A Linguagem da Moral (diniz) - R. M. Hare.pdf

April 26, 2017 | Author: Ricardo Duarte Jr | Category: N/A
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O autor procurou, neste livro, apresentar uma clara, breve e compreensível introdução à éti­ ca que possa levar o principian­ te, o mais diretamente possível, a lidar com os problemas funda­ mentais do tema. R. M. Hare mostra como novos métodos filosóficos permitem compreender antigas controvér­ sias. Qual a natureza e a função do discurso moral? Em que esse discurso se assemelha ou difere dos outros tipos de discurso? Que importância ele pode ter para as decisões que temos de enfrentar continuamente? O que significa tomar uma decisão mo­ ral e como ela pode ser justifica­ da? Essas e outras questões cen­ trais são discutidas com lucidez neste livro que mereceu o reco­ nhecimento de juristas e outros especialistas e que passou a ser considerado um clássico na área.

CAPA Projeto gráfico Katia Harumi Térasaka Imagens Andrea Mantegna, Retrato de um homem (detalhe) Antonello da Messina, Retrato de um jovem (detalhe) Domenico Ghirlandaio, Retrato de G iovanna Tom abuoni (detalhe)

A LINGUAGEM DA MORAL

Esta obra fo i publicada originalmente em inglês com o título TH E LANGUAGE OF M ORALS por Clarendon Press. Oxford, em 1952. Reedições corrigidas em 1961 e 1972. Copyright © Oxford University Press Copyright © Livraria M artins Fontes E ditora L td a ., São Paulo, 1996, para a presente edição

1- edição dezembro de 1996 Esta tradução de "The Language o f M orais" {3- edição 1972, 7- tiragem ) f o i publicada com acordo do editor original Oxford University Press

Coordenação da tradução e texto final Luís Carlos Borges

Tradução Eduardo Pereira e Ferreira

Revisão gráfica Solange M artins Eliane Rodrigues de Abreu

Produção gráfica G eraldo Alves

Paginação/Fotolitos Stitdio 3 D esenvolvimento Editorial

Capa Katia H arum i Teramka

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Hare, R. M. A linguagem da moral / R. M. Hare ; tradução Eduardo PeTeira e Ferreira. - São Paulo : Martins Fontes, 1996. Título original: The language of morais. ISBN 85-336-0567-6 1. Ética I. Título. 96-5015

CDD-170

Índices para catálogo sistemático: 1. Ética : Filosofia 170 2. Moral : Filosofia 170

Todos os direitos para o Brasil reservados à Livraria M artins Fontes Editora Ltda. Rua Conselheiro Ram alho, 330/340 01325-000 São Paulo SP Brasil Telefone 239-3677

índice

Prefácio...................................................................................

VII

PRIMEIRA PARTE

O MODO IMPERATIVO 1. 2. 3. 4.

Linguagem prescritiva.................................................... Imperativos e lógica........................................................ Inferência.......................................................................... Decisões de princípio.....................................................

3 19 33 59

SEGUNDA PARTE

“BOM” 5. “Naturalismo”................................................................. 85 6. Significado e critérios.................................................... 101 7. Descrição e avaliação..................................................... 119 8. Aprovar e escolher........................................................... 135 9. “Bom” em contextos morais......................................... 145 TERCEIRA PARTE

“DEVER” 10. “Dever” e “correto”

161

11. “Dever” e imperativos.................................................... 12. Um modelo analítico......................................................

175 ! 93

Notas........................................................................................ 211 Índice rem issivo...................................................................... 217

Prefácio

Planejei neste livro escrever uma introdução à ética clara, breve e de fácil leitura, que possa levar o iniciante a lidar com os problemas fundamentais do assunto tão diretamente quanto possível. Portanto, ao reduzir o material que tinha preparado a cerca da metade do volume original, deixei de fora a maioria das qualificações, respostas a objeções menores e outras defe­ sas das quais tende a cercar-se o filósofo precavido. Embora entenda que o enfoque da ética esboçado nestas páginas é de modo geral produtivo, ficarei menos incomodado se meus lei­ tores discordarem de mim do que se nâo conseguirem me en­ tender. Quase todo parágrafo neste livro, assim como em outros trabalhos de filosofia, requer alguma qualificação, mas fornecê-la a cada ocasião seria tornar minhas principais asserções mais difíceis de apreender. Tentei, portanto, adotar em todo o trabalho um ponto de vista o mais definido possível, na crença de que é mais importante que haja discussão dos pontos aqui levantados do que eu sobreviver incólume a eles. A ética, tal como a entendo, é o:estudo lógico da lingua­ gem da moral. De modo geral, é mais fácil compreender a lógi­ ca muito complexa dos termos morais quando se tem algum conhecimento dos tipos mais simples de lógica; porém, como muitos estudantes de filosofia, por alguma razão, são obriga­ dos a estudar ética sem tal conhecimento, tentei não considerá-

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A LINGUAGEM DA MORAL

lo como pressuposto. Se alguém tomar este livro sem nenhuma leitura prévia sobre filosofia, irá, espero, considerá-lo inteligí­ vel desde que siga esta regra simples; omitir quaisquer trechos que considerar difíceis, prosseguir a leitura e voltar a eles mais tarde. Incluí, em benefício dos que possam estar interessados, certas referências bem rápidas a alguns dos “tipos de teoria éti­ ca” familiares e também aos trabalhos de alguns dos mais conhecidos autores sobre ética; mas essas referências podem ser ignoradas sem que se perca qualquer ponto essencial de mi­ nha argumentação. Coloquei no início a seção sobre “O Modo Imperativo” porque me parece a mais fundamental; mas, como talvez seja também a mais difícil, nao considerei pressuposto, na Segunda Parte, o argumento da Primeira Parte; qualquer lei­ tor, por conseguinte, que queira ler essas duas partes na ordem inversa é livre para fazê-lo. Evitei deliberadamente referências aos problemas da psi­ cologia moral. Em particular, o problema conhecido como “A Liberdade da Vontade”, que tem seu lugar na maioria das intro­ duções à ética, não é mencionado, e o problema geralmente conhecido pelo título aristotélico de Akrasia, que deveria ser discutido mais freqüentemente, é mencionado apenas de passa­ gem. Não porque considere desprezíveis esses problemas ou porque não tenha nada a dizer sobre eles, mas porque são antes problemas da linguagem da psicologia da moral do que da lin­ guagem da moral propriamente dita. Meus agradecimentos, em primeiro lugar, ao diretor e aos catedráticos do Balliol College, pela generosidade de liberar­ me, durante o ano 1950-51, dos meus deveres de professor, sem o que a tarefa jam ais poderia ter sido realizada. Em segundo lugar, tenho de agradecer aos examinadores do Prêmio de Filosofia da Moral T. H. Green, aos Professores H. J. Patón e G. Ryle e ao Sr. P, H. Nowell-Smith, por seus muitos comentários proveitosos sobre minha dissertação para o prêmio, da qual a Primeira Parte deste livro é uma condensação. Em terceiro lu­ gar, devo reconhecimento aos muitos, em Oxford e alhures,

PREFACIO

IX

com os quais aprendi no curso da discussão a maior parte do que é apresentado aqui; meu débito para com o Sr. J. O. Urmson, por exemplo, ficará evidente. Tenho especial motivo para ser grato ao Sr. D. Mitchell e aos Professores H. L. A. Hart, A. J. Ayer e A. E. Duncan-Jones, que levaram parte ou todo o original datilo­ grafado e livraram-me de erros graves - pelos que possam ter restado, peço perdão. O ensaio deste último para a Aristotelian Society sobre “Asserções e Comandos” surgiu tarde demais para permitir qualquer comentário no texto; o mesmo aplica-se ao livro What is Vahie? do Professor Everett Hall, no qual o assunto do presente livro é examinado numa escala mais ambi­ ciosa. Para uma discussão dos pontos de vista do Professor Hall devo remeter o leitor a uma resenha a ser publicada em Mind. Devo ainda agradecer ao Sr. B. F. McGuinness pelo auxílio na compilação do índice Remissivo. Finalmente, caso a brevidade pareça ter acarretado dogmatismo ao lidar com os escritos de filósofos vivos ou mortos e injustiça para com suas doutrinas, devo confessar que aprendi tanto com os autores com os quais talvez pareça discordar como com aqueles que aplaudo. Dedico este estudo da linguagem moral àqueles homens e mulheres bons sem cujas vidas o moralista estaria desperdiçan­ do seu fôlego, e especialmente a minha mulher. R. M. H. BALLIOL COLLEGE 1952

Na segunda impressão fiz algumas correções de pouca importância que nao envolvem alteração radical do texto, Se estivesse reescrevendo o livro, eu o escreveria de forma dife­ rente, já que agora tenho a vantagem de saber o que foi mal compreendido e o que induziu a erro. Embora meus pontos de vista tenham mudado em algumas particularidades, não se alte-

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A LINGUAGEM DA MORAL

raram em qualquer aspecto que me pareça fundamental. Sou muito grato aos que me ajudaram a esclarecer essas questões tecendo comentários sobre meus argumentos. Quanto às minhas presentes opiniões, devo remeter o leitor a um novo livro, conti­ nuação deste, que espero publicar em breve*. R. M. H. BALLIOL COLLEGE 1960

* Freedom and Reason (Clarendon Press, 1963).

PRIMEIRA PARTE

O modo imperativo

“A virtude, então, é uma disposição que governa nossas escolhas.” ARISTÓTELES, Ètic. Mc. 110ób36

Capítulo 1

Linguagem prescritiva

1 .1 . Se perguntássemos a uma pessoa “Quais são seus princípios morais?” a maneira pela qual poderíamos ter mais certeza de uma resposta verdadeira seria estudando o que ela faz. Ela pode, logicamente, professar em seu discurso toda sorte de princípios que desconsidera completamente em suas ações; mas, quando estivesse frente a escolhas ou decisões entre cursos de ação alternativos, entre respostas alternativas à questão “Que devo fazer?”, conhecendo todos os fatos relevan­ tes de uma situação, ela revelaria em quais princípios de condu­ ta realmente acredita. A razão pela qual as ações; de uma maneira peculiar, são reveladoras de princípios morais-é que á Iungão dos princípios morais é orientar a conduta.-A linguagem da moral é uma espécie de linguagem prescritiva. E é isso que luz da ética algo que vale a pena estudar pois a pergunta “O que devo fazer?” é uma a que não podemos nos esquivar por muito tempo; os problemas da conduta, embora às vezes menos divertidos que palavras cruzadas, têm de ser resolvidos de forma di ¡crente das palavras cruzadas. Não podemos esperar para ver a solução no próximo número porque da solução dos problemas depende o que acontecerá no próximo número. Assim, num mundo em que os problemas da conduta tornam-se mais com­ plexos e atormentadores a cada dia, há uma grande necessidade de compreensão da linguagem na qual esses problemas são

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A LINGUAGEM DÁ MORAL

colocados e respondidos. Pois a confusão quanto a nossa lin­ guagem moral leva não meramente a confusões teóricas, mas a perplexidades práticas desnecessárias. Uma maneira antiquada, mas ainda útil, de estudar qual­ quer coisa é p e r genus et differentiam; se a linguagem moral pertence ao gênero “linguagem prescritiva”, compreenderemos muito facilmente sua natureza se compararmos e contrastarmos, antes de tudo, a linguagem prescritiva com outros tipos de lin­ guagem e, depois, a linguagem moral com outros tipos de lingua­ gem prescritiva. Esse, em poucas palavras, é o plano deste livro. Partirei do simples para o mais complexo. Tratarei primeira­ mente da forma mais simples da linguagem prescritiva, a sen­ tença imperativa comum. O comportamento lógico desse tipo de sentença é de grande interesse para o estudante da linguagem moral porque, apesar de sua comparativa simplicidade, suscita, em forma facilmente discemível, muitos dos problemas que têm assolado a teoria ética. Portanto, embora não seja parte de meu propósito “reduzir” a linguagem moral a imperativos, o estudo dos imperativos é de longe a melhor introdução ao estudo da ética, e se o leitor não percebe imediatamente a relevância para a ética da parte inicial da discussão, devo pedir-lhe paciência. O desprezo aos princípios enunciados na primeira parte deste livro é a fonte de muitas das mais insidiosas confusões na ética. Dos imperativos singulares partirei para os imperativos ou princípios universais. A discussão destes, e de como os adota­ mos ou rejeitamos, dar-me-á oportunidade de descrever os pro­ cessos de ensino e aprendizado e a lógica da linguagem que usamos para esses propósitos. Já que um dos usos mais impor­ tantes da linguagem moral é o ensino moral, a relevância dessa discussão para a ética será evidente. Discutirei em seguida um tipo de linguagem prescritiva que está mais intimamente relacionado com a linguagem da moral do que o imperativo simples. É a linguagem dos juízos de valor não-morais - todas as sentenças que contêm palavras como “dever”, “certo” e “bom” que não são juízos morais. Procurarei demonstrar que müitás das características que têm

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O MODO IMPERATIVO

causado problemas a estudantes de ética também são exibidas por esses tipos de sentenças - tanto assim que uma compreen­ são adequada destes contribui muito para a elucidação dos pro­ blemas da própria ética. Tomarei separadamente as duas pala­ vras morais mais típicas, “dever” (verbo) e “bom”, e discutirei primeiramente seus usos não-morais, e depois seus usos morais; em cada caso espero mostrar que esses usos têm muitas características em comum. Como conclusão relacionarei a lógi­ ca de “dever” e “bom”, em contextos morais e não-morais, à lógica dos imperativos* elaborando um modelo lógieo/.emíque conceitos artificiais, que poderiam até certo ponto servir eomo palavras de valor da linguagem comum, sao definidos nos ter­ mos de um modo imperativo Codificado. Esse modelo não deve ser tomado muito seriamente; pretende-se com ele somen­ te uma esquematização bastante aproximada da discussão pre­ cedente, a qual contém a substância daquilo que tenho a dizer. Assim, a classificação da linguagem prescritiva que propo­ nho pode ser representada da seguinte forma: Linguagem Prescritiva

Imperativos

Singulares

Universais

Juízos de Valor.

N8o~Morais

Morais

Esta é apenas uma classificação grosseira; ficará mais pre­ cisa no decorrer do livro; por exemplo, será visto que os chama­ dos “imperativos universais” da linguagem comum não são universais propriamente ditos. Tampouco quero sugerir que a classificação é exaustiva; há, por exemplo, muitos tipos dife­ rentes de imperativos singulares e de juízos de valor nãomorais; e há outros tipos de imperativos além dos singulares e universais. Porém, a classificação é boa o bastante para come­ çar e explica o plano deste livro.

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A LINGUAGEM DA MORAL

1.2. Os autores de livros de gramática elementar por vezes classificam as sentenças segundo o que exprimem: afirmações, comandos ou perguntas. Essa classificação não é exaustiva ou rigorosa o bastante para o lógico. Por exemplo, os lógicos devo­ taram muito trabalho à demonstração 4e que sentenças no modo indicativo podem ter caracteres lógicos diversos, e que a classificação de todas sob o nome único de “afirmações” pode levar a erro grave se nos fizer ignorar as importantes diferenças entre elas. Veremos na parte final deste livro como um tipo de sentença indicativa, a que expressa juízos de valor, tem um comportamento lógico inteiramente diverso da sentença indica­ tiva comum. Os imperativos, da mesma forma, são um agrupamento heterogêneo. Mesmo que excluamos sentenças como “ Would I were in Grantchester!” [“Quem dera eu estivesse em Grantchester!”], que são discutidas por alguns gramáticos em seus livros na mesma seção dedicada aos imperativos, temos ainda, em meio a sentenças que estão no modo imperativo propriamente dito, muitos tipos diferentes de enunciado. Temos ordens milita­ res (de desfiles e outras), especificações arquitetônicas, instru­ ções para preparar omeletes ou operar aspiradores de pó, conse­ lhos, pedidos, súplicas, e outros incontáveis tipos de sentenças, com muitas funções que se sobrepõem umas às outras. A distin­ ção entre esses vários tipos de sentenças proporcionaria material a um bom lógico para muitos artigos nos periódicos de filoso­ fia; mas num trabalho desta natureza é necessário ser ousado. Seguirei, portanto, os gramáticos e empregarei o termo único “comando” para cobrir todas essas coisas que as sentenças no modo imperativo expressam e, dentro da classe dos comandos, farei somente algumas distinções bastante amplas. A justificati­ va para esse procedimento é que espero interessar o leitor em características que são comuns a todos, ou praticamente todos, esses tipos de sentença; com suas diferenças ele sem dúvida está familiarizado o bastante. Pela mesma razão empregarei a pala­ vra “afirmação” para abrigar tudo o que é expresso por senten-

mifijiATivo.

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•v Mttlu ativ-aS típicas, se é que tais existem. Estarei delineando ,.(n . . miraste, por assim dizer, entre sentenças como “Feche a f>'/i.i v sentenças como “Você vai fechar a porta”. I- difícil negar que há uma diferença entre afirmações e i »»mandos; mas é muito mais difícil dizer precisamente qual é a ihiavnça. Não é meramente de forma gramatical, pois se tivés­ semos de estudar uma língua recentemente descoberta seria­ mos capazes de identificar as formas gramaticais usadas para exprimir afirmações e comandos, respectivamente, e denomi­ naríamos essas formas “indicativo” e “imperativo” (se a língua Iosse construída de tal forma que essa distinção fosse útil)..A distinção encontra-se entre os significados que as diferentes ¡orinas gramaticais expressam. Ambas são empregadas para falar sobre um assunto, mas são empregadas para falar dele de maneiras diferentes. A s duas sentenças, “Você vai fechar a porta” e “Feche a porta”, falam-sobrea asseníir a P mas dissentir de Q ser critério suficiente paia dizer que ela compreendeu mal uma ou outra das senten­ ças “Sentença”, aqui, é uma abreviação de “sentença tal como ■-mpregada por um falante particular numa ocasião particular” ¡uns os falantes podem, em ocasiões diferentes, usar palavras mm significados diferentes, e isso significa que aquilo que é implicado pelo que dizem diferirá também. Extraímos seu sig­ nificado perguntando a eles o que consideram que seus comeniarios implicam7. Ora, a palavra “todos” e outras palavras lógicas são utiliza­ das em comandos, assim como em afirmações. Segue-se que deve haver também relações de implicação entre comandos, pois, do contrário, seria impossível dar algum significado a essas palavras tal como utilizadas neles. Se tivéssemos de des­ cobrir se uma pessoa sabe o significado da palavra “todas” em “Leve todas as caixas para a estação”, teríamos de descobrir se ela compreende que uma pessoa que assentiu a esse comando e também à afirmação “Esta é uma das caixas” e, não obstante, se negou a assentir ao comando “Leve esta à estação”, somente poderia fazê-lo se tivesse interpretado mal uma dessas três sen­ tenças. Se essa espécie de teste fosse inaplicável, a palavra “todos” (tanto em imperativos como em indicativos) seria intei­ ramente destituída de significado. Podemos, portanto, dizer que a existência em nossa linguagem de sentenças universais no modo imperativo é em si mesma prova suficiente de que nossa linguagem admite implicações das quais pelo menos um termo é um comando. Se a palavra “implicar” deve ser utilizada para essas relações é somente uma questão de conveniência ter­ minológica. Proponho empregá-la desse modo8.

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A LINGUAGEM DA MORAL

Dei, no artigo citado, muitos exemplos de implicações cujas conclusões são comandos. Parece possível, em princípio, já que as palavras lógicas comuns ocorrem nas frásticas dos imperati­ vos, reconstruir o cálculo sentenciai comum em termos de frás­ ticas apenas, e então aplicá-lo igualmente a indicativos e impe­ rativos, simplesmente adicionando as nêusticas apropriadas5. Ficaria por determinar até que ponto o cálculo, reconstruído dessa forma, corresponderia a nossa linguagem comum; esse é um problema familiar no caso da lógica indicativa e sua solução depende de investigar pacientemente se os sinais lógicos no cál­ culo são ligados pelas mesmas regras que determinam os signi­ ficados das palavras lógicas que usamos em nossa fala normal. Poderíamos descobrir que a fala comum tem muitas regras dife­ rentes para o emprego das palavras “se”, “ou”, etc., em contex­ tos diferentes, e, em particular, seu uso em contextos indicativos poderia diferir de seu uso em contextos imperativos. Tudo isso é uma questão de investigação, mas não afeta de forma alguma o princípio de que, desde que descubramos quais são as regras ou estabeleçamos quais devam ser, podemos estudar a lógica das sentenças imperativas com tanta segurança quanto a das indica­ tivas. Não pode haver, aqui como em outro lugar, nenhuma questão de “lógicas rivais”, mas somente de regras alternativas determinando o emprego (¿.e., as relações de implicação) de nossos sinais lógicos; é um a tautologia dizer que, contanto que continuemos a usar nossas palavras no mesmo sentido, suas relações de implicação permanecerão as mesmas10. 2.5. Aqui não precisamos entrar nessas complicações. Ne­ cessitaremos, nesta investigação, de considerar somente a infe­ rência a partir de sentenças imperativas universais, juntamente com premissas menores indicativas, para conclusões imperativas singulares. Já dei um exemplo de uma tal inferência e sustentei que, se fosse impossível fazer inferências desse tipo, a palavra “todos” não teria significado em comandos. Mas esse tipo de inferência faz surgir uma dificuldade adicional, porque uma das premissas está no indicativo e uma no imperativo. A inferência é:

IMPERATIVO

Leve todas as caixas para a estação. Esta é urna das caixas. Leve esta para a estação. I'ode-se perguntar como vamos saber, dadas duas premis­ em modos diferentes, em que modo deve estar a condu­ mio. O problema do efeito dos modos das premissas e da con­ clusão sobre as inferências tem sido ignorado por lógicos que não examinaram além do modo indicativo, embora não haja i a/.ão para que o ignorassem - pois como demonstraríamos que a conclusão de um conjunto de premissas indicativas deve tamhcm estar no indicativo? Mas se consideramos, como faço, as relações de implicação da lógica comum como relações entre as frásticas de sentenças, o problema toma-se premente. Admlsindo que a razão da validade do silogismo acima é que as frásucas “Você levar todas as caixas para a estação e ser esta urna das caixas” e “Você não levar esta para a estação” são logica­ mente incoerentes entre si, por causa das regras lógicas que re­ gem o uso da palavra “todas”, como saber que não podemos adicionar nêusticas de uma forma diferente daquela acima? Poderíamos escrever, por exemplo: sas

Leve todas as caixas para a estação. Esta é uma das caixas. Você vai levar esta para a estação. e dizer que isso é um silogismo válido, o que evidentemente ele não é. Permitam-me primeiramente expor duas das regras que parecem reger essa questão; podemos deixar para mais tarde o problema da sua justificação. As regras são: (1) Nenhuma conclusão indicativa pode ser extraída valida­ mente de um conjunto de premissas que não possa ser ex­ traído validamente apenas dos indicativos dentre elas.

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A LINGUAGEM DA MORAL

(2) Nenhuma conclusão imperativa pode ser extraída valida­ mente de um conjunto de premissas que não contenha pelo menos um imperativo. É somente a segunda regra que nos irá ocupar nesta pes­ quisa. H á uma exceção muito importante a essa regra, o chama­ do “imperativo hipotético”, do qual tratarei no próximo capítu­ lo. Para o momento, porém, tomemos a regra na forma em que se encontra. É da mais profunda importancia para a ética. Isso ficará claro se eu fornecer um a lista de alguns argumentos fam osos da ética que me parecem ter sido consciente ou in­ conscientemente baseados nela. Se admitimos, como mais tar­ de sustentarei, que deve ser parte da função de um juízo moral prescrever ou orientar escolhas, isto é, implicar uma resposta a alguma questão da forma “Que devo fazer?”, então fica claro, a partir da segunda das regras apresentadas há pouco, que nenhum juízo moral pode ser uma pura afirmação de fato. Nesse fundamento baseia-se, indiretamente, a refutação socrá­ tica da definição de justiça de Céfalo, “falar a verdade e devol­ ver qualquer coisa que se tenha recebido de alguém”, e de todas as subseqüentes modificações realizadas por Polemarco nessa definição11. Aristóteles estava apelando indiretamente a essa regra em seu mais decisivo rompimento com o platonismo, sua rejeição da Idéia do Bem; deu como razão, entre outras, que se houvesse tal Idéia, sentenças sobre esta não seriam guias da ação (“não seria um bem que você pudesse, por meio de sua ação, trazer à existência”)12. No lugar de um bem factual, exis­ tente, cognoscível por meio de um tipo de observação suprasensível, Aristóteles coloca um “bem a ser alcançado pela ação” ou, como geralmente o chama, um “fim ”, isto é, ele reco­ nhece im plicitam ente que, se dizer que algo é bom é guiar a ação, então isso não pode ser meramente afirmar um fato sobre o mundo. A maioria de suas diferenças éticas em relação a Platão pode remontar a essa origem. É nessa regra lógica, novamente, que se deve encontrar a base da celebrada observação de Hume sobre a impossibilidade

31 iU- deduzir uma proposição de “dever ser” a partir de um a série d r proposições de “ser” - uma observação que, como ele correi.mu-tite diz, “subverteria todos os sistemas de modalidade i'im m s” e não somente aqueles que já tinham aparecido no seu

u mpo". Kant também apoiou-se nessa regra em sua polêmica i miira “A heteronomia da vontade como origem de todos os (Hmcípios espúrios da moralidade”. Nela diz que “Se a vontade i ) extrapolando a si mesma, busca essa lei no caráter de quais­ quer de seus o b je to s-o resultado é sempre a heteronomia”“. Os princípios heteronômicos de moralidade são espúrios porque, de uma série de sentenças indicativas sobre “o caráter de quaisquer de seus objetos”, não se pode derivar nenhuma sentença impera­ tiva sobre o que deve ser feito e, conseqüentemente, também não se pode derivar dela nenhum juízo moral. Em tempos mais recentes essa regra foi o ponto essencial por trás da celebrada “refutação do naturalismo” do Professor (i. E. Moore, como veremos m ais tarde (11-3). Foi tam bém o ponto por trás do ataque de Prichard a Rashdall15, Prichard na verdade, argumenta que a bondade de uma situação (a qual tanto ele quanto os que ataca consideram como um fato sobre a situação) não constitui sozinha um a razão para que devamos tentar ocasionar essa situação; precisamos também do que ele (algo enganosamente) denomina “o sentimento da imperatividade ou obrigação que deve ser despertado pelo pensamento da ação que irá originá-la”. E, na verdade, se a palavra “bom ” é tratada da maneira como muitos intuicionistas a trataram, esse argumento é perfeitamente válido pois sentenças que contêm a palavra entendida dessa forma não serão juízos avaliatórios genuínos porque nenhum imperativo pode ser delas derivado1''. M as essa objeção aplica-se não somente à teoria intuicionista do “bom”, mas a todos que insistem no caráter exclusivamente factual dos juízos morais; aplica-se ao próprio Prichard. O Pro­ fessor Ayer17usa um argumento contra os intuicionistas como um todo baseado nessa regra fundamental. Mas, em todos esses casos, o apelo à regra é apenas implícito. Conheço somente duas obras onde a regra é exposta explicitamente; a primeira é

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de Poincaré18, que, contudo, faz o que me parece um uso ilegíti­ mo dela, como ficará visível a partir do argumento precedente; a segunda é do Professor Popper15, que se refere corretamente à regra como “talvez o ponto mais simples e o mais importante sobre a ética” . Um juízo não é moral se não proporciona, sem premissas imperativas adicionais, uma razão para fazer alguma coisa.

Capítulo 3

Inferência

3.1. A regra de que um imperativo não pode aparecer na conclusão de urna inferencia válida, a não ser que haja ao me­ nos um imperativo nas premissas, pode ser confirmada recor-, rendo a considerações lógicas gerais.. Pois hoje é geralmente considerado verdadeiro por definição que (falando grosseira­ mente em princípio) nada pode aparecer na conclusão de uma inferência dedutiva válida que não esteja, a partir de seu pró­ prio significado, implícito na conjunção das premissas. Resulta que, se há um imperativo na conclusão, não somente deve apa­ recer algum imperativo nas premissas, mas o próprio imperati­ vo deve estar implícito nelas. Já que essas considerações têm amplo alcance na filosofia moral, será conveniente explicá-las em maior detalhe. Poucas pessoas pensam, como Descartes parece ter pensado, que pode­ mos chegar a conclusões científicas sobre questões de fato empírico, como a circulação do sangue, por meio do raciocínio dedutivo a partir de primeiros princípios auto-evidentes1. A obra de W ittgenstein e outros tornou claras, em grande parte, as razões da impossibilidade de fazer isso. Argumentou-se, con­ vincentemente em minha opinião, que toda inferência dsduf iva é de caráter analítico, isto é, que a função de uma inferência de­ dutiva não é obter das premissas “algo adicional” não implícito nelas (mesmo se for isso o que Aristóteles queria dizer (2.4)),

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mas tom ar explícito o que estava implícito na conjunção das premissas. Demonstrou-se que isso decorre da própria natureza da linguagem, pois para dizer qualquer coisa temos de, como já observamos, obedecer a determinadas regras, e essas regras especialmente, mas não apenas, as regras para o emprego das chamadas palavras lógicas - significam, primeiramente, que dizer o que está nas premissas de uma inferência válida é dizer, pelo menos, o que está na conclusão, e, em segundo lugar, que se algo é dito na conclusão que não foi dito, implícita ou expli­ citamente, nas premissas, a inferência é inválida. Não se pode dizer que compreendemos completamente o significado das premissas e da conclusão a menos que admitamos a validade da inferência. Assim, se alguém professasse admitir que todos os homens são mortais e que Sócrates é um homem, mas se recu­ sasse a admitir que Sócrates é mortal, o correto não seria, como se sugere às vezes, acusá-lo de algum tipo de obtusidade lógica, mas dizer “Você evidentemente não conhece o significado da palavra ‘todos’ pois se conhecesse saberia eo ipso como fazer inferências dessa espécie” . 3.2. O princípio explicado há pouco, contudo, não. é exata­ mente geral o bastante para abranger todos os casos / Por exem­ plo, “x = 2” implica “x2= 4”, mas não é natural dizer que nesta segunda expressão não se diz nada que não seja dito implicita­ mente na primeira pois a segunda contém o símbolo “ao qua­ drado” e para compreender “x = 2”, não temos de saber nada sobre o significado desse símbolo. Temos de dizer, portanto, que não se deve dizer nada na conclusão que não seja dito im­ plícita ou explicitamente nas premissas, exceto o que pocle ser adicionado com base unicamente em definições de termos. Es­ sa qualificação é importante para a lógica dos imperativos pois, como já adverti o leitor, há um tipo de conclusão imperativa que pode ser implicado por um coniun to d ^ r e m is s a s pura­ mente indicativas. Ê o chamado imperativo “hipotético”. Devese salientar que nem todos osjm perativos que contêm uma oração hipotética são “hipotéticos” nesse sentido. Por exemplo, a sentença “Se uma afirmação qualquer for tnverídica, nao a

O MODO IMPERATIVO

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faça” não é “hipotética” no sentido em que a expressão “impe­ rativo hipotético” é empregada tradicionalmente. Torna-se mais claro o que é üminweraíiya ^hipotéticos por meio de exemplos. A matéria e tão difícil que não posso abordá-la de forma muito abrangente; mas algumas explicações são necessárias. Considere a sentença seguinte: Se você quer ir à maior mercearia de Oxford, vá à Grimbly Hughes.

Isso parece resultar de, e dizer nada mais que: A Grimbly Hughes é a maior mercearia de Oxford.

O primeiro ponto que requer elucidação é a condição da palavra “querer”. Ela não significa o mesmo que “ser afetado por um estado reconhecível dos sentimentos conhecidos como desejo”. Se eu fosse o superior de uma ordem religiosa cujas regras determinassem a completa abnegação de todos os dese­ jos, não poderia dizer a um noviço “Se você tem um desejo de ir à maior mercearia de Oxford, vá à Grimbly Hughes” pois isso seria contrário à regra. Mas eu poderia muito bem dizer “Se você quer ir à maior mercearia de Oxford, vá à Grimbly Hughes” pois pretenderia com isso simplesmente comunicar iima informação, que a maior mercearia é a Grimbly Hughes. “Querer” é aqui um termo lógico e representa, como veremos, um imperativo dentro de uma oração subordinada. Esse é ape­ nas um dos muitos enigmas gerados quando se tratam sentenças compostas com a palavra “querer” como se fossem sempre descritas de estados mentais (1.3). Agora compare a sentençaseguinte: Se todas as mulas são estéreis, então este animal é estéril.

Isso é implicado pela sentença “Este animal é uma mula”. Temos apenas de conhecer os significados de “todas” e das

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outras palavras usadas para fazer a inferência. Devemos obser­ var que essa inferência é válida porque uma outra mais simples é válida, a saber: Todas as mulas são estéreis. Este animal é uma mula. Este animal é estéril.

Atinge-se a forma mais complexa da inferência retirando a premissa maior de seu lugar próprio e adicionando-a à conclu­ são dentro de uma oração hipotética. A inferência a seguir também pode ser tratada da mesma forma: Vá à maior mercearia de Oxford. A Grimbly Hughes é a maior mercearia de Oxford. .'.Vá à Grimbly Hughes.

Transforma-se então em: A Grimbly Hughes é a m aior mercearia de Oxford. Se for à maior mercearia de Oxford, vá à Grimbly Hughes.

Em nossa língua, escrevemos essa conclusão na forma: Se você quer ir à m aior mercearia de Oxford, vá à Grimbly Hughes.

Temos apenas de conhecer os significados de “querer” e das outras palavras usadas na conclusão (incluindo a forma ver­ bal imperativa) para fazer essa inferência. Outro exemplo seria “Se você quer quebrar as molas, con­ tinue a dirigir como agora”. Aqui a inferência completa seria: Faça o que for que contribua para quebrar as molas. Continuar a dirigir como agora contribuirá, etc. .’.Continue a dirigir como agora.

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O falante de nosso exemplo, para atrair a atenção do ouvin­ te de forma enfática para a verdade da premissa menor, salienta que sua presente maneira de dirigir seria uma conclusão válida a partir dessa premissa menor e de uma premissa maior que o ouvinte obviamente não aceita. Introduz-se nesse exemplo a noção de “meios que contribuem para um fim”; mas o primeiro exemplo mostra que ela não precisa estar presente. Outras formas de expressão relacionadas são: Para. parar o trem puxe a corrente para baixo. Dirija devagar ou você sofrerá uma colisão. Dispense a lubrificação regular e reduza à metade a vida de seu carro.

Há um contraste entre estas três; a primeira é neutra sobre a questão de saber se a corrente deve realmente ser puxada ou não; é por isso que é preciso acrescentar “Multa em caso de uso indevido: £ 5”. A segunda não é neutra; tem um forte sabor do imperativo simples, não-hipotético, “Dirija devagar”, e “ou” poderia ser substituído por “porque se você não fizer assim”. A terceira é uma singularidade; da mesma forma que “Se você quer quebrar as molas, continue a dirigir como agora”, é irônica e tem o propósito de dissentir da oração “Dispense a lubrifica­ ção regular”. É adaptada, com a omissão de uma marca comer­ cial, de um anúncio publicitário real. Na medida em que é hipotético, um imperativo tem força descritiva praticamente da mesma maneira que um juízo de valor pode tê-la (7.1). Compreender ou fornecer a oração hipotética é como conhecer o padrão de valores que está sendo apli­ cado. Não é íàcil dizer, em qualquer caso individual em que uma oração condicional não seja efetivamente incluída, até que ponto o imperativo deve ser tratado como hipotético. Não deve-mos supor que todos os imperativos não-morais sao hipotéticos, pois isso está longe de ser verdadeiro. As instruções para a operacão_de máquinas constituem um interessante caso fronteiriço. Devemos dizer que “Ligue numa tomada com a vol-

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tagem indicada na etiqueta” é hipotética e que temos de enten­ der “se você quer que seu aspirador de pó limpe seus tapetes sem necessitar de consertos dispendiosos?”. É difícil responder a essa pergunta; poderíamos certamente entender as instruções e obedecer a elas sem saber qual era seu propósito. Es se caso mostra, não que não exista diferença entre imperativos hipotéti­ cos e não-hipotéticos, mas que é difícil delimitar a fronteira. Seria provavelmente enganoso dizer que os imperativos hipotéticos são “realmente indicativos”. Eles realmente têm força descritiva e são implicados por indicativos, mas “x2= 4” é implicado por “x = 2” e, não obstante, nao diríamos que a pri­ meira não é realmente uma equação quadrática. Em primeiro lugar, ela não seria inteligível para alguém que não conhecesse o significado do símbolo “ao quadrado”. Esse símbolo, além disso, não tem aqui um significado especial, diferente de seus outros usos. Aproximadamente da mesma forma, “Se você quer ir à maior mercearia de Oxford, vá à Grímbly Hughes” não é um indicativo; não seria inteligível para alguém que tivesse aprendido o significado das formas verbais indicativas, mas não o das formas verbais imperativas, e estas nâo têm nele um significado especial. A melhor maneira de descrever a questão foi sugerida por Kant: o demento imperativo num imperativo hipotético é analítico (“Quem deseja o fim ... deseja também os meios”), porque os imperativos nas duas partes, por assim dizer, cancelam-se mutuamente. É um imperativo, mas, qua imperativo, não tem conteúdo; o conteúdo que tem é o da pre­ missa menor indicativa da qual é derivado2. Podem ser feitas duas sugestões para pesquisas adicionais, que nâo podem ser levadas a cabo aqui, sobre o tema dos impe­ rativos hipotéticos. A primeira é que o “se” neles tem uma con­ dição lógica algo diferente da que tem em sentenças como “Se algum afirmação for inverídica, não a faça”. Se esta última sen­ tença fosse analisada em frástica e neustica, parece-me que o “se” ficaria na frástica; a sentença completa poderia ser tradu­ zida como:

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No caso de alguma afirmação ser inverídica, você não fazêla, por favor,

ou como: Você não fazer afirmações inverídicas, por favor.

