A Letra e a Voz - Paul Zumthor

April 22, 2017 | Author: Rodrigo Moreira de Almeida | Category: N/A
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PAUL ZUMTHOR

A LETRA( E A VOZ A "literatura" medieval Tradução: AMÁLIO PINHEIRO (Parte I) JERUSA PIRES FERREIRA (Parte II)

r reimpressão

-~-

COMPANHIA DAS LETRAS

Copyright © 1987 by Éditions du Seuil Copyright de "A letra e a voz de Paul Zumthor" © 1993 by Jerusa Pires Ferreira Titulo original: La lettre et Ia voix De Ia "littérature" médiévale

ÍNDICE

Capa: Ettore Bottini sobre detalhe de Aleijados, loucos e mendigos (c. 1560), gravura em metal de Pieter Brueghel Preparação: Mário Vilela Revisão: Touché! Editorial Ana Maria Barbosa

Prefácio

·

·.. ·······.. ·,··· ..

7

INTRODUÇÃO Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do governo francês Dados

Internacionais (Câmara

Zurnthor,

de Catalogação

Brasileira

Paul,

na Publicação

(CIP)

ne15

do Livro, SP. Brasil)

I. O CONTEXTO

1915·

A letra e a voz:

A "literatura"

medieval/Paul

Zum-

thor ; tradução Amálio Pinheiro, Jerusa Pires Ferreira. São Paulo: Companhia das Letras. 1993. Obra publicada com o apoio do Ministério da Cultura do governo

1. Perspectivas O mal-entendido. As múltiplas oralidades. Deslocamentos cessários. Marcos espaciotemporais.

francês.

2. O espaço oral Os índices de oralidade. Dizer e escutar. Antes da escrita. A rede das tradições.

35

Bibliografia. ISBN 85·7164-340·7

3. Os intérpretes

1. Literatura medieval - História e crítica 2. Tradição oral - Europa I. Título. 11. Título: A literatura medieval.

Jograis, recitadores,

safio

leitores. Um papel social. A festa. O de-

,

55

CDD·809.8940902

93·2621 Índices para catálogo 1. Literatura

medieval:

sistemático:

História

e crítica 809.8940902

4. A palavra fundadora A voz da Igreja. Os Doutores. Os Príncipes. Convergências funcionais. O nomadismo da voz.

75

2001 Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA

SCHWARCZ

LIDA.

Rua Bandeira Paulista, 702, cj. 32 04532-002 - São Paulo - SP Telefone: (lI) 3846-0801 Fax: (lI) 3846-0814 www.companhiadasletras.com.br

5. A escritura Formas e técnicas. Os escribas. Maneiras de ler. A voz na escrita 96 6. Unidade e diversidade "Erudito" e "popular". A inscrição do vulgar. A escritura e a imagem. A preocupação da voz. .. 117

/I. A OBRA 7. Memória e comunidade Memória e laço social. Intervocalidade e movência. Os relés costumeiros. O poder vocal. 139 8. Dicção e harmonias Formas e níveis de formalização. Os ritmos. Prosa ou verso? .... 159 9. O texto vocalizado Um jogo vocal. A palavra e o canto. Composição Efeitos textuais. O "formulismo"

numérica. 181

10. A ambigüidade retórica Ritmo e convenção. A glosa integrada. Uma sintaxe oral? Discurso direto 201 11. A performance O texto em situação: os "papéis". circunstanciais. O "teatro". .

O ouvinte cúmplice. Provas 219

12. A obra plena A voz e o corpo. Do gesto poético à dança. O espaço e o tempo. Uma teatralidade generalizada. . 240

CONCLUSÃO 13. E a "literatura"? O caso do romance. A ilusão literária. Posfácio:

.

