A Pobreza No Paraiso Tropical

March 14, 2019 | Author: José Brasil | Category: Sociology, Poverty, Pobreza e sem-teto, Anthropology, Brazil
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A pobreza no paraíso tropical

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Nu Núcleo de Antropologia A P da Política

A pobrezA no pArAíso tropicAl

MArciA AnitA sprAndel

Quinta da Boa Vista s/nº – São Cristóvão – Rio de Janeiro – RJ – CEP 20940-040 Tel.: (21) 2568 9642 Fax: (21) 2254 6695 – E-mail: [email protected]  Publicação realizada com recursos do PRONEX/CNPq; Ministério da Ciência e Tecnologia; Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientíco e Tecnológico; Programa de Apoio a Núcleos de Excelência A coleção Antropologia da Política é coordenada por Moacir G. S. Palmeira, Mariza G. S. Peirano, César  Barreira e José Sergio Leite Lopes e apresenta as seguintes publicações: 1 - A HONRA DA POLÍTICA – Decoro parlamentar e cassação de mandato no Congresso Nacional (19491994), de Carla Teixeira 2 - CHUVA DE PAPÉIS – Ritos e símbolos de campanhas eleitorais no Brasil, de Irlys de Irlys Barreira 3 - CRIMES POR ENCOMENDA – Violência e pistolagem no cenário brasileiro, de César Barreira 4 - EM NOME DAS “BASES” – Política, favor e dependência pessoal, de Marcos de Marcos Otávio Bezerra 5 - FAZENDO A LUTA – Sociabilidade, falas e rit uais na construção de organizações camponesas, de John de John Cunha Comerford  6 - CARISMA, SOCIEDADE E POLÍTICA – Novas linguagens do religioso e do político, de Julia de Julia Miranda 7 - ALGUMA ANTROPOLOGIA , de Marcio de Marcio Goldman 8 - ELEIÇÕES E REPRESENTAÇÃO NO RIO DE JANEIRO , de Karina de Karina Kuschnir  9 - A MARCHA NACIONAL DOS SEM-TERRA – Um estudo sobre a fabricação do social, de Christine de  Alencar Chaves 10 - MULHERES QUE MATAM – Universo imaginário do crime no feminino, de Rosemary de Rosemary de Oliveira  Almeida 11 - EM NOME DE QUEM? – Recursos sociais no recrutamento de elites políticas, de Odaci Luiz Coradini 12 - O DITO E O FEITO – Ensaios de antropologia dos rituais, de Mariza de Mariza Peirano 13 - NO BICO DA CEGONHA – Histórias de adoção e da adoção internacional no Brasil, de  Domingos Abreu 14 - DIREITO LEGAL E INSULTO MORAL – Dilemas da cidadania no Brasil, Quebec e EUA, de  Luís R. Cardoso de Oliveira Oliveira 15 - OS FILHOS DO ESTADO – Auto-imagem e disciplina na formação dos ociais da Polícia Militar do Ceará, de Leonardo de Leonardo Damasceno de Sá 16 - OLIVEIRA VIANNA – De Saquarema à Alameda São Boaventura, 41 - Niterói. O autor, os livros, a obra, de Luiz de Luiz de Castro Faria 17 - INTRIGAS E QUESTÕES  – Vingança de família e tramas sociais no sertão de Pernambuco, Pernambuco, de Ana de Ana Claudia Marques 18 - GESTAR E GERIR – Estudos para uma antropologia da administração administração pública no Brasil, de Antonio de Antonio Carlos de Souza Lima 19 - FESTAS DA POLÍTICA – Uma etnograa da modernidade no sertão (Buritis/MG), (Buritis/MG), de Christine de  Alencar Chaves 20 - ECOS DA VIOLêNCIA  – Narrativas e relação de poder no Nordeste Nordeste canavieiro, de Geovani  Jacó de Freitas 21 - TEMPO DE BRASÍLIA  – Etnografando lugares-eventos da política, de de Antonádia Borges 22 - COMO UMA FAMÍLIA  – Sociabilidade, territórios de parentesco e sindicalismo sindicalismo rural, de John de John Cunha Comerford  23 - O CLUBE DAS NAÇÕES  – A missão missão do Brasil na ONU e o mundo da diplomacia diplomacia parlamentar, de  Paulo de Góes Filho Barreira 24 - POLÍTICA NO BRASIL  – Visões de antropólogos, antropólogos, de Moacir de Moacir Palmeira e César Barreira 25 - AS (DIFUSAS) FRONTEIRAS ENTRE A POLÍTICA E O MERCADO  – Um estudo antropológico sobre marketing político, político, seus agentes, práticas e representações, de Gabriela Scotto 26 - ESPAÇOS E TEMPOS DA POLÍTICA , de Carla Costa Teixeira e Christine de Alencar Chaves 27 - A POBREZA NO PARAÍSO TROPICAL  – Interpretações e discursos sobre o Brasil, de Marcia de Marcia Anita Sprandel  28 - O POVO EM ARMAS  – Violência e política no no sertão de Pernambuco, de Jorge de Jorge Mattar Villela Villela 29 - A AMBIENTALIZAÇÃO DOS CONFLITOS SOCIAIS  – Participação e controle público da poluição industrial, de José de José Sergio Leite Lopes

A pobreza no paraíso tropical Interpretações e discursos sobre o Brasil

 Ri o de Ja ne ir o 2004

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© Copyright 2004, Marcia Anita Sprandel Direitos cedidos para esta edição à Dumará DistribuiDora De Publicações ltDa. Rua Nova Jerusalém, 345 – Bonsucesso CEP 21042-235 – Rio de Janeiro, RJ Tel. (21)2564-6869 (PABX) – Fax (21)2560-1183 E-mail: [email protected] 

 Revisão A. Custódio  Editoração Dilmo Milheiros Capa Simone Villas-Boas Ilustração: W. Piso, G. Maregraf e J. de Laet, Historia Naturalis Brasiliae, 1648

CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte. Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Sprandel, Marcia Anita A pobreza no paraíso tropical : interpretações e discursos sobre o Brasil / Marcia Anita Sprandel. – Rio de Janeiro : Relume Dumará : Núcleo de Antropologia da Política/UFRJ, 2004 . – (Coleção Antropologia da política ; 27) Inclui bibliograa ISBN 85-7316-362-3 1. Pobreza – Brasil. 2. Brasil – Condições sociais. 3. Brasil – Condições econômicas. I. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Núcleo de Antropologia da Política. II. Título. III. Série. 04-1991

Para Henrique e Mathias, queridos. E para Liza e Luis, Magra, Luci e Sérgio, Dulce, Rafael, Sarah, Julia, Ana, Fernando e Moisés, sem esquecer de Gemma, Francisca e José, com carinho e agradecimento.

 Apoio

s753p

Para meus pais, Ivo Sprandel (in (in memorian) memorian) e Lourdes Maria Sprandel.

CDD 362.5 CDU 364.22 Todos os direitos reservados. A reprodução não-autorizada desta publicação, por qualquer meio, seja ela total ou parcial, constitui violação da Lei nº 5.988.

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suMário

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i ntroDução . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 caPítulo 1 A pobreza como paisagem no pensamento social brasileiro . . . . . . . . . . . . . . 19

1.1. Relativizando o “país de Cocagne” de Capistrano de Abreu: a miséria em um paraíso tropical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 21 1.2. Três continentes num só homem: a problemática raça brasileira . . . . . 26 1.3. O povo brasileiro: entre os “ proletários nômadas” de Nabuco e as “ formigas que não trabalham” de Manoel Bomm . . . . . . . . . . . . . . . . . . 32 1.4. “O véu foi levantado. O microscópio falou”: Monteiro Lobato e a importância das expedições cientícas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 49 caPítulo 2 As somas e subtrações nas interpretações sobre o Brasi l . . . . . . . . . . . . . . . . . 65

2.1. Entre pontes e rupturas: novas maneiras de ver o Brasil . . . . . . . . . . . 67 2.2. As “manchas negras da fome” de Josué de Castro e o “coronelismo” de Vitor Nunes Leal: novas percepções sobre a pobreza . . . . . . . . . . . . . . 80 2.3. O Projeto Unesco: a descoberta da hierarquia na democracia . . . . . . . 92 2.4. “ Desambição e imprevidência”: os “caipiras” de Antonio Candido . . 98 caPítulo 3 As representações sobre a pobreza nas últimas décadas do século XX . . . . . 115

3.1. A pobreza como objeto das ciências sociais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115 3.2. Representações sobre a pobreza nos organismos internacionais: denições, medições e prescrições . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 138 3.3. Os discursos sobre a pobreza no Congresso Nacional . . . . . . . . . . . . 149

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conclusão . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 179 r eferências eferências

bibliográficas .

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 185

Tem que saber para onde corre o rio, tem que saber seguir o leito, tem que estar informado, tem que saber q uem é Josué de Castro, rapaz! Chico Science

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introdução*

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 No nal dos dos anos 1990 se falou falou muito muito em em pobreza pobreza no Brasil. Brasil. Em diversas diversas ocasiões ocasiões o presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, declarou que “o problema da pobreza” é tão antigo quanto a história do Brasil. O então presidente do Senado Federal, Antônio Carlos Magalhães, armou por sua vez que a miséria de nosso  povo é “secular”. “secular”. Nas audiências audiências públicas públicas da Comissão Mista Mista de Combate à Po breza, que acontece aconteceram ram de agosto agosto a dezembro dezembro de 1999 no Congresso Congresso Nacional, Nacional, a mesma percepção da temporalidade da pobreza predominou. A partir da análise dos trabalhos da referida Comissão e da leitura de alguns dos clássicos do pensamento social brasileiro, observei que, embora se possa aventar a hipótese de que “a pobreza” exista em nosso país há mais de 500 anos, o “problema da pobreza” ou a pobreza como problema, é uma preocupação historicamente bem mais recente.  Nos debates do nal do século XIX e das primeiras primeiras décadas do século XX, o “problema da mestiçagem” e a necessidade de se “organizar social e politicamente” um país “sem povo”, apareciam como os grandes problemas nacionais. O  pós-guerra  pós-guerra (1945) refreou consideravelmente consideravelmente – em escala mundial – os estudos  baseados em raça e levou ao crescimento, no Brasil, das análises baseadas nos conceitos de hierarquia e de classes sociais, que permaneceram importantes nas décadas de 1960 e 1970. Tal perspectiva seria quebrada pelas reexões de religio sos ligados à chamada Teologia da Libertação, que a partir da reunião episcopal latino-americana de Medellín, em 1968, armaram uma “opção preferencial pelos * Este

livro foi escrito inicialmente como tese de doutoramento defendida no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade de Brasília, em setembro de 2001. Na medida do possível, incorporei as observações da banca examinadora, formada pelos professores Luis Antonio de Castro Santos (Instituto de Medicina Social/UERJ), Moacir Palmeira (PPGAS/ UFRJ), Luis Roberto Cardoso de Oliveira (PPGAS/UnB) e Marcus Faro de Castro (Faculdade de Direito/UnB), aos quais agradeço, assim como a todo o corpo docente do PPGAS/UnB. Meu obrigado especial a Mariza Peirano, que no seu trabalho de orientação me possibilitou um reencontro com a paixão pelo estudo das idéias.

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 pobres”, que se traduziu em termos políticos na organização em todo o país de Comunidades Eclesiais de Base”. 1 Mas foi nos anos 1980 que a pobreza se tornou tema central de reexão e de ação política. A nova Constituição, promulgada em 1988, reetiu esta preocupação, ao garantir, em seu art. 3º, que um dos quatro objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil é “erradicar a pobreza e reduzir as desigualdades sociais e regionais”. Em termos de governo, no entanto, a pobreza só passou a ser tratada como “problema” de fato nos anos 1990, no contexto da mobilização em torno da Campanha da Fome (Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida) 2 e da realização do “ciclo social” de conferências da Organização das Nações Unidas (ONU). 3 Pode-se dizer que a naturalização da pobreza foi uma constante em grande  parte das interpretações interpretações sobre o Brasil. Brasil. Embora detalhadament detalhadamentee descrita descrita em muitos muitos textos, a pobreza aparece no mais das vezes como uma conseqüência do clima, da mestiçagem, da doença, da desorganização social ou mesmo da falta de condições objetivas para uma revolução popular em nosso país.  No Brasil do nal do século XX, no entanto, já existe um saber acadêmico acadêmico consagrado sobre o tema. Fala-se numa  focalização  focalizaçãoda da pobreza, operação possível de ser realizada por meio da utilização de alguns indicadores sociais, especialmente o Índice de Desenvolvimento Humano, criado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Tal focalização Tal  focalizaçãoobjetiva objetiva fundamentalmente concentrar  os gastos sociais do governo onde os índices se mostrarem abaixo de um patamar  de pobreza predenido. “Focalização” é claramente um conceito emprestado aos Estados Unidos, onde tudo parece precisar ser   focused , das políticas públicas sugeridas pela ONU aos sentimentos individuais. Da naturalização de muitos dos clássicos do pensamento social brasileiro ao  foco dos tecnocratas do nal do século XX, se passaram pouco mais de 100 anos.  Neste período, procurei procurei identicar de que forma a pobreza é representada pelos pelos autores lidos. Para tanto, inspirei-me em Bourdieu (1996), para quem os discursos políticos ou intelectuais têm uma ecácia simbólica capaz de construir e de classicar a realidade. Como pano de fundo e objetivo maior deste trabalho, me  preocupei  preocupei em elucidar elucidar como se deu deu em nosso nosso país a construção construção da da pobreza pobreza como  problema nacional nacional.. Tal tarefa foi realizada por Norbert Elias (1997) ao analisar o surgimento de novos “problemas” nos países europeus, entre eles a pobreza. Elias defende que a consciência contemporânea de que uma parcela imensa da humanidade passa fom e não é exatamente um problema novo. O novo seria, por exemplo, o fato das pessoas não mais aceitarem que a pobreza seja uma determinação do destino. Dentro da mesma linha de análise, Mary Poovey (1998) estuda a gênese de categorias abstratas universais, tais como “humanidade”, “sociedade”, “mercado” e “pobreza”. Preocupa a autora analisar mais especicamente o longo processo de

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reconhecimento social da importância dos números, o que faz a partir do estudo de livros-caixas ingleses do século XVII. Poovey demonstra que tal processo, que chama de “fato moderno”, foi acompanhado por uma progressiva diminuição da importância da política na interpretação da realidade, dentro de uma lógica de rompimento da conexão entre a descrição e a interpretação. A tese defendida por Poovey considera um equívoco o fato de aceitarmos friamente o que os números pretendem mostrar. Propõe, ao contrário, que identiquemos o que seu uso revela e qual o seu interesse para os governantes. Neste sentido, sua teoria torna-se importante para o questionamento das teses sobre a  pobreza  pobreza baseadas baseadas em quantica quanticações ções e focalizaç focalizações. ões. Além disso, Poovey demonstra demonstra como se dão no tempo as mudanças de olhares sobre determinadas realidades e quão profundamente nossas idéias do senso comum têm um débito com noções que pertencem ao passado. Daí minha preocupação em não denir  um conceito de pobreza. Procurei, na medida do possível, evitar ao máximo que seus signicados contemporâneos inu íssem nas leituras feitas, o que não foi tar efa simples. Poovey lembra com acuidade que, na medida em que algum tema se torna “uma questão” ou “um problema”, dicilmente conseguimos nos debruçar sobre o passado e analisá-lo com isenção, distantes de seus novos signicados. Analisar a construção histórica da categoria “pobreza” no mundo ocidental, não obstante seu reexo e herança nas representações sobre o tema produzidas no Brasil, seria escrever um outro livro. Foi neste sentido graticante localizar num texto de Roberto da Matta uma “breve história cultural do pobre”, onde o autor  compara de forma resumida as concepções medievais e modernas de pobreza. Matta (1995) mostra que durante o período medieval, quando os valores da Igreja Católica predominavam, o pobre era percebido como uma categoria moral relacionada e complementar à de rico. Apoiado em leituras dos historiadores Marc Bloch e Michel Mollat, lembra que critérios socioeconômicos não eram predominantes em sua denição. A pobreza era antes qualidade e condição de uma pessoa de qualquer  status  status que estivesse sendo vítima de privações. Havia mesmo uma avaliação positiva da pobreza, valor social com fortes elementos cristãos, que despertava solidariedade e compaixão, além de admiração (tanto em relação ao pobre quanto ao rico que vivia com modéstia). Esta gloricação da pobreza teria funcionado como um processo compensatório de classicação social, no qual pessoas ricas e poderosas poderiam ser consideradas  pobres em virtudes e – ao contrário contrário – pessoas pobres poderiam poderiam ser ser admiradas admiradas por  sua riqueza espiritual: This system did not regard the individuals as an autonomus social agent; it represented the rich and the poor, the noble and the plebeian, as interdepen-

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A pobrezA no pArAíso tropicAl dent and morally equivalent before the laws of God and the Church (Matta, 1995:6).

 Neste contexto, as pessoas que eram ou se tornavam pobres acreditavam que isto se dera em função das adversidades da vida, como a guerra, o envelhecimento, deformidades físicas, doenças ou debilidade econômica ou, simplesmente, pela vontade de Deus. Quanto aos mais abastados, tinham a obrigação moral e cristã de ajudar os que viviam em privação.  Neste sistema de hierarquias e reciprocidades, o pobre não era tratado como uma questão social ou como um problema político. Apenas no século XIV, quando a ordem social se torna individualista, competitiva, voltada para o mercado e fundada na diferenciação econômica, o pobre começaria a carregar a ambigüidade de ser ao mesmo tempo uma representação da pobreza de Cristo e uma ameaça. Principalmente após a reforma protestante, a sociedade redeniria sua con cepção de pobreza, associando o pobre ao desemprego, vagabundagem, preguiça e crime. Transformado em problema social, o pobre só poderia ser recuperado através da disciplina. No rastro do puritanismo, os ricos foram santicados e os pobres  punidos. A moralidade relacional da Idade Média foi desta forma substituída por  uma moralidade distributiva, na qual o Estado (e não mais o rico, como salienta Matta) torna-se responsável pela sobrevivência e controle das populações pobres. Com base em reexões de Polany, Matta demonstra como neste Ocidente novo e individualista, onde as forças do mercado foram liberadas, gerando uma riqueza jamais vista, a pobreza cresceu de forma assustadora. Dessa contradição  potencialmente conituosa, resultaram novas concepções de mundo, nas quais a  pobreza deixou de ser um elemento constitutivo da sociedade para se transformar  num problema e se institucionalizaram mecanismos jurídicos e políticos para socorrê-la, reprimi-la e corrigi-la: At this point, the poor either became workers (and citizens) or outcasts, members of the dangerous classes or the “underclass”. Thus, just as the market fomented poverty, political equality (which legitimated labor as a commodity and universalized citizenship) also gave rise to a new undesirable and distorted set of social differences. Thus, in the modern world poverty is a social problem and a stigma (ibidem, p. 10).

Retornaremos a esta discussão ao analisarmos o trabalho de Matta sobre a  pobreza urbana no Brasil, quando o autor se propõe a resgatar o sentido ibérico de modernidade para explicar particularidades da relação entre pobres e ricos em nosso país. Ainda em termos de método, esclareço que não tive “os pobres” ou a “cultura da pobreza” como objeto de estudo. Também não foi minha preocupação escrever 

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sobre os programas e os gastos sociais dos sucessivos governos brasileiros. Sobretudo, este não é um trabalho sobre “a pobreza no Brasil”, passível de se transformar  em fonte preciosa de indicadores sociais. Cabe também ressaltar que, apesar de ter organizado os dados cronologicamente, este não é um estudo histórico. A maioria dos relatos históricos é uma crônica do desenvolvimento de idéias ou de eventos conectados. Tratar a pobreza como um fato moderno me permitiu, mesmo tendo como base uma linha de tempo, adotar uma rota em espiral, rejeitando assim as periodizações excessivamente bem denidas. Para Poovey, tal opção metodológica perm ite que capturemos eventos do  passado que podem iluminar o que analisamos no presente. O resultado, embora  possa parecer historicamente confuso ou marcado por ausências que a historiograa tradicional não poderia admitir, me permitiu expor conexões entre projetos políticos e intelectuais tão diversos quanto os discursos de Joaquim Nabuco, os inquéritos sociais de Josué de Castro e os cálculos de indicadores sociais dos grandes organismos internacionais. Tampouco me propus a fazer uma “antropologia da civilização brasileira” ou uma “antropologia da sociedade nacional”. Isso não signica que considere tais tarefas impossíveis ou condenáveis. Elias, ao defender a possibilidade de se escrever “biograas” de sociedades-Estado, arma que a experiência passada tem imensa inuência no desenvolvimento de uma nação (Elias, 1997:165). Para estudar a Alemanha, utiliza o conceito de habitus, no sentido de um saber social incorporado pela população de um país. Busca, dessa forma, superar os problemas da noção de “caráter nacional”, que considera demasiado xa e estática. Ao armar que “os destinos de uma nação ao longo dos séculos vêm a car  sedimentados no habitus de seus membros individuais” (ibidem, p. 30), Elias considera que este muda com o tempo, juntamente com as mudanças e acúmulos das experiências de uma nação. Além disso, para Elias os destinos de uma nação cristalizam-se em instituições que têm a responsabilidade de assegurar que as  pessoas mais diferentes de uma sociedade adquiram as mesmas características e possuam o mesmo habitus nacional. Embora não me proponha a realizar para o Brasil a tarefa sugerida por Elias, considero o seu método fundamental para o resgate contemporâneo de todas as discussões e debates sobre o Brasil analisados nos dois primeiros capítulos deste livro. A insistência em armar o que “não é” este trabalho tem uma razão de ser   bastante clara. A pobreza é um tema amplíssimo, que se presta a inúmeras possi bilidades de análises e leituras. O meu recorte é aparentemente simples: extrair de uma rota em espiral de textos e debates de mais de 100 anos de que forma a pobreza e suas variantes (tais como “pobres” ou “miseráveis”) vêm sendo representadas e reelaboradas. Para tanto, tornou-se imprescindível uma certa distância estratégica em relação às numerosas interpretações históricas sobre o período e as análises

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sobre produção intelectual no Brasil. Muitas coisas caram de fora. Contemplar a todas as abordagens concernentes direta ou indiretamente à pobreza seria lançar-se à tarefa similar a do cartógrafo do conto de Luís Borges, que quis fazer um mapa tão perfeito que acabou reproduzindo o mundo. 4 Analisei no primeiro capítulo o tratamento da questão da pobreza em alguns dos autores clássicos do pensamento social brasileiro, 5 da campanha abolicionista aos anos 1950. Tive a oportunidade de ler pela primeira vez ou de reler autores como José Bonifácio de Andrada e Silva, Joaquim Nabuco, Euclydes da Cunha, Manoel Bomm, Gilberto Freyre e Paulo da Silva Prado, entre outros. Em todos identi quei reexões sobre a pobreza, num exercício que se mostrou extremamente rico. O segundo capítulo tem como objeto a produção intelectual dos anos 1930 em diante, com os trabalhos de Sérgio Buarque de Holanda, Antônio Candido, Caio Prado Junior, Josué de Castro, a produção resultante do projeto Unesco e algumas abordagens posteriores. Entre as tantas rupturas identicadas pela historiograa na década de 1930, está a mudança teórica de alguns intelectuais, que passaram a pensar o Brasil notadamente sobre o ângulo da estraticação social, realizando suas pesquisas dentro das grandes universidades do país.  No terceiro capítulo, discuti as reexões sobre a pobreza produzidas num contexto estritamente universitário, onde se formaram alguns grupos de análise sobre as transformações pelas quais passava o país, num período de governo militar  e acelerado desenvolvimento econômico; registrei o predomínio dos trabalhos de inspiração marxista e sua substituição, mais tarde, por análises voltados a temas verticais, como cidadania e direitos humanos e destaquei a importância da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida (Campanha da Fome) para a inclusão do tema da pobreza na agenda nacional. Identiquei também o discurso internacional do Programa das Nações Unidas  para o Desenvolvimento (Pnud), do Banco Mundial (BIRD) e do Fundo Monetário Internacional (FMI) sobre a questão da pobreza. Finalmente, examinei brevemente de que forma os discursos analisados nos dois capítulos anteriores foram ocultados, negados ou rearmados nos trabalhos da Comissão Mista de Combate à Pobreza, ricos em discursos e representações sobre a pobreza (tanto os ociais, que reproduzem, grosso modo, o pensamento de organismos internacionais, quanto da sociedade civil organizada e dos partidos políticos). Meus trabalhos anteriores, como antropóloga, tiveram como objeto sociedades camponesas No entanto, os autores que buscam interpretar o Brasil desde seus  primórdios não me são estranhos. Minha formação como historiadora foi sobretudo resultado da prática de consulta aos acervos de bibliotecas cariocas, onde trabalhei alguns anos como pesquisadora para mestrandos e doutorandos em fase de levantamento de dados para suas teses. 6 Meu interesse no estudo da produção intelectual do Brasil e na sua repercussão

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nos discursos políticos do Congresso Nacional levou a que fosse convidada pela  profa. Mariza Peirano, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da UnB, a participar do Núcleo de Antropologia da Política. Nele fui incentivada a aprofundar minhas reexões sobre as atividades do Congresso Nacional, onde trabalho como assessora de assuntos sociais e internacionais desde 1997. A mudança de objeto teve aspectos positivos. A forma desprovida de pré-noções com que li alguns dos clássicos do pensamento social brasileiro, por exemplo, me permitiu uma apropriação bastante livre de seus textos. Em relação ao trabalho de campo propriamente dito, que ocupou parte pequena deste trabalho, alguns esclarecimentos são necessários. Enquanto em outros momentos de minha vida acadêmica tive como lócus de investigação comunidades de camponeses brasileiros no Paraguai e na Argentina, povoados do Maranhão, assentamentos de trabalhadores rurais sem-terra no Mato Grosso do Sul e aldeias de pescadores na ilha de Marajó, desta vez tive durante alguns meses o Congresso  Nacional como “aldeia” e os congressistas e seus assessores como “nativos”. A dupla identidade de antropóloga e de assessora parlamentar, literalmente me abriu  portas que não seriam facultadas a pesquisadores de fora. Além de assistir a todas as reuniões da Comissão Mista de Combate à Pobreza, pude participar diretamente dos bastidores da mesma, apreendendo dessa forma muito sobre a negociação dos discursos políticos. Busquei aproveitar a oportunidade com o distanciamento necessário para a realização de um bom trabalho de pesquisa antropológica.

Notas 1 Conforme

Rubem César Fernandes, “a partir de Medellín a igreja seria mais profundamente identicada com os ‘últimos’ deste mundo que devem ser os ‘primeiros’ no Reino de Deus. A Igreja deveria ser reconstruída a partir de suas bases locais, enraizadas na experiência popular e numa nova leitura da Palavra de Deus. Ao invés da ênfase nos ritos tradicionais, a religiosidade das CEBs deveria concentrar-se no entendimento da Bíblia e seu signicado para o drama histórico atual. Implicava, portanto, uma estreita associação entre as linguagens da teologia e da sociologia, sobretudo de orientação marxista  (A Teologia da Libertação, por Rubem César Fernandes, em http://www.mre.gov.br/cdbrasil/Itamaraty/web/port/artecult/religião/tlibert/apresent.htm). 2 Proposta

e liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, a partir de 1993.

3 Cúpula

da Criança (Nova York, 1990); Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992); II Conferência de Direitos Humanos (Viena, 1993); População e Desenvolvimento (Cairo, 1994); Desenvolvimento Social (Cop enhagen, 1995); Mulher, Desenvolvimento e Paz (Pequim, 1995); e Assentamentos Humanos (Istambul, 1996). 4 Citado 5

por Bourdieu (1974:184).

Para ns de denição do termo, co com aquela do Grupo de Trabalho sobre Pensamento Social Brasileiro, criado em 1981 no âmbito da Associação Nacional de Pesquisa em Ciências Sociais (ANPOCS), sob a coordenação de Luiz Antonio de Castro Santos e Mariza Peirano:

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cApítulo 1

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“Pensamento social procura designar a produção intelectual em sentido mais abrangente e não somente aquele gerado no espaço das ciências sociais. Daí ser igualmente relevante a análise da  produção de literatos, de folcloristas, entre outros” (Ol iveira, 1999:148-149). 6 Duas

destas pesquisas foram especialmente ricas e instrutivas: uma delas, sobre as atividades da Academia de Ciência de Lisboa em nosso país, feita para o prof. Leopoldo Jobim (USP-SP  – para sua tese de douto ramento, int itulada Academia de Ciências de Lisboa e o iluminismo luso-brasileiro ) e outra sobre a introdução das idéias marxistas no Brasil, feita para os professores José Nilo Tavares (PUC-RJ – para elaboração de seu livro Marx, o socialismo e o Brasil ,  publicado em 1983 pela Editora Civilização Brasileira. Vide nota 2, p. 132) e Leandro Konder  (UFRJ-RJ – pesquisa feita para sua tese de mestrado intitulada Inuência das idéias marxistas no Brasil , defendida na Faculdade de Filosoa do IFCS/UFRJ. Vide “agradecimentos”). Além disso, quando da elaboração de minha dissertação de mestrado sobre camponeses brasileiros que vivem no Paraguai, pude conhecer e analisar o debate republicano sobre fronteiras e limites nacionais e a produção da geograa sobre a ocupação do território nacional.

A pobreza como paisagem no pensamento social brasileiro

Tentativas de interpretar o Brasil são tão antigas quanto o desembarque dos portugueses, em 1500. Mas foi sobretudo a partir da década de 1870 que as nossas elites intelectuais e políticas passaram a debater com maior paixão e intensidade nossos “problemas nacionais”, tendo como fundamentos teóricos o evolucionismo social, o positivismo, o naturalismo e o social-darwinismo. Neste debate se envolveram  pensadores, romancistas, juristas, médicos e engenheiros, que produziram “diagnósticos e terapias” (Oliveira, 1999:147) sobre o país. Interessa-me neste capítulo identicar se a pobreza foi, em algum momento, diagnosticada como problema nacional e qual a terapia sugerida. Existem críticas contundentes, principalmente dentro da antropologia, às tentativas de buscar-se um “caráter nacional” brasileiro. O debate é rico, embora um tanto velado. Temos sobretudo a fala dos que, como Darcy Ribeiro e Roberto da Matta, realizaram suas próprias interpretações. No artigo “Manoel Bomm, antropólogo”, escrito em 1993, Ribeiro é bem claro ao armar que “antropólogos condicionados a campos restritos e a temas irrelevantes” (Ribeiro, 1993:9) tendem a desprezar temas mais complexos, tarefas que delegam aos lósofos. Defende que cabe à antropologia realizar a tarefa de indagar como nosso povo surgiu e como veio a ser o que é. A esta “antropologia da civilização” caberia, na linha de um Euclydes da Cunha, de um Capistrano de Abreu ou de um Manoel Bomm, “escrever à luz de nossas próprias percepções e experiências melhores teorias explicativas de nós mesmos” (ibidem, p. 10). Ou seja, produzindo novos esquemas conceituais que se contraponham aos estereótipos do senso comum, que fundamentam suas inter pretações sobre o Brasil em fatores como o clima tropical e a mistura das raças. Roberto da Matta, questionado sobre qual interpretação sobre o Brasil seria  privilegiada nas comemorações dos 500 anos, defendeu a legitimidade de leituras diversas e no seu entender complementares, tanto as uniformes, sem arestas e sem contradições quanto as dinâmicas e contraditórias. Para ele, “todas as sociedades podem ter múltiplas pinturas, leituras, fotograas e (...) como gosto de dizer, ‘médiuns’

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ou ‘cavalos de santo’” (Matta, 2000:90), uma delas, com certeza, a antropológica. Darcy Ribeiro, ao criticar o desconhecimento ou descaso que, como intelectuais, costumamos ter em relação aos autores nacionais do passado, utiliza uma interessante metáfora. A cultura seria como uma casa que na maioria dos países é levantada coletivamente, pela superposição de tijolos. No caso brasileiro, arma, “cada pedreiro está olhando para a casa alheia e só deseja construir com seu grão de areia exemplicativo ou seu tijolinho de lisonjas ao pensador estrangeiro que mais o embasbaca. As gerações, assim, não se conectam. Cada qual se atrela, se ancila, aos moinhos de idéias lá de fora” (Ribeiro, 1993:18). Retomarei adiante a discussão sobre a inuência das teorias estrangeiras nos discursos de nossos pensadores e políticos, recorrente também nos autores do nal do século XIX, pois a mesma é fundamental para compreendermos as questões contemporâneas de “focalização” da pobreza assumida pelo governo federal ou de empowerment dos pobres, proposta pelo Banco Mundial em seu  Relatório sobre o desenvolvimento mundial 2000/2001. Identicar referências à “pobreza” nos textos clássicos do pensamento social  brasileiro não é tarefa complexa. Elas aparecem na maior parte dos trabalhos consultados. Mas logo se percebe que a pobreza não foi a atriz principal dos grandes debates nacionais. Congurou-se, antes disso, como um cenário imóvel ou uma eterna coadjuvante, que tinha como função apoiar os grandes atores: raça, povo e organização nacional. Eventualmente, tiveram seus momentos de glória a tristeza, o saneamento e a nutrição. Parafraseando Mary Poovey, a pobreza só se tornaria um fato moderno no Brasil no último quartel do século XX. Até o nal da Segunda Guerra Mundial (com a derrota da Alemanha e a con denação do nazismo por parte da opinião pública internacional), nossos pensadores se preocupavam sobretudo em saber se, com a conguração racial que nos coube, teríamos condições de nos transformar algum dia em uma nação. Questionavam se a população brasileira poderia ser considerada “povo”, se este povo era ou não triste e se a ausência de organização nos inviabilizaria para a modernidade. A pobreza aparece em tais análises principalmente para adjetivar aqueles que eram considerados os nossos verdadeiros problemas. Ora aparece como resultado da mestiçagem, ora da escravidão. As análises sobre “classes baixas” urbanas, 1 embora zessem referências à pobreza, centravam-se principalmente na periculo sidade potencial das mesmas, enquanto os moradores do interior eram analisados a partir de sua apatia, sua tristeza e suas doenças.  Na construção do espiral histórico sobre as noções de pobreza nas grandes interpretações sobre o Brasil, começo pelo seu discurso antinômico, o da fartura. A partir daí analiso de que forma a pobreza aparece nos grandes debates nacionais sobre raça, miscigenação, escravidão, povo, saneamento e nutrição, entre outros.

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1.1. Relativizando o “país de Cocagne” de Capistrano de Abreu: a miséria em um paraíso tropical O novo território português nasceu com a marca da abundância. Pero Vaz de Caminha, cronista real, encarregou-se de espalhar pelo Velho Mundo a fama da generosidade da terra e da exuberância das orestas e das águas. Mas da beleza das paisagens não cuidaram os portugueses. Com bem lembra Paulo Prado, “não era, nem do tempo nem da raça, o amor à natureza” (Prado, 1997:62). Também não se interessaram os portugueses pela qualidade do solo para a agricultura. Do Brasil, queriam especiarias e ouro. Não os encontrando imediatamente, restou ao pau-brasil a triste sina da quase extinção e a glória de dar um nome à nova terra. Má escolha, segundo frei Vicente Salvador. Trocar o nome de Santa Cruz por Brasil levou a uma tão grande instabilidade que o país, ao invés de crescer em população européia, se despovoara. Escrevendo a pouco mais de 100 anos do descobrimento, o jesuíta baiano diagnosticou com exatidão qual seria a relação do colonizador português e seus descendentes com o Éden de Caminha, “um e outros usando a terra, não como senhores, mas como usufrutuários, só para desfrutarem e a deixarem destruída” (Salvador, 1998:264). As sábias palavras de frei Vicente, no entanto, perderam-se no tempo sem serem levadas a sério. Outros assuntos interessavam à Europa, tais como ouro, açúcar, tabaco e courama. Exatamente do que trata o livro Cultura e opulência do Brasil,  por suas drogas e suas minas, de André João Antonil, publicado na Europa em 1711. O livro teve fama, mas não sucesso. Grande parte dos exemplares impressos foi destruída em cumprimento a um veto e a um seqüestro régio. Segundo Taunay, 2 o reinado português temia que a obra chamasse a atenção de outras nações sobre as riquezas da colônia. A preocupação de frei Vicente, concretizada no decorrer dos séculos, foi retomada por José Bonifácio de Andrada e Silva, para quem a natureza tudo zera em nosso favor, enquanto nada zemos em favor dela. Embora armasse que o  brasileiro é por “natureza, clima e vícios coloniais” (Dolhnikoff, 2000:7),  preguiçoso, indolente e ignorante, Andrada acreditava na viabilidade do Brasil como nação, por ser um país (...) situado no clima o mais ameno e temperado do universo, dotado da maior  fertilidade natural, rico de numerosas produções, próprias suas, e capaz de mil outras (Andrada e Silva, 2000:40).

Tanta prodigalidade da natureza, no entanto, poderia signicar um empecilho  para a civilização.

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A pobrezA no pArAíso tropicAl Os brasileiros, para viverem, não têm quase necessidade de trabalhar: a natureza dá-lhes tudo de graça. A superstição, a ignorância e a preguiça não tem podido ainda tornar miseráveis os roceiros (idem ibidem).

Os “roceiros”, a “gente do campo” e os escravos que, com sua parcimônia no vestir e miséria no comer favoreceriam a vadiação foram responsabilizados  por José Bonifácio pela diminuição da riqueza pública. Problemas de um país no qual a facilidade da subsistência teria enfraquecido o gosto pelo trabalho e pela organização. A preocupação com o uso abusivo da natureza foi retomada por Joaquim  Nabuco, em 1883, que o considerava uma conseqüência do regime escravo. Em suas palavras, a escravidão (...) queima as orestas, minera e esgota o solo, e quan do levanta as suas tendas deixa após si um país devastado em que consegue vegetar uma população miserável de proletários nômadas (Nabuco, 2000:111).

Em 1905, o sergipano Manoel Bomm, deslocou o foco do problema. Muito mais grave do que nossa suposta relação de desperdício com a natureza seria, no seu entender, um perigoso discurso europeu sobre a incapacidade dos latino-americanos  para administrar seu território. A verdade é que tais nações consideram a América Meridional como um reino encantado de riquezas, e ao mesmo tempo consideram as populações que  por aqui vivem como absolutamente incapazes de fazer valer estas riquezas (Bomm, 1993:289).

O historiador inglês Thomas Burcke é um exemplo desse t ipo de interpretação, que tanto indignou Bomm em sua temporada européia. 3 Mesmo sem nunca ter  visitado o Brasil, no livro History of the English civilization (1845), Burcke armou que o brasileiro estava condenado à decadência. Em nenhum outro lugar há tão preciosos contrastes entre a grandiosidade do mundo externo e a pequenez do interno. E a mente acovardada por essa luta desigual não só foi incapaz de avançar, mas sem a ajuda estrangeira teria indubitavelmente regredido (Burcke apud Schwarcz, 2000:36).

A inuência do clima e da paisagem sobre a nossa formação como nação seria ainda discutida por décadas no Brasil. Capistrano de Abreu, em seu livro de estréia Capítulos de história colonial (1907), ao analisar a população amazônica concordou com a visão corrente sobre sua indolência. Reproduziu, inclusive, uma trova popular recolhida por frei João de São José, na época pombalina:

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Vida do Pará, Vida de descanso, Comer de arremesso , Dormir de balanço.4

É também à natureza pródiga que Alberto Torres, em 1915, creditou os sérios  problemas de organização do Brasil, sendo o principal deles a não necessidade de trabalhar. É de Alberto Torres a visão dos senhores de escravos e seus agregados como “semifeudais” e da população pobre como “forçados da vagabundagem”. A exuberância da oresta e a fartura da plantação em solo virgem (...) davam  para as larguezas do fausto doméstico, para as banalidades do semifeudalismo senhorial, para o sustento de fâmulos, de escravos, de apaziguados: todo um séqüito de parentes e de agregados, sem emprego e sem aptidão prossional (Torres, 1998:201).

Para Torres, era muito clara a relação entre as facilidades da subsistência e a impossibilidade de construção nacional.  Nós, povo imigrante para um continente virgem, que julgávamos imensamente e indenidamente rico; para o qual entramos como exploradores, extraindo frutos e avançando pelos sertões, nunca formamos a nossa sociedade (ibidem, p. 206).

“Numa terra radiosa vive um povo triste”. Assim começa o livro  Retrato do Brasil (1927), de Paulo Prado, que defende a tese de que o povo brasileiro é melancólico, em função de sua história, que teria sido marcada pela luxúria e pela cobiça. Para além da exuberância da natureza, Prado introduziu na reexão sobre o Brasil a exuberância sexual que o Novo Mundo representou para portugueses recém-saídos das trevas medievais. Tanto Prado quanto Gilberto Freyre, e tantos outros intérpretes do Brasil, dedicaram inumeráveis páginas para descrever o im pacto causado por índias nuas e escravas seminuas na libido portuguesa. O Brasil,  portanto, parecia oferecer tudo em excesso: matas, águas, sexo e riquezas. O esplêndido dinamismo dessa gente rude obedecia a dois grandes impulsos que dominaram toda a psicologia da descoberta e nunca foram geradores de alegria: a ambição do ouro e a sensualidade infreme que, como culto, a Renascença zera ressuscitar (Prado, 1997:153).

Depois de Paulo Prado, apenas Gilberto Freyre seria tão literário na tentativa

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de interpretar o Brasil. Apesar disso, para Darcy Ribeiro ele escreveu sobretudo a história “dos poucos, dos ricos, dos bonitos, dos mandantes” (Ribeiro, 2000:19). O  Nordeste de Freyre não teria sido “o do bode e paçoca, de securas e fomes” (ibidem,  p. 28), mas o Nordeste “do siri e do pirão, da cana e do massapé” (idem ibidem). Reforça seu argumento citando a seguinte denição dada por Freyre àquela região, em seu livro Nordeste (1937):

Bem alimentados na sociedade colonial, segundo Freyre, apenas senhores e escravos, estes últimos porque precis avam da comida para suportar o duro trabalho dos engenhos. 6 Quanto à população média, livre mas miserável, esta sempre fora e continuava a ser mal alimentada (ibidem, p. 107). Em busca de causas para tal estado de coisas encontrou respostas na pobreza do solo e na deciência da alimentação, em termos de qualidade e quantidade.

[Nordeste] de árvores gordas, de sombras profundas, bois pachorrentos, de gente vagarosa e às vezes arredondada quase em sanchopanças pelo mel do engenho, pelo peixe cozido com pirão, pelo trabalho parado e sempre o mesmo (...) (Freyre apud Ribeiro, 2000:28).

A deciência pela qualidade e pela quantidade é e tem sido desde o primeiro século o estado de parcimônia alimentar de grande parte da população. Parcimônia às vezes disfarçada pela ilusão de fartura que dá a farinha de mandioca intumescida pela água (ibidem, p. 114).

 No entanto, o mesmo Darcy Ribeiro reconhece que Freyre discorreu sábia e inovadoramente sobre as condições alimentares do Brasil colonial. É de Freyre a frase que dá título a este subitem do trabalho, questionando a Capistrano de Abreu, que teria se referido ao Brasil como “país de Cocagne” 5 no livro Tratado da terra e gente do Brasil .

Se a pobreza do solo escapa ao controle social ou à ação humana, armou Freyre, as outras causas apontadas poderiam ser suscetíveis de correção ou de controle. Tais problemas encontram explicação na monocultura, no regime de tra balho escravo e no latifúndio, que seriam os responsáveis pelo reduzido consumo de leite, ovos e vegetais, entre grande parte da população brasileira . Em Sobrados & mocambos(1936), Gilberto Freyre retomou esta questão descrevendo com detalhes os banquetes das casas-grandes mais ricas de Pernambuco, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Segundo Freyre, os europeus que visitavam o  país escandalizavam-se com a fartura de comida e bebida: “era tanta comida, que se estragava; no m, as saúdes cantadas” (Freyre, 1998b:81). No entanto, estas seriam exceções. O mais comum, armou, eram as casas-grandes onde

País de Cocagne, coisa nenhuma. Terra da alimentação incerta e vida difícil é o que foi o Brasil nos primeiros séculos! (Freyre, 2000:110).

A preocupação com a precariedade da alimentação é um dos aspectos menos conhecidos de Casa-grande & senzala (1933) para o grande público. No prefácio à primeira edição, Freyre creditou à monocultura latifundiária males profundos do  país, entre os quais o péssimo suprimento de víveres frescos, que teria obrigado grande parte da população a um regime de deciência alimentar, com lastimáveis conseqüências físicas. Freyre recorreu a textos de Anchieta e Nóbrega para conrmar sua te se de que os mantimentos da terra eram medíocres e muito mais caros do que em Portugal. Abundância, segundo Anchieta, só de doces e regalos. Nesta terra de “grandes excessos e grandes deciências” (ibidem, p. 89), a vida não era tão fácil como  poderia parecer. Se é certo que nos países de clima quente o homem pode viver sem esforço da abundância de produtos espontâneos, convém, por outro lado, não esquecer que igualmente exuberantes são, no país, as formas perniciosas de vida vegetal e animal, inimigas de toda a cultura agrícola organizada e de todo trabalho regular e sistemático. (...) Em tudo se metem larvas, vermes, insetos, roendo, esfuracando, corrompendo. Semente, fruta, madeira, papel, carne, músculos, vasos linfáticos, intestinos, o branco do olho, os dedos dos  pés, tudo ca à mercê de inimigos terríveis (ibidem, p. 90).

(...) o passadio era de macaxeira, de carne-seca, de farinha, de bolacha, de  bacalhau, casas onde não sobrava dinheiro para presunto nem para as latas de ervilha, os boiões de ameixa, as caixas de passa, os vinhos franceses (idem ibidem).

Freyre demonstrou como, nos sobrados, o problema do abastecimento de víveres era resolvido domesticamente. Os animais eram abatidos em casa e as frutas, a carne e o leite vinham do sítio. Como estava resolvido para as classes abastadas, o problema da alimentação, que atormentava as camadas mais pobres da população urbana, era ignorado. (...) a pobreza livre desde os tempos coloniais teve de ir se contentando, nos mocambos, nas palhoças, nos cortiços, com o bacalhau, a carne-seca e as batatas menos deterioradas que comprava nas vendas e quitandas (ibidem, p. 83).

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Mas o que cou mais conhecido das obras de Gilberto Freyre, principalmente de Casa-grande & senzala, foi uma visão da fartura da sociedade patriarcal brasileira. Dele são páginas inspiradas sobre a contribuição indígena e africana para a culinária brasileira e sobre os quitutes preparados pelas mucamas baianas: (...) doces secos, bolinhos de goma, sequilhos, confeitos e outras iguarias (...) mocotós, vatapás, mingaus, pamonhas, canjicas, acaçás, abarás, arroz-de-coco, feijão-de-coco, angus, pão-de-ló de arroz, pão-de-milho, rolete de cana, queimados (...) (Freyre, 2000:506).

Dos autores citados acima, defensores ou não da teoria da abundância, ca claro que o problema que os aigia não era a pobreza da população. Grosso modo, trataram do excesso de generosidade da natureza, que teria tornado desnecessária a luta pela sobrevivência em moldes racionais e dinâmicos. O determinismo geográco e climático foi questionado por algumas poucas vozes, como Bomm e Alberto Torres. Quanto a Gilberto Freyre, preocupou-lhe mais a qualidade nutricional da  população, inclusive das classes mais abastadas, do que a pobreza de grande parte da população. Quando criticou a monocultura latifundiária, o fez preocupado com o fato de que esta não permitia o plantio de verduras e frutas, necessárias para uma dieta saudável. Por trás da preocupação com a natureza, com certeza, havia a consciência de um território muito grande para poucos portugueses, até a chegada dos primeiros escravos. Conforme Nabuco, a escravidão transportou da África para o Brasil mais de dois milhões de africanos, cujos descendentes formariam pelo menos dois terços da população na época da campanha abolicionista. 7 Se o clima já era um problema  para o desenvolvimento da nação, a presença de tantos africanos, misturando seu sangue com portugueses e índios, desaaria todos os pri ncípios genéticos vigentes, como veremos a seguir.

1.2. Trs continentes num só homem: problemática raça brasileira

a

É vasta e já foi brilhantemente analisada a discussão sobre raça em nosso país. O Brasil do nal do século XIX era considerado pelos europeus um caso único e singular de miscigenação racial. Gustave Aimard, W. Adams, Louis Agassiz, Arthur de Gobineau e tantos outros foram unânimes em condenar a mestiçagem, que estaria apagando as melhores qualidades intrínsecas de brancos, negros e índios e produzindo indivíduos decientes física e mentalmente, mulatos viciados e “assustadoramente feios” (Gobineau apud Schwarcz, 2000:13) . O viajante norte-americano Herberth H. Smith, percorrendo o Sul do Brasil na

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década de 1880, assim se referiu a uma família extremamente pobre que encontrou em uma ilha em frente à cidade de Porto Alegre: Hão de desapparecer em grande parte, à medida que da terra se forem apossando gentes mais industriosas; hão de submergir-se e morrer diante da onda de immigração européa. Pois que morram! É o único serviço que podem  prestar ao paiz, e a lei inexorável do progresso determinou sua extincção.  Não lhes contesto sua felicidade presente, e seu viver pittoresco têm certo encanto, não há duvida. Também uma árvore morta é pitoresca, mas prero a viva (Smith, 1922:43).

Os pensadores brasileiros, por sua vez, não cariam muito atrás da avaliação de Smith. Como já demonstrou com excelência Lil ia Schwarcz (2000), anos depois de terem alcançado grande sucesso na Europa, as teorias raciais tiveram acolhida entusiástica por parte das elites intelectuais do país, já adeptas de um ideário  positivo-evolucionista. Conforme a autora, as discussões sobre raça e sangue ajudaram a justicar teoricamente a aguda diferenciação social existente, ocultando e justicando o “pobre” no “negro” ou no “mestiço”. Em meio a um contexto caracterizado pelo enfraquecimento e nal da escravidão, e pela realização de um novo projeto político para o país, as teorias raciais se apresentavam enquanto modelo teórico viável na justicação do complicado jogo de interesses que se montava. Para além dos problemas mais  prementes relativos à substituição da mão-de-obra ou mesmo à conservação de uma hierarquia social bastante rígida, parecia ser preciso estabelecer critérios diferenciados de cidadania. É nesse sentido que o tema racial, apesar de suas implicações negativas, se transforma em um novo argumento de sucesso para o estabelecimento das diferenças sociais (Schwarcz, 2000:18).

Os abolicionistas, no entanto, reetiram sobre tais questões com uma outra  percepção política, que questionava sobretudo a raça branca, no contexto da campanha na qual estavam envolvidos. José Bonifácio acreditava que o Brasil se tornara independente mais por obra dos céus e de nossa posição geográca do que pelo esforço de nossos políticos, mas que jamais seríamos livres enquanto persistisse a escravidão. Indignava-lhe a argumentação dos escravocratas de que com a abolição faltariam alimentos para o consumo da população. Para contrapô-la, utilizou como elemento de comparação a realidade de outros países. Os lavradores da Índia são porventura mais robustos do que um branco, um mulato, um cabra do Brasil? Não por certo, e todavia não morre aquele povo de fome (Andrada e Silva, 2000:18).

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Para Bonifácio, a estagnação dos engenhos e das lavouras estava diretamente ligada à inércia de seus proprietários, viciados num trabalho escravo que lhes garantia a alimentação e o sustento. Sobre este mesmo tema, Nabuco foi ferino durante a campanha abolicionista. Que interesse ou compaixão pode m inspirar ao mundo dez milhões de homens que confessam que, em faltando-lhes o trabalho forçado e gratuito de poucas centenas de milhares de escravos agrícolas, entre eles velhos, mulheres e crianças, se deixarão morrer de fome no mais belo, rico e fértil território que até hoje nação alguma possui? (Nabuco, 2000:149).

 Nabuco considerava a escravidão “uma mancha de Caim que o Brasil traz na fronte” 8 (ibidem, p. 23). Para além do sentido moral da expressão bíblica, o autor  referiu-se também à “nódoa que a mãe-pátria imprimiu na sua própria face, na sua língua” (ibidem, p. 106), ou seja, os traços físicos da raça negra e a inuência das línguas africanas em nosso vocabulário. Mas este não foi um problema central  para Nabuco. Para ele, o mau elemento da população não era a raça negra, mas essa raça reduzida ao cativeiro, fazendo uma defesa eloqüente da mesma: “A raça negra nos deu um povo (...). A raça negra fundou, para outros, uma pátria que ela  pode, com muito mais direito, chamar sua” (ibidem, p. 37). Uma vez feito o estrago, era chegada a hora da reparação. Emancipar os escravos e seus lhos seria apenas o começo. A grande tarefa estava por vir: “apagar  todos os efeitos de um regímen que (...) é uma escola de desmoralização e inércia, de servilismo e irresponsabilidade” (ibidem, p. 27), através de um processo de educação que desmontasse a lenta estraticação de 300 anos de cativeiro. Existe em Nabuco uma relação de causa e conseqüência entre a escravidão e a pobreza do país, pouco explorada por seus comentadores. O regime escravo, ao aumentar  a dependência dos homens pobres e livres em relação a uma elite escravocrata e aristocrática, teria sido responsável pela ruína econômica do país e de seu povo. Muito diferentemente dos darwinistas sociais da época, os abolicionistas não temiam a mestiçagem. Nabuco jamais rejeitou os cruzamentos raciais, uma vez que acreditava no desenvolvimento vigoroso dos mestiços. Lamentou, isto sim, a forma como estes cruzamentos se deram: por meio do estupro, da promiscuidade nas senzalas e pela negação de todos os direitos, inclusive da liberdade, aos lhos nascidos de escravas. Os males eram da escravidão e seriam passíveis de serem contornados por meio de reformas, associações e educação, de onde surgiria um  povo inteligente, patriota e livre. De Darwin, Nabuco gostava de citar a frase que o naturalista anotara em seu diário ao deixar o país: “Deixamos por m as praias do Brasil. Graças a Deus, nunca mais hei de visitar um país de escravos” (ibidem, p. 162). Sobre Darwin,

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diria também Manoel Bomm, em 1905: “Pobre Darwin! Nunca supôs que a sua obra genial pudesse servir de justicação aos crimes e às vilanias de negreiros e de algozes de índios!” (Bomm, 1993:249). Tais comentários buscavam atingir os defensores da inferioridade racial de negros e índios, que costumavam invocar como argumento para justicar sua eliminação a teoria evolucionista de Darwin: na luta pela vida, através da seleção natural, só os mais aptos sobreviveriam. De Darwin também adotaram o suposto da diferença e da hierarquia entre as raças. Do evolucionismo social, como explica Schwarcz, adotaram a noção de que as raças humanas encontravam-se em constante aperfeiçoamento, rejeitando a idéia de que a humanidade fosse una: Buscava-se, portanto, em teorias formalmente excludentes, usos e decorrências inusitados e paralelos, transformando modelos de difícil aceitação social em teorias de sucesso (Schwarcz, 2000:18).

 Nina Rodrigues, que escreveu Africanos no Brasil , publicado em 1888, embora seja considerado “um dos nossos primeiros antropólogos avan la lettre” (ibidem, p. 273), ao buscar recuperar a origem das populações escravas africanas e descrever  seus costumes e línguas, também foi um crítico ferrenho da mestiçagem, 9 na qual  percebia “a falência da nação e sua suprema degeneração” (idem ibidem). Euclydes da Cunha, em Os sertões, publicado quase 20 anos após O abolicionismo, de Nabuco, e 14 anos após a libertação dos escravos, ainda duvidava da existência de um tipo antropológico brasileiro. Canudos, no seu entender, teria resultado do choque entre dois tipos de mestiçagem, a litorânea e a sertaneja. Embora considere esta última superior, pela ausência de componentes africanos, Euclydes foi implacável em seu julgamento sobre a mestiçagem. De sorte que o mestiço – traço-de-união entre as raças, breve existência individual em que se comprimem esforços seculares – é, quase sempre, um desequilibrado. Foville compara-os, de modo geral, aos histéricos. Mas o desequilíbrio nervoso, em tal caso, é incurável: não há terapêutica para este embate de tendências antagonistas, de raças repentinamente aproximadas, fundidas num organismo isolado. (...) E o mestiço – mulato, mameluco ou cafuso – menos que um intermediário, é um decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens, sem a altitude intelectual dos ancestrais superiores (Cunha, 1998:183).

