A Origem Dramática Da Lei

March 13, 2019 | Author: Leonardo Coreicha | Category: Greek Mythology, Socrates, Plato, Ancient Greece, Achilles
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tese de Wilson Madeira filho...

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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE FACULDADE DE DIREITO TESE PARA PROFESSOR TEORIA DO DIREITO

TITULAR

EM

WILSON MADEIRA FILHO

A ORIGEM DRAMÁTICA DA LEI

NITER I 2005

PROSCÊNIO

2

A idéia é que o Direito surge como uma nova forma de poesia: poesia pública. A era clássica teria avançado da subjetividade para a criação de uma noção  sui generis de generis de gestão de espaço. A origem da lei se daria em paralelo com o amadurecimento da dramaturgia, ambas com funções públicas que passam a ser muito bem definidas. O  poeta se afasta do deslumbramento deslumbramento religioso e se consagra com o ideal de cidadão emergente. Junito Junito de Souza Brandão já trabalhara uma hipótese correla corr elata: ta:

Há muito que vimos estudando o Teatro Grego e sempre estranhamos as confusões reinantes, até em obras de responsabilidade, acerca das origens do teatro da Hélade. De modo geral, parte-se do teatro egípcio, hindu e cretense e desemboca-se tranquilamente na Grécia, fazendo-se do originalíssimo Teatro Grego apenas uma forma evoluída, quando não um mero apêndice dos teatros supracitados. Todos sabemos que Egito, Índia, China, Creta e a própria Grécia,  para não citar outros, possuíam “teatro” bem antes do aparecimento do Teatro Grego, mas este, conforme procuraremos demonstrar, nada tem em comum com aqueles, a não ser no que tange à matéria prima, pois que todos tiveram como  ponto de partida a religião. Os teatros egípcio, hindu, chinês, cretense e “grego” (antes do Teatro Grego) porém, nasceram da religião e jamais conseguiram libertar-se dela, nem quanto aos significantes, nem quanto aos significados. O

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Teatro Grego, ao contrário, colocando a religião como sua infra-estrutura, ergueu sobre ela um edifício voltado para os problemas do homem. 1

Este é um ponto importante, mas não encerra a questão; pelo contrário, é um  ponto distintivo para iniciar um outro debate: o da separação entre teatro e legislação.  Nossa hipótese pretende avançar no fato de que a dramaturgia clássica não apenas encenava o direito nascente, como foi, em si mesma, o momento de transubstanciação da poesia em fala pública, em política. As idéias que ajudaram a formatar o ocidente atual reúnem pelo menos duas grandes correntes de contribuição: a era clássica grega, em especial o século de Péricles, e o cristianismo. Na vertente grega, a disjunção da religião com o teatro caracterizou uma evolução dos atos de representação, que terminaram por desembocar num modelo de maior expressão de cidadania. Todavia, vivemos, no correr de nossos séculos de formação, ações gregas sob um céu cristão. Dante Alighieri vai ter como guia Virgílio, o poeta romano que transliterou o grego Homero, e irá encontrar, no Paraíso, com o imperador Justiniano, deixando, no Inferno, os heróis e os filósofos gregos, ainda que iluminados por luz imanente. Goethe irá cruzar a Grécia helênica no Fausto II  para apresentar uma alma resgatada por um céu barroco. Esta junção é a do ocidente se autoinventando: a ação conjugada à utopia. Aristóteles destacava o fato de que uma mudança estilística se acentuava com o apogeu da tragédia:

 Na tragédia é a ação que é imitada, e essa ação é executada por agentes que necessariamente revelam certas qualidades distintas, tanto de caráter como de mentalidade, de acordo com as quais podemos definir a natureza das ações. A mentalidade e o caráter são, pois, as duas causas naturais de ações, e delas é que 1

 BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro grego: origem e evolução. Rio de Janeiro: Tarifa Aduaneira do Brasil Editora Ltda., 1980, p. 7.

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todos os homens dependem para o êxito ou o fracasso. A representação da ação constitui o enredo da tragédia; chamo de enredo a disposição bem ordenada dos incidentes. A personagem, por outro lado, é o que nos permite definir o caráter dos  participantes, e sua mentalidade é revelada pelo que eles dizem, quando apresentam um argumento ou manifestam uma opinião, por suas idéias, enfim. Há necessariamente, portanto, na tragédia seis componentes que determinam sua qualidade. São o enredo, personagem, elocução, idéias, espetáculo e canto. 2

A era clássica sentira a necessidade de transpor para a realidade humana os valores esmagadores dos deuses. Tratara-se de mimetizar o sofrimento como forma sublime de compreensão. Raciocinar sobre o temor do abismo. A própria exploração sobre o divino, ao aproximarmo-nos dele pela via da poesia, teria sido a primeira odisséia a explorar um espaço até então insondável. Nesse sentido, dois poemas mesclaram-se em nossa pré-história mítica: a Teogonia e o Gênesis. Explicar a genealogia dos deuses e o surgimento da vida passa a representar a noção que temos de nós mesmos. Aproximar-se o homem, pelo fogo da escrita, da palavra irrevelável: o nome divino. Haroldo de Campos explicando tradução do fragmento inicial do Gênesis

(Bere´shi th ), que prefere chamar de “trans-criação”, revela:

 No final do v. II, 4, conforme ficou dito, aparece pela primeira vez o nome impronunciável de Deus (segundo a tradição) e por isso não vocalizado no original, YHVH, conjugando-se ao de Elohim, que se vinha repetindo desde I, 1. Numa  primeira versão, optei pela reprodução de ambas as expressões hebraicas, unidas  pela referência comum à divindade, num composto (“Deus-Yavéh-Elohim”), qual um emblema onomástico do original. Na presente revisão, preferi atentar à convenção de leitura (qerê, “o que deve ser lido”), que leva a oralizar o tetragrama inefável com as vogais de ‘adonai (“Meu Senhor” ou, simplesmente, “Senhor”) e, 2  ARISTÓTELES.

Da arte poética. In: ARISTÖTELES; HORÄCIO; LONGINUS. Crítica e teoria literária na Antiguidade. Tradução de David Jardim Júnior. Introdução de assis Brasil. (Coleção Universidade de Bolso). Rio de Janeiro: Tecnoprint, 1989, p. 21.

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em especial, àquela outra que o substitui por hashshém (“o Nome”), segundo uma tradição que remonta ao  Levítico, XXIV, 11 (Dicionário Oxford). Esta última forma apelativa, que fiz preceder do pronome “Ele” (“Ele-O Nome”), pareceu-me a mais expressiva para efeito de tradução, por anunciar o nome divino sem enunciálo sob uma pronúncia discutível, preservando-lhe, assim, a indizibilidade. 3

Essa palavra, não dita, que se torna a palavra cerne, a exploração niilista no seio da metafísica, reverbera nas pausas da pronúncia, no ato da fala e, aos poucos, se destaca.

... o teatro, mesmo quando recorre à literatura dramática como seu substrato fundamental, não pode ser reduzido  à literatura, visto ser uma arte de expressão  peculiar. No espetáculo já não é a palavra que constitui e medeia o mundo imaginário. É agora, em essência, o ator que, como condição real da personagem fictícia, constitui através dela o mundo imaginário e, como parte deste mundo, a  palavra. 4

Por sua vez, em Hesíodo, os deuses irão se revelar em uma árvore genealógica que desvenda, na depauperação alquímica das eras, o surgimento de um novo tipo, que carrega toda a herança da diversidade em sua simplicidade: o trabalhador rural. Assim como o homem simples arremata a obra conjunta dos tempos, a inversão parece ser a característica do antigo aedo, como salienta Torrano:

Se o Cantar é e coincide com o próprio Ser, e se o Cantar é que tem as moradas olímpias como tem também a Tudo o que será e é e já foi, - como é possível que não haja uma coincidência temporal entre o mo(vi)mento do Cantar (i.e., das Musas) e o mo(vi)mento do que o Cantar a-presenta (i.e., presentifica)? Ou, em outras palavras: como podem as Musas terem nascido na Piéria geradas por Zeus e

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 CAMPOS, Haroldo de. Bere’Shith: a cena de origem. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 34. O fenômeno teatral. In: Texto/contexto. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 28.

4 ROSENFELD, Anatol.

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serem a força ontofântica pela qual não só Zeus mas também a Totalidade Cósmica se dão como Zeus e como Totalidade Cósmica?5

O poeta passa por uma metamorfose. Antes atuou de forma iconoclasta, separando-se do rito religioso. Agora laiciza a palavra, aproximando-se do cotidiano da  pólis. O Direito surge no bojo de uma articulação lingüística mais refinada. O Direito teria sido uma espécie de revolução lingüística que ocorreu em torno do século V a.C.

Sem a elevação da lei ao plano da representação, e a conseqüente realização de seu conceito, juntamente com a formação da personalidade individual  pensante, não era possível a objetivação do direito, articulado no sistema jurídico, nem do pensamento que o tematiza: filosofia e direito emergem juntos e configuram-se a partir de uma mesma experiência. Tal experiência será amplamente favorecida pela introdução da escrita e conseqüente alfabetização da Grécia. (...) Podemos dizer que a construção da lei como categoria autônoma segue de  perto o desenvolvimento da linguagem como veículo conceitual e a transformação do seu padrão sintático imposta pela transição da oralidade à escritura. 6

Entender um pouco mais essa mudança crucial, essa revolução cultural que marcou tão profundamente nossa formação intelectual e política, é retomar a leitura desses clássicos, especular em torno da passagem do teatro para o surgimento da lei, em seus momentos mais agônicos: o Livro de Jó e a Oréstia, de Ésquilo. Não para deslindar o passado, mas para inventar o presente, fazê-lo surgir como obra do nosso labor, pulsante, ardente, impressionante.

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 TORRANO, Jaa. O mundo como função de Musas. In: HESÌODO. Teogonia: a origem dos deuses.. Estudo e tradução de Jaa Torrano. 5ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2003, p. 84. 6 TOLEDO, Plínio Fernandes. Uma interpretação filosófica do direito a partir da análise de sua forma objetiva na transição da oralidade para a escritura. In: BOUCAULT, Carlos E. de Abreu; RODRIGUEZ, José Rodrigo (orgs.) Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, p. 26.

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PRIMEIRO ATO

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1. O LEGISLADOR ENQUANTO NOVO ESTETA NA MAGNA GRÉCIA

A palavra como valor fundamental para a constituição da ordem social. Em torno dessa idéia parece terem se construído alguns dos principais monumentos da humanidade na era clássica, a saber, a poesia e a ordem jurídica. Entender essa transição, onde a figura do aedo, enaltecida no século VIII a.C.  pela figura de Homero, se transmuda, em torno da Era de Péricles, na bifurcação entre o rito religioso e a ação dramática e daí incorpora um novo personagem na cena pública, o legislador, é a tarefa árdua aqui proposta, perseguindo pistas e fragmentos.  Nesse sentido, nos socorremos de Garcia-Roza, que comenta:

Muito tempo antes do homem ocidental inventar o conhecimento, de opor o verdadeiro e o falso no interior do discurso, a cultura grega já era atravessada pela noção de alétheia: a verdade, para o poeta da Grécia arcaica. À pré-história da

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verdade filosófica corresponde uma verdade poética que foi o solo a partir do qual ou contra o qual se organizou o pensamento filosófico grego. 7

 Não se alude aqui apenas ao tracejado técnico e à evolução das ferramentas que tornaram possíveis a escrita. Alude-se, sobretudo, à distinção da linguagem constituída de uma dupla face, a forma da expressão e o conteúdo expresso, enfim, a argila lingüística e a forma a ela atribuída pelo artista do discurso. Compreender como a fala do poeta passa a constituir um campo semântico original e como essa elaboração estética  –   e não a dos sacerdotes  –   é absorvida e transmudada pela invenção do legislador, obriga-nos a acompanhar alguns passos nos aedos clássicos  –   Homero e Hesíodo –  e nos arautos de uma outra era  –  Platão e Aristóteles.

1.1. As primeiras navegações: a odisséia do signo

A Ilíada, primeiro dos famosos poemas épicos de Homero, narra o nono ano da Guerra de Tróia. Somos, de imediato, atirados às praias de Ílion, a cidadela troiana, onde a guerra perdura e a crise se instala entre os invasores gregos. A primeira grande narrativa da história da literatura faz emergir o ouvinte/leitor em plena e súbita ação, já iniciado os tempos, imprevisto o futuro. O conflito dos primeiros versos alude à fúria do herói Aquiles contra o basileu Agamêmnon. Este, general dos gregos, partilhando as  presas de batalha recente, escolhera ter como escrava a bela Criseida, sendo sua irmã Briseida escolhida como parte dos troféus de Aquiles, o mais completo dos heróis. Ocorre, porém, que o sacerdote Crises, pai de ambas, dirige-se ao líder grego e invoca a  proteção de Apolo à sua filha mais velha, Criseida, na realidade uma sacerdotisa de 7

  GARCIA-ROZA, Luiz Alfredo. Palavra e verdade  –   na filosofia antiga e na psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990, p. 25.

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Apolo, que não poderia, portanto, ser partilhada. Agamêmnon, temendo a reação do deus, mesmo diante de seguidas baixas e face a uma guerra que se prolonga mais do que o esperado, resolve ceder, devolvendo Criseida. Todavia, orgulhoso, valendo-se de sua hierarquia, reclama o segundo prêmio, a bela Briseida, já possuída por Aquiles. O herói, colérico, impedido pela ética de guerra de atingir o basileu, retira-se da luta, o que complica sobremaneira a situação dos gregos. O rapto de Briseida logo se revelará como versão microfísica da causa mítica da guerra, o rapto de Helena, esposa de Menelau, irmão de Agamêmnon, pelo príncipe troiano Páris, irmão do grande herói Heitor, e filho de Príamo, rei de Ílion. Essa Guerra mítica nos permite aproximar de uma complexa elaboração social, se tomarmos a epopéia enquanto material arqueológico. Desse modo, Ciro Flamarion Cardoso comenta:

Quais eram as características comuns a todas as cidades-Estados clássicas? Talvez  possamos distinguir as seguintes como sendo as mais importantes: 1) do ponto de vista formal, a tripartição do governo em uma ou mais assembléias, um ou mais conselhos, e certo número de magistrados escolhidos –  quase sempre anualmente –  entre os homens elegíveis; 2) a participação direta entre os cidadãos no processo  político: a noção de cidade-Estado implica a existência de decisões coletivas, votadas depois de discussão (nos conselhos e/ou nas assembléias), que eram obrigatórias para toda a comunidade, o que quer dizer que os cidadãos com plenos direitos eram soberanos; 3) a inexistência de uma separação absoluta entre órgãos de governo e justiça, e o fato de que a religião e os sacerdócios integravam o aparelho de Estado.8

Ocorre que entre os motivos míticos da Guerra avultam a vaidade e a fraqueza femininas. A conquista da mulher enquanto troféu de guerra é, no círculo da existência, uma reação dos hoplitas à vaidade das deusas. Tudo se iniciara por uma disputa entre as 8 CARDOSO, Ciro

Flamarion S. A cidade-Estado antiga. São Paulo: Ática, 1987, p. 7.

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deusas olímpicas Atena, Hera, e Afrodite. Estas, desejosas de saber qual delas seria a mais bela, oferecendo uma maça como prêmio  – o “pomo da discórdia” - indagam aos deuses, que, por serem deuses, se esquivam, e fogem à resposta. Resolvem, então, as três deusas, aparecerem de forma hierofântica a um humano - um mortal não suportaria a visão real da beleza divina. O escolhido, um príncipe a pastorear rebanhos, é Paris, de Ílion. Cada deusa faz uma oferta ao jovem caso seja a escolhida: Atenas, deusa da sabedoria, faria dele o mais sábio homem de todos os tempos; Hera, esposa de Zeus, oferece torná-lo o homem mais poderoso, senhor de exércitos invencíveis; Afrodite, deusa do amor, oferece ao jovem um simples, mas eficiente dom, o de seduzir qualquer mulher. Escolhida Afrodite, o pomo da discórdia fará com que as deusas “derrotadas” venham a se posicionar contra os troianos. Entrementes, a bela Helena, a mulher mais linda do mundo, e também a mais disputada, escolhera finalmente como noivo Menelau. Para evitar que o escolhido fosse morto pelos demais pretendentes, a partir de uma proposta de Tíndaro, pai de Helena, um pacto fora firmado: todos se comprometeriam a velar pela felicidade do casal, reagindo a quem quer que atentasse contra a união. Tempos após, hóspedes no palácio de Menelau os filhos de Príamo, Paris seduz Helena, raptando-a. Assim todos os pretendentes, que constituem a nata dos reis e heróis míticos, atendendo ao pactuado, dirigem-se à cidadela troiana, para recuperar o maior de todos os troféus, a bela Helena. Entre estes, destaque-se o solerte Ulisses, que sobressairá, com Aquiles, entre os protagonistas, chamando a atenção para um outro tipo de herói que possui como principal valor não mais a força hoplita, mas a sagacidade. Werner W. Jaeguer 9, em contexto correlato, observa o fato de que, após a obra dos aedos do século VII a.C.  –  Homero e Hesíodo  – , um verdadeiro hiato produtivo na 9

 JAEGUER, Werner Wilhelm. Paidéia: a formação do homem grego. Tradução de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

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 poesia política levaria a indagações sobre possíveis mudanças na noção de heroísmo (arete), já presentes na figura de Ulisses e, em especial, na completa mudança de cenários entre as epopéias homéricas. Iniciando pela constatação de que, diferentemente de Esparta e de Atenas, que melhor produziram uma poesia política que encontraria no Estado sua definição última, a poesia jônica teria cumprido o papel de despertar as forças individuais. Deste modo, em leitura retrospectiva, a partir de estágios posteriores e acontecimentos análogos, seria possível vislumbrar, nos poemas homéricos, os primeiros reflexos da  pólis jônica. Sob esse original viés, Jaeguer se vale da imagem do reflexo para citar a  passagem na Ilíada onde Aquiles  –  retornando para a guerra após a morte de Pátroclo  –  se valeu de seu escudo brilhante para, pendurando-o no alto, perscrutar o interior da cidadela troiana. E nos informa:

 Na única passagem em que a Ilíada nos apresenta uma cidade em paz, a descrição do escudo de Aquiles, coloca-nos no centro da cidade, na praça do mercado, onde se executa um julgamento: os anciãos, sentados em pedras polidas e dispostos no círculo sagrado, discutem uma sentença. As famílias nobres tomam parte importante na administração da justiça, anteriormente reservada ao rei. As famosas  palavras contra a divisão do governo testemunham que o rei ainda existia, embora a sua posição freqüentemente já fosse precária. A descrição do escudo fala-nos também dos bens da coroa e da complacência do rei, ao contemplar o cultivo dos campos. Mas trata-se provavelmente de um proprietário nobre, uma vez que a epopéia também dá aos senhores o título de basileus.10

Vale dizer, Tróia representava um tipo de estrutura produtiva rural, sob a égide de um modelo de propriedade centralizado na figura de um basileu, entendido tal por Homero como um reinado, o qual, por sua vez, com a morte próxima de Príamo e a crise provocada pelo sítio dos gregos, assumia novas formas políticas, dando margem 10  JAEGUER,

W. Op. cit., pp. 131-132.

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ao surgimento de uma aristocracia. Esta aristocracia simbólica, por seu turno, estaria a demonstrar o surgimento próximo futuro de uma burguesia mercantil, visto estar o sistema agrário ameaçado constantemente por invasores diversos. Desse modo, a guerra de Tróia estaria exemplificando, com um cerco glorioso, o final de uma era, e de um modelo político: o fim da estrutura rural baseada em grandes  propriedades.  Nesse mesmo sentido, baseando-se em estudos da arqueologia contemporânea, Marcos Alvito de Souza nos chama a atenção:

O aparecimento dos soldados de infantaria pesadamente armados a lutarem de forma coesa, em grupo e não mais individualmente como nos Tempos Homéricos, teria sido, segundo alguns, o principal fator a explicar a ampliação da participação  política. Isto é, se a segurança da comunidade deixava de repousar exclusivamente nas mãos de uma minoria de aristocratas, conseqüentemente, o monopólio político dos nobres também era ameaçado por uma participação crescente nos assuntos da cidade por parte dos que lutavam como hoplitas.11

: Por sua vez, a Odisséia representaria a nova era, mercantilista, onde o mar se torna o palco do desconhecido, com variadas aventuras. “Com a mu dança das formas de vida deve ter nascido também um novo espírito” 12, menciona Jaeguer. Sai de cena o herói hoplita, cuja arete se baseia na força física e na luta colérica contra o inimigo, assumindo como protagonista o herói da idéia, o astuto Ulisses, modelo da iniciativa individual a propor uma nova ordem. Com Odisseu os inimigos deixam de ser o estrangeiro próximo, a disputar, sob a força do aço e entre o cheiro do sangue, os despojos do mais fraco. Entram em cena ciclopes, fadas, bruxas, monstros marinhos, redemoinhos. É todo um mundo fabuloso a

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 SOUZA, Marcos Alvito Pereira de. A guerra na Grécia clássica. São Paulo: Ática, 1888, p.27. ibid., p. 133.

12  Id.,

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ser desvendado. O imaginário ganha em liberdade e um pré-teatro se anuncia. Citemos a clássica passagem da evocação aos mortos

Ulisses prosseguiu: “Preclaro amigo, Horas há de falar e horas de sono; Mas, se o levas em gosto, não recuso Dos meus contar-te os lutos e infortúnios, E dos que, livres da cruenta guerra,  Na pátria sucumbiram pela infâmia De um falsa mulher. –   Disperso tendo Prosérpina os femínios simulacros, O de Agamêmnon surge, e os do que Egisto Com ele assassinou. Bebido o sangue, Braços me estende, em lacrimas a pares; O alento lhe falece, que era d’antes Em seus membros flexíveis, e eu carpindo Lhe brado condoído: “Ó glorioso Rei dos reis, como houveste o fatal golpe? Domou-te o azul tirano em tempestade? Ou mãos hostis em terra, ao depredares Armentio e rebanho? Ou defendendo O pátrio muro e a honra das famílias?” “Divo e sábio Laércio, respondeu-me,  Não me domou Netuno em tempestade,  Nem mãos hostis em terra: Egisto à casa, Com minha atroz consorte conluiado, Atraiu-me, e no meio de um banquete, Como a rês no presepe, derribou-me; E estes sócios comigo estrangularam, Quais porcos de um ricaço destinados A função por escote ou bródio ou núpcias. Estiveste em conflito e carnagens, Mas por tão feio horror nunca choraste: Crateras e mesas e comer e sangue Mistos rolam; no chão pungentes gritos

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Soam-me de Cassandra Priameia, Que ante mim trucidava Clitemnestra; Soergo-me, e ainda busco moribundo Pegar do alfanje; aparta-me a imprudente,  Nem quis, no instante em que baixava a Dite, Cerrar-me os olhos e compor-me os lábios.  Nada há mais sevo que a mulher indigna, Capaz de conceber tamanhos crimes. A que esposa donzela assim tratou-me: Crua morte me urdiu, quando eu pensava Prazer vir a dar a fâmulos e a filhos. Torpemente manchou-se, e tanta infâmia Tem as mais virtuosoas deslustrado. 13

Homero na Odisséia canta para um novo tempo que busca no passado heróico o guia que irá ajudá-lo a trilhar o caminho para o fim do exílio. Não foi por menos que Dante encontra Ulisses no canto XXVI do Inferno14, pois reconheceu que ali estava o sinal para todo exilado político em todas as eras e que a libação aos mortos era o apelo inelutável a ser tributado aos antepassados para que se tornasse possível o retorno ao lar. Essa busca pela paz do lar é a busca alegórica pela harmonia cívica, construindo, na diversidade, uma leitura até então inédita, alterando a ordem reinante. Desse modo, Jaeguer opõe ainda o a justiça ( themis), conforme descrita por Homero, à justiça (dike), descrita por Hesíodo. Themis seria a justiça imposta, vindo de cima para baixo, tendo como referência o antigo estado de coisas, sobre o qual reinava Zeus, absoluto. O ideal cavalheiresco, dos tempos patriarcais, julgaria de forma análoga,

13   Homero.

Odisséia. São Paulo: Editora Martin Claret, 2004, pp. 214-216, vs.296-340. A tradução e a editoração dos textos clássicos é em si um tema saboroso, que valeria um trabalho à parte. Citamos aqui a  polêmica tradução de Odorico Mendes, repudiada pela crítica literária nacional do início do século XX  pelo excesso de arabescos e romanismos e resgatada pela crítica literária do final do mesmo século XX como criativa e inovadora.. 14  Cf. ALIGHIERI, Dante. Inferno. Tradução de Jorge Wanderley. Rio de Janeiro: Record, 2004.