Mas, num imperativo hipotético propriamente dito, a pró­ pria oração condicional contém uma nêustica imperativa, ocul­ ta na palavra “querer”. Ainda não tenho certeza de como seria melhor analisar essas sentenças, e estou inclinado a pensar que sentenças diferentes devem ser analisadas de formas diferentes, dependendo de quão plenamente hipotéticas são elas. Se o ele­ mento categórico está completamente oculto, como em “Se você quer quebrar as molas, continue a dirigir como agora”, uma analise metalingüística é tentadora: O comando “Continue a dirigir como agora” poderia ser inferido de uma premissa factual menor, a qual é verdadeira, e da premissa maior (5 c. à qual você obviamente não assente) “Faça 0 que for que contribua para quebrar as molas” .

Mas esse problema é parte do problema mais amplo, ainda muito obscuro, da análise das sentenças hipotéticas em geral. A segunda sugestão é que a relação entre imperativos hipo­ téticos e o elemento descritivo no significado dos juízos de valor compensaria estudos adicionais. A sugestão feita há pouco, de que alguns imperativos hipotéticos poderiam ser analisados < metalingüisticamente) tem claramente uma conexão com aquilo que denominarei mais adiante uso “entre aspas” de juízos de valor; (7.5). Pode-se prever com segurança que se verificará que os imperativos hipotéticos são tão sutis, flexíveis e variados em sua lógica quanto os usos descritivos das palavras de valor. 3.3. Mas deixemos essa difícil questão e retornemos a Des­ cartes. As considerações sobre a inferência que resumi no iní­ cio deste capítulo significam que um procedimento cartesiano,

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quer na ciência quer na moral, está fadado ao fracasso desde o início, Se alguma ciência tem como objetivo dar-nos conclu­ sões substanciais sobre questões de fato, então, se seu método ê dedutivo, essas conclusões devem estar implícitas nas premis­ sas. Isso significa que, antes de compreendermos plenamente os significados de nossos primeiros princípios cartesianos, temos de saber que eles (com o acréscimo apenas de definições de termos) implicam proposições tão diversas como: todas as mulas são estéreis, o coração do homem está no lado esquerdo do corpo, ou o sol está a tantas milhas da terra. Mas se todos esses fatos estão implícitos nos primeiros princípios, estes difi­ cilmente podem ser denominados auto-evidentes. Aprendemos sobre fatos como esses, pelo menos em parte, através da obser­ vação; nenhuma quantidade de raciocínio a partir de axiomas irá substituí-la. A posição da matemática pura tem sido muito discutida e ainda é obscura; parece melhor considerar os axio­ mas da matemática pura e da lógica como definidores dos ter­ mos usados nelas. Mas isto, ao menos, pode ser dito: se uma ciência pretende relatar-nos fatos como os acima, ela não pode, como a matemática pura, ser baseada no raciocínio dedutivo e nada mais. Foi o erro de Descartes assimilar à matemática pura estudos que são de caráter completamente diferente. O fato de que a dedução, quer na forma da matemática pura quer da lógica, não pode tomar o lugar da observação não quer dizer que a dedução, portanto, seja completamente inútil como adjunto da observação. A ciência faz uso de expressões que seriam completamente sem significado a menos que pudésse­ mos deduzir. A sentença “Há três pesos de um grama na balança e nada mais” não teria significado para qualquer um que não pudesse deduzir a partir dela que “Há um peso de um grama na balança, e um outro, e um outro, e nada mais”, e vice-versa. As mesmas considerações são aplicáveis à ética. Muitas das teorias éticas propostas no passado podem ser denomina­ das, sem injustiça, “cartesianas” em caráter; isto é, tentam deduzir deveres particulares de algum primeiro principio evi­

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dente por si mesmo. Freqüentemente admitem-se observações factuais entre as premissas, mais isso, embora torne as teorias que os admitem incompletamente “cartesianas”, não afeta meu argumento. Um procedimento cartesiano na morai é tão ilusó­ rio quanto na ciência. Se podemos aceitar que, como mostrarei mais adiante, um raciocínio moral genuinamente avaliatório deve ter como produto final um imperativo da forma “Faça isto”, segue-se que seus princípios devem ser de um tipo que nos permita deduzir deles tais imperativos particulares em conjunção com premissas menores factuais. Por exemplo, para que um sistema moral me ordene que não diga esta coisa particular que é falsa, seus princípios devem conter, implícita ou explici­ tamente, um imperativo no sentido de que o falso não deve ser dito em circunstâncias como aquela em que estou agora. E, similarmente, devem conter outros imperativos tais que regu­ lem minha conduta em todo tipo de circunstâncias, tanto pre­ vistas como imprevistas. Mas é óbvio que tal conjunto de prin­ cípios não poderia ser evidente por si mesmo. Não é mais fácil, é antes mais difícil, assentir a um comando muito geral como “Nunca diga o que é falso” do que assentir ao comando particu­ lar “Não diga esta coisa particular que é falsa”, assim como é mais difícil e perigoso adotar a hipótese de que todas as mulas são estéreis do que reconhecer a realidade indubitável de que esta mula que acaba de morrer não teve prole. Uma decisão de nunca dizer o que é falso envolve uma decisão de antemão sobre um número muito grande de casos individuais, tendo como única informação a seu respeito serem todos eles casos de dizer o que é falso. Não é. seguramente, casuísmo de uma espécie reprovável não querermos nos comprometer dessa forma. É bem verdade que, quando tivermos experiência em tomar tais decisões, talvez possamos ser capazes de aceitar o princípio geral. Mas suponha que deparássemos, pela primeira vez, a questão “Devo dizer agora o que é falso?” e não tivésse­ mos nenhuma decisão anterior, nossa ou de outras pessoas, para guiar-nos. Como deveríamos decidir a questão? Certamente

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não através de inferência a partir de um princípio geral evidente por si mesmo, “Nunca diga o que é falso”, pois, se não pode­ mos decidir sequer se vamos dizer o que é falso nessas circuns­ tâncias particulares, como poderemos decidir se vamos dizer o que é falso em circunstâncias inumeráveis cujos detalhes são totalmente desconhecidos para nós, salvo neste aspecto: são todos casos de dizer o que é falso? A mesma questão pode ser colocada de outra forma. É um princípio estabelecido da lógica que se uma proposição implica outra, então a negação da segunda implica a negação da primei­ ra, Um princípio análogo, algo mais forte, é também válido: se sei que uma proposição implica outra, estar em dúvida quanto a assentir à segunda é eo ipso estar em dúvida quanto a assentir à primeira. Por exemplo, se sei que a uma proposição “Todas as mulas são estéreis e isto é uma mula” implica a proposição “Esta (mula) é estéril”, segue-se que se estou em dúvida quanto a assentir à proposição “Esta (mula) é estéril”, devo estar em dúvida quanto a assentir à proposição “Todas as mulas são esté­ reis e isto é uma mula”; e isso significa que devo estar em dúvi­ da quanto a “Todas as mulas são estéreis” ou quanto a “Isto é uma mula”*Então, se aplicamos um raciocínio exatamente ana­ logo a nosso caso sobre dizer o que é falso, obtemos o seguinte resultado. Já que estou em dúvida, ex hypothesi, quanto a fazey ou não esta falsa afirmação^devo estar em dúvida quanto a# assentir do comando “Não faça esta afirmação,'’. Mias se estou em dúvida sobre esse comando^devo eo ipso estar em dúvida sobre a premissa factual “Esta afirmação é falsa” (e esta alter­ nativa é descartada ex hypothesi), ou então, como deve ser o caso, sobre a premissa imperativa f Nunca diga o que é falso5’. Segue-se que nenhum princípio geral que deva ser útil na deci­ são de questões particulares sobre as quais estamos em dúvida pode ser evidente por si mesmo.*, A impossibilidade de um sistema moral “cartesiano” pode ser demonstrada de outra forma, estreitamente aparentada àquela explicada há pouco. Não está claro de modo algum o

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que se poderia pretender ao denominar alguma proposição, es­ pecialmente um princípio geral de conduta, “auto-evidente”. Sé tal-princípio deve ser, em algum sentido, impossível de rejeitar; isso, parece-me, pode acontecer somente etn virtude de urna de duas razoés.primeiro, pode-se dizer que utn princípio de con­ duta é impossível de rejeitar se for autocontraditório rejeitá-lo. Mas se é autocontraditório rejeitar um princípio, isso pode ser apenas porque o principio é analítico. Mas se é analítico, não; pode ter nenhum conteúdo, não pode dizer-me que faça* uma * coisa e não outra.fO termo “analítico”, o qual teremos ocasião para usar bastante, pode ser definido com suficiente precisão da seguinte forma: Uma sentença é analítica se, e somente se,; ( l ) o fato de uma pessoa dissentir dela é critério suficiente para dizer-que interpretou mal o significado do falante ou (2) ela é ímpÍIcãHã^p o i^ g u ija sentença que é analítica no sentido (1). Uma sentença que não é analítica ou autocontradítória é denominada sintética. Essas definições não são, é claro, exatas; uma discussão completa dos significados de “analítico” e “sintéti­ co” está fora do escopo deste livro. Em segundo lugaf, seria possível sugerir que é impossível rejeitaram de conduta no sentido de que sua rejeiçãt». é urni~impossibilidadepsicologicapMas o que é ou não uma impossibilidade psicológica é uma questão contingente; para mim pode ser uma impossibilidade psicológica rejeitar um princípio que os mais empedernidos ou sofisticados não têm dificuldade em descartar. Nunca poderíamos ter justificativas para afirmar que ninguém podêlijeitar um princípio, a não ser que esse princípio sei a analítico. Além disso, a impossibilidade psicológica de rejeitar um princípio seria um fato sobre a cons­ tituição da psique das pessoas, e não se pode derivar nenhum imperativo a partir de um fato ou de uma sentença indicativa que o registre. Discute-se às vezes um terceiro tipo de interpretação, que se baseia na introdução de uma palavra de valor. Pode-se suge-? rir que, embora seja possível rejeitar um princípio lógica e psi­ cologicamente, pode não ser racional rejeitá-lo (rejeitá-lo pode

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ser impossível para uma pessoa racional). Às vezes, no lugar de “racional”, temos outras expressões, como “uma pessoa moral­ mente evoluída ou moralmente educada” ou “um juiz compe­ tente e imparcial” . Sãó todas expressões de valor: Portanto, temos de perguntar “Qual poderia ser o critério para decidir se uma pessoa enquadra-se numa ou noutra dessas classes?”. Ob­ viamente não podemos dizer que a rejeição do princípio seja, ela mesma, evidência de que a pessoa que o rejeita não é quali­ ficada dessas maneiras pois, nesse caso, nosso critério de autoevidência seria circular. Deve haver, portanto, alguma outra forma de descobrir se uma pessoa é racional. Mas a questão de se saber se uma pessoa é racional tem de ser uma questão fac­ tual ou uma questão de valor (ou uma combinação das duas). Se é uma questão puramente factual, então não podemos obter conclusões imperativas de premissas factuais como “Fulano é racional” e “Fulano acha impossível rejeitar o princípio de que...” . Mas se é total ou parcialmente uma questão de valor, então a resposta a ela é auto-evidente em algum sentido (e nesse caso, novamente, nosso critério de auto-evidência seria circular) ou então temos ao menos um constituinte em nosso raciocínio que não é nem auto-evidente. Esta terceira possibili­ dade, portanto, deve ser descartada. Dessas considerações resulta que se é a função dos princí­ pios morais gerais regular nossa conduta, implicar, junta­ mente com premissas menores indicativas, respostas a pergun­ tas da forma “Devo ou não devo fazer esta coisa particular?”, eníão esses jfíffirfpros1morai« gerais não podem ser auto-evidemtes. Se essa visão da função dos princípios morais fosse aceita (e> darei mais adiante razões para que assim se faça), ofereceria uma refutação conclusiva de um grande número de teorias éti­ cas Suponha, por exemplo, que encontremos um filósofo dizen­ do-nos que é evidente por si mesmo que devemos sempre fazer o que nossa consciência nos diz; devemos responder que, já que muitas vezes ficamos em dúvida quanto a fazer ou não algo que nossa consciência nos diz para fazer, esse princípio geral não

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pode ser evidente por si mesmo. E, mesmo se fosse o caso nunca estarmos em dúvida quanto a esse ponto, isso seria meramente um fato sobre nossas psiques, e nenhuma conclusão imperativa resultaria dele. No exemplo escolhido, a “consciência”, é claro, deve ser considerada como o nome de uma ocorrência psicoló­ gica identificável. Se é feita uma questão de valor sobre se determinada ocorrência psicológica é realmente a consciência ou o Diabo assumindo a voz da consciência, o princípio clara­ mente faz parte do escopo do próximo parágrafo. Teorias éticas desse tipo geral normalmente escondem seu caráter falacioso por meio de um artifício, que podemos men­ cionar brevemente aqui, embora não possa ser compreendido completamente antes de termos discutido a lógica das palavras de valor. Se o princípio geral advogado contém uma palavra de valor^pode-se fazê-lo parecer evidente por si mesmo, tratandoo como analítico, e então, quando a mesma palavra de valor aparece na premissa menor factual, pode ser tratado como se fosse descritivo. Por exemplo, poderíamos afirmar a auto-evidência (porque analítica) do princípio de que devemos cumprir nosso dever, e então poderíamos averiguar qual é nosso dever por meio de algum processo de descoberta de fatos ( e.g., con­ sultando uma faculdade chamada senso de dever ou então ven­ do a que tipos de ato a palavra “dever” é aplicada em^nossa sociedade e depois denominando “deveres” esses atos).|í)esse’ .árgümMtOf aparentemente, poderíamos chegar a uma conclu­ são, “Devo desempenhar um ato particular A”, e daí ao impera­ tivo “Faça A ”, simplesmente com base em duas premissas, “Uma pessoa deve cumprir seu dever” e “A é meu dever”, a pri­ meira das quais é auto-evidente e a segunda factual. Mas isso é um equívoco. Se “dever” é uma palavra de valor, então não podemos decidir o que é nosso dever meramente consultando o uso das palavras ou vendo se temos ou não determinada reação psicológica, mas apenas tomando uma decisão morãrPÕroutro ladoTs^dever^não fosse tratada como uma palavra de valor, mas considerada como significando “aquilo ao qual apresento

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uma reação psicológica reconhecível” ou “aquilo a que o nome ‘dever’ é comumente aplicado em minha sociedade”, então o princípio “Uma pessoa deve sempre cumprir seu dever” não seria auto-evidente. 3.4. A conclusão de tudo isso é um tanto alarmante. Forne­ ci razões no capítulo precedente para sustentar que nenhum sis­ tema moral cujos princípios fossem considerados puramente factuais poderia cumprir sua função de regular nossa conduta. Neste capítulo demonstrei que um sistema moral que alega basear-se em princípios auto-evidentes também não pode cum­ prir sua funçao. "Essas duas controvérsias entre eles, se aceitas, eliminam praticamente tudo o que Hume denomina “os siste­ mas comuns de moralidade”. Pode-se demonstrar que a maior parte dos autores que pareceram plausíveis aos que os estuda­ ram superficialmente sofrem de um ou outro desses defeitos. Em alguns grandes autores, como Aristóteles, Hume e Kant, embora não seja difícil encontrar aqui e ali em suas obras traços desses defeitos, é possível perceber, se forem estudados corre­ tamente, que eles os evitam em suas doutrinas principais. Mas não é surpresa que o primeiro efeito das investigações lógicas modernas foi fazer alguns filósofos perder a esperança na moral como atividade racional. É o propósito deste livro mostrar que sua desesperança foi prematura. Mas os efeitos do argumento acima são tão catastró­ ficos que se pode muito bem perguntar: “Vocês não proclama­ ram desde o início que o problema é impossível de resolver? Não há alguma falha em seu argumento, alguma dicotomía muito rigidamente forçada, algum critério interpretado com mui­ to rigor; não podemos salvar algo da destruição sendo um pouco menos rigorosos?”. Em particular, haverá certamente objeções ao meu emprego da palavra “implicar”. Pode-se sus­ tentar que embora no senso estrito da palavra eu realmente tenha demonstrado que juízos morais e imperativos não podem ser implicados por premissas factuais, há entre eles. não obs­ tante, alguma relação mais imprecisa que a implicação. O Sr. S. E. Toulmm, por exemplo, fala de:

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um argumento ético, constituido em parte de inferências lógicas (demonstrativas), em parte de inferencias científicas?(indutivas), e em parte daquela forma de inferencia peculiar aos argumentos éticos, pela qual passamos de razões factuais a um a conclusão ética - aquilo que naturalmente podemos denominar inferencia “avaliatória”3.

Como discuti alhures, numa crítica do livro de Toulmin4, sua versão particular dessa doutrina, que evita o mais grosseiro dos erros para os quais chamarei a atenção, contentar-me-ei aqui com algumas observações gerais sobre esse tipo de enfo­ que do problema. Vamos primeiro dar uma olhada na historia desse tipo de teoría. Está claro, pensó eu, que suas origens imediatas devem ser encontradas no ataque de autores da escola verificacionista contra a ética como ramo da filosofia. A teoría pretende salvar a ética desse ataque demonstrando que os jtiízos moráis sao,'; afinal de contas, proposições empíricas boas, apenas seu méto­ do de verificação é diferente e, de certo modo, mais impreciso que o de sentenças comuns de afirmação de fatos. Portanto, são realmente inferíveis a partir de observações de fato, mas de uma forma mais imprecisa. Ora, esse programa é mal concebido desde o início. Uma afirmação, por mais imprecisamente ligada aos fatos que seja, não pode responder a uma pergunta da forma “Que devo fa­ zer?”; somente um comando pode fazer isso. Portanto, se insis­ timos que os juízos morais são apenas afirmações de fato imprecisas, impedimos que cumpram sua função principal pois sua função principal é regular a conduta, e eles podem fazer isso somente se forem interpretados de forma a terem força imperativa ou prescritiva. Já que não estou me ocupando aqui dos juízos morais como tais, deixarei para mais tarde a pergun­ ta. “De que forma a força prescritiva dos juízos morais está rela­ cionada com a função descritiva que eles normalmente também têm?”. Estou interessado aqui no problema mais fundamental de quais espécies de raciocínio podem ter como produto final

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respostas a perguntas da forma “Que devo fazer?”. É evidente que até termos esclarecido esse problema mais fundamental não seremos capazes de dizer muito sobre a força prescritiva dos juizos morais. Aqui será suficiente mostrar por que, embo­ ra prescrição e descrição possam ser combinadas no mesmo juízo, a descrição não é e nunca pode ser prescrição. Em outras palavras, fornecerei razões para sustentar que, por nenhuma forma de inferência, por mais imprecisa que seja, podemos obter resposta à pergunta “Que devo fazer?” a partir de um con­ junto de premissas que não contenha, ao menos implicitamente, um imperativo? 3.5. Minhas razões para sustentar isso são três. Primeiro, sustentar que uma conclusão imperativa pode ser derivada de < premissas puramente indicativas leva a representar questões de substância como se fossem questões verbais. Nesse contexto, é interessante recordar o equívoco análogo do Professor Carnap a respeito das leis físicas. Carnap certa vez sustentou que, pela inclusão de regras adequadas de inferência no que denominou Linguagem-P (i.e., a linguagem de uma ciência), seria possível demonstrar que as afirmações da ciência são verdadeiras ape­ nas em virtude de sua forma; e dizer isso é assimilar essas afir­ mações ao que normalmente chamamos afirmações analíticas/ - embora o próprio Carnap as chame sintéticas, empregando a palavra num sentido especial5. Essa pode parecer uma maneira concisa de demonstrar como é possível dizer que as verdades científicas são necessárias e, assim, resolver o espinhoso “pro­ blema da indução”. Mas se perguntarmos “Quais são essas regras especiais de inferência?” com certeza revelar-se-á que são apenas as leis da ciência em outra roupagem. Portanto, se temos uma regra de inferência no sentido de que podemos par­ tir de “Isto é uma mula” para “Esta (mula) é estéril”, então, obviamente, nossa regra de inferência apenas afirma de outra maneira a velha lei, “Todas as mulas são estéreis”. Surge, então, a pergunta: “É adequado tratar uma lei da ciência como se fosse uma regra de inferência?”. É natural dizer que não,

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pois, como deixou claro o trabalho já mencionado do Professor Popper, pode-se demonstrar que as regras de inferência da lógi­ ca comum dependem das definições das palavras lógicas (2.4, nota). Assim, por exemplo, faz parte do significado da palavra “todas” podermos inferir, a partir de “Todas as mulas são esté­ reis e isto é uma mula”, a sentença “Esta (mula) é estéril” . Se¿ portanto,, queremos assimilar as leis da ciência às regras de inferência, teremos de mostrar que elas, igualmente, resultam: dos significados das palayras empregada^; por exemplo, tere­ mos de mostrar que a razão por que podemos passar de “Isto é uma mula” para “Esta (mula) é estéril” tem algo a ver com o significado das palavras “mula” e “estéril”. Porém dizer isso é ser culpado de convencionalismo, cujos defeitos foram mostra­ dos pelo trabalho (entre outros) do ProfessorV onW right6. A sentença “Todas as mulas são estéreis” diz-nos algo, não sobre as palavras, mas sobre o mundo, e, por conseguinte, não pode ser tratada como uma definição nem como algo análogo a uma regra lógica de inferência. O único tipo de definição ao qual é minimamente similar é uma definição “real” aristotélica, ou parte de uma, no sentido de que é - na realidade - uma proprie­ dade das mulas ser estéreis; por mais improvável que seja os convencionalistas admitirem isso, suas definições e regras de inferência têm de ser tratadas como “reais” nesse sentido se se espera que cumpram a tarefa que delas se exige. A posição quanto à conduta é similar. O ponto de vista que estou atacando sustenta que, tendo regras de inferência espe­ ciais, podemos dizer que podem existir inferências a partir de um conjunto de premissas indicativas para uma conclusão im­ perativa. Se perguntamos “Que são essas regras especiais de inferência?” fica evidente que nada mais são que as velhas regras de conduta em nova roupagem. O que na disposição anti­ ga aparece como uma premissa maior imperativa reaparece na nova como uma regra de inferência. O critério que sugiro para decidir sobre os méritos dessas duas formas de colocar a maté­ ria é o mesmo de antes. Tomemos um exemplo. Suponha que eu

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diga “Não diga isso porque é falso”. Devemos representar esse argumento da seguinte forma: S é falso. Não diga S, ou devemos acrescentar a premissa maior imperativa “Nunca diga o que é falso”? Se for esta última, a inferência é válida pelas regras comuns da lógica, mas se for a primeira, temos de ter «ma regra especial de inferência,, que será justamente essa premissa maior imperativa em outra função. Importa qual des­ sas alternativas escolhemos? Certamente que sim, se estamos preocupados em distinguir, por um lado, princípios gerais sobrenossa conduta, que têm conteúdo e nos mandam fazer ou deixar de fazer determinados atos positivos em nossa conduta externa, e, por outro, regras lógicas, que não são regras para o compor­ tar-se corretamente, mas para o falar e pensar corretamente, e dizem respeito, se se deve crer em Popper, não a nossas ações, mas aos significados das palavras empregadas. Esse argumento pesaria igualmente contra uma teoria que reduzisse as regras de conduta a definições de palavras de valor, pois, nesse caso, também argumentos sobre como uma pessoa deve comportar-se seriam transformados em disputas meramen­ te verbais. Suponha que um comunista e eu estamos discutindo se devo fazer determinada ação A e que, segundo seus princípios, não devo fazê-la, enquanto segundo os meus, devo. Um defen­ sor da espécie de teoria que estou atacando poderia tratar essa disputa da seguinte maneira: cada um dos disputantes tem sua própria maneira de verificar a sentença “Devo, nestas circuns­ tâncias, fazer A”, e essas formas diferem. Portanto, a fim de evi­ tar tais disputas, seria melhor para nós substituir o único termo ambíguo por dois termos não ambíguos; por exemplo, o comu­ nista deveria usar o termo “dever!” para o conceito regido por suas regras de verificação, e eu deveria usar “dever2” para o meu conceito. Mas o ponto é que há uma disputa, e não meramente

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um mal-entendido verbal entre mim e o comunista; estamos di­ vergindo sobre o que eu devo fazer (não dizer) e, se ele me con­ vencer, minha conduta será substancialmente diferente do que seria se eu não me convencesse. 3.6. Minha segunda razão para objetar a esse tipo de enfo­ que é que, se vamos introduzir imprecisão em nosso debate sobre conduta, é melhor deixar claro em que consiste exata­ mente essa imprecisão; e mesmo eu estou bem pouco seguro do que está sendo proposto. Admitamos, à guisa de argumento, que temos liberdade, se assim desejarmos, para íratar princí­ pios como “Nunca diga o que é falso” como regras de inferên­ cia; temos então de perguntar em que aspecto essas regras de inferência diferem das regras comuns da lógica. Já dei minha própria resposta: diferem da mesma maneira que as leis cientí­ ficas diferem^ das regras da lógica, porque dizem respeito á questões de substância, não a palavras - embora, neste caso, as questões de substância não sejam questões de fato, mas do que deveríamos fazer. A resposta dada pelo tipo de teoria que estou criticando é que essas regras de inferência são mais imprecisas do que as regras da lógica. Assim, se digo “Isto é falso, mas diga-o”, não estou me contradizendo, mas apenas burlando a regra mais imprecisa, no sentido de que S é falso. ,*. Não diga S.

é, “em geral”, válida, Seria possível argumentar em favor dessa maneira de tratar a questão o fato de que muitas vezes dizemos “Não diga S porque é falso” , o que, presumivelmente, se baseia numa inferência como aquela apresentada há pouco, mas que isso não pode ser uma implicação estrita porque nor­ malmente não diriam que me contradigo se dissesse “S é falso, mas diga-o”, Temos, portanto, de investigar o que se pretende ao dizer que uma regra é válida “em geral”, mas nâo universalmente.

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Parece razoável dizer que a regra “Nunca diga o que é falso” é urna regra dessa espécie, pois, na verdade, realmente achamos certo observá-la na maioria dos casos, mas também achamos cer­ to violá-las em casos excepcionais, no interesse, por exemplo, do tato, da vitória em guerras ou da proteção de inocentes con­ tra maníacos homicidas. Ora, posso pensar em pelo menos duas maneiras em que uma regra ou princípio ló g ico "^d e ser in­ completamente rigoroso. A primeira maneira é quando a regra estipula que um determinado tipo de ação deve ser realizado sob determ ma^Fsr cireunstâncias. mas entende-se que é sufi­ ciente fazer isso na grande maioria dos casos; permitem-se exceções se estas não forem inulto numerosas em proporção ao n ^ e r o T o M de casos. Um exemplo de tal princípio seria o princípio de que estudantes não devem tirar uma semana de fol­ ga durante o período letivo; evidentemente, se unia ou duas vezes durante o curso, um estudante cuja aplicação é normal­ mente exemplar, tira algum tempo de folga, mesmo uma sema­ na, não vemos nenhum mal nisso; mas se tira folga todas as semanas, ou mesmo a maioria, ele provavelmente terá sérios problemas. É óbvio que o princípio de não dizer o que é falso não é dessa natureza, porque não dizemos “Não tem importân­ cia você dizer ocasionalmente o que é falso, contanto que você não o faça com muita freqüência”. Q caráter distintivo desse primeiro tipo de princípio impre­ ciso é que as exceções a ele são limitadas apenas em numero e não determinadas de outra forma. Desde que o estudante não tire folga constantemente, não importa se ele escolhe uma se­ mana em vez de outra qualquer. Assim, cabe a ele próprio decidir^uando devem ser feitas, se é que devem, as exceções ao princípio, contanto que não sejam numerosas. Além disso, sua decisão de tirar esta semana de íoíga em vez daquela não causa nenhuma modificação no princípio, não estabelece um novo precedente iõsiífadFque não estivesse làa n tej. Por­ tanto, podemos dizer que o princípio é, v is - w ís suas exceções, estático.

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Bem diferente é o caso do outro tipo de princípio “impreci­ so”, ao qual pertence “Nunca diga o que é falso”. Aqui, as exce­ ções não são limitadas por uma restrição numérica, mas pelas peculiaridades de classes particulares de casos, Não dizemos “Fale a verdade em geral, mas não tem importância se você dis­ ser o que é falso ocasionalmente”; dizemos antes “Fale a verda­ de em geral, mas há determinadas classes de casos a que este princípio não se aplica; por exemplo, você pode dizer o que é falso para salvar a vida, e há outras exceções que deve aprender a reconhecer”. Esse tipo de princípio é um tanto diferente do primeiro, É verdade que, aqui também, a1decisão?cabe ao agen­ te do caso individual; ele tem de decidir fazer ou não uma exce­ ção, mas o que está decidindo é bastante diferente. O estudante, ao decidir se tira algum tempo de folga, não tem de perguntar a si mesmo se esse é um caso de uma classe que deva ser tratada como excepcional. No primeiro tipo de princípio não existem classes de casos excepcionais, existem apenas exceções que não diferem em nenhuma particularidade significante dos casos em que o princípio é obsem do./M a^n ^ eas(réõ ^riffcipio uma exceção, não,,temos de cogitar “Tenho burlado este princípio muitas veze s recentemente?”, mas “Há algo neste caso que o torna di­ ferente do tipo geral de casos, de tal forma que eu deva coloçar casos compieste numa classe especial e tratá -los como exce­ ções?”. Assim, no caso de regras desse tipo, mesmo as exceções são o que chamarei decisões de princípio porque, ao fazêlas, estamos na verdade modificando o princípio. Há uma rela­ ção dinâmica entre as exceções e o princípio~ Isso toma evidente que, se falamos do segundo tipo de prin­ cípio como impreciso, estamos sendo gravemente enganosos. A imprecisão na conduta é geralmente considerada uma coisa ruim e seria perigoso se os filósofos difundissem a idéia de que os princípios de conduta são imprecisos; pois não se pode espe­ rar que a pessoa comum distinga prontamente em que sentido estão sendo denominados imprecisos. Ela naturalmente consi­

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derará que são como o primeiro tipo de princípio e que, porque são frouxos, não precisa preocupar-se em observá-los sempre, contanto que o faça com freqüência suficiente para manter as aparências. Mas, nesse sentido, nossos princípios de conduta, como na verdade também a maioria dos princípios de capacidade, não são imprecisos de modo algum. O fato de que se fazem exceções a eles não é sinal de alguma imprecisão essencial, mas de nosso desejo de torná-los tão rigorosos quanto possível. Pois o que estamos fazendo ao permitir classes de exceções é tornar o princípio não mais impreciso, mas mais rigoroso. Su­ ponha-se que partimos do princípio de nunca dizer o que é falso, mas que consideramos esse princípio como provisório e reconhecemos que pode haver exceções. Suponha-rse, então, que decidimos fazer uma exceção no caso de mentiras contadas em tempos de guerra para enganar o inimigo. A regra tornou-se agora “Nunca diga o que é falso, exceto em tempo de guerra para enganar o inimigo”. Egse princípio, desde que a excecão torne-se explícita e seja incluída na formulação do princípio, não é mais impreciso do que era antes, mas mais estrito. Numa grande classe de casos, onde previamente se deixava aberta^ possibilidade de exceções e tínhamos de decidir p o fn ó s m es­ mos, a posição agora está regulamentada; o princípio determina queTuessãs circunstâncias, podemo"s dizer o que é falso. Essa expressão simplificada da maneira como m odifica­ mos princípios através da admissão de classes de exceções abrange somente os casos em que o próprio princípio é expresso em palavras que não deixam dúvida quanto a como reconhecer os casos que se enquadram nele. “Nunca diga o que é falso” é um exemplo de tal princípio. Muitas vezes, porém, os princípios são formulados de uma forma que tom a impossível tratar a questão, saber se um caso enquadra-se neles ou não, como uma mera questão de fato. Freqüentemente, embora nem sempre, isso ocorre porque o próprio princípio contém, além dos verbos imperativos ou palavras de valor necessários para a formulação de um princípio de ação, outras palavras de valor ocupando o

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lugar que, num caso normal, seria ocupado por termos pura­ mente descritivos. Por exemplo, poderíamos colocar nosso prin­ cípio sobre falsidade mima forma diferente: “Não conte menti­ ras” , Poderíamos subseqüentemente admitir uma exceção no caso de falsidades ditas, não com a intenção de enganar, mas para outros propósitos, para divertir, por exemplo. Depois pode­ ríamos dizer que contar sobre alguém uma história que todo mundo sabe que é ben trovam não é mentir. Podemos dizer isso porque “mentir” não significa simplesmente dizer falsidades, mas dizer falsidades que são repreensíveis. Assim poderíamos fazer, e às vezes fazemos, uma distinção entre mentiras propria­ mente ditas e mentiras inofensivas; mentiras propriamente ditas são todas repreensíveis; uma mentira inofensiva, por outro lado, é, nas palavras do Oxford English Dictionaty, “uma afirmação conscientemente inverídica que não é considerada criminosa: uma falsidade tornada venial ou elogiável por seu motivo”. Em todos esses casos, a modificação do princípio assume a forma de uma alteraçao, náo de sua rormulaçaoefetiva, mas das condi­ ções sob as quais se sustenta que o principio é válido, isto é, uma alteração dólim STúTda palavra crucial ou, como vamos denomT ná-la mais adiante, de seu sigmticádo descritivofcom a retenção de seu significado avaliatório. E assim, como salientou o Pro­ fessor H. L. A. Hart, que os princípios jurídicos são muitas vezes m odificados por meio de decisões judiciais, como, por exemplo, pela decisão de determinar se a queda ocasional de uma bola de críquete numa rua pública deve ou não ser adequadamente denominada uma “infração”. A palavra em questão não precisa (como aqui) ser uma palavra de valor; pode ser uma palavra descritiva cujo significado é impreciso o bastante para admitir tal tratamento. Tais decisões, é claro, tomam a lei mais precisa, não menos. O âmbito da palavra pode ser efetivamente alterado ou pode meramente tomar-se mais preciso. E não seria necessário salientar que decisões desse tipo são decisões e não, como Aristóteles parece pensar às vezes, exercícios de um tipo peculiar de percepção7. Percebemos, na verdade, uma diferença

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na classe do caso; mas decidimos se essa diferença justifica que a tratemos como excepcional. Assim, longe de querer dizer que princípios como “Nunca diga o que é falso” são, por natureza, irremediavelmente impre­ cisos, é parte de nosso desenvolvimento moral transformã-los de princípios provisórios em princípios precisos, com suas exceções claramente determinadas; esse processo, está claro, nunca é completado, mas está sempre acontecendo em qual­ quer existência individual. Se aceitamos e continuamos a acei­ tar tal princípio, não podemos, como no caso da regra sobre tirar folga, violá-lo e deixar o princípio intacto; temos de deci­ dir se devemos observar o princípio e recusarmo-nos a modificá-lo, ou violá-lo e modificá-lo admitindo uma classe de exce­ ções; ao passo que se o princípio fosse realmente impreciso por natureza, poderíamos violá-lo sem modificá-lo. No próximo capítulo analisarei com mais detalhes como desenvolvemos e modificamos nossos princípios. 3.7. O erro mais grave, contudo, do tipo de teoria que estou criticando é que ^ a ^ e ^ f e i ^ e ^ o sso^a-^iocínio sobre a conduta um fator que é da própria essência da moral. Esse fator é a decisão. Em ambos os tipos de princípio que venho discutindo, o princípio, em certo sentido, não é universal ape­ nas porque em casos particulares cabe à decisão do agente agir segundo o princípio ou não. Ora, usar a palavra “inferência” 5 para if f ^ õ i^ e iim e n tq como esse é seriamente enganoso,. Quando alguém diz “Isto é falso, portanto não vou dizê-lo” ou “Isto é falso, mas vou dizê-lo mesmo assim e abrir uma exce­ ção ao meu princípio”, está fazendo muito mais que in fe rir' Ü m ^cJc^go^F^inferência, sozinho, não lhe diria qual dessas duas coisas ele deve dizer em qualquer caso individual que se enquadre no princípio. Ele tem de decidir qual delas dizer. Inferir consiste em dizer que se ele conta uma falsidade, estará violando o princípio, ao passo que se conta a verdade, estará ob­ servando-o. Essa é um a inferência dedutiva perfeitamente sa? tisfatória, e não é preciso dizer mais nada sobre ela. O restante

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do que ele faz não é inferência, mas algo bem diferente, a saber, decidir alterar ou não o princípio. Assim, não vejo razão para retirar o que disse sobre a maneira como os princípios de conduta implicam comandos particulares. A implicação é rigorosa, O que temos de investi­ gar é, não alguma imprecisão na implicação, mas a maneira como formamos e m odificamos nossos princípios e a relação entre esse processo e as decisões particulares que tomamos no curso dela.