Manoel Bomm, diversamente, três anos após Euclydes da Cunha, categorizou o sertão nordestino como “terra de heróis”. Mais do que isso, criticou claramente a teoria das raças inferiores, que considerava “(...) um sosma abjeto do egoísmo humano, hipocritamente mascarado de ciência barata, e covardemente aplicado à

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exploração dos fracos pelos fortes” (Bomm, 1993:243). Bomm foi um defensor ardoroso da força e da cordialidade das populações do interior, principalmente por suas técnicas coletivas de trabalho e pelo uso comum de suas posses. Dêem-lhes interesses superiores, e dali nascerão sociedades estimáveis. Fortes e vigorosos como são, eles saberão aproveitar ultimamente as energias e resistências que possuem, e que os tornam efetivamente superiores aos colonos que se fazem recrutar nos refugos das civilizações corrompidas (ibidem, p. 267).

Bomm foi intelectualmente massacrado por Silvio Romero, e seu livro cairia no esquecimento. Eram tempos outros e a mestiçagem ainda teria muita força como  padrão explicativo para os males do país. Mais fama e sucesso teve Capistrano de Abreu com seu Capítulos da história colonial , lançado dois anos após o livro de Bomm. Embora seja considerado “acanhado no tema da miscigenação” (Vainfas 1999:177), Capistrano a ela dedicou um parágrafo signicativo. Os mulatos, gente indócil e rixenta, podiam ser contidos a intervalos por  atos de prepotência, mas reassumiam logo a rebeldia originária. Suas festas, menos cordiais que as dos negros, não raro terminavam em desaguisados; dentre eles saíam os assassinos e os capangas prossionais. Crescendo em número, desconheceram e, anal, extinguiram as distinções de raça e foram  bastante fortes para romper com as formas de convencionalismo vigente e viver como lhes pedia a índole irrequieta. Para o nivelamento concorreu so bretudo a parte feminina, com seus dengues e requebros lascivos (Capistrano de Abreu, 1998:214-215).

A publicação, em 1918, de  Populações meridionais do Brasil , de Oliveira Vianna, apenas dois anos após a divulgação dos resultados de algumas expedições cientícas ao interior, demonstra que as teorias racistas permaneceriam ainda bas tante fortes no país. Em seu livro Vianna se propõe a interpretar a história do Brasil e a estabelecer a caracterização social de seu povo, à luz da antropogeograa, da antropossociologia, da psicosiologia, da psicologia coletiva e da ciência social. Partindo do princípio de que os mestiços seriam um produto histórico e su balterno do latifúndio, o autor discute a “antropogênese dos mulatos”, os “mulatos superiores” e “inferiores”, a “antropossociologia dos mestiços” (“tipos superiores e tipos inferiores”), a instabilidade moral dos “mestiços” e sua psicologia contraditória. Isto feito, ressalta a importância da composição ariana da aristocracia rural na evolução da nossa mentalidade coletiva, e a conseqüente preponderância

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do espírito ariano em nosso povo e em nossa história. Trabalhando com conceitos como “seleção regressiva de atavismos étnicos”, “depuração” e “eliminação”, Vianna buscou respaldo cientíco para demonstrar  que quando duas raças se misturam, seus mestiços cam sujeitos a “golpes de atavismo” que os fariam retornar, no m de algumas gerações, a um dos típicos geradores, porém com preponderância de caracteres degenerescentes. Esse regresso ao tipo das raças originárias é uma lei antropológica, veri cável nos meios étnicos heterogêneos e, principalmente, num meio étnico, como o nosso, oriundo de mestiçagens múltiplas. (...) Tendo de harmonizar  as duas tendências étnicas, que se colidem na sua natureza, acabam sempre  por se revelar uns desorganizados morais, uns desarmônicos psicológicos, uns desequilibrados funcionais. (....) O sangue disgênico que lhes corre nas veias, atua neles como a força da gravidade sobre os corpos soltos no espaço: os atrai para baixo com velocidade crescente, à medida que se sucedem as gerações. Os vadios congênitos e incorrigíveis das nossas aldeias, os grandes empreiteiros de arruaças e motins das nossas cidades são os espécimens mais representativos desse grupo (Vianna, 1952:156-157).

A assimetria física dos mestiços, dessa forma, seria acompanhada por uma assimetria moral, que faria dos mesmos indivíduos sem coordenação e incoerentes, apáticos e impulsivos ao mesmo tempo. Falta-lhes, arma Vianna, senso de continuidade, energia de querer, capacidade de esperar. Em função disso, o autor  louvou os preconceitos de cor e de sangue que teriam reinado nos três primeiros séculos da história do Brasil. Considerou-os “admiráveis aparelhos seletivos”, por  impedirem a ascensão dos “mestiços inferiores”, “que formigam nas subcamadas da população dos latifúndios” (ibidem, p. 156), às classes dirigentes. O papel central que a discussão racial assumiu na virada do século XIX para o XX em diversas instituições cientícas nacionais, 10 analisado por Schwarcz, demonstra a importância e permanência do tema no imaginário intelectual do país. Da frenologia dos museus etnográcos à leitura el dos germânicos da Es cola de Recife, passando pela análise liberal da Escola de Direito paulista ou pela interpretação “católico-evolucionista” dos institutos [históricos e geográcos], para se chegar ao modelo “eugênico” das faculdades de medicina, é possível rever os diferentes trajetos que uma mesma teoria percorre (Schwarcz, 2000:19).

Durante, pelo menos, 60 anos (1870-1930), como arma Schwarcz, um grupo importante de cientistas, políticos, juristas e intelectuais assumiu um modelo racial  positivista e determinista para explicar e modicar os destinos da nação. Nesses

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modelos, a pobreza seria uma constante coadjuvante, senão uma decorrência da mestiçagem das raças antagônicas. Acompanha este debate, e o supera no tempo, outro que pode ser resumido na famosa declaração de Louis Couty: “o Brasil não tem povo”. 11 A raça gerada no Brasil e a organização social que deveria caracterizar um “povo”, apareceram em grande parte das reexões deste período como incompatíveis. Capistrano de Abreu resumiu esta incompatibilidade em uma frase: Examinando supercialmente o povo, discriminam-se logo três raças irredutíveis, oriunda cada qual de continente diverso, entre os quais nada favoreceu a medra de sentimentos de benevolência (Capistrano de Abreu, 1998:148).

1.3. O povo brasileiro: entre os “proletários nômadas” de Joaquim Nabuco e as “ormigas que n ão trabalham” de Manoel Bomfm Quase impossível identicar, nos autores em análise, quem era o povo bra sileiro no nal do século XIX e início do século XX. Não o eram, por certo, os senhores das casas-grandes, estâncias e sobrados, com suas parentelas e agregados. Muito menos os escravos, que sequer eram considerados cidadãos. Os “proletários nômadas” a que se refere Joaquim Nabuco têm uma presença extremamente difusa nesta sociedade de senhores e escravos. José Bonifácio, como vimos, era extremamente pessimista em relação ao Brasil e acreditava que aqui tudo deveria ser construído, das instituições ao povo. Como bem percebeu Thomaz (2000), para Bonifácio a nação estaria atrelada à ação do Estado, que a deveria preceder. Ao Estado, por sua vez, caberia administrar  adequadamente um “povo” que ainda seria uma promessa. Por isso sua defesa intransigente de reformas que acabassem com a heterogeneidade racial da população (via mestiçagem), “que criaria um repertório cultural comum, em que prevaleceria a superioridade branca, sendo portanto também um instrumento civilizador” (Dolhnikoff, 2000:8) e a colocasse na órbita da justiça. No seu projeto civilizatório, o negro africano deveria ser transformado num colono e incorporado ao corpo político da nação, no sentido de formar “um todo homogêneo e compacto”, brasileiro . Vale registrar que a distribuição de terras para índios e negros libertos, de forma a que se tornassem pequenos proprietários, foi um dos caminhos apontados por José Bonifácio para a construção da nação. 12 Referências ao povo (excluindo senhores, escravos e índios) só são encontradas em algumas das “lembranças avulsas” do autor. Este fez alusão a “mulatos e brancos inferiores” (Andrada e Silva, 2000:81) que viviam na miséria e na indolência. Sugeriu que fossem empregados nas fábricas e na cultura do campo, “com prêmio e castigo” (idem ibidem). 13

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O autor não desenvolveu seu argumento, mas o concatena com a necessidade de estimular “gente pobre do reino” e “estrangeiros ativos” para virem para o Brasil, onde ganhariam terras e meios para explorá-las. Embora não seja explicitado pelo autor, chama a atenção que, num mesmo raciocínio, ele rera-se à população local como “mulatos e brancos inferiores” que vivem “na miséria e na indolência” e aos europeus como “gente pobre e ativa”. Há uma honradez presumível na pobreza dos segundos que não aparece na caracterização dos brasileiros. Quando se refere genericamente a “brasileiros”, Bonifácio por vezes exclui negros e mulatos, considerando como parte da referida categoria apenas os portugueses e seus descendentes. Estes não teriam o gosto pelo trabalho, que era realizado pelos negros e mulatos ou pelos “pobres de Portugal, que chegam de novo e ainda não estão afeitos à preguiça e orgulho bestial” (ibidem, p. 99). Mais uma vez os pobres de Portugal aparecem de forma positiva, ao menos aqueles que ainda não se “abrasileiraram”. Fica uma impressão de que, para Boni fácio, existiria uma pobreza digna, ligada ao trabalho, e outra desprezível, que prefere chamar  de “miséria”, ligada à preguiça. Só assim faria sentido sua declaração, também “avulsa”, de que “liberdade, verdade e pobreza são quase sempre companheiros inseparáveis” (ibidem, p. 189). Miriam Dolhnikoff resume da seguinte maneira o dilema de Bonifácio, que o levaria ao ostracismo: O Estado e o Parlamento deveriam criar a nação e a cidadania, por meio de reformas profundas. Mas para isso era preciso uma elite cidadã, com a qual Bonifácio não pode contar. Ofereceu assim um futuro mais glorioso a uma elite que desejava apenas um presente mais lucrativo. E foi facilmente silenciado (Dolhkinoff, 2000:12).

Carlos Guilherme Mota, comentando igualmente o destino político de José Bonifácio, acrescentaria: Fez-se a independência, mas os escravos e índios continuariam no limbo de sua “incorrigível barbaridade”, sem saber exatamente qual era seu lugar no mundo que o português criou... (Mota, 1999:95).

Tavares Bastos, jornalista e político alagoano, em trabalho sobre a descentralização do ensino, publicado em 1862, defendeu a educação da juventude e um governo de sábios para “regenerar” o Brasil. Seu paradigma de povos saudáveis são os ingleses, os norte-americanos e os alemães. Mais do que exemplos para “nosso povo semibárbaro”, estes deveriam emigrar para o Brasil, trazendo para cá a pureza de seu sangue.

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A pobrezA no pArAíso tropicAl Dai ao menino da cidade e do campo a chave da ciência e da atividade, a instrução elementar completa, dai-lhe depois as noções das ciências físicas (...) e o jovem será um cidadão útil à pátria, um industrioso, um empresário, um maquinista, como é o inglês, como é o norte-americano, como é o alemão; será um homem livre e independente, e não um desprezível solicitador de empregos públicos, um vadio, um elemento de desordem. Entre a sionomia viva e animada de um povo assim constituído, e a face triste e descarnada do nosso povo semibárbaro das províncias, que diferença enorme, meu amigo!  Não pode ser mais antipático ao estrangeiro do que o atraso moral da nossa  população.Sem os emigrantes da Alemanha e da Grã-Bretanha, nunca o Brasil  progredirá; é preciso que o sangue puro das raças do norte venha desenvolver  e recomeçar a nossa raça regeneradora (Tavares Basto, 1998:662).

Joaquim Nabuco, como já vimos, creditou à raça negra a existência de um  povo brasileiro. Além disso, defendeu que apenas com o m da escravidão este  povo passaria a viver uma vida normal, uma vez que seria, nalmente, criado um mercado de trabalho no país. O que havia até então, além de senhores e escravos, era (...) uma massa inativa (...) vítima do monopólio da terra e dessa maldição do trabalho, os brasileiros em geral que ela condena a formarem, como formam, uma nação de proletários (Nabuco, 2000:91).

Cabe ressaltar que Nabuco utiliza a expressão “proletários” com o sentido que ela tinha na Roma antiga, ou seja, para referir-se aos homens pobres, que não eram considerados úteis para a sociedade. No Brasil do nal do século XIX,  Nabuco os identica com os habitantes do campo. Cita, para melhor descrevê-los, uma representação da Assembléia Provincial do Rio de Janeiro, de 1880, sobre a  população rural. É desolador o quadro que se oferece às vistas do viajante que percorre o interior da província, e mais precária é sua posiçã o nos municípios de serra abaixo, onde a fertilidade primitiva do solo já se esgotou e a injúria deixou que os férteis vales se transformassem em lagoas profundas que intoxicam todos aqueles que delas se avizinham. Os infelizes habitantes do campo, sem direção, sem apoio, sem exemplos, não fazem parte da comunhão social, não consomem, não produzem. Apenas tiram da terra alimentação incompleta quando não encontram a caça e a pesca das coitadas e viveiros dos grandes  proprietários. Destarte são considerados uma verdadeira praga, e convém não esquecer que mais grave se tornará a situação quando a esses milhões de  párias se adicionar o milhão e meio de escravos, que hoje formam os núcleos das grandes fazendas (ibidem, p. 111, grifos meus).

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Percebe-se uma representação da população pobre não-escrava como formada  por milhões de indivíduos e maior que a população cativa. Vivendo nos espaços não ocupados pelo latifúndio escravocrata, sem contato com o Estado ou com os núcleos urbanos, absolutamente fora do mercado, produziriam apenas para subsistência. Teriam, todavia, uma relação que não ca clara com os grandes proprietários, em cujas terras caçam ou pescam. São, ainda, classicados como “párias”, ou seja, indivíduos desprovidos, por nascença, de seus direitos sociais, e como “praga”, o que pode ter dois sentidos, doença ou erva daninha, ambos exigindo controle, tratamento ou eliminação.  Não é à toa que o Nabuco abolicionista seria um ferrenho crítico do sistema de latifúndios, o qual no seu entender só faria dividir as províncias em “colônias  penais, refratárias ao progresso” (ibidem, p. 113), não trazendo benefício algum à região “nem à população livre que nela mora por favor dos donos da terra, em estado de contínua dependência” (idem ibidem). Percebe-se de suas observações que a população livre vivia “de favor”, como morador ou agregado, nas terras dos grandes proprietários e mantinha com eles relações de dependência. Na avaliação de Nabuco, diante dessa situação e da inexistência de uma classe média, em breve teríamos uma nação apenas de proletários. A fazenda ou o engenho serve para cavar o dinheiro que se vai gastar na cidade, para a hibernação e o aborrecimento de uma parte do ano. A terra não é fertilizada pelas economias do pobre, nem pela generosidade do rico; a  pequena propriedade não existe senão por tolerância, não há classes médias que fazem a força das nações. Há o opulento senhor de escravos, e proletários. A nação, de fato, é formada de proletários, porque os descendentes dos senhores logo chegam a sê-lo (ibidem, p. 117).

É de Nabuco a descrição da vida da população pobre do país, exemplo raro de qualicação de um estado de penúria que, até então fora apenas esboçado pelos autores lidos: A população vive em choças onde o vento e a chuva penetram, sem soalho nem vidraças, sem imóveis nem conforto algum, com a rede do índio ou o estrado do negro por leito, a vasilha de água e a panela por utensílios, e a viola suspensa ao lado da imagem (idem ibidem).

 Nabuco, talvez em sua única reexão de etnógrafo, descreveu um lar brasileiro onde a pobreza material se fundia com traços culturais inconfundíveis: a cama era herança negra ou indígena, a imagem era de um santo católico e português, assim como a viola, luxo que demonstrava uma característica pouco explorada dessa

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 população. Talvez Nabuco tenha feito referência à mesma como símbolo do ócio, mas poderíamos identicá-la como símbolo de uma diversicação que não aparece na maior parte das referências a esta população. Abro um parêntese para um raro depoimento de um brasileiro “pobre” da época, registrado na história graças ao visconde de Taunay, que percorreu o Paraná nos últimos dois ou três anos da década de 1890. Maravilhado com as casas e as  plantações dos imigrantes alemães, italianos e poloneses, Taunay questionou aos nacionais porque não seguiam o exemplo dos estrangeiros, obtendo a seguinte resposta: “Não sou imbicioneiro como esses estrangeiros, que andam por ahí” (Taunay, 1928:102-103). Percebe-se no depoimento do “caboclo” paranaense (como é chamado por  Taunay), um posicionamento rme contra uma forma de relacionamento com as coisas do trabalho que lhe parecia moralmente condenável. Mas Nabuco, diferentemente de Taunay, não escreveu um livro de reminiscências de viagem. O abolicionismo é um documento político, e cada linha do mesmo objetiva o convencimento da população e do governo. Seguindo sua descrição da  população pobre, explicou que, no caso dos que vivem nas vilas do interior e que não têm emprego nem negócio, as casas eram semelhantes às palhoças miseráveis do homem do campo. No caso das populações pobres urbanas, Nabuco se referiu a “bairros da pobreza” e a “antros africanos” e explorou sobremaneira o contraste das condições materiais dos mesmos com o luxo das residências das classes abastadas.  Nas capitais de ruas elegantes e subúrbios aristocráticos, estende-se, como nos Afogados no Recife, às portas da cidade, o bairro da pobreza com sua linha de cabanas que parecem, no século XIX, residências de a nimais, como nas calçadas mais freqüentadas da Bahia, e nas praças do Rio, ao lado da velha casa nobre, que fora de algum antigo morgado ou de a lgum tracante enobrecido, vê-se o miserável e esquálido antro africano, como a sombra grotesca dessa riqueza efêmera e do abismo que a atrai (Nabuco, 2000:117).

Para Nabuco, a riqueza gerada pelo açúcar e pelo algodão do Nordeste ou  pela borracha do Amazonas era uma ilusão que não resistiria a um estudo mais  profundo ou a observação de seus contrastes. Encontraríamos, então, um povo escravo de um território que não controlava, analfabeto e a cujos olhos o trabalho era desonra, “indiferente a todos os sentimentos, instintos e paixões e necessidades que fazem dos habitantes de um mesmo país, mais do que uma simples sociedade  – uma nação” (ibidem, p. 118).  Nabuco localizou a população pobre do país em três áreas geográcas: “in terior”, “orlas das capitais” e “páramos do sertão”. Onde estivesse, no entanto, esta população estaria sofrendo os efeitos da escravidão: dependência aos grandes

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 proprietários de terra, miséria e ignorância. Faltava-lhe terra para cultivar e casa  própria para morar. Também se ressentia de respeito e proteção para suas famílias. Acostumada a considerar o trabalho no campo como trabalho de escravos, a po pulação livre o rejeitava. No caso especíco dos alforriados, buscavam segundo  Nabuco aumentar a distância que os separa da senzala não fazendo livremente o que antes faziam forçados. Quanto aos milhões de trabalhadores livres do país, para Nabuco, estes nunca teriam tido lugar na sociedade patriarcal brasileira. Como “nômadas” e “mendigo sem ocupação xa”, são denidos sobretudo pela negação, “numa condição in termediária, que não é o escravo, mas também não é o cidadão” (idem ibidem).  Nabuco descreve as casas desses trabalhadores como tendo (...) quatro paredes, separadas no interior por uma divisão em dois ou três cubículos infectos, baixas e esburacadas, abertas à chuva e ao vento, pouco mais do que o curral, menos do que a estrebaria.(...) É nesses ranchos que vivem as famílias de cidadãos brasileiros! (idem ibidem).

Mas não seriam só habitacionais os problemas dos brasileiros, segundo Na buco. Havia ainda a péssima alimentação, composta basicamente por farinha de mandioca, e a indisponibilidade de terras para plantar. Ao descrever de que forma essas famílias despossuídas foram se internando no território brasileiro, sempre que possível buscando aderir às terras de algum engenho ou fazenda, dos quais se tornavam dependentes, Nabuco dene a situa ção social da população livre brasileira como a de uma população que vivia nos interstícios das propriedades agrícolas: Foi essa a população que se foi internando, vivendo como ciganos, aderindo às terras das fazendas ou dos engenhos onde achava agasalho, formando-se em pequenos núcleos nos interstícios das propriedades agrícolas, edicando as suas quatro paredes de barro onde se lhe dava permissão para fazê-lo, mediante condições de vassalagem que constituíam os moradores em servos da gleba (ibidem, p. 122).

Mesmo vivendo nos interstícios, essa não era uma população livre. Segundo  Nabuco, diferentemente dos escravos que fugiam para formar quilombos, o mais distante possível das grandes propriedades, a população livre empobrecida precisava  prestar vassalagem aos poderosos fazendeiros para se estabelecer nas bordas de suas piores terras. Ali, armou Nabuco, vegetava uma classe que formava a maior   parte da população brasileira, miserável e desqualicada.

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A pobrezA no pArAíso tropicAl  Não se trata de operários, que, expulsos de uma fábrica, achem lugar em outra; nem de famílias que possam emigrar, nem de jornaleiros que vão ao mercado de trabalho oferecer os seus serviços; trata-se de uma população sem meios, sem recurso algum, ensinada a considerar o trabalho como uma ocupação servil, sem ter onde vender os seus produtos, longe da região do salário – se existe esse El Dorado, em nosso país – e que por isso tem que resignar-se a viver e criar os lhos, nas condições de dependência e miséria em que se lhes consente vegetar (idem, p. 127).

Com sua capacidade de observar e reetir, Nabuco colocou no mapa do país e da sociedade brasileira uma população até então esquecida “nos interstícios” das classes abastadas. E o fez com uma intenção política bastante clara: rearmar  a necessidade de grandes reformas no país, das quais resultaria “um povo forte, inteligente, patriota e livre” (ibidem, p. 170). Retomemos um pouco as declarações de Couty sobre o povo brasileiro, feitas no nal do século XIX. Não se referia ele aos índios, que considerou “inúteis”, nem aos escravos. Da população restante, que estimava em nove milhões de  pessoas, cerca de 500 mil pertenciam a famílias de proprietários de escravos, assim nomeadas: fazendeiros, advogados, médicos, engenheiros, empregados, administradores e negociantes. O povo – o tal que não existe – seria formado  pelos seis milhões de habitantes que viviam no espaço compreendido entre a classe dirigente e os escravos. Seis milhões de pessoas que, para Couty, “nascem, vegetam e morrem sem ter quase servido a sua pátria” (apud Romero 1910:389). Tais pessoas, que identicou como os “agregados” de fazendas, “caipiras”, “matutos”, e “caboclos” do campo e como os “capangas, capoeiras, vadios” e ébrios das cidades, foram acusadas de não poss uírem noção de economia nem de trabalho organizado. Destes, uns dois milhões, por qualidades pessoais de inteligência e disposição, estariam na condição de negociantes, empregados ou criados. Mas, por  mais que se esforçassem, dicilmente se enquadrariam no modelo etnocêntrico de  povo de Couty.

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te desfavorável do sertanejo, Euclydes não conseguiu escapar aos determinismos raciais e às teorias evolucionistas em voga no seu tempo. Acreditava que havíamos invertido a ordem natural das coisas e que colocáramos a evolução biológica na frente da evolução social, e vaticinou: “Estamos condenados à civilização. Ou  progredimos, ou desaparecemos” (Cunha, 2000:64-65). Freyre, ao comparar Os sertões com Minha formação, de Nabuco, armou que Euclydes foi extremamente talentoso ao mostrar para a opinião pública nacional um Brasil até então desconhecido, um Brasil sertanejo, “árido, hirto e angustiado”, em contraste com um Brasil adoçado “pelo açúcar e pelo negro” (F reyre, 1998:22). Contemporâneo de Euclydes, Manoel Bomm teve outros olhos para a “massa  popular”. Ampliando a concepção de Nabuco, defendeu que a sociedade brasileira, sob o ponto de vista econômico, era composta de “três categorias de gente”: os escravos, os que vivam à custa dos escravos e os miseráveis. Como Nabuco, situou essa população nos espaços sociais e geográcos existentes entre as outras duas categorias, de escravos e senhores. Uma população de miseráveis, que germinou entre uma e outra, vivendo sem necessidades, como o selvagem primitivo, ignorante como ele, imprevidente, descuidosa, apática, nula (Bomm, 1993:140, grifo meu).  Nos interstícios dessa malha de feudos, uma população de mestiçagem, produto de índios e negros, negras e refugos de brancos, indígenas e escravos revéis, uma mescla de gente desmoralizada pela escravidão ou animada de rancores, uma população vivendo à margem da civilização, contaminada de todos os seus vícios e defeitos, sem participar de nenhuma de suas vantagens (ibidem, p. 144, grifos meus).

Bomm, em três frases, defendeu esta população da acusação corrente de pouco amor ao trabalho, lembrando que a natureza lhe dava um sustento que possibilitava sua autonomia em relação à exploração escravocrata vigente.

(...) massas fortemente organisadas dos livres productores agrícolas ou industriaes, que, nos povos civilisados são a base da ordem e da riqueza (...) massas dos eleitores conscientes, sabendo votar e pensar, capazes de imporem aos governos uma direcção denida (idem ibidem).

O calor brando de um céu benigno, a ferocidade dos rios e das selvas garantiam-lhe a existência. E queriam que ele se fosse meter nos eitos, pedir para trabalhar e engordar os senhores, pelo preço de uma medida de farinha e uma libra de carne! ... Condenam-no, porque ele – o trabalhador nacional – não ia disputar a escravidão ao escravo! (ibidem, p. 140).

Euclydes da Cunha, no início do século XX, após testemunhar, como corres pondente de um jornal carioca, a ebulição do sertão baiano na região de Canudos, foi um cético em relação às expectativas de Nabuco sobre o povo brasileiro. Muito  já se escreveu sobre a ambigüidade de Euclydes em Os sertões. Ao mesmo tempo em que descreveu a agilidade, a força e a capacidade de sobrevivência num ambien-

Além disso, para Bomm, se não trabalhavam é porque não sabiam trabalhar  nem conheciam o valor do trabalho. Como exemplo, usou um sertanejo em seu cotidiano:

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Um cabra do sertão do Norte vive tão fora da civilização, vive tão parcamente, satisfaz-se com tão pouco, que não sente necessidade de morrer de fadiga. Para que esbofar-se da manhã à noite, tangendo uma enxada de dois quilos, num massapé rebelde, se ele pode viver sem isto, se não saberia, sequer, o que fazer do preço desse trabalho? Como ter amor ao trabalho, quem não vê outra  perspectiva, se não a enxada, o machado, a foice, de sol a sol, pelo salário miserável de 800 ou 1$000 réis? Não; em tais condições, ele não trabalha, não trabalhará nunca, a não ser que o escravizem. Ninguém trabalharia. (...) Seria muito curioso que o caboclo, cujo organismo físico e moral se satisfaz com uma xícara de farinha, uma raiz de aipim, um naco de requeijão, uma camisa, uma viola, um pandeiro e uma faca – que esse caboclo vá estafar-se, vender por uma miséria o seu labor ao fazendeiro ocioso, para ter o prazer  e o orgulho de ser elogiado pelos inconseqüentes das classes dirigentes (...) (ibidem, p. 265-266).

 Nesta reexão de sensibilidade sociológica – ou antropológica, como gostaria Darcy Ribeiro – Bomm revira pelo avesso as argumentações correntes sobre o  parasitismo da população pobre. Ao fazê-lo, resgata para a mesma a capacidade de discernir e de tomar posições, de rir e de brincar e também de brigar. Referindo-se ao momento histórico em que vivia, discorre longamente sobre o interior do  país e seus arraiais, povoados e restos de aldeamento. Neles, arma, se acumulam os casebres de sapé, onde a população “vive como formigas, formigas que não trabalham” (ibidem, p. 266). Com a expressão “formigas que não trabalham”, Bomm procurou explicar  a efervescência da vida em comum que identicou na população interiorana, para quem, na sua concepção, o solo, o rio, o mato e o trabalho eram compartilhados. Ao exemplicar este aspecto de seu cotidiano, acabou demonstrando que se trabalhava, e muito, nos arraiais do Brasil. Quando um planejou uma roça, convida os outros a um ajuntamento; vêm até os de uma légua de distância; marcham todos contra o mato e põem-no embaixo num dia, que é um dia de festa; ao cair da tarde, esbofados, roucos de cantar, vão continuar a festa no batuque, depois do repasto comum. Amanhã, será na roça de outro, depois na de outro... (ibidem, p. 267).

O mesmo sentimento de coletividade Bomm identicou nos empréstimos recorrentes de comida, instrumentos de trabalho e montarias. Comentando o uso comum dos cavalos, acabou se aproximando da lógica do caboclo entrevistado  pro Taunay:

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Os homens civilizados pensam que é melhor: cada um trabalhe e possa comprar um cavalo, e incriminam-nos justamente por essa falta de ganância  – qualquer coisa da sórdida avidez de outros povos... (idem ibidem)

Bomm fez em seu livro uma fervorosa defesa da educação da população, que considerava imprescindível para que o povo brasileiro passasse a ter consciência de sua própria existência. Outra característica de Bomm é que, diferentemente do que se viu nas análises anteriores, ele identicou como fator de empobrecimento da população não o clima, nem a raça, nem mesmo a escravidão pura e simples. O que empobreceu o Brasil, na sua compreensão, foi a exploração econômica da metrópole, tema que só seria retomado por Caio Prado Júnior, em 1933, em seu  precoce livro Evolução política do Brasil . Destarte, se estabelece por toda a parte um regime político-administrativo, não só antagônico, como ativamente infenso aos interesses das colônias; regime que só tinha um programa, empobrecê-las (ibidem, p. 143).

Sylvio Romero, em longo discurso de boas-vindas a Euclydes da Cunha na Academia Brasileira de Letras, proferido em 18 de dezembro de 1906, retomaria as impressões de Couty sobre o povo brasileiro, porém para embasar suas próprias convicções. Além dos “índios inúteis”, teríamos agora ex-escravos e seus descendentes, “ainda quase inúteis, esparsos nos povoados e raros nas antigas fazendas e engenhos (...) creados e empregados de toda a ordem” (Romero, 1910:388). Embora concorde com Couty que, no Brasil, não existia ainda um povo organizado, Romero fez uma crítica severa aos intelectuais nacionais que “teimam em dizer mal” das “gentes do centro”, fazendeiros e caboclos, (...) sem se lembrarem que, há quatrocentos annos, ellas é que trabalham e  produzem, ellas que se batem (...) ellas é que tem sustentado o Brasil como  povo que vive e como nação que se defende (idem ibidem).

O processo de construção social do povo brasileiro, para Romero, foi impedido  pelos movimentos políticos, como a proclamação da República, que teria entravado e desviado a revolução social que se iniciaria com a emancipação dos escravos. O movimento social que devia proseguir no intuito de se crear um povo de  pequenos proprietários agrícolas e de trabalhadores livres, todos ligados à terra, já com elementos alienígenas, remodelando a propriedade territorial,  parou de súbito e tudo atordoou-se com a inesperada e intensa reviravolta  política, que attrahiu todas as attenções (ibidem, p. 390).

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Romero foi um ferrenho crítico dos capitais estrangeiros e dos investimentos do governo na construção de avenidas e prédios públicos. Ao fazê-lo, chamou a atenção para os problemas da população pobre do país.  Não estamos no caso de ter academias de luxo, quando o povo não sabe ler; de ter palácios de Monroe, quando a mor parte da gente mora em estalagens e cortiços, e as casas de pensão proliferam; de ter avenidas à beira-mar e theatros monumentaes, que vão car fechados, quando não temos fartas fontes de renda, quando a miséria é geral e quase todas as c idades e todas as villas do Brasil são verdadeiras taperas (...). O grosso da população é paupérrima e desarticulada. Nos campos, nas roças, nos sertões, no interior, produz, mas  produz pouco e sem systema. Nas villas e cidades quasi nada produz em  pequenos e mal organizados ofcios (ibidem, p. 393-395).

Romero retomaria suas preocupações com a pobreza do povo brasileiro no livro O Brasil na primeira década do século XX , publicado em 1911, quando se referiu às “classes puramente populares” do meio rural como marcadas pelo analfabetismo, pelo atraso, pela “pobreza vizinha da miséria” (Romero, 1911:39),  pelo caráter dispersivo e pela falta completa de iniciativa, além de um “marasmo radical” (idem ibidem). É interessante registrar a ênfase do autor no fato de ter visitado pessoalmente diversas regiões do país, o que não é comum nos demais trabalhos vistos até aqui, onde a observação in loco não parece ter sido prerrogativa de dedignidade. Disseminadas nas praias do oceano próximas as povoações; ou nas chamadas regiões das mattas, ao longo das estradas, nas cercanias ou dentro dos engenhos e fazendas, nas vizinhanças dos logarejos, villas ou pequenas cidades; ou, nas zonas dos sertões do planalto central, nas proximidades das fazendas de criar ou dentro dellas; ou nas terras de mineração; ou ao longo dos rios,  próximos ou mais ou menos arredados delles, nas paragens amaz ônicas, matto-grossenses, goyanos (...) praieiros, matutos, tabaréos, caipiras, sertanejos formam um immenso proletariado rural, disseminado, amorpho, mal dirigido, pessimamente encaminhado. (...) Nas villas e pequenas cidades que não passam de grandes aldeias, o proletario é, pela mesma fórma, inculto e atrazado, vivendo em crassa pobreza e duro abandono (ibidem, p. 39-40).

Para Romero, o problema da pobreza estaria ligado principalmente à falta de organização do trabalho, causada no seu entender pela ausência de uma “patronagem inteligente” e pela diculdade enfrentada pela população pobre em se tornar   proprietária de terra. Além disso, criticou os homens do governo e sugeriu que, em vez de se xarem na abstração dos números, observassem a realidade.

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Deve-se olhar para o povo, inquirir de seus meios e modo de viver, das condições de seu trabalho, antes de olhar para as grossas e enormes cifras dos orçamentos, e das questões bysantinas de quebra de padrão, caixa de conversão, alta ou baixa de cambio e outros graves problemas de metaphysica econômica das gentes governamentaes. Com esses expedientes empíricos e com as sophisticarias com que as mascaram, teem, durante cem annos, deixado o povo na miséria e o Estado no regimen chronico dos décits. Nas discussões d’esses doutores da politicagem encontram-se theses para todos os paladares (ibidem, p. 49).

Ao defender o acompanhamento atento da dispersão da população pelo corpo do país, vericando o real estado de seus recursos, de sua s fontes de renda, Romero avaliou que se haveria de constatar “uma pobreza generalisada que se distende por  todas as camadas” (ibidem, p. 50). Buscando realizar tal tarefa, identica as classes sociais das cidades e dos campos, chegando a mais de uma dezena de classicações.  Nas cidades grandes (ibidem, p. 51-53), teríamos (1) capitalistas e banqueiros ricos; (2) grandes negociantes, importadores e exportadores, a maioria estrangeiros; (3) médios negociantes; (4) altos políticos de prossão; (5) prossionais liberais; (6) pequenos comerciantes varejistas; (7) diretores de fábricas, empreiteiros, corretores, empregados superiores do comércio e despachantes das alfândegas; (8) operários e trabalhadores braçais: alfaiates, sapateiros, caldeireiros, carpinteiros, pedreiros, marceneiros, ferreiros, calceteiros, tipógrafos, encadernadores, pequenos empregados do comércio médio e inferior, que “vivem em apertada mediania ou perfeita pobreza em muitíssimos casos” (ibidem, p. 52); (9) cocheiros, carroceiros, empregados dos bondes, carregadores, engraxadores, quitandeiros; (10) “a turba multa indistincta, viciosa”: vadios, capoeiras, capangas, jogadores de prossão e criados das famílias.  Num resumo de seu levantamento, arma: Eis ahi: d’alto a baixo, com as indispensáveis excepções que se encontram nas cinco primeiras classes, reina em nossa terra, mesmo nas grandes cidades, de que tanto nos orgulhamos, a mais crassa pobreza, em grande numero de casos, completa miséria. Não é tudo. Nas cidades de segunda ordem,

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A pobrezA no pArAíso tropicAl que não são grandes focos políticos, nem verdadeiras praças commerciaes, reproduzem-se as mesmas series de classes na população, menos as mais eminentes (ibidem, p. 53, grifos meus).

Sobre as pequenas povoações do interior, Romero armou que nelas se ve ricavam apenas as classes mais inferiores, “dando-nos o espectaculo de quase geral mendicidade” (idem ibidem). Segundo ele, com exceção do padre, do mestre-escola, dos funcionários da justiça, de alguns vendeiros e lojistas, alguns artesãos, era difícil saber de que vivia o resto da população. Chega-se a não saber de que vive o grosso da população, que, fugindo dos ásperos trabalhos do campo, se agglomera nas aldeias, povoados e villas por  todo este Brasil em fóra (idem ibidem).

Em relação ao campo (ibidem, p. 56-57), Romero identicou os seguintes agrupamentos sociais: (1) nas regiões Leste e Centro-Oeste, do paralelo 16 ou 15 para cima, os fazendeiros de criar, os proprietários de seringais, os senhores de engenhos de açúcar, os grandes cultivadores de cacau; nas terras meridionais, daqueles  paralelos para baixo, os fazendeiros de café, os donos de estâncias de criar, os senhores de engenho de erva-mate; (2) médios e pequenos lavradores, donos de reduzidos sítios e fazendolas, de não avultados seringais etc. que “não passam todos de precária mediania que se avisinha assás da pobreza, manifesta em muitos casos” (ibidem,  p. 56); (3) os trabalhadores rurais propriamente ditos, “antigos homens livres que vivem de seu serviço braçal, e antigos escravos, hoje livres, elles ou seus descendentes, que praticam de egual sorte” (idem ibidem); (4) nas terras meridionais, em São Paulo, parte de Minas, Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, os colonos estrangeiros e seus descendentes; (5) a “turba multa”: “dos vadios, dos pernósticos, dos cafagestes, como se diz em Pernambuco, que, n’este abençoado clima, passam sem occupações, aggregando-se aqui e alli aos proprietários de épocas em épocas, ou indo engrossar os numerosos troços de bandidos que, como os dos Balkans, da Albânia, do Atlas, da Córsega, da Serra Morena, da Sicília – percorrem os nossos sertões...” (ibidem, p. 57). E conclui: “d’este rapidíssimo escorço forçoso é concluir que não brilha pela farta riqueza, d’alto a baixo, a nossa população rural” (idem ibidem). Para Romero, a razão principal da situação de pobreza e estagnação que se

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vericava no país, além de sua extensão e da forma como foi colonizado (não constituindo uma democracia rural), encontrava-se na primitividade (extrativismo ou plantios perenes), na grosseria (mau tratamento dos produtos), na descontinuidade (distância geográca), no exclusivismo (monocultura latifundiária) e na intermitência (sazonalidade das produções extrativas e agrícolas) de nossas principais indústrias. Além disso, apontava para os largos intervalos históricos entre os apogeus das indústrias do açúcar, do café, da borracha etc. Em segundo lugar, mas com grande ênfase, Romero culpou os governos por  nada fazer, além de “deixar sem peias as forças propulsoras da nação” (ibidem, p. 78). Vale a pena reproduzir aqui a “regra aritmética” que traduziria, em sua visão, a política econômica dos governos brasileiros. Realidade positiva que {Borracha, café, cacao, manganez, etc. arma o resto Ilusionismo de {Avenidas, melhoramentos decorativos do Rio, grandezas e progresso Exposição, Congressos, etc. Expedientes empíricos {Caixa de conversão, valorisação do café, conversão da dívida, etc. Outros engodos

{Tarifas proteccionistas, para difcultar a importação e preparar o excesso da exportação sobre aquella, etc.

Alvo real

{Empréstimos do estrangeiro para a União, Estados, Cidades, etc.

Ponto de chegada nal {Impostos e pobreza real do povo ao lado das espertezas sem conta dos politiqueiros das chamadas classes dirigentes. (ibidem, p. 80)

Romero pode, desta forma, ser considerado um dos pri meiros autores a reetir  sobre a pobreza enquanto um problema social em nosso país, apontando suas causas econômicas e políticas (muito distantes de raça ou clima) e sugerindo soluções. Raimundo Farias Brito, jurista e lósofo cearense, foi outra voz destoante dentro das manifestações de cunho racial predominantes na época. Em primeiro lugar, ao considerar, em trabalho publicado em 1916, o povo brasileiro como “excepcionalmente inteligente, entusiasta capaz de abnegações e capaz de lutas heróicas” (Farias Brito, 1998:762). Se não éramos ainda uma grande nação, armou, os culpados eram apenas os políticos. Em segundo lugar, Farias Brito creditou a situação de ruína moral, política e econômica do país à falta de justiça,

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aproximando-se das reexões de José Bonifácio. Longe estávamos, no entanto, de uma mudança de padrões explicativos. Oliveira Vianna, em 1918, procurou demonstrar que o povo brasileiro não era uma massa homogênea e única, diferenciando seus habitats, suas diferentes trajetórias históricas e suas variações étnicas regionais. Dedicou-se a estudar as populações rurais, que considerava de uma maneira absolutamente positiva, como “matrizes da nacionalidade”, que estariam a merecer um lugar privilegiado no “sistema de forças sociais do país”. Referia-se, na verdade, à aristocracia rural brasileira, que considerava “o centro de polarização dos elementos arianos da nacionalidade” (Vianna, 1952:64). Sobre as camadas mais pobres da população, dedicou algumas  páginas aos agregados e foreiros e inúmeras à “plebe rude” de “mestiços inferiores”, sobre os quais já tivemos a oportunidade de ler. Considerou os agregados como parte da “classe dos escravos”, dos quais se diferenciavam pela origem étnica, situação social, condição econômica e residência fora da casa senhorial. “São uma sorte de colonos livres” (ibidem, p. 97), com a diferença de não serem pequenos proprietários, como os colonos alemães de Santa Catarina, nem assalariados ou parceiros, como os colonos italianos em São Paulo. Foram considerados como moradores ou foreiros, inseridos numa hierarquia que o autor descreveu espacialmente: Habitam fora do perímetro das senzalas, em pequenos lotes aforados, em toscas choupanas, circundantes ao casario senhorial , que, do alto da sua colina, os centraliza e domina. Da terra fértil extraem, quase sem nenhum trabalho, o bastante em caça, frutos e cereais para viverem vida frugal e indolente. Representam o tipo do pequeno produtor consumidor, vegetando ao lado do grande produtor fazendeiro (ibidem, p. 97-98, grifos meus).

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Como trabalhador salariável está condenado à inutilidade. Onde colocá-lo? (ibidem, p. 98).

Além de não haver demanda por seus serviços, segundo ele, os colonos peninsulares logo se dariam conta que o trabalho no campo – tarefa de escravos – era repulsivo ao homem branco e livre.  Não sendo operário do latifúndio, nem podendo ser também proprietário, o colono livre, de condição plebéia, não tem outra situação senão a de foreiro ou arrendatário. (...) Esse é, pois, a origem da classe dos agregados ou moradores dos domínios. Ela é o refúgio, a que se acolhem os peninsulares, de extração  plebéia, sem meios para requererem sesmarias, lançados na agitação colonial e postos defronte da escravaria dos grandes domínios. É uma resultante lógica do regime sesmeiro e do regime servil (ibidem, p. 99).

Com o tempo, explicou Vianna, a “plebe rude” sofreria o problema de “inl tração étnica”, com a chegada de novos contingentes, do “transbordo das senzalas repletas, as récovas da escravaria, o sobejo da mestiçagem das fazendas” (ibidem,  p. 100). São os cafusos. São os mulatos alforriados. Egressos do trabalho rural esses mestiços repululantes fogem da servidão dos engenhos para a vida livre do colonato. Essa inltração étnica é formidável. Os elementos brancos, loca lizados nas terras sobreexcedentes dos latifúndios, acabam afundindo-se nessa ralé absorvente que, um pouco mais tarde, se fará o peso especíco da  população dos moradores (idem ibidem).

Ao fazê-lo, Vianna avançou em relação às descrições de Nabuco ou Bomm  porque não colocou os agregados apenas “nos interstícios” de senhores e escravos e sim em outra localização espacial. Tomando como referência a região estudada, concluiu que os agregados estavam longe das senzalas, ou seja, da servidão. Suas residências circundavam uma casa senhorial que os dominava do alto. Em termos de produção, estavam ao lado do grande fazendeiro, com o qual não competiam economicamente. Vianna os considerou um “fenômeno natural” da sociedade brasileira colonial.  Numa sociedade de senhores e escravos, o colono português de condição plebéia, livre mas pobre, não poderia encontrar quem quisesse empregar sua força de trabalho.

Percebe-se que Vianna não conseguiu separar a discussão sobre povo e raça. Enquanto valorizava o arianismo dos senhores de escravos, referiu-se aos pobres do campo como “elementos inferiores da nacionalidade”, nos quais predominavam (na cor, no caráter e na inteligência) os “sangues abastardados”. Daí não esconder  sua vibração com as “tendências regressivas do atavismo étnico”, as quais eliminariam parte desta população, senão pela degenerescência física, pela miséria. A  parte que sobra, esperava, iria claricar-se. Em termos de psicologia social ou psicologia política, ar mou Vianna, faltaria ao nosso povo o que sobra aos suíços: a conança na justiça, nos magistrados, na imparcialidade. Nos caracterizaria, ao contrário, uma convicção íntima de fraqueza, desamparo e incapacidade.

 Não se precisa dele. Não há realmente lugar para ele. Tudo se acha suprido e  provido na economia fazendeira. Ele é ali uma superfetação, ou um intruso.

O homem que não tem terras, nem escravos, nem capangas, nem fortuna,

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A pobrezA no pArAíso tropicAl nem prestígio, sente-se aqui, praticamente, fora da lei. Nada o ampara. Nenhuma instituição, nem nas leis, nem na sociedade, nem na família, existe  para a sua defesa. Tudo concorre para fazê-lo um desiludido histórico, um descrente secular na sua capacidade pessoal para se armar por si mesmo. Desde os primeiros dias da colonização, sempre se vê diante dos poderosos, das suas cobiças, das suas arrogâncias, das suas animosidades, tímido, pusilânime, receoso, encolhidiço. O que os quatro séculos da nossa evolução lhe ensinam é que os direitos individuais, a liberdade, a pessoa, o lar, os bens dos homens pobres só estão garantidos, seguros, defendidos, quando têm para ampará-los o braço possante de um caudilho local (ibidem, p. 225).

Daí, explicou Vianna, o “espírito de clã” que dominaria por inteiro as classes inferiores da sociedade brasileira. Tendo como base a psicologia de Le Bon, ar  mou que só para quem não as conhece bem causaria perplexidade tal armativa. E descreveu, num parágrafo bastante armativo, o que seria, no seu entender, a mentalidade da população rural brasileira. Valente, bravo, altivo, arrogante mesmo, o nosso campônio só está bem quando está sob um chefe, a quem obedece com uma passividade de autônomo perfeito. É este o seu prazer, este seu gozo íntimo, esta a condição da sua tranqüilidade moral. O ter de conduzir-se por sua própria inspiração, o ter de deliberar por si mesmo, sem orientação estranha, sem sugestão de um superior reconhecido e aceito, constitui para ele uma grave e dolorosa  preocupação, um motivo íntimo de angústia, de inquietação, de tortura interior. Dessa tortura moral só se liberta pondo-se às ordens de um chefe, e obedecendo mansamente à sua sugestão, ao seu império. É essa certeza íntima de que alguém pensa por ele e, no momento oportuno, lhe dará o santo e a senha de ação; é essa certeza íntima que o acalma, o assegura, o tranqüiliza, o refrigera (ibidem, p. 226-27).

O povo brasileiro, negado por Couty, se fez presente nas grandes interpretações sobre o país da mesma forma como era concebida pelos autores lidos: nos interstícios das grandes discussões sobre raça e clima ou vegetando nas repetições tediosas de seus males. Com honrosas exceções, são reexões de pessoas que per  correram relativamente pouco o interior do país ou que tinham apenas o observado, a partir das grandes fazendas e dos engenhos. Tudo seria diferente depois que a Inspetoria de Obras Contra Secas solicitasse ao Instituto Oswaldo Cruz, em 1912, que organizasse uma viagem cientíca ao norte da Bahia, sudoeste de Pernambuco, sul do Piauí e de norte a sul de Goiás. Sob o comando dos médicos Arthur Neiva e Belisário Penna, uma equipe de cientistas passou cerca de sete meses no  sertão,  produzindo em seu retorno um contundente relatório denunciando o abandono

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das populações rurais pelo Estado brasileiro. Sua divulgação, em 1916, teria um impacto muito grande sobre a opinião pública nacional, ao revelar a existência de um país doente.

1.4. “O véu oi levantado. O microscópio alou”: Monteiro Lobato e a importância das expedições científcas  Nos primeiros 15 anos do século XX, o Estado passou a se fazer presente no interior do país. Os exemplos são diversos: expedições cientícas, instalação de linhas telegrácas, acompanhamento da expansão de estradas de ferro e outras obras de infra-estrutura ou, como no caso do Contestado, procurando impor a ordem e o progresso republicanos. Tais atividades, devidamente registradas em diários de campo e fotografadas, costumavam ser acompanhadas de perto ou divulgadas posteri ormente pela grande imprensa da capital federal, que levava ao conhecimento da opinião pública facetas do país até então ignoradas. Os trabalhos da Comissão de Linhas Telegrácas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, dirigida pelo coronel de engenharia Candido Mariano da Silva Rondon, que funcionou de 1907 a 1915, foram divulgados numa série de artigos publicada pelo  Jornal do Commercio do Rio de Janeiro. 14 Desde 1905, cientistas eram chamados para ações proláticas em obras públicas ou privadas. Oswaldo Cruz, como diretor-geral de S aúde Pública, realizou inspeção sanitária em 23 portos brasileiros. Em 1910, Antônio Cardoso Fontes foi enviado a São Luís do Maranhão para debelar um surto de peste bubônica. Enquanto isso, Carlos Chagas comandou a primeira campanha contra a malária, no interior de São Paulo, onde a Companhia Docas de Santos construía uma usina hidrelétrica. O mesmo Carlos Chagas, auxiliado por Arthur Neiva e Rocha Faria, repetiu o feito em Xerém, na Baixada Fluminense, onde a Inspetoria Geral de Obras captava mananciais de água para o abastecimento da capital (Fiocruz, 1991:7). Em 1907, Carlos Chagas e Belisário Penna foram a Minas Gerais combater a malária na região de prolongamento da linha da Estrada de Ferro Central do Brasil até Pirapora. No mesmo ano, Arthur Neiva repetia o feito no estado de São Paulo,  para a Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. Em 1910, foi a vez de Oswaldo Cruz combater a malária na região de Ribeirão das Lages, estado do Rio, onde estava sendo construída uma usina hidrelétrica pela empresa canadense Light and Power. Ainda em 1910, na companhia de Belisário Penna, Oswaldo Cruz trabalhou na Amazônia para uma empresa norte-americana que construía a Estrada de Ferro Madeira-Marmoré. Em Belém do Pará, Cruz dirigiu ainda uma campanha contra a febre amarela (idem ibidem). Mas as grandes expedições cientícas ainda estavam por vir. De setembro de 1911 a fevereiro de 1912, Astrogildo Machado e Antônio Martins acompanharam

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a expansão da Estrada de Ferro Central do Brasil de Pirapora rumo a Belém, percorrendo os vales do São Francisco e do Tocantins. De março a outubro de 1912, três expedições exploraram o Nordeste e o Centro-Oeste do país, por solicitação da Inspetoria das Obras contra a Seca. Arthur Neiva e Belisário Penna trabalharam no norte da Bahia, sudeste de Pernambuco, sul do Piauí e Goiás. João Pedro de Albuquerque e José Gomes de Faria o zeram no Ceará e norte do Piauí e Adolpho Lutz e Astrogildo Machado desciam o rio São Francisco de Pirapora a Juazeiro. De outubro de 1912 a março de 1913, Carlos Chagas, Pacheco Leão e João Pedro de Albuquerque estiveram na bacia amazônica, a serviço da Superintendência da Defesa da Borracha (idem ibidem). Tais expedições cientícas, além de avanços profundos no campo da pesquisa médica, revelaram – especialmente por meio de fotograas – os costumes e as diculdades do brasileiro do interior do país. Lima e Hochman (1996) lembram que predominava na época uma literatura romântica que exaltava o indígena e o caboclo. Em 1910, havia sido lançado o livro  Porque me ufano de meu p aís, de Afonso Celso, voltado para a valorização das três raças fundadoras do país. O  próprio discurso médico do nal do século XIX recomendava a vida no campo e nos sertões, considerados lugares saudáveis em relação às cidades. Das expedições citadas, destacou-se a que percorreu o Nordeste e o Centro-Oeste a pedido da Inspetoria de Obras contra a Seca, pelo trabalho rigoroso de registro escrito e fotográco, posteriormente publicado no  Diário da Manhã, da capital federal, com grande repercussão junto ao público. Do relatório de Neiva e Penna, cuja maior parte trata de enfermidades, há um capítulo intitulado “Considerações gerais”, no qual os cientistas relataram com sensibilidade sociológica, informações importantes sobre o que comiam, onde moravam, que roupas vestiam, em quem acreditavam e o que diziam de suas vidas os moradores do interior do país. Discorrendo sobre os preços altíssimos cobrados por mercadorias de primeira necessidade, como sal e querosene, e sobre os salários aviltantes pagos aos sertanejos, Neiva e Penna foram bastante claros no seu posicionamento diante da realidade conhecida.  Não acreditamos haver necessidade de insistir mais neste capítulo; ainda guardamos vivas as impressões bem tristes da profunda miséria e do abando no em que jazem milheiros de seres humanos e o nosso depoimento de forma alguma viria mitigar as suas aições. Como se alimentar convenientemente se o salário é desprezível? (Neiva e Penna, 1984:165).

Foram graves as denúncias feitas sobre os males do latifúndio e o sistema de barracão entre os seringueiros, inclusive com utilização de trabalho infantil. As descrições feitas não davam margem a dúvidas sobre a exploração a que era

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submetida a população rural. Além disso, as narrativas sobre a pobreza da dieta, o estado das residências e a escassez de água tinham um impacto redobrado em função da utilização de fotograas. Mas o relatório mostrou mais do que isso. Mostrou que, apesar de todas as diculdades de seu coti diano, os sertanejos tinham suas regras e sua honra e não estavam isolados da sociedade nacional. Os autores zeram severas críticas à Igreja Católica, cujos padres percorriam a região em suas “desobrigas”, cobrando por quase todos os sacramentos necessários. Mais contundentes foram as críticas ao governo, presente nas regiões visitadas apenas na cobrança de impostos. Luiz Antonio de Castro Santos (1985) assim resume a importância do relatório  produzido por Neiva e Penna: O relatório apresenta um quadro social dos sertões à maneira de Euclydes: os autores confrontam os problemas sociais como se estivessem à procura de doenças em um organismo social, estabelecendo causas e observando sin tomas. Ao apontar as causas, criticam a visão, difundida pelas oligarquias, de que a pobreza e a doença se explicariam pelo clima adverso do Nordeste. Contra a explicação climática, argumentam que as populações dos vilarejos situados às margens do rio São Francisco apresentavam condições de saúde tão precárias quanto as populações das regiões semi-áridas (Castro Santos, 1985:199).

A partir da divulgação do relatório, foi fundada, em 1918, a Liga Pró-Saneamento do Brasil, formada por membros da Academia Nacional de Medicina, catedráticos da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, cientistas do Instituto Oswaldo Cruz, antropólogos do Museu Nacional, militares, educadores, juristas e pelo próprio  presidente da República, Wenceslau Brás. A liga tinha como objetivo lutar pela criação de um órgão federal que coordenasse as ações de saúde em todo o país. Para Lima e Hochman, as grandes expedições cientícas teriam nos absolvido como povo e encontrado um novo réu. O brasileiro era indolente, preguiçoso e improdutivo porque estava doente e abandonado pelas elites políticas. Redimir o Brasil seria saneá-lo, higienizá-lo, uma tarefa obrigatória dos governos (Lima e Hochman, 1996:36).