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 buscando mimetizar Zeus e dando themis aos homens. Já, o conceito de dike, reclamado  por Hesíodo contra o senhores venais, possibilitaria outro entendimento:

O conceito de dike não é etimologicamente claro. Vem da linguagem processual e é tão velho quanto  themis. Dizia-se das partes contenciosas que “dão e recebem dike”. Assim se compendiava numa palavra só a decisão e o cumprimento da pena. O culpado “dá dike”, o que equivale originariamente a uma indenização, ou compensação. O lesado, cujo direito é reconduzido pelo julgamento, “recebe dike”. O juiz reparte “dike”. Assim, o significado fundamental de dike  equivale aproximadamente a dar a cada um o que lhe é devido. Significa, ao mesmo tempo, concretamente, o processo, a decisão e a pena. 15

 Dike irá simbolizar, portanto, o direito positivo nascente, um direito igualitário, equivalente político à invenção da moeda no plano econômico, que garante a justa medida no intercâmbio das mercadorias. Com a luta política por garantir a dike, que se aplicava inclusive aos basileus, descortinava-se um horizonte idealizado desde os tempos antigos. Antes, porém de atingir a democracia existiram vários graus intermediários, como uma espécie de aristocracia. O que importa é determinar que uma mudança paradigmática se dera. E, alterado o conceito de justiça, alterava-se, em  paralelo, o conceito de virtude heróica (arete), passando esta a se fazer presente não necessariamente através da força física, mas, sobretudo, pela aptidão por um ideal de cidadão, que, ao defender os valores cívicos, traria o modelo de um novo homem. E vaticina Jaeguer:

As posteriores críticas da lei, como as que no tempo da democracia corrompida foram movidas contra um legalismo do Estado, opressor e despótico, não afetam o que acabamos de afirmar. Em oposição a esse cepticismo, todos os pensadores antigos são concordes no elogio da lei. Ela é, para eles, a alma da  pólis. O povo 15  JAEGUER,

W. W. Op. cit., pp. 134-135.

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deve lutar pela sua lei como pelas suas muralhas, diz Heráclito. Surge aqui, por trás da imagem da cidade visível, defendida pela sua cinta de muralhas, a cidade invisível que tem na lei um firme baluarte.16

Vimos, portanto, que Jaeguer descreve os épicos homéricos como se estivera a descrever um longo passo histórico subseqüente, o Renascimento. No fundo, sob a imagem relatada ressalta a dimensão das navegações a romper com um passado feudal e a emprestar aos horizontes do olhar um admirável mundo novo.

1.2. Um novo herói: o trabalhador

A obra do camponês Hesíodo, poeta do séc. VIII a.C., demonstra a importância que a obra homérica havia alcançado, chegando a influenciar a educação e os concursos  populares. Afinal, sabe-se que Hesíodo foi o vencedor de um concurso em honra de um certo Afidamos, havendo viajado para a Cálcis, na ilha de Eubéia, com o objetivo de  participar dos jogos funerários. Hesíodo teria vivido por volta de 800 a.C. na Beócia, região situada no centro da Grécia, passando a maior parte da vida em Ascra, sua aldeia natal. Foi autor de pelo menos duas obras consagradas, a Teogonia  e Os trabalhos e os

dias. A Teogonia  narra a cosmogonia, o surgimento da vida, relatando a agônica história dos deuses da mitologia pré-homérica. No início existiam as divindades originárias: Caos, Tártaro (Abismo), Gaia (Terra) e Eros 17. Numa primeira era  panteística, Caos –  o vazio primordial -, dotado de energia prolífica, dá origem à Érebo (Trevas) e à Noite. Noite gera Éter e Hemera (Dia). De Gaia nascem Montes, Pontos 16  Id.,

ibid., p. 143.   Existem controvérsias sobre a legitimidade dos versos 118-119 da Teogonia, o que leva alguns doutrinadores a distinguir apenas três divindades primordiais: Caos, Gaia e Eros. 17

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(Mar) e Urano (Céu), feito de igual proporção a ela, que a recobre toda, e que a desposou, assumindo o reinado dos deuses. Entre os filhos de Gaia e Urano encontra-se o titã Cronos, que, incentivado pela mãe, se rebelou contra a tirania do pai e, depois de castrá-lo, governou o universo. Cronos, por sua vez, consolida a segunda geração divina, o Tempo primordial (as priscas eras), que acaba por representar uma nova ordem tirânica e, para evitar novo destronamento, devora os próprios filhos ao nascer. Foi, todavia, destronado pelo filho Zeus, que, por um estratagema de Réia, sua mãe, escapou ao banquete fatídico. Zeus, então, representando a terceira e definitiva geração olímpica, fundou o panteão helênico clássico. Em seguida, da união dos deuses com os mortais, teriam nascidos os heróis.

Os trabalhos e os dias , um poema didático, tem como foco o homem e exaltação da virtude e da justiça e, em especial, a narrativa pessoal dos dissabores de Hesíodo, depois da morte do pai, quando seu irmão, Perses, corrompeu os juízes locais e apoderou-se da maior parte da herança que correspondia a ambos. A primeira parte da obra (o Erga) é dedicada aos mitos de Prometeu e Pandora, ressaltando a necessidade do trabalho duro e honesto. Exalta a Justiça ( Dike), filha predileta de Zeus e única esperança dos homens e descreve o mito das Cinco Idades. A segunda parte do poema tem propósitos pontuais: estabelece normas para a agricultura, seus ciclos, utensílios, conselhos técnicos e precauções relativas à semeadura e ao plantio, servindo, no fundo, como admoestação ao irmão Perses, leviano, demonstrando como uma riqueza modesta  pode sobrevir do suor cotidiano. Uma terceira parte apresenta conselhos morais e religiosos, estabelecendo como primeira providência para a prosperidade a escolha de uma boa esposa. Faz, ainda, admoestações sobre bem criar os filhos e encerra com um calendário sobre os dias fastos e nefastos para o trabalho. Emerson Luiz de Farias, resenhando a bibliografia do aedo, comenta:

19

Diferentemente de Homero, Hesíodo não se ocupou das esplêndidas façanhas dos heróis gregos. Seus temas são os deuses, regentes do destino do homem, e o  próprio ser humano, com suas fadigas e misérias. Dividiu a história da humanidade em cinco períodos, da idade do ouro à do ferro, das quais o último correspondia ao difícil período histórico em que ele próprio viveu. Para Hesíodo, só o trabalho e o exercício das virtudes morais permitem aos seres humanos chegar a uma existência discretamente feliz na infausta idade do ferro. Hesíodo morreu, ao que tudo indica, em Ascra. 18

Considerado o pai do Direito por dispor o tema de O trabalho e os dias  como se fosse uma petição aos juízes que se deixaram vender ao irmão, Hesíodo inaugura a ética como princípio da justiça. Desse modo, Hesíodo representa a denúncia do povo contra os poderosos. Embora não raro se encontrem críticas a seu estilo, menos rebuscado que o de Homero, seus poemas certamente auxiliaram a despertar o espírito democrático nascente. Permeando idas e vindas na narrativa, nem sempre completando a argumentação de forma harmoniosa, intercalando-a com narrativas independentes, talvez, por isso mesmo, tenha representado a poética de um estrato mais simples da  população, o que dá testemunho da popularidade dos aedos. A obra hesíodica nos aproxima ainda mais de um relato pormenorizado, revelando que ainda não havia a cisão entre campo e  pólis, que ambos, de certa forma, se integralizavam. Jean-Jacques Maffre trabalha nessa esteira:

Para os gregos da época clássica, ao menos tão importante quanto o meio natural é o ambiente humano, isto é, o contexto político, cultural e religioso, que devemos  precisar, embora sumariamente, já que terá, evidentemente, conseqüências sobre a vida concreta dos indivíduos. Qualifica-se usualmente a Grécia clássica como Grécia das cidades. Realmente, do ponto de vista político, salvo alguns reinos 18

  FARIAS, E. L. Hesíodo. In: http://www.nomismatike.hpg.ig.com.br/Mitologia/Hesiodo.html,  acesso em 22/07/2004.

20

como a Macedônia, ou algumas regiões longínquas, como o Epiro, que vive, em aldeias, obedecendo a uma organização tribal, o mundo grego clássico está dividido em  póleis, isto é, em cidades, que são entidades independentes; esses verdadeiros pequenos Estados, juridicamente soberanos e autônomos, compõem-se não apenas de uma cidade, que é o centro político, social, administrativo e religioso, mas também de um território mais ou menos vasto, a khôra, essencialmente rural, onde estão instalados algumas aldeias e pequenos burgos, algumas fortalezas perto das fronteiras e até alguma aglomeração importante, como o porto, especificamente, se a cidade principal não está à beira-mar, como o Pireu, ao lado de Atenas; além disso há santuários, alguns dos quais têm fama panhelênica, como o de Olímpia, no território de Elis. A pólis constitui o ambiente do qual muitos habitantes só saem de quando em quando. 19

Para melhor compreender a dimensão da obra hesíodica, retomemos um ponto central em sua poética: o mito de Prometeu e Pandora. Hesíodo narra o conto predileto do deus decaído, daquele que, roubando a chama olímpica, presenteia os homens com a inteligência. A imagem é reveladora: a um tempo trata-se da humanização dos deuses e da resposta à tirania, que impede que a consciência iluminadora se espalhe, libertando o mundo. Em Pandora, a desgraça feminina a retirar dos homens o paraíso, inventando a necessidade do trabalho, traduz , por sua vez, o novo (o único?) heroísmo possível.

1.3. Platão e o legislador

Penetrar nesse debate é sondar um diálogo entre épocas, patrocinado, em especial, por Platão, que chama para a tribuna da escrita um auditório variado, na medida em que traz argumentos de antanho e elabora circunvoluções de teoria antigas. Vejamos, no autor ateniense, passagens relatando a importância da estratégia da 19

 MAFFRE, Jean-Jacques. A vida na Grécia clássica. Tradução de Lucy Magalhães. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1989, pp. 35-36.

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linguagem para a construção da idéia platônica, através de breve exame do dialógo

Crátilo, que nos permitirá apreciar de forma intertextual a  República. Assim é que, no Crátilo, o personagem Sócrates intermedia a oposição entre Crátilo e Hermógenes.

20

  O primeiro pretende que os nomes são exclusivos e

conformam-se às coisas as quais nomeiam; o outro considera as palavras mera convenção, podendo-se trocar umas pelas outras sem afetar-se o poder de designação.

 Hermógenes - Sócrates, o nosso Crátilo sustenta que cada coisa tem por natureza um nome apropriado e que não se trata da denominação que alguns homens convencionaram dar-lhes, como designá-las por determinadas vozes de sua língua, mas que, por natureza, têm sentido certo, sempre o mesmo, tanto entre os Helenos como entre os bárbaros em geral. Perguntei-lhe, então, se, em verdade, Crátilo era ou não o seu nome, ao que ele respondeu afirmativamente, que assim, de fato, se chamava. E Sócrates? perguntei. É Sócrates mesmo, respondeu. E para todos os outros homens, o nome que aplicamos a cada um é o seu verdadeiro nome? E ele:  Não; pelo menos o teu, replicou, não é Hermógenes, ainda que todo mundo te chame deste modo. 21

A exceção à regra de Crátilo, o próprio nome de Hermógenes ( mentiroso, enganador ) dará vez à exposição de Sócrates, diferenciando os discursos entre falsos e verdadeiros, uma vez que é possível mentir, ou seja, usar as mesmas palavras para designar numa coisa aquilo que ela não é. Debatendo em separado com os opositores, demonstrará, junto a Hermógenes, a conformação ideal dos nomes às coisas e, junto a Crátilo, a impossibilidade absoluta dessa conformação. Para tanto, com Hermógenes, conceituará a linguagem como técnica. Assim 20  Em

momento correlato, trabalhamos as interseções desse diálogo platônico com as revisões do próprio autor em As leis, tendo como perspectiva a constituição de um campo próprio para a semiologia, frente a recuperação das idéias estóicas por Saussure. Ver nosso: O hermeneuta e o demiurgo: presença da alquimia no histórico da interpretação jurídica , in: BOUCAULT, C. E. de A.; RODRIGUEZ, J. R. (orgs.). Hermenêutica plural. São Paulo: Martins Fontes, 2002, pp. 45-100. 21  PLATÃO, Crátilo/ Teeteto. Tradução de Carlos Alberto Nunes. Belém: Universidade Federal do Pará, 1973,, p. 119.

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como se utiliza um furador para perfurar, uma lançadeira para tecer, para nomear utiliza-se o nome. A imagem socrático-platônica parece ter como intenção desviar a oposição entre  phýsis (natureza) e thesei (convenção), defendidas respectivamente, por Crátilo e Hermógenes, objetivando uma terceira categoria, mediadora, a da mimésis onde o nome-instrumento, realizando a ação de nomear - criaria uma "outra natureza", imagem do protótipo.

Sócrates - E a respeito do nome, poderias dar resposta idêntica? Se dizemos que o nome é instrumento, que fazemos quando designamos alguma coisa?  Hermógenes - Não sei como responder. Sócrates - Não damos informações uns aos outros, e não distinguimos as coisas, conforme sejam constituídas?  Hermógenes - Perfeitamente. Sócrates - O nome, por conseguinte, é instrumento para informar a respeito das coisas e para separá-las, tal como a lançadeira separa os fios da teia.22

Junto a Crátilo, e já havendo determinado anteriormente ser o legislador ou nomoteta o artífice que, na origem, determina o nome para cada coisa, questiona dois itens centrais: 1) pode o mesmo nome existir sem variantes em culturas diferentes?; 2) quem criou os primeiros nomes, nomeando o legislador, visto só ser possível conhecer as coisas através dos nomes?

Crátilo - Sou de parecer, Sócrates, que a mais justa explicação será dizer que foi um poder sobre-humano que deu às coisas os primeiros nomes e que por isso mesmo eles têm de estar certos. Sócrates  - Julgas, então, que quem instituiu os nomes o fez em contradição consigo mesmo, ou tenha sido um demônio ou uma divindade? Ou consideras como não dito tudo o que conversamos há pouco?23

22

 Id., ibid., pp. 125-126. ibid., p.191

23  Id.,

23

Concluem, a partir daí, ser possível conhecer as coisas também sem o auxílio dos nomes. Entre a imitação, o nome e a verdade, estariam as próprias coisas; a busca dessa definição original devendo, portanto, ser exercida junto a estas. A novidade da proposta socrática não só antecipa a cisão entre racionalismo e irracionalismo como o estudo propriamente técnico da linguagem. Divorciando as coisas e os nomes, está sugerida a imagem da junção de forma e conteúdo na criação dos signos. Como, de resto, salienta Benedito Nunes:

Platão nos transporta a essa questão-limite que aglutinou a Semiologia, depois que Saussure estabeleceu, aliás redescobrindo certos veios da cultura estóica e da tradição escolástica, o caráter arbitrário do signo lingüístico e a sua estrutura diferencial, como unidade entre significante e significado.24

Contudo, para Platão, naquele momento, fora capital desviar do nome o poder de  preposto das próprias coisas, evitando o perigo inerente a essa representação: o discurso  pretendo-se como substituto da verdade. Sua preocupação referia-se primordialmente à ameaça representada pelos sofistas, mestres da persuasão ( peithó) em detrimento do conhecimento (epistéme). Ao final do diálogo, explanando sobre a questão inicial, o nome de Hermógenes, Platão/Sócrates vale-se de extrema sutileza e ironia, em certa parceria mal disfarçada com a posição de Crátilo, o que também se revela pela assimetria do texto, que leva o nome deste quando cerca de 70% do debate é travado com o discípulo sofista. Assim, explorados morfológica e semanticamente os nomes mitológicos a partir de citações de Homero, e após Sócrates definir, por exemplo, uma dupla etimologia para Zeus como  Diá (através de) e Zên (vida) e ainda conceituar os demônios como uma raça anterior a 24

NUNES, Benedito. Introdução. In: PLATÃO, op. cit , p. 14.

24

dos homens e de maior valia por sua sensatez, chega-se quase inevitavelmente ao nome de Hermes. Sócrates procura esquivar-se, dando novo rumo ao debate, mas Hermógenes insiste.

 Hermógenes  - É o que farei; antes, porém desejo perguntar-te a respeito de Hermes, por haver dito Crátilo que eu não sou Hermógenes. Investiguemos,  portanto, o verdadeiro significado do nome Hermes, para ver se ele tinha razão no que disse. Sócrates - De todo jeito, quer parecer-me que o nome Hermes se relaciona com discurso: é interprete, ou mensageiro, e também trapaceiro, fértil em discursos e comerciante labioso, qualidades essas que assentam exclusivamente no poder da  palavra. Ora, como dissemos antes, falar (eirein) é fazer uso do discurso, além de haver uma expressão muito empregada por Homero (emêsato) que significa inventar. Da reunião dessas duas expressões - falar e inventar - formou o legislador o nome do deus, como se nos advertisse expressamente: Homens, o deus que inventou o discurso deve ser chamado, com toda a justiça, Eiremes. Mas hoje, segundo penso, embelezamos-lhe o nome, e lhe chamamos Hermes. Íris, também,  parece provir do mesmo vocábulo, eirein, por ser ela mensageira.  Hermógenes - Então, parece que Crátilo tem mesmo razão de dizer que não me chamo Hermógenes, pois sou jejuno em matéria de discursos.25

Etimologicamente, Hermógenes significando descendente de Hermes, implica, considerada a tese de Crátilo, em ser Hermógenes descendente do discurso, no caso, o discurso sofista. A ironia do Crátilo está no fato de, tomada a palavra como verdade, Hermógenes, que defendia a tese oposta, não poderia ser considerado verdadeiro, logo seria a exceção à regra (demonstrando que, organicamente, na feitura da obra, já encontrava-se antecipado o prognóstico socrático sobre o discurso falso). Dessa forma, Sócrates, ao definir o nome de Hermes, complementa-lhe o sentido, ou melhor, cria um neologismo - reunindo o sentido de "falar" ao de "inventar", resultando na conjunção

25  Id.,

ibid., p. 151.

25

também o sentido de "trapaceiro, fértil em discursos e comerciante labioso", ou seja, define o deus como um sofista autêntico, interessado na persuasão, imaginativo e cobrando caro pela transmissão de sua técnica aos discípulos ambiciosos. Hermógenes faz que não percebe e retruca estar correta a observação inicial de Crátilo posto não ser ele um orador. Sócrates não diz nem que sim nem que não, fazendo da definição do nome Hermes uma paródia resumida do próprio diálogo como um todo, concentrando nesta as explanações quanto à natureza e quanto ao consenso como determinantes dos nomes. Entretanto, sua queda à posição de Crátilo, revela-se na crueza irônica da continuidade do golpe, ao persistir, disfarçadamente, no assunto, partindo então para a definição do nome do filho mitológico de Hermes, ou seja, de forma velada, o próprio Hermógenes.

Sócrates - Quanto a Pan, camarada, filho de Hermes, é fácil compreender que é de natureza híbrida.  Hermógenes - Como assim? Sócrates  - Como sabes, o discurso indica todas as coisas ( pan), e circula e se movimenta sem parar, além de ser de natureza híbrida, verdadeira e falsa ao mesmo tempo.(...) É justo, portanto que seja denominado Pan Aipólos o que tudo ( pan) exprime e é o movimentador constante (aei polôn) das coisas, o filho híbrido de Hermes, macio em cima e áspero e hircino, ou trágico, em sua porção inferior. É evidente que Pan é discurso ou irmão de discurso, a ser, de fato, filho de Hermes,  pois é muito natural que haja parecença entre irmãos.26

Pan/Hermógenes, o filho de Hermes, produto híbrido de verdade e falsidade, simbolizando o próprio discurso em suas potencialidades divinas e mundanas, acaba por representar o próprio gênero humano em sua franqueza, vale dizer, no forma que lhe é atribuído pela escola de Heráclito. Ao promover, através de Hermógenes, a  possibilidade de conversão do sofista, trazendo-o para o mundo das verdades e das 26  Id.,

ibid, pp 151-152

26

essências, Platão faz dessa conversão tabula rasa dos signos que apenas capacitar-se-ão à justiça por via da busca do conhecimento e da adoração à verdade, essência das coisas. Quando, portanto, na República, Sócrates expulsa os poetas, o faz em nome de uma nova ordem estilística. É ao gênero do imitativo, ameaçadoramente próximo do sofisma, que se endereça o golpe. Resta a poesia como sublimação, ou seja, a própria filosofia, que não apenas estará presente como mesmo no comando da nova era.

Sócrates –   E se afirmo que a nossa cidade foi fundada da maneira mais correta  possível, é, sobretudo, pensando no nosso regulamento sobre a poesia que o digo. Glauco –  Que regulamento? Sócrates –  O de não admitir em nenhum caso a poesia imitativa. Parece-me mais que evidente que seja absolutamente necessário recusar admiti-lo, agora que estabelecemos uma distinção clara entre os diversos elementos da alma. Glauco –  Não compreendi bem. Sócrates –   Digo, sabendo que não ireis denunciar-me aos poetas trágicos e aos outros imitadores, que, segundo creio, todas as obras deste gênero arruínam o espírito dos que as escutam, quando não têm o antídoto, isto é, o conhecimento do que elas são realmente. Glauco –  Por que falas assim? Sócrates –   É preciso dizê-lo, embora uma certa ternura e um certo respeito que desde a infância tenho por Homero me impeçam de falar. Na verdade parece ter sido ele o mestre e o chefe de todos esses belos poetas trágicos. Mas não se deve testemunhar a um homem mais consideração do que à verdade e, como acabei de dizer, é um dever falar. 27

Muitos comentadores, a começar por Aristóteles, têm assinalado como paradoxal a expulsão dos poetas, seja como ato tirânico, seja como contradição, uma vez internalizada a República também como obra poética. Chamamos, todavia, a atenção  para a exploração distintiva que Platão trouxera à mostra: tratava-se da emergência de

27

  PLATÃO. A república. Tradução de Enrico Corvisieri. 15ª ed. São Paulo: Editora Nova Cultural, 2004, p. 321.

27

um novo tipo de poesia enquanto literatura empírica, abandonando o ritual trágicoreligioso e penetrando no espaço da elaboração filosófico-política da verdade.

1.4. A gestão de legislador

 No famoso segundo livro da Política, Aristóteles não apenas revela sua ácida crítica à República de Platão como nos adianta ser esta, em suma, uma obra poética. Ironicamente, portanto, como na obra platônica Sócrates expulsa os poetas, o próprio Platão estaria, em última análise, expulsando a si mesmo. Contudo, o primordial da crítica de Aristóteles encontra-se no próprio conjunto de análise, mais complexo e original. Note-se que, buscando explorar as contribuições existentes para se pensar uma República ideal, Aristóteles elabora um método analítico inovador: a junção de teoria e prática. Assim, nos oferece a seguinte hipótese: trabalhar as principais contribuições poéticas em correlação com os principais exemplos empíricos. Tal estudo estaria justificado pela necessidade de um diagnóstico preciso:

Empreendemos a tarefa de procurar, entre as sociedades políticas, a melhor para os homens, os quais têm, aliás, todos os meios de viver segundo sua vontade. Devemos, pois, examinar não só as diversas formas de governo em vigor nos Estados que passam por ser regidos por boas leis, mas ainda as que foram imaginadas pelos filósofos, e que parecem sabiamente combinadas. Faremos ver o que elas têm de bom e de útil, e mostraremos ao mesmo tempo que, procurando uma combinação diferente de todas elas, não pretendemos mostrar sabedoria, mas que o vício das constituições existentes a isso nos compele.28

28

 ARISTÓTELES. A política. Tradução de Nestor Silveira Chaves. Rio de Janeiro: Ediouro Publicações, 1988, p. 28.