Capítulo 4

Decisões de princípio

4.1. Há dois fatores que podem estar envolvidos em qual­ quer decisão de fazer algo. Destes, o primeiro, ao menos teori­ camente, pode estar ausente; o segundo está sempre presente em certo grau. Correspondem às premissas maior e menor do silogismo prático aristotélico. A premissa maior é um princípio de conduta, a premissa menor é um enunciado, mais ou menos completo, do que deveríamos de fato estar fazendo se adotásse­ mos uma ou outra das alternativas abertas a nós. Assim, se deci­ do não dizer algo porque é falso, estou agindo segundo um princípio, “Nunca (ou nunca sob determinadas condições) diga o que é falso”, e devo saber que isso que estou cogitando dizer ou não é falso, f — —— — — Tomemos primeiramente a premissa menor, já que apre­ senta menos dificuldade. Não podemos, evidentemente, decidir o que fazer a não ser que saibamos ao menos alguma coisa so­ bre o que deveríamos estar fazendo se fizéssemos isto ou aqui­ lo. Por exemplo, suponha que eu seja um empregador e esteja pensando se demito ou não um funcionário que habitualmente chega ao escritório depois da hora em que se comprometera a chegar. Se o demitir estarei privando sua família do dinheiro eom que vive talvez dando à minha firm a uma reputação que levará funcionários a evitá-la quando houver outros empregos disponíveis, e assim por diante; se o mantiver, estarei fazendo

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com que outros funcionários realizem o trabalho que, do con­ trário, seria realizado por esse funcionário; e os negócios do es­ critório não serão realizados tão rapidamente quanto o seriam se todos os funcionários fossem pontuais. Essa seria a espécie de considerações que levaria em conta ao tomar minha decisão. Elas seriam os efeitos sobre a situação total das ações alternati­ vas, demiti-lo ou não demiti-lo. São os efeitos que determinam o que eu deveria estar fazendo; é entre os dois conjuntos de efeitos que estou decidindo, O ponto essencial de uma decisão é que ela faz uma diferença no que acontece, e essa diferença é a diferença entre os efeitos de decidir de uma forma e os efeitos de decidir da outra forma. Às vezes parece estar implícito em autores de ética que é imoral, em determinados tipos de ocasião, considerar os efeitos de fazer alguma coisa. Devemos, dizem, fazer nosso dever, sejam quais forem os seus efeitos. Como estou usando a pala­ vra “efeitos”, isso não pode ser sustentado. Não estou defen­ dendo a “conveniência” (no sentido negativo) em oposição ao “dever”. Mesmo fazer nosso dever - na medida em que se trata de fa zer algo - é efetuar certas mudanças na situação total. E bem verdade que, das mudanças que é possível efetuar na situa­ ção total, a m aior parte das pessoas concordaria que devemos considerar determinados tipos mais relevantes que outros (quais mais que quais, é o propósito dos princípios morais dizer-nos). Não acho que a proximidade ou distância dos efei­ tos façam qualquer diferença, embora sua certeza ou incerteza façam. Considera-se imoral deixar de corrigir uma injustiça cujos efeitos irão maximizar o prazer não porque em tal escolha os efeitos sejam considerados quando não deveriam sê-lo; é porque se dá a alguns dos efeitos - a saber, a maximização do prazer - uma relevância que não deveriam ter, em vista da rei­ vindicação anterior dos outros efeitos, que consistiriam na cor­ reção da injustiça. Por razoes que se tomarão evidentes quando tivermos exa­ minado a lógica das palavras de valor, é muitíssimo importante,

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numa exposição verbal de um argumento sobre o que fazer, não permitir palavras de valor na premissa menor. Ao formular os fatos do caso, devemos ser o mais factuais que pudermos. Os versados na lógica dessas palavras e, portanto, prevenidos con­ tra suas armadilhas, podem, no interesse da brevidade, descon­ siderar essa precaução; mas para os inexperientes é muito melhor manter as expressões de valor no lugar que lhes é pró­ prio, na premissa maior. Isso evitará a admissão inadvertida de um termo médio ambíguo, como no exemplo em 3.3 sub fin e. Não quero dizer que ao discutir os fatos do caso não devería­ mos admitir quaisquer palavras que pudessem ter um significa­ do avaliatório, pois isso, em vista da forma como os significa­ dos avaliatórios permeiam nossa linguagem, seria praticamente impossível. Quero dizer apenas que devemos ter certeza de que, como estamos usando as palavras na premissa menor, há testes definidos (que não envolvam avaliação) para demonstrar sua verdade ou falsidade. No último parágrafo estava empre­ gando a palavra “fazer” em tal sentido, embora nem sempre seja empregada dessa forma. 4.2. A relação entre as duas premissas talvez possa tomar­ se mais clara considerando um exemplo artificial. Suponhamos que um homem tenha um gênero peculiar de clarividência que lhe permita saber tudo sobre os efeitos de todas as ações alter­ nativas apresentadas a ele. Mas suponhamos que, até então, não tenha formado, ou não lhe tenham ensinado, nenhum princípio de conduta. Ao decidir entre cursos alternativos de ação, tal homem saberia, total e exatamente, entre o que estava decidin­ do. Temos de perguntar até que ponto tal homem estaria em desvantagem, se é que estaria, ao ter de tomar uma decisão, por não ter quaisquer princípios formados. Parece indubitável que poderia escolher entre dois cursos; seria até estranho chamar tal escolha necessariamente arbitrária ou infundada, pois se um homem sabe nos mínimos detalhes exatamente o que está fazendo, e o que poderia ter feito sob outras condições, sua es­ colha não é arbitrária no sentido em que seria arbitrária uma escolha feita por cara ou coroa, sem qualquer consideração dos

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efeitos. Mas suponha que devêssemos perguntar a tal homem “Por que você escolheu este conjunto de efeitos em vez daque­ le? Quais dos muitos efeitos foram os que o levaram a decidir da forma que decidiu?”. Ele poderia dizer “Não posso dar quaisquer razões; simplesmente quis decidir desta forma; numa outra oportunidade, defrontado com a mesma escolha, posso decidir de forma diferente”. Por outro lado, ele poderia dizer “Foi isto e isto que me fez decidir; estava evitando deliberada­ mente tais e tais efeitos, e buscando tais e tais efeitos”. Se des­ se a primeira dessas duas respostas, poderíamos, num determi­ nado sentido dessa palavra, chamar sua decisão de arbitrária (embora mesmo naquele caso tivesse alguma razão para sua es­ colha, a saber, que ele quis daquela forma); mas se desse a se­ gunda, não poderíamos. Vejamos o que está envolvido no segundo tipo de resposta. Embora tenhamos suposto que o homem não tem princípios for­ mados, ele mostra, se dá a segunda resposta, que começou a formar princípios, pois escolher efeitos porque estes são tais e tais é começar a agir segundo um princípio de que tais e tais efeitos devem ser escolhidos. Vemos nesse exemplo que, para agir segundo um princípio, não é necessário, em certo sentido, já ter um princípio antes de agir; pode ser que a decisão de agir de certa forma, por causa de algo a respeito dos efeitos de agir desta forma, seja assentir a um princípio de ação - embora não seja necessariamente adotá-lo em algum sentido permanente. Os homens comuns não são tão afortunados quanto o homem de nosso exemplo artificial. Eles começam, na verda­ de, absolutamente sem qualquer conhecimento do futuro, e quando adquirem o conhecimento, não é desse tipo intuitivo. O tipo de conhecimento que temos do fiituro - a menos que seja­ mos clarividentes - baseia-se em princípios de previsão que nos são ensinados, ou que formamos para nós mesmos. Prin­ cípios de previsão são um tipo de princípio de ação; pois prever é agir de uma determinada forma. Assim, embora não exista nada que possa impedir logicamente uma pessoa de ignorar

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princípios e de fazer todas as suas escolhas da maneira arbitrá­ ria exibida no primeiro tipo de resposta, isso, na verdade, nunca ocorre. Além disso, nosso conhecimento do futuro é fragmentá­ rio e apenas provável, e, portanto, em muitos casos os princí­ pios que nos são ensinados ou que formamos para nós mesmos não dizem “Escolha este tipo de efeito em vez daquele”, mas “Você não sabe com certeza quais serão os efeitos, mas faça isto em vez daquilo, e é muito provável que os efeitos sejam como os que você teria escolhido, se os conhecesse” . É impor­ tante lembrar neste contexto que “verossímil” e “provável” são palavras de valor; em muitos contextos “É provável (ou veros­ símil) que P” é adequadamente traduzido por “Há uma boa razão (ou evidência) para sustentar que P”. 4.3. Podemos distinguir, até aqui, duas razões por que te­ mos princípios. A primeira razão aplica-se a qualquer um, mesmo um homem com to taf intuição do futuro^ que decide escolheralgum a coisa porque eia tem umTHeTermmado caráter. A segunda razão aplica-se a nós porque, na verdade, não temos conhecimento completo do futuro e porque o conhecimentd que temos envolve princípios. Deve-se agora acrescentar a essas razões uma terceira. Sem princípios, a maior parte dos tipos de ensino é impossível, pois o que se ensina, na maioria dos casos, é um princípio. Em particular, quando aprendemos a fazer algo, o que aprendemos é sempre um princípio’. Até mesmo aprender um fato (como os nomes dos cinco rios do Punjab) é aprender a responder a uma pergunta, é aprender o princípio “Quando perguntarem a você ‘Quais são os nomes dos cinco rios do Punjab?’ responda ‘O Jhelum, o Chenab, etc.’ ”, Mas, é claro, não quero dizer que aprender a fazer algo é aprender a recitar mecanicamente alguma sentença imperativa universal.%|Isso nos envolveria numa regressão viciosa, pois aprender a recitar é um tipo de aprendizado e deve ter seus prin­ cípios, mas, nesse caso, teríamos de aprender a recitar os princí­ pios da recitação. Em vez disso, o ponto é que aprender a fazer algo nunca é aprender a realizar um. ato individual, é sempre

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aprender a realizar atos de iim determinado tipo num determinado tipo de situação, e isso é aprender um princípio. Assim, ao aprender a dirigir, aprendo, nao a mudar a marcha agora, mas a mudar a marcha quando o m otor faz um determinado tipo de ruido. Se não fosse assim, a instrução não teria utilidade nenhu­ ma, pois se tudo o que um instrutor pudesse fazer fosse nos dizer para mudar a marcha agora, teria de ficar sentado ao nosso lado pelo resto de nossas vidas para nos dizer precisa­ mente quando, em cada ocasião, mudar a marcha, Assim, sem princípios não poderíamos aprender absoluta­ mente nada de nossos predecessores. Isso significaria que cada geração teria de começar do zero e ensinar a si mesma. Mas mesmo que cada geração fosse capaz de ensinar a si mesma, não poderia fazer isso sem princípios; pois o autodidatismo, como qualquer outro ensino, é o ensino de princípios. Isso pode ser percebido recorrendo a nosso exemplo artificial. Suponha­ mos que nosso clarividente fizesse todas as suas escolhas se­ gundo algum princípio, mas sempre esquecesse, logo depois de fazer a escolha, qual era o princípio. Conseqüentemente, cada vez que tomasse uma decisão, teria de examinar todos os efei­ tos das ações alternativas. Isso consumiria tanto tempo que ele não teria tempo para tomar muitas decisões no curso de sua vida. Gastaria todo o seu tempo decidindo questões como dar um passo com o pé direito ou com o esquerdo, e não chegaria nunca ao que chamaríamos as decisões mais importantes. Po­ rém, se pudesse recordar os princípios segundo os quais agiu, estaria numa posição muito melhor; poderia aprender a agir em determinados tipos de circunstâncias; poderia aprender a destacar rapidamente os aspectos relevantes de uma situação, inclusive os efeitos das várias ações possíveis, e, assim, escolher rapidamente e, em muitos casos, de forma h a b itu a ljAssim. seus poderes de decisão ponderada ficariam livres para deci­ sões mais importantes. Quando o marceneiro aprende a fazer um ensamblamento sem refletir muito sobre isso, terá tempo para pensar em coisas como as proporções e a aparência estéti­

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ca do produto acabado. E acontece o mesmo com nossa condu­ ta na esfera moral; quando o cumprimento dos deveres menores torna-se uma questão de hábito, temos tempo para pensar nos há um limite do quanto uma pessoa pode ensi­ nar a outra. Além desse ponto, é necessário o autodidatismo. O limite é estabelecido pela variedade de condições que pode ser encontrada quando se faz o que está sendo ensinado, seja o que for, e essa variedade é maior em alguns casos do que em outros. Um sargento pode ensinar a um recruta quase tudo o que há para saber sobre calar baionetas num desfile, porque uma oca­ sião de calar baionetas num desfile é muito parecida com outra; mas um instrutor de direção não pode fazer mais do que come­ çar a ensinar a seu aluno a arte de dirigir, porque as condições a serem encontradas no ato de dirigir são muito diversas. Na maioria dos casos, ensinar não pode consistir em fazer com que o aprendiz desempenhe sem falha um exercício determinado. Uma das coisas que têm de ser incluidas em qualquer tipo de instrução, com exceção dos mais elementares, é a oportunidade de o aprendiz tomar decisões por si mesmo, e, ao fazê-lo, exa­ minar e mesmo modificar os principios que estão sendo ensinados para adaptá-los a tipos particulares de c a sa Os principios que nos são ensinados inicialmente são de um tipo provisorio (muito parecidos com o principio “Nunca diga o que é falso”, que discuti no capítulo anterior). Nosso treinamento, depois dos estágios iniciais, consiste em apreender esses princípios e torná-los menos provisórios; fazemos isso usando-os continuamente em nossas próprias decisões e, algumas vezes, abrindo exceções a eles; algumas das exceções são feitas porque nosso instrutor nos mostra que determinados casos são exemplos de classes de exceções ao princípio, e algumas das exceções elega­ mos por nós m esm os. Isso não apresenta mais dificuldade do que teve nosso clarividente para decidir entre dois conjuntos de efeitos. Se aprendemos através da experimentação que seguir determinado princípio acarretaria determinados efeitos, ao pas-

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so que modificá-lo de urna determinada forma acarretaria ou­ tros determinados efeitos, adotamos qualquer forma do princi­ pio que leve ao efeitos que escolhemos perseguir. Podemos ilustrar esse processo de modificação de princi­ pios a partir do exemplo já utilizado, o de aprender a dirigir. Dizem-me, por exemplo, que sempre vá para o acostamento da estrada quando parar o carro; porém, mais tarde, dizem-me que isso não se aplica quando paro, antes de virar num a estrada secundária, tendo de atravessar a pista - pois, então, devo parar perto do meio da pista até que seja possível virar. Ainda mais tarde, aprendo que, nessa manobra, não é sequer necessário parar quando se trata de um cruzamento não controlado e posso ver que nao há tráfego que eu possa obstruir ao virar. Quando aprendo todas essas modificações da regra e as modificações similares de todas as outras regras e pratico habitualmente as regras assim modificadas, então sou considerado um bom mo­ torista, porque meu carro está sempre no lugar certo na estrada, trafegando na velocidade correta, e assim por diante. O bom motorista é, entre outras coisas, aquele cujas ações são tão exa­ tamente regidas por princípios que se tornaram um hábito para ele, que normalmente não tem de pensar no que fazer. Mas as condições das estradas são muito diversas e, portanto, é impru­ dente deixar que dirigir transforme-se totalmente numa questão de hábito. Uma pessoa nunca pode estar segura de que seus princípios ao dirigir são perfeitos - na verdade, pode estar bem segura de que não são, e, portanto, o bom motorista não apenas dirige bem por hábito, mas está constantemente atento a seus hábitos de direção, para ver se não podem ser melhorados; ele nunca pára de aprender1. É desnecessário salientar que os princípios para dirigir, como outros princípios, normalmente não são inculcados pela repetição verbal, mas por exemplo, demonstração e outros meios práticos. Aprendemos a dirigir, não por preceito, mas porque nos demonstram como executar seções particulares do ato de dirigir; os preceitos geralmente são apenas versões explanatórias ou mnemónicas do que está sendo demonstrado.

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Daí para frente, tentamos executar nós mesmos as manobras particulares, somos criticados por nossas falhas, elogiados quando as executamos bem e, assim, gradualmente, nos fami­ liarizamos com os varios principios do bem dirigir. Pois embo­ ra nossa instrução esteja longe de ser puramente verbal, o que nos estão ensinando, contudo, são princípios, Q fato de que a derivação de atos particulares (ou comandos para executá-los) a partir de princípios normalmente é feita de forma não-verbal não demonstra que ela n ão é um processo lógico, assim como não se demonstra que a inferência: O relógio acaba de bater sete vezes, O relógio bate sete vezes somente às sete horas. ,\ São pouco mais de sete horas.

é não-lógica por nunca ser feita explicitamente em palavras. Os motoristas muitas vezes sabem exatamente o que fazer numa determinada situação sem serem capazes de enunciar em palavras o princípio segundo o qual agem. Esse é um estado de coisas muito comum para todos os tipos de princípio. Prepara­ dores de armadilha sabem exatamente onde armá-las, mas mui­ tas vezes não conseguem explicar precisamente por que coloca­ ram uma armadilha num local particular. Todos sabemos como empregar palavras para comunicar o que queremos dizer, mas se um lógico reclama a definição exata de uma palavra que uti­ lizamos ou as regras exatas para o seu emprego, muitas vezes não conseguimos. Isso não significa que a preparação de arma­ dilhas, o emprego de palavras ou a condução de automóveis não se processem de acordo com princípios. Uma pessoa pode saber como, sem ser capaz de dizer como - embora quando uma habilidade deve ser ensinada, fique mais fácil se pudermos dizer c o m a l Não devemos pensar que, se podemos decidir entre um cur­ so e outro sem reflexão mais demorada (parece-nos evidente por si mesmo qual deles devemos tomar), isso necessariamente im-

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plique que temos alguma faculdade intuitiva misteriosa que nos diz o que fazer. Um motorista não sabe quando mudar a marcha por intuição; sabe porque aprendeu e não esqueceu; o que ele sabe é um princípio, embora não possa formular o princípio em palavras, O mesmo é verdadeiro no caso das decisões morais que são às vezes chamadas ‘‘intuitivas”. Temos “intuições” morais porque aprendemos a nos comportar, e as tem os diferentes, de acordo com a forma em que aprendemos a nos comportar. Seria um erro dizer que tudo o que precisa ser feito para transformar um homem em um bom motorista seria dizer-lhe ou, de outro modo, inculcar-lhe muitos princípios gerais. Isso seria excluir o fator da decisão. Logo após começar a aprender, ele deparará com situações em face das quais os princípios pro­ visórios até então ensinados exigirão modificação; e ele terá então de decidir o que fazer. Descobrirá bem cedo quais deci­ sões estavam certas e quais erradas, em parte porque o instrutor lhe diz e, em parte, porque, tendo visto os efeitos das decisões, resolve não provocar tais efeitos no futuro. Em nenhuma hipó­ tese devemos cometer o erro de supor que decisões e princípios ocupam duas esferas separadas e não se tocam em nenhum pontp. Todas as decisões, exceto as que são completamente ar­ bitrárias, se é que existem, são, em certa medida, decisões de princípio. Estamos sempre estabelecendo precedentes para nós mesmos. Não é o caso de o princípio resolver tudo até determi­ nado ponto e a decisão lidar com tudo que esteja abaixo daque­ le ponto. Em vez disso, decisão e princípios interagem em toda a extensão do campo. Suponha que temos um princípio para agir de certa forma em determinadas circunstâncias. Suponha depois que nos encontramos em circunstâncias que se enqua­ dram no princípio, mas que têm determinadas características peculiares, não encontradas antes, que nos fazem perguntar “Pretende-se realmente que o princípio abranja casos como este ou ele está especificado incompletamente - temos um caso pertencente a uma classe que deve ser tratada como excepcio­ nal?”. Nossa resposta a essa pergunta será uma decisão, mas

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uma decisão de princípio, como demonstra o emprego da pala­ vra de valor "dever”. Se decidimos que deve ser uma exceção, modificamos o princípio estabelecendo uma exceção a ele. Suponha, por exemplo, que, ao aprender a dirigir, me ensi­ naram a sempre sinalizar antes de reduzir a velocidade ou parar, mas que ainda não me ensinaram o que fazer quando parar numa emergência; se uma criança pula na frente do meu carro, não sinalizo, mas mantenho as duas mãos no volante e, daí em diante, aceito o princípio anterior com esta exceção, que, em casos de emergência, é m elhor manobrar d o oue sinalizar. Tomei, mesmo sem premeditação, uma decisão de principio. Entender o que acontece em casos como esse é entender muito sobre informação de juízos de valor ] 4.4. Não quero dar a impressão de estar levando longe de­ mais minha comparação, no que diz respeito à forma como são aprendidos, entre os princípios do dirigir e os princípios da conduta. É necessário também ter em mente algumas distin­ ções. Em primeiro lugar, a expressão “bom motorista” é ambí­ gua porque não fica imediatamente claro que padrão está sendo aplicado. Pode ser simplesmente um padrão de perícia; pode­ mos dizer que alguém é bom motorista se for capaz de fazer exatamente o que quer com seu carro; podemos dizer: “Embora muito bom motorista, ele tem pouquíssima consideração para com outros usuários da estrada.” Por outro lado, às vezes espe­ ramos que um bom motorista também tenha qualidades morais; não dizemos, segundo esse critério, que um homem é bom mo­ torista se dirige com perícia, mas sem a menor consideração pela comodidade ou pela segurança de outras pessoas. Não é fácil estabelecer na prática o limite entre esses dois padrões de bem dirigir. Há também um terceiro padrão, segundo o qual se diz que um motorista é bom se se conforma aos princípios reco­ nhecidos de bem dirigir tal como estabelecidos, por exemplo, no Código de Trânsito. Já que o Código de Trânsito é compila­ do com um propósito definido, este padrão coincide em grande parte com o segundo.

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Em segundo lugar, há dois modos de encarar o ensino de direção: (1) Estabelecemos de inicio determinados ñns, por exemplo, evitar colisões, e a instrução consiste em ensinar quais prá­ ticas contribuem para esses fins. De acordo com este modo de encará-los, os princípios do bem dirigir são imperativos hipotéticos. ¡ (2) Ensinamos primeiramente regras práticas simples, e o aluno apenas gradualmente começa a perceber quais são os fins a que visa a instrução. Não se deve pensar que somente (1) ou somente (2) forne­ çam uma descrição completa de nosso procedimento, Qual método adotar depende em grande parte da maturidade e da inteligência do aluno. Ao ensinar soldados simplórios a dirigir, poderíamos nos inclinar mais para o segundo método; se eu tivesse de ensinar meu filho de dois anos a dirigir, teria de ado­ tar os mesmos métodos que adoto hoje para ensiná-lo a não mexer nos controles quando estou dirigindo. Para um aluno muito inteligente, por outro lado, podemos adotar um método que tenha nele mais de (1) do que de (2). Não se deve pensar, contudo, que o método (2) seja sempre inteiramente descabido, mesmo no caso do mais racional dos aprendizes. Pode ser que a conveniência de evitar colisões seja imediatamente compreendida e aceita mesmo por alunos com­ parativamente obtusos, mas há muito mais fins, além deste, a que deve almejar um bom motorista. Ele tem de evitar causar muitos tipos de inconvenientes evitáveis, para si e para outros; tem de aprender a não fazer coisas que resultem em dano a seu veículo, e assim por diante. É inútil estabelecer de início um fim geral, “evitar inconvenientes evitáveis”; pois “inconvenien­ te” é uma palavra de valor e, até que tenha experiência de dire­ ção, o aluno não saberá que tipo de situação deve ser considera­ da inconveniente evitável. O fim ou princípio geral é vazio até

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que, por meio de nossa instrução detalhada, tenhamos dado conteúdo a ele. Portanto, é sempre necessário começar, em certa medida, ensinando a nosso aprendiz o que fazerj deixan­ do-o descobrir mais tarde por quê. Podemos, portanto, dizer que, embora os princípios morais, normalmente ensinados a nós quando somos imaturos, sejam ensinados em larga medida pelo método (2 ), e os princípios de direção, preponderantemen­ te pelo método (1), não há uma divisão absoluta entre os dois tipos de princípio nesse aspecto. O que acabo de dizer sobre primeiro aprender o que fazer, e sobre a vacuidade inicial do fim geral, é tomado de Aristóteles2. A única distinção funda­ mental entre princípios de direção e princípios de conduta é que estes sãOj no termo de Aristóteles, “arquitetônicos” daqueles; pois os fins do bem dirigir (segurança, evitar inconvenientes para os outros, preservação da propriedade, etc.) são justifica­ dos, em última análise, se se busca justificação, recorrendo a considerações morais3. Seria tolice, porém, dizer que há somente uma maneira de aprender uma habilidade ou qualquer outro corpo de princípios ou de justificar uma decisão particular tomada durante a prática deste. Há muitas maneiras, e tentei tornar a explicação acima suficientemente geral para abranger todas elas. Autores de moral dizem por vezes que temos de justificar um ato por refe­ rência a seus efeitos, e que dizemos quais efeitos devem ser buscados, quais evitados, por referência a algum princípio. É a teoria dos utilitaristas, que nos ordenam que olhemos para os efeitos e os examinemos à luz do princípio de utilidade, para ver quais efeitos maximizariam o prazer. Às vezes, por outro lado, diz-se (como o Sr. Toulmin)4 que um ato é justificado di­ retamente por referência aos princípios que ele observa, e esses princípios, por sua vez, por referência aos efeitos de sempre observá-los. Diz às vezes que devemos observar os princípios e ignorar os efeitos - embora, pelas razões dadas acima, não se possa entender “efeitos”, neste caso, com o sentido em que o tenho empregado. O que está errado nessas teorias não é o que

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dizem, mas a assunção de que nos estão reportando à única maneira de justificar ações ou de decidir que ações realizar. Na verdade, justificam os e elegemos ações de todas essas manei­ ras; por exemplo, às vezes, se nos perguntam por que fizemos A, dizemos “Porque era um caso que se enquadrava no princí­ pio P”, e se instados a justificar R recorremos aos efeitos de observá-lo e de nâo observá-lo. Mas, às vezes, quando nos fazem a mesma pergunta, “Por que você fez A?”, dizemos “Porque se não tivesse feito, teria acontecido E ”, e se nos per­ guntam o que havia de errado com E, apelamos para algum princípio, A verdade é que, se nos pedem que justifiquemos qualquer decisão da forma mais completa possível, temos de mencionar os efeitos - para dar conteúdo à decisão - e os princípios, e os efeitos, em geral, de observar aqueles princípios, e assim por diante, até que tenhamos satisfeito nosso inquiridor. Assim, jus­ tificação completa de uma decisão consistiria em uma descri­ ção completa de seus efeitos,- juntamente com uma descrição completa dos princípios observados e dos efeitos de observar aqueles princípios - pois, é claro, são também os efeitos (aqui­ lo em que efetivamente consiste obedecer a eles) que dão con­ teúdo aos princípios. Assim, se nos pedem que justifiquem os uma decisão completamente, temos de dar uma especificação completa do modo de vida do qual ela é parte. Na prática, é impossível dar essa especificação completa; as tentativas que chegam mais perto são as dadas pelas grandes religiões, espe­ cialmente que podem apontar personagens históricas que prati­ caram tal modo de vida. Suponha, entretanto, que possamos fornecê-la. Se o inquiridor ainda continua a perguntar “Mas por que eu deveria viver dessa forma?”, então não há mais respos­ tas para dar a ele, porque já dissemos, ex hypothesi, tudo o que podia ser incluído nessa nova resposta. Podemos somente pedir que decida por si mesmo de que maneira deve viver pois, no final, tudo se fundamenta em tal decisão de princípio. Ele tem de decidir se aceita aquele modo de vida ou não; se o aceita,

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então podemos prosseguir e justificar as decisões que se ba­ seiam nele; se não o aceita, então que aceite algum outro e tente viver segundo ele. O tormento está na última oração. Descrever tais decisões últimas como arbitrárias, porque, ex hypothesi, tudo que podia ser utilizado para justificá-las já foi incluído na decisão, seria como dizer que uma descrição completa do uni­ verso é totalmente infundada, porque não se pode recorrer a nenhum fato adicional para corroborá-la. Não é assim que empregamos as palavras “arbitrário” e “infundado”. Longe de ser arbitrária, tal decisão seria a mais bem-fundada das deci­ sões, porque se basearia na consideração de tudo em que se pudesse fundamentar. Observar-se-á que, ao falar de decisões de princípio, co­ mecei inevitavelmente a falar em linguagem de valor; Assim, decidimos que o princípio deve ser modificado, ou que é melhor manobrar do que sinalizar. Isso ilustra a estrita relevân­ cia do que venho dizendo, na primeira parte deste livro, para os problemas da segunda parte; pois fazer um juízo de valor é tomar uma decisão de princípio. Perguntar se devo fazer A nes­ tas circunstâncias é (tomando emprestada a linguagem kantiana com uma pequena mas importante modificação) perguntar se desejo ou não que fazer A em tais circunstâncias tome-se uma lei universal5. A distância de Kant ao Professor Stevenson pode parecer grande, mas a mesma questão poderia ser colocada em outras palavras, perguntando “Que postura devo adotar e reco­ mendar em relação a fazer A em tais circunstâncias?”, pois “postura”, se significa alguma coisa, significa um princípio de ação. Infelizmente, Stevenson, ao contrário de Kant, dedica muito pouco espaço ao exame dessa pergunta de primeira pes­ soa; tivesse lhe dado a devida atenção, e evitado os perigos da palavra “persuasivo”, poderia ter atingido uma posição não diferente da de Kant. 4.5. Como salienta Kant na importante passagem sobre a Autonomia da Vontade, ao qual me referi anteriormente, temos de tomar nossas próprias decisões de princípio6. Outras pessoas

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não podem tomá-las por nós, a menos que tenhamos primeiro decidido aceitar seu conselho ou obedecer a suas ordens. Há uma analogia interessante aqui com a posição do cientista, que também tem de contar com suas próprias observações. Pode-se dizer que há um a diferença aqui entre decisões e observações, em detrimento daquelas, porque uma observação, uma vez feita, é propriedade pública, enquanto as decisões têm de ser tomadas pelo próprio agente em cada ocasião. Mas a diferença é apenas aparente. Um cientista não se teria tomado cientista a não ser que tivesse se convencido de que as observações de outros cien­ tistas são em geral confiáveis. Fez isso fazendo algumas obser­ vações por si mesmo. Quando aprendemos química elementar na escola, tínhamos algumas aulas teóricas e outras práticas. Nas aulas teóricas estudávamos livros; nas aulas práticas fazía­ mos experimentos e descobríamos, se tínhamos sorte, que os resultados correspondiam ao que diziam os livros. Isso nos mos­ trava que o que os livros diziam não era tudo bobagem, de modo que, mesmo quando os experimentos davam errado, em razão de fatores de perturbação que ignorávamos, tendíamos a confiar nos livros e a reconhecer que tínhamos cometido um erro. A assunção era confirmada pelo fato de que, muitas vezes, desco­ bríamos mais tarde qual fora o erro. Se nossas observações, por mais cuidadosamente que as tivéssemos feito, estivessem sem­ pre em discrepância com os livros didáticos, não nos sentiría­ mos tentados a fazer da ciência a nossa profissão. Portanto, em última análise, a confiança do cientista nas observações de outras pessoas baseia-se, entre outras coisas, em suas próprias observações e seus próprios julgamentos sobre o que é confiá­ vel. Ele tem, afinal, de contar consigo mesmo. O caso do agente moral não é dissimilar. Em nossa infân­ cia, quando nos dão instrução moral elementar, há algumas coi­ sas que nos dizem e algumas coisas que fazemos. Se, quando fizéssemos o que nos diziam, os efeitos totais de fazê-lo, quan­ do acontecessem, fossem sempre tais que não os teríamos esco­ lhido se os conhecêssemos de antemão, então deveríamos bus­

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car conselho melhor, ou, se impedidos de fazê-lo, trabalhar por nossa própria salvação ou tomarmo-nos deficientes morais. Se, em geral, nos dão o que, subseqüentemente, percebemos ter sido um bom conselho, decidimos, em geral, seguir o conselho e adotar os princípios dos que nos deram esse bom conselho no passado. É o que acontece a qualquer criança bem criada. Assim como o cientista não tenta reescrever tudo o que está nos livros, mas admite-o como verdade e dedica-se a suas próprias investigações particulares, essa criança afortunada irá assumir os princípios de seus responsáveis e adaptá-los detalhadamen­ te, de tempos em tempos, por meio de suas próprias decisões, para que se ajustem a suas próprias circunstâncias. É assim que, numa sociedade bem ordenada, a moralidade mantém-se está­ vel e, ao mesmo tempo, adapta-se a circunstâncias mutáveis. 4.6. Este feliz estado de coisas pode, porém, deteriorar-se de várias maneiras. Consideremos um processo que parece ocorrer com bastante freqüência na história; ocorreu na Grécia durante os séculos V e IV, e tem ocorrido em nossa própria época. Suponha que as pessoas de uma determinada geração que chamarei primeira geração - tenham princípios bem esta­ belecidos, herdados de seus pais. Suponha que estejam tão es­ tabelecidos que se tornaram uma segunda natureza, de forma que, falando de modo geral, as pessoas ajam segundo os princí­ pios sem pensar, e sua capacidade de tomar decisões pondera­ das tome-se atrofiada. Eles agem sempre de acordo com as regras e não sofrem nenhum mal porque o estado do mundo em seu tempo é praticamente o mesmo para o qual os princípios foram ideados. Mas seus filhos, a segunda geração, à medida que crescem, descobrem que as condições mudaram (e . g por uma guerra prolongada ou uma revolução industrial) e que os princípios em que foram criados não são mais adequados. Como se deu muita ênfase em sua educação à observação dos princípios e muito pouca às decisões em que, em última análi­ se, esses princípios se baseiam, sua moralidade não tem raízes e torna-se completamente instável. Já não se escrevem ou lêem

