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A JORNADA DAS PROTEÍNAS Descubra como um peito de frango pode se tornar parte dos seus bíceps! Por Ney Felipe Fernandes Nutricionista, Especialista em Fisiologia Do Exercício pela UVA-RJ, Mestrando em Fisiologia pela UFPR. Contato com o autor:
[email protected] Website: www.nutricaoavancada.com.br
“Só sabemos com exatidão quando sabemos pouco; com o conhecimento vem a dúvida” GOETHE. Nunca pensei que ia dizer isso, mas o processo de nutrir uma célula é complicado. Para nossa mente, nem tanto. Afinal, tudo que você tem que fazer é encontrar o alimento, mastigálo, engolir, e pronto, já se alimentou. O corpo que “se vire”. No entanto, para nosso corpo, isso exige uma série de mecanismos, manobras e sutis combinações fisiológicas para que no final de tudo isso, a célula receba uma molécula microscópica oriunda do alimento macroscópico. Escrever esse artigo foi um desafio para mim, porque ele é direcionado tanto para o público entusiasta e leigo cientificamente quanto para o público acadêmico que às vezes não encontra sozinho a lógica da transformação de alimento em músculo. E realmente, nem encontrará em um livro ou um paper, pois para entender a interligação das coisas é preciso começar da genética, ir para a biologia celular e molecular, evoluir para a histologia e integrar tudo isso dentro da fisiologia. No entanto, não caberia em um artigo (até por isso existem os grandes tratados médicos) falar sobre todo o processo de digestão, absorção, distribuição e aproveitamento orgânico. Porém podemos, sim, mergulhar em uma grande viagem juntos, caminhar por novas descobertas e chegar ao ponto mais importante: como acontece a conversão de proteína dietética em músculos...! Vamos lá? O presente artigo tem o intuito de informar a população, divulgar estudos, discutir atualidades, sem o objetivo de substituir uma consulta nutricional individualizada. Procure sempre a orientação personalizada de um profissional, e descubra seu melhor!
A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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Antes de tudo vamos entrar em um acordo: Não existe absorção de proteínas! Quando se fala em “absorção de proteínas” estamos utilizando um termo muito amplo e ao mesmo tempo tão vago quanto “comer demais engorda”. Imagina-se que absorção de proteína é fazer, de algum modo, o peito de frango que você comeu ir parar nos seus bíceps. Correto, porém para que isso ocorra, o aminoácido precisa viajar “muitos quilômetros” para fazer parte (ou não) de um bíceps, ou tríceps, etc. E você precisará de todo um ambiente metabólico favorável para que isso aconteça. Quando me perguntam sobre absorção de proteínas, eu fico confuso. Confuso porque não absorvemos proteínas. Isso é impossível! E às vezes eu tenho receio de parecer arrogante ou “sabe-tudo” só por uma questão semântica. Porém nesse artigo me sinto à vontade de dizer que não absorvemos proteínas. Podemos sintetizar proteínas, degradar, excretar, endocitar, exocitar, modificar em nível celular as proteínas ou então, absorver aminoácidos e peptídeos. Porém as macromoléculas chamadas pelos gregos de “proteínas” que significa “de primordial importância” são impossíveis de serem absorvidas (1). DIGESTÃO – A primeira escala da viagem O nosso trato gastrintestinal foi arquitetado para quebrar toda e qualquer proteína que porventura apareça nele. Quando há o consumo de uma proteína (vamos esquecer aqui um pouco a suplementação de proteína e pensar em uma proteína sólida mesmo, como um ovo ou peito de frango para facilitar a visualização) o primeiro mecanismo a ser ativado é o da parcial digestão gástrica pelos mecanismos do sistema nervoso entérico, o sistema “independente” que direciona os movimentos e secreções gástricas. Quando uma proteína chega ao estômago, os movimentos de mistura se iniciam. Células específicas “percebem” a presença de alimento e secretam um hormônio chamado gastrina, que vai agir em células específicas, as células parietais, iniciando a secreção de HCl. O HCl vai promover acidose estomacal o que faz com que hormônios-chave na quebra de proteínas (como a pepsina, por xemplo) seja ativada a partir do pepsinogênio em um ph específico, promovido por esse HCl previamente secretado(2). Em outras palavras: pouca influência tem o ácido sobre a proteína. O ácido em si é fator primário para ativar as proteínas na sua pré-ativa para a forma ativa. Estamos começando a jornada do peito de frango. Essa é a primeira parte do ciclo gástrico das proteínas. Na verdade, eu não citei antes, mas antes mesmo de colocarmos o alimento na boca, a acetilcolina, através do nervo vago pela inervação parassimpática, já estimulou um pouco do ácido clorídrico (HCl) devido a fase cefálica da digestão (a fase em que o cheiro ou o estímulo visual do alimento nos dá “água na boca”), portanto não só do sistema nervoso entérico sobrevive o trato gastrintestinal, mas também do sistema nervoso central (SNC) (3). Por mais que a digestão da proteína tenha início no estômago, a maior parte deste processo ocorre no intestino delgado, mais precisamente no duodeno e jejuno. Os eventos que promovem a degradação de polipeptídios em aminoácidos