28

Desse modo, na primeira clivagem, analisando os autores que trouxeram idéias originais sobre uma república ideal, comenta aspectos em Platão, em Faléias de Calcedônia e em Hipodamos de Mileto. Na obra platônica, lê com acento crítico o fim da propriedade privada, onde a própria família fora vista por Platão enquanto modelo de  propriedade, portanto socializável. Da análise dos prós e contras, Aristóteles resgata uma idéia mediana: controle do acúmulo de riquezas. Em Faléias, ressalta a partilha das fortunas, equilibrando a sociedade em momentos de desnível. E, em Hipodamos, chama a atenção para o planejamento original das cidades e para a economia processual.  No segundo bloco de abordagens, Aristóteles observa o governo de cidades em sua época, em especial as cidades de Esparta, Creta e Cartago. Em Esparta, exemplo por extensão da Lacedemônia, o autor ressalta a organização militar, a ordem, a hierarquia, infelizmente ameaçados de decaírem por não existir uma previsão da função das mulheres, as quais, herdeiras dos homens, devido ao risco de vida permanente, acabam  por dilapidar o patrimônio reunido. Em Creta chama a atenção, em especial, para o sofisticado modelo representativo. E em Cartago anuncia uma novidade audaciosa: o  plebiscito, onde o povo reunido em assembléia pode obstaculizar a atuação soberana. Todavia, a grande originalidade da análise está em identificar, para além da crítica ao caráter meramente poético-discursivo da República de Platão, o surgimento de um novo personagem no cenário político: o legislador:

Entre os homens que divulgaram sistemas de governo, muitos há que jamais tiveram parte nos negócios públicos, que jamais saíram da vida privada. Temos dito sobre a maior parte deles tudo o que merece alguma atenção. Vários legisladores têm ditado leis a seus concidadãos ou a outros povos estrangeiros, e eles próprios têm-se ocupado do governo. Desses legisladores, alguns só elaboram

29

leis, outros fundam estados, como Licurgo ou Sólon, que foram simultaneamente legisladores e fundadores de governo. 29

Aristóteles faz do legislador o aedo dos novos tempos, aquele capaz de recolher a contribuição poética e o exemplo prático, capaz de escrever a obra fundamental do Gênio e de fundar cidades, consubstanciando na ação o ideal imaginado.

29  Id.,

ibid., p. 48.

30

SEGUNDO ATO

31

2. JÓ: O EXEGETA E O CÂNONE.

 No Livro de Jó   encontra-se talvez a mais importante das antigas referências a Satanás, o opositor, então um mero ministro de Deus, uma espécie de Promotor Público  junto à Justiça Divina; sendo, na realidade, denominado “o Satan”, objetivando o artigo tratar-se antes de um substantivo comum - um cargo - do que um substantivo próprio - o nome do Mal. Trata-se a obra de um longo poema relatando diálogos sucessivos numa estrutura dramática introduzida e concluída por breves trechos em prosa. Nela, Jó vive em torno do século V a.C. e é afortunado, piedoso e justo, tem um imenso rebanho, uma grande família e adora o Senhor. Deus, por sua vez, também está muito satisfeito com tal servo, a ponto de comentar com o Satan, quando este retorna de suas andanças pelo mundo, de que não há ninguém igual a Jó na terra. É quando o Satan, que está entre os filhos de Deus (cf. Jó 1,6), retruca que é fácil adorar a Deus quando se possui felicidade e fortuna. Deus então responde: “Pois bem! Tudo o que ele tem está em teu poder” (Jó

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1,11)30. E a completa desgraça vem a recair sobre Jó: os Sabeus roubam seu gado e  jumentos, um raio incendeia-lhe ovelhas e escravos, os Caldeus em três bandos roubamlhe os camelos e assassinam-lhe os servos e um furacão abala sua casa matando-lhe todos os filhos. Jó rasga as roupas, arranca os cabelos e caindo prosternado diz: “O Senhor deu, o Senhor tirou, bendito seja o nome do Senhor!” (Jó 1,21). Retornando o Satan à presença de Deus, Este torna a citar a integridade de Jó, alegando ter sido em vão ter-se incitado a perdê- lo. “Pele por pele!”, respondeu o Satan, “O homem dá tudo o que tem p ara salvar a própria vida. Mas, estende a tua mão, tocalhe nos ossos, na carne; juro que te renegará em tua face” (Jó 2,4s). O Senhor decide dispor Jó ainda uma vez ao poder do opositor, recomendando: “poupa -lhe apenas a vida” (Jó 2,6). Ferido com uma lepra, Jó vê seu próprio corpo consumir-se. Sua mulher incita-o a amaldiçoar a Deus. Mas Jó insiste: “Aceitamos a felicidade da mão de Deus; não devemos também aceitar a infelicidade?” (Jó 2,10). E, sentado sobre cinzas, valendo -se de um caco de telha para coçar-se, Jó é visitado por três amigos que, sabedores da sua desgraça, procuram consolá-lo. Os amigos choram frente ao estado lastimável de Jó e o cercam em silêncio por sete dias e sete noites, tão grande é a dor em que o encontram mergulhado. Após esse prazo, Jó inicia um profundo lamento, onde amaldiçoa o dia em que nasceu, em profunda mágoa para com o desatino divino. O longo poema que se segue tem como tema o sofrimento. Interessante notar que as falas humanas virão todas em versos, diferente das ações divinas, relatadas em  prosa. O humano, talvez, necessite aproximar-se da idéia do belo, qualidade intrínseca à esfera divina.

30  

Cf. BÍBLIA SAGRADA . Tradução dos originais mediante a versão dos monges de Maredsous (Bélgica) pelo Centro Bíblico Católico, revista por Frei João José Pedreira de Castro. São Paulo: Editora Ave Maria, 1989. Todas as demais citações diretas do Livro de Jó seguem essa mesma referência.

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Haroldo de Campos chama a atenção para os aspectos dialéticos presentes na  própria elaboração do personagem Jó:

(...) o  Livro de Jó (Sêfer Há-Íyov), atribuído a Moisés pela tradição hebraica, tem parecido a alguns estudiosos modernos “desarmonioso” ao extremo na construção de seu principal protagonista  –   a personagem-título, Jó. Por essa razão se justificaria a hipótese de que esse Jó paradoxal teria resultado da “fusão de duas (outras) personagens: ‘Jó, o paciente’, herói do relato em prosa (moldura do livro); ‘Jó, o impaciente’, figura central do diálogo poético que no livro transcorre”; desse segundo Jó, aquele que na verdade mais nos fascina, já foi dito que era movido pela “hybris da virtude”. 31

Em seu lamento, Jó, aniquilado, aspira tão-somente a que Deus traga-lhe a morte, inconformado com o fato de sofrer incessantemente apesar de haver sido sempre  justo. Os amigos, Elifaz de Temã, Bildad de Chua e Sofar de Naama obtemperam, caracterizando o sofrimento como castigo e instando com Jó para que peça perdão por seus pecados. O drama vai, paulatinamente, desenvolvendo os contornos de uma lide  jurídica. Nota-se que há, no procedimento das falas e das réplicas, um fundo ritualístico, invocando o Direito Judaico. Os amigos representam o pensamento corrente em Jerusalém. Mas para defender-se dessas idéias comuns, ou melhor, para afirmar a impropriedade de um justo ser castigado, Jó questiona a aplicabilidade de pressupostos sobre justiça, uma vez que para Deus, ao que tudo indica, tanto se Lhe faz. Ao contrapor argumentos aos companheiros, o que Jó pretende é fazer, pelo paradoxal da questão, com que o próprio Deus suba à Tribuna para replicar com sua voz    o porquê dele estar sendo condenado. É quando declara:

31  CAMPOS.

Haroldo de.  Bere’shith: a cena de origem. São Paulo: Editora Perspectiva, 2000, pp. 57-58. A citação faz referência interna a GREENBER, Moshe. Job. In: ALTER, Robert; KERMONDE, F. The literary guide to the Bible . Cambridge: The Belknap Press of University Press, 1987; e a TERRIEN, Samuel. Job (Comentaire de l’Ancien Testament, XIII). Neuchátel, Suisse: Delachaux/Niestlé, 1963.

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Mas é com o Todo-Poderoso que eu desejaria falar, é com Deus que eu desejaria discutir. Pois vós não sois mais que impostores, não sois senão médicos que não prestam para nada (...) Escutai, pois, minha defesa, atendei aos quesitos que vou anunciar. Para defender a Deus, ireis dizer mentiras, será preciso enganardes em seu favor? Tereis, para com Ele, juízos preconcebidos, e vos arvorais em ser seus advogados? (Jó 13, 3-4. 6-8)

Jó tem plena consciência de que litiga contra Deus. Está a ser, por assim dizer, um opositor. E é de certa forma contra esse absurdo que Elifaz, Bildad e Sofar reagem. O tema é ainda elaborado e discutido sob vários pontos de vista sem que se chegue a alguma conclusão satisfatória. Os três amigos refutam a argumentação de Jó por vê-la como um disparate, pois incorreria na admissibilidade de um erro divino, restando tão só e certamente a possibilidade do pecado humano, agora sublinhado pela disposição herética do condenado. Jó, todavia, sabedor de que a fonte de seus males provém de Deus, questiona qual será a vantagem de ser puro, quando o ímpio rouba o gado e enriquece impune, pouco ligando em crer ou não em Deus.  Na tradição onde se encontra inscrito, Jó não faz mais do que pedir a conformação da lei divina à correção humana, mesmo porque podemos supô-lo como um exegeta.

Quanto ao deutoronomista em particular, deve-se observar, contrariando Frost, que, como Jó não é israelita, seus sofrimentos não constituem nenhuma violação da aliança deutoronômica. Jó nunca ouviu falar de Moisés. Não há tampouco nada na estrutura do Livro de Jó que possa sugerir que deva ser visto como uma alegoria

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dos sofrimentos de Israel durante ou depois do exílio babilônico. Nem Jó, nem Deus, nem Satã, nem nenhum dos acusadores de Jó chega sequer a insinuar a história de Israel. A única aliança conhecida por Jó é a aliança do Éden, por assim dizer, e ele não a conhece por conhecer o mito da criação israelita enquanto tal. Ele simplesmente acredita que Deus é criador e bom e que um Deus bom não criaria um mundo em que um homem inocente como ele acabe sofrendo sem nenhuma  boa razão. Sua cosmologia é, com efeito, a do recém-concluído  Livro dos  Provérbios, menos a cláusula liberatória judaica ou derivada da Tora.32

Vale dizer, para que serve Deus senão para impor uma ordem, um modelo de  justiça? Repare-se que seu lamento apenas se inicia depois da comparação com seus congêneres. Após a maturação das semelhanças e diferenças elencadas no silêncio daqueles sete dias e sete noites, mesmo período que o Senhor utilizara para a Criação, Jó emerge, engrandecido por um saber até então inédito: o da necessidade imperiosa de estabelecer-se, entre os homens, um simulacro da justiça divina. Nesse sentido, o lamento de Jó pode ser compreendido como uma proto-história do compromisso social e mesmo das noções de direitos e deveres individuais. Se por vezes se compara sua lida com a de Abraão ao subir o monte disposto a sacrificar o filho de sua velhice, vale lembrar que para o Pai da fé um anjo permite o deus ex machina e tudo resta explicado. Jó não vai contra o desígnio divino, quer apenas entender a função do seu sofrimento na orquestração maior, a qual, sob seu ponto de vista, resta desprovida de lógica. Em outras palavras, aspira a um deus ex machina em prol da Virtude. Retornando ao poema, nesse momento entra em cena um quinto personagem, Eliú, filho de Baraquel, de Buz, um jovem que aguardara pacientemente que aos mais velhos a sabedoria se fizesse conhecer. Entretanto, ao notar que os argumentos

32

 MILES, Jack. Deus: uma biografia. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 343. O tradutor adverte, em nota e rodapé, nessa passagem: “A expressão ‘cláusula liberatória’, que voltará a aparecer no texto, é jurídica. Indica ‘cláusula em que se convenciona que uma das partes (de um contrato) ficará exonerada de responsabilidades ou encargos quando ocorram certas e determinadas circunstâncias’’’

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cessavam sem, contudo, desvendar-se uma explicação razoável, encoleriza-se e toma a  palavra. E ao Direito reclamado por Jó, frente ao qual este é um justo, opõe o inescrutável, o desígnio divino às vezes i ncompreensível “pois Deus é maior do que o homem” (Jó 33,12). E de nada adiantaria acusar Deus de não responder de viva voz,  pois o discurso de Deus é de outra natureza, comunica-se através do sonho e através do sofrimento. E arremata:

Imaginas ter razão em pretender justificar-te contra Deus? Quando dizes: “Para que me serve isto, qual a minha vantagem em não pecar?”. Pois vou responder-te, a ti e a teus amigos. Considera os céus e olha: vê como são mais altas que tu as nuvens! Se pecas, que danos lhe causas? Se multiplica tuas faltas, que mal lhe fazes? Se és justo, que vantagem lhe dás? ou que recebe ele de tua mão? Tua maldade só prejudica o homem, teu semelhante, tua justiça só diz respeito a um humano. (Jó 35, 2-8)

E Eliú termina glorificando as maravilhas de Deus, seu poder fenomenal e sua voz tonitruante que se faz ouvir como uma lei aos elementos. O aparte de Eliú - cujo nome é uma variante de El-Iah ( El /Deus- Iahweh/Jeová) funciona como uma introdução ao último e magnífico personagem: o próprio Deus que, do seio de uma tempestade, no meio de um redemunho, responde a Jó:

37

Quem é aquele que obscurece assim a Providência com discursos sem inteligência? (...) Onde estavas quando lancei os fundamentos da terra? (...) Algum dia na vida deste ordens à manhã? (...) Qual é o caminho da morada luminosa? Onde é a residência das trevas? Poderias alcançá-la em seu domínio, e reconhecer as veredas de sua morada. (Jó 38, 2.4.12.19-20)

Cabe ao homem aceitar o modo divino de proceder e não questionar a Sabedoria e a Bondade. Jó retrata-se e arrepende-se. O Senhor, então, dirigindo-se a Elifaz e seus amigos, dá conta de sua irritação pela argumentação travada contra seu servo Jó e exige o holocausto de sete touros e sete carneiros. E a Jó é restituída rest ituída a saúde, a posição social, as posses anteriores vêm em dobro e todos os amigos e parentes ofertam-lhe riquezas. Torna a ter tantos t antos filhos filhos e filhas quantos os que havia perdido e ainda mais belos. E vive  por mais 140 anos para conhecer a quarta geraçã o dos filhos de seus filhos. “Depois, velho e cheio de dias, morreu” (Jó 42,17). A obra do poeta desconhecido, autor do Livro de Jó, elaborada provavelmente entre os séculos VI e V a.C., é produto de um douto na ciência jurídica. Temos na atualidade a noção vulgarizada de que o Direito ocidental é exclusivamente uma evolução histórica do Direito Romano com laivos socrático-platônicos. Destarte, levando-se em conta o concurso do judaísmo na formatação cultural da moral católica apostólica romana, vale salientar que dentre os povos do antigo oriente próximo, o Estado de Israel constituía uma exceção por sua estrutura jurídica caracteristicamente democrática, com acesso de todos os indivíduos à lei. Ainda que o povo não exercesse 38

 propriamente  propriamente o poder, dava-se proteção aos desamparados, desamparados, mesmo mesmo se escravos. E inclusive Jó dá testemunho disso:

 Nunca violei o direito direito de meus escravos, ou de minha serva, em suas discussões discussões comigo. Que farei eu quando Deus se levantar, quando me interrogar, que lhe responderei? Aquele que me criou no ventre, não o criou também a ele? Um mesmo criador não nos formou no seio da nossa mãe?  Não recusei aos pobres pobres aquilo que desejavam, desejavam, não fiz desfalecer os olhos da viúva, não comi sozinho meu pedaço de pão, sem que o órfão tivesse a sua parte; desde a minha infância cuidei deste como um pai, desde o ventre de minha mãe, fui o guia da viúva. (Jó 31,13-18)

O Direito é aqui de vocação exclusivamente holística. Por funcionar como imanência de uma lei maior, cosmológica, a lei israelita enfrenta no drama uma lide  paradoxal,  paradoxal, extremada por dois posicionamentos posicionamentos que ameaçam ameaçam tornarem-se leituras subversoras. São eles, o direito individual por parte de Jó e, da outra parte, a concorrência do mal no desígnio sagrado. Onde a Lei, ao tipificar um crime, de certa forma, carrega-o consigo, ao enquadrá-lo fá-lo parte da Criação. Se praticamente todos os códigos penais do futuro, em diferentes civilizações, concordarão com o pressuposto de que não haverá crime sem lei anterior que o defina, para aquele momento, onde a  palavra era revelação, a Lei tornava-se, concomitantemente, concomitantemente, o lugar onde surgia o crime.  Na opinião de Jack Miles, o confronto confronto que se inaugura inaugura revela um problema incisivo:

39

Pela posição adotada nos Provérbios nos  Provérbios,, o mundo é justo no geral, mas, quando não o é, presume-se que o Senhor teve boas razões para isso. O autor de Jó aceita essa  posição como ponto de partida, mas depois especula: especula: “Muito bem, e que razões são essas?”. Ele responde à própria questão contando uma história profundamente  blasfema sobre o Senhor Deus. A originalidade subversiva do do Livro  Livro de Jó pode Jó  pode ser encontrada tanto nessa blasfêmia como na angustiada eloqüência dos discursos do  personagem-título.33

Fica em questão dessa maneira não só a explicação poético-teológica para o erro  jurídico, mas a própria fundamentação fundamentação da interpretação interpretação legal, legal, onde se consorcia a exegese do texto não escrito. Pois que Jó tenta demonstrar em sua argumentação que o seu sofrimento é exemplar, e, por assim ser, atenta contra a representatividade que ele  possuía entre os homens e, conseqüentemente, é eivado de ilações políticas. Se fora um  patriarca justo, proprietário de um número vasto de animais e escravos, fiel, reprodutor, ordeiro, trabalhador e ainda louvara ao Senhor na benesse e na desgraça, Jó deveria representar a ordem de Deus na terra, recebendo em harmonia o proporcional ao suor e à dedicação. Quando cai em desgraça, por motivos inescrutáveis, o que figura em perigo é o status st atus da própria Representação, Representação, em suma, a segurança segurança de Ser. Os três amigos, que aparentemente defendem Deus das invectivas de Jó, não conseguem esconder essa preocupação. Ainda que incompreensível a culpa de Jó, para ti nh a que se ser  culpado, os outros patriarcas este tinh   culpado, mesmo que de uma culpa invisível aos

olhos, em vista de uma lógica argumentativa do tipo ad maiorus ad minus. minus. Está em risco o estatuto social, a Lei não poderá decair junto com Jó, o que poria em perigo a  posição deles deles mesmos e dos dos demais patriarcas, patriarcas, para não não falar na idéia de patriarcalismo. patriarcalismo. É importante que se assinale que naquele momento histórico era prática comum o holocausto de animais a Deus, mormente cordeiros, estabelecendo-se, através do 33  MILES,

Jack, op. cit., p. 345.

40

sangue das vítimas, um conduíte para com o sobrenatural 34. Essa prática, comum a várias religiões, seja no antigo Oriente próximo, no Egito ou na Grécia, aquilatava o  pedido ou o castigo conforme a quantidade e qualidade do sacrifício oferecido. Assim,  para um ritual meramente simbólico - um batizado, o agradecimento a uma hospedagem - uma pequena ave seria o suficiente; porém, na medida em que o que estivesse em questão fosse mais difícil de alcançar, o sacrifício exigido poderia ser bem maior. Para Abraão exigiu-se a disposição de sacrificar o próprio filho centenariamente aguardado;  para Jó, à sua revelia sacrificou-se toda a família e todas as posses; para a humanidade, sacrificar-se-ia o próprio filho de Deus. Portanto, não é de se estranhar totalmente que, na visão de Elifaz, Bildad e Sofar, para a preservação da ordem patriarcal, parecesse necessário que o antigo esplendor de Jó e ele mesmo fossem sacrificados naquele holocausto involuntário. Robert Alter, por outro lado, chama a atenção para a clarividência de Jó:

Jó nunca duvida da existência de Deus, mas, exatamente porque supõe, à maneira  bíblica, que Deus deve ser responsável por tudo o que acontece no mundo, ele reiteradas vezes quer saber por que Deus agora permanece escondido, por que Ele não se mostra e enfrenta o indivíduo a quem infligiu sofrimento tão agudo. 35

Ao exigir um reexame da matéria, ao pretender uma nova instância que lhe explicite a culpa, Jó não está negando o castigo - este, ele o sabe, é de origem divina -, está afirmando seu direito à revelação, ao princípio da publicidade da justiça, ao tempo em que nega a legitimidade da instância aparente, subvertida pela inexplicabilidade do caso. O que Jó tenta demonstrar com todas as forças é justamente a validade de uma teoria da justificação da decisão diante mesmo das leis não escritas, que refletiria na

34

 Conforme, no imaginário grego, a cena da invocação aos mortos na Odisséia, que examinamos. Robert. Em espelho crítico. São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 24.

35  ALTER,

41

validade do exemplo atemporal dos patriarcas: o  principium  que precede a norma, trazendo a perfeita adequação do direito humano à justiça divina. Essa, justamente, a revolução de sua postura: ao exigir uma resposta, ao pretender conformar vida e texto sagrado, exige o surgimento de uma exegese jurídica que contemple a tradição enquanto referendum, podendo, dessa forma, auxiliar-se da jurisprudência da fé. O que Jó tece no silêncio dos sete dias e noites que antecederam ao debate, é a  profunda interpretação dos pressupostos civilizatórios do povo eleito. Trata-se, retrospectivamente falando, do primórdio de um discurso hermenêutico sobre os Princípios Fundamentais do acesso à justiça do Estado nascente. O líder tribal, em seu sofrimento, reconhece que sua dilacerante travessia pela perda e pela dor não se faz em vão, mas coincide com a maturidade da própria humanidade. Esta, havendo já muito sofrido, imersa no cotidiano do trabalho duro, teria passado simbolicamente por um holocausto íntimo, por uma verdadeira catábase, que faria ressurgir o homem definitivo, aquele capaz de basilar sua posição e defender a primazia de sua honestidade como  pressuposta, mesmo frente à Instância Maior. 36  Não é por menos que parte de seu discurso se dá sob a rubrica da sabedoria,  buscando sua definição. Se a sabedoria coincide forçosamente com os desígnios de Deus e, conseqüentemente, com a justiça administrada pelo povo eleito, e se Jó, o modelo patriarcal desse povo, é justo e fiel, é de se esperar a conclusão óbvia de ser ele um sábio, ou seja, de ter ele razão ao exigir razão de Deus. Seu argumento ab auctoritate procura demonstrar a si mesmo como essa autoridade de onde desvenda-se a exegese da lei judaica. Dessa maneira, na esfera humana, Jó investe-se dos atributos de um Opositor.  Não se trata de um reflexo do Satan, mas, juridicamente, ele é um opositor ao Opositor 36

 Nesse sentido, Jó e Hesíodo em Os trabalhos e os dias convergem, do mesmo modo que o Gênesis convergira com a Teogonia.