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livros sobre “O Dever Integral do Homem”. Muitas vezes, quando fazem o que se diz em tais livros, subseqüentemente encontram motivo para lamentar suas decisões; e há casos demais desse tipo para que reste qualquer confiança nos velhos princípios como um corpo. Sem dúvida, há no meio desses velhos princípios alguns bastante gerais, que permanecerão aceitáveis a menos que a natureza humana e o estado do mundo experimentem uma mudança muitíssimo fundamental; mas a maioria da segunda geração, não tendo sido criada para tomar decisões de princípio, mas para fazer o que diz o livro, não será capaz de tomar as decisões cruciais que determinariam quais princípios manter, quais modificar e quais abandonar. Algumas pessoas, as crianças virtuosas da segunda geração, estarão tão impregnadas dos velhos princípios que simplesmente os segui­ rão, aconteça o que acontecer; e serão, como um todo, mais afortunadas do que as outras, pois é melhor ter alguns princí­ pios, mesmo que algumas vezes levem a decisões que lamente­ mos, do que estar moralmente à deriva. O grosso da segunda geração, talvez, mais ainda da terceira, não saberá quais princí­ pios manter e quais rejeitar, e, portanto, passarão mais e mais a viver somente o agora - o que não é ruim, porque treina sua capacidade de decisão, mas é um estado desagradável e perigo­ so. Alguns deles, os rebeldes, gritarão aos quatro ventos que alguns ou todos os velhos princípios morais são inúteis; alguns desses rebeldes advogarão novos princípios próprios; al­ guns nada terão a oferecer, Embora intensifiquem a confusão, esses rebeldes desempenham a útil função de fazer as pessoas decidirem entre os princípios rivais, e se não apenas advogam novos princípios, mas tentam sinceramente viver segundo es­ tes, estão conduzindo um experimento moral que poderá ser do mais alto valor para o homem (caso em que passarão para a his­ tória como grandes mestres da moral) ou, por outro lado, pode­ rão mostrar-se desastrosos para eles e para seus discípulos, Pode levar muitas gerações para que essa moléstia seja eli­ minada. A moralidade recupera seu vigor quando as pessoas

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comuns aprendem novamente a decidir por si mesmas sob que princípios viver e, mais especialmente, que princípios ensinar a seus filhos. Já que o mundo, embora sujeito a vastas mudanças materiais, muda somente muito devagar em questões que são fundamentais do ponto de vista moral, os princípios que con­ quistam a aceitação da massa provavelmente não devem diferir enormemente daqueles de que seus pais vieram a duvidar. Os princípios morais de Aristóteles lembram os de Ésquilo mais do que diferem deles, e nós mesmos talvez nos voltemos para algo reconhecivelmente semelhante à moralidade de nossos avós. Mas haverá algumas mudanças; alguns dos princípios defendi­ dos pelos rebeldes terão sido adotados. É assim que a moralida­ de progride - ou regride. O processo, como veremos, reflete-se em alterações bastante sutis no emprego de palavras de valor; a impossibilidade de tradução do catálogo de virtudes de Aris­ tóteles para o inglês moderno pode servir como um exemplo, e o desaparecimento sem vestígios da palavra “earnest” [diligen­ te, sincero], como outro. 4.7. A pergunta que mencionamos, “Como devo criar meus filhos?”, é uma questão a cuja lógica, desde os tempos antigos, poucos filósofos deram muita atenção. A educação moral de uma criança tem um efeito sobre ela que permanecerá em boa parte inalterado por qualquer coisa que lhe aconteça no futuro. Se teve uma criação estável, segundo bons ou maus princípios, se­ rá extremamente difícil para ela abandonar esses princípios mais tarde - difícil mas nâo impossível. Terão para ela a força de uma lei moral objetiva, e seu comportamento oferecerá mui­ tos indícios em favor de teorias éticas intuicionistas, contanto que não seja comparado com o comportamento dos que adotam com igual firmeza princípios bem diferentes. Mas, não obstan­ te, a menos que nossa educação tenha sido tão meticulosa a ponto de transformar-nos em autômatos, podemos vir a duvidar desses princípios ou mesmo rejeitá-los; é isso o que torna os seres humanos, cujos sistemas morais modificam-se, diferentes das formigas, cujo “sistema moral” não muda. Portanto, ainda

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que para mim a pergunta “Que devo fazer em tal e tal situa­ ção?” seja quase invariavelmente respondida sem ambigüidade pela intuição moral que minha criação me deu, se perguntar a mim mesmo “Como devo criar meus filhos?”, posso hesitar antes de dar uma resposta. É aqui que surgem as decisões morais mais fundamentais, e é aqui, se os filósofos morais ao menos lhes dessem atenção, que os usos mais característicos das palavras morais devem ser encontrados. Devo criar meus filhos exatamente como fui criado, para que tenham as mesmas intuições sobre a moral que eu tenho? Ou será que as circuns­ tâncias alteraram-se, de forma que o caráter moral do pai não proporcionará um equipamento adequado para os filhos? Talvez eu tente criá-los como seu pai, e falhe; talvez seu novo ambiente seja forte demais para mim e eles venham a repudiar meus princípios. Ou posso ter ficado tão aturdido com o estra­ nho mundo novo que, embora ainda aja pela força do hábito, segundo os princípios que aprendi, simplesmente não saiba que princípios conferir a meus filhos, se é que, na verdade, alguém em minhas condições possa efetivamente conferir quaisquer princípios estabelecidos. Tenho de tomar uma decisão em rela­ ção a todas essas questões; somente o pai mais tacanho tentará criar seus filhos, sem ponderar, exatamente da mesma forma como foi criado, e mesmo ele, em geral, fracassará desastrosa­ mente. Muitos dos cantos escuros da ética tornam-se mais claros quando consideramos esse dilema no qual os pais estão propen­ sos a se envolver. Já observamos que, embora, no final, os prin­ cípios tenham de se fundamentar em decisões de princípio, decisões como tais não podem ser ensinadas, somente princí­ pios podem ser ensinados. É a impotência do pai para tomar em lugar do filho as muitas decisões de princípio que ele tomará em sua futura carreira que dá à linguagem moral seu formato característico. O único instrumento que o pai possui é a educa­ ção moral - o ensino de princípios por meio de exemplos e pre­ ceitos, reforçados por castigos e outros métodos psicológicos

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mais modernos. Ele deve usar esses meios, e até que ponto? Certas gerações de pais não tiveram dúvidas a esse respeito. Usaram-nos na totalidade, e o resultado foi transformar seus filhos em bons intuicionistas, capazes de se manter nos trilhos, mas fracos para fazer manobras. Outras vezes, os pais - e quem os condenaria? - sofrem de falta de confiança; não têm ao menos certeza suficiente do que eles mesmos pensam, para estar prontos a conferir a seus filhos um modo de vida estável. Às crianças de tal geração provavelmente crescerão oportunis­ tas, perfeitamente capazes de tomar decisões individuais, mas sem o conjunto estabelecido de princípios que é a mais valiosa herança que qualquer geração pode legai* a seus sucessores. Pois, embora os princípios sejam construídos sobre decisões de princípio, a construção é o trabalho de muitas gerações, e devese ter pena do homem que tem de começar do início; é imprová­ vel, a não ser que ele seja um gênio, que consiga muitas conclu­ sões de importância, não mais provável do que seria um meni­ no comum, solto sem instrução numa ilha deserta, ou mesmo num laboratório, fazer qualquer uma das principais descobertas científicas. O dilema entre dois caminhos extremos na educação é cla­ ramente falso. Por que é falso fica evidente se recordamos o que foi dito anteriormente sobre a relação dinâmica entre deci­ sões e princípios. É bastante semelhante a aprender a dirigir. Seria tolo, ao ensinar alguém a dirigir, tentar inculcar-lhe prin­ cípios tão fixos e abrangentes que ele nunca tivesse de tomar uma decisão independente. Seria igualmente tolo ir para o outro extremo e deixar-lhe a tarefa de encontrar sua própria ma­ neira de dirigir. O que fazemos, se somos sensatos, é dar-lhe uma base de princípios sólida mas, ao mesmo tempo, ampla oportunidade de tomar as decisões em que se baseiam esses princípios e pelas quais são modificados,, melhorados, adapta­ dos a circunstâncias modificadas, ou mesmo abandonados quando se tornam inteiramente inadequados a um novo am­ biente. Ensinar somente os princípios, sem conceder a oportu­

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nidade de sujeitá-los às decisões de princípio do próprio aluno, é como ensinar ciência exclusivamente com livros didáticos, sem entrar num laboratório. Por outro lado, abandonar um filho ou um aluno de direção à auto-expressão é como colocar um menino num laboratório e dizer “Vire-se”. O menino pode se divertir ou se matar, mas provavelmente não aprenderá muito sobre ciência. As palavras morais, das quais podemos tomar “dever” como exemplo, refletem em seu comportamento lógico essa natureza dupla da instrução moral - como seria de esperar, pois é na instrução moral que são mais tipicamente empregadas. As sentenças em que aparecem normalmente são a expressão de decisões de princípio - e é fácil, em nossa discussão da matéria, permitir que as decisões se separem dos princípios. Essa é a fonte da controvérsia entre os “objetivistas”, como os intuicio­ nistas às vezes chamam a si mesmos, e os “subjetivistas”, como muitas vezes chamam seus oponentes. Os primeiros enfatizam os princípios fixos que são passados pelo pai, os segundos nas novas decisões que têm de ser tomadas pelo filho. O objetivista diz “E claro que você sabe o que deve fazer, veja o que sua consciência lhe diz e, em caso de dúvida, guie-se pela cons­ ciência da ampla maioria dos homens”. Ele pode dizer isso por­ que nossas consciências são o produto dos princípios que nosso treinamento primeiro gravou indelevelmente em nós e, numa sociedade, esses princípios não diferem muito de uma pessoa para outra. O subjetivista, por outro lado, diz “Mas, com certe­ za, no momento crucial - depois de ouvir o que outras pessoas dizem e de dar o devido peso a minhas próprias intuições, o legado de minha criação - tenho, afinal, de decidir por mim mesmo o que devo fazer. Negar isso é ser um convencionalista; pois tanto as noções morais comuns quanto as minhas próprias intuições são o legado de um a tradição e - além do fato de haver tantas tradições diferentes no mundo - as tradições não podem ter início sem que alguém faça o que agora me sinto ins­ tado a fazer, decidir. Se me recuso a tomar minhas próprias

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decisões, estou, ao meramente copiar meus pais, mostrando-me um homem menor do que eles; pois, enquanto eles devem ter iniciado, estarei meramente aceitando”. Essa alegação do sub­ jetivista é inteiramente justificada. É a alegação do adolescente que quer ser adulto. Tornar-se moralmente adulto é conciliar essas duas posições aparentemente conflitantes aprendendo a tomar decisões de princípio, é aprender a usar sentenças de “dever” na compreensão de que estas somente podem ser veri­ ficadas pela referência a um padrão ou conjunto de princípios que tenhamos, por nossa própria decisão, aceitado e tornado nosso. É isso que a presente geração está tão dolorosamente tentando fazer.

SEGUNDA PARTE

“Bom” “Bom.... O adjetivo de aprovação mais geral, implican­ do a existência em grau elevado, ou pelo menos satisfatório, de qualidades características que são admiráveis em si mes­ mas ou úteis para algum propósito...” Oxford English Dictionary

Capítulo 5

“Naturalismo”

5.1. A primeira parte deste livro serviu a dois propósitos. Primeiro, examinando com certo detalhe a linguagem usada para expressar comandos - a forma mais simples de prescrição - estamos agora em posição melhor para compreender o com­ portamento lógico mais complexo das palavras de valor, o outro instrumento essencial para prescrever que nos provê nossa língua. Em segundo lugar, tivemos, no curso deste exame, ocasião de observar alguns dos tipos de situação em que estamos acostumados a empregar a linguagem prescritiva e vi­ mos como aprendemos a responder a perguntas da forma “Que devo fazer?”, cuja resposta é uma prescrição. No restante do livro estarei lidando com algumas palavras de valor típicas e, especialmente, com “bom”, “correto” e “de­ ver”. Embora minha seleção seja convencional, três explana­ ções precisam ser feitas aqui. Primeiramente, não desejo suge­ rir que as características das palavras de valor para as quais cha­ marei a atenção limitam-se às poucas palavras típicas examina­ das aqui; na verdade - e isto tem sido causa de confusão lógica - quase toda palavra de nossa língua pode ser usada ocasional­ mente como palavra de válor (isto é, aprovar ou o contrário); e, geralmente, apenas interrogando minuciosamente um falante podemos dizer se está usando a palavra dessa forma. A palavra “brilhante” é um bom exemplo. Ao restringir minha atenção às

Hfi

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mais simples, típicas e gerais das palavras de valor, meu único objetivo é a simplicidade de exposição. Em segundo lugar, os termos “palavras de valor” e “avaliatório’' são excessivamente difíceis de definir. Contentar-me-ei, por enquanto, em dar alguns exemplos e ilustrações; só mais adíante (11.2) poderei arriscar uma definição e, mesmo então, sem muita confiança. Em terceiro lugar, seguirei um procedimento similar ao empre­ gado anteriormente em conexão com o aprendizado de princí? pios; ilustrarei as peculiaridades das palavras de valor com exemplos extraídos de seus usos não-morais, e somente mais tarde questionarei se essas mesmas peculiaridades são encon­ tradas em contextos morais. Esse procedimento, embora possa parecer inadequado, tem uma grande vantagem; permitirá que eu demonstre, espero, que as peculiaridades dessas palavras não têm nada a ver com a moral como tal e que, portanto, teo­ rias que pretendam explicá-las têm de ser aplicáveis não apenas a expressões como “bom homem”, mas também a expressões como “bom cronômetro”, e perceber isso é preservar-se de muitos erros. 5.2. Permitam-me ilustrar um dos aspectos mais caracterís­ ticos das palavras de valor em termos de um exemplo particu­ lar. É um aspecto que se descreve algumas vezes dizendo que “bom” e outras palavras de tal tipo são os nomes de proprieda­ des “supervenientes” ou “conseqüentes”. Suponha que um qua­ dro esteja pendurado na parede e estejamos discutindo se é um bom quadro, isto é, estamos debatendo se assentimos ou dissentimos do juízo “P é um bom quadro”. Deve-se compreender que o contexto torna claro que com “bom quadro” não quere­ mos dizer “boa cópia”, mas “boa obra de arte” - ambos os usos, porém, seriam expressões de valor. Primeiramente observemos uma peculiaridade muito im ­ portante da palavra “bom” tal como empregada nessa sentença. Suponha que haja outro quadro ao lado de P na galeria (vou denominá-lo Q). Suponha que P seja uma réplica de Q ou Q de P e que não sabemos qual é qual, mas sabemos que ambos

“BOM”

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foram pintados pelo mesmo artista, mais ou menos na mesma época. Ora, há uma coisa que não podemos dizer; não podemos dizer “P é exatamente igual a Q em todos os aspectos, salvo este, que P é um bom quadro e Q não é’\ Se disséssemos isso, provocaríamos o comentário: “Mas como um pode ser bom e o outro não, se são exatamente iguais?” . Deve haver alguma dife­ rença adicional entre eles para fazer com que um seja bom e o outro não. A nâo ser que admitamos ao menos a relevância da pergunta “O que torna um bom e o outro não?” certamente dei­ xaremos perplexos nossos ouvintes, eles pensarão que há algo errado com nosso uso da palavra “bom” . Às vezes não pode­ mos especificar precisamente o que torna um bom e o outro não, mas sempre deve haver algo. Suponha que, na tentativa de explicar o que queremos dizer, disséssemos: 4iEu não disse que havia qualquer outra diferença entre eles; há apenas esta única diferença, de que um é bom e o outro não. Seguramente você me entenderia se eu dissesse que um está assinado e o outro não, mas que, fora isso, nâo há nenhuma diferença? Então, por que eu não diria que um é bom e o outro não, mas que, fora isso, nâo há nenhuma diferença?”. A resposta a essa objeção é que a palavra “bom” não é como a palavra “assinado”; há uma dife­ rença em sua lógica. 5.3. Pode-se sugerir a seguinte razão para essa peculiarida­ de lógica: há alguma característica ou grupo de características dos dois quadros de que depende logicamente a característica “bom/’, de tal forma que, é claro, um não pode ser bom e o outro não, a menos que essas características também variem. Para citar um caso paralelo, um quadro não poderia ser retan­ gular e o outro não, a menos que certas características também variassem, por exemplo, a medida de pelo menos um dos ângu­ los. E, portanto, uma reação natural à descoberta de que “bom” comporta-se da m aneira como se comporta é suspeitar que existe um conjunto de características que, juntas, implicam uma coisa ser boa e dispor-se a descobrir quais são essas carac­ terísticas. Essa é a gênese do grupo de teorias éticas que o Pro-

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fessor Moore denominou “naturalistas” - um termo infeliz, pois, como o próprio Moore diz, pode-se cometer substancial­ mente a mesma falácia escolhendo características metafísicas ou supra-sensíveis para este propósito1. Falar sobre o sobrena­ tural não é urna profilaxia contra o “naturalismo”. O termo, infelizmente, tem sido usado muito imprecisamente desde que Moore o introduziu. O melhor é restringi-lo às teorias contra as quais a refutação de Moore (ou uma versão reeenhe cível dela) é valida. Nesse sentido, a maioria das teorias “emotivas” não é naturalista, embora sejam muitas vezes assim denominadas. Seu erro é bastante diferente. Argumentarei abaixo (11.3) que o que está errado com as teorias naturalistas é que elas f a s a m de fora o elemento prescritivo ©b aprobatorio dos juízos de valor, buscando torná-lòs deriváveis de afirmações de fato. Se estou certo nessa opinião, minha própria teoria, que preserva esse elemento, nlo é naturalista. Temos de inquirir, então, se existe alguma característica ou grupo de características que esteja relacionado com a caracte­ rística de ser bom da mesma maneira que as medidas dos ângu­ los das figuras estão relacionadas com sua retangulaxidade. De que maneira elas se relacionam? Isso implica responder à per­ gunta: Por que não pode ocorrer que um quadro seja retangular e o outro não, a menos que as medidas dos ângulos dos dois quadros também sejam diferentes? A resposta, evidentemente, é que “retangular” significa “retilíneo e com todos os ângulos de determinada medida, a saber, 90 graus”, e que, portanto, quando dissemos que um quadro é retangular e o outro não, dis­ semos que as medidas de seus ângulos diferem; e se, então, di­ zemos que não diferem, contradizemos a nós mesmos. Por­ tanto, dizer “P é exatamente igual a Q em todos os aspectos, salvo um, que P é um quadro retangular e Q não é” pode ser au~ tocontraditório; se é ou não autocontraditório depende do que pretendemos incluir em “todos os aspectos”. Se pretendemos incluir as medidas dos ângulos, então a sentença é autocontraditória, pois é autocontraditório dizer “P é exatamente igual a Q

“BOM”

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em todos os aspectos, inclusive as medidas de seus ângulos, salvo este, que P é um quadro retangular e Q não é”; isso con­ tém a asserção de que os ângulos de P diferem e não diferem dos de Q. Assim, a impossibilidade de que estamos falando é uma impossibilidade lógica, que depende do significado da palavra ‘‘retangular”. Esse é um exemplo muito elementar de impossibi­ lidade lógica; há outros exemplos mais complexos. Aqueles que em tempos recentes negaram que possa existir verdade sintética a priori têm afirmado que é possível demonstrar que toda impos­ sibilidade a priori é deste caráter, i.e., depende dos significados atribuídos às palavras empregadas. Se estão certos ou não é ainda uma questão em debate, mas para os propósitos de meu argu­ mento assumirei que estão. O debate atingiu a etapa em que não pode ser discutido em bases abstratas somente, mas apenas por meio da análise minuciosa de sentenças particulares que se alega serem verdadeiras a priori e, não obstante, sintéticas2. 5.4. Perguntemos então se “bom” comporta-se da forma como observamos que se comporta, pela mesma razão, “retan­ gular”; em outras palavras, se há determinadas características de quadros que sejam características definidoras de um bom quadro, da mesma forma que “ter todos os ângulos com 90 graus e ser uma figura plana retilínea” são características defi­ nidoras de um retângulo. Moore pensava que poderia provar que não havia tais características definidoras para a palavra “bom” tal como empregada na moral. Seu argumento tem sido atacado desde quando ele o propôs, e é verdade, com certeza, que sua formulação estava errada. Mas parece-me que o argu­ mento de Moore não era meramente plausível; baseia-se, em­ bora inseguramente, num fundamento seguro; realmente existe algo a respeito do modo e dos propósitos corft que usamos a palavra “bom” que íojãna impossível sustentar o tipo de px>:s%ã» que Moore; estava atacando, embora Moore não. percebesse cla­ ramente o que era esse algo. Tentemos, portanto, reformular o argumento de Moore de uma forma que torne claro por que o

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“naturalismo” é insustentável, não apenas para o emprego mo­ ral de “bom”, como pensava ele, mas também para muitos ou­ tros empregos. Suponhamos, para bem do argumento, que existam algu­ mas “características definidoras” de um bom quadro. Não importa de que espécie são; pode ser uma única característica, uma conjunção de características ou uma disjunção de caracte­ rísticas alternativas. Denominemos C o grupo dessas caracterís­ ticas. “P é um bom quadro” significará, então, o mesmo que “P é um quadro e P é C”. Por exemplo, que C signifique “Ter uma tendência para despertar nas pessoas que, naquele momento, são membros da Academia Real (ou de qualquer outro grupo de pessoas claramente especificado) um sentimento claramente reconhecível chamado ‘admiração’ As palavras “claramente es­ pecificado” e “claramente reconhecível” têm de ser inseridas, pois, do contrário, podemos descobrir que as palavras no âefi* niem estavam sendo usadas avaliatoriamente, e isso faria com que a definição deixasse de ser “naturalista”. Agora suponha que desejamos dizer que os membros da Academia Real têm bom gosto para quadros. Ter bom gosto para quadros significa ter esse sentimento claramente reconhecível de admiração por aqueles quadros, e somente por aqueles quadros, que são bons quadros. Se, portanto, desejamos dizer que os membros da Academia Real têm bom gosto para quadros, temos, de acordo com a definição, de dizer algo que signifique o mesmo que dizer que eles têm esse sentimento de admiração por quadros que têm uma tendência de despertar neles esse sentimento. Ora, isso não é o que queríamos dizer. Queríamos dizer que eles admiravam os quadros; conseguimos somente dizer que eles admiravam os quadros que admiravam. Assim, se aceitamos a definição privamo-nos de dizer algo que às vezes realmente queremos dizer. O que é esse algo tornar-se-á evidente mais adiante; no momento, digamos que o que queríamos fazer era aprovar os quadros que os membros da Academia Reaí admira­ vam. Algo em nossa definição impediu-nos de fazer isso. Não

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poderíamos mais aprovar os quadros que eles admiravam, po­ deríamos apenas dizer que eles admiravam os quadros que admiravam. Assim, nossa definição impediu-nos, em um caso crucial, de aprovar algo que queremos aprovar. É isso que há de errado com ela. Generalizemos. Se se sustenta que “P é um bom quadro” significa o mesmo que “P é um quadro e P é C”\ então será impossível aprovar quadros por serem C; será possível apenas dizer que são C. É importante perceber que essa dificuldade não tem nada a ver com o exemplo particular que escolhi. Não é porque escolhemos as características definidoras erradas; é porque, quaisquer que sejam as características definidoras que escolhamos, surge esta objeção, que não podemos mais elogiar um objeto por ele possuir essas características. Ilustremos isso por meio de outro exemplo. Por enquanto, estou deliberadamente excluindo exemplos morais porque que­ ro deixar claro que as dificuldades lógicas que estamos encon­ trando não têm nada a ver com a moral em particular, mas devem-se às características gerais das palavras de valor. Con­ sideremos a sentença “S é um bom morango”. Poderíamos na­ turalmente supor que isso significa apenas que “S é um moran­ go e S é doce, suculento, consistente, vermelho e grande”. Mas então torna-se impossível para nós dizer determinadas coisas que efetivamente dizemos em nossa conversação comum. Às vezes queremos dizer que um morango é um bom morango porque é doce, etc. isso - como podemos perceber imediata­ mente se nos imaginarmos dizendo isso - não significa o mesrmo que dizer que um morango é um morango doce, etc., porque é doce, etc. Mas, segundo a defeiiçào proposta, é isso que sig­ nificaría. Assim, nesse caso, novamente, a definição proposta impediria que disséssemos algo que conseguimos dizer signifi­ cativamente em nossa conversação comum. 5.5. Tem-se alegado algumas vezes contra a refutação de Moore do naturalismo que ela prova coisas demais - que se fosse válida para “bom” seria válida paia absolutamente qual­

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quer palavra que se alegasse ser definível em termos de outras palavras. Certas frases de Moore deixam-no vulnerável a essa objeção, especialmente sua citação do lema de Butler, “Tudo é o que é, e não outra coisa”3. Evidentemente o que os naturalis­ tas estão alegando é que “bondade” não é “outra coisa” que nao as características que eles alegam ser suas características defi­ nidoras. Se o naturalismo fosse verdadeiro e fosse sustentado coerentemente, o naturalista poderia argumentar da seguinte forma: “Quando digo que x é um bom A e quando digo que ele é um A que é C, estou dizendo uma mesma coisa, exatamente como ao dizer que y é um potro e dizer que y é um cavalo jovem estou dizendo uma mesma coisa. Seria possível produzir, seguindo suas diretrizes, uma refutação da teoria de que ‘potro’ significa ‘cavalo jovem ’. Seria produzida do seguinte modo; Se você aceita essa definição, então a sentença ‘Um potro é um ca­ valo jovem ’ torna-se equivalente a ‘Um cavalo jovem é um cavalo jovem’, e isso é algo que jamais desejaríamos dizer; mas realmente dizemos algumas vezes ‘Um potro é um cavalo jovem ’; portanto, a definição proposta impede que digamos algo que, em nossa conversação ordinária, dizemos significati­ vamente, etc.”. Para responder a essa objeção, perguntemos em que oca­ siões e para que propósito empregamos a sentença “Um potro é um cavalo jovem”. É evidente, creio eu, que devemos usar nor­ malmente essa sentença como definição; devemos utilizá-la quando estivermos explicando o que é um potro ou o que a palavra “potro” significa. Não é uma sentença normalmente empregada para dizer alguma coisa de substância sobre potros, embora, adiante, seja considerada uma possibilidade de tal emprego. Assim, essa sentença tem pouca diferença de signifi­ cado, se é que tem alguma, em relação à definição original “ ‘Po­ tro’ significa ‘cavalo jovem ’ ”, Isso não implica que uma ou outra forma da definição tenha algo de errado como definição. Uma definição, se correta, é sempre analítica em um sentido e sintética em outro. Tomada como uma sentença sobre potros é

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analítica, tomada eomo M a sentença sobre a palavra “potro” é sintética. Nunca é uma sentença sintética sobre potros, se fosse, não seria ama defiróção, mas cu&a coisa, Isso pode se tom ar claro por meio de uma consideração de nosso exemplo. A sentença “Um potro é um cavalo jovem ”, embora seja normalmente usada como uma definição da pala­ vra “potro”, é, não obstante, enganosa em sua forma, pois tem a mesma forma que algumas sentenças que não são definições e.g., “Um potro é uma coisa que é esquisito encontrar num bar­ ril de cerveja”. É enganosa porque é elíptica, e isso obscurece o fato de que é uma definição. Poderíamos corrigir ambas as fa­ lhas à custa de uma certa artificialidade, dizendo então “A sen­ tença ‘Se algo é um potro^ é um cavalo jovem (e vice-versa)’ é analítica” . Isso tem o mérito de desvencilhar o sintético dos ele­ mentos analíticos da definição original. A parte entre aspas é analítica se a definição for correta pois a função da definição é dizer que é analítica. Por outro lado, a sentença toda não é ana­ lítica, é uma afirmação sintética sobre a parte entre aspas; des­ cobrimos se a afirmação está correta ou não estudando o uso da língua. Assim, a sentença toda é uma afirmação sintética sobre palavras; a parte entre aspas tem a forma de uma afirmação sobre potros, mas não afirma nada sobre eles porque é analíti­ ca. Não há, em nenhum lugar da sentença, uma afirmação sin­ tética sobre potros. 5.6. Há um caso concebível em que “Um potro é um cava­ lo jovem” poderia ser usado para fazer uma afirmação sintética sobre potros. Poderia ser análogo a “Um girino é uma rã (ou outro batráquio) j ovem”, que poderia ser usado para informar a uma pessoa que a classe de animais que ele tinha aprendido a distinguir pelo nome “girino”, na verdade, transformam-se em rãs quando crescem. Porém, esse caso não pode ser utilizado para apoiar a objeção. Suponha que se objetasse “Você não pode refutar o naturalismo da forma em que busca fazê-lo, pois, nesse caso, teria de abandonar também a definição de

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‘girino’ como ‘rã nova’; poder-se-ia argumentar que a sentença ‘Um girino é uma rã jovem ’, que, todos concordamos, pode ser usada para fazer tuna afirmação sintética sobre girinos (a saber, que eles viram rãs), é, de acordo com esta definição, uma mera tautologia”. Não é difícil perceber que essa objeção baseia-se num equívoco. Não podemos, ao mesmo tempo, sustentar que “girino” significa o mesmo que “rã jovem” e que “Um girino é uma rã jovem” é uma asserção sintética. Temos de definir “giri­ no” independentemente de “rã jovem” (por exemplo, por meio de definição ostensiva, apontando uma porção de girinos na­ dando no lago), caso em que “Um girino é uma rã jovem” será realmente uma asserção sintética, mas em que “girino” não sig­ nificará “rã jovem”, mas “o tipo de animal que você pode ver nadando lá no lago”; ou então temos de definir “girino” como “rã jovem” e, nesse caso, “Um girino é uma rã jovem” torna-se analítico e “Aqueles são girinos nadando no lago” torna-se, não uma definição ostensiva, mas uma afirmação de fato com o sentido de que aqueles animais nadando na água vão transfor­ mar-se em rãs quando crescerem. Na verdade, é claro, aprende­ mos o significado de “girino” de ambas as formas, e, nesse âmbito, isso é um equivoco. Isso não nos preocupa porque não surgem casos em que animais exatamente como esses transfor­ mam-se, não em rãs, mas em, digamos, serpentes; mas se en­ contrássemos uma espécie de serpente que tivesse filhotes exa­ tamente como girinos, teríamos de fazer a distinção, dizendo “Antes que você possa dizer se um animal como este é realmen­ te um girino, você tem de esperar e ver se ele se transforma numa rã ou numa serpente”; ou poderíamos adotar outros expe­ dientes. Este é um quebra-cabeça comum na lógica; teremos oportunidade de voltar a ele mais adiante (7.5; 11.2). É possível argumentar que há um “equívoco” similar quanto à palavra “bom ” pois, como veremos, ela tem força descritiva e avaliató­ rio, e estas têm de ser aprendidas por meios diferentes e inde­ pendentemente uma da outra. Porém não estamos ainda em condições de explicar isso.

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Aqui será suficiente salientar que se é interpretada dessa forma a objeção desvia-se do ponto principal. Pois meu argu­ mento é que não podemos dizer que “x é ura bom A” significa o mesmo que “x é um A que é C” porque, então, toma-se impos­ sível aprovar AA que são C dizendo “AA que são C são bons AA”. No caso do “ girino” o argumento análogo seria “Você não pode dizer que ‘x é um girino’ significa o mesmo que ‘x é uma rã jovem ’ porque, então, torna-se impossível dizer que girinos transformam-se em rãs dizendo ‘Um girino é uma rã jovem ’ Mas, é claro, se mantemos a definição de “girino” como equi* valente a “rã jovem”, então é realmente impossível dizer disso; é somente porque “girino” às vezes é empregado de outro modo que não segundo essa definição, que às vezes podemos usar “Um girino é uma rã jovem ” como asserção sintética. E, de forma similar, é porque “bom” às vezes (na verdade em quase todos os casos) é usado de outro modo que não segundo defini­ ções “naturalistas”, que podemos usá-lo para aprovar. 5.7. Mas retornemos à sentença “Um potro é um cavalo jovem ”, e, negligenciando o possível emprego sintético que estivemos considerando, limitemos nossa atenção a seu empre­ go como definição de “potro”. A objeção que estamos conside­ rando sustenta que algumas vezes realmente dizemos significa- * tivamente “Um potro é um cavalo jovem”, e que com isso não f pretendemos dizer o mesmo que pretenderíamos se disséssemos “Um cavalo jovem é um cavalo jovem” . Portanto amplie­ mos amtíãs as sentenças da forma sugerida previamente. Trans­ formam-se, respectivamente, em “A sentença ‘Se algo é um potro, é um cavalo jovem ’ é analítica” e “A sentença ‘Se algo é um cavalo jovem, é um cavalo jovem ’, é analítica”. Ambas as sentenças são verdadeiras, mas não significam a mesma coisa, e é interessante notar que aqui temos um caso em que, embora “potro” signifique o mesmo que “cavalo jovem”, eles não po­ dem ser substituídos um pelo outro sem mudança de significa­ do. isso, porém, não é nem um pouco paradoxal. Sabe-se bem que, se uma sentença contém uma outra sentença entre aspas,

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nem sempre é possível, sem mudar o significado de toda a sen­ tença, colocar expressões sinônimas no lugar das expressões entre aspas. Assim, a sentença “Ele disse: ‘E um potro’ ” não significa o mesmo que a sentença “Ele disse: ‘E um cavalo jovem ’ pois suas verdadeiras palavras estão sendo reporta­ das, e faz diferença quais são elas. Similarmente, a sentença “O dicionário diz ‘Potro: cavalo jovem ’ ” não é a mesma em signi­ ficado que a sentença “O dicionário diz ‘Cavalo jovem: cavalo jovem ’ ”, Similarmente, outra vez, a sentença “Quando falantes de nossa língua dizem ‘potro’ querem dizer o mesmo que ‘cavalo jovem ’ ” não tem o mesmo significado que a sentença “Quando falantes de nossa língua dizem ‘cavalo jovem’ querem dizer o mesmo que ‘cavalo jovem’ E assim, também, “A sen­ tença de nossa língua ‘Se algo é um potro, é um cavalo novo’ é analítica” não significa o mesmo que “A sentença de nossa lín­ gua ‘Se algo é um cavalo jovem, é um cavalo jovem ’ é analíti­ ca”. E, portanto, as abreviações destas sentenças, “Um potro é um cavalo jovem” e “Um cavalo jovem é um cavalo jovem” não significam a mesma coisa. M as tudo isso é completamente irrelevante no caso da palavra “bom” . A força da objeção era que nosso ataque con­ tra definições naturalistas da palavra “bom” poderia ser lan­ çado igualmente contra definições da palavra “potro”, e que, já que estas estão obviamente em ordem, deve haver algo de errado com o ataque. Ora, nosso ataque contra definições naturalistas de “bom ” foi baseado no fato de que, se fosse ver­ dadeiro que “um bom A ” significa o mesmo que “um A que é C”, então seria impossível usar a sentença “Um A que é C é bom ” para aprovar AA” que são C, pois esta sentença seria analítica e equivalente a “Um A que é C ê C”. Ora, parece evi­ dente que empregamos sentenças da forma “Um A que é C é bom ” para aprovar AA que são C, e que, quando o fazemos, não estamos fazendo a mesma espécie de coisa que fazemos ao dizer “Um potro é um cavalo jovem ”, isto é, aprovar não é a? mesma espécie de atividade lingüística que definir.O signifi-

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cado de expressões como “Um potro é um cavalo jovem ” é preservado expandindo-as em definições explícitas como “A sentença de nossa língua ‘Se algo é um potro, é um cavalo jovem ’ é analítica”. Esta última sentença é verdadeira e é veri­ ficável por meio da consulta ao uso de falantes instruídos de nossa língua. Quais falantes devem ser considerados instruí­ dos, é claro, é uma questão de valor sobre o uso adequado das palavras, mas isso não é relevante aqui. Por outro lado, a sen­ tença da forma “Um A que é C é bom” não pode, sem m udan­ ça de significado, ser reescrita como “A sentença de nossa lín­ gua ‘Um A que é C é bom ’ é analítica”. Pois uma sentença deste último tipo certamente não poderia ser usada para apro­ var, enquanto sentenças do primeiro tipo podem e são; apro­ vamos morangos que são doces, etc., dizendo “Um morango que é doce, etc., é bom”, mas nunca fazemos isso dizendo “A sentença de nossa língua ‘Um morango que é doce, etc., é bom ’ é analítica”. Esta últim a sentença, se fosse usada, não seria uma aprovação de morangos doces; seria uma observa­ ção - e falsa - sobre a nossa língua. 5.8. Assim, não é verdadeiro dizer que os meios utilizados para desqualificar definições naturalistas de termos de valor poderiam ser utilizados igualmente-para desqualificar qualquer definição. Os termos de vaior têm uma função especial na lín­ gua, a áe aprovar, e, assim, eles evidentemente não podem ser definidos em termos dê palavras que não desempenhem essa ílinçâo elas mesmas pois, se isso for feito, seremos privados de um meio de desempenhar a função, Mas a palavras como “potro” isso não se aplica; alguém pode definir “potro” em ter­ mos de quaisquer outras palavras que façam o mesmo trabalho. Se duas expressões farão ou não o mesmo trabalho é decidido por referência ao uso. E já que o que estamos tentando fazer é fornecer uma descrição da palavra “bom” tal como é usada não como poderia ser usada se seu significado e uso fossem alterados - essa referência é definitiva. Portanto, não é resposta

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ao argumento acima alegar que um “naturalista” poderia, se lhe aprouvesse, definir “bom” em termos de algumas característi­ cas de sua escolha. Tal definição arbitrária é inteiramente des­ cabida aqui; o lógico, é verdade, é livre para definir seus termos técnicos próprios como quiser, desde que deixe claro como vai empregá-los. Mas “bom”, neste contexto, não é um termo téc­ nico usado para discorrer sobre aquilo de que o lógico está falando; ele mesmo é aquilo de que o lógico está falando, é o objeto de seu estudo, não o instrumento. Ele está estudando a função da palavra “bom ” na língua e, enquanto quiser estudar isso, deve continuar a conceder à palavra a função que tem na linguagem, a de aprovar. Se, por uma definição arbitrária, ele dá à palavra uma função diferente da que ela tem agora, então, ele não está mais estudando a mesma coisa; está estudando uma fantasia de sua própria invenção. O naturalismo na ética, assim como as tentativas de qua­ drar o círculo e de “justificar a indução”, reaparecerá constan­ temente enquanto houver pessoas que não compreendam a falácia envolvida. Portanto, pode ser útil fornecer um procedi­ mento simples para desmascarar qualquer nova variedade que possa ser proposta. Suponhamos que aèguém alegue que pode deduzir um juízo moral cm outro juízo ava#atório a partir de um conjunto de premissas puramente factuais ou descritivas, baseando-se em alguma definição no sentido de que V (uma palavra de valor) significa o mesmo que C (uma conjunção de predicados descritivos). Primeiramente, temos de pedir a ele que se assegure de que C não contém nenhuma expressão que seja veladamente avaliatória (por exemplo, “necessidades humanas naturais”, “normais”, “satisfatórias” ou “fundamen­ tais”). Praticamente todas as pretensas “definições naturalis­ tas” desmoronam sob este teste - pois, para ser genuinamente naturalista, ama definição hão deve conter nenhuma .expressão cuja aplicabilidade não tenha um critério definido que não envolva a formação de um juízo de valoL Se a definição satis-

faz esse teste, temos de perguntar em seguida se seu defensor nunca deseja aprovar algo por ser C. Se ele diz que sim, temos apenas de indicar que sua definição toma isso impossível, pelas razoes dadas. E, evidentemente, ele não pode dizer que nunca deseja aprovar algo por ser C pois aprovar coisas por serem C é todo o objetivo de sua teoria.

