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April 2, 2019 | Author: Natália Helou Fazzioni | Category: Anthropology, Émile Durkheim, Sociology, Taxonomy (Biology), Ethnography
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 A Materialidade Materialidade das Classificações: de Émile Durkheim Durkheim a Marcel Mauss

 José Reginaldo Reginaldo Santos Gonçalves Gonçalves Departamento de Antropologia Cultural Programa Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia IFCS / UFRJ

 José Reginaldo Santos Gonçalves é PhD em Antropologia Cultural pelo Departamento Departam ento de Antropologia da Universidade de Virginia (EUA). Atualmente é Professor / Pesquisador do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia e do Departamento de Antropologia do IFCS / UFRJ, além de Pesquisador I do CNPq. É autor de  A Retórica da Perda (Ed.UFRJ 2003, 2 a edição); de  Antropologia dos Objetos  (IPHAN 2007); e organizador de  A experiência etnográfica: antropologia e literatura no século XX  (Ed. UFRJ 2011 3a edição). Desenvolve projetos de pesquisas na área de patrimônios culturais, museus, memória coletiva, culturas populares e teorias antropológicas.

Publicado em  Educação e antropologia: construindo metodologias de pesquisa.   (orgs. Rocha, Gilmar; Tosta, Sandra). Ed. CRV. Curitiba. 2013.

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Neste texto discuto as contribuições metodológicas de Marcel Mauss (18721950) em um ensaio que ele assina juntamente com seu tio Émile Durkheim (1858-1917): Sobre Algumas Formas Primitivas de Classificação   (FPC). Qualifico essas contribuições

mostrando o papel desempenhado pela etnografia e pelas chamadas categorias nativas no pensamento do primeiro, mostrando, por este viés, a atualidade da noção de “classificações primitivas”. I. Marcel Mauss e a ortodoxia durkheimiana 1

Nas leituras mais freqüentes, as referências ao texto mencionam quase sempre Durkheim, situando Mauss numa posição suplementar. Poderíamos dizer, sem exagero, que as leituras e críticas desse texto têm atribuído a função autoral predominantemente, se não exclusivamente, a Durkheim. Mesmo em leituras e avaliações recentes da obra de Marcel Mauss, o texto é considerado como aquele em que se manifestaria de modo mais forte a chamada “ortodoxia durkheimiana” (Tarot, 1996: 75). Essa “ortodoxia” se manifestaria de modo decrescente em outros textos do mesmo período: o ensaio sobre o sacrifício, escrito com Henri Hubert e publicado em 1899 (Mauss; Hubert, 1968 [1899]); o ensaio sobre a magia, assinado também com Hubert em 1902-1903 (Mauss; Hubert, 1974 [1950]); e um estudo sobre a prece, trabalho inacabado e assinado exclusivamente por Mauss em 1909 (Mauss 1968 [1909]). No texto FPC , dificilmente se perceberia a distinção do ponto de vista maussiano, que se desenharia progressivamente naqueles três outros textos. No ano de 1902, numa carta, Durkheim convida Mauss para a elaboração conjunta de um artigo: “Peço que você responda imediatamente pelo correio, ou o mais breve possível, às duas questões seguintes: 1) você poderia 1  Este

texto foi originalmente elaborado na forma de uma comunicação apresentada no seminário “Cem Anos de ‘Algumas Formas Primitivas de Classificação`”, promovido pelo Departamento de Antropologia Cultural do IFCS/UFRJ, em junho de 2003.

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fazer comigo, até o próximo mês de agosto, um artigo sobre “As classificações das coisas”? (título aproximativo e provisório); 2) quais seriam as dimensões prováveis desse trabalho, em termos de páginas do L´année Sociologique? (Fournier, 1994: 248-249). Durkheim finaliza a carta dizendo: “O trabalho começaria por apresentar o problema da classificação; mostraria que aí existe uma questão. (...) Apresentaríamos alguns exemplos (...). Creio que isto seria bom. Voce poderia fazer isto comigo em junho e julho” (Fournier, 1994: 249). O texto foi publicado em 1903, no número 6 do L´Année Sociologique. Durkheim tem então 45 anos; Mauss tem 31 anos. Não foi o primeiro texto assinado pelos dois. No número anterior daquela publicação, eles assinaram uma resenha da obra de Baldwin Spencer e de F.J. Gillen,  As tribos nativas da Austrália Central  (1899). O trabalho de leitura, fichamento, crítica e resenha das obras etnográficas da época sempre foi tarefa de Marcel Mauss na equipe do L´Année Sociologique. Em depoimento de 1930, referindo-se à obra de Spencer e Gillen, afirma que foi ele o primeiro, ainda jovem, a assinalar e elucidar a importância (Mauss, 1996 [1930]: 229) dessa “massa enorme de fatos infinitamente preciosos” (Fournier, 1994: 249). Mauss afirma também ter feito a resenha dos sete volumes da obra de De Groot sobre Os Sistemas Religiosos da China . A Mauss também coube o trabalho de resenha dos estudos etnográficos então publicados sobre as sociedades indígenas norte-americanas. Naquele mesmo depoimento, referindo-se à preparação do ensaio, afirma ele: “Eu forneci todos os fatos” (Mauss, 1996 [1930]: 226; Fournier, 1994: 249-250). A base etnográfica do ensaio, embora centrada no material australiano, norte-americano e chinês, é extensa e usada de modo bastante cuidadoso e criterioso. Ele apresenta um total de 228 notas de pé de páginas, trazendo referências bibliográficas e