no intestino já estão bem elucidados pela literatura. As proteínas deixam o estômago ainda na forma de grandes moléculas (polipeptídios, peptonas, etc.) e a partir de enzimas presentes nos sucos pancreáticos, temos a formação de moléculas menores, que são os di e tripeptídios e a finalização desse processo ocorre por proteases específicas que são produzidas nas microvilosidades da mucosa intestinal e fazem todo esse material se reduzir a aminoácidos, facilitando assim a tão comentada, desejada e especulada, absorção de proteínas (porém ainda estamos falando da absorção pelo intestino). Esse processo promove ainda a reabsorção da proteína endógena (do próprio corpo) e produtos de descamação intestinal, visto que A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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proteínas endógenas (enzimas) são necessárias para digerir proteínas exógenas (obtidas da dieta) (3,4,5). Os aminoácidos são absorvidos, ou seja, transferidos da luz intestinal para o sangue principalmente por meio de transporte ativo competitivo. Quando se fala em transporte ativo na biologia, estamos falando de gasto de energia, ou seja, a absorção de aminoácidos requer gasto e ressíntese de ATP, a moeda corrente de energia. Esse transporte ativo necessita de piridoxina (vitamina B6) como transportador. E o que faz desse transporte ser, além de ativo, competitivo, é que os aminoácidos no intestino podem competir entre si para absorção no sangue, e também, já estando no plasma (veremos mais detalhes posteriormente), podem competir pelos sítios de receptores celulares. Porém, alguns aminoácidos podem ser absorvidos pelas células intestinais por meio de difusão facilitada, como ocorre com os carboidratos. Em geral, o aminoácido mais abundante retarda a absorção dos demais (4,6).
FIGURA 1: Ação das enzimas pancreáticas (quimiotripsina, carboxipeptidases) no lúmen intestinal (por onde o alimento passa) e a posterior ação das enzimas intestinais (aminopeptidases) promovendo a quebra completa da proteína em aminoácidos. Esses entram para o citoplasma da célula da mucosa intestinal e depois, através dos capilares, (que são vasos de calibre muito pequeno) irão para a circulação.
Mas os aminoácidos não chegam livremente na circulação sistêmica. Antes ainda, eles passam pelo fígado para fazer o “balanço” do que entrou, do que deve sair, do que deve ficar etc. Por meio da veia porta, uma enxurrada de aminoácidos chega até o fígado sob forma livre. Então nos hepatócitos, teremos outro tipo de absorção: a absorção celular. O que nossas células hepáticas vão fazer com os aminoácidos que acabaram de chegar vai depender do que eu chamo de “momento celular”. O seu estado nutricional do momento. Você está em repouso? Está se exercitando? É um paciente que está em estresse pós-traumático? Depende sobre efeito de qual hormônio seu aparelho hepático está. O indivíduo que almeja hipertrofia deve saber disso: o que seu corpo vai fazer com os aminoácidos que você está comendo depende tanto do que você está fazendo quanto do que você está comendo. A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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O famoso atleta interior Dan Millman, diz em seus livros que nosso corpo é uma máquina que precisa apenas de recados. Sutis recados e ele entenderá. Ele cita inclusive o alongamento como exemplo. Se você quiser alcançar a ponta dos seus dedos no chão sem flexionar os joelhos vai ter que, dia após dia, dar um pequeno recado ao seu corpo. Ele entenderá. Se tentar isso bruscamente de uma vez, você se machucará. Com nosso metabolismo protéico não é diferente. Isso não lhe soa familiar? “Treine, coma, durma”. O mantra é pra ser seguido. Isso tudo fazemos para manipular várias variáveis envolvidas no processo de crescimento muscular, no processo de transformar seu corpo em uma verdadeira máquina. Deixá-lo dar tudo que ele pode dar. Mas voltando ao metabolismo protéico, temos agora uma grande quantidade de aminoácidos que chegaram ao fígado. E o fígado está sobre a ordem dos hormônios, os grandes “maestros” dessa orquestra toda. Devo fazer um parêntese aqui: com os aminoácidos de cadeia ramificada (leucina, isoleucina e valina) a metabolização é um pouco diferente. Ao passo que alguns aminoácidos pouca influência sofrem quando estão no fígado, outros, como a alanina, é preferida pelo fígado, e outros aminoácidos possuem preferência por outros órgãos, como a glutamina, que tem parte de sua ingestão utilizada como substrato pelos enterócitos (células intestinais). Vamos supor que nesse dia você fez o tema de casa certinho. Você trabalhou com as outras variáveis perfeitamente: treinou como um cavalo e dormiu como um neném na noite anterior. Agora o próximo passo é comer. E você comeu, tomou sua dose de whey hidrolisado (que é claro, não precisou passar por todas as etapas da digestão que eu citei) e colocou rapidamente aminoácidos no sangue. Mas absorção de aminoácidos não é tudo. A nutrição, no meu entender, só acaba quando o alimento chega na célula e é usado por ela de acordo com nossa intenção. Claro que não mais em forma de alimento, mas chega. O próximo passo é o endereçamento de aminoácidos.