A letra e a voz de Paul Zumthor

Ferreira Notas Documentação

265 -

Jerusa Pires 287 297 307

No curso dos anos 50 de nosso século, vários medievalistas descobriram a existência da poesia oral. Isso deu um pouco de que falar, provocando até tempestades no copo de água dos professores. Ninguém, certamente, jamais pusera em dúvida o papel dos trovadores, menestréis, Minnesànger e outros artistas do verbo na difusão da "literatura" medieval. Esta, aos olhos da maioria dos germanistas, destinara-se, em seu conjunto, à transmissão da boca ao ouvido; aos romanistas, especialmente os franceses, repugnava tal generalização; mas, de qualquer modo, ninguém tirava desse fato conclusões a respeito dos textos que nos foram preservados. Assim, toda uma ordem de traços relativos à poeticidade da linguagem medieval era menos negada, era simplesmente desconhecida. É a existência dessa ordem o que, no rastro dos etnógrafos, atravessada por um feliz acaso, constataram, com entusiasmo ou timidez, alguns de nossos pioneiros. Na mesma época (em 1933), o grande Menéndez Pidal, tão poeta quanto erudito, publicava os dois grossos volumes de seu Romancero hispánico, traçando a história oral de um gênero poético testemunhado desde o século XIV. As estratégias constitutivas da poesia apareciam assim irredutíveis aos modelos que eram considerados até então os únicos válidos e, como por natureza, intemporais; pensava-se que as condições de seu exercício não tinham medida comum com as retóricas da escritura. Um dos primeiros, Werner Krauss, reconheceu isso ... justamente a propósito do Romancero da guerra civil espanhola. Num recuo de mais de trinta anos, podemos espantar-nos com o escândalo que provocou, entre alguns, a emergência dessas novas plagas no horizonte de seus estudos. Mais valia negar a evidência, e essa ameaça que só a curto prazo se tinha razão de temer não arruína a estabilidade de uma filologia assentada sobre séculos de certezas. Entretan7

to, a curiosidade e a honestidade intelectuais (talvez incitadas pelo assombro), ou então o gosto saboroso do risco, levaram outros a trilhar O território desconhecido. Tomava-se posse desse novo continente; ou melhor: já que lembranças muito antigas despertavam para essa aventura, recuperava-se o direito sobre um universo perdido. Essa região nossa velha poesia oral -, da qual se desenhavam pouco a pouco as paisagens, havia sido durante longo período renegada, ocultada, recalcada em nosso inconsciente cultural. Era um pouco dessa história o que, por volta de 1960, nos contava Marshall McLuhan. Doze ou quinze gerações de intelectuais formados à européia, escravizados pelas técnicas escriturais e pela ideologia que elas secretam, haviam perdido a faculdade de dissociar da idéia de poesia a de escritura. O "resto", marginalizado, caía em descrédito: carimbado "popular" em oposição a "erudito", "letrado"; tirado (fazem-no ainda hoje em dia) de um desses termos compostos que mal dissimulam um julgamento de valor, "infra", "paraliteratura" ou seus equivalentes em outras línguas. Mesmo em 1960-5, ao menos na França, prejudicava gravemente o prestígio de um texto do (suponhamos) século XII a possibilidade de provar-se que seu modo de existência havia sido principalmente oral. De tal texto admirado, tido por "obra-prima", um preconceito muito forte impedia a maioria dos leitores eruditos de admitir que tivesse podido não haver sido nunca escrito e, na intenção do autor, não haver sido oferecido somente à leitura. O termo literatura marcava como uma fronteira o limite do admissível. Uma terra de ninguém isolava aquilo que, sob o nome folclore, se deixava às outras disciplinas. No início de nosso século, a "literatura" adotava assim, em escala mundial, de maneira exclusiva, os fatos c os textos homólogos aos que produzia a prática dominante da Europa ocidental: estes os únicos concernentes à consciência crítica, tendo-seIhes creditado caracteres que, segundo a opinião unânime, provinham de sua competência. Em alguma medida, o conjunto de pressupostos que administravam essa atitude de espírito originava-se do centralismo político que, havia longo tempo, fora instaurado pela maioria dos Estados europeus. Estava de acordo com as tendências mistificadoras, até alcgorizantes, que aí presidiam à elaboração das "histórias nacionais": xaltacão do herói que personificasse o superego coletivo; a confecção le um Livro de Imagens no qual fundar um sentido que justificasse o rolo presente: as palavras de Joana d'Arc, a cruzada de Barba-roxa ou ti fogueira de Jan Huss ... A Segunda Guerra Mundial não deixou de pó muitas dessas estátuas, nem abrigou essas garantias. No espaço de IH.llí I poucos anos, um poderoso retorno do reprimido abalava, com a 8