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comentários. Há um cuidado extremo com os dados etnográficos que ocupam na verdade a maior parte do ensaio: 61 páginas de um total de 76. Nesse trabalho de parceria entre tio e sobrinho, teria sido tarefa do primeiro a formulação do problema teórico (“o problema da classificação”); a do segundo, ilustrar com “alguns exemplos” as teses apresentadas. Esta parece ser a estória contada com mais freqüência nas leituras feitas por antropólogos e sociólogos. Ela repercute a imagem de um Marcel Mauss identificado intelectualmente com o tio e com o empreendimento coletivo da escola sociológica francesa. Essa imagem, assinale-se, foi de certo modo bastante cultivada pelo próprio Marcel Mauss, que sempre enfatizou sua lealdade intelectual a Durkheim, sua responsabilidade na continuação da obra por ele iniciada e da obra dos demais membros do grupo desaparecidos durante a primeira guerra mundial. No depoimento já citado de 1930, ele afirma: “Impossível me destacar dos trabalhos de uma escola. Se há personalidade, ela está imersa em uma impessoalidade voluntária. O sentido do trabalho em comum, em equipe, a convicção de que a colaboração é uma força oposta ao isolamento, à pesquisa pretensiosamente original, eis o que caracteriza minha carreira científica, hoje mais que ontem” (Mauss, 1996 [1930]: 224). Apesar dessa “impessoalidade voluntária” (“impersonnalisme volontaire”), a originalidade da obra de Marcel Mauss é um fato reconhecido. Não são poucos os autores importantes que assumem a herança intelectual por ele deixada. Mas nem por isso coincidem no entendimento dessa herança. Entre os mais conhecidos estão evidentemente Claude Lévi-Strauss (1974 [1950]) e Louis Dumont (1972). Sua obra jamais deixou de inspirar pesquisas originais não só em antropologia e sociologia como também em história.

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Mas onde estaria a originalidade da contribuição de Marcel Mauss no ensaio sobre as FPC ? Seria possível perceber aí uma contribuição que fosse além do fornecimento de fatos etnográficos ilustrativos para as teses de Durkheim? Penso que um dos pontos importantes para responder a essas questões é esclarecer os sentidos da etnografia, ou os usos dessa categoria pela comunidade científica. Uma distinção se impõe: se alguns a entendem como “dados” a serem usad os para confirmar ou para negar determinadas hipóteses; outros a entendem como a condição mesma da reflexão teórica em antropologia, que jamais se realiza se não em uma negociação permanente com o chamado ponto de vista nativo. No primeiro caso, temos o sentido mais fraco que pode assumir essa categoria na história da antropologia (corretamente criticado por Max Gluckman, ainda nos anos 50, através da noção de “apt illustration”); no segundo, o sentido mais forte, e que distingue o uso da noção de “teoria”  entre os antropólogos. Diferentemente de outros cientistas sociais, os antropólogos trabalham a partir do reconhecimento efetivo das chamadas “teorias nativas”. Se ficamos com esse sentido mais forte da categoria, teremos de reconhecer que nenhuma boa etnografia é apenas ilustração (“apt illustration”) para as teorias antropológicas. A “teoria científica da cultura” de Malinowski é hoje uma peça de erudição para a história intelectual da disciplina; já Os Argonautas do Pacífico , Os Jardins de Coral, Baloma  e A Vida Sexual dos Selvagens permanecem atuais.

