Maria de muitas maneiras, mas basta uma. Dona Maria é o Brasil que não deu certo. Ela é uma das dezenas de milhões de cida­ dãos que, apesar das palavras bonitas de sete constituições federais, não têm direito adquirido a nada. Num determinado momento, pensei em dar vida a dona Maria — identifi­ car um caso apropriado, entrevistar, fotografar e colocar no livro. Mas desisti, porque a dona Maria vive em tantas situações diferentes que nenhum exemplo seria representativo. E ao escolher uma, talvez daria a idéia de que as outras seriam menos importantes. Ao destacar uma dona Maria do sertão, arriscamos esquecer da dona Maria da periferia. Também, sei que não preciso descrever a pobreza e a desigualdade brasileira. Quem vive no Brasil já as conhece muito bem. As injustiças sociais não preci­ sam de ainda mais descrições comoventes, ou de fotos emotivas em preto-ebranco. Precisam mesmo é de soluções. Portanto, prefiro que cada leitor, enquanto ler sobre os privilégios da previdência, pense sobre todas as donas Marias que conhece, e sobre aqueles rios de dinheiro público que hoje fluem para uma minoria privilegiada, e como eles podem ser mais bem usados. Há outra razão para não descrever casos individuais. Enquanto pensarmos na miséria e na desigualdade em termos de casos específicos, corremos o risco de imaginar que a solução virá com ajustes pontuais, por exemplo, o aumento da assistência aqui ou ali. É sempre mais fácil pensar assim, certamente mais con­ veniente. Mas não é verdade. No jargão mais moderno, a desigualdade brasilei­ ra é estrutural, e sua perpetuação é sistêmica. Estará conosco enquanto ficamos de olhos fechados à necessidade de mudanças estruturais.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 15

Dito isso, nunca podemos esquecer que qualquer discussão de problemas sociais será, no final das contas, uma discussão que envolve pessoas de carne e osso. Falar que existem 50 milhões de pobres no Brasil, vivendo com menos de meio salário mínimo por pessoa por mês, ou 20 milhões de indigentes com menos de um quarto de um mínimo, é descrever uma estatística. Outra coisa é imaginar na prática como seria, na sua própria família, sobreviver com R$ 6,34 ou R$ 3,17 por pessoa por dia, em valores de 2007. É algo que, para a grande maioria dos leitores deste livro, e também seu autor, seria tão irreal quanto ima­ ginar a vida em outro planeta.2 Duas lebres que podem ser levantadas...

Algumas pessoas vão dizer que estrangeiro não deve se meter em assuntos assim. Se é para criticar, que volte ao seu país de origem, que certamente não será perfeito. E ponto de vista que respeito, mas com o qual — obviamente — não posso concordar. Somos todos membros da sociedade em que mora­ mos, independentemente do documento que carregamos no bolso. Condená­ vel mesmo seria exatamente o contrário — dizer que quem passa a vida num outro país pode se isentar dos seus problemas sociais, se eximindo de qual­ quer responsabilidade para com sua solução. De qualquer maneira, o livro fala por si. O que importa são os argumentos expostos, e não o lugar de nas­ cimento do autor. Outras pessoas, talvez as mais jovens, podem achar que previdência não é assunto que lhes interesse — que é algo só para velhinhos, ou quem logo será. Em outras palavras, algo com o qual se pode preocupar mais tarde. Ledo enga­ no. Se os jovens adultos de hoje não lutam para mudanças fundamentais, eles arriscam passar as próximas três ou quatro décadas pagando impostos e contri­ buições para subsidiar privilégios de outras pessoas. E não adianta pensar, que sua vez virá. É totalmente impossível imaginar que nos meados do século 21, 2 Há várias maneiras de calcular o número de pobres e indigentes no Brasil. Tudo depende das definições. Em geral, vamos usar a seguinte definição: indigência (extrema pobreza) = renda domiciliar per capita de menos de um quarto de um salário mínimo por mês. Pobreza = renda domiciliar per capita de menos da m etade de um salário mínimo por mês. Segundo o Rodar Social 2006 do Ipea, usando dados do IBGE, havia em 2004 no Brasil 52,5 milhões de pobres, sendo 19,8 milhões deles indigentes. Em valores do salário mínimo de 2007, de R$ 380, significa­ ria uma pessoa viver com menos de R$ 6,34 (pobreza) ou R$ 3,17 (indigência) por dia. O número de pobres e in­ digentes flutua, conforme o valor do salário mínimo, distribuição de benefícios sociais, etc., e houve nos anos Tecerfres uma queda, graças à ampliação entre outros, do Bolsa-Família e da Aposentadoria Rural. Para nossas finalidades, podemos usar números redondos de 50 milhões de pobres e 20 milhões de indigentes.

16 BRIAN NICHOLSON

quando a proporção de idosos no Brasil será o triplo de hoje, o país vai poder bancar privilégios remotamente parecidos com os atuais.3 Ao mesmo tempo, enquanto não redirecionar os gastos sociais para os mais pobres e para a educação fundamental, os jovens brasileiros de hoje verão seu país se arrastar durante muitas décadas com a desigualdade acima do aceitável e o crescimento econômico abaixo do possível. Pensando assim, podemos dizer que, em muitos sentidos, são os jovens adultos de hoje que seriam os mais inte­ ressados em mudar a previdência. Três ressalvas essenciais...

Este livro não tem a proposta de comparar governos. Vamos falar bem e mal de coisas feitas em várias administrações, mas não há nenhuma tentativa, por exemplo, de selecionar dados que coincidem com determinados mandatos presi­ denciais. Ao contrário, usamos sempre os dados melhores e mais recentes dispo­ níveis, no momento de escrever. Quanto ao INSS e o regime dos servidores federais, os ministérios da Previdência e do Planejamento oferecem muitos dados, mas os dados dos Estados e municípios são mais escassos e em alguns momentos precisamos usar compilações eventuais de terceiros. E quando referimos à “previ­ dência brasileira” ou “a previdência nacional”, isso quer dizer todos que recebem dinheiro público — INSS, servidores civis e militares, juntos. Ao falar especifica­ mente sobre o INSS ou o regime dos servidores, chamamos por estes nomes. Este livro inclui várias comparações internacionais, algumas das quais bas­ tante reveladoras. Mas nunca fazemos isso para sugerir que o Brasil deva copiar ou rejeitar este ou aquele exemplo. É sempre útil ver os erros e acertos dos outros países, mas todas as sociedades são únicas. O Brasil tem características próprias de previdência existente, população, distribuição de renda e economia informal que exigem uma solução própria. Nada de “copiar e colar”. E por extensão, va­ mos lembrar que todos os países têm seus problemas. Alguns lidam melhor ou pior com determinados assuntos, mas nem por isso são “melhores” ou “piores” no conjunto. Cabe a cada sociedade se estruturar na maneira que reflete os desejos dos cidadãos. E se porventura, a maioria dos brasileiros — mas a maioria mesmo, e não somente a maioria dos mais ricos — aprova a atual extrema desigualdade, 3 Em 2050 as pessoas acima de 60 anos representarão um em cad a quatro brasileiros, com parado com um em c ad a onze em 2005.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 17

e acha legal os privilégios na previdência, e quer continuar assim, então não há por que mudar. E este livro perdeu sua razão de ser. Agora, uma palavra aos peritos. Trata-se de um livro para leigos. Não foi escrito para economistas com Ph.D. da Universidade de Harvard. Espero que os peritos o leiam, e o critiquem, mas que não reclamem da ausência daquelas fórmulas matemáticas assustadoras ou dos gráficos complicados que infestam as páginas da maioria dos textos sobre o assunto. Uma das razões pela qual o Bra­ sil convive há tanto tempo com uma previdência tão injusta é que ela é, por natureza, um assunto desgraçadamente complicado, um labirinto de leis, regras e tabelas. Quem não é do ramo acaba refém de declarações incompreensíveis, erradas, mal-intencionadas ou até desonestas — por exemplo, quando alguém alega que “não podemos mexer na previdência porque ela sustenta milhões de pobres”, sem mencionar que ela também paga benefícios superprivilegiados para uma minoria, e muito bem podia fazer uma coisa sem a outra. Por não ser dirigido aos peritos, este livro não exige do leitor nenhuma com­ petência em matemática ou economia. Quem entende de porcentagens não terá problema em acompanhar o raciocínio. Em alguns momentos, fazemos alguns cálculos, por exemplo para mostrar o tamanho dos subsídios, mas as partes mais detalhadas estão sempre em anexos, disponíveis na internet no site www.previdenciainjusta.com.br, ou eventualmente em notas no final do livro. E mesmo assim, nunca vamos além das quatro operações básicas. E os muitos agradecimentos

Nessa empreitada, me apoiei no trabalho de técnicos, peritos, ministérios, instituições e até jornalistas especializados. O crédito está no texto, ou uma nota no final. Sem os sites do Ipea, da Unicamp, do Banco Mundial, dos ministérios da Previdência e da Justiça, e do Banco Central, este livro não teria sido possível. Uma das glórias da internet é de aproximar o cidadão comum das fontes de informação e conhecimento. Várias pessoas tiverem a gentileza e a generosidade de me ajudar de forma mais imediata. O economista Fábio Giambiagi (Ipea) e José Cechin, ministro àaÇrevidência em 2002 e secretário-executivo do ministério nos seis anos an­ teriores, tiverem a paciência de ler o texto central quando ainda num estágio

18 BRIAN NICHOLSON

“beta”. Seus amplos comentários certamente me salvaram de vários erros técni­ cos e conceituais. O professor Rodolfo Hoffmann, da Unicamp, e os advoga­ dos Mário Paiva, de Belém, e Plauto Rocha, de São Paulo, fizeram o mesmo sacrifício com, respectivamente, a primeira seção e aquela que trata do direito adquirido. E o senador Eduardo Suplicy e o sociólogo Simon Schwartzman, presidente do Instituto de Pesquisas Sociais e Políticas Públicas, me receberem para valiosas conversas. Tom Murphy,Tania Celidônio, Jurandir Craveiro, Gus­ tavo Barbosa e Ricardo Soares, todos amigos queridos, leram e criticaram várias partes do texto. E a minha família — esposa Anne, filho Eric e cachorros Brenda e Oliberto — me oferece uma vida além do computador. Para todas essas pessoas, meus profundos agradecimentos. E as duas ressalvas essenciais — o fato de pessoas terem me ajudado com essa tarefa, inclusive lendo e comentando o texto, não quer dizer que concor­ dam, ou não, com as teses e propostas. Essas — bem como eventuais erros e omissões — são da inteira responsabilidade do autor.

SEÇÃO 1 A VERGONHOSA E TEIMOSA DESIGUALDADE BRASILEIRA

CAPÍTULO 1

Desigualdade tem explicação

E

ste livro, como todos, tem raízes. Mas estão perdidas no passado, em algum momento entre a chegada de Pedro Alvares Cabral e agora, quando o Brasil enfrenta o novo milênio ostentando o título vergonhoso de o mais desi­ gual de todos os grandes países. Vamos tocar só de passagem nestes cinco sécu­ los, porque embora haja aceitação geral de que o sistema de colonização, exploração e escravidão deu o pontapé para a desigualdade, este não é um livro de história. Também vamos tocar só de leve no impacto das várias políticas econômicas aplicadas no século 20, e agora no início do século 21, embora não reste dúvida que algumas aumentaram a injustiça social. Nosso desafio é menos de estudar as origens da desigualdade, e muito mais de entender por que ela con­ tinua tão firme e forte, e de pensar em como podemos reduzi-la. Nesta primeira seção, veremos as enormes distorções nos gastos sociais no Brasil. Em vez de centrar fogo nos mais pobres e na redução da desigualdade, estes gastos acabam favorecendo principalmente a classe média e os mais ricos. E vamos ver que o sistema previdenciário, que é de longe o maior dos gastos sociais, de fato acaba reforçando a injustiça. A partir dessa constatação esdrúxula, na Seção 2 descascamos a previdên­ cia, área por área, para entender como seria possível um absurdo desses. Vere­ mos que a previdência brasileira tem seu lado bom, beneficiando milhões de pobres. Mas veremos também que a maior parte do bolo vai para uma minoria que desfruta de mordomias que superam de longe os benefícios pagos nos pa­ íses mais ricos do mundo. E lembrando que apenas criticar é fácil, na Seção 3 detalhamos uma Nova Previdência, que acaba já com os privilégios e dota o país de um sistema enraizado na justiça social — uma proposta que vai me­ lhorar a vida de milhões de pobres enquanto libera bilhões de reais para a

22 BRIAN NICHOLSON

educação fundamental e a saúde popular. Uma vez que os privilégios são em geral protegidos pelo direito adquirido, na Seção 4 discutimos as opções para mudança constitucional. E finalmente, na Seção 5, pensamos sobre o país nas próximas décadas, o Brasil de nossos filhos, com e sem um tratamento de choque na desigualdade. Este livro não tem ideologia. Não é da esquerda, nem da direita. Mas ele se baseia em alguns fundamentos da democracia. É importante enfatizar isso, dado que uma altíssima autoridade judicial dizia que os privilégios da previdência só poderiam mudar com “uma revolução”. O autor deste livro entende, primeiro, que uma sociedade verdadeiramen­ te livre será organizada sempre para o bem e o benefício da maioria — o que não quer dizer que as minorias serão sacrificadas. Numa sociedade livre, as pessoas decentes serão sempre abertas aos interesses e às necessidades das outras. Afinal, todos nós somos, ou seremos em algum momento, parte de uma minoria. Segundo, entendo que os cidadãos numa sociedade livre têm sempre o direito de decidir quais são seus reais interesses. Numa sociedade livre ne­ nhuma pessoa, nenhuma minoria e nenhuma instituição fala mais alto que a vontade da maioria. E na expressão dessa vontade, cada cidadão tem voz e valor iguais. O terceiro princípio, que realmente decorre dos dois primeiros, é que numa sociedade livre, dinheiro público tem dono. Pertence à sociedade. Não pertence ao governo, nem aos ricos, nem aos pobres, mas a todas as pessoas, igualmente. E como dinheiro público pertence ao povo, este tem pleno direito de decidir o que fazer com aquele que é seu. Também tem o direito, futuramente, de mudar de idéia. E finalmente, uma conseqüência bastante importante — o fato de uma pessoa contribuir mais aos cofres públicos, e outra pessoa menos, não dá àquela o direito de influenciar mais no seu uso. Além destes três princípios, este livro se apóia numa suposição, a de que a grande maioria dos brasileiros quer viver numa sociedade mais justa. Não va­ mos propor nenhuma utopia socialista, onde todos ganham salário igual, nem vamos gastar tempo debatendo em exatamente qual momento a desigualdade deixa de ser inaceitável, para se tornar uma característica normal de uma socie­ dade livre e capitalista, na qual todos têm habilidades e objetivos diferentes.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 23

Mas vamos entender que, do jeito que está hoje, a desigualdade brasileira não reflete a vontade da grande maioria. Nem de longe. Essas observações iniciais são necessárias por uma razão simples. Com qua­ se dois séculos de independência, e mais de cem anos de república, e mais de duas décadas de democracia plena, o Brasil ainda ostenta uma das piores distri­ buições de renda do mundo. Se, há duzentos anos, este era o país da casa-gran­ de e senzala, é hoje o país do BMW blindado e do menino de rua. É isso que o povo quer? É essa a vontade da maioria? E supondo que não seja, estamos for­ çados a perguntar — por que, então, continua assim? O que aconteceu? Ou talvez devemos perguntar: o que não aconteceu? O pior do mundo? O segundo pior?

Há trinta anos, o economista brasileiro Edmar Bacha cunhou a imagem do Brasil como “Belíndia”, um país imaginário composto de uma minoria que vivia com padrões europeus, por exemplo, a Bélgica, e uma grande maioria que vivia (ou existia) com padrões dignos dos países mais pobres do mundo, por exemplo, a índia. Desde então, duas coisas continuam — a excelência da imagem, e também sua validade, porque o Brasil continua tão desigual quanto era. Se não piorou. O que queremos dizer, ao descrever um país como “desigual”? Afinal, em todos os lugares do mundo existe gente que ganha mais, outras que ganham menos. Não vamos gastar horas debatendo se a desigualdade é inerente à con­ dição humana, mas simplesmente reconhecer que hoje, na etapa atual da evolu­ ção da nossa espécie, a desigualdade existe em todas as sociedades. A questão é de grau — alguns países são muito desiguais, outras bem menos. Uma maneira bastante fácil de medir a desigualdade dentro de um país é comparar a renda média das pessoas mais ricas com aquela das mais pobres, es­ quecendo a turma do meio. O mais simples de tudo seria comparar dois grupos iguais, por exemplo, os 10% mais ricos com os 10% mais pobres. Mas os peritos preferem usar um grupo maior de pobres, para evitar imprecisões que possam acontecer na estimativa das rendas muito pequenas. Portanto, vamos comparar a renda média dos 10% mais ricos com a renda média dos 40% mais pobres. Há muitas maneiras bem mais sofisticadas de medir a desigualdade, mas para nossas finalidades basta uma ferramenta simples. Para o Brasil, vamos usar os dados mais

24 BRIAN NICHOLSON

recentes do IBGE, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, e para o resto do mundo, as informações mais recentes do Banco Mundial.4 Primeiro, uma ressalva — alguns peritos acham que os dados estariam magnificando um pouco a desigualdade brasileira, em comparação com alguns ou­ tros países. Nada de conspiração, é simplesmente uma questão de diferenças técnicas no processo estatístico. Pode ser que, mudando a metodologia do IBGE, o Brasil subisse alguns degraus no ranking mundial. Mas nunca ao pon­ to de imaginar que o país não é muito desigual.

Pelos dados do IBGE, então, os 10% de brasileiros mais ricos embolsam 45% da renda no país, enquanto os 40% mais pobres ficam com somente 9%. Isso quer dizer que os ricos ganham em média 20 vezes mais que os pobres. Tem baixado um pouco nos últimos anos, mas continua sendo uma das piores taxas do mundo. Vamos ver como ela se compara com alguns outros países: 20 VEZES-BRASIL 0 A M É R IC A

0 Á SIA

0 Á F R IC A

0

20 vezes COLÔMBIA

10 vezes CHINA

18 vezes ÁFRICA DO SUL

7 vezes ESTADOS UNIDOS

17 vezes MÉXICO

ó vezes INDONÉSIA

13 vezes NIGÉRIA

7 vezes PORTUGAL

15 vezes ARGENTINA

6 vezes VIETNÃ

7 vezes REINO UNIDO

5 vezes ÍNDIA

6 vezes AUSTRÁUA

5 vezes RÚSSIA

ó vezes ITÁLIA

4 vezes CORÉIA DO SUL

5 vezes ESPANHA

LATIN A

PA ÍSES D E S E N V O L V ID O S

5 vezes FRANÇA 4 vezes ALEMANHA 3 vezes JAPÃO

4 Aqui, já estou fazendo uma barbeiragem, usando fontes e anos diferentes. Os dados do Brasil vêm da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Pnad - IBGE, via IpeaData, de 2004, enquanto os internacionais são calculados a partir da Tabela 2.7 do World Development Indlcators 2005, disponível no site do Banco Mundial, onde os dados são de 2000 a 2002. Seria possível usar dados do Brasil da mesma época, mas se fizéssemos isso, omitiríamos a queda mais recente na desigualdade brasileira. A tabela mostra a média per capita do rendimen­ to domiciliar bruto - incluindo transferências como aposentadorias, antes de imposto. Existem várias fórmulas matemáticas para medir a desigualdade. Qualquer que seja o método escolhido - o mais comum é o coeficien­ te de Gini - ele pode ser usado para comparar salários brutos, ou salários líquidos depois de impostos e outras deduções. Podemos incluir ou excluir rendimentos de outras fontes, por exemplo, juros, aluguéis e benefícios d a previdência. Podemos medir renda ou consumo. E só para complicar, podemos comparar indivíduos, ou famílias, ou a renda média por pessoa em cad a família, ou em cad a domicílio (que é a base da tabela). C a d a m étodo tem suas vantagens e limitações.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 25

São excluídos da lista países como Botsuana, Namíbia, Haiti, Lesoto, Serra Leoa e Paraguai, que juntos com o Brasil são as tradicionais lanternas em tabe­ las de desigualdade. Não se trata de nenhuma tentativa de maquiar a lista. E que, com todo respeito àqueles países, eu diria não são — ou não devem ser — boas comparações para o Brasil. Agora, o que podemos dizer sobre a lista? • Primeiro, que a desigualdade é visivelmente maior na América Latina e na África que no restante do mundo. E o Brasil aparece na mesma faixa da África do Sul, país que sofreu com décadas de apartheid. • Segundo, que não há muita relação entre o nível econômico de um país e seu grau de desigualdade. Os países mais ricos são, em geral, mais iguais, mas muitos paí­ ses pobres, principalmente na Ásia, também têm baixa desigualdade. Os Estados Unidos são bem mais desiguais que a índia, mas em média o americano é 13 vezes mais rico, mesmo ajustando pela diferença nos preços. O brasileiro médio é três vezes mais rico que o vietnamita, mas o brasileiro pobre ganha menos que o do Vietnã. E o Banco Mundial, ao comparar o Brasil com outros países que têm o mesmo nível de PIB per capita, estimou que a alta desigualdade brasileira cria 29 milhões de pobres adicionais. De fato, Fernando Henrique Cardoso tinha razão ao martelar sempre que “o Brasil não é um país pobre, é um país injusto”.5 • Terceiro, fica óbvio que não há relação entre tamanho de população e igualda­ de. Indonésia, índia e China são todos maiores que o Brasil, e mais pobres, mas são sociedades mais iguais. É verdade que a desigualdade na China vem au­ mentando, com a industrialização, mas continua bem abaixo da do Brasil.

Por que o Brasil continua campeão invicto, a mais desigual das grandes na­ ções? Vamos ver, rapidamente, de onde vem essa desigualdade. E depois, vamos ver possíveis soluções. De fato, o Brasil nunca foi nenhum paraíso de justiça social — pelo menos depois da chegada de Cabral. Passou de colônia escravista para monarquia es­ cravista, com uma pequena quantidade de ricos e profissionais, e com muita gente livre, mas basicamente indigente. Disse a economista Maria Cristina 5 A comparação entre os 10% mais pobres no Brasil e Vietnã vem do relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) 2005, pág. 6. A estimativa do número adicional de pobres, do relatório Brazil: Inequality and Economic Development (Banco Mundial, 2003).

26 BRIAN NICHOLSON

Cacciamali, da USP: “O passado colonial e escravocrata é o ponto de partida da concentrada distribuição de riqueza e da renda no Brasil.”6 A imigração européia e asiática acelerou a formação de um pequeno núcleo de classe média urbana, que cresceu com a industrialização, mas foi um proces­ so que em grande parte deixou de lado os escravos libertados e seus descenden­ tes, e também aquela massa enorme de indigentes. Se pensarmos na imagem de Belíndia, podemos dizer que a parte “Bélgica” cresceu no século 20 como uma pequena ilha dentro de um imenso mar de “índia”. Mas outros países grandes também eram colônias, e tiveram escravidão, mais notavelmente os Estados Unidos. O Brasil conseguiu sua independência depois dos EUA, é verdade, mas não muito depois. E mesmo assim, a inde­ pendência não mudou fundamentalmente a situação da grande maioria dos brasileiros. Por que será que o Brasil não seguiu um caminho parecido de desen­ volvimento, uma vez livre das argolas de ferro de seu algoz colonial? Economistas e historiadores oferecem dezenas de explicações para trajetó­ rias diferentes de desenvolvimento em países diferentes, incluindo recursos naturais, posição geográfica, clima, educação, valores religiosos e culturais e abertura ao comércio. Às vezes a discussão ganha fortes conotações ideológi­ cas, e como é sempre o caso, os peritos brigam muito entre si. Seria uma le­ viandade tentar resumir um enorme debate em poucas linhas. Mas ao pensar especificamente no Brasil e nos Estados Unidos, parece evidente que um fator fundamental foi a natureza da colonização dos dois países. Nos Estados Uni­ dos, além das grandes atividades escravistas, surgiu em muitas regiões uma economia local viável enquanto o Brasil continuou essencialmente como ex­ portador de matéria-prima durante muito tempo depois da independência. Talvez mais importante ainda: nos EUA houve uma sociedade com forte viés democrático, com a criação de instituições robustas e a importação acima de tudo de idéias modernas da Europa. No Brasil colonial, as estruturas e valores socais refletiam o lado atrasado do Velho Mundo. Um exemplo só, mas bas­ tante simbólico: a primeira gráfica no que seriam os Estados Unidos foi ins­ talada em 1638, e antes de 1800 surgiram mais de 130 jornais, inclusive com nomes sugestivos tais como Centinel of Freedom e Guardian of Liberty. No Brasil, a primeira gráfica chegou em 1808, com a Corte, basicamente para 6 “Distribuição de renda no Brasil: persistência do elevado grau de desigualdade', publicado no livro Manu­ al de Economia, de Pinho & Vasconcellos, 2002. Cacciamali é livre-docente e professora titular d a Universidade de São Paulo (USP), com pós-doutorado no Massachusetts Institute of Technology.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 27

imprimir decretos, e o primeiro jornal, A Gazeta do Rio deJaneiro, saiu naque­ le ano com censura prévia. Mas, como vimos na tabela, o problema da desigualdade não é somente do Brasil. A América Latina é conhecida, entre os peritos, por suas disparidades sociais. Segundo um relatório da Comissão Econômica para América Latina e Caribe (Cepal) no início de 2005, “a região se distingue como a mais atrasada do mundo em termos de eqüidade ao constatar o contraste marcado entre a participação na renda dos 5% mais ricos e dos 5% mais pobres”. Ou seja, o Bra­ sil pode ser destaque, mas certamente não é o único com culpa no cartório. Enquanto as trajetórias do Brasil e seus vizinhos nos últimos 500 anos certamente não eram idênticas, os peritos enxergam traços em comum. Os eco­ nomistas Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff, especialistas no desenvolvi­ mento econômico das Américas, afirmam: “Nas sociedades que nasceram com extrema desigualdade, as elites tinham a vontade e a capacidade de estabelecer um arcabouço jurídico básico que lhes assegurava uma fatia maior do poder político e de usar essa influência para estabelecer regras, leis e outras políticas governamentais que lhes davam maior acesso às oportunidades econômicas que o resto da população, dessa maneira contribuindo para com a persistência do alto grau de desigualdade”. Trata-se de uma análise geral da região, mas que se encaixa como uma luva para o Brasil.7 Temos, portanto, um país saído do escravidão com a elite bem entrincheira­ da, uma pequena classe média em formação e um mar de pobres simplesmente na espera. Não houve nenhuma mobilização significativa para construir uma sociedade mais igualitária. Houvesse, no fim da escravidão ou nas primeiras décadas do século 20, uma reforma agrária para valer, não resta dúvida que o Brasil de hoje seria outro. Mas não houve, o momento passou e não adianta, em pleno século 21, tentar voltar o relógio. O que aconteceu foi a expansão da eco­ nomia moderna, ora mais rápida, ora mais lenta, mas sempre como uma ilha no meio de um oceano de atraso. Algumas pessoas conseguiram pular da “índia” para a “Bélgica”, mas a maior parcela da velha economia simplesmente marcou passo. E à medida que cresceu a parte mais moderna da economia — a “Bélgi­ ca”— os grandes serviços públicos de educação, saúde e previdência foram evo­ luindo juntos, mas quase sempre reservados principalmente para ela. 7 No texto “Factor Endowments, Inequality, and Paths of Development Among N ew World Ecomomies" (Stanley Engerman e Kenneth Sokoloff - NBER 9259, de 2002).

28 BRIAN NICHOLSON

Voltamos às palavras de Maria Cristina Cacciamali, da USP: “A massificação da escola que se inicia após os anos 40 não atingiu a maior parte da população, mas principalmente as camadas médias dos centros urbanos mais importantes. Até os dias de hoje, o Brasil não dispõe de um sistema público de boa qualidade de ensino fundamental e de segundo grau”. Chegamos, então, ao “milagre econômico” do governo militar, época em que o então general-presidente Emílio Garrastazu Médici dizia que “o país vai bem, o povo vai mal”. Vários indicadores sugerem que a desigualdade — que já era ruim — aumentou nas décadas de 1960 e 70. Peritos oferecem diferentes razões para isso, e mais uma vez não vamos tomar lado, mas simplesmente ver algumas das explicações mais comuns. Dizem alguns economistas que a rápida indus­ trialização fez explodir a demanda para profissionais e trabalhadores mais capa­ citados, o que teria puxado para cima seus salários. Também a economia estava crescendo exatamente nos setores que pagavam melhor — as montadoras do ABC seriam um exemplo típico — e foram criados milhões de empregos bons. Dizem outros que o governo militar favoreceu a classe média e quem vivia da especulação financeira, enquanto reprimiu os sindicatos. Assim os mais ricos fizeram festa, enquanto os trabalhadores mais humildes tiveram de aceitar ajus­ tes menores. De qualquer maneira, o país cresceu, e a desigualdade também. Depois do “milagre”, chegamos aos anos 1980 e 90, quando o Brasil passou boa parte do tempo atolado em sucessivas crises de inflação e dívida. O pouco crescimento que houve beneficiou muito mais a classe média e os ricos, tanto que as famílias mais pobres — principalmente nas cidades — experimentaram crescimento de renda abaixo da média. Desde o Plano Real a desigualdade vem cedendo um pouco, graças em parte à estabilidade da economia e os aumentos reais no salário mínimo — que impactam os benefícios mínimos da previdência — e também à expansão dos programas de transferência de renda, com desta­ que para o Bolsa-Família. Um recuo bem-vindo, sem dúvida, mas nada que deixe o Brasil num patamar aceitável. Nem perto. E certamente, nada que possa nos levar a pensar que a questão da desigualdade está em vias de ser resolvida. Ao longo dessas décadas, e mesmo em momentos de aumento da desigual­ dade, houve substancial migração da “índia”para a “Bélgica”. Não é exatamente igual à migração do campo para a cidade, porque muitos pobres simplesmente trocaram a miséria rural pela miséria urbana, sem entrar na “Bélgica”. Mas quem não conhece uma família que saiu do Nordeste e conseguiu se estabelecer numa das grandes cidades? Talvez a primeira geração trabalhou na construção,

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 29

ou em fábrica, mas a segunda fez faculdade. O Brasil tem milhares de histórias assim, de gente batalhadora que deu certo, tanto que muitas pessoas ainda acre­ ditam que aquela ilha “Bélgica” pode continuar a crescer até absorver o restante daquele mar de “índia”. É tentador pensar que este processo e a expansão dos benefícios assistenciais seriam suficientes para resolver as grandes desigualdades, sem grandes sacrifí­ cios. Podemos até ir por este caminho, sem maiores esforços — desde que acei­ temos esperar mais um século.