história, as outras ciências humanas e, em sua trilha, os estudos ditos literários. Foi então que, pela janela entreaberta, o termo oralidade entrou como um ladrão no vocabulário dos medievalistas. O termo, mas em proveito de que idéia? Em seu uso mais comum, exclusivamente, com função negativamente c1assificatória, que remetia ;) ausência de escritura. O problema central, nessa ótica, se reduzia a uma exclusão ou a uma dosagem: sim, não; ou sim e não. A difusão tardia do belo livro de R. J. Chaytor, From seript to print (cuja primeira edição data de 1945), em seguida aos trabalhos (anteriores a 1935!) íe Milmam Parry sobre a epopéia iugoslava, deu consistência a essas questões: dispunha-se então, parecia, de procedimentos que permitiam semantizar, sobre o plano da forma poética, cada um dos termos em pauta. Pesquisas antropológicas como as de Walter Ong, após McLuhan, permaneciam, em compensação, ignoradas pela grande maioria dos medievalistas e, antes do fim dos anos 70, não tiveram efeito sobre os seus trabalhos. Tais são as bases sobre as quais trabalhamos e discutimos (durante mesmos anos em que se desenvolvia minha carreira de professor). Pois eis que hoje uma ilusão começa a se dissipar, ao mesmo tempo em que uma dúvida se insinua: a "oralidade" é uma abstração; somente a voz é concreta, apenas sua escuta nos faz tocar as coisas. Essa simples verdade da experiência levou tempo a penetrar entre nós. De fato: testemunhas, livros e ensaios diversos, já bastante numerosos, apareceram desde o início dos anos 80. Médicos, psicanalistas, etnólogos, músicos e poetas: remeto à bibliografia de minha Introduetion à Ia poésie orale. Os medievalistas, espero, não tardarão a acompanhar - ao preço, sem lúvida, de uma dupla conversão metodológica. Eles só o conseguirão, de fato, se admitirem considerar, pelo menos num primeiro momento, a poesia medieval como objeto de antropologia e como loeus dramatiCI/S privilegiado no qual "captar", em sua mais plena significância, as tensões que colocam em questão nossa idéia do homem; romper radi.alrnente com a terminologia e os conceitos que nos inspirou e que manteve, como resultado de nossa natural inércia, a experiência da escritura _ com o risco de retomar, sob outra luz, para além dessa purificação.

Minha intenção não é chover no molhado provando a existência Ic uma oralidade medieval, mas valorizar o fato de que a voz foi então 11m fator constitutivo de toda obra que, por força de nosso uso corrente, foi denominada "literária". Pretendo menos afirmar a importância tia oralidade na transmissão, na produção mesma, dessas obras do que 9

tentar julgar e medir o que essa oralidade implica; menos avaliar o volume de um "setor oral" no conjunto dos textos conservados do que neles integrar os valores próprios de minha percepção e de minha leitura. Esse desejo me leva, no trajeto, a tornar a dizer certas coisas já ditas (e às vezes muito beml); assim, acho útil continuar e ligar em feixes os fios das diversas reflexões, análogas se não convergentes, cuja acumulação manifesta a homogeneidade. Sem dúvida, não é prematuro, em 1985, esboçar tal síntese e assumir abertamente o alegre risco do empreendimento. Catorze anos depois do término de meu Essai de poetique médiévale, ofereço um quadro que, para meus propósitos, a abrange e a situa. Um leitor que retome hoje o Essai aí descobre sem dificuldade os pontos de amarração desse livro: várias vezes, nele assinalava o aspecto "teatral" de toda a poesia medieval, mas não ia nada além dessa declaração, cujas conseqüências ficavam implícitas. A letra e a voz tenta definir essa teatralidade, noção abrangente e não contraditória com as que usava o Essai. Este tratava de textos. Meu ponto de vista aqui é o da obra inteira, concretizada pelas circunstâncias de sua transmissão pela presença simultânea, num tempo e num lugar dados, dos participantes dessa ação. A obra contém e realiza o texto; ela não o suprime em nada porque, desde que tenha poesia, tem, de uma maneira qualquer, textualidade. Ademais, apesar da cronologia, a obra publicada em 1987 desfruta de maior autonomia, em comparação àquela de 1972. Ela se dirige, por essa mesma razão, a um público maior do que antes: além do círculo dos medievalistas especializados no estudo dos textos, a todos os medievalistas; além da comunidade de medievalistas, aos apreciadores de textos. As muitas revisões que tive de operar (livres de toda iconoclastia) poderiam referir-se a todos. Por isso, desejoso de facilitar a leitura aos não-historiadores, forneci aqui e acolá informações que os medi evalistas titulados acharão provavelmente supérfluas; que eles as risquem e passem. Traduzi todos os textos citados em francês antigo ou em língua estrangeira; salvo indicação contrária, essas traduções são minhas. Os exemplos que trago (várias vezes complexos), aqueles que, mais raramente, discuto, são quase sempre pontuais e formam uma série descontínua; esse pontilhismo é o resultado de uma escolha - a única que, pareceu-me, poderia, com um pouquinho de sorte, permitir-me juntar a rapidez da escritura aos encadeamentos da argumentação. Este livro foi escrito entre 1982 e 1985. Forneço, no fim do volume, sob o título "Documentação", uma lista de estudos nos quais, no todo ou em parte, por um ou outro motivo, me baseei. As notas de rodapé só dQo as referências particulares. O exame desse material cessou no fim