Capítulo 6

Significado e critérios

6.1. 0 argumento do capítulo precedente estabelece que “born”, sendo uma palavra usada para aprovar, não deve ser definida em termos de um conjunto de características cujos nomes não sejam usados para aprovar. Isto não quer dizer que não haja nenhuma relação entre o que foi denominado caracte­ rísticas “que tornam bom” e “bom”; quer dizer apenas que essa relação não é uma relação de implicação. Qual é a relação, dis­ cutirei mais adiante. Mas, antes disso, é necessário prevenir-se contra um erro no qual é fácil incorrer, quando se demonstra que “bom” não é analisável da forma que sugere o naturalismo. É o erro de supor que, como “bom” não é o nome de uma pro­ priedade complexa (“bom morango”, por exemplo, significan­ do “morango que é doce, suculento, consistente, vermelho e grande”), deve, portanto, ser o nome de uma propriedade sim­ ples. E claro que, se tudo o que se pretende designar por “pro­ priedade” é “seja o que for que um adjetivo represente”, então é inofensivo dizer que “bom” é o nome de uma propriedade sim­ ples, exceto na medida em que sugere que há, para cada adjeti­ vo, algo que ele representa nesta relação superficialmente sim­ ples, mas filosoficamente desconcertante. Mas como “proprie­ dade” normalmente não é utilizada num sentido amplo como esse, o emprego da palavra nesse contexto tem causado grave

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confusão; tem levado a comparações entre “bom” e palavras de propriedade simples típicas, como “vermelho”. É esta compa­ ração que agora deve ser examinada. Na verdade, como é muito difícil estabelecer um critério lógico para distinguir proprieda­ des simples de propriedades complexas, não restringirei o argu­ mento tão estreitamente quanto essa comparação sugeriria; os argumentos que utilizarei depõem igualmente contra a teoria de que “bom” é o nome de uma propriedade complexa, no sentido comumente aceito. São complementares a uma outra série de argumentos dispostos com grande habilidade pelo Sr. Toulmin contra uma teoria sim ilar1. É característico da palavra “vermelho” podermos explicar seu significado de determinada forma. A sugestão de que o caráter lógico das palavras pode ser investigado perguntando como explicaríamos seu significado procede de Wittgenstein. O ponto principal do método é que ele revela como o aprendiz poderia compreender erradamente o significado e, assim, ajuda a mostrar o que é necessário para compreendê-lo corretamente. Suponha-se que estamos tentando ensinar inglês a um filósofo estrangeiro que, deliberada ou inadvertidamente, comete todos os erros que pode cometer logicamente (pois é irrelevante que erros uma pessoa efetivamente comete ou evita). Devemos assumir que, quando iniciamos, ele não sabe nada de inglês e não sabemos nada de sua língua. Num determinado estágio, chegaremos às palavras de propriedade simples. Se tivéssemos de explicar o significado da palavra “verm elho” para tal pes­ soa, poderíamos proceder do seguinte modo: poderíamos leválo para ver caixas de correio, tomates, trens do metrô, etc., e dizer, enquanto mostrássemos a ele cada objeto, “Isso é verme­ lho”. E então poderíamos levá-lo para ver alguns pares de coi­ sas que fossem iguais na maioria dos aspectos, mas de cores diferentes (por exemplo, caixas de correio na Inglaterra e na Irlanda, tomates maduros e verdes, trens de transporte urbano de Londres e trens elétricos das linhas principais) e, em cada ocasião, dizer “ Isto é vermelho; aquilo não é vermelho, mas

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verde”. Dessa forma ele aprenderia o uso da palavra “verme­ lho”; ficaria versado em seu significado. É tentadorxassumir que o signifeado^de.todas ;ás palavras' que são aplicadas a coisas*, etnqualquer sentido; .poderia ,ser? comunicatlo: (|direta ou indiretamente) da mesma forma; mas não é assim, como bem se sabe. A palavra “isto” não pode ser tratada desse modo nem, talvez, a palavra “Quaxo” - se é que podemos dizer que o nome de um gato é uma palavra. É instru­ tivo perguntar se o significado de “bom” poderia ser explicado desse modo, e, se não, por que não. 6.2, É uma característica de “bom” poder ser aplicado a qualquer número de diferentes classes de objetos. Temos bons tacos de ctfque|ef bons cronômetros, bons extintores de incên­ dio, bons quadros, bons pores-do-sol, bons homens. O mesmo é verdadeiro com a palavra “vermelho”; todos os objetos que acabei de listar podem ser vermelhos. Temos de perguntar pri­ meiro se, ao explicar o significado da palavra “bom”, seria pos­ sível explicar seu significado em todas essas expressões de uma só vez, ou se seria necessário explicar “bom taco de crí­ quete” em primeiro lugar, e depois continuar, explicando “bom cronômetro” na segunda lição, “bom extintor de incêndio” na terceira, e assim por diante; e, se fosse este o caso, se, a cada li­ ção, estallamos ensinando algo inteiramente novo - como ensi­ nar o significado de “lista negra” depois de termos ensinado numa lição anterior o significado de “automóvel negro” - ou se seria apenas a mesma lição novamente, com um exemplo dife­ rente - como ensinar “tinta vermelha” depois de termos ensina­ do “automóvel vermelho”. Ou poderia haver alguma terceira possibilidade. O ponto de vista de que “bom cronômetro” seria uma lição completamente nova, mesmo que no dia anterior tivéssemos ensinado “bom taco de críquete”, leva imediatamente a dificuldades^Fois significaria que a eada vez nosso aprendiz poderia üsaF^palavra “bom” apenas ao falar de classes de objetos que tivesse aprendido até então}. Nunca poderia ir diretamente a

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unia nova classe de objetos e usar a palavra “bom ” com um deles. Quando tivesse aprendido “bom taco de críquete” e “bom cronômetro”, não seria capaz de usar “bom extintor de incên­ dio”, e, quando tivesse aprendido este, ainda seria incapaz de usar “bom automóvel”. Mas, na realidade, uma das coisas mais notáveis sobre a forma como usamos “bom” é que podemos usá-lo com classes inteiramente novas de objetos que nunca denominamos “bons” antes. Suponha que alguém comece a colecionar cactos pela primeira vez e ponha um sobre o consolo da lareira - o único cacto no país. Suponha então que um amigo o veja e diga “Tenho de ter um desses”; assim, ele manda bus­ car um, onde quer que cresçam, coloca-o sobre o consolo de sua lareira, e quando o amigo vai visitá-lo, ele diz “Tenho um cacto melhor que o seu”. Mas como ele sabe aplicar a palavra dessa forma? Ele nunca aprendeu a apMear “bom” a cactos; não conhece .sequer critérios para distinguir um cacto bo;m de. um ruim (pais, àté então, não havia nenhum}; mas ele aprendeu à usar a palavra “bom’ entendo aprendido isso, pode apli.eá~la a qualquer classe de objetos que tenha de pôr. em ordem de méri­ to. Ele e o amigo podem debater os critérios de bons cactos; podem tentar estabelecer critérios rivais, mas não poderiam fazer sequer isso, a menos que não tivessem, desde o início, nenhuma dificuldade para utilizar a palavra “bom”. Já que, por­ tanto, é possível usar a palavra “bom” para uma nova classe de objetos sem instrução adicional, aprender o emprego da palavra para uma classe de objetos não pode ser uma lição diferente de aprendê-la para uma outra classe de objetos - embora aprender os critérios de bondade numa nova classe de objetos possa ser uma nova lição a cada vez. É estranho que o uso de “bons cactos” não deva ser uma nova lição, pois bons cactos parecem ter pouco em comum com bons cronômetros, e bons cronômetros, com bons tacos de crí­ quete. Não obstante, de alguma forma, parece que somos capa­ zes de aprender o uso da palavra sem que nos tenham ensinado o que numa classe particular de objetos nos autoriza a aplicá-la

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a um membro desta classe. Suponha que, ao ensinar o signifi­ cado de “bom”, estejamos decididos a não nos deixar desviar pelas aparentes dissimilaridades de bons cronômetros, cactos e tacos de críquete; suponha que continuemos tentando a todo custo encontrar algo que possamos apontar em absolutamente qualquer classe de objetos, e dizer “Aí está, é o que torna boa uma coisa; quando tiver aprendido a identificar essa qualidade fugidia, você saberá o significado da palavra”. Issprpareceyià ?

primerea,\ds^únXpraeedímentrése que a função primária da palavra “bom ” é aprovár. Temos, portanto, de investigar o que é aprovar. Quando aprova­ mos ou condenamos qualquer coisa, sempre o fazemos, ao me­ nos indiretamente, para orientar escolhas, nossas ou de outras pessoas, agora ou no futuro. Suponha que eu diga “A Exposi­ ção do South Bank é muito boa”. Em que contexto eu diria isso apropriadamente e qual seria meu propósito ao fazê-lo? Para mim, seria natural dizê-lo a alguém que estivesse pensando se devia ir a Londres para ver a Exposição ou, caso estivesse em Londres, se devia visitá-la. Seria demais, porém, dizer que a referência a escolhas é sempre tão direta assim. Um americano retornando de Londres a Nova York e falando a algumas pes­ soas que não tem nenhuma intenção de ir a Londres no futuro próximo, ainda assim pode fazer a mesma observação. Por­ tanto, para demonstrar que os juízos de valor críticos são todos.

I.Í4

A LINGUAGEM DA MORAL

vcnção da boca para fora, recomendando um objeto ou dizendo coisas aprovatórias sobre ele simplesmente porque todas as outras pessoas fazem o mesmo. Eu poderia ainda dizer, se não tivesse nenhuma preferência quanto a estilos de mobília, “Este móvel é de bom estilo”, não porque desejasse orientar a escolha de mobília, minha ou a de outra pessoa, mas simplesmente por­ que me foram ensinadas as características que geralmente são consideradas critérios de bom estilo e quis m ostrar que tinha “bom gosto” para móveis. Seria difícil dizer se em tal caso estou ou não avaliando os móveis. Se não fosse um lógico, não faria a mim mesmo as perguntas que determinariam se estou ou não. Um a tal pergunta seria “ Se alguém (não relacionado de nenhuma forma com o comércio de móveis), coerentemente e sem ligar para o preço, enchesse a casa de móveis em desacor­ do com os cânones pelos quais você julga bom o estilo desses móveis, você consideraria isso como indício de que ele não concorda com você?” Se eu respondesse “Não, pois uma ques­ tão é quais móveis têm bom estilo e outra quais móveis alguém escolhe para si m esm o”, então poderíamos concluir que não estava aprovando realmente o estilo ao denominá-lo bom, mas somente sustentando uma convenção da boca para fora. Recorreremos a essa espécie de investigação minuciosa mais adiante (11.2). Essas são apenas algumas das muitas maneiras como usa­ mos a palavra “bom”. Um lógico não pode fazer justiça à infi­ nita sutileza da língua; tudo o que pode fazer é salientar algu­ mas das principais características do uso de uma palavra e, dessa forma, prevenir as pessoas dos principais perigos. Umá’ compreensão plena da lógica dos term os de valor só pode sero atingida por meio da atenção contínua e sensível à maneir^' como os usamos.

Capítulo 8

A provar e escolher

8. 1. É hora de investigar as razões das características lógi­ cas de “bom ” que estivemos descrevendo e de perguntar por que a-palavra tern esta combinação peculiar de significado ava­ liatório é descritivo. A razão será encontrada nos propósitos para os quais ela, como outras palavras de valor, é usada em nosso discurso. O exame desses propósitos revelará a relevân­ cia das questões discutidas na primeira parte deste livro para o estudo da linguagem avaliatória. Disse que a função prim aria da palavra “bom" é aprovar. Temos, portanto, de investigar o que é aprovar. Quando aprova­ mos ou condenamos qualquer coisa, sempre o fazemos, ao m e­ nos indiretamente, para orientar escolhas, nossas ou de outras pessoas, agora ou no futuro. Suponha que eu diga “A Exposi­ ção do South Bank é muito boa”. Em que contexto eu diria isso apropriadamente e qual seria m eu propósito ao fazê-lo? Para mim, seria natural dizê-lo a alguém que estivesse pensando se devia ir a Londres para ver a Exposição ou, caso estivesse em Londres, se devia visitá-la. Seria demais, porém, dizer que a referência a escolhas é sempre tão direta assim. Um americano retornando de Londres a Nova York e falando a algumas pes­ soas que não tem nenhuma intenção de ir a Londres no futuro próximo, ainda assim pode fazer a mesma observação. Por­ tanto, para demonstrar que os juízos de valor críticos são todos,

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em última análise, relacionados a escolhas e que não seriam fei7 tos se não fossem assim relacionados, precisamos pergunta^ para que propósito temos padrões. * O Sr. Urmson salientou que geralmente não falamos de lar­ vas de besouro “boas”. Isso porque nunca temos ocasião de es­ colher larvas de besouro e, dessa forma, não necessitamos de nenhuma orientação para fazer isso. Portanto, não precisamos ter padrões para larvas de besouro. Porém é fácil imaginar cir­ cunstâncias em que essa situação pode se alterar. Suponha que larvas de besouro venham a ser usadas como um tipo especial de isca para pescadores. Então poderíamos falar que cavamos uma larva de besouro muito boa (uma, por exemplo, que seja excep­ cionalmente gorda e atraente para os peixes), da mesma forma que hoje, sem dúvida, pescadores de mar podem falar que cava­ ram um biscalongo muito bom. Só temos padrões para umiji classe de objetos, só falamos das virtudes de um espécime enj oposição a outro, só usamos palavras de valor, a seu respeitgp quando são conhecidas ou concebíveis ocasiões em que nós, òin outras pessoas, teríamos de escolher entre espécimes? Não deno­ minaríamos quadros bons ou ruins se ninguém tivesse a escolha de vê-los ou não vê-los (ou de estudá-los ou não estudá-los, como estudantes de arte estudam quadros, ou de comprá-los ou não comprá-los). A propósito, para não parecer que introduzi certa vagueza ao especificar tantos tipos alternativos de esco­ lhas, deve-se salientar que a questão, se assim for desejado, pode se tornar tão precisa quanto quisermos, pois podemos espe­ cificar, quando denominamos bom um quadro, dentro de qual classe dizemos que é bom; por exemplo, podemos dizer “Quis dizer um bom quadro para estudar, mas não para comprar”. Alguns outros exemplos podem ser fornecidos. Não fala­ ríamos de bons pores-do-sol, a menos que às vezes tivéssemos de tomar decisão de ir ou não à janela olhar o pôr-do-sol; não falaríamos de bons tacos de bilhar, a menos que às vezes tivés­ semos de preferir um taco de bilhar a outro; não falaríamos de homens bons a menos que tivéssemos de escolher que espécie

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de homem tentar ser. Leibniz, quando falou de “o melhor de todos os mundos possíveis”, tinha em mente um criador esco­ lhendo entre as possibilidades. A escolha considerada não pre­ cisa ocorrer nunca, nem mesmo é necessário esperar que ocorra algum dia; é bastante que seja considerada como ocorrendo, ai fim.de que, sejamos, capazes desfazer um juízo de valor em refç-, rência a elai Deve-se admitir, porém, qug os juízos de valor/ mais úteis são os que se referem a e.scolhas que, muito prova­ velm ente,poderíamos terdefãzer. 7 8.2. Deve-se salientar que mesmo juízos sobre escolhas passadas não se referem meramente ao passado. Como vere­ mos, todos os juízos de vaTõrTaõVeIadámente de caráter uni? versal,'íò~queéigmesmo quê'diz~er~que serefèrein a, e exprimem^ álfceifãçâo de um padrão aplicável a outrãs ocasiões similares. Se censuro alguém por ter feito algo, considero a possibilidade de ele, outra pessoa ou mesmo eu, ter de fazer uma escolha semelhante novamente; do contrário não faria sentido censurálo. Assim, se digo a um homem que estou ensinando a dirigir “Você fez mal aquela manobra”, essa é uma instrução de volan­ te bastante típica, e a instrução de volante consiste em ensinar, um homem a dirigir não no passado, mas no futuro; para esse fim censuramos ou aprovamos manobras feitas no passado, para comunicar a ele o padrão que deve guiá-lo em sua conduta subseqüente. Quando aprovamos um objeto, nosso juízo não é unicamen­ te sobre aquele objeto particular, mas, inevitavelmente, sobre objetos semelhantes a ele. Assim, se digo que determinado auto­ móvel é bom, não estou meramente dizendo algo sobre aquele automóvel particular. Dizer algo sobre aquele carro particular, meramente, não seria aprovar. Aprovar, como vimos, é orientar escolhas. Ora, para orientar uma escolha particular temos um instrumento lingüístico que não é o da aprovação, isto é, o impe­ rativo singular. Se desejo meramente dizer a alguém que escolha um carro particular, sem pensar no tipo de carro ao qual ele per­ tence, posso dizer “Leve aquele”. Se, em vez disso, digo “Aquele

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é bom”, estou di/cndo algo mais. Estou sugerindo que se algum automóvel fosse exatamente como aquele, também seria bom, ao passo que ao dizer “Leve aquele” não estou sugerindo que, se meu ouvinte vir outro carro exatamente como aquele, deve leválo também, Mas, além disso, a sugestão do juízo “Aquele é um bom automóvel” não se estende meramente a automóveis exatamenfe conxo aquele. Se fosse assim, a sugestão seria inútil para propósitos práticos, pois nada é exatamente igual a qualquer oüíra coisa. Ela se estende a todo automóvel que é igual àquele nas particularidades relevantes; e as particularidades relevantes são suas virtudes - as características pelas quais eu o aprovei ou que denominei boas. Sempre que aprovamos, temos em mente algo sobre o objeto aprovado que é a razão para nossa aprovação,^ Portanto, depois de alguém ter dito “Aquele é um bom automó­ vel”, sempre faz sentido perguntar “O que é bom nele?” ou “Por que você diz que ele é bom?” ou “Que características dele você está aprovando?” Pode não ser sempre fácil responder a essa questão de forma precisa, mas é sempre uma questão legítima. Se, não entendêssemos por que é sempre uma questão legitima, não entenderíamos o modo como a palavra “bom” funciona. Podemos ilustrar esse ponto comparando dois diálogos (similares ao de 5.2): (1) X. Y. X. Y.

O automóvel de Jones é bom. O que o faz chamá-lo bom? Ah, ele simplesmente é bom. Mas deve haver alguma razão para que você o chame bom, quero dizer, alguma propriedade que ele tenha em virtude da qual você o chama bom. X. Não; a propriedade em virtude da qual o chamo bom é simplesmente sua bondade e nada mais. Y Então você quer dizer que sua forma, velocidade, peso, dirigibilidade, etc., são irrelevantes para o fato de você chamá-lo bom ou não? X. Sim, perfeitamente irrelevantes; a única propriedade

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relevante é a bondade, da mesma forma que, se eu o cha­ masse amarelo, a única propriedade relevante seria sua “amarelidade” . (2) O mesmo diálogo, mas com “amarelo” em lugar de “bom” e “amarelidade” em lugar de “bondade”, e com a omissão da última oração (“da mesma forma que... cor amarela”). A posição de X no primeiro diálogo é excêntrica porque, como observamos anteriormente, já que “bom” é um epíteto “superveniente” ou “conseqüente”, sempre é legítimo pergun­ tar a uma pessoa que disse ser boa alguma coisa: “O que há de bom nela?” Ora, responder a essa pergunta é fornecer as pro­ priedades em virtude das quais a denominamos boa. Assim, se eu disser “Aquele é um bom automóvel”, alguém perguntar “Por quê? O que há de bom nele?”, e eu responder “Alta veloci­ dade combinada com estabilidade na estrada”, indico que o denomino bom por ter essas propriedades ou virtudes. Então fazer isso é, eo ipso, dizer algo sobre outros automóveis que tenham essas propriedades. Se qualquer outro automóvel tives­ se essas propriedades, eu, para não ser incoerente, teria de con­ cordar que ele pro tanto, é um bom automóvel; embora, é claro, mesmo tendo essas propriedades a seu favor, pudesse ter des­ vantagens compensatórias e, assim, feitas todas as considera­ ções, não ser um bom automóvel. Esta última dificuldade sempre pode ser superada especi­ ficando detalhadamente a razão por que denominei bom o pri­ m eiro automóvel. Suponha que um segundo automóvel fosse igual ao primeiro, em velocidade e estabilidade, mas não desse aos seus passageiros nenhuma proteção contra a chuva e permi­ tisse a entrada e saída de passageiros com dificuldade. Eu não diria que é um bom automóvel, apesar de ter as características que me levaram a denominar bom o primeiro. Isso mostra que também não teria chamado bom o primeiro se este também, tivesse as características ruins do segundo e, portanto, ao espe­ cificar o que era bom no primeiro, deveria ter acrescentado

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“...e a proteção que ele dá aos passageiros e a facilidade para entrar e sair”. Esse processo poderia ser repetido indefinida­ mente até que eu tivesse dado urna lista completa das caracte­ rísticas do primeiro automóvel que foram necessárias para que eu concordasse que era um bom carro. Isso, em si, não seria dizer tudo o que havia para ser dito sobre meus padrões para julgar automóveis - pois poderiam existir outros automóveis que, embora carecendo em certa medida dessas características, tivessem outras características boas compensatórias, por exem­ plo, estofamento macio, espaço amplo ou baixo consumo de gasolina. Mas seria ao menos de alguma ajuda para que o ou­ vinte formasse uma idéia de meus padrões para automóveis; nisso reside a importância de tais perguntas e respostas e de reconhecéiTsua "relevância sempre que for feito um juízo He váíor. Pois um dos propósitos de fazer tais juízos é tornar co­ nhecido o padrão. Quando aprovo um automóvel estou orientando as esco­ lhas de meu ouvinte não meramente em relação àquele automó­ vel particular, m as em relação a automóveis em geral. O que disse a ele irá ajudá-lo sempre que, no futuro, tiver de escolher um automóvel ou aconselhar alguém na escolha de um automó­ vel, ou mesmo de projetar um automóvel (escolher que espécie de automóvel m andar produzir) ou escrever um tratado geral sobre o projeto de automóveis (que envolve escolher que tipo de automóveis aconselhar outras pessoas a mandar produzir). O método por meio do qual lhe dou essa assistência é fazê-lo conhecer um padrão para o julgamento de automóveis. Esse processo, como observamos, tem determinadas características em comum com o processo de definir (tornar conhecido o significado ou aplicação de) uma palavra descriti­ va, embora existam diferenças importantes. Temos agora de observar outra semelhança entre demonstrar o uso de uma pala­ vra e como escolher entre automóveis. Em nenhum dos casos a instrução pode ser feita com sucesso a menos que o instrutor seja coerente ao ensinar. Se usamos “vermelho” para objetos de

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um a ampla variedade de cores, meu ouvinte nunca aprenderá comigo um padrão de uso consistente para a palavra. De manei­ ra semelhante, se aprovo automóveis de características muito diferentes ou mesmo contrárias, o que lhe digo não será útil subseqüentemente na escolha de automóveis porque não lhe estou ensinando nenhum padrão coerente - ou mesmo algum padrão, pois um padrão, por definição, é coerente. Ele dirá “Não vejo por que padrões você está julgando esses autom ó­ veis; por favor, me explique por que você denomina todos bons, embora sejam tão diferentes”. É claro, eu talvez pudesse lhe dar uma explicação satisfatória. Poderia dizer “Existem diferentes tipos de automóveis, cada um bom à sua maneira; existe o carro esporte, cujos principais requisitos são velocidade e dirigibilidade, o carro de passeio, que deve antes ser espaçoso e econô­ mico, o táxi, e assim por diante. Portanto, quando digo que é bom um carro veloz e de boa dirigibilidade, embora não seja espaçoso nem econômico, você deve entender que o estou aprovando como carro esporte, não como carro de passeio”. Mas suponha que eu não reconhecesse a relevância de sua per­ gunta; suponha que eu estivesse simplesmente distribuindo o predicado “bom” totalm ente a esmo. É evidente que, neste caso, eu não lhe ensinaria absolutamente nenhum padrão. Temos, portanto, de distinguir duas questões que sempre podem ser feitas para elucidar um juízo que contenha a palavra “bom ” . Suponha que alguém diga “Aquele é bom” . Podemos sempre perguntar (1) “Bom o quê - carro esporte, de passeio, táxi ou exemplo para citar num livro de lógica?” Ou podemos perguntar (2) “O que o faz chamá-lo bom?” Fazer a primeira per­ gunta é pedir a classe dentro da qual as comparações avaliató­ rias estão sendo feitas. Vamos chamá-la a classe cie compara­ ção. Fazer a segunda pergunta é perguntar pelas virtudes ou ‘'características que tom am bom”. Estas duas perguntas, porém, não são independentes, pois o que distingue a classe de comparação “carro esporte” da classe “carro de passeio” é o conjunto de virtudes que deve ser procurado nas classes respec­

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tivas. Isso é assim em todos os casos em que a classe de compa­ ração é definida por meio de. um a palavra funcional - pois, obviamente, “carro esporte”, “carro de passeio”, e “táxi” são funcionais num grau muitíssimo mais alto que o simples “auto­ m óvel”. Algumas vezes, contudo, uma classe de comparação pode receber especificações adicionais sem que isso a torne mais funcional; por exemplo, ao explicar a expressão “bom vinho” poderíamos dizer “Quero dizer bom vinho para esta região, não bom vinho em comparação com todos os vinhos que existem”. 8.3. Ora, já que ser usada para ensinar padrões é o propósito da palavra “bom”, e de outras palavras de valor, sua lógica está de acordo com esse propósito. Estamos, portanto, em condições de finalmente explicar a característica da palavra “bom” que des­ taquei no início desta investigação. À razão por que não posso aplicar a palavra “bom” a um quadro se me recuso a aplicá-la a um outro quadro que concordo ser em todos os aspectos exata­ mente similar é que, ao fazê-lo, estaria anulando o propósito para o qual a palavra existe. Estaria aprovando um objeto e, assim, parecendo ensinar a meus ouvintes um padrão enquanto, ao mesmo tempo, estaria recusando-me a aprovar um objeto similar e, assim, anulando a lição que acabara de dar. Buscando transmi­ tir dois padrões incoerentes, não estaria transmitindo absoluta­ mente nenhum padrão. O efeito de uma tal declaração é similar ao de uma contradição, pois, numa contradição, digo duas coisas incoerentes e, portanto, o efeito é que o ouvinte não sabe o que estou tentando dizer. H O que disse até aqui também pode ser colocado em outra terminologia, a_dos princípios, que estivemos usando na Pri­ meira Parte. Ensinar a uma pessoa - ou eleger para si mesmo um padrão para julgar os méritos de objetos de um a determina­ da classe é ensinar ou eleger princípios para escolher entre' objetos dessa classe. Conhecer os princípios para escolher automóveis é ser capaz de decidir entre automóveis ou de dis­ cernir um bom automóvel de um ruim. Se digo “Aquele não é

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um bom automóvel” e perguntam-me qual é a virtude cuja falta me faz dizer isso, e respondo em seguida “Ele não é estável na estrada”, estou recorrendo a um princípio. J Em vista da estreita similaridade de propósito entre juízos de valor e princípios de escolha, é interessante notar que a característica dos juízos de valor que estamos discutindo (sua necessidade de coerência mútua) é compartilhada pelas senten­ ças imperativas universais, como, na verdade, por todas as sen­ tenças universais. Vimos que não posso dizer “Este é um bom automóvel, mas aquele a seu lado, embora exatamente igual em todos os outros aspectos, não é bom ” . Pela mesma razão, não podemos dizer “Se puder, sempre escolha um automóvel igual a este, mas não escolha sempre um automóvel igual àquele ao lado, que é exatamente igual a este”. Esta sentença é autocontraditória, porque recom enda ao ouvinte escolher sempre um automóvel igual a este e não escolher sempre um automóvel igual a este. Uma contradição similar no modo indicativo seria “Animais iguais a este são sempre estéreis, mas animais iguais àquele ao lado, que é exatamente igual a este, nem sempre são estéreis” . Essa conexão entre juízos de valor e princípios auxilia-nos a responder à pergunta proposta no início deste capítulo. O que disse no capítulo precedente sobre a relação do significado ava­ liatório e do significado descritivo de “bom ” e sobre a forma como os padrões são adotados e m odificados é prontamente esclarecido quando nos damos conta de que o contexto no qual usamos essas palavras é o contexto das decisões de princípio „ tais como discutidas em 4.2. Um juízo de valor pode encontrarse numa variedade de relações com o padrão, ao qual se refere. Em virtude de seu significado descritivo, ele informa ao ouvin­ te que o objeto conforma-se ao padrão. Isso é verdadeiro mesmo se o juízo for um juízo “entre aspas” ou convencional. A maior parte da complexidade da relação deve-se, porém, ao significado avaliatório. Se o padrão é bem conhecido e geral­ mente aceito, o juízo de valor não pode fazer mais do que

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expressar a aceitação do falante ou sua adesão a ele (embora nunca afirme que ele aceita ou adere a ele; para isto temos outras expressões,6tais como “ Sou de opinião que, para ser bom, um morango deve ter consistência firme”). Se o ouvinte é uma pessoa não familiarizada com o padrão (e.g., uma criança) a função do juízo de valor também pode ser familiarizá-la com ele ou ensiná-lo a ela. Se fazemos isso, não estamos meramente informando-lhe que o padrão é de vim tipo tal e tal; estamos ensinando-a a fazer suas escolhas futuras segundo um determi­ nado princípio. Fazemos isso apontando-lhe exemplos de obje­ tos que se conformam e não se conformam ao padrão, e dizen­ do “Aquele é um bom X ”, “Aquele é um mau X ”, etc. Se o padrão ao qual nos referimos é um padrão para objetos de uma classe que não tenham sido previamente colocados em ordem de m érito (tais como cactos) ou se estamos advogando cons­ cientemente ura padrão que diverge do recebido, então, nosso propósito é quase inteiramente prescritivo; estamos na realida­ de estabelecendo um novo padrão ou modificando um padrão aceito. Suponha, por exemplo, que eu dissesse “O Código de Trânsito diz que é dirigir bem dar uma multiplicidade de sinais; mas, na verdade, é melhor dar menos sinais, prestar atenção para estar Certo de que não está obstruindo outros veículos e sempre dirigir de tal forma que suas intenções de manobra se­ jam evidentes sem sinais”; eu estaria prescrevendo, não infor­ m ando1. Posso, além disso, dizer esse tipo de coisa para mim mesmo enquanto estiver aprendendo a dirigir; é semelhante a autodidatismo. Vemos assim que a linguagem dos valores é admiravelmente adequada para a expressão de tudo o que ne­ cessitamos dizer enquanto elegemos, ensinamos ou m odifica­ mos princípios; assim, todo o Capítulo 4 poderia ter sido ex­ pressado, não em termos de princípios imperativos universais, mas de juízos de valor. É por isso que a lógica dos juízos de valor não pode ser compreendida a hão ser que nos tenhamos familiarizado com tais contextos.

Capítulo 9

“Bom” em contextos morais

9.1. É hora de perguntar se “bom”, tal como usado em con­ textos morais, tem alguma das características para as quais cha­ mei a atenção em contextos não-morais. Sem dúvida alguns lei­ tores pensarão que tudo o que disse até aqui é inteiramente irre­ levante para a ética. Pensar isso é deixar escapar o esclareci­ mento de alguns paralelos muito interessantes; porém, de minha parte, não tenho direito de assumir que “bom” compor­ ta-se da m aneira que descrevi quando é empregado na moral. Devemos agora nos dedicar a esse problema; mas antes algo mais deve ser dito sobre outra distinção, da qual pode parecer que fiz pouco caso, a distinção entre os chamados usos “intrín­ seco” e “instrumental” de “bom” . Tem havido uma disposição entre filósofos para fazer uma de duas coisas opostas. A primeira é supor que todo e qualquer juízo de valor relaciona-se com o desempenho, por um objeto, de uma função distinta do objeto em si. A segunda é supor que, como existem alguns objetos que são aprovados por si mesmos e não têm uma função óbvia além de sua mera existência, apro­ var tal objeto é fazer algo bem diferente de aprovar um objeto que efetivamente tem uma função. Para que evitemos qualquer dessas duas coisas, será útil lançar mão das noções gerais de “virtude” e “padrão”, que estive empregando nos capítulos pre­ cedentes.