DISTRIBUIÇÃO DE AMINOÁCIDOS – A viagem do aminoácido do fígado para a célula Exceto o triptofano, o único aminoácido que circula no sangue ligado à proteínas plasmáticas (albumina), os aminoácidos circulam (em um percentual relativamente pequeno) livremente no sangue. Continuando linearmente nossa jornada, nosso alimento acaba de chegar sob forma de aminoácidos no fígado e este vai agir (aproximadamente) da seguinte maneira: 20% dos aminoácidos que entraram no fígado vão para a circulação, para que possam chegar aos outros tecidos e cumprir seu papel celular específico (estrutural, enzimático, etc), 50% são transformados em uréia, 6% são utilizados para síntese de proteínas plasmáticas (albumina, por exemplo, que carreia elementos não solúveis no plasma, como os esteróides anabolizantes) e outros tantos são metabolizados e retidos no próprio fígado. O fígado tem preferência na síntese de proteínas de meia vida mais curta como fibrinas ou enzimas que serão utilizadas pelo próprio hepatócito (7). Mas o meu foco neste artigo são os aminoácidos que vão da direção fígado sangue, pois só assim chegarão ao destino final: a célula muscular! O fígado vai liberar os aminoácidos para o sangue, e no sangue os aminoácidos chegarão até as células. Ultrapassarão barreiras intersticiais até chegar à membrana celular. Devemos lembrar que os aminoácidos passam por processo de transporte na membrana celular que é anfipática, ou seja, é tanto hidrofóbica quanto hidrofílica. Logo, a permeabilidade de um aminoácido na célula é ditada pela presença de transportadores celulares de membrana. Esses transportadores, esses receptores, são também proteínas, que um dia foram sintetizadas, migradas e ancoradas na membrana celular pelas organelas celulares (6,7). A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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A visão que a maioria das pessoas (inclusive profissionais da área) têm, é que nosso corpo gira em torno da hipertrofia muscular. E isso é a visão mais pobre que se pode ter. Enquanto teu corpo estiver regenerando uma fibra muscular, ele está regenerando um receptor celular de adrenalina por exemplo. Ele está formando glicoproteínas de membrana pra proteger as células de agressões químicas, físicas. Ele está formando estruturas protéicas celulares (citoesqueleto) pra dar maleabilidade e estrutura ao formato da célula. Estruturas protéicas servem como trilho no campo interno da célula. Essas estruturas (microtúbulos) são necessárias para jogar uma “bolsa” cheia de insulina para fora da célula (pois a insulina tem que ir para o sangue intacta) ou então, você pode ter o ancoramento de receptores (como os Gluts) na membrana (1). Essas estruturas protéicas existem, pois, ao contrário do que aprendemos no primário, as coisas não ficam flutuando na célula. Tudo tem um caminho, um roteiro, uma ordem. Mas, passado o sermão celular, vamos retomar ao pensamento do destino tão glorioso do nosso aminoácido que fora acabado de passar pelo fígado. Vamos focar aqui o aminoácido que irá exclusivamente virar músculo. Você que sempre se pergunta sobre o trajeto de uma proteína deve estar lendo isso com muita empolgação, e pra falar a verdade, eu também escrevo com empolgação, pois eu não sei como pode uma maquinaria ser tão perfeita quanto o corpo humano. Mas enfim, o aminoácido já está no sangue. O fígado permitiu a passagem dele pois recebeu uma mensagem que o corpo precisa de muito aminoácido naquele momento. Nesse momento, pra saber se a absorção dele pela célula será eficaz temos que lembrar em que momento estamos. Se estivermos em um momento catabólico teremos a degradação desses (ainda pelo fígado, desaminando-os), mas, como se trata de construção de músculos, ou esse aminoácido é oriundo de uma refeição (um almoço) ou de um shake pós-treino (com carboidrato de alto índice glicêmico, uma glicose, por exemplo). Mas para que ele seja utilizado pela célula ele precisa ser absorvido pela mesma. Este é o próximo passo.