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de 1985. A diversidade dos pressupostos e dos métodos representados por tais estudos exige que seja dado sumariamente ao leitor um eixo de referência cronológico. Toda vez que faço referência a essas pesquiSIIS, emprego, de modo sistemático, as palavras recentemente para os unos 1980-5, anteriormente para os anos 1970-80 e antigamente para tudo O que os precedeu. De outro lado, remeto conjuntamente à minha Introduction à Iapoésie ora/e, na qual tentei elaborar os princípios de uma poética da voz. Originalmente, era meu propósito que aquela obra fosse o capítulo introdutivo desta. Desejo que meu leitor não as dissocie.* Montréal, dezembro de 1985

C*) Um primeiro esboço deste livro forneceu, em fevereiro-março de 1983, a matéria pura quatro aulas no College de France; o texto foi publicado em 1984 pelas Presses Universitaires de France, sob o título La Poésie et Ia Voix dans Ia civilisation médiévale.

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1 PERSPECTIVAS

mal-entendido. As múltiplas oralidades. Deslocamentos sários. Marcos espaciotemporais.

neces-

Foi a propósito da canção de gesta que se colocou inicialmente, na 1"lllnça,o problema; em outros lugares, a propósito das formas diversas til' poesia heróica, do Beowulf aos Nibelungen e ao Cantar de mio Cid. 1icssa área privilegiada, as indagações se estenderam pouco a pouco a 11111 ros setores de nossa "literatura medieval", seguindo o capricho das icunstâncias concernentes à natureza dos textos, das línguas em quesIno, das tradições científicas locais e das dificuldades universitárias: as,!1m, na obra de Jean Rychner, um dos principais iniciadores, o enfoque (' deslocou, no espaço de cinco anos, da canção de gesta ao fabliau.* Nnda de surpreendente em que uma ruptura se tenha produzido nos pres"postos dos pesquisadores, justamente quanto ao primeiro ponto. Háhlros herdados do romantismo incitavam a ordenar globalmente as obras ob a etiqueta "epopéia"; e esta remetia a Homero, reserva dos poetas de formação clássica. A descoberta, já antiga, da multiplicidade das catundas textuais na Ilíada e na Odisséia não tinha em nada tirado destes poemas seu caráter exemplar; havia apenas distendido a ligação, íntima , irracional, que os prendia a uma concepção de poesia, geral na Europu desde o século XVI. Donde uma valorização das "epopéias" medievuis, no contexto das revoluções românticas. O exemplo francês é o mais .luro: de Francisque Michel (passando por Victor Hugo) ;;t Joseph Bédicr, assiste-se a uma recuperação das canções de gesta, recebidas e de'Ifradas como os documentos originais da literatura nacional. (*) Fab/iau: Pequeno conto agradável ou edificante, próprio da literatura francesa dos séculos XIII e XIV. Ver Les fabliaux por Joseph Bédier; Paris, Champion, 1969. (N. T.)