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Quando estamos lidando com objetos que são avaliados exclusivamente em virtude do desempenho de uma função, as virtudes de tais objetos consistirão nas características que pro­ movem ou que constituem o bom desempenho da função. A questão pode ser esclarecida supondo que o que estamos julgan­ do é o desempenho do objeto, não o objeto. Imagine que esteja­ mos julgando um extintor de incêndio. Para fazer isso nós o observamos sendo empregado para apagar um incêndio e então julgamos seu desempenho. Determinadas características do desempenho contam como virtudes (e.g., apagar o fogo rapida­ mente, causar poucos danos ao patrimônio, não emitir gases perigosos, baixo consumo de substâncias químicas caras, etc.). Note que algumas das expressões empregadas para especificar o padrão {e.g., “danos” e “perigosos”) são elas mesmas expres­ sões de valor; indicam que a especificação do padrão não está completa em si mesma, mas inclui “remissões” a padrões para a avaliação, respectivamente, do estado de conservação do patri­ mônio e do efeito de gases sobre o corpo humano. Seria impos­ sível especificar completamente o padrão sem ter, para propósi­ tos de referência, uma especificação de todos os outros padrões aos quais é necessário fazer referência. Aristóteles1dá exemplos de tais remissões em que os padrões são dispostos hierarquica­ mente, sendo as remissões todas na mesma direção. Não parece evidente que necessitem ser dispostos dessa forma, mas seria se o fossem. Agora, o que devemos observar, para nossos presentes ob­ jetivos, sobre a lista acima, de virtudes no desempenho do ex­ tintor de incêndio, é que se trata simplesmente de uma lista de virtudes, não diferindo logicamente da lista de virtudes de uma classe de objetos que não têm uma função. Compare-a, por exemplo, com a lista de virtudes de um bom banho. Um bom banho é bom instrumentalmente (porque contribui para a lim­ peza) e intrinsecamente (pois não tomaríamos tantos banhos se nosso único propósito ao tomá-los fosse ficarm os limpos). Ignoremos no momento a bondade instrumental do banho e

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concentremo-nos em sua bondade intrínseca. Para ser intrinsecamente bom, um banho tem de estar dentro de uma determina­ da faixa de temperatura, que tem de ser mantida por toda a sua duração, a banheira deve estar acima de certo tamanho mínimo, que varia de acordo com o da pessoa, deve ter determinado for­ mato e deve estar cheia de água pura e limpa; deve haver sabo­ nete de suavidade acima de um determinado grau (e.g., não conter abrasivos ou cáusticos livres) - e o leitor pode aumentar a lista conforme seu gosto. Nessa especificação tentei evitar referências a outros padrões, mas não fui inteiramente bem sucedido, e.g., “água lim pa” significa “água em que não há sujeira”, e o que deve contar como sujeira é uma questão de avaliação. Assim, mesmo quando estamos lidando com a bon­ dade intrínseca não podemos evitar referências cruzadas e, por­ tanto, não é a necessidade destas que torna a bondade instru­ mental. Percebemos que em ambos os casos - o extintor de incên­ dio e o banho - temos um padrão ou lista de virtudes e aprova­ mos objetos que possuem essas virtudes. No caso do extintor de incêndio, aprovamos diretamente seu desempenho e apenas indiretamente o objeto; no caso do banho pode-se dizer que aprovamos o objeto diretamente. Mas, na verdade, trata-se de uma distinção sem diferença; devemos dizer que “induzir calor em minha pele” é um desempenho do banho ou devemos dizer que “ser quente” é uma qualidade do banho? Similarmente, uma das virtudes exigidas de um bom abacaxi é que seja doce; a doçura é uma qualidade intrínseca do abacaxi ou é a disposição para produzir certas sensações desejáveis em mim? Quando pudermos responder tais questões, seremos capazes de traçar uma distinção precisa entre bondade intrínseca e instrumental Seria um erro, porém, dizer que não há diferença entre o que fazemos ao aprovar um extintor de incêndio e o que faze­ mos ao aprovar um pôr-do-sol. Nós os aprovamos por razões totalmente diferentes e, no caso do extintor de incêndio, todas estas razões referem-se ao que se espera que ele faça. Vimos

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acima que se “bom ” é seguido por uma palavra funcional (e.g., o nome de um instrumento), essa própria palavra nos dá urna especificação parcial das virtudes exigidas; ao passo que, em outros casos, essa especificação está ausente. Tudo o que estou defendendo é que o aparato lógico das virtudes e padrões que estivemos elaborando é suficientemente geral para abranger a bondade instrumental e a intrínseca. E perceber isso é o primei­ ro passo para perceber que pode ser geral o bastante também para abranger a bondade moral. Devemos nos voltar agora para esta questão. 9.2. Recapitulemos algumas das razões que levaram as pes­ soas a sustentar que o emprego da palavra “bom” em contextos morais é totalmente diferente de seu emprego em contextos nãomorais. A prim eira razão está ligada à diferença entre bom intrínseco e instrumental, e já tratamos disso. A segunda razão é que as propriedades que tornam um homem moralmente bom são obviamente diferentes das que tomam bom um cronómetro. Portanto, é fácil pensar que o significado da palavra “bom ” é diferente nos dois casos. Mas pode-se ver agora que essa é urna conclusão errônea. O significado descritivo com certeza é dife­ rente, como o significado descritivo de “bom” em “boa maçã” é diferente de seu significado em “bom cacto”; mas o significado avaliatório é o mesmo - em ambos os casos estamos aprovando. Estamos aprovando como um homem, não como um cronóme­ tro. Se insistíssemos em dizer que o significado de “bom” é diferente porque as virtudes exigidas em objetos de classes dife­ rentes são diferentes, terminaríamos com o que o Sr. Urmson denomina “um homónimo com tantos significados ambiguos quanto situações a que se aplicasse” 2. A terceira razão é esta: tem-se a impressão de que, de al­ gum modo, a “bondade moral” é mais digna, mais importante e, portanto, merece ter urna lógica toda própria. Essa alegação raramente é explícita, mas encontra-se por trás de boa parte do argumento e, em si, tem algo que a recomenda. Realmente atri­ buimos maior importância ao fato de um homem ser um bom

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homem do que ao fato de um cronômetro ser um bom cronôme­ tro. Não culpamos cronômetros por serem ruins (embora culpe­ mos seus fabricantes). Ficamos comovidos com a bondade moral de uma forma que poucas pessoas experimentam diante da bondade técnica ou de outros tipos. É por isso que muitos leitores terão se irritado por eu supor que o comportamento de “bom ” em “bom efluente de esgoto” pode ter algum interesse para o filósofo moral. Temos de perguntar, portanto, por que sentimos isso e se o fato de assim sentirmos torna necessária uma explicação inteiramente diferente da lógica de “bom” nos dois casos. Comovemo-nos com a bondade dos homens porque somos homens. Isso significa que a aceitação de um juízo, de que tais e tais atos de um homem são bons em certos tipos de circunstân­ cias, envolve a aceitação do juízo de que seria bom, se estivésse­ mos em circunstâncias semelhantes, agir da mesma forma. E já que poderíamos ser colocados em circunstâncias semelhantes, somos tocados profundamente pela questão. Somos tocados menos profundamente, deve-se admitir, pela questão de se foi um ato mau de Agamenon sacrificar Ifigênia, do que pela ques­ tão de se foi um ato mau da Sra. Smith viajar de trem sem pagar sua passagem, pois não é provável que fiquemos na posição de Agamenon, mas a maioria de nós viaja de trem. É provável que a aceitação de um juízo moral sobre o ato da Sra. Smith tenha uma influência mais estreita sobre nossa conduta futura do que a aceitação de um juízo sobre o ato de Agamenon. Mas nunca nos imaginamos transformados em cronômetros. Essas observações são confirmadas, até certo ponto, pelo comportamento de técnicos e artista§. Como Hesíodo assina­ lou, essas pessoas efetivamente se comovem com suas respecti­ vas bondades não-morais da maneira como as pessoas comuns se comovem com questões morais: “Oleiros ficam zangados com oleiros, carpinteiros com carpinteiros, mendigos com mendigos e poetas com poetas”3. A competição comercial não é a única razão - pois é possível competir sem maldade. Quando

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um arquiteto, por exemplo, diz da casa de outro arquiteto, com sentimento, “É uma casa projetada de forma totalmente erra­ da”, a razão para o sentimento é que se admitisse que a casa era bem projetada, estaria admitindo que, ao evitar em seu próprio trabalho características como as do projeto em questão, ele estava errado; e isso poderia significar alterar toda a sua manei­ ra de projetar casas, o que seria trabalhoso. Além disso, não podemos deixar de ser homens, como podemos deixar de ser arquitetos ou deixar de fazer ou de usar cronômetros. Já que é assim, não há como evitar as conseqüên­ cias (muitas vezes dolorosas) de conformarmo-nos aos juízos morais que fazemos. O arquiteto que foi forçado a admitir que a casa de um rival era melhor do que qualquer coisa que ele tinha feito ou poderia fazer talvez ficasse abalado, mas, como último recurso, poderia tornar-se um barman. Porém, se admito que a vida de São Francisco foi moralmente melhor que a m inha e com isso queira realmente exprimir uma avaliação, não há nada a fazer a não ser tentar ser como São Francisco, o que é penoso. É por isso que a maior parte de nossos juízos morais sobre os santos são meramente convencionais - nunca temos a intenção de que sejam guias na determinação de nossa conduta. Além disso, no caso de diferenças sobre moral é muito difícil - e, em casos em que o efeito sobre nossa própria vida é profundo, impossível - , dizer “É tudo uma questão de gosto; admitamos a divergência”; pois admitir a divergência só é pos­ sível quando podemos estar seguros de que não seremos força­ dos a fazer escolhas que afetarão radicalmente as escolhas de outras pessoas. Isso é especialmente verdadeiro quando se tem de fazer escolhas cooperativamente; deve-se salientar, contudo, que, embora a m aior parte das escolhas morais sejam dessa espécie, esse tipo de situação não é peculiar à moral. Os mem­ bros da expedição Kon-tiki não poderiam ter admitido diver­ gência sobre como construir sua jangada, e famílias que com­ partilham uma cozinha não podem admitir divergência sobre sua organização. Mas, embora geralmente possamos deixar de

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construir jangadas ou de compartilhar cozinhas, não podemos deixar de viver em sociedades com outras pessoas facilmente. Homens que vivem em completo isolamento talvez possam admitir divergência sobre moral. De qualquer forma, parece que comunidades sem contato estreito podem admitir divergên­ cia sobre algumas questões morais sem inconveniente efetivo. Dizer isso, é claro, não é necessariamente sustentar algum tipo de relativismo moral, pois as comunidades podem admitir divergência sobre ser a terra redonda ou não. Admitir a diver­ gência é dizer, na prática, “Divergiremos sobre esta questão, mas não nos zanguemos e nem briguemos por causa disto”, não é dizer “Divergiremos, mas tratemos de não divergir”, pois isto constituiria um a impossibilidade lógica. E, portanto, se duas comunidades admitissem divergência sobre, digamos, a conve­ niência moral da legalização do jogo em seus territórios respec­ tivos, aconteceria o seguinte: eles diriam “Continuaremos a sustentar, um de nós que é errado legalizar o jogo, e o outro que não é errado; mas não nos zangaremos com as leis do outro, nem buscaremos interferir na sua administração dessas leis” . E a mesm a coisa poderia ser feita no tocante a outras questões que não o jogo, contanto que o que cada comunidade fizesse tivesse pouco efeito fora de suas próprias fronteiras. Tais acor­ dos não funcionarão, porém, se uma comunidade sustentar que é um dever moral evitar determinadas práticas onde quer que ocorram. Vale a pena considerar tal caso a fim de contrastá-lo com o estado de coisas mais usual; normalmente, os juízos morais que fazemos e aos quais nos mantemos fiéis afetam profundamente a vida de nossos vizinhos; e isso, em si, basta para explicar a posição peculiar em que os situamos. Se acrescentamos a isso a questão lógica, já mencionada, de que os juízos morais sempre têm uma possível influência sobre nossa conduta, já que não podemos aceitá-los, no sentido mais pleno do termo, sem nos conformarmos a eles (que isso é uma tautologia ficará patente em 11.2), então não é necessária nenhuma explanação adicional

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da condição especial da moral. Essa condição especial não requer uma lógica especial que a sustente; ela resulta do fato de que estamos empregando o aparato comum da linguagem do valor para aprovar ou condenar as ações mais íntimas de nós mesmos e de nossos semelhantes. Podemos acrescentar que a “emotividade” de boa parte dos enunciados morais, que alguns pensam ser a essência da linguagem avaliatória, é somente um sintoma - e muito pouco confiável - de um uso avaliatório das palavras. A linguagem moral é freqüentemente emotiva, sim­ plesmente porque as situações nas quais é tipicamente usada são situações que muitas vezes nos afetam profundamente. Um dos usos principais da comparação que venho traçando entre lingua­ gem de valor moral e não-moral é esclarecer que as característi­ cas lógicas essenciais das palavras de valor podem estar presen­ tes onde as emoções não estão marcadamente envolvidas. Pode-se objetar que minha explicação da matéria não ofere­ ce meios para distinguir juízos prudenciáis como “Nunca é uma boa idéia apresentar-se como voluntário para qualquer coisa no Exército” de juízos morais propriamente ditos como “Não é bom quebrar um a promessa”. Porém as considerações forneci­ das anteriormente (8.2) permitem-nos distinguir satisfatoria­ mente essas duas classes de juízos. Pelo contexto, é evidente que, no segundo caso, estamos aprovando dentro de uma classe de comparação diferente, e exigindo um conjunto de virtudes diferente. Algumas vezes aprovamos um ato dentro da classe de atos que tem um efeito sobre a felicidade futura do agente; às vezes aprovamos um ato dentro da classe de atos indicativa do caráter moral do agente, isto é, aqueles atos que mostram se ele é ou não um bom homem - e a classe de comparação “homem” neste contexto é a classe “homem que se deve tentar imitar” (12.3). Qual desses estamos fazendo é sempre claro a partir do contexto e, quase sempre, existe também uma diferença verbal adicional, como no exemplo citado. Deve-se admitir, porém, que ainda há muita pesquisa a ser feita sobre as diferentes clas­ ses de comparação em que aprovamos pessoas e atos.

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Quando empregamos a palavra “bom” para aprovar moral­ mente, estamos sempre direta ou indiretamente aprovando pes­ soas. Até mesmo quando usamos a expressão “bom ato” ou ou­ tras como ela, a referência é indiretamente a personagens hu­ manas, Isso, como foi assinalado várias vezes, constitui uma diferença entre as palavras “bom ” e “correto” . Portanto, ao falar de bondade moral, falarei somente da expressão “homem bom ” e de expressões similares. Temos de considerar se esta expressão tem as mesmas características lógicas que os usos não-morais de “bom” que estivemos discutindo, lembrando que, evidentemente, “homem” em “homem bom” normalmente não é uma palavra funcional e nunca o é quando se dá uma aprovação moral. 9.3. Primeiramente, tomemos a característica de “bom ” que foi denominada superveniência. Suponha que digamos “São Francisco foi um homem bom”. É logicamente impossível dizer isso e sustentar ao mesmo tempo que pode ter existido outro homem, colocado precisamente nas mesmas circunstân­ cias de São Francisco, que se comportou exatamente da mesma maneira, mas que diferia de São Francisco somente neste as­ pecto: não era um homem bom. Estou supondo, é claro, que o juízo é feito, em ambos os casos, sobre toda a vida do sujeito, “interior” e pública. Este exemplo é similar nos particulares relevantes ao de 5.2. Em seguida, a explicação dessa impossibilidade lógica não reside em nenhuma forma de naturalismo; não se trata da exis­ tência de alguma conjunção C de características descritivas, de tal modo que dizer que um homem tem C implique que ele seja moralmente bom. Pois, se fosse assim, não poderíamos aprovar nenhum homem por ter essas características; poderíamos aoenas dizer que ele as tinha. Não obstante, o juízo de que um homem é moralmente bom não é logicamente independente do juízo de que ele tem outras características que podemos deno­ minar virtudes ou características que tornam bom; há uma rela­

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ção entre eles, embora não seja uma relação de implicação ou de identidade de significado. Nossa discussão prévia de bondade não-moral ajuda-nos a entender qual é a relação. É que um enunciado das característi­ cas do homem (a premissa menor ou factual) juntam ente com uma especificação de um padrão para julgar homens m oral­ mente (a prem issa maior), implica um juízo moral a respeito dele. E os padrões morais têm muitas das características que encontramos em outros padrões de valor. “Bom ”, tal como usado em moral, tem um significado descritivo e um avaliató­ rio, e este último é primário. Conhecer o significado descritivo é saber por que padrões o falante está julgando. Tomemos um caso em que o padrão é bem conhecido. Se um pastor diz de uma menina que ela é uma boa menina, podemos formar uma idéia perspicaz de qual é sua descrição; podemos esperar que ela vá à igreja, por exemplo. Portanto, é fácil cair no erro de supor que, ao dizer que é uma boa menina, o pastor queira dizer simplesmente que ela tem essas características descritivas. É bem verdade que parte do que o pastor quer dizer é que a m enina tem essas características; mas espera-se que isso não seja tudo o que quer dizer. Ele também pretende aprová-la por ter essas características, e essa parte do significado é primária. A razão por que sabemos, quando um pastor diz que uma meni­ na é boa, que tipo de menina é ela, como se comporta normal­ mente, etc., é que pastores geralmente são coerentes na forma de conferir aprovação. É por ser usada coerentemente por pas­ tores para aprovar determinadas espécies de comportamento em meninas que a palavra vem a ter uma força descritiva. A essa paródia maldosa pode se acrescentar outra. Se dois majores do Exército Indiano da velha escola estivessem con­ versando sobre um recém-chegado no Rancho, e um deles dis­ sesse “Ele é um homem tremendamente bom”, poderíamos imaginar que o subalterno a que se fez referência jogava pólo, sangrava porcos com élan e não era íntimo de indianos cultos. A observação, portanto, teria comunicado informação a al­

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guém versado na cultura da índia Britânica. Teria sido informa­ tiva porque oficiais do Exército Indiano estavam acostumados a conferir aprovação, ou o contrário, segundo padrões coeren­ tes. Porém não pode ter sido informativa no início. O padrão deve ter se firmado por m eio de alguns avaliadores pioneiros; quando o Exército Indiano era jovem não havia nenhum padrão estabelecido para o comportamento de subalternos. O padrão foi estabelecido por oficiais fazendo juízos aprovatórios que não eram, de modo nenhum, afirmações de fato ou informativos, no sentido de que era a m arca de um homem bom, por exemplo, jogar pólo. Para esses pioneiros, a sentença “Plunkett é um homem bom” não implicava de maneira nenhuma a sentença “Plunkett joga pólo” ou vice-versa. A primeira era uma expres­ são de aprovação, a outra uma afirmação de fato. Mas podemos supor que, depois de gerações de oficiais terem sempre aprova­ do pessoas que jogavam pólo, passou-se a pressupor que se um oficial dissesse que outro oficial era um homem bom, devia querer dizer, entre outras coisas, que ele jogava pólo; e, assim, a palavra “bom ”, tal como empregada por oficiais do Exército Indiano, veio a ser, nesse âmbito, descritiva, sem perder seu significado avaliatório primário. O significado avaliatório, é claro, pode perder-se ou, pelo menos, perder a força. É da essência de um padrão ser estável, mas o perigo constante é que a estabilidade pode transformar-se em super-rigidez e ossificação. É possível dar muita ênfase à força descritiva e pouca à avaliatória; os padrões só perm ane­ cem correntes quando os que fazem juízos de acordo com eles têm inteira certeza de que, seja o que for que possam estar fa­ zendo além disso, estão avaliando (i.e., realmente buscando orientar a conduta). Suponha que o Exército Indiano tome-se incapaz de usar as palavras “homem bom” de qualquer outro modo que não o descritivo para designar “homem que joga pólo, etc.”; terão caído então num tipo de naturalismo ingênuo e serão incapazes de aprovar subalternos por jogar pólo; e isso significa que não serão capazes de transmitir a novas gerações de oficiais

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seus padrões estabelecidos. Se um novo subalterno teve, antes de sua promoção, os padrões de um bancário com um interesse tímido pelo socialismo, esses são os padrões que continuará a ter, pois seus oficiais superiores terão perdido os meios lingüís­ ticos de ensinar-lhe quaisquer outros. E, ainda que os oficiais mais antigos estejam usando a palavra “bom” avaliatoriamente, a extrema rigidez descritiva de seus padrões pode levar o novo subalterno a entender a palavra, como eles a utilizam, descritiva­ mente. E assim que palavras de valor adquirem aspas. 9.4. Que o significado descritivo da palavra “bom” na moral, como alhures, é secundário em relação ao avaliatório, pode ser percebido no exemplo seguinte. Suponhamos que um missionário, armado com um livro de gramática, desembarque numa ilha de canibais. O vocabulário de seu livro de gramática dá-lhe o equivalente, na língua dos canibais, da palavra “bom”. Suponhamos que, por uma coincidência extraordinária, a pala­ vra seja “bom ” . E suponhamos também que seja realmente o equivalente - que seja, como diz o Oxford English Dictionary, “o adjetivo mais geral de aprovação” em sua língua. Se o m is­ sionário tiver dominado seu vocabulário, ele pode, contanto que use a palavra avaliatoriamente e não descritivamente, comunicar-se com eles sobre moral bastante satisfatoriamente. Eles sabem que, quando o missionário usa a palavra, está apro­ vando a pessoa ou objeto ao qual a aplica. A única coisa que eles acharão estranha é que ele a aplica a pessoas inesperadas, pessoas que são dóceis e gentis e que não colecionam grandes quantidades de escalpos, ao passo que eles estão acostumados a aprovar pessoas ousadas e belicosas, e que colecionam mais escalpos que a média. Mas os canibais e o missionário não enfrentam nenhum mal-entendido sobre o significado, no sen­ tido avaliatório, da palavra “bom”; é a palavra que se usa para aprovar. Se enfrentassem tal mal-entendido, a comunicação moral entre eles seria impossível. Temos portanto uma situação que pareceria paradoxal para alguém que pensasse que “bom” (quer em nossa língua, quer na

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língua dos canibais) fosse uma palavra de qualidade como “ver­ m elho”. Mesmo que as qualidades das pessoas aprovadas pelo missionário nada tivessem em comum com as qualidades apro­ vadas pelos canibais, ainda assim ambos saberiam o que a pala­ vra “bom ” significa. Se “bom ” fosse como “vermelho”, isso seria impossível, pois, então, a palavra dos canibais e a palavra de nossa língua não seriam sinônimas. Se fosse assim, então, quando o missionário dissesse que pessoas que não coleciona­ vam escalpos eram boas (em nossa língua), e os canibais disses­ sem que pessoas que colecionavam muitos escalpos eram boas (na língua canibal), eles não estariam discordando, porque em nossa língua (pelo menos tal como falada pelo missionário) “bom” significaria, entre outras coisas, “não cometer assassina­ to”, ao passo que, na língua dos canibais, “bom” significaria algo bem diferente, entre outras coisas, “produtor do maior número de escalpos”. Como, em seu significado avaliatório pri­ mário, “bom” não significa nenhuma dessas duas coisas, mas é, em ambas as línguas, o adjetivo de aprovação mais geral, o mis­ sionário pode usá-lo para ensinar a moral cristã aos canibais. Suponha, porém, que a missão do missionário seja bem sucedida. Então, os antigos canibais passarão a aprovar nas pes­ soas as mesmas qualidades que o missionário, e as palavras “homem bom” passarão a ter um significado descritivo mais ou menos comum. O perigo, então, é que os canibais podem, depois de um a ou duas gerações, pensar que aquele é o único tipo de significado que elas têm. “Bom”, nesse caso, significa­ rá para eles simplesmente “fazer o que diz o Sermão da M ontanha” ; e podem chegar a esquecer que é uma palavra de aprovação; não se darão conta de que opiniões sobre a bondade moral têm um a influência sobre o que eles mesmos devem fazer. Seus padrões estarão então em perigo mortal. Um comu­ nista, ao desembarcar na ilha para converter as pessoas ao modo de vida dele, pode até tirar proveito da ossificação de seus padrões. Ele pode dizer: “Todos esses ‘bons’ cristãos missionários, funcionários coloniais e os outros - estão sim-

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plesmente enganando vocês em benefício próprio.” Isso seria empregar a palavra descritivamente com um toque de ironia; e ele não poderia fazer isso de forma plausível a menos que os padrões dos cristãos tivessem se tornado consideravelmente ossificados. Algumas das manobras de Trasimaco no primeiro livro de A República de Platão são muito semelhantes a essa. Se o leitor voltar a 4.6, verá que tais vicissitudes da palavra “bom ” refletem acuradamente a espécie de desenvolvimento moral lá descrito. Os princípios ou padrões morais são primei­ ramente fixados, depois tornam-se exageradamente rígidos e as palavras usadas para referência a eles tornam-se preponderan­ temente descritivas; sua força avaliatória tem de ser dolorosa­ mente recuperada até que os padrões estejam fora de perigo. No curso da recuperação, os padrões adaptam-se a circunstâncias modificadas; realiza-se a reforma moral, e seu instrumento é o uso avaliatório da linguagem de valor. O remédio, na verdade, contra a estagnação e a deterioração moral é aprender a usar nossa linguagem de valor para o propósito para o qual foi idea­ lizada; e isso envolve não meramente um a lição sobre falar, mas uma lição sobre fazer o que aprovamos, pois, a menos que estejamos preparados para fazer isso, não estaremos fazendo mais do que repetir um padrão convencional sem crer nele.

TERCEIRA PARTE

“Dever” “Não estamos discutindo nenhum assunto trivial, mas como devemos viver.” PLATÃO, A República, 352 d

Capítulo 10

“Dever” e correto”

10.1. Até aquí, ao discutir as palavras empregadas no dis­ curso moral, restringi-me, em grande parte, à palavra “bom” , porque as características para as quais desejava chamai' a aten­ ção são mais facilmente ilustradas pelo comportamento dessa palavra. Ê necessário, porém, explicar alguma coisa sobre outras palavras usadas no discurso moral ou, pelo menos, sobre as mais gerais delas; e isto toma-se mais urgente pelo fato de alguns filósofos morais terem traçado uma distinção muito rígida entre “bom” e outras palavras morais como “correto”, “dever” [verbo] e “dever” [subst]. Veremos que é importante traçar essa distinção, mas que isso não nos impede de oferecer uma descrição da relação lógica que indubitavelmente existe entre “bom” e outras palavras morais; e, nesta parte de nossa investigação, como em outras, o paralelismo entre empregos morais e não-morais dessas palavras será útil. Ninguém minimamente familiarizado com seus empregos poderia sustentar que “correto” e “bom”, por exemplo, signifi­ cam a mesma coisa em qualquer de seus contextos. Para come­ çar, há diferenças importantes em seu comportamento gramati­ cal. Falamos de “um bom X ”, mas de “o X correto”; e, geral­ mente, consideramos bastante natural falar da existência de um grande número de bons XX, mas esquisito (na maioria dos con­ textos) falar da existência de um grande número de X X corre­

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tos - embora, é claro, possamos falar que a existência de um grande número de XX é “all right”*. Não é surpreendente, por­ tanto, que ■‘correto” (“r i g h t não tenha comparativo nem superlativo no inglês moderno, mas que “bom ” (“good”) os tenha. Há também muitos substantivos que “bom” pode quali­ ficar e “correto” não, e vice-versa. Assim, podemos falar de “boa arte”, mas não de “arte correta”, e de “bom drible”, mas não de “drible correto”; por outro lado, podemos dizer “Você não tocou a nota correta”, mas “boa” não poderia substituir “correta”. Como a obra do Professor J. L. Austin?ensinou a todos que tiveram o privilégio de ser instruídos em seus méto­ dos, tais peculiaridades podem ser - embora nem sempre sejam - indicativas de diferenças lógicas subjacentes. Por outro lado, também é verdade que existem muitos tipos de contexto nos quais podemos usar expressões contendo qual­ quer dessas palavras, praticamente com a mesma espécie de propósito. Assim, ao ensinar alguém a dirigir, se ele não execu­ tar uma manobra que me satisfaça, posso dizer “Você não fez a manobra muito bem” ou “Você não a fez de maneira inteira­ mente correta”, sem muita distinção de significado, Mesmo nesse contexto, porém, há diferenças; eu poderia dizer “Você fez aquilo bem, mas ainda não está inteiramente correto”. A ocorrência de ambas as palavras nessa espécie de contexto de­ veria nos predispor a pensar que pelo menos algumas das coi­ sas que eu disse sobre a fenção prescritiva de 'bornf podem ser aplicáveis também a “correto”, embora devamos esperar tam ­ bém encontrar diferenças. . A mesma espécie de distinções pode ser traçada entre “bom” e “dever”. Esses também podem ser empregados em contextos muito semelhantes, embora também existam diferen­ ças. Podemos dizer “Você devia ter puxado a embreagem mais de­ vagar” ou “Seria melhor se você tivesse puxado a embreagem devagar”; e podemos dizer “Você não fez aquilo nada bem feito” * Ver N .tlo T . C ap itu lo 12.

“DEVER”

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ou “Você não fez aqiiilo como devia”. Por outro lado, podemos dizer “Você fez aquilo bem, mas ainda não inteiramente como devia ter feito”. Em geral, “dever” comporta-se mais como “cor­ reto” do que como “bom”, e, quando formularmos mais precisa­ mente as relações lógicas entre as três palavras, descobriremos que, enquanto as relações entre “correto” e “dever” podem ser caracterizadas de forma comparativamente simples, as relações entre “bom” e “dever” são muito mais indiretas. 10.2. Apesar dessas diferenças, há similaridades suficien­ tes entre “bom ”, “correto” e “dever” para que as classifique­ mos todas como palavras de valor. Para ilustrar essas similari­ dades será suficiente chamar a atenção para a maneira como as características principais de “bom”, que já observamos, estão também presentes em “correto” e “dever”. Antes de tudo, per­ mitam-me demonstrar que “correto” e “dever” compartilham o que denominei o caráter “superveniente” de “bom”. Tomarei um exemplo moral e um não-moral de cada palavra. Se eu dis­ sesse “Smith agiu corretamente ao dar o dinheiro a ela, mas podia ter dado o dinheiro a ela e, em todos os outros aspectos, agido similarmente, exceto por seu ato não ser correto”, provo­ caria o comentário “Mas como a correção do ato de Smith poderia desaparecer assim?” Se o ato, motivos, circunstâncias, etc., fossem todos os mesmos, então você seria obrigado, logi­ camente, a julgá-lo correto no caso hipotético como o fez no caso real. A ação real não poderia ter sido correta e a ação hipo­ tética incorreta, a menos que houvesse alguma outra diferença entre as ações, suas circunstâncias, seus motivos ou alguma outra coisa. Ações não podem diferir somente quanto à sua cor­ reção, assim como quadros ou qualquer outra coisa não podem diferir apenas quanto à sua bondade; e essa impossibilidade é uma impossibilidade lógica, que se origina da forma e dos pro­ pósitos com que empregamos essas palavras. De forma semelhante, não podemos dizer: “Você mudou a marcha daquela vez no momento absolutamente correto, mas podia tê-la mudado no mesmo momento, todas as outras cir­

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cunstâncias podiam ter sido as mesmas, só que não teria sido o momento correto”. Isso mostra que essa característica não é peculiar aos usos morais da palavra. E, similarmente, com “de­ ver” ; não posso dizer “Smith devia ter dado o dinheiro a ela, mas podia não ter sido assim, embora todo o resto fosse igual”; e não posso dizer “Você devia ter mudado a marcha antes, mas podia não ter sido assim, embora tudo o mais fosse igual”. Já sugeri por que não podemos dizer esse tipo de coisa; tem a ver com a universalidade velada das sentenças que contêm essas palavras. Observemos brevemente, porém, que a razão não é, como se poderia pensar, que as sentenças que contêm as palavras “correto”, “dever” ou seus opostos sejam implicadas por algum conjunto de sentenças que exponham em termos des­ critivos os fatos ou circunstâncias aos quais estamos nos referin­ do. No caso de “dever” seria por demais inadmissível defender isso. Se fosse assim, então, para tomar um exemplo particular, “Você deve diminuir a marcha quando diminuir a marcha permi­ tir que o motor funcione mais suavemente” pode ser implicada pela sentença analítica “Diminuir a marcha permitiria que o motor funcionasse mais suavemente quando permitisse que o mo­ tor funcionasse mais suavemente” e, portanto, poderia ser ela mesma analítica, o que, no uso comum, ela não é. É uma razão para diminuir a marcha o fato de que isso permitiria que o motor funcionasse mais suavemente, mas o fato de que permitiria que o motor funcionasse mais suavemente não implica (ie., não nos permite inferir em virtude unicamente de seu significado) que devemos diminuir a marcha. E o mesmo é verdadeiro para qual­ quer outra sentença factual que possamos escolher e para todos os usos prescritivos da palavra “dever” . Assim, se um autor sobre a maternidade nos informa que dizer que um bebê deve ter um determinado peso significa o mesmo que dizer que essa é a média dos pesos verificados numa amostra aleatória de bebês de mesma idade, ficaremos em alerta. Com “correto”, o risco de naturalismo é talvez mais insidioso; mas, agora, já devemos estar imunes a ele. Se “Agora é o

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momento correto para mudar a marcha” fosse implicado por uma sentença descritiva da forma “Agora ocorre C”, então dizer “Quando C ocorre é o momento correto para mudar a marcha” seria enunciar uma tautologia, o que nunca é, qualquer que seja a expressão descritiva que coloquemos no lugar de C. E isso é ainda mais óbvio no caso de empregos morais. Suponha que al­ guém sustentasse que “Não é correto fazer A” é implicado por “A foi proibido pelo soberano de nosso Estado”, teríamos ape­ nas de assinalar que, nesse caso, “Não é correto fazer o que foi proibido pelo soberano de nosso Estado” seria implicação da sentença analítica “O que foi proibido pelo soberano de nosso Estado foi proibido pelo soberano de nosso Estado” e, portanto, seria ela mesma analítica, o que, no uso comum, ela não é. Mas é desnecessário elaborar mais esse argumento familiar. A razão, então, para o caráter “superveniente” das palavras “correto” e “dever” não é da espécie que sugere o naturalismo. Temos, portanto, de inquirir o que mais poderia ser a razão. A fim de conduzir essa investigação, temos de colocar as palavras em seu cenário lingüístico próprio. Elas são usadas primaria­ mente para dar conselhos ou instruções ou, em geral, para orien­ tar escolhas. No que se segue, falarei principalmente do verbo “dever” , mas, mais adiante, perceberem os que um a análise de “dever” pode ser prontamente expandida de forma a abranger a palavra “correto”. Assim como ocorre com a palavra “bom”, não distinguiré! de início entre usos morais e não-morais, mas lidarei com as características que são comuns aos dois. 10.3. A palavra “dever” é usada para prescrever, mas já que a prescrição pode ser de mais de um tipo, é necessário fazer diversas distinções. Suponha que alguém esteja perguntando a si mesmo, ou nos perguntando, “Que devo fazer?” ou alguma outra questão dessa forma geral. Para ajudar tal pessoa a tomar uma decisão, podemos dizer pelo menos três tipos diferentes de coisas. Distingui-las-ei pelos termos “prescrições do tipo A”, “prescrições do tipo B” e “prescrições do tipo C’\ Os seguintes são exemplos do tipo A, que são imperativos singulares:

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A ,, Use a manivela de partida. A2. Arrume almofadas de urna cor diferente. A3. Devolva o dinheiro a ele. E característico de tais prescrições aplicarem-se direta­ mente apenas à ocasião em que são oferecidas. Isso não é ver­ dadeiro para as prescrições do tipo B, das quais as seguintes são exemplos: Bj. Se o motor não der partida imediatamente na ignição automática, deve-se sempre usar a manivela de parti­ da. B2. Não se deve nunca colocar almofadas carmim sobre um estofamento escarlate. B3. Deve-se sempre devolver o dinheiro que se prometeu devolver. As prescrições do tipo B aplicam-se mais a um tipo de oca­ sião que diretamente a uma ocasião individual. O terceiro tipo de prescrição é o tipo C: C ,. Você deve usar a manivela de partida. C2. Você deve arrumar almofadas de uma cor diferente. C3. Você deve devolver o dinheiro a ele. Uma prescrição do tipo C tem algumas das características dos tipos A e B: aplica-se diretamente a uma ocasião indivi­ dual, mas também invoca ou recorre a alguma prescrição mais geral do tipo B. Assim, se digo C b estou invocando algum prin* cípio geral como Bj. Evidentemente, poderia não ser o próprio B, que eu estaria invocando; poderia ser B u - “Quando a bate­ ria estiver fraca, deve-se sempre usar a manivela de partida”, ou B 12 - “Para dar partida no motor frio de manhã, deve-se sempre usar a manivela de partida”. Qual desses princípios que estou invocando poderia ser inferido pela pergunta “Por que devo

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usar a manivela de partida?” Portanto, ao enunciar uma prescri­ ção do tipo C, parecemos sugerir (num sentido vago) que esta­ mos invocando algum princípio do tipo B - embora possa não ficar claro imediatamente, mesmo para nós, qual é exatamente esse princípio. Não é o que ocorre com as prescrições do tipo A; se digo A 1; posso estar meramente prescrevendo para esta ocasião particular (talvez porque eu tenha pensado “Vamos ver se ele sabe como dar a partida com a manivela”), sem pensar na existência de um princípio geral para todas as ocasiões desse tipo. E verdade que se me pedem que justifique A h ou dê razões para ela, posso recorrer a um princípio, mas, mesmo assim, as prescrições do tipo A implicam princípios do tipo B somente no sentido mínimo de que, se alguém nos dá um tal conselho, geralmente podemos assumir que pode nos dar alguma razão geral para ele, ao passo que o tipo C implica o tipo B no sentido mais forte de que seria logicamente ilegítimo dar uma prescri­ ção do tipo C negando ao mesmo tempo que houvesse qualquer princípio de que dependesse. Com “logicamente ilegítimo” quero dizer que meu uso da palavra “dever” seria tão excêntrico que as pessoas ficariam se perguntando o que pretendo dizer com isso. E hora de considerar os juízos de “dever” post eventum. São juízos da forma: Você devia ter usado a manivela de partida. D2. Você devia ter arrumado almofadas de uma cor dife­ rente. D v Você devia ter devolvido o dinheiro a ele. É evidente que estes têm a mesma espécie de relação com os princípios do tipo B que têm as prescrições do tipo C. “Você devia ter usado (então)...” é o pretérito de “Você deve usar (agora)...”. Ambos dependem da mesma forma d e “ D c v u - n c sempre usar...” . Ambos, além do mais, têm uma outra funçíUi; podem ser usados para instruir sobre a regra geral. Aprende*-

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mos pelo processo de generalização a partir de exemplos; o ins­ trutor dá um exemplo de urna coisa particular que devíamos ter feito ou devemos fazer e, depois de apontados vários exemplos desse tipo, aprendemos o que devemos fazer em todas as cir­ cunstâncias de um dado tipo. Os exemplos podem ser aponta­ dos quer ante eventum, como em “Você deve usar...” , quer post eventum, como em “Você devia ter usado...” . Quando reconhecemos que um ato que fizemos entra em conflito com um princípio que nos determinamos a observar, dizemos “Eu não devia ter feito isso”. Quando reconhecemos que um ato que cogitávamos fazer seria uma violação de tal princípio, dizemos “Não devo fazer isso”. Em ambos os casos, pode ser a primeira vez que pensamos sobre o princípio - pode até ser a primeira vez que alguém pensa no princípio; a decisão de princípio exprimida por essa sentença de “dever” pode ser inteiramente nova. É muitíssimo importante que possamos aprender sem que nos ensinem. A palavra “instruir”, usada acima, é evidentemente algo estreita. Acabamos de ver que o autodidatismo está incluído, mas, mesmo assim, a palavra “dever” não é empregada somen­ te no que podemos denominar situações “instrucionais”. Supo­ nha que eu diga “Eles não devem fazer mais desvios ao redor de Oxford” . Isso depende de algum princípio geral, tal como “Quando os números do movimento de tráfego mostram que todo o tráfego de uma cidade, exceto por uma pequena propor­ ção, é interno e que não poderia valer-se de um desvio, não se deve gastar grandes somas de dinheiro construindo um”. Não podemos, no sentido comum da palavra, falar aqui de “instruir sobre o princípio geral”, pois não é provável que a pessoa a que me dirijo seja meu aluno. Mas poderia ser - eu poderia estar dando uma aula sobre a localização de estradas - e as outras ocasiões nas quais eu empregaria tal sentença são suficiente­ mente similares ao tipo instrucional de situação para tornar a analogia bastante evidente. Em todos esses casos o objetivo é orientar as ações das pessoas no futuro.