ABSORÇÃO CELULAR – Quando o aminoácido tem que se retirar do sangue! Em geral, os aminoácidos livres estão muito mais concentrados dentro das células ofertando nitrogênio, do que no plasma. Alguns aminoácidos como a glutamina estão em um volume muito mais alto no ambiente intracelular (19,45Mm intra x 0,57 Mm extra). Dispomos de 20 aminoácidos na natureza, e assim como os aminoácidos variam, os receptores celulares, ou seja, os portões transmembrana variam também de acordo com a especificidade do mesmo. Em geral, aminoácidos essenciais são transportados por diferentes carreadores e esses carreadores obedecem a duas classes: 1) sódio-dependente e sódio-independente. O transportador sódio-dependente atua no sistema de “simporte” ou co-transporte. Esse mecanismo de transportador não atua somente em aminoácidos. Nós temos várias células especializadas em transporte – antiporte no organismo (só pra citar, as células do túbulo renal que sintetizam bicarbonato, regulando a acidez do sangue) (2,8). Falo isso para não ficarmos restritos somente a visão de que o corpo gira em torno de formar músculos. Mas seguindo a diante, temos o sistema de cotransporte fazendo com que o canal se abra e, como o sódio tende automaticamente a entrar na célula (pois ele está em maior concentração no sangue - 140mEq fora contra 10mEq dentro da célula, ele obedecerá o gradiente) o aminoácido em questão “passará” junto com ele, e o sódio depois retornará para o ambiente externo via bomba sódio-potássio que reequilibra o gradiente. Alguns aminoácidos (como os BCAAs), no entanto, possuem transportadores sódio-independentes. Os transportadores “System L” dos BCAAs, “System N” da glutamina , histidina e asparagina, são A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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sódio-independentes e agem por outra forma, por outras maneiras de formação de gradiente (8). O comportamento dos receptores celulares de aminoácidos (atualmente foram identificados sete) podem sofrer grande influencia exercida pelos hormônios. A insulina, por exemplo, sensibiliza receptores “System A” e “System Xsc” fazendo com que os aminoácidos relacionados com esses receptores sejam prontamente retirados do sangue e internalizados pela célula. Sem querer prolongar muito o potencial anabólico inquestionável da insulina, após a secreção da insulina, temos ainda níveis reduzidos de BCAA no sangue, representando o influxo celular destes (8). Uma vez o aminoácido na célula, com todas as condições favoráveis, esse vai se tornar o que tanto queremos: músculo (lembrando sempre que isso pode ser em qualquer célula, porém este artigo tem como ênfase a célula muscular)! ACTINA E MIOSINA – Os protagonistas O músculo estriado que vemos crescendo é um conjunto de uma intrincada rede de miofibrilas se desenvolvendo a cada dia que passa. A cada treino que conseguimos concluir. A cada refeição que conseguimos comer no horário certo. Essa conspiração metabólica (descanso, dieta e treino) pode ser considerado o substrato pra promover a hipertrofia miofibrilar. Isso muitos sabem, porém o que é uma miofibrila e como ela se desenvolve, é que eu quero abordar aqui rapidamente, para que o que eu irei falar no próximo tópico faça sentido. O propósito deste artigo não é descrever os processos envolvidos na contração muscular e sim na formação da proteína muscular, por isso creio que não seja pertinente abordarmos aqui todo o processo de recebimento de potencial de membrana na placa motora, chegada do potencial despolarizando o interior da célula muscular e o deslizamento das actinas guiado pelo movimento da cabeça da miosina. Uma coisa deve ficar clara: no processo de hipertrofia ocorre aumento no tamanho e no número de proteínas contráteis (actina e miosina) dentro da célula (9). As miofibrilas são actina e miosina. A actina é uma proteína de peso molecular grande, formadas por monômeros que são subunidades de actina globular (actina G). Milhares de actina G se acondicionam para formar uma actina F (filamentar). A actina possui diversas funções em outras células, por ser uma proteína de sustentação. Nas células que precisam se locomover com pseudópodes, a actina se torna seu esqueleto, nos eritrócitos, que precisam de uma “parede celular” forte para passar por entre os capilares, a actina lhes dá sustentação. A