CAPÍTULO 2

Soluções míticas, heróicas, mirabolantes e... sensatas

D

esde que “economia” se conhece por ciência, há mais ou menos 300 anos, duas das suas maiores áreas de interesse têm sido crescimento e desigual­ dade. Crescimento é relativamente fácil. Todo mundo gosta do crescimento econômico, pelo menos enquanto não traz inflação, danos ambientais, perda de lazer, destruição de valores tradicionais ou vários outros inconvenientes, e há uma presunção geral de que “quanto maior, melhor”. Pode haver briga de foice em torno das políticas mais adequadas para se conseguir tal crescimento, mas há pouco debate quanto à sua desejabilidade em si. Desigualdade é bem mais espi­ nhosa. Podemos dizer que há concordância nos extremos. Salvo talvez os eco­ nomistas da extrema esquerda e aqueles que moram em comunas, poucos defendem igualdade total de renda, e mais difícil ainda seria achar alguém que apóie (pelo menos em público) a desigualdade brasileira. Mas entre a utopia impraticável e a realidade inaceitável, qual seria o nível “correto” de igualdade? A resposta simples é que não há nível “ideal” ou “correto”, e cada sociedade tem percepções diferentes do que seria “justo”.Tanto é assim que, numa pesqui­ sa de opinião nos países da América Latina em 2001, a ONG “Latinobarómetro” detectou bem menos aceitação da desigualdade na Argentina que no Brasil, embora — como vimos — a Argentina seja menos desigual. Vamos resolver essa questão de maneira simples e pragmática — vamos ignorá-la. Vamos entender que a grande maioria dos brasileiros considera a desigualdade alta demais, e queira reduzi-la. Mas como? Passaremos rapida­ mente por algumas das sugestões mais freqüentes de como promover maior

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 31

igualdade e, como este livro não é um manual de economia, os comentários são bastante resumidos. Primeiro, as soluções míticas, heróicas e mirabolantes que às vezes se escuta: •



— Este é o maior de todos os mitos. E aquela lengalenga do bolo que precisa crescer, para depois ser repartido. E claro que queremos o crescimento econômico, e que isso é desejável para o país. E é claro que o crescimento poderia, sim, reduzir a desigualdade. Mas também poderia aumentá-la. Aliás, acabamos de ver que a desigualdade piorou no Brasil em períodos de alto crescimento. E sempre possível imaginar condi­ ções nas quais o crescimento pode reduzir a desigualdade. Por exemplo, se vier acompanhado de políticas proativas de distribuição, quem sabe através de impostos. Mas se realmente houvesse vontade política de redistribuir renda, tais políticas podem ser adotadas agora, com o bolo que temos. Para que es­ perar? De fato, aquela história do bolo soa, muitas vezes, como tentativa cíni­ ca de adiar qualquer mudança, ou de sugerir que uma sociedade pode fazer uma redistribuição de renda sem nada mudar. Talvez o pior — e algo que os defensores do bolo não comentam — é que alta desigualdade pode até difi­ cultar o crescimento econômico. Voltaremos ao assunto no capítulo final. C re s c im e n to econômico

— Há quem culpe a globalização pela desigual­ dade brasileira. De um lado isso seria ridículo, pois o país sempre foi bastan­ te desigual, muito antes da palavra “globalização” se tornar a nova bête noire dos radicais nos bares da Vila Madalena, em São Paulo. Do outro, há indica­ ções de que, sim, a globalização estaria aumentando a desigualdade interna em alguns países. Com a globalização, os setores mais competitivos nos paí­ ses em desenvolvimento têm oportunidades inéditas de se relacionar com o Primeiro Mundo. O grande exemplo disso é a terceirização para a índia, por exemplo, processando cartões de crédito dos Estados Unidos e da Europa, mas também há empresas brasileiras que se tornaram fornecedoras mun­ diais. De qualquer maneira, uma vez que o Brasil não pode mudar os rumos do planeta, quais são suas reais opções? Seria melhor o país se fechar de novo, como nos anos 1980, quando a gente ia a Disney e voltava com computador escondido na mala? Ou seria melhor tirar proveito da globalização e ao mes­ mo tempo modernizar a economia e a sociedade para resistir aos lados nega­ tivos do processo? E sendo o segundo, tão obviamente o caminho melhor, a

R e je ita r a g lo b a liz a ç ã o

32 BRIAN NiCHOLSON

lógica nos diz que a globalização seria mais uma razão para o Brasil atacar, urgentemente, a desigualdade e as grandes lacunas no ensino fundamental. Enfrentar o mundo globalizado do século 21 com a desigualdade da época colonial é realmente brigar com uma das mãos amarrada nas costas. •







— Que pode, pode. Mas para quê? E com qual custo depois? A dívida externa agora tem custo relativa­ mente baixo, graças à queda na taxa de risco Brasil. Então, moratória para negociar termos melhores, no estilo da Argentina, não faria sentido. D e c l a r a r m o r a t ó r ia n a d ív id a e x te r n a

— Legal, seria excelente para a economia. Mas tem que ser de verdade, nada de artifícios. Não adianta legislar uma queda nos juros, como os governos militares expurgaram o chuchu da inflação. Temos que resolver as causas dos juros altos, e não simplesmente culpar o termômetro. Uma boa reforma fiscal seria uma contribuição enorme. Se baixar os juros, vai sobrar dinheiro público. Mas quem garante que este dinheiro adicional seria distribuído de forma mais justa que os gastos atuais? E se é para distri­ buir de forma mais justa o dinheiro economizado, por que não começar ago­ ra, com os gastos atuais? B a ix a r os ju ro s

— Também pode. Mas primeiro, teria que instituir o neoliberalismo, definido pelo dicionário Houaiss como doutrina que “defende a absoluta liberdade de mercado e uma restrição à intervenção estatal sobre a economia, só devendo esta ocorrer em setores imprescindíveis e ainda assim num grau mínimo”. E isso que temos no Brasil? Quem acha que sim, podia muito bem pensar nas relações trabalhistas, ainda amarradas numa camisa-de-força copiada da Itália na época de Mussolini, ou na vasta influência do governo no setor energético... R e n u n c ia r o n e o lib e ra lis m o

R e n u n c ia r o c a p ita lis m o — Podemos tentar reduzir a desigualdade à força, com algum tipo de ditadura que fixe preços e salários, mas as experi­ ências deste naipe já feitas no mundo não se mostraram exatamente exitosas. Algumas sociedades socialistas podem até ser melhores que a podridão que existia antes — Cuba, talvez —, mas isso não altera a falta de liberdade e prosperidade que tem sido marca registrada dos regimes comunistas. A de­ sigualdade pode ser menor, sem dúvida, mas a que preço?

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 33

De fato, as soluções míticas, heróicas e mirabolantes, ou são irrelevantes à desigualdade, ou são potencialmente danosas à economia e/ou ruins para os pobres e, portanto, aptas a piorar em vez de melhorar a distribuição de renda. É difícil não chegar à conclusão de que são sugeridas às vezes dentro de uma visão ideológica, e não como propostas pragmáticas para melhorar a vida dos eternos excluídos. Afinal, podemos construir em volta do Brasil uma mura­ lha igual à da China, estatizar os telefones e proibir toda e qualquer cobran­ ça de juros, e nada disso iria alterar o fato de que a previdência paga benefícios altamente privilegiados para uma minoria. Felizmente, caso a sociedade queira realmente reduzir a desigualdade, temos opções mais sensatas.

Na busca de soluções viáveis, nosso essencial ponto de partida é entender e aceitar que, numa sociedade livre, pessoas de habilidades e índoles diferentes terão rendas diferentes, devido em boa parte às forças da oferta e da procura, o chamado “livre mercado”. Essa desigualdade gerada pelo livre mercado inclui não somente os salários, mas todas as fontes de dinheiro que uma pessoa possa ter — aluguéis, juros, lucros, etc., mas excluindo o dinheiro que vem do governo na forma de benefícios assistenciais. Caso uma sociedade entenda que a desigualdade criada pelas diferenças pes­ soais e pelo mercado é alta demais — o que normalmente é o caso —, ela trata de reduzi-la. Para tanto, é necessário pensar em dois horizontes, o imediato e o de longo prazo, para os quais existem estratégias e armas diferentes: — para reduzir a desigualdade agora, a estratégia é transferir renda, algo que acontece em todas as sociedades modernas. As principais armas são os impostos e os gastos sociais. No Brasil, o Bolsa-Famüia é o exemplo mais comentado. Mas devemos examinar todos os gastos do dinheiro público.



H o je



Am anhã

— para construir um país mais igualitário, onde a desigualdade que vem das diferenças pessoais e do mercado é menor, a estratégia é assegu­ rar que nossos filhos — todos eles — possam fazer jus a salários melhores. Nossas armas principais são educação, saúde e infra-estrutura. E dessas, a mais importante para o Brasil, hoje, é a educação fundamental.8

8 Trata-se obviamente de uma simplificação, separar tais coisas em "imediato' e “longo prazo'. Saúde tem a ver com desigualdade atual e estrutural, infra-estrutura física também. E programas de transferência de renda, quando bem desenhados e implementados, podem ter impactos imediatos e estruturais. Também impostos sobre heranças e grandes fortunas podem impactar os dois horizontes.

34 BRIAN NICHOLSON

As propostas feitas neste livro trabalham nos dois horizontes, o imediato e o de longo prazo, porque ao eliminar já os privilégios da previdência, vamos provocar dois impactos positivos. Vamos reduzir a desigualdade atual, distribuindo dinheiro público de forma mais justa, e vamos liberar bilhões de reais para reforçar aqueles programas que vão mudar o Brasil de amanhã. Agora, o fato de este livro focar mais a previdência não quer dizer, de maneira alguma, que compensar a desigual­ dade atual é mais importante que reduzir as injustiças estruturais. Ambos são es­ senciais. Mas enquanto os problemas da educação brasileira são relativamente bem difundidos, as grandes iniqüidades da previdência são quase desconhecidas.9 Ultraje social...

Como o Brasil lida com sua grande desigualdade? O que a sociedade faz atualmente, ou poderia fazer, para aliviar a desigualdade excessiva, criada pelas diferenças pessoais e pelo mercado? Os instrumentos clássicos são: impostos e programas sociais. Em termos simples, uma sociedade cobra impostos de si mesma para pagar as coisas que ela decide fazer de forma coletiva — estradas, hospitais, educação, defesa, assistência social e assim vai. Quase como num con­ domínio gigante. Um erro comum é pensar que podemos impactar a desigual­ dade somente pelo lado dos gastos, com programas sociais. De fato os dois lados do processo são importantes. Nos impostos, o que importa não é somente a quantidade total, mas também as maneiras como arrecadamos o dinheiro ne­ cessário. Quem paga e quanto? Nosso ponto de partida, portanto, será ver o impacto naquela desigualdade que vem do mercado, de tudo que a sociedade faz de forma coletiva, somando impostos e gastos sociais. E é aqui que as coisas começam a ficar anuviadas. O Ministério da Fazenda oferece uma comparação fascinante entre o impacto dos impostos e benefícios na Europa e no Brasil. Na Europa, em média, a combinação dos impostos e benefícios reduz a desigualda­ de em 37%. Em países como Bélgica, Dinamarca e Finlândia, a queda é quase pela metade. No Brasil, a redução é de somente 11%.10 9 Para quem quiser ler mais sobre os problemas da educação, recomendo os vãrios trabalhos de Simon Schwartzman, com eçando por Os desafios da educação no Brasil, org. Colin Brock (Nova Fronteira, 2005) e o site dele - http://www.schwartzman.org.br/simon/. Também A ignorância custa um mundo por Gustavo loschoe (Ed Francis, 2004). ' 10Veja Orçamento Social do Governo Federai 2001-2004, de abril de 2005, disponível no site do ministério. Os dados europeus vêm do Euromod, um projeto que reúne universidades d e 15 países para acom panhar os im pac­ tos dos impostos e benefícios sociais no continente, enfatizando principalmente a redução d a pobreza -

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 35

Temos, então, nossaprimeira constatação preocupante', a soma das ações que a sociedade brasileira faz para reduzir sua desigualdade tem muito menos impac­ to que as ações dos países mais ricos do mundo. Em palavras simples: o Brasil, que é muito mais desigual, faz menos esforço para melhorar. Caso alguém se assuste com essa nossa, primeira constataçãopreocupante^ é melhor que se prepare, porque tal desempenho tão ruim não surge por ocaso. Ele acontece por uma razão bastante lógica. Os dois lados do processo, impostos e gastos, embu­ tem fortes elementos de injustiça. Vamos começar com os impostos. Todo mundo sabe que o rico paga mais imposto que o pobre, está certo? Bem, talvez nem sempre, pelo menos em termos proporcionais. Segundo os peritos, é possível que o Brasil arranque proporcionalmente mais imposto dos pobres que dos ricos. Supondo que todo mundo pague direitinho seus impostos, sem sonegação, então não há dúvida de que o rico paga mais Imposto de Renda. Porém, precisa­ mos pensar no imposto total, contando não somente o IR — chamado de impos­ to direto — mas também na garfada que todos nós levamos ao comprar alguma coisa — os chamados impostos indiretos. Aí é que o negócio complica. Em mé­ dia, nos países ricos do mundo, os impostos diretos e indiretos têm pesos mais ou menos iguais. Para cada euro arrecadado pelos impostos diretos, outro vem pelos impostos indiretos. Mas no Brasil, os impostos indiretos têm peso dobrado — ge­ ram R$ 2 para cada RS 1 de imposto direto. Do ponto de vista da justiça social, isso é péssimo. Há muito tempo os economistas nos alertam que os impostos in­ diretos pesam relativamente mais no bolso dos pobres, porque o pobre gasta uma proporção maior do seu dinheiro com compras. Não é fenômeno só do Brasil, acontece no mundo inteiro, mas, uma vez que o Brasil arrecada proporcionalmen­ te mais com impostos indiretos, a conseqüência é que o Brasil joga relativamente mais peso de tributos indiretos nos ombros dos pobres.11 Alguns exemplos da incidência dos impostos indiretos — um estudo do Ipea, publicado em 2000, indica que os alimentos da cesta básica embutem impostos de 13,5%, isso nas principais regiões metropolitanas do país. Mas se alguém se atrever a comprar, além de comida, produtos de limpeza, ou material escolar, que se cuide. Segundo a Associação Comercial de São Paulo, o preço http://www.iser.essex.ac.uk/msu/emod/. Os dados do Brasil vêm da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, Pnad - IBGE, de 2003. As comparações são feitas em termos do Gini, e a queda média nos 15 países da "antiga' E.U. é de 0,51 para 0,32, enquanto no Brasil a queda é de 0,63 para 0,56. As aposentadorias e outros benefícios representam 0,05 da queda brasileira, e impostos diretos somente 0,02. Na Europa, a queda devida aos impostos diretos é de aproximadamente 0,04. O estudo nâo leva em conta o impacto dos impostos indiretos e, portanto, tende a mascarar um pouco o péssimo desempenho brasileiro na redução d a desigualdade. n OECD Economfc Surveys - Brazil 2005“.

36 BRIAN NICHOLSON

final do sabão em barra esconde 40,5% de impostos, um lápis ou caderno uni­ versitário, 36,2%; um apontador ou uma borracha, 44,4%. E se ligar a luz em casa, para o filhinho estudar à noite, lá se vão mais 45,8%.12 Conseqüência — o sistema fiscal no Brasil contribui com muito pouco para reduzir a desigualdade, e talvez até faça piorar a situação. Para o Banco Mundial, nas áreas metropolitanas brasileiras em 1999, o impacto geral dos impostos foi no sentido de aumentar a desigualdade, exatamente porque o impacto bom dos impostos diretos foi superado pelo impacto ruim dos impostos indiretos. Nessas regiões, segundo o Banco Mundial, “os 40% mais pobres recebem bem menos que 10% da renda total, mas pagam 16% do total do imposto indireto”.13 Para o OCDE, a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômi­ co, que reúne os países desenvolvidos, é possível que no Brasil como um todo os impostos façam uma pequena contribuição positiva para reduzir a desigualdade, mas nada da magnitude que seria de se esperar. No seu relatório de 2005, após co­ mentar o pouco êxito dos programas sociais em reduzir a desigualdade brasileira, a entidade concluiu: “Tampouco o sistema tributário contribui para melhorar a dis­ tribuição de renda. Enquanto na maioria dos países do OCDE, existe uma diferen­ ça significativa entre a distribuição da renda bruta e da renda líquida, no Brasil isso não acontece. A razão é que o impacto dos impostos diretos na distribuição de renda é quase totalmente neutralizado pelo impacto dos impostos indiretos...”.14 Certamente não queremos mudar o sistema tributário a ponto de jogar o peso total nos assalariados mais ricos e no lucro das empresas, e assim talvez aumentar a sonegação e reduzir o incentivo para trabalhar e investir. Mas certa­ mente há muito espaço para melhorar. Eis, portanto, nossa segunda constatação preocupante', no Brasil, o pobre paga uma fatia relativamente grande dos impostos, fazendo com que o sistema fiscal tenha pouco ou nenhum impacto sobre a desigualdade. Nossa próxima fonte de preocupação vem do outro lado do processo, e é pare­ cida: no Brasil, o custo dos programas sociais cai em boa parte sobre os ombros dos próprios pobres e da classe média baixa. Pode parar e ler de novo, mas é isso 12Os dados da Associação Comercial de São Paulo se referem especificamente ao Estado de São Paulo, e certamente haverá diferenças entre Estados. Em 2002 a Câmara Americana de São Paulo calculou que o custo de isentar de ICMS os alimentos da cesta básica seria US$ 1 bilhão ao ano. ,3 Brazil: Inequality and Economic Development, Banco Mundial, 2003. ,4 OECD Economic Surveys - Brazil 2005. pág. 134 e 135.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 37

mesmo. Sempre imaginamos que os programas sociais seriam a maneira pela qual os mais ricos ajudavam os mais desafortunados. Seria, efetivamente, uma transferência de renda que levaria a sociedade na direção certa, mesmo que lentamente. Pois vamos lá. Com a palavra, os peritos Helmut Schwarzer e Ana Carolina Querino, do Ipea: “...é possível dizer que historicamente grande parte do financiamento das políticas sociais — com ênfase especial nos gastos redistributivos — foi sustentada pela parcela menos abastada da sociedade brasilei­ ra...”. O argumento de Schwarzer e Ana Carolina é o de que os programas sociais têm sido financiados principalmente através de contribuições sobre salá­ rios — ou seja, pelos trabalhadores e os empregadores — e isso aumenta os preços. Assim, o pobre e o assalariado pagam pelos programas sociais de três maneiras — nos descontos na folha, nos preços e impostos na loja, e na dispo­ nibilidade menor de empregos. E devemos ter em mente, como acabamos de ver, que o pobre também carrega um peso relativamente alto dos impostos.15 Chegamos, portanto, à nossa terceira constatação preocupante: no Brasil, as camadas que menos têm, arcam com uma parcela desproporcional do custo dos programas sociais. De tudo isso, devemos tirar uma lição importante: as coisas nem sempre são o que parecem ser. Quem não é perito provavelmente pensou, como eu pensava, que era óbvio que o rico pagasse mais impostos e bancasse os programas sociais. Como acabamos de ver, não é bem assim. Outro mito é que o Brasil é desigual porque gasta pouco na área social e que, por tabela, teria de gastar muito mais para melhorar a situação. Com a palavra, a OCDE, no mesmo relatório: “O Brasil gasta aproximadamente um quarto do seu PIB em programas sociais pagos pelos cofres públicos (incluindo educação, saúde, moradia, saneamento, previdência, assistência e seguro-desemprego). Trata-se de uma quantidade grande, pelos padrões internacionais, e bem acima da média dos gastos em países com nível de renda parecido”. Depois de reconhecer a me­ lhoria de alguns indicadores sociais nos últimos anos, a entidade observa que “a 15 No texto n.2 929 do Ipea: Benefícios sociais e pobreza - programas não contribufivos d a seguridade social brasileira, de 2002. Depois, Schwarzer se tornou secretário de Previdência Social, no governo Lula. A citação completa é: “Vale ressaltar que. desde a década de 1920, e especialmente durante o regime militar, foi imple­ mentada no Brasil a lógica do autofinanciamento da política social, ou seja. os fundos destinados aos programas sociais originavam-se das contribuições sobre a folha de pagamento. Dessa forma, a carga da redistribuição era transferida aos trabalhadores assalariados formais e seus empregadores. Estes, na maioria das vezes, repassavam os custos para os consumidores, elevando os preços em um contexto inflacionário. Apesar de isso nunca ter sido exdiamente medido, é possível dizer que historicamente grande parte do financiamento das políticas sociais com ênfase especial nos gastos redistributivos - foi sustentada pela parcela menos abastada da sociedade brasileira por meio dos preços dos produtos, das altas contribuições incidentes sobre a folha salarial e os conse­ qüentes ba\xos níveis de emprego e salário real".

38 BRIAN NICHOLSON

distribuição de renda continua teimosamente desigual, devido em parte ao fato de que uma fatia considerável dos gastos sociais nem chega aos pobres”.16 Aí é que vamos chegando à raiz do problema. O Brasil gasta bastante na área social, mas tradicionalmente gasta mal, o que contribui para perpetuar a desigualdade. Com a palavra, Marcelo Neri, economista da FGV e um dos maiores peritos brasileiros em política social: “Uma das causas fundamentais da nossa desigualdade inercial são transferências de renda às avessas, patrocinadas pelo Estado brasileiro... a luta contra desigualdade inercial se dá inicialmente no redirecionamento das políticas de rendas do Estado.” E também Marcelo Estêvão de Moraes, outro especialista em políticas sociais: “A política social brasileira tem sido mais mecanismo de reprodução da desigual­ dade estrutural do que instrumento de incorporação dos segmentos economica­ mente excluídos, ou de redução das diferenças sociais. Na verdade, não chegamos a conhecer o Estado de Bem-Estar Social. A cultura do privilégio nos levou mui­ tas vezes ao Estado de Mal-Estar Social que, ao reproduzir as estruturas de desi­ gualdade social, não foi capaz de resolver os problemas das maiorias”.17 É importante observar o que Neri e Moraes falavam há alguns anos. Recen­ temente, o Bolsa-Família representou um passo no sentido correto — Neri o descreveu como “um eficiente programa de transferência de renda,” que vem contribuindo com a queda recente na desigualdade.18 Mas, também é necessário dizer que o Bolsa-Família representa uma parcela pequena dentro do gasto social total do país, que na sua grande maioria conti­ nua com sérios problemas. Como seria possível existir políticas sociais que gastam tão mal? Seria devido à corrupção — alguém metendo a mão no dinheiro? Ou talvez à incompetência — cestas básicas esquecidas no galpão da prefeitura, enquanto muita gente pas­ sa fome? Obviamente isso pode acontecer, em qualquer país, mas o problema 16A OCDE estimou o total dos gastos sociais no Brasil em 244% do PIB. comparado com 25.6% para a média dos países membros da entidade. O maior gasto percentual era da França, com 34.2% do PIB, e em seguida d a Alemanha, com 31,7%. Bastante parecidos com o Brasil estavam a Holanda, com 26,0%, e a Espanha, com 23,9%. Com níveis bem mais baixos que o Brasil, os Estados Unidos, com 19,5%; México, 16,6%; e Coréia do Sul, 10.4%. Dados do Brasil sõo de 2002; os outros, de 2001. 17No texto *Seguridade Social e Direitos Humanos", apresentado em seminário do Ipea (dezembro d e 2002). Moraes, do Núcleo de Pesquisa em Políticas Públicas da UnB, foi entre 1990 e 2000 secretário nos Ministério do Trabalho, Previdência e Justiça - neste último, secretário de Estado adjunto dos Direitos Humanos. 18Escrevendo no jornal Valor Econômico, em 29 de abril de 2003, e em entrevista no site do PNUD em setem­ bro de 2005- http://www.pnud.org.br/noticias/impressao.php7id01=1442.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 39

maior no Brasil não é por aí. O problema é conhecido pelos peritos como “focalização”. Em termos simples, quando um programa social for bem focalizado, ele concentra seus gastos nas pessoas mais necessitadas. E quando não for... Não é que todos os programas sociais sejam ruins, longe disso. O Brasil tem vários que estão muito bem focalizados, com impacto positivo na desigualdade. Exemplos seriam os benefícios assistenciais da LOAS, a educação primária, urbanização de favelas, merenda escolar e Bolsa-Família. O programa de erra­ dicação de trabalho infantil ganhou elogios internacionais — sem falar nos imitadores. Mas existem outros gastos sociais, principalmente aposentadorias, ensino superior e crédito imobiliário, que focam nitidamente na classe média. E esses programas têm peso grande no bolo total. O resultado, segundo o Banco Mundial, é que os gastos sociais como um todo estão mal distribuídos — os pobres recebem proporcionalmente menos que os mais ricos.19 Agora, o fato de existir bons programas sociais em nada justifica a existência dos ruins. Todos devem ser bons, por que não? Devem estar sempre muito bem focalizados nos mais necessitados, o que não exclui programas totalmente igua­ litários, como a vacinação contra sarampo, ou o ensino fundamental, cuja distri­ buição é rigorosamente democrática — três gotinhas ou uma carteira por criança, seja rica ou pobre. Entre os programas que impactam diretamente a renda, a grande maioria está pessimamente focada, e o resultado não poderia ser outro. Conforme o Ministério da Fazenda, no estudo que vimos há pouco, os 20% dos mais ricos embolsam 60% das chamadas “transferências monetárias”, o dinheiro que o governo dá aos cidadãos, seja na forma de aposentadoria ou pensão, auxílio-doença, seguro-desemprego ou programas como Bolsa-Família. Enquanto isso os 20% mais pobres recebem aproximadamente 3% das transfe­ rências monetárias. Na Europa, em média, os 20% mais pobres recebem em torno de 20% das transferências. É possível que isso tenha melhorado ligeira­ mente, mas nada que mude o quadro geral. Nossa quarta constatação preocupante, portanto, é que o Brasil gasta bastante na área social, mas gasta muito mal, favorecendo os mais ricos e reforçando a desigualdade. 19 Do relatório Brazil: Inequality and Economic Development. pág. 30. LOAS é a Lei Orgânica da Assistência Social. Duas ressalvas. Embora a distribuição dos gastos totais seja ruim, é menos desigual que a desigualdade de ■vwKta. Portanto, os gastos sociais, embora mal focalizados em muitos casos, ajudam a reduzir a desigualdade geral. Na linguagem técnica, os gastos são regressivos, mas menos regressivos que a distribuição geral d a renda. O relatório se refere a dados de 1997. É bem possível que tenha havido melhorias desde então, por exemplo, com maiores gastos no Bolsa-Escola. Mas continua forte a regressividade dos principais gastos.

40 BRIAN NICHOLSON

Observou o Ipea, em 2006: “No Brasil, nem os gastos públicos beneficiam prioritariamente os mais pobres nem os impostos incidem proporcionalmente mais sobre os mais ricos”.20 Resumindo: vimos que o Brasil, o mais desigual dos grandes países, faz me­ nos esforço para melhorar, que o pobre paga uma fatia relativamente pesada dos impostos e vem bancando boa parte do custo dos programas sociais, e que o país gasta muito na área social, mas gasta mal, com muitos programas favorecendo os mais ricos e reforçando a desigualdade. É este, então, o cenário com o qual precisamos lidar. Nossa próxima tarefa é descobrir o porquê deste cenário, tão visivelmente inadequado às necessidades da maioria dos brasileiros.

20 Nota técnica sobre a recente queda d a desigualdade de renda no Brasil de agosto de 2006 - análise coordenada por Ricardo Paes de Barros e Mirela de Carvalho, com a participação de renomados peritos internacionais.

CAPÍTULO 3

Na pista do problema

V

amos fazer um mergulho rápido por dentro dos programas sociais. Já vi­ mos que o Brasil gasta aproximadamente um quarto do PIB com educa­ ção, saúde, previdência, assistência, seguro-desemprego, agricultura familiar, cultura, saneamento e moradia popular, principalmente. Cerca de metade disso é gasto pelo governo federal, a outra metade pelos Estados e municípios. Pode­ mos gastar mais, mas não é necessário, e muitos países gastam menos. O pro­ blema não está na quantidade do gasto, mas sim na qualidade. De cada quatro reais que a sociedade brasileira gasta através de seus gover­ nos, três vão para a área social. O outro fica dividido entre estradas, aeroportos, energia, Judiciário, Legislativo, as Forças Armadas, policiamento, cadeias, o ser­ viço diplomático e assim por diante. E no bolo geral dos gastos sociais, a previ­ dência é de longe a maior. Ela recebe quase a metade do total — mais que saúde e a educação juntas. No nível do governo federal, a previdência consome dois terços dos gastos sociais.21 É interessante ver como o Brasil se compara com a média dos países ricos — no caso, com a média da OCDE. Em termos de porcentagens do PIB, o Brasil em 2001 e 2002 gastou abaixo da média na educação e saúde, e acima da média na previdência — isso, falando só dos gastos públicos, sem contar os gastos privados. E veja bem, não estamos falando de valores absolutos, porque obviamente um país grande e rico como os Estados Unidos sempre vai gastar mais no total. Estamos falando em termos proporcionais. Agora, uma vez que o Brasil, comparado com os países ricos, tem relativamente mais jovens e mais 21 Os dados vêm do relatório da OCDE e do texto Orçamento Social do Governo Federal 2001-2004, ambos jà citados. Os dados são de 2001/02 e excluem juros. A previdência representa 43,7% do gasto social total, edu­ cação 22.0% e saúde 19,2%. A previdência foi responsável por 67,4% do gasto social federal. E o gasto social total foi 244% do PIB. dentro de um gasto público total (excluindo juros) de 31,6% do PIB.