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Daí a força do choque quando em 1955, dois anos depois do Rotnancero de Menéndez Pidal, surgiu La chanson de geste: essai sur l'art épique des jongleurs, de Rychner. Este se inspirava nas comunicações apresentadas em 1936, depois em 1951, por A. B. Lord na Associação Americana de Filologia: explorando as pesquisas de seu mestre Parry, prematuramente falecido, Lord explicava as particularidades do texto homérico pelas necessidades próprias à transmissão oral nos aedos e dava conta destas descrevendo a prática dos guslar* sérvios e bósnios observados por volta de 1930. Em torno de Lord, Rychner congregava outras fontes mais antigas e ainda desconhecidas dos medievalistas, como o livro de L. Jousserandot sobre Les bylines russes (1928) e - muito mais importante a longo prazo - o de Marcel Jousse sobre Le style oral et mémotechnique che; les verbo-moteurs (1925). Rychner trabalhava com nove canções de gesta do século XII (algumas das quais representavam, sem dúvida, uma tradição um pouco mais antiga). Na ordem da composição, da textura verbal e do movimento geral, realçava as semelhanças, em vários pontos marcantes, entre esses poemas e os cantos iugoslavos. Deduzia deles uma homologia que se podia estender aos condicionamentos externos da obra: ação do recitador, distribuição das seções, inserção na vida social. O livro deixava numerosos pontos obscuros, e o autor talvez tenha facilitado sua tarefa com a escolha dos exemplos. Pouco importa: uma guinada foi dada. Um congresso, reunido em Liege em 1957, mediu-lhe a envergadura ... ao mesmo tempo em que media a energia daqueles que tomavam o freio nos dentes! Nos dez anos que se seguiram, pesquisas e hipóteses se multiplicaram. Um método de dissimular a oralidade se constituíra, tão mais seguro de si mesmo quanto mais atacado pelos de fora. Seus adeptos não hesitavam em retirar uma doutrina das conclusões empíricas (e do maior interesse) que ele Ihes permitia atingir. Desde 1967, Michael Curschmann podia, em nome dos medievalistas, fazer um balanço, ainda sumário. I Mas, no fim dos anos 70, apareciam sucessivamente na Alemanha a primeira obra de síntese e de bibliografia e uma antologia de artigos surgidos entre 1953 e 1977 sobre a oral idade da epopéia medieval anglo-saxônica e alemã: a canção de gesta era aí abordada por via da música. De resto, as resistências permaneciam forleso Ainda em 1978, no Congresso da Sociedade Rencesvals, que reagrupou a maioria dos especialistas europeus e americanos na matéria, um deles fulminava contra o "pretendido caráter oral das canções de (*) Cantadores cuja denominação por alguns povos balcânicos. (N. T.)

provém de seu instrumento

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monocórdio,

usado

Hcsta". Sua comunicação foi seguida de um debate que, parece-me, deu CIl1 confusão, mas que revelou mais ainda a que ponto, de um lado e do outro, a argumentação, fundada sobre a única atitude comparatista, .ludia o verdadeiro problema.i De fato, este (por essa razão mesma, :m dúvida) só apaixonava nos anos 60 e 70 uma minoria de medievalistas; e hoje, com cada um tomando suas posições como conquistas, o interesse decai. A impressão, sentida por muitos, de desembocar num impasse provérn da própria natureza dos processos empregados, ao longo dos anos, pura localizar aproximativamente, na extensão e na duração - será com efeito outra coisa? -, os fatos da oralidade medieval. Não preciso refazcr aqui um catálogo desses procedimentos. Um mal-entendido enevoa () horizonte, e importa esclarecê-lo de imediato; muitos especialistas (esuuccidos de um importante artigo publicado já em 1936 por Ruth Crosby) ulrnitem tacitamente que o termo oralidade, aquém da transmissão da mensagem poética, implica improvisação; a maioria deixa seus leitores 1111 dúvida, por não ter colocado a questão. Donde tantas querelas sus'iludas pela teoria de Parry-Lord, elaborada para dar conta dos procedimentos de pseudo-improvisação épica, mas tomada por definidora de tuda a poesia oral. Da mesma maneira, quanto se tem sido exposto a divagações por falta de distinguir tradição oral e transmissão oral: a I2rimcira se situa na duracão; a segunda. nQ presente da performance. Em verdade, o fato da oralidade, reduzido aos termos com que, basuuuc sumariamente, o têm definido tantas sábias contribuições, integra-se 111111 na perspectiva geral dos estudos medievais. Aparece aí agora: é o único ponto assegurado; mas de maneira marginal, como uma curiosidudc ou uma anomalia. No pior caso, há o conformismo: toda nature/11 produz seus monstros, não é razão para fazer da teratologia a medi1111 de tudo! Esquece-se que uma anomalia é um fato em busca de utcrpretação. Até hoje, nunca se tentou mesmo interpretar a oralidade 11" poesia medieval. Contentou-se em observar sua existência. Pois, exa1IIIIIentecomo um esqueleto fóssil, uma vez reconhecido, deve ser sepaI/Hlo cios sedimentos que o aprisionam, assim a poesia medieval deve 1'1' separada do meio tardio no qual a existência dos manuscritos lhe permiuu subsistir: foi nesse meio que se constituiu o preconceito que Il'I', da escritura a forma dominante - hegemônica - da linguagem. ( ),~métodos elaborados sob a influência desse preconceito (de fato, todll 1\ filologia do século XIX, e em parte a do nosso) não somente leVIIIIIpouco em conta seus limites de validade, mas têm dificuldade para tll'l crrn inar, na profundidade cronológica, a distância justa de onde condcrur seu objeto. Até hoje; pesquisas e reflexões sobre a oralidade das