O povo brasileiro não era mais preguiçoso por ser mestiço ou em função do clima, mas por estar doente. E seu isolamento seria uma decorrência do abandono  por parte do governo. O movimento pelo saneamento (...) concentrou grandes esforços na rejeição do determinismo racial e climático e na reivindicação da remoção dos prin-

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A pobrezA no pArAíso tropicAl cipais obstáculos à redenção do povo brasileiro: as endemias rurais (ibidem,  p. 23). Esse pedaço do Brasil abandonado não era tão longínquo nem tão pequeno assim. Anal, como lembrou o médico e escritor Afrânio Peixoto, os sertões do Brasil começavam quando terminava a avenida Central, portanto na  periferia da cidade do Rio de Janeiro, capital da República (ibidem, p. 27).

Ao intitular seu artigo “Condenados pela raça, absolvidos pela medicina”, os autores demonstram um otimismo que parece não ser compartilhada por Schwarcz ao estudar as faculdades de medicina da Bahia e do Rio de Janeiro. Complexican do sobremaneira a questão, demonstra que estas tinham como objetivo maior, na virada para o século XX, “a cura de um país enfermo, tendo como base um projeto médico-eugênico, amputando a parte gangrenada do país” (Schwarcz, 2000:160)  para que restasse uma população suscetível ao progresso. Ao mesmo tempo em que se preparava para sanear as grandes cidades e o sertão, a medicina do nal do século XIX permanecia fortemente arraigada nas teorias racistas. Ao analisar artigos da Gazeta Médica da Bahia, da década de 1920, esta percebe que a teoria da degeneração do mestiço só começou a ser relativizada quando se tornou factível a possibilidade de saneamento da raça, através da eugenia. (...) os mestiços passaram a ser divididos em “maus” ou “bons”, assim como a “degenerescência obtida através da hibridação” deixará de ser pensada enquanto fenômeno irreversível. As raças, por outro lado, serão entendidas como passíveis de saneamento. É o discurso da eugenia que ganha novos adeptos (ibidem, p. 215).

 Na mesma época, os médicos cariocas, envolvidos com as campanhas de saneamento da cidade e de vacinação população, também divulgavam as vantagens da eugenia como esforço para se obter uma raça pura e for te. E armavam : “os nossos males provieram do povoamento, para tanto basta sanear o que não nos pertence”. 15 Diante do sucesso no tratamento das grandes epidemias, pretendiam agora “curar as raças” e “sanear a nação”. Nos anos 1920, a medicina carioca dividiria a população mestiça entre doentes e sãos, ou melhor, entre “regeneráveis” e “não-regeneráveis”, impondo a esses dois grupos medidas absolutamente diversas. P ara os primeiros, educação física e intelectual, casamentos desejáveis e condenação aos maus hábitos e perversões. Para segundos, os que chamaram de “doentes crônicos” ou “cacoplatos” – “os parasitas, os indigentes, criminosos e doentes, que estão nas prisões, nos hospitais e nos asylos; os mendigos que perambulam pelas ruas... os amoraes, os loucos; a prole de gente inútil que vive do jogo, do vício, da libertinagem, da trapaça” 16 – apenas a danação. Essas pessoas deveriam ser 

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esterilizadas. A grande inspiração vinha dos projetos eugenistas alemães e das leis de esterilização colocadas em prática nos Estados Unidos. 17 Tendo vencido as epidemias, tratava-se agora de “curar” a raça. Ou seja, diferentemente do que aponta o artigo de Lima e Hochman, a raça como fator  explicativo da pobreza permanecia forte, notadamente no sentido de desviar a atenção das hierarquias econômicas e sociais. Conformando com sua ótica eugênica uma noção alargada de “doença”, a medicina carioca criava uma hierarquia ainda mais rígida. O país podia ser  dividido entre capazes e incapazes, e ntre perfectíveis e degenerados, em um esforço deliberado de esfumaçar divisões econômicas e sociais enraizada s. Era como raça que a nação era entendida. Por meio dela se explicavam sucessos  políticos, fracassos econômicos ou hierarquias sociais assentadas. Estranho movimento que por meio da ciência justicava os projetos mais violentos e autoritários, como a pressagiar os movimentos nazistas que viriam a acontecer  em breve na Europa (Schwarcz, 2000:234-235).

Acrescentaria, estranho movimento que propõe acabar com a miséria esterilizando os miseráveis, acabar com o pecado esterilizando os pecadores, acabar  com os vícios esterilizando os viciados, acabar com a loucura esterilizando os doentes mentais.  Não se trata aqui de diminuir a importância do trabalho da Liga Pró-Saneamento do Brasil, que funcionou de 1918 a 1920 e tornou a saúde questão central do debate político nacional. Envolvendo médicos de renome como Miguel Couto, Miguel Pereira, Carlos Seidl, Afrânio Peixoto, Carlos Chagas e Aloysio de Castro, a Liga foi fundamental para que fosse criado, em 1920, o Departamento Nacional de Saúde Pública, que deu início ao processo de nacionalização das políticas de saúde e de saneamento. Segundo Lima e Hochman (1996:37), ao identicar a doença como principal  problema do país, a liga também identicou como remédio a ciência médica e as  políticas públicas. Os mesmos médicos, no entanto, como já vimos, ensinavam ou dirigiam as escolas de medicina e escreviam nos jornais médicos citados, envolvendo-se de alguma forma no projeto eugênico. Em termos políticos, Castro Santos demonstra que, embora não tenha signica do mudanças imediatas nas políticas governamentais de saúde – restritivas às áreas urbanas do litoral –, a publicação do relatório de Neiva e Penna “atraiu a atenção de setores das elites, e reacendeu no Congresso e no Palácio do Catete o i nteresse pelos sertões – já esquecidos desde o episódio de Canudos” (Castro Santos, 1985:2000).  Neste sentido, o movimento sanitarista teria representado, para a República Velha, um canal importante para o projeto ideológico de construção nacional.

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A pobrezA no pArAíso tropicAl Viu-se que, até por volta de 1915, a suposta incapacidade racial do brasileiro era considerada uma pedra no caminho da modernização. A vinda de sangue novo com o imigrante europeu representava o mais importante trunfo das elites para a desejada salvação nacional. Ora, a queda da imigração européia durante a Primeira Guerra Mundial abriu caminho para propostas alternativas. (...) Os sanitaristas acenavam com uma proposta que atraía não só as elites do sul como as do norte. Nosso atraso, diziam, se devia à doença, e não ao determinismo biológico. A construção da nacionalidade exigia que as elites desviassem os olhos sempre postos na Europa para o interior do Brasil (ibidem, p. 202).

Ao analisar o pensamento sanitarista como uma ideologia de construção da nacionalidade, Castro Santos identica na produção sociológica e intelectual do  país duas correntes principais, ambas de caráter nacionalista: uma que lutava pela modernização do país via o desenvolvimento urbano e outra que se voltava para o interior do país, procurando inserir sua população num projeto de construção nacional. A corrente modernizadora defendia a imigração de europeus como instrumento de limpeza étnica e considerava o sanitarismo um fator de atração para os mesmos. Como exemplo das idéias defendido por esta corrente, Castro Santos cita João Batista Lacerda, diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, Gouvêa de Barros, deputado federal por Pernambuco e Arthur Neiva. Com as novas ondas imigratórias, parte da comunidade cientíca exultava. Em 1911, o diretor do Museu Nacional no Rio, João Batista de Lacerda,  proclamava que em um século os mestiços teriam desaparecido do Brasil, em razão dos processos de miscigenação e imigração. Esta miscigenação era bem-vinda. O racismo “cientíco” contagiava um grupo considerável de prossionais da saúde pública. Em 1916, o médico Gouvêa de Barros, deputado federal por Pernambuco e ex-diretor do serviço sanitário de seu estado, proclamava na Câmara dos Deputados que o Brasil tinha uma po pulação fraca, sem resistência às doenças dos trópicos. À herança africana atribuía a maior parcela de culpa pela pouca resistência dos brasileiros. Artur   Neiva, um dos cientistas mais renomados do Instituto Oswaldo Cruz, vez por  outra pagava tributo à explicação racista, como ao sugerir que a imigração de negros norte-americanos para o Brasil – projeto que chegou a ser debatido no Congresso em 1921 – iria pôr em risco o processo de branqueamento no  país (ibidem, p. 195).

A declaração de Neiva, integrante de fato da segunda corrente nacionalista, demonstra que os limites entre as duas posições não eram tão rígidos. Castro Santos considera Oliveira Vianna uma ponte entre as duas tradições de pensamento: “com

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um grupo partilhava o ideal de arianização da população brasileira; com o outro,  partilhava o interesse pela integração dos sertões à vida da nação” (idem ibidem). A segunda corrente analisada pelo autor difundiu a idéia de que o passado não nos condenava, como diziam os darwinistas sociais, mas ao contrário, nos redimia. A partir de uma citação de Cruz Costa (apud Castro Santos, 1985:196), armando que, no período republicano, por meio do trabalho de Euclydes da Cunha, o sertão teria feito sua aparição dramática no cenário brasileiro, Castro Santos analisa outros três autores que teriam mantido o sertão sob os holofotes: Monteiro Lobato, Vicente Licínio Cardoso e Alberto Torres. Para os dois últimos, criadores de uma “tradição ruralista”, a verdadeira vocação nacional estava na valorização da agricultura e do homem do campo (Castro Santos, 1985:197). Monteiro Lobato, embora ativamente engajado na campanha de industrialização do país, preocupava-se também com as condições de vida das populações rurais, como veremos adiante. Quanto a Vicente Licínio Cardoso, Castro Santos arma que sua preocupação maior era a região sertaneja, principalmente o vale do rio São Francisco. Já Alberto Torres tinha como bandeira de luta a transformação do Brasil em uma “república agrícola” que resolvesse os problemas sociais do país através do combate ao latifúndio e ao uso predatório dos recursos naturais. 18 Lima e Hochman (1996:29) resgatam, em seu artigo, o envolvimento de Monteiro Lobato com os trabalhos da liga, evento analisado ant eriormente por Agripino Grieco e por Castro Santos. No ano de 1918, Lobato escreveu contundentes artigos  para o jornal O Estado de São Paulo, nos quais defendeu o trabalho de Oswaldo Cruz e do Instituto Manguinhos e divulgou com indignação os resultados das expedições cientícas realizadas. Ao fazê-lo, criticou a visão idílica do sertanejo que teria sido criada pela literatura. Esses heróicos sertanejos, fortes e generosos, evolução literária dos índios  plutárquicos de Alencar; essa caipirinha arisca, faces cor de jambo, pés lé pidos de veada, carne dura de pêssego; licenças bucólicas de poetas jamais saídos das cidades grandes. O que nos campos a gente vê, deambulando  pelas estradas com ar abobado, é um lamentável náufrago da siologia, a que chamamos homem por escassez de sinonímia. Feíssimo, torto, amarelo, cansado, exangue, faminto, fatalista, geófago – viveiro ambulante do verme destruidor (Lobato, 1957:234). 19

De uma mesma penada, e fazendo gracejos com os nomes das doenças, Lo bato criticaria todas as propostas que estavam na pauta das discussões políticas e intelectuais do país, as quais seriam no seu entender soluções meramente formais, distanciadas da realidade.

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A pobrezA no pArAíso tropicAl Uns, para exterminar os males que decorrem desta lepra do duodeno... querem a revisão constitucional! Basta mudar umas palavras ao artigo sexto,  botar mais dois anos no período do presidente, e ai do ancilóstomo! Outro, feminista, quer reforma do sufrágio com direito de voto estendido as opildas. Este convence as massas de que, vestindo farda obrigatória, o doente do Brasil sara. Aquele proclama como panacéia das boas o parlamentarismo (Ibidem, p. 234-235).

Parafraseando Miguel Pereira, armou que o Brasil era um gigantesco hospital dirigido por bacharéis falidos e incompetentes. A salvação, segundo ele, não estaria na retórica, mas na ciência. “O véu foi levantado”, anunciou Lobato, o “microscópio falou” (ibidem, p. 257). Depois dos estudos dos sanitaristas mais nenhum governo  poderia alegar ignorância do problema. Nada de artigos jornalísticos, discursos  políticos e orientações estrangeiras. Os problemas vitais deveriam ser “examinados com olho clínico”, as opiniões “encomendadas ao microscópio” e os números ser  “pedidos à estatística” (ibidem, p. 270). Entusiasmado, Lobato utilizaria um de seus mais famosos personagens, o  preguiçoso caboclo Jeca Tatu, como garoto-propaganda dos benefícios da ciência. 20 De preguiçoso, o Jeca, após medicar-se e passar a usar sapatos, se transforma em um homem tão enérgico que acaba superando em capacidade de trabalho seu vizinho italiano e virando um rico fazendeiro, estilo  farmer .21 Conforme Lima e Hochman (1996:23) como Lobato, parte signicativa da intelectualidade brasileira teria cado aliviada com os resultados da ciência experimental e a incorporariam nas suas reexões sobre o país.  Não foi, com certeza, o caso de Alberto Torres. Ao questionar os méritos das teorias do enfraquecimento da raça portuguesa no Brasil, considerou que, se isto aconteceu, o motivo não era a mestiçagem e sim a ausência quase total de meios de conservação e reprodução da população, principalmente habitação, educação, noções de saúde e alimentação. Esta última foi considerada escassa, insuciente e de má qualidade, para todas as classes sociais. Sobre as doenças, fez questão de não exagerar sua importância entre os grandes males do país. Outra causa, cujo valor se exaggera, é a das moléstias. (...) Passamos a ver  a nossa nacionalidade minada pelas moléstias, em vésperas de eliminação,  por força de causas pathológicas – imprestável para a vida, tantos germens e parasitas lhe corroem os tecidos (Torres, 1933:163-165).

Para Alberto Torres, as fraquezas físicas seriam três: fatores cósmico-sociais (decorrentes do clima nos trópicos), escassez e impropriedade dos alimentos e causas econômicas, sociais e pedagógicas relativas à prosperidade e à educação do povo. Quanto aos fatores patológicos, não só os considerou insignicantes em

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relação aos outros três, como denunciou sua utilização para desviar a atenção dos verdadeiros problemas da nação. Todos os esforços da hygiene e todas as reformas sanitárias serão luxos prossionaes, ou simples desvios, na focalização dos factos reaes, mal atacando as moléstias e nunca extinguindo as predisposições mórbidas, enquanto o  problema geral da economia nacional não for solvido, emseu conjuncto. Neste  ponto, não é possível, até, dissimular o facto de uma quase renuncia da vida, na observação de certos aspectos das nossas medidas sanitárias, tomadas, em grande parte, nas capitaes, no interesse do estrangeiro, ou da nossa fama no estrangeiro (ibidem, p. 171-172).

Sylvio Romero (1910), considerava o maior mal do Brasil a pretensão de querer ser o que não somos, e não os problemas que estavam sendo discutidos nos editoriais dos grandes jornais.  Nosso maior mal... A febre amarella? As seccas do norte? O clima tropical? As olygarchias estadoaes? A politicagem? Não, nada disso. (...) Nós brasileiros (...) temos a phantasia demasiado inammavel (...) e nos julgamos collocados no pináculo entre as nações (Romero, 1910:102-103).

Outro que não se deixaria abalar pela “redescoberta” dos sertões pelos sanitaristas, como já vimos, foi Oliveira Vianna, numa demonstração clara de que o debate  político e intelectual sobre mestiçagem e eugenia ainda estava em franca erupção. Em termos de discussão sobre a pobreza, no entanto, a década de 1910 signicou um avanço em relação às anteriores. O discurso racial, embora ainda forte,  precisou curvar-se ante as evidências empíricas, registradas e fotografadas nos cadernos de campo de expedições cientícas. As imagens da população sertaneja, divulgadas para o grande público, tornavam-se incômodas. Os mestiços degenerados agora tinham um rosto, um nome, um local de residência. Tinham sobretudo voz, com a qual falaram de seus males aos sanitaristas. E não estavam no m do mundo. Pagavam impostos e participavam de atividades religiosas da Igreja Católica. Os doutores de Manguinhos chegaram a ser chamados de antipatriotas, por  mostrar uma realidade de desigualdade numa Repúbli ca ainda jovem, que defendia a igualdade de todos perante a lei. Monteiro Lobato faria menção a estas denúncias em artigo escrito da época. Mal, porém, vibra no ar a voz do higienista denunciando a doença do pólipo, a legião de patriotas grifados entra a zumbir, e corre de peneirinha em punho a tapar a luz do sol. E gritam: “É falta de patriotismo fazer diagnósticos claros. Nem todas as

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A pobrezA no pArAíso tropicAl verdades se dizem. O que pensará de nós o estrangeiro?” Cretinos! A eterna mania da opinião européia! (Lobato, 1959:271).

 Não é à toa que o relatório da viagem ao sertão só seria divulgado em 1916, quatro anos após a sua realização. Se a Abolição dera liberdade aos escravos e a nova Constituição transformara todo brasileiro em cidadão, como as elites intelectuais  poderiam dar conta da manutenção da desigualdade, expressa nos documentos e fotograas dos cientistas? Para Schwarcz (2000:241), a igualdade obtida mediante as conquistas políticas teria sido negada em nome da natureza e transformada em utopia pelos cientistas sociais. As polêmicas sobre raça, da mesma forma, teriam impedido o surgimento de outros tipos de debate, principalmente sobre cidadania e participação. Ao tratar dos desdobramentos da campanha sanitarista na década de 1930, Castro Santos (1985:208) demonstrou como o governo federal evitou manter a acesa a ideologia da “redenção dos sertões” de forma a evitar o confronto com as oligarquias rurais. Com sua proposta de uma “marcha para o oeste”, Getulio Vargas teria, de fato, deslocado o projeto de construção nacional do sertão para a fronteira. Nos anos 1930, segundo ele, o “centro nervoso da construção nacional” estaria nos limites nacionais e nas capitais. Ao mesmo tempo em que o movimento sanitarista trouxe novidades importantes para o cenário político e intelectual nacional, as reexões baseadas em raça ou clima permaneceriam fortes durante os anos 20 e 30 do século XX. A idéia defendida por Gilberto Freyre, em 1933, quando do lançamento de Casa-grande & senzala, de que éramos uma democracia racial, considerada um marco nas interpretações sobre o Brasil, também já era observada em trabalhos anteriores. O artigo intitulado “O pessimis mo brasileiro”, de Graça Aranha, publicado na década de 1920, é representativo de um momento no qual a raça não aparecia mais como o maior problema do país e começaria a tomar corpo a idéia de uma democracia racial no Brasil. O cruzamento das raças foi anal o fa tor decisivo de nossa democracia, em qu e sem preconceitos, e numa larga tolerância, encontra a sua natural expressão  política um povo de origens opostas. (...) No Brasil, o pensamento é mestiço. O governo, a elite que realiza esse pensamento coletivo, deve ser fatalmente na mesma expressão racial ou não será representante da nacionalidade (Graça Aranha, 1998:470).

Mesmo nas publicações que insistiam em velhas posições, percebe-se uma maior substancialidade nos argumentos, o que muitas vezes os tornava contradi-

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tórios. Gilberto Amado, por exemplo, em livro publicado em 1924, armou que o Brasil ainda não tinha um povo. Buscou provar sua armativa listando... o povo  brasileiro: Povo propriamente não temos. Sem contar a das cidades, que não se pode dizer seja uma população culta, a população do Brasil politicamente não tem existência. Compõem-na talvez mais de 15 milhões de habitantes desassimilados que no Norte e no Centro constituem os pescadores e seringueiros do Amazonas, os agregados das fazendas, os vaqueiros e campeadores do sertão, os pequenos negociantes nômades, os operários rurais primitivos sem xidez, trabalhando um dia para “desca nsar” seis na semana, o matuto ignorante e crendeiro, vivendo numa choupana, quando não desabrigado de todo, e ainda os jagunços da Bahia, os cangaceiros de Pernambuco, os “fanáticos” do Contestado, os capangas das vilas e aldeias do interior, a multidão de pequenos artíces e trabalhadores das cidades e das roças, toda uma gens complexa, pouco produtiva, entregue à sua própria miséria e alheamento do mundo, emigrando do Ceará para o Amazonas, nos estados do  Norte se arrastando ao abandono de um desconforto voluntário, sem saúde, sem hábitos de trabalho e tendo, na sua maioria, do Brasil, a idéia que nos deu Euclydes da Cunha em Os sertões (Amado, 1998:1000).

Resta saber que concepção de povo estava por trás deste tipo de reexão. A listagem das prossões exercidas pela população pobre no campo e nas cidades não é considerada suciente para caracterizá-la enquanto politicamente existente. Outros autores, como Paulo Prado, em seu já citado  Retrato do Brasil , de 1927, diante de um país que considerava como “uma criança doente”, que crescia de maneira lenta e desorganizada, propôs com todas as letras a guerra ou a revolução como forma de impedir o seu desmantelamento geral. Para Prado, estes conitos seriam as únicas formas possíveis de fazer com que a população pobre do país se tornasse visível. Os novos, os pobres, os esquecidos, os oprimidos surgem quando se ateia nas cidades e nos campos o fogo devastador das invasões: é quando se abre o período das falências governamentais. O “herói providencial” é uma criatura das vicissitudes da guerra. Vem muitas vezes das camadas profundas do povo, onde o vão encontrar as necessidades da salvação da pátria. (...) A Revolução é outra solução (...). Será a armação inexorável de que, quando tudo está errado, o melhor corretivo é o apagamento de tudo que foi malfeito (Prado, 1997:208-210).

Em 1930, o engenheiro e ensaísta cearense Tomás Pompeu de Sousa Brasil

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Sobrinho, publicou um livro no qual – de uma tacada – se posicionava contra as teorias de mestiçagem e contra a visão do Brasil como país triste. Trata-se de Retrato do Brasil, pequenos retoques, claramente uma resposta ao trabalho de Paulo Prado. Não se trata, no entanto, de um livro ferino e polêmico, nos moldes de um Sylvio Romero. Brasil Sobrinho demonstrou um otimismo e uma paixão em relação ao povo brasileiro fundamentada em sua experiência direta com a realidade em discussão: “a observação o conrma” (Brasil Sobrinho, 1998:428) . O autor fez, na verdade, o que chamaríamos hoje de descontrução das teorias vigentes. Sobre a mestiçagem, garantiu aos indivíduos a plasticidade moldável às ações mesológicas. Na condição de mestiços, desembaraçados das cargas de inuências atávicas, souberam conformar-se a qualquer situação, sendo, portanto, “gente alegre, divertida, dinâmica (...) [ com] vigor físico, e de estrutura intelectual e moral que revelam desde os albores do II século do descobrimento” (i dem ibidem). Brasil Sobrinho virou do avesso as teorias que armavam ser os mestiços indivíduos inferiores ao tipo alegadamente superior de onde provinham. Para ele, uma vez que faltam aos elementos puros a capacidade de adaptação dos mestiços, e  por estarem num meio diverso ao de sua origem, parte considerável de sua situação de superioridade iria por água abaixo. Em relação aos elementos invocados para demonstrar a inviabilidade dos mestiços, tais como “diversidade de estrutura mental”, “tendências desencontradas”, “debilidade de vontade e da resistência orgânica” ou “deciência do espírito de organização”, sequer se preocupou em contestá-los. Considerou tais armativas uma obra de cção, de intelectuais afastados da observação e da prática.  Não passam de pura cção, nunca transpuseram as páginas de alguns livros tendenciosos ou de desavisada erudição. Os que expendem doutrinas tais são talvez grandes pensadores, mas pequenos observadores e péssimos experimentadores (ibidem, p. 429).

Em relação à nossa suposta melancolia, defendida por Paulo Prado, Brasil Sobrinho contra-argumentou, mais uma vez, com a capacidade de adaptação do  povo brasileiro. Se haviam indivíduos tristes nos primeiros séculos de nossa história, talvez o fossem os miseráveis das grandes cidades, mas não o sertanejo. A população dessas cidades era insignicante em face da que laborava a gleba e campeava nos sertões, constituída de elementos xos ou semixos,  porém realmente adaptados, gente sadia, trabalhadora, dinâmica, que levava a vida mais ou menos confortável, segundo as exigências que podia ter, que gozava de relativa liberdade e podia agir com desenvoltura, mover-se, divertir-se e procriar em excelentes condições. Esse povo não podia ser triste

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(ibidem, p. 435).

Se a tristeza porventura é vericada no campo, segundo ele, não seria pelo caráter do povo, mas em função da ausência de educação e de higiene nas áreas rurais. Na sua argumentação, inverteu o padrão explicativo usual da abundância. Caracterizou a fauna e a ora brasileiras como hostis ao homem e aniquiladoras de sua saúde, reduzindo consideravelmente a eciência do trabalhador nacional. Nest e sentido, a doença seria uma conseqüência da insalubridade do meio ambiente e da inexistência de assistência médica e de instrução pública. Aqui [na cidade], com a luz e a saúde retornou a alegria que desertou da gle ba. Lá [no campo], com as moléstias chegou a melancolia que não encontra abrigo seguro onde há higiene (ibidem, p. 439).

Contra uma representação do nordestino como “macambúzio”, argumentou que só a fome, sazonal como as calamidades climáticas, era capaz de abater o seu ânimo: Apesar de ser corrente que o nordestino é macambúzio, temo-lo como alegre e assim nos autoriza julgá-lo o contato que com ele temos tido de cerca de 30 anos ininterruptamente. (...) Durante as calamidades, máxime quando estas tomam proporções assustadoras e a fome abate o ânimo forte das populações campesinas, o povo mostra uma fácies geral de melancolia, perceptível à  primeira vista. Fora disto, noutra qualquer situação, mesmo das mais difíceis e revoltas, é o nordestino gente alegre, brincalhona, curiosa, atilada e dinâmica (ibidem, p. 438).

 No Brasil como um todo, a tristeza só existiria na presença da fome e das moléstias. Este tipo de reexão teórica, baseado na observação direta e na busca de uma interpretação apaixonada pelo Brasil teria continuidade nas décadas seguintes, principalmente em Casa-grande & senzala ou mesmo Raízes do Brasil . No capítulo seguinte, buscarei identicar as pontes e rupturas entre estas discussões, que classico como “ensaios” e as “monograas” acadêmicas que passarão a ser   produzidas nas maiores universidades do país.

Notas 1 Sobre

estar, ver o excelente livro de June E. Hahner, Pobreza e política – os pobres urbanos no Brasil (1870/1920) . 2 Conforme citado por Silva (1999:57). A autora refere-se a um estudo bibliográco elaborado  por Afonso d e E. Taunay, publicado pela Cia. Melhoramentos, de São Paulo, em 1923, como

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3 Bomm

viveu em Paris de 1901 a 1903, quando estudou psicologia e pedagogia com Alfred Binet e Georges Dumas, na Sorbonne. citado por Capistrano de Abreu (1998:201).

5 “Cocagne”

vem do napolitano “cuccagna”, e signica abundância.

(1997:291) arma ser consenso entre os historiadores contemporâneos que os escravos eram mal-alimentados. Cita textualmente Stuart Schwartz, para quem era comum vê-los roubando alimentados ou cozinhando ratos, que caçavam nos canaviais. Sua alimentação básica, conforme a pesquisadora, era farinha de mandioca acrescida de carne-seca e peixe, regados à aguardente e subprodutos de açúcar para estimular o trabalho. 7 Conforme

Nabuco (2000:109). Carvalho (2001:47) contabiliza que às vésperas da Abolição, em 1887, os escravos não passariam de 723 mil, apenas 5% da população do país. Na época da Independência, representavam, 30% da população. Em 1873, era de 1,5 milhão o número de escravos, 15% dos brasileiros. 8 Referência

bíblica (Gênesis, Capítulo 4). Caim, lho de Adão e Eva, por ciúmes matou seu irmão Abel. A Bíblia faz a alusão a uma marca que Deus teria colocado no rosto de Caim após ter-lhe perguntado “Caim, o que você fez a seu irmão?”. 9 Schwarcz

(1999:273) refere-se aos ensaios de Nina Rodrigues intitulados “Mestiçagem, degenerescência e crime”, “Atavismo psíquico e paranóia” e “A paranóia entre os negros”, como exemplos de uma interpretação que entendeu essas populações como “decaídas” e raça como uma noção essencial e ontológica. 10 Schwarcz (2000) analisou em seu trabalho as seguintes instituições: Museu Paulista, Museu  Nacional, Museu Paraense de História Natural, Instituto Histórico e Geográco Brasileiro, Instituto Archeologico e Geographico Pernambucano, Instituto Histórico e Geographico de São Paulo, Faculdade de Direito de Recife, Academia de Direito de São Paulo e os periódicosGazeta  Médica da Bahia e Brazil Médico, do Rio de Janeiro. 11 Romero

(1910) arma tratar-se de trecho do livro de Couty intitulado O Brasil em 1884 . Já Carvalho (1987) cita a mesma frase tendo como fonte o livro L’esclavage au Brésil (Paris, Librairie de Guillaumin et Cie. Editeurs, 1881, p. 87). 2000:80).

13 Bonifácio defendeu também que, por “sábios regulamentos”, não se consinta na “vadiação dos

 brancos, e outros cidadãos mesclados e a dos forros” (Andrada e Sil va, 1998:245). 14 Em

1916, estes artigos seriam publicados no livro Missão Rondon – apontamentos sobre os trabalhos realizados pela Commissão de Linhas telegaphicas Estratégicas de Matto-Grosso ao  Amazonas sob a direcção de Coronel de Engenharia Candido Mariano da Silva Rondon, de 1907 a 1915 (Rio de Janeiro, Typ. do Jornal do Commercio, de Rodrigues & C.). 15 Citação do artigo “Do conceito de eugenia no habitat brasileiro”, do prof. João Henrique,  publicado originalment e na revista Brazil Médico, em 1918; apud Schwarcz (2000:231). 16 Citação de artigo do dr. Renato Kehl, apo iando a lei de esterilização apl icada em Nova Jersey,

no Brazil Médico de 1921; apud Schwarcz (2000:233-234).

país, 70 mil i ndivíduos – sobretudo os pobres e n egros – t eriam sido esterilizados de 1907 até o nal da Segunda Guerra Mundial, conforme Schwarcz (2000:234). 18 Castro Santos (ibidem) utiliza como fonte para estas referências os livros À

margem da história do Brasil , de Vicente Licínio Cardoso (São Paulo, Nacional, 1933) e A organização nacional , de Alberto Torres (São Paulo, Ed. Nacional, 1978 – 1a. ed: 1914). 19 Impossível não fazer uma ligação desta crítica de Lobato com um trecho de Taunay, no qual ele

6 Piore

12 Ver, sobre este tema “Apontamentos so bre as sesmarias do Brasil” (Andrada e Silva,

63

17 Neste

introdução ao livro de Antonil.

4 Conforme

A pobrezA coMo pAisAgeM no pensAMento sociAl brAsileiro

conta como conheceu uma linda jovem do s ertão mato-grossense, que lhe inspirou o personagem  principal de seu romance “Inocência”: Dalli a pouco penetrava na saleta uma moça na primeira or dos annos e tão formosa, tão resplandecente de belleza, que quei pasmo, enleado, positivamente de boca aberta. (...) Os seus encantos revestiam aquelle quartinho de chão batido e paredes nuas de indizivel e estupendo prestigio!... “Daqui a tres semanas, declarou-me o avô, casa ella com um primo. Mas o senhor quer ver que desgraça? A pobresinha da innocente já está com o mal!...” E, levantando-lhe um masso de explendido s cabellos, mostrou-me o lóbulo da orelha direita tumefacto e roxeado! Toda essa radiosa e extraordinaria formosura estava condemnada a ser pasto da repúgnante lepra! (Taunay, 1928:45-46). 20 E também de uma empresa farmacêutica, que utilizou sua história, intitulada “Jecatatuzinho”,  para vender o remédio chamado Biotôn ico Fontoura. 21 Conforme artigo de Monteiro Lobato inti tulado “Jéca Tatu” e publicado em seu livro Mr.

e o Brasil e Problema Vital, de 1918. Ver Lobato (1959:329-340).

Slang 

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cApítulo 2

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As somas e subtrações nas interpretações sobre o Brasil

O ano de 1930 é considerado pela historiograa nacional um divisor de águas na história do país. Para José Murilo de Carvalho (2001) não havia em nosso país, até 1930, povo organizado politicamente, tampouco um sentimento nacional consolidado. A relação entre o povo e o governo fora até então de distância suspeitosa ou mesmo de antagonismo. A partir da chamada Revolução de 30, no entanto, “houve aceleração das mudanças sociais e políticas, a história começou a andar  mais rápido” (Carvalho, 2001:87).  No campo social, o novo governo criou um Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e uma vasta legislação trabalhista e previdenciária, completada em 1943 com a Consolidação das Leis do Trabalho. No campo político, de 1930 a 1937 multiplicaram-se os sindicatos e outras associações de classe, surgiram vários partidos políticos e foram criados movimentos políticos de massa de âmbito nacional. É neste contexto que foram publicados livros importantes sobre o Brasil, como Casa-grande & senzala, Raízes do Brasil e Formação do Brasil contemporâneo. É vasta a produção intelectual sobre Gilberto Freyre, Sérgio Buarque de Holanda e Caio Prado Júnior. Os elementos que destaquei de alguns de seus livros referem-se apenas ao objeto deste livro, ou seja, o tratamento dado às questões referentes à pobreza e às permanências ou rupturas com os ensaios anteriores sobre o Brasil. As referências encontradas são parte constitutivas das grandes i nterpretações e assim devem ser percebidas e não no sentido do fato moderno, como “nuggets of  experience detached from teory” (Daston apud Poovey, 1998:94). Apesar de Antonio Candido destacar, em  Formação do Brasil contemporâneo, o predomínio inovador dos “dados” e dos “substratos materiais” em relação aos trabalhos anteriores, tal ruptura não signicou o abandono de algumas questões consagradas por parte de Caio Prado. Situado dentro de um campo intelectual denido, ele inovaria principalmente no método de tratar questões que preocupavam intelectuais brasileiros desde o início do século XX.  Neste capítulo destaca-se também o livro Geograa da fome, de Josué de

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Castro. Pode-se situar o autor na linha dos médicos-intelectuais que se projetaram durantes campanhas sanitaristas do início do século. Se aqueles, de alguma forma, indicaram que o problema do Brasil era a doença e não a raça, Jos ué de Castro seria taxativo em armar que o problema não era a doença, mas a fome que a gerava. Castro tem uma importância especial para este livro uma vez que suas posições teóricas e políticas sobre a fome ultrapassaram os limites da medicina social e o  projetaram internacionalmente. Sua atuação em organismos como a Organização  para a Alimentação e a Agricultura das Nações Unidas (FAO) e entidades como a Associação Internacional de Luta contra a Fome (Ascofam), foram fundamentais  para que a fome fosse assumida mundialmente como um problema das nações modernas. Uma terceira parte deste capítulo será dedicada a uma análise do Projeto Unesco. Dele destacarei o novo tratamento à questão racial dado por Costa Pinto, Bastide e Fernandes. Como aponta Schwarcz (2000), o livro  Brancos e pretos em São Paulo (1953), assinado pelos dois últimos, é revelador das falácias do mito de democracia racial no Brasil, ao abordar a temática racial a partir do ângulo da desigualdade. O capítulo 2 termina com a análise do livro Os parceiros do Rio Bonito, tese de sociologia de Antonio Candido, defendida na USP em 1954. Antonio Candido, como bem aponta Peirano (1992), inseria-se numa geração que ainda utilizava a literatura como approach da realidade. Daí a construção literária de seu livro, que lhe custou a recusa da nota dez por parte de Roger Bastide, por não considerá-lo  pura sociologia (idem ibidem). Anos depois, Candido diria de sua satisfação em haver escrito um livro que diferia da sociologia de caráter senhorial d e um Gilberto Freyre ou de um Oliveira Vianna: “Eu estudei o oprimido, o sujeito que passa fome” (ibidem, p. 36). Teoricamente, Candido tem como referência Malinowski, Firth, Audrey Richards, Redeld e Oscar Lewis. Há também uma análise breve da tese de doutorado de Maria Sylvia de Carvalho Franco, orientanda de Florestan Fernandes, e que teve Sergio Buarque de Holanda e Antonio Candido em sua banca examinadora. Sua tese tem como objeto a população “pobre e livre” que, nos clássicos do pensamento social brasileiro, como vimos, recebeu um tratamento intersticial ou marginal. Tendo como fonte de análise os mesmos relatos de viajantes utilizados como referência por estes e documentos pesquisados nos cartórios e arquivos do Vale do Paraíba, Maria Sylvia utilizou como fundamentos teóricos Max Weber, Gluckmam, Leach e Marx, entre outros. Ainda neste item, há uma breve genealogia da categoria “caipira” e/ou “caboclo” no material analisado, fundamental para compreendermos seu resgate em Candido e Franco.

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2.1. Entre pontes e rupturas: novas maneiras de ver o Brasil A década de 1930 se caracterizou, grosso modo, pela decadência do evolucionismo social como padrão explicativo para o país e por uma renovação intelectual decorrente da fundação das primeiras universidades. Casa-grande & senzala consagraria uma noção de país racial e culturalmente miscigenado que passaria a ser “uma espécie de ideologia não ocial do Estado, mantida acima das clivagens de raça e classe e dos conitos sociais” (Schwarcz, 2000:248). Para Miceli (1989), nos anos 30 e 40 do século passado a universidade passou a ser o centro de produção intelectual no estado de São Paulo, enquanto no Rio de Janeiro, capital federal, mantinha-se sob a égide e o apoio ocial, dependente de recursos governamentais. Isto não não teria signicado, no entanto, uma maior  especialização dos saberes. O centro do debate intelectual teria continuado sendo as grandes obras literárias (“romances sociais e introspectivos” e “cção e poesia modernista”), ensaios de publicistas, juristas e pensadores que categoriza como “autoritários” (quais sejam Oliveira Vianna, Azevedo Amaral, Manoel Bomm, Alceu Amoroso Lima, Gustavo Barros, Miguel Reale, Plínio Salgado, Hermes Lima e Francisco Campos, entre outros) e uma “fornada” de trabalhos históricos apologéticos. Os “cientistas sociais propriamente ditos” (Miceli, 1989:108) que  publicam nesse período teriam sido Roquete Pinto, Delgado de Carvalho, Anísio Teixeira, Artur Ramos, Djacir Menezes, Fernando de Azevedo, Roberto Simonsen e Carneiro Leão, entre outros, (...) guras de transição prensadas entre denições concorrentes de trabalho intelectual, a meio caminho entre a literatura, o ensaio, as prossões liberais, o trabalho pedagógico, a militância nos movimentos sociais da época, o desempenho de cargos políticos executivos, os negócios pessoais (idem ibidem).

Antonio Candido, em texto escrito em 1967, creditou a três livros, publicados entre 1933 e 1942, o interesse de sua geração na reexão sobre o Brasil. São eles Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre, Raízes do Brasil , de Sérgio Buarque de Holanda e  Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Tais livros, segundo ele, fariam com que análises do tipo feito por Oliveira Vianna se tornassem rapidamente superadas, consideradas “cheias de preconceitos ideológicos e [com] uma vontade excessiva de adaptar o real a desígnios convencionais” (Candido, 1995:9). Casa-grande & senzala foi considerado, na época de seu lançamento, um livro anticonvencional, pelo tratamento dado ao tema da sexualidade e pela importância que atribuía ao escravo na formação do Brasil. Candido o considera “uma  ponte entre o naturalismo dos velhos intérpretes da nossa sociedade, como Sílvio

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Romero, Euclides da Cunha e mesmo Oliveira Viana, e os pontos de vista mais especicamente sociológicos que se imporiam a partir de 1940” (ibidem, p. 10).  Raízes do Brasil , lançado três anos depois é considerado por Candido um livro discreto, de poucas citações, “um corretivo à abundância nacional” (idem ibidem). Da mesma forma que Freyre introduzira no país a antropologia cultural dos norte-americanos, Holanda o fez com a história social francesa, a sociologia da cultura alemã e certos elementos de teoria sociológica e etnológica, até então inéditos. Seis anos depois, foi a vez de  Formação do Brasil contemporâneo, de Caio Prado Júnior. Sem a preocupação dos anteriores com o es tilo na escrita, Caio Prado faria uma interpretação do passado brasileiro completamente inovadora que, em vez de raça ou clima, ressaltaria a produção, a distribuição e o consumo.  Nenhum romantismo, nenhuma disposição de aceitar categorias brandas em certa aura qualitativa – como “feudalismo” ou “família patriarcal” –, mas o desnudamento operoso dos substratos materiais (ibidem, p. 11) .

Enquanto os trabalhos até então consagrados sobre o país, inclusive Casa-grande & senzala e Raízes do Brasil foram escritos em estilo de ensaio,  Formação do Brasil contemporâneo teve como novidade e como fundamentos a presença destacada de “dados”, dos “substratos materiais”, interpretados pelo viés do materialismo histórico. Bem menos citado, Caio Prado já havia publicado, em 1934,  Evolução política do Brasil , onde escreveu uma história do Brasil utilizando o mesmo método. Em seu depoimento, Antonio Candido armou que os três autores trouxeram  para a reexão da juventude da época elementos até então pouco trabalhados: a denúncia contra o preconceito de raça, a valorização do negro, a crítica aos fundamentos patriarcais e agrários, o discernimento das condições econômicas e a desmisticação da retórica liberal. Entre os jovens que professavam ideais po liticamente conservadores, lembra Candido, a preferência continuou recaindo em Oliveira Viana e Alberto Torres, “dos quais tiravam argumentos para uma visão hierárquica e autoritária da sociedade, justamente o que Sérgio Buarque de Holanda criticava em Raízes do Brasil ” (idem ibidem). Sobre Casa-grande & senzala, já se discorreu neste livro, sobretudo destacando sua leitura bastante original sobre a alimentação no Brasil. Sobre  Raízes do Brasil , Candido ressalta que Holanda realizou uma espécie de liquidação do passado rural e patriarcal, abrindo espaço para os estudos urbanos, tornando visíveis, desta forma, as “camadas oprimidas da população” (ibidem, p. 19), consideradas as únicas capazes de revitalizar a sociedade nacional.  Num momento em que os intérpretes do nosso passado ainda se preocupavam

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sobretudo com os aspectos de natureza biológica, manifestando, mesmo sob a aparência do contrário, a fascinação pela “raça”, herdada dos evolucionistas, Sérgio Buarque de Holanda puxou sua análise para o lado da psicologia e da história social, com um senso agudo das estruturas. Num momento ainda  banhado de indisfarçável saudosismo patriarcal, sugeria que, do ponto de vista metodológico, o conhecimento passado deve estar vinculado aos problemas do presente. E, do ponto de vista político, que sendo o nosso passado um obstáculo, a liquidação das “raízes” era um imperativo do desenvolvimento histórico (ibidem, p. 20).

Em agosto de 1986, quando dos 50 anos de lançamento de  Raízes do Brasil , Candido referiu-se a Casa-grande & senzala como “etapa avançada do liberalismo de nossas classes dominantes” e  Formação do Brasil contemporâneocomo “representante da ideologia marxista, que tem como referência o trabalhador” (ibidem,  p. 23). Sobre Raízes do Brasil , Candido rearmou tratar-se de livro voltado deci didamente para o povo. Refere-se a Sérgio Buarque de Holanda como o primeiro  pensador brasileiro a abandonar a posição ilustrada (de administrar os interesses e orientar a ação do povo) que até então teria caracterizado nossos intelectuais,  políticos e governantes (idem ibidem). Como em Casa-grande & senzala, entre o “ócio” e o “negócio”, a “aventura” e o “trabalho”, o “semeador” e o “ladrilhador” de  Raízes do Brasil , procurei encontrar elementos rearmadores ou negadores das teorias anteriores. O motivo do suposto pouco apego ao trabalho dos brasileiros, por exemplo, explicado até então unicamente pelo fato de ser atividade de escravos, Holanda buscou em Portugal. Ali também identicou um povo que já era mestiço antes de lançar-se ao mar em busca de riquezas. Mas considero sua maior contribuição para este estudo, a análise que fez do caráter do povo ibérico, arredio a todas as modalidades de racionalização e, por conseguinte, de despersonalização. Isto se reetiria, no Brasil, nas inúmeras reexões sobre o país e seu povo e na crença da mudança por  via de teorias e lei. “Não existiria, à base dessa conança no poder milagroso das idéias, um secreto horror à nossa realidade?” (Holanda, 1995:159). Além disso, tais convicções, professadas principalmente pelos positivistas envolvidos no poder  “defendiam-nos do resto do país, no recesso dos gabinetes, pois foram, todos eles, grandes ledores” (idem ibidem). Holanda identicou no século XIX uma distância cada vez maior entre os letrados e a massa brasileira, distância que se evidenciaria depois, em todos os instantes supremos da vida nacional. Diante do horror da realidade cotidiana, a literatura romântica ao invés de esboçar “uma reação sã e fecunda, não tratou de corrigi-la ou dominá-la; esqueceu-a, simplesmente, ou detestou-a, provocando desencantos precoces e ilusões de maturidade” (ibidem, p. 162). Esta não era, no entanto, prerrogativa apenas de escritores e poetas, mas sim da maioria dos “homens

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de idéias”, que “ainda quando se punham a legiferar ou a cuidar de organização e coisas práticas (...) eram em geral, puros homens de palavras e livros; não saíam de si mesmos, de seus sonhos e imaginações” (ibidem, p. 163).  Evolução política do Brasil , livro de estréia de Caio Prado, foi lançado nos mesmos anos de Casa-grande & senzala e Raízes do Brasil , o que por si só mereceria um estudo maior sobre seu impacto intelectual e político. Evaldo Cabral de Mello, ao defender a tese de que não é possível a realização de uma “sociologia da formação brasileira”, cita o caso de  Evolução política do Brasil , que dene como “aplicação hábil de uma teoria sociológica à realidade brasileira, a qual esclarecerá aspectos relevantes do nosso passado mas ignorará ou não compreenderá outros” (Mello, 1995:191). Crítico mordaz do que chama de “vezo entre mórbido e narcísico de ajustar contas com o passado nacional” (idem ibidem), o autor considera que a geração dos anos 1930 (de Holanda, Freyre e Caio Prado), que dialogou com esta vertente ensaística, sobreviveu intelectualmente apenas pelo que tinha de historiadora, de “tesão pelo concreto” e não pelas tentativas de “sociologizar” a nação (idem ibidem). Elide Rugai Bastos, diferentemente, considera que Caio Prado produziu uma das contribuições básicas para a interpretação do Brasil, representando em 1933, “uma ruptura com as visões tradicionais sobre a organização da sociedade  brasileira” (Bastos, 2000:16). Embora seu nome esteja ligado, indubitavelmente, à historiograa brasileira, notadamente no período colonial, há que se resgatar sua importância na trajetória de estudos que estamos acompanhando. Dentro deste contexto, coube a Caio Prado, nas palavras de Leandro Konder, “a façanha de uma estréia” (Konder apud Aguiar, 2000:266), ou seja, a sua capacidade de superar os  problemas de insuciência teórica de seus predecessores brasileiros no campo da interpretação materialista. Logo na primeira página de Evolução política do Brasil , Caio Prado esclarece que não escreveu um livro de história do Brasil, e sim um ensaio no qual utiliza um método novo, que chama de “interpretação materialista”. Por meio dele, se propôs a escrever uma história que não fosse a gloricação das classes dirigentes. Daí o grande espaço que deu aos movimentos sociais conhecidos como Cabanadas, Balaiada e Praiera. Ao fazê-lo, enfatizou a presença no Brasil colonial de uma “massa popular”, de “forças populares”, de “camadas oprimidas”, “camadas po pulares” ou “classes pobres”, formadas por “uma população miserável de índios, mestiços e negros escravos” (Prado Junior, 1980:23). A divisão da sociedade colonial em classes, que já havia sido realizada por   Nabuco, Bomm e Romero, em Caio Prado assumiu um viés conceitualmente mais renado, sem espaço para diferenci ações ou reciprocidades. De um lado, uma reduzida classe de proprietários e, do outro, a grande massa que trabalha e produz, mas é explorada e oprimida.

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É assim extremamente simples a estrutura social da colônia no primeiro século e meio de colonização. Reduz-se em suma a duas classes: de um lado os proprietários rurais, a classe abastada dos senhores de engenho e fazenda; doutro a massa da população espúria dos trabalhadores do campo, escravos e semilivres. (...) Trabalhadores escravos ou pseudolivres; proprietários de  pequenas glebas mais ou menos dependentes, ou simples rendeiros, todos em linhas gerais se equivalem. Vivem do seu salário, diretamente de suas  produções ou do sustento que lhes concede o senhor; suas condições materiais de vida, sua classicação social é praticamente a mesma (ibidem, p. 28).

Ao analisar o porquê das revoltas populares não terem levado a uma tomada de poder, Caio Prado buscou explicações na “reação” de setores da elite, as mesmas que haviam dado início ao movimento. A pressão revolucionária começa nas camadas logo abaixo da classe dominante. Daí se generaliza para toda a massa, descendo sucessivamente de uma  para ou tra cama da inferi or. Isto provoca uma con tramarcha das próprias classes iniciadoras do movimento, e que de revolucionárias, sob a pressão que as arrasta para onde não querem ir, passam a reacionárias, ou pelo menos abandonam o movimento. Deixam assim à sua sorte os últimos a entrarem na luta, que por esta forma enfraquecidos, são esmagados pela reação do poder  central (ibidem, p. 60).

As classes inferiores, no entanto, não foram poupadas pelo autor. Muito do fracasso dos movimentos, Caio Prado atribuiu à “atitude revolucionária inconseqüente (...) sem coesão, sem ideologia” (ibidem, p. 61) das massas populares . Na verdade, segundo autor, tais setores da sociedade “não se encontravam politicamente maduros para fazerem prevalecer suas reivindicações, nem as condições objetivas do Brasil eram favoráveis para sua libertação econômica e social” (ibidem, p. 46). O papel político dos escravos foi considerado insignicante, uma vez que “grande  parte vinha diretamente das selvas africanas, e por isso em nada se diferenciava das populações ainda em completo estado de barbárie de que provinha” (ibidem,  p. 60). Além disso, suas divisões internas, dadas pelos diferentes locais de origem, impediam sua conguração como uma massa coesa. Quanto à população livre das camadas médias e inferiores, formavam, na visão de Caio Prado, um simples aglomerado de indivíduos, sem interesses comuns. Caio Prado esclareceu, no entanto, que muito desta “atitude revolucionária inconseqüente das camadas inferiores” estava diretamente ligada a uma economia  baseada na escravidão e que não comportava uma estrutura política democrática e  popular. Esta soma de fatores levaria a que, na segunda metade do século XIX, as

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massas populares saíssem de cena, dando à burguesia nacional o papel principal no palco político da nação. As massas populares, mantidas numa sujeição completa por leis e instituições opressivas, passam para um segundo plano, substituindo pela passividade sua intensa vida política dos anos anteriores. Pôde assim a grande burguesia indígena entregar-se ao plácido usufruto de toda a nação. Daí por diante as lutas são no seu seio. É dentro dela que vamos encontrar os germes da discórdia, e será a luta destas tendências opostas de grupos burgueses que constituirá a história política da segunda metade do século passado (ibidem, p. 79).

Abro um parêntese na análise da Caio Prado pra registrar que, no mesmo ano do lançamento de Evolução política do Brasil , o antropólogo Edgar Roquete-Pinto, em seu livro  Ensaios de antropologia brasileira, permanecia discutindo antigas questões, o que demonstra que continuavam importantes para os intelectuais  brasileiros. Armava, por exemplo, que o nosso problema não era o clima, pois tínhamos no Brasil condições de vida fácil, com ausência de invernos rigorosos e necessidades alimentares reduzidas. Inspirado em Alberto Torres defendeu que as insuciências vinham da falta de organização nacional, entendida como educação do povo, nacionalização da economia e circulação de idéias e riquezas. Também Aurélio da Limeira Tejo via ainda a necessidade de discutir a relação entre o clima e o homem do Nordeste. Em 1937, no livro  Brejos e carrascais do  Nordeste, analisou a “vida social da caatinga”, onde vivia o sertanejo “na última escala do conforto” (Tejo, 1998:31) . Tendo como fonte de reexão a observação direta, Tejo – na linha de Romero – apresentou informações detalhadas sobre a vida no sertão nordestino. Basta dizer que o operário sertanejo não existe. Ninguém aluga sua forma de trabalho. Cada um enfrenta por conta própria a vida na caatinga. O próprio vaqueiro não percebe férias. Trabalha por “comissão”. Recebe ¼ de cada (...)  bezerro que nasce de rebanho connado à sua guarda. (...) O resto da população que não possui terras constitui a classe dos “moradores” das fazendas.  Não paga foro nem tributos de qualquer espécie, não dá as suas colheitas “de meia” e ainda vai buscar na casa do fazendeiro um vestido velho, um sapato velho, retalhos de pano. A não ser em ocasiões excepcionais, os sem-terra da caatinga não trabalham para ninguém. Vivem dos seus roçados de brinquedo, das suas cabras, de uma atividade manual qualquer (Tejo, 1998:36-37).

Em tal contexto, armou Tejo, a pobreza seria uma decorrência da seca, um agelo da natureza.

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Toda a vida da caatinga sertaneja está, assim, mais ou menos contada, dentro dos seus quadros rudimentares. A própria miséria que a seca traz, o homem desse mundo suporta, da mesma maneira que o japonês suporta os seus terremotos – como um agelo da natureza (ibidem, p. 38).

Em 1942, Caio Prado lançou o que é considerado seu grande livro  Formação do Brasil contemporâneo. Nele, a leveza ensaística de  Evolução política do  Brasil desapareceria. Excelente trabalho histórico sobre a fase colonial do Brasil, com fontes abundantes e analisadas com objetividade, foi e continua sendo leitura obrigatória nos cursos de história das universidades brasileiras.  Formação do Brasil contemporâneo insere a descoberta e a colonização do Brasil no contexto maior do movimento europeu de expansão do capitalismo mercantil, ou seja, de “uma vasta empresa comercial, sem maiores preocupações em construir uma sociedade unitária e integrada” (Lapa, 1999:263). Além disso, as transformações decorrentes da transferência da monarquia portuguesa para o Brasil e os preparativos para a emancipação política conguram, para Caio Prado, um período no qual se deu o balanço dos três séculos de colonização, uma “chave  preciosa e insubstituível para se acompanhar e interpretar o processo histórico  posterior e a resultante dele que é o Brasil de hoje” (Prado Junior, 1996:9). Embora tenha sido concebido e tido suas interpretações e conclusões pautadas pela tradição dialética marxista, percebe-se no livro a permanência de parte dos padrões explicativos consagrados sobre o Brasil. Para alguns autores, isto se explica pelo fato de que, não obstante ter inaugurado um estilo diverso de pensar  a realidade nacional, podendo ser inclusive pensado como um “historiador da ruptura” (no sentido da superação do discurso conservador), Caio Prado, ao redenir  e não rejeitar categorias como “raça” e “índole”, teria se rendido à “continuidade de um ideário nacionalizante e romântico” (Melo apud Aguiar, 2000:265). Em relação à questão racial, Caio Prado armou que a mestiçagem, “signo sob o qual se forma a nação brasileira”, n unca poderia ser pensada como problema, uma vez que foi a solução encontrada pela colonização portuguesa para resolver  suas diculdades de ocupação do novo território. Acabou, no entanto, reicando algumas visões tradicionais, ao denir o Brasil colonial como resultado da fusão de três raças, “juntas e mesclando-se sem li mites, numa orgia de sexualismo desenfreado” (ibidem, p. 107). Em sua análise, se fez presente o sexo (“cruzamento com mulheres de outras raças, de posição social inferior e portanto submissas” [ibidem,  p. 109]), o sangue (“novas infusões de sangue puro e fresco” [ibidem, p. 107]) e a “excepcional capacidade portuguesa” (idem ibidem) de cr uzar-se com outras raças. O autor tratou também de uma outra recorrência interpretativa, menos presente que a anterior, mas fortalecida pela divulgação das idéias de Gilberto Freyre: a suposição de que haveria uma “convenção tática” de que a riqueza poderia obliterar 

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a raça no Brasil colonial, de forma a que o preconceito de cor se harmonizasse com a presença de sangue negro e índio nas pessoas melhor qualicadas da colô nia. Para reforçar seu argumento, como Freyre e outros autores já analisados, fez referência a um relato de Henri Koster, em seu Voyages pitoresques, scientiques et historiques em Amérique, Brésil : É conhecida a anedota de Koster, que chamando a atenção de um seu empregado, aliás, mulato, para a cor carregada e mais que suspeita de um capitão-mor, obteve a singular resposta: “Era (mulato), porém já não o é”. E ao espanto do inglês acrescentava o empregado: “Pois, senhor, capitão-mor   pode lá ser mulato?” (ibidem, p. 109).