O fato é que as boas etnografias representam permanentes desafios para as teorias dos antropólogos e para as teorias nativas. A ambigüidade desse gênero consiste precisamente no fato de que ele encena o diálogo tenso entre diversos pontos de vista, onde se obtém, na maioria das vezes, não mais que “verdades parciais”. Desse modo, podemos entender as 61 páginas etnográficas que compõem dois terços do ensaio sobre as FPC   de duas maneiras: ou elas apenas ilustram (imprecisamente) as teses durkheimianas e nada mais têm a nos ensinar; ou elas dizem algo diverso sobre o próprio tema do ensaio.

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O que pretendo mostrar é que, talvez, o que podemos encontrar de mais útil nesse ensaio, é menos uma teoria sobre a determinação social das classificações; menos uma perspectiva evolucionista sobre a origem e a evolução da função classificatória (teses igualmente datadas); do que uma sofisticada distinção descritiva e analítica da categoria “classificação primitiva”, mostrando, na etnografia, algumas de suas “formas” ou “tipos”.

II. Leituras “teóricas” e “etnográficas”

Desde sua publicação, o ensaio evidentemente não veio a ser conhecido pelos fatos etnográficos que apresenta (apesar de sua extensão e qualidade). O que despertou a atenção da maioria dos leitores foi sobretudo as teses teóricas que ali são expostas. E as críticas foram bastante duras. Em 1903, naquela que talvez tenha sido a primeira resenha do ensaio, escrita por Salomon Reinach, embora este elogie o trabalho, sublinha que dificilmente suas conclusões serão amplamente partilhadas. As críticas de Sidney Hartland, de 1903, e de Henri Berr, de 1906, apontam o abuso contido na tentativa de universalizar o fenômeno do totemismo (Fournier, 1994: 252). Henri Berr vai assinalar também a suposta confusão feita pelos autores entre os modos de classificação e a faculdade de classificar (Fournier, 1994: 252). Crítica semelhante a esta última será feita, algumas décadas depois, em 1963, pelo antropólogo inglês Rodney Needham. Além desta, ele acrescenta ainda: excessiva sistematização a partir de fontes desiguais; problemas de ordem lógica ao assumirem que organizações sociais idênticas deveriam ter os mesmos sistemas classificatórios; e finalmente ausência de provas para demonstrar a sucessão no tempo dos diversos tipos de classificação (Fournier, 1994: 252; Needham, 1963). O mérito principal do ensaio teria sido, segundo Needham, o de chamar a atenção dos sociólogos para a noção analítica de classificação na investigação sociológica (Needham, 1963: xliv).

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Em contraste com as severas críticas dirigidas ao texto, Lévi-Strauss sublinha, em O totemismo na atualidade (1962a) e n´O Pensamento Selvagem (1962b), o serviço prestado pelo ensaio ao demonstrar o caráter sistemático e coerente das classificações primitivas (Lévi-Strauss, 1962a: 141-142), embora recuse a tese durkheimiana da origem social do pensamento lógico (1962b: 283). No entanto, ele reconhece que, além desta tese, é possível encontrar nesse texto um outro Durkheim, mai s sofisticado, o qual “...admitia que toda vida social, mesmo elementar, supõe no homem, uma atividade intelectual cujas propriedades formais não podem, por conseqüência, ser um reflexo da organização concreta da sociedade” (1962a: 142). Steven Lukes, autor de uma conhecida biografia intelectual de Durkheim (Lukes, 1985 [1973]) acompanha, em linhas gerais, as críticas de Needham. Afirma que é possível encontrar seis proposições teóricas no ensaio, em sua maioria indemonstráveis ou, no mínimo, problemáticas. Afirma ainda que é preciso distinguir a base empírica da sociologia do conhecimento de Durkheim em relação à sua significação teórica (Lukes, 1985 [1973]: 445). A base empírica estaria sujeita a sérias objeções: segundo ele, os autores falham ao tentar demonstrar a suposta correspondência entre organização social e formas de classificação; tentam contornar os exemplos que desmentem a hipótese; assumiriam erroneamente que em cada sociedade haveria um único sistema de classificação; e, além disso, assumem seqüências evolucionárias que também não conseguem demonstrar (Lukes, 1985[1973]: 446). Uma crítica fundamental feita por Needham e repetida por Lukes (mas já antecipada em 1906, por Henri Berr) é que os autores não distinguiriam entre representações coletivas e operações cognitivas, ou entre as formas de classificação e a função classificatória. Ora, em seu debate com os psicólogos e os filósofos, Durkheim e Mauss estão explicitamente interessados nos sistemas de classificação, mesmo as classificações científicas, enquanto “instituições sociais” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 13). Mas há um outro problema: os críticos parecem assumir o pressuposto segundo o qual existem separadamente, por um lado, as funções mentais e, por outro, as obras e instituições. Toda uma linhagem de autores que parte de Mauss e da “psicologia histórica” de Ignace