42

(vez que o Satan enforma a esfera divina); age, por assim dizer, não pelo Princípio do Contraditório, então carente de elaboração, mas em Legítima Defesa da Fé. Todavia, Jó não sabe do Satan, sabe que Deus é único, e, portanto, é à justiça divina que Jó se opõe, ou melhor, é a Deus que Jó opõe a sua fé. E é como opositor que Elifaz de Temã, Bildad de Chua e Sofar de Naama o  percebem. Estão condoídos por seu sofrimento, mas sua solidariedade não chega ao  ponto de questionar as intenções sagradas, ainda mais quando esse questionamento implicaria numa revisão de seus próprios pressupostos enquanto patriarcas. Consideram as réplicas intermitentes de Jó como uma argumentação ab absurdum. O que anteviam em Jó era justamente o desvincular da exegese em relação ao cânone religioso. A argumentação que se abre, todavia, é muito mais do que um jogo ou um arrazoado retórico. O discurso se plasma de características poéticas, as quais, no invólucro de cada fraseado, sustentam uma coloração estilística que arremata o próprio cerne discursivo. É Robert Alter quem assinala:

O que se precisa enfatizar, no entanto, muitíssimo mais do que foi feito até agora, é o papel essencial que a poesia desempenha na realização imaginativa da revelação. Se a poesia de Jó  –   pelo menos quando seu texto muitas vezes  problemático é plenamente inteligível –   se destaca de toda a poesia bíblica em virtuosidade e pura força expressiva, o poema culminante em que Deus fala do meio da tempestade eleva-se além de tudo o que precedeu no livro, onde o poeta elaborou um idioma poético ainda mais rico e mais impressionante do que aquele que emprestou a Jó. Ao impelir a expressão poética rumo a seus próprios limites superiores, o discurso de conclusão ajuda-nos a ver o panorama da criação –  como talvez só pudéssemos fazê-lo através da poesia –  com os olhos de Deus. 37

Quando os extenuantes debates revelaram-se inconclusos, entrara em cena vindo de onde? - Eliú, um jovem sábio que reverte o tema da sabedoria. Ao demonstrar 37  ALTER,

Robert, op. cit., p. 25.

43

que a inteligência “é o espírito de Deus no homem” (Jó 32, 8), e que, portanto, não depende necessariamente da idade, revela conjuntamente a origem do saber. Condena os quatro patriarcas por buscarem razões sob o ponto de vista humano: Jó para justificar-se e os outros três para justificar Deus, acabando por Comprometê-lo. As razões de Deus, segundo Eliú, são, por natureza, insondáveis, são superiores à humanidade e por isso mesmo não estão sujeitas à sua capacidade interpretativa. Perscrutar os motivos do sofrimento de Jó era tarefa para a miséria humana, Deus nada tinha a ver com essa vulgarização. Para o Criador, o sofrimento também era Obra e ao comunicar-se - pois, segundo Eliú, o fazia através de sonhos e do sofrimento - estivera o tempo todo a embalar a Jó. O solilóquio de Eliú funciona na trama como boa nova. Ele não participa da altercação, senão de forma velada; faz antes quatro discursos - número igual ao dos motivos anteriormente explanados -, encadeados, e que já não admitem réplica. Quando Eliú fala já não se está mais no campo do debate ou da fase probatória, mas no terreno das revelações ou, no mínimo, das presunções especialíssimas; suas palavras são como as de um médium, eivadas de uma verdade ancestral. Seu nome, “Jeová é Deus”, redundante no significado, o sugere mesmo como um duplo de Deus (chamado Yahweh, no original), seu Porta-Voz. E isso literalmente, já que, após ele, é a voz de Deus que surge. E não caberia mesmo a Deus vir aos homens explicar-se - Eliú o intermedia -, senão revelar-se como força superior às leis humanas. Eliú estaria no patamar dos arcanjos, como Gabriel ou Rafael. Mas, todavia, ele é humano, é-nos informada sua genealogia: filho de Baraquel de Buz, da família de Rão. Contudo, surge como que do nada, subitamente. O drama não o havia introduzido e, após sua fala, ele não torna a ser citado. É como uma aparição, um raio, e, pelo sentido de seu discurso, simboliza perfeitamente o aedo, o profeta, o anjo ou mesmo

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uma manifestação hierofântica do próprio Deus. Eliú é um proto-Jesus Cristo e, para dizê-lo com todas as letras, é o próprio poeta a manifestar-se de dentro do poema. Certamente há toda uma polêmica relativa à passagem de Eliú enquanto interpolação. Todavia, esta, nos parece, trabalhado o Livro de Jó   enquanto obra lida historicamente, só é relevante enquanto mapeamento de uma grande autoria histórica coletiva, que justamente imbricou em fazer de Jó o legislador potencial. Nesse mesmo sentido, Alter se pronuncia:

As “emendas” mais visíveis no livro estão entre a história básica e o argumento  poético, mas essa evidente falta de conexão não é, na verdade, relevante para o nosso interesse pela Voz do meio do Redemoinho, e pouca diferença faz se considerarmos a história básica um antigo conto popular incorporado pelo poeta ou (é a minha opinião) uma antiga tradição reelaborada engenhosamente pelo poeta num estilo conscientemente arcaizante. Dentro do próprio argumento poético, existe uma concordância quase geral entre os estudiosos de que o Hino à Sabedoria (cap. 28) e as falas de Elihu (caps. 32-37) são interpolações pelas quais não foi responsável o poeta Jó regional. Não pretendo discutir uma ou outra dessas opiniões, mas gostaria de observar que o poeta posterior e, no caso do capítulo 28, o editor que escolheu o poema entre a literatura de salmos de sabedoria que lhe era disponível estavam tão atentos à função culminante da Voz do meio do redemoinho que justificaram a inclusão do material adicional, pelo menos em parte, como antecipações do poema de conclusão.38

Quando a voz de Deus faz-se ouvir não há mais justificativas a serem dadas, nem o poderia haver, pois esse papel coubera à deslumbrante juventude de Eliú. Deus só faz sublinhar a infinidade do seu obrar e o insondável dos seus atos, coroando o poema com toda uma beleza mitológica que serve de contraponto às provas e contraprovas do  pesado debate. A solução da peça com a repreensão a Elifaz e seus amigos e a restituição da condição original a Jó compõe o ansiado deus ex machina, já então um 38  ALTER,

Robert, op. cit., pp. 25-26.

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happy-end , assegurando à verdadeira fé a justiça final. E garantindo ao  juris do  prudente, ao direito consuetudinário, não-escrito, passado adiante dia após dia, através da soma dos tempos, incorporado à tradição e fazendo-se subjetividade maior e exterior ao próprio homem, a primazia no debate travado. Contudo, tenha-se claro, essa primazia se dá em virtude de ter a tradição se consolidado em interpretação. Robert Alter, por seu turno, volta a salientar a importância da distinção estilística dos discursos:

Os amigos, na qualidade de defensores autonomeados da posição de Deus, abordam com freqüência certas idéias que realmente estão em consonância com o discurso divino do final, mas os termos com que tais idéias são enunciadas e os contextos em que são colocadas transformam-nas em algo insípido e superficial.  Nesse aspecto, a Voz do meio do redemoinho é uma revelação de contraste entre as meias-verdades gastas de clichê e as surpreendentes e difíceis verdades expostas quando se rompe a casca estilística e conceitual do clichê. 39

Essa dicotomia entre uma verdade tecnicamente verificável em confronto com um desígnio sagrado contraditório, ou, em outras palavras, entre saber e fé, humano e divino, razão e irracional (aqui num sentido de supra-razão), dispõe um permanente equilíbrio sobre o real sentido da justiça. Aos exercícios de metalinguagem responde o esforço metafísico, à trajetória de um povo presentifica-se a projeção de uma metahistória e à sedimentação da lei protesta a intuição poética. A lei no antigo oriente  próximo humilha-se frente ao Invisível e aceita o castigo da sua limitação: a esfera humana. O homem, feito à imagem e semelhança de Deus, compreende por fim que não é senão uma paródia do Criador e a lei dos homens, por conseguinte, é apenas a sombra de uma Poesia Pura. Haroldo de Campos, em tradução da fala da Voz, também salienta: 39  ALTER,

Robert, op. cit., p. 26.

46

Esse, talvez, o sentido último que se possa extrair da resposta de deus a Jó, convencendo-o a substituir o requerimento da decifração do enigma pela convivência maravilhada com esse mesmo enigma, reposta persuasiva longamente desenvolvida pela retórica divina numa réplica que ocupa os quatro capítulos culminantes do Livro de Jó (Caps. XXXVIII a XLI, inclusive). 40

Sob o ponto de vista alegórico, Deus provara a fé de Jó e este, pela angústia e  pelo sofrimento, fizera por bem merecer do Senhor a riqueza, a prosperidade e a representação de patriarca homenageado e símile da legalidade. A lei através de Jó torna-se mais consolidada justamente por não se basear exclusivamente no direito adquirido e no código civil israelita, mas, sobretudo, por haver subsumido ao paradoxo, à lição de fé, à repetição ritual do sacrifício de Isaac por Abrãao. Sob o olhar de um fato histórico presumível, passado cerca do ano 550 a.C., talvez o lamento de Jó tenha sido um embate jurídico-teológico com seus iguais a reclamar uma espécie de seguro contra o sinistro generalizado em sua vida. Ao construir seu patrimônio e edificar sua fortuna, Jó construíra e edificara também patrimônios e fortunas sociais, haja vista viúvas e órfãos; assim sendo, se fora vítima de um holocausto que não “ provocara”, se sobre si abatera-se um doido ricochete do raio divino, fazia jus, pelos mesmos motivos, sociais e divinos, a um reparo, uma vez que ao  primordial - o trabalho e a fé - não faltara. E o debate com Elifaz, Bildad e Sofar, nesse sentido, talvez representasse a resistência do individualismo emergente de parcelas da sociedade em abrir mão de parte de seu patrimônio para restituir a um desgraçado sua  posição anterior. Tratar-se-ia o debate longamente travado da tentativa de entendimento  por aquela casta dos primórdios do pressuposto de um contrato social. E a boa nova de Eliú talvez configurasse uma nova geração a reler a anterior e a reconhecer o 40  CAMPOS,

Haroldo de. Op. cit., p. 69.

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compromisso social do Estado, daí o fato descrito de que toda a sociedade veio a se reunir à frente de Jó e “cada um deles ofereceu -lhe uma peça de prata e um anel de ouro” (Jó 42, 11). Jack Miles entende que dessa contradição se manifesta, claramente, uma cisão  primordial: o fim do Deus terrível, que, doravante, virá a ser o Deus benevolente 41. E sublinha os aspectos da cisão:

E exatamente neste ponto encontramos o maior dilema para a interpretação tradicional do Livro de Jó. Em toda a sua dor e sofrimento, Jó (1) insiste em sua integridade, (2) exige que Deus explique por que o seu servo deve sofrer e (3) expressa consistentemente sua confiança de que Deus no fim o vingará, invocando mais de uma vez uma cena de tribunal como a que se lê em Zacarias, 3, porém, de acordo com a interpretação mais comum (4) arrepende-se do que disse. Quando o Senhor afirma que Jó falou corretamente, está se referindo ao arrependimento ou aos discursos? Não pode coerentemente referir-se a ambos, se o arrependimento repudia os discursos. 42

Uma das distinções entre a fábula bíblica e a possibilidade histórica torna a residir na fundamentação jurídica. Na primeira, como vimos, a lei humana é circunscrita à sua própria esfera, miserável tentativa do arrependimento humano em banhar-se à luz de uma justiça imanente. Na segunda versão, a organização social seria privilegiada, estando inaugurado o socialismo de Estado, onde a religião teria uma função alegórica, sendo a noção de povo eleito um diferencial em relação a um patriarcalismo convencional. Outra distinção entre as duas versões está na probabilidade de Jó, na última delas, após todos esses acontecimentos fantásticos, ter tornado a questionar por que,

41

 Paralelo das Eumênides gregas, conforme se verá adiante. Jack, op. cit., p. 351

42  MILES,

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afinal de contas, fôra castigado? Para que tanta gratuidade na destruição? Seria Deus conjuntamente bom e mal? Miles, contudo, percebe no jogo dúbio das perguntas e respostas importantes  pistas:

Estruturalmente, o autor de Jó criou uma simetria na forma de dois pedidos e duas recusas. Jó fala longamente sobre a justiça e pede a Deus que responda. Deus recusa. Deus fala longamente sobre o poder e pede a Jó que responda. Jó recusa. O mero silêncio da parte de Jó seria, em termos dramáticos, um pouco ambíguo demais. È importante que Jó responda apenas o suficiente para nos fazer saber que ele se recusa a responder, o suficiente para responder à nossa pergunta: ele vai se deixar levar? Em suas duas respostas ao Senhor, Jó se recusa a responder. Assim ele prova que não se convenceu. Assim abre caminho para a acomodação do senhor e para a alegria e reconciliação da conclusão. 43

Se miticamente Jó soube render-se ao inexplicável, admitindo o bem e o mal  provenientes de Deus, para a evolução da exegese do direito e mormente no amparo desses ditames à obra apostólica da Igreja nascente, esta provação figuraria como um “ritual de passagem” da própria Lei humanizando -se44. De agora em diante o Direito revestia-se de divindade. Como conseqüência, Deus não poder ia mais ser mal . Pelo menos não gratuitamente. Deus, sobretudo o novo Deus a surgir com o Novo

Testamento   como fonte do bem eterno, ao permitir a humanização da justiça, exonerava-se de carregar o Mal em seu bojo, exilando-o da esfera divina e fazendo-o habitar as esferas ínfimas, próximo ao homem. Deus sai de cena como personagem,  permanecendo como sentido imanente, como força argumentativa para a fala que então é plasmada pelo homem, ainda que representado por tipos ideais como os apóstolos, ou 43  MILES,

Jack, op. cit., pp. 356-357. semelhança, na cultura grega, do julgamento de Orestes proporcionando uma versão mítica para as reformas introduzidas pelo legislador Dracón, em 621 a.C., que redigira um código contra o arbítrio dos clãs familiares, conforme se verá adiante. 44  À

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híbridos, como o trindático Jesus Cristo. Sua face terrível correspondendo agora tão-só ao imperativo do Bem, exigindo-o. E, como toda sanção divina, uma vez promulgada,  passava a ter efeitos ex tunc, ou seja, passava a ter efeitos retroativos; no caso da própria Criação, validava-se para sempre, mesmo para o período anterior ao seu  pronunciamento. Vale dizer, passava a nunca ter sido de outra maneira. Essa, contudo, e seguramente, seria uma interpretação

a posteriori,

marcadamente religiosa, que procuraria conter os avanços da rebeldia hermenêutica  presente no Livro de Jó, fazendo com que este fosse resgatado pelo Cânone. Nesse sentido, o Concílio Vaticano II, em 18 de novembro de 1965 promulgou a Constituição

Dogmática Dei Verbum  Sobre a Revelação Divina , que reza em seu artigo 2:

Aprouve a Deus, em sua bondade e sabedoria, revelar-Se e tornar conhecido o mistério de Sua vontade (cf. Ef 1,9), pelo qual os homens têm, no Espírito Santo, acesso ao Pai e se tornam participantes da natureza divina por Cristo, Verbo feito carne (cf. Ef 2,18; II Pe 1,4). Mediante esta revelação, portanto, o Deus invisível (cf. Col 1,15; I Tim 1,17), levado por Seu grande amor, fala aos homens como a amigos (cf. Ex 33,11; Jo 15,14-15), entretém-se com eles (cf. Bar 3,38), para convidá-los à participação de Sua intimidade. Esta economia da Revelação se concretiza através de acontecimentos e palavras intimamente conexos. Assim, as obras realizadas por Deus na História da Salvação manifestam e corroboram os ensinamentos e as realidades significadas pelas palavras. Estas, por sua vez,  proclamam as obras e elucidam o mistério nelas contido. No entanto, o conteúdo  profundo da verdade comunicada por esta revelação a respeito de deus e da salvação do homem se nos manifesta em Cristo que é ao mesmo tempo mediador e  plenitude de toda a revelação. - (Cf. Mt 11,27; Jo 1, 14-17; 14,6; 17, 1-3; II Cor 3,16; 4,6; Ef 1,3-14) 45

Como Deus passara a nu nca ter sido o M al , desvenda-se nesse momento que, no

Livro de Jó, houvera um importantíssimo detalhe, não que houvesse ficado 45  Cf.

BÍBLIA SAGRADA, ed.cit.

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desapercebido, mas ao qual, talvez, à época, não tivesse sido atribuído o devido valor nem alertado ao devido cuidado. Houvera o Satan, acontecera aquele opositor a incitar Deus à disputa. Apesar de todo o extenso debate travado entre os patriarcas, o que  passava a importar era o que motivara a tudo: aquele pequeno trecho em prosa, aquele “prólogo no céu”, o qual, ainda que dele Jó não tenha tomado conhecimento, o poeta o revelara ao povo eleito, e onde se encontrava a justificativa tão lamentavelmente aguardada pelo velho herói, o porquê de tanto sofrimento. Fora ele, Satanás, o opositor, que tudo maquinara em outra esfera. Ele, que, via-se agora, apesar de compor a câmara celeste e estar entre os filhos de Deus, corrompia o divino com intenções traidoras e andava pela terra a semear discórdia, agindo como a serpente o fizera no paraíso  perdido. Sempre fora ele, apesar de seus vários nomes, de suas várias faces. Sabia-se agora que era único, hábil nos disfarces, não só um espírito de contradição mas também um dissimulador a induzir-nos ao erro por pura picardia. Para combatê-lo, o homem necessitará da herança de Deus, o Livro, utilizando-se da Lei, da linguagem edificada enquanto sabedoria, desde já iniciando a redação conjunta de um processo cautelar  pressuposto por fumus boni juris e periculum in mora. Distanciado do clamor poético da Antigüidade, o homem moderno que começa a se enunciar faz uma de suas mais ardilosas invenções: inventa o mal, inventa o opositor, inventa o inimigo. Se o Satan do Livro de Jó  se assemelha antes a um ombudsman a  promover, internamente, as duras críticas que permitirão à administração reconhecer seus possíveis desvios, essa esfera democrática tão cedo não encontrará oportunidade na História para sua re-inserção - não encontrou ainda. E assim como a figura de Deus, num consórcio com a mitologia grega, se desenvolverá de forma semelhante a de Cronos, que do terrível devorador dos próprios filhos tornar-se-á, paulatinamente, na figura do príncipe bom e justo das “priscas eras”, de modo inverso, a contrario sensu,

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haverá a construção social da imagem do mal. Surgirá, então, personificado, Satanás, o anjo da morte, a origem de toda dor, e que, então, nos primórdios da Santa Igreja, após o holocausto do próprio filho de Deus, recolherá os despojos pagãos - o corpo de Pan, a queda de Hermes, a luxúria de Zeus, a inveja de Hades, o sangue de Ares - e finalmente erguer-se-á para a grande batalha das trevas contra a luz. Jó, o exegeta, e sua inquietação, restarão sem sublimação, exemplo da abnegação diante da potestade divina. O debate travado e mesmo a composição antagônica do personagem, oscilando entre o “Jó, paciente” e o “Jó, impaciente” deixarão de ser intuídos como duplo da corte celeste e da aposta de Deus com Satan  para plasmar o cânone cristão das aporias entre o bem e o mal, entre a verdade revelada e os ardis do Pai da Mentira. O comportamento oscilante de Jó ficará equiparado à atuação dos “substitutos do demônio”, filiados entre esses os três amigos e a esposa de Jó. O poeta do Livro de Jó  e sua estrutura dramático-jurídica não farão a confluência com uma nova tecnologia discursiva a emprestar destaque ao discurso hermenêutico,  protótipo da cidadania ideal em elaboração, mas restarão como parte do mosaico estilístico através do qual o bom Deus se entreteve com os homens.

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TERCEIRO ATO

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3. ORESTES E ELECTRA E A RAZÃO APÓS O PARADOXO.

Se todo o conjunto das obras dramáticas clássicas pode ser visto como um debate acerca da entrada em cena do Direito, a tragédia de Orestes e Electra, vingando a morte do pai, é, certamente, o argumento mais voltado ao tema. Em suas várias versões, sob a perspectiva dos diferentes autores - Ésquilo, Sófocles e Eurípedes -, faz-se a alusão ao final de uma era e às condições de amadurecimento da cidadania como  promessa de um futuro apaziguado. Contudo, justamente por abordar mais diretamente a transição discursiva,  preparando o terreno para o acesso a uma nova tecnologia jurídica, a abordagem do material épico sedimentado exigia, nesse passo, uma caracterização nova, diferente do modelo heróico até então celebrizado, que permitisse a transposição do ideário. O personagem central, a realizar uma antiperipléia46 , espécie de telemaquia47  aos avessos, fúnebre, retificando a ordem após o clímax simbólico da vitória em Tróia, 46   O

termo é um neologismo e foi tomado de empréstimo a Guimarães Rosa em Antiperipléia. (In: Tutaméia  (Terceiras estórias). 6ª ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985, pp. 18-21), onde o autor mineiro narra, de forma sincrética, uma tragédia clássica no sertão atemporal, a partir da figura cínica de

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deveria, forçosamente ser um herói, talhado à luz dos ideais homéricos. Como fazê-lo tema de uma peça de transição entre diferentes modelos, dessublimando o herói, sem corrompê-lo? Os elementos do mito dos Átridas eram favoráveis para desenlaces fortes, com alta coloração dramática: o assassinato do rei, a perfídia da rainha adúltera, a irmã igualada às escravas, a retomada do palácio, o assassínio da mãe... Não escapou, todavia, aos autores clássicos que tematizar um herói que mata a própria mãe sem que este expiasse a própria culpa seria um paradoxo. Mas, diferentemente das outras narrativas trágicas, essa não simbolizaria o fim da tirania e sim a perpetuidade da “maldição” caso não se valessem de um deus ex maquina  mais engenhoso. Era necessário assumir uma missão, fazer desta a última  das tragédias. A Oréstia  não  poderia terminar com o sangue da mãe, mas com a redenção e ascensão do filho. Aristóteles anunciara a preocupação com a transmutação da epopéia em tragédia, considerando esta uma corruptela daquela. Contudo, já não lhe escapava a complexidade do novo modelo, superior, por sua vez, ao relato histórico:

(...) não constitui função do poeta descrever o que realmente aconteceu, mas que espécies de coisas podem acontecer, isto é, que coisas são suscetíveis de ocorrer  por serem, nas circunstanciais, prováveis ou necessárias. A diferença entre o historiador e o poeta não reside no fato de um escrever em prosa e o outro em verso; a obra de Heródoto poderia ser versificada, e sua forma metrificada. A diferença é que um conta o que aconteceu, e o outro o que pode acontecer. Por esse motivo, a poesia é algo mais filosófico e mais digno de séria atenção do que a história, pois, ao passo que a poesia diz respeito a verdades universais, a história trata de fatos particulares. 48

um guia de cego, o qual comenta: “(...) as coisas começam deveras é por detrás, do que há, recurso; quando no remate acontecem, estão já desaparecidas” (p. 18). 47  Fazemos aqui alusão à viagem de Telêmaco, filho de Ulisses, em busca do pai, passagem inicial da Odisséia. 48  ARISTÓTELES. Op.cit, p. 25.

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Para fazer o mito atender às expectativas de seu tempo, os autores trágicos se valeram de vários expedientes. Cada um, a sua maneira, focando sob um especial  prisma, conduziu a tragédia para diferentes leituras, mais tradicionais ou mais democráticas, conforme seu ideário político-filosófico. Contudo, nos parece, e é o que  procuraremos demonstrar, a obra de Ésquilo se sobressai pela visão macropolítica e pela compreensão de que o espaço teatral cedia lugar à institucionalização jurídica. Nesse sentido, a obra de Sófocles poderia ser interpretada como um complemento estilizado no que se refere a uma depuração dos jogos dialógicos. De forma diversa, a obra de Eurípedes atenderia a uma lógica bastante distinta, voltada mais à exploração  psicológica da agonia humana que à representação simbólica dos ideais políticos. Alguns elementos comuns, no entanto, podem ser apontados, em relação as diversas obras dos três autores sobre os Átridas: o caráter vacilante de Orestes e a necessidade de duplicá-lo em Electra, fazendo-a porta-voz de Homero (detalharemos adiante). Electra é uma personagem não homérica, que invoca valores de antanho. Substitui Laódice, a outra irmã de Orestes, segundo os versos da Odisséia, quando o cego Tirésias narra a tragédia da casa de Agamêmnon. Seu nome significando “a luminosa” indica uma revolução referencial: a de que esta é também a história da luz, dos novos tempos que irão emergir da escuridão da era hoplita, tempos de paz. Será, também, a história do oikos  durante a guerra de Tróia, a versão doméstica, marcadamente feminina, do mito da vitória grega contra os bárbaros e, por extensão, contra a fúria da natureza inimiga. Electra indica, através de sua resistência, a resistência dos lares e a resistência popular à tirania. O início dessa trajetória, todavia, se dá bem antes, lá, quando partiam as naus argivas, em busca de Helena, inventando as navegações, inventando o Ocidente.