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10.4, As razões por que temos princípios de “dever” gerais para atividades como direção, escolha de cores, planejamento rodoviário e comportamento moral são estas; em primeiro lugar, essas são atividades em que reaparecem continuamente circunstancias que nos forçam a responder - em ato se não em palavra - à pergunta “Que devo fazer?”; em segundo lugar, essas circunstâncias são classificáveis em tipos, cujos mem­ bros são suficientemente semelhantes para que uma resposta similar seja apropriada em todas as circunstâncias do mesmo tipo; e, em terceiro lugar, a menos que nos resignemos a ter um professor ao nosso lado, por toda a vida, para nos dizer exata­ mente o que fazer em cada ocasião, temos de aprender (com outros ou por nós mesmos) princípios para responder a essas questões. Tudo o que nos ensinam a fazer tem, como vimos, de ser redutível a princípios, embora esses possam ser “knowhows” difíceis de formular verbalmente e mais facilmente ensi­ nados através de exemplos do que de preceitos (4.3). Vimos, em conexão com a palavra “bom”, que a razão para sua superveniência é que ela é usada para ensinar ou afirmar ou, de outro modo, para chamar a atenção para um padrão de escolha entre objetos de uma determinada classe, e que o que eu disse sobre padrões poderia ter sido colocado também em termos de regras ou princípios de escolha, Não é surpreenden­ te, portanto, descobrir que “dever”, que é usado para um propó­ sito bastante semelhante, está sujeito à mesma restrição. A razão por que não podemos dizer as coisas que exemplifiquei é que fazê-lo seria tentar ensinar ou advogar ao mesmo tempo dois princípios mutuamente incoerentes. “Dever” também compartilha, como poderíamos esperar, as características de “bom ” que dizem respeito às relações entre suas forças descritiva e avaliatória ou prescritiva. É evidente que algumas sentenças que contêm o verbo “dever” têm força descritiva. Suponha que eu diga “Bem na hora em que devia estar chegando à peça, ele estava enfiado embaixo de seu carro a cinco milhas de distância”. Aqui, contanto que saibamos a

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que horas a peça começava, estamos tão acuradamente infor­ mados a respeito da hora quanto a respeito do lugar em que ele estava enfiado, Isso porque todos aceitamos o principio de que a hora em que devemos chegar a uma peça (a hora correta de chegar) é pouco antes de ela começar. Aqui também, portanto, a função descritiva ou informativa de sentenças de “dever” cres­ ce na proporção direta do grau em que o princípio é geralmente aceito ou do grau em que se sabe que é aceito. Porém sua fun­ ção primária não é dar informação, é prescrever, aconselhar ou instruir, e esta função pode ser desempenhada quando nenhuma informação está sendo transmitida. Assim, se estou ensinando um homem a dirigir e, em particular, a executar a manobra de fazer o carro andar quando está parado na subida de uma ladei­ ra, posso dizer “No momento em que você deve soltar o freio de mão, você pode ouvir o ruído do motor reduzir-se”. Isso nao lhe dá, como no caso anterior, nenhuma informação sobre quando ouvirá o ruído do motor reduzir-se; antes, diz a ele quan­ do deve soltar o freio de mao; é usado para ensinar-lhe uma das regras de direção, ao passo que, no caso anterior, teria sido esquisito se minha intenção fosse dizer ou ensinar a alguém uma regra sobre quando se deve chegar ao teatro. Essa mesma característica é encontrada em contextos mo­ rais. Suponha que eu pergunte “Em que m edida X está se empenhando neste semestre?” e obtenha a resposta “Não tanto quanto devia” ; essa resposta fornece-m e inform ação sobre o quanto X tem se empenhado porque sei o quanto se espera que uma pessoa nas circunstâncias de X se empenhe. Se, por outro lado, eu não estivesse familiarizado com os padrões de empenho correntes (e. g., por ser um estudante estrangeiro, che­ gado recentemente no país), alguém poderia procurar infor­ mar-me esses padrões dizendo “Se você quer saber o quanto um aluno deve se empenhar, observe X; X não está se empe­ nhando tanto quanto devia; portanto, você deve se empenhar mais do que ele, pelo menos” . Esse seria um uso predominan­ temente prescritivo.

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10.5. Temos a seguir de investigar se o que eu disse sobre os usos alegadamente “instrumental” e “intrínseco” da palavra “bom” e sobre imperativos simples “hipotéticos” pode ser es­ tendido a fim de lançar alguma luz sobre o problema análogo e igualmente controvertido dos chamados usos “hipotéticos” e “categóricos” de “dever”. Sem nos embrenharmos demais na terminologia tradicional, consideremos as seguintes sentenças, adaptadas de Kant por Prichard1:

(1 )“Você deve ministrar uma segunda dose” (dito a um aspirante a envenenador). (2) “Você deve dizer a verdade”. É evidente que a segunda sentença, na maioria das oca­ siões de seu emprego, expressa um juízo moral, e igualmente evidente que a primeira não. Não é, porém, igualmente eviden­ te, como diz Prichard e como Kant talvez sugira, que devemos concluir a partir disso que há “uma completa diferença de sig­ nificado” entre os dois usos da palavra “dever”, pois, nas sen­ tenças “Ele é um bom envenenador” e “Ele é um homem bom”, podemos distinguir entre as virtudes (no sentido em que venho usando o termo) indispensáveis num bom envenenador e as indispensáveis num homem bom, sem necessariamente distin­ guir dois significados da palavra “bom ”, exceto no sentido secundário de “significado”, em que perguntar o que “bom ” significa é simplesmente solicitar uma lista das virtudes. Pode ser que “dever” também tenha o mesmo significado, no sentido primário, nas duas sentenças acima, embora num caso seja exprimido um juízo moral, e no outro não. Pois na primeira sentença o contexto mostra-nos que os padrões que estão sendo aplicados (os princípios a que se refere) sao aqueles para enve­ nenar pessoas e, na segunda, assumimos que os princípios a que se refere são morais; mas, em cada um dos casos, a função do verbo “dever” é somente fazer referência a esses princípios e cumprir, em relação a eles, as outras funções delineadas acima.

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No caso do “envenenador”, saber que os princípios a que se refere são os do envenenamento é saber também algo - mas não tudo - sobre o que são eles: têm, pelo menos, de impor a execu­ ção de coisas tais que resultem em morte por envenenamento. Já que “envenenador” é uma palavra funcional no sentido defi­ nido acima (6.4), conhecer a classe de comparação é saber algo sobre as virtudes; por outro lado, tal não é o caso no tocante a (2). Porém isso não constitui uma diferença entre dois signifi­ cados da palavra “dever”; é uma diferença entre dois conjuntos de princípios. Temos de deduzir do contexto a que conjunto se faz referência, pois, já que “dever” não é um adjetivo como “bom”, não temos um substantivo ligado a ele (como “envene­ nador” ou “homem” nas sentenças citadas) que nos informe isso. Portanto, podemos estar equivocados em assumir que (2) é um juízo moral; a intenção pode ser apenas enunciar um juízo prudencial. Mesmo o juízo “Ele é um homem bom” pode nao ser um juízo moral, pois “homem” pode ser uma abreviação para “homem para ter ao seu lado numa luta” ou “homem numa festa” ou “homem que deve escalar para rebater primeiro”. Ao adivinhar qual desses padrões ou conjuntos de princípios está sendo invocado, não estamos ao mesmo tempo adivinhando o que “bom” ou “dever” significam (exceto no sentido secundá­ rio); sabemos muito bem o que significam. Tudo isso não significa que não exista nenhuma diferença importante entre princípios morais e princípios de envenena­ mento bem sucedido. Como vimos (9.2), não podemos deixar de ser homens e, portanto, os princípios morais, que são princí­ pios para a conduta de homens em condição de homens - e não de envenenadores, arquitetos ou rebatedores - não podem ser aceitos se não tiverem uma influência potencial sobre a manei­ ra de nos conduzirmos. Se digo a uma determinada pessoa “Você deve dizer a verdade”, evidencio a minha aceitação de um princípio de dizer a verdade no tipo de circunstâncias em que ela está, e posso encontrar-me, inevitavelmente, em meio a circunstâncias similares. Mas posso sempre escolher entre ado-

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tar ou não o envenenamento ou o críquete como profissão. Isso certamente torna o espirito em que consideramos as questões morais muito diferente daquele em que consideramos como devemos envenenar Jones ou construir uma casa para ele; mas a lógica da palavra “dever” não é marcadamente diferente nos dois casos. É verdade que em ( 2 ) acima, podemos substituir “você deve” por “é seu dever”, ao passo que em (1) não podemos. Isso porque o substantivo “dever” é restrito quanto às classes de comparação em que é utilizado para aprovar, é empregado quase exclusivamente para deveres morais, deveres jurídicos, deveres militares e outros deveres pertencentes a uma esfera particular. Similarmente, em inglês a palavra “brace” [par], embora sua lógica seja a mesma da palavra “pair” [p ar], é, em boa parte, restrita a aves de caça. Mas isso não afeta o que eu disse.

Capítulo 11

“Dever” e imperativos

11.1. Já que uma grande parte de minha argumentação depende da assunção, até aqui não inteiramente justificada, de que os;juí os de valor, se são orientadores da ação,' implicam' imperativos.? e já que essa assunção pode muito bem ser ques­ tionada, é tempo de examiná-la. Pode-se sustentar, por exem­ plo, que posso, sem contradição, dizer “Você deve fazer A, mas não faça” e que, portanto, não pode haver hipótese de implica­ ção; implicação, de qualquer modo, é uma palavra muito forte e, embora seja possível encontrar muitos que concordam que os juízos de valor são orientadores da ação em algum sen ti dp, pode-se sustentar que são orientadores de ação apenas no senti­ do em que mesmo simples juízos de fato podem ser orientado­ res de ação. Por exemplo, se digo “O trem está para sair”, isso pode orientar uma pessoa que queira embarcar para pegar seu lugar; ou, tomando um caso moral, se digo a uma pessoa que está pensando em dar algum dinheiro para um amigo suposta­ mente necessitado “A história que ele acabou de lhe contar é completamente falsa”, isso pode orientá-lo a tomar uma deci­ são moral diferente da que teria tomado se eu não dissesse nada. E, similarmente, pode-se sustentar que os juízos de valor, são orientadores da ação-num sentido não mais forte que essas? afirmações de fato. Pode-se insistir que, assim como a afirma­ ção de que o trem vai partir não tem nenhuma influência sobre

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os problemas práticos de alguém que não queira pegar o trem, e que o homem que está pensando em dar dinheiro a um ami­ go, se não reconhecer que a verdade ou falsidade da historia de seu amigo tem alguma influência sobre a questão, pode não ter sua decisão afetada, então, se um homem não tem intenção de fazer o que deve, dizer-lhe que deve fazer alguma coisa pode não ser aceito por ele como uma razão para fazê-la. Formulei essa objeção, que atinge a raiz de toda minha argumentação, da forma mais convincente possível. A objeção alega, resu­ mindo, que as sentenças de “dever” não são imperativos nem implicam im perativos sem o acféscimo de uma premissa impe­ rativas Em resposta a isso, tenho de demonstrar que as senten­ ças de “dever”, pelo menos em alguns de seus usos, realmente implicam imperativos. E necessário primeiramente recordar algo que disse ante­ riormente (7.5) ao #sctitir' as forças avaliatórias e descritivas d(^iMzos¿de valor/Observamos que é possível que pessoas p iç :|dq#iÉram^fa ^ e % ^ i % e # ^ e i s .d e ii # ^ s ^ ^ s e f f l ; a traiír;o§. j iízos de alor mais e mais como puramente descritivos e a dei­ xar que sua força avaliatória torne-se.mais fraca'. O limite desse processo é atingido quando, tal como o descrevemos, o ju ízo d e valor “adquire aspas” e o padrão torna-se completamente “ossi,f icado”! Portanto, é possível dizer “Você devia ir visitar os fula­ nos” sem pretender com isso absolutamente nenhum juízo de valor, mas simplesmente o juízo descritivo de que tal ação é necessária para a conformidade a um padrão que as pessoas em geral, ou uma determinada classe de pessoas não especificada, mas subentendida, aceitam. E, seguramente, se é essa a forma em que uma sentença de “dever” está sendo empregada, ela não implica um imperativo; podemos certamente dizer sem contra­ dição “Você devia ir visitar os fulanos, mas não vá”. Mão^dese]jo alegar que todas as sentenças de “dever’' implicam imperati­ vo s j mas apenas que o fazem quando estão sendousadas avaliaitoriamente. Mais tarde, tornar-se-á evidente que estou tornando isso verdadeiro por definição, pois não diria que uma sentença

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de “dever” estava sendo usada avaliatoriamente, a menos que dela decorressem imperativos; mas falaremos sobre isso mais adiante. Assim, nma resposta que podemos dar à objeção é que os casos que parecem sustentá-la não são juízos de valor genuínos. No exemplo citado, se um homem não tem intenção de fazer o que deve e se, portanto, não considera que o fato de alguém lhe dizer o que deve fazer implica um imperativo, isso meramente mostra que, na medida em que aceita que deve fazer tais e tais coisas (e, claro, nenhuma premissa permite uma conclusão a menos que seja aceita), ele o aceita somente num sentido não2avaliatório., entre, aspas,, como significando que tais e tais coisas * enquadram-se numa, classe de ações geralmente considerada? (mas não/por èle^obrigatórias uo sentido avaliatório, queimph-c,a; imperativas. Essa é uma resposta que elimina alguns casos difíceis, mas que não será aceita como resposta completa a menos que ampliemos a sua abrangência consideravelmente. Pois pode-se sustentar que existem alguns juízos de valor genuínos que não implicam imperativos. 11.2. Recordemos outra coisa que eu disse anteriormente (4.7). Princípios práticos, se aceitos por tempo suficientemente longo e incondicionalmente, passam a ter a força de intuição. Portanto, nossos princípios morais máximos podem tornar-se tão completamente aceitos por nós que os tratamos, não como imperativos universais, mas como questõesTfè^ato'; eles têm a mesma obstinada mdubitabilidade. E há realmente uma ques­ tão de fato à qual, com muita facilidade, podemos achar se refe­ rem, a saber, o que denominamos nosso “senso de obrigação”. Este é um conceito que requer investigação agora. É fácil perceber como, se fomos criados desde tenra idade em obediência a um princípio, a idéia de não obedecê-lo tom a­ se abominável para nós. Se deixamos de obedecê-lo, experi­ mentamos remorso; quando o obedecemos, sentimo-nos em paz conosco. Esses sentimentos são reforçados por todos os fatores relacionados pelos psicólogos1, e o resultado total é que

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geralmente se denomina um sentimento de obrigação. É f'ato que temos esse sentimento de obrigação ~ pessoas diversas em graus diversos, e com conteúdos diversos. Juízos de que tenho um sentimento de obrigação de fazer X ouY sao afirmações de fato empírico. Este não é o lugar para argumentar sobre sua interpretação; é sem dúvida possível discutir se sentenças como “A está sentindo remorso” ou “B acha que é seu dever fazer Y” são relatos de eventos mentais privados ou se devem ser inter­ pretados comportamentaímente, mas tais controvérsias não nos preocupam aqui. Aqui é importante assinalar um fato que é sin­ gularmente ignorado por alguns moralistas: que dizer que alguém tem um sentimento de obrigação não é o mesmo que dizer que tem uma obrigação. 0 izer;*im é fazer urna afirm ação de fato psicológico; dizer o outro é fazerum juizode valor. Um homem que foi criado numa família militar, mas que foi influenciado pelo pacifismo, pode muito bem dizer “Tenho um forte sentimento de que devo lutar pelo meu país, mas pergun­ to-me se realmente devo”. Similarmente, um japonês criado de acordo com o Bushido pode dizer “Tenho um forte sentimento de que devo torturar este prisioneiro a fim de arrancar informa­ ções que serão do proveito para meu Imperador; mas devo real­ mente fazer isso?” A confusão entre afirmações psicológicas sobre um senti­ mento ou senso de obrigação e juízos de valor sobre a própria obrigação não é restrita a filósofos profissionais. O homem comum questiona tão raramente os princípios sob os quais foi criado, que, em geral, sempre que tem um sentimento de que deve fazer X, está pronto a dizer, com base apenas nisso, que deve fazer X; e, portanto, muitas vezes expressa esse sentimento dizendo “Devo fazer X ”. Essa sentença não é uma afirmação de? que ele tem o sentimento ;íé um juízo de valor feito como resul­ tado de ter o sentimento» Contudo, para os que não estudaram o comportamento lógico dos juízos de valoree não refletiram sobre exemplos como os do pacifista e do japonês dados acima, é fácil encarar essa observação como uma afirmação de fato no

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sentido de que ele tem o sentimento ou confundi-la, em signifi­ cado, com essa afirmação. Mas qualquer um, exceto um filóso­ fo profissional sustentando a todo custo uma teoria do senso moral, poderia ser levado a perceber que o significado não é o mesmo se lhe perguntassem “Não seria possível sentir-se do mes­ mo jeito, embora não devesse fazer X?” ou “Você não poderia sentir-se assim e estar errado?” A confusão, porém, é ainda mais profunda. Vimos que há um emprego entre aspas consciente de palavras de valor em que, por exemplo, “Devo fazer X” torna-se aproximadamente equivalente a “X é necessário para a conformidade a um padrão que as pessoas geralmente aceitam” . Mas também é possível empregar a palavra “dever” e outras palavras de valor entre aspas inconscientemente, por assim dizer, pois o padrão que as pessoas em geral aceitam pode também ser o padrão que uma pes­ soa foi educada para aceitar e, portanto, não somente esta pes­ soa se refere a esse padrão dizendo “Devo fazer X”, mas tem sentimentos de obrigação para conformar-se ao padrão. É então possível tratar “Devo fazer X” como uma mistura confusa de três juízos. (1) “X é necessário para a conformidade ao padrão que as pessoas geralmente aceitam (afirmação de fato socio­ lógico); (2) “Tenho um sentimento de que devo fazer X”(afirm a­ ção de fato psicológico); (3) “Devo fazer X” (juízo de valor). Mesmo essa divisão tripartite esconde a complexidade do significado de tais sentenças, pois cada um dos três elementos é complexo e pode ser tomado em sentidos diferentes. Mas mesmo que nos restrinjamos aos três elementos dados há pouco, geralmente é impossível para uma pessoa comum, não treinada em sutilezas lógicas, fazer a pergunta “Qual dentre três juízos você está fazendo, somente ( 1), ( 1) e ( 2 ), todos os três ou

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alguma outra combinação?”, ou responder a ela. A situação é muito similar à do cientista que é questionado pelo lógico: “Sua afirmação de que o fósforo funde-se a 44°C é analítica ou sinté­ tica; se você encontrasse uma substância que fosse, em outros aspectos, exatamente como o fósforo, mas que se fundisse a outra temperatura, você diria ‘Não é realmente fósforo’ ou ‘Então, apesar de tudo, determinados tipos de fósforo fundemse a outras tem peraturas’?”2. O cientista poderia muito bem, como o Sr. A. G. N. Flew apontou, responder “Não sei; ainda não deparei com o caso que me faria resolver essa questão; te­ nho coisas melhores com que me preocupar” . Similarmente, a pessoa comum, ao tomar decisões morais com base em seus princípios aceitos, muito raramente tem de fazer a si mesma a pergunta que acabamos de fazer. Contanto que seus juízos de valor correspondam aos padrões aceitos e aos seus sentimentos, ele não tem de decidir qual deles está dizendo porque, como poderíamos dizer, todos os três ainda são materialmente equi­ valentes para ele, isto é, não surge a ocasião para dizer um que não seja também uma ocasião para dizer os outros dois, Ele, portanto, não pergunta a si mesmo “Como estou empregando a palavra ‘dever5, as sentenças ‘Devo fazer o que sinto que devo’ e ‘Devo fazer o que todos diriam que devo’ são analíticas ou sintéticas?”. E o caso crucial que o faz responder a tal pergunta e, na moral, o caso crucial surge quando estamos pensando se toma­ mos ou não uma decisão de valor em desacordo com os padrões aceitos ou com nossos próprios sentimentos morais - casos como os que citei. São esses casos que realmente revelam a diferença de significado entre os três juízos que relacionei. Minha resposta à objeção, então, é que sempre se descobri­ rá, após investigação, que casos que se alega serem juízos de valor que não implicam imperativos são casos em que o signifi­ cado que se pretende não é do tipo (3) acima, mas dos tipos (1) ou (2 ) ou uma mistura de ambos. É impossível, é claro, provar ou mesmo tornar plausível essa asserção, a menos que saiba­

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mos quando devemos considerar um juízo como do tipo (3); mas proponho superar essa dificuldade da única maneira possí­ vel, transformando-a numa questão de definição. Proponho dizer que o teste para verificar se alguém está ou não usando o juízo “Devo fazer X” como juízo de valor é: “Ele reconhece ou não reconhece que se assentir ao juízo também tem de assentir ao comando ‘Que eu faça X ’?”. Portanto, neste caso, não estou pretendendo provar nada substancial a respeito da forma como usamos a linguagem; estou meramente sugerindo uma termino­ logia que, se aplicada ao estudo da linguagem moral, estou con­ vencido, revelar-se-á esclarecedora. A parte substancial do que estou tentando demonstrar é esta, que, no sentido de “juízo de valor” definido agora, fazemos juízos de valor e que eles são a classe de sentenças contendo palavras de valor que é de interes­ se primário para o lógico que estuda a linguagem moral. Já que o que estamos discutindo é a lógica da linguagem moral e não a intricada matéria conhecida como psicologia moral, não inves­ tigarei profundamente aqui o problema fascinante, discutido por Aristóteles, da abxisia ou “fraqueza da vontade ”3 - o pro­ blema apresentado pela pessoa que pensa, ou professa pensar, que deve fazer algo, mas não o faz. As distinções lógicas que venho fazendo esclarecem consideravelmente essa questão: mas muito mais precisa ser dito, principalmente no sentido de uma análise mais meticulosa da expressão “pensa que deve”. Pois se interpretamos minha definição de forma estrita e tomamo-la em conjunção com o que foi dito anteriormente (2 .2 ) sobre os critérios para “assentir sinceramente a um comando”, surge o conhecido “paradoxo socrático” porque se tom a analíti­ co dizer que todos sempre" fazem o que pensam que devem fazer (no sentido avaliatório). E essa, para colocar a objeção aristotélica em roupagem moderna, não é a forma como empre­ gamos o verbo “pensar”. O problem a surge porque nossos cri­ térios, no discurso comum, para d-izef “Ele pensa que deve” são muitíssimo elásticos. Se uma pessoa não faz algo, mas a omis­ são é acompanhada de sentimentos de culpa, etc., normalmente

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dizemos que ele não fez o que pensa que deve. É, portanto, necessário qualificar o critério dado acima para “assentir since­ ramente a um comando” e admitir que há graus de assentimen­ to sincero, sendo que nem todos eles envolvem efetivamente obedecer ao comando. Porém a análise detalhada desse proble­ ma requer muito mais espaço do que posso dar-lhe aqui, e tem de aguardar uma outra ocasião. 11.3. A melhor forma de estabelecer o interesse lógico pri­ mário,do sentido avaliatório de k4dever” é demonstrar que, não; fosse a existência desse sentido, nenhum dos conhecidos pro­ blemas gerados pela palavra surgiriam Pois, das três paráfrases possíveis de “Devo fazer X” dadas na p. 179, as duas primeiras são afirmações de fato. Isso porque, se forem expandidas, descobrir-se-á que nelas a palavra “dever” sempre ocorre entre aspa£ ou dentrode uma oração subordinada que começa com “que” ;/ Assim (1) poderia ser parafraseada ainda por “Há um princípio de conduta que as pessoas geralmente aceitam, que diz ‘Deve-se fazer X em circunstâncias de uma determinada espécie’, e agora estou em circunstâncias dessa espécie” . Similarmente, (2 ) poderia ser parafraseada ainda como “O juízo ‘Devo fazer X" evoca em mim um sentimento de convic­ ção” ou “Considero-me incapaz de duvidar do juízo ‘Devo fazer X ’ ” (embora a última paráfrase seja demasiado forte, pois nem todos os sentimentos são irresistíveis; na verdade, há uma gradação infinita, de vagas inquietações da consciência ao que muitas vezes se denominam “intuições morais”), Agora, o fato de que, quando ( 1) e (2 ) são expandidas, o juízo original que parafraseiam ocorre nelas entre aspas mostra que deve exis­ tir algum sentido daquele juízo original que não é esgotado por ( 1) e (2 ), pois, se não existisse, a sentença entre aspas teria, por sua vez, de ser parafraseada por ( 1) e (2), e estaríamos envolvi­ dos numa regressão infinita. No caso de (1), não conheço nenhu­ ma maneira de superar essa dificuldade; no caso de (2 ), ela pode ser superada temporariamente substituindo (2 ) por alguma pará­ frase como “Tenho certo sentimento reconhecível”. Mas o arti-

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fício é apenas temporário pois se nos perguntam que sentimen­ to é esse ou como o reconhecemos, a resposta só pode ser “É o sentimento chamado ‘um sentimento de obrigação’; é o senti­ mento que você geralmente tem quando diz e diz com intenção, ‘Devo fazer isto e aquilo’ ”. Isto significa que nem (1) nem (2) pode fornecer o sentido primário de “Devo fazer X”. Agora suponhamos (como não é o caso) que (3) não gerasse nenhum dos enigmas lógicos do tipo que estivemos discutindo; isto é, suponhamos que (3) pudesse ser analisado de forma naturalista. Se assim fosse, então, esses enigmas também não surgiriam nos casos de ( 1) ou (2 ), pois já que, além da expressão entre aspas, não há nada mais nas expansões de ( 1) e ( 2 ) que não possa ser analisado de forma naturalista, seria possível levar a cabo uma análise completa­ mente naturalista de todos os usos de “dever” e, portanto, de “bom” ( 12 .3 ). O fato de isso não ser possível deve-se ao caráter íntratavelmente avaliatório de (3). Deve-se, em última análise, à impossibilidade, mencionada anteriormente (2.5), de derivar imperativos a partir de indicativos, pois (3), por definição, implica pelo menos um imperativo, mas se (3) fosse analisável de forma naturalista, isso significaria que é equivalente a uma série de sentenças indicativas, e isso constituiria uma quebra do princípio estabelecido. Portanto é este fato, o de que a palavra “dever”, em alguns de seus empregos, é usada avaliatoriamente (i.e., implicando pelo menos um imperativo) que tom a impos­ sível uma análise naturalista e, por conseguinte, gera todas as dificuldades que estivemos considerando. Um lógico que* negligencia esses empregos tornará fácil sua tarefa à custa do? não compreender o propósito essencial da linguagem m ora! É isso, acima de tudo, que toma a primeira parte deste livro relevante para o que é discutido no restante. Pois todas as pala­ vras discutidas na Primeira e Segunda Partes têm como função distintiva aprovar ou, de alguma outra forma, orientar escolhas ou ações; e é es'sFcáfáctensticá essencial que desafia quaiquSr análise em termos puramente factuais. Mas, para orientar esco-

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lhas ou ações, um juízo moral tem de ser tal que se uma pessoa assente a ele, tem de assentir a alguma sentença imperativa derivável dele; em outras palavras, se uma pessoa não assente a alguma sentença imperativa de tal tipo, isso é evidência cabal de que não assente ao juízo moral num sentido avaliatório embora, é claro, possa assentir a ele em algum outro sentido (e. g., um dos que mencionei). Isso é verdadeiro em face de minha definição da palavra “avaliatório”. Mas dizer isso é dizer que se ela professa assentir ao juízo moral, mas não assente ao impera­ tivo, deve ter compreendido erroneamente o juízo moral (con­ siderando-o não-avaliatório, embora o falante pretendesse que fosse avaliatório). Estamos, portanto, claramente autorizados a dizer que o juízo moral implica o imperativo, pois dizer que um juízo implica outro é simplesmente dizer que você não pode assentir ao primeiro e dissentir do segundo, a menos que tenha compreendido erradamente um ou outro; e esse “não pode” é um “não pode” lógico - se alguém assente ao primeiro e não ao segundo, isso é, em si, critério suficiente para dizer que com­ preendeu erradamente o significado de um ou de outro. Assim, dizer que os juízos morais orientam as ações e dizer que eles implicam imperativos vem a ser quase a mesma coisa. Não quero, de maneira nenhuma, negar que os juízos morais às vezes são usados não-avaliatoriamente, no sentido que proponho. Tudo o que desejo afirm ar é que às vezes são usados avaliatoriamente e que é esse uso que lhes dá as caracte­ rísticas especiais para as quais tenho chamado a atenção; e que, não fosse esse uso, seria impossível dar um significado para os outros usos; e também que, não fossem as dificuldades lógicas ligadas ao uso avaliatório, os outros usos poderiam ser analisa­ dos de forma naturalista. A ética, como ramo especial da lógi­ ca, deve sua existência à função dos juízos morais como guias para responder a perguntas da forma “Que devo fazer?” 11.4. Estou agora em posição de responder a uma objeção que pode ter ocorrido a alguns leitores. Autores sobre ética muita * vezes condenam em outros o “naturalismo” ou alguma falácia relacionada somente para cometê-la eles mesmos numa

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forma mais sutil. Pode-se alegar que fiz isso. Sugeri anterior­ mente (5.3) que o termo “naturalista” deveria ser reservado para teorias éticas abertas à refutação em linhas similares às delineadas pelo Professor M oore. Devemos, portanto, pergun­ tar se é possível elaborar alguma refutação análoga de minha teoria. Ora, é vèrdade que não estou sugerindo que os juízos morais podem ser deduzidos de quaisquer afirmações de fafo. Em particular, não estou sugerindo a adoção de definições de termos de valor da espécie que Moore equivocadamente atri­ buiu a Kant. Moore acusou Kant de dizer que “Isto deve ser” significa “Isto é comandado”5. Essa definição seria naturalista, pois “A é comandado” é um a afirmação de fato, pode ser expandida como “Alguém (não se revela quem) disse T aça A’ O fato de que o imperativo está entre aspas evita que afete o modo da sentença inteira. É desnecessário dizer que não estou sugerindo qualquer equivalência deste tipo para “bom”, para “dever” ou para qualquer outra palavra de valor, exceto, talvez, quando são usadas no que denominei sentido “entre aspas” ou em alguma outra forma puramente descritiva. Mas pode-se dizer, não obstante, que, de acordo com meu trata­ mento dos juízos morais, determinadas sentenças, que no uso comum não são analíticas, tornar-se-iam analíticas - e isso seria muito semelhante à refutação de Moore. Por exemplo, considere sentenças como a do Salmista Aparta-te do mal e faze o bem6,

ou o verso do hino de John Wesley Persevera na trilha do dever7.

Em minha teoria essas sentenças, pode-se alegar, tornarse-iam analíticas, pois de “A é mau” pode-se deduzir a sentença imperativa “Aparta-te de A”, e de “A trilha T é a trilha do dever” pode-se deduzir a sentença imperativa “Persevera na trilha T”.