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Meyerson, e que chega até os helenistas franceses, assume a tese segundo a qual as funções mentais são inseparáveis das obras e das instituições. Esta é uma tese explícita de Meyerson e um pressuposto importante da obra de Mauss. Segundo Jean-Pierre Vernant, um dos herdeiros dessa tradição: “Seria vão procurar fora das obras um espírito em si, um espírito puro. O esforço espiritual precisa de uma matéria para se encarnar. Ele não a encontra depois, como que por acaso. Desde seu início ele se orienta e se organiza em função dessa matéria, em direção à obra a ser terminada. O espírito encontra-se nas obras” (Vernant, 2001: 140). Desse modo, aquela crítica parece evidenciar mais um bias  contido em determinada leitura do que efetivamente um problema existente no ensaio. Na verdade, o que pareceria, do ponto de vista desses críticos, uma insuficiência teórica, talvez seja precisamente uma das razões de sua atualidade. ***

Nos anos noventa, muitos estudos foram produzidos sobre a obra de Marcel Mauss por parte de antropólogos, sociólogos, historiadores e filósofos. Alguns observam o que seria “um movimento de redescoberta” desse autor ( M.A.U.S.S., 1996: 6). Há uma biografia, escrita por Marcel Fournier e publicada em 1994 (Fournier, 1994). Em 1996, a Revue Européenne des sciences sociales   publica os resultados de um colóquio realizado na França com o título:  Marcel Mauss: hier et aujourd´hui  (Busino, 1996). Nesse mesmo ano, publicam-se os resultados de uma conferência realizada na Universidade de Oxford, sob o título:  Marcel Mauss: a centenary tribute  (Wendy, J; Allen, N., 1998). Também em 1996, a revista  M.A.U.S.S.  (Movimento Anti-Utilitarista em Ciências Sociais) publica um número que reúne diversos e numerosos estudos realizados sobre a obra de Marcel Mauss. Esse número da revista saiu sob o título: L´obligation de donner: la découverte capitale de Marcel Mauss (M.A.U.S.S., 1996).

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Esses estudos têm como efeito iluminar a originalidade da reflexão de Mauss em relação a Durkheim, em relação aos demais integrantes da escola sociológica francesa, assim como em relação a alguns de seus intérpretes e discípulos, tais como Lévi-Strauss e Louis Dumont. Um desses numerosos estudos publicados nos anos noventa, assinado pelo antropólogos inglês Nicholas Allen, focaliza os argumentos e a validade do ensaio (2000). A leitura é claramente informada por uma perspectiva que interpreta o texto a partir do que ele entende ser uma ótica maussiana. Allen faz uma re-leitura que, de certo modo, ilumina a atualidade do texto, focalizando positivamente a sua dimensão etnográfica. Respondendo a cada uma das críticas de Needham, sugere que a utilidade do ensaio não se esgota na função de chamar a atenção para o problema da classificação a partir de um ponto de vista sociológico (Allen, 2000: 58). Mais que isso, a atualidade do ensaio estaria na construção do conceito de “classificação primitiva”. Esta, em seu sentido mais atual, não designaria um sistema de classificação determinado por uma forma de organização social primitiva; e nem uma etapa na evolução social e intelectual da humanidade. O texto, segundo ele, “...estabelece a noção de uma ´classificação primitiva`, que é um modo específico de articular uma visão de mundo, ou, no mínimo, porções consideráveis daquela totalidade dificilmente apreensível. O que caracteriza esse tipo particular de classificação (ainda que os próprios autores não usem essa terminologia) é o fato dela ser expressa em um [diagrama ou] esquema composto por fileiras horizontais e colunas verticais, consistindo esses alinhamentos em entidades (ou entradas) ligadas

respectivamente

por

relações

sintagmáticas

e

paradigmáticas. Em virtude dessa propriedade, [esse tipo de classificação] contrasta radicalmente com o tipo de visão de mundo a que estamos acostumados” (2000: 58).