42 BRIAN NICHOLSON

pobres, e relativamente menos idosos, seria de pensar que o Brasil gastaria rela­ tivamente mais na educação e saúde, e relativamente menos na previdência. Mas acontece exatamente o contrário. Vamos ser bastante claros: não há nada que obrigue um país a gastar mais numa área, e menos numa outra. É decisão soberana. O Brasil vive em plena democracia há mais de 20 anos, então seria de supor que o dinheiro público vem sendo gasto na maneira que a maioria do povo quer, na maneira que representa os anseios e as prioridades nacionais. Teoricamente, é possível que gastar menos na saúde e na educação, e mais na previdência, represente a vontade do povo. Mas será que representa mesmo? De fato, há no Brasil um gasto totalmente desproporcional na previdência, algo que veremos em breve. Mas, primeiro, precisamos ressaltar a diferença entre quantidade e qualidade. É possível gastar muito, mas gastar mal. Os peritos nos ensinam que todas as três grandes áreas de ação social — saúde, educação e pre­ vidência — têm seus defeitos. Às vezes gastamos com programas que chegam aos pobres, mas de maneira ineficiente — programas mal pensados, ou mal exe­ cutados. Mas o defeito principal é aquele que já foi apresentado — a má focalização. Ou seja: o dinheiro não vai prioritariamente para os mais necessitados. Antes de falar da previdência, vamos ver rapidamente algumas maneiras em que o dinheiro público é mal direcionado na educação e na saúde, dentro da ótica de reduzir a desigualdade. Na educação, há uma forte distorção dos gastos em favor das universidades públicas. De todos os estudantes brasileiros custeados pelos cofres públicos (desde pré-escola até o ensino superior), 2% estão nas universidades, mas estes recebem 20% da verba. É razoável gastar mais por aluno na faculdade do que na pré-escola — afinal, microscópio custa mais que baldinho e areia. Mas a dife­ rença no Brasil é grande demais, e o resultado é um custo altíssimo por aluno na faculdade, relativo ao nível de renda no país. Segundo a OCDE, o Brasil gasta com cada estudante nas universidades públicas um valor equivalente a 150% do seu PIB per capita. É três vezes mais que a média dos países ricos. Uma conseqüência inevitável desse gasto pesado nas faculdades públicas é o gasto relativamente pequeno no restante do ensino público. Por exemplo, o país dedica a cada aluno no ensino médio público menos de 7% do que destina, a cada aluno na faculdade pública. A distorção em favor das universidades públicas piora com o fato de elas receberem majoritariamente filhos de famílias relativamente ricas, que estudam

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 43

em boas escolas particulares e depois abocanham a fatia do leão dos lugares nas faculdades gratuitas. O governo PT ensaiou algumas tentativas de melho­ ria, com cotas para estudantes oriundos do ensino público e minorias étnicas, e a disponibilização de vagas em faculdades particulares, mas faria todo senti­ do, em nome da justiça social, cobrar mensalidade nas universidades públicas, com bolsas para estudantes pobres de qualquer raça. Uma alternativa seria instituir uma mensalidade para estudantes acima de certo nível de renda fami­ liar. Em qualquer caso, o dinheiro economizado iria para o ensino fundamen­ tal. Há uma proposta neste sentido no livro A ignorância custa um mundo, de Gustavo Ioschpe.22 Na saúde, há vários programas direcionados fortemente aos mais pobres, e a distorção geral é provavelmente menor. Mas existe. O Sistema Único de Saúde (SUS), financiado com dinheiro público, oferece hospitais e postos de atendi­ mento em geral melhores e tratamento mais rápido que nos hospitais e postos públicos de saúde. Mas quase quatro entre cada cinco pacientes nos hospitais conveniados ao SUS vêm da metade mais rica da população. Para os mais po­ bres, sobram os hospitais públicos... ou nada.23 “Um ‘freio* para a redução da desigualdade...”

Agora, vamos falar da previdência. E vamos chegar ao cerne do problema. Em termos proporcionais, os países ricos têm entre duas e três vezes mais idosos que o Brasil. Então, seria de pensar que, também em termos proporcionais, eles gastariam entre duas e três vezes mais que o Brasil com aposentadorias e pensões. Mas de novo acontece o contrário. E o Brasil que gasta mais, 10,7% do seu PIB comparado com uma média de 8,5% nos países — em geral ricos — que compõem a OCDE.24 Descobrir o porquê dessa gritante distorção, naquele que é de longe o maior dos gastos sociais, é o primeiro dos grandes objetivos deste livro. O segundo é oferecer uma solução. 22 Fontes: relatório da OCDE J á citado; também Desigualdade e políticas compensatórias, por João Batista de Araújo e Oliveira, um capítulo no livro Os desafios d a educação no Brasil (ed. Schwartzman e Brock). E ainda o texto ' The poverty reduction strategy of the govemment of Brazll: a rapid appraisar. de José Márcio Camargo e Francisco Ferreira, da PUC-Rio (2002). 23 Camargo e Ferreira (2002), citando dados dos anos 1990. É possível que tenha havido melhoria desde então. 24 Fonte para populações - IBGE e OCDE (Relatório - Brazil 2005, pág. 34). No Brasil, 8,3% das pessoas têm 60 anos ou mais (em 2001). Nos países membros da OCDE, entre 15% e 24%. A com paração dos gastos com aposen­ tadorias e pensões também é do OCDE, pág. 125.

44 BRIAN NICHOLSON

Como veremos nos próximos capítulos, a previdência brasileira — contando o INSS e os regimes dos servidores — tem acertos e vícios, não em termos fiscais, ou da eficiência burocrática, mas sim da justiça social. Veremos que a previdência melhora a vida de milhões de pobres, ao mesmo tempo que paga benefícios altíssimos para uma minoria. Segundo o Banco Mundial, os 20% de brasileiros mais ricos embolsam 61% do dinheiro público pago em aposenta­ dorias e pensões. Nos EUA, os 20% mais ricos recebem 26%. Enquanto isso os 40% mais pobres no Brasil recebem 9%; nos EUA 29%. Dizendo isso de outra maneira: nos Estados Unidos, covil do capitalismo selvagem na visão de al­ guns, o velhinho rico recebe do governo em média 1,8 vez mais que o pobre. No Brasil, 13,6 vezes mais.25 Mais adiante, veremos que a maioria dos benefícios no Brasil embute um subsídio, mas os subsídios para a classe média e os mais ricos representam um pesado privilégio. E veremos que, efetivamente, a sociedade transfere dinheiro público para as pessoas mais abastadas. E aí é que chegaremos a uma das causas básicas desta situação tão absurda, em que um dos países mais desiguais do mundo tem gastos sociais iguais ou maiores que muitos países ricos, mas não consegue reduzir sua desigualdade. No caso da previdência, há evidências de que os gastos em alguns momentos podem até piorar a desigualdade, ou atuar como um freio para qualquer melhoria. Rodolfo Hoffmann, professor de economia na Unicamp, é perito em distri­ buição de renda no Brasil. Já dissecou a relação entre a desigualdade e fatores tais como posse da terra, consumo de alimentos e educação escolar. Nos últimos anos, Hoffmann focou sua lupa na previdência. Suas conclusões devem servir como motivo de séria reflexão para todos que se preocupam com a desigualdade no Brasil, mas acima de tudo para aqueles da esquerda que militaram contra as recentes reformas. Avisou Hoffmann: “...as aposentadorias e pensões pagas pelo sistema (INSS mais servidores) estão contribuindo para aumentar a desigualda­ de da distribuição da renda no Brasil”. Para chegar a essa conclusão, Hoffmann trabalhou com valores de 2003, quando o salário mínimo era de R$ 240. Ele comparou famílias com rendimen­ to por pessoa abaixo de R$ 200 com aquelas acima de R$ 1,0 mil. Ou seja, no caso de famílias de quatro pessoas, rendimento total abaixo de 3,3 mínimos ou acima de 16,7 mínimos. Ele chamou estes dois grupos de “pobres” e “ricos”. 25 Do relatório "Brazil: Inequalliy and Economic D evelopm enf, pãg. 26 (2003).

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 45

Hoffmann descobriu que, no rendimento total, de todas as fontes, o grupo dos ricos recebia 2,5 vezes mais que o grupo dos pobres. Mas, ao analisar somente a renda recebida do INSS e dos regimes dos servidores, ele descobriu que os ricos recebiam 3,0 vezes mais que os pobres. Ou seja: a distribuição das aposentadorias e pensões era mais desigual que a distribuição da renda geral. Hoffmann alerta que imperfeições nos dados podem, talvez, estar exageran­ do um pouco o impacto. Mas nunca ao ponto de tornar o sistema previdenciário uma força progressiva, algo que melhore a distribuição geral. Na mesma linha, o economista e sociólogo Marcelo Medeiros, do Centro Internacional de Pobreza da ONU, concluiu num estudo publicado em 2005 que os 2% dos brasileiros mais ricos recebiam o mesmo total de dinheiro, na forma de aposentadorias e pensões, que os 60% dos brasileiros mais pobres, e observa que isso seria “...o oposto do que se poderia esperar de um sistema que tivesse como objetivo a redução das desigualdades sociais”.26 É importante dizer que esses estudos analisam a situação antes de a socieda­ de sentir o pleno impacto das reformas da previdência dos governos FHC e Lula. E como mencionamos no primeiro capítulo, houve nos últimos anos uma pequena, mas bem-vinda, queda na desigualdade no Brasil. Começou no gover­ no FHC, e continuou no governo Lula. Entre os fatores, estão: estabilidade da economia, programas assistenciais tais como o Bolsa-Família e aumento no valor do salário mínimo (e por tabela benefícios mínimos da previdência). E como houve aumento no valor real no piso dos benefícios, a tentação seria pensar que a previdência, finalmente, vem contribuindo para baixar a desigualdade. Mas, desgraçadamente, os benefícios da previdência como um todo (INSS, previdên­ cia dos servidores e benefícios assistenciais) continuam sendo mais desiguais que a renda em geral, porque o salário mínimo também subiu. Como concluiu Hoffmann no final de 2006, após analisar dados do IBGE até 2005: “O conjun­ to das aposentadorias e pensões pagas pelo governo federal ou por instituto de previdência constituem um ‘freio’para a redução da desigualdade...”.27 26 Citações do artigo O estudo dos ricos no Brasil, publicado em Econômica, revista da pós-graduação em Economia da Universidade Federal Fluminense (junho de 2005), analisando dados de 1997-99, e com definição de “rico" bem mais restrita que a definição de Hoffmann - http://www.uff.br/cpgeconomia/economica.htm. 27 O estudo original de Hoffmann chama-se Inequality in Brazil: The Contribution of Pensions. Foi publicado em 2002, usando dados de 1999 da Pesquisa Nacional por Amostragem Domiciliar (Pnad), do IBGE. Num cálculo poste­ rior, usando dados da Pnad de 2003, com valores de corte de R$ 200 e R$ 1.000 de rendimento por pessoa, o bloco de “pobres" incluía 52,8% da população nacional; o bloco dos “ricos". 6,6%. Para facilitar a compreensão por leigos, este livro fala de "famílias" quando o correto seria “domicílios", mas a diferença é pequena. Se analisarmos a renda proveniente de trabalho, o grupo dos ricos tinha 2.45 vezes mais que os pobres. Mas os ricos recebiam 2.98 vezes mais do rendimento proveniente de aposentadorias e pensões pagos pelo governo - do INSS e dos regimes dos servidores. Segundo Hoffmann, o impacto regressivo dos benefícios é notado basicamente nas cidades, porque no campo

46 BRIAN NICHOLSON

O fato é que as reformas já feitas foram muito tímidas, tanto para resolver problemas fiscais (que não são nossa preocupação principal), quanto para atacar os privilégios. De fato, vários dos piores privilégios nem foram eliminados. E as aposentadorias e pensões já concedidas pelas regras antigas vão durar décadas. Portanto, se nada for feito, o país fica condenado a subsidiar durante muito tempo uma previdência que faz piorar a desigualdade. Alguns “finalmentes” espinhosos...

Como já vimos, pobreza e desigualdade de renda são bichos diferentes. Vi­ vem na mesma floresta, mas não necessariamente andam juntos. Podemos ima­ ginar um país onde absolutamente todas as pessoas existiam na pior miséria — até os banqueiros, empresários e políticos! Seria o país mais igual do mundo, mas não é o modelo que queremos. Também podemos imaginar um paraíso só de ricaços, com alguns bilionários e o restante “somente” milionários — pobre­ za zero, mas desigualdade alta. No mundo real, todos os países têm algum grau de desigualdade, com uma mistura de ricos, classe média e pobres. A questão é como mudar de um nível inaceitável para um nível razoável — um grau de desigualdade que a sociedade em geral percebe como justo. O mais provável é que, ao atacar a pobreza, por exemplo, com programas sociais bem focalizados, vamos ajudar a reduzir a de­ sigualdade. E ao diminuir a desigualdade, por exemplo, com reformas estrutu­ rais do tipo proposto neste livro, a tendência natural será de reduzir sensivelmente a pobreza. Portanto, pobreza e desigualdade podem ser males diferentes, mas o remédio para um provavelmente ajude o outro. Qual seria a prioridade nacional — focar na desigualdade ou na pobreza? No final das contas, trata-se de uma questão de valores pessoais. Pelo ponto de vista deste livro, o Brasil precisa atacar ambas, agora e ao mesmo tempo. No quase todas as aposentadorias rurais têm valor básico. Infelizmente a Pnad não distingue entre aposentadorias do INSS e dos regimes dos servidores. Se fizesse, certamente o resultado seria um impacto regressivo muito maior dos benefícios dos servidores, enquanto o INSS como um todo, incluindo os benefícios rurais, provavelmente seria progres­ sivo. O texto de 2002 está disponível no site da FGV - http://epge.fgv.br/portal/pesquisa/producao/4590.html. A análise de 2006 tem o título de Transferências de renda e a redução d a desigualdade no Brasil e 5 regiões entre 1997 e 2005. Hoffmann também tem um texto que oferece uma excelente introdução ã questão geral d a desigualdade de renda no Brasil. Explica em termos simples (pelo menos inicialmente) as várias maneiras de medi-la, e discorre sobre quem seria 'rico'’ e 'pobre'. Intitula-se Distribuição da renda no Brasil: poucos com muito e muitos com muito pouco - também é um capítulo do livro Economia Social do Brasil, organizado por L. Dowbor e S. Kilsztajn (Senac, 2001). http://wvyw.eco.unicamp.br/nea/rurbano/textos/downlo/textos.html.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 47

capítulo final, veremos que na visão de muitos economistas, reduzir a desigual­ dade pode estimular o crescimento da economia, com benefícios para todos. Mas com ou sem crescimento, o Brasil precisa atacar com urgência a pobreza e a desigualdade de renda. Nada de esperar mais um século para deixar o bolo crescer. Em termos de justificação moral ou ética, porém, o livro não oferece nenhuma. Concorda quem quer. Da mesma maneira que desigualdade de renda e pobreza são diferentes mas associadas, desigualdade de renda e injustiça social também o são. Uma socie­ dade pode ser injusta em muitas maneiras, mas na prática a desigualdade de renda é provavelmente a maior delas. Muitos fatores contribuem para a desi­ gualdade de renda — a educação, a classe social dos pais, a infra-estrutura resi­ dencial, gênero, a região onde uma pessoa mora, preconceitos raciais e religiosos, e até atributos físicos, embora até que ponto alguns desses são causa ou conse­ qüência da desigualdade econômica, aí são outros quinhentos. Uma pessoa é pobre porque mora numa favela e mal completou o quarto grau? Ou mora numa favela e mal completou o quarto grau porque é pobre? A discriminação também é importante. Peritos do Banco Mundial nos informam que a mulher brasileira ganha 29% menos que o homem, embora ela hoje comece a trabalhar com um ano a mais de estudo. E em termos relativos, o impacto da cor na desi­ gualdade é cinco vezes mais forte no Brasil que nos EUA.28 Trata-se de um assunto amplo e complexo, que este livro vai em grande parte ignorar. Vamos falar em “desigualdade” e “injustiça social” para, em geral, nos referirmos à grande diferença que há entre ricos e pobres. E da mesma maneira que vamos supor que a maioria dos brasileiros quer uma sociedade mais igual, vamos supor que a maioria das pessoas, no seu íntimo, enxerga o atual grau de desigualdade como injusto. Mas, mais uma vez, este livro não vai oferecer qualquer comprovação para essa suposição. Concorda quem quer. Outra briga é sobre a definição de quem é rico e pobre. É relativamente óbvio que não há uma linha exata que separa um do outro — fulano é pobre, mas se ganhar um centavo a mais seria rico. Obviamente que não. Mas os problemas são outros. Primeiro, a complicada questão de percepção. Pouquíssimas pessoas se acham ricas. É como dizia Millôr Fernandes, escritor, humorista e observador 28 Do relatório Brazil: Inequallty and Economic Deveiopment. pág. 15 (2003).

48 BRIAN NICHOLSON

por excelência da condição humana: “Quanto é muito? Quanto é demais? Eu, por exemplo, que moro no Rio à beira-mar, tenho carro (1998, é verdade) e como nos melhores restaurantes, me considero um homem pobre”.29 Então, vamos ser honestos e pragmáticos ao mesmo tempo. Seremos hones­ tos o suficiente para reconhecer que eventuais dificuldades em bater martelo sobre definições nunca podem ser desculpa para fingir que o Brasil não tem pobres e ricos, ou que a distância entre eles não é grande demais. Afinal, como dizia Bob Dylan, em “Subterranean Homesick Blues”: “Não precisamos de me­ teorologista para saber como está ventando”. E seremos pragmáticos, porque vamos simplesmente esquecer do problema. Afinal, não vamos mexer nos salá­ rios. Já decidimos que não vamos propor nenhum tipo de ditadura, que vamos atacar a desigualdade dentro de um sistema livre e capitalista. Portanto, não cogitamos nenhuma lei dizendo que fulano tem que ganhar mais e beltrano, menos. Não é por aí a solução da desigualdade. A solução — ou pelo menos grande parte dela — vem pela inclusão social, criando condições para que cada cidadão possa ganhar um salário decente, algo que a sociedade brasileira hoje nega a milhões de seus membros ao recusar-lhes boa educação, saúde e infraestrutura. O caminho, portanto, vai pela distribuição correta dos gastos sociais, focando preferencialmente nos cidadãos mais necessitados, e nunca subsidian­ do aqueles que mais já têm. Mesmo sem definir “rico” e “pobre”, vamos usar estes termos com freqüên­ cia. E peço um pouquinho de compreensão do leitor, porque vamos usar essas palavras em algumas maneiras diferentes: • Ao comentar estudos de terceiros, vamos explicar os critérios dos respec­ tivos autores. • Quando falar em termos gerais da sociedade brasileira, vamos usar “po­ bres”, “classe média” e “ricos” para indicar os grandes grupos, mas sem muita precisão. • Ao examinar como a sociedade distribui o dinheiro público hoje, e pensar em como devemos distribuí-lo para atacar a desigualdade, vamos usar uma defini­ ção bastante clara. Para ver quem deve receber subsídios, vamos dividir a 29 Revista Veja. 20 de outubro de 2004.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 49

sociedade no meio, entre “ricos” e “pobres”, baseada numa fria estatística — quem tem mais e quem tem menos. E uma divisão que vai angustiar muita gente, e certamente vai colocar a grande maioria dos leitores deste livro no lado dos “ricos”. Pensei em criar um eufemismo, alguma frase de conforto, por exemplo, “os relativamente mais abastados”e “os relativamente menos afortu­ nados”. Mas decidi que não. Nada de subterfugio. Nunca vamos resolver a desigualdade brasileira se ficarmos fingindo que estamos todos pobres.

A renda média no Brasil estava em torno de quatro salários mínimos. Re­ centemente seu valor real ficou estagnado em cerca de R$ 1.050 e hoje seria equivalente a algo como três mínimos, devido em boa parte ao aumento no valor real do salário mínimo.30 Importante, porém, é entender que a maioria dos trabalhadores brasileiros não ganha nem isso, porque a média é puxada para cima pela alta desigualdade — pelo peso dos salários “top”. Seria igual ter um jogador como Ronaldo ou Ronaldinho num time da terceira divisão. Seriam dez cabeças-de-bagre que ganham quase nada, e um gênio com salário galáctico. A média dos salários no time seria razoavelmente alta, puxada pelo grande craque, mas com todos os outros jogadores ganhando bem abaixo da média. E é assim no Brasil — de cada quatro trabalhadores, três ganham abaixo da média nacional. Quando o objetivo é reduzir a desigualdade, direcionando os gastos públi­ cos para os mais necessitados, é tentador usar o salário médio como referência. Mas precisamos ser mais focados, e priorizar — ao máximo — a metade mais pobre da população. A lógica para fazer isso é simples. Imagine que existam várias pessoas com vários graus de fome, e só um biscoito. Obviamente, ele deve ir para o indivíduo na pior situação. O segundo biscoito, quando hou­ ver, para o segundo pior, e assim vai. Sempre que a sociedade decide usar dinheiro público para atacar a desigualdade, temos que nos concentrar nos 30 O valor da renda média vem do IpeaData, a partir de dados do IBGE, de outubro de 2006, de áreas me­ tropolitanas e pessoas, com dez anos ou mais, ocupadas. Deu exatos 3 SM na época. Alguns peritos entendem que os dados do IBGE podem subestimar a renda no Brasil - pela estimativa do professor Rodolfo Hoffmann, da Unicamp, em até 60%. Isso aconteceria porque as pessoas não declaram corretamente suas rendas. Entre os mais pobres, uma razão seria a não-inclusão da renda não-monetária representada pela produção caseira (porco, frango e milho no quintal), ou em algumas profissões urbanas, a omissão de gorjetas, renda de bicos, etc. Entre os mais ricos, há subdeclaração de rendas financeiras, e de outras rendas não declaradas. Tipicamente, o que for sonegado ao Leão também será “esquecido" no momento de responder ao pesquisador do IBGE. Hoffmann estima que a subdeclaração acontece em todos os níveis, mas que ela pode ser proporcionalmente maior nos níveis maiores. Portanto, a desigualdade real na distribuição de renda seria até pior do que aquela sugerida pelos dados oficiais. A subdeclaração, principalmente das rendas maiores, provavelmente acontece também em ou­ tros países.

50 BRIAN NICHOLSON

mais necessitados — no máximo, na metade da sociedade que menos tem. Afinal, como é que vamos reduzir a desigualdade, se dermos dinheiro público para a metade da população que já tem mais? E por mais difícil que possa ser, para nós da classe média, a renda mediana — aquela que divide a metade mais pobre da metade mais rica — fica em volta de dois mínimos, se não um pouco menos. Gostando ou não, é preciso aceitar que, pelos dados oficiais, 50% dos trabalhadores brasileiros ganham dois mínimos ou menos.31 É isso, portanto, que deve ser nosso norte geral, nossa referência para a dis­ tribuição de subsídios públicos — o que não quer dizer que a sociedade não vai oferecer serviços gratuitos como educação e saúde para quem ganha mais, claro que vai. Mas uma coisa é fornecer um serviço universal, outra totalmente dife­ rente é usar dinheiro público para promover a redução da desigualdade. Portan­ to, quando falamos em transferir dinheiro público para os mais pobres, precisamos focar naqueles com renda de dois mínimos ou menos. Sei que muitas pessoas não vão gostar dessa verdade tão incômoda. Vão di­ zer que dois mínimos é um patamar absurdamente baixo para definir quem é rico e quem é pobre. O Dieese, a ONG que faz pesquisa para o movimento sindical, calcula que o salário mínimo precisa ser entre quatro e cinco vezes seu valor atual para que o trabalhador possa receber um valor “capaz de atender às suas necessidades vitais básicas e às de sua família, como moradia, alimentação, educação, saúde, lazer, vestuário, higiene, transporte e previdência social”, como manda a Constituição. Certamente dois mínimos (no valor atual) nunca pode­ ria ser chamado de riqueza, e certamente quem ganha quatro ou seis ou oito mínimos não é “rico”, pelo menos no sentido de comprar iate ou passar férias em Paris. Mas por mais difícil que possa ser para a classe média aceitar, o fato é que quem ganha acima de dois mínimos pertence fatalmente aos 50% dos tra­ balhadores mais bem remunerados. Também é previsível que algumas pessoas vão ver este livro como uma “caça aos ricos”. Mas não é, tanto que não colocamos objeção alguma aos salários da me­ tade mais rica da sociedade. Numa economia de mercado, cada pessoa é livre 31 O valor da renda mediana vem da Pnad 2005, tabeia 7.1.1, para pessoas com 10 anos ou mais. excluindo aqueles sem rendimento. De fato, dois terços das pessoas reportaram rendimento de até 2 SM. Mais uma vez. temos o impacto do aumento recente do SM. Para nossas finalidades, podemos trabalhar com renda m ediana de 2 SM. excluindo produção caseira, bicos, etc.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 51

para vender seus talentos e trabalho pelo preço que puder. O problema do Bra­ sil não está nas rendas mais altas, está nas rendas mais baixas. Pode ser que, em determinado momento, o país deva repensar suas alíquotas de Imposto de Ren­ da, hoje muito generosas para a elite, mas isso é outra questão. E da mesma maneira, este livro não constitui nenhum ataque aos servidores públicos, sejam eles civis ou militares. O servidor recebe por seus serviços no final do mês, e caso o salário não seja compatível com os níveis do mercado, então cabe ao país cor­ rigir isso. Mas nunca podemos concordar com aposentadorias altamente subsi­ diadas, que valem muito além das contribuições, com o argumento de que essas seriam um tipo de “remuneração postergada”. Assim, condenamos nossos filhos a pagar por serviços prestados hoje. De fato, este livro não é uma caça a grupo algum, e muito menos a qualquer indivíduo. Não comentamos a situação individual de ninguém, a não ser que se trate (a) de alguém que, por livre escolha, se tornou uma figura pública, ou (b) alguém que veio a público, por exemplo, escrevendo para os jornais, ou dando entrevista, para defender sua própria situação. Mas este livro é, sim, uma caça às situações em que dinheiro público é gasto para subsidiar privilégios que fazem perpetuar a desigualdade. Finalmente, algumas pessoas vão ficar horrorizadas ao ver que este livro ques­ tiona o direito adquirido, e por tabela a Constituição Federal de 1988. Mas a verdade inescapável é que a sociedade, por meio da Constituição, promete a si mesma muito mais do que ela pode pagar. E simplesmente impossível a socie­ dade cumprir todas as promessas da Constituição. O que acontece, hoje, é que em boa parte cumprimos as promessas feitas aos mais ricos, e renegamos nas promessas feitas aos pobres. Na melhor das hipóteses, o cumprimento é, como se diz, meia-boca. A proposta deste livro é que mudemos isso, que a sociedade dedique seus recursos para cumprir, prioritariamente, as promessas constitucionais àqueles que menos têm. Na Igreja Católica, seria chamada talvez de uma “opção prefe­ rencial pelos pobres”. Nas faculdades de economia e política, de “redistribuição de renda”. E no balcão do botequim, simplesmente de “justiça social”.

SEÇÃO 2 PREVIDÊNCIA NUMA SOCIEDADE INJUSTA

CAPITULO 4

Previdência — todo mundo quer

odos nós já ouvimos falar de sociedades em que os mais velhos foram tra­ tados com carinho e até reverência, e os menos afortunados receberam o apoio da comunidade. É o ideal que buscamos, mas, certamente, o mundo pou­ cas vezes foi assim. Antes da Revolução Industrial, na maioria das sociedades, os velhinhos, aleijados e doentes ou viviam dentro de famílias grandes, ou rece­ biam uma caridade eventual de gente bondosa, ou passavam a mendigar. Bem que a maioria das pessoas vivia menos e morria ainda trabalhando. Com a urbanização e a industrialização, mudou-se a estrutura das socieda­ des. Cada vez mais pessoas chegaram à velhice sem o amparo da família, e portanto com mais necessidade de poupança própria, ou de sistemas de previ­ dência. A grande maioria das pessoas, hoje, aceita que a sociedade deve induzir as pessoas a se preparar para quando não puderem mais trabalhar, e que deve cuidar daqueles que porventura ficarem desamparados. Também, daqueles mais jovens que, por vários motivos, não conseguirem se sustentar. Na Inglaterra, na época da Revolução Industrial, ampliou-se o sistema da workhouse municipal — literalmente, a “casa de trabalho” — que combinava o que tinha de melhor e pior na ética da época. O verdadeiro cristão não podia deixar seu semelhante morrer de fome, mas ao mesmo tempo o pobre não podia ser induzido ao pecado da preguiça. A lógica era salvá-lo, mas também fazê-lo sofrer. Assim, ele não se beneficiava da sua imprudência. A solução veio com uma lei de 1834, que criava as categorias de pobre “merecedor” e “desmerecedor”. Aquele, genuinamente sem condições de trabalhar, às vezes recebia ajuda financeira até no conforto do seu casebre. Mas o pobre “desmerecedor”, julgado caçaz de trabalhar e portanto visto como culpado por sua indigência, tinha de entrar na workhouse, e sua família também. E para prevenir contra aquele “pecado

56 BRIAN NICHOLSON

da preguiça”, a lei embutia o princípio de que os desmerecidos tinham de viver pior na workhouse de que a família mais pobre na sociedade geral. A workhouse era normalmente um prédio frio e feio, administrado a mãode-ferro por um comitê de cidadãos bem de vida que interrogava e repreendia os famintos sobre a imprudência de não ter feito uma poupança. A comida era ruim; a disciplina rígida, e o trabalho, pesado. Os homens, por exemplo, quebra­ vam pedra, enquanto as mulheres destrançavam à mão cabos marítimos usados. Casais eram separados — afinal, pobre imprudente não tinha por que fazer sexo — e as crianças eram freqüentemente enviadas às colônias além-mar, como mão-de-obra semi-escrava, para dificilmente voltar. Mesmo assim, houve quem questionasse esse excesso de indulgência. O jornal The Times reclamou que melhorias introduzidas no final do século 19, extravagâncias como cortinas entre as camas, pequenos armários individuais e — pasmem — casais velhos morando juntos, representava um beneficio injusto para os imprudentes.32 Acabar na workhousey além de ser uma medida fisicamente dura, era uma ver­ gonha pública. Socialmente, o fim. Mas, para o desempregado, e principalmente para o velhinho sem família para se sustentar, era a única alternativa a morrer de fome, ou partir para a mendicância — que por sinal era crime e dava cadeia. No censo de 1901, eram 208 mil pessoas morando nas workhouses da Inglater­ ra, a maioria velhinhos. Pouco menos que 1% da população. No Brasil de hoje, mantidas as proporções, seriam mais de um milhão e meio de desafortunados. A Inglaterra criou aposentadorias públicas em 1908, disponíveis sem contribui­ ção para os indigentes acima de 70 anos, mas não era o primeiro país a fazer isso. A Alemanha do príncipe Otto von Bismarck, queimando etapas para se unificar, in­ dustrializar e ultrapassar a Inglaterra — e também para resistir a pressões dos demo­ cratas sociais —, introduziu em 1889 uma aposentadoria para aqueles com 70 anos ou mais, financiada por um imposto específico. E a Nova Zelândia, colônia britâni­ ca pequena mas próspera, criou em 1899 o que alguns chamam de o primeiro siste­ ma de aposentadoria pública propriamente dito, também financiado por impostos. Na primeira metade do século 20, vários países criaram sistemas nacionais parecidos — por exemplo, Suécia, em 1913 e Canadá, em 1926. Eram todos 32 De fato, o sistema d a workhouse tinha origem em leis de 1598 e 1601, chamadas de PoorLaws. vistas com o historicamente importantes por reconhecer que uma sociedade tem responsabilidade pela sobrevivência de seus membros mais fracos. O sistema foi estabelecido em lei nacional, mas financiado por impostos municipais sobre a propriedade, e a administração era local. Por todas as suas falhas - vistas pela ótica de hoje o sistema fez da Inglaterra o primeiro país europeu a acabar com a mortandade em tempos de grande fome. Também facilitou a mobilidade dos trabalhadores, algo importante para o desenvolvimento de uma econom ia industriali­ zada. Ver World Development Report 2006, pág. 120 (Banco Mundial).