actina, bem como sua síntese, é passiva de fatores externos, estímulos neuronais e metabólicos e uma intrincada rede de proteínas cinases, proteínas acessórias e um grupo de proteínas conhecidas como “rede Rho” que recebem esses sinais (exemplo: fatores de crescimento estimulados pelo treinamento muscular) e modificam o comportamento da actina (10). A miosina é uma proteína maior, mais espessa (aproximadamente 480kDa) que consiste em seis polipeptídeos diferentes com um par de grandes cadeias pesadas e dois pares de cadeias leves. Possuem uma “cabeça” que se ligará a actina na contração muscular. Essa cabeça também tem atividade ATPásica ou seja, ocorre ali o processo de quebra de ATP. Embora não esteja claro ainda, a organização das miosinas musculares ocorre através de proteínas acessórias como a titina do citoesqueleto que promove o alinhamento da miosina no sacômero, além da miomesina e proteína C (11). APROVEITAMENTO CELULAR – O momento derradeiro! Minha consciência pede para eu escrever um adendo: nada é garantido no ramo da bioquímica. Eu e ninguém podemos assegurar que o aminoácido que está agora na sua célula vai ser utilizado para a síntese de músculos. Pode ocorrer que este seja desaminado e seja A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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fonte de energia, ou que ainda antes de chegar à célula ele teve sua base nitrogenada convertida em uréia. Pode ser. Mas vamos pensar que tudo conspirou pra que ele chegasse na célula e essa, já previamente sinalizada pelos hormônios anabólicos, saberá levar esse aminoácido pra cumprir seu verdadeiro papel: músculo! O processo de aumentar o volume muscular se chama hipertrofia. Em geral, não fabricamos novas fibras musculares (hiperplasia celular), embora alguns autores hoje observem que sim, a hiperplasia pode contribuir um pouco para o volume muscular total, a hipertrofia muscular, ou seja, o aumento da fibra já existente contribui para a maior parte da volumização muscular que podemos perceber em um indivíduo que tem praticado musculação nos últimos meses (12,13). A hipertrofia muscular ocorre pelo aumento de miofibrilas, um aumento na síntese de proteínas contráteis dentro da célula muscular. Temos a hipertrofia sarcoplasmática, decorrente de um acúmulo de organelas, metabólitos e nutrientes no sarcoplasma (citoplasma da célula muscular), porém essa não terá a contribuição daquele nosso aminoácido que tem viajado desde o peito de frango até aqui. Não no sentido de fazer ele se converter realmente em uma miofibrila muscular (actina ou miosina). Eu não pretendo me ater muito na área da biologia celular e molecular, mesmo porque (até pode ser observado pela linguagem utilizada por mim) esse artigo não é somente para acadêmicos. Pode até ser e com certeza será bem aproveitado por acadêmicos, no entanto o público alvo desse artigo é o praticante de exercício físico, o entusiasta, o curioso. O indivíduo que sempre quis saber um pouco mais sobre seu corpo ou sobre o que acontece depois que ele bebe a dose de Whey Protein após o treino, porém nunca achou uma pessoa para perguntar. Mas para fazer sentido o final, infelizmente (ou felizmente, afinal relembrar é viver) eu vou ter que dar uma retomada nos mecanismos celulares envolvidos na síntese de proteínas. Embora a síntese de proteínas ocorra no citosol, toda síntese de proteína inicia-se no núcleo, pelo processo chamado “transcrição”. Temos em nosso DNA determinadas seqüências específicas de nucleotídeos (ou seja, o DNA é um aglomerado de nucleotídeos). Nessas seqüências estão informações para a formação de uma proteína, porém o DNA não pode liberar uma seqüência x de nucleotídeos, ou seja, um gene, para ir ao citoplama e ali, junto aos ribossomos e ao retículo endoplasmático (que falarei em seguida) formar uma proteína. O DNA contém todas as nossas informações. Contém o código genético que nos dá a cor dos olhos, a cor do cabelo. Se iremos ter dificuldade em ganhar massa muscular, se teremos facilidade, etc. De fato, ele é muito precioso e por isso ele faz uma cópia de si mesmo. Uma enzima denominada RNAm polimerase identifica um gene através de uma seqüência de nucleotídeos denominada sequência promotora. Ela colide aleatoriamente ao DNA, porém ao encontrar esse gene ela se fixa fortemente ao DNA. Ela possui