Por não estar inserida no sistema produtivo colonial, a “agricultura de subsistência” foi desprezada pelo autor. Enquanto a organização da “grande lavoura” exportadora foi considerada a origem de toda a estrutura social do país, ou seja, do conjunto de relações sociais, a agricultura de subsistência teria sido economicamente insignicante e praticamente ausente em termos de organização da produção (ibi dem, p. 143). Quanto aos pequenos agricultores coloniais, Caio Prado teve sobre os mesmos uma imagem absolutamente negativa. E as populações que nelas se xaram, populações marginais de baixo teor  de vida na maioria, aí se encontram só porque não acham lugar nas zonas de maiores perspectivas que são da grande lavoura. A mediocridade desta mesquinha agricultura de subsistência que praticam, e que nas condições econômicas da colônia não podia ter senão este papel secundário e de nível extremamente baixo, leva para elas, por efeito de uma espontânea seleção natural, econômica e moral, as categorias inferiores da colonização. Não encontramos aí, por via de regra, senão um elemento humano, residual, so bretudo mestiços do índio que conservavam dele a indolência e qualidades negativas para um teor de vida material e moral mais elevado. Ou então,  brancos degenerados e decadentes (ibidem, p. 161).

 Numa linha inversa à de Gilberto Freyre, Caio Prado armou que a contri  buição do escravo preto ou índio para a formação brasileira foi praticamente nula (ibidem, p. 272). Para além de seu papel de energia motriz, teria sido sobretudo um corruptor da cultura branca.  Não que deixasse de concorrer, e muito, para a nossa “cultura” no sentido amplo que a antropologia emprega a expressão; mas é antes uma contribuição passiva, resultante do simples fato da presença dele e da considerável difusão de seu sangue, que uma intervenção ativa e construtora. O cabedal

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de cultura que traz consigo da selva americana ou africana e que não quero subestimar, é abafado, e se não aniquilado, deturpa-se pelo estatuto social, material e moral a que se vê reduzido seu portador. E aponta por isso, muito timidamente, aqui e acolá. Age mais como fermento corruptor da outra cultura, a do senhor branco que se lhe sobrepõe (idem ibidem).

Há uma oscilação no texto entre estes momentos, onde o autor segue dialogando com a tradição de pensamento até então dominante e a releitura que faz dos mesmos dados, à luz do materialismo histórico. Embora formulasse tais opiniões sobre os  pequenos agricultores e escravos, Caio Prado rejeitou as teorias que buscavam na limpeza étnica o resgate das populações mestiças. O problema não estaria tanto na cor, mas no nível de desenvolvimento moral e intelectual das raças escravizadas. Estas teriam formado uma espécie de “corpo estranho” na sociedade colonial, cuja absorção ainda não teria se completado. As raças escravizadas e assim incluídas na sociedade colonial, mal preparadas e adaptadas, vão formar nela um corpo estranho e incômodo. O processo de sua absorção se prolongará até nossos dias, e está longe de terminado.  Não se trata apenas da eliminação étnica que preocupa tanto os “racistas”  brasileiros, e que, se demorada, se fez e ainda se faz normal e progressivamente sem maiores obstáculos. Não é este, aliás, o aspecto mais grave do  problema, aspecto mais de “fachada”, estético, se quiserem: em si, a mistura de raças não tem para o país importância alguma e de certa forma pode até ser considerada vantajosa. O que pesou muito mais na formação brasileira é o baixo nível destas massas escravizadas que constituirão a imensa maioria da população do país (ibidem, p. 276).

Coerentemente ao método adotado, Caio Prado considerava escravos e senhores os “bem classicados” da hierarquia e na estrutura social da colônia: os  primeiros por serem a massa trabalhadora, os outros por dirigirem a produção. Tratavam-se, no seu entender, de “categorias nitidamente denidas e entrosadas na obra da colonização” (ibidem, p. 281). O restante viveria “no vácuo” entre os extremos da escala social: são os destituídos de recursos materiais, os desclassi cados, os “inúteis e inadaptados; indivíduos de ocupação mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma” (idem ibidem). Calculou que estes “elementos indenidos socialmente” seriam, nos tempos coloniais, cerca de três milhões de pessoas, a imensa maioria da população livre.  Na sua composição entrariam sobretudo os “pretos” e os “mulatos forros” ou fugidos da escravidão; índios afastados de suas aldeias e mal ajustados na sociedade colonial, mestiços de todas as categorias e “  poor whites”, lançados à indigência  pela colonização escravocrata e rígida (ibidem, p. 282).

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Enquanto uma “subcategoria colonial”, esta população foi dividida em três  partes pelo pelo autor: “os “os que vegetam vegetam miseravelmente miseravelmente nalgum nalgum canto canto mais ou menos menos remoto e apartado da civilização, mantendo-se ao deus-dará, embrut ecidos e moralmente degradados” (idem ibidem); os que “se encostam a algum senhor poderoso e em troca de pequenos serviços (...) adquirem o direito de viver à sua sombra” (ibidem, p. 283) e “a casta numerosa dos vadios” (idem ibidem). No primeiro grupo estaria grande parte da população amazônica (“estes tapuias que deixaram de ser  silvícolas, e não chegaram a ser colonos” [ibidem, p. 282]) e os “caboclos”, que Caio Prado deniu como índios puros ou quase puros que vivem no resto do país, “isolados do mundo civilizado que os cerca e rejeita” (idem ibidem), vivendo numa economia natural. Também fazem parte deste grupo os negros e pardos que levam uma vida semelhante a dos índios, os quilombolas e brancos mais ou menos puros, expelidos ou fugidos da civilização (idem ibidem).  No segundo segundo grupo, encontram encontram-se -se os agregados, agregados, os moradores moradores dos engenhos, engenhos, que vivem nas terras dos grandes proprietários e recebem deles proteção e auxílio. O terceiro grupo, “mais degradado, incômodo e nocivo”, nas palavras de Caio Prado, era formado pelos desocupados permanentes, “vagando de léu em léu à cata do que se manter e que, apresentando-se a ocasião, enveredam francamente  pelo crime” crime” (ibidem, p. p. 283). Daí porque seu recrutamento para as milícias particulares dos grandes proprietários foi vista com bons olhos por Caio Prado, uma vez que “canaliza sua natural turbulência e lhes dá um mínimo de organização e disciplina” (ibidem, p. 284). Caio Prado adotou aqui uma posição bastante semelhante à de Oliveira Vianna em Populações em Populações meridionais do Brasil , apesar de não tê-lo citado. Para ambos, o trabalho como “jagunço” de um fazendeiro poderoso delimitava um lugar na sociedade colonial para indivíduos potencialmente perigosos e sem controle. Para Vianna, estes formavam uma população (...) dispersa, desagregada, instável, inconsciente de si mesma pela ação simplicadora dos grandes domínios, [que] só vale quando utilizada pelos grandes caudilhos territoriais. Estes a subordinam inteiramen te, e a contêm nas suas impulsões instintivas, e a disciplinam nas suas rebeldias, e a aproveitam nas suas capacidades agressivas, ao organizarem os seus clãs fazendeiros (Vianna, 1952:259-260).

Ainda em relação ao terceiro grupo, Caio Prado identicou nas cidades sua maior periculosidade, pois nela não se encontrava, como no campo, “a larga hospitalidade que lá se pratica, nem chefes sertanejos prontos a engajarem sua  belicosidade”  belicosidade” (Prado (Prado Júnior, Júnior, 1996:284). 1996:284). Para o historiador José Roberto do Amaral Lapa, tais “e scorregões semânticos  preconceituo  preconceituosos” sos” (Lapa, (Lapa, 1999:28 1999:286) 6) de Caio Prado são redimidos redimidos quand quandoo este este tentou

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(...) demonstrar que a potencialidade econômica, social e cultural, sob o  ponto de vista da dignicação, que os índios e negros ofereciam aos colonos  portugueses, foi desprezada em favor de uma instituição à qual só interessavam o esforço e o exercício físico dos homens e mulheres escravos, tanto no trabalho quanto na cama (ibidem, p. 268).

Mesmo concordando com análises como a de Maria Ângela D’Incao, 1 que  busca, nos ensinamentos ensinamentos de Caio Prado sobre a formaçã formaçãoo social social e política política do Brasil, as raízes explicativas da desigualdade social brasileira, tais “escorregadelas” do autor não podem passar desapercebidas. Como bem lembra Lapa, uma das teses centrais do livro (...) aponta esse caldo étnico formado por  pretos  pretos boçais e índios apáticos, apáticos, engrossados por brancos por brancos degenerados e decadentes, decadentes, para usarmos a desdenhosa adjetivação do autor, como sendo o substrato da nossa sociedade, fatal comprometedor de um processo revolucionário que pudesse romper com essa decisiva barreira de origem (Lapa, 1999:271).

 Não é à toa que Caio Prado também também se referiu referiu à frase frase de Couty, Couty, desta vez vez no original: “Le Brésil n’a pas de peuple” (Prado Júnior, 1996:281). Mas, em mais um momento de oscilação, armou que a subcategoria de população colonial que analisou, além de presença importante em termos populacionais, teve presença  política na na transição transição da colônia colônia para o Império: É naquele elemento desenraizado da população brasileira que se recrutará a maior parte da força armada para a luta das facções políticas que se formam; e ela servirá de aríete das reivindicações populares contra a estrutura maciça do Império (Prado Júnior, 1996:285).

As lições de desigualdade, lembradas por D’Incao, são oferecidas por Caio Prado quando este demonstrou que, vivendo à margem da ordem social, esta população não tinha ocupações normais e estáveis capazes de lhe absorver, xar e dar  uma base segura de vida. Por trás dessa realidade, estavam a escravidão, o sistema econômico de produção colonial e a instabilidade da economia e produção. A escravidão “que desloca os indivíduos livres da maior parte das atividades e os força  para situações situações em que a ociosidade e o crime se tornam tornam imposições fatais fatais (idem ibidem). O sistema econômico, por não liberar espaço para outras atividades que não a grande lavoura. A instabilidade da economia, com sua evolução por ciclos,  por deixar deixar milhares de arruinados arruinados nas suas suas alternâncias alternâncias de de prosperidade prosperidade e ruína: ruína:

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A pobrezA no pArAíso tropicAl As repercussões sociais de uma tal história foram nefastas: em cada fase descendente, desfaz-se um pedaço da estrutura colonial, desagrega-se a parte da sociedade atingida pela crise. Um número mais ou menos avultado de indivíduos inutiliza-se, perde suas raízes e base vital de subsistência. Passará então a vegetar à margem da ordem social (ibidem, p. 286).

 No último último capítulo capítulo de de Formação do Brasil Brasil contemporâneo contemporâneo,, Caio Prado fez um resumo de suas reexões, tornando mais claros seu argumentos. A vida social na colônia é denida como um aglomerado heterogêneo de raças, reunidas ao acaso  para realizar uma vasta empresa comercial. Duas destas raças, “semibárbaras”, “semibárbaras”, foram “incorporadas pela violência” e tiveram como “única escola” o “eito e a senzala” (ibidem, p. 341). Desta Des ta população, o primeiro traço destacado pelo autor é a ausência de qualquer nexo moral. 2 Na ausência destes, a única integridade social que se criou foi a relação de subordinação do escravo ou agregado ao seu senhor  (idem ibidem). Onde não predominava a escravidão, com sua sólida e acabada estruturação e coesão, reinava a dispersão e a incoerência. Em resumo, a sociedade colonial seria constituída de (...) um núcleo central organizado, cujo elemento principal é a escravidão; e envolvendo este núcleo, ou dispondo-se nos largos vácuos que nele se abrem, sofrendo-lhe mesmo, em muitos casos, a inuência da proximidade, uma nebulosa social incoerente social incoerente e desconexa (ibidem, p. 342, grifos meus).

Sobretudo, para Caio Prado, a escravidão não fruticou numa superestrutura, nos moldes materialistas históricos. Quanto aos homens livres e pobres, não se  poderia  poderia falar falar sequer sequer em estrutura, estrutura, diante diante da realidade realidade de “vadiagem “vadiagem e cabocli caboclização zação”” (ibidem, p. 344). Dentro da mesma inspiração teórica, armou que toda a sociedade organiza da deveria se fundar na regulamentação dos dois instintos primários do homem: o econômico e o sexual. No caso brasileiro, em relação ao primeiro tivemos um regime servil que estimulou a ociosidade. Uma tal atitude da grande maioria, da quase totalidade da colônia relativa ao trabalho. De generalizada que é, e mantida através do tempo, acabará naturalmente por se integrar na psicologia coletiva como um traço profundo e inerraigável do caráter brasileiro (ibidem, p. 348).

Caio Prado arma que, além da escravidão, teriam contribuído para a ocio sidade da população o sangue indígena e o sistema econômico da colônia, sem oportunidades nem perspectivas.

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A apatia, Paulo Prado esqueceu-se de a incluir entre os fatores da tristeza  brasileira, que não vem somente da luxúria e da cobiça, mas sobretudo de uma inatividade sistemática, que acaba se apoderando do indivíduo todo, tirando-lhe até a energia de rir e folgar (ibidem, p. 349-350).

Ainda em relação à economia colonial, Caio Prado arma ter sido a mesma uma lástima, porque (...) afora o trabalho constrangido e mal executado do escravo, não se vai além do estritamente necessário para não perecer à míngua. E isto explica sucientemente, a par das condições gerais da economia que já assinalei, e que são anal a causa indireta de tudo isto que estamos vendo, o baixo, o ínmo padrão de vida da população colonial, a sua pobreza, sem excetuar  mesmo as classes mais favorecidas. Do Brasil, em conjunto, dirá Vilhena que, apesar dos recursos naturais dele, é a “morada da pobreza” (ibidem,  p. 350).

Em relação ao instinto primário sexual, Caio Prado ressaltou a fraqueza dos laços familiares e a disseminação da prostituição. Numa outra “escorregadela”, armou que a prostituição explicaria (...) o destino da parte feminina deste numeroso contingente da população, cuja masculina já vimos noutro capítulo: os desocupados e vadios, vivendo de expedientes, com um pé na ociosidade e outro no cri me (ibidem, p. 354).

Diante desta perspectiva de Caio Prado, o Brasil foi uma sociedade fundada na desregulamentação do econômico e do sexual. Ou, na ausência desta regulamentação, sequer se formou como sociedade. Como nos adequarmos aos critérios materialistas de sociedade organizada? Um povo de vadios e prostitutas, vivendo numa sociedade colonial marcada pela “incoerência e instabilidade no povoamento,  pobreza e miséria miséria na economia, economia, dissolução dissolução nos costumes costumes e inércia inércia e corrupção corrupção nos nos dirigentes leigos e eclesiásticos” (ibidem, p. 356)? Para Caio Prado, a sociedade  brasileira tinha esse esse passivo histórico a ser resgatado: resgatado: A colonização produziu seus frutos quando reuniu neste território imenso e quase deserto, em 300 anos de esforços, uma população catada em três continentes, e com ela se formou, bem ou mal, um conju nto social que se caracteriza e identica por traços próprios e inconfundíveis; quando devassou a terra, explorou o território e nele instalou aquela população; quando nalmente remeteu por cima do oceano, para os mercados da Europa, caixas de açúcar,

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A pobrezA no pArAíso tropicAl rolos de tabaco, fardos de algodão, barras de ouro e pedras preciosas. Até aí construiu; mas ao mesmo tempo, e a par desta construção, foi acumulando um passivo considerável (ibidem, p. 356).

Tal passivo poderia ser identicado na proporção considerável da população que, com o tempo, foi cando à margem da atividade produtiva normal da colo nização, criando um desequilíbrio inevitável. Enquanto houve apenas senhores e escravos, arma, tudo ia bem, ou seja, cada um destes grupos tinha seu lugar  na estrutura social e econômica. O problema, segundo Prado Júnior, foi quando começaram a surgir “categorias que não eram de escravos nem podiam ser de senhores” (ibidem, p. 359). Aí sua ótica marxista ca bastante clara: não havia lugar no sistema produtivo para aquela imensa população que vivia “no vácuo” dos senhores e escravos. Um povo que não produz não tem capacidade revolucionária e desequilibra o próprio sistema colonial (ibidem, p. 360). Destaco tais armativas porque acredito que, na sua ruptura com padrões não -marxistas de análise, conservadores e hierárquicos, Caio Prado reproduz destes um certo depreciamento da população pobre do país. Não mais apenas por seus  padrões morais, morais, pela preguiça preguiça ou pela indolênci indolência, a, mas talvez talvez por se enquadra enquadrarem rem na perigosa categoria do lumpemproletariado, 3 considerada pouco conável e conservadora pelo pensamento marxista tradicional.  Nas “pontes” e “rupturas” vistas acima, nem a pobreza foi tratada como “problema”, nem os pobres percebidos como sujeitos. Principalmente em Caio Prado Júnior, os avanços teóricos enfatizaram o sistema econômico colonial e seus  principais  principais agentes, agentes, senhores senhores e escravos. escravos.

2.2. As “manchas negras da ome” de Josué de Castro e o “coronelismo” “coronelismo” de Vitor Nunes Leal: novas percepções sobre a pobreza Ainda na década de 1940, um outro livro deixaria seu registro ent re as grandes interpretações sobre o Brasil. Rero-me à Geograa da fome, fome, de Josué de Castro, lançado em 1946. A produção intelectual de Josué de Castro é representativa de um momento histórico, os anos 1950, quando a noção de desenvolvimento tomou conta do debate nacional, substituindo as preocupações anteriores com a construção da nação (Magalhães, 1997:62). Embora outros intelectuais de renome, como Gilberto Freyre, tenham trabalhado sobre alimentação e descrito detalhadamente o que se produzia e comia no Brasil, Castro foi o primeiro a tratar do assunto como objeto central de investigação. Existe pouca coisa escrita no Brasil sobre “o cientista que tratou pela primeira vez, de forma sistemática, o tema da fome no país e no planeta e ocupou cargos em

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organismos nacionais e internacionais” (Aguiar, 2000:13) . A historiadora Maria Yedda Linhares escreveu uma biograa que tem sido a base da maior parte das referências a vida de Josué de Castro (Linhares, 1992). Formou-se nas escolas de Medicina na Bahia e no Rio de Janeiro e, recém-formado, promoveu seu primeiro “inquérito” sobre as condições de vida da classe operária, o qual se tornou um (...) estudo pioneiro no país e que serviria de modelo para investigações semelhantes, nos anos 1930 e 1940, em outros estados da Federação, no  bojo do movimento que se desenvolvia pela xação do salário mínimo e  pelo reconhecimento dos direitos direitos dos trabalhadores (Linhares, (Linhares, 1992:333).

Em 1935, já no Rio de Janeiro, foi professor de antropologia física da Universidade do Distrito Federal. Nesse período, direcionou suas pesquisas médicas para a busca de respostas concretas para o pr oblema da fome e da subnutrição no Brasil. Br asil. Em 1938, estagiou no Instituto Bioquímico de Roma e deu cursos nas universidades de Roma, Nápoles e Gênova. De volta ao Brasil, tornou-se catedrático de geograa humana da recém-criada Faculdade de Filosoa, Ciências e Letras da Universidade do Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (idem ibidem). Entre 1939 e 1945, promoveu cursos sobre alimentação e nutrição no Departamento Nacional de Saúde Pública e na Faculdade de Medicina da Universidade do Brasil. Foi eleito, em 1942, presidente da Sociedade Brasileira de Nutrição e criou o Serviço de Alimentação da Previdência Social (SAPS). Foi também chefe do Departamento Técnico de Alimentação da Coordenação da Mobilização Econômica e membro da Comissão Organizadora da Comissão do Bem-Estar Social (ibidem, p. 334). Conforme Linhares, “já internacionalmente conhecido por sua obra e sua luta implacável contra as desigualdades econômicas e a miséria dos povos que sofreram a exploração colonial do mundo capitalista, denunciando a fome e a subnutrição como os males sociais do subdesenvolvimento e do colonialismo” (ibidem, p. 335), foi eleito presidente do Conselho da FAO (Roma, 1952-1956). Em 1960,  presidiu uma campanha campanha de de defesa contra a fome promovida pelas Nações Unidas, armando que o primeiro direito do homem deveria ser o de não passar fome. De 1955 a 1963, exerceu, pelo Partido Trabalhista Brasileiro, o mandato de deputado federal por Pernambuco, ao qual renunciou para assumir o posto de embaixador   brasileiro junto aos organismos organismos internacionais das Nações Unidas em Genebra (1963-1964). Sua trajetória ascendente nos organismos internacionais terminaria, no entanto, em 1964, quando teve seus direitos políticos cassados pelos militares que tomaram o poder no Brasil. Este mesmo golpe militar signicou, em termos de Brasil, um silenciamento muito grande, durante décadas, sobre as bandeiras empunhadas por Castro (ibidem, p. 335).

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Exilado na França, Josué de Castro criou a Associação Internacional de Luta contra a Fome (Ascofam), com o apoio de intelectuais de renome como Joseph Lebret, Abbé Pierre, Albert Schweitzer, Raymond Schevein, Louis Maire, Kuo-Mo-Jo, Paul Martin, Lord Boyd Orr, Tibor Mende, René Dumont e Max Habitch. O livro negro da fome, de 1957, contém um manifesto recomendando a criação da Ascofam, no qual Castro e outros signatários armam que seu objetivo “foi o de demonstrar que fome e subdesenvolvimento são uma coisa só, não havendo outro caminho para lutar contra a fome, senão o da emancipação econômica e da elevação dos níveis de produtividade das massas de famintos, que constituem 2/3 da população mundial” (Ascofam, 1957:1). Esse manifesto foi divulgado em várias línguas, pelo mundo inteiro. A importância de Castro se revela também pelo convite para que participasse de inúmeras associações cientícas na Europa, nos Estados Unidos e na União Soviética. Recebeu, em 1952, a menção anual da American Library Association; em 1953, o Prêmio Franklin D. Roosevelt, da Academia Americana de Ciência Política; em 1954, o Prêmio Internacional da Paz, do Conselho Mundial da Paz e, ainda, a Grande Medalha da Cidade de Paris, o grau de Ocial da Legião de Honra da França, o título de professor Honoris Causa das Universidades de San Marcos (Peru) e Santo Domingo, a medalha do Mérito do Brasil, o prêmio da Associação Brasileira de Escritores, o prêmio da Academia Brasileira de Letras. Nos últimos anos de vida, em Paris, criou o Centro Internacional de Desenvolvimento, que teria vida curta. Foi um militante ativo do movimento intelectual europeu em defesa dos povos do Terceiro Mundo, realizou conferências em vários países do mundo e foi professor de geograa humana na Universidade de Paris-Vincennes. Reproduzir, neste trabalho, parte da biograa montada por Linhares tem uma  justicativa lógica. Na introdução deste trabalho citei Elias, para quem não foi a  pobreza quem mudou no século XX, mas sim a forma do mundo percebe-la. Josué de Castro, com certeza, teve um papel fundamental nesta mudança da mentalidade. As idéias defendidas pelo médico pernambucano produziram grande impacto internacional. Embora desde 1928 a Liga das Nações tenha inscrito “o problema da alimentação” no programa de seus trabalhos, promovendo, sob o patrocínio de sua Organização de Higiene, estudos detalhados em diferentes países, Josué de Castro se referiu a uma “conspiração de silêncio em torno da fome” (Castro, 1992:30) que só seria quebrada no pós-guerra, mais precisamente em 1943, com a realização da Conferência de Alimentação de Hot Springs, a primeira das conferências internacionais convocada para tratar de problemas relativos à “reconstrução do mundo”. Esta reunião deu origem à Organização de Alimentação e Agricultura das Nações Unidas (FAO) (ibidem, p. 33). Em Hot Springs foram identicadas as “manchas negras” da fome mundial.

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(...) quarenta e quatro nações, através dos depoimentos de eminentes técnicos no assunto, confessaram, sem constrangimento, quais as condições reais de alimentação dos seus respectivos povos e planejaram as medidas conjuntas a serem levadas a efeito para que sejam apagadas ou pelo menos clareadas, nos mapas mundis da demograa qualitativa, estas manchas negras que representam núcleos de populações subnutridas e famintas, populações que exteriorizam, em suas características de inferioridade antropológica, em seus alarmantes índices de mortalidade e em seus quadros nosológicos de carências alimentares (...) a penúria orgânica, a fome global ou especíca de um, de vários e, às vezes, de todos os elementos indispensáveis à nutrição humana (idem ibidem).

Para o levantamento de um plano universal de combate à fome, foi necessário intensicar e ampliar os estudos sobre alimentação em todo o mundo, superando as diculdades decorrentes da pouca informação do tema em seu conjunto. A maior parte dos estudos cientícos sobre o assunto se limita a um dos seus aspectos parciais, projetando uma visão unilateral sobre o problema. São quase sempre trabalhos de siólogos, de químicos ou de economistas, especialistas em geral limitados por contingência prossional ao quadro de suas especializações (ibidem, p. 34).

Para obter uma visão de conjunto, Castro optou pelo “método geográco in terpretativo” corporicado pelos pensamentos de Ritter, Humboldt, Jean Brunhes, Vidal de La Blanche e Grifth, cujo objetivo é “localizar com precisão, delimitar e correlacionar os fenômenos naturais e culturais que ocorrem à superfície da terra” (ibidem, p. 34-35). Castro também categoriza seu estudo como “sondagem” ou “ensaio” de “natureza ecológica”, ou seja, (...) o estudo dos recursos naturais que o meio fornece para subsistência das  populações locais e o estudo dos processos através dos quais essas populações se organizam para satisfazer as suas necessidades fundamentais em alimentos. (...) Tentaremos, pois, analisar os hábitos alimentares de diferentes grupos humanos ligados a determinadas áreas geográcas, procurando, de um lado, descobrir as causas naturais e sociais que condicionam o seu tipo de alimentação e, de outro lado, procurando vericar até onde esses defeitos inuenciam a estrutura econômico-social dos diferentes grupos estudados (ibidem, p. 35).

Dentro desta metodologia, a preocupação maior de Castro foi com a “fome

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coletiva” (a que atinge endêmica ou epidemicamente as grandes massas humanas), a qual considerava um fenômeno geogracamente universal. Mais especicamente, da “fome coletiva parcial”, ou “fome oculta”, na qual (...) por falta permanente de determinados elementos nutritivos, em seus regimes habituais, grupos inteiros de populações se deixam morrer lentamente de fome, apesar de comerem todos os dias (ibidem, p. 37).

Seus livros mais conhecidos são Geograa da fome (1946) e Geopolítica da fome (1951), que tratam primordialmente de alimentação. Utilizando-se de “inquéritos sociais”, Castro analisou as qualidades nutritivas da alimentação de  pessoas de diferentes regiões do Brasil e do mundo. Procurando identicar as causas fundamentais dessa alimentação, chegou à conclusão que elas são mais produto de fatores socioculturais do que de natureza geográca (ibidem, p. 58). A partir daí criticou a inserção dos países do Terceiro Mundo na economia mundial defendeu que, no caso do Brasil, sem a realização de uma reforma agrária não se acabaria com a fome no país (ibidem, p. 301). A obra de Castro pode ser pensada como uma continuidade dos trabalhos dos sanitaristas do início do século XX, quando se começava a construir um saber médico sobre a sociedade no Brasil. A boa alimentação, neste contexto, passaria a ser  considerada questão de higiene pública, como medida complementar ao tratamento de doenças. Conforme Fico (apud Magalhães 1997:28), até os anos 1920-1930 o tratamento dado ao problema da alimentação limitou-se ao abastecimento e à scalização de alimentos no Brasil. Josué de Castro, que buscava na Medicina “respostas concretas para o problema da fome e da subnutrição que aigia milhares de brasileiros” (Linhares, 1992:333), soube incorporar à sua análise tanto os avanços da ciência nutricional quanto “temas ausentes na discussão clínica da nutrição, como raça, produtividade e evolução social (...) [demonstrando assim] sua anidade com a corrente da medicina social que, desde o século XIX, vinha formulando estas questões” (Magalhães, 1997:29).  Numa reapropriação do discurso sanitarista das décadas de 1910 e 1920, Josué de Castro buscou provar que a fome, e não a doença, era o grande problema nacional. Na introdução da edição de 1960 de Geograa da fome, deixou clara a relação existente entre fome e doença. E há mais, a favor deste triste primado da fome sobre as outras calamidades, o fato universalmente comprovado de que ela constitui a causa mais constante e efetiva das guerras e a fase preparatória do terreno, quase obrigatória, para a eclosão das grandes epidemias (Castro, 1992:30).

O livro busca demonstrar que a alimentação do brasileiro é precária em termos

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de nutrição, em todas as regiões do país. Ao investigar as causas desta alimentação defeituosa, Castro concluiu que elas são “mais produto de fatores socioculturais do que de fatores de natureza geográca” (ibidem, p. 58). Após dividir o país em cinco áreas alimentares, identica três delas como sendo nitidamente áreas de fome: a área Amazônica, a da Mata e a do sertão nordestino, “zonas onde o fenômeno da fome vem exercendo uma ação despótica, quase determinante, na ronceira evolução social dos grupos humanos que ali vivem” (ibidem, p. 60). Sobre a Amazônia, concluiu que a fome decorre principalmente da pobreza natural da oresta equatorial em alimentos. Este tipo de explicação, no seu entender, não funciona para o Nordeste, onde as condições tanto do solo quanto do clima regionais sempre foram as mais propícias ao cultivo, o que faria do fenômeno da fome na região uma coisa chocante. Josué de Castro considerou a inuência do negro como a mais expressiva e valorizadora dos hábitos alimentares da região. Vindos da África, com tradição agrícola consolidada, os negros teriam reagido contra a monocultura (...) desobedecendo às ordens do senhor e plantando às escondidas seu roçadinho de mandioca, de batata-doce, de feijão e de milho. Sujando aqui, acolá, o verde monótono dos canaviais com manchas diferentes de outras culturas. Benditas manchas salvadoras da monotonia alimentar da região (Castro, 1992:133).

Além da produção de alimentos, Castro valorizou a introdução, por parte dos africanos, de certas plantas daquele continente e de sua culinária. Mas ressaltou que a resistência dos negros e dos mestiços e brancos pobres, que compunham a  população livre, não conseguiu quebrar a força do latifúndio. Como conseqüência, todo complexo alimentar da região se xou apenas em torno da farinha de mandioca, de cultivo fácil e barato, “complexo de alimentação muito pobre que arrastou o  Nordeste à condição de uma das zonas de mais acentuada subalimentação do país. Mais do que isso, zona de fome” (ibidem, p. 136). Josué de Castro recuperou em seus livros discussão começada por Freyre, sob a alimentação dos escravos. Contrapôs-se, no entanto, à visão de que os escravos eram bem alimentados, tendo como base dados de Ruy Coutinho, os quais demonstravam que estes eram acometidos por inúmeras afecções nutritivas e carências. Sugeriu que, ao invés de “bem alimentados”, Freyre deveria ter escrito “os que comiam maiores quantidades de alimentos” (ibidem, p. 145). Na verdade, Castro desqualicou totalmente as análises de Freyre sobre nutrição. São armações como esta destituídas de todo fundamento, ao lado de uma impropriedade vocabular que denuncia o desconhecimento, o mais completo,

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A pobrezA no pArAíso tropicAl do autor, dos assuntos de alimentação, que tornam a obra de Gilberto Freyre uma obra destituída de qualquer valor cientíco. Quando um sociólogo ignora que proteína e albuminóides vêm a ser a mesma coisa e cai na pachecada de escrever que a nutrição da família colonial brasileira é de má qualidade “pela  pobreza evidente de proteínas e possível de albuminóides” não de pode mais levar a sério a sua obra cientíca. Porque a verdade é que esta ignorância lapidar daria para reprovar qualquer aluno secundário que estivesse fazendo seu exame de história natural, de química ou mesmo de economia doméstica (ibidem, p. 145-146).

Se os escravos comiam mais, segundo ele, era para trabalharem mais. Com a Abolição, os negros e mestiços saídos das senzalas teriam cado responsáveis  por sua própria alimentação, diminuindo assim as quantidades de alimentos de sua dieta. Daí sua menor produtividade, que segundo Castro era reacionariamente  percebida como preguiça. Diminuíram, então, o seu rendimento para equilibrar o décit orgânico, sendo esta diminuição tomada pelos patrões mais reacionários como um sinal de  preguiça consciente, de premeditada rebeldia do negro liberto contra o regime feudal da economia açucareira . Averdade é que a moleza do cabra de engenho, a sua fatigada lentidão não é um mal da raça, é um mal de fome. É a falta de combustível suciente e adequado à sua máquina, que não lhe permite trabalhar senão num ritmo ronceiro e pouco produtivo (ibidem, p. 146).

Além dos mitos sobre raça e indolência, Castro se contrapôs à visão de que a fome no Nordeste é decorrência do clima.  Nem todo o Nordeste é seco, nem a seca é tudo, mesmo nas áreas de sertão. Há tempos que nos batemos para demonstrar, para incutir na consciência nacional o fato de que a seca não é o principal fator de pobreza ou da fome nordestinas. Que é apenas um fator de agravamento agudo desta situação cujas causas são outras. São causas mais ligadas ao arcabouço social do que aos acidentes naturais, às condições ou bases físicas da região. Muito mais do que a seca, o que acarreta a fome no Nordeste é o pauperismo generalizado, a proletarização progressiva de suas populações, cuja produtividade é mínima e está longe de permitir a formação de quaisquer reservas com que seja  possível enfrentar os períodos de escassez. (...) Tudo é pobreza, é magreza, é miséria relativa ou absoluta, segundo chova ou não chova no sertão. Sem reservas alimentares e sem poder aquisitivo para adquirir os alimentos nas épocas de carestia, o sertanejo não tem defesa e cai irremediavelmente nas garras da fome (ibidem, p. 260).

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A partir dessa visão, Castro defendeu que a luta contra a fome no Nordeste não deveria ser uma luta contra a seca ou contra seus efeitos, mas contra o subdesenvolvimento, a monocultura e o latifúndio (ibidem, p. 261). Em termos de Brasil, considerou que a fome existe em função do passado histórico, com sua economia ambientalmente destrutiva e voltada para a exportação. Em suas próprias palavras, “uma agricultura extensiva de produtos exportáveis ao invés de uma agricultura intensiva de subsistência, capaz de matar a fome do nosso povo” (ibidem, p. 281). Como solução para tal estado de coisas, além de uma reforma agrária, sugeriu a promoção do desenvolvimento econômico-social que atenuasse os desníveis regionais por meio de uma melhor distribuição da riqueza e dos investimentos. A  permanecer a economia de dependência do Nordeste e da Amazônia, em relação ao sistema econômico de outras áreas do país, as “manchas negras da fome” se manteriam inalteradas (ibidem, p. 287). Ardente defensor de uma política desenvolvimentista para o Brasil, o que signicaria para ele um grande salto em nossa história social, alerta que tal salto não poderia ser realizado por um povo faminto. Nas páginas nais de seu livro, defendeu o enfrentamento ao tabu da reforma agrária, a ser realizado com a mesm a coragem com que se estava enfrentando o tabu da fome (ibidem, p. 301). Sobretudo, Castro não acreditou em panacéias ou paliativos para o problema da fome no Brasil porque não a considerava como uma doença de causa denida. Segundo ele, é uma expressão, “a mais negra e a mais trágica expressão do subdesenvolvimento econômico do país” (ibidem, p. 305). Quando escreveu o prefácio à nona edição de Geograa da fome, em 1960, Castro já tinha um discurso internacional. Acreditava que as observações feitas  para o Brasil poderiam ser generalizadas para inúmeras outras regiões tropicais do planeta, mas não se furtou ao debate nacional. Contrariamente, por exemplo, àqueles que defendiam a educação das elites para salvar o país, Josué de Castro acredita que a salvação estaria na educação massiva da população (ibidem, p. 52-53). Sobre a inuência de Josué de Castro nas políticas públicas nacionais, cabe ressaltar que a sua obra trouxe subsídios importantes para o surgiment o de medidas estatais como o salário mínimo e a ração básica. Seus “inquéritos sociais” realizados no Recife, em 1932 e no Rio em 1936, foram utilizados para cálculo do salário mínimo.4 Em seus inquéritos, Castro avaliou a dieta e a porcentagem de gastos de cada grupo familiar com alimentação, habitação e transporte (Magalhães, 1997:38). Magalhães também aponta para o crescimento da ação do Estado frente ao  problema alimentar nos anos 1940, quando foram criadas a Sociedade Brasileira de Alimentação, o Serviço Técnico de Alimentação Nacional, o Instituto Técnico de Alimentação, a Comissão Nacional de Alimentação e o Instituto Nacional de  Nutrição (ibidem, p. 45). As propostas de Josué de Castro foram bem acolhidas na maioria destes órgãos. No mesmo período, Castro se engajou no projeto getulista

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de desenvolvimento industrial. Quando da entrada do Brasil na Segunda Guerra, foi criada a Coordenação de Mobilização Econômica, cuja tarefa de controle do abastecimento alimentar foi delegada a Castro (ibidem, p. 47). Outro aspecto da obra de Castro, levantado por Magalhães, refere-se ao caráter  humanista, mas não assistencialista, de suas bandeiras políticas. Embora apoiasse as reformas sociais que estavam na pauta dos movimentos de esquerda, a transformação social deveria se dar a partir de valores humanitários supranacionais, acima de diferenças ideológicas e culturais (Magalhães, 1997:76). Em seus últimos escritos, nas décadas de 1960 e 1970, Castro reconheceu que o desenvolvimento econômico  por si só não garantiria a melhoria dos níveis de vida da população. Defendeu então uma política econômica redistributiva, que minimizasse as desigualdades sociais: Apesar de a manutenção de baixos índices de produtividade constituir um sério obstáculo à transformação do quadro de fome, é necessário, sobretudo, a permanência de mecanismos claros de intervenção na economia que se reitam no acesso da população aos bens produzidos. Para ele, a força motriz deste processo de crescimento com impacto positivo nas condições de vida é o compromisso com os valores humanos. Na concepção de Josué de Castro,  portanto, o capitalismo e o bem-estar não são incompatíveis. (...) Esta conciliação, porém, não constitui um movimento natural. O autor percebe um conito na relação entre capitalismo e o acesso da população a uma melhor qualidade de vida. No entanto, a solução deste conito na obra está na transformação da consciência humana, em direção a uma concepção universalista, em que o homem é o objetivo nal do desenvolvimento (idem ibidem).

A descrição e a análise da fome brasileira feita por Josué de Castro ajudou a construir um discurso internacional sobre o “problema da fome”. O próprio Josué de Castro arma isso, no prefácio à nona edição de Geograa da fome (1960).  Nos últimos dez anos de publicação deste nosso livro, este conceito já ganhou foros internacionais. Por toda parte hoje se reconhece a existência desses vários tipos de fome, e se fala sem maior constrangimento na luta universal contra a fome, na batalha da fome etc. Deve-se, em grande parte, a implantação destes conceitos, até bem pouco considerados como revolucionários e heterodoxos, à própria FAO, que, a princípio discreta e reticente em falar fome, preferindo em seus relatórios referir-se à subnutrição dos  povos, acab ou por acatar a nomenclatura da fome, e a usá-la la rgamente como conceitos ortodoxos, rigorosamente cientícos (Castro, 1992:37).

Este discurso sobre a fome, digerido e incorporado às agendas dos organismos internacionais ligados à ONU, caria no exílio com o seu principal articulador.

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Seria preciso a realização do chamado “ciclo social” da ONU para que a fome e a pobreza retornassem à pauta dos governantes brasileiros. Seria preciso também a redemocratização do país para que os mesmos temas pudessem se tornar pauta dos movimentos sociais e partidos políticos brasileiros, principalmente através da Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida, no início dos anos 1990. Quanto a Josué de Castro, a seara que abriu no campo das interpretações so bre o Brasil não teve seguidores. Em recente reportagem na imprensa, intitulada “Ousadia sem escola”, faz-se referência a esta peculiaridade de Castro. Depois do exílio, o silêncio. “Josué não formou discípulos nem fez escola”, diz Antonio Alfredo Teles de Carvalho, que prepara tese de mestrado na Universidade Federal de Pernambuco. (...) “Só fui tomar conhecimento dele ao ler a bibliograa de autores franceses”, conta. “Josué era visionário. Nos anos 1950 preconizou a globalização, já falava em trabalhadores sem-terra. Foi um dos precursores da discussão sobre o subdesenvolvimento” (Gazeta  Mercantil  – Fim de Semana, 6, 7 e 8/7/2001).

Seu mapa das áreas de fome do Brasil, no entanto, acabou se tornando referência para todas as tentativas posteriores de quanticação da pobreza no Brasil. 5 Isto não signica que Josué de Castro concordasse com as metodologias utilizadas nas mesmas. Conforme deixa claro em Geograa da fome, ele preocupou-se em  produzir uma análise do problema em seus aspectos qualitativos. Segundo ele, o método estatístico seria incapaz de traduzir, em seus painéis genéricos, uma noção exata das nuances, das innitas gradações de cores de que se reveste o fenômeno (Castro, 1992:280). Da mesma forma, contestou os dados sobre o desenvolvimento do Brasil, apresentados através de índices de renda média  per capita, pois, segundo ele, “se  procurarmos auferi-lo, através da distribuição real das rendas pelos diferentes grupos sociais, mostra-se ele então bem menos efetivo” (ibidem, p. 289). Isto não signica que desacreditasse totalmente dos indicadores sociais e eco nômicos. Na primeira edição de Geograa da fome (1946), armou que os países americanos sempre esconderam suas misérias, que só vieram à tona em função da predominância de idéias universalistas e de políticas de “portas abertas”, mas também “por se apresentarem com inegável evidência, nos dados estatísticos das respectivas produções nacionais e nos diferentes índices revel adores das condições de vida das populações” (ibidem, p. 57).  No mesmo período em que Josué de Castro lançou Geograa da fome e Geopolítica da fome, Vitor Nunes Leal publicou Coronelismo, enxada e voto (1948), originalmente intitulado “O municipalismo e o regime representativo no Brasil”. Enquanto Castro preocupou-se em identicar e qualicar as “manchas da fome”

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do Brasil, inuenciando nas políticas alimentares e trab alhistas do governo Vargas, Leal produziu “uma das primeiras, se não for de fato a primeira análise rigorosamente ‘sistêmica’ da política brasileira” (Lamounier, 1999:275), fundamental para a compreensão do problema da pobreza, embora este não tenha sido seu objetivo. Como parte do sistema político brasileiro, L eal chamou a atenção para a gura do coronel – referência aos comandantes da antiga Guarda Nacional, posteriormente estendida aos grandes proprietários rurais em geral. O autor analisou como o advento da República possibilitou, através da ampliação do direito de voto, a incorporação política da população que se concentrava nos pequenos municípios e nas áreas rurais: A abolição do regime servil e, depois, com a República, a extensão do direito de sufrágio deram importância fundamental ao voto dos trabalhadores rurais. Cresceu, portanto, a inuência política dos donos de terras, devido à dependência dessa parcela do eleitorado, conseqüência direta da nossa estrutura agrária, que mantém os trabalhadores da roça em lamentável situação de incultura e abandono (Leal, 1998:273).

 Nunes Leal dene o coronelismo como um “sistema político dominado por  uma relação de compromisso entre o poder privado decadente e o poder público fortalecido” (ibidem, p. 272). Neste quadro, a base de sustentação do coronelismo é a estrutura agrária que mantém “os trabalhadores da roça em lamentável situação de incultura e abandono” (ibidem, p. 273). Somos, neste particular, legítimos herdeiros do sistema colonial da grande exploração agrícola, cultivada pelo braço escravo e produtora de matérias-primas e gêneros alimentícios, destinados à exportação. A libertação jurídica do trabalho não chegou a modicar profundamente esse arcabouço, dominado, ainda hoje, grosso modo, pela grande propriedade e caracterizado, quanto à composição de classe, pela sujeição de uma gigantesca massa de assalariados,  parceiros, posseiros e ínmos proprietários à pequena minoria de fazendeiros,  poderosa em relação aos seus dependentes, embora de posição cada vez mais  precária no conjunto da economia nacional (idem ibidem).

Assim como a estrutura agrária contribuía para a subsistência do coronelismo, armou Leal, também o coronelismo concorria para a conservação desta mesma estrutura, pois os governos brasileiros teriam saído tradicionalmente das classes dominantes e com apoio do concurso coronelista. Deste círculo vicioso, teríamos como conseqüência o empobrecimento do país e da população brasileira. O mercado interno não se amplia, porque a vida encarece e a população rural continua incapaz de consumir; não dispondo de mercado, a indústria não

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 prospera nem eleva seus padrões técnicos e tem de apelar, continuadamente,  para a proteção ocial; nalmente, a agricultura, incapaz de se estabilizar em alto nível dentro do seu velho arcabouço, prossegue irremediavelmente no caminho da degradação. Fecha-se, assim, o círculo vicioso: o plano econômico, agricultura rotineira e decadente, indústria atrasada e onerosa, uma e outra empobrecendo sistematicamente o país; no plano político, sobrevivência do “coronelismo”, que falseia a representação política e desacredita o regime democrático, permitindo e estimulando o emprego habitual da força pelo governo ou contra o governo (ibidem, p. 278).

 Nas últimas linhas de seu livro, Leal defendeu que todas as políticas de moralização da vida pública nacional deveriam ser estimuladas para que se elevasse o nível político do país, enfraquecendo assim o coronelismo. Mas tais políticas de nada valeriam enquanto se mantivesse a pobreza da população. Mas não tenhamos demasiadas ilusões. A pobreza do povo, especialmente da população rural, e, em conseqüência, seu atraso cívico e intelectual constituirão sério obstáculo às intenções mais nobres (ibidem, p. 279).

 Nunes Leal termina seu livro deixando claro que não procurou apresentar  soluções para o problema do coronelismo, que “outros, mais capacitados, (...) empreendam a tarefa de indicar o remédio” (idem ibidem). Seu livro, no entanto, é um marco nas reexões sociológicas e políticas sobre o sistema político brasileiro. A expressão “coronéis” segue sendo utilizada para indicar políticos que tem como  base de sustentação os bolsões de miséria do país. Publicados com apenas dois anos de diferença, Geograa da fome e Coronelismo, enxada e voto são livros fundamentais para pensarmos a pobreza. No  primeiro, esta se traduz na fome biológica, produzida por forças econômicas e culturais. Nas palavras de Josué de Cas tro, a “deciência alimentar que a monocul tura impõe, através da fome que o latifúndio gera” (Castro, 1992:40). Vitor Nunes Leal desvendou em seu livro os meandros políticos de sustentação do latifúndio e demonstrou que a pobreza que ele gerava também o mantinha poderoso. Enquanto Castro aponta para as possibilidades de um Brasil moderno, em desenvolvimento, no qual o capitalismo não seria incompatível com reformas sociais e políticas redistributivas, que melhorassem o nível de vida da população, Leal aponta para as permanências neste mesmo país de um sistema político baseado na cooptação  política, no compadrio e na corrupção. Em conjunto, os dois livros podem também ser categorizados como  pontes entre os ensaios sobre o Brasil examinados anteriormente e as novas leituras que viriam, realizadas por intelectuais formados nas melhores universidades do país. Entre estas, destacam-se aquelas produzidas para a U nesco na década de 1950 e que

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apontaram para a existência no país de imensas desigualdades e hierarquias sociais.

2.3. O Projeto Unesco: a descoberta da hierarquia na democracia Para Sergio Miceli (1989), os anos 1950 teriam assinalado “o esvaziamento das famílias de pensamento dominantes na conjuntura anterior e a primeira leva de teses e trabalhos acadêmicos da escola sociológica paulista” (1989:108), que teve como mentores estrangeiros Pierson, Baldus, Willems, Bastide, Monbeig e Lévi-Strauss, entre outros. Da sua primeira geração de licenciados destacaram-se Florestan Fernandes e Antonio Candido. No Rio de Janeiro, a produção intelectual teria se dado privilegiadamente na chamada escola isebiana desenvolvimentista, 6 que teve como principais nomes Hélio Jaguaribe, Nelson Werneck Sodré, Celso Furtado e Guerreiro Ramos. Um dos maiores estímulos para a produção intelectual dos anos 1950 foi o  patrocínio que a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) concedeu para uma série de pesquisas sobre as relações raciais no Brasil. O patrocínio da Unesco ocorreu porque havia no Brasil uma produção intelectual voltada para uma “democracia racial”, com os trabalhos de Gilberto Freyre, seguidos por pesquisas de M. Herskovits, Donald Pierson e Charles Wagley, os quais (...) destacaram o branqueamento nacional – não só biológico mas também cultural – assim como o caráter benigno das relações sociais que se estabeleciam no país, percebido a partir da mobilidade ascensional dos mestiços na hierarquia social (Schwarcz, 1999:278).

 Nesse período, sobressaíam os trabalhos de Arthur Ramos, onde o tema das relações raciais (...) assumia um lugar privilegiado para a percepção e análise dos desaos da transição do tradicional para o moderno, do cenário de signicativas desigualdades sociais e raciais, da diversidade regional e da busca em conformar, em denitivo, uma identidade nacional (Maio, 1999:142).

A Unesco, instituição internacional criada logo após o Holocausto, buscava um embasamento teórico para se contrapor aos horrores da discriminação racial. Ela então (...) procura numa espécie de anti-Alemanha nazista, localizada na periferia do mundo capitalista, uma sociedade com reduzida taxa de tensões étnico-raciais, com a perspectiva de tornar universal o que se acreditava ser particular (idem ibidem).

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Em outubro de 1949, o encontro de interesses e expectativas recebeu um impulso pela presença de Arthur Ramos à frente do Departamento de Ciências Sociais da Unesco. Assim, quando da realização da 5 a Sessão da Conferência Geral da entidade, em junho de 1950, foi aprovada a realização de uma pesquisa sobre as relações raciais no Brasil, idealizada por Ramos, que falecera oito meses antes, sem ter tido tempo de detalhá-la. Neste mesmo evento, foi publicada a 1 a Declaração sobre Raça onde, pela primeira vez, um documento ocial de um órgão internacional negava qualquer tipo de associação determinista entre características físicas, comportamentos sociais e atributos morais, ainda muito em voga nos anos 1930 e 1940 (ibidem, p. 143). A Segunda Guerra Mundial “havia revelado os usos inesperados do conceito ontológico e determinista de raça e a U nesco pretendia tomar a dianteira no senti do de retomar ‘um debate mais humanista’ e contraposto ao enfoque biologizante” (Schwarcz, 1999:280). Não é à toa que a 1 a Declaração sobre Raça armava que “raça é menos um fator biológico do que um mito social e, como mito, causou graves perdas de vidas humanas e muito sofrimento em anos recentes” (Unesco apud Schwarcz, 1999:280). O Programa de Pesquisas sobre Relações Raciais no Brasil foi concebido  pela Unesco com o propósito de usar o caso brasileiro como propaganda de um  país considerado por Gilberto Freyre como “uma democracia étnica” e denido  por Donald Pierson como “uma sociedade multirracial de classes”. Pierson, entre 1935 e 1937, havia realizado o que foi considerado o primeiro estudo sistemático de uma “situação racial” no Brasil e sua categorização da socieda de teria demarcado o terreno dos estudos de relações raciais por mais de 20 anos (Guimar ães, 1996:145). Segundo Pierson, a principal característica da sociedade brasileira seria que a raça não é denida apenas por traços fenotípicos (cor, principalmente) mas também  por critérios sociais, como riqueza e educação. Daí a idéia de uma democracia racial onde mais do que a cor das pessoas importaria o seu desempenho (riqueza e educação) (Guimarães, 1996:145). Coerentemente a estes estudos, a hipótese do Programa de Pesquisa era a de que (...) o Brasil signicava um caso neutro na manifestação de preconceito ra cial e que seu modelo poderia servir de inspiração para outras nações, cujas relações eram menos “democráticas” (Schwarcz, 1998:280-281).

Alfred Métraux, diretor do Setor de Relações Raciais do Departamento de Ciências Sociais da Unesco e o antropólogo brasileiro Ruy Coelho foram os encarregados de coordenar as pesquisas no Brasil. O Projeto Unesco, inicialmente, deveria ser desenvolvido apenas na Bahia, onde Charles Wagley já estava realizando uma pesquisa em três comunidades rurais próximas de Salvador, patrocinadas pela

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Universidade de Columbia, em convênio com o estado da Bahia. Por sugestão de Wagley, foi incorporada ao projeto uma investigação sobre Salvador, a ser coordenada por Thales de Azevedo. Caberia a ele a realização de um estudo sobre a ascensão social dos negros e as tensões individuais e sociais decorrentes de tal  processo de mobilidade (Maio, 1999:141-145). Posteriormente, a Universidade de São Paulo posicionou-se pela ampliação da pesquisa para aquela cidade, como um contraponto para o estudo de Salvador. Oracy Nogueira e Roger Bastide foram escolhidos para coordenar os trabalhos. O sociólogo Luiz de Aguiar Costa Pinto, do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez a mesma sugestão em relação a esta cidade, no que foi atendido (ibidem, p. 145). A inclusão de São Paulo e do Rio de Janeiro foi considerada importante por Métraux na medida em que (...) essas duas cidades poderiam retratar as diversas nuanças da situação racial brasileira. Métraux armava que a elaboração de uma pesquisa numa cidade em fase de acelerado desenvolvimento econômico “nos apresenta uma oportunidade única para conhecer os fatores susceptíveis de provocar  antagonismos raciais que, outrora, se achavam em estado latente ou careciam de virulência” (Maio, 1999:149).

Finalmente, o projeto incorporou a cidade de Recife, após o Instituto Joaquim  Nabuco, coordenado por Gilberto Freyre, ter demonstrado interesse em participar. Maio (1999) aponta que “a proposta foi aceita de imediato, dado o prestígio de Freyre. O sociólogo pernambucano foi o primeiro a ser convidado para ocupar  o cargo de diretor do Departamento de Ciências Sociais da Unesco” (ibidem, p. 150), mas havia recusado o convite provavelmente por estar cumprindo mandato  político como deputado federal. Além dos já citados, participaram das pesquisas, realizadas entre 1951 e 1952, René Ribeiro e Florestan Fernandes, entre outros. Conforme Maio (1999), os resultados obtidos, divulgados em artigos e livros entre 1952 e 1957, teriam frustrado as expectativas iniciais da Unesco.  Na esperança de encontrar a chave para a superação das mazelas raciais vividas em diversos contextos internacionais, a agência intergovernamental teria acabado por se ver diante de um conjunto de dados sistematizados sobre a existência do preconceito racial no Brasil (ibidem, p. 150-151).

Uma exceção foi a publicação de  As elites de cor (1953), de Thales de Azevedo, que, do ponto de vista teórico pouco teria avançado em relação à idéia do Brasil como uma “sociedade multirracial de classes” de Pierson. Segundo Guimarães (1996:151), houve, no entanto, uma inovação em termos etnográcos que ressaltou

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a importância do status atribuído (origem familiar e cor) sobre o status adquirido (riqueza e ocupação). O trabalho de Costa Pinto, O negro no Rio de Janeiro (1953), levou em consideração sobretudo as relações entre estrutura social, preconceito racial e movimentos sociais étnicos (no caso, o Teatro Experimental do Negro). Conforme Maio (1998), Costa Pinto considerou que as mudanças sociais ocorridas com o m da escravidão, a proclamação da República e a vigência das instituições liberais, somadas à industrialização e urbanização do país, teriam levado à proletarização de amplas parcelas de “negros” e “pardos”. Da condição de escravo à de proletário, eis o caminho trilhado pela população de cor na ex-capital do país ao longo de 70 anos de mobilidade social. Dessa forma, haveria um processo de alinhamento, de identicação da população de cor com as reivindicações do proletariado, que constituiria a grande maioria da população urbana do Brasil. São essas as transformações que suscitam a maior visibilidade do preconceito racial (Maio, 1998:35).