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 57

sistemas universais — se aplicavam igualmente a todos, dentro de limites de idade, necessidade e contribuição. Mas outros países, incluindo a França, os Estados Unidos e Portugal, opta­ ram por sistemas que não eram universais. Não se aplicavam a todos, somente a grupos específicos. Desenvolveram uma mescla de sistemas, alguns criados por grandes empresas, outros nacionais, mas restritos a determinados setores. Portugal, por exemplo, criou um sistema de segurança social para trabalha­ dores dos setores industriais e serviços em 1935, mas em 1960 somente 50% dos trabalhadores participavam. Foi somente depois da Revolução dos Cravos, em 1974, que os benefícios se tornaram universais. Nos EUA, várias categorias públicas, como professores, policiais e outros já criavam seus próprios sistemas de aposentadoria no século 19, e pela lei de Se­ gurança Social de 1935 o governo federal instituiu aposentadorias para quem trabalhava nos setores da indústria e comércio — aproximadamente a metade dos trabalhadores da época. Foi paga uma aposentadoria relativamente pequena em troca de uma contribuição descontada do salário. Dizia o presidente americano Franklin D. Roosevelt, na época: “Nunca po­ demos proteger 100% da população contra 100% dos riscos e desgraças da vida. Mas tentamos criar uma lei que oferece um certo grau de proteção ao cidadão médio e sua família contra a perda de emprego e uma velhice de indigência E no Brasil?

Aqui, alguns sistemas de seguro social e proteção à saúde foram elaborados no século 19 para categorias específicas, por exemplo, os militares, mas o grande passo veio em 1923 com a Lei Eloy Chaves, que criou a Caixa de Assistência e Previdência (CAP) dos Ferroviários, logo copiada por outros setores. As CAPs eram organizadas por empresa ou por categoria profissional, financiadas de for­ ma tripartida pelos trabalhadores, os empregadores e o Estado. O sistema era de “capitalização coletiva”, em que os participantes iam juntando um fundo que seria usado para pagar as aposentadorias.33 33 Uma breve história da previdência no Brasil pode ser encontrada no texto Previdência Social, de Francisco E. B. de Oliveira (falecido em 2000), ex-coordenador do Grupo de Seguridade Social do Ipea, professor da Coppe/UFRJ e membro do Conselho Nacional de Previdência Social - http://www.mre.gov.br/cdbrasil/itamaraty/ web/port/polsoc/previd/apresent/index.htm.

58 BRIAN NICHOLSON

A partir de 1933, as CAPs foram substituídas pelos Institutos de Aposenta­ dorias e Pensões (IAPs), numa tentativa de ampliar o número de trabalhadores inscritos. Grupos como marítimos, comerciários, bancários, industriários e ser­ vidores do Estado formaram seus IAPs, mas o sistema sempre ficou restrito às categorias mais organizadas. Estima-se que, no final dos anos 1950, somente um terço dos trabalhadores brasileiros tinha cobertura por algum instituto. Em 1960, com a promulgação da Lei Orgânica da Previdência Social (LOPS), abriu-se o caminho para a unificação da previdência social, e o nasci­ mento de uma previdência nacional brasileira. Criou-se um esquema geral de funcionamento e financiamento único para os seis IAPs existentes, oferecendo, na prática, a possibilidade de cobertura para quase todos os trabalhadores urba­ nos da economia formal. Mas não se tratava de uma previdência universal, a preocupação ainda era de cuidar dos grupos mais organizados e relativamente mais favorecidos da sociedade, deixando de lado os milhões de trabalhadores rurais, empregados domésticos e outros à margem da economia organizada. Em 1966, os IAPs foram reunidos no Instituto Nacional de Previdência Social, e ao longo dos anos 1970 o INPS foi crescendo, ampliando a cobertura para incluir os trabalhadores rurais e introduzindo o seguro para acidentes no trabalho. Criou-se também a Renda Mensal Vitalícia, uma primeira tentativa de cuidar de idosos indigentes e inválidos excluídos do INSS. O último grande passo veio com a Constituição Federal de 1988, que definiu Seguridade Social como algo abrangente e universal. Todos os brasileiros teriam direito à cobertura previdenciária, serviço de saúde e assistência social. Chegamos finalmente à idéia de que a sociedade deve atender quem precisa, e não somente quem contribuiu. Também determinou que trabalhadores rurais e urbanos teriam o mesmo beneficio mínimo. E em 1990, para refletir a nova realidade, o INPS foi substituído pelo Instituto Nacional de Seguridade Social (INSS). Desde então, o grande debate tem sido, não como ampliar ainda mais o siste­ ma — embora ainda exista gente sem cobertura — mas como pagar por ela. Onde estamos, então?

Não há dúvida de que a nova Constituição incorporou importantes avanços. A previdência social brasileira passou a cobrir todos os riscos sociais básicos previstos pela Organização Internacional do Trabalho (OIT). Trata-se de um

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 59

patamar bastante adequado para um país com o nível de desenvolvimento do Brasil, e a grande expansão dos benefícios do INSS durante os anos 1990 refle­ te em boa parte a filosofia universalista da Carta.34 Assim, é tentador pensar que a previdência brasileira estaria quase perfeita. Pode ter alguns problemas financeiros, mas, fora isso, representa um trunfo de­ mocrático. Infelizmente, não é bem assim. Antes de continuar, é conveniente lembrar que, ao falar do “sistema nacional de previdência” ou da “previdência brasileira”, estamos falando de tudo — do INSS e do regime dos servidores civis e militares nos governos federal, estadu­ ais e municipais — tudo que envolve dinheiro público. Excluímos somente a previdência complementar, totalmente privada. E a questão das empresas esta­ tais veremos depois. Podemos dizer, então, que a “previdência brasileira” tem, sim, grandes virtu­ des. Mas esconde também vícios sérios que contribuem para a manutenção da grande desigualdade no país. A previdência não é nem a causa original dessa desigualdade, nem sua única fonte de sustento. Mas que contribui para a sua sobrevivência, disso não há dúvida. O problema básico é que a previdência brasileira ainda mantém, dentro dela, o DNA da sua concepção. Não foi criada com o intuito de ser um siste­ ma igualitário e universal. Nasceu como um conjunto de sistemas que protege grupos relativamente os mais favorecidos, e à medida que se ampliou, os seg­ mentos mais organizados conseguiram levar seus privilégios para dentro de um arcabouço nacional. O exemplo mais gritante disso seria o dos servidores públicos, que conti­ nuaram com seu regime próprio, gozando de benefícios que são totalmente impensáveis para a população em geral. Mas os trabalhadores mais bem pagos do setor privado também são privilegiados com benefícios subsidiados. Como veremos mais à frente, o país gasta literalmente bilhões de reais, a cada ano, para subsidiar benefícios da classe média. É dinheiro que, de outra maneira, poderia ser gasto com educação e saúde. Enquanto isso, os trabalhadores de salário mí­ nimo poderiam até perder suas contribuições, pagando durante anos e ficando sem benefício nenhum. v- observação quanto à OIT de Enid Rocha da Silva e Helmut Schwarzer. no texto Proteção Social. Aposen­ tadorias, Pensões e Gênero no Brasil, publicado pelo Ipea em 2002. Eles se referiram à Convenção 102/1952, que cobre ‘ Padrões Mínimos de Seguridade Social', com a ressalva de que o seguro-desemprego está vinculado ao Ministério do Trabalho e Emprego.

60 BRIAN NICHOLSON

Por que esses privilégios sobrevivem? Foi uma exigência democraticamente expressa da maioria dos eleitores brasileiros? É claro que não. Sobreviveram porque os beneficiados souberam convencer o Congresso a preservá-los — não que o Congresso precisasse de muito convencimento. De fato, o processo de ampliação do sistema previdenciário para incluir os cidadãos menos favorecidos, e mais recentemente sua reforma para tentar redu­ zir um buraco crescente, enfrentou em vários momentos a resistência de grupos já contemplados e temerosos de perder seus privilégios. A Lei Orgânica da Previdência Social, aquela que unificou o sistema em 1960, foi debatida duran­ te nada menos que 13 anos no Congresso Nacional. E quem acompanhou a política brasileira nos últimos anos viu inúmeros exemplos da resistência ferre­ nha dos servidores públicos a qualquer mudança na sua situação. O sociólogo Simon Schwartzman, no seu VwroAs causas da pobreza, de 2004, comenta que “o sistema corporativo dos anos 1930 e 40 se desenvolveu e se transformou no sistema previdenciário e de saúde pública do Brasil de hoje... apesar de grandes mudanças no escopo e na organização do sistema, suas prin­ cipais características continuam inalteradas”.35 Mais adiante, Schwartzman observa que, com o fim do governo militar, em 1985, a antiga divisão entre diferentes sistemas previdenciários “seria substituí­ da por uma nova, entre os funcionários públicos e os empregados do sistema privado. Enquanto os benefícios do setor privado se mantinham estagnados, ou eram minados pela inflação, o sistema de benefícios públicos inchava. Nas em­ presas estatais, fundos de pensão foram estabelecidos, com participação finan­ ceira forte do setor público, garantindo aos funcionários benefícios de aposentadoria e atendimento médico inacessíveis para o resto da população”. E ele continua: “A Constituição (de 1988) entroniza os direitos especiais dos funcionários públicos, garantindo as altas aposentadorias, as aposentadorias precoces e a estabilidade no emprego. O sistema judicial, autônomo, garante esses direitos ante tentativas de reduzi-los por parte do Poder Executivo”.

35 Schwartzman é presidente do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade, no Rio de Janeiro. Presidiu o IBGE entre 1994-98. O livro As causas da pobreza foi publicado pela editora FGV. Ver pág. 24-27.

CAPÍTULO 5

A previdência brasileira hoje

e cada dez trabalhadores brasileiros, menos de cinco contribuem habitu­ almente para um sistema de previdência — seja o INSS, a previdência dos servidores, ou um plano privado. Daqueles que não contribuem, muitos sim­ plesmente não teriam condições. Mas, de cada dez brasileiros acima de 60 anos, aproximadamente oito recebem uma aposentadoria, pensão ou beneficio assistencial equivalente.36 O sistema como um todo representa um dos maiores desafios para a socie­ dade brasileira neste início do século 21. De um lado, tem um papel importante no combate à pobreza. Ao mesmo tempo, representa um peso enorme para os cofres públicos, esconde grandes privilégios, reforça a desigualdade e impede maiores avanços na resolução de vários problemas nacionais. O pior é que em muitos momentos, em vez de dar prioridade aos mais pobres, a previdência transfere vultosos recursos públicos para as pessoas mais abastadas. A previdência pode ser dividida em duas grandes áreas, a pública e a privada, ou complementar. Na primeira, são todos os benefícios que saem dos cofres públicos; na segunda, aqueles que são pagos com fundos privados. No início de 2007 quase 28 milhões de pessoas recebiam dos sistemas públicos (contando auxílios temporários) enquanto a previdência privada pagava outro meio milhão de benefícios, embora seja provável que a maioria destes receba também pelos sistemas públicos. Sendo a preocupação fundamental deste livro a redução da desigualdade atra­ vés de uma distribuição mais justa dos recursos públicos, vamos nos concentrar 36 Os dados de contribuintes são do IBGE (Pnad 2005. síntese tabela 4.6). Para mais informações sobre idosos que recebem ou não um benefício, ver “Os excluídos... , mais ò frente neste capítulo.

62 BRIAN NICHOLSON

nos sistemas públicos — o INSS e os regimes dos servidores. Os sistemas priva­ dos não são completamente irrelevantes, neste sentido, porque recebem um ele­ mento de subsídio público na forma de incentivos fiscais. Por outro lado, a poupança voluntária em fundos privados é geralmente vista como boa para um país, ao facilitar investimento de longo prazo. Até que ponto, e como, o Brasil deve incentivar os fundos privados é uma questão relevante, mas que foge do propósito deste livro. Os sistemas de previdência pagos pelos cofres públicos são: — O INSS, do governo federal, é aberto a todos os trabalhadores do setor privado, inclusive os autônomos. Os trabalhadores contribuem com até 11% do seu salário, até o limite de aproximadamente R$ 2.800 (no início de 2007), e o empregador com 20% sobre a folha total. Algo como 44 milhões de trabalhadores contribuem de vez em quando, mas a média mensal é de 31 milhões de pessoas — menos da metade dos trabalha­ dores do setor privado, e a arrecadação total é insuficiente para pagar todos os benefícios. Assim, o governo federal precisa adicionar algo como um quarto do custo total do sistema. Esse dinheiro vem de outros impostos e contribuições pagos pela sociedade em geral.37



P a r a o s e t o r p r iv a d o



— São mais de 2 mil planos, reunidos no que se chama o Regime Jurídico Unico (RJU). Existe um plano para os servidores federais civis, um em cada Estado, e planos individuais em mais de 2,2 mil municipais — os outros 3,3 mil municipais ficaram com o INSS. Há também regras espe­ cíficas para os militares. Mais de 5 milhões de servidores contribuem, nos três níveis de governo, enquanto 3 milhões de ex-servidores, cônjuges e dependen­ tes recebem benefícios. Os servidores federais contribuem com 11% de seu salário total, enquanto servidores estaduais contribuem com 8% a 14%. A maioria dos servidores contribui proporcionalmente mais que os trabalhadores da iniciativa privada, mas seus benefícios são muito mais generosos, tanto que o total arrecadado — incluindo a contribuição patronal — mal cobre um terço dos gastos, transferindo para a sociedade o ônus da diferença.38 P a r a o s e t o r p ú b l ic o

37Anuário Estatístico d a Previdência Social. Ministério da Previdência Social. 2005. 38 Níveis de contribuição do 'Anuário Estatístico d a Previdência Sociar - site MPS - http://www.mpas gov br/docs/panoramaPS.pdf.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 63

Duas observações importantes:

Primeiro, na medida do possível, este livro busca tratar junto estes dois grandes regimes, e mais o dos militares, e mais o dos ricos ex-governadores, dos anistiados políticos, e dos aposentados das empresas públicas, e assim vai. Sei que é praxe, entre os técnicos, analisar tudo isso separadamente. Mas a nossa meta é ver o que a sociedade faz, com dinheiro público, em termos de previdência — quem recebe mais que pagou, e quem arca com a diferença. Afinal, somos todos membros da mesma sociedade, pagamos impostos e te­ mos as mesmas necessidades. No melhor espírito republicano, portanto, va­ mos colocar tudo junto. Também é importante observar que tentamos evitar a palavra “déficit”. Existe rancoroso debate em torno da questão do “buraco” da previdência. Al­ guns economistas de renome advertem para o perigo de um déficit bilionário, enquanto outros peritos juram de pés juntos que existe um superávit. Voltare­ mos à questão no capítulo sobre o déficit. Primeiro, basta ver alguns dos grandes números. Eles mostram o tamanho do bicho — algo que nunca devemos perder de vista: • Em valores de 2006, o gasto total do país com a previdência era em torno de R$ 260 bilhões por ano. Um milhão de reais saindo dos cofres públicos a cada dois minutos, dia e noite, inclusive feriados. Há uma proposta de jogar uma parte menor desse gasto para uma outra conta do governo, algo que este livro comenta mais à frente. • O Brasil gasta com a previdência muito mais do que gasta com a educação, saúde, cultura e pesquisa científica — todosjuntos. • De cada cinco reais que os governos gastam, dois vão para os sistemas de previdência. • De tudo que o país produz no ano, o chamado Produto Interno Bruto (PIB), aproximadamente um oitavo vai para os sistemas de previdência.

Trata-se, então, de muito dinheiro. É de longe o maior gasto social do país. Mas o simples fato de gastar muito com a previdência não deve ser visto ne­ cessariamente como problema. Sustentar velhinhos pobres, tirar pessoas da

64 BRIAN NICHOLSON

indigência, ajudar os deficientes e apoiar famílias de detentos são funções corretas em qualquer sociedade civilizada. O problema da previdência não é tanto a cifra em si, mas a maneira como o dinheiro vem sendo gasto. Afinal, dinheiro público deve ser alocado para finali­ dades socialmente mais justas — para melhorar a vida do maior número possí­ vel de pessoas, acabar com a fome, tirar as regiões pobres do atraso, estimular o crescimento econômico, construir hospitais, estradas e escolas, educar os jovens, requalificar os desempregados, etc. E é exatamente aí que reside o problema central da previdência brasileira — o país gasta mal. Boa parte daqueles R$ 260 bilhões vai para pessoas que são relativamente mais ricas, e que recebem da previdência mais do que contribuíram. E isso a raiz do problema da previdência. Mas, antes de ver os erros da previdência, vamos ver os acertos... “O maior programa de distribuição de renda...”

Pesquisas sugerem que dois terços dos brasileiros não sabem o que é a pre­ vidência, e somente a metade sabe que a previdência e/ou o INSS concedem aposentadorias.39 Então, vamos lá. O INSS lista nada menos de 67 tipos de benefício. Destes, dois terços são antigos —já foram abolidos ou consolidados pelas reformas dos últimos anos, mas ainda são pagos aos antigos beneficiários. Dos benefícios vi­ talícios hoje concedidos, a maioria é de vários tipos de aposentadoria e pensão, enquanto os benefícios temporários incluem auxüio-doença, auxüio-acidente, salário-maternidade e auxílio para dependentes de presidiários. Seguro-desemprego não faz parte da previdência, tecnicamente, porque é pago pelo Ministé­ rio do Trabalho. Para quem quiser mais informações sobre o INSS e seus benefícios, há muita coisa no site do Ministério da Previdência Social.40 Teoricamente, então, um sistema de previdência pública deve assegurar que os idosos, indigentes e deficientes não morram de fome. Isso seria nossa meta básica. O ideal, além da simples sobrevivência, seria desfrutar de uma velhice digna e confortável após uma vida de trabalho, com padrão de vida que lembre 39Pesquisa citada na apresentação Reforma da Previdência, de Floriano José Martins, em 2003, então diretor administrativo da Fundação Associação Nacional dos Fiscais de Contribuições Previdenciárias (Anfip). 40O documento Panorama d a Previdência Social Brasileira oferece uma boa introdução geral ao INSS, suas origens, e os benefícios oferecidos - http://www.mpas.gov.br/docs/panoramaPS.pdf. O site do MPS também tem relatórios mensais e anuais, bem como estudos, para quem quiser se aprofundar no assunto.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 65

de alguma maneira aquele que tinha antes. Mas não morrer de fome é nosso ponto de partida. Avaliada pelo objetivo mais limitado, a previdência brasileira recebe uma nota razoável. O resultado positivo vem graças ao INSS, principal­ mente. Dos quase 28 milhões de brasileiros que no início de 2007 recebiam benefícios previdenciários e assistenciais, aproximadamente nove em cada dez eram beneficiados pelo INSS, e um em dez pelos vários regimes dos servidores públicos. Não importa como se define a pobreza, é incontestável que no Brasil de hoje há muito menos pobres e indigentes graças à existência da previdência. O im­ pacto, obviamente, é mais nítido entre os idosos. Segundo os estudos, somente um em cada dez idosos pode ser chamado de pobre, comparado com um em cada quatro na população geral. Sem dúvida, é uma diferença importante.41 Muitos avanços foram feitos na década de 1990. Segundo o economista Milko Matijascic, da Universidade de Campinas, a proporção das pessoas acima de 60 anos que recebem um benefício do INSS, seja este previdenciário ou assistencial, saltou de 69% em 1992 para 77% em 1999, graças principalmente à Constituição de 1988 e suas leis subseqüentes. Reduziu a idade mínima para aposentadoria rural, de 65 para 60 anos para homens e de 60 para 55 anos para mulheres, cinco a menos que os trabalhadores urbanos. E para facilitar o acesso aos benefícios rurais, eliminou-se a necessidade de comprovar contribuições. Basta comprovar atividade rural, e com provas bastante flexíveis — vale mostrar documentação de terreno agrícola, recibos de venda de produtos, ou declaração do sindicato dos trabalhadores rurais, por exemplo. Uma explicação rápida: para ser trabalhador rural não é necessário morar no meio do mato. O meeiro pode viver na periferia urbana, mas ganhar a vida como trabalhador rural, e seria classificado como tal pelo INSS. Pela mesma lógica, pessoas que moram em chácaras, mas têm carteira assinada são trabalha­ dores urbanos. A Constituição também reduziu de 70 para 67 a idade mínima para receber o amparo assistencial da LOAS — efetivamente uma aposentadoria de valor básico — e em 2003 o Estatuto do Idoso reduziu a idade de novo, para 65 anos, 41 São muitos os estudos que apontam para o mesmo impacto. Veja, por exemplo. Benefícios sociais e pobre­ za - programas nào contributivos d a seguridade social brasileira (Schwarzer e Querino, Ipea, 2002). Usando dados do IBGE (Pnad) de 1999, este estudo sugere que 26,7% da população total seriam pobres, comparados com "somente' 10,1% dos idosos. A pobreza total seria em torno de 50 milhões de pessoas.

66 BRIAN NICHOLSON

igual para homens e mulheres. Tipicamente LOAS vai para pessoas sem direito a uma aposentadoria pelo INSS, ou qualquer outro regime, e que são muito po­ bres. Recebe LOAS somente quem tem renda familiar abaixo de um quarto de um salário mínimo per capita. Essas mudanças ampliaram bastante o número de brasileiros beneficiados pela previdência — os maiores avanços foram conquistados pelas mulheres, e no Norte. O número de trabalhadores rurais recebendo benefícios, principalmente aposentadorias e benefícios assistenciais, subiu de 4,1 milhões no final de 1991 para 6,5 milhões no final de 1994 — um “espetáculo de crescimento”de mais de 50% em somente três anos. A Constituição de 1988 teve forte impacto no interior por uma segunda razão — eliminou a diferença que existia entre o benefício mínimo na cidade e no campo. Assim, além de aumentar o número total de beneficiados, também efetivamente dobrou o valor do benefício de quase todos os idosos rurais, que antes recebiam meio salário mínimo — em dezembro de 2006, nada menos que 98,5% dos benefícios rurais eram de um salário mínimo. Graças à combinação desses dois fatores — mais pessoas contempladas e mais dinheiro para cada uma —, o gasto total do INSS com os trabalha­ dores rurais mais que triplicou, em termos reais, em pouco tempo. Nas menores cidades do interior, onde a presença dos aposentados rurais é pro­ porcionalmente maior, o impacto foi enorme. A previdência se tornou, nos anos 1990, um fator dominante na vida econômica de muitos dos municí­ pios menores e mais pobres do país. E continua sendo. Sem essa expansão, a desigualdade, a fome e a indigência seriam hoje bem piores, principal­ mente nas áreas rurais. Não é por menos que a deputada Jandira Feghali, do PCdoB do Rio de Ja­ neiro e médica por profissão, falando na Comissão de Seguridade Social e Fa­ mília da Câmara dos Deputados em maio de 2003, chamou o sistema previdenciário brasileiro de “o maior programa de distribuição de renda dentro de uma ótica contributiva e de repartição que tem o Brasil”. Quem é da classe média e mora nas grandes cidades talvez não perceba as conseqüências desse caudaloso rio de recursos, fluindo para as áreas rurais e cidades menores. Freqüentemente, os beneficiados seriam membros de famí­ lias que têm alguma produção própria de comida, mas lhes falta dinheiro confiável, aquele que cai na conta cada mês. Muitas são famílias que vivem quase à margem da economia do dinheiro, tanto que os estudos sugerem que,

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 67

em vários milhões de lares rurais, pelo menos metade do dinheiro que entra vem da previdência.42 As conseqüências vão longe. Melhora a vida dos idosos e seu status dentro das famílias e comunidades — e como os idosos mais pobres têm maior tendên­ cia de morar com parentes, os benefícios do INSS acabam ajudando essas famí­ lias maiores, inclusive jovens e adultos pobres. Essas famílias ganham maior capacidade para comprar, talvez não comida, que nem sempre esteja faltando, mas bens e serviços adicionais, por exemplo: • Medicamentos e, eventualmente, consultar um médico particular; • Televisores, refrigeradores, antenas parabólicas e outros aparelhos domésticos; • Luz e telefone (inclusive instalações para receber os serviços); • Materiais de construção para ampliar ou reformar a casa; e • Insumos e instrumentos de trabalho agrícola.43

Tudo isso estimula a atividade econômica de uma maneira que possa ser marcante em cidadezinhas do interior. O economista Helmut Schwarzer, antes de participar do governo Lula como secretário de Previdência Social, pesquisou e descreveu o impacto em cidades pequenas no Pará: “No dia do pagamento, os pensionistas adquirem os bens que necessitam para o mês e amortizam os em­ préstimos recebidos. O cartão bancário eletrônico que cada beneficiário recebe freqüentemente é usado como uma prova de sua capacidade de pagamento no comércio, já que os trabalhadores rurais aposentados são uma das poucas cate­ gorias que podem contar com uma renda regular nas pequenas cidades. Portan­ to, os dias de pagamento das aposentadorias e pensões ‘giram as engrenagens'do comércio local no Brasil rural”. Em seguida, ele observa que “algumas instituições sobrevivem graças às transferências de renda proporcionadas pela previdência social. Os bancos 42G. Delgado e JC Cardoso Jr (citados por Schwarzer e Querino) estimaram que, entre 80% e 90% dos domicílios rurais beneficiados, a previdência seria a fonte de pelo menos 50% da renda monetária - ver A Universalização de Direitos Sociais no Brasil (Ipea, 2000). No final de 2006, o total de benefícios rurais era de 7,3 milhões, embora o núme­ ro de domicílios atingidos fosse menor, devido à existência de domicílios com dois ou mais beneficiários. 43Gastos típicos citados por Schwarzer e Querino em Benefícios sociais e pobreza... (Ipea, 2002).

68 BRIAN NICHOLSON

comerciais são um caso especial. Eles são remunerados pelo serviço de paga­ mento da previdência social, e diversas filiais localizadas nas pequenas cidades dependem dessa remuneração para serem lucrativas e continuarem abertas. Sem a infra-estrutura bancária, o desenvolvimento econômico local iria encontrar grandes dificuldades, já que seria mais complicado ter acesso ao crédito rural e desenvolver programas usando as linhas de financiamento local patrocinadas pelo governo estadual e federal”.44 Tudo indica que o Bolsa-Família tem impacto parecido, embora em vo­ lume menor. Antigamente, o INSS gerava superávit nas cidades e déficit no campo. Hoje, com a piora geral das contas, o buraco se espalhou para as cidades também. Mas é proporcionalmente maior no campo, e já que a sociedade é dominada pelo lado urbano, o que temos efetivamente é uma transferência das cidades para o campo. Além de ser um louvável gesto de cidadania por parte dos “relativamente mais ricos”, trata-se de um ato de alto interesse próprio, pois, à medida que se melhora a vida no campo e nas cidadezinhas, diminui-se a migração para as cidades grandes. As favelas crescem menos, e a violência urbana também. Pelo menos, é isso que diz a teoria... Vários estudiosos da previdência observaram que em mais de 2 mil municí­ pios — quase um terço do total nacional — os benefícios do INSS injetam mais dinheiro na economia local que o Fundo de Participação Municipal, pago pelo governo federal para cada prefeitura. E Schwarzer cita dados mostrando que, em Estados pobres como Piauí e Paraíba, o valor dos benefícios do INSS repre­ senta aproximadamente um oitavo do PIB estadual — o valor total produzido pela economia do Estado. Tudo isso revela a importância da previdência. Mas não é argumento para que ela seja intocável. Ao contrário, é argumento forte para melhorá-la — para assegurar que os enormes recursos da previdência sejam gastos da melhor ma­ neira possível, visando sempre ao bem da sociedade. Também revela o quanto as sucessivas gerações das elites brasileiras têm sido negligentes, ao deixar de estender aos pobres rurais os benefícios do desen­ volvimento econômico. Imaginem que em pleno início do século 21, benefícios para velhinhos de míseros R$ 12,66 por dia em valores de 2007 possam fazer tanta diferença em tantas comunidades. 44 Em Impactos Socioeconômicos do Sistema de Aposentadorias Rurais no Brasil (Ipea, 2000).

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 69

Um em cada dez brasileiros salvo da pobreza...

Até agora, focalizamos basicamente o trabalhador rural idoso, porque foi no campo que a recente expansão do INSS teve seu impacto maior. Mas não podemos ignorar outros segmentos da população, nem os outros regimes de previdência. Existem milhões de idosos urbanos que vivem melhor — ou menos mal — graças aos benefícios que recebem dos vários sistemas de previdência, como também há gente mais jovem que recebe assistência tem­ porária, por exemplo, quando fica doente ou sofre acidente no trabalho. São milhares de mães recebendo licença-maternidade, um conceito enormemente positivo, que é bom tanto para a mulher quanto para o bebê. E há gente que, embora ainda em idade de trabalhar, fica permanentemente impossibilitado de fazê-lo por causa de uma doença ou acidente de trabalho, e portanto rece­ be dos cofres públicos um benefício permanente — efetivamente, uma apo­ sentadoria precoce. São, todas elas, coisas que uma sociedade civilizada deve fazer. São coisas que precisam estar preservadas, senão melhoradas, em qual­ quer proposta de reforma. Além disso, é importante lembrar que os benefícios da previdência raramen­ te sustentam somente seu titular. Na média, para cada beneficiário, outras 2,5 pessoas são beneficiadas indiretamente. Assim, juntando o INSS e os regimes dos servidores, podemos dizer que até 85 milhões ou 90 milhões de brasileiros são beneficiados direta ou indiretamente — quase a metade da população. Na verdade seriam menos, porque algumas famílias recebem dois ou mais benefí­ cios, enquanto ainda há casos de indivíduos que recebem mais de um. Mesmo assim, podemos ver que o total é grande. E qual o impacto, em nível nacional, dessa enxurrada de benefícios? Bem, o mais imediato e importante é a redução da pobreza. Tomando como definição de “pobre” uma pessoa com renda domiciliar média de até meio salário mínimo por mês — e com dados do IBGE de 1999, Schwarzer e Ana Carolina Querino calcularam que 26,7% da população brasileira eram pobres. Isso, já contando com a previdência. Sem os benefícios, seriam 37,2%. Ou seja, 10,5% da popula­ ção total foram resgatados da pobreza.45 45Ver Benefícios sociais e pobreza... (Schwarzer e Querino, Ipea, 2002).