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3. 1. I figêni a em Áulis  : o sacrifício da inocência

O mito de Jó, na medida em que sofre um desígnio paradoxal, é semelhante ao mito de Abraão. Abrão ( pai elevado), em cerca do ano 2000 a.C., de origem pagã, é guiado por Deus, saindo de sua terra natal e vindo a se estabelecer na Palestina. É onde recebe a promessa divina  –  simbolizada pela circuncisão - de que de seus descendentes virá um povo abençoado. Os anos passam e Sarai, sua mulher, não engravida. Abrão não desiste e, com cem anos de idade, acredita ainda na juventude que o corpo pode darlhe, assim como Sarai, que permanece fértil aos noventa anos, vindo a conceber finalmente, por presente de Deus, que lhes muda o nome para Abrãao ( pai de uma multidão) e Sara. Isaac, o filho anunciado, nasce. É quando Deus torna a aparecer a Abrãao e diz-lhe que vá a montanha de Morija e ofereça o filho em holocausto. Abrãao,  por absurda que lhe pareça a ordem, obedece e, no monte, levanta a faca para matar o menino. Eis que um anjo do senhor paralisa o golpe, estando provada a fé de Abrãao, substituindo-se a criança por um cordeiro (cfe. Gen 2:1-3, 17:1-17, 21:1-7 e 22:1-14). Em ambos os casos, em Abrãao e em Jó, os desígnios divinos abeiram os humanos do terror. A fé tem de suster-se à borda dos abismos íntimos dos protagonistas. Como sugere Sören Kierkegaard:

(...) que inaudito paradoxo é a fé, paradoxo capaz de fazer de um crime um ato santo e agradável a Deus, paradoxo que devolve a Abrãao o seu filho, paradoxo que não pode reduzir-se a nenhum raciocínio, porque a fé começa precisamente onde acaba a razão.49

49

 KIERKEGAARD, Sören. Temor e tremor. In: Kierkegarrad (“Os Pensadores”). Tradução de Maria José Marinho. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 140.

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Ambos, Abrãao e Jó, foram instados a comprovar a fé para além da aceitabilidade ética. Ambos suportaram uma provação inaudita. Jó perdera todas as riquezas e a própria pele; Abrãao vira esmorecer um século de espera não só pelo filho como também pela nação prometida, devendo, além de tudo, atuar como carrasco dos  próprios sonhos. Porém, assinaladas as semelhanças, examinemos as diferenças. E comecemos  pela diferença basilar. Abrãao é o primeiro dos patriarcas, de sua semente nascerão os demais. Ele está inaugurando o tempo do Povo de Deus na Terra e, por conseguinte, age única e exclusivamente sob o aval da esfera mítica, em verdadeira andromaquia. Enquanto Jó, situado cerca de 1500 anos depois, é o mais venerado dos patriarcas e já habita uma cultura com memória consignada em registros históricos. Sua existência já é datada e qualificada a partir do ineditismo que fôra a consagração de Abrãao, clímax da  semelhança iniciada com Adão. Abrãao inaugurara a Lei, a Jó competiu traduzi-la para os homens, por via da exegese personificada em sua catábase, demonstrando o re-ligare dos propósitos da administração humana com os desígnios divinos.  No fundo, no rigor da lei do antigo Oriente próximo, Deus não fôra tão terrível contra Abrãao como o fôra contra Jó, pois a vida do primeiro filho, em diversas tradições religiosas, pertencia a Deus. Considere-se ainda que a vida humana para a concepção do patriarca era fruto da obra de Deus e, como conseqüência, toda vida Lhe  pertencia. Mas saliente-se aqui a nomeação preferencial dos patriarcas, daqueles que serão os representantes do Povo Eleito, os escolhidos, os pilares do Novo Mundo. O direito de primogenitura  –   tão disputado, por exemplo, por Jacó em relação a Esaú  – é um exemplo dessa personificação. O pai terreno só plasmava a Criação, imitação que era, em segundo grau, do Grande Pai Celestial. No caso de Abrãao a imagem vai ainda além, pois o fato de ele e Sara procriarem  –   mesmo levando em conta a vida média

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multicentenária da época  –   é mesmo um milagre, o que só ressalta a exclusividade de Isaac como agnes Dei. Quando o Todo Poderoso exige de Abrãao o holocausto de seu filho, nada mais faz do que chamar a si o que é seu.  No mito correlato de Ifigênia, o drama se repete com novas nuances. As naus gregas estão paralisadas no porto de Áulis, pois não há ventos. Agamêmnon, comandante dos heróis, ao matar uma corça e dizer-se melhor flecheiro que Ártemis, ofendera a deusa que, agora, exigia o sacrifício de sua filha mais velha. Apesar do desespero, Agamêmnon é instado por Menelau e por Ulisses a concordar com o sacrifício, e elaboram um estratagema para enganar sua esposa e fazê-la trazer a filha. Mandam-lhe um mensageiro avisando Clitemnestra para trazer imediatamente Ifigênia  para que esta desposasse Aquiles, o mais perfeito dos heróis. Ambas chegam a Áulis, desvendando que o casamento contratado é entre Ifigênia e a morte. Clitemnestra reage, convence Aquiles a ajudá-las e ambos preparam-se para sozinhos enfrentarem o exército grego comandado por Ulisses, enquanto Agamêmnon se afasta, deixando que, no seu íntimo, os deveres do estadista suplantem o amor de pai. Quem soluciona o conflito é a própria Ifigênia, ofertando-se para o holocausto, acasalando-se com o ideal heróico, conforme a memorável passagem em Eurípides:

Escuta agora, minha mãe, o pensamento que ora me ocorre ao refletir sobre estes fatos. Tomei nesse momento a decisão final de me entregar à morte, mas o meu desejo é enfrentá-la gloriosa e nobremente, sem qualquer manifestação de covardia. Pondera, então, comigo, minha mãe querida, na fama que me há de trazer esta atitude.

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A Grécia inteira, nossa generosa pátria, dirige neste instante os olhos para mim; depende só de mim a viagem da frota e a extinção de Tróia, e de mim depende eliminar de vez a possibilidade de os bárbaros tentarem novas agressões contra as mulheres gregas e futuros raptos em nossa terra amada, depois de expiarem a vergonha de Helena levada por Paris. O fruto do meu sacrifício será este:  propiciando uma vitória à nossa pátria conquistarei para mim mesma eterna fama. E mais ainda, não é justo que me apegue demasiadamente à vida, minha mãe; deste-me à luz um dia para toda a Grécia, e não somente para ti. Pensa comigo: muitos milhares de soldados protegidos  por seus escudos, outros, também numerosos, empunhando seus remos, terão de arriscar-se a lutar e morrer pela terra natal  porque ela foi insultada, e minha vida, a existência de uma única mulher,  poderá ser um óbice a tanto heroísmo?50

50

 EURÍPEDES. Ifigênia em Áulis/As fenícias/As bacantes. Tradução de Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002, pp.90-91, vs. 1934-1964.

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Ifigênia, cuja etimologia corresponderia a “nascida de uma raça forte, de uma família patriarcal” 51, compreende seu desígnio e o aceita. Reúne em si as simbologias correspondentes a Abrãao e a Isaac. Seus motivos, como os de Aquiles, que lamenta a valiosa esposa que está a perder, são nobres, são heróicos. Se quanto a Agamêmnon não fica claro se age por vaidade ou pelo bem comum, Ifigênia, a primogênita, equilibra a  balança da fé, fazendo-se mártir pela causa grega, morrendo para evitar a morte dos ideais. Se para Abrãao estava em jogo a constituição de novo povo. Para Agamêmnon a necessidade de vitória sobre o inimigo, para Ifigênia o resgate poético da consagração de um povo é que o que se consuma. Ifigênia é a imagem do oikos, o direito natural,  próprio da esfera doméstica, a fazer com o sacrifício da virgem o batismo de fogo das naus guerreiras. Ifigênia consagra definitivamente a luta da nacionalidade grega, questionável pelo mau exemplo de Helena, apresentada como antípoda, traidora do oikos. Ainda que essa cena tipifique o modelo euripedeano, que explora às últimas conseqüências os conflitos íntimos e os atritos familiares, também demonstra a importância que de se reveste o oikos  nas simbologias dramáticas, realizando o que  Nicole Loraux classifica com uma inversão de valores. Esta autora, após citar historicamente um largo epitáfio para um homem e um curto epitáfio para uma mulher, comenta:

Este trecho de epitáphios  e este fragmento de epitáfio servem de introdução àquilo que na cidade grega –   no caso, Atenas  –   se diz da morte dos hímens e de uma morte de mulher. Os homens morreram na guerra, realizando rigorosamente o ideal cívico; submissa a seu destino, a mulher morreu em seu leito –  ao menos essa 51

 Cfe. BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico etimológico. Volume I. Petrópolis: Vozes, 1991,  p. 599.

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é a história possível. Aos homens a cidade ofereceu oficialmente uma bela sepultura e um elogio em forma de oração fúnebre pronunciada pelo mais célebre dos homens de Estado; e, sob o impacto do verbo eloqüente de Péricles, o epitáfio gravado no monumento do Cerâmico empalidece diante da palavra de glória e sua  promessa de lembrança imutável e universal. Para Nicoptoleme, desconhecida cujo nome guerreiro significa vitória em combate, basta um pouco de lembrança  privada: algumas linhas gravadas numa estela e a afirmação de que seu marido  jamais a esquecerá. Forte contraste, talvez muito perfeito para ser totalmente exato. Sem dúvida nem todos os homens de Atenas morrem em combate, mas não existe um cujo epitáfio não confie a lembrança eterna das qualidades do morto; nem todas as mulheres de Atenas extinguem-se em seu leito, mas é sempre ao marido (ou na  pior das hipóteses à família) que compete preservar a lembrança da morta.52

Desse modo, à mulher figuraria melhor as paixões, e a fé entre estas, por habitar impressões que não se publicizam. Já aos homens resta a edificação da moral pública. Entrementes, na hora do sacrifício de Ifigênia, dá-se também, ainda que simbolicamente, o deus ex machina, a deusa Ártemis a substitui por uma corça e transmuda a heroína em sacerdotisa na cidade de Taúrida. Contudo, se Ifigênia resgata a religiosidade e a arete grega, seu pai, o basileu, o grande general e patriarca grego distingue-se profundamente de Abrãao. Para Kierkegarrd:

A diferença que separa o herói trágico de Abrãao salta aos olhos. O primeiro contínua ainda na esfera moral. Para ele toda a expressão da moralidade tem o seu telos numa expressão superior da moral; limita essa relação entre pai e filho, ou filha e pai a um sentimento cuja dialética se refere à idéia de moralidade. Por conseguinte não se trata aqui de uma suspensão teleológica da moralidade em si  própria. 53

52  LORAUX,

Nicole. Maneiras trágicas de matar uma mulher: imaginário da Grécia antiga. Tradução de Mário da Gama Cury. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, pp. 21-22. 53  KIERKGAARD. Op. cit., p. 144.

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Em distinção a Hegel, que considera a suspensão da moralidade como uma  forma ética do mal 54, Kierkgaard vê nesse liame a fonte da fé, que suplanta a razão subordinadora. Sobre a qual assinalara:

Com efeito, é a fé esse paradoxo segundo o qual o Indivíduo está acima do geral, mas de tal maneira que, e isso importa, o movimento se repita e, por conseqüência, o Indivíduo, depois de ter permanecido no geral, se isole logo a seguir, como Indivíduo acima do geral. Se não é este o conteúdo da fé, Abrãao está perdido, nunca houve fé no mundo, porque ela jamais passou do geral.55

O objeto central da existência individual, o pai amar o filho, se não for encarado  pelo aspecto da suspensão da moralidade constituir-se-ia em brutalidade sem sentido. Mas, por crer em Deus, que solicitara o holocausto, Abrãao crê na dignidade do ato, de outra maneira impossível. Coloca a vida do filho acalentado, e a própria vida, por conseguinte, nas mãos do Criador. O cordeiro que simbolicamente substitui Isaac só nos anuncia que a vida mesma não nos pertence, é parte dos desígnios insondáveis de Deus. E Abrãao, fiel ao Todo Poderoso repousa como o pai da fé. Já Agamêmnon atuara em nome da moral geral que, dos deuses aos heróis, sabe que as naus não partirão sem o sacrifício à Ártemis. A decisão de Agamêmnon é a decisão de um general estrategista em exercício de guerra. Para Agamêmnon, portanto, a vida não deixa de ser uma sucessão de lances trágicos. Sua existência é marcada pelo  guenos  dos Átridas, círculo de sangue sem escapatória e que é a marca mesmo de sua grandiosidade. Seu destino de herói está ligado à ruptura do metron, do rompimento com a devida medida das coisas e dos valores. E é por ser um desmesurado que Agamêmnon exerce o poder e faz cumprir a 54  Cf.

HEGEL, George Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2000. 55  KIERKGAARD. Op. cit., p. 141.

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Lei, sem, todavia, confundir-se com ela, e mesmo  –   em Eurípedes  –   se acovardando frente ao inelutável da exegese. Seu mundo íntimo é o caos onde habita a desarmonia dos deuses. Suas aventuras sempre transcendem, pois são uma paródia dos conflitos da alma. Pois são eles, os heróis, os filhos dos deuses, a maneira como eles, os deuses, se divertem. E Agamêmnon, o comandante dos heróis, é a diversão particular de Zeus, sua  paródia. Nesse sentido, suas atitudes são “divinizadas”, ou seja, atua na esfera da grandiosidade: a destruição de Tróia, o sacrifício da filha, a vingança dos Átridas, - do mesmo modo que um deus furioso o faria, apenas sem o apanágio da imortalidade. O herói sabe-se um predestinado, e caminha para a luta com a espada nas mãos e sangue nos olhos, num grande abraço com o trágico.  No monoteísmo de Abrãao, a turbamulta dos deuses faz-se substituir por um infinito repleto de poder à beira do qual o homem queda estático. O grande ato heróico  possível é agora o prostrar-se de joelhos a orar, implorando pela salvação de sua alma. O invisível se torna o supra-real. O destino do temente a Deus é a estrada da bem-aventurança, na paz eterna, ao lado do Todo Poderoso. O homem é, então, um órfão no vazio, em sua tentativa de guiar-se pelo que não se desvela e por imitar o que não tem forma. Quando, miticamente, chega-se ao tempo de Jó, e este exige justificativas de Deus, o que se passa é a atualização da suspensão da moralidade, só que agora de forma  passiva, introjetando o sacrifício enquanto amadurecimento exemplar. A catábase de Jó é a consagração da maturidade do homem. Já não se exige de Jó o ato cruel de sacrificar, este é que, sacrificado, sofre os desastres inauditos do holocausto. Sucessor mítico na ara sacrifical Jó tem de aceitar a faca no coração. E diferente de Ifigênia ele  jamais entenderá ao menos o porque.

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Jó, o exegeta jurídico, é correlato de Orestes, o filho de Agamêmnon, a quem coube, à custa da própria sanidade, exterminar com a maldição nos Átridas, extinguindo com as disputas sangrentas entre famílias.

3.2. Oré stia : a última tragédia. . A Oréstia  de Ésquilo é a única trilogia trágica clássica que nos chegou completa, da época em que as peças eram assim compostas, em três episódios. É também, por muitos, considerada o maior exemplo daquele teatro. Formada por três  peças, Agamêmnon, Coéforas e  Eumênides, constitui conjunto que mesmo hoje impressiona pela multiplicidade de enfoques e pela densidade psicológica, fazendo com que o espectador suspeite a trama através de referências indiretas e ambigüidades. Sobre a trilogia comenta o tradutor Mário da Gama Cury:

(...) a prestigiosa publicação inglesa The Economist , no número datado de 23 de dezembro de 1989 (página 14), ao fazer uma resenha dos fatos mais notáveis da história mundial desde a Antiguidade até os nossos dias, começa pelo chamado “Século de Péricles” (século V a.C.), mencionando como evento marcante na evolução da humanidade a primeira representação em Atenas (em 458 a.C.) da

Oréstia de Ésquilo.56

Em especial Agamêmnon, em geral alardeada como a mais brilhante das três  peças, “a obra prima das obras primas” na opinião de Goethe, que inaugura um suspense  paulatino, ao tempo em que o concerto das vozes aponta para um verdadeiro contraponto estilístico, a intuir a ópera.

56  CURY,

Introdução. In: ÉSQUILO, op. cit., p.7

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As duas primeiras peças correspondem ao argumento da tragédia clássica, com a catarse dos ideais de honra e a reestruturação da ordem e a queda do tirano. A terceira  peça e conclusão do conjunto, contudo, difere sobremaneira, entoando um canto sacro e uma apoteose de divindades. É, literalmente, a última tragédia, a um tempo o fim de um estilo e uma audácia estilística. Alguns irão, na trilha aberta por Nietzsche 57, observar que, com a depauperação do estilo trágico, sucumbia toda uma era, tomada de assalto p or estilos “vulgares” como a comédia. Nesse sentido, Mello e Souza assinala:

A comédia de Aristófanes e Menandro, divertindo o povo graças à sua comicidade, e disvirtuando-lhe o gosto com a licenciosidades, concorreu, com a grosseira pantomima romana, para a longa hibernação da tragédia grega, cuja influência só vai reaparecer nos tempos modernos, revelando-se nas imitações que inspirou a várias literaturas, especialmente no teatro clássico francês. 58

A realidade é que, para Ésquilo, a missão do poeta trágico fôra cumprida, absorvida pelo novo personagem que surgia na  pólis: o legislador. A poesia como libertação, a poesia como forma nobre de desenvolver os debates, a poesia como física lírica a sacudir os átomos, a poesia a igualar os homens a deuses pela criatividade que clama a criação, transmudava-se em um novo produto sublime: a lei. Orestes é o irmão mais novo de Ifigênia e que acompanhara os desenlaces trágicos da mãe em Áulis. Ao tornar para Micenas, Clitemnestra toma como amante Egisto, primo de seu marido –   e outro Átrida, marcado pelo  guenos de sangue. A longa 57

 Cf. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia no espírito da música. In: Obras incompletas (“Os Pensadores”). São Paulo: Abril Cultural, 1983. 58   MELLO E SOUZA, J.B. A Grécia antiga e a poesia dramática. In: EURÍPEDES. Electra/Alceste/Hipólito. Prefácio, tradução e notas de J. B. Mello de Souza. Rio de Janeiro: Tecnoprint, s/d., p. 18.

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história remonta ao herói Pélops, que deu nome à península, o Peleponeso. Pélops, filho de Tântalo, retalhado pelo pai e servido como refeição foi restituído à vida pelos deuses e recebeu, em troca do ombro devorado pela esfomeada Deméter, um outro de marfim. Pélops valeu-se de um ardil para desposar Hipodâmia, princesa de Pisa, com a ajuda de Mírtilo. Não obstante, causou-lhe a morte de forma traiçoeira. Mírtilo, antes de morrer, lançou contra o herói terrível maldição que atingiria todos seus descendentes. A maldição se concretizaria logo na geração seguinte. Pélops teve dois filhos, Atreu e Tiestes, que travaram disputa pelo trono de Micenas. Tiestes se valeu de série de ardis, entre os quais seduzir a esposa do irmão, Aerope. Entrementes, Atreu foi proclamado rei  por Zeus e baniu o irmão. Contudo, a raiva pela traição não se dissipara e Atreu, simulando uma reconciliação preparou monstruosa vingança: matou os três filhos de Tiestes e os serviu como banquete de conciliação, deixando por baixo, na tigela com carne fatiada, pedaços inteiros dos corpos das crianças. Após muito comer e beber Tiestes finalmente se deu conta do terrível ardil. Tentou reagir, mas foi dominado por guardas e morto. Segundo avriantes do mito, Atreu não o teria matado: ainda não estava contente, preparava um último e terrível golpe. Lançou o irmão numa masmorra. Tiestes nesse momento amaldiçoou ainda mais a raça de Atreu. Este, por seu turno, cuidando do quarto filho de Tiestes, Egisto, fruto de outro casamento, fez crer ao jovem que seu pai fora morto por bandidos e criou-o entre seus filhos, Agamêmnon e Menelau

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. Crescido

Egisto, certo dia Atreu revelou que o assassino de seu pai fora aprisionado e que se encontrava na masmorra. Egisto, sem perda de tempo, correu às masmorras e abrindo a cela empunhou a espada para matar o infame. Nesse momento, Tiestes, preso há anos, reconheceu na espada do agressor o presente que dera a seu filho Egisto, reconhecendo59

 Uma outra variante do mito, coloca Egisto como filho de sua própria irmã, uma vez que Tiestes, a conselho do oráculo, teria gerado o herói de uma sua filha que depois veio a se casar com o tio Atr eu, que desconhecia a verdadeira filiação de Egisto. Ver, nesse sentido, EURÍPEDES. Orestes. Introdução, versão e notas de Augusta Fernanda de Oliveira e Silva. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, nota 5, página 115.

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o por conseguinte e dando-se a revelar. Egisto compreendeu a perfídia do tio e, salvando o pai, voltou para onde estava o tio, à espera da notícia que consagraria sua vingança, invertendo a expectativa de Atreu e matando-o. Portanto, anos depois, quando Egisto se vale da saída de Agamêmnon para seduzir Clitemnestra está a reprisar o que Tiestes fizera a Atreu, seduzindo Aerope. A maldição sobre os descendentes de Pélops, portanto, se concretiza em três momentos na seqüência esqueliana: o banquete de Tiestes (narrado pelo Coro em Agamêmnon), o assassinato de Agamêmnon e a morte de Clitemnestra e Egisto. Daí as diferentes designações para a família trágica, conforme se situe o tronco familiar em sua sangrenta trajetória: Tantálidas, Pelópidas ou Átridas. A vingança de Orestes e Electra,  portanto, está inserida dentro de uma lógica de luta de famílias, de  guenos de sangue que se auto-amaldiçoa a partir da imprecação do moribundo Mírtilo. O julgamento de Orestes, tema das Eumênides, encerrando a carreira trágica é, desse modo, alusão simbólica à legislação de Sólon, que institui o Aeropago e, em especial, à legislação de Drácon, de onde deriva o termo draconiano, representando o caráter inflexível da Justiça, que, à época coibiu as lutas entre famílias de forma rigorosa.