um sítio que desenrola a dupla fita em hélice, dessa maneira deixando as bases dos nucleotídeos expostas. De acordo com o pareamento das bases complementares, em um sítio específico da enzima, a RNApolimerase adiciona ribonucleotídeos dando início a uma cadeia de açúcar-fosfato unidos por ligações fosfodiéster complementando as bases da fita do DNA que está sendo exposta para a transcrição. Dessa forma, a RNApolimerase abre a fita à sua frente e paulatinamente (na direção 5 para 3) vai agregando ribonucleotídeos a cadeia de RNAm. A energia para a formação é derivada das ligações fosfato-fosfato dos ribonucleotídeos trifosfatos (ATP, UTP, GTP, CTP). Concomitantemente a isso, em um sítio distal a fita de DNA se reassocia-se e assume seu formato antigo. A transcrição é interrompida quando a RNApolimerase encontra um sítio terminador. Pronto, temos uma cópia do DNA. Temos um RNA, algo fino, uma fita, carregando o tipo de proteína que vamos ter (quais e quantos aminoácidos essa proteína terá) (3,14). Uma sequência de eventos promove estabilidade para a molécula de RNAm (pra quem estuda biologia estou falando do capeamento, adenilação, splicing, etc) de maneira a facilitar sua exportação pelos poros do envelope nuclear além de sinalizar que a mesma se encontra A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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pronta. Após todo esse processo, a molécula de RNAm, agregada à sinalizadores protéicos está apta a deixar o nucleoplasma (1). O RNAm deixando o núcleo se ligará em agregados ribonucleoproteicos, denominados ribossomos. A maquinaria ribossomal vai ler os nucleotídeos que esse trás consigo, ou seja, aquelas substâncias que ele copiou do DNA, porém apenas em trincas. A cada três nucleotídeos (uma trinca de nucleotídeo é denominada códon), temos um aminoácido específico. Então do DNA fizemos o RNAm e do RNA faremos os aminoácidos. Esta é a sequência. A primeira etapa se chama transcrição e a segunda, tradução, pois os ribossomos, aliados ao RNAt (transportador) vão traduzir os códons em aminoácidos (1,3,14). Você lembra que os aminoácidos que comemos tinham acabado de chegar na célula? Pois é, agora o RNAm está passando a seguintes trincas sobre o ribossomo: UUA-GUU-AUA. O ribossomo (junto com o RNAt) lê a primeira e “chama” do citoplasma o primeiro aminoácido: a leucina. Quando ele lê a segunda trinca (GUU), ele chama o aminoácido pertencente a esse código para se ligar neste (formando a cadeia polipeptídica), que é a valina. E por fim, o último códon se refere à isoleucina. Temos aí uma proteína sendo formada por BCAA´s. Duas coisas muito importantes: Um aminoácido pode ter mais de uma trinca (no caso da Serina, Arginina e Leucina, são 6 trincas de cada) e também devemos lembrar que uma proteína (como a actina) é uma proteína grande, e esses aminoácidos são apenas um percentual mínimo de toda uma estrutura protéica que vai ser formada. Essa síntese, a formação desse colar por cada “pérola” se ligando uma a uma vai acontecer até que o ribossomo leia uma seqüência específica de nucleotídeos e outros sinais que indiquem o “stop” disso. Esse códon de terminação pode ser UAA, UAG ou UGA. Uma vez a proteína formada ela poderá ou não ser degradada por proteossomos, que são enzimas que promovem a proteólise caso tenha ocorrido alguma falha no desenvolvimento da estrutura protéica (1,14). Algumas proteínas ao final da síntese caso permaneçam ainda pelo citosol, ou seja, específicas para alguma organela específica (ex: mitocôndria) possuem uma seqüência sinal que as direciona para o destino. Já as proteínas solúveis, ou destinadas à secreção são produzidas rente ao retículo endoplasmático e conforme vai crescendo a cadeia elas penetram por poros no retículo endoplasmático, são glicosiladas, embaladas e enviadas para o aparelho de Golgi, e lá depois de várias modificações são exocitadas, retiradas da célula com segurança dentro de uma bola (isso ocorre com proteínas que devem deixar a célula sem sofrer alterações do ambiente celular, como a insulina, por exemplo) (1). Agora, para concluir a bela viagem, imaginemos uma actina sendo sintetizada. Lembrese que tudo começa no DNA e lembre-se também que o sítio de ligação (receptor) de um esteróide como a testosterona é no DNA. Pense em quão poderosa é a testosterona para desencadear