70 BRIAN NICHOLSON

Cálculos feitos pelo Ministério da Previdência para o mesmo ano, mas usan­ do uma linha de pobreza mais alta, indicaram um impacto parecido — uma redução de 45,3% para 34,0% dos pobres na população — 11,3% a menos.46 Desde então, a população cresceu, mas a proporção total de pobres vem caindo um pouco, graças ao impacto do aumento do salário mínimo, da expansão dos bene­ fícios assistenciais, principalmente o Bolsa-Família, e um pouco do crescimento econômico. Mas a previdência continua tirando algo como um em cada dez brasilei­ ros da pobreza — hoje, certamente algo entre 15 milhões e 20 milhões de pessoas. Definitivamente, não é programa para jogar fora, é programa para melhorar. Porque, mesmo com a previdência, não há como negar que o Brasil continue cheio de gente pobre. O impacto da previdência sobre a pobreza é principalmente o resultado das aposentadorias rurais e dos benefícios assistenciais da LOAS, que são pagos pelo INSS. Portanto, o grande avanço desde a Constituição veio pela expansão destes benefícios, não pela ampliação dos regimes de aposentadorias tradicio­ nais, nem do INSS, e muito menos dos servidores públicos. Estamos falando de gente que não tinha quase nada, e agora recebe um be­ nefício mínimo. Sem esse dinheiro, passaria fome. Teoricamente, o desembar­ gador aposentado na Zona Sul do Rio, que vive sem outra fonte de renda, pode reclamar que, sem seus R$ 20 mil ou mais por mês, ele também passaria fome. Então, ele poderia dizer que sua situação é exatamente igual à da dona Maria, lá do Vale do Jequitinhonha, que recebe um salário mínimo pela LOAS. A di­ ferença é que, no caso da dona Maria, o sistema a coloca no primeiro degrau acima da indigência. No caso do desembargador, o sistema o leva num elevador dourado para a cobertura, com ar condicionado e vista para o mar. Os excluídos...

Embora a previdência — basicamente, o INSS — tenha crescido muito nos últimos anos, resgatando milhões de brasileiros da pobreza, muitos continuam excluídos. Menos da metade dos trabalhadores contribuem, mas este é problema 46 Ver o Uvro Branco d a Previdência Social, pág. 148 (MPS). Trata-se de uma ampla publicação que oferece excelente apresentação de todas as áreas do sistema brasileiro de previdência social em dezembro de 2002, ou seja. no final do governo FHC. Explica o que foi feito e o que não foi feito - e às vezes explica por que não foi feito - e discute soluções. Disponível para download gratuito no site do ministério - http://www.mpas.gov.br/pg secundarias/previdencia_social_l 4_06.asp. “

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 71

que veremos mais à frente. Por enquanto, vamos falar daqueles que são excluídos das aposentadorias — os idosos sem amparo. Para o leigo, talvez, parece óbvio. Quem contribui recebe. Quem não contri­ bui fica sem. Mas não é tão simples. Algumas pessoas contribuem com uma quantia insuficiente para completar a carência, perdem tudo e ficam sem bene­ fício. Outros, embora sem ter contribuído com nada, se declaram indigentes e recebem um benefício assistencial. No geral, sabemos que aproximadamente 80% dos idosos — acima de 60 anos — recebem um benefício, seja do INSS ou dos regimes dos servidores, seja como aposentado, pensionista ou recipiente de assistência. Parece bom. Mas também quer dizer que quase um em cada cinco idosos — seria algo como 3,2 milhões de pessoas, em 2007 — não tem benefício. Várias delas são dependen­ tes de aposentados, mas quase 10% dos idosos acima de 60 anos e quase 6% dos acima de 65 anos ficam sem amparo dos cofres públicos, nem como titular, nem como pensionista, nem como dependente de beneficiário.47 Vários acadêmicos olham para este desempenho e concluem que o alcan­ ce da previdência brasileira é quase universal, e portanto ela vem funcionan­ do bem. Certamente, em muitos países em desenvolvimento é pior. Mas prefiro pensar nos aproximadamente 700 mil brasileiros e brasileiras acima de 65 sem cobertura alguma. Também nos casais de velhinhos nas grandes cidades, eventualmente com parente idoso dependente, todos rachando um benefício mínimo. Quem seriam os brasileiros e brasileiras que terminam seus dias sem qual­ quer apoio da sociedade? São todos milionários? Gente tão rica que pode esno­ bar esmolas públicas? Estranhamente, não. Alguns são pessoas que ainda trabalharam e devem requerer um benefício mais tarde. Mas muitos, não. Focando especificamente aqueles com 67 anos ou mais, os pesquisadores Helmut Schwarzer e Ana Carolina Querino estimaram que, em 1999, um sex­ to dos indigentes ficaram sem assistência.48 Três grandes grupos descobertos são: • Famílias de pai solteiro (ou, principalmente, mãe solteira), de renda baixa. 47Ver Brasil: o estado de uma nação 2006, pág. 464/5, Ipea, e também Universalização d a Previdência Social no Brasil: uma questão ainda em aberto, dissertação de mestrado de Beatriz Cardoso Cordero, Unicamp. 2005. A estimativa para 2007 é feita pelo autor projetando resultados desses estudos, que usaram dados de 2001, para a população atual, por faixa etária. 48Benefícios sociais e pobreza.... Schwarzer e Querino, pág. 26.

72 BRIAN NICHOLSON

• Pessoas que não contribuíram o suficiente para conseguir o beneficio míni­ mo do INSS, mas têm uma renda familiar maior que um quarto de um salá­ rio mínimo por pessoa, alta demais para receber um benefício assistencial. • Pessoas que simplesmente não sabem dos seus direitos.

Agora, é muito importante entender que, se nada for feito, a porcentagem de idosos sem cobertura do INSS deve crescer bastante. Isso por várias razões. A proporção dos trabalhadores que contribui para a previdência vem caindo ao longo dos anos; as recentes reformas aumentaram o tempo mínimo de contri­ buição, de cinco para quinze anos; e são freqüentes as sugestões de que o país precisa endurecer nas condições para emissão da aposentadoria rural. Alertam os peritos: “Deve aumentar a porcentagem da população descober­ ta com mais de 60 anos, e isso vai aumentar o grau de pobreza na população mais idosa, e provavelmente constituir mais um aspecto negativo na realidade social brasileira.”49 Uma linda praia, mas com borrachudos...

Falamos tão bem da previdência social, principalmente do INSS. Mostra­ mos como ela tira vários milhões da pobreza, enquanto energiza a economia das cidadezinhas do interior. Como é que agora podemos pensar em criticá-la? Bem, o fato é que a previdência brasileira, como muitas coisas na vida, con­ segue ser boa e ruim ao mesmo tempo. E, como sempre, estamos pensando não na sua eficiência, ou impacto fiscal, mas sim na justiça social. De um lado, a previdência brasileira paga benefícios básicos para os mais pobres, às vezes em troca de algumas contribuições, mas muitas vezes sem con­ tribuição alguma. De outro, paga benefícios polpudos para uma minoria, nor­ malmente com contribuição, mas quase sempre com fortíssimo elemento de subsídio. Quase todas as pessoas que contribuem, e cumprem a carência, vão receber de volta mais que pagaram. Em termos simples: portanto, há subsídio para os pobres, e também para os ricos. 49 Social Securíty in the Long Life Soclety: Brazllian Experience in the Lafin American Context (Matijascic e Calsavara. 2003). Tradução do autor.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 73

Neste momento, algumas pessoas vão pensar: “Então, se há subsídio para todos, isso só pode ser uma maravilha! Deve ser a coisa mais democrática do mundo! Estamos todos ganhando, numa boa, e aí vem este gringo chato jogar um balde de água fria na festa. Como é que pode...?” Bem, vamos por partes. Mas, primeiro, uma pequena palavra técnica... Os economistas gostam de classificar políticas públicas conforme seu impacto na desigualdade. Quando algo torna a sociedade mais igual, chamam isso de “pro­ gressiva” — não no sentido de “passo a passo”, mas no sentido de promover o progresso social. Por tabela, uma política “regressiva” seria aquela que faz piorar a desigualdade. E como os economistas, sem exceção, são todos gente altamente preocupada com a justiça social, tornou-se praxe enxergar como “boas”as políticas progressivas. Certamente, no caso do Brasil, onde a distância entre rico e pobre é das maiores do mundo, seria bastante difícil argumentar que um centavo de di­ nheiro público deve ser gasto de maneira que faça aumentar a desigualdade. Assim, vamos nos juntar à grande maioria do mundo civilizado e enten­ der que queremos políticas progressivas — aquelas que levam à redução da desigualdade. Isso não quer dizer que 100% do dinheiro público têm que ser gasto com os pobres. Muitas políticas beneficiam igualmente todos os cidadãos. A defesa na­ cional e a proteção ao meio ambiente seriam, em princípio, gastos neutros. E podemos ter políticas que causam o efeito progressivo de forma indireta, por exemplo, quando usamos dinheiro público para treinar cientistas ou estimular investimentos, que por sua vez vão criar empregos e melhorar a vida de todo mundo. Mas políticas efetivamente regressivas, nunca. Pois então. O problema com a previdência brasileira é que grande parte dela é altamente regressiva. Ou seja, tende a piorar a desigualdade no país. Já posso ouvir pessoas insistindo: “Mas, se todo mundo está ganhando, como é que pode ser ruim?”. Bem, precisamos lembrar que qualquer gasto feito pelo governo é, na verda­ de, um gasto feito pela sociedade. Ao dizer que há um subsídio para os benefí­ cios rurais, o que de fato existe é uma transferência de dinheiro da população em geral para os mais pobres no campo. Na linguagem dos economistas, temos uma política progressiva. Na linguagem popular, é coisa boa. Mas, quando há um subsídio para as altas aposentadorias de uma minoria, trata-se de uma trans­ ferência de dinheiro da população em geral para aqueles que já têm mais. Na linguagem técnica, uma política regressiva. Na linguagem popular, algo ruim.

74 BRIAN NICHOLSON

Algumas pessoas talvez vão pensar: “Tudo bem, entendo que a previdência consegue ser ao mesmo tempo boa e ruim, mas paciência, a vida nunca é perfei­ ta, e quem sabe a parte boa mais que compensa a parte ruim?”. Seria um argumento interessante, se não fosse incorreto. E quando usado por pessoas que entendem muito bem da previdência, e se beneficiam dela, torna-se um argumento cínico e desonesto. Primeiro, porque o país gasta muito, muito mais com a parte ruim do que com a parte boa. E segundo, porque pode­ mos facilmente consertar a parte ruim da previdência, enquanto se preserva a parte boa. Quem sabe podemos até melhorá-la? Não é uma questão de tudo ou nada. Não é necessário aceitar os defeitos e as injustiças da previdência como mal necessário, para poder desfrutar dos benefícios que ela traz aos pobres. Quem diz o contrário estaria usando a lógica da “praia com borrachudos”— sugerindo que a previdência seria igual uma praia lindíssima, mas cheia daqueles insetos insuportáveis. E pela lógica, gozar da beleza da praia implica necessaria­ mente sofrer picadas. Mas sabemos que não é assim, porque quem planeja antes leva repelente. Nem sempre será uma solução perfeita, mas minimiza os proble­ mas. E na previdência, seria muito fácil eliminar ou reduzir sensivelmente os sub­ sídios aos mais ricos, enquanto se preserva, se amplia e melhora os benefícios dos mais pobres. Tecnicamente, tomar a previdência mais justa não seria complicado. Politicamente, certamente seria, porque a história nos ensina que os mais abasta­ dos em qualquer país relutam em abrir mão dos privilégios. No Brasil, quem sabe, relutam ainda mais. Ou será que é puro acaso que o Brasil chega ao século 21 como uma das sociedades mais desiguais do mundo? Agora, é essencial lembrar que, acabando com os subsídios aos mais ricos, vamos não somente eliminar uma fonte de injustiça, vamos ao mesmo tempo liberar bilhões de reais para reforçar os benefícios dos mais pobres, e ampliar muitos outros programas sociais. A história do brutamontes no bote salva-vidas...

Talvez a melhor maneira de ver a questão da justiça social na previdência brasileira seja pela história do bote salva-vidas... Imagine que, após um naufrágio em alto-mar, sobrevivem cinco sortudos num bote salva-vidas. Um deles, brutamontes daqueles, repleto de pistolas, se declara capitão e toma posse do baú de comida, que fica só para ele. Com o

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 75

passar dos dias, os quatro sem-comida ficam cada vez mais famintos e fracos, e o capitão mais corpulento e bronzeado. Mas ele tem as pistolas, fazer o quê? Finalmente, avistam a distância uma caixa quadrada, flutuando no mar. Re­ mando até ela, lêem na caixa “Pizzaria INSS”. E dentro, uma pizza enorme, quem sabe de calabresa com mussarela. Aí vem a pergunta: como é que devem dividir a pizza} A) Em quatro fatias iguais, uma para cada um dos quatro famintos? B) Em cinco fatias iguais, uma para cada pessoa no bote? C) A maior parte para o capitão — que adora calabresa com mussarela — e um pedacinho para cada um dos famintos? D) Tudo para o capitão, que tem as pistolas?

E evidente que as opções são apresentadas numa escala de justiça social. A opção A seria a mais justa, e a opção D a mais injusta. Na linguagem dos economistas, a opção A seria a mais progressiva, a opção B mais ou menos neu­ tra, e as opções C e D francamente regressivas. Então, qual opção seria a mais parecida com a previdência brasileira de hoje? Sempre com a ressalva de que se trata de um exemplo bastante simplificado, podemos dizer que a previdência hoje é mais parecida com a opção C. Quem já tem mais recebe a fatia principal, mas sobra um pedacinho para cada um dos quatro famintos. O interessante desse exemplo é que, mesmo com uma distribuição que a maioria das pessoas vai chamar de altamente injusta, os quatro famintos melho­ ram sua situação. Afinal, antes não tinham nada. E para completar o exemplo, podemos dizer que a previdência brasileira, nas suas origens, praticava mais a opção D, e vem mudando lentamente para a op­ ção C. Enquanto isso, as propostas apresentadas neste livro vão transformá-la numa mescla das opções A e B. Agora, já posso ouvir pessoas reclamando que este exemplo tem um grande defeito. A pizza chega de graça aos náufragos, enquanto a previdência é paga por meio de contribuições específicas, contribuições gerais e impostos. E certa­ mente algumas pessoas pagam mais que outras.

76 BRIAN NICHOLSON

Então, vamos melhorar nosso exemplo. Vamos voltar ao bote salva-vidas, no momento quando alguém avista a caixa boiando, longínqua, no mar. E vamos dizer que os famintos — exatamente por ser famintos — não têm força suficien­ te para remar até ela. Ensaiam algumas remadas fracas, mas é o capitão, bem ali­ mentado e forte, que precisa contribuir com a parte maior do esforço braçal. “Então”, diz ele, ao descobrir que a caixa contém sua comida predileta, “a pizza é toda minha, porque foi somente graças aos meus esforços que consegui­ mos pegá-la. Se sobrarem algumas migalhas, talvez eu me lembre de vocês...” E daí? Ficamos sensibilizados com os argumentos do capitão, de que ele contribuiu com muito mais esforço para alcançar a pizza e, portanto, tem o di­ reito de comer a parte maior? Ou vamos dizer que o capitão podia remar mais, exatamente porque a comida, nos dias anteriores, foi dividida de forma total­ mente desigual? Peço ao leitor que, antes de prosseguir, gaste um momento para refletir sobre a divisão mais adequada da pizza, e depois, reflita sobre a divisão mais adequada dos recursos da previdência...

CAPÍTULO 6

O que é valor justo? O que é privilégio?

o próximo capítulo, vamos mergulhar na previdência brasileira, para ver quem recebe benefícios privilegiados. Mas, antes, precisamos enfrentar uma pergunta espinhosa: “Quanto é que você deve receber de aposentadoria?”. A primeira resposta de qualquer pessoa, inclusive eu, seria: “Oba! O máximo possível!”. Mas vamos com cuidado. A pergunta não é “quanto que você gostaria de receber de aposentadoria?”, mas quanto que você deve receber, pensando principalmente na justiça social. Trata-se de uma questão capaz de rachar famílias e detonar briga em clube de boliche. O essencial é lembrar que um sistema de previdência sempre tem dois lados. Não é só receber, alguém tem que pagar. Estamos falando de sistemas operados pelo governo, mas o dinheiro é nosso, é da sociedade, que no final das contas quer dizer nós, a gente, cidadãos brasileiros e qualquer outro que tem o privilé­ gio de morar, trabalhar e pagar impostos nessas terras descobertas por Pedro Álvares Cabral. Não importa se falarmos do INSS ou dos regimes dos servido­ res públicos, alguém recebe e alguém tem que pagar. Então, vamos refazer a pergunta de outra maneira: “Aquele sujeito lá, que você nem conhece — quanto que ele deve receber de aposentadoria?”. Posto assim, seremos talvez um pouco mais comedidos. Realismo numa ilha de fantasia...

Qual seria, então, o “valor justo” de uma aposentadoria, dentro de um sistema público? A resposta pode ser relativamente simples, ou muito complicada. A se­ guir, um resumo da questão, que tem abordagem mais completa no Anexo I.

78 BRIAN NICHOLSON

Vamos começar numa ilha imaginária, perdida no meio do oceano. Nada tem a ver com nossos amigos náufragos, aquele foi outro oceano. Nessa ilha não se usa dinheiro, portanto não existe inflação. Todos os adultos trabalham — fazem colheita de coco, ou são pescadores, ou lenhadores, ou algo assim — e as trocas são feitas amigavelmente por escambo. Todos têm “renda” igual, sem ricos e pobres. Não há governo para cobrar impostos e a única ação coletiva é cuidar dos idosos, portanto a única coisa que os trabalhadores descon­ tam da sua “renda” é a “contribuição” que repassam aos idosos na forma de pei­ xes, ou lenha, ou algo assim. Finalmente, vamos imaginar que a população nem cresce, nem diminui, fica estável ao longo dos anos, e cada pessoa vive exata­ mente o mesmo número de anos. Nessa ilha paradisíaca, vivem 100 pessoas. São eles: • 25 crianças e jovens, todos morando com suas famílias; • 50 trabalhadores adultos, homens e mulheres; e • 25 velhinhos aposentados.

Aí, fica claro que cada dois trabalhadores precisam sustentar um aposen­ tado. Não importa o nível do benefício ou contribuição que a sociedade deci­ de, serão sempre dois trabalhadores para cada aposentado. Então, vamos ver algumas possibilidades... Não é impossível, mas é muito complicado. Cada trabalhador precisa entregar a metade de sua “ren­ da” cada mês. Cada aposentado terá uma “renda” completa, enquanto cada trabalhador fica com somente a metade de uma “renda”. Assim, o aposentado acaba tendo duas vezes mais que o trabalhador!

1.

A p o s e n ta d o r ia ig u a l à r e n d a i n t e g r a l

2.

— Para tanto, cada trabalhador vai contribuir com um terço de sua “renda”, e ficar com uma renda líquida de dois terços. Cada idoso recebe uma aposentadoria de dois terços da renda bruta. Deste modo, todos os adultos têm renda líquida igual, equivalente a dois terços de uma renda bruta. A p o s e n ta d o r ia ig u a l à r e n d a líq u id a



A PREVIDÊNCIA INJUSTA 79

3.

— Cada trabalhador vai contribuir com 20% e ficar com renda líquida de 80%. Cada aposentado terá uma aposentadoria da metade disso, 40% de uma renda total. A p o s e n ta d o r ia ig u a l à m e ta d e d a r e n d a líq u id a

E assim vai. Quem quiser pode brincar com outras opções — contribuição de 25% e aposentadoria de 50%, ou contribuição de 30% e aposentadoria de 60%, por exemplo. O importante é perceber que cada aposentado vai receber, em benefícios, exatamente o mesmo valor que contribuiu, ao longo dos anos, enquanto traba­ lhava. Vamos ver por quê... São sempre dois trabalhadores para cada aposentado e, portanto, cada adul­ to trabalha dois anos para cada ano que vai ficar aposentado. Digamos que to­ dos os jovens começam a trabalhar aos 18 anos, e que todos os ilhéus vivem até exatos 72 anos. Então, aqueles 54 anos de vida adulta têm que ser divididos assim, 36 anos de trabalho, e 18 anos de aposentadoria. A idade de aposentar será, obviamente, 54. No terceiro exemplo, aquele com aposentadoria igual à metade da renda lí­ quida (que é o mais realista), o trabalhador contribui com 20% da renda duran­ te 36 anos, um total de 7,2 anos de renda bruta, e recebe 40% durante 18 anos, que também totaliza 7,2 anos de renda bruta. Portanto, o valor total das contri­ buições é exatamente igual ao valor total dos benefícios. Neste exemplo bastante simplificado, podemos ver que o valor justo de uma aposentadoria acontece quando o idoso recebe de volta exatamente o que pagou como trabalhador, sem perder um centavo (ou um peixe...), mas também sem nada além disso. No Anexo A-I, fazemos algumas experiências nessa mesma ilha, mexendo no valor da contribuição, no valor do beneficio e na idade de se aposentar. Po­ demos ver que aquele princípio básico continua valendo — cada aposentado recebe em benefícios exatamente o mesmo valor total que contribuiu enquanto trabalhava. E embora nossa ilha não use dinheiro e, portanto, não tenha infla­ ção, se usasse e se tivesse, isso não alteraria aquele princípio básico. Seria só atualizar todos os valores, ao longo dos anos. Isso, então, seria nossa primeira e mais simples visão do que é o valor justo de uma aposentadoria. Numa sociedade sem crescimento da população, nem da economia, sem mudança da expectativa de vida, uma aposentadoria será de valor justo quando a soma de todos os pagamentos mensais que uma pessoa recebe,

80 BRIAN NICHOLSON

até a morte, ficar exatamente igual à soma de todas as contribuições que ela fez, enquanto trabalhava. Colocando isso de forma mais simples — cada pessoa recebe de volta o que contribui. E nada mais. Agora, uma das muitas diferenças entre nossa ilha paradisíaca e o mundo real é que neste as pessoas morrem em idades diferentes. Algumas pessoas se aposen­ tam e morrem em seguida, outras sobrevivem décadas. Mas isso não importa, pelo menos para nossos cálculos, desde que todas recebam uma aposentadoria de valor justo no momento de reivindicar o beneficio, ajustado para a expectativa geral de vida. Inevitavelmente, algumas pessoas vão “lucrar”, ao sobreviver mais que a mé­ dia, e outras terão “prejuízo”. Mas no bolo geral, teremos o valor justo. De fato, nunca vamos saber quanto tempo resta para fulano ou beltrano, mas sabemos com bastante precisão a expectativa média para o brasileiro em cada momento da sua vida. E calculada pelo IBGE, e está disponível no seu site. O leitor que quiser saber quanto tempo lhe resta pode consultar “Tábuas Comple­ tas de Mortalidade” no site www.ibge.gov.br, no menu de População. Com essas tabelas, podemos ajustar o valor inicial do beneficio de cada pessoa para sua expectativa de vida, no momento de sua aposentadoria. Quando várias pessoas com o mesmo valor total de contribuições se aposen­ tam com a mesma idade, todos terão o mesmo valor de benefício. Mas se tive­ rem idades diferentes, vão receber benefícios com valores diferentes. A pessoa mais velha vai receber um beneficio maior, porque provavelmente vai desfrutar dele durante menos tempo. E a mais jovem, um benefício menor. Tudo isso, sem fugir do conceito básico do valor justo. Em outras palavras: numa sociedade estável, sem crescimento da população ou da economia, temos o valor justo de aposentadoria para uma determinada pessoa ao dividir o valor total das suas contribuições, incluindo a parte do empregador e atualizadas para compensar a inflação, por sua expectativa de vida ao se aposentar. Só isso? Nada de juros?

O leitor mais atento vai perceber que este “valor justo” implica aposentado­ rias menores que aquelas geralmente pagas hoje no Brasil. De fato, muitas pes­ soas acham que devem receber “algo a mais”, além do valor real das suas

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 81

contribuições. O mais comum é supor que suas contribuições devem render juros. À primeira vista, parece justo. Mas a verdade é que num sistema de repar­ tição, que é o que temos hoje no Brasil, e que existe na maioria dos sistemas públicos no mundo, a idéia de juros simplesmente não se aplica. As contribui­ ções pagas hoje não ficam investidas num fundo, rendendo juros, são gastas na hora para sustentar os idosos de hoje. Trata-se efetivamente de um gasto cor­ rente, igual pagar imposto para sustentar servidor público, avião do presidente ou creche na periferia. O sistema chama-se “solidariedade entre gerações”, por­ que cada geração precisa pagar, cada mês, o custo real das aposentadorias de “seus”idosos e confiar que os trabalhadores de amanhã farão a mesma coisa. Ou seja, se eu exijo juros acima das minhas contribuições, quem vai pagá-los é meu filho — além das contribuições dele. É parecido — não idêntico, mas parecido — com o que acontece na educa­ ção pública. Os adultos de hoje pagam escola para os jovens de hoje, e estes fi­ cam com a obrigação de fazer a mesma coisa, quando crescerem, para a criançada da geração deles. E mesmo quem não tem criança precisa pagar. Se alguém insistir em receber juros em cima de suas contribuições à previ­ dência, além do valor atualizado das suas contribuições, precisa explicar de onde virá o dinheiro. Tecnicamente, é fácil calcular juros em cima das contribuições. Difícil é decidir quem é que vai pagá-los. Com que dinheiro? Digamos que “o governo” pague. Será, então, uma transferência da sociedade em geral para os aposentados. Ou seja, um subsídio, além da contribuição. Agora, pergunto: que­ remos subsidiar o aposentado? Seja ele velhinho na periferia ou juiz à beiramar? E ao decidir fazer isso, a sociedade precisa decidir também em qual área ela quer gastar menos — educação, saúde, cultura, estradas? Ainda naquela linha de querer um benefício com “algo a mais”, além das con­ tribuições, é possível que o crescimento da economia ou da população permita um ganho real. Não seriam juros, propriamente dito, mas seria um ganho. E possível — e alguns países já têm sistemas assim. Se tiver crescimento real da economia, ou da massa salarial, então o valor já contribuído ganha uma corre­ ção. Mas sempre o cálculo é feito depois, nunca antes, porque o que não se pode é fazer promessa baseada em algo que talvez aconteça, mas talvez não. O que v&o se pode é votar uma lei dizendo que vamos pagar benefícios que valem mais do que o valor real das contribuições, confiando no crescimento econômico

82 BRIAN NICHOLSON

futuro. Afinal, o que fazer se o país em alguns anos não crescer, como infeliz­ mente já aconteceu tantas vezes? Prometer um ganho futuro para as contribui­ ções, baseado na esperança de haver crescimento econômico, é igual comprar algo financiado, com prestação além da sua capacidade de pagar, confiando que você será salvo por aumentos de salário. Há um ponto final a pensar. Os idosos não são a única demanda social no Bra­ sil. Aliás, o país tem muitas necessidades urgentes, a começar com educação e saúde. Que tal lembrar dos favelados, dos índios, dos sem-terra, dos jovens das periferias e dos trabalhadores urbanos de baixa renda? Eles também não devem participar dos frutos do crescimento da economia? Por tudo isso, a definição básica que vamos usar do valor justo para uma aposentadoria é aquele que devolve o valor real das contribuições, levando em conta a expectativa de vida da pessoa. Podemos pensar nisso como “valor justo básico”, porque a sociedade sempre pode decidir, em determinados momentos, aumentar os benefícios além desse valor justo, para que os idosos participem dos frutos do crescimento do país, mas somente depois que estes frutos sejam efeti­ vamente colhidos, e sempre de forma equilibrada, levando em conta as outras demandas sociais. No Anexo A-I, há uma discussão bem mais ampla sobre essa questão. Quase desnecessário dizer que a grande maioria dos benefícios previdenciários no Brasil, hoje, está bem acima desse conceito de valor justo. Por exemplo, uma aposentadoria por tempo de contribuição, pelas regras atuais do INSS, vai pagar um benefício integral (100% de seu salário médio de contribuição) para um homem que se aposenta aos 62 anos com 35 de contribuição. Com o con­ ceito de valor justo, essa pessoa teria um benefício de aproximadamente três quintos do seu salário médio. Ou seja, neste exemplo, o INSS hoje paga 66% acima do valor justo. Nas aposentadorias mais precoces, e no setor público, a diferença entre valor justo e valor efetivo é, em geral, muito maior. Vamos voltar ao assunto mais na frente, ao pensar sobre um sistema novo de previdência. Nossa meta será de manter este conceito de valor justo, ao mesmo tempo que criamos um mecanismo para que os idosos possam participar da partilha do crescimento da economia. E vamos fazer isso de uma maneira que promova a justiça social e a redistribuição de renda, dividindo igualmente entre todos os idosos os frutos do crescimento do país que todos ajudaram a construir.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 83

O que seria um “privilégio”?

Pelo dicionário Houaiss, “privilégio”seria “direito, vantagem, (e/ou) prerrogati­ va, válidos apenas para um indivíduo ou um grupo, em detrimento da maioria”. A parte-chave da definição é a última frase — “...em detrimento da maio­ ria”. Existem direitos que não se aplicam a todos, mas que não são privilégios porque não prejudicam a maioria — às vezes até o contrário. O policial tem o direito de andar armado na rua; o cidadão comum, não. Mas aquele direito do policial, longe de ser “em detrimento da maioria”, é para o bem dela, visto que o policial existe para proteger a sociedade e estará pronto a dar tiro em bandido. Como já foi explicado, e como veremos com mais detalhe no próximo capí­ tulo, a grande maioria dos aposentados brasileiros hoje recebe um benefício que embute um subsídio, que vem dos cofres públicos. Devemos entender que são todos privilegiados? Ou nenhum deles? Sempre que enfrentamos um problema dessa natureza, neste livro, vamos vol­ tar à nossa preocupação maior, que é a justiça social e a redução da desigualdade. Hoje, pobres e ricos recebem aposentadorias subsidiadas. Alguns pobres nunca contribuíram — portanto têm subsídio total. Mas nem por isso vamos chamar o pobre de privilegiado, porque a sociedade — creio eu — entende que ajudar o pobre é um bom uso do dinheiro público. Não acontece “...em detrimento da maioria”. E pela mesma lógica, também creio que a sociedade enxerga como mau uso do seu dinheiro subsidiar aqueles que já têm relativamente mais. Ao analisar a previdência brasileira, portanto, vamos trabalhar com essa de­ finição básica, que privilégio existe quando alguém recebe um benefício acima do valor justo, um benefício subsidiado, sem ser pobre. Assim, o que importa na identificação de um privilégio não é a existência do benefício em si, nem sequer seu valor absoluto, que pode ser alto ou baixo. Alguém pode receber uma aposentadoria de vários milhares de reais por mês, sem que isso configure um privilégio — desde que o valor recebido corresponda ao valor efetivamente contribuído. Antes de mergulhar de cabeça na previdência atual, é interessante ouvir o Banco Mundial. Sei que algumas pessoas ainda insistem em ver o Banco Mundial como fonte de mal, como braço direito do “capitalismo internacional”ou quem sabe da CIA. Trata.-se de uma visão deturpada. E claro que o Banco não existe para fomentar a re­ volução armada, e que opera dentro dos princípios básicos do mundo capitalista, mas

84 BRIAN NICHOLSON

sua missão não é fazer lucro e sim de “ajudar as pessoas e os países mais pobres”. Isso ele faz principalmente por meio de financiamento barato para projetos de educação e saúde. O Banco tem uma grande equipe técnica que produz dezenas de estudos a cada ano, analisando os problemas dos 184 países membros e propondo soluções. Pois bem. Em 2001, o Banco Mundial publicou um importante estudo so­ bre a previdência brasileira. Foi preparado com ajuda de vários peritos brasilei­ ros, inclusive do governo federal. Embora o estudo analise separadamente cada área da previdência social — INSS, regimes dos servidores públicos e planos privados — seu relatório tece no início alguns comentários contundentes sobre o sistema de previdência como um todo.50 Dizia o Banco: “Até mesmo num país que tem um dos maiores níveis de desigualdade de renda, poderia fazer sentido subsidiar um sistema fiscalmente oneroso de previdência social se este servisse bem aos pobres, ou se seu efeito geral fosse de redistribuir recursos em favor dos pobres. Mas grande parte do sistema de aposentadorias no Brasil é atualmente estruturada para subsidiar os relativamente ricos, mais do que os pobres. As estatísticas indicam que menos de 1% das despesas da previdência social atinge os 10% mais pobres dos brasi­ leiros, enquanto cerca de 50% dos gastos são apropriados pelos 10% mais ricos do país. Graças à sua generosidade, o sistema também transfere implicitamente a riqueza das gerações futuras para os atuais trabalhadores/aposentados.” Simplificando as palavras do Banco: • O grande gasto nacional na previdência não seria tão condenável, se fosse direcionado para o bem dos pobres, mas... • O sistema é bastante injusto, porque... • A previdência efetivamente transfere renda para os mais ricos, e com isso... • O país vem prejudicando, além dos pobres atuais, as futuras gerações, que têm que pagar a conta.