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canções de gesta (tomo esse exemplo) têm tido por efeito abalar um pouco as seguranças, amenizar o alcance de vários termos e difundir pequeno número de dúvidas comuns. Elas não nos trouxeram nenhuma certeza. Mas, justamente, a questão não é a certeza. É nosso modo de percepção e, mais ainda, nossa vontade de abertura, implicando a integração de um tipo de imaginação crítica na leitura de nossos velhos textos. Desse ponto de vista, pouco importa a canção de gesta como tal. É um fenômeno geral que convém considerar bem aquém da materialidade de tal gênero particular: o fenômeno da voz humana, dimensão do texto poético, determinada ao mesmo tempo no plano físico, psíquico e sociocultural. Se as discussões sobre a oralidade das tradições poéticas perderam hoje em mordacidade, não foi - ou foi só secundariamente por causa da equivocidade dos fatos. Foi porque - salvo algumas fugazes exceções - essa oralidade não é interrogada sobre sua natureza nem sobre suas funções próprias, e também não o é a Idade Média enquanto lugar de ressonância de uma voz.

Três observações gerais, antes de prosseguir. Convém - primeiramente - distinguir. três tipos de oralidade, correspondentes a três situações de cultura . .Qma. primária ,e imediata, não comporta nenhum contato com a escritura. De fato, ela se encontra apenas nas sociedades desprovidas de todo sistema de simbolização gráfica, ou nos grupos sociais isolados e analfabetos. Não podemos duvidar de que tal foi o caso de amplos setores do mundo camponês medieval, cuja velha cultura (tradicional, oprimida, uma arqueocivilização que preenchia os vazios da outra) deve ter comportado uma poesia de oralidade primária, de que subsistem alguns fragmentos, talvez recolhidos por amantes do pitoresco: assim era no século XIII, em muitos sermões nos quais esses fragmentos permitem ao pregador ilustrar agradável ou alegoricamente seu tema. Não há dúvida, entretanto, de que a quase totalidade da poesia medieval realça putros dois tipos de oralidade suío, ~mum é coexistirem com a escri!.ill:.a.,..noseio de um grupo social. Denominei-os respectivamente. oralidade mista" quando a influência do escrito permanece externa, parcial e atrasada; e oralidade segundª,- quando se recompõe com base na escritura num meio onde esta tende a esgotar os valores da voz no uso e no imaginário. Invertendo o ponto de vista, dir-se-ia que a oralidade mista procede da existência de uma~ tura "escrita" (no sentido de "possuidora de uma escritura"); e a oraliCiãde segunda, de uma cultura "letrada" (na qual toda expressão é marcada mais ou menos pela presença da escrita). Entre os séculos VI e XVI,