toda aquela reação de síntese protéica que foi explicada acima. A testosterona está lá, próxima do sítio do DNA onde tem uma seqüência de letras que sintetiza actina ou miosina. O indivíduo começou a praticar musculação. Ele teve um fator externo que solicitou que seu corpo deveria produzir mais testosterona. O corpo dele produziu mais testosterona com o treinamento. A testosterona chegou na célula e achou seu receptor nuclear. O receptor nuclear ativou o gene de produção de proteína celular, ou seja, chamou a RNA polimerase pra fazer uma RNAm de actina. Começa então a síntese de actina no citosol (ou de miosina, enfim) todos os aminoácidos são recrutados nesse momento... é hora de construir a fortaleza! Aparece durante a síntese no ribossomo, a seqüência de um aminoácido chamado Leucina. Esse aminoácido acaba de chegar na célula, pois você comeu há algumas horas um delicioso peito de frango. Esse aminoácido é incorporado a outros aminoácidos para formar uma proteína nova e pronto! Esse aminoácido já não é mais do frango. Agora ele faz parte de você. Microscopicamente ele É você. Rompendo qualquer separação entre você e o outro, em uma cascata de reações em que nossos átomos também um dia formarão outras coisas, você tem um novo “eu” sendo formado em resposta ao treinamento. Na figura abaixo podemos visualizar melhor os acontecimentos que descrevi acima: A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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FIGURA 2: Repare no topo desta figura a formação do RNAm (mensageiro) como cópia idêntica do DNA. Imagine que ali há ação local de um hormônio (testosterona) promovendo a formação desse RNAm. Então ele se desloca para fora do núcleo pelos poros nucleares e no citoplasma, através dos ribossomos começa-se o processo de tradução (traduzir o RNAm em proteína). Conforme o RNAm “caminha” pelo ribossomo, aminoácidos são inseridos na cadeia polipeptídica.
O treinamento, dieta, e descanso fizeram com que o aminoácido que estava no seu alimento fosse parar exatamente onde você queria... no músculo! Agora, imagina que tudo isso que eu escrevi e mais um milhão de coisas que eu ainda não conheço e que a ciência não descobriu aconteceu enquanto você simplesmente dormia após um delicioso jantar. Isso não é magnífico? Resumo da viagem:
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PROTEÍNAS FAQ – As dúvidas mais comuns. É verdade que temos um limite para absorver proteínas? Não. Podemos ter um limite na utilização das mesmas pelas células. Podemos ter um limite na síntese ou distribuição hepática. Porém limite de absorção não. Não importa quanto de proteína você coloque em uma refeição. Você vai absorver sim, mas vai sobrecarregar seus sistemas. Provavelmente muito disso vai ser metabolizado em outro substrato. Em caso de suplementos protéicos, proteínas de rápido esvaziamento gástrico, podem alterar muito a osmolalidade do lúmen intestinal, fazendo com que a água seja direcionada para a luz intestinal e água no intestino = diarréia. Nesse caso sim, haveria perda de proteína dietética. Da mesma forma que se você ingerir muito carboidrato simples, vai ter um episódio de diarréia. O comportamento do nosso trato gastrintestinal depende exclusivamente do volume e do tipo do alimento que estamos colocando nele. Por exemplo, conhecemos algumas pessoas que são intolerantes à lactose, porém em um grau relativo, todos somos. Fatores como quantidade e se a lactose está sendo ingerida com algum alimento fazem com que não percebamos isso. Mas concluindo, deveríamos estar preocupados mais com o aproveitamento de proteínas do que absorção delas. Percebo que às vezes envolve-se em uma certa magia a história da absorção intestinal de proteínas. “Ah, mas se eu colocar leite ou aveia ou não sei mais o que não absorvo proteínas”. Primeiro de tudo que a absorção é tanto química quanto física. Digo física porque o nutriente realmente “bate” em um movimento de propulsão e mistura na parede (leia-se no epitélio dos enterócitos) e as bordas em escova do jejuno e duodeno e ali ficam “presas” entre essas bordas, permitindo que os aminoácidos sejam carreados para o sangue (aí temos a absorção química) e segundo que, alguns alimentos tem esvaziamento gástrico diferente dos outros. Se você consumir um pedaço de peito de frango com um copo de coca-cola, com