Cientes dessa avaliação tão sóbria, vamos ver as várias áreas de privilégio. 50 Chama-se Brazll - Criticai Issues In Social Securíty- disponível na internet, no site do banco, em inglês http://www-wds.worldbank.org/servlet/WDSJBanl5' Entrevista ao Correio Braziliense (24 de fevereiro de 2003). Segue o trecho completo sobre contas da previdência: "C orreio-O argumento do governo é que se a reforma da Previdência não for feita, será impossível fechar as contas daqui a alguns anos. Marco Aurélio - Que conta é essa? O que se diz é “o que se arrecada não dá para pagar'. Realmente não dá para pagar: só se começou a arrecadar a partir de 1993, para se honrar aposenta­ dorias de um sem-número de servidores. É óbvio que não vai dar. A União não pode esquecer esse dado. O ônus é dela quanto ao fechamento das contas. E aí ela mesma precisa contribuir, desde que determinadas receitas entrem para a Previdência, como CPMF e PIS. Correio- E quanto aos excessos? Aposentadorias milionárias que são pagas pela União... Marco Aurélio - Tem como corrigir isso. Adotando-se o teto constitucional, por exemplo. Basta fazer isso e pesquisar as sftuações que foram adquiridas à margem da lei. Claro que há distorções, e elas precisam ser eliminadas.'

290 BRIAN NICHOLSON

alertassem para o fato. Mas, por tabela, se houver legislação regressiva, que difi­ culta o avanço social, seria bom se fosse também mencionada. Ninguém deve pedir aos advogados ou às instituições jurídicas qualquer postura senão a defesa do Estado do Direito. A OAB, especificamente, tem uma longa e valente história na luta em prol da democracia, e hoje é uma das entidades civis mais vigilantes na fiscalização dos abusos. Nos últimos anos, por exemplo, a Ordem criticou políticos por aumentar demais seus próprios salários, pediu investigação sobre casos de possível corrupção no governo fe­ deral, exigiu mais empenho público contra a prostituição infantil, cobrou ação mais enérgica para diminuir trabalho escravo, criticou o governo por entupir a Justiça com recursos futeis e esboçou uma reforma política para resolver boa parte dos problemas do Congresso. São todas elas bandeiras altamente bené­ ficas para a sociedade. Mais a defesa do Estado do Direito não é defesa da imutabilidade das leis. Também ninguém precisa ser economista com doutorado em Harvard para participar do debate sobre a desigualdade. Todo mundo entende da contabilida­ de caseira. Dinheiro que vai para o pão não vai para o leite. Dona Maria enten­ de muito bem disso, lá no Vale do Jequitinhonha. Ela talvez nem tenha ouvido falar em direito adquirido, mas entende muito bem que dinheiro público que vai para o rico não vai para o pobre. A OAB critica com eloqüência, e com razão, a grande desigualdade do país e o valor do salário mínimo “há muito inconstitucional”, ao mesmo tempo em que defende com afinco o princípio constitucional que protege as altas aposen­ tadorias e pensões. Mas será que pagar aposentadorias e pensões de R$ 15 mil ou R$ 20 mil por mês, ou mais, muitas delas pesadamente subsidiadas pela so­ ciedade, não tem nada a ver com a desigualdade? Nada mesmo? Exigir um aumento substancial do salário mínimo sem oferecer solução para a previdência, ou cobrar mais gastos nas áreas sociais sem explicar de onde virá o dinheiro soa como fantasia fiscal. É igual a mãe querer resolver a fome dos cinco filhos mandando cada um comer uma metade da mesma pizza.

CAPÍTULO 16

Algumas dúvidas finais E a questão da retroatividade? m dos debates mais antigos do mundo jurídico é sobre a retroatividade das leis. Em termos simples — se uma lei nova pode atingir atos que aconte­ ceram antes de ela ter sido criada, ou de ter entrado em vigor. Antes de mais nada, é importante entender que o princípio da não retroati­ vidade das leis não é a mesma coisa que o princípio do direito adquirido. Em termos de leigo: o princípio de não retroatividade diz que, se algo é permitido no momento em que você o faz, então você não pode ser pego por uma lei que entra em vigor depois do seu ato. Digamos que você estaciona seu carro num lugar permitido. No dia seguinte, depois que você já retirou seu carro, o prefeito baixa um decreto declarando que aquele lugar é proibido. Aí, vem um fiscal daqueles, dizendo que viu seu carro no dia anterior, e enfia uma multa. Não pode. Igualmente, o município não pode baixar uma lei dizendo que sem­ pre foi proibido estacionar naquele lugar. Curiosamente, existe um argumento teórico a favor da retroatividade. Se­ gundo este raciocínio, os legisladores de um país votam sempre nos melhores interesses do povo e, portanto, as leis estariam sempre se aprimorando. Assim, quando o Congresso cria uma nova lei sobre, digamos, higiene nos açougues, essa lei vai incorporar os mais recentes conhecimentos sobre manuseio da carne e proteção ao consumidor. Ao cumprir a nova lei, o açougueiro vai oferecer à população carne com menos risco de prejudicar a saúde humana. Seguindo essa lógica, uma nova lei seria sempre melhor que sua antecessora e, portanto, deve­ ria suplantá-la, também no que se refere aos eventos passados. O argumento existe^ mas não passa de um debate filosófico. A compreensão geral dos juristas

292 BRIAN NICHOLSON

é que uma lei entra em vigor quando for sancionada, ou em algum momento futuro, devidamente especificado, e não atinge atos anteriores. Trata-se de um princípio bastante fácil para nós, leigos, entender. O cidadão não pode ser pego por uma lei criada depois do seu suposto crime. Algo que se encaixa perfeitamente em nossa compreensão de “justiça”. Agora, o importante é entender que a Nova Previdência não vai agir retroa­ tivamente sobre pagamentos já recebidos por aposentados e pensionistas. Age, sim, sobre pagamentos futuros. A proposta muda a aplicação do direito adqui­ rido, que abre caminho para ajustar os pagamentos futuros da minoria privile­ giada. As pessoas não terão mais o direito adquirido de receber benefícios acima do valor que eles efetivamente contribuíram. Tinham este direito, mas por de­ cisão soberana do povo, deixarão de ter. Mas a proposta não mexe no que já foi pago. Não exige nada de volta. Digamos que um ex-servidor receba uma aposentadoria de R$ 15 mil por mês e, com a Nova Previdência, terá direito a “somente” R$ 10 mil. Então, é isso que ele passa a receber, depois do período de transição. Mas digamos que este mesmo servidor tenha se aposentado há cinco anos. Portanto, ao longo dos últimos cinco anos vem recebendo, em valores atuais, RS 5 mil por mês além do valor justo. Algo como R$ 300 mil além do valor justo. Não seria o caso de pedir restituição? Ou de descontar dos pagamentos futuros o que foi pago a mais no passado? Aí, sim, é que entra o princípio da não retroatividade. Sua aposentadoria não foi fruto de nenhuma ilegalidade, foi obtida em conformidade com as leis vi­ gentes da época, e num valor correto para as regras de então. Direito a uma aposentadoria, ele continua tendo. Mas acontece que agora a sociedade decidiu, democraticamente, mudar as regras para calcular o valor dos benefícios para todos os cidadãos. A nova regra vale para todo mundo, mas somente para os pagamentos futuros. O que já foi pago já era. Esqueça. Vamos olhar para a fren­ te. Não vamos consertar o futuro tentando reescrever a história. Alguns juristas vão argumentar, sem dúvida, que a Nova Previdência preju­ dica de forma retroativa o direito adquirido. Mas não é verdade. O beneficiado tem o direito adquirido de receber seu privilégio protegido pela Constituição de 1988. Essa proteção termina na hora que a sociedade substituir a “Constituição Cidadã” pela “Constituição Cidadã-Social”. Segundo a proposta deste livro, a nova Constituição vai excluir da proteção do direito adquirido todos os benefícios previdenciários e similares na transição para o novo sistema. E para quem acha que uma Constituição não pode ou não

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 293

deve fazer isso, recomendo a leitura rápida de dois itens. Primeiro, os argumen­ tos acima expostos, sobre “poder constituinte originário” do povo. E segundo, o Art. 17 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988, que diz: “Os vencimentos, a remuneração, as vantagens e os adicionais, bem como os proventos de aposentadoria que estejam sendo percebidos em desacordo com a Constituição serão imediatamente reduzidos aos limites dela decorrentes, não se admitindo, neste caso, invocação de direito adquirido ou percep­ ção de excesso a qualquer título” (ênfases minha). Ou seja, a Constituição de 1988 fez exatamente o que estamos sugerindo — exclui da proteção do direito adquirido benefícios que contrariavam suas regras. Certamente, os casos que os constituintes de 1988 tinham em mente podem não ser iguais aos casos que serão atingidos pela Nova Previdência, mas o prin­ cípio é idêntico. A diferença maior talvez seja que a “Constituição Cidadã” de­ terminava uma redução imediata, enquanto a “Constituição Cidadã-Social” dará para as pessoas atingidas uma transição mais suave, de quatro anos, e vai isentar os valores mais baixos. É assim que devem avançar as sociedades — pacificamente, com amplo de­ bate e dentro dos melhores princípios democráticos da soberania do povo. Nun­ ca será com a concordância de 100% dos cidadãos, nem podia ser, mas sempre com a aprovação da maioria, buscando maximizar o bem do maior número possível enquanto protege os mais fracos. A sociedade que não avançar dessa maneira, das duas, uma: ou avança de forma sangrenta — que não é da índole do brasileiro — ou simplesmente não avança. Fica estagnada.

No sistema feudal, antes do surgimento do capitalismo, muitos pobres eram simplesmente servos. Parte do seu tempo pertencia ao nobre local. Podemos dizer que exigir trabalho gratuito era um direito adquirido do nobre. Na Europa, antes da Revolução Industrial, muitas regiões estavam sufocadas por pedágios locais, e vários deles eram direitos hereditários de famílias locais. Pagava-se para usar estrada, para atravessar ponte, para navegar um rio, para en­ trar numa cidade, até para desembarcar carga. As vezes, o rei simplesmente “dava” para um felizardo qualquer o direito de criar um pedágio num determinado lugar, talvez como agradecimento por serviços feitos, talvez para sustentar algum paren­ te. O agradecido jogava uma barreira no lugar indicado e vivia feliz para sempre — e seus descendentes também — graças ao seu “direito adquirido”. Quem “dava”

294 BRIAN NICHOLSON

o direito era o rei, mas quem de fato pagava era o povo. Pagava diretamente, no pedágio, ou indiretamente, no preço maior dos produtos. O fato de os pedágios hereditários sumirem antes na Inglaterra contribuiu para o surgimento da revolução industrial no país. Na França, foram varridos pela Revolução. Na Alemanha, sumiram no processo de unificação.152 E para fechar, vamos lembrar que num passado não tão distante houve gen­ te no Brasil e nos Estados Unidos — até gente de bem — que se preocupava mais com os direitos adquiridos dos donos de escravos do que com os próprios pobres acorrentados. Felizmente, o maré da história era mais forte. É assim que avançam as sociedades.

E a proteção das minorias? Ah, sim, as minorias. Algumas pessoas certamente vão argumentar que o direito adquirido é um princípio fundamental que protege indivíduos e mino­ rias contra os abusos de um governo autocrático. E certamente em alguns casos pode ser. Então, vamos pensar sobre as minorias que terão seus benefícios redu­ zidos pela Nova Previdência. Sem dúvida, uma das funções das constituições democráticas deve ser prote­ ger as minorias contra a maioria, e os grandes democratas sempre se preocuparam com isso. Ensinava o advogado Thomas Jefferson, na sua cerimônia de posse como terceiro presidente dos Estados Unidos em 1801, que “embora a vontade da maio­ ria deva sempre prevalecer, aquela vontade, para estar correto, deve ser razoável; que a minoria também desfruta de seus direitos iguais, que devem ser protegidos em leis iguais, sendo que sua violação seria ato de opressão” (tradução minha). A maneira correta de proteger as minorias numa democracia sempre foi objeto de debate. Mas sua melhor garantia em qualquer sociedade virá com dois passos que são muito mais políticos e econômicos do que legais: •

Pelo fortalecimento de uma cultura geral de tolerância, reconhecendo que em algum momento, em alguma maneira, todos nós somos ou seremos membros de uma minoria; e

152Para ver este processo no contexto da industrialização da Europa, recomendo o fascinante livro A Rique­ za e a Pobreza das Nações, de David Landes, professor de História e Economia na Universidade de Harvard. Dis­ ponível em português pela editora Campus.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 295



Pela eliminação das grandes desigualdades econômicas e sociais, que corro­ em os alicerces de uma democracia.

Agora, é importante lembrar que não é pelo simples fato de um determina­ do grupo constituir uma minoria que ele deve ser atendido em tudo o que pede. A praxe, numa sociedade aberta, é permitir que os indivíduos e as minorias fa­ çam o quiserem desde que não prejudiquem a maioria. Mas quando uma mino­ ria pedir — ou exigir — recursos públicos adicionais, então cabe à maioria decidir. Os aidéticos brasileiros, por exemplo, pediram à sociedade que pagasse remédios caríssimos, e a sociedade concordou. Mas a sociedade não aceita pagar plástica para atender dondocas vaidosas. Nem sempre os pedidos são financeiros. Os índios reivindicam reservas, e a sociedade reconhece que essa reivindicação tem mérito, pelo menos em princí­ pio. Mas vamos imaginar que, um belo dia, as várias tribos e nações que restam no Brasil se juntam, contratam um advogado craque e reivindicam a posse de todo o Brasil. Afinal, eles podem argumentar, com certa razão, que tudo era deles. Aí, supõe-se, a maioria vai gentilmente recusar. Até um certo ponto, tudo isso é irrelevante, porque o grande debate em torno das minorias numa democracia sempre foi no sentido de proteger grupos fracos contra abuso, violência e discriminação. Nunca foi, pelo que sei, no sen­ tido de proteger minorias privilegiadas. Vejamos quelhomas Jefferson falou em “direitos iguais” e “leis iguais” para as minorias. Não falou em leis que garantem aposentadorias 50 vezes maior. E ele era advogado... No caso das altas aposentadorias e pensões, não se trata de defender uma minoria oprimida. Não estamos falando em defender o direito dos índios a viver num naco de terra, ou dos homossexuais e lésbicas a fazer o que bem entender na privacidade das suas casas, ou dos deficientes a subir no ônibus de maneira digna e segura. Estamos falando, sim, de proteger pessoas que recebem dos co­ fres públicos muito mais do que contribuíram. Então, se os juristas acreditam que eliminar a proteção do direito adquirido da Constituição brasileira pode criar perigo real de abuso das minorias pela maioria, então caberá aos juristas sugerir uma forma de palavras que possa ofe­ recer tal proteção enquanto libera a maioria para proceder com as reformas constitucionais que ela, a maioria, achar conveniente. O que não pode é usar a defesa das minorias mais fracas como justificativa cínica para manter a proteção constitucional das minorias privilegiadas.

296 BRIAN NICHOLSON

E as “obrigações adquiridas”? Não culpo ninguém por perguntar o que seria uma “obrigação adquirida”? Afinal, a Constituição de 1988 fala 137 vezes de direitos, inclusive direitos ad­ quiridos, mas somente 28 vezes de obrigações, e nenhuma dessas de forma “ad­ quirida”. Muito menos com status de cláusula pétrea. É uma pena, porque no mundo real a grande maioria dos direitos cria obri­ gações. E, por tabela, direitos adquiridos criam obrigações adquiridas. Alguns dos direitos e obrigações na sociedade têm a ver com ações. Por exemplo, você tem o direito de dormir à noite; eu, a obrigação de baixar o som. Outros são mais intangíveis — você tem o direito de pensar o que bem enten­ der; eu, a obrigação de não impedir isso. Mas a grande maioria das obrigações criadas pela Constituição de 1988 é financeira. São a contrapartida natural para os serviços aos quais os cidadãos têm direito. Pela Constituição, o cidadão ganha o direito de receber tratamento médico público, segurança pública, defesa nacional, um sistema judiciário, edu­ cação pública e assim vai, e também a obrigação de pagar por tudo isso. E óbvio que não podemos ter um sem o outro, porque se há uma verdade incontestável em toda a teoria econômica, é que “não existe almoço de graça”. Pode ser que quem pague nem sempre seja quem coma, mas que alguém paga, disso não há dúvida. E sempre que uma pessoa almoçar de graça, o custo do seu prato será repassado a outros cidadãos. Quando um determinado cidadão adquire o direito de receber uma aposen­ tadoria, os outros cidadãos adquirem a obrigação de pagá-la. E quando a filha solteira mais velha daquele cidadão adquire o direito de herdar aquele benefício, os filhos e filhas dos outros cidadãos herdam a obrigação de sustentá-la. Quem advoga isso pode se esconder atrás de palavras tipo “a Viúva” ou “a União” ou até “o Tesouro Nacional”, mas o fato é que estamos criando obriga­ ções adquiridas para nossos filhos. O dinheiro vai sair do bolso deles. Hoje, este privilégio foi extinto para servidores e também para militares novos. Mas ainda existem pelo país afora dezenas de milhares de casos de pensões que foram ou serão herdadas de pais, ex-servidores ou ex-militares, que adquiriram o direito do benefício em troca de contribuições até recente­ mente irrisórias. Essas pensões representam uma pesada obrigação adquirida para todos os nossos filhos, querendo ou não, e representam um desvio do dinheiro público dos pobres para a classe média. Como vimos no Capítulo 7,

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 297

se nada for feito, é provável que ainda vá nascer cidadã brasileira com este direito adquirido e, portanto, este resquício de um mundo pouco republicano pode durar até o século 22. O valor médio dessas pensões estava quase R$ 2,7 mil em meados de 2006. Portanto, cada pensão futura pode representar, facilmente, um conta pendurada da ordem de R$ 1 milhão para nossos filhos resolver. E é interessante observar que, fosse essa uma despesa criada especificamente pelo Congresso, os legisla­ dores seriam obrigados pela Lei de Responsabilidade Fiscal a identificar uma fonte de recursos. Mas, nesse caso, a “fonte de recurso” já está identificada — serão nossos filhos, netos e — quem sabe — bisnetos. O que devemos relembrar, nessa história toda, é que o governo não tem di­ nheiro próprio (embora muitas vezes se comporte como se tivesse). O Congres­ so não tem. A União não tem. O Judiciário não tem. O dinheiro será sempre do povo. Como dizia em 2002 o então presidente do Banco Central, Armínio Fra­ ga, falando sobre a dívida pública: “Não existe muita mágica: dinheiro só pode vir do meu, do seu, do nosso bolso”. Aplicada ao caso das pensões, podemos dizer que “não existe muita mágica: dinheiro só pode vir do meu filho, do seu filho, do bolso deles”. Mesmo que ainda não tenham nascido. Por isso que é bom, sempre que falamos dos direitos adquiridos, lembrar também das obrigações adquiridas.

SEÇÃO 5 CONCLUSÕES

CAPÍTULO 17

Que país deixaremos para os nossos filhos?

A

cabaram os argumentos. Estão todos postos na mesa, e cabe ao leitor ava­ liá-los. São claríssimos os privilégios embutidos na previdência brasileira; fica amplamente comprovada a contribuição destes à desigualdade brasileira; e regem os mais básicos princípios da democracia que o povo tem o direito e o poder de corrigir a situação, se assim quiser. Antes de terminar, seria interessante gastar alguns minutos para refletir so­ bre a escolha que cada pessoa precisa fazer. Como observamos no início da se­ ção sobre direito adquirido, o único argumento respeitável para não acabar imediatamente com os privilégios seria que é mais importante preservar aquela figura jurídica do que atacar a desigualdade. Trata-se de uma decisão que vai moldar o Brasil de nossos filhos. Como será — ou pode ser — este país, quando as crianças de hoje forem adultos, e os adul­ tos de hoje forem velhinhos? Em que tipo de sociedade vão trabalhar e viver nossos filhos? E os filhos deles? Vamos deixar para eles o mais injusto de todos os países grandes? Neste momento, seria interessante oferecer uma projeção quantitativa das conseqüências de fazer a Nova Previdência. Dizer por exemplo que o Brasil terá crescimento adicional de “x”% ao ano, nossos filhos terão renda média “y”% maior, e o vão entre rico e pobre ser “z”% menor. Algum economista pode até brincar com uma previsão assim, mas o fato é que há tantas outras coisas que também precisam ser feitas, e existem imponderáveis demais. Mas que a Nova Previdência fará uma diferença importante, disso não há dúvida. Na falta de qualquer coisa mais científica, ofereço minha previsão pessoal, baseada menos em cálculo e mais emfeeling. Se o Brasil fizer a Nova Previdência e encarar com seriedade as outras grandes reformas necessárias, então podemos

302 BRIAN NICHOLSON

ter em meados deste século um país com padrão de vida e grau de desigualdade comparáveis com a média européia de hoje — digamos algo como Espanha. Mas, a continuar nos rumos atuais, fazendo sempre o mínimo de reforma possível, no ritmo mais lento imaginável, e preservando até o último momen­ to cada privilégio, então o país vai avançar muito menos, e vamos deixar para nossos filhos um país que é somente um pouco melhor, um pouco menos in­ justo. Basta isso? Ou aceitamos a responsabilidade e o desafio de enfrentar de vez os problemas históricos, e passamos para a próxima geração uma socieda­ de bem mais justa?

A seguir, vamos ver a possibilidade de o Brasil ficar entre as maiores economias do mundo, com padrão de vida perto dos países ricos. Vamos ver a relação entre a desigualdade e o crescimento. Vamos aprender com a Coréia do Sul duas coisas — a importância da educação para efetuar mudanças estruturais, mas também a importância da educação ser igualitária, de resgatar os filhos das famílias pobres. E finalmente, vamos pensar sobre o debate que precisamos enfrentar, porque o sistema político no Brasil não lida muito bem com os assun­ tos da previdência e da injustiça. A conclusão inescapável é que, para a Nova Previdência se tornar uma realidade, será necessário o engajamento de pessoas que hoje pertencem aos grupos tradicionalmente privilegiados da sociedade.

Construindo com BRICs Nosso ponto de partida é uma visão do Brasil em meados do século 21. De certa maneira 2050 é demasiadamente longe, precisamos nos concentrar no que podemos fazer, agora, para melhorar nossa sociedade. Mas nunca devemos per­ der de vista que várias de nossas escolhas, hoje, serão os alicerces da sociedade das próximas gerações. De fato, boa parte do mundo de nossos filhos já está sendo moldada hoje, por nós. A eles, caberá construir o mundo de nossos netos. Mais à frente, ao dissecar os incríveis avanços da Coréia e compará-los com o desempenho recente do Brasil, ficará claríssimo que os coreanos de hoje estão colhendo os frutos de políticas iniciadas há décadas por seus pais e avós. Vamos começar em 2050, o horizonte escolhido pelo “BRICs”, um estudo famoso que revela o futuro que pode ser de nossos filhos, caso seus pais tomem

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 303

as decisões certas. A sigla BRICs se refere às iniciais de quatro países — Brasil, Rússia, índia e China — que podem ficar entre as maiores economias do mun­ do até meados deste século. O BRICs foi popularizado por um estudo do banco Goldman Sachs em 2003, com o título (traduzido) “Sonhando com BRICs: o caminho para 2050”.153 Resumindo, o estudo disse que essas quatro grandes “economias emer­ gentes” podem avançar muito nas próximas décadas para ficar, todas elas, entre as seis maiores do mundo. Hoje a China está na 4.a posição; o Brasil na 10.a; índia, na 12.a e Rússia na 14.a. Os 10 maiores em 2050 seriam, pela ordem, China, Estados Unidos, índia, Japão, Brasil, Rússia, Reino Unido, Alemanha, França e Itália. Ao pensar nas implicações econômicas, políticas e culturais dessas mudanças, podemos dizer que o mundo de nossos filhos, definitivamente, será outro.154 O estudo do BRICs previu que a economia brasileira pode ultrapassar a da Itália por volta de 2025, França em 2031, e Alemanha e Inglaterra até 2036. Em meados deste século, o brasileiro teria mais ou menos o padrão de vida que existe hoje, em média, na França, Inglaterra ou Alemanha. E claro que até lá aqueles países também terão avançado. Mesmo assim, é tentador concluir que este será o século do Brasil. Finalmente, tudo dará certo. Mas convém ir com muita calma, porque o relatório tem o cuidado de explicar que nada disso é garantido. O estudo não afirma o que vai acontecer, mas o que pode acontecer, caso os países em questão façam seu dever de casa. Neste sentido os economistas do banco fizeram uma ressalva importante quanto ao Brasil. Disseram que seu crescimento econômico nos anos recentes foi muito aquém do esperado, e — caso continuasse assim — dificilmente o Brasil iria tornar-se em meados do século a quinta economia do mundo. De fato, diziam os economistas, suas projeções para o Brasil foram baseadas, não no seu desempenho recente, mas na suposição de que o Brasil saberá resolver seus grandes problemas e se lançar numa trajetória de crescimento sustentado de, em média, 3,8% ao ano até meados do século. Impossível? Certamente não. Mas é bem acima do crescimento médio de 2,9% havido na década que precedeu o estudo BRICs.Também bem acima dos 3,3% que o país cresceu, em média, nos três anos seguintes. Com a nova metodologia do IBGE para calcular o PIB, o ,53 Em inglês

Dreaming With BRICs: The Path to 2050 - http://www.gs.com/insight/research/reports/

TepüiSt).WrtVt\.

,M GDP ranking atual é para 2005, do World Development Indicators database. 2006.

304 BRIAN NICHOLSON

crescimento “espetacular” de 2004 levou a média destes três anos para acima do patamar necessário, mas mesmo assim a média dos últimos 11 anos era bem inferior. Dá para confiar que as coisas vão melhorar?155 E antes de engolir qualquer previsão otimista sonhada pelo governo, seria bom refletir sobre o seguinte: nos anos que antecederam o lançamento deste livro, basicamente 2004-06, o mundo se recuperou da minirrecessão que seguiu o colapso das bolsas e os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e a eco­ nomia global passou por um período de forte crescimento. Mas nestes recentes anos de vacas gordas, o Brasil cresceu menos que a média mundial, menos que a média das grandes economias emergentes, e menos até que o restante da Amé­ rica Latina. Em outras palavras, o Brasil perdeu terreno. Repito, portanto: dá para confiar que as coisas vão melhorar? Poucos economistas duvidam do potencial do Brasil. A grande questão é sempre sobre a capacidade da sociedade brasileira de realizar aquele potencial — algo que até agora, visivelmente, ela não vem fazendo.

Desigualdade é freio? No passado, muitos economistas acreditaram que a alta desigualdade seria resolvida através do crescimento, que por sua vez seria fruto das boas políticas econômicas. Hoje, essa visão vem mudando, em boa parte porque muitos países, inclusive o Brasil, cresceram sem reduzir a desigualdade. Hoje, muitos econo­ mistas acham que a relação pode ser até o contrário — que a alta desigualdade reduz a capacidade de um país crescer. Simplificando: em vez do crescimento econômico promover a maior igual­ dade, seria a maior igualdade que ajuda a promover o crescimento econômico. Para o Brasil, essa possibilidade seria duplamente alarmante, porque este é o mais desigual de todos os grandes países do mundo, e a idéia reinante sempre foi — e para muitos políticos, continua sendo — que a pesada dívida social seria solucionada pela expansão da economia. Em linguagem comum, fazer o bolo crescer, para depois dividi-lo. Agora, o Banco Mundial está dizendo que essa estratégia talvez não funcione. Para entender o porquê dessa constatação tão 155 Pela nova metodologia do IBGE, anunciada quando este livro se preparava para entrar na gráfica, o crescimento do PIB do Brasil nos 11 anos 1996-2006 era de 2,51% (média simples das taxas anuais), e a média 2004­ 06 era de 4,1% (ver também nota 118).

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 305

inconveniente, precisamos passar rapidamente por algumas idéias sobre a desi­ gualdade política, desigualdade econômica e crescimento. Para quem está menos acostumado com este tipo de assunto, as próximas duas páginas podem parecer um pouco mais cabeludas. Mas é só engatar a primeira e ir com calma... Nos últimos anos, o Banco Mundial divulgou vários estudos que reexami­ nam a relação entre a desigualdade e o crescimento. Ofereceram uma visão importante das origens e conseqüências da desigualdade, sobretudo na América Latina, e apontaram soluções.156 Primeiro, o Banco explica que existem várias razões para querer reduzir a desigualdade. Tirando a linguagem técnica, elas seriam: •

A grande maioria das pessoas não gosta da alta desigualdade. As pessoas preferem viver numa sociedade mais justa.



E provável que a alta desigualdade faça aumentar a violência e criminalidade na sociedade.



Reduzindo a desigualdade, normalmente vamos reduzir a pobreza, indepen­ dentemente de qualquer crescimento econômico.



A alta desigualdade dificulta a redução da pobreza, porque os frutos de qual­ quer crescimento vão principalmente para os mais ricos.



Alta desigualdade dificulta o crescimento econômico.