3.3. Agamêmnon : o fim de uma era

A cena de abertura do Agamêmnon  é de uma beleza ímpar. Trata-se da fala de um sentinela, há muitas noites atento à escuridão, à espera do sinal combinado de uma luz, que simbolizaria que Tróia foi tomada. As noites se passam e o sinal tarda a surgir, e o sentinela suporta o relento na esperança de dias melhores. Finalmente:

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É o sinal! É o sinal! Meus próprios olhos vêem! Eis a noturna luz que mudará decerto A treva em pleno dia! (...)60

Essa vigília da esperança não tarda a dar lugar a uma enigmática apreensão, que se expressa pela maneira cuidadosa com que o sentinela se refere ao palácio: “Quanto ao demais, silêncio!”. O coro de anciãos, a seguir, vai cobrar da rainha Clitemnestra notícias, vez que se espalhou um boato sobre a vitória em Tróia. Clitemnestra, absorta diante de um altar onde se prostrara a orar parece não prestar-lhe atenção. Entrementes, o coro atualiza a  platéia sobre o pano-de-fundo do enredo: a fuga de Helena com Páris, o comando das naus pelos irmãos Menelau e Agamêmnon e a fábula das aves, uma negra e outra branca atacando a lebre. O vaticínio fora interpretado positivamente no passado, como alusão à vitória futura dos irmãos. Todavia, nesse momento de apreensão, a fábula indica, com sutileza, uma outra possível leitura: a traição do casal Clitemnestra (ave branca) e Egisto (ave negra) que virá abater o rei qual lebre indefesa. A fala do Corifeu, um ancião, se destaca, imbricando na narrativa dos Átridas não apenas a maldição dos Pelópidas e o sacrifício de Ifigênia, mas, em especial a  própria teogonia:

Zeus! Seja Zeus quem for! Que a minha invocação, se lhe aprouver, tenha boa colhida! Depois de muito ponderar, somente em Zeus diviso o fim de minha angústia enorme. Um deus havia antigamente, poderoso e ousado para todos os combates (seu nome no futuro nem será lembrado); surgiu depois um outro deus mais forte 60  ÉSQUILO,

Oréstia . Tradução de Mário da Gama Kury. Rio de Janeiro, Zahar, 1991, p. 30 (vs. 27-30)

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mas foi também vencido e desapareceu. Agora os homens que convictamente vêem no grande Zeus o vencedor final desfrutam do conceito de mais sábios,  pois Zeus sem dúvida dúvida foi quem levou os homens homens  pelos caminhos da da sabedoria e decretou a regra para sempre certa: “o sofrimento é a melhor lição”.61

O que o ancião destaca é o incrível tributo dionisíaco do teatro, fazendo coincidir a trama narrada com as esferas da própria criação, uma vez que narra a teogonia também como um círculo de vinganças implacáveis entre pais e filhos que se devoram e se entronizam. Desse modo, permite entrever toda uma série de correspondências correspondências que equipararia Pélops a Urano, Ura no, Atreu a Cronos (e o banq banquete uete trágico) e Agamêmnon a Zeus. O herói representaria o comando na Guerra de Tróia, trazendo a chama da ansiada vitória e reinstalando a paz, sob a proteção de Zeus, o deus da harmonia, libertador, vencedor da luta contra os titãs, apaziguando apaziguando o universo. Finda essa longa introdução com o verso que dirá “Chegando o dia tudo se revelará” (vs. 303), o coro dos anciãos finalmente se defronta com Clitemnestra, cuja  primeira fala é já uma uma pronta resposta resposta simbólica;

Desejo que o seio maternal da noite Desponte cheio de venturas esse dia. 62

E a disputa travada a seguir será em torno da metáfora da luminosidade. Ainda que o dia masculino surja, ele é fruto da noite feminina que o nutriu. Para que a paz de um novo tempo se estabeleça será necessário atravessar as trevas que lhe darão origem. 61

 Id., ibid., pp. 24-25, vs. 197-212 ibid., p. 28, vs. 320-321.

62  Id.,

70

Afinal, o coro irá contestar a veracidade da notícia da vitória, uma vez que a rainha afirma ter aquela acabado de ocorrer, naquela mesma noite. Ora, se faziam dez anos que as naus gregas haviam partido como fora possível comunicar-se tão rápido? Clitemnestra revelará seu engenho: os sentinelas com sinais luminosos que postara no alto de todos os montes dali à Tróia. Chega a enumerar os locais e nomeá-los entre montes, cordilheiras e penhascos: Ida, Hermes, Atos, Macisto, Messápio, Asopo, Citéron, Górgopis, Egiplancto, Sarônico, Aracne e Micenas. O coro não se dá por convencido e, com a saída da rainha, entende acautelar-se e aguardar a chegada de algum mensageiro, ao tempo em que faz novas alusões a insondáveis perigos de um governo nas mãos de uma mulher e tornando a aludir a Helena, irmã de Clitemnestra, para destilar, por via oblíqua, a suspeita suspeita sobre o adultério.  Nessa primeira seqüência, seqüência, Ésquilo já delineia del ineia o que será o espaço do confronto confronto de toda sua trilogia: a batalha no oikos! oikos! Enquanto a Guerra de Tróia custou dez anos aos arete hoplita, rompendo a medida dos heróis gregos, em uma luta da externalidade da arete hoplita,  povos, e fazendo valer ao mundo mundo um ideal de conquista, conquista, no espaço doméstico avançou, em microfísica, a tirania. A Oréstia será a narrativa dessa luta interna, a busca da paz final, uma odisséia doméstica enfim, a apontar auroras dediróseas da dediróseas da esperança. O espaço da Oréstia  é marcadamente feminino, em toda a trilogia. Por mais que se diga que em Ésquilo, diferentemente de Sófocles e Eurípedes, não se privilegia a mulher  –   e isoladamente isso é certo  –   ocorre que se trata de conceber uma visão integradora da paz, que conjuga a  pólis com  pólis com o oikos e, oikos e, por conseqüência, o masculino com o feminino.  Na cena seguinte, seguinte, outro belo momento momento através do diálogo diálogo do arauto com o Corifeu. Ésquilo constrói muito bem seus personagens exemplares. O arauto, assim como o sentinela da abertura, e o Corifeu são cidadãos fiéis que traduzem nas

71

entrelinhas o liame entre a felicidade com a volta do rei e a angústia com a situação interna no palácio. A  pólis tem  pólis tem a promessa de um futuro brilhante, em razão da vitória externa, mas carrega também terríveis vaticínios, em função da obscuridade interna,  presente  presente no palácio, a conjugação de ambas as a s esferas, oikos e  pólis,  pólis, corresponde, em  plano subjetivo, a linearidade linearidade entre homens e deuses, deuses, a junção junção destes faz nascer o heroísmo, a junção daquelas esferas faz surgir a face real do poder e a expectativa líquida da paz. A seqüência da mensagem do arauto encerra um segundo conjunto, onde o coro, agora sim, certo da vitória em Tróia e do retorno do rei, adverte com sobriedade, através de remissões ambíguas, sobre o comportamento comportamento questionável da rainha. A seguir, passados alguns dias, temos a chegada triunfal de Agamêmnon, apresentada a partir do confronto de três discursos: o discurso de boas vindas do coro, a saudação e resposta do rei e o discurso da rainha que dá vez a uma controvérsia e argumentação com o rei. No discurso de boas vindas o coro alude à diferença entre a alegria sincera e a suposta alegria e a importância em saber distingui-las. O discurso do rei se subdivide em uma saudação aos deuses da terra argiva, agradecendo a vitória após o longo cerco causado por uma mulher (Helena, irmã de Clitemnestra), e em uma resposta ao coro, interpretando a admoestação de forma política, e sugerindo novos tempos democráticos:

Quanto ao restante, a respeito desta cidade E dos bons deuses, anunciem-se assembléias E logo delibere-se em debates públicos.63

63 Id.

ibid., pp. 46-47, vs. 950-952

72

O discurso de Clitemnestra é o mais longo e marcadamente retórico, narrando a angústia da esposa solitária, das lágrimas que secaram por tanto chorar, das vigílias, do sono incerto e mesmo dos mosquitos a despertá-la de pesadelos. Encerra o falatório  pleno de ambigüidade, aludindo, veladamente, á morte que aguarda o rei quando este adentrar o palácio:

A justa mão dos deuses vai encaminhá-lo À casa que tão cedo não pensava em ver. Do resto cuidará, com o favor divino, Um ânimo que não se entrega nem ao sono, Obediente às leis exatas do destino. 64

Agamêmnon se irrita com a recepção exótica: o longo discurso e tapetes de flores, mas Clitemnestra acaba convencendo-o que aquelas são justas homenagens, apelando para vaidade do herói, ao compará-lo a Príamo. Agamêmnon cede, mas apenas  para anunciar que no fundo do carro em que veio encontra-se Cassandra, filha de Príamo, e parte sua nos despojos de guerra, solicitando à esposa que lhe dê boa acolhida. E entra no palácio. A quarta seqüência da peça tem como protagonista Cassandra, a profetisa. Esta, virgem, recebendo de Apolo o dom profético, recusara-se a deitar com o deus, através de seus sacerdotes, nos ritos iniciáticos, causando-lhe a afronta uma maldição: jamais acreditariam em suas previsões. Assim é que, num primeiro momento, defronta-se com Clitemnestra que, irada, havia retornado do palácio para envidá-la a entrar. Cassandra não responde. Clitemnestra acredita ser o fato de que a estrangeira não fala nem compreende a língua argiva, ao tempo em que também suspeita tratar-se de resistência da princesa troiana por ver-se reduzida à escravidão. 64  Id.

ibid., pp. 48-49, vs. 1041-1045

73

 Não vou desperdiçar meu tempo aqui com ela. Estão lá dentro, junto ao fogo aceso, as vítimas Selecionadas, prontas para o sacrifico (já não contávamos com a graça do retorno); E tu, se queres ter a tua parte nele, Procura andar depressa; se não és capaz De compreender-me e não dás conta do que digo, Faze com as mãos exóticas um simples gesto! 65

A situação beira o tragicômico, pois como alguém que não compreende a fala faria um gesto se não teria como compreender sequer essa solicitação? De fato, Cassandra permanece muda, para exaspero de Clitemnestra, que volta ao palácio. O coro, então, procura admoestar a jovem que, súbito, irrompe a falar, reinterpretando a fala da rainha como vaticínio de morte (será ela uma das vítimas prontas para o sacrifício) e anunciando que ao entrar será morta como seqüência da maldição à Pélops. O coro fica impressionado com o fato de uma estrangeira conhecer tão bem acontecimentos caros ao povo de Argos e de Micenas. Cassandra vai mais além e narra detalhadamente a morte próxima de Agamêmnon, envolto em uma mortalha, durante o  banho, e a morte dela mesma. O coro não lhe crê, por inusitado o relato. A cena de Cassandra preenche um habilíssimo intervalo e realiza uma função especial no teatro clássico; pois preenche a peça com a cena da morte, evitando, ao mesmo tempo, aos olhos do público, todo o horror de presenciar a cena real. A realidade é suplantada pelo relato. O teatro é, antes de tudo, representação, e com isso se quer uma versão melhorada da vida. Melhorada porque a poesia faz a vida mais do que ela é. Recorta-a, apara suas imprecisões e a devolve sintetizada, exemplar. Em seguida,

65  Id.,

ibid., p. 55, vs. 1205-1212.

74

Cassandra antecipa o ciclo final de mortes, com o retorno de Orestes e o matricídio, ainda que sob a incredulidade do coro:

Mas não há morte sem vingança de algum deus. Virá um dia mais um vingador –  o nosso –   Nascido para exterminar a própria mãe E castigar a morte inglória de seu pai. Um exilado errante, expulso desta terra, Regressará para assentar a pedra última  Neste edifício das inúmeras desgraças Imposta a esta raça antigamente próspera. 66

Cassandra, finalmente, adentra o palácio e logo já se escutam os gritos de Agamêmnon, dando início a seqüência final que irá opor um coro vacilante, formados  por homens honrados, mas já destituídos de força e a rainha ardilosa, que irá apresentarse protegida por Egisto.  Nessa parte, a crise no reino se manifesta pela emersão do oikos. O direito doméstico, feminino, tomará a frente da cena  –   com conseqüências até o final da trilogia-, dominado o argumento pela voz e pela ação feminina. Clitemnestra retorna e, assumindo o ato, discursa orgulhosa sobre os motivos do crime: o sacrifício de Ifigênia, o consórcio com as Fúrias, deusas filhas da Noite que velam sobre o sangue parental derramado, o capricho de Helena, causando-lhe a morte da filha e o sacrifício da paz familiar. O coro obtempera, considera indigno o crime, que causará seu exílio e sua morte. É quando entra em cena Egisto, que, embora sequer tenha sido mencionado até então, sucessivas alusões na peça prepararam o terreno para sua entrada, levando a crer na presença sombria no palácio de um amante da rainha.

66  Id.

ibid., p. 66, vs. 1471-1478.

75

Egisto narra a morte cruel sofrida por seu pai, Tiestes, nas mãos de Atreu e a revolta e maldição quando do banquete macabro e conclui que os deuses sempre fazem  justiça, castigando os homens por seus crimes e que aquela morte completava a vingança contra os Átridas. O coro que, diante de Clitemnestra altercara incrédulo, por considerá-la uma desatinada e um flagelo, dá, agora, margens a toda sua fúria, respondendo a Egisto:

Mulher! Tu és mulher, tu, que permaneceste refestelado em casa, apenas esperando os homens empenhados em combates árduos! Enquanto desonravas um leito de herói, covardemente meditavas o assassínio de um corajoso comandante de guerreiros! 67

Egisto retruca, demonstra que o ardil fora necessário para não despertar suspeitas. O Coro reage. Espadas são empunhadas. Clitemnestra intervém, adverte o amante que, agora, com poder e riqueza, poderão ganhar tempo, reunir forças e dominar a oposição. E o casal adentra o palácio, enquanto o coro permanece a insultá-los.

foras  3.4. Coé : a lição dos mortos

A trama de Coéforas (“Portadoras de oferendas”) possui dois núcleos principais: a ação no túmulo de Agamêmnon e o ardil para adentrar o palácio. O cenário é semelhante ao Agamêmnon, mas enquanto aquele fazia a ação transcorrer em frente ao  palácio, com um altar dedicado a Zeus no centro, este possui o túmulo de Agamêmnon

67  Id.

ibid., pp. 80, vs. 1900-1905.

76

no centro e três portas do palácio ao fundo, sendo uma delas a porta do gineceu, ou seja, de onde saem as mulheres, no caso as escravas do coro. A peça abre com uma invocação a Hermes, enquanto deus das profundezas infernais, aquele capaz de levar e trazer mensagens entre vivos e mortos. Orestes, subindo no túmulo do pai, de volta do exílio, procura invocar a força dos mortos. Está acompanhado de Pílades, seu amigo inseparável  –   que, em algumas versões do mito, seria seu primo por parte de mãe 68. Orestes corta uma mecha de seus cabelos e deposita sobre o túmulo como oferenda. Aproxima-se um grupo de mulheres. Os dois se ocultam. Entra em cena o coro, composta de escravas, Electra à frente. Curiosamente, a  personagem Electra será apresentada como um quase-Corifeu. Outro engenho estilístico de Ésquilo. A fala do coro constitui a fala de uma classe subalternizada. O coro das escravas narra que veio trazer oferendas fúnebres devido a sonhos terríveis que a todas assolam, em especial a rainha, que sonhara que amamentava a uma serpente. Os intérpretes declaram tratar-se da cólera do morto, enterrado sem homenagens. E o coro canta a nênia (oração aos mortos):

Pretendendo com este agrado ingrato Livrar-se da iminente punição, Ela nos manda até aqui - ah! Terra mãe! -, essa mulher sacrílega! Mas temos medo de pronunciar As palavras que ela mandou dizer. De fato, que reparação existe 68  Nas

versões que iremos analisar, os três autores clássicos silenciam sobre a origem de Pílades, exceto na referência de que é estrangeiro, nobre e cuja família acolheu Orestes no exílio. Trata-se de um  personagem de sustentação, cuja importância é mais simbólica que dramática. Na realidade ele mal abre a  boca. Fala quatro versos em toda Oréstia, duas frases esparsas na Electra de Sófocles e nada pronuncia na Electra de Eurípedes. O herói só virá a ganhar relevância no Orestes, de Eurípedes. Machado de Assis no conto “Pílades e Orestes” (Relíquias da Casa Velha), narra a história de Quintanilha, um parvo que vive à sombra da vida do amigo Gonçalves, e sacramenta: “o herói mudo de Sófocles”.

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Para o sangue caído sobre a terra? Ah! Lar extremamente infortunado! Ah! Casa totalmente aniquilada! As trevas fechadas ao próprio sol E detestada pelos homens, cobrem Todo o palácio do rei que morreu. A majestade antiga, resistente, Invicta, inatacável, que existia  Na alma e no ouvido deste povo Agora se desfaz; mas há um temor! Para os mortais o sucesso é um deus E mais que um deus; entretanto a balança Da justiça serena está atenta E colhe alguns em plena luz, a outros Leva mais tarde sofrimento intenso E a noite interminável ceifa muitos. Quando o sangue é sorvido pela terra  Nutriz de todos, até saturá-la, Ao menos um coágulo perdura Intacto e nunca se dissolverá; Um dia sairá dele a vingança. 69

O canto fúnebre faz-se um misto de invocação das profundezas para a vingança. Plena alusão à cena correlata da libação aos mortos na Odisséia , quando Ulisses soubera da morte de Agamêmnon. É como se estivéssemos agora, do outro lado do mundo, escutando o eco daquela cena e sua continuação, com os filhos de Agamêmnon se nutrindo do sangue derramado para alimentar em si a vingança. Após alguns momentos em silêncio, Electra irá se destacar do grupo, quando se dá a conhecer ao público e mais, dá a entender que o fato de não cooptar com a leviandade da mãe e do amante a reduziu à condição análoga a de escrava, motivo pelo qual a sua fala e a do coro externam, permanentemente, sua revolta. 69  ÉSQUILO,

op. cit., p. 91, vs.58-85.

78

Metade da peça é, assim, uma invocação ao inferno, de uma densidade assustadora, terrível, precursora de bruxarias. E mais que isso, é a força do oikos, do gineceu, de onde zelam as mulheres, se levantando contra a tirania. É o momento da  purgação, da batalha de Tróia doméstica, da necessária luta e agonia interna que irão complementar a obra histórica da vitória grega. Pois, diferentemente dos guerreiros, as  jovens virgens preparam o solo, a casa e o corpo para o futuro. Amparadas pela tradição, querem fazer surgir o novo, cumprindo a lei natural da fertilidade. Afinal, os mortais consideram o sucesso como um deus, enquanto a verdadeira deusa, a Justiça, está acima do orgulho másculo. Em sua súplica, Electra alude a seu triste destino, ao das jovens escravizadas e a Orestes, que teria sido vendido ao estrangeiro e despojado de bens. E clama:

Supremo mensageiro entre os vivos e os mortos, Hermes das profundezas, vem logo ajudar-me! Convoca para ouvirem minha invocação Os infernais espíritos cuja incumbência É proteger a casa em que viveu meu pai, E a própria terra, origem de todas as coisas, Que depois de nutri-las torna a receber Em seu seio o germe fecundo! (...)70

Derrama as libações sobre o túmulo e, então, percebe a mecha de cabelos muito semelhantes aos seus próprios. Rapidamente conclui que Orestes foi quem a mandou em homenagem ao pai, provavelmente através de algum mensageiro que a teria depositado sobre o túmulo. Nota em seguida pegadas próximas. Então, Orestes, seguido de Pílades, sai do esconderijo e se dá a conhecer. A irmã reluta em reconhecê-lo, entre nervosa e

70  Id.

ibid., p. 95, vs. 168-175.

79

emocionada, mas, afinal, após o irmão mostrar-lhe a capa que o ornava, bordada por ela mesma anos antes, ameaça um grito de júbilo. Orestes, porém, a contém:

Domina-te! Não deixes que tua cabeça Se deixe transtornar pelo contentamento, Pois as pessoas que nos deviam amar São nossas inimigas mais exacerbadas. 71

 Não obstante, a esperança toma conta de todos e as escravas celebram a volta do herói. E o Corifeu vaticina:

Mas se quiser, um deus terá poderes Para mudar estes nossos lamentos em sons mais agradáveis aos ouvidos. Em vez de cantos fúnebres aqui, Junto a uma tumba, cantos triunfais  No interior do palácio real Celebrarão o amigo que regressa, Recuperando enfim a alegria De estar bebendo na taça comum O vinho novo em comemorações. 72

O que dá origem a novas invocações e homenagens ao herói morto, com as  pungentes homenagens dos irmãos finalmente reunidos, secundados pelo Corifeu, representando a fala dos estratos sociais. Ao tempo em que celebram as glórias de Agamêmnon, tornam a invocar a sua ira, para fortalecê-los na hora da vingança e, mais do que isso, para garantir o patrocínio divino ao matricídio que se acerca. Orestes declara que irá matar a mãe, mesmo que tal ato lhe custe a vida. O Corifeu revela novos

71

 Id. ibid., p. 100, vs. 303-306. ibid., p; 104, vs.446-455.

72  Id.

80

atos hediondos de Clitemnestra: esta teria mutilado o cadáver antes de enterrá-lo. Electra ressalta suas próprias desventuras, trancafiada em um quarto, privada de bens, tratada como escrava. Todos parecem estar a temperar o ódio, aquecendo-o mutuamente. O clímax ocorre com nova invocação conjunta que culmina com os irmãos ajoelhando-se sobre o túmulo:

ORESTES Chamo-te, pai! Vem ajudar teus filhos! ELECTRA Também te chamo, pai, desfeita em lágrimas! CORO  Nossas vozes uníssonas repetem A súplica de teus filhos presentes! Ouve nossos apelos! Manifesta-te! Junta-te a nós contra teus inimigos! ORESTES A Força enfrentará agora a Força E se oporá o Direito ao Direito!73

Ésquilo tem plena noção da importância para seu tempo do debate que está travando. Está numa época em que o modelo do herói hoplita já não corrobora com a força da democracia ateniense. Todavia, precisa se valer, com habilidade, do mito para elaborar sua transmutação. O ideal do legislador herói precisa ser “bordado”. Para isso, nada melhor do que mãos femininas, que a fala maternal na escuridão do ventre a dar luz aos novos tempos. Assim, como as Fúrias são filhas da Noite, assim também o mundo feminino é o mundo da escuridão espectral, mas é também o necessário agon 73  Id.

ibid., p. 109, vs. 589-596.

81

 para uma nova masculinidade pujante. Para opor a força da justiça à força da tirania e  para opor o Direito virtuoso ao Direito formal, os jovens traduzem a força vinda terra e se subdividem nas faces complementares de um casal ideal: Electra representando o ideal homérico, em permanente ode ao pai, homenageando o mundo da bravura guerreira dos heróis, do ideal nacional grego, onde os limites são transpostos por um  povo que inaugura o mundo. Orestes, paradoxalmente, é mais fraco, mas porque, nesse momento, precisa sê-lo, precisa ficar fragilizado ao matar a mãe, para demonstrar o corte cruento com o cordão umbilical dos antigos valores. Não obstante, será o jovem escorreito, impávido, modelo homérico transposto para uma época de paz, detentor do cetro da paz. Pílades, que o segue, é sua sombra apenas para complementar a simbologia, para ser seu duplo e se casar com Electra - esta sim, elemento central da trama, realizando a recomposição do oikos -, fazendo-a cumprir sua fertilidade. Em seguida, num átimo, expõe-se o simples plano: Orestes fará de conta que é um mensageiro estrangeiro a trazer a notícia da morte dele mesmo, Orestes, o que, certamente, atrairá a atenção da rainha e de Egisto, que irão querer escutá-lo, oportunidade em que os matará. Assim, de forma simples, contando não ser reconhecido, afinal fora embora criança, pretende adentrar o palácio sem ter que enfrentar toda a guarda. O plano corre à perfeição. Orestes se apresenta a um escravo à porta do palácio e dando-lhe a notícia, logo acorre Clitemnestra que não consegue ocultar a satisfação. Convida os “estrangeiros”, Orestes e Pílades , a entrar, enquanto ordena que chamem imediatamente a Egisto para ouvir as novidades. O palácio se coloca em polvorosa e o coro toma cuidados em relação aos serviçais da rainha que já celebram a morte do vingador.

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Entrementes, o Corifeu cruza com a ama de Orestes, em mais uma cena que rememora a Odisséia , quando Ulisses percebe que apenas um criado se lhe manteve fiel. Aqui a ama chora copiosamente a morte do menino amado e funciona como contraponto à frieza da rainha; sendo instada a chamar Egisto junto com toda sua guarda armada, é convencida a alterar a mensagem para que Egisto venha só, compreendendo tratar-se de um ardil. Chega Egisto e a cena dos gritos dele sendo morto lembram a morte de Agamêmnon. Um criado testemunha e dá o alarme. Surge Clitemnestra à porta do  palácio. Orestes vai a seu encalço. Ergue o punhal, mas vacila diante da mãe que, rasgando o vestido, mostra-lhe os seios e suplica:

Pára, meu filho! Pára, menino, e respeita Os seios dos quais tantas vezes tua boca Até durante o sono tirou alimento! 74

Orestes vacila, mas consulta Pílades, que lhe recorda a proclamação do oráculo de Apolo, que havia lhe imposto a vingança, considerando que seria melhor obedecer aos deuses que aos homens. Clitemnestra faz novas lamentações, alude à obra do destino, a envelhecerem juntos. Orestes retruca que fora abandonado e vendido. Clitemnestra percebe que irá mesmo morrer e retruca : “Eu mesma dei à luz e criei esta víbora” 75. Consumado o matricídio, o coro canta a libertação de Argos do jugo tirânico. Orestes, porém, começa a ter a clara noção do que acabou de realizar, matou a própria mãe. Logo vagará pela terra como um vagabundo, autor de uma ação hedionda. Logo, já enxerga, em seu imaginário, as Fúrias, deusas que cobram o sangue parental derramado: 74

 Id. ibid., p. 128, vs. 1145-1147. ibid.,p,. 131, vs. 1187.