Costa Pinto apontou em seu livro que o racismo não tinha razão de ser no sistema escravocrata, numa sociedade de senhores e escravos. Ele viria à tona após a abolição, no sentido de reconduzir o negro “ao seu lugar”. O fato de o negro ter começado a sua história no Brasil como escravo, como força de trabalho privadamente apropriada pelo senhor branco, é o marco zero das tensões raciais neste país: durante mais de 300 anos esta foi a posição do negro na economia e na sociedade, daí decorrendo tudo mais que, no que se refere à posição social, caracterizou por tanto tempo o seu status servil e servia de fundamento do que aqui se tem chamado de “padrão tradicional” das relações de raças no Brasil. (...) O preconceito e a discriminação atuam fundamentalmente no sentido de reconduzir ao seu lugar o negro que historicamente sai desse lugar, o lugar que tradicionalmente ocupava no sistema de relações sociais, lugar que a ideologia do grupo socialmente dirigente e etnicamente diferenciado considera próprio, natural , biologicamente justicado, tão próprio, natural e biologicamente justicado quanto o seu de grupo dominante. Por paradoxal que isso possa parecer, a ascensão social do negro (...) está sendo o fator principal das discriminações que ele vem sofrendo, em escala crescente, nos últimos tempos, neste país (Costa Pinto, 1998:274; 277).

 No terceiro capítulo de seu livro, Costa Pinto tratou especicamente da estra ticação social, problema que no seu entendimento estava no coração da situação racial brasileira. Por circunstâncias históricas determinadas, a estraticação de raça e a estraticação de classes não seriam, no Brasil, duas realidades independentes, mais sim dois ângulos pelos quais se poderiam observar as relações sociais. 7 Ainda

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em relação à Costa Pinto, Maio (1998) destaca que este chegou a armar que não haveria diferença qualitativa entre o racismo norte-americano e o brasileiro, pois a diferença era, antes de tudo, de grau e não de espécie. Além disso, cabe registrar que

Schwarcz (1999) destaca que tais estudos, importantes para desmontar teoricamente o mito da democracia racial brasileira, circunscreveram o tema da raça a uma questão de classe.

(...) do seu [de Costa Pinto] ponto de vista sociológico emerge a concepção de que as desigualdades sociais, que se apresentam no âmbito das relações raciais, devem ser combatidas com políticas redistributivas, de caráter universal (Maio, 1998:41).

Em meio a um contexto marcado pela radicalização política (...) era por meio da modernização e da democratização que a questão racial, entre outras, se solucionaria no Brasil e não a partir do enfrentamento de suas especicidades (ibidem, p. 285).

Assim como a pesquisa de Costa Pinto sobre o Rio, o trabalho de Florestan Fernandes e Roger Bastide, Brancos e negros em São Paulo(1953), também abordou a temática racial a partir do ângulo da desigualdade. O capítulo 1, intitulado “Do escravo ao cidadão”, redigido por Florestan, parte do princípio de que não obstante os ideais humanitários dos abolicionistas, a Abolição signicou a espoliação dos escravos pelos senhores.

Esta submersão da questão racial na questão de classe foi extremamente importante, pois marcou uma ruptura sem precedentes nas interpretações sobre o Brasil produzidas até aquele momento. Não se tratava mais de discutir os problemas ou as benesses da mestiçagem. Com a introdução massiva de dados estatísticos, somados a pesquisas de campo, os estudos comprovaram que os “negros e pardos” conformavam a maior parte da população pobre do país. Para os estudos de po breza, principalmente de seus aspectos urbanos, isto signicou um avanço teórico imenso. Mas, como bem notou Schwarcz (2000), também s ignicou o ocultamento da questão racial na questão de classe. Isto não signica dizer que a vertente mais tradicional do pensamento social  brasileiro houvesse desaparecido. Viana Moog, em  Bandeirantes e pioneiros(1956), recuperou a discussão de Paulo Prado sobre a tristeza do brasileiro, armando que

Aos escravos foi concedida uma liberdade teórica, sem qualquer garantia de segurança econômica ou de assistência compulsória; aos senhores e ao Estado não foi atribuída nenhuma obrigação com referência às pessoas dos libertos, abandonados à própria sorte daí em diante (Fernandes, 1959: 47-48).

Florestan se contrapôs à tese de democracia racial brasileira, justicada pela ausência de conitos abertos e permanentes e por uma “tolerância racial” que, na verdade, seria “um certo código de decoro que, na prática, funcionava como um fosso a separar os diferentes grupos sociais” (Schwarcz, 1999:282). Ao utilizar a análise sociológica, centrada no tema da modernização do país e partindo da investigação do processo que levava a passagem do mundo tradicional ao moderno, Florestan abriu “uma ampla discussão sobre a situação das classes sociais no Brasil” (idem ibidem). Neste sentido, o trabalho (...) implicou a superação da discussão mais naturalista e determinista, que vinculava características físicas e somáticas a pers morais e psicológicos, ainda em voga nos anos 1930 (ibidem, p. 283).

Tanto Costa Pinto quanto Florestan utilizaram, de forma inovadora, dados estatísticos para fundamentar suas interpretações, principalmente os resultados do censo de 1950. Enquanto Costa Pinto se deteve nos dados sobre o Distrito Federal, Florestan analisou os dados nacionais, identicando uma maior concentração de “negros e mulatos” no Nordeste e a concentração de privilégios econômicos, sociais e culturais entre os brancos.

(...) em termos de causa e efeito, na velha linguagem da etnograa anterior  a S. Freud, o brasileiro será um indolente, um triste congênito, produto de três raças tristes que o destino reuniu no solo da América. Em termos de história, de psicologia, não será nada disso, mas simplesmente uma grande vítima – uma vítima não de toda isenta de culpa e responsabilidade, evidentemente – das ambiênc ias que plasmaram a sua formação. Porque prova da tristeza congênita do índio, do negro e do português, bem como prova de sua indolência, é coisa que simplesmente não existe (Moog, 1998:418-419).

Também dentro da escola sociológica paulista, os novos olhares sobre os temas antigos permanecerão, agora escorados em concepções teóricas acadêmicas.

2.4. “Desambição e imprevidncia”: s “caipiras” de Antonio Candido Sylvio Romero (1910), no artigo “Que é um caipira?” – que também chamou de “tabaréo, matuto, mandioca ou capichaba (nomes vários da mesma casta de gente)” (Romero, 1910:206) – criticou o senso comum que os denia como “pessoas que vivem no interior do país”. Tampouco considerou boa a denição de “caipira”

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como o resultante do cruzamento de raças que habitam o sertão. Uma outra vertente tenderia a considerar o “caipirismo” uma qualidade prossional, uma (...) classe que fornece por este Brasil em fora os indivíduos que exercem os misteres singularmente brasílicos de tropeiros, vaqueiros, canoeiros (dos rios do interior), carreiros, garimpeiros,e outros truculentos nomes em eiros (ibidem, p. 207).

Também destes Romero discordou, por incluírem os  praieiros, os pescadores das costas marítimas. Ou seja, não é a “zona”, nem a “raça”, nem a “prossão” que outorgam a alguém o direito de ser um caipira. Caipira, matuto, tabaréo, mandioca, capichaba, e outros congêneres – são expressões de menospreço, de debique, atiradas pelas gentes das povoações, cidades, villas, aldeias, e até arraiaes, contra os habitantes do campo, do matto, da roça. São a expressão de um antagonismo secular. São chufas (...) contra os que mourejam nas rudes tarefas do amanho das terras, do cultivo dos campos, os homens do povo, que são os operários ruraes. O caipira, o matuto, o tabaréo é, fundamentalmente e acima de tudo –, o homem do campo, o homem do matto, o homem da roça, repito, qualquer que seja a sua cor, a sua prossão e a zona em que habite (ibidem, p. 208-209).

Oliveira Vianna (1952), como vimos no capitulo anterior, preferiu trabalhar  com a categoria “agregado” e a referência que fez ao “tabaréu”, “caipira” e “matuto” se inseria num contexto de oposição à cidade e de comportamento depreciativo desta para com os moradores do campo. É tarefa difícil, por delicada e sutil, discriminar todas as particularidades atributivas, que diferenciam a mentalidade do homem da cidade da mentalidade do homem do campo – o city-folk do country-folk , ou melhor, o cidadão daquilo que a ironia urbana, troçando os homens de pura formação rural, chama o tabaréu, o caipira, o matuto (Vianna, 1952:69).

 Nesta mesma perspectiva, Monteiro Lobato criou o personagem do Jeca Tatu, que deniu como (...) um pobre caboclo que morava no mato, numa casinha de sapé. Vivia na maior pobreza, em companhia da mulher, muito magra e feia, e de vários lhinhos pálidos e tristes. Jeca Tatu passava os dias de cócoras, pitando enormes cigarrões de palha, sem ânimo de fazer coisa nenhuma. (...) Todos que passavam por ali murmuravam: – Que grandíssimo preguiçoso! (Lobato,

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1957:328).

Como já vimos, Lobato resgataria os caboclos da miséria através da medicina e do saneamento, anos mais tarde. De preguiçosos, se tornariam  farmers no estilo norte-americano. Além de denido pela oposição à cidade e pelo estigma, os cabo clos ou caipiras seriam necessariamente um tipo social que deveria ser transformado em outro, idealmente um trabalhador rural saudável e produtivo. Caio Prado Júnior, em Problema de povoamento e a divisão da propriedade rural (1946), armou que a forma com que se deu o povoamento de nosso territó rio, com baixa densidade demográca e isolamento dos indivíduos, gerou o “tipo caboclo”, “com todos seus consideráveis e reconhecidos defeitos” (Prado Júnior, 1980:211), entre os quais “seu baixo nível e incapacidade relativa do manejo de  propriedades rurais” (ibidem, p. 222). Enquanto o Projeto Unesco projetava luzes sobre a questão racial nas grandes cidades, a pobreza rural não caria fora dos interesses acadêmicos. Antonio Candido, da primeira turma de doutores em sociologia da USP, voltou seus olhos  para a população rural do interior de São Paulo. Ao fazê-lo, precisou dialogar com as interpretações tradicionais sobre os “caboclos” e “caipiras”, que esboçamos acima. Diante dessas representações, o trabalho de Antonio Candido assume uma importância imensa. Pela primeira vez, os “caipiras” e “caboclos” do Brasil seriam objeto de um estudo sistemático e cientíco, no qual seriam tratados com respeito e mesmo admiração.  No nal da década de 1940, embora decidido a escrever sua tese de doutorado na área da teoria literária e do folclore, Candido terminou escrevendo um trabalho sobre a “sociologia dos meios de vida” que seria defendido em 1954 e publicado dez anos depois. Neste estudo, dedicou-se a “conhecer os meios de vida num agru pamento de caipiras: quais são, como se obtêm, de que maneira se ligam à vida social, como reetem as formas de organização e de ajuste ao meio” (Candido, 2001:21, grifo meu), tomando como ponto de partida a sua realidade econômica. Ao denir a metodologia utilizada em seu trabalho, Candido explica porque não realizou seu estudo através da estatística. Analisar as populações rurais por meio dos números referentes à mobilidade,  produção, área das propriedades, posição no quadro nacional sob estes vários aspectos, é tarefa excelente, cabível somente ao demógrafo e ao economista. O sociólogo, porém, que a pretexto de buscar o geral fareja por toda a parte o humano, no que tem de próprio em cada lugar, em cada momento, não pode satisfazer-se nesse nível. Desce então ao pormenor, buscando na sua riqueza e singularidade um corretivo à visão pelas médias; daí o apego ao qualitativo, cujo estudo sistemático foi empreendido sobretudo pelos especialistas em

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sociedades primitivas (ibidem, p. 24).

Armou também que seu trabalho procurava localizar um aspecto da vida social (a obtenção dos meios de vida) considerado não apenas como tema sociológico, mas também como “um problema social” (ibidem, p. 25). No seu trabalho, Candido diferenciou caboclo de caipira. O primeiro designa o mestiço próximo ou remoto de branco com índio, que seria a maior parte da população tradicional de São Paulo. O termo caipira é utilizado para designar os aspectos culturais, ou seja, exprime um modo de vida, não um tipo racial (ibidem, p. 28). Ao estudar a transformação do estilo de vida das classes baixas rurais de São Paulo, comparando fontes históricas do século XVIII com dados obtidos em trabalho de campo, Candido produziu uma análise de mudança, identicada em termos de “persistências” e “alterações”. Desta maneira, o autor não só inovou ao se dedicar a estudar um grupo tradicionalmente estigmatizado nos estudos sociais brasileiros, como aliou, pela primeira vez, os registros históricos à fala e às representações do grupo estudado “atribuindo-lhe o mesmo estatuto documental e submetendo-o à mesma crítica indispensável no trato de outros materiais” (Maria Sylvia de Carvalho Franco apud Aguiar, 2000:311). Ao tratar dos meios de vida dos caipiras, Candido defendeu que (...) há para cada cultura, em cada momento, certos mínimos abaixo dos quais não se pode falar em equilíbrio. Mínimos vitais de alimentação e abrigo, mínimos sociais de organização para obtê-los e garantir a regularidade das relações humanas (Candido, 2001:32).

Quando os mínimos sociais faltam, t eríamos uma situação de anomia e quando faltam os mínimos vitais, teríamos a fome. Ao se propor a fazer uma “sociologia dos meios de subsistência”, Candido resgatou a produção sociológica e antropológica sobre alimentação, na linha de Malinowski e Audrey Richards, cujas pesquisas em sociedades primitivas ou camponesas registraram as técnicas de obtenção de alimentos, os critérios de sua distribuição, os vínculos sociais correlatos, as representações e o sistema simbólico do grupo (ibidem, p. 39). Uma segunda abordagem do problema, feita pela “sociologia propriamente dita” e pela economia, tem como  base dados estatísticos. São as mais das vezes estudos de níveis de vida, feitos de um ângulo econômico e estatístico, visando grandes números, onde a realidade aparece dissolvida em índices, orçamentos, tabelas, abrangendo não raro todo um  país, ou mesmo o mundo inteiro, mais freqüentemente uma região ou uma cidade (ibidem, p. 40).

Em seu trabalho, Candido se propôs a somar os pontos de vista estatísticos (“como parte do nível de vida”), biológicos (“como qualidade nutritiva, exprimindo uma certa forma de exploração do meio”), econômicos (“como tipo de participação nos recursos totais do grupo”) e socioculturais (“como fator de sociabilidade”) (ibidem, p. 40). Ressaltou que seus predecessores no domínio das ciências humanas foram Alfredo Ellis Jr., em  Raça de gigantes (1926) e Gilberto Freyre, em Casa-grande & senzala (1934), e prestou homenagens a Josué de Castro e Rui Couti nho: Os especialistas de nutrição têm-se caracterizado felizmen te entre nós – depois de um início mais especicamente biológico, em que pesou a inuência do argentino Pedro Escudero – pela preocupação em se orientar conforme aspectos sociais, como podemos ver nas obras de Josué de Castro e Rui Coutinho, para citar apenas dois nomes (ibidem, p. 41).

Analisando os relatos de viajantes do século XVIII, Candido concluiu que o caipira da época nutria-se da mesma forma do sertanista, que comia o mínimo para não interromper a jornada. Ou seja, o caipira vivia com um mínimo alimentar, o suciente apenas para sustentar a vida, o que corresponderia a um mínimo social, uma organização social limitada à sobrevivência do grupo (ibidem, p. 62-63).  Neste mínimo alimentar, o feijão, o milho e a mandioca, plantas indígenas cultivadas com métodos portugueses, constituíam o “triângulo básico da alimentação caipira”. Além destes, existem referência ao cultivo de abóboras, de tuberosas e alguns legumes que aqui se aclimataram, como a couve e a chicória. O sal teria sido, na cultura caipira, um dos fundamentos principais de sociabilidade, pois obrigava a contatos periódicos com centros maiores. Se o leite, o trigo, a carne de vaca eram raridades, abundavam a garapa e a rapadura. Tal dieta era complementada  pela coleta, caça e pesca (ibidem, p. 70-71). Ao referir-se à caça, Candido prestou uma homenagem à habilidade de caçador do caipira.  Nela se desenvolvia a extraordinária capacidade de ajustamento ao meio, herdada do índio: conhecimento minucioso dos hábitos dos animais, técnicas precisas de captura e morte. Caça principal no mato eram o macuco e os nhambus ou inambus (várias espécies do gênero rypturus), entre as aves; entre os mamíferos, pacas, cutias, quatis, porcos-do-mato, de que há a espécie menor, cateto ou caititu, e a maior, queixada. A capivara se encontra à beira d’água. No campo, brejo e lagoa, entre as aves: perdiz e codorna; saracuras, frangos d’água, marrecas e patos etc. Dos mamíferos, principalmente os veados, de caça trabalhosa: campeiro, catingueiro, mateiro, galheiro. Mais acessíveis, o lagarto e o teiú e os tatus, principalmente tatuetê, ou tatu-galinha (ibidem, p. 72).

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Candido demonstrou que a idéia de uma população rural isolada e marginal é falsa, pois as características de vida caipira se prendem à coexistência e interferência entre tipos dispersos e tipos concentrados de povoamento, entre os quais a família cumpre importante papel. Há solidariedade por vezes indissolúvel entre um e outro tipo, visto como o morador de fazenda, sítio ou casebre distante é o mesmo que converge  periodicamente para o povoado, em ritmos variáveis, que vão da semana ao ano, e criam uma dependência ecológica e social também variável. Raro, com efeito, é o caso do morador totalmente imune da inuência dos centros de  população condensada. As relações de vizinhança, porém, constituem, entre a família e o povoado, uma estrutura intermediária que dene o universo imediato da vida caipira, e em função da qual se conguram as suas relações sociais básicas (ibidem, p. 77).

As formas de solidariedade existentes no grupo foram detalhadas por Antonio Candido, notadamente o mutirão, que solucionava o problema da mão-de-obra nos grupos de vizinhança nas várias atividades da lavoura e da indústria doméstica. Coroado com festas, o mutirão constituiria, então, um dos momentos mais importantes da vida cultural caipira. Consiste essencialmente na reunião de vizinhos, convocados por um deles, a m de ajudá-lo a efetuar determinado trabalho: derrubada, roçada, plantio, limpa, colheita, malhação, construção de casa, ação etc. Geralmente os vizinhos são convocados e o beneciário lhes oferece alimento e uma festa, que encerra o trabalho. Mas não há remuneração direta de espécie alguma, a não ser a obrigação moral em que ca o beneciário de corresponder aos chamados eventuais dos que o auxiliaram. Este chamado não falta, porque é praticamente impossível a um lavrador, que só dispõe de mão-de-obra doméstica, dar conta do ano agrícola sem cooperação vicinal (ibidem, p. 88).

Abro um parêntese aqui para lembrar como Manoel Bomm, no início do século XX, teve esta mesma percepção sobre o trabalho coletivo dos moradores da área rural. Caio Prado Júnior (1996), por sua vez, identicava nesta população marcada pela “vadiagem e a caboclização” (1996:344) algumas formas sociais mais aperfeiçoadas, como o mutirão, embora o perceba como resquício da cultura indígena e não como uma criação da população: Parece que se trata sobretudo de uma sobrevivência indígena, e o exemplo de Saint-Hilaire refere-se aliás a populações com alta dose de sangue mestiço.  Não se trataria então de uma criação, mas de um traço que sobrou da vida

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comunitária do índio (Prado Júnior, 1996:344).

Antonio Candido demonstrou que as coisas não eram bem assim como arma Prado Júnior. Em seu estudo detalhado sobre o mutirão identicou inclusive um tipo especial de auxílio vicinal cuja urgência era máxima: a luta contra o fogo que se alastrava pelo capim seco durante a estiagem de agosto. Quando isto ocorria, havia uma divisão de trabalho e o estabelecimento de uma liderança  para coordenar as ações coletivas. um grupo se dedicava a abrir os aceiros, outro a cortar ramos e outro a bater com eles as moitas incendiadas (Candido, 2001:92).  No caso da roçada, Candido também identicou uma divisão de tarefas entre foiceiros (que se subdividem em cortador, ou mestre e beiradeiro), contracorte ou contramestre, cujo trabalho descreveu minuciosamente (ibidem, p. 92-93). Outro elemento importante de denição da sociabilidade vicinal descrita por Candido era a vida lúdico-religiosa, demonstrativa de formas bem desenvolvidas de cooperação vicinal, divisão de trabalho, consciência de grupo e coordenação de atividade. Ao tratar da cultura caipira, Candido ressaltou a importância e o valor desta  população, observada com outro olhar que não aquele baseado em pressupostos de raça ou de produtividade. Tratava-se sobretudo de uma população pobre que desenvolvera uma cultura especíca para dar conta de sua situa ção de precariedade social e econômica. Desta forma, soube identicar a desigualdade sem negar o aspecto cultural da mesma, numa vertente teórica extremamente importante para os estudos de pobreza no país. Em relação à mobilidade da população rural, por exemplo, Candido identicou o papel da concentração fundiária, pouco levado em consideração nas interpretações anteriores: O latifúndio se formava à custa de proprietários menores, por compra ou espoliação – esta sempre fácil numa sociedade em que a precariedade dos títulos e a generalização da posse de fato desarmou o lavrador, na fase em que a expansão econômica passou a exigir os requisitos legais para congurar os direitos de propriedade. Neste passo, podemos compreender melhor  o duplo caráter (ao mesmo tempo instabilizador e reparador) da mobilidade no espaço, à busca de terras disponíveis. No latifúndio produtivo, assim formado, o trabalho escravo criou condições dicilmente aceitáveis para o homem livre, que refugou também, posteriormente, a dependência social do colonato (ibidem, p. 105).

Diferindo da visão de Oliveira Vianna sobre a independência do grande fazendeiro, Candido arma que o sentido sociológico de autarquia econômico-social não deveria ser buscado, como se fazia, no latifúndio “largamente aberto às inuências externas (...) e sim no bairro caipira, nas unidades fundamenta is do povoamento, da

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cultura e da sociabilidade, inteiramente voltadas sobre si mesmas” (ibidem, p. 106).  Nestas unidades, segundo ele, se desenvolveu uma população dispersa, móvel e livre que conseguiu elaborar formas de equilíbrio ecológico e social que se tornaram expressão da própria razão de ser do caipira, enquanto tipo de cultura e sociabilidade (ibidem, p. 106-107). Tais estratégias, percebidas como atraso por  viajantes como Saint-Hilaire, criou estereótipos sobre essa população que foram xados de maneira “injusta, brilhante e caricatural, já no século XX, no Jeca Tatu de Monteiro Lobato” (ibidem, p. 107). Antonio Candido, num parágrafo irretocável, resumiu a trajetória do caipira do Brasil colonial até o momento de seu trabalho de campo. Ao argumentar que a  precariedade dos seus direitos à ocupação da terra foi fator fundamental para que mantivessem os mínimos de sobrevivência biossocial, arma que (...) esse caçador subnutrido, senhor do seu destino graças à independência  precária da miséria, refugou o enquadramento do salário e do patrão, como eles lhe foram apresentados, em moldes traçados para o trabalho servil. O escravo e o colono europeu foram chamados, sucessivamente, a desempenhar o papel que ele não pôde, não soube ou não quis encarnar. E, quando não se fez citadino, foi progressivamente marginalizado, sem renunciar aos fundamentos da sua vida econômica e social. Expulso da sua posse, nunca legalizada; despojado da sua propriedade, cujos títulos não existiam, por  grileiros e capangas – persistia como agregado, ou buscava sertão novo, onde tudo recomeçaria. Apenas recentemente se tornou apreciável a sua incorporação à vida das cidades, sobretudo como operário (idem ibidem).

Quanto à suposta inadaptação do caipira ao esforço intenso e contínuo, Candido  propôs a análise das determinantes econômicas e culturais de um fenômeno que não pode ser considerado “vadiagem” e sim uma “desnecessidade” de trabalhar  condicionada pela falta de estímulos prementes, a técnica sumária e, em muitos casos, a espoliação eventual da terra obtida por posse ou concessão. Em conseqüência, resultava larga margem de lazer que, visto de certo ângulo, funcionava como fator positivo de equilíbrio biossocial. Realmente, uma vez aceito que tal equilíbrio se denia em termos mínimos, vemos que, além de criar condições favoráveis a uma larga proporção de subnutridos,  presa de verminoses e moléstias tropicais, ela proporcionava oportunidade  para caça, coleta, pesca, industria doméstica – no setor da cultura material. E  para cooperação, festas, celebrações, que mobilizavam as relações sociais. O lazer era parte integrante da cultura caipira; condição sem a qual não se caracterizava, não devendo, portanto, ser  julgado no terreno ético, isto é, ser condenado ou desculpado, segundo é costume (ibidem, p. 113).

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Sobre a questão da ambição, que já apareceu no relato de Taunay e nas ree xões de Bomm, Candido cita artigo de Nardy Filho, da imprensa da época, que se referia ao “caipira de Itu” da seguinte forma: “Não quero dizer com isso que seja um vadio. Não, em absoluto; simplesmente não é ambicioso nem previdente” (Nardy Filho apud Candido, 2001:114). Ao que completa Candido: Desambição e imprevidência devem ser interpretadas como a maneira correta de designar a desnecessidade de trabalho, no universo relativamente fechado e homogêneo de uma cultura rústica em território vasto (Candido, 2001:114).

Quando passa a tratar da situação atual do caipira, comparando-a com a descrita na primeira parte de seu livro, Candido identicou um empobrecimento notório desta população. Houve, por exemplo, perda de hábitos alimentares tradicionais sem a possibilidade de incorporação das novidades disponíveis no comércio. Hoje em dia, porém, o m do regime de auto-suciência não permite ao  pequeno agricultor prover por inteiro às próprias necessidades alimentares. (...) O homem rural depende, portanto, cada vez mais da vila e das cidades, não só para adquirir bens manufaturados, mas para adquirir e manipular os  próprios alimentos (ibidem, p. 178-179).

Conforme Candido, a marcha da urbanização em São Paulo, ligada ao progresso industrial e conseqüente abertura de mercados, levou para as áreas rurais bens de consumo até então desconhecidos, criando novas necessidades, que aumentavam o vínculo com a cidade. Doravante, ele compra cada vez mais, desde roupas e utensílios até alimentos e bugigangas de vários tipos; em conseqüência, precisa vender cada vez mais. Estabelece-se, desse modo, uma balança onde avultam receita e despesa (embora virtuais) – elementos que inexistiam na sua vida passada.

A incorporação progressiva das populações rurais à esfera de inuência da economia capitalista signicou, além do aumento de dependência econômica, um novo ritmo de trabalho e uma nova reorganização ecológica, que transformou as relações com o meio e abriu caminho para novos ajustes. Em decorrência disso, Candido apontou mudanças no equipamento material e no sistema de crenças e valores, que causaram modicações estruturais, com o aparecimento de novos  papéis e novas situações sociais (conguração do parceiro como categoria econô mica) e novas ordenação das relações (a comercialização da cooperação vicinal).  Neste novo contexto, O homem rústico vive uma aventura freqüentemente dramática, em que os

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A pobrezA no pArAíso tropicAl  padrões mínimos tradicionalmente estabelecidos se tornam padrões de miséria, pois agora são confrontados aos que a civilização pode teoricamente  proporcionar. Se encararmos a miséria do ângulo sociológico, como privação extrema dos bens considerados necessários a cada cultura, veremos, com efeito, que ela existe por comparação (ibidem, p. 279).

Candido concluiu seu livro posicionando-se politicamente e sugerindo soluções  para os problemas das populações rurais, dando grande destaque para a reforma agrária: Aqui chegando, o sociólogo, que analisou a realidade com os recursos metódicos de quem visa resultados objetivos, cede forçosamente a palavra ao  político, ao administrador, e mesmo ao reformador social que jaz latente em todo verdadeiro estudioso das sociedades modernas. (...) Conclui-se de tudo que (...) a situação estudada neste livro leva a cogitar no problema da reforma agrária (ibidem, p. 280; 281)

A reforma agrária, desta maneira, aparece no trabalho de Candido como possibilidade de acabar com a fome e a anomia no meio rural paulista. Para o autor, o latifúndio, que não se justicava nem pela utilidade pública nem pela privada, impedia que os pequenos agricultores obtivessem a posse da terra, fundamental  para sua estabilidade econômica (ibidem, p. 281). A relação entre pobreza e concentração fundiária é uma constante nos ensaios e estudos analisados até aqui. De José Bonifácio a Candido, é clara a percepção de que o latifúndio é um elemento importante de geração da pobreza e da subnutrição. Dez anos depois da defesa de sua tese, Antonio Candido estaria na banca examinadora do doutoramento de Maria Sylvia de Carvalho Franco, orientanda de Florestan Fernandes, que seria publicada em forma de livro em 1969, com o título de Homens livres na ordem escravocrata. Seu objetivo foi analisar o que chamou de “civilização do café” do século XIX no Vale do Paraíba, reconstituindo o “mundo de homens livres”, categoria utilizada em r elação/oposição a “escravidão”, destacando a relação existente entre pobreza, violência e poderes locais. Maria Sylvia utiliza a noção de “mínimos vitais”, que extraiu da obra de Antônio Candido, para tratar da violência nas relações de vizinhança entre homens livres e pobres. O mesmo “mínimo vital” que levaria à cooperação conduziria a uma expansão das áreas de atrito e tensão: A pobreza das técnicas de exploração da natureza, os limites estreitos das  possibilidades de aproveitamento do trabalho e a conseqüente escassez de recursos de sobrevivência não podem deixar de conduzir a uma sobreposição das áreas de interesse (...) Em resumo, se uma cultura pobre e um sistema

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social simples efetivamente tornam necessárias relações de recíproca suplementação por parte de seus membros, também aumentam a freqüência das oportunidades de conito e radicalizam as suas soluções (Franco, 1997:28).

A violência teve um espaço muito grande na análise de Franco, como conduta legitimada de uma sociedade onde inexistiam canais institucionalizados para o estabelecimento de compensações formais. A emergência desse código que sancionou a violência prend e-se às próprias condições de constituição e desenvolvimento da sociedade de homens livres e pobres. Viu-se, primeiramente, através das relações de vizinhança, c omo os ajustes violentos se ligavam ao estado de penúria que cou relegado esse grupo: a escassez, se de um lado realmente favoreceu o estabelecimento dos laços de solidariedade necessários para garantir a distribuição regular dos recursos, de outro lado radicalizou a disputa em torno dos meios de vida. A denição do nível de subsistência em termos mínimos vitais, a emergência das tensões em torno das probabilidades de subsistência e sua resolução através de conitos irredutíveis têm uma mesma e única matriz: a forma de inserção dessas populações à estrutura da sociedade brasileira, que as tornou marginais em relação ao sistema socioeconômico, numa terra farta e rica e colocou-as, assim, a um só tempo, diante da quase impossibilidade e da quase desnecessidade de trabalhar (ibidem, p. 60-61).

Ao analisar a sociedade colonial escravocrata, com seu estímulo ao desperdício da força de trabalho do homem pobre e livre, Maria Sylvia analisou, de uma forma diversa, a visão do homem pobre como preguiçoso. Foi nesse contexto que nasceu o “preguiçoso” caipira, que esteve colocado na feliz contingência de uma quase “desnecessidade de trabalhar”, com a organização social e a cultura se amoldando no sentido de garantir-lhe uma longa margem de lazer, mas que sofreu, simultaneamente, a miserável situação de poder produzir apenas o estritamente necessário para garantir uma sobrevivência pautada em mínimos vitais (ibidem, p. 35).

Seu trabalho demonstrou também que o homem pobre do nal do século XIX não tinha nenhuma espécie de reconhecimento social. Citou como exemplo um documento da Câmara de Municipal de Guaratinguetá, de 1897, no qual ca clara a visão do homem pobre na consciência da camada dominante. Ela o aproxima do escravo e estabelece uma desigua ldade, às escâncaras, entre o proprietário e o homem sem posses, distinguindo a natureza dos encargos a que estariam legalmente sujeitos. (...) Em tais condições, o caminho do

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A pobrezA no pArAíso tropicAl homem pobre foi, o mais das vezes, o de rearmar sua submissão (ibidem,  p. 105; 113).

Franco dedicou-se a analisar os relatos dos viajantes que percorreram o Vale do Paraíba, no início do século XIX, e que registraram a “quase indigência” da região,  para tratar do que chama “herança da pobreza” nos períodos históricos posteriores. Os relatos de Luccock, que visitou tanto a região mais setentrional atravessada  por Saint-Hilaire, quanto a percorrida por Mawe, dão conta da precariedade das condições materiais, das técnicas agrícolas sumárias, do estilo de vida simples, da falta de dinheiro, da sociedade quase indiferenciada (ibidem, p. 118).

 Na “fímbria” dessa “sociedade quase indiferenciada” vista pelos viajantes, o homem livre e pobre participava como “vendeiro” ou “tropeiro” (categorias com alguma possibilidade de ascensão social), como “sitiante” ou como “agregado”, realizando serviços residuais que na maior parte não poderiam ser realizados por  escravos e não interessavam aos homens com patrimônio (ibidem, p. 65). Ao analisar a categoria dos “sitiantes”, Franco demonstrou que o compadrio era a instituição que permitia uma aparente quebra das barreiras sociais entre estes e o fazendeiro. Neste ajuste, em troca de assistência econômica cabia ao “sitiante” retribuir com a liação política. Demonstra também que, enquanto o “sitiante” tinha algum tipo de reciprocidade com o fazendeiro, baseada em sua condição comum de donos de terra, os “agregados” e “camaradas”, moradores de terra alheia, não  possuíam nenhum tipo de reconhecimento social. Embora existissem associações morais e ligações de interesse com os grandes fazendeiros, estes constantemente frustravam as expectativas de seus dependentes para privilegiar os seus negócios. “Diante da necessidade de expandir seu empreendimento, nunca hesitou em expulsá-los de suas terras” (ibidem, p. 107).  Nesta frustração de expectativas, decorrente do caráter precário e transitório das relações de dependência, os “agregados” e “camaradas” cavam à margem do arranjo estrutural e dos processos essenciais à vida social e econômica, congurando-se por isso mesmo “os mais desvalidos dos homens livres e os mais qualicados dos homens para enfrentar a ordem estabelecida” (ibidem, p. 108). Mas embora faça referências a alguns casos de violência de “agregados” contra fazendeiros, o padrão seria o de submissão. Nas suas existências avulsas, “agregados” e “camaradas” (...) destituídos de meios próprios de subsistência e com uma vida despojada de signicado para aqueles de quem dependiam, tudo deviam e nada de

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essencial podiam oferecer aos senhores das fazendas onde se xavam. Por  isso mesmo, transformavam-se em seus instrumentos para todo e qualquer  m, inclusive os de ofensa e da morte (ibidem, p. 153).

Em relação ao trabalho de Candido, Maria Sylvia avançou em dois aspectos fundamentais: a ligação que fez entre pobreza e violência e a ênfase que deu em algumas características que considera fundantes na relação do homem livre e pobre com os grandes fazendeiros e destes com o Estado: a dominação pessoal, o favor  e seus resultados. O trabalho de Maria Sylvia, sobretudo, ressaltou a importância do trabalhador  livre enquanto fenômeno constitutivo do Brasil moderno e intrinsecamente ligado ao seu contrário, a escravidão. Trinta e três anos depois da estréia de  Homens livres na ordem escravocrata, foi lançada uma segunda edição. Ao resenhá-la, o historiador Boris Fausto fez referência a trabalhos mais recentes sobre o tema, que teriam aberto uma polêmica acerca da importância dos homens livres e pobres, brancos ou não, no âmbito da sociedade brasileira. Cita especicamente os trabalhos de dois historiadores, Ciro Flamarion Cardoso e Francisco Carlos Teixeira, que (...) trataram de destacar que a grande lavoura de exportação não foi tão avassaladora como forma econômica, enfatizando a importância da agricultura destinada ao mercado interno, formada, ao menos em parte, por pequenos  proprietários. Este segmento social constituiria mesmo um campesinato ou um  protocampesinato, na designação de Ciro Flamarion Cardoso (Fausto, 1997).

Maria Sylvia, na linha de Caio Prado, teria situado o homem livre e pobre num vínculo estreito à economia cafeeira, (...) como gura cujas oportunidades econômicas reduziram-se a serviços residuais, que na maior parte não podiam ser realizados por escravos e não interessavam aos homens com patrimônio. Sem me alongar na controvérsia,  penso que o razoável número de estudos hoje existentes sugere a necessidade de se reavaliar, no espaço e no tempo, a gura do homem livre e pobre, sem necessariamente vinculá-la a uma integração no interior da grande propriedade (idem ibidem).

Tal resenha mereceu uma réplica de Maria Sylvia, para quem (...) pretender que esses grupos estejam fora do movimento inteiro do ca pitalismo nascente, que independam da grande propriedade, é fábula que  precisaria estar melhor contada: as referidas pesquisas não mudam, em nada,

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A pobrezA no pArAíso tropicAl a pertinácia de meu estudo; elas repõem exatamente o que critico, brotando das vetustas teses que isolam trabalho livre e escravismo. Nesse sentido, elas é que são envelhecidas, já antes de nascer (Franco, 1997).

O debate deixa transparecer tensões de origem acadêmico-ideológicas, que a autora exemplica com a história da edição de seu livro: A censura e polícia doutrinárias continuam rmes. Enfrentar teórica e  praticamente o saber dominante não é tarefa comezinh a. Homens livres foi escrito há 33 anos, mas publicado há 27 (1969). No intervalo, cou emude cido  pelo veto das assessorias ortodoxas, nas editoras, à direita e à esquerda: de um lado, porque o livro era marxista, de outro, porque não rezava pela cartilha. Publicado, o livro incomodou bastante: desconhecer é uma eciente forma de excluir e muito silêncio se fez em torno dele (idem ibidem).

Boris Fausto escreveu uma tréplica na qual se defende das acusações alinhando-se à Maria Sylvia no que teria em comum com ela, como a discordância em relação às teorias dualistas na explicação da natureza do latifúndio e a concordância que o sentido básico da colonização foi dada pela grande lavoura de exportação alicerçada no trabalho escravo. Isto não seria suciente, arma, para negar a existência de novos estudos que vão por outros caminhos interpretativos:  Não obstante, tinha de informar o leitor da existência de uma interpretação do nosso passado colonial e do século XIX que procura realçar a importância de um contingente de homens livres, dedicados à produção para o mercado interno; da mesma forma, tinha de informar o leitor da publicação de muitos trabalhos sobre esses homens livres e pobres cujo signicado social foi muitas vezes obscurecido, a ponto de autores do calibre de Caio Prado Jr. colocá-los em uma categoria indiscriminada de “desclassicados, vadios, inúteis, inadaptados, indivíduos de ocupações mais ou menos incertas e aleatórias ou sem ocupação alguma” (Fausto, 1997b).

Ao registrar tal polêmica, que teria ainda mais uma réplica de Maria Sylvia, não o faço para trazer à luz disputas intestinas ao meio acadêmico paulista, e sim  para apontar o quanto  Homens livres numa ordem e scravocrata foi também um livro elo entre os ensaios tradicionais sobre o Brasil e os trabalhos universitários que se disseminariam a partir daí. O fato de a própria autora armar que seu livro,  pela não-ortodoxia marxista, cou numa espécie de limbo intelectual e editorial, talvez explique porque seus interlocutores atuais sejam historiadores e não seus  pares das ciências sociais.

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São os historiadores, igualmente, que tomaram para si duas tarefas consideradas fundamentais para a compreensão do passado escravista brasileiro: a revisão das fontes e a rejeição à reicação do escravo. Vimos como grande parte dos autores que analisamos tem como fonte os relatos de viajantes, incorporados aos seus trabalhos como peças fundamentais da argumentação, sem que se zesse qualquer tipo de crítica aos juízos de valor e ao etnocentrismo presente nos mesmos. Historiadores com pesquisas mais recentes têm questionado tais relatos, que no seu entender “coisicam” o escravo. Tende-se, hoje, a considerar o papel ativo que desempenharam na construção de suas próprias histórias, divergindo da visão que os tratava como massas inertes moldadas pelos humores e conjunturas senhoriais (Faria, 1998).

Também entre os historiadores, vamos encontrar alguns seguidores do trabalho de Maria Sylvia, tais como Laura de Mello e Souza, H ebe Castro e Peter Eisenberg, que empreenderam esforços para descortinar o cotidiano social dos “marginais”, “desclassicados” e “apartados” da sociedade de então (idem ibidem). Nesta con tinuidade, no entanto, há espaço para críticas. Se, para Boris Fausto, Maria Sylvia “robotizou” o caipira na sua relação de subordinação ao grande fazendeiro, para Faria (1998) os homens pobres e livres tinham igualmente objetivos de ganhos  precisos e conscientes, o que lhes dava margem de opção. Vale ressaltar que a historiadora credita essa diculdade de Maria Sylvia em “reconhecer o outro” à inexistência em seu trabalho de uma visão antropológica. Faria critica também a ênfase dada por Maria Sylvia ao “código do sertão”, à violência que ela atribui aos homens pobres e livres do Brasil colonial. Ao fazê-lo, busca relativizar o verdadeiro estigma que persegue os homens pobres até a atualidade: Pobres não são violentos porque isso faz parte de seus códigos culturais. Pobres são aparentemente mais violentos porque, demogracamente mais numerosos que os ricos, são enquadrados em crimes puníveis pelas leis vigentes no momento. Podemos questionar se esses homens, no seu cotidiano, sem crimes, seriam tão violentos quanto nos retratam a fonte abordada. Mais ainda: em que eles poderiam diferir de uma elite que também cometia crimes, inclusive passionais, mas que detinha mecanismos innitamente mais  poderosos de ocultamento da transgressão? (idem ibidem).

 Nos textos de Antonio Candido e Maria Sylvia, a pobreza nas áreas rurais do país foi analisada com métodos absolutamente novos. Candido realizou um trabalho de campo longo e Maria Sylvia dedicou-se a uma pesquisa em arquivos

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municipais. Ao fazê-lo, ambos revelaram uma pobreza que tinha causas amplamente identicáveis e uma população pobre que tinha suas regras e seus costumes. Abriram assim uma vertente importante de investigação, conhecida como “estudos de comunidade”, que se somaria aos estudos clássicos de campesinato dentro da antropologia. Vimos, portanto, neste segundo capítulo, a transformação que se deu tanto no tipo de produção teórica predominante (“ensaio”, “monograa”, “pesquisa de campo”, “teses”) quanto no tratamento da questão da pobreza da população. Para tanto, destacou-se da obra de Caio Prado Júnior, Josué de Castro, Roger  Bastide, Florestan Fernandes, Costa Pinto, Antonio Candido e Maria Sylvia de Carvalho Franco elementos indicativos destas transformações: a inuência marxista, a importância política da discussão sobre a fome, a falácia do mito da democracia racial e a ênfase no trabalho de campo e na representação das  populações analisadas. Os 40 anos que se buscou cobrir foram fundamentais para consagrar conceitos e métodos, denir campos intelectuais e formar as novas gerações de especialistas em ciências sociais. Também abriu uma nova vertente de produção intelectual, a  partir do incentivo e demanda de grandes organismos internacionais, como a Unesco e a FAO. Com exceção de Caio Prado, que trabalhou basicamente com relatos de viajantes e documentos históricos, os demais intelectuais analisados se colocaram literalmente em campo para produzir suas reexões, seja através dos inquéritos sociais de Josué de Castro, dos questionários de Roger e Bastide ou da imersão na cultura caipira de Antonio Candido. No capítulo seguinte, vericar-se-á de que forma seus trabalhos inuenciaram as gerações seguintes de cientistas sociais e as mudanças no tratamento da questão da pobreza na produção acadêmica das três últimas décadas do século XX.

Notas 1 Segundo D’Incao, “a leitura de Formação do Brasil contemporâneo é exemplar para se entender   porque as relações de hoje, não s ó as econômicas, mas também as sociais, são de natureza tão desigual” (D’Incao apud Aguiar, 2000b:270). 2 O autor utiliza tal termo no sentido de “um conjunto amplo de forças de aglutinação, de com plexo de relações humanas que mantém l igados e unido s os indiví duos de uma s ociedade e os fundem num todo coeso e compacto” (ibidem, p. 345). 3 Conforme Guimarães (1981:2), “o termo lumpemproletariado foi introduzido em 1845 na obra

escrita conjuntamente por Marx e Engels, A ideologia alemã (....). Seus introdutores o deniram como o mais baixo estrato da sociedade e remontavam suas origens à formação urbana, no período de decadência do feudalismo”. Engels teria denido o lumpemproletariado como “a escória dos elementos depravados de todas as classes, com sua base nas grandes cidades, é o pior de todos

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os possíveis aliados. Essa ralé é absolutamente venal e absolutamente descarada” (Engels apud Guimarães, 1981:3). Esta posição não era compartilhada pelos anarquistas, como Bakunin, que viam nos socialmente desclassicados os verdadeiros revolucionários. Frantz Fanon foi um seguidor desta linha teórica, armando que “é nessa massa, é nesse povo das favelas, no seio do lumpemproletariado, que a revolução vai encontrar sua ponta de lança urbana. O lumpemproteriado, essa corte de esfomeados, afastados da vida tribal e seus clãs, constitui uma das forças mais espontaneamente e radicalmente revolucionárias” (Fanon apud Guimarães, 1981:4). 4 Criado em 1º de maio de 1940, o salário mínimo tem sua origem na Constituição de 1934. Entre

os anos de 1936 e 1938, foram criadas comissões para denição dos valores necessários para alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte do trabalhador (Magalhães, 1997:38). 5 Um exemplo é o chamado Mapa da fome, produzi do pelo Ipea no bojo da

Campanha da Fome,

no início da década de 1990 (Ipea, 1993). 6 O Instituto Superior de Estudos Brasi leiros (Iseb), foi criado em 1955 e extinto em 1964, com o

golpe militar. Foi o principal órgão de construção e de di vulgação das idéias desenvolvimentist as nacionalistas, nesse período (Magalhães, 1997:56). 7 Para ns analíticos, o autor conceituou “classes sociais” como grandes grupos ou camadas de indivíduos que ocupam a mesma posição na organização social da produção e “estraticação” como o sistema total de posições sociais que resulta da existência, da pluralidade e das diferenças entre as classes no interior de uma sociedade (Costa Pinto, 1998:90).

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cApítulo 3

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As representações sobre a pobreza nas últimas décadas do século XX

 Neste capítulo será mostrado como a pobreza passou a ser tratada nos textos acadêmicos a partir da década de 1960, como ela aparece nos discursos dos organismos internacionais e nos discursos e documentos produzidos no âmbito da Comissão Mista de Combate à Pobreza. Nesse sentido, a comissão pode ser pensada como um estudo de caso. Poderíamos identicar de que forma mais de um século de debates e reexões nacionais e internacionais sobre a iniqüidade social se reetem, por  exemplo, na mídia nacional, na literatura ou em algum órgão do Poder Executivo. A opção pela comissão, além da obviedade de sua temática, permitiu acrescentar  ao trabalho algumas representações sobre os políticos feitas por alguns expoentes do pensamento social brasileiro, analisados no primeiro capítulo.

3.1. A pobreza como objeto das cincias sociais A partir dos anos 1960, as discussões sobre clima, raça, doença e fome, que  predominaram nas décadas anteriores, deixaram gradativamente de ser o grande tema dos debates nacionais. Num contexto de ditadura militar e de aprofundamento das especializações universitárias, foram priorizados os estudos de classes e estruturas sociais, nos quais a pobreza ou a desigualdade social eram elementos sempre presentes. Tais estudos tiveram muita força nas décadas de 1960 e 1970, sendo posteriormente acompanhados por trabalhos sobre os chamados “novos movimentos sociais” e, de meados da década de 1980 aos anos 1990, por aqueles que tiveram a pobreza propriamente dita como objeto de análise. Parte deste processo foi analisado por Miceli (1989), para quem os anos 1960, especialmente até 1964, foram marcados por transições e diferenciações importantes no interior dos grupos mais representativos das ciências sociais no Rio de Janeiro e em São Paulo. Miceli enfatizou em seu trabalho os intelectuais paulistas, a partir da terceira geração da escola sociológica paulista, onde despontaram os  primeiros orientandos de Florestan Fernandes: Octávio Ianni, Maria Sylvia de

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Carvalho Franco e Fernando Henrique Cardoso. Estes, armou, permaneceram aparentemente indiferenciados intelectual e politicamente até sua divisão em dois grupos de leitura de O capital , de Karl Marx (Miceli, 1989:108). Tal constatação de Miceli, por si só, demonstra a força da temática classista sobre a denição dos seus objetos de análise. Nesta vertente teórica, em sua perspectiva clássica, a pobreza apareceu como o resultado da exploração do homem pelo homem, que deveria ser  superada no devir da luta de classes. De fato, os temas relativos à raça foram sendo rapidamente absorvidos pelas temáticas marxistas. Florestan Fernandes (1964) analisou a integração do negro à sociedade de classes destacando que “a sociedade brasileira largou o negro ao seu próprio destino, deitando sobre seus ombros a responsabilidade de reeducar-se e de transformar-se para corresponder aos novos padrões e ideais de homem, criado pelo advento do trabalho livre, do regime republicano e do capitalismo” (Fernandes, 1964:5). Da mesma forma, no artigo “Do escravo ao cidadão” (1967), Octávio Ianni se  propôs a analisar de que forma o trabalhador livre surgiu na sociedade brasileira. Dentro de um viés sobretudo econômico, Ianni armou que a partir da inserção do Brasil num mercado internacional mais moderno e racional, o capital aplicado em escravos tornara-se um investimento de risco: À medida que a economia de mercado se desenvolve internamente, com a gênese de um setor artesanal e fabril, além da expansão e diferenciação do setor de serviços, instauram-se mais ampla e profundamente os valores fundamentais da cultura capitalista, tais como: propriedade privada, como forma concreta de capital; lucro, como função dos fatores e da direção dos empreendimentos; salário, como remuneração da mão-de-obra efetivamente utilizada na produção; previsão dos negócios, complementaridade das atividades econômicas, integração produtiva e ótima dos fatores da produção; crises e utuações especícas de cada setor ou ramo (Ianni, 1987:47)

 Neste modelo explicativo, os grandes proprietários de terras e escravos teriam se dado conta de que o lucro não era questão de apenas saber negociar no mercado, mas também dos custos, os quais poderiam ser racionalizados. Daí ter-se “se tornado óbvio” ser preferível a mão-de-obra livre, colona ou assalariada, cuja remuneração seria função do produto de sua força de trabalho (ibidem, p. 50).  Num encadeamento extremamente lógico, Ianni armou que teria se tornado  possível e necessário redenir social e moralmente o trabalho produtivo, as relações de produção e, em conseqüência, o status jurídico do trabalhador. A dignicação das atividades braçais ocorre, durante a segunda metade do século XIX, em concomitância com o abolicionismo e a imigração, a mo-

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dernização da cafeicultura e o primeiro surto de criação de unidades fabris. É o processo ideológico por meio do qual se rompe, ao mesmo tempo, a contradição entre a mercadoria e o escravo, entre os princípios da igualdade e da liberdade, por um lado, e a escravidão, por outro (ibidem, p. 50).

Esta opção pelos estudos marxistas foi analisada por Guimarães (1999), para quem “classes sociais” e “estruturas sociais” foram consensos teóricos que prevaleceram a partir dos anos 1950 nas ciências sociais no Brasil. A própria idéia de sociologia passa a ser associada ao conhecimento de uma estrutura (a estrutura social) regida por leis cientícas e, portanto, racional mente compreensível, mas totalmente opaca ao entendimento dos indivíduos qua atores sociais. As relações sociais engendradas pelo processo de industrialização serão alçadas, portanto, à principal objeto de pesquisa sociológica (...) Os anos 1960 assistiram ao avanço da teoria das classes e à consolidação da inuência do marxismo, e de todas as formas de explicação estrutural, na sociologia brasileira (Guimarães, 1999:15).

Para o autor, as análises de classe tomaram neste período três formas: a da sociologia econômica que culminou com as análises de dependência ; da sociologia  política, debruçada sobre estudos referentes a patrimonialismo, clientelismo, po pulismo e democracia e a dos estudos de formação das classes sociais brasileiras, subdivididos em cinco áreas: formação de um empresariado nacional, formação de burocracias ou elites dirigentes, formação de classes médias, formação de uma classe operária industrial e formação de um proletariado rural (ibidem, p. 16]. Teria existido, no começo dos anos 1960, um certo consenso de que a partir  da ruptura dos anos 1930 as novas classes sociais em gestação (operariado, classes médias urbanas e burguesia industrial) seriam responsáveis por profundas mudanças sociais e políticas no país. Daí a proliferação de estudos sociológicos sobre a classe operária brasileira, publicados entre o nal dos anos 1950 e começo dos 1970. Estes teriam perdido sua força pelo impacto dos golpes de 1964 e 1968, “quando cou clara a impossibilidade de uma ação coletiva da classe operária no futuro imediato” (ibidem, p. 20).  No desenrolar dos anos 1970, no clima de resistência democrática à ditadura, os estudos sobre a formação da classe trabalhadora teriam ressurgido sob a ótica do novo sindicalismo, com forte inuência de Gramsci e Poulantzas (ibidem, p. 22). Até então, para Guimarães, a teoria das classes sociais no Brasil estava presa a quatro tradições teóricas: sociologia da USP; sociologia nacional-desenvolvimentista do Iseb; ortodoxia marxista dos partidos de esquerda e sociologia latino-americana (Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais/FLACSO e Comissão Econômica

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 para a América Latina e o Caribe/Cepal). A novidade do começo da década seria o surgimento do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), que realizaria, no seu entendimento, uma nova exegese marxista (ibidem, p. 22). Sorj (1995) também analisou a entidade, armando que no contexto de derrota dos movimentos revolucionários, os men tores do Cebrap teriam ocupado o vácuo ideológico, congurando-se como parte importante da oposição democrática que se criava. Além disso, a entidade teria marcado os parâmetros da interpretação da sociedade brasileira e funcionado como “consciência possível” da nova geração de cientistas sociais: Este parâmetro era dado por um reconhecimento de que o regime militar, embora “politicamente reacionário”, era “modernizante do ponto de vista econômico”, rompendo assim a visão dominante até então na esquerda e nas ciências sociais, que identicava o governo militar com imperialismo e estagnação. Mais do que uma elaboração sistemática sobre a nova estrutura social brasileira, a análise de Fernando Henrique Cardoso e dos outros mem bros do Cebrap se desenvolvia por um movimento de crítica aos equívocos de esquerda e de direita. Aos primeiros eram sinalizadas as mudanças profundas sofridas pela sociedade brasileira desde ns dos anos 1960, enquanto à direita era cobrada a sua incapacidade de enxergar os custos sociais do abandono de enormes contingentes humanos gerados pelo modelo vigente. Junto com um grupo de economistas baseados na Unicamp, o Cebrap trouxe  para os cientistas sociais a idéia de que o Brasil é uma sociedade capitalista e que seus processos sociais devem ser analisados em termos da dinâmica do capitalismo (ibidem, p. 318).

Para Sorj, a “herança Cebrap” nos anos 1970 e 1980 traduziu-se intelectualmente na assimilação pelas novas gerações de cientistas sociais de que o Brasil era um  país capitalista dinâmico, com uma sociedade em pleno processo de modernização.  Neste contexto, a pobreza começou a emergir como um problema a ser resolvido via processo democrático. Daí a força que tomaram os estudos sobre o “novo”: novos movimentos sociais, nova liderança sindical, novas formas de participação. Se o Brasil estava minado de problemas sociais, estes seriam resolvidos no  processo de democratização, por uma integração efetiva às novas formas de  participação. Assim, a grande parte da pesquisa social brasileira, resolvido o problema do diagnóstico global, se concentrou em estudos de casos setorizados, na grande maioria analisando os “novos” processos sociais (ibidem,  p. 320-321).