Vale nos debruçar sobre este último ponto, que a alta desigualdade dificulta o crescimento econômico. Havendo grande desigualdade, são menos pessoas com dinheiro para comprar produtos e serviços de massa. As vezes, vamos ouvir gente menos esclarecida dizendo que “os empresários” ou “as multinacionais” gostam da grande desigualdade no Brasil, porque lucram mais com mão-deobra barata. Mas certamente entre o empresariado mais moderno, poucas coisas seriam mais bem-vindas no Brasil do que uma melhora na distribuição da ren­ da. Perdi a conta de quantas vezes ouvi dirigentes de multinacionais lamentar 156 Veja principalmente Inequality in Latin America and the Caribbean: Breaking with Hisfory? (Desigualdade na fcmérica Latina e no Caribe: Rompendo com a História?), de 2004. Também o World Development Report2006 - Equity and Development (Relatório sobre o Desenvolvimento Mundial de 2006 - Eqüidade e Desenvolvimento). Ambos disponíveis para download no site do Banco Mundial, em inglês, com sumário em português.

306 BRIAN NICHOLSON

que seu mercado fica aquém do possível no Brasil, restrito somente a uma fra­ ção da população, porque dezenas de milhões de pessoas simplesmente não têm renda suficiente para comprar seus produtos. Dezenas de milhões de brasileiros vivem, efetivamente, à margem da economia de consumo. Vamos pensar no caso das empresas que vendem fraldas descartáveis, ou co­ mida congelada, ou eletrodomésticos, ou automóveis populares, ou jornais, ou computadores, ou viagens de férias, ou TV a cabo — quanto que o mercado delas não iria crescer, caso reduzíssemos a desigualdade e melhorássemos o poder de consumo das camadas mais baixas? É só lembrar do Plano Real, quando os mais pobres ganharam um pequeno aumento no seu poder de compra e correram às lojas. Explodiram as vendas de produtos como iogurte, bolachas, pasta de dente, perfume e TVs. Também a descrição do impacto nas cidades do interior dos be­ nefícios rurais do INSS, e as primeiras indicações do impacto do Bolsa-Família. Com mais dinheiro no bolso do povo, crescem as vendas, crescem os lucros, cres­ cem os investimentos, crescem os empregos e cresce a economia. Além disso, os peritos falam de um vínculo estrutural entre a desigualdade econômica e a desigualdade política. Em quase todas as sociedades, certo ou erra­ do, quem tem mais dinheiro tem também mais poder político. Pode ser que, no papel, todos sejam cidadãos democraticamente iguais, com um voto cada, mas na prática é o poder econômico que manda, não somente nas eleições, mas em mui­ tos aspectos da vida. Acontece no mundo todo, mas agrava-se em situações de alta desigualdade. E à medida que a desigualdade aumenta, cresce a capacidade da­ queles que já têm mais de criar instituições que os favoreçam e os ajudam a man­ ter seus privilégios econômicos. E o que queremos dizer com “instituições”? Não somente entidades, como também sistemas — sistema político, sistema judicial, sistema educacional, sistema de saúde, sistema previdenciário... Nas palavras do Banco Mundial — “Boas instituições surgem quando exis­ tem freios no poder das elites, e quando o equilíbrio do poder político fica mais igual dentro da sociedade. Freqüentemente, a igualdade de poder político será reforçada por igualdade econômica, e essa conexão gera a possibilidade de cír­ culos virtuosos e viciosos”.157 Em seguida, o Banco alerta: “Crescimento (econômico) certamente pode ocorrer em sociedades onde tais condições não se aplicam, mas o grande peso da evidência sugere que tal crescimento não será sustentável" (ênfase do autor). 157 World Development Report 2006 -

Equity and Development, pág. 125.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 307

A seguir, exemplos comuns, citados pelo Banco Mundial, de como as insti­ tuições podem contribuir para manter a desigualdade estrutural. Não são restri­ tas ao Brasil, mas obviamente se aplicam a ele: •

Quando os pobres recebem educação e saúde piores, o país joga fora grande parte de seu capital humano em potencial. Condena grande parte dos cidadãos a fazer tarefas básicas, de pouco valor econômico.



Os pobres ficam excluídos do mercado. E mais fácil o rico comprar terra, criar uma empresa ou conseguir financiamento no banco. O pobre, mesmo que tenha compe­ tência e a idéia mais genial do mundo, vai enfrentar uma luta muito mais árdua, em parte por causa da discriminação, em parte porque ele não adquiriu na juventude as habilidades sociais necessárias para lidar com advogados, bancos e burocratas.



Leis generosas demais de proteção trabalhista podem funcionar como fator de perpetuação da desigualdade. Em vez de estabelecer condições mínimas que possam ser efetivamente impostas e fiscalizadas para todos os trabalhadores, e melhoradas pouco a pouco com o tempo, cria-se um “mundo maravilhoso” de amplos direitos que, na prática, se aplica somente à parcela mais organizada da sociedade, enquanto o restante fica sem proteção alguma.

Algo disso soa como familiar?

Caso alguém duvide de que no Brasil os cidadãos mais abastados construíram instituições que os favorecem, pense rapidamente no significado real daquela frase antológica “Sabe com quem está falando?”. Significa que quem tem mais dinheiro, ou é parente de “autoridade”, espera tratamento diferenciado nas mãos do policial ou do fiscal — efetivamente, que a instituição da Justiça não será igual para todos. E de fato, visivelmente não o é. Ou há outra razão para pes­ soas com diploma universitário receber cela especial? Por acaso foram os brasileiros pobres que desenharam um sistema tributário no qual — como vimos no Capítulo 2 — eles mesmos arcam com uma fatia relativamente maior que nos países ricos? Será que foram os brasileiros pobres que criaram um sistema de previdência que privilegia os mais ricos, jogando o custo na sociedade como um todo? E foram os brasileiros pobres que deram proteção eterna a estes privilégios, através do direito adquirido? Ou talvez

308 BRIAN NICHOLSON

foram os brasileiros pobres que exigiram que os gastos da educação favoreçam fortemente os jovens da classe média e classe média alta, assegurando que filho de pobre, pobre será, e seus netos também? Para o Brasil, o diagnóstico do Banco Mundial cai como uma luva. As ins­ tituições favorecem aqueles que já têm mais, e contribuem para manter a desi­ gualdade. E aí, chegamos ao xis da questão. Se o crescimento econômico não garante a redução da alta desigualdade, e se a alta desigualdade, protegida pelas instituições, dificulta o crescimento, qual a saída? Com quais armas podemos romper este círculo vicioso? Basicamente, uma solução democrática e pacífica virá somente por meio de um ataque duplo, uma estratégia de dois horizontes. No curto prazo, gastos sociais. E no mais longo prazo, educação. Mas, como veremos, estes dois hori­ zontes estão relacionados. Veremos que, avançando simultaneamente nessas duas frentes, podemos atacar a desigualdade e também estimular o crescimento. Mas veremos também que soluções democráticas e pacíficas para a desigualda­ de precisam da aceitação de pelo menos uma parte dos grupos favorecidos.

Coréia ensina o mundo A relação entre educação e crescimento econômico é amplamente conheci­ da pelos peritos. Também é algo que nós, leigos, podemos entender facilmente. No jargão moderno, a relação entre educação e crescimento econômico é “intui­ tiva”. Com mais escolaridade, uma pessoa pode trabalhar com ferramentas mais avançadas, sejam elas computadores, robôs, máquinas industriais ou sistemas de controle de qualidade. Ela produz mais e ganha mais. Na linguagem dos econo­ mistas, seu trabalho “adiciona mais valor”. O estudo do BRICs relata que, em média, cada ano adicional de escolaridade pode aumentar em 0,3% o potencial de um país crescer. Mas o que seria aquele “ano adicional de escolaridade”? Seria mais um ano para todo mundo, ou mais quatro anos para 25% da popula­ ção? E o que dizer da qualidade da educação? Seria igual para todos, sejam ricos ou pobres? Simplesmente esquentar banco de escola não adianta, o aluno tem que adquirir conhecimentos e habilidades. Aí é que entramos no relacionamen­ to entre educação, crescimento e desigualdade. De fato, um país pode investir na educação e estimular o crescimento eco­ nômico, sem reduzir a desigualdade. O próprio Brasil fez exatamente isso nas

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 309

últimas três décadas do século 20, quando aumentou de 400 mil para 2,4 mi­ lhões o número de estudantes matriculados no ensino superior. E, como sabe­ mos, a desigualdade aumentou. Para o Brasil, onde ainda há gente saudosa dos “cinqüenta anos em cinco”, do Juscelino Kubitschek, ou do “milagre econômico” dos anos 1970, a história recente da Coréia do Sul deve provocar uma sóbria reflexão. Vamos fazer uma visita rápida àquele país asiático tão exitoso, para depois voltar a falar da Nova Previdência... No fim da Guerra da Coréia, em 1953, quase o país inteiro vivia na miséria. Governos militares lançaram programas ambiciosos de industrialização, depois miraram na educação. Os resultados inicialmente eram lentos, mas recente­ mente têm sido quase inacreditáveis. No início dos anos 1980, o PIB per capita da Coréia estava Ügeiramente abaixo do do Brasil. Em 2004, já era quatro vezes maior. O crescimento médio da economia coreana desde 1980 foi mais que o triplo do crescimento médio brasileiro, na mesma época. Trata-se de uma das grandes aulas de “certo e errado” de nossos tempos. De três coisas, não há dúvida: •

Primeiro, a experiência coreana não se aplica ipsis litteris ao Brasil. A Coréia tem um quarto da população do Brasil se acotovelando numa área do tama­ nho de Santa Catarina, ou Pernambuco. Sua economia e cultura são bastan­ te diferentes — o sistema coreano é muito competitivo e coloca muito estresse nos jovens.



Segundo, a educação não foi a única responsável para o milagre coreano. É necessário ver também as outras políticas.



Terceiro, não há como negar que o que a Coréia fez na educação foi impres­ cindível para seu desempenho econômico tão estrondoso.

A Coréia, hoje, gasta um pouco mais que o Brasil na educação, em termos de proporção do PIB, mas a diferença não é grande e houve anos em que ela gastou proporcionalmente menos. Importante mesmo é que a Coréia gasta bem. Os recursos públicos estão fortemente dirigidos para áreas-chave. Vejamos o que disse a revista Veja: “Enquanto os asiáticos despejavam dinheiro nas esco­ las públicas de ensino fundamental e médio, sistemática e obstinadamente, o Brasil preferia canalizar seus minguados recursos para a universidade... Os

310 BRIAN NICHOLSON

coreanos gastam duas vezes mais na formação de um universitário do que na de um aluno de ensino fundamental, o que é uma proporção equilibrada para pa­ drões internacionais. No Brasil, um universitário custa dezessete vezes mais”.158 Visto de outra maneira, podemos dizer que os coreanos investem por ano em cada aluno na escola 50% do que investem em cada universitário. No Brasil, investimos somente 6%. Mesmo assim, a Coréia não desprezou o ensino superior. Ao contrário, uma proporção altíssima dos jovens faz faculdade, e o país ostenta algumas instituições de excelência mundial. Mas o financiamento vem principalmente do setor priva­ do, com grande entrosamento entre as universidades e as grandes empresas, dei­ xando a sociedade livre para concentrar seus gastos no ensino fundamental.159 Agora, algo que é menos conhecido sobre a educação coreana é que, além de produzir resultados excelentes, ela é uma das mais igualitárias do mundo. Ao falar da igualdade no ensino, não queremos de maneira alguma propor um sistema que reprima os melhores alunos. A meta deve ser de elevar o nível geral, enquanto estimulamos os gênios e resgatamos os mais lentos. Em outras palavras, queremos maximizar o potencial de cada criança, e não simplesmente jogar no lixo os mais fracos, que em geral são os mais pobres, que têm pais com pouco estudo. Para tanto, precisamos de um sistema que compense as diferenças de origem que as crianças trazem à sala de aula, porque as condições da família têm enorme influ­ ência no desempenho escolar. Um sistema educacional que não faz isso será um dos principais fatores que ajuda a perpetuar as desigualdades, de pai para filho, geração após geração. Neste quesito, a Coréia é um dos países que mais êxito têm em compensar a desvantagem inicial das crianças mais pobres. Uma pesquisa do Unicef mostrou que as escolas na Coréia deixam para trás uma porcentagem menor de seus jovens que qualquer um dos outros 23 países estudados. Alcançou o primeiro lugar em termos de igualdade no ensino, segui­ do por Japão, Finlândia e Canadá.160 Disse o Unicef: “A criança que começa a estudar no Canadá, na Finlândia ou Coréia, por exemplo, tem maior probabilidade de alcançar um determina­ 158Da reportagem especial Sete lições da Coréia para o Brasil, da correspondente Monica Weinberg (feve­ reiro de 2005). 159A Coréia tem três das 40 melhores universidades do mundo, fora da Europa, os Estados Unidos e o Cana­ dá. num ranking publicado pelo Times Hlgher Education Supplement (2004). A América Latina, nenhuma, embora o estudo observe que algumas instituições no Brasil, Chile e México podem aparecer nos “40 melhores" dentro de alguns anos. 160A League Table of Educatlonal Dlsadvantage In Rlch Natfons (2002). Entre os países "médios" no estudo estão a França e a Bélgica, enquanto os piores eram Portugal. Grécia e Itália. No site - http://www.unicef.org/ media/media_19241 .html.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 311

do nível de desempenho educacional e menor probabilidade de cair muito abaixo da média”. Como que um sistema educacional pode atacar a desigualdade inicial das crianças? Entre as ferramentas, destacam-se: •

Investimento na criança quando ainda pequena. Isso já ganhou uma sigla em inglês — ECEC, ou “Early Childhood Education and Care” (“Cuidados e Educação desde a Infância”, mais ou menos). A meta em muitos países da OCDE hoje é oferecer pré-escola universal a partir dos três anos.



Boas escolas públicas para os pobres. Em muitos países, a tendência é que as escolas públicas são melhores em bairros da classe média. Mas o país que quer maximizar o potencial de todos os cidadãos precisa evitar isso.



Programas para compensar as desvantagens econômicas e culturais das crianças pobres, e para recuperar alunos lentos.

Podemos fazer isso no Brasil? E claro que sim. Aliás, o Brasil teoricamente já faz tudo isso, mas na prática faz muito mal, de forma bastante incompleta. Veja­ mos o exemplo do trabalho infantil. Erradicá-lo seria talvez o primeiro passo fundamental, em termos de eliminar a desvantagem da criança pobre. Na Coréia, em 1960, trabalhava uma em cada sete crianças entre 10 e 14 anos. A partir de 1980, quase nenhuma. No Brasil, em 1960, trabalhava uma criança em cada cinco. Em 2000, graças principalmente ao Programa de Erradicação do Trabalho Infan­ til (Peti), aproximadamente uma em cada sete. Ou seja, o Brasil entrou para o século 21 com o nível coreano de 40 anos atrás! Não há dúvida de que a situação vem melhorando no Brasil, mas a verdade dolorosa é que, durante o último quar­ to de século, a Coréia colocou sua próxima geração na escola, enquanto o Brasil deixou boa parte da dela na roça, nas cozinhas, nas carvoarias e na rua.161 Qual o impacto do grande esforço coreano na educação? Certamente, con­ tribuiu para o crescimento econômico sem precedentes, e também para uma queda na desigualdade — que já era muito baixa. Também, ajudou o país a ele­ var seu índice de Desenvolvimento Humano de 0,69 em 1975 para 0,87 no ’6' Jovens de 10-14 na força de trabalho, do UC Atlas of Global Inequality. da Universidade de Califórnia http://ucatlas.ucsc.edu/. Pelos dados do Ministério do Trabalho. 2,7 milhões de brasileiros entre 10 e 15 anos tra­ balhavam em 2002, ou seja, 13,2% da população naquela faixa de idade. A maioria combinava trabalho com escola, obviamente com prejuízo para o estudo. Na Coréia, o ensino escolar é de tempo integral.

312 BRIAN NICHOLSON

último quarto do século, uma melhoria absoluta de 0,18, enquanto o Brasil conseguiu avançar de 0,64 para 0,75.162 Dá para ter educação pública realmente igualitária no Brasil, um sistema que contribua fortemente para a redução da desigualdade no longo prazo? E claro que dá — ou dará, no dia em que for colocada como prioridade máxima pela sociedade. Há dinheiro? Certamente, os custos seriam maiores, principal­ mente na educação infantil e fundamental. Mas já vimos no Capítulo 2 que o Brasil já gasta bastante na área social — quase a mesma proporção do PIB que a média dos países ricos, e bem mais que a Coréia. E vimos que o gasto público na educação nos dois países é parecido. O problema — mais uma vez, e sob o risco de ficar repetitivo — é que na área social o Brasil gasta mal, desperdiçando bilhões de reais na previdência, com forte favorecimento para os ricos, enquan­ to na educação damos preferência à classe média nas universidades, em vez de investir na formação básica dos jovens de todas as classes sociais.

Passos para construir uma sociedade mais justa Voltando então à Nova Previdência, levanta-se inevitavelmente a pergunta: se a educação é de fato a bala de prata, o grande “exterminador da desigualdade futura”, por que devemos nos preocupar também com a previdência? A respos­ ta vem por partes: •

Primeiro, porque o atual sistema previdenciário representa um uso altamen­ te injusto do dinheiro público. Para muitas pessoas, isso já seria razão sufi­ ciente para mudá-lo.



Segundo, porque embora a solução estrutural para a desigualdade passe pela edu­ cação, isso demora uma geração ou mais para surtir efeito. Reduzir a desigualda­ de hoje quer dizer atacar pelo lado dos gastos sociais. Programas focalizados como Bolsa-Família são importantes, mas é preciso melhorar a qualidade de todos os gastos sociais, dos quais a previdência é de longe o maior. E é seguro dizer que já no primeiro ano depois da plena implantação da Nova Previdência, o Brasil deixará para sempre o bloco de lanterna no ranking mundial da desigualdade.

162Houve sinais recentes de um pequeno aumento da desigualdade na Coréia, talvez devido à globalização.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 313



Terceiro, ao distribuir de forma mais igual este enorme bolo de dinheiro público, vamos contribuir para diminuir aquela desvantagem escolar das crianças pobres. Vimos no Capítulo 5 que os benefícios básicos existentes, principalmente a aposentadoria rural, já fazem uma contribuição impor­ tante para reduzir a pobreza nas cidades menores. Imagine, então, quando incluirmos os 3 milhões de idosos ainda sem benefício, e promovermos um aumento real de 20% no valor básico, inclusive para os benefícios hoje chamados de assistenciais, e nos auxílios para os trabalhadores mais po­ bres que ficam doentes ou incapacitados. Algumas pessoas vão reclamar que estamos redistribuindo dinheiro principalmente entre idosos, e terão razão, mas o fato é que isso tende a permear pelas várias gerações das fa­ mílias. O impacto será de melhorar o nível geral de vida em comunidades pobres no país inteiro.



Finalmente, teremos uma segunda arma para atacar aquela desvantagem escolar das crianças pobres. Trata-se dos R$ 12,4 bilhões ao ano disponí­ veis para gastar em programas sociais. A distribuição daquele montante, que deve crescer ao longo dos anos, será decidida pelos peritos, mas pela ótica do autor deste livro o dinheiro será destinado, prioritariamente, para programas que reforçam o ensino fundamental e atuam de forma integrada com o novo Fundeb. Um exemplo interessante seria mais investimento na pré-escola em comunidades pobres, algo que reforça o processo de apren­ dizagem nos primeiros anos de vida, ao mesmo tempo que libera a mãe para trabalhar. Também importantes são os processos de recuperação para crianças atrasadas, melhores condições para professores, mais computado­ res na escola, inclusive para compensar a falta deles em casa, educação em tempo integral... De fato, se forem bem gastos, os RS 12,4 bilhões serão pouco. Mas será um bom começo.

Vamos lembrar as palavras do Banco Mundial: “Educação é um grande fator de igualização de oportunidades entre ricos e pobres, e entre homens e mulhe­ res. Mas, seu potencial para igualização será realizado somente quando crianças que vêm de situações diferentes tiverem oportunidades iguais de tirar proveito da educação de qualidade.”163 163 World Development Report 2006 -

Equlty and Development, pâg. 135.

314 BRIAN NICHOLSON

É na segunda parte da frase que reside o grande vínculo entre a Nova Pre­ vidência e a educação. A redistribuição imediata e o reforço dos programas so­ ciais darão à educação um campo bem mais fértil para trabalhar. Seria possível redistribuir o dinheiro da previdência sem tocar nos outros gastos sociais ou na educação, como também seria possível reformar a educação sem mexer na previdência e nos outros gastos. Mas o grande lance é avançar nas várias frentes ao mesmo tempo, porque de fato elas andam de mãos dadas.

OK, queremos mudar. Mas como? A melhor maneira de implementar a Nova Previdência seria um processo que incluísse os seguintes grandes passos: 1. Debate amplo na sociedade; 2. Elaboração de um anteprojeto; 3. Plebiscito em torno deste projeto, delegando ao Congresso Nacional pode­ res limitados e bastante específicos de Assembléia Constituinte para seis a doze meses; e 4. Referendo para validar a nova Constituição.

Seria mais fácil e lógico, em alguns sentidos, conduzir este debate no âmbi­ to de uma campanha eleitoral para presidente e Congresso Nacional. Mas não é essencial que seja assim, e há sempre o risco de contaminar o assunto da pre­ vidência com uma escolha eleitoral entre personalidades. Caso aconteça dentro de uma campanha eleitoral, a vitória dos partidos que apóiam a proposta seria um pontapé legítimo para iniciar o processo. Em outros momentos, a vontade inicial do eleitorado pode ser manifestada através de uma iniciativa popular, algo já previsto na Constituição, quem sabe acompanhada por um abaixo-assi­ nado organizado, suponha-se, por entidades que atuam nos segmentos da so­ ciedade que seriam beneficiados pela proposta, ou seja, os mais pobres. Mas nada disso diminui a necessidade, em seguida, de um plebiscito nacional em torno de um projeto claro, que confere poderes constituintes específicos ao

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 315

Congresso. O essencial é que o processo embute debate, transparência e uma clara chancela popular. Também é importante que qualquer alternativa não implique atraso. Podemos imaginar uma transição de quatro anos para o ajuste dos valores, precedida por dois anos de preparação técnica. Havendo, antes disso, um ano de debate público e talvez o mesmo tempo no Congresso, para redigir as novas cláusulas da Consti­ tuição e fazer o referendo, estaremos falando de oito anos para implementar a Nova Previdência. Mesmo assim, haverá quem reclame de um “rolo compressor” ou de uma “reviravolta brusca demais”. Mas, de fato, oito anos é tempo mais do que suficiente para fazer bem-feita qualquer mudança — pelo menos para quem quer mudar. Agora, para quem quer que tudo fique como está, nem oitenta anos seria tempo suficiente. O que nos traz ao cerne da questão... No fundo, a grande batalha da Nova Previdência não será técnica. Será po­ lítica, no sentido mais fundamental da palavra — como que uma sociedade se organiza? Para o benefício de quem? Quais os direitos e obrigações de cada pessoa? Quem paga quanto, e quem recebe quanto? Num debate dessa natureza, os partidos políticos devem desempenhar um papel central. Afinal, os partidos são — teoricamente — as vozes organizadas do povo. Devem representar visões diferentes de como as pessoas se organizam para viver juntas — até que ponto nós vamos proteger nossos concidadãos mais fracos, financiar as coisas que decidimos fazer de forma coletiva, e assim vai. Será que os partidos brasileiros desempenham bem essa função? A seguir, vamos ver o que dizem os maiores partidos sobre os grandes temas deste livro — a desigualdade, a previdência, e seu impacto na distribuição de renda. Uma palavra de cautela: ler programa de partido é, no português mais simples, “dose para elefante”. Quem não agüenta, pode pular duas páginas, para as conclusões...

PSDB Entre os seis maiores partidos, o Partido da Social Democracia Brasileira é o que faz o vínculo mais forte entre o sistema previdenciário e a injustiça social. Na sua “Declaração Programática” (de 2001), o PSDB fala de um “... sistema previ­ denciário iníquo e injusto, permeado de privilégios que favorecem aqueles com maior capacidade de pressão nos círculos de poder, em detrimento do atendimen­ to das necessidades das camadas mais pobres de nosso povo. A anomalia mais

316 BRIAN NICHOLSON

gritante, é preciso que se diga, ocorreu com certas faixas do funcionalismo públi­ co... A necessidade de uma ampla reforma nesse campo não pode ser eludida pelo receio de bater de frente com vários corporativismos”. Como declaração de prin­ cípios, impressiona. Mas, nos programas de seus candidatos à Presidência em 2002 e 2006, o partido não menciona uma vez os privilégios, preferindo promes­ sas vagas (em 2006) de um novo sistema com “novas regras, justas, equilibradas” para todos os novos trabalhadores, com “preservação dos direitos adquiridos”. Pela lógica — preservação dos privilégios conquistados e já condenados.164

PT O Partido dos Trabalhadores, em vários pontos do documento “Concepção e diretrizes do programa de governo do PT para o Brasil”, de 2001, fala das “profundas desigualdades econômicas, sociais e políticas” e da “permanência de índices inaceitáveis de pobreza e desigualdade na distribuição da renda e da ri­ queza”. Mas o documento não faz o vínculo direto com a previdência, para a qual é previsto “construir um sistema previdenciário universal, até certo limite de renda — sem qualquer tipo de distinção ou privilégio — que abranja toda a sociedade”.Já no “Programa de Governo 2007-2010”, sumiu a proposta de um “sistema previdenciário universal”; encontra-se somente a vaga promessa de melhorias operacionais, como “combate às fraudes” e “melhoria do atendimento aos segurados”, bem como a regulamentação da previdência complementar dos servidores, algo já previsto na reforma de quatro anos antes. E quanto ao com­ bate à desigualdade, as frases de sempre. Nada de atacar privilégios.

PMDB O PMDB — Partido do Movimento Democrático Brasileiro — no seu “Novo programa doutrinário” (de 1996, mas oferecido pelo partido como posi­ ção corrente em 2007) declara que “a história do Brasil contemporâneo é uma crônica de autoritarismo, ineficácia governamental, de exclusão e injustiças so­ ciais insuportáveis” e depois afirma que “nossa sociedade é muito mais injusta ■» 1 6 4 Os seis partidos citados eram os maiores por tamanho de bancada federal em 2005. Segundo o Tribunal Superior Eleitoral, o Brasil tinha na época nada menos que 27 partidos registrados, dos quais 15 representados no Congresso.

——

f

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 317

do que pobre. É difícil combinar as realidades de 10.- economia mundial com um 70.Qlugar em desenvolvimento humano”. Mas, ao falar sobre a previdência, algo que faz de forma bastante resumida, o documento do PMDB não faz ne­ nhum vínculo entre os privilégios do sistema e aquela “injustiça social insupor­ tável”. E ao longo dos anos, durante os quais aquelas “realidades” em nada melhoraram, o PMDB foi fiel escudo do governo do dia.

PFL ( a g o r a DEM) No seu “Manifesto de criação” de 1984, o Partido da Frente Liberal — PFL — estufa o peito e rejeita “qualquer proposta de desenvolvimento que transfira para um futuro distante e indefinido a redução das desigualdades sociais”. Pala­ vras inspiradoras, não fosse a passagem de duas décadas, uma geração, durante a qual o PFL participava quase sempre do governo do dia. Quanto à previdência, as “Diretrizes” não vão além de vagas promessas de “proteção à velhice” e “elevação dos níveis de eficiência e de viabilidade do sistema de previdência social, promo­ vendo-se sua completa extensão às populações rurais e periféricas”. Em 2005, o PFL lançou sua “Plataforma Democrática de Mudança”. Agora a diminuição da desigualdade seria resultado de “investimentos maciços em educação de qualida­ de”. Fala-se vagamente de uma nova previdência, “tecnicamente equilibrada”, mas somente para futuros trabalhadores. Ou seja, preservando os privilegiados atuais. E no início de 2007 o PFL anunciou que ia mudar seu nome para o Partido Democrata. Resta saber se isso vai ajudar a antecipar aquele “futuro distante”.

PP O PP — Partido Progressista —, no seu programa vigente no início de 2007, promete “adequados mecanismos de desconcentração da renda e da ri­ queza”. Em seguida, ao falar da previdência, promete “universidade de cobertu­ ra e de atendimento e uniformidade e equivalência dos benefícios \ Seria necessária “uma profunda reforma no sistema previdenciário público” que inclui “tratamen­ to orçamentário em separado” e “a garantia de pagamento de provento justo para ospensionistas e aposentados\Mas... o que quer dizer tudo isso? Afinal, as frases por mim destacadas poderiam sugerir que este partido, freqüentemente visto

318 BRIAN NICHOLSON

como conservador, de fato sonha com a eliminação dos privilégios. Como tam­ bém poderiam sugerir que seu programa prima pela inclusão de frases de efeito, escolhidas para atrair todo mundo sem se comprometer com nada.

PTB O PTB — Partido Trabalhista Brasileiro —, o partido de Getúlio Vargas, estaria “historicamente comprometido com a luta por uma melhor distribuição da renda nacional, através de uma política tributária e fiscal mais justa e plane­ jamento econômico voltado para a eliminação da pobreza e dos desníveis regio­ nais e sociais”. Isso, conforme seu programa, na versão disponível no site do partido no início de 2005. Mas, ao falar da previdência, só o faz de forma bas­ tante resumida e genérica.

O que podemos deduzir dos programas desses seis grandes partidos, que em meados de 2005 dominavam 75% da Câmara e 86% do Senado? Generalizan­ do, podemos dizer: •

Que condenam com frases bonitas a desigualdade reinante no Brasil, mas raramente percebem ou admitem qualquer vínculo com a má distribuição do dinheiro público, principalmente nos gastos sociais.



Que reconhecem a necessidade de reformar a previdência, pelo menos por razões fiscais.



Que relutam em falar aberta e honestamente com os eleitores, no sentido de identificar privilégios ou de oferecer propostas detalhadas, dizendo clara­ mente quem deve pagar mais ou receber menos. Querem angariar votos de todos os segmentos.

De fato, os grandes partidos brasileiros em geral cumprem mal aquela que deve ser sua função primordial — de identificar problemas e oferecer soluções, explicando custos e vantagens em linguagem simples para que os eleitores possam escolher entre políticas alternativas. Isso raramente acontece. Todos prometem

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 319

tudo. Vendem a ilusão de um mundo melhor sem sacrifício e sem custo, de redistribuição na qual todos ganham. As vezes, é difícil não chegar à conclusão de que a maioria dos partidos está mais preocupada em abocanhar fatias do poder e ratear cargos, e menos na implantação de qualquer programa de transformação. Conclusão: dificilmente, a luta pela Nova Previdência será encampada por qualquer dos maiores partidos, pelo menos inicialmente. Na hora que a proposta ganhar apoio popular, aí sim, vão chover cristãos-novos. Mas, no início, não...