prevaleceu uma situação de oralidade mista ou segunda conforme as épo.as, as regiões, as classes sociais, quando não os indivíduos. Por outro lodo, essa subdivisão não segue nenhuma cronologia, mesmo que, no geral, seja provável que a importância relativa da oralidade tenha aumenlodo a partir do século XIII. O mais antigo poema "francês", a seqüênda de Eu/alie, um pouco anterior a 900, composta por um monge letrado para os fiéis reunidos na igreja de Saint-Armand, perto de Valenciennes, procedia de um regime de oralidade segunda; os originais "populares" disso que denominei as "canções de encontro", nos séculos XII e XIII, Iransmitiam-se provavelmente em regime de oralidade mista. Segunda observação: no interior de uma sociedade que conhece a iscritura, todo texto poético, na medida em que visa a ser transmitido 11 um público, é forçosamente submetido à condição seguinte: cada uma das cinco operações que constituem sua história (a produção, a comunicação, a recepção, a conservação e a repetição) realiza-se seja por via sensorial, oral-auditiva, seja por uma inscrição oferecida à percepção visual, seja - mais raramente - por esses dois procedimentos conjunlamente. O número das combinações possíveis se eleva, e a problemáti;u então se diversifica. Quando a comunicação e a recepção (assim como, de maneira excepcional, a produção) coincidem no tempo, temos lima situação de performance. Terceira observação: quando um poeta ou seu intérpretecanta ou recita (seja o texto improvisado, seja memorizado), sua voz, por si só, lhe confere autoridade. O prestígio da tradição, certamente, contribui pura valorizá-lo; mas o que o integra nessa tradição é a ação da voz. t-\e Q poeta ou intérprete. ao contrário. lê num ljvro O que os ouvintes "Hclltillll, a autoridade provém do livro como ta1. objeto visualmente percebido no centro do espetáculo performático; a escritura, com os valoI i'N que ela significa e mantém, pertence explicitamente à performance, No canto ou na recitação, mesmo se o texto declamado foi composto por escrito, a escritura permanece escondida. Por isso mesmo, a leitura pública é menos teatral, qualquer que seja a actio do leitor..a presença do livro, elemento fixo, freia o movimento dramático, introduzindo neh' IIS conotações originais. Ela não pode, contudo, eliminar a predomiInllcia do efeito vocal. 1\ coexistência, na prática cultural, desses condicionamentos poéIIros diversos é universalmente comprovada no Ocidente, da Irlanda à oscóvia e da Noruega à Espanha, do século X ou XI aos séculos XVI, VII, às vezes XVIII. Em contrapartida, as combinações de tantos fatoH'M no sabor das circunstâncias provocam situações múltiplas demais para IIno se atenuar (aos olhos do observador moderno) seu traço comum.

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19

-

Muitos dos medievalistas são assim levados a descuidar deste, ou dá-I o por estabelecido, quer dizer, nulo e sem efeito: e isso tanto mais quanto nada permite, de maneira estável, ligar a tal gênero poético tal modo de transmissão: nenhum índice, nem na tradição documental nem nos textos, impede-nos de pensar - mesmo se isso é pouco provável - que tal canção tenha sido, algum dia, lida em voz alta, diante de algum grupo de ouvintes. Certos fabliaux não teriam sido cantados, talvez como imitação irônica de uma canção de gesta, como Audigier? Ou de uma canção lírica, como Baillet, cuja forma métrica repele, parece-me, a simples recitação? .. As possibilidades retumbam, os esquemas pressupostos se esboroam no concreto. Fica a onipresença da voz, participando, em sua plena materialidade, da significância do texto e a partir daí modificando, de alguma maneira, as regras de nossa leitura. O ato da audição, pelo qual a obra (ao termo talvez de um longo processo) se concretiza socialmente, não pode deixar de inscrever-se como antecipação no texto, como um projeto, e aí traçar os signos de uma intenção; e esta define o lugar de articulação do discurso no sujeito que o pronuncia.

Desse modo, não menos que dominar as técnicas da filologia e da análise textual, a tarefa ideal do medievalista seria convencer-se dos valores incomparáveis da voz; sensibilizar sua atenção para isso; melhor dizendo, vivê-los, pois só existem ao vivo, independentemente dos conceitos nos quais amiúde somos levados a aprisioná-I os para descrevêlos. Nosso estudo deveria tirar sua inspiração e seu dinamismo da consideração dessa beleza interior da voz humana, "tomada o mais perto de sua fonte", como dizia Paul Valéry. Essa beleza pode, é verdade, conceber-se como particular, própria ao indivíduo emissor do som vocal; a esse título, salvo exceção dificilmente imaginável, ela nos é intocável, depois de tão longa duração. Mas é concebida, também, como histórica e social naquilo que une os seres e, pelo uso que fazemos dela, modula a cultura comum. No texto pronunciado, não só pelo fato
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