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Assim, uma visão científica não permitiria que se fizessem ligações entre grupamentos sociais, a divisão do ano em estações, listas de animais totêmicos, cores, regiões no espaço e poderes mágico-religiosos; mas são precisamente essas ligações que caracterizam as “classificações primitivas”. Em segundo lugar, segundo esse mesmo autor, o texto postula uma relação entre a visão de mundo articulada pelas classificações primitivas e a estrutura social. Na medida em que distingue três tipos ou formas de classificação primitiva, ele distingue também três modalidades de relação com a estrutura social. No caso australiano, diz ele, “a estrutura social gera a classificação das coisas” (Allen, 2000: 58). Nesse contexto, faz sentido a conhecida frase em itálico no ensaio: “...a classificação das coisas reproduz esta classificação dos homens... ” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 20). Mas, vale sublinhar, não exatamente como uma proposição teórica de alcance universal. No caso Zuñi, declina a predominância da estrutura social: o sistema de classificação das coisas interage com o sistema de classificação social. Esse sistema classificatório está baseado numa divisão entre regiões no espaço. Os clãs obedecem a essa classificação, a ponto dos autores se referirem à existência de “clãs orientados”. Finalmente, no caso do sistema chinês, essa relação é quebrada. O que caracteriza, segundo Durkheim e Mauss, o complexo sistema classificatório chinês é o fato dele ser “independente de toda organização social” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 70). O que Nicholas Allen sugere em sua releitura do ensaio não é que os sistemas classificatórios sejam “determinados”, em algum momento, pela organização social (o que seria uma proposição teórica). Na verdade, ele chama a atenção para o fato de que o ensaio nos apresenta (como o próprio título sugere) a descrição etnográfica de três “tipos” ou “formas” de “classificação primitiva”. E que esses três tipos se dist inguem pela maior ou menor predominância da classificação das coisas por meio da classificação dos homens (ou classificação social). Isto significa dizer que as coisas, diacronicamente,

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deixam de ser classificadas de modo predominante por meio de categorias sociais como clãs, fratrias, metades, etc. Allen assinala ainda o papel inspirador desse ensaio na obra de autores como Marcel Granet sobre o pensamento chinês, e por intermédio de Granet, na obra de Georges Dumézil sobre a ideologia indo-européia. ***

A última parte do ensaio, Durkheim e Mauss voltam-se para as “classificações científicas” e como estas se diferenciam das “classificações primitivas”. No caso destas últimas, dizem os autores, “A sociedade não foi simplesmente um modelo sobre o qual o pensamento classificatório teria trabalhado; foram seus próprios quadros que serviram de quadros ao sistema. As primeiras categorias lógicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas foram classes de homens dentro das quais as coisas foram integradas. É porque os homens estavam agrupados e se pensavam sob a forma de grupos que eles agruparam idealmente os outros seres, e os dois modos de grupamento começaram por se confundir a ponto de serem indistintos” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 83). No caso das “classificações primitivas”, não apenas as fronteiras externas das classes são geradas socialmente. Também a hierarquia entre elas. “É porque os grupos humanos se encaixam uns nos outros, os sub-clãs dentro do clã, o clã dentro da fratria, a fratria dentro da tribo, que os grupos de coisas se dispõem segundo a mesma ordem” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 84). Perguntando-se pelas “...forças que induziram os homens a repartir as coisas entre essas classes segundo o método que adotaram” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 85),

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os autores apontam ainda a presença de “sentimentos” ou “estados afetivos” na estruturação das “classificações primitivas”. Dizem eles: “Existem afinidades sentimentais entre as coisas como entre os indivíduos, e é a partir dessas afinidades que elas são classificadas” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 86). Chegam assim à conclusão de que “...é possível classificar outra coisa além de conceitos e diferentemente das leis do entendimento puro. Pois para que as noções possam assim se dispor sistematicamente por razões de sentimento, é necessário que elas não sejam idéias puras, mas que sejam elas mesmas obras de sentimento. (...) para aqueles que chamamos de primitivos, uma espécie de coisas não é apenas um objeto de conhecimento, mas corresponde antes de tudo a uma certa atitude sentimental” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 86). Numa perspectiva evolucionista (embora distinta do evolucionismo vitoriano), afirmam eles que “...a história da classificação científica é em definitivo a história mesma das etapas no curso da qual esse elemento de afetividade

social

foi

progressivamente

enfraquecendo,

deixando cada vez mais lugar livre para o pensamento refletido dos indivíduos” (Durkheim; Mauss, 1974 [1903]: 88).

III. Do “fato social” ao “fato social total”: a materialidade das classificações

Impossível ler  Algumas Formas Primitivas de Classificação sem considerar o quanto esse ensaio se deixa contaminar pelas idéias desenvolvidas pelos autores em trabalhos anteriores, contemporâneos e sobretudo posteriores.