Desta forma, o social teria se transformado de fonte de sociopatologias, en-

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trave ao desenvolvimento e outras negatividades e carências, no berço de toda a  positividade: movimentos sociais, sindicalismo e sociedade civil (ibidem, p. 330). Guimarães, nesta mesma linha, armou que embora as análises de classe  produzidas nos anos 1970 reproduzissem antigos diagnósticos e interpretações, os “atores coletivos” (governo, classes e estamentos) começavam a despontar como novos sujeitos da história (Guimarães, 1999:23). Para Sorj, os anos 1970 teriam sido para as ciências sociais “os anos das grandes ilusões”, referindo-se à proclamada certeza de que o país chegaria rapidamente à modernidade e à consolidação capitalista, processo que seria complementado com a democracia política (Sorj, 1995:328). O predomínio do que chama de “economicismo/politicismo” nas ciências sociais teria obscurecido os aspectos sociais e culturais deste processo, não permitindo que se enxergasse ou se desse o peso devido (...) às forças desintegradoras das relações sociais, à fragilidade dos sistemas de valores modernos, à prática de desvalorização do homem, às limitações das elites, à privatização e deformações na manipulação do bem público (idem ibidem).

Para Guimarães, diversamente, os anos 1980 foram marcados pela incorporação denitiva dos movimentos populares aos estudos de classe, com inuência dos marxistas ingleses, especialmente E.P. Thompson e Raymond Williams (Guimarães, 1999:24). Surgem novas categorias de análise, como “experiência”, “imaginário”, “cotidiano” e “cidadania”, revelando uma preocupação dos produtores intelectuais em “tratar os dominados como criadores de seus próprios mundos” (Guimarães, 1999:25). Nessa mudança, teriam emergido os direitos individuais e coletivos não apenas dos operários, mas também das “camadas populares”, ou seja, da população  pobre do país. Tal revisão temática não se deu sem tensão. Emília Viotti a sintetizou como o confronto entre a “estrutura” e a “experiência” (ibidem, p. 24).  No campo dos estudos de campesinato, conforme Guimarães, os anos 1960 e 1970 foram marcados pelo diálogo com a teoria marxista sobre a renda da terra e com as teorias sociológicas sobre as classes sociais, enquanto os anos 1980 signicaram a introdução de temas especícos ao meio rural: bóias-frias, sindicalismo rural, modernização da agricultura, efeitos sociais das barragens, expansão da fronteira agrícola, luta pela terra e violência no campo (ibidem, p. 34), pesquisados em sua maior parte através de trabalhos de campo.  Na década de 1970, no Museu Nacional (UFRJ), foi desenvolvido o Projeto emprego e mudança socioeconômica no Nordeste, num convênio da universidade e da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e o Instituto Brasileiro de Geograa e Estatística (IBGE). Desse encontro entre o olhar antropológico e os dados estatísticos resultaram

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trabalhos importantes, que relativizaram temas consagrados na época, como o da migração (Palmeira, 1997). Em introdução ao livro O vapor do diabo – o trabalho dos operários do açúcar  (1978), de José Sérgio Leite Lopes, um dos frutos do projeto, Moacir Palmeira o situou como obra diferenciada tanto no contexto dos estudos sobre a classe operária brasileira quanto no contexto das monograas antropológicas tradicionais. Diferentemente dos primeiros, não se propunha a elaborar teorias generalizantes. Diferenciando-se das segundas, era uma monograa sobre problemas teóricos situados numa realidade concreta (Palmeira, 1978:xi). Ao escrevê-lo, José Sérgio teria conseguido superar o antagonismo apontado por Emília Viotti entre estrutura e experiência. O que temos é o trabalho de transformação de uma experiência singular de um grupo singular de operários numa variante (e portanto num conceito) da combinação de estruturas que permitem a existência daquela situação única (como qualquer situação empiricamente analisada por um cientista social), estruturas que só podem ser reveladas pela ida ao caso que se está querendo analisar. É isso que faz com que “o operário de carne e osso” não seja banido da teoria ou por ela devorado nas grandes sínteses teórico-metodológicas que, a exemplo dos usineiros, “comem a carne e deixam os ossos” ou então  picando junto com suas “opiniões” e “atitudes” como o fazem os doxosofos de diferentes matrizes (Palmeira, 1978:xii).

Dialogando principalmente com pensadores marxistas tradicionais, Palmeira defendeu a utilização da teoria marxista de uma forma instrumental. Da mesma forma, apontou para a importância da análise de José Sérgio sobre as variações internas dentro de uma mesma classe social, armando que este (...) conseguiu com sua “descrição” um avanço teórico substancial, mostrando-nos como esse último reduto das análises substancialistas que é a situação de classe ou condição de classe também se faz de relações, de relações tão materiais e objetivas quanto aquelas que determinam a própria existência das classes sociais (ibidem, p. xiv).

Estava em discussão, sobretudo, a possibilidade de utilização da teoria marxista de uma forma mais exível, com “a construção de novas variantes e a abertura de novos caminhos sem os quais uma teoria não vive” (ibidem, p. xv). Tal proposta foi amplamente desenvolvida pelos estudos de campesinato realizados no Museu  Nacional e inuenciou sobremaneira os estudos que surgiriam a seguir sobre “classes populares”, “violência”, “cidadania” e “movimento negro”, entre outros. Para Guimarães (1999) estes são, na verdade, estudos de classe.

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Se estou certo, pois, boa parte da literatura sociológica contemporânea, que toma como tema central a exclusão e a limitação de cidadania das classes  populares, está realmente referida ao campo temático das classes sociais no que tange à ordem estamental, à ação de grupos, à sua hierarquia e à formação de comunidades, mesmo quando distante da problemática econômica das classes (ibidem, p. 40).

 No movimento de proliferação de novos estudos sobre a população brasileira, nos moldes introduzidos pelos estudos de campesinato do Museu Nacional, “o  pobre”, enquanto objeto especíco de análise, apareceu sobretudo nos estudos so  bre violência. Numa linha de reexão que teve Perlman (1977) e Ramalho (1983) como pioneiros, destaca-se a pesquisa de Zaluar (1985), resultante de trabalho de campo no condomínio Cidade de Deus, na periferia do Rio de Janeiro, onde seus informantes se autodeniam como “trabalhadores pobres”.  Na introdução de seu livro, a autora analisou as teorias sociais referentes aos  pobres, buscando encontrar o viés analítico adequado para seus dados de campo. Logo de início, recusou-se a deni-los por renda familiar ou tipo de ocupação,  pois “esta seria a classicação objetiva e exterior, que apenas os inclui nas mesmas classes estatísticas, tal como acontece na literatura tecnocrática” (Zaluar, 1985:3334). Em seguida, fez um apanhado das representações tradicionais sobre a pobreza na produção intelectual brasileira, destacando que os pobres jamais ocuparam o lugar da renovação ou da transformação nestes estudos, “ao contrário, sobre eles caiu grande parte da culpa pela ausência de mudanças signicativas e pela conseqüente estagnação política e econômica” (ibidem, p. 35). Além disso, tais estudos tenderiam a concluir que a sua pobreza é o principal obstáculo para sua ação coletiva e autônoma.  Nas dicotomias presentes nos estudos sobre o seu papel político, aos “pobres” urbanos coube carregar o peso do siológico em oposição ao ideológico, do tradicional em oposição ao moderno, do atraso em oposição ao avanço, do  pessoal particularista em oposição ao impessoal universal e, acima de tudo, do material imediato em oposição aos ideais mais amplos, gerais e prementes da sociedade nacional (idem ibidem).

Zaluar identicou tais percepções negativas sobre os pobres nos trabalhos so  bre a cultura da pobreza ou sobre a ausência de consciência de classe nas camadas  populares urbanas, os quais teriam fundamentado dicotomias do tipo clientelismo versus participação democrática e autônoma, demanda ideológica versus ideologia, interesse individual versus coletivismo (idem ibidem). Para a autora, muito das reexões sobre populismo e clientelismo nesse período tinha como fundamento a distinção que Marx fez entre o lumpemproletariado

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e a classe operária ativa, da qual discordou, da mesma forma que discordou dos conceitos de trabalhador marginal, classes populares ou moradores subalternos (idem ibidem). A grande contribuição da autora me parece ter sido a preocupação em trazer, denitivamente, a voz e a visão “do pobre” sobre si mesmo, sua condição econômica e as diferenças sociais que fazem parte de seu cotidiano. Ao fazê-lo, demonstrou o quanto existia de arbitrário e sociologicamente pobre em tal classicação. Zaluar  analisou os moradores da favela em diversos cenários: na administração da casa, na relação com a comida, os eletrodomésticos e as roupas, nas festas, na associação de moradores, na relação com os políticos e o Estado e na imbricação com os criminosos (“bandidos”) com quem dividem o espaço físico e eventualmente constroem relações de lealdade. Este último aspecto foi o mais divulgado de seu trabalho, o que lhe rendeu, na década de 1980, a participação em inúmeras mesas-redondas e debates sobre violência urbana, na mídia, na universidade e mesmo nas corporações militares. Zaluar, dialogando com um modelo interpretativo que mantinha muito de sua força nos anos 1980, chega ao tema das classes sociais. Arma, neste sentido, que a crença na pobreza como projeto de vida, que garante a salvação eterna, foi substituída na mentalidade da população pobre da Cidade de Deus pela certeza de que ela é uma privação na terra.  Não mais guiados por uma denição de pobreza na qual os pobres aparecem como a possibilidade de redenção dos ricos através da caridade, nem os po bres como detentores dos valores morais e espirituais do universo, tal como existiu no Brasil rural até algumas décadas atrás, aos pobres resta pensar a  privação sem os disfarces e as belas vestimentas espirituais de então (...) a  própria existência do rico é um sinal da injustiça (ibidem, p. 119-129).

 No entanto, Zaluar identicou que a distribuição de riqueza e trabalho con tinuou a ser pensada como uma extensão dos direitos tradicionais dos pobres à  proteção paternalista dos ricos, sendo atualizados apenas os autores da redistri buição, que seriam agora os agentes públicos e o Estado. Na verdade, este último é percebido como o principal responsável pela situação de pobreza. Desta visão assistencialista do Estado não está ausente, portanto, a percepção dos interesses de classe e a possibilidade de que ele venha a atuar como árbitro justo. (...). Sua luta não está direcionada, portanto, à conquista dos direitos universais do homem que igualariam a todos numa democracia liberal, incorporando-os à sociedade. É muito mais a luta de um segmento “esquecido” dessa sociedade que reivindica seu direito à assistência estatal, ao salário real melhor, a melhores condições de vida (ibidem, p. 121).

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Segundo Zaluar, se os “trabalhadores pobres” da Cidade de Deus não podem ser percebidos como classe social no sentido marxista clássico, isto não impede sua categorização como “classe em formação”: Entre a união e a amizade, a igualdade e a solidariedade, de um lado, e o conito, a política, a fofoca, a inveja, de outro, entre o trabalho incessante  para prover o grupo doméstico e a revolta expressa na recusa em trabalhar, os trabalhadores pobres constroem suas identidades e vivem a experiência de uma classe em formação. A classe é também um campo em que diferentes tendências culturais e políticas estão em luta (ibidem, p. 126-127).

É louvável, sobretudo, Alba Zaluar não ter aceito fazer em seu li vro um estudo sobre “a pobreza” ou “os pobres”. Num sentido inverso, chamou constantemente a atenção sobre a condição de agentes sociais de seus informantes. Estudos sobre “a pobreza” parecem ter se concentrado em outras searas acadêmicas, sobretudo nas análises econômicas sobre mercado de trabalho. Hasenbalg (1991), ao avaliar a produção das ciências sociais sobre pobreza urbana de 1970 a 1990, identicou que (...) nesse período fez-se a crítica das perspectivas dualistas, foi introduzido, criticado e rejeitado o conceito de marginalidade, usou-se o conceito de desemprego, que também foi criticado como instrumento para dar conta da  pobreza e foi adotada, mais consensualmente, a noção de mercado informal de trabalho (Hasenbalg, 1991:20-21).

O levantamento de Hasenbalg permitiu uma classicação dos trabalhos sobre a pobreza entre: (1) diagnósticos e caracterizações do mercado de trabalho, com ênfase nas questões do desemprego e do subemprego; (2) estudos da inserção da  população nos setores formal e informal do mercado de trabalho; (3) pesquisas sobre trabalho e condições de vida da população do ponto de vista das formas de organização da produção; (4) estudos das estratégias de sobrevivência dos trabalhadores e famílias de baixa renda e (5) análises e mensuração da pobreza a partir  da demarcação de uma linha de pobreza (ibidem, p. 21). Ao analisar separadamente o terceiro e quinto grupos de pesquisa, Hasenbalg demonstrou como diferentes marcos conceituais e metodológicos podem conduzir  a avaliações diferentes do mesmo fenômeno. Enquanto o diagnóstico das pesquisas do grupo três apontou para uma crescente subordinação do trabalho ao capital e  para uma crescente pauperização e deteriorização nas condições de vida de uma numerosa camada de trabalhadores urbanos, as linhas de pesquisa de mensuração

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da pobreza teriam apontado para um decréscimo de número de famílias pobres no mesmo período (ibidem, p. 21-23). Outra vertente importante de reexões sobre a pobreza na década de 1980, não incluída na classicação de Hasenbalg, desenvolveu-se no bojo de estudos sobre direitos humanos. Zaluar (1999) observou que, embora não tivessem abandonado completamente o modelo marxista dicotômico de sociedade que opunha classe oprimida ao Estado ou classe contra classe, diversos intelectuais se incorporaram a movimentos em defesa da cidadania na década de 1980, tendo como bandeira um “modelo de construção da nação na qual deveriam ser incluídos os pobres no campo e nas cidades” (Zaluar, 1999:14). 1 Chama a atenção a permanência da diluição da categoria “raça” em “classe” durante todo este período. Para além de opções de método, outros fatores foram determinantes para tanto. Hasenbalg (1996) observou que de 1965 a 1967 o tema racial passou a ser tratado pela ditadura militar como mais umas das tantas “questões de segurança nacional”, desestimulando a pesquisa sobre o assunto. Além disso, em 1969 os mais destacados representantes da escola paulista de relações sociais foram compulsoriamente aposentados. Para culminar, o censo de 1970 não incluiu a pergunta sobre “cor”. Apenas com o início do processo de redemocratização do país e com os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1976 e do Censo de 1980, os estudos sobre relações raciais teriam sido retomados. Segundo Hasenbalg, diferentemente dos trabalhos anteriores, que enfatizavam o legado escravista, os novos estudos teriam privilegiado as práticas racistas e discriminatórias do presente,  perpetuadoras da desigualdade.

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e regional (Ianni, 1987:356).

Passada a esperança de que a revolução burguesa fosse sucedida por uma revolução das classes dominadas, parece ter se aberto um espaço nas análises  para o retorno de um povo brasileiro com diferentes cores, culturas e identidades regionais. Tais elementos, percebidos como “uma rede complexa de contradições sociais” (idem ibidem), são considerados por Ianni os fundamentos de uma revolução popular. Movimentos sociais, motins, revoltas e outras manifestações com freqüência combinam as reivindicações de trabalhadores que são negros, mulatos, índios e caboclos. Nesse sentido é que a emancipação do operário e camponês passa  pela emancipação do índio e negro (idem ibidem).

Em Diversidades raciais e questão nacional (1984), Octávio Ianni armou que a revolução burguesa não resolvera o problema racial e criara novas contradições sociais, como as de classe. Ianni ressaltou que o camponês e o operário, além de serem parte de uma classe social, tinham cor e diferenciavam-se cultural e regionalmente.

 Não houve, no entanto, uma retomada da discussão sobre raça com a força que teve na virada do século XIX para o século XX. Pode-se dizer que as naturalizações referentes ao “negro escravo”, substituídas metodológica e politicamente  pela noção de “classe social”, chegariam ao nal do século 20 transmutadas na categoria “pobreza”. Para Telles (2001), que analisou os debates sobre a pobreza na virada dos anos 1980 para os 1990, a questão social passou a ser “problematizada por referência aos dilemas e impasses da construção democrática de um país recém-saído de longo período de governos militares” (2001:7). No contexto da elaboração de uma nova Constituição e de uma cidadania ampliada, debatia-se no país políticas  públicas ecazes no combate à pobreza, na direção de uma sociedade mais justa e igualitária (ibidem, p. 8). A Ação da Cidadania contra a Miséria e pela Vida (Campanha da Fome) é destacada por Telles como um contraponto às políticas neoliberais que começavam a se instalar no país, seja pela mobilização gigantesca que promoveu, seja por  insistir que o problema da miséria é um problema de ética, interpelando a opinião  pública no seu senso de responsabilidade pública e obrigação social (ibidem, p. 151). No debate posterior, envolvendo diversos setores da sociedade e do governo, a campanha discutiu questões relativas à produção e distribuição de alimentos, às relações entre saúde e nutrição, à tecnologia e desenvolvimento local, às soluções  para as políticas sociais existentes, às alternativas de parceria Estado-sociedade, o  papel da iniciativa privada e das organizações não-governamentais (idem ibidem).

Em muitos casos, o camponês é também negro, mulato, índio ou caboclo. Da mesma forma, o operário e outras categorias de trabalhadores. As várias classes sociais reúnem inclusive as reivindicações de cunho racial, cultural

 Naqueles anos, a questão da pobreza foi decididamente projetada no centro do debate político, e esse talvez tenha sido o maior feito da Campanha da Fome (...) a tentativa mais séria e articulada, não apenas de combate à fome

Os resultados das pesquisas mais recentes são de estarrecer os que ainda acreditam na neutralidade do critério racial em matéria de apropriação das oportunidades sociais. Eles demonstram que negros e mestiços (...) estão expostos a desvantagens cumulativas ao longo das fases do ciclo de vida individual, e que essas desvantagens são transmitidas de uma geração para outra (Hasenbalg, 1996:239).

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A pobrezA no pArAíso tropicAl em seus aspectos mais urgentes e emergenciais, mas de enfrentamento da  pobreza (ibidem, p. 151-152).

Em função da Campanha da Fome, foi criado em abril de 1993 o Conselho de Segurança Alimentar (Consea), envolvendo Estado e sociedade. O conselho tinha como objetivo elaborar uma proposta orgânica de combate à fome que (...) não se restringisse a políticas assistenciais e emergenciais, mas que enfrentasse questões relativas à produção e distribuição de alimentos, passando  pelo difícil problema do acesso à terra e também alternativas de geração de renda e desenvolvimento local (ibidem, p. 152).

O que estava em discussão, em suma, era uma profunda revisão do modelo de desenvolvimento em curso “substituindo-o por outro, que nasça desse amplo e intenso debate popular, e que permita o crescimento sustentável da economia, com eqüidade social” (Ruiz apud Telles, 2001:153). Herbert de Souza situou a campanha na “contramão teórica e política” (Souza, 1994), sobretudo por privilegiar o emergencial em detrimento do “mito da solução estrutural” (idem ibidem) e a ação em lugar das análises de conjuntura. Ao longo de décadas, discutimos o estrutural, denunciamos, zemos análise correta das causas e só. Agora queremos ação. (...) A Ação da Cidadania achou a saída da armadilha do estrutural e a sociedade está apontando o caminho (idem ibidem).

Os economistas e suas certezas foram igualmente questionados por Herbert de Souza, para quem “a economia deixou de ser o território das elites e está sendo disputada por todos. Os economistas estão s ob suspeita” (Souza, 1994b). O segredo  para acabar com a miséria, segundo ele, é bastante simples e de conhecimento de todos: “geração de emprego, retomada do desenvolvimento, controle dos oligo pólios, distribuição da terra e da renda, investimentos expressivos em educação e saúde pública” (idem ibidem). O país não podia mais esperar por propostas de reforma, tanto da esquerda quanto da direita, para acabar com sua pobreza.  Não adianta anunciar medidas espetaculares e depois dizer que isso só será  possível se previamente forem dadas as condições para sua realização.  Primeiro, reforma scal, reforma da Constituição, superação denitiva da inação. Depois, todos os outros problemas serão enm resolvidos. É como dizer: te darei o céu, se Deus es tiver de acordo. Milagre não vale. (...) Esse  país mudaria de fato e mais rápido se conseguíssemos colocar na rua os 32 milhões de indigentes ocupando as ruas, praças e a consciência da nação.

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Creio que o país está cheio da empáa dos que sabem como se faz a mudança mas vivem listando as condições lógicas de sua impossibilidade. O Brasil não  precisa de doutores, mas de transformadores. Os doutores produziram essa miséria que aí está, principalmente os da turma de economia, que, é verdade, nunca agiram por conta própria (idem ibidem, grifos meus).

A Campanha da Fome foi considerada por Luiz Eduardo Soares (1998) um marco na história política recente do país, fundamental para a compreensão da sociedade civil e da cultura política em seus aspectos contemporâneos (...) sem cuja compreensão é impossível agir politicamente com ecácia, na esfera pública da sociedade civil, ou interpretar com propriedade os desaos com que se deparam, nesse nal de século, os movimentos sociais, tanto os tradicionais quanto os de novo tipo (Soares, 1998:11).

Para Soares, os resultados materiais, embora tenham atingido certo grau de magnitude no auge da campanha, não foram o aspecto mais importante da mobilização, até por sua insignicância diante da permanência da situação de pobreza do  país. A grande contribuição da campanha teria sido o convívio inusitado de classes, credos, valores, projetos e interesses, o que foi chamado de “polissemia” por Leilah Landim (apud Soares, 1998:14). Esta característica do movimento teria sido fruto um amplo debate: “matar a fome, já? Ou lutar por transformações estruturais?” (Soares, 1998:15). Para Soares, este é um debate ético-político interminável, mas levanta a possibilidade de sua superação com a hipótese de que (...) se considere a possibilidade de que matar a fome já, enquanto símbolo entendido no contexto da campanha em causa, seja parte da luta por transformações estruturais e uma parte da maior importância (idem ibidem).

A grande conquista da campanha teria sido, então, a dinâmica social posta em circulação, na qual “fronteiras entre classes e tipos de práticas foram cruzadas e limites se redeniram” (ibidem, p. 16). Além disso, pela primeira vez “os mendigos, os desempregados, os pobres ganharam nomes e tiveram mapeadas suas condições e suas trajetórias” (ibidem, p. 15). Neste contexto, (...) as esquerdas deixaram seus guetos, os intelectuais saíram das torres de marm, e as práticas assistenciais tão presentes, tão import antes e tradicionais, em nossa sociedade, terão merecido um gesto de valorização política menos elitista e preconceituoso, sem demagogia ou populismo fáceis. O que antes era “assistencialismo” revelou-se prática espontânea de solidariedade. O que antes era comprometimento político revelou-se intervenção assistencial

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concreta, direta, imediata (ibidem, p. 16).

Para Telles, o grande mérito da Campanha da Fome foi ter colocado a questão da pobreza, pela primeira vez, na pauta do debate público nacional (Telles, 2001:154). Mesmo concordando com a análise de Telles, é preciso levar em consideração que a campanha não foi a primeira grande ação política contra a fome levada a efeito pela sociedade civil organizada em nosso país. Delimitando como recorte temporal o século XX, Gohn (2000) faz referên cias à existência, na década de 1910, de um Movimento contra a Carestia, articulado  por entidades de trabalhadores, especialmente pelo Movimento Anarcosindicalista. Em 1913, mais de dez mil pessoas participaram de um comício contra a caresti a, no Rio de Janeiro. O mesmo teria se dado em São Paulo, onde, em 1914, organizou-se um Comitê Proletário de Defesa Popular de Luta contra a Carestia. Ainda nesta cidade, em 1916, uma multidão teria reivindicado, em comício em praça pública,  providências do governo contra o alto custo de vida (Gohn, 2000:70). Em sua pesquisa, Gohn deparou-se com fotos de uma reunião de um Comitê de Combate à Fome, no Rio de Janeiro, publicadas em 1918 na revista  Fon-Fon. Descobriu também que, em 1919, uma greve irrompeu em São Paulo, reivindicando a baixa de gêneros de primeira necessidade e a criação de um conselho de alimentação controlado por associações populares (ibidem, p. 71). A questão da fome voltaria a mobilizar setores da sociedade brasileira na década de 1930. A Marcha da Fome, convocada pelo Partido Comunista do Brasil em 1931, em protesto contra a elevação do custo de vida gerada pela crise de 1930, foi duramente reprimida. Conforme Gohn, os folhetos convocatórios para a marcha chamavam os trabalhadores para assaltarem os armazéns de alimentos e saciarem sua fome (idem ibidem). Em 1946, com a redemocratização do país, foi lançada uma Campanha Popular  contra a Fome. A década de 1950 viu surgir o Movimento de Lu ta contra a Carestia que organizou, em 1953, em São Paulo, com o apoio de sindicatos, a Passeata da Panela Vazia, reunindo cerca de 500 mil pessoas. A mobilização prosseguiu nos anos 1960. O dia 7 de agosto de 1963 foi considerado o Dia Nacional de Protesto contra a Carestia (ibidem, p. 71-72). A ditadura militar silenciou os protestos até meados da década de 1970, quando Clubes de Mães da periferia de São Paulo, articulados por setores progressistas da Igreja Católica, criaram, em 1973, o Movimento do Custo de Vida. Em 1979, seu nome mudou para Movimento contra a Carestia e, segundo Gohn, teria sido apropriado por tendências político-partidárias que deixaram de lado a bandeira da fome [idem ibidem]. Para Gohn, a grande diferença entre estas campanhas e a Campanha da Fome foi o caráter suprapartidário e não-classista dessa, além de sua

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capacidade de rearticular a sociabilidade entre pessoas e grupos sociais, corroída  pela violência (ibidem, p. 110). Para Telles (2001), no entanto, esta rede de sociabilidade não se manteve  por muito tempo. Com o Plano Real, teria havido “um deslocamento da pobreza como questão e como conguração pública de problemas nacionais, de um lugar   politicamente construído – lugar da ação, da intervenção e da invenção, da crítica, da polêmica e do dissenso –  para o lugar da não-política, no qual é gurada como dado a ser administrado tecnicamente ou gerido pelas práticas da lantropia” (ibi dem, p. 155, grifos meus), no bojo do Programa Comunidade Solidária. Em suma, o debate sobre a pobreza teria sido praticamente desativado, num  processo que Celso Furtado chamou de “construção interrompida” (Furtado apud Telles, 2001:9). Conforme Telles, a expressão de Furtado remete a um longo processo histórico de construção de interpretações sobre o Brasil.  É como se a modernidade nalmente encontrada na lógica imperativa dos mercados globalizados esvaziasse o sentido crítico desse esforço de (re)interpretação do país esforço que (...) faz parte de uma longa (e não isenta de ambigüidades) linhagem do pensamento social brasileiro, e que teve também sua tradução nas polêmicas que atravessaram os anos 1980, revisitando sua história, instituições e tradições por referência ao que aparecia como mais um momento na sempre difícil e ambivalente “formação” do país (Telles, 2001:9, grifos meus).

Telles identicou neste momento histórico uma alteração substancial do lu gar da pobreza. De sinal de um atraso a ser superado pelas forças progressistas, a  pobreza teria se transformado na “cifra de nossa própria modernidade, que apenas acompanha as tendências consideradas inelutáveis no mundo inteiro em tempos de globalização e aceleração tecnológica” (ibidem, p. 10). Mais do que isso, teria retornado para seu lugar de “paisagem” externa ao mundo social (ibidem, p. 141).  No mesmo processo, a pobreza teria se tornado evidência de falta de qualicação  para competir num contexto de capitalismo globalizado (ibidem, p. 142). Toda esta discussão sobre “pobres” e “pobreza”, efervescente na década de 1990, foi muito mais um debate político do que intelectual. Tivemos intelectuais que aderiram à campanha como cidadãos e intelectuais que discordaram dela  politicamente. Mas as reexões teóricas das ciências sociais coetâneas ao debate  permaneceram referidas a grupos especícos: camponeses, índios ou operários, em suas inúmeras diferenciações internas. Apenas trabalhos recentes, como o de Bursztyn (2000), debruçam-se sobre os conceitos de pobrezae de exclusão para pensar o cotidiano de catadores de papel e moradores de rua das grandes cidades. Para Bursztyn, a pobreza e a exclusão são

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o inverso incômodo do “mundo do trabalho”. Se para este último foram criados instrumentos de proteção importantes a partir da década de 1930, (...) não foram estabelecidos mecanismos universais de proteção dos não-empregados, ou dos que participam dos circuitos econômicos marginais, ou mesmo dos que estão excluídos socialmente, como é o caso das populações de rua, dos sem-teto, dos catadores de lixo (Bursztyn 2000:42).

Para dar conta da análise destas populações, Bursztyn dene pobreza como “um nível médio de vida nos patamares inferiores da sociedade” e miséria como “condições de vida abaixo dos padrões mínimos de subsistência” (ibidem, p. 55). Voltado para o mesmo objeto de análise, Nascimento (2000) dene o conceito de desigualdade social como “a distribuição diferenciada, numa escala de mais a menos, das riquezas materiais e simbólicas produzidas por determinada sociedade e apropriada pelos seus participantes” (Nascimento, 2001:58); enquanto pobreza seria “a situação em que se encontram membros de uma determinada sociedade de despossuídos de recursos sucientes para viver dignamente, ou os que não têm as condições mínimas para suprir as suas necessidades básicas” (idem ibidem). Sobre exclusão, esta seria “um dos efeitos secundários do processo de ruptura dos laços de solidariedade orgânica, próprios à sociedade moderna” (ibidem, p. 59).  Nascimento situa seu trabalho como parte de uma literatura brasileira sobre o tema da pobreza, que teria sido marcada, até os anos 1970, por reexões sobre desigualdade social; na década de 1980, por estudos sobre pobreza (ibidem, p. 76), e, na passagem para a década de 1990, por estudos sobre exclusão social (idem ibidem). Embora não perceba tal linearidade construída pelo autor, identico em seu trabalho um exercício importante de reexão. Trata-se de sua análise sobre as representações da sociedade nacional brasileira sobre o indivíduo pobre. No pós-guerra, a pobreza teria sido percebida como um atributo do mundo rural e os pobres simbolizados na literatura por personagens como Jeca Tatu, consagrado no cinema  pelo ator Mazzaropi (idem ibidem). Nas décadas de 1960 e 1970, teria havido o  predomínio da visão do pobre como malandro que não gosta de trabalhar (idem ibidem). Finalmente, nos anos 1980-1990, o pobre teria passado a ser percebido  pela sociedade como uma ameaça. Agora o pobre é representado como um bandido em potencial. Suas imagens são, sobretudo, as dos moradores de rua e, entre estes, os pivetes, que cheiram cola e roubam os transeuntes nas praças e ruas das grandes cidades. Sua gura mais ilustrativa é a do bandido urbano, “indivíduo geralmente escuro e nordestino”. Pobre e bandido juntam-se, numa única imagem, para produzir 

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o novo excluído (ibidem, p. 80-81).

O grande argumento de Nascimento é que o processo de desenvolvimento do  país produziu um novo tipo de exclusão social, formado por grupos sociais considerados desnecessários economicamente, incômodos politicamente e perigosos socialmente (ibidem, p. 81).  Não concordo, no entanto, com a utilização da categoria “exclusão” ou “excluídos” para tratar da realidade social brasileira, da mesma forma que não acredito na possibilidade de reetir sobre a mesma com os conceitos de “pobres” ou “pobreza”, embora estes últimos possam aparecer em determinadas situações como categorias nativas importantes. Acredito que as realidades observadas são de uma riqueza de situações sociais, identidades, diferenciações e hierarquias que não cabem nos conceitos sugeridos. Retomo aqui a crítica que Palmeira (1977) fez aos estudos de migração como um paradigma para criticar qualquer construção analítica que não leve em consideração o que os atores sociais pensam sobre suas trajetórias de vida e as representações que produzem sobre a mesma. O discurso sobre exclusão é, eminentemente, um discurso político. Desde 1995, acontece no Brasil uma mobilização anual intitulada Grito dos Excluídos,  promovida pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). A partir de 1999, esta manifestação se estendeu a outros países latino-americanos, que deniram o dia 12 de outubro como Grito Latinoamericano de los Excluídos y Excluídas por  Trabajo, Justicia y Vida. 2 Nos documentos e análises destas mobilizações a década de 1990 é considerada a “década da exclusão social”, na América Latina e no Caribe, quando milhões de indivíduos teriam sido excluídos do emprego, da terra, da moradia, da educação, da comunicação, da saúde e da justiça (Tamayo, 2000:21). Tal exclusão seria resultante da mundialização da economia e da aplicação incondicional das receitas do Consenso de Washington: liberalização, privatização e desregulamentação. A exclusão social se reetiria sobretudo nos números da  pobreza, onde “al comenzar el año 2000, 224 millones de latinoamericanos/as y caribeños/as se encuentran atrapados en la pesadilla de la pobreza, según reconoce la (...) CEPAL. El número de personas viviendo con un dólar al día se elevo de 63,7 millones en 1987 a 78,2 millones en 1998” (idem ibidem). O teólogo Hugo Assmann – reetindo sobre o que ele denominou de “fator  maior” da reexão teólogica – avaliou que as mudanças da Teologia da Liberta ção, na década de 1990, foram fruto de uma “estarrecedora lógica da exclusão no mundo” (Assmann, 1994:5). Essa realidade teria levado a que as reexões – e a  própria ação pastoral libertadora – deixasse de usar categorias como “pobres” e “oprimidos” para enfatizar a “exclusão”. Inicialmente, lembra Assmann, algumas interpretações aludiam “a um dado objetivo: a opressão das maiorias, as maiorias

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oprimidas, as massas empobrecidas etc. Expressões como essas vinham, muitas vezes, ligadas à âncora analítica das assim chamadas causas estruturais” (ibidem, p. 15). Mais recentemente, os teólogos ligados ao movimento teriam concordado que o fator maior no mundo atual é “a adoção consentida e celebrada como ‘moderni zação’, de uma férrea lógica da exclusão, que produz e perpetua uma assustadora ‘massa sobrante’ de seres humanos, tidos como economicamente inaproveitáveis e, portanto, objetivamente descartáveis” (ibidem, p. 20). Embora este talvez não seja o lugar apropriado, considero que mesmo politicamente o conceito de “exclusão” é problemático, principalmente por sua referência a uma realidade “global”. Se a categoria “excluídos” pode ter ecácia para denunciar  as políticas neoliberais, em termos das lutas localizadas a atribuição “excluídos” me parece inoperante. Voltando à análise da produção intelectual das ciências sociais brasileiras, na década de 1990, é claro o predomínio de trabalhos teóricos embasados em dados qualitativos. Os estudos quantitativos parecem ter se tornado prerrogativa dos economistas e técnicos do governo, sobretudo daqueles ligados ao Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), particularmente após a elaboração do chamado Mapa da Fome, que identicou o número de pobres no país e os situou regionalmente (Ipea, 1993). Sobre o predomínio recente de economistas nas tentativas de interpretar o  país, Sorj (1995) armou que (...) os esforços dos anos setenta, ainda que tímidos, em articular teoricamente a economia, o social e a política, foram substituídos por economistas (muitos deles part-time police-markers), que culpam a política pela falha dos planos econômicos, e por cientistas políticos que brincam com “cenários” onde a economia é o dado central para explicar o futuro do sistema político (Sorj, 1995:329).

Abro aqui um parêntese para a polêmica sobre o predomínio das abordagens qualitativas nas ciências sociais e o predomínio de abordagens quantitativas na economia. Sem levar em consideração os pressupostos epistemológicos da antropologia, Silva [1999] armou que existe nas ciências sociais brasileiras uma “histórica rejeição por análises quantitativas nas ciências sociais, identicando (de novo, erroneamente) com a ‘sociologia americana’” (1999:73). Na mesma linha está Larangeira (1999), para quem o afastamento dos cientistas sociais brasileiros em relação à metodologia quantitativa decorreu, em grande parte, (...) da identicação estabelecida entre métodos quantitativos e funcionalismo que, segundo alguns, caracterizariam a sociologia norte-americana,

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também dedicada aos estudos sobre desenvolvimento e, como tal, rejeitada,  por constituir-se em real expressão do imperialismo (Larangeira, 1999:102).

 No entanto, armou Larangeira, na década de 1980 este afastamento teria se dado por uma opção metodológica distinta, fundamentada em perspectivas epistemológicas (...) que expressam um desencanto em relação às possibilidades cientícas das ciências sociais, aproximando-se, portanto, de um certo irracionalismo. Há, pois, na pretensa incompetência metodológica dos sociólogos brasileiros uma opção metodológica que desdenha das possibilidades de conhecimento da realidade (ibidem, p. 103).

Larangeira identicou neste momento a inuência dos “novos lósofos” fran ceses, antimarxistas, e de sua “crise de paradigmas”. P ara eles, a ciência é percebida como instrumento da opressão de uma razão totalitária, não cabendo ao intelectual  produzir conhecimento, mas sim desmascará-lo. Tais perspectivas teriam sido reforçadas pelas teses pós-modernas que enfatizam a pluralidade, a diferenciação e a fragmentação do social e criticam a “ilusão” do estudo da realidade social. Tal postura tende a desdenhar de esforços objetivistas, sob o argumento de que os fenômenos sociais são socialmente construídos, expressando,  portanto, realidades que se explicam muito mais por fatores simbólicos do que por fenômenos estatísticos. (...) tende-se a romper com explicações de caráter estrutural do tipo “desenvolvimento econômico, mudanças sociais e mobilidades sociais” (...) para assumir uma abordagem de caráter político que privilegie a perspectiva da “politização do social” – o social percebido como o campo de resistência e de lutas contra o poder que se espraia extensivamente (ibidem, p. 104).

Concorde-se ou não com a posição de Larangeira, o certo é que a pobreza, depois de um tortuoso, conituoso e debatido caminho para chegar ao centro das  preocupações nacionais, transformou-se, no nal da década de 1990, em temática de economistas, anados com a nova e poderosa pauta dos organismos interna cionais de desenvolvimento.  Nem Silva nem Larangeira, no entanto, talvez por estarem pensando apenas em termos sociológicos, zeram referência ao signicado dos dados para a antropologia. Peirano (1992) chama a atenção para este diferencial importante da antropologia em relação à sociologia: seu caráter qualitativo. Some-se a isso o valor que dá às representações e ao desenvolvimento dos estudos de etnicidade em nosso país e

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ca claro porque a antropologia nunca teve como objeto “os pobres”. Para além das críticas aos trabalhos de Oscar Lewis, os antropólogos brasileiros tradicionalmente trabalharam com comunidades indígenas e camponesas, cuja riqueza cultural e identitária não são assimiláveis à categoria “pobreza”. Mesmo os estudos de antropologia urbana, que poderiam correr o risco de tratar as populações que vivem em favelas como “pobres”, não o zeram, buscando em seus estudos destacar as variáveis que ao mesmo tempo as diferenciavam internamente e as aproximavam da sociedade como um todo. Uma exceção é o trabalho de Matta (1995), que se dispõe a analisar “a pobreza” como parte estruturante da sociedade brasileira, realizando uma etnograa sobre o cotidiano de populações faveladas, destacando as relações sociais e políticas das mesmas com seus mediadores externos. 3 Matta criticou, em seu trabalho, os estudos sobre pobreza urbana que se preocupam apenas com instituições formais, com questões de mudança e desenvolvimento, com as condições de vida do po bre ou com sua descrição como um segmento excluído do mercado capitalista. Matta preferiu analisar os pobres como parte da tradição histórica e do sistema cultural brasileiro, ou seja, como indivíduos que trazem para as relações modernas e urbanas seus valores relacionais de lealdade e hierarquia (ibidem, p. 25). “Ricos” e “pobres” são, para o autor, categorias que não poderiam jamais ser  traduzidas como grupos sociais mutuamente exclusivos. Em função disso, criticou as concepções modernas de “linhas de pobreza” e apontou para a reciprocidade como princípio básico na construção do universo social do pobre urbano no Brasil (ibidem). Com base nas entrevistas realizadas, Matta armou que ricos e pobres são profundamente relacionados, formando uma hierarquia dual, baseada na obrigação recíproca e num laço moral permanente (ibidem, p. 31]. O Brasil teria herdado do mundo ibérico uma idéia de pobreza que pouco mudou em relação ao  período medieval. No Brasil, arma, o pobre e a pobreza continuaram parte de uma hierarquia fundada na tradição católica, que os percebem como um fato imutável. Pode-se armar que o estudo inédito de Matta sobre a pobreza é sobretudo uma etnograa que busca examinar o ethos nacional, tendo como preocupação fundamental não “os pobres” ou “a pobreza”, e sim como as representações sobre tais categorias podem nos ajudar a compreender “o que faz o Brasil, Brasil?”. Outro trabalho recente sobre o tema é o de Elisa Reis (2000), que buscou abrir um nicho para as ciências sociais nos estudos sobre pobreza e desigualdade, atualmente sob o predomínio de economistas. Para Reis, os cientistas sociais, embora trabalhem com “grupos desprivilegiados”, não produziram estudos sistemáticos sobre pobreza, não analisaram a formulação e implementação de políticas e não identicaram como grupos e setores particulares vivenciam e interpretam a pobreza e a desigualdade (Elisa, 2000:143). Os estudos comumente produzidos sobre a pobreza, armou, pecam por não realizar um acúmulo de conhecimento,

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seja por problemas teóricos, seja pela identicação afetiva dos pesquisadores com o grupo estudado. Seja por limitações inerentes aos estudos de caso, seja pela desconsideração, deliberada ou não, da teoria, não se constata grande acúmulo de conhecimento sobre aspectos cruciais da problemática em questão. Curiosamente, a  própria disposição de interferir na realidade torna muitas vezes a análise mais restritiva e menos eciente. Isso é, a identicação afetiva com a questão se confunde com a relevância do conhecimento gerado (ibidem, p. 143-144).

Reis critica a inexistência de trabalhos sobre como os não-pobres, mais especicamente as elites, percebem a pobreza e a desigualdade, diante de sua potencial inuência na formulação e implementação de políticas sociais. Apresentando, na seqüência, os dados que obteve em pesquisa sobre as elites brasil eiras, concluiu que estas consideram a pobreza e o baixo nível educacional da população os principais obstáculos à democracia no Brasil.  Nos diferentes setores da elite um peso muito grande é atribuído aos investimentos em educação, que aparecem como a grande panacéia. A educação é vista como um recurso a ser explorado pelo poder público tendo em vista dotar os setores mais pobres da população de condições para competir por  um lugar melhor na estrutura social sem envolver uma ativa redistribuição de renda e riqueza (ibidem, p. 146-147).

Questionadas sobre o porque do fracasso das políticas sociais, as elites apontaram para a inexistência de vontade política e fracasso do Estado no cumprimento de seu papel. Para Reis, esta resposta deixa claro que as elites brasileiras não se sentem responsáveis pelo problema da pobreza e da desigualdade, transferindo a responsabilidade para o Estado. Chamou a atenção da autora que mesmo as elites  políticas tenham esta opinião. Mesmo a elite política – no caso, os parlamentares no Congresso – e a elite burocrática – aquela que ocupa as posições superiores da burocracia  política – não se vêem como Estado. Neste sentido, elas parecem ter uma atitude clientelística diante do Estado: este deveria buscar soluções para os  problemas sociais que, no limite, trazem externalidades negativas para os não-pobres (ibidem, p. 148).

Outra observação importante que resulta da análise de Reis é que, embora não acreditem na capacidade do Estado em acabar com a pobreza, as elites consideram que cabe apenas a ele executar tal tarefa. Ao mesmo tempo, consideram

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 positivamente a liberação do comércio, a privatização das empresas estatais e o encolhimento do Estado (ibidem, p. 149). Para Reis, o estudo das representações das eli tes sobre pobreza e desigualdade é fundamental para que possamos utilizar os argumentos corretos na busca de seu apoio para implementação de políticas públicas. (...) É ainda com o recurso à persuasão e/ou à coerção que é preciso contar   para alterar resultados de mercado que nos pareçam inaceitáveis por razões éticas ou pragmáticas. (...) Se identicarmos as motivações das elites será mais fácil assegurar sua adesão. Se pudermos identicar que argumentos sensibilizam os interesses desses atores, teremos expandido nosso conhecimento de forma a precisar melhor que tipo de incentivos seletivos podem ser administrados para fomentar a cooperação ou pelo menos a aquiescência das elites (ibidem, p. 151).

Como coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Estudos sobre Desigualdade (Nied), Reis reuniu um grupo de pesquisadores que trabalham com a noção de desigualdadeque vai além de critérios exclusivamente materiais, incluindo formas mais amplas de privação e de desvantagem. Sobretudo, há uma concordância no grupo de que “a desigualdade, e não a pobreza, é o aspecto distintivo da sociedade  brasileira” (Reis, 2000b:74). Para referendar esta denição, Reis (2000b) remete-se a Marx (a desigualdade entre classes como chave para entender o processo histórico evolutivo), Tocqueville (preocupação com a relação entre igualdade social e despotismo político), Durkheim (a desigualdade moderna como resultante da especialização e a especialização como chave da complementaridade, destinada a cimentar a solidariedade social) e Weber (estraticação social). Participam do Nied alguns economistas do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que têm produzido a formulação teórica para o governo federal em relação ao tratamento da questão da pobreza, assim como os instrumentos  para mensurá-la, a partir do cálculo da “linha de pobreza” e da “linha de indigência”. Partindo da hipótese de que “o Brasil não é um país pobre, mas um país com muitos pobres” (Barros et alii, 2000:123), estes pesquisadores armam que os elevados níveis de pobreza do Brasil encontram seu principal determinante na estrutura da desigualdade, “uma perversa desigualdade na distribuição da renda e das oportunidades de inclusão econômica e social” (idem ibidem). Faz parte de sua argumentação a tentativa de demonstrar que é viável economicamente combater a  pobreza no Brasil, estabelecendo estratégias que, sem descartar a via do crescimento econômico, enfatizam o papel das políticas redistributivas no enfrentamento do  problema (idem ibidem).

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Barros mediu o tamanho da pobreza no Brasil 4 com base em dados de 1977 e 1998, obtidos no IBGE, tendo como instrumento de análise as linhas de indigência e de pobreza, assim denidas: A linha de indigência, endogenamente construída, refere-se somente à estrutura de custos de uma cesta alimentar, regionalmente denida, que contemple as necessidades de consumo calórico mínimo de um indivíduo. A linha de pobreza é calculada como múltiplo da linha de indigência, considerando os gastos com alimentação como uma parte dos gastos mínimos referentes, entre outros, a vestuário, habitação e transportes (ibidem, p. 141).

 No enfrentamento do problema, Barros e colegas defendem “políticas geradoras de eqüidade”, que seriam mais ecazes do que a via tradicional do crescimento econômico. Tais políticas são apresentadas como um imperativo “de um projeto de sociedade que deve enfrentar o desao de combinar democracia com eciência econômica e justiça social” (ibidem, p. 141). O trabalho de Barros parece pressupor ser imprescindível a quanticação para que possa haver a política pública. Daí o grande número de grácos e tabelas e a utilização de indicadores universais. Lembro aqui de Poovey (1998), para quem a noção de que a interpretação dos especialistas era superior aos seus interesses  pessoais ajudou a forjar uma relação entre números e imparcialidade que fez do fato moderno um instrumento fundamental para o  policy-making (Poovey, 1998:120).  No trabalho de Barros, como naqueles da maioria dos economistas, há uma consagração do dado numérico que vai além de sua instrumentalidade. Sua utilização  parece consagrar a ilusão de que os números são epistemologicamente diferentes da linguagem gurativa e que são livres de valoração. Um dos argumentos de Poovey, com o qual concordo, é de que mesmo comportamentos que parecem ser meramente econômicos dependem de mecanismos que pressupõem crenças (ibidem, p. 27). A partir das reexões de Poovey, é de se perguntar até que ponto existe a  possibilidade de as ciências sociais, sobretudo a antropologia, dialogarem com este tipo de produção intelectual, baseado em dados estatísticos. Tampouco acredito que o inverso seja verdadeiro. A crença de grande parte dos economistas de que as representações numéricas reetem uma “realidade” inconteste não parece ter  lugar para as “descrições” dos cientistas sociais.  Não pensam como eu nem Reis (2000b) 5 nem Larangeira (1999). Esta última critica as “análises simbólicas e subjetivas, muitas vezes, puramente descritivas” (Larangeira, 1999:106) da sociologia num mundo cada vez mais globalizado, deixando à economia “uma tarefa que a mesma não pode cumprir, já que se trata da necessidade de abordar, na esfera econômica, fenômenos que são essencialmente sociológicos, como, por exemplo, os da estraticação e da mobilidade social”

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(ibidem, p. 106-197). O debate está posto e vem ocupando espaço nos fóruns de discussão das ciências sociais no Brasil. 6 Parece-me, no entanto, que uma vez que as reexões de economistas estão sendo incorporadas ao campo acadêmico das ciências sociais, isto nos coloca, obrigatoriamente, na interlocução com o discurso dos grandes organismos internacionais. Ainda não temos resultados intelectuais consistentes destas novas aproximações. Mas com certeza virão, o que torna imprescindível que conheçamos o discurso destes grandes organismos sobre a pobreza.

3.2. Representações sobre a pobreza nos organismos internacionais: defnições, medições e prescrições Existe um discurso e uma prática em relação à “pobreza” que é próprio dos grandes organismos internacionais, mais especicamente do Banco Mundial (Banco Internacional de Reconstrução e Desenvolvimento/BIRD), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Trata-se de um discurso que considera a “a pobreza” e “os pobres” de forma quase naturalizada, como um dado da realidade, antigo no tempo e generalizado geogracamente. Em sua fase mais recente e progressista, como veremos adiante, tal discurso defende o empowerment dos pobres e arma que suas vozes precisam ser ouvidas. Concordo com Silva (2000), para quem há neste discurso um substrato preocupante, a aceitação tácita de que a pobreza é um evento “normal” na sociedade competitiva, desde que mantida sob controle, por mot ivos de segurança temperados com sentimento humanitário. A tendência à cristalização de tal lógica é clara no mundo atual, quando a aceleração e a amplitude da circulação de informações serviram, inclusive,  para permitir a visualização da pobreza como fenômeno planetário escandaloso e gerador de dois mundos. O dos incluídos nas benesses da globalização e o dos excluídos, que compõem permanentemente a categoria de “problema social”, ou seja, uma espécie de subumanidade. Quando se discute a pobreza, deve-se, portanto, apontar para essa racionalidade terrível e inaceitável, que revela um fosso assustador entre ética e economia. É como se as razões econômicas devessem orientar os nossos valores e sentido de humanidade e não o contrário (Silva, 2000).

Vimos no capítulo anterior a importância de Josué de Castro na formulação da fome como um problema mundial e sua incorporação, não sem resistências,  pela Food and Agriculture Organization of the United Nations (FAO). A pobreza

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como problema tardou bem mais a ser incorporada às agendas internacionais, uma vez que predominou, desde a criação dos referidos organismos, a temática do desenvolvimento, dividindo o mundo entre países desenvolvidos e países “em desenvolvimento”. Teoricamente, estes últimos, empobrecidos, deveriam superar  seus problemas econômicos e sociais seguindo as regras do modelo capitalista de desenvolvimento. Trata-se de discurso hegemônico que só seria ameaçado com a falência do modelo socialista na União Soviética. Conforme Roque (1998), os anos 1990 signicaram a consolidação da te mática social na agenda internacional. No contexto de m da Guerra Fria e de questionamentos cada vez maiores ao modelo de desenvolvimento centrado no crescimento econômico, a Organização das Nações Unidas organizou uma série de conferências com o objetivo de discutir alternativas para o m da pobreza, das desigualdades sociais e da degradação ambiental: Cúpula da Criança (Nova York, 1990), Meio Ambiente e Desenvolvimento (Rio de Janeiro, 1992), II Conferência de Direitos Humanos (Viena, 1993), População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), Desenvolvimento Social (Copenhagen, 1995), Mulher, Desenvolvimento e Paz (Pequim, 1995), Assentamentos Humanos – Habitat II (Istambul, 1996) e Segurança Alimentar (Roma, 1997). Destas conferências, a mais diretamente ligada à questão da pobreza foi a Cúpula do Desenvolvimento Social, onde 185 países assumiram o compromisso de reduzir pela metade a pobreza mundial, até 2015, e adotar planos e objetivos concretos para esse m. Entre as medidas acordadas, os governos assumiram os compromissos de assegurar educação, saúde, água potável e saneamento para todas as pessoas que estavam em situação de pobreza; promover o acesso dos pobres a crédito, terra, educação, qualicação, tecnologia e serviços públicos; orientar  o orçamento para objetivos sociais e analisar os impactos das políticas de ajuste estrutural sobre os objetivos sociais, buscando evitar que os “custos do ajuste” sejam pagos pelos mais pobres (Moreira, 1999:45). O marco nas representações ociais e internacionais sobre o tema foi o ano de 1990, quando a 13ª edição do World Development Report , do Banco Mundial, destacou a questão da pobreza e foi divulgado o primeiro  Human Development   Report do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). O Banco Mundial tem produzido seus relatórios sobre desenvolvimento mundial desde 1978. Em avaliação recente sobre suas estratégias de redução da pobreza, o BIRD armou que, nos anos 1950 e 1960, os grandes investimentos em capital físico e infra-estrutura eram considerados a principal via para o desenvolvimento.  Nos anos 1970, teria aumentado a certeza de que o capital físico não era suciente e que a saúde e a educação tinham a mesma importância (Banco Mundial, 2000:6).  Nos anos 1980, após a crise da dívida e a recessão global, a ênfase do BIRD  passou a ser atribuída “à melhoria da gestão econômica e liberação das forças do

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mercado” (idem ibidem). Nos anos 1990, a preocupação do banco foi o governo e as instituições, ao lado das questões de vulnerabilidade nos âmbitos local e nacional (idem ibidem).  No Relatório sobre o desenvolvimento mundial de 2000, o BIRD propôs uma estratégia para atacar a pobreza em três frentes: promover oportunidades, facilitar  a autonomia e aumentar a segurança das pessoas pobres, que traduziram como empowerment (idem ibidem). Tal estratégia reconheceu que “a pobreza é mais que renda ou desenvolvimento humano inadequado; é também vulnerabilidade e falta de voz, poder e representação” (ibidem, p. 12). O BIRD defendeu também que as instituições internacionais deveriam promover os interesses dos pobres, uma vez que estes “são os principais agentes da luta contra a pobreza. Assim, devem ocupar um lugar central na elaboração, im plantação e monitoramento das estratégias de redução da pobreza” (idem ibidem) . Coerentemente, o BIRD promoveu o projeto Voices of the Poor, que examinou os estudos sobre pobreza realizados recentemente em 50 países com a participação de 40.000 “pobres” e produziu um novo estudo comparativo, realizado em 1999, com cerca de 20.000 “pobres” em 23 países. 7 Quando da publicação do primeiro  Human Development Report do Programa das Nações Unidas para o desenvolvimento, seu grande diferencial foi a utilização de um novo indicador de pobreza. 8 Diferentemente do Banco Mundial, que prioriza a renda, o Pnud utiliza o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH), que tem três componentes: longevidade (esperança de vida ao nascer), nível educacional (taxa de alfabetização de adultos e taxa combinada de matrícula nos ensinos fundamental, médio e superior) e um indicador de renda, determinado a partir da renda  per capita.  Não importa tanto a q ualidade do capit al acumulado, mas de qu e maneira os recursos gerados pela economia são utilizados para melhorar a qualidade de vida da nação. (...) Em outras palavras, trat a-se de colocar o ser humano no centro do processo de desenvolvimento, criando uma distribuição mais eqüitativa dos benefícios do crescimento econômico (Pnud/Ipea, 1996:iii).