75  Id.,

83

Ai! Ai de mim! Criadas! Já as vejo ali, Como se fossem Górgonas, com roupas negras, Envoltas em muitas serpentes sinuosas!  Não posso mais ficar aqui! Não posso mais!76

O Corifeu lhe aconselha ir ao templo de Apolo, pedir proteção, afinal ele cumprira uma determinação do oráculo. Orestes sai correndo e o Coro descreve a consumação do ciclo Átrida:

Consuma-se a terceira tempestade neste palácio de nossos senhores, causada por seus próprios habitantes. Os filhos de Tiestes, inda infantes, mortos e devorados num banquete iniciaram a seqüência horrenda de nossas amarguras; em seguida foi morto o comandante dos Aqueus, um rei assassinado torpemente enquanto se banhava descuidoso. Agora, na terceira vez, chegou - como direi? –  o fim? A salvação? Onde se deterá, ou findará, a Ira precursora da Vingança?77

A peça assusta por sua estrutura demoníaca, superpondo-se como uma longa libação aos valores clássicos dos antepassados, alusão à época heróica, junto a qual Ésquilo vai buscar o socorro homérico para revestir simbolicamente o conjunto de mudanças que prepara.

76

 Id. ibid., p. 136, vs. 1351-1355. ibid., p. 137, vs1377-1390

77  Id.

84

 Na versão de Sófocles, a peça Electra 78, mais límpida, o embate central irá se refletir nos debates entre as irmãs Electra e Crisôtemis, que irão dublar outra dupla de irmãs sofocleanas, Antígona e Ismene, uma corajosa e disposta a se sacrificar pelos valores atemporais e outra conformada ao jugo dos poderosos. Sófocles afasta o clima sombrio e o drama quase épico descrito por Ésquilo para apresentar uma versão que  possui como centro o debate entre filósofos e sofistas em face do combate à tirania. Todavia, mesmo considerando que ambas as peças de Sófocles, Electra e

Antígona, representam, igualmente, a luta do oikos contra a pólis na consagração de um novo modelo jurídico, é de se ressaltar que a elaboração de ambas já partia do  pressuposto da  Pharresia79, isto é, do direito público a dizer a verdade, e da dialética como modelo de conhecimento e, por conseguinte, constituía-se em um discurso afirmativo da ordem democrático-jurídica e não em uma estratégia para sua implantação, como ocorre em Ésquilo. Vale dizer, Ésquilo foi o arquiteto do Direito clássico e Sófocles emprestou a esse modelo já consagrado a sua engenharia.

3.5. Eumênides  : o surgimento mítico do tribunal

Se Agamêmnon e Coéforas   foram tragédias palacianas no molde clássico,

Eumênides (“Deusas benévolas”)  terá uma estrutura completamente diferente. Na 78

  Cf. SÓFOCLES. Electra. In: ÉSQUILO; SÓFOCLES; EURÍPEDES. Os persas/Eelctra/Hécuba. Tradução de Mário da Gama Cury. 5ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, pp. 75-154 e SÓFOCLES. Antígona. In: A trilogia tebana. Tradução de Mário da Gama Cury. 10ª ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004, 199-262. 79  Ver, nesse sentido, FOUCAULT, Michel. http://foucault.info/documents/parrhesia/. São seis palestras  proferidas em Berkley no inverno de 1983, onde o autor francês discute a pharresia - direito/dever de falar a verdade na esfera pública, através da análise de várias tragédias gregas, destacadamente em Eurípedes.

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economia interna da obra esquiliana, remonta ao Prometeu acorrentado  e ao debate entre os deuses em prol do livre arbítrio humano e do conhecimento. Em Eumênides, os deuses entram em cena e a ação transcorre toda em dois templos, o templo de Delfos, em homenagem a Apolo, e o templo de Atenas, em homenagem à deusa Atena. Encerrado o drama propriamente dito, um quarto da ação da peça ainda transcorrerá na formatação de um cortejo religioso. A abertura da peça, fazendo a transposição entre o espaço vulgar e o divino, é ocupado dessa feita por uma velha profetisa, que inicia os trabalhos do dia no templo de Delfos. Assim como a sentinela na abertura do Agamêmnon   trata-se de outra  personagem a internalizar a sua função no rito cotidiano e sistemático. A profetiza faz a invocação do matriciado divino, que irá amparar a solução desse épico doméstico que foi a Oréstia:

Dou nesta prece inicial a precedência entre todos os deuses à sagrada Terra, a mais antiga de todas as profetisas; depois invoco Têmis, a segunda deusa a ter assento no trono de sua mãe, de acordo com alguns relatos; em seguida, com o consentimento da divina Têmis e sem qualquer preterição, subiu ao trono outra filha da Terra –  a titanide Febe -; esta o passou para Febo, como dádiva  para marcar o dia de seu nascimento.80

Essa teologia, narrando as antepassadas de Febo Apolo, preparam o espírito do  público para o combate que se irá travar contra as antigas deusas familiares, as Fúrias. As Fúrias, ou Erínias, são a personificação do remorso, deusas muito antigas, que não 80  Id.

ibid. p. 143, vs.1-11

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reconhecem o poder do Olimpo. Platão as descreve como três: Tisífone, açoita os culpados;  Aleto, os persegue ininterruptamente; e  Megera, grita-lhes incessantemente, nos ouvidos, as faltas cometidas. Junito de Souza Brandão acrescenta:

De outro lado, como divindades ctônias, cuja residência são as trevas do Érebo, e,  portanto, ligadas às entranhas da Terra-Mãe, não podem permitir que esta mesma Terra seja impunemente maculada. É que, sendo a Terra a mãe universal, o sangue derramado é o sangue da própria Terra-Mãe, que clama por vingança. 81

Afinal, a disputa a ser descrita irá se dar entre deusas antiguíssimas e uma nova geração de deuses, a apaziguar o universo. Este viera do Caos e da convulsão, que dera origem às Trevas e à Noite. Um universo remodelado, portanto, poderia soar decadente  para deusas primordiais. O cuidado em amparar maternalmente a atuação de Apolo, defensor de Orestes, assassino da própria mãe, é o de relacionar outros elementos que garantissem a presença modernizada dos antigos valores domésticos e a emergência de um novo masculino esculpido e amparado por gerações femininas. De forma complementar, a passagem do drama político e do drama particular  para a dicção religiosa é um retorno estratégico do autor para melhor equiparar a metamorfose do aedo. Justapondo o legislador ao profeta, anunciando novos tempos.  Na primeira peça, o espaço de homenagem aos deuses se traduzia no cenário que centralizava a imagem de Zeus, amparando a força simbólica e o lustro de Agamêmnon, imagem de toda uma Grécia homérica que sucumbe a um ato traiçoeiro. Já, na segunda  peça, é o túmulo do herói que centraliza a ação do drama doméstico, que se alça ao valor de um drama político face às contingências, revelando o descompasso da ação heróica da expedição à Tróia e as diferentes realidades locais. Como reunificação dessa

81

 BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico etimológico. Volume I. Petrópolis: Vozes, 1991, p. 354.

87

Argos partida –  e, por extensão, separação em toda a Grécia  –   o drama necessita habitar o espaço do sagrado. Há nessa imagem a figura sutil, mesmo subliminar, de um casamento, que como paira no ar. As figuras do casal de irmãos deuses, duplicando o casal de irmãos heróis, irá ecoar Orestes em Apolo e Electra em Atena. Essa perspectiva não escapará aos autores trágicos posteriores, que irão encerrar a mesma narrativa com o casamento de Electra e Pílades (o duplo de Orestes) Entrementes, em Eumênides, após a prece inicial, a profetisa se horroriza, ao adentrar o templo, com a imagem de Orestes ainda carregando um punhal ensangüentado, ajoelhado diante de Apolo e cercado pelas Fúrias, estas de aspecto tenebroso e repelente. Apolo domina as Fúrias e as faz adormecer com seu poder, dando tempo a Orestes para que fuja, buscando, com o auxílio de Hermes, que lhe daria velocidade, o templo de Atenas, sua irmã e, subtende-se, verdadeira sucessora na linhagem matriarcal, capaz de dar solução ao caso. Em seguida, saindo de cena os personagens masculinos, Ésquilo apresenta a magistral entrada do fantasma de Clitemnestra, numa invocação contrária, do subterrâneo dos mortos à superfície onde o drama da vida se desenrola. A cena ganha em contraste se a relacionarmos com toda a longa nênia e invocação infernal de

Coéforas . Agora, aquelas mesmas razões são clamadas pela morta, que carrega em si os valores infernais:

Agora persegues a fera em sonho e gritas Como esses cães que nunca deixam seu canil Para atacar a caça! Dize-me: que fazes? Vamos! Levanta-te! Não te deixes vencer Pela fadiga a ponto de esquecer ofensas! Incita o coração com justas reprimendas,

88

Pois elas estimulam as pessoas sábias! Exala sobre Orestes teu sangrento hálito! Trata de ressecá-lo com o vapor de fogo Que sai insuportável de tuas entranhas! Deve extenuá-lo até tirar-lhe o fôlego  Numa perseguição feroz e implacável!82

Os sonhos vaticinadores das peças anteriores, ou seja, o sonho dos pássaros disputando a presa no Agamêmnon   e o sonho da serpente parida nas Coéforas, dão lugar, dessa feita, à fantasmagoria a propor a superpresentificação do pesadelo, a  perseguir os humanos. As Fúrias, despertadas pelo fantasma de Clitemnestra, percebem que foram ludibriadas por Apolo e por Hermes. A presença de Hermes, aliás, parece-nos funcionar num duplo sentido: é um duplo de Pílades, pois acompanha Orestes sem pronunciar  palavra e funciona como elo de ligação à estrutura do Prometeu. Na peça de Ésquilo,

Prometeu acorrentado  –  a primeira e única parte conhecida de outra trilogia  –  Hermes funciona como arauto de Zeus a admoestar Prometeu para que revele as profecias relativas ao próprio Zeus sob pena de permanecer preso ao penhasco, punição pelo crime de levar o fogo olímpico do conhecimento aos homens, até então animais irracionais. No Prometeu   o coro das jovens ninfas, filhas de Oceano, se apieda do sofrimento do deus e com ele se solidariza, mesmo correndo o risco de sofrer a fúria dos raios olímpicos. Ora, em Eumênides  se trabalha uma inversão de perspectiva, ou, melhor dizendo, um redesenho ou uma justaposição do cenário político. Enquanto o  protagonista Prometeu simbolizava a resistência heróica às tiranias, agora t emos Apolo, o filho dileto de Zeus, em uma atuação prometaica, com o consórcio de Hermes, inclusive. São as Fúrias quem chamam a atenção para o fato:

82  ÉSQUILO,

op. cit., p. 148, vs. 179-190.

89

Apolo, deus-profeta, conspurcou Seu próprio lar sem qualquer compulsão, E sem ser provocado transgrediu As sacras leis; por um simples mortal O deus rasgou o pacto muito antigo.83

Para evitar o enlouquecimento de Orestes, cuja razão seria tomada pelas Fúrias, Apolo assumiu sua defesa e patrocínio do matricídio. Vale dizer, em troca da manutenção da chama do conhecimento nos homens  –   exemplificado em Orestes  –  enfrentou as antigas deusas, lutando pelo império da sabedoria humana, que seria capaz, doravante, de construir seus próprios valores, cultivando a inteligência, a ciência e as artes. De forma correlata as Fúrias, deusas de aspecto tenebroso, comparadas às Górgonas, aproximar-se-ão, paulatinamente, do ideal de pureza virginal das ninfas Oceânidas ao transmudarem-se em Eumênides (benfazejas). A mudança de paradigmas se faz necessária para simbolizar a chegada da lei: a Força que vence a Força. Apolo, saindo de seu templo, com o arco nas mãos, enfrenta as Fúrias:

Esta casa, de fato, não é adequada à vossa companhia. Não! Vosso lugar é lá onde há sentenças de degolamento e olhos a ser arrancados, ou então onde gargantas são abertas, ou ainda onde, para extinguir toda a virilidade, meninos são castrados, onde se mutila, onde seres humanos morrem lapidados, onde vítimas empaladas, gemebundas, esvaem-se numa agonia interminável! 83  Id.

ibid., p. 150, vs. 222-226

90

Ouvistes, monstros odiados pelos deuses, a relação de vossas festas preferidas?84

A postura prometaica de Apolo fala agora em nome de uma geração vitoriosa.  Não conhecemos a trajetória da trilogia do Prometeu, mas sabemos, que ao final, este retorna ao Olimpo, certamente rompendo a ação até então inflexível de Zeus. Ora, no  parâmetro comparado já vimos que o terrível general Agamêmnon, protótipo de Zeus, que levara ao sacrifício a própria filha Ifigênia, retornara da guerra disposto a reconhecer o direito dos cidadãos e a convocar assembléias de imediato. O discurso de Apolo clama por um novo tempo, sem a atrocidade primitiva das eras antigas, repleta de toda a antropofagia dos Tantálidas (Pélops retalhado pelo pai, o banquete com os filhos de Tiestes e toda a demais sucessão de mortes). Assim como foi possível identificar que, na abertura da trilogia, o tronco familiar dos Pelópidas encontrou-se identificado à geneologia olímpica, em suas sucessivas gerações  –  com Pélops equivalendo a Urano, Atreu à Cronos e Agamêmnon a Zeus – , ao final da trilogia, o paralelo se consuma, sugerindo a autonomia do gênero humano, pela substituição idealizada dos protagonistas Orestes, Electra e Pílades pelos deuses Apolo, Atena e Hermes. Do mesmo modo Zeus, após a crise prometáica, se transforma em deus da harmonia e da verdade, e o basileu clássico, após a guerra de Tróia, espera a paz do lar  para o merecido repouso do guerreiro. A justaposição da esfera privada e da esfera  pública, tematizadas no confronto da agonia do oikos como correlata à agonia hoplita nas batalhas, traz a emergência de um novo foco civilizatório: a consolidação do discurso da pólis. Os problemas relativos à gestão pública, revelando o amadurecimento dos estados nascentes, demonstram que o ideal nacional suplantara a necessidade 84  Id.

ibid., p. 151, vs 243-254.

91

simbólica de auto-afirmação. A riqueza pela conquista dava lugar à economia política inserida numa convivência pacífica entre os povos, que permitisse o livre comércio. Agora, novos dilemas gerais se apresentavam e urgia superar o discurso bárbaro. Por esse motivo, portanto, Ésquilo desenvolve a identificação das Erínias com a  barbárie e com os atos horrendos e, mais que tudo, a identificação do antigo estado de coisas com valores das sociedades bárbaras. O grego se tornara o povo civilizado por excelência, capaz de alcançar a solução dos litígios e conflitos através da inteligência e da organização. O tempo da força bruta e irracional como valor a romper a medida humana ficara para trás. O grande heroísmo agora era reiniciar os tempos pela edificação das esferas domésticas e políticas, pela reinauguração da mulher (Electra) e do homem (Orestes), purificando-os do primitivismo cívico.  Nesse mesmo sentido, interpela Jean-Pierre Vernant:

Mas então, por que Gorgó? É que, para o historiador  –   e especialmente o historiador da religião -, o problema da alteridade na Grécia antiga não pode limitar-se à representação que os gregos tinham dos outros, de todos aqueles que incluíam, para pensá-los, na categoria do diferente, e cujas imagens eram inevitavelmente deformadas –   fosse o caso do bárbaro, do escravo, do estrangeiro, do jovem ou da mulher  –   porque invariavelmente construídas por referência ao mesmo modelo: o cidadão adulto. A investigação deve levar em conta ainda o que  podemos denominar a extrema alteridade, e interrogar-se sobre a maneira como os antigos tentaram, em seu universo religioso, dar forma a esta experiência de um absolutamente outro; não mais o ser humano diferente, o grego, mas aquilo que se manifesta, em relação ao ser humano, como diferença radical: em vez do homem outro, o outro do homem. 85

O combate às Fúrias, semelhantes à Gorgó, irá se consubstanciar na transmutação dessas em benfazejas, assim como a expressão máxima de Gorgó, a 85

 VERNANT, Jean-Pierre. A morte nos olhos: figuração do outro na Grécia antiga –   Ártemis e Gorgó. Tradução de Clóvis Marques. Rio de Janeiro: Zahar, 1988, p. 35.

92

mascará, que expressa a alteridade e formata a interpretação teatral irá se manifestar na internalização da cidadania através da representação cívica, assimilando o cidadão à máscara da austeridade. Quando a ação de Eumênides se desloca para Atenas temos a entrada em cena de um Orestes andarilho, com as cadelas Fúrias em seus calcanhares, a seguir-lhe os rastros. Esta longa peregrinação de Orestes, de Delfos a Atenas, protegido e guiado por Hermes é a trajetória de sua purificação, limpando o sangue derramado. Parando em lares que o acolheram, banhando-se em diferentes oikos, o herói busca reconquistar seu direito a retornar a sua própria casa. A inspiração de Ésquilo mais uma vez dialoga com a Odisséia  e com o Prometeu . Remonta à Odisséia pela semelhança com angústia do herói Ulisses em retornar à pátria e ao lar, amaldiçoado a vagar longe por vinte anos. Dubla o Prometeu acorrentado  pelo mito correlato de Io, a qual vive uma vicissitude semelhante e oposta a do deus, pois a ninfa, tomada como amante por Zeus, fora transformada em novilha, para que este, evitando os ciúmes da esposa, a deusa Hera, a visitasse metamorfoseando-se em touro. Todavia, o estratagema não ilude por muito tempo a ciumenta esposa que ordena que um moscardo de horripilante aspecto a persiga incessantemente. Assim, Io é obrigada a vagar sempre, escapando à perseguição, atravessando campos, mares e desertos, dando sua corrida nome à toda Grécia oriental (Iônia = Jônia) . O belo encontro entre ambos, Io e Prometeu, no Prometeu

acorrentado, revela o contraste pelos perseguidos das potestades, o deus condenado à imobilidade e a ninfa condenada a nunca descansar. Orestes, em sua trajetória iônica, chega a Atenas, a capital da inteligência e símbolo do mundo moderno, para abraçar a imagem da deusa e, por extensão, para abraçar a atualidade de Ésquilo, de Sólon, de Drácon, de Péricles e de Sócrates.

93

Estou chegando aqui por ordem de Loxias, Atena soberana; acolhe com clemência Um homem amaldiçoado. Já não sou Um suplicante cujas mãos estão impuras; A minha mácula gastou-se e desbotou  Na convivência amável com seres humanos Que me hospedaram em seus lares respeitáveis Enquanto eu vagueava por terras e mares. Obediente ao mandamento de Loxias Em seu sagrado oráculo chego afinal Ao pé de tua imagem e a teu templo, deusa! Aqui aguardo o veredicto da Justiça. 86

As Fúrias entram logo em seguida, sentindo já o cheiro de sangue da vítima; se acercam, endemoniadas e terríveis, e uma delas exclama ao ver Orestes abraçado à imagem da deusa Palas Atena:

Isto não pode acontecer! Não pode! O sangue maternal, se derramado

,

 Nunca, jamais poderá refluir! Após correr e se entranhar na terra, Está perdido para todo o sempre!87

Orestes mantém-se agarrado á imagem, como garantia de acesso a uma justiça diferenciada, que não a antiga e vociferante Fúria

88

. Mais que um diálogo, a longa

seqüência retrata um contraponto, de um lado a reza suplicante de Orestes, de outro lado o hino infernal das Fúrias. Cada qual atende a uma lógica. O herói, mero títere de um destino inelutável, trazendo o reconhecimento de que ele não foi o autor de seus 86

 Id. ibid., p. 154, vs. 311-322. ibid., p. 155, vs. 346-350. 88 “O gesto do suplicante é abraçar os joelhos de seu possível benfeitor, em atitude implorativa. Os suplicantes são protegidos de Zeus e, consequentemente, devem ser tratados com respeito”. (SILVA, Augusta Fernanda de Oliveira e. In: EURÍPEDES. Orestes. Ed. Cit., nota 122, p. 129). 87  Id.

94

 próprios atos, senão uma peça em um jogo já demarcado. Na realidade, o depoimento de Orestes em seu canto de exílio é não só o prenúncio do final da tragédia como gênero, mas o derradeiro canto dos heróis, que se despendem do cenário literário, cedendo lugar ao homem comum. O verdadeiro Orestes, o Orestes livre do teatro de marionetes dos deuses, será aquele que, enfim, começara a viver. O futuro, o casamento com Hermíone, e uma vida apaziguada o aguardam. Passado o tempo do heroísmo, o homem aspira pela tranqüilidade. A súplica de Orestes consubstancia-se em um ritual por mudança, pois clama por novos deuses e pela salvação de sua alma, em busca de redenção, que ao atingi-lo atingirá, por extensão, a todos os argivos, que irão se converter à boa nova.

Agora, então, posso invocar com lábios puros e sem o risco de cometer sacrilégio a deusa soberana dessa região: que Atena venha socorrer-me, e assim fazendo sem recorrer às armas me conquistará e além de mim a minha terra insigne, Argos, e todos os seus numerosos habitantes que passarão a ser desde hoje e para sempre seus aliados mais leais e valorosos.89

O mundo das armas, a era hoplita se encerra. O acordo político que unificará a Grécia se anuncia, trazendo a união dos atenienses aos argivos, passando pela interseção de Delfos, de Creta e de toda a Jônia e alcançando mesmo as remotas terras troianas, como logo será anunciado. O coro das Fúrias responde intensificado seu canto e seu delírio, clamando por sangue, por vingança e apelando a uma ordem natural, mesmo contratual, que antecede

89  Id.

ibid., p. 156, vs. 388-396.

95

à era olímpica, num pacto onde os próprios deuses teriam estabelecido suas atribuições  junto aos mortais. E relatam:

O ofício que o destino inexorável fixou e nos impôs eternamente é perseguir todas as criaturas lançadas por sua própria demência na via tortuosa do homicídio até descerem ao profundo inferno; nem mesmo a morte as livrará da pena. Quando nascemos foi-nos confiada esta prerrogativa; os imortais não podem estender as suas mãos  para usurpá-la, nem aparecer como convivas em nossos banquetes, mas, em compensação, nunca vestimos roupas imaculadamente brancas; nossa incumbência é destruir as casas onde a Discórdia, sem ser convidada, vem instalar-se perto da lareira e causa a morte de um ente querido.90

Essas deusas familiares, protegendo instintivamente o sangue, se defendem do discurso do novo, desconfiadas, em busca de perseverar na defesa de valores atemporais. São as grandes e reais protagonistas da peça, o título não o esconde, pois representam o cerne do debate da trilogia. Afinal, o retorno de Agamêmnon só coincidentemente foi o retorno do general, pois, para o espaço doméstico representou o retorno do pai cruel e do marido relapso. Se a atuação de Clitemnestra como esposa esboçava certo hedonismo, tal, ainda que tenha causado certa ameaça à manutenção dos lares, não chegara a invadir o terreno das relações parentais primordiais. Interpretar de 90  Id.

ibid., p. 158, vs. 449-466.