Outro problema relevante é o fato de a estrutura política estar dominada por pessoas oriundas dos segmentos tradicionalmente privilegiados — o Brasil “Bélgica”. Pelo site da Câmara, constatamos que, nos meados de 2005, os 513 representantes do povo incluíam 100 advogados, 54 médicos, 48 engenheiros, 47 professores e 40 empresários — cinco profissões que juntas comandavam 56% da Casa. E mesmo no PT, partido no qual nenhum deputado admitiu ser tachado de empresário, as outras quatro profissões representavam 58% da ban­ cada do partido. Não que sejam todos milionários, é claro que não. Mas que a Câmara é, no mínimo, solidamente classe média, ou classe média para cima, disso não há dúvida. Do lado “índia” do Brasil, um buraco negro quase total, existem alguns agricultores familiares, enfermeiros, metalúrgicos e outros que dificilmente seriam ricos, mas bóias-frias, zero; serventes de obra, zero; pedrei­ ros, zero; balconistas, zero; biscateiros, zero; desempregados, zero. Certamente, tem gente no Congresso que veio de origens bastante humil­ des. Mas muito antes de chegar a Brasília, a grande maioria se juntou à classe média, pelo menos em termos profissionais e econômicos. Parêntese: não é só no Brasil que a estrutura política fica dominada pela classe média e os mais ricos. Eles sempre lideram o processo político numa democracia, pelo menos na maneira que este sistema vem sendo praticado no mundo ocidental. No Congresso dos Estados Unidos, a metade dos deputados federais é de advogados e empresários. Existem muitos políticos brasileiros — inclusive políticos ricos — que de­ monstram um compromisso sincero com o avanço social, mas o Congresso como instituição revela um forte viés corporativista e da classe média. Como vimos, a Nova Previdência vai melhorar diretamente a vida de algo como 20 milhões de brasileiros, e indiretamente talvez três vezes isso. Portanto, um terço

320 BRIAN NICHOLSON

da população — o que, no Congresso, seria aproximadamente 170 deputados. Mas aposto que nem um político nacional seria entre os beneficiados. Porque a triste verdade é que, enquanto o Congresso representa o povo, ele está muito longe de ser representativo do povo. Conclusão: a Nova Previdência terá apoio dentro do Congresso. Mas tam­ bém vai enfrentar muitas resistências abertas e veladas, não menos dos repre­ sentantes dos grupos que hoje desfrutam de privilégios.

Detalhamos somente a composição do Congresso. Se fizermos o mesmo exer­ cício para o Senado, ou outras grandes instituições que compõem a vida demo­ crática no seu sentido mais amplo — o Judiciário, o corpo de oficiais das Forças Armadas, os servidores públicos civis e a imprensa — veremos uma forte pre­ dominância da classe média ou classe média alta. Quando muito, algumas pes­ soas que nasceram pobres, mas conseguiram subir na vida. Nas igrejas e nas ONGs, talvez uma presença maior das camadas humildes, mas nada que reflita a real distribuição de renda no país. O que quer dizer isso para a Nova Previdência? Basicamente, que as grandes instituições formais da democracia brasileira não oferecem o melhor caminho para iniciar o debate sobre o fim dos privilégios. Disso, não devemos nos espan­ tar. Foi assim, por exemplo, nos Estados Unidos no grande movimento que derrubou a segregação racial nos anos 1960 — as pressões vieram das ruas, ca­ nalizadas por várias ONGs e igrejas, e culminaram por influenciar as institui­ ções, principalmente o Congresso e a Corte Suprema. Por tudo isso, é mais provável que o debate inicial sobre a Nova Previdência seja conduzido, não através dos partidos e das instituições formais, mas dentro de ONGs, associações de classe, igrejas e outras entidades da sociedade civil. Isso não quer dizer que não vão participar pessoas que também integram outras instituições — políticos e juristas, por exemplo. Também não quer dizer que a chancela final para criar a Nova Previdência não precisa vir do povo, na forma de um plebiscito inicial, e um referendo no final.

Ao pensar sobre quem vai apoiar a Nova Previdência, e como será o processo de debate, é difícil não lembrar destas palavras do economista Luiz Carlos Bresser-Pereira: “Nas democracias, embora o poder seja formalmente do povo,

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 321

na prática, está com a sociedade civil, que dele se diferencia porque, no povo, cada cidadão tem um voto, na sociedade civil, o peso de cada cidadão depende de seu conhecimento, de seu dinheiro e de sua capacidade de comunicação e organização.”165 E como o pobre normalmente tem menos conhecimento, ríienos dinheiro e menos capacidade de comunicação e organização, não é de admirar que sua voz tenha menos peso. Em princípio, o Brasil não difere das outras democracias. Mas difere, sim, numa questão de grau. No Brasil, a desigualdade é muito maior, o que magnífi­ ca sensivelmente o poder político da classe média e da elite, dentro da popula­ ção total. Em outras palavras, é normal nas democracias que o poder político fique com a classe média e os mais ricos, mas, no Brasil, estes constituem uma porcentagem bem menor da população total, e assim o poder fica mais concen­ trado. Enquanto isso, uma porcentagem bem maior fica com pouco ou nenhum poder político, com pouca ou nenhuma voz. Voltamos sempre àquela tese do Banco Mundial — ao existirem grandes desigualdades num país, é comum que elas gerem instituições que favoreçam os mais ricos. Portanto, não devemos nos espantar pelo fato de o sistema político favorecer o lado “Bélgica” do Brasil. Não seria totalmente sem fundamento pensar que o sistema político brasi­ leiro, longe de ser um instrumento voltado para a mudança e para o progresso social, acaba sendo muito mais uma engrenagem a mais naquele círculo vicioso que mantém o país como está. As implicações para a Nova Previdência são que ela deve enfrentar uma luta complicada para ser aceita. É como disse o Banco Mundial, se referindo às re­ formas igualitárias em geral: “Reformas que implicam perdas para um grupo específico enfrentarão resistência daquele grupo. Caso aquele grupo seja pode­ roso, o normal é que ele subverta a reforma”.166 Para ver essa resistência na prática, no caso brasileiro, vamos ouvir o econo­ mista da FGV Marcelo Neri, no momento da reforma da previdência do gover­ no Lula, escrevendo sobre o uso do dinheiro público: “Não é surpresa que os principais beneficiários desta estrutura de gastos regressiva sejam os primeiros a

165 Folha de S.Paulo. 9 de agosto de 2005, falando sobre a crise política do “mensalão". É relevante observar que Bresser-Pereira usa "sociedade civil" de maneira diferente da que este livro vem usando a palavra “socieda­ de", que seria a população total. 166 World Development Report 2006 - Equlty and Development, pãg. 10.

322 BRIAN NICHOLSON

se insurgir contra a reforma do contrato social proposta. O mesmo apego a privilégios adquiridos ocorreu no lento trajeto em direção à abolição da escra­ vatura neste país”.167 De fato, não precisamos de bola de cristal para prever que vários daqueles que hoje desfrutam de privilégios vão se opor ferozmente à Nova Previdência. Teoricamente, sua oposição não seria problema, porque eles representam uma minoria, enquanto a Nova Previdência vai beneficiar diretamente a grande maioria da sociedade. Assim, nada mais natural que o sistema seja democratica­ mente alterado. Mas sabemos que entre a teoria e a prática, há freqüentemente uma distância quilométrica. A proposta da Nova Previdência, então, seria destinada ao fracasso? Não necessariamente. Porque o Banco Mundial também aponta caminhos: “O êxito de uma proposta de reforma talvez dependerá da divulgação, ao grande público, das informações sobre suas conseqüências na distribuição (de renda). Depende­ rá, também, da construção de coalizões entre grupos mais medianos e pobres que serão beneficiados pelas reformas, visando ampliar a voz, direta ou indire­ tamente, das pessoas mais excluídas da sociedade.”

No final de 2004, o jornal O Estado de S.Paulo fez uma campanha contra os altos valores das aposentadorias de alguns anistiados. Com títulos tais como “Indeni­ zações reproduzem desigualdades sociais do país”, o jornal lançou luz num as­ sunto mais que relevante. E a revista Veja pegou carona com a reportagem intitulada, com bastante felicidade, “A vitória da burguesia — As indenizações da ditadura reafirmam a estrutura de classe contra a qual diziam lutar: rico pega uma bolada; os pobres, apenas um troco”. A reação do governo foi de visível constrangimento. Era compreensível. O PT foi eleito com discurso moralizador, prometendo redirecionar os gastos pú­ blicos para os mais necessitados, mas logo se viu administrando um sistema que faz jorrar rios de dinheiro público para pessoas que, em muitos casos, nem pre­ cisavam dele. Pior ainda, eram pessoas que tinham, muitas vezes, estreitas liga­ ções ideológicas com o partido. Márcio Thomaz Bastos, o ministro da Justiça do governo PT, preferiu culpar a “herança pesada” do governo anterior, enquanto seu antecessor no cargo, Miguel Reale Jr., retrucou dizendo que “os critérios que 167 Valor Econômico, abril d© 2003.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 323

hoje oneram o Tesouro foram impostos, de forma intransigente, pelo partido agora no poder”. Resultado? Dois eminentes juristas, ambos conhecidos por seu comprome­ timento com o progresso social, brigaram sobre política partidária, em vez de se juntar na busca de uma solução. A jornalista Eliane Cantanhêde, da Folha de S.Paulo, chegou perigosamente perto do xis da questão numa entrevista com Bastos, alguns meses antes: “Folha — Por que os setores organizados foram às ruas pela anistia política em 1979, mas não fazem o mesmo agora pela anistia social? Bastos — É uma pergunta inquietante. A sociedade teria perdido a capaci­ dade de se indignar? A resposta à pergunta eu não tenho. Folha — Será que é porque quem precisava de anistia naquela época era a elite, e hoje são os excluídos? Bastos — É como no caso da tortura. No Brasil, sempre se soube, desde tem­ pos imemoriais, que havia tortura contra presos. A indignação só se materializou quando tais práticas chegaram à nossa classe, à classe média para cima.”168 A lógica “inquietante” seria que o Brasil vai resgatar a dona Maria da sua miséria no Vale do Jequitinhonha somente quando a classe média for condena­ da a viver nas mesmas condições que ela. E já que isso dificilmente vai acontecer (piadas sobre a política econômica à parte), a lógica seria que a dona Maria não deve contar com muita ajuda da classe média, na sua luta para sair da miséria. Será que é verdade?

No Prefácio, mencionei minha crença, no tempo da ditadura, de que a volta da democracia no Brasil levaria inevitavelmente a uma melhora na distribuição de renda. Meu raciocínio era simples. Ninguém gosta de ser pobre, e muito menos de assim continuar e, portanto, todos os pobres votariam alegremente a favor de can­ didatos que prometem acabar com as grandes desigualdades, e assim a mudança viria. Mas isso não aconteceu. A ditadura se foi há mais de 20 anos, o país teve em 2006 sua quinta eleição direta para presidente e mesmo assim a distribuição de renda melhorou somente um pouquinho. E em vários momentos, até piorou. Mas nas eleições de 2006 aconteceu algo interessante. A votação do PT foi, ao que tudo indica, fortemente influenciada pelo apoio de gente pobre inscrita 168 Folha de S.Paulo. 22 de agosto de 2004.

324 BRIAN NICHOLSON

no programa Bolsa-Família. Sabemos, sim, que um governo deve ser julgado pela totalidade das suas ações, e não somente por algo que representa menos de 3% de seus gastos. Certamente, podemos questionar a maneira paternalista que este programa foi explorado pelo PT, mas isso acontece no mundo inteiro. E, sim, os programas que compõem o Bolsa-Família vieram de governos anterio­ res, e o mérito do PT foi basicamente na sua ampliação e num marketing esper­ to. Mas no final das contas, o que vimos foi a aprovação pelos pobres de um programa de distribuição de renda. Após anos de entrega de seu voto em troca de promessas vagas e quem sabe de uma camiseta, os residentes da “índia” tive­ ram oportunidade e lucidez para votar a seu próprio favor. Resta ver se isso foi simplesmente um resultado excepcional, ou se sinaliza uma nova tendência. Também resta ver até que ponto o eleitor vai saber rejeitar o paternalismo e perceber que o governo não “dá” dinheiro, mas sim administra o que já pertence à sociedade.

Quanto à Nova Previdência, seria lógico a proposta receber apoio do mesmo segmento da sociedade, mais ou menos. Mas existe a complicação de ela ser somente uma proposta, não algo concreto. O eleitor no mundo inteiro des­ confia de promessas de políticos, e provavelmente mais ainda num país onde todos os partidos prometam céu na terra sem sacrifício. Assim, será funda­ mental a proposta receber a bênção de pessoas e entidades que gozam da confiança do povo. Na linha sugerida pelo Banco Mundial, será necessária “a construção de coalizões entre grupos mais medianos e pobres que serão bene­ ficiados pelas reformas, visando ampliar a voz, direta ou indiretamente, das pessoas mais excluídas da sociedade”. Outro grande desafio da proposta da Nova Previdência é que ela dificilmente vai chegar diretamente às pessoas que serão mais beneficiadas. Vamos ser realis­ tas: dona Maria não vai ler este livro, mesmo sendo dedicado a ela. Nem ela, nem os outros milhões de donas Marias que existem pelo Brasil afora, perdidas nos rincões e periferias sem-fim. Simplesmente não lêem livros — mal conse­ guem ler o título de eleitor. Enquanto somente dois em cada cinco brasileiros saem das escolas plenamente alfabetizados, conforme conceitos da Unesco, a verdade é que os pobres dependem da classe média — ou melhor, da “sociedade civil” do Bresser-Pereira — para saber de qualquer possibilidade de melhoria na vida deles. Seria como o escravo depender do dono para saber da Lei Áurea.

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 325

De fato, as donas Marias do Brasil nunca vão ouvir falar, nem da Nova Pre­ vidência, nem de qualquer outra proposta de redistribuição de renda, a não ser que a idéia seja encampada por uma parte da mídia e uma parte daqueles que se envolvem na vida política do país, seja pelos partidos, seja pelas ONGs. Portanto, precisamos nos perguntar sobre a possibilidade de a proposta da Nova Previdência — ou qualquer outra proposta séria de redistribuição de ren­ da — ser encampada por pelo menos uma parte daquela “sociedade civil”, gente mais educada, com mais poder econômico e capacidade de organização. Gente — inclusive leitores deste livro — que estaria entre os “prejudicados”? Seria ilusório pensar que isso pode acontecer? Talvez não. Ofereço algumas razões: •

Ninguém gosta de perder um privilégio. Mas, nas minhas andanças reais e virtuais pelo Brasil, pesquisando para este livro, conheci várias pessoas, de­ tentoras de privilégios, que têm a honestidade de enxergar sua situação dentro da realidade brasileira. Nenhuma dessas pessoas abre mão, voluntá­ ria e individualmente, do seu privilégio. Mas uma das pedras fundamentais da Nova Previdência é que ela acaba simultaneamente com todos os privi­ légios, protegendo somente as pessoas de renda mais baixa. Se fosse para sacrificar somente alguns grupos profissionais, a injustiça seria gritante e a resistência assegurada. Mas trata-se de uma proposta visivelmente iguali­ tária, e não direcionada contra qualquer categoria específica. Ninguém será vitimado. Para muitas pessoas, isso será um fator importante que dimi­ nuirá a resistência.



Outra razão para imaginar que a proposta pode receber apoio entre a classe média e os mais abastados é que o Brasil ainda é um país relativamente jo­ vem. Quem está hoje na primeira fase da sua vida adulta tem razões de sobra para querer colocar a previdência numa base sustentável. Senão, vai pagar durante muitos anos privilégios que ele mesmo nunca vai receber.



Além disso, os jovens de hoje têm tudo a ganhar, se diminuir a desigualda­ de histórica e reforçar a educação. Ao aceitar o desafio de fazer agora aqui­ lo que seus pais e avós não quiseram ou não souberam fazer, e tornar o Brasil um país mais justo, darão um grande passo rumo ao Primeiro Mun­ do. A Nova Previdência não é a solução completa, também precisamos fa­ zer muito esforço na educação e em outras áreas. Mas como vimos,

326 BRIAN NICHOLSON

educação e Nova Previdência andam de mãos dadas. O exemplo da Coréia do Sul está posto. Pode ser que não seja 100% aplicável ao Brasil, mas cer­ tamente não é 100% irrelevante. •

Finalmente, acredito que a Nova Previdência pode receber apoio dentro da classe média e os mais ricos porque não há outra maneira crível de reduzir seriamente e em tempo razoável a desigualdade. Já passamos décadas fin­ gindo que a situação pode mudar sem que ninguém seja convidado a fazer nenhum sacrifício. Passamos décadas fingindo que nós todos podemos rece­ ber muito mais dos cofres públicos do que efetivamente contribuímos. E passamos décadas fingindo que o lastimável desempenho econômico nada tem a ver com o fato de excluirmos dezenas de milhões de cidadãos. Vamos continuar assim?

Das duas, uma — ou o Brasil distribui de maneira muito mais justa os re­ cursos públicos e os frutos do crescimento futuro, ou arriscamos a entrar no século 22 com a mesma distribuição de renda vergonhosa que temos hoje, no início do século 21. E antes de dizer que isso seria impossível, será que alguém achou, no início do século 20, logo depois do fim da escravidão, que o Brasil passaria cem anos sem resolver suas grandes desigualdades?

ÍNDICE REMISSIVO

Auxílio-acidente: 64,210,231 Auxüio-doença: 64,210,231

A África do Sul: 24 Aguiar, Francisco: 135 Alcântara, Lúcio: 135

B

Alemanha: 24,56,303 Andrade, Eli Iôla Gurgel: 175 Anistiados: 148,151,191,250,253 - cabos da FAB: 156 Aposentadoria especial: 103,248 Aposentadoria Nacional Básica: 215, 218 Aposentadoria Nacional Suplementar: 216,219 Aposentadoria por Idade: 96 Aposentadoria por Tempo de Contribui­ ção: 82,86,89 Aposentadoria Rural: 65, 68, 72, 100, 179,204 Aposentadoria: - idade mínima: 89,198,206 - juros: 80,176,224 - valor justo, conceito de: 77,202 Ardeo, Vagner: 90n52,189nll6 Argentina: 24 Austrália: 24,206 Autônomos: 232

Bacha, Edmar - ver Belíndia Banco Mundial: - aposentadoria: 90 - crescimento e desigualdade: 304, 321 - educação: 313 - gastos sociais no Brasil: 39 - peso dos impostos para os pobres: 36 - previdência brasileira: 44, 84, 119, 160,162 - resistência à reforma: 321 - servidores públicos: 119,123,126 Barros, Ricardo Paes de: 40n20 Bastos, Márcio Thomaz: 322 Bélgica: 34 Belíndia: 23,26 Bender, Siegfried: 127 Berzoini, Ricardo: 115,117,180,284 Bezerra, José Adauto: 135 Bismark, Otto von: 56,273nl45 Bletrão, Kaizo: 90n52,189nll6

328 BRIAN NICHOLSON

Bohn Gass, Elvino: 134 Bolsa Família: 38,101,240,324

Constituição de 1988, origens: 265,271 - como mudar: 267,277,314

Brasília: 118,176 Bresser-Pereira, Luiz Carlos: 320,324

- emendas: 280 Contribuição dos inativos: 188,224 Contribuições sociais: 170,288 Cony, Carlos Heitor: 157 Cordero, Beatriz Cardoso: 71n47 Coréia do Sul: 24,302,308 Corrupção: 177 Crescimento econômico: 302

BRICs: 302 Brizola, Leonel: 135 Brutamontes no bote salva-vidas: 74 Busato, Roberto: 285

c Cacciamali, Maria Cristina: 25,28 Caetano, Marco: 191nll8 Caldas, Suely: 137 Calsavara, Rogério Pereira: 72n49 Camargo, José Márcio: 43n22 Canadá: 56,310 Cantanhêde, Eliane: 323 Capitalização, sistema de: 212 Cardoso, Fernando Henrique: 25,277 Cardoso, JC: 67n42 Carvalho, Mirela de: 40n20 Castro, Lavinia Barros de: 92,199nl21 Cechin,José: 114 Chile: 212 - constituição: 273 China: 24,303 Clubes de futebol: 172 Colômbia: 24 Comparato, Fábio Konder: 271 Congresso: 94,101,172,183,198,205,213 - composição: 108,319 - Constituição de 1988:271 - papel na Nova Previdência: 278,314 - responsabilidade para os privilégios: 60,118,133,149,151,158 Constituição americana: 265,280

D Dataprev: 250 Declaração Universal dos Direitos Hu­ manos: 265 Déficit: 63,162,165 - estatais: 138 - projeção: 188,198 - servidores: 123 Delgado, Guilherme: 67n42,94n55 Delgado, Paulo: 159 DEM partido, antigo PFL: 135,317 Desigualdade: - capitalismo: 32 - como reduzir: 33,308,312 - comparações internacionais: 24 - crescimento econômico: 31,304 - criticas de advogados: 285,286 - democracia: 12,323 - dívida externa: 32 - globalização: 31 - impostos: 34 - instituições: 27,306,321 - juros: 32 - neoliberalismo: 32 - origem no Brasil: 25

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 329

- partidos políticos: 315 - pobreza, relação: 46 - previdência: 44 - programas sociais: 34,39 - queda recente: 13 Dinamarca: 34 Direito adquirido: 51, 86,104,133,145, 151,159,200,214,261,307 - advogados: 284 - apoio popular: 281 - cláusulas pétreas: 265 - Direitos Naturais: 264 - minorias: 294 - mudança: 195,275 - na Constituição brasileira: 265 - na história européia: 293 - na transição à Nova Previdência: 243 - numa nova Constituição: 270,292 - obrigações adquiridas: 296 Dona Maria, apresentação: 14 Donadon,João: 105n60 DRU, Desvinculação da Receita da União: 171 Durval, Romain: 90n52,208nl26 Dylan, Bob: 48

E Educação: 13,22,26,28,33,127,325 - Banco Mundial: 307,313 - Constituição de 1988:276 - Coréia do Sul: 308 - gastos: 41,63 - importância da pré-escola: 311 - Nova Previdência: 312 - OCDE: 41 Empregados domésticos: 58,175,232

Empresas estatais: 60,132,136,176,178 Engerman, Stanley: 27 Entidades filantrópicas: 172,283 Envelhecimento da população: 196,234 Espanha: 24,302 Estados e municípios: 114,126,135,168, 183,191,272 Estados Unidos: 24,57,206,212,303 composição do Congresso: 319 Ex-combatentes: 148,253 Executivo: valor dos benefícios: 113

F Fator previdenciário: 93,188,251 Feghali, Jandira: 66 Felício,João: 139 Fernandes, Millôr: 47 Fernandes, Reynaldo: 127 Ferreira, Francisco: 43n22 FGTS: 121,130,228,232 Figueiredo, João Baptista: 273 Finlândia: 34,310 Fraga, Armínio: 297 França: 24,57,303 Franklin, Benjamin: 264 Fundeb: 217,240,313

G Garotinho, Anthony: 136 Garotinho, Rosinha: 186 Gaspari, Elio: 139,160 Genoino, José: 114,117,133 Giambiagi, Fábio: 90n52, 92, 189nll6, 199nl21

330 BR1AN NICHOLSON

Gomes, Ciro: 136 Governo FHC - ver PSDBygoverno Governo Lula - ver PT, governo Granemann, Sara: 162,163nl04 Guerzoni Filho, Gilberto: 146 Guimarães, Ulisses: 265

H HerkenhoíF, João Baptista: 272 HofFmann, Rodolfo: 44, 45n27, 49n30, 208nl28

I

Ioschpe, Gustavo: 34n9,43 Itaipu: 176 Itália: 24,149,303

J Janene,José: 133 Japão: 24,303 Jeíferson,Thomas: 264,294 Jereissati,Tasso: 136 Jornais, leitura em vários países: 161 Jornalistas: 105,110,155,283,320 Judiciário: 115,181,320 - salários: 126 - valor dos benefícios: 113 • Juros na aposentadoria: 80, 136, 177, 224

Ideologia: 22 Índia: 24,303 índice de Desenvolvimento Humano (IDH): 311,317 Indigência, definição: I5n2

K

Indonésia: 24 Informalidade: 98,187,205,236 Inglaterra - ver Reino Unido INSS: 58,64,88 - benefício rural: 179 - déficit: 165 - grandes números: 168 - greves: 132 - inadimplência: 177 - os prejudicados: 98 - renúncias: 172 - sobras do passado: 175 - substituir por regime de capitaliza­ ção: 212 - valor dos benefícios: 86, 113, 150,

Kramer, Dora: 159nl01 Kubitschek, Juscelino: 309

246,247nl39

L Landes, David: 294nl 52 Legislativo: - aposentadorias: 113 - estrutura e salários: 126,159,181 Leone, Eugênia Troncoso: 208nl28 Liberal, Rafael: 174nl08 Livro Branco: 88 LOAS (benefícios assistenciais): 39, 65, 87,99,179,209 Loterias federais: 171

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 331

Lula (Luiz Inácio Lula da Silva): 155, 165,277

- comparação internacional: 233 - contribuições: 219 - educação: 312 - idade mínima: 215,223,234 - militares: 227 - pensões: 231

M Martins, Floriano José: 64n39 Marx, Karl: 180 Mascarenhas, Roberta: 191nll8 Matijascic, Milko: 65,72n49 Medeiros, Marcelo: 45 Mediei, Emílio: 28 Mello, Marco Aurélio: 274,286 Mendes, Geisa: 115n75

- por que fazer: 195 - princípios éticos: 201 - retroatividade: 291 - salário mínimo: 216,220,230 - servidores: 226 - sustentabilidade: 213,234 - vantagens econômicas: 236 Nova Zelândia: 56

Mendonça, João Oliveira: 90n52, 189nll6 Milagre econômico: 28 Militares: 57,127,134,139,320 - Nova Previdência: 227 - pensão das filhas: 86,146,296 - transição: 252

Nunes, Ricardo da Costa: 185nll4 Nunes, Selene Peres: 185nll4

- valor dos benefícios: 113 Moraes, Marcelo Estevão de: 38,112 Mortalidade infantil: 106n64, 147n96, 206 Mulheres: 109,196,198,207 - transição: 248 Mussolini, Benito: 32

N Neri, Marcelo: 38,175,321 Neves, Tancredo: 12,201 Nigéria: 24 Nova Previdência: 215,228,238 - aumentos reais: 228 - comparação com o INSS: 224

O OAB: 271,290 Obrigações adquiridas: 296 OCDE: - desigualdade: 36 - educação: 41,42 Oliveira, Antônio de: 191nll8 Oliveira, Francisco E.B. de: 57n33 Oliveira, João Batista de Araújo: 43n22 Organização Internacional do Trabalho (OIT): 58,233 Ornellas, Waldeck: 181

P Paiva, Mário Antonio Lobato de: 270nl43 Partidos políticos e desigualdade: 315

332 BRIAN NICHOLSON

Pedrossian, Pedro: 135 Petrobras: 137,155 PFL, partido - ver D EM Pinheiro, Marüia: 135 Pinheiro, Vinícius: 96 Pinochet, Augusto: 273 Pipinis, Vanessa: 128n83 Plano Real: 28,251,306 PMDB, partido: 316 Pobreza, definição: 15n2,69 Políticos: 272,283,319 - aposentadoria: 132 - governadores: 135 Ponte Rio-Niterói: 176 Portugal: 24,57 PP, partido: 317 Praia linda com borrachudos: 72 Previdência: - Constituição de 1988: 58,65,113 - déficit: 165 - descrição geral: 61 - desigualdade: 44 - excluídos: 70,174 - gasto total: 43,63 - grandes números: 168 - história no Brasil: 57 - história no mundo: 55 - impacto na pobreza: 66 - por que analisar juntos INSS, servi­ dores, militares e outros?: 16,59,63 - relevância para os jovens: 15, 196, 325 Privilégio: - defesa: 115,121,133,162,214,279, 281,321 - definição: 77,83,85,86,97,115 - eliminação: 34, 187, 195, 243, 261, 320

- falta de debate: 160 - na Constituição de 1891:147 - na previdência: 44,46,59,301,307, 315,316 - por que eliminar todos: 199,325 - responsabilidade dos servidores: 116,252 Professores: 107,110,125,160,198,281, 313 - na Nova Previdência: 224 - no Congresso: 199 - transição: 248 Programas sociais: 34,41,157,171,204 - custo para os pobres: 37 - focalização: 39 - gasto total: 37,38nl6,41 - progressivos e regressivos: 73 PSDB, governo: 171,181,277 - anistiados: 159 - aposentadoria dos jornalistas: 106 - ex-combatentes: 151 - reforma da previdência: 45, 88, 93, 114 PSDB, partido: 315 PT, governo: 43,163,171,181,182,211, 277.322 - reforma da previdência: 45, 112,

120 PT, partido: 114, 134, 171, 199, 316, 319.323 - reforma do FHC: 114 PTB, partido: 318

a Querino, Ana Carolina: 37, 65n41, 67n43,69,71,94n55,204nl23

A PREVIDÊNCIA INJUSTA 333

R

- concursos: 128 - defesa dos privilégios: 121,162 - direito de greve: 132

Ramos, Gilberto: 137

- grandes números: 168,182 - Nova Previdência: 226 - previdência complementar: 226nl33 - responsabilidade para os privilé­ gios: 116 - salários: 126

Rangel, Leonardo: 94n55 Reale Jr, Miguel: 322 Reforma fiscal: 32,171,213 Reino Unido: 24,55, 89,280,294,303 Renda média: 49 Renda mediana: 50,140,246 Ribeiro, Eduardo: 106n64 Rico e pobre: - definição: 47 - renda mediana: 50 Rio São Francisco, hidrelétricas: 176 Roosevelt, Franklin D: 57 Rússia: 24,303

s Salário mínimo: 28,50,113,285 - vínculo com a previdência: 198,230, 286 Salário-maternidade: 64,210,231 Saldanha, José Miguel: 162,163nl04 Saúde: 28,50,57 - como direito: 284 - desigualdade: 34,48 - financiamento: 171 - gastos: 37,63 - na Constituição de 1988: 276 - salários: 127 Schwartzman, Simon: 34n9, 60 Schwarzer, Helmut: 37, 59n34, 65n41, 67, 67n43, 69, 71, 168nl06, 204nl23 Servidores: 51,58,59,62,111,191,281 - benefícios: 129,146

- transferência de ativos públicos: 186 - transição: 251 Silva, Enid Rocha da: 59n34 Simon, Pedro: 136 Simples: 172 Skidmore,Thomas: 118 Sokoloff, Kenneth: 27 Stivali, Matheus: 94n55 Suécia: 56 Suplicy, Eduardo: 211 SUS, Sistema Único de Saúde: 43, 240

T Taxa de reposição: 111 Trabalho infantil: 311 Transição: 242,315 - cálculo das contribuições: 250 - concessões: 246 - flexibilidade: 255 - militares: 252 - os quatro passos: 244 - pensões: 254 - princípios: 243 - salvaguardas: 249 - servidores: 251

334 BRIAN NICHOLSON

u Unicef: 310

V Valor justo, conceito de: 77 Vargas, Getúltio: 318 Vietnã: 24

w Weinberg, Monica: 310nl58

View more...

Comments

Copyright ©2017 KUPDF Inc.
SUPPORT KUPDF