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Se o lemos a partir da visão durkheimiana do “fato social”, e de sua obsessão generalizante, teremos como resultado um texto historicamente datado, com proposições teóricas problemáticas e uma base empírica insatisfatória, conforme vários críticos já assinalaram . Se o lemos a partir da visão maussiana, teremos um texto, onde as “classificações primitivas”, além de se distinguirem em tipos ou formas, distinguem -se das “classificações científicas” fundamentalmente por serem “fatos sociais totais”. As classificações primitivas, desse ponto de vista, são fenômenos simultaneamente jurídicos, econômicos, estéticos, mágicos, religiosos, psicológicos, fisiológicos. Diferentemente das modernas classificações científicas, elas mantêm ligações paradigmáticas entre contextos ou domínios distintos: entre deuses e homens, mortos e vivos, entre o céu e a terra, entre conceitos e sentimentos, entre alma e corpo, entre espírito e matéria, sem que entre essas categorias estabeleçam-se fronteiras ontológicas. Mais que esquemas intelectuais abstratos, as “classificações primitivas” são sistemas materiais e fisiológicos, supõem instrumentos e técnicas corporais. Mais do que esquemas abstratos de pensamento, podem ser entendidas como “formas de vida”. Um exemplo possível consiste numa classificação de alimentos, na qual estes estejam associados simultaneamente a grupos sociais, atributos morais, sociabilidades, cores, configurações astronômicas, regiões do espaço, características estéticas, materiais, fisiológicas, poderes políticos, militares, mágico-religiosos, etc. Uma tal classificação é claramente estranha á classificação científica dos nutricionistas Essa oposição repercute, por exemplo, na tradição de estudos sobre alimentação no Brasil: de um lado um autor como Josué de Castro, estudando a alimentação do ponto de vista da “fome” ou da “nutrição”; de outro, o etnógrafo Luis da Câmara Cascudo, estudando o “paladar” e suas associações sociais, morais e mágico-religiosas (Gonçalves 2004: 40-55). Ou ainda uma classificação de objetos materiais, na qual estes sejam vistos como simultaneamente materiais e espirituais. Os corpos dos deuses, suas representações materiais, apresentam essa ambigüidade. Como descrevê-los exclusivamente por meio de

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uma classificação estética ou funcional? Como escapar da obsessiva acusação de “fetichismo” (Latour 2009). Esses deuses podem ainda ser representados por meio de animais. Como adequar estes fatos a uma classificação biológica, onde os seres vivos são dispostos em reinos, filos, classes, ordens, famílias, gêneros e espécies naturais, descartando-se qualquer ligação sobrenatural? Uma radical separação entre espírito e matéria está na base das classificações científicas. Mas sabemos que a concepção de uma matéria depurada de qualquer espírito (e de um espírito independente de toda e qualquer materialidade) é uma construção moderna (Mauss 1974 [1939]:163). A noção de “classificação primitiva”, tal como desenhada nesse ensaio, pode ser útil na historicização desta e de outras importantes dicotomias do pensamento moderno. Como resultado, ilumina dimensões da experiência humana que permanecem na sombra, na medida em que interpretadas por meio de categorias fundadas no princípio das modernas classificações científicas. Nesse sentido, ela parece um instrumento conceitual coerente com o programa traçado por Mauss para a análise antropológica, expresso numa frase, que, segundo Claude Lévi-Strauss “...todo Instituto de Etnologia deveria inscrever em seus frontispícios” (Lévi-Strauss 2003 [1950]: 45): “De fato, as categorias aristotélicas não são as únicas que existem em nosso espírito, ou que existiram no espírito e com as quais devemos nos ocupar. É preciso, antes de tudo, formar o catálogo maior possível de categorias; é preciso partir de todas aquelas que podemos saber que os homens utilizaram. Veremos então que houve e há ainda muitas luas mortas, ou pálidas, ou obscuras no firmamento da razão” (Mauss 2003 [1950]: 343).

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A noção mesma de “classificação primitiva”, entendida nesses termos, parece oferecer uma delicada ponte conceitual entre as modernas categorias científicas e aquelas que informaram e ainda informam o pensamento e a vida da maior parte da humanidade. Definitivamente, não é pouco para quem modestamente afirmava: “Não creio muito nos sistemas científicos e jamais tive necessidade de expressar senão verdades parciais” (Mauss, 1996 [1930]: 228).

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