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maneira diversa e conceder ao marido e pai relapso a supervalorização de sua atuação externa como basileu e general seria suplantar com a esfera pública aquilo que até então restava reservado aos domínios privados dos troncos familiares. E é justamente isso o que ocorre: a passagem da genealogia dos clãs para o espaço público que começa a desenvolver uma cidadania autônoma, e onde irá atuar como gestor o legislador. Ao  procurar por fim às lutas entre famílias, impondo uma dura coerção à desobediência, Drácon limita a atuação dos patriarcas ao sentido político e circularizado da  pólis. Quando na figura de Agamêmnon o líder político suplanta o pai polêmico e, mais que isso, a ação política que o estadista representa suplanta sua própria atuação na economia interna de seus atos, é o Direito Público que emerge como novo tom a pautar o  paradigma vigente. Profunda alteração que o gênio de Ésquilo soube bem observar e retratar. Ademais, guardadas as proporções, as Fúrias já vinham contabilizando argumentos contra Agamêmnon em razão da morte de Ifigênia, não de todo satisfeitas com os aspectos religiosos específicos do caso, que o inocentava pelo “ato de fé”. Todavia, e mais uma vez devido aos deuses novos, não tiveram como intervir, afinal o sacrifício fora exigido por Ártemis, irmã gêmea de Apolo, que também carregava o arco de setas certeiras. Quando a própria deusa Atena atende à súplica e adentra seu templo, a entrada em cena de uma nova geopolítica é o que se manifesta abertamente em suas falas:

Ouvi de muito longe um estridente apelo enquanto caminhava às margens do Escamandro; lá eu tomava posse da terra pujante que os reis e comandantes do aqueus valentes me consagraram como o dom mais valioso dos ricos despojos de guerra, e cujo solo

97

agora me pertence para todo o sempre como o quinhão mais precioso já oferecido aos bravos filhos de Teseu. Venho de lá trazida por meus ágeis pés infatigáveis, impulsionando aos ventos como se asa fosse a minha sacra égide enfunada, à guisa de carro a que se atrelam céleres corcéis. Agora, vendo à minha frente um bando insólito de visitantes, não me sinto temerosa,  porém há em meus olhos natural espanto.91

A deusa encontrava-se, portanto, tomando posse dos domínios adquiridos  justamente pelos guerreiros liderados por Agamêmnon, que a ela consagraram a vitória. Vingara-se, enfim, do episódio do pomo da discórdia, que elegera Afrodite, e retornava  para o templo na cidade a ela consagrada, coração do futuro e centro da contemporaneidade do espetáculo. O conflito vai se desenrolar diante dela, com exposições de ambas as partes. Atena demonstra compreender com clareza a importância hermenêutica de que o caso se reveste: a aposta política de Apolo em Orestes e os dissabores que decerto adviriam em desqualificar as Fúrias.

 Nesta situação, quer eu lhes dê ouvidos quer não as favoreça, terei de sofrer inevitáveis dissabores. Entretanto,  já que a questão chegou a meu conhecimento indicarei juízes de crimes sangrentos, todos comprometidos por um juramento, e o alto tribunal assim constituído terá perpetuamente essa atribuição. Apresentai, então, vós que estais em litígio,

91  Id.

ibid., p. 160, vs. 517-532.

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testemunhas e provas –  indícios jurados  bastante para reforçar vossas razões. Retornarei depois de escolher os melhores entre todos os cidadãos de minha Atenas,  para que julguem esta causa retamente, fiéis ao juramento de não decidirem contrariamente aos desejos da Justiça.92

Logo sai e retorna, trazendo o júri, enquanto, no interlúdio, as Fúrias voltavam a se concentrar em suas invocações terríveis, alertando para a importância de defenderemse os valores ancestrais. Esse será também o último interlúdio da Oréstia onde, de um modo geral, o coro realiza uma longa fala, seja para relatar uma ação que ocorre ou ocorreu longe dos olhos da platéia, seja para ponderar sobre determinado tema, somando fatos passados ou predições. No caso, o reclame das Fúrias sobre a antiga ordem que sofre atuais ameaças é a despedida da era trágica, em uma metonímia de triste figura, com as bruxas famintas a lamentarem-se. E esse lamento é um lamento  paradoxal de deuses que saem de cena, que sofrem o assédio da razão humana que agora os desqualifica.  Nietzsche, em passagens clássicas, chamara a atenção para a ação  permanentemente dionisíaca nos protagonistas das tragédias, que, mesmo na figura de Apolo, representariam um estado dionisíaco alegórico, englobando a arte como a atuação da esperança a demonstrar que o exílio da individuação poderia ser rompido. E comenta:

(...) a epopéia homérica é a poesia da cultura olímpica, em que ela entoou seu  próprio canto de vitória sobre os pavores do combate dos titãs. Agora, sob a influência predominante da poesia trágica, os mitos homéricos renascem transformados e mostram nessa metempsicose que, no meio tempo, também a 92  Id.

ibid., p. 164, vs. 635-650.

99

cultura olímpica foi vencida por uma visão do mundo ainda mais profunda. O arrogante titã Prometeu anunciou a seu carrasco olímpico que sua soberania estará algum dia ameaçada do perigo extremo, caso não se alie a tempo com ele. Em Ésquilo reconhecemos o pacto do apavorado Zeus, temeroso de seu fim, com o titã. Assim a época primitiva dos titãs é pouco a pouco trazida do Tártaro, de volta para a luz. A filosofia da natureza selvagem e nua vê com o olhar aberto da verdade os mitos do mundo homérico que dançam à sua frente: eles empalidecem, estremecem diante do olho fulgurante dessa deusa  –   até que o punho poderoso do artista dionisíaco os force a servirem à nova divindade. A verdade dionisíaca toma para si todo o reino do mito como simbolismo de seu conhecimento e enuncia este conhecimento, em parte no culto público da tragédia, em parte nas práticas secretas das celebrações dramáticas dos Mistérios, mas sempre sob o antigo invólucro mítico. 93

Mas agora, nas Eumênides, é a própria tragédia dionisíaca quem alegoricamente sai de cena, num último interlúdio patético. A ação dionísiaca dos aedos fora apolineada pelo legislador. O espaço público incorporara o rito privado dos Mistérios e o sacerdócio dos templos em prol da invenção da instituição pública, corporificada no tribunal. O invólucro do mito será substituído pela publicidade dos atos, novo mito metalingüístico. Com o retorno de Atena, seguida por um arauto que apresenta os juízes, tem início o julgamento, com Orestes de pé como réu e o coro das Fúrias, agrupado a um canto, funcionando como acusação. É quando entra Apolo, temido pelas Fúrias, que  protestam contra a superposição de forças naqueles domínios. Mas o deus se declara mera testemunha; atuando, porém, de fato, como advogado de defesa. Inicia-se um interrogatório do Corifeu a Orestes que admite ter matado a própria mãe, em obediência aos desígnios de Apolo e em vingança ao pai. Estabelece-se um debate. Apolo intervém

93

 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia no espírito da música. In: Obras incompletas (“Os Pensadores”). São Paulo: Abril Cultural, 1983, pp. 10-11.

 

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Falar-vos-ei, membros do egrégio tribunal recém-instituído pela deusa Atena, seguindo os retos mandamentos da justiça (sendo profeta, não posso dizer mentiras). Do alto do meu santo trono oracular  jamais pronunciei uma simples palavra falando a homens ou mulheres ou cidades, que não fosse inspirada pelo próprio Zeus,  pai dos deuses olímpicos. Ficai atentos à minha ponderosa justificação; exorto-vos a prestar-lhe toda a atenção e a ser submissos à vontade de meu pai;  juramento nenhum deve prevalecer sobre os desígnios de Zeus todo-poderoso. 94

A fala de Apolo é o discurso de autoridade de um jovem  procurador   a fazer valer a regra estatal e a obediência às instituições. Traz à cena a noção de verdade oficial, o que atinge o cerne da estrutura argumentativa, ao apontar para uma verdade inquestionável e para normas claras, que permitem uma interpretação escorreita. Opõe, ainda, o conceito de verdade normativo ao conceito de verdade subjetivo e moral. Ainda que a verdade moral seja eticamente válida, enquanto compromisso figadal, externalizando-se enquanto juramento, não atinge senão a relação entre particulares, o que não pode, doravante, e de maneira nenhuma, se sobrepor ao discurso público, que  patrocina o bem comum. Todavia, com fina ironia, as fúrias contra-argumentam:

Levando em consideração tuas palavras, Zeus tem especial estima pelos pais; ele, porém, acorrentou seu próprio pai, o antigo Cronos; como conciliarás 94  ÉSQUILO,

 

op. cit., pp. 170-171, vs. 800-813.

101

tua argumentação com a conduta dele?95

A ironia não passa despercebida de Apolo, que se contraria e passa, daqui em diante, a se opor francamente ao Coro, vituperando-as. Seu remédio contra os atos irracionais do pai dos deuses, é cantar-lhe os feitos, acima do bem e do mal, desatando correntes e inventando remédios para todos os males 96. As Fúrias não se deixam intimidar e retrucam com a mesma ênfase. Apolo/Ésquilo, acuado pela força desse argumento antigo, apela para a teoria da paternogênese como princípio geral da existência:

Aquele que se costuma chamar de filho não é gerado pela mãe –  ela somente é a nutriz do germe nela semeado -; de fato, o criador é o homem que a fecunda; ela, como uma estranha, apenas salvaguarda o nascituro quando os deuses não o atingem. 97

E oferece como exemplo a própria Palas Atena, nascida sem mãe, e modelo de  perfeição, e de atualidade, que não poderia, portanto, ser mesmo produto de uma mulher. De fato, segundo o mito, Zeus engolira Métis, que estava grávida de Atena e, sentido a hora do parto, solicitara a Hefesto que lhe fendesse a cabeça, de lá retirando a deusa, já nascida adulta e armada. A teoria da paternogênese, exposta por Ésquilo pela boca do personagem do deus Apolo, ou, segundo outra perspectiva, externada pela transmutação da religião apolínea, através da fala do aedo Ésquilo, é a fórmula encontrada pelo autor para emprestar coerência teológica ao argumento da Oréstia  como um todo, sobrevalendo o 95  Id.

ibid., pp. 171-172, vs.842-846.  Dessa feita, Apolo remete ao mito correlato de Eliú, no Livro de Jó, porta-voz da sabedoria divina. 97  Id. ibid., p. 172. vs 867-872. 96

 

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 público ao privado, a  pólis ao oikos. A ação masculina e moderna deve suplantar o ritmo feminino e irracional, voltado este à manifestação morfológica da primeira geração de deuses. A segunda geração já caracterizara, a partir do equilíbrio entre masculino e feminino, com Urano concebido na mesma dimensão que Gaia, a supremacia do masculino, que se entroniza. Todavia, trata-se, ainda, de uma esfera intermediária, próxima às influências da escuridão primeva. O destronamento de Urano  por Zeus e a capacidade desse de absorver a reprodução e dar à luz pela cabeça à deusa da inteligência e da luz é por si só o grande mérito da derradeira geração divina, sua autopoiése. E é justamente a deusa protótipo da nova ordem apaziguada, fiel ao pai, quem irá destemperar os debates, coordenando com autoridade os trabalhos; e anunciando aos  juízes que estes devem ponderar as diferentes argumentações; e argüindo as partes se desejam exarar novas razões. Dado como encerradas as alegações, Atena se volta para os juízes de forma a sublinhar a importância alegórica daquele momento:

Prestai toda a atenção ao que instauro aqui, atenienses, convocados por mim mesma  para julgar pela primeira vez um homem, autor de um crime em que foi derramado sangue. A partir deste dia e para todo o sempre o povo que já teve como rei Egeu terá a incumbência de manter intactas as normas adotadas neste tribunal na colina de Ares (...)  Nem opressão, nem anarquia: eis o lema Que os cidadãos devem seguir e respeitar.  Não lhes convém tampouco expulsar da cidade todo o Temor; se nada tiver a temer,

 

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que homem cumprirá aqui os seus deveres?98

É, portanto, uma nova ordem “titânica” que se incorpora, ou melhor, que incorpora o poder titã e o reutiliza como força de coerção do Estado nascente. O crime, representado pelo seu exemplo mais atroz ao oikos, o sangue parental derramado, é convertido na alteração alegórica do próprio deus da guerra, Ares, em cuja colina é consagrado o primeiro tribunal. Ares, o deus das lágrimas, o bebedor de sangue, o flagelo dos homens, entre outros epítetos deprimentes, como que representa um alterego das Fúrias e a marca dos ecos da grande guerra recém finda. A vitória desse mito pela coragem lúcida e refletida de Atena, consubstanciando-o em templo da Justiça, ao edificar com seu nome  –  aeropago  - o primeiro tribunal, equivale, enfim, à representação da vitória da inteligência sobre a força descontrolada como uma das marcas do ideal grego amadurecido. Aproxima-se o momento do veredicto e os ânimos tornam a se acirrar:

APOLO Desgosta-vos a decisão a ser tomada e apenas cuspireis sobre quem vos enfrenta um veneno de agora em diante inofensivo. CORIFEU Sentes prazer em humilhar nossa velhice, deus novo; espero ouvir o veredicto aqui, freando a minha ira contra esta cidade. ATENA Serei a última a pronunciar o voto e o somarei aos favoráveis a Orestes.  Nasci sem ter passado por ventre materno; 98  Id.

 

ibid., p. 174, vs 900-908 e 925-929.

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meu ânimo sempre foi a favor dos homens, à exceção do casamento; apóio o pai. Logo, não tenho preocupação maior com uma esposa que matou o seu marido, o guardião do lar; para que Orestes vença,  basta que os votos se dividam igualmente.99

É efetivamente o que ocorre: os votos dividem-se igualmente e o voto de Atena se converte no voto decisivo, dando origem ao Voto de Minerva (através do patronímico romano da deusa). Orestes agradece efusivamente à deusa, não deixando de agradecer a Apolo e mesmo a Zeus, compreendendo a verdadeira estrutura judiciária que o amparou. Faz, em seguida, loas à volta ao lar, finalmente, novo Ulisses a libertar-se da maldição. E finda sua participação fazendo um juramento de apoio irrestrito aos atenienses em futuras dificuldades. A bela passagem ecoa como um debate entre eras, afinal o herói fala, de dentro da alegoria homérica, para a atualidade ateniense de Ésquilo, prometendo o apoio do passado clássico às inovações presentes. A peça termina aqui, mas não termina. Afinal, saem, para não mais retornar, todos os personagens, restando Atena e as Fúrias. Resta, todavia, um quarto da ação a transcorrer.  Na atualidade, é difícil conceber por que Ésquilo teria dado tamanha relevância a essa passagem final, que se situa, a rigor, fora do âmbito do drama particular narrado, uma vez que Orestes, que dera nome à saga, já se fôra. Muito do que se observa nos diversos encômios ao Agamêmnon  revelam, em negativo, as críticas às seqüências. As

Coéforas   fôra “reescrita” por pelo menos dois outros autores   de vulto na época, Sófocles e Eurípedes. Já Eumênides, poderia ter toda sua ação substituída pelo

99  Id.

 

ibid., p. 176, vs. 968-982.

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conhecido recurso do deus ex machina, que é, aliás, do que se valerá Eurípedes na

Electra. A engenharia do gênio esqueleano necessitava contrapor ao coro dos anciãos, que simbolizaram o espaço público e a atuação dos cidadãos na  pólis no Agamêmnon e ao coro das escravas, que sinalizara a fala do gineceu, nas Coéforas , um coro intermediário, de profetizas, que sinalizasse, a um tempo, as boas novas - as mensagens  benfazejas de uma nova era - e a fala nascente de um espaço institucional, recolhendo o rito religioso para outro esfera de representações. Cabia a esse quarto final das

Eumênides , transpor, cuidadosamente, a antiga religião para um novo altar na contemporaneidade, impedindo que novos obstáculos viessem a comprometer o surgimento histórico da Pessoa Jurídica de Direito Público enquanto mecanismo para a solução de conflitos através da prestação jurisdicional de serviços pelo Estado nascente e soberano. A última tragédia deveria terminar com a morte simbólica dos deuses. Do inconformismo das Fúrias para com a sentença pronunciada nascem novos impropérios e ameaças contra a cidade de Atenas. A deusa reage prontamente, demonstrando ser a filha dileta de Zeus e a única capaz de abrir o compartimento onde se guardam os raios. Demonstrando ter poder de exterminá-las, começa a admoestá-las, convencendo-as, paulatinamente, que o resultado do julgamento pelo empate fôra uma fórmula para vencê-las, sem, todavia, humilhá-las, dando força à verdade dos novos tempos. Ademais, nesse novo mundo que se descortinava, haveria lugar para elas mesmas, Fúrias, que seriam transmudadas em deusas protetoras dos lares e passariam a ser respeitadas e adoradas, ao invés de permanecerem temidas e odiadas.

Então queremos conviver com Palas e nunca aviltaremos a cidade que ela e Zeus onipotente e Ares

 

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exaltam como invicta fortaleza,  brilhante baluarte dos altares santificados por todos os deuses! Alçamos nosso votos fervorosos e nossas profecias mais propícias  para que o vívido esplendor do sol faça brotar da terra generosa, em transbordante e eterna plenitude, as bênçãos que tornam feliz a vida!100

Consuma-se a chegada da luz, vaticinada pelo sentinela na abertura da trilogia; e ultrapassada a escuridão política do ventre primitivo, repleta de superstição. Cooptadas  pela nova ordem triunfante, as ex-Fúrias, agora Eumênides, se aprestam a adentrar os subterrâneos de sua desaparição, seguidas de procissão votiva, que lhe mostra a rota  para o subterrâneo, de onde deverão velar pela paz e pelos bons pensamentos. Com as Fúrias adentrando a terra, enterram-se simbolicamente os deuses, apelando o artista em seu simbolismo para o paralelo formal de encerrar-se tragédias com mortes. A procissão domina a cena e encerra a peça em verdadeira festa de júbilo, finalizando a cosmogonia, e dando origem aos tempos modernos, criação do coletivo dos deuses plasmado na obra da esfera pública. E festeja a procissão, em significativa mudança de versos, despedindo-se da tragédia:

O povo preferido por Atena acaba de ganhar a paz aqui  para a felicidade de seus lares, e assim vemos selar-se a união entre as Parcas e Zeus onividente! - gritai agora, obedecendo aos ritos,  Numa resposta ao nosso canto estrídulo!101 100

 Id. ibid., p. 184, vs. 1210-1221. ibid., p, 189, vs1364-1370.

101  Id.

 

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E gritam, um grito prolongado, grito de júbilo e de fé e de esperança e de harmonia, contrapontístico, inventando o coral, antecedendo a orquestra e a multidisciplinaridade. Sonhando alto o sonho de um outro mundo possível.

 

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CAI O PANO

 

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Eurípedes retoma o argumento. Após fornecer uma versão da morte de Clitemnestra na Electra, onde a protagonista surge casada com um camponês, transferindo a ação dos palácios para o meio rural, coloca, em Orestes, o herói tomado  pelo remorso, enquanto o povo decide, em assembléia, a lapidação dos matricidas. Entrementes, chegam a Argos, Menelau e Helena, ardilosos, prestes a tomar domínio da cidade a partir da morte dos sobrinhos. Mas não é o que se dá, pois Pílades dessa vez assume o comando e estabelece um plano: irão matar Helena, causadora inicial das desgraças argivas, motivo da morte de tantos parentes queridos na cidade, reconquistando a afeição do povo, e seqüestrarão Hermíone, filha de Menelau, para forçar este a consentir que os irmãos permaneçam vivos. Desse modo, o delirante Orestes se converte num celerado, praticamente em um  serial killer , e realiza todo o  plano. Helena é resgatada pelos deuses no último segundo, transformando-se em deusa, num equivalente, às avessas, do sacrifício de Ifigênia em Áulis. Os três amigos, Orestes, Electra e Pílades, se transformam numa gangue implacável que, em uma continuação,

Ifigênia em Taúrida  –   onde vão buscar o socorro da irmã sacerdotisa -, voltarão a se

 

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reunir, dessa vez para dar cabo de Aletes, filho de Egisto com Clitemnestra, ou seja, irmão dos matricidas, que tentaria usurpar o trono. A lógica de Eurípedes parece-nos, portanto, completamente diversa da de Ésquilo e mesmo da encontrada em Sófocles. Eurípedes reinventa a tragédia, ou melhor, realiza um mergulho no trágico102, habitando, propositadamente, um estilo arcaico para tornar impressionantes as paixões humanas, lapidando o paradoxo e iniciando a invenção do indivíduo e da psicanálise.  No Hamlet, de Shakespeare, Orestes irá retornar. Agora envolto em novas complexidades, louco desde a abertura da peça, visitado pelo fantasma do pai, sabendo ter que causar a morte da própria mãe. Sua história, porém se duplica ou mesmo se multiplica, em diversos duplos. Em Laertes (que vingará a morte do pai causando a morte de Hamlet), vingança do próprio espelho. Na trupe de atores que encena a peça trágica para o rei (encenariam o Agamêmnon ?). Na travessia de Fortimbrás, que também teve o pai morto e que irá reconquistar o reino, trazendo a paz. Na fala final, Hamlet pede a Horácio –  que, apesar da juventude, se auto- intitula “um antigo romano”  –   para que narre sua história. Pois Hamlet se sabe um tirano e vive a loucura do  paradoxo na Inglaterra do século XVII: estudante universitário, como os demais  personagens jovens, sabe a necessidade de renovar a lei e o Estado, o que, no caso, representa sua própria derrocada, afinal que faziam tantos nomes latinos em oficiais na distante Dinamarca? Senão representar que Hamlet ocupava indevidamente o lugar de Fortimbrás. Quando Goethe escreve o  Prólogo no Céu do seu Fausto, a cena é praticamente a mesma do Livro de Jó , sendo, no entanto, completamente diferente. Três arcanjos cantam a força da criação, cuja razão não se alcança, quando Mefistófeles, convocado, 102  A

remissão nos vem do nome de um espetáculo e de um grupo de teatro que existiu na década de 1990 no Rio de Janeiro e que encenava passagens de clássicos. Lembramos, em especial, de uma bela cena, com o discurso de despedida de Ifigênia, citado neste trabalho nas páginas 58-59.

 

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apresenta-se ao Senhor, que lhe indaga sobre o mundo. O Demônio, com linguagem  pândega, lamenta a sorte dos homens, miseráveis, e a própria sorte por ter como missão atormentar criaturas tão fracas. O Senhor comenta sobre Fausto, sua ovelha especial. Mefistófeles alega que este o serve na ânsia do Infinito, movido pela busca de totalidade e não propriamente pela fé. O Senhor, então, autoriza-o a tentar a ruína de Fausto para aquilatar sua predisposição. Mefistófeles garante que sairá vitorioso na disputa. Fechase o céu, dissipam-se as nuvens, resta o Diabo, só, que, em solilóquio, orgulha-se de conviver com Deus. O que temos agora é um Satã cultural, emergindo da Antigüidade clássica e atravessando a revolução romântica para instaurar-se com todo seu cinismo no bojo do classicismo alemão. É, por assim dizer, um artista de circo, a personificar a picardia literária em sua crítica às Letras. Passaram-se cerca de vinte e cinco séculos desde que o  poeta bíblico redigira o seu poema dramático. E agora um novo poeta, considerado o mais brilhante do seu tempo, retoma o mote, com a diferença de que, se para o poeta antigo o Mal não estava exatamente exemplificado no Satanás, agora o demônio, que tem vários nomes, mas atende, sobretudo, por Mefistófeles, já satiriza seu próprio declínio após o apogeu do seu poder na Idade Média. Se antes o aedo identificava-se como Porta-Voz de Deus, agora o poeta tenta dublar o demônio para conviver prazeroso na esfera da criação. Eugene O’Neil retomará a trama da Oréstia  em seu Morning becomes

Electra 103, onde os protagonistas, dessa feita, viverão a história das profundas crises sociais no sul dos Estados Unidos e a trama dos desejos não revelados. O coro irá ganhar tonalidades pitorescas e a revelação do inconsciente plasmará as novas odisséias que se anunciam para outras eras. 103

O’NEIL, Eugene. Electra enlutada. Tradução de R. Magalhães Júnior e Miroel Silveira. Rio de Janeiro: Bloch, 1970.

 

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Essa ressemantização permanente não nos fala apenas sobre o valor e a importância das obras clássicas aqui trabalhadas, mas também sobre um movimento de interação. Movimento este que encaminha, no Direito, a novos debates sobre a representação e sobre o significado das decisões judiciais. Mas esta já é uma outra história...

 

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