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Ora, é preciso observar que sentenças como as citadas po­ dem ser expandidas em sentenças nas quais um juízo de valor ocorre numa oração subordinada. Assim, se em vez da arcaica “Aparta-te do m al”, escrevemos “Não faça o que é mau”, esta pode ser expandida em “Para todo X, se X é mau, não faça X ”. Para que essa instrução seja aplicada, é necessário conjugá-la com a premissa menor “A é mau” e das duas premissas concluir “Não faça A”. Para que esse raciocínio seja proveitoso, é neces­ sário que a premissa menor “A é mau” seja uma afirmação de fato; tem de haver um critério para dizer inequivocamente se é verdadeira ou falsa. Isso significa que, nessa premissa, a pala­ vra “mau” deve ter um significado descritivo (qualquer que seja o significado adicional que possa ter). Mas para que o raciocínio seja válido, a palavra “m au” na premissa maior deve ter o mesmo significado que na menor; lá também, portanto, ela deve ter um significado descritivo. Ora, é esse conteúdo descri­ tivo que impede a premissa maior de ser analítica. Sentenças do tipo que estamos discutindo são normalmente utilizadas por pessoas que têm padrões de valor firmemente estabelecidos e cujas palavras de valor têm, portanto, um componente conside­ rável de significado descritivo. Na sentença “Não faça o que é mau”, o conteúdo avaliatório de “mau” é temporariamente ne­ gligenciado; o falante, por assim dizer, deixa de apoiar o padrão por um momento, apenas para colocá-lo novamente no lugar com o verbo imperativo. Esse é um exercício excelente na manutençãç de nossos padrões e é por isso que se encaixa tão bem em hinos e salmos. Mas só pode ser executado pelos que não têm nenhuma dúvida quanto ao padrão. Contraste com esses casos outros que são superficialmente semelhantes. Suponha que me perguntem “Que devo fazer?” e eu responda “Faça o que for melhor” ou “Faça o que deve fazer”. Na maioria dos contextos tais respostas seriam consideradas ¡mil ei s. Seria o mesmo que perguntar a um policial “Onde devo ONlíieionm meu carro?”, e ele responder “Em qualquer lugar em i|iu* wjn k^ílimo estacioná-lo”. O falante pede-me um conselho

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preciso quanto ao que deve fazer; ele pergunta a mim justamen­ te porque não sabe que padrão aplicar em seu caso. Se, portanto, respondo dizendo-lhe que se conforme a algum padrão cujas condições ele ignora, não lhe forneço nenhum conselho útil. Assim, em tal contexto, a sentença “Faça o que for melhor” real­ mente é analítica; pois, já que se assume que o padrão é desco­ nhecido, “o melhor” não tem nenhum significado descritivo. Assim, minha descrição do significado das palavras de valor não é naturalista; não resulta em tomar analíticas senten­ ças que não o são no uso comum. Antes, fazendo completa jus­ tiça aos elementos descritivos e avaliatórios do significado das palavras de valor, demonstra como elas desempenham o papel que efetivamente desempenham no uso comum. Uma dificul­ dade até certo ponto similar é apresentada pelo famoso parado­ xo de Satã: “Mal, sê o meu bem ” Este presta-se ao mesmo tipo de análise, mas por motivos de espaço sou forçado a deixar ao leitor a tarefa de deslindar ele mesmo o problema. 11.5. Pode -se perguntar neste ponto: “Você não está assi­ milando demasiadamente os juízos morais aos imperativos uni­ versais comuns que existem na maioria das línguas?” Realmen­ te objetou-se a todas as análises imperativas dos juízos morais que elas tornariam um juízo moral como “Você não deve íumar (nesta cabine)” o equivalente do imperativo universal “Não fumar”. E eles claramente não são equivalentes, embora ambos, segundo a teoria que venho advogando, impliquem “Não fu­ m e”. É, portanto, necessário formular o que distingue “Você não deve fumar” de “Não fumar”. Já aludi a esse problema, mas ele requer mais discussão. A primeira coisa a observar em “Não fumar” é que não é um universal propriamente dito porque se refere implicitamen­ te a um indivíduo; é a forma abreviada de “Nunca fume nesta cabine” . O juízo moral “Você não deve fumar nesta cabine” também contém referências a indivíduos, pois os pronomes “você” e “esta” aparecem nele. Porém, em vista do que disse acima (10.3), esse não é o fim da questão. O juízo moral “Você

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não deve fumar nesta cabine” téiiÈÉÊSèr alg u m p r% cípio moral geral em mente, e seu propósito tem de sei invocar/ esse princípio.^ geral ou indkar ttm exemplr^ de sua aplicação. CX, princípio poderia ser “Nunca sé' deve fumar cm cabines onde há crianças” ou '"Nunca se deve fumar emrc.abines onde há um, aviso d&vNão fum ar1’' . Nem* sempre é fácil concluir exatamen-^ te qual" &o princípio, mas sempre áaz sentido „perguntar qual é ele>j0 ifalante não pode negar que. existe tal princípio. A mesma questão poderia ser exprimida de outra maneira, dizendo que se fazemos um juízo moral particular, sempre po­ dem pedir que o sustentemos com razões; as razões consistem nos pfincípiosi g^raif aos quais o juízo moral deve ser subordi­ nado. Assim, o juízo moral particular “Você não deve fumar nesta cabine” depende de um universal propriamente dito, ain­ da que ele mesmo não seja um. Porém isso não é verdadeiro no caso do imperativo “Nunca fume nesta cabine”. Este não invo­ ca nenhum princípio mais geral; ele mesmo é tão geral quanto tem de ser, e isso não é geral o bastante para fazer dele um uni­ versal propriamente dito. A diferença de universalidade entre “Nunca fume nesta cabine” e “Você não deve fumar nesta cabine” pode ser revela­ da da seguinte forma. Suponha que eu diga a alguém “Você não deve fumar nesta cabine”, e que haja crianças na cabine. Ê pro­ vável que a pessoa a que me dirijo, se perguntar por que eu disse que ela não devia fumar, olhe em volta, repare nas crian­ ças e, assim, compreenda a razão. Mas suponha que, tendo apu­ rado tudo o que há para apurar sobre a cabine, ela diga então “Tudo bem; vou ali ao lado; há outra cabine tão boa quanto esta; na verdade, é exatamente igual a esta, e há crianças nela também”. Se ele dissesse isto, eu pensaria que ele não entendeu a função da palavra “dever”, pois/“ dever” sempre se refere af algíim prineípio geral e|je_í .cabine ao lado é realmente iguala esta> todo princípi‘o-que:é-’àplicáve} a esta tem de ser aplicável à q a e ta ^ § |$ Portanto, eu poderia dizer “Mas veja bem, se você não deve fumar nesta cabine e se a outra cabine é exatamente

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igual a esta, tem a mesma espécie de ocupantes, os mesmos avi­ sos nas janelas, etc., então obviamente você também não deve fumar nela”. Por outro lado, quando o diretor da Ferrovia está tomando a importante decisão de escolher em quais cabines colocar avisos dizendo “Não fumar”, ninguém diz “Veja! Você pôs um aviso nesta cabine, portanto, tem de pôr outro na cabine ao lado porque ela é exatamente igual a esta”. fumar” não se refere a um prmcápio universal do quai està cabk ne é um exemplo. ? Na verdade, é quase impossível construir um universal pro­ priamente dito no modo imperativo. Suponha que tentemos fazer isso generalizando a sentença “Nunca fume nesta cabine”. Primeiramente, eliminamos o “você” implícito escrevendo “Ninguém pode, jamais, fumar nesta cabine”. Depois temos de eliminar o “esta”. Dá-se um passo nessa direção escrevendo “Ninguém pode, jam ais, fumar em qualquer cabine da Rede Ferroviária Britânica”. Porém ainda deixamos o nome próprio “Rede Ferroviária Britânica”. Só podemos conseguir um univer­ sal propriamente dito excluindo todos os nomes próprios, por exemplo, escrevendo “Ninguém pode jamais fumar em qualquer cabine ferroviária de qualquer lugar”. Este é um universal pro­ priamente dito, mas é uma sentença que nunca alguém teria oportunidade de dizer. Comandos são sempre dirigidos a alguém ou a algum conjunto (não classe) individual de pessoasí Não está claro o que se poderia querer dizer com a sentença citada há pouco, a não ser que fosse uma injunçao moral ou outro juízo .de* valor. Suponha que imaginemos Deus emitindo tal comando. Então, ele se toma imediatamente como os Dez Mandamentos na forma. Historicamente falando, supõe-se que “Honra teu pai e tua mãe” foi dito, não para todos em geral, mas somente para membros do povo eleito, exatamente como “Não pagues o mal com o mal” foi dirigido aos discípulos de Cristo, não ao mundo como um todo - embora fosse Sua intenção que todos os homens se tomassem Seus discípulos. Mas suponha que não fosse assim; suponha que “Não pagues o mal com o mal ' fosse

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dirigido literalmente à classe ilimitada “todo homem”. Não diría­ mos que se tornou equivalente em significado ao juízo de valor “Não se deve pagar a ninguém o mal com o m al”? De modo semelhante, uma expressão proverbial como “Não mexa em casa de marimbondo” pode, sem muito estrago, ser parafraseada pelo juízo de valòr^prudencial) “Não se deve mexer em casa de marimbondo”. Por outro lado, os chamados imp:er,ativos universais^ comuns como “Não fumar” distinguem -sedosjuízos^devalof por não:,serem propriamente ümver sTais!. Estamos aptos, portan­ to, a discrim inaf entre esses dois tipos de sentença sem abando­ nar absolutamente nada do^que^òclísse sS S S .aíâa^ãoentre os/ juízos de valor e os imperat-ivos^Pois tanto o universal comple­ to quanto olncompleto^írríplicam o singular: “Nunca fume nesta cabine” implica “Não fume (agora) nesta cabine”, e o mesmo faz “Você não deve fumar nesta cabine”, se for usado avaliatoriamente. Mas esta última também implica, o que não faz a primeira, “Ninguém deve fumar em nenhuma cabine exa­ tamente igual a esta”, e esta, por sua vez, implica “Não fume em nenhuma cabine exatamente igual a esta”. Essas considerações apenas, porém, não seriam suficientes para explicar inteiramente a completa diferença de “impressão” entre “Você não deve” e “Nunca faça”. Isso é reforçado por dois outros fatores. Ao primeiro já se fez referência; a universa­ lidade completa do juízo moral significa que não podemos “nos livrar dele” e, portanto, sua aceitação é uma questão muito mais séria do que a aceitação de um imperativo de cuja esfera de aplicação podemos escapar. Isso explicaria por que impera­ tivos como as leis de um Estado, que são de aplicação bastante, geral e, portanto, de cujo âmbito é muito difícil escapar, xfeíxam, uma “impressão” muito mais próxim a à dos juízosjtnorais £ 0 que os regulamentos de diretor da ferrovia?. Mas um fator adi­ cionai mais importante é que, em parte por causa de sua univer­ salidade completa, os princípios morais tornaram-se tão arrai­ gados em nossas mentes - nas formas já descritas - que adqui-

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riram um caráter quase factual e às vezes são realmente empre­ gados não-avaliatoriamente, na condição de afirmações de fato e nada mais, como vimos. Nada disso é verdadeiro no caso de imperativos como “Não fumar”, e somente isso já seria o bas­ tante para explicar a diferença de “ impressão” entre os dois tipos de sentença. Contudo, já que não desejo negar que exis­ tem empregos não-avaliatórios de juízos morais, mas apenas afirm ar que existem empregos avaliatórios, essa diferença de “impressão” não destrói de forma nenhuma meu argumento. Seria realmente absurdo pretender que “Não fumar” seja em todos os aspectos igual a “Você não deve fumar”; venho sus­ tentando apenas que é igual a este em um aspecto, que ambos implicam imperativos singulares como “Não fume (agora)”.

Capítulo 12

Um modelo analítico

12 . 1 . O seguinte experimento pode ajudar a esclarecer as relações entre a linguagem dos valores e o modo imperativo: imaginemos que nossa língua não contém nenhuma palavra de valor e perguntemos, então, até que ponto uma nova terminolo­ gia artificial, definida em termos do modo imperativo e das palavras lógicas comuns, poderia preencher a lacuna. Em outras palavras, poderíamos, usando somente o modo imperati­ vo e palavras definidas em termos deste, executar toda e qual­ quer das tarefas desempenhadas na linguagem comum por meio de palavras de valor como “bom”, “correto” e “dever”? A fim de tornar tão claro quanto possível o paralelo entre nossa nova linguagem artificial e a linguagem de valor comum, usa­ rei as mesmas palavras em ambas, mas colocarei as artificiais em itálico. Desejo deixar bem claro que não estou sugerindo uma análise definitiva das palavras de valor da linguagem comum. Na verdade, elas são tão variadas em seus empregos e tão sutilmente flexíveis que qualquer construção artificial está fadada a ser uma caricatura delas. Tampouco estou cometendo o pecado do “reducionismo”, que, por causa de sua excessiva prevalência, tornou-se um alvo da moda para caçadores de heresias filosóficas. Isto é, não estou tentando analisar um tipo de linguagem em termos de outra; estou tentando, antes, exibir as diferenças e similaridades entre dois tipos de linguagem

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verificando quais modificações teriam de ser feitas em uma antes que ela pudesse fazer o trabalho da outra e o quão adequa­ damente poderia fazê-lo assim modificada. Meu procedimento será o seguinte: primeiramente simpli­ ficarei o problema demonstrando que, se podemos executar a tarefa de “dever”, podemos também executar a tarefa de “corre­ to” e “bom ”, pois mostrarei que (na forma simplificada que é tudo o que tais métodos sempre oferecem) sentenças formadas com “dever” podem tomar o lugar de sentenças contendo as outras duas palavras. Depois tratarei da palavra “dever”. Para esse fim investigarei o que tem de ser feito ao modo imperativo comum para transformá-lo num instrumento adequado para nosso propósito. M ostrarei como o modo imperativo poderia ser modificado de forma a tornar possível construir nele sen­ tenças universais propriamente ditas. Definirei, então, em ter­ mos desse modo imperativo modificado, um conceito, “dever”, que funcionará como a mais simples e mais básica de minhas palavras de valor artificiais. Se pretendesse com isso uma aná­ lise das palavras “dever”, “correto” e “bom” tal como ocorrem na linguagem comum, o procedimento seria realmente temerá­ rio; porém, o itálico funcionará como uma advertência constan­ te ao leitor de que não é isso que estou tentando. Nos capítulos precedentes já disse tudo o que o espaço permite dizer sobre o comportamento lógico dessas palavras na linguagem comum; meu presente propósito é bem diferente, e muito mais incerto. 12.2. Primeiramente, então, temos de ver até que ponto uma palavra artificial, “correio” [ou “certo”], definida em ter­ mos da palavra comum “dever”, poderia substituir “correto” [ou “certo”] na linguagem comum. Não considerarei todos os empregos de “correto”, mas somente os que parecem mais im­ portantes. O primeiro é quando dizemos “Não é (ou, num caso particular, nao seria ou não foi) correto fazer tais e tais coisas”. Existem juízos morais e não-morais dessa forma; assim, pode­ mos dizer “Não foi correto contar piadas sobre Jones tão pouco tempo após sua morte, com sua viúva presente” ou “Não foi

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correto escalar Smith para rebater primeiro depois de ele passar por uma longa rodada de arremessos”. Esse emprego ocorre sempre no negativo; existe, porém, um uso análogo no afirma­ tivo, como: “Foi bastante correto mudar de assunto” e “Foi cor­ reto dar um descanso a Smith”. Novamente, existe o emprego em que “correto" é sempre precedido pelo artigo definido e não é predicativo, mas aparece acompanhado de um substantivo; aqui, também, existem exemplos morais e não-morais; pode­ mos dizer “A coisa correta a fazer teria sido mudar de assunto” ou “Robinson era o homem correto para a situação”. Agora, se, como vamos assumir, nossa língua não possuís­ se a palavra “correto”, mas contivesse a palavra “dever”, pode­ ríamos nos contentar em definir em termos de “dever” uma palavra artificial, “correto”, para a tarefa hoje desempenhada por “correto”. Teríamos de ter definições diferentes para os diferentes empregos; e se eu estivesse sendo bastante preciso, teria de distinguir esses empregos com subscritos diferentes, escrevendo “correto ”, “correto2”, etc. Isso, porém, não é ne­ cessário num esboço dessa natureza. As definições que propo­ nho são as seguintes: “Não é correto fazer A” deve significar o mesmo que “Não se deve fazer A”. “Não seria correto X fazer A” deve significar o mesmo que “X não deve fazer A”. “Não foi correto X fazer A” deve significar o mesmo que “X não devia ter feito A ”. “Não teria sido correto X fazer A” deve sig­ nificar o mesmo que “Se X tivesse feito A, teria feito o que não devia fazer”. Esses exemplos são suficientes para dar uma idéia de como lidaríamos com o primeiro emprego de “correto”. O segundo emprego é tratado de forma similar. “Foi corre­ to X fazer A” deve significar o mesmo que “X, ao fazer A, fez o que devia fazer”. Repare que há um emprego diferente de “cor­ reto”, não incluído entre os considerados acima, no qual tem quase o significado de “all right”*. “Foi ‘all right’ X fazer A” * Não foi possível reproduzir em português a gradação de significado entre o sentido absolutamente “aprovatório” de right, certo, correto, e ali right, “tudo bem”, que indica um grau menor de “aprovação”, próximo da neutralidade ou indiferença. (N. do X)

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não pode ser expresso da forma sugerida acima; teríamos de dizer que “Foi ‘all right’ X fazer A ” deve significar o mesmo que “Ao fazer A, X não fez o que não devia fazer”, O terceiro emprego requer um tratamento um pouco dife­ rente. “O A correto” deve significar “O A que deve ser (ou de­ via ter sido) escolhido”. Assim, “Ele é (ou teria sido) o homem correto para a situação” deve significar o mesmo que “Ele é o homem que deve ser (ou devia ter sido) escolhido para a tarefa” e “A coisa correta a ser feita teria sido mudar de assunto” deve significar o mesmo que “Ele devia ter mudado de assunto”. Observe que há uma complicação aqui que ignorarei, já que não tem nada a ver com a ética: a expressão “Ele devia ter feito A” geralmente implica que ele não fez A, ou então é despropo­ sitada, a não ser que de fato ele nao tenha feito A. Uma análise formal completa exigiria uma oração adicional para tratar dessa peculiaridade, mas isso não precisa nos deter aqui. Às vezes a palavra “escolhido” precisa do complemento da classe de comparação, a fim de trazer à tona o significado inte­ gral. Assim, a fim de verter para nossa terminologia artificial “Ele não foi à casa correta”, teremos de dizer que “Ele não foi à casa correta” deve significar o mesmo que “Ele não foi à casa que devia ter escolhido para visitar”, e não, por exemplo, “Ele não foi à casa que devia ter escolhido para explodir com dina­ mite”. Pode-se predizer com segurança que, se tivéssemos de nos contentar com minha palavra artificial “correto” , não encontraríamos dificuldade para estabelecer, a partir do con­ texto, o que um falante queria dizer, assim como fazemos com a palavra natural “correto” . Não examinarei em detalhe até que ponto “correto” seria um substituto adequado para “correto”. A impressão que tenho é que poderíamos nos arranjar muito bem com ela. Seria absur­ do, porém, afirmar que qualquer palavra artificial poderia cum­ prir exatamente todas as tarefas, e não outras, que são desempe­ nhadas por uma palavra natural; nossa linguagem comum é demasiado sutil, flexível e complicada para ser imitada dessa forma descuidada.

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12.3. Sigamos agora o mesmo procedimento com “bom”. A definição de nossa palavra artificial “bom" é bem mais com­ plicada que de “correto” pela seguinte razão: como foi observa­ do por mais de um autor sobre ética, o comparativo “melhor que” é muito mais fácil de definir que o positivo. Nisso “bom” é como “quente”. Podemos fornecer critérios bem simples e adequados para decidir se o objeto X está mais quente que o objeto Y; mas se nos pedirem critérios exatos para dizer se um objeto está quente, não teremos como fazê-lo. Tudo o que podemos fazer é explicar o significado de “mais quente que” e, então, dizer que se diz que um objeto está quente, se este está mais quente que o habitual para um objeto de sua classe. A segunda metade dessa explicação é extremamente imprecisa, e seria prudente da parte dos lógicos deixá-la assim, pois “quen­ te” é uma palavra imprecisa. “Bom” é uma palavra imprecisa pela mesma razão - e é importante reparar que, como mostra a analogia com “quente”, essa imprecisão nada tem a ver com o fato de “bom” ser uma palavra de valor. Na verdade, há outras características de “bom”, originárias de sua natureza como palavra de valor, que também lhe valeram o nome de “impreci­ sa” - e . g., o fato de que seu significado descritivo pode variar de acordo com o padrão que está sendo aplicado. Isso, porém, não tem nada a ver com o presente problema, pois, neste último sentido, “melhor que” é tão impreciso (se essa for a palavra cor­ reta) quanto “bom”, mas o tipo de imprecisão ao qual me refiro agora associa-se somente ao positivo e não ao comparativo, Tentemos então definir um conceito artificial “melhor que” em termos de “dever” . Pode-se sugerir a definição seguin­ te: “A é um X melhor que B” deve significar o mesmo que “Se alguém está escolhendo um X, então, se escolhe B, deve esco­ lher A”. Já que essa definição é complicada, o seu ponto central pode passar despercebido à primeira vista. Devemos lembrar, antes de tudo, que uma sentença condicional é falsa somente quando o antecedente é verdadeiro e o conseqüente falso. Podese dizer isso seja qual for a opinião que adotemos quanto à pos-

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sibilidade de definir “se” em função da verdade. Agora, supo­ nha, por exemplo, que um aluno me peça para aconselhá-lo sobre os méritos respectivos de diversos cursos sobre a Ética de Aristóteles. Eu poderia dizer ‘A s aulas de A sobre a Ética são melhores (para os seus propósitos) que as de B ”. Ora, temos de perguntar: Sob que condições eu diria que meu aluno não se­ guiu meu conselho? Suponha que assumamos que ele sempre faça o que pensa que deve fazer. Então, se ele vai às aulas de A e não às de B, está seguindo meu conselho. Mesmo se for a ambas, não poderei acusá-lo de desconsiderar meu conselho, pois ele ainda pode pensar que as de A são melhores que as de B. O mesmo é verdadeiro se não for a nenhuma delas. Somente num caso posso acusá-lo de não aceitar meu conselho: se assis­ te às aulas de B, mas não às de A, pois isso demonstra que, num caso em que está escolhendo entre aulas sobre a Ética, e esco­ lheu ir às de B, ele não pensa que deve ir também às de A; e teria de pensar assim, segundo minha definição, se pensasse que as de A são melhores que as de B. Agora, penso que se admitirá que “melhor que” , assim definido, poderia realizar adequadamente a tarefa que é execu­ tada na linguagem comum por “melhor que”. Mas, no caso de empregos morais, há uma complicação que tem ocupado a atenção de muitos escritores sobre ética e que é um dos funda­ mentos da muito enfatizada distinção entre as palavras “corre­ to” e “bom”, tal como usadas na moral1. É um lugar-comum que dizer que um determinado ato foi correto não é dizer que foi um bom ato, pois, para ser bom, tem de ser feito por um bom moti­ vo, ao passo que, para ser correto, tem meramente de se confor­ mar a um determinado princípio, seja qual for o seu motivo. Assim, se pago a conta do meu alfaiate na esperança de que gastará o dinheiro bebendo excessivamente, ainda assim ajo corretamente ao pagá-lo, embora não seja um bom ato, porque meu motivo é mau. Pode-se dizer também que dizer que uma pessoa fez algo que não foi correto (não o que devia ter feito) não é necessariamente condená-lo ou culpá-lo por isso, pois,

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embora tenha feito o que não era correto, pode ter agido pelo melhor dos motivos ou pode não ter sido capaz de resistir a uma tentação pela qual não pode ser culpado por não resistir. É pos­ sível, em termos de minha definição de “melhor que” e, portan­ to, de “bom”, tornar essa distinção muito mais clara do que tem sido até aqui. Temos de m odificar ligeiramente a definição, pois, em termos dessa, “A, nas circunstâncias, foi um ato me­ lhor que B” significaria simplesmente “Se alguém está esco­ lhendo que ato realizar em circunstâncias como aquelas, então, se escolhe B, deve escolher A ”. Assim, se a definição fosse aplicada diretamente, não conteria referência necessária aos motivos pelos quais o ato foi realizado. É, portanto, necessário proceder indiretamente e, adaptando a observação de Aristóte­ les, dizer que um ato bom é a espécie de ato que um homem bom realizaria2. Então, em termos de nossa definição, defini­ mos um homem bom da seguinte forma: é um homem que é melhor do que os homens habitualmente são, e dizer que A é um homem melhor que B é dizer que se alguém está escolhen­ do que espécie de homem ser, então, se escolher ser a espécie de homem que B é, deve escolher ser a espécie de homem que A é; e já que, ex hypothesi, A não é a mesma espécie de homem que é B, isso se resume a dizer que, se escolhemos ser como A ou como B, deve ser como A que escolhemos ser. Essa definição um tanto complicada de “bom ato” pode ser explicada de modo mais simples e aproximado da seguinte ma­ neira: quando estamos falando de um bom ato, estamos falando do ato como indicativo da bondade do homem, e, quando fala­ mos da bondade de um homem, as escolhas que estamos bus­ cando orientar não sao primariamente as de pessoas que estão precisamente naquela espécie de situação em que ele realizou o ato (e. g., a situação de receber a conta do alfaiate), mas as de pessoas que estão perguntando a si mesmas “Que espécie de homem devo tentar tornar-me?” Falamos de bons homens e bons atos num contexto de educação e formação de caráter morais, ao passo que falamos de atos corretos num contexto

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diferente, aquele em que estamos falando de deveres, em tipos particulares de ocasiões, que podem ser cumpridos, seja bom ou mau o caráter ou o conjunto de motivos do agente. Se é real­ mente assim que usamos “bom ato”, então a palavra “bom”, da forma como a tratei, expõe muito bem essa característica da palavra natural “bom". O conjunto de minha análise até aqui foi muito simplifica­ do e, mesmo assim, extremamente complicado e difícil de acompanhar. Se eu a tivesse feito mais exata, seria ainda mais difícil, e não conheço nenhuma forma de torná-la mais fácil. Posso apenas esperar que tenha sido capaz de dar ao leitor uma idéia de como poderíamos, se “bom” e “correto” desapareces­ sem de nossa linguagem, compensar a deficiência usando a palavra “dever”, Minha impressão é que, embora as novas pala­ vras artificiais, à primeira vista, parecessem desajeitadas em comparação com as antigas, poderíamos contentar-nos com elas quando necessitássemos dizer o que hoje dizemos por meio das palavras naturais “bom” e “correto”. 12.4. Até aqui temos utilizado em nossas definições a pala­ vra natural “dever”. Temos agora de investigar, se essa, por sua vez, nos fosse negada, se poderíamos contentar-nos com um conceito artificial “dever”, definido em termos de um modo imperativo enriquecido. Esta é a parte de minha análise que provavelmente despertará maior ceticismo. Temos prim eira­ mente de mostrar o que temos de fazer ao modo imperativo, a fim de acomodar nele sentenças universais propriamente ditas e, então, em termos desses imperativos universais propriamente ditos, definir “dever” de tal forma que possa desempenhar as diversas funções de “dever”. A s razões p or que sentenças universais propriamente ditas não podem ser acomodadas no modo imperativo são duas*. Em primeiro lugar, esse modo limita-se, com umas poucas exce­ ções, que são apenas aparentes, ao tempo futuro, ao passo que uma sentençajmjyer.sal propriamente dita tem de se aplicai a todos os tempos, passado, presente e futuro (e.g., “Todas as

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mulas são estéreis” tem de se aplicar a todas as mulas em todos os períodos da história do mundo para ser um universal propria­ mente dito; temos de ser capazes de derivar dele, em conjunção com “Joe era uma mula”, a sentença “Joe era estéril”). Em segundo lugar, o modo imperativo ocorre predominantemente na segunda pessoa, na alguns imperativos de primeira pessoa do plural e alguns imperativos de terceira pessoa do singular e do plural; há também a forma “Que eu ...” que funciona como um imperativo de primeira pessoa do singular. Mas essas pes­ soas são de forma diferente, em inglês, da segunda pessoa e podem ser de um caráter lógico algo diferente. Mais séria é a dificuldade de não haver meios de conceber uma sentença imperativa que comece com “se,? [índice de indèterminação do sujeito] ou com o uvocê” impessoal: não há nada no modo imperativo análogo à sentença indicativa “Não se vêem muitos cabriolés hoje em dia” ou ao j u í z o de valoi “Não se deve dizer mentiras”. É óbvio que, para sermos capazes de conceber impe­ rativos universais propriamente ditos, eles precisam ser tais que, com o auxílio das premissas menores apropriadas, possa­ mos derivar deles sentenças imperativas em todas as pessoas, assim como em todos os tempos. O modo imperativo, portanto, tem de ser enriquecido para nossos propósitos, a fim de tomar possível construir sentenças em todas as pessoas e todos os tempos. A noção de enriquecer dessa forma o modo, produzindo sentenças (como imperativos passados) que não poderiam ser usadas em nossa língua, pode muito bem levantar suspeitas. É evidente por que nunca ordenamos que coisas aconteçam no passado e, portanto, pode-se dizer que um imperativo passado não teria significado. Não estou preocupado em negá-lo - pois, em certo sentido, uma expressão é sem sentido se não pode ter •empego possível, mas, não obstante, será visto que essas sen­ tenças efetivamente têm uma função em minha análise e, por­ tanto, devo pedir ao leitor que as tolere. Há talvez uma analogia com o uso de números imaginários na matemática. É nesse

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ponto que a diferença essencial entre os imperativos da lingua­ gem comum e os juízos de valor é mais claramente revelada; como, porém, minha análise tem como objetivo expor distin­ ções e não escondê-las, isso nao constitui defeito. 12.5. Para enriquecer o modo imperativo em tempo e pes­ soa, utilizarei um artifício derivado de minha discussão prévia daxonstituição de sentenças imperativas em 2 i'. Vimos lá que uma sentença imperativa, assim como uma indicativa, consis­ te em dois elementos, que denominei a frástica e a nêusticá, A frástica é parte da sentença que é comum aos modos indicati­ vo e imperativo; assim, as sentenças “Você está prestes a fechar a porta” e “Feche a porta” podem ser analisadas de forma a terem a mesma frástica; seriam então escritas respec­ tivamente Você fechar a porta no futuro imediato, sim.

Você fechar a porta no futuro imediato, por favor.

A"nêusticá é a parte da sentença que determina seu modo. É representada por “sim” (indicativo) e “por favor” (imperati­ vo) nas duas sentenças citadas. Agora, f indicação do tempo de Uma sentença fica na frástica. Mas como há sentenças indicati­ vas em todos os tempos, deve haver frásticas em todos os tem ­ pos e, portanto, é possível tomar 0 frástica de uma sentença indicativa, adicionar a ela a nêusticá imperativa, e teremos então uma sentença imperativa no passado. Assim, poderíamos escrever Você fechar a porta ontem à noite, por favor.

Poderíamos também ter imperativos sem tempo verbal, uti­ lizando uma escala de tempo em vez de tempos verbais; assim poderíamos escrever

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Você fechar a porta às 11 horas da manhã do dia 4 de março, por favor.

Assim, contanto que a aversão inicial a imperativos passa­ dos seja superada, não há dificuldade lógica para formá-los. O mesmo é verdadeiro para os outros tempos. Um artifício similar permite-nos construir sentenças impe­ rativas em qualquer pessoa. Tudo o que temos de fazer é tomar a fràstica de uma sentença indicativa naquela pessoa e colocar depois dela a .neustica imperativa, Como alternativa, podemos abrir mão completamente dos pronomes pessoais e colocar em seu lugar nomes próprios ou descrições definidas ou indefini­ das. Finalmente, podemos, como necessitamos fazer, tomar a frastica de uma sentença indicativa universal propriamente dita e, colocando uma nêustica imperativa depois dela, obter uma sentença imperativa un i'versai propriamente dita. Assim, pode­ mos tomar a sentença indicativa “Todas as mulas são estéreis” e escrevê-la assim: Todas as mulas serem estéreis, sim.

A sentença imperativa universal propriamente dita será então escrita: Todas as mulas serem estéreis, por favor.

Isto difere em significado do imperativo da linguagem comum “Sejam todas as mulas estéreis” porque esta pode referír-se somente a mulas futuras, enquanto a primeira | |j | g í d ‘JigMoíà--íf)daS:as mulas; passadas e presentes, bem como futu­ ras. Assim, se uma mula em 23 a.C. gerasse prole, isso não seria uma transgressão do comando “Sejam todas as mulas estéreis” proferido em 1952 d.C., mas seria uma transgressão de um comando universal propriamente dito enunciado em qualquer tempo, e isso é importante para nosso propósito, pois ás^apês

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podem ser violações deTprincipiosde “deverVyqnè ainda não fo­ ram enunciados; esse. é o ponto da expressão “devia ter*. Então, se construímos nesse modo imperativo enriquecido sentenças universais propriamente ditas adequadas, veremos que se aproximam, em significado, dos juízos de valor. Jã exa­ minamos o imperativo universal da linguagem comum “Não pa­ gues o mal com o mal”, e vimos que, se fosse considerado como um universal propriamente dito, seria mais ou menos equivalen­ te em significado a “Não se deve pagar a ninguém o mal com o mal”. Da forma como aparece no Evangelho, nào pode ser entendido assim porque é endereçado a um grupo definido de pessoas, os discípulos de Cristo, e não se aplica a ninguém que não seja um discípulo; e o mesmo é geralmente verdadeiro no caso das sentenças imperativas; elas têm, como vimos, uma aplicação restrita. Além disso, “Não pagues o mal com o mal” é inegavelmente futuro em sua aplicação. Se alguém tivesse aca­ bado de vingar-se de um inimigo no momento em que este era proferido, não teria desobedecido o comando. Porém, ermnosso m fe^iniperativo modificado podemos conceber um principio de universalidade completa tal que uma ação, em absolutamente qua- ]üer mp \ realizada por absolutamente qualquer pessoa, poderia ser uma violação delp. E isto é próprio de um princípio moral ou de outro principio de “dever”. Em lugar, portanto, da terminologia desajeitada de frá s i­ cas e nêusticas, adotemos a palavra artificial “dever”. Esta deve ser definida da seguinte maneira: se tomamos uma sentença in­ dicativa universal propriamente dita, “Todos os PP são Q”, e a dividimos em fràstica e nêustica, “Todos os PP serem Q, sim”, e depois substituímos a nêustica indicativa por uma imperativa, “JFodos os PP serem Q, por favor”,podemos,, em vez desta ùlti­ ma sentença, escrever “Todos os PP devem ser Q’\< Até aqui, essa definição dá somente o significado de “de­ ver” tal como poderia ser usado para conceber sentenças que desempenhassem a função dos princípios de “dever” gerais ou das sentenças do tipo B referidas em 10.3. Isto é, oferece um

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substituto para sentenças como “Se o motor não der partida imediatamente na ignição automática, de ve-se sempre usar a manivela de partida” ou “Deve-se sempre falar a verdade”. Estas têm apenas que ser remodeladas para se enquadrarem na fórmula universal: “Todas as tentativas de dar partida em moto­ res de veículos automotores que não derem partida imediata­ mente na ignição automática devem consistir em usar a mani­ vela de partida”, e “Todas as coisas que são ditas devein ser ver­ dadeiras”. Se “dever” fosse um substituto apropriado para “de­ ver”, minha definição tornaria sentenças desse tipo possíveis. Por outro lado, sentenças dos tipos C e D, que são sentenças de “dever” singulares, futuras e passadas, não foram contempladas até aqui. Sua análise é uma questão extremamente complexa, mas podemos sugerir o seguinte substituto: em lugar de “Você deve dizer-lhe a verdade”, escrevamos “Se você não lhe disser a verdade, estará violando um princípio de “dever” geral que por meio desta subscrevo”. E, similarmente, em vez de “Você devia ter dito a verdade a ele”, escrevamos “Ao não lhe dizer a verda­ de, você violou um princípio de “dever” geral que por meio desta subscrevo”. Mais formalmente, poderíamos escrever “Há pelo menos um valor para P e um para Q de tal tipo que (1) todos os PP devem ser Q e (2) você não lhe dizer a verdade seria (ou foi) um caso de um P não ser Q”. Aqui, novamente, se “de­ ver” é substituto apropriado para “dever”, sentenças do tipo C e D seriam abrangidas por minha definição. Ao fazer essa comparação deve-se observar, antes de mais nada, que “dever”, tal como o defini, tem uma importante carac­ terística que a palavra natural “dever” também tem e que distin­ gue ambas dos imperativos simples. Essa característica deve-se ao fato de que as sentenças em que “dever” e “dever” ocorrem são sempre (ou, pelo menos, sempre dependem de) universais propriamente ditos. Sustentou-se às,vezes que a lógica das sen­ tenças de “dever” é, em certo sentic o,"Imprenté (isto é, que a lei do terceiro excluído não se aplica a elas/); se nego qú£ X deve' fazer A, naose segue que eu estejá logicamente obrigado a afir-'

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mar que X nãp;;deve fazer A' Pode ser que, como dizemos, não tenha importância X fazer ou não A e, portanto, pode ser impos­ sível afirmar que ele deve fazer A ou que ele não deve fazer A. Ora, todas as sentenças universais têm esse caráter, como foi reconhecido, bem antes que a lógica trivalente fosse cogitada, na lógica aristotélica tradicional. “tôjdo 3-.tí$-SPF,são Q” e “Todos os PP não. são. Q” (ou “Nenhum P é Q” ) não são contraditórias, mas contrárias e, portanto, se negamos que todosfes PP são Q, não nos obrigamos por isso a afirmar que nenhum P é Q, pois alguns PP podem ser Q e alguns não. Não é necessário aqui discutir se falar de uma lógica trivalente é a melhor maneira de descrever essa característica das sentenças universais, mas a similaridade, nesse aspecto, entre sentenças de “dever” e sentenças universais empresta apoio a minha definição. 12.6. Temos agora de perguntar se “dever” é um substituto completo para “dever” - sê^cx^sea^ajudl, p*!dlÈâ©&^
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