De 1990 até hoje, foram publicados mais de uma dezena de  Relatórios sobre o desenvolvimento humano pelo Pnud. Neste período, sua temática foi acompanhando as preocupações do “ciclo social” da ONU. Em sua primeira edição, de 1990, intitulada “Concept and measurament of human development”, o relatório discutiu como a questão do crescimento econômico se traduz, ou deixa de traduzir, dentro do desenvolvimento humano. Ao propor como indicador o Índice de Desenvolvimento Humano, o Pnud defendeu que níveis de desenvolvimento humano eram  possíveis mesmo em países com modestos níveis de renda. Rompendo com noções cristalizadas nas políticas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial,

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o relatório armou que a relação entre crescimento econômico e progresso humano não era automática e que subsídios sociais eram absolutamente necessários para grupos de renda pobres. In the 1990 the rich nations must start transfering resources to the poor nations once again. For this happen, there must be satisfactory solution to the lingering debt crisis – with debts written down drastically, and a debt renancing facility created, within the existing structures of the IMF and the World Bank, to foster an orderly resolution of the debt problem (Pnud, 1990:5).

O Human Development Report de 1991 teve como subtítulo “Financing human development” e concluiu que a ausência de compromisso político, e não de recursos nanceiros, era responsável pela situação de pobreza no mundo (Pnud, 1991). O relatório de 1992, “Global dimensions of human development”, informou que os 20% mais ricos da população mundial recebiam 150 vezes a renda dos 20% mais pobres. Esse relatório sugeriu então duas estratégias: investimentos massivos na população, reforçando a capacidade tecnológica do país para que se torne competitivo; e reformas internacionais básicas, incluindo a reestruturação das instituições de Bretton Woods, criação de um Development Security Conceil na Organização das Nações Unidas e a realização do World Summit on Social Development (Pnud, 1992). O relatório de 1993, “People’s participation” identicou “cinco pilares” para um mundo centralizado nas pessoas: novo conceito de segurança humana, novas estratégias para desenvolvimento humano sustentável, novas parcerias entre Estado e mercado, novos padrões de governo nacional e global e novas formas de cooperação internacional (Pnud, 1993). O tema desse relatório, em 1994, foi “New dimensions of human security”, onde o Pnud defendeu um novo conceito de segurança humana. Esse deveria priorizar a segurança das pessoas, antes dos territórios (Pnud, 1994). O relatório de 1995, “Gender and human development”, armou que sem desenvolvimento humano da mulher não haveria desenvolvimento humano algum. Foram criados dois novos indicadores de contabilização: “gender related development” (GRD) e “gender empowerment measure” (GEM) 9 (Pnud, 1995). Em 1996, tendo como tema “Economic growth and human development”, o relatório do Pnud armou que o crescimento econômico não administrado corretamente poderia levar à “jobless”, “voiceless”, “ruthless”, “rootless” and “futureless” 10 das populações, prejudicando o desenvolvimento humano. Entre suas conclusões, está que os laços entre crescimento econômico e desenvolvimento humano deveriam ser deliberadamente forjados e regularmente reforçados por políticas instrumentais. O relatório defendeu sobretudo novos padrões de crescimento no século XXI e o desenvolvimento de novos mecanismos para integrar “o fraco

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e o vulnerável” na economia global em expansão (Pnud, 1996). Diante de uma realidade na qual a quarta parte da população mundial vivia na  pobreza, o relatório de 1997, “Human development to erradicate poverty”, vaticinou o fracasso indesculpável das políticas econômicas. Introduziu também um novo indicador, o Índice de Pobreza Humana (IPH), que usa indicadores das dimensões consideradas mais básicas da privação: uma vida breve, falta de ensino básico e falta de acesso a recursos públicos e privados. Foram apresentadas seis prioridades para a erradicação da pobreza: dar poder  (empowerment ) para mulheres e homens assegurar sua participação nas decisões que afetam suas vida; igualdade de gênero; crescimento em benefício dos pobres; um maior cuidado no processo de globalização, com mais preocupação com a eqüidade;  participação do Estado; apoio internacional para reduzir a dívida dos países mais  pobres, aumento na ajuda e abertura dos mercados agrícola para suas exportações. O Relatório concluiu que a erradicação da pobreza absoluta nos primeiros decênios do século XXI é factível economicamente e um imperativo moral (Pnud, 1997). Os relatórios seguintes tiveram como tema o consumo (“Consumption for  human development”, 1998), globalização (“Globalization with a human face”, 1999), direitos humanos (“Human development and human rights”, 2000), novas tecnologias (“Making new technology work for human development”, 2001), democracia (“Deeping democracy in a fragmented world”, 2002) e pobreza (“Millennium development goals: a compact among nations to end human poverty”, 2003). Em junho de 2000, aconteceu em Genebra o evento Copenhague+5, que avaliou os compromissos rmados na Conferência da ONU sobre desenvolvimento social. Apesar da publicação dos  Relatórios sobre o Desenvolvimento Humano e da concepção de novos indicadores pelo Pnud, constatou-se “que existe uma enorme distância entre os compromissos contidos na Declaração de Copenhague e a realidade. (...) Presenciamos o aumento da concentração de renda e do número de pessoas pobres no mundo” (Mendonça, 2000). Tanto os Relatórios sobre o desenvolvimento mundial e os Relatórios sobre o desenvolvimento humano estão referidos à lógica de naturalização da “pobreza” e dos “pobres”, que identica sob estas categorias milhões de pessoas, nos mais diferentes pontos do planeta. Para além desta variante de método, é impossível realizar uma análise destes documentos sem levar em consideração as políticas econômicas que o Banco Mundial (junto com o Fundo Monetário Internacional) tem buscado implementar globalmente. Embora já existissem sinais claros de que tais políticas estavam levando a um aumento da pobreza, somente no início do ano 2000, com o crescente reconhecimento ocial do problema, o presidente do Banco Mundial, James Wolfensohn, assumiu  publicamente que dezenas de milhões de pessoas não estavam em situação melhor  que uma geração anterior e que a globalização econômica as tornaram ainda mais

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marginalizadas (Observatório da Cidadania, 2000:94). Em outro evento, em setembro de 2000, na 55 a Assembléia do FMI e do Banco Mundial, em Praga, cercada de protestos populares, James Wolfensohn armou que “uma das coisas que podem desestabilizar os países desenvolvidos é a inquietação social no mundo, e acredito que os números são tão contundentes que esse é um risco real” ( Folha de São Paulo, 22/9/2000). Diante de dados que armam que 20% do mundo controla 80% das riquezas; que dos seis bilhões de habitantes da Terra, 2,8 bilhões sobrevivem com US$2 por dia; e que nos próximos 25 anos, a  população planetária passará de seis bilhões para oito bilhões, um acréscimo que, quase todo, se dará nos países mais pobres, o presidente do BIRD declarou que “essas iniqüidades não podem existir, sob pena de forçar a sociedade a pensar em termos de ‘fratura social’” (idem ibidem). Um ano antes, fora a vez de Michel Camdessus, diretor-gerente do Fundo Monetário Internacional, declarar na Assembléia de Governadores do Fundo (grupo que reúne ministros de Economia e presidentes dos bancos centrais dos 182 países-membros do FMI) que a pobreza era uma “ameaça sistêmica” e propor  uma ofensiva para “erradicar a pobreza e humanizar a globalização”. Na ocasião, foi anunciada a criação de um estudo conjunto com o Banco Mundial para ligar  as metas nanceiras de seus programas de estabilização às condições sociais dos  países onde eles são implementados ( Folha de São Paulo, 29/9/1999). Esse discurso marcou uma tentativa do FMI de responder às acusações de que suas políticas aumentam a pobreza e desprezam a qualidade de vida nos países para os quais empresta dinheiro e dos quais exige ajustes scais severos. 11 Discursos à  parte, Camdessus manteve a estratégia do FMI de defesa do livre trânsito de capitais, considerada por ele uma peça básica para o desenvolvimento econômico global no longo prazo. De qualquer forma, seu discurso foi considerado inédito, uma vez que o FMI nunca abordara questões sociais, argumentando que seu propósito básico seria estabilizar as contas externas dos países. 12 O divisor de águas nas representações do BIRD/FMI e do Pnud sobre a po breza está na própria característica intrínseca das instituições. Os dois primeiros emprestam dinheiro, e têm suas exigências para fazê-lo. No caso brasileiro, os empréstimos recentes receberam como garantia do governo a realização de um ajuste scal, que signicou cortes consideráveis nos programas sociais. Em docu mentos até pouco tempo de circulação restrita, Estratégia de Assistência ao País (CAS), as exigências do banco são mais detalhadas, e delas fazem parte desde a exibilização do mercado de trabalho até argumentos que buscam comprovar que melhores salários mínimos e a maior parte dos programas sociais não beneciam os mais pobres. Um exemplo está no seguinte trecho do CAS/Brasil 2000-2001: Depois da recente crise, governo fez avanços muito importantes no ajuste s-

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A pobrezA no pArAíso tropicAl cal num curto espaço de tempo. Esse ajuste scal tem sido empreendido com imenso esforço e notável disciplina e conseguiu alcançar as ambiciosas metas que haviam sido estabelecidas. O governo continua fortemente empenhado na disciplina scal e nas metas scais. O restante da agenda da reforma scal com vistas a melhorar a qualidade e a capacidade de sustentação do ajuste inclui, principalmente, reforma da previdência social em todos os níveis do governo, bem como reforma tributária, reforma das despesas e ajustes scais e reforma administrativa no nível estadual (Banco Mundial, 2001).

Além de inuenciar nas políticas econômicas e sociais do Brasil, os organis mos internacionais que estamos analisando têm um discurso especíco sobre a “pobreza brasileira”. Isto não signica que seja um estudo original e diferenciado. Um pesquisador do Banco Mundial ou do Pnud vem ao Brasil e treina equipes nacionais para que obtenham dados e os analisem a partir de uma grade metodológica predenida e universal. Em 1995, o Banco Mundial divulgou o documento “Avaliação da pobreza no Brasil”, onde calculava que 24 milhões de brasileiros viviam abaixo da linha da pobreza em 1990. O trabalho ressaltou a necessidade de denição de uma linha de pobreza no país, o que permitiria o seu monitoramento. Ou seja, o estabelecimento de critérios para identicar quem são e onde estão os  pobres e como os níveis de pobreza se modicam no tempo. Esse relatório identicou uma pobreza maior nas áreas rurais do Nordeste e nas áreas urbanas de todo o país e identicou o perl dos “pobres” brasileiros. A pobreza afeta desproporcionalmente os jovens, principalmente nos domicílios onde a mulher é a chefe de família. (...) [No Nordeste] o chefe de família é, freqüentemente, analfabeto (mesmo tendo freqüentado a escola) e trabalha na agricultura. Cerca de metade deles são pequenos proprietários rurais ou meeiros. Os demais são assalariados ou trabalhadores temporários. As famílias pobres são numerosas (...) enquanto o acesso aos serviços de infra-estrutura é raro. Os domicílios pobres das zonas urbanas (...) possuem um número maior de lhos do que os mais ricos e as mulheres, em geral, não  participam do mercado de trabalho. Os chefes de família são, geralmente, muito jovens, não têm carteira de trabalho e trabalham no setor de serviços. Muitos deles são autônomos. Um quarto dentre eles é analfabeto e cerca da metade tem quatro anos ou menos de escolaridade (Banco Mundial, 1995:xi).

Em termos de políticas para atender às necessidades dos pobres, o documento sugeriu o direcionamento das intervenções para o Nordeste e a expansão dos serviços de creche e escolas maternais para os bairros pobres das grandes cidades, liberando assim as mães para o mercado de trabalho. Obviamente, as políticas macroeconômicas têm papel de destaque, sendo sugerida a manutenção da estabi-

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lidade dos preços e a exibilidade do mercado de trabalho. Além disso, o relatório apontou problemas nas políticas de apoio ao setor formal do mercado de trabalho. Como poucos deles têm carteira de trabalho, os aumentos do salário mínimo e o seguro-desemprego não são instrumentos ecazes. Subsídios gerais, mesmo para produtos ou serviços que representam a maior parte do orçamento dos pobres, tais como transporte urbano, vazariam para os consumidores de maior poder aquisitivo (ibidem, p. xii).

Um dos principais argumentos do relatório é de que os gastos sociais no Br asil são enormes e não se traduzem na melhora dos indicadores sociais ou na redução da  pobreza. Além disso, o documento considera que a distribuição dos gastos públicos sociais no Brasil é favorável aos ricos, uma vez que 40% iriam para a Previdência Social, 22% para a educação e 16% para a saúde (ibidem, p. xiii). Para resolver  tal estado de coisas, sugere mudanças. Isto signica que o simples fato de serem ampliados os gastos sociais muito  pouco contribuirá para mitigar a pobreza. Preferivelmente, a prioridade deve ser reestruturar os dispêndios públicos em todos os programas e melhorar a administração e a eciência dos gastos sociais (ibidem, p. xiv).

O documento também é claro nas prerrogativas macroeconômicas para enfrentar o problema da pobreza no Brasil: O Brasil está em posição (surpreendentemente) favorável para restaurar a estabilidade macroeconômica e retomar o crescimento. A economia está agora em recuperação, as reservas internacionais se encontram em níveis recorde e os pagamentos da dívida externa foram regularizados. (...) Reformas estruturais foram iniciadas nas áreas de comércio, privatização e desregulamentação. Além disso, evitando o congelamento de preços e outras formas de intervenção direta, as autoridades parecem mais comprometidas do que nunca com soluções racionais, pautadas pelo mercado (...) (ibidem, p. 36).

 No ano seguinte, o Pnud, em convênio com o Ipea, produziu o  Relatório  sobre o desenvolvimento humano no Brasil/1996 .13 Embora o Pnud trabalhe com outro indicador, o IDH, e inclua entre seus colaboradores cientistas políticos e representantes de organizações não-governamentais, existem muitas semelhanças entre este documento e o anterior. Ao examinar e avaliar as polí ticas e os programas de combate à pobreza, implementados nas décadas anteriores, as conclusões do

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relatório do Pnud se aproximam muito daquelas do relatório do BIRD. Destaca-se que o efeito distributivo dos gastos sociais é reduzido, sendo seu perl desfavorável mesmo aos contingentes mais pobres da população: o valor  per capita dos gastos sociais relativos aos mais pobres é inferior ao correspondente aos segmentos de maior nível de renda; esse diferencial é ainda mais signicativo quando se consideram os pagamentos da previdência social, cujo perl de distribuição é ainda mais desfavorável aos segmentos mais pobres. Por outro lado, embora o país conte com quantidade expressiva de programas especicamente dirigidos aos setores mais necessitados, as ações públicas nesse campo não foram particularmente ecazes, inclusive  porque assentadas em formatos centralizados e em práticas assistencialistas e clientelistas de distribuição de benefícios sociais (Pnud/Ipea, 1996:5).

Como o relatório do BIRD, o do Pnud defendeu a estabilidade econômica e a necessidade de novos requisitos de competitividade decorrentes do processo de abertura comercial do país e da globalização da economia. Da mesma forma, rearmou que teria se dado esgotamento do ciclo de desenvolvimento iniciado na década de 1930, diante das tendências contemporâneas de globalização dos mercados, de liberalização econômica e de formação dos blocos regionais de comércio (ibidem, p. 6). Uma terceira incursão dos organismos internacionais sobre a pobreza no Brasil foi o relatório brasileiro do projeto Vozes dos Pobres, promovido pelo Banco Mundial e executado pela Fundação de Apoio ao Desenvolvimento da Universidade Federal de Pernambuco (Fade/UFP), a partir de dados levantados em dez comunidades localizadas em três cidades: Recife (PE), Santo André (SP) e Itabuna (BA). A metodologia utilizada foi a de discussão em grupo ou entrevistas individuais com 632 “indivíduos pobres”. De acordo com o marco internacional da pesquisa, foram levantadas informações sobre “bem-estar” (ranking, scoring, grupos focai s, análise de tendências, análise da causa-impacto, estudos de casos individuais), problemas,  prioridades, análise das instituições e mudanças das relações de gênero nas famílias e nas comunidades (Banco Mundial, 1999:3). Conforme o Sumário Executivo do Relatório Síntese Nacional, embora tenha se observado uma variação signicativa quanto à percepção do bem-estar nos grupos e nas comunidades, teria havido respostas comuns no que se refere a questões de  bem-estar, qualidade de vida e condições de vida. Os indivíduos tendem a associar pobreza e incapacidade, e relacionar bem-estar com segurança. A segurança é tematizada com referência a uma va riedade de fatores dentre os quais emprego e acesso à fonte de renda xa, acesso à

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comida, saúde e acesso a serviços de saúde, além de posse da terra e moradia. Os indivíduos pobres são considerados mais vulneráveis devido à sua exposição a ambientes insalubres, à violência, crimes, e a riscos ambientais tais como inundações e deslizamentos de barreiras. O emprego xo ou o acesso a relações de patronagem são considerados como fontes de segurança. Os fatores que deagram crises pessoais ou familiares levando ao empobrecimento e à privação são perda de emprego, doenças, mortes de parentes, separação entre cônjuges e despejo de terra urbana ocupada (ibidem, p. 3-4).

Percebe-se nos três documentos analisados acima uma matriz conceitual e metodológica que abre pouco espaço para contextualizações. Embora não seja  baseada apenas em argumentos numéricos, esta forma de representar a realidade se enquadra no que Mary Poovey chamou de “fato moderno”. Nas pesquisas realizadas, há um predomínio da matriz sobre as realidades localizadas, de tal forma que estas realidades e até mesmo o discurso dos informantes, se enquadrem quase sem arestas a um modelo predenido. A favor da dedignidade dos dados e para comprovar exaustivamente o seu “rigor”, 14 os números continuam fundamentais: número de pessoas ouvidas, número de locais visitados, número de países que realizaram o levantamento. As pesquisas identicam “os pobres” a partir de cálculos matemáticos de li nhas de pobreza. Mesmo o conceito de “desenvolvimento humano”, aparentemente mais subjetivo do que os indicadores de renda, é obtido através de uma fórmula matemática: I1 = (L1 + E1 + R1) / 3. 15 Uma vez identicados, “os pobres” são analisados de forma quase acachapante, como fossem internamente homogêneos e social e politicamente isolados. 16 Um exemplo disso pude observar na abertura do Fórum sobre o desenvolvimento O ataque à pobreza, promovido no Brasil, pelo BIRD, em outubro de 2000. Enquanto Nicholas Stern, vice-presidente sênior e economista chefe do Banco Mundial, fazia a apresentação do  Relatório sobre o desenvolvimento Mundial  2000/2001, apareciam no telão imagens colhidas no âmbito do projeto Voices of  the poor: pessoas falando sobre sua situação de pobreza, com legenda em inglês e identicações do tipo “poor woman, Líbia” ou “poor woman, Egypt”. Deepa Narayan, coordenadora do projeto Voices of the poor, declarou no Brasil17 a políticos e pesquisadores brasileiros que este representou um avanço em relação à visão tradicional da instituição sobre a pobreza , baseada apenas em dados quantitativos. Ao mesmo tempo, armou que o objetivo da pesquisa não fora o de formular políticas, mas sim de “dar voz aos pobres”. Como o objetivo do BIRD é justamente nanciar projetos e formular políticas, me parece que sua “guinada antropológica” tem pouco a ver com mudanças de percepção. Moreira (1999) criticou as análises produzidas pelos organismos internacionais,

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 por omitirem que a pobreza “resulta dos modelos de acumulação hegemônicos e das políticas de ajustes sobre os setores de renda mais baixa” (1999:56). Considerou igualmente falso e inútil “discutir estratégias para ‘empoderar’ os pobres, isolando-os das classes médias empobrecidas” (idem ibidem). Tão inútil e falso, no seu entender, quanto “falar do impacto positivo de um bom funcionamento do mercado sobre os pobres, pois estes não estão no mercado” (idem ibidem). Para Moreira, como para a maior parte das entidades 18 que produzem o Observatório da Cidadania, criado em 1995 para monitorar os processos de implementação dos compromissos assumidos no “ciclo social” das Nações Unidas, não se erradicará a pobreza sem uma mudança no modelo de desenvolvimento. Segundo elas, o atual modelo, vigente desde o pós-guerra, “está agravando a situação dos  pobres no mundo, aumentando seu número e reforçando os padrões de desigualdade existentes, ao mesmo tempo em que cria outros” (idem ibidem). Trata-se, no entender das entidades, de um estilo de desenvolvimento que “depreda o meio ambiente e exclui milhões de pessoas de qualquer acesso a bens sociais, como educação, saúde e emprego” (idem ibidem). Se tais criticas não forem incorporadas pelos organismos internacionais, avaliam, “os objetivos de redução da pobreza não passarão de imperativos éticos, sem força para serem impostos  politicamente a quem quer que seja” (idem ibidem). Acho muito difícil que os organismos internacionai s incorporem às suas práticas esta crítica ao modelo de desenvolvim ento, embora não me espante se o zerem em termos de discurso. E seus discursos são poderosos. No Brasil, por exemplo, a  pauta da pobreza nos últimos anos da década de 1990 foi uma pauta dos organismos internacionais, na qual o Brasil foi falado e perdeu seu lugar de fala. Houve apenas uma tentativa, frágil e de pouca ecácia, de recuperação do debate nacional sobre a pobreza. Trata-se da Comissão Mista de Combate à Pobreza, instalada em 1999 no Congresso Nacional. Dela trataremos a seguir.

3.3. Os discursos sobre a pobreza no Congresso Nacional A Comissão Mista Especial destinada a est udar as causas estruturais e conjunturais das desigualdades sociais e apresentar soluções legislativas para erradicar  a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, mais conhecida como Comissão Mista de Combate à Pobreza, funcionou no Congresso  Nacional de agosto a dezembro de 1999. 19 Teve sua origem na proposta de criação de um Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza, apresentada pelo senador  Antônio Carlos Magalhães, do Partido da Frente Liberal (PFL), da Bahia.  Na ocasião, os senadores Eduardo Suplicy (PT/SP) e Marina Silva (PT/AC) encaminharam requerimento de criação da Comissão Mista, defendendo que à  proposta de Magalhães poderiam ser acrescidas inúmeras outras proposições legis-

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lativas em tramitação, que tinham igualmente como objetivo enfrentar o problema da pobreza. 20  No dia 5 de agosto de 1999, Magalhães leu em plenário um discurso intitulado “Combater a miséria é tarefa de todos”. Chama a atenção o fato de o senador ter começado a discussão com a declaração de que “a miséria de grande  parte do nosso povo é secular” (Magalhães, 1999:9), repetindo, assim, como vimos, um bordão recorrente no discurso político recente. Explicou que lançava o Fundo naquele momento porque “a pobreza alcança patamares tão elevados que constrangem os cidadãos, de maneira geral e particularmente os homens públicos, sobre os quais pesa a grave responsabilidade pelos destinos desta Nação” (idem ibidem). O argumento do constrangimento voltaria a aparecer nos trabalhos da comissão, na exposição do ex-governador do Distrito Federal, Cristovam Buarque. Com base em dados do Ipea e do Banco Mundial, Antônio Carlos Magalhães armou que “o Brasil não é um país pobre (...) nos situamos entre as dez nações com o maior produto interno bruto do planeta (idem ibidem), mas um país desigual. Com sua proposta, por meio de transferência de renda e de outras providências, o senador pretendia minimizar “esse cenário de dantescas contradições” (ibidem,  p. 10). A partir de informações do  Relatório sobre o desenvolvimento humano, elaborado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – Pnud –, o senador baiano declarou que a desigualdade de acessos à educação, à saúde e ao atendimento das demais necessidades básicas dos indivíduos ocorre mesmo nos  países considerados desenvolvidos e que a concentração de renda tem crescido em todo o mundo. Ou seja, que o problema da pobreza, além de secular, é mundial.  Num discurso que poderia ser caracterizado como “moderno”, uma vez que traz dados atualizados das agências internacionais e dos grandes centros de pesquisa, e no qual que cita Voltaire, Raul Seixas, Chico Buarque, Cristovam Buarque, Betinho, técnicos do Ipea, acadêmicos e editoriais da grande imprensa, Magalhães fez uso de argumentos que apontam para seu viés tradicional de percepção da pobreza. Aliás, para aferir a situação de pobreza, eu perguntaria ao meu querido amigo ministro Malan se, em quase cinco anos de governo, ele recebeu um só pobre em seu gabinete. Tenho certeza de que não (ibidem, p. 16).

Esta ambivalência entre o tratamento tradicional à questão da pobreza, marcadamente hierárquica e buscando reciprocidades políticas, e a incorporação de conceitos e interpretações modernos, seria uma constante nos discursos da comissão. Até mesmo a experiência da Campanha da Fome foi utilizada para Magalhães introduzir outro jargão importante sobre a pobreza, o de que “os governantes sozinhos, sem o engajamento popular, jamais conseguirão extinguir os grandes bolsões de

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fome e de miséria” (idem ibidem). Antônio Carlos Magalhães foi aparteado por dezenas de senadores, que reforçaram seu discurso ou o criticaram, através de propostas alternativas. Roberto Freire (PPS/PE), um dos raros críticos, encontrou semelhanças entre o diagnóstico de Antônio Carlos Magalhães e o de Delm Netto, para quem primeiro era preciso crescer o bolo, para depois reparti-lo e do general Médici, quando, analisando a economia brasileira da década de 1970, dizia que a economia ia bem e o povo ia mal. A seguir, o senador pernambucano denunciou o uso por um senador da “direita” de bandeiras tradicionais da “esquerda”: a injustiça e a desigualdade da sociedade  brasileira. Declarou também que não se enfrenta a pobreza nem se corrige a perversidade na distribuição de renda com políticas de ações suplementares, políticas compensatórias e com projetos como o fundo de Combate a Pobreza. Segundo Roberto Freire, tal crítica resgata a “concepção política de comunistas, socialistas, social-democratas, quer dizer, da esquerda, no mundo e aqui no Brasil” (Freire apud Magalhães, 1999:19). O debate em andamento, rearmou, deveria ser prerrogativa das esquerdas, que “há muito tempo (...) tenta construir sociedades mais justas. Não é com fundos desse tipo que resolveremos o problema” (ibidem, p. 20). Em seguida falou o senador Maguito Vilela (PMDB/GO), que seria o presidente da Comissão Mista. Ex-governador de Goiás, Maguito realizou em seu governo  políticas sociais baseadas na distribuição de alimentos. No seu aparte a Magalhães, trouxe à tona o que seria outro discurso sobre a pobreza, humanista e “apartidário”, formulado por diversos membros da comissão.

 Na seqüência falou a senadora Marina Silva (PT/AC), que defendeu a importância do debate político sobre a pobreza, independentemente de ter sido proposta  por um político conservador. Quanto aos trabalhos da comissão, considerou que só seriam ecazes se contassem com a participação da sociedade civil.

Penso que se tem de dar um grito neste país, tão importante quanto o Grito da Independência; um grito no sentido de acabar verdadeiramente com a fome e a miséria no país. A fome come a vida das pessoas, nas periferias, nos bolsões de miséria, nas favelas, e o povo não pode esperar mais. Há que se discutir muita coisa, mas o que temos de entender é que pessoas estão morrendo de fome; há crianças morrendo de fome, e nós temos que adotar   programas que acabem com a fome. A fome não é um problema do PFL, do PMDB, do PSDB, do PT; a fome é um problema de todos os brasileiros. Na testa das pessoas famintas não está inscrita a sigla de nenhum partido político. Durante o meu governo, nenhuma família passou fome no estado de Goiás (Vilela apud Magalhães, 1999:22)

Ao mesmo tempo, Marina Silva considerou a proposta de Antônio Carlos Magalhães um reconhecimento, por parte do governo, da ineciência de sua política social. A comissão, para ela, signicaria que o Congresso deixaria de ser “refém” da agenda do governo, impondo sua própria agenda.

O próximo aparte, do senador Roberto Saturnino (PSB/RJ), trouxe o discurso de um setor da esquerda que, mantendo a critica ao sistema capitalista, reconheceu a necessidade de políticas compensatórias, aliadas a dimensões estruturais. Sei perfeitamente que, no sistema econômico capitalista em que vivemos,

com uma tendência de concentração manifesta de renda, riqueza e poder, toda política de natureza social será sempre compensatória, isto é, será uma compensação à própria tendência concentracionista do regime. Nem por isso se deve desqualicar esse tipo de política compensatória, mormente num país que atingiu o grau de injustiça social a que o Brasil foi levado, e muito especialmente se nessas políticas compensatórias se introduzir alguma dimensão de natureza estrutural, casando, por exemplo, a distribuição em termos de renda com algum investimento acoplado em educação, característica que move o sistema pelo lado estrutural (Saturnino apud Magalhães, 1999:28).

A criança deve ser respeitada pelo seu valor como criança. Não me cabe julgar  quem são seus pais; ela merece atenção pelo seu valor. E a discussão com relação à pobreza, independentemente de ter sido colocada por V. Ex.ª neste segundo semestre ou ao longo de nove anos pelo senador Eduardo Suplicy, aqui no Congresso Nacional, não importa. Devemos tirar dessa comissão uma série de recomendações de políticas públicas de proteção aos e xcluídos. Razão por que a nossa comissão deve entender que esse é um trabalho em  parceria com a sociedade civil. Por que não pensarmos em chamar a CNBB e todos aqueles segmentos da sociedade que têm propostas para, no âmbito da Comissão, despartidarizando, despersonalizando, fazendo da causa do com bate à exclusão uma grande missão do povo brasileiro para que cheguemos aos resultados que V. Ex.ª acabou de dizer? (Silva apud Magalhães, 1999:32).

 A nossa agenda será a discussão da pobreza, da miséria e da exclusão social . É com esse espírito que entro nessa comissão, que, entendo, é uma comissão do Brasil, para enfrentar um problema do nosso país que, infelizmente, foi criado por meia dúzia de pessoas, mas cujas conseqüências se estendem a milhões (ibidem, p. 33, grifos meus).

O senador Eduardo Suplicy (PT/SP), em seu aparte, defendeu a participação do Partido dos Trabalhadores nos trabalhos da comissão, diante do objetivo maior  de combate à pobreza.

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A pobrezA no pArAíso tropicAl Poderiam alguns dizer: “Como você, sendo do PT, está dando tanta atenção à  proposição de um adversário do PFL e potencial candidato à Presidência?”. (...) Disse a meus companheiros que deveríamos estar com o espírito aberto, como propõe V. Ex.ª. Se o objetivo é erradicar a pobreza para valer, então nós, do PT, temos que estar prontos a dialogar com quem quer que seja, em que pesem as diferenças de procedimentos, de políticas ou de decisões que possam ter existido no passado (Suplicy apud Magalhães, 1999:38-39).

Muitos outros políticos apartearam Magalhães. O senador Jader Barbalho (PMDB/PA) lembrou que Josué de Castro discutira o problema da fome enquanto  parlamentar. José RobertoArruda (PSDB/DF) festejou o que considerou a fusão de duas linhas clássicas de pensamento, a liberal e a que prega políticas compensatórias. O senador Luiz Estevão (PMDB/DF) armou que a pobreza não era um  problema brasileiro, mas mundial e Carlos Wilson (PSDB/PE) 21 lembrou a gura de dom Hélder Câmara. Antonio Carlos Valadares (PSB/SE) chamou a atenção  para sua região, o Nordeste, lembrando que não era mais hora de diagnósticos: “as causas já foram totalmente identicadas, as políticas totalmente discutidas; falta apenas vontade política para que nosso Nordeste sobreponha-se a essa mi séria, que  produz em nossa região uma situação bastante desfavorável em relação a outras mais desenvolvidas do Brasil” (Valadares apud Magalhães, 1999:50). Outros senadores, como diria Gilberto Amado, “bordaram sobre o tema”. Bernardo Cabral (PFL/AM) foi um deles, ao declarar: O tema é pobreza, e a pobreza leva à fome, que mata mais do que qualquer   pelotão de fuzilamento. É exatamente ela a responsável pela existência nos cemitérios de um grande número de sepulturas sem inscrição. Todas as vezes que vejo falar de pobreza e ouço alguns comentários, geralmente me lembro daquela frase – já que há tanta citação bíblica hoje nesta Casa – “pobre como Jó, e por isto morreu: porque foi castigado por Deus” , quando nos esquecemos de que a pobreza tem suas raízes incrustadas numa profunda injustiça social (Cabral apud Magalhães, 1999:42).

 Na mesma linha, José Alencar (PMDB/MG) lembrou “a célebre frase metafórica de Deng Xiaoping: ‘Não importa a cor do gato; o que importa é que cace o rato’. Essa frase signica exatamente, ainda que mediante metáfora, que não importa a coloração ideológica; o que importa é o bem comum. E que precisamos retomar o desenvolvimento” (Alencar apud Magalhães, 1999:43). Leomar Quintanilha (PPB/TO) armou que “a chama da esperança volta a aquecer o coração de milhões de brasileiros” (Quintanilha apud Magalhães, 1999:51); Carlos Patrocínio (PFL/TO) citou Tiradentes; e Geraldo Melo (PDSB/RN)

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armou que Magalhães ouvira o “clamor das ruas, o desao que se coloca diante da atual geração de estadistas e de homens públicos do Brasil, e V. Ex.ª percebeu, como todos percebemos, que este é o grande problema, o grande desao nacional neste momento” (Melo apud Magalhães, 1999:57). Diante do sucesso de seu discurso, o senador Antonio Carlos Magalhães o concluiu num tom absolutamente tradicional, que nada tem a ver com a “modernidade” da análise feita anteriormente. Sou um político que vive na intimidade do meu povo, sobretudo dos mais  pobres. Sou um político que não freqüenta as casas dos mais ricos. Costumo viver na intimidade dos mais pobres. E diante dos senhores, juro que vamos lutar por isso. Diante do povo que aí está na galeria, juro que não faltarei, até  porque, se tivesse que faltar, eu pediria a Deus que me fulminasse na véspera (Magalhães, 1999:58).

A comissão atraiu dezenas de parlamentares. Houve disputas e debates acalorados para denir os nomes dos 19 senadores e 19 deputados titulares. De certa forma, percebia-se um interesse consensual no termo “pobreza”, embora com signicados diversos para as correntes ideológicas presentes na comissão. No desenrolar dos trabalhos, pode-se perceber que parte dos titulares viu na comissão sobretudo um espaço para discursar para as câmaras da TV Senado, longos discursos que demonstraram a permanência de uma percepção extremamente clientelista da  pobreza e dos pobres. A monotonia de suas falas, repetidas a cada audiência pública, me remeteu as reexões sobre os políticos feitas por alguns dos clássicos do pensamento social  brasileiro que vimos no capítulo 1. Embora sem a abrangência e amplitude das questões de clima ou raça, os políticos também foram relacionados com a pobreza. Manoel Bomm (1993), ao analisar a sociedade brasileira do início do século XX, constatou que, com tantos elementos para se tornar próspera, sua população vivia na miséria em função da luta pelo poder. São sociedades novas, inegavelmente vigorosas, prontas a agir, mas, nas quais, toda a ação se resume na luta terra a terra pelo poder – na política, no que ela tem de mais mesquinho e torpe. Fora daí, é a estagnação: miséria, dores, ignorância, tirania, pobreza (Bomm, 1993:49-50, grifos meus).

Diante da anomalia “país rico e povo pobre” os “tristes políticos” nacionais não estariam sabendo identicar a verdadeira origem do problema, perdendo-se no combate contra os seus sintomas.

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A pobrezA no pArAíso tropicAl É diante desta anomalia, desconcertante para muita gente, que os estadistas de vista curta emitem os seus famosos axiomas: o mal vem da instabilidade dos governos, das revoluções freqüentes, da irregularidade do câmbio, do papel-moeda inconversível, da falta de braços... É toda a série dos sintomas do atraso, apresentados como causa. (...) Míopes, reduzidos de vista, eles não conseguem ver os fenômenos, os efeitos todos, por junto, e menos ainda determinar as relações fatais entre uns e outros; e sentir a necessidade de compreender os fenômenos sociais num sistema de leis gerais (ibidem, p. 50).

Sylvio Romero, em Provocações e debates(1910), fez críticas severas à classe  política. Em artigo chamado “Realidades e ilusões do Brasil”, produziu uma estranha e original comparação entre governantes e “homens que dançam”: É quase impossível fallar a homens que dançam. Ébrios de prazer, alheiados da realidade ambiente, ei-los que, envolvidos no vórtice das fascinações do momento, se julgam no melhor dos mundos. Só passada a ronda phantastica dessa embriaguez illusoria, é que param cansados dessorando desfallecimentos e pezadumes (Romero, 1910:170).

Para Romero, a preocupação excessiva com a manutenção do poder levaria os governantes a delírios de grandeza e de ilusionismo, que os impediriam de ver  a miséria do país. Fascinados por um optimismo, barato para quem o exerce e caríssimo para quem o paga, eis que não prestamos o menor cuidado à deplorável miséria em que se debatem nove décimos da população. (...) Desde que Rocha Pitta decretou que estamos no terreal paraíso descoberto, onde as estrellas são as mais benignas, e Gonçalves Dias ponticou que em todo o mundo nossas várzeas têm mais ores e nossos bosques mais vida e nossa vida mais amo res... julgamo-nos dispensados de trabalhar com ardor no intuito de preparar  o povo para os grandes labores da vida social moderna. Os mais empenhados (...) na conservação e alastramento desse estado de espírito nas populações nacionaes são os nossos (...) desnorteados governos, no claro desígnio de desarmar a crítica (ibidem, p. 171-172, grifos meus).

 Num momento de maior dureza, Romero qualicou Rodrigues Alves e Affonso Penna como “malfeitores nacionais (.. .) enérgicos fautores desse desastrado systema de illusionsmo que nos reduziu a uma pobre terra de duas vistas, um Janus 22 caricato de duas faces: uma de miséria real e a outra de ngida prosperidade” (ibidem,  p. 179). Em outro artigo, publicado em maio de 1906, o crítico denunciou que os

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 partidos, as repartições estaduais e municipais, todas as instituições, todos os cargos  públicos, “não tem outro destino, não tem outra função: seu m é fornecer meios de vida a uma clientela innita” (ibidem, p. 203) .  Neste contexto, o papel do Estado, que deveria ser o de manter a ordem e garantir a justiça, teria sido substituído pelo de “alimentar a mor parte da população à custa dos poucos que trabalham e isso por todos os meios, como sejam as malhas dum funccionalismo innumerável” (idem ibidem). E completa: “nestas condições, não é de estranhar que a política preoccupe muito os brasileiros, mas pela política que consiste em fazer eleições para ver quem vae acima e cará em condições de fazer os favores” (idem ibidem). Para Farias Brito (1916), o Brasil era um país de “exploradores políticos” e “falsos legisladores”. Em relação a esse último aspecto, arma que as leis no país são fabricadas como pão, a maior parte copiada de legislações estrangeiras, daí sua pouca anidade com as verdadeiras questões nacionais: É assim que temos leis aos milhares, muitas extemporâneas, extravagantes, ridículas; quase todas falsas, importadas do estrangeiro, sem nenhuma ligação com o nosso meio, sem nenhuma relação com os hábitos tradicionais e as tendências próprias da nação (Farias Brito, 1998:765).

Mesmo diante de políticos que se esforçavam por defender os direitos do povo ou em fazer a apologia da liberdade e da justiça, havia um descrédito muito grande em relação à atividade parlamentar e/ou executiva. A palavra dos políticos teria se tornado, naqueles longínquos primeiros anos do século XX, “inecaz, importuna às vezes, sempre seca, sempre oca, desprestigiada e nula” (ibidem, p. 766). É bastante dura, neste sentido, a comparação que Brito faz entre os políticos e as prostitutas. E a verdade é que quando um orador político nos fala em direito, justiça, economia, liberdade, legalidade, patriotismo, e quantos outros palavrões que como estes formam o tema ordinariamente debatido, a impressão que se tem é quase a mesma que se poderia experimentar ouvindo, por exemplo, uma  prostituta fazendo a apologia da honra e do pudor? (idem ibidem).

Farias Brito também reproduziu em seu livro, intitulado O paneto e assinado com o pseudônimo “Marcos José”, o que pode ter sido um senso comum na época sobre os políticos brasileiros. Todos sabem: o que ele tem em vista, é ajeitar-se melhor, todos sabem: o que ele quer, é colocar-se melhor na máquina do governo e da administração (idem ibidem).

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Oliveira Vianna, por sua vez, lamentou que o sentimento de realidade que teria caracterizado os velhos capitães-gerai s do país tenha desaparecido das classes dirigentes. Ao invés de métodos objetivos e práticos de administração e legislação dos estadistas coloniais, teríamos desde a independência dirigentes, políticos e legisladores totalmente fascinados pelos ideais da Revolução Francesa, pelas agitações  parlamentares inglesas e pelo espírito liberal das instituições norte-americanos, disto resultando um daltonismo em relação aos nossos verdadeiros problemas. Sob esse fascínio inelutável, perdem a noção objetiva do Brasil real e criam  para uso deles um Brasil articial, e peregrino, um Brasil de manifesto aduaneiro, made in Europe. (...) Demais, esse feitio ingenuamente ditirâmbico e para o qual “nosso céu tem mais estrelas e a nossa terra mais amores”, nos tem entretecido uma radiosa teia de presunções sobre as nossas aptidões e grandezas, muito caprichosa e bela na sua trama de prata e ouro, não há dúvida (...) mas que as duras realidades (...) hão de romper com impiedosa  bruteza (Vianna, 1952:20).

Para Vianna, comparados com os povos práticos e experimentalistas da Europa e da América do Norte, estaríamos – por culpa de governantes sonhadores – vivendo como “fumadores de ópio no meio de raças ativas e progressistas” (idem ibidem). Para alterar tal situação, sugeriu mudanças nos métodos de ensino e na forma de fazer política, legislar e governar. Gilberto Amado, em 1924, criticou os políticos brasileiros por tratarem de assuntos que pouco ou nada teriam a ver com a realidade nacional. (...) illustrados nos publicistas europeus, versando temas que não tinham relação com o meio, os mais brilhantes estadistas não eram por certo os mais úteis. O seu trabalho político consistia em bordar sobre os assuntos do dia (Amado, 1998:92).

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uma personalidade mental, o vinco de uma autonomia de ação que seja o sulco vivo por onde se arme um caráter sincero, apaixonado pela verdade, e procurando pela experiência pessoal, pelo próprio esforço, aplicação e descortino (ibidem, p. 103-104).

Para Prado (1997), era inadmissível que num país com imensos problemas a resolver, como o nosso, os políticos tivessem como preocupação única a própria questão política, o que o faria sugerir como única solução uma guerra ou uma revolução. Sobre este corpo anêmico, atroado, balofo, tripudiam os políticos. É a única questão vital para o país – a questão política. Feliz ou infelizmente, não há outro problema premente a resolver: nem social, nem religioso, nem internacional, nem de raças, nem graves casos econômicos e nanceiros. Somente a questão política, que é a questão dos homens públicos. Há-os de todo o gênero: os inteligentes, os sagazes, os estúpidos, os bem-intencionados (dantesca multidão), os que a sorte protege c omo nas loterias, os efêmeros, os eternos. É o grande rebanho que passa, pastando, de que falava Nietzsche. (...) Os homens de governo sucederam-se ao acaso, sem nenhum motivo imperioso  para a indicação de seus nomes, exceto o das conveniências e cambalachos da politicagem (Prado, 1997:205-207).

 Nesta mesma linha de raciocínio, Vicente Licínio Cardoso declarou: (...) os nossos políticos mais úteis do Império não foram os mais cultos: foram os que citavam menos, os que viam mais as nossas insuciências orgânicas, os que reagiram um pouco ao ambiente de pomposidades ocas e fofas do  parlamentarismo retórico nacional. Tudo foi copiado da Inglaterra, a atitude, o discurso, o gesto, a própria palavra. Faltava apenas o que os navios não transportavam: a ação (Cardoso, 1998:163).

“Bordando sobre os assuntos do dia”, nossos políticos pareciam preocupar-se muito mais com a aparência do que com a profundidade dos problemas. Além disso, arma Amado, procuravam mostrar uma excessiva erudição sobre assuntos norte-americanos e quase nenhum reconhecimento das realidades práticas do país.

Acredito, no entanto, ser de Arthur Ramos uma das mais  dedignas denições da atividade política, o culto da palavra.

Por obra da nossa educação feita para além da realidade, mesmo nas assem bléias políticas não é difícil assistir a uma discussão brilhantissima quando se trata de questões de direito, de questões enm sobre as quais já se hajam escrito na França, na Inglaterra ou nos Estados Unidos muitos livros onde a erudição seja fácil de encontrar. Mais difícil, porém, é deparar no meio de tantos espíritos “cultos” o traço de uma observação própria, o cunho de

A nossa história está cheia de discursos empolados, eloqüentes, cheios de  palavras sonoras, que adquirem um valor essencialmente emotivo. A idéia é sacricada sempre à forma: “peço a palavra!” é um símbolo da nossa vida de pensamento. O Parlamento brasileiro sempre foi um viveiro de portentosa verbiagem. As nossas guras mais representativas sempre foram o deputado  patativa, o demagogo de rua, o orador dos salões (“neste momento solene...”), o orador de subúrbio, o discursador de enterro... (Ramos, 1998:65).

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Deixando claro que vivemos um processo histórico e político que mudou substancialmente o perl dos parlamentares brasileiros, pode-se dizer que dos  políticos do começo do século XX, duas características, com vernizes modernos,  permanecem até hoje. Rero-me a um certo fascínio pelo discurso estrangeiro e a verborragia. Quando do anúncio da criação da comissão alguns campos começaram a se formar. O primeiro deles foi o de setores da esquerda que se posicionaram contra a sua criação, por considerá-la “a comissão do ACM”, de caráter “assistencialista”. Assim se posicionou, por exemplo, o senador Geraldo C andido (PT/RJ), que publicou uma cartilha intitulada “Como acabar com a pobreza no Brasil”, que circulou ainda quando da vigência dos trabalhos da comissão. Nela, o senador considerou que o fundo proposto não resolveria problema algum, por partir de um pressuposto da manutenção da condição de pobreza, desde que a níveis dignos de sobrevivência. Isto quer dizer que os recursos do fundo serão aplicados em ajuda aos pobres. Mas um pobre que recebe ajuda continua sendo um pobre. E jamais se pode dizer que uma pessoa que precisa receber ajuda para sobreviver está tendo acesso a um nível digno de sobrevivência. Os “pobres” são sempre os trabalhadores. Porque esta proposta não mexe na parte que é recebida diretamente  por estes, mas só pretende conceder-lhes ajuda do Estado, ela é indireta. Não  passa de uma política compensatória. Nisto, não se distingue da maioria das propostas parlamentares sobre o assunto. Políticas compensatórias, em determinadas situações, ajudam como medidas de emergência. Podem então se justicar, porque aliviam sofrimentos. Mas são apenas paliativos. Não aceitamos que sejam apresentadas como soluções, denitivas. Isto é tentar  enganar o povo (Cândido, 1999:5).

Para acabar com a pobreza, armou Cândido, bastaria respeitar os artigos 6 o e 7o da Constituição. 23 Além disso, o parlamentar defendeu sete medidas que, apesar  de não conformarem “um programa revolucionário nem utópico” (ibidem, p. 8)  poderiam resolver o problema: aprovação de uma lei que obrigue o governo a xar  o salário mínimo num valor adequado para cumprir a Constituição; redução da  jornada de trabalho; reforma agrária; reforma da previdência social; reforma do sistema público de saúde; melhoras na educação pública e limitações nas remessas para o exterior e nos pagamentos de juros e amortização da dívida pública. A comissão, não obstante, teve entre seus membros políticos de esquerda importantes: os senadores Marina Silva, vice-presidente da mesma e Eduardo Su plicy, pelo PT; Roberto Saturnino e Antônio Carlos Valadares, pelo PSB; Emília Fernandes 24 e Sebastião Rocha, pelo PDT; e os deputados Aloízio Mercadante, Paulo Paim, Pedro Celso e Nilson Mourão, pelo PT; Alceu Collares e dr. Hélio, pelo PDT; Luiza Erundina e Eduardo Campos, pelo PSB e Haroldo Lima, pelo PC do B.

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Outro campo logo identicável foi o de setores de centro, centro-esquerda e de centro-direita, 25 que se subdividiram entre os que defenderam políticas assistenciais tradicionais e os que defenderam soluções mais modernas, na linha do que  já estaria sendo realizado pelo governo. Também a visão dos setores de esquerda não era unitária. Repetiu-se entre os mesmos, em relação à Comissão, um melindre que Soares (1998) observou em relação à Campanha da Fome: como ser a favor  da justiça social sem abrir mão de convicções teóricas tradicionais e valores ideológicos profundamente enraizados e sedimentados. Enquanto um setor da esquerda procurou marcar posição dentro da comissão com um discurso baseado na necessidade de “transformação das estruturas” e de “um novo modelo econômico”, outro defendeu uma política de transição para este novo modelo, através de um conjunto de ações (“uma cesta básica de direitos sociais”). Na segunda sessão da comissão, o deputado Aloízio Mercadante (PT/ SP), representante da primeira posição, defendeu que entre os trabalhos da mesma deveria ser discutida a relação entre desenvolvimento econômico e pobreza. Penso que nós não podemos enfocar essa questão apenas do ponto de vista de ações emergenciais, ou mesmo do ponto de vista da capacidade de o Estado intervir no processo. Há uma discussão mais de fundo e que, segundo  penso, explica o tamanho da problemática da pobreza, que é a natureza do desenvolvimento econômico que este país vem tendo. Portanto, esta Comissão  poderia, além de reetir sobre programas de políticas públicas, pensar uma agenda de reformas mais profundas e estruturais, que possam signicar um caminho de mudança do padrão de desenvolvimento que tenha na exclusão social e na pobreza o seu maior objetivo (Aloízio Mercadante, 18/8/99, notas taquigrácas disponíveis no site do Senado Federal).

 Na mesma reunião, a senadora Marina Silva, representante do segundo grupo, ressaltou que, mais importante do que o produto nal da comissão (um relató rio indicando proposições prioritárias para votação), era o fato de o Congresso  Nacional estar se debruçando sobre o tema da pobreza. A ecácia da comissão, no seu entender, apenas se daria na medida em que a sociedade se mobilizasse em torno da questão. Discutir estrutural e emergencial, armou, era secundário.  Não podemos car apenas na pulverização das propostas em medidas emer genciais ou pontuais. Temos que compatibilizar duas coisas: um plano de combate à pobreza, que vai desde questionarmos as razões que levam ao acontecimento drástico de miséria que temos e, ao mesmo tempo, termos  políticas que possam minorar essas condições no curto e no médio prazos; no longo prazo, precisamos entender o que fazer (Marina Silva, 18/8/99, notas taquigrácas disponíveis no site do Senado Federal).

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Marina Silva esperava que a comissão representasse um novo patamar no tratamento da questão da pobreza, como já fora a Campanha da Fome no início dos anos 90. Daquela experiência, tivemos um produto político-social que marcou a história da assistência no Brasil, e nada mais foi como era antes, após a Campanha do Betinho. (...) Qual era exatamente a proposta? Fazer uma parceria entre a sociedade e o Estado, mas, infelizmente, essa parceria não foi gerada, não foi construída, porque o Estado foi se ausentando das políticas so-ciais e a sociedade foi assumindo um papel quase de forma isolada. Penso que a comissão hoje – não quero aqui ser pretensiosa – tem de ter a ousadia de ser  um pouco o que foi a Campanha de Combate à Fome, na época do Betinho.  Espero que possamos marcar o novo produto, que terá de denir em que bases essa parceria será instituída: sociedade e instituições públicas. (...) O nosso esforço hoje (...) é o de buscarmos essa nova qualidade e descobrirmos como encerraremos esse trabalho, para que alguém, daqui a 20 ou 30 anos, possa dizer: na época do Betinho e depois do Betinho, nunca mais foi como era. E quando a sociedade, o Congresso e o governo resolveram debater, a partir do acúmulo do que foi a Campanha de Combate à fome, na época do Betinho, esse também foi um outro acúmulo que tivemos (Marina Silva, 18/8/99, notas taquigrácas disponíveis no site do Senado Federal, grifos meus).

A presidência da comissão foi entregue ao senador Maguito Vilela, do PMDB de Goiás, político com trajetória assistencialista em relação ao combate à pobreza e que, no decorrer dos trabalhos, soube incorporar ao seu discurso as análises modernas e conceitualmente sosticadas do Ipea. O cargo mais importante, de relator, coube ao deputado Roberto Brant, do PLF de Minas Gerais, aliado político de Antonio Carlos Magalhães. Entre as atividades da comissão, se destacaram as exposições feitas por pesquisadores da área acadêmica, representantes da sociedade civil, da Igreja e do governo federal. Aconteceram, ainda, quatro viagens a locais considerados pelos membros da comissão como de pobreza extrema. 26 O ciclo de audiências públicas foi aberto pela economista Lena Lavinas, pesquisadora do Ipea, que trabalha com “linhas de carência alimentar”. A palestrante armou que no Brasil existe uma contradição entre o excesso estrutural de oferta de alimentos e um décit igualmente estrutural da demanda por esse tipo de bem. Isso ocorre, segundo Lavinas, porque grande parte da população não dispõe de renda suciente para ter acesso ao mínimo de gêneros alimentícios necessários à digna sobrevivência. Com o m de apreender o nível de deciência nutricional dos indigentes, a economista do Ipea e sua equipe elaboraram linhas de carência alimentar regionalizadas, com base no custo de 2.200 calorias diárias fornecidas pelos 13 produtos

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que constituem a cesta básica, 27 chegando à seguinte conclusão: Observou-se que, no ano de 1990, a renda familiar dos 10% mais pobres  permitia a aquisição de apenas a metade de suas necessidades alimentícias. Grande parte do segundo decil dos mais pobres, composto pelas pessoas compreendidas entre os 10% e os 20% mais pobres, situava-se abaixo da linha de carência alimentar, ou seja, não tinha condições de comprar os alimentos  precisos para cobrir a ração de 2.200 quilocalorias diárias. (...) na década de 1990, em nenhum momento, os 40% mais pobres tiveram condições de adquirir as calorias mínimas mensais para sua alimentação (Congresso  Nacional, 1999:26).

Segundo Lavinas, dados relativos a 1997 demonstram que 21% da população  brasileira não têm condições de adquirir as calorias imprescindíveis à sua alimentação básica e são, portanto, o público-alvo potencial de um programa de combate à carência alimentar. Essa proporção, armou, representa 6,1 milhões de famílias, num total de 32,3 milhões de pessoas. Avaliando o Programa de Distribuição Emergencial de Alimentos (Prodea), Lavinas constatou que o aporte calórico por família das cestas básicas distribuídas  por esse programa governamental diminuiu, entre 1995 e 1997, de 105 mil para 87 mil quilocalorias. Assim, a cesta do Prodea confere, em média, a cada membro da família contemplada, 555 quilocalorias, isto é, 25% das necessidades diárias. Embora tenham sido distribuídas 28 milhões de cestas básicas em 1998, essa iniciativa governamental, armou Lavinas, possui cobertura relativamente baixa (atende apenas 20% dos 30 milhões de indigentes). Em sua conclusão, a pesquisadora armou que “programas de distribuição gratuita de alimentos possuem cobertura e focalização decientes, baixa ecácia, em razão de conferir aporte calórico irrisório, e reduzida eciência econômica. Na sua opinião, seria preferível a alocação direta de renda para as pessoas indigentes” (ibidem, p. 28).  Na seqüência, falou Roberto Borges Martins, presidente do Ipea, com um discurso que seria consagrado nas posições políticas do presidente e do relator  da Comissão. Na opinião de Martins, o Brasil não é um país pobre, mas desigual. Apesar dos problemas econômicos experimentados nas últimas décadas, o PIB per capita brasileiro cresceu signicativamente, de R$2.811,00 em 1970  para R$5.245,00 em 1980, e chegou a R$5.500,00 em 1998 (...). Na realidade, o Brasil possui um número de carentes em dimensão desproporcional ao seu poder econômico. (...) De acordo com o padrão internacional de relação entre renda per capita e proporção de pobres, o país deveria ter na pobreza contingente inferior a 10% de sua população, embora o percentual atinja

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Após apresentar inúmeros dados sobre a desigualdade no país, Martins buscou denir as medidas de pobreza, em particular os conceitos de “linha de indigên cia” e “linha de pobreza”. O primeiro, que também chamou de “linha da fome”, representaria o valor da renda mensal de que cada pessoa necessita para satisfazer  suas necessidades alimentares, com base no custo do mínimo calórico imprescindível para a sobrevivência. Em geral, lembrou Martins, estabelecem-se “linhas de indigência” diferenciadas, segundo a diversidade dos hábitos alimentares e a desigualdade dos preços das cestas básicas das regiões brasileiras. A “linha de pobreza”, por sua vez, demarca o mínimo de renda i mprescindível  para a alimentação e para todas as outras necessidades pessoais básicas. Segundo o  presidente do Ipea, uma regra comumente utilizada considera ser o valor da “linha de pobreza” duas vezes superior ao da “linha de indigência”. Martins preocupou-se em demonstrar a arbitrariedade das diversas “linhas de  pobreza”, uma vez que estas dependem dos indicadores utilizados pelo pesquisador. Isso explicaria os resultados diferentes obtidos sobre o número de pobres no Brasil. (...) Em 1977, o país tinha 44 milhõ es de pobres, número menor que o do início daquela década. As elevadas taxas de crescimento econômico vericadas ao longo dos anos 1970 zeram a pobreza reduzir-se, embora a taxas inferio res às que poderiam ser alcançadas se a desigualdade, concomitantemente, houvesse diminuído. Em 1984, o contingente de pobres atingiu o máximo de 65 milhões, seguido da redução decorrente do Plano Cruzado. O retorno da inação, entretanto, tornou tal diminuição insustentável, fazendo o índice situar-se em 63 milhões nos anos nais da mencionada década. Entre 1993 e 1995, o total de pobres decresceu de 62 para 52 milhões, como resultado da aplicação do Plano Real no segundo semestre de 1994. Nos anos de 1996 e 1997, a população de pobres estabilizou-se no elevado patamar de 53 milhões (ibidem, p. 29-30).

 Note-se que a pobreza é contabilizada a partir da década de 1970. O que aconteceu antes disso simplesmente não aparece nos cálculos. Tal naturalização, que não levou a nenhum tipo de questionamentos, serviu para Martins concluir que a década de 1970 teria ensinado que o crescimento econômico é insuciente para eliminar a pobreza, pois, sem concomitante redução das desigualdades, induziu a limitadas mudanças sobre o contingente de pobres, fazendo seu número cair muito lentamente. O próximo expositor da primeira Audiência Pública da Comissão foi Ricardo

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Paes de Barros, diretor de Políticas Sociais do Ipea, que defendeu que o Brasil é  pobre porque historicamente não deu a atenção devida à educação. No plano das  políticas de combate à pobreza, defendeu a necessidade de medidas capazes de induzir mudanças em longo prazo e de ações de efeito imediato. No primeiro caso, o aumento da capacidade dos pobres gerarem renda, ou, em linguagem econômica, dando-lhes ativos: “terra, capital e educação na mão dos pobres”. Em curto  prazo, operando substancial transferência de renda, a m de a pobreza existente  poder ser compensada. Na opinião do palestrante, tais medidas são exeqüíveis e de baixo custo. Para Barros, a política de abertura da economia e o término da inação já teriam esgotado suas possibilidades, reduzindo em 3% a pobreza. Quanto ao aumento do salário mínimo, armou que a majoração da ordem de 50% do seu valor  implicaria numa subtração de apenas 2% no contingente de pobres, porquanto quem ganha salário mínimo no setor formal não seria pobre. Da mesma forma, se todo desempregado tivesse trabalho assegurado com os salários ora vigentes no mercado de trabalho, o número de pobres passaria de 33% para 30%. Essa redução é considerada pouco signicativa por Borges, uma vez que o “pobre típico” se encontraria nesta situação de pobreza em conseqüência de ter um posto de trabalho com pouco capital físico e possuir baixo capital humano, de ocupar   posto de trabalho de baixa qualicação e ser insucientemente qualicado. As mudanças nos indicadores de pobreza seriam signicativas, no entanto, se houvesse investimento maior na educação. Para Borges, a garantia de cinco anos de escolaridade para todo brasileiro faria o nível de pobreza diminuir em 6%, enquanto os oito anos de educação fundamental permitiria queda de 13%. Esse último percentual equivaleria a crescimento econômico anual de 4,5% por  15 anos, ininterruptamente. O economista concluiu sua exposição armando que dos R$130 bilhões destinados anualmente à área social, apenas 10% chegariam aos pobres, o que signicaria que para acabar com a pobreza não haveria necessidade de aumentar  impostos, nem de tirar recursos de outras destinações, mas de “focalizar” mais adequadamente os gastos sociais. De acordo com o palestrante, o governo gasta com transferência a idosos volume incomensuravelmente maior de dispêndios do que com creches, tornando previsível o aumento de pobreza nas próximas gerações. De outra  parte, o seguro-desemprego não benecia as pessoas situadas no estrato dos 30% de menores rendimentos, que são os efetivamente pobres. Finalmente, o PIS/Pasep benecia o trabalhador do setor formal cujo salário no ano anterior  situou-se entre um e dois salários mínimos, pessoas que não se situam e ntre os pobres (ibidem, p. 33).

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A exposição de Barros consagrou a expressão “focalização” nos trabalhos da comissão. A partir daí haveria um consenso entre os representantes da base governista de que os gastos sociais do governo eram sucientes, apenas estavam mal focalizados. Pelo Ipea também participaram das reuniões de audiência pública as pesquisadoras Ana Maria Peliano e Sonia Rocha. A primeira defendeu programas de combate à pobreza globais e intersetoriais e a segunda fez considerações a respeito da metodologia de elaboração de “linhas de pobreza”, concluindo que o combate à  pobreza deveria ter dois enfoques: um voltado para o mercado de trabalho e outro relacionado à distribuição de renda. Outro conjunto de audiências públicas teve como expositores intelectuais ligados às principais universidades do país: os economistas Rodolfo Hoffmann (Unicamp), Paul Singer (USP) e José Márcio Camargo (UFRJ) e a assistente social Aldaíza Sposati (PUC/SP). Hoffmann apresentou à comissão sua metodologia de mensuração da pobreza e os resultados em termos de quanticação do número de  pobres. Singer discorreu sobre o que considera as causas da pobreza no Brasil: a não-propriedade dos meios de produção ou de riqueza nanceira acumulada, falta de qualicação prossional demandada pelo mercado e falta de emprego, mesmo que de baixa qualicação. Paul Singer identicou a existência de duas categorias de pobres no Brasil: os pobres hereditários, ou estruturais, que vêm de gerações de pobres; e os pobres novos, ou conjunturais, gerados pelos diversos ciclos de recessão econômica experimentados nos últimos anos. O combate à pobreza, para ele, deveria partir  da concessão daquilo que os pobres não dispõem, de forma a livrá-los do círculo da pobreza: implementação efetiva da reforma agrária, expansão da concessão de microcrédito, apoio à formação de cooperativas de trabalhadores, em especial as que sucedem empresas pré-falidas, investimentos pesados em educação e, com relação ao emprego, mudanças de rumo na política econômica. Singer defendeu o estabelecimento de uma renda cidadã, de natureza universal. Segundo o economista, os custos para garantir programas focalizados diretamente nos pobres seriam tão altos que uma renda cidadã universal sairia mais barato, considerando o estabelecimento de mecanismos de reversão aos cofres públicos da renda concedida aos que dela não precisassem. Márcio Camargo apresentou à comissão um diagnóstico da situação da pobreza no Brasil, bem como propostas direcionadas a solucionar o problema. Partindo do conceito de pobreza como ausência de renda, concluiu que a principal razão para o elevadíssimo contingente de pobres no Brasil é a pouca educação. Analisando os gastos sociais do governo, Camargo armou que o problema não seria o montante global de gastos, mas a errônea focalização dos mesmos. Apresentou dados que  buscam indicar que mais da metade dos gastos sociais são direcionados para os

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40% mais ricos da população, problema que se vericaria em todos os setores da área social. Em seguida, o economista armou que são necessários apenas 5% do PIB para erradicar a pobreza, valor a ser obtido retirando-se dos programas sociais metade dos recursos que os 40% mais ricos da população se apropriam. Com este fundo, o governo deveria implementar um amplo programa de renda mínima aliado à  bolsa-escola. Aldaíza Sposati, por sua vez, enfatizou ser impossível obter sucesso num  programa de erradicação da pobreza sem impor mudanças no modelo econômico concentrador, por meio de reforma tributária, salarial e fundiária. Tal programa deveria denir uma concepção de pobreza e, assim, identicar a população de  pobres a ser objeto das políticas públicas e localizá-la geogracamente, superando a idéia de que esta se encontra apenas em algumas regiões do país. Apresentando resultados de pesquisas realizadas na cidade de São Paulo, Sposati defendeu 28 que o combate à pobreza não se pode reduzir ao objetivo de superar a carência de renda, uma vez que a mesma estaria associada à precariedade da infra-estrutura e dos serviços públicos de que dispõem os segmentos excluídos da sociedade. Avaliando a política de assistência social do governo, Sposati questionou a inclusão dos recursos da Previdência Social nos gastos sociais, dos quais representariam cerca de 70%. Armou predominar no Brasil a cultura de que para o  pobre qualquer coisa serve, como bem demonstraria o fato de a cesta básica distribuída pelo Prodea ter cada vez menor número de produtos e mais baixo aporte calórico. Tal cesta, armou, vem crescentemente se afastando do padrão mínimo de 2.200 quilocalorias diárias preconizado pelo Decreto-Lei n° 399, de 1938, e atualmente propicia apenas 555 quilocalorias diárias, embora freqüentemente seja distribuída não para cada membro da família, mas para toda a unidade familiar. Em relação aos benefícios de prestação continuada e ao programa de atendimento das crianças em condição de vulnerabilidade, considerou-os de baixa cobertura e de irrisórios gastos  per capita. Para Sposati, do ponto de vista da transferência de renda, esses mecanismos de atuação do poder público seriam inócuos. Representando o governo, estiveram na comissão Augusto de Franco, secretário do Programa Comunidade Solidária; Raul Jungmann, ministro extraordinário de Política Fundiária; Wanda Engel, secretária de Assistência Social; Paulo Renato Souza, ministro da Educação e Pedro Malan, ministro da Fazenda. Augusto de Franco propôs a substituição do conceito de pobreza baseado em  patamar mínimo de renda por uma conceituação que envolvesse a vulnerabilidade e a exclusão social. Defendeu também políticas públicas capazes de propiciar o “desenvolvimento sustentável” dos segmentos empobrecidos da população, o que não seria possível apenas mediante o crescimento econômico e o aumento de renda. Raul Jungmann buscou demonstrar que o problema fundiário nacional tem

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raízes históricas, para armar em seguida que temos hoje no Brasil menos uma questão fundiária clássica e muito mais uma questão de pobreza rural. Segundo ele, os 34 milhões de habitantes do campo formam uma população economicamente ativa de 18 milhões, da qual oito milhões sobrevivem sem ocupação ou em trabalhos precários, muitas vezes sem a contrapartida de renda monetária. De qualquer  maneira, armou, a reforma agrária representaria uma estratégia para a redução da  pobreza rural brasileira, pois, além de criar empregos a custo muito mais baixo do que o do setor formal da economia, consegue manter a renda média do assentado acima daquela do trabalhador rural brasileiro, inclusive do assalariado. Wanda Engel apresentou os programas que o governo vem desenvolvendo  para combater a pobreza e a exclusão social no Brasil. Considerando a pobreza uma questão de carência de renda, de cultura e de não-acesso a serviços públicos  básicos, defendeu a disponibilização desses fatores como caminho para combater  a miséria, o que deveria ser empreendido tendo como foco a família e as seguintes faixas etárias de proteção: crianças de 0 a 6 anos, de 7 a 14 anos, jovens e idosos. Paulo Renato Souza, a partir da referência aos estudos do Ipea que armam que o fator individualmente mais signicativo para a erradicação da pobreza é a educação, buscou demonstrar os avanços que estariam ocorrendo na área: número de alunos matriculados; o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef); merenda escolar; o Programa de Garantia de Renda Mínima (PGRM) e o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil (Peti), gerido pela Secretaria de Ação Social do Ministério da Previdência. Pedro Malan começou sua exposição fazendo um breve histórico de sua carreira intelectual e prossional, no Ipea e no Banco Mundial, destacando trabalhos de sua autoria favoráveis à distribuição de renda. Lembrou que na Cúpula Social de Copenhague, os países membros se comprometeram a reduzir a miséria absoluta em seus países em pelo menos 50% até o ano 2015. Segundo Malan, o Brasil teria condições de ultrapassar tal meta antes do prazo estipulado, uma vez que um dos  principais pré-requisitos para tal empreitada já teria sido atingido, o m da inação. Em relação às condições efetivas para o Brasil erradicar a miséria, Malan defendeu que o caminho seria redirecionar os atuais gastos sociais. Segundo ele, o Brasil gasta cerca de 21% do PIB na área social. O problema, assim, estaria na composição e má focalização desses gastos, que seriam apropriados, em grande  parte, pela camada menos pobre da população. Pela sociedade civil, estiveram na comissão Cristovam Buarque, dom Mauro Morelli e Valdir de Araújo Dantas (representante da Federação Nacional de Apoio aos Pequenos Empreendimentos). Cristovam Buarque, único expositor aplaudido  pelos parlamentares, apresentou uma proposta concreta para erradicação da miséria no Brasil, quanticando inclusive os recursos necessários. 29 Ao dar início à sua exposição, trouxe para o debate a relação existente entre pobreza e escravidão.

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Eu vim com a sensação de que estava voltando no tempo, talvez 150 anos atrás, para participar de um debate sobre a Abolição da escravidão no Parlamento, como se chamava então. E, ao mesmo tempo em que vinha uma  profunda tristeza de ver que 150 anos depois nós temos que discutir um tema que está relacionado com a escravidão, senão com a escravatura, mas pelo menos com a escravidão, eu co satisfeito de ver que nalmente esse tema chegou em profundidade a essa casa. E quero, com a minha fala, tentar romper  algumas coisas. Primeiro, analisar por que cento e tantos anos depois do m da escravatura continuamos com a escravidão. Depois de uma lei tão simples assinada por uma princesa, que dizia abolida a escravatura, (...) continuamos com milhões de brasileiros condenados à pobreza e, portanto, a uma forma de escravidão (Cristovam Buarque, 16/9/99, notas taquigrácas disponíveis no site do Senado Federal).

Cristovam defendeu que erradicar a pobreza seria fazer uma nova abolição, 110 anos depois da primeira. Para tanto, haveria um interesse da própria elite. A elite brasileira cansou de ter pobres em seu território. Como pobre não evapora, como a ética não permite evaporá-los forçosamente, por mais perversa que seja, a elite brasileira, por seus interesses imediatos, está disposta a fazer aqueles sacrifícios para erradicar a pobreza, pois se beneciará disso. A mesma coisa houve com a escravidão, que foi abolida em grande parte  porque nossa elite cansou da escravidão, cansou pela má imagem no exterior, cansou pelo custo de evitar as fugas, as rebeliões e manter os escravos que cavam velhos (idem ibidem).

Ao creditar à lógica econômica a causa da pobreza no país, Cristovam procurou demonstrar que o problema da pobreza estaria ligado à sua própria conceituação. Para ele, a conceituação de pobreza não deveria ser referida a insuciência de ren da, mas a algo mais amplo, como o não-acesso aos serviços e produtos essenciais. Pobreza não é ganhar pouco; pobreza é não ter os serviços e produtos essenciais que caracterizam a pessoa que não é escrava da pobreza. Fico angustiado quando vejo a tal da linha da pobreza. Não sei nem em quanto está em reais. O que faz uma pessoa estar abaixo da pobreza não é ganhar  menos que R$100, R$200 ou R$300. É o fato de o seu lho não ter escola, muito menos de qualidade, sua família não ter saúde, a água que bebe não ser limpa e o futuro dele não ser assegurado (idem ibidem).

Seguiu-se um debate com o senador Eduardo Suplicy, também economista, que defende a ocialização da denição de linha de pobreza no Brasil, citando em

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sua defesa o trabalho de James Tobin e discussões que teve com o professor Anthony Atkinson, da Universidade de Oxford e com o laureado economista indiano Amartya Sen. Para Suplicy, a linha de pobreza deve ser um índice do sucesso ou não das políticas públicas de combate à pobreza. A preocupação do senador paulista com a existência de referido indicador remete, por sua vez à sua defesa inconteste de uma renda-mínima universal para cada cidadão. As administrações serão julgadas pelo seu sucesso ou falha na redução da  prevalência da pobreza medida ocialmente. Enquanto uma família for encontrada abaixo da linha de pobreza, nenhum político será capaz de anunciar  vitória na guerra contra a pobreza ou ignorar o conhecimento das obrigações da sociedade para com seus membros mais pobres (Eduardo Suplicy, 16/9/99, notas taquigrácas disponíveis no site do Senado Federal).

Dom Mauro Morelli, bispo de Caxias (RJ), destacou em sua exposição a importância da solidariedade, lembrando que uma das maiores virtudes da Ação da Cidadania, contra a Fome e a Miséria e pela Vida, idealizada por Herbert de Souza, foi concorrer para o Brasil crescer em humanidade. Referiu-se também à necessidade de medidas urgentes para combater a desnutrição infantil e efetivar a reforma agrária. O religioso ponderou que uma das principais missões da comissão deveria ser oferecer ao país um instrumento legal de avaliação dos custos sociais das medidas econômicas, além de criar mecanismos que garantam, no Orçamento da União, os recursos necessários para implementar as ações consideradas imprescindíveis no combate à pobreza.  Num balanço dos trabalhos da comissão, acredito que ela não conseguiu realizar o que esperava a senadora Marina Silva. Criou-se um fundo, mas sob controle do governo. Além disso, a sonhada participação da sociedade civil não aconteceu, embora tenham sido realizadas reuniões na Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) em que se tentou convencer as entidades presentes de que participar  da comissão não seria apoiar uma iniciativa de Antonio Carlos Magalhães. Marina Silva encontrou essa mesma diculdade de convencimento entre seus colegas de  partido. Em 31 de outubro, a senadora publicou no jornal  Folha de São Pauloum artigo intitulado “A miséria e a pobreza da política”, onde armou que um dos  principais entraves ao m da pobreza estava na pobreza política. O combate à miséria pára aí, na política ultrapassada, incapaz de cumprir seu  papel de fazer a sociedade funcionar em bases equânimes. (...) Se combater  a pobreza socioeconômica é urgente, combater a pobreza política também o é. São lutas interdependentes. (...) É nesse caldo de cultura fertilizado por  descrença, apatia, cultura da vantagem e moralismos que morrem as soluções

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 para os pobres. Veja-se o caso de algumas críticas à comissão que propus ao Congresso, para buscar soluções para a luta contra a pobreza. Utilizei o impacto do projeto do senador Antonio Carlos Magalhães de um fundo para erradicar a pobreza. Não me importa quem está na luta contra a pobreza, desde que seja luta permanente, no topo da agenda de muita gente, e envolva, voluntariamente ou por pressão, quem tem poder para decidir. Estou entre os que acham que o modelo em si é gerador de pobreza e, portanto, teríamos de mudar o modelo, o sistema, o mundo. Mas, quando isso é dito como  justicativa para não colocar a mão na massa já é de uma irresponsabilidade monstruosa. A morte de um ser humano pela fome e as chances de vida de crianças serem ceifadas por falta de condições até decrescimento físico são crimes. E há responsáveis. Em primeiro lugar, os que exercem poderes  públicos e deixam a pobreza para o m da la das prioridades (Silva, 1999).

Marina Silva esperava três produtos da comissão: a própria discussão sobre  política e suas conexões com o interesse social; leis que facilitassem o combate à miséria e um impulso para articulação permanente sociedade-Congresso-Executivo na garantia de recursos para o curtíssimo e o longo prazo. Propôs para isto a criação de um “Orçamento Social”, projeto que tem levado adiante após os términos dos trabalhos da Comissão Mista. Marina concluiu seu artigo armando que, da mesma forma que a pobreza nunca esteve no centro das decisões por causa da política, só estará nele por meio desta mesma política.  No Relatório Final, Fernando Brant (PFL/MG) concluiu que “os programas sociais públicos estão mal focalizados nos mais pobres” (Congresso Nacional, 1999:101). Armou, ainda, que “é possível eliminar a pobreza sem a necessidade de qualquer aumento no volume total de gastos na área social e que a solução do  problema da pobreza depende mais do aperfeiçoamento das políticas públicas do que da elevação dos gastos” (Congresso Nacional, 1999:101).  Naquela ocasião, o Bloco Parlamentar de Oposição criticou o Relatório por, no seu entender, ter optado por apenas sugerir a criação de um Fundo que aumenta a carga tributária dos contribuintes. Num Voto em Separado, defendeu seu ponto de vista sobre a questão da pobreza. Para isso, partiu da quanticação, tendo como vetor o salário mínimo, concluindo que no Brasil 44 milhões de pessoas sobrevivem em condições extremamente precárias, com uma renda mensal inferior a meio salário mínimo, tomando como base o trabalho de um dos expositores, o prof. Hoffmann, da Unicamp. Como nos trabalhos da Comissão, a visão da Oposição no Voto em Separado não foi unitária. Parte dela partiu do pressuposto de que a pobreza não é um fenômeno isolado, conjuntural ou residual, que possa ser resolvido pela via lan trópica ou assistencialista, nem constitui uma “deformação” do funcionamento da

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economia e da sociedade brasileiras. P elo contrário, defendeu que a pobreza, assim como a desigualdade e a exclusão social, é uma manifestação inerente à dinâmica de um mesmo processo – o desenvolvimento e funcionamento do capitalismo nas condições especícas da realidade brasileira. Em conseqüência, o seu discurso se  baseia na transformação das estruturas, onde: A natureza destes fenômenos só pode ser plenamente apreendida em sua relação com os fatores estruturais que determinam a geração e reprodução contínua, sob diferentes modalidades em cada fase da nossa evolução histórica, dos estados de pobreza e marginalidade social (Voto em Separado, 1999).

Chama a atenção que setores da esquerda também busquem no passado as explicações para a magnitude atual da pobreza. Se o governo o faz para justicar  a diculdade em acabar com um problema que existiria a 500 anos, estes setores o fazem para identicar neste passado a origem das mazelas sociais do Brasil, de forma a modicá-las. As características estruturais da sociedade brasileira, marcada pelo passado colonial e escravocrata – um padrão de inserção externa subordinada e de pendente e uma organização social interna calcada no monopólio da terra, na concentração brutal da riqueza e em profundas desigualdades sociais e regionais –, embora tenham assumido expressões distintas pari passu às transformações no sistema de produção, não alteraram seus elementos constitut ivos essenciais. (...). Em síntese, as relações de produção que se estabelecem ao longo do tempo, apesar das modicações no contexto social (urbano e rural) e político, tenderam a preservar e reproduzir os elementos de heterogeneidade e polarização da estrutura social, que são os determinantes imediatos dos fenômenos de pobreza, desigualdade e exclusão social (idem ibidem).

 Nesta perspectiva, consideram que o eixo central da problemática da pobreza é a desigualdade na distribuição da riqueza e, em grande medida como subproduto desta, a concentração da renda. Outros vetores – a estrutura altamente regressiva do sistema tributário vigente no país, o padrão de acumulação historicamente  baseado no arrocho salarial, o mercado de trabalho fundado na precarização do emprego, o padrão de gasto público que reproduz a exclusão social, o baixo grau de escolaridade, a precariedade do ensino público e os efeitos da inação, por  exemplo – apenas amplicariam e realimentariam o processo de concentração e polarização da estrutura distributiva. Neste contexto, conclui, a pobreza é “a expressão extrema da desigualdade social” (idem ibidem). Mesmo não excluindo a possibilidade de implementação de medidas e programas especícos, para aliviar de imediato a crítica situação em que se encontram os

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setores mais carentes da sociedade, tal discurso não abre mão de uma simultânea  posta em marcha de um conjunto de políticas e ações direcionadas a iniciar a implantação de “um novo modelo econômico e social , o que implica um esforço sustentado em duas linhas convergentes: a modicação dos parâmetros estruturais, ligados à organização interna da economia e à sua forma de relacionamento com o exterior, que moldam os padrões de produção e consumo, a dinâmica de crescimento e acumulação de capital e a distribuição da renda e da riqueza; e o estabelecimento de um novo patamar de desenvolvimento democrático através da redistribuição do poder político e do desenvolvimento de mecanismos de participação e controle social da população sobre o manejo da coisa pública” (idem ibidem). É bastante claro em que momento do Voto em Separado se dá a transição  para o discurso de outros setores de esquerda, que seguem o rumo das reexões de Josué de Castro e de Herbert de Souza. Começam a surgir reexões que indicam que combater a pobreza signicaria criar condições de “cidadania” e de “inclusão social”. Com o objetivo de construir uma economia de justiça e solidariedade, é  proposto que as funções públicas deveriam assumir a centralidade da reconstituição da “solidariedade social”, buscando a republicização do Estado e novas formas de  parceria entre Estado e sociedade civil. Como política de transição para este novo modelo, é proposto um conjunto de ações (“uma cesta básica de direitos sociais”) a partir do qual seja possível “erradicar a pobreza e promover a inclusão social”. O Voto em Separado, a partir daí, torna-se bem mais propositivo. Existe nele a determinação em transformar “ a multidão de excluídos” em produtores, consumidores e cidadãos, através de “ um novo modelo de desenvolvimento”. Coerente a esta visão, “os investimentos devem ser canalizados para a produção de um amplo mercado de consumo de massas”. A China é o paradigma desse novo modelo: um amplo mercado de consumo de massas e serviços públicos essenciais al avancaria o mercado interno, permitindo um crescimento econômico sustentável e acelerado. Defende que o país dispõe dos recursos para empreender este processo de transformação, desde que a estratégia de transição envolva um esforço convergente em três planos interligados: ações direcionadas a grupos carentes ou vulneráveis que têm o propósito de enfrentar os problemas críticos de insuciência de renda e de precariedade de serviços sociais básicos; as políticas de retomada do crescimento econômico, a partir do qual se reconstruirão as bases materiais para a universalização das políticas públicas; e as reformas estruturais, centradas na democratização do Estado e da propriedade e na transformação do social no eixo da política de desenvolvimento nacional. 30  Não obstante a riqueza quantitativa de discursos e representações sobre a po breza, os trabalhos da comissão foram extremamente pobres em termos de dados qualitativos. Os discursos e representações apresentados pouco têm a ver com aqueles produzidos pelos autores que pensara m o Brasil nos séculos XIX e meados

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do século XX. Houve espaço, é certo, para as propostas de inspiração marxista e  para aquelas que ressaltaram noções como “cidadania”, “solidariedade” e “participação”. Mas, independentemente de ideologias, tratou-se naquela comissão de uma pobreza passível de ser calculada, registrada e visitada. Sobretudo, cou claro a consagração da representação numérica da pobreza (“linha da pobreza”, “linha da indigência”, “número de pobres” etc.), tratada como se imune fosse à teoria ou às interpretações. Com honrosas exceções, o que se viu na comissão foi o predomínio absoluto de um discurso vindo de fora, notadamente dos organismos internacionais, tratando de uma “pobreza” vazia de signicados. Uma “pobreza” que precisa ser “focalizada”, com o uso de indicadores universais. “Focalizada”, “monitorada” e “controlada”, a comissão tratou de uma “pobreza” conceitual, distante das narrativas e descrições dos trabalhos clássicos do pensamento social brasileiro, distante dos debates sobre raça e doença, sobre fome e clima. Nem o poderia fazer, uma vez que a matriz utilizada delimita historicamente as reexões aos anos setenta do século XX. Sobretudo, a comissão demonstrou a consagração de uma visão da “pobreza” como um “problema”. Melhor dizendo, como um “problema técnico”, capaz de ser contornado com focalizações e redistribuições orçamentárias. Retomo, mais uma vez, as reexões de Poovey para armar que o que observei, nos trabalhos da comissão, foi uma aceitação naturalizada da relação entre números e realidades observadas, de tal forma que as últimas não precisavam ser descritas ou narradas.  Não é à toa que o que sobrou de seus trabalhos foram justamente os números. Sabemos que vivem hoje no Brasil “x” milhões de brasileiros indigentes e “x” milhões de pobres, número que varia conforme o indicador utilizado. Um resultado muito  pobre para os trabalhos de uma comissão que poderia, no nal do século XX, ter  acumulado a riqueza e a diversidade de mais de 100 anos de reexões e debates  políticos e acadêmicos sobre o tema.

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urbano” no Brasil, no qual estudou a pobreza como uma questão estrutural e não como um  problema social. Nele, a pob reza é percebida como um elemento que é intrí nseco a um modo  particular de construção do mundo. Da mesma forma, o pobre não é estudado como um segmento separado do resto da sociedade, e sim como um ator dinâmico na perpetuação de um conjunto de valores e como parte essencial de um sistema que não pode funcionar sem ele. Dentro de um triângulo relacional que une os pobres, o Estado e a sociedade, Matta buscou identicar como a sociedade os classica e controla, a natureza de suas relações com outros setores e o papel do Estado nesse processo. Para isso, centralizou seu estudo nas entrevistas com “pobres urbanos”, chamando a atenção para as similaridades entre suas expectativas e a dos ricos, membros da mesma sociedade (Matta, 1995:1). 4 O resultado obtido apontou

para a existência, em 1988, de cerca de 14% da popu lação brasileira vivendo com renda inferior à linha de i ndigência e 33% em famílias com renda inferior à linh a de  pobreza. Ou seja, cerca de 21 milhões de brasileiros classicados como indigentes e 50 milhões como pobres. Tal desigualdade de renda, “tão parte da história brasileira que adquire fórum de coisa natural” (Barros et alii, 2000:131), torna-se ainda mais impressionante quando os autores do trabalho, através da apresentação de dezenas de grácos e tabelas, demonstram que apenas a África do Sul e Malawi têm um grau de desigualdade maior que o Brasil (ibidem, p. 132).  No período analisado, os indiv íduos brasileiros que se encontravam entre os 10% mais ricos da  população se apropriavam de cerca de 50% do total da renda das famílias. No outro extremo, os 50% mais pobres da população detinham pouco mais de 10% da renda. O grupo dos 20% mais  pobres se apropriava somente de cerca de 2% do total da renda. Por m, o trabalho arma que os 1% mais ricos da sociedade brasi leira concentravam uma parcela da renda superior à apropriad a  pelos 50% mais pobres (i bidem, p. 137). 5 Conforme site do Nied na Internet, “o diálog o entre abordagens disciplinares do tema é escasso,

frustrando o que poderia – e deveria – ser uma colaboração profícua entre especialistas. (...) Tendo em conta que a desigualdade se evidencia tanto nas apresentações dos grácos e tabelas quanto nos estudos em profundidade, a importância do diálogo entre especialistas torna-se incontestável. Além disso, se as manifestações das desigualdades são tão efetivas nas condições materiais de vida como nas maneiras pelas quais os indivíduos se pensam e concebem seus projetos de vida, a interação entre as dimensões material e simbólica é aspecto importante na compreensão dos  padrões d e desigu aldade que caracterizam uma socied ade” (http//www.nead.gov.br). 6 No

Notas 1 Zaluar

(1999) observou que, na mesma década, teria surgido a primeira dicotomia entre os estudiosos do tema. De um lado, estaria a chamada “esquerda penal”, que denunciava a miséria, a perda do poder de ganho do salário, a exploração, a ausência de investimento na educação e na saúde, e seu papel no aumento da violência. Do outro lado, uma “direita” que insistia em analisar a questão institucional, inclusive as práticas policiais de violência contra os pobres. 2 As manifestações acontecem no Brasil, Paraguai, Uruguai, Argentina, Chile,

Equador, Colômbia, Bolívia, México, Guatemala, Honduras e Costa Rica. No ano 2000, uma delegação de cada país entregou um documento à ONU, em Nova York, sobre a situação de exclusão em seus países, apontando o tipo de globalização que desejam: dos direitos, da tecnologia, da informação e da solidariedade (Tamayo, 2000:25). 3 Em

trabalho pouco divulgado no Brasil, Matta fez “um relato antropológico” sobre o “pobre

XXV Encontro Anual da ANPOCS, um dos seminários temáticos chama-se justamente “A contribuição do método quantitativo para a análise de processos de estraticação e mobilidade social no Brasil”, sob a coordenação de Neuma Aguiar (UFMG) e Archibald Haller (UFMG e Universidade do Winsconsin-Madison). 7A

base de dados do projeto foram estudos realizados em 23 países: Argentina, Bangladesh, Bolívia, Bósnia Herzegovina, Brasil, Bulgária, Equador, Egito, Etiópia, Gana, Índia, Indonésia, Jamaica, Kyrgyz Republic, Malawi, Nigéria, Rússia, Somália, Sri Lanka, Tailândia, Vietnam, Uzbekistan e Zambia. O projeto tem como princípio que the poor are the true poverty experts (Narayan, 1999:1). Descreve, na seqüência, como “the poor people” percebem uma vida boa (“wellbeing”) e uma vida ruim (“ill being”). A vida boa é apresentada em cinco dimensões: material, física, liberdade de ação e escolha, segurança e social. Na segunda parte, o trabalho analisa os cinco problemas apresentados como característicos da vida ruim: corrupção, violência, falta de poder, incapacidade e meios de vida básicos. Finalmente, apresenta os cinco caminhos para mudança: (a) da corrupção à honestidade e justiça; (b) da violência para a paz e eqüidade; (c) da ausência de poder à uma “grassroots democracy”; (d) da fraqueza à capacidade de ação; (e)

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174 da subsistência básica ao patrimônio e segurança. 8 Até

o surgimento do IDH, os países eram divididos entre ricos e pobres de acordo com seu  produto interno bruto. O novo índice se propõe a medir a qualidade de vida da população. Sobre os diversos indicadores para medir a pobreza, ver “As dimensões da pobreza”, no Observatório da Cidadania nº 1, 1997, p. 15-19. 9 Respectivamente

“desenvolvimento relacionado com gênero” e “medidas de empoderamento

de gênero”. 10 Respectivamente, “sem trabalho”, “sem voz”, “sem esperança”, “sem raízes” e “sem futuro”. 11 Essas

acusações, que já existiam durante os programas do Fundo durante a crise da dívida da América Latina, na década de 1980, voltaram com o crash global iniciado na Ásia em 1997 que desempregou, segundo as últimas estimativas do BIRD, cerca de 15 milhões de pessoas. ( Folha de São Paulo, 29/9/99). 12 Tal

mudança de atitude parece resultou de uma reavaliação interna da instituição, embasada nos resultados apresentados por uma empresa de consultoria, segundo os quais o Fundo estava  perdendo a batalha da opin ião pública  (Folha de São Paulo, 29/9/99). 13 Esse

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22 Referência ao deus romano Janus, que tinha duas faces: uma olh ando para trás para o passado;

outra olhando para a frente para o futuro. Deu origem ao nome do mês de janeiro. 23 O primeiro refere-se aos direitos sociais da população e o segun do ao valor do salário mínimo. 24 Atualmente

no PT.

25 Formados pelos senadores Casildo Maldaner, Jader Barbalho, Gilberto Mestrinho, Pedro Simon,

Gérson Camata, Alberto Silva, José Alencar, Marluce Pinto, Silva Jún ior, Roberto Requião, Amir  Lando e Agnelo Alves, pelo PMDB; Paulo Souto, Djalma Bessa, Juvêncio Fonseca, Eduardo Siqueira Campos, Maria do Carmo Alves, Freitas Neto, Romeu Tuma, Mozarildo Cavalcanti, Geraldo Althof e Hugo Napoleão, pelo PFL; Paulo Hartung (atual PPS), Romero Jucá, Osmar  Dias, Lúcio Alcântara, Geraldo Melo, Antero Paes de Barros, Sérgio Machado e Luiza Toledo,  pelo PSDB. Entre os deputados, pel o PMDB, Eul er Morais, Salati el Carvalho, Gastão Vieira, Coriolano Sales, Rita Camata e José Chaves; pelo PFL, Laura Carneiro, Cláudio Cajado, Marcondes Gadelha, Robson Tuma, Paulo Marinho, Ursicino Queiroz, Roberto Brant e Zila Bezerra; pelo PSDB, Feu Rosa, Eduardo Barbosa, Maria Abadia, Fátima Pelaes, Xico Graziano e Nelson Marchezan; pelo PPB, Eurico Miranda, Pastor Amarildo e Romel Anízio; pelo PTB, Félix Mendonça e Duílio Pisaneschi; pelo bloco PL-PST-PMN-PSD-PSL, Bispo Rodrigues.

documento, com base nos IDHs dos estados brasileiros, identica a existência de três “Brasis”: um constituído pelos estados do Rio Grande do Sul, Distrito Federal, São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro, Paraná, Mato Grosso do Sul e Espírito Santo, que apresenta elevado nível de desenvolvimento humano; o segundo formado pelos estados de Minas Gerais, Goiás, Mato Grosso, Rondônia, Amazonas, Roraima e Amapá, situados na camada superior do estrato de desenvolvimento humano médio; e um terceiro, reunindo Pará, Acre e todos os estados da região Nordeste, com nível reduzido de desenvolvimento humano (p. 4).

26 Foram

14 Na

do estudo de 49 variáveis, tais como situação habitacional, número de banheiros por casa, número de habitantes por banheiro, cômodos por habitantes, infra-estrutura, nível de rendimentos e esperança de vida.

apresen tação do  Relatório sobre o desenvolvimento humano do Brasil , registrei as ex pressões: “rigor analítico”, “análise isenta dos fatos”, “rigor intelectual”, “rigor metodológico”, “avaliação estrita dos fatos” e ausência de “posições pré-concebidas” (Pnud/Ipea, 1996:v). 15 Onde 16 A

“L” é longevidade, “E”, nível educacional e “R” é renda (idem ibidem, p. 151).

única diferenciação destacada é a de gênero.

17 Reunião

realizada em 30 de maio de 2000. Agradeço a Arthur Oscar Guimarães, Jane Maria Villas-Boas e Sérgio Sauer pelos informes e comentários sobre a mesma. 18 Participam

do Observatório da Cidadania (“Social Watch”) mais de 150 organizações não-governamentais de todo o mundo. Os relatórios anuais são publicados em inglês, espanhol, italiano e português. 19 Cabe

registrar que, em 1981, a Câmara dos Deputados criou a “CPI da Fome” (Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar as causas e conseqüências da fome, desnutrição e falta de saúde na população de baixa renda), da qual só tivemos acesso às notas taquigrácas de algumas reuniões. Segundo levantamento feito no Sistema de Informações Legislativas do Congresso Nacional, tal CPI não concluiu seus trabalhos. 20 A Comissão examinou 103 proposições com o tema da pobreza e propostas de mecanismos  para erradica-la ou dimin uí-la, em tramitação nas duas Casas do Congress o Nacional. Ver p. 102 a 143 do Relatório Final. 21 Atualmente

no PPS.

visitados os municípios de Escada (PE), Catende (PE), Água Preta (PE), São José da Tapera (AL), Jaramataia (AL), Campo Grande (AL), entorno de Brasília (DF), Águas Lindas (GO), Santo Antônio do Descoberto (GO), periferia de São Paulo (SP). 27 Criada

pelo Decreto-Lei n° 399, de 1938, cujos preços são pesquisados pelo Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese). 28 Sposati elaborou um índice de exclusão/inclusão, baseado em indicadores construídos a partir 

29 Foi

o seguinte o conjunto de medidas listadas: colocação de todas as crianças brasileiras na escola; melhoria da qualidade do ensino; construção de escolas; atendimento às crianças de 0 a 6 anos de idade; erradicação do analfabetismo; permitir que todas as crianças tenham 6 h/aula  por dia; incentivo à não-repetência escolar; ocupação de jovens; política para o pequeno produtor; saúde para todos; casa para todos e reforma agrária. Somando o custo de todas as medidas mencionadas, chegou-se ao montante de R$36 bilhões, o que representa 12% da receita atual do governo, 4% do serviço da dívida externa e 3,5% do PIB. Assim, de acordo com o expositor, está claro que os recursos para erradicar a miséria no Brasil existem (Congresso Nacional, 1999:36-37). 30

O o condutor de todo este esforço seria um “projeto de desenvolvimento sustentável”, democrático e socialmente responsável com as necessidades da população. Faz parte deste  projeto a democratização da propri edade e a reforma agrária, a política de emprego e renda, modernização seletiva, redução da jornada de trabalho, valorização do salário mínimo, reforma scal de caráter progressivo, reforma e consolidação da educação pública, fortalecimento da saúde pública, orçamento social e participação da sociedade, programas de segurança alimentar (combate à desnutrição infantil; assentamento das famílias sem-terra acampadas em todo território nacional), programas de transferência de renda (renda mínima: Bolsa escola; renda mínima: ampliação da cobertura da LOAS; seguro-desemprego e requalicação prossional),  programas de foment o à geração d e emprego e renda (frentes de trabalh o; Fundo Naci onal de

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Moradia e Habitação Popular; Economia Sol idária, Banco do Povo e Microcrédito; e programas de inclusão de trabalhadores jovens).

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Iniciei este trabalho certa de que o “problema da pobreza”, ou a pobreza como pro blema, é uma preocupação historicamente recente no Brasil. Procurei demonstrar  como, nos debates do nal do século XIX e das primeiras décadas do século XX, a mestiçagem era considerada o grande problema da população brasileira, assim como o clima, a doença, a tristeza ou a desnutrição. Pode-se até discordar destas linhas de investigação, com nossos olhos e arcabouços conceituais do nal do século, mas não se pode ignorar a importância que tiveram para a construção de um projeto de nação e de povo em sua época. Esse mesmo interesse pelos problemas nacionais levou ao questionamento de mitos como o da democracia racial e a criação de novos, como o da superação de todos os nossos problemas por meio de uma revolução socialista. Na verdade, tais superações não signicaram que os mitos anteriores tenham deixado de ser impor  tantes como possibilidades interpretativas. Da mesma forma, reexões importantes,  produzidas no âmbito da Igreja, de entidades não-governamentais, de organismos internacionais, do governo e da classe política, somam-se num caleidoscópio de discursos e representações sobre o Brasil onde a “pobreza” vai ser percebida de formas distintas. Identiquei, no decorrer do trabalho, duas formas de naturalização da “po breza”: a primeira, nas interpretações clássicas sobre o Brasil e a segunda no discurso dos organismos internacionais. Trata-se, no entanto, de formas distintas de naturalização. No primeiro caso, a naturalização está ligada ao fato da pobreza não ser considerada um problema nacional. Isto não impediu que fosse descrita, narrada e interpretada como conseqüência do clima, da mestiçagem, da doença, da desorganização social ou mesmo da falta de condições objetivas para uma revolução  popular. No segundo caso, a naturalização se dá em cima de uma noção de pobreza tecnicada e globalizada, sem passado e sem contextualizações.  Na introdução deste trabalho citei Bourdieu (1996), em relação à ecácia sim  bólica dos discursos políticos e intelectuais, capazes de construir e de classicar a realidade. Ciente também do papel da interpretação da realidade na construção da

realidade, preocupei-me em elucidar como se deu em nosso país a categorização da pobreza como problema nacional. Inspirada em Poovey (1998), quei atenta ao progressivo reconhecimento social da importância dos números, em detrimento da importância da política na interpretação da realidade, dentro de uma lógica de rompimento da conexão entre a descrição e a interpretação. Procurei demonstrar como as referências à pobreza vistas no primeiro capítulo estavam, em grande parte, embutidas em questões maiores. Assim, para José Bonifácio e Joaquim Nabuco, a natureza excessivamente generosa e a escravidão  produziam a pobreza. Alberto Torres relacionou as facilidades do clima à inexistência de uma organização nacional. Para Manoel Bomm, a pobreza era gerada  pela exploração da metrópole. Paulo Prado viu nos excessos sexuais e na ambição desenfreada os elementos fundantes de um país que não conseguia se construir como nação. Gilberto Freyre identicou uma relação direta entre o latifúndio escravista -monocultor e os problemas alimentares do Brasil colônia. Destaquei a importância da raça como fator explicativo para as mazelas do  país, conforme aparece em Nina Rodrigues, Euclydes da Cunha, Oliveira Vianna e Capistrano de Abreu, entre outros. As exceções, José Bonifácio, Nabuco e Bomm, apontaram para um projeto inclusivo de nação, com destaque para as reformas sociais, principalmente a distribuição de terras e a educação da população. Ainda em relação à raça, chamei a atenção sobre os projetos eugênicos, tão pouco conhecidos na atualidade. A “maldição de Couty”, tão repetida e consagrada, de que o Brasil não tinha  povo, se traduziu nas representações feitas sobre as populações pobres do Brasil, com uma recorrência de imagens espaciais das mesmas. Viviam “nos interstícios”, “à margem”, “ao lado”. Não viviam, “vegetavam”. Não eram pobres, eram “miseráveis”. Não tinham valor social, eram qualicadas como “párias” e preocupavam  por sua reprodução excessiva: “pragas” ou “formigas”, inimigos de qualquer   jardineiro zeloso. Sem terra e sem trabalho, precisando vagar em busca de novas áreas de cultivo ou de algum tipo de colocação, foram considerados “proletários nômadas” e “inúteis”, desnecessários para a economia e a sociedade colonial. Apareceram com destaque nestas categorias as populações rurais: os “caipiras”, “matutos” e “caboclos”, embora se zesse referência também aos “capangas”, “capoeiras” e “ébrios” urbanos. Sem esquecer a “plebe rude” e a “turba multa”, consideradas a mais baixa das classicações sociais. Chamei a atenção para o brilho intelectual de Manoel Bomm, que, embasa do provavelmente em experiências de vida (era lho de um sertanejo sergipano), defendeu o que considerava a autonomia das populações pobres e a validade de sua opção de não disputar trabalho com o escravo. Sylvio Romero também fez sua defesa das “gentes do centro”, categoria que incluía os grandes proprietários e

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conclusão

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os “caboclos”. Sobre estes últimos, sonhou com sua transformação em pequenos  proprietários agrícolas e em trabalhadores livres ligados à terra, através de uma remodelação da propriedade da terra e de uma “patronagem inteligente”. Sobretudo, Romero denunciou com insistência os gastos do governo em melhorias urbanas supéruas quando havia no país uma “pobreza vizinha da miséria”. Como Bomm, Romero tinha um conhecimento localizado que lhe permitiu mapear a distribuição da população pelo país e seus principais problemas. Mostrei como esse tipo de conhecimento empírico seria sistematizado pelas expedições cientícas da primeira década do século XX. Ao divulgarem seus resultados por relatórios e, principalmente, por fotograas que causaram grande impacto no público das capitais, revelou-se um povo brasileiro que Canudos já havia, em parte, tirado das sombras. Desses recém-revelados, no entanto, não se  poderia falar que eram “fanáticos”. Todos tinham nomes próprios, problemas de saúde que narravam claramente aos médicos e local xo de residência. No rastro desta revelação vieram outras, que demonstravam que no interior do país a cidadania era letra morta. Também cou claro que o clima, eterno vilão, não era o responsá vel pela pobreza do sertão, uma vez que a seca atingia sobretudo os mais pobres. Busquei demonstrar como, a partir daí, seriam mais freqüentes as preocupações com a pobreza da população, expressas em pensadores como Alberto Torres e Monteiro Lobato. Temas como habitação, educação, saúde e alimentação populares tornam-se recorrentes. Feitos os diagnósticos, apareciam os remédios: guerra ou revolução, reforma agrária, organização do trabalho, educação e saneamento. Lentamente, surgem as primeiras referências positivas às populações pobres do país. Isso tudo não signicou, no entanto, que “a pobreza” tornara-se um “problema” nacional. Apontei para a importância de uma novidade metodológica que daria novos rumos às visões ou retratos sobre o país vistos até aqui: o materialismo histórico de orientação marxista. Mostrei como, a partir de Caio Prado Júnior, se fortaleceu no Brasil uma linha interpretativa que reservou um espaço de honra para o trabalhador nacional. Trata-se de uma ruptura com os padrões anteriores, que os nega enquanto produtores de riquezas e os despreza enquanto raça. Mas as teorias marxistas privilegiaram apenas uma parcela da população pobre do país, aquela que se encontrava de alguma forma ligada à produção. Ficariam de fora os lumpens, ou seja, aqueles indivíduos que não conseguiram sair dos interstícios, agora entre a burguesia e o proletariado. Mostrei, no segundo capítulo, como Caio Prado Júnior, Josué de Castro, Roger Bastide, Florestan Fernandes, Costa Pinto, Antonio Candido e Maria Sylvia de Carvalho Franco trouxeram elementos novos de reexão, associados a novas metodologias de pesquisa, com ênfase no trabalho de campo. No capítulo nal deste trabalho, mostrei como a pobreza foi percebida em textos acadêmicos mais

conclusão

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recentes. De Florestan Fernandes (1964) a Vera da Silva Telles (2001), analisei 37 anos de discussões sobre problemas sociais brasileiros. Fazer um resumo deste  período é uma tarefa perigosa diante dos riscos inerentes a qualquer seleção de textos e autores. O resultado obtido aponta para uma seqüência de reexões que não necessariamente se sucedem, antes se sobrepõem, ampliando raios distintos de possibilidades analíticas. Busquei demonstrar como, nos anos 1960, as discussões sobre raça foram absorvidas por aquelas de classe e estrutura social. Na mesma década, os estudos marxistas produziram análises importantes sobre a dependência dos países pobres, a permanência do clientelismo/populismo no Brasil moderno e a formação de classes sociais. Neste último aspecto, como apontei, foram priorizados entre os  pobres aqueles que conformavam uma classe operária, ao mesmo tempo em que se  buscaram no campo sinais que evidenciassem o surgimento de um proletariado rural. Em seguida procurei demonstrar como, na década de 1970, havia uma certeza de que o problema da pobreza seria resolvido com a democratização do país. Daí a produção intelectual signicativa sobre os “novos movimentos sociais”. Mostrei também como a possibilidade de utilização da teoria marxista de uma forma mais exível impulsionou as pesquisas sobre campesinato, assim como aquelas que tinham como objeto as classes populares. Ainda nos anos 1980, analisei o trabalho de Alba Zaluar, marcante por ter  “os pobres” como objeto de análise. A importância fundamental de sua pesquisa está no contraponto que faz a teorias consagradas, que percebem as populações empobrecidas como culpadas pelo clientelismo, pelo siologismo, pelo populismo ou pela ausência de consciência de classe. Tratando os pobres enquanto agentes sociais, com seus defeitos e qualidades, seu estudo propôs a possibilidade de pensá-los como uma classe em formação. Mostrei como, neste mesmo período, os economistas debruçaram-se sobre os temas do emprego, desemprego, mercado informal e mensuração da pobreza, que  passaram a dominar, inclusive como produtores de políticas. Descrevi, a seguir, como na virada dos anos 1980 para os 1990, a pobreza se tornou o centro dos debates políticos. A Campanha da Fome foi o sorvedouro de questões que vinham sendo levantadas desde as décadas anteriores, como a produção e distribuição de alimentos, saúde e nutrição, educação e reforma agrária. Isto é, embora se discuti sse “a pobreza”, esta era percebida diacronicamente, como produtora e resultante de um conjunto imenso de fatores localizados, que não poderiam deixar de ser considerados. Ou seja, não estava em jogo “o problema da pobreza”, mas a discussão sobre um “novo modelo” de desenvolvimento. Para alguns autores, como mostrei, o Plano Real, anunciado em 1994, teria deslocado a pobreza da pauta do debate público nacional para um campo não-político, como algo a ser administrado tecnicamente ou a ser gerido pela lan -

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tropia. Da mesma forma, o esforço de interpretação de um país percebido como injusto e passível de ser transformado teria sido esvaziado pelas certezas de uma modernidade globalizante. De sinal de atraso a sinal de modernidade, a pobreza teria retornado ao seu lugar de paisagem. Avaliei, ainda, a discussão interna às ciências sociais sobre dados qualitativos e propostas recentes de um maior diálogo com a economia. Em função desta pro posta de interlocução desloquei a análise para o discurso dos grandes organismos internacionais sobre “a pobreza” e “a pobreza no Brasil”, buscando demonstrar  que se baseiam numa matriz metodológica naturalizadora da pobreza, considerada um fenômeno mundial, a ser tratado tecnicamente. Como estudo de caso, analisei parte dos debates e documentos produzidos  pela Comissão Mista de Combate à Pobreza, onde o discurso econômico foi predominante. A “pobreza” brasileira, consoante suas conclusões, pode ser medida, calculada, controlada e visitada. Os “pobres” variam numericamente, de indicador   para indicador, podendo ser classicados como “pobres” ou “indigentes”. Inspirada em Mary Poovey percebi, nesta consagração dos números, o sucesso de um processo que os caracteriza como isentos de qualquer tipo de valorização ou crença. Trata-se de despolitizar a realidade, substituindo sua descrição pela “focalização” numérica dos mais pobres entre os pobres. Sobretudo, percebi que a riqueza dos debates anteriores sobre os problemas sociais do Brasil, desde o século XIX, teve  pouco espaço nos trabalhos da comissão. Acredito, como Poovey, que a forma como um argumento é conduzido constitui o próprio argumento, porque não existem idéias fora de sua enunciação. Entendo que a noção “focalização” faz parte de um modo de representação que precisa ser  analisado com mais profundidade. Até porque, como é evidente, por trás da polêmica conceitual estão propostas evidentemente diferenciadas de nação. Trata-se, neste sentido, de um debate extremamente saudável, oportuno e elucidativo. Entendo que recuperar os debates vistos nos dois primeiros capítulos deste trabalho é fundamental para qualquer tipo de reexão acadêmica ou política que tenha o Brasil como preocupação. Homens como Nabuco, Bomm ou Romero, com suas reexões, se aproximaram muito mais do que Mary Poovey chama de descrição política da realidade do que os estudos recentes, notadamente aqueles  produzidos por economistas, sobre indicadores de pobreza no Brasil.  Não é à toa que “pobreza” apenas se tornaria categoria importante para a sociedade brasileira na última década do século XX, quando passou a ser tratada como  problema mundial. De forma alguma isto signica que os clássicos do pensamento social brasileiro e os cientistas sociais, mais recentemente, estivessem alheios aos  problemas da população. Percebiam-nos, no entanto, como categorias nativas, construídas historicamente e que estão longe de terem sido esgotadas na atualidade. A “desambição” identicada por Taunay e Antonio Candido é uma noção

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extremamente mais rica e desaadora que, por exemplo, a de “exclusão”, para compreender a realidade social brasileira. 1 Remeto-me novamente a Elias, para quem os problemas contemporâneos de um grupo social são crucialmente inuen ciados por seus êxitos e fracassos anteriores. Não se trata de buscar um “habitus” nacional brasileiro, embora concorde com Elias que tal método “pode ajudar uma nação a conciliar-se com seu passado” (Elias, 1997:39), como, no caso estudado  por ele, teria ajudado a Alemanha a realizar uma catarse de seu passado nazista. Quando enfrentaremos nosso passado escravocrata, elitista e racista, que é peça importantíssima da nossa construção como nação e fundamental para analisarmos as questões do presente? Para Elias, este enfrentamento só foi possível na Alemanha porque velhos problemas, como a fome e a miséria, haviam sido resolvidos.  Não é o nosso caso, onde a necessidade de sobrevivência da população ainda está na ordem do dia. Isto não deveria nos impedir, no entanto, de reetirmos sobre o exercício proposto por Elias. Ainda mais diante da introdução no Brasil do discurso dos grandes organismos internacionais, que consideram o “pobre” e a “pobreza”  problemas globais e praticamente perenes. Aceitar este discurso nos isenta enquanto  povo de qualquer acerto de contas com o passado e qualquer comprometimento com o presente.  Neste livro, sobretudo, procurei exercitar a idéia  pooveyana de uma rota espiral que captura do passado eventos e idéias que podem iluminar o que precisamos analisar no presente. Resgatar um debate aparentemente datado, o do pensamento social brasileiro da virada do século XIX para o século XX, e inseri-lo no debate contemporâneo, é apenas uma destas possibilidades, uma pequena contribuição  para uma tarefa desaadora.

Nota 1 Se

isso é válido para os trabalhos acadêmicos, também deveria ser para a implementação de  políticas públ icas. Armo isso porque há uma percepção sens o comum de que precisamos conhecer a realidade para poder administrá-la (ou controlá-la, diria Foucault). Este conhecimento da realidade, cada vez mais, está calcado em informações quantitativas que são absorvidas de forma absolutamente desproblematizada.

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