certeza a glicose da coca-cola chegará antes nas células do que o aminoácido do frango! Para ocorrer anabolismo pós-treino eu preciso consumir muita proteína e de rápida absorção (suplementos) após o treino. Não. Após o treino você precisa sinalizar ao seu corpo o mais rápido que seu exercício acabou. Que a hora de produção excessiva de energia acabou. O hormônio que faz isso da forma mais rápida e eficaz é a insulina. A insulina, por ser antagônica aos hormônios catabólicos que liberamos no treino (adrenalina, noradrenalina, cortisol, glucagon) é o hormônio mais fácil de manipular dieteticamente. Algumas pessoas acham que precisam colocar muita proteína no shake pós-treino para inundar seu sangue de aminoácidos. Primeiro que essas pessoas esquecem da barreira hepática. Nada entra no sangue sem a “vistoria” do fígado. Mas vamos assumir que não temos fígado nem o sistema porta e que todo aminoácido que ingerimos vai reto para o sangue. Ótimo, chegando no sangue ele vai estimular alguma insulina sim. Mas isso é contraproducente. Pense comigo: Imediatamente após o treino seu corpo está voltado para a produção de energia. Se você ingerir uma grande quantidade de proteína de rápida absorção após o treino, as enzimas envolvidas nesse processo provavelmente desaminarão boa parte. E isso é a primeira coisa que seu fígado vai fazer, desaminando os aminoácidos (deixando alguns no intestino, etc). E a sinalização via insulina foi retardada ou diminuída. A Jornada das Proteínas - Ney Felipe Fernandes
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Agora, imagine-se como seriam mais aproveitados os aminoácidos, colocando um carboidrato para proteger e como a insulina tem seu pico amplificado quando o carboidrato está misturado com a proteína. É aqui que cabe a ponderação. É por isso que eu acho que em casos específicos, deve-se ser tomado dois shakes (claro que depende do biótipo, da periodização em que a pessoa se encontra, etc) mas um primeiro shake para promover pico insulínico com mais carboidrato que proteína (proporção de 3 carboidratos para 1 proteína, com o carboidrato chegando até a 1g/kg em ectomorfos) e um segundo shake com mais proteína que carboidratos (proporção de 1 carboidrato para 2 proteínas). Essa é a maneira que eu vejo de criar um “escudo” nos aminoácidos e garantir (também pela secreção de insulina ampliada) uma correta absorção celular, pois, importante saber, temos transportadores específicos de aminoácidos na membrana das células, que promovem o influxo dos mesmos para o ambiente intracelular. A insulina é fator primordial na ativação dos transportadores. Mas se os aminoácidos são transformados em carboidratos no pós, então eu não preciso consumir proteína no shake, apenas aminoácidos, certo? Bom, não vejo nada de errado nisso. Exceto de que, quando há o consumo de proteínas + carboidratos dobramos o pico de insulina. E quando há o consumo de proteínas + carboidratos + aminoácidos livres (ex: BCAA em pó) temos um pico de insulina e síntese protéica maior ainda. Portanto, ao meu entender, um shake inicial com carboidratos de rápida absorção + proteína de rápida absorção + aminoácidos livres, é o ideal! Até aminoácidos não essenciais são válidos, visto que se seu corpo precisar de aminoácidos essenciais após o treino ele terá muitos disponíveis no sangue, pois foram jogados para fora da célula enquanto você treinava... Talvez até para gerar energia (mas claro, você bebeu o shake a tempo de salvar este aminoácido de um destino cruel!). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1) ALBERTS, B. et al. Fundamentos da biologia celular. 3ª ed. Porto Alegre: Artmed, 2011. 2) GUYTON, A. C.; HALL, J.E. Tratado de fisiologia médica. 11ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2006. 3) FOX, S.I. Fisiologia humana. 7ª ed. Barueri: Manole, 2007. 4) DOUGLAS, C. R. Tratado de fisiologia aplicada na saúde. 5ª ed. São Paulo: Editora Robe, 2002. 5) NELSON, D. L.; COX, M. M. Lehninger: princípios de bioquímica. 4ª ed. São Paulo, Sarvier, 2006. 6) WIILIAMS, S. R. Fundamentos de nutrição e dietoterapia. 6ª ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 7) COZZOLINO, S. M. F. Biodisponibilidade de nutrientes. 2ª ed. Barueri: Editora Manole, 2007. 8) SHILS, M. E. Modern nutrition in health and disease. 9th ed. 1998. 9) WILMORE, J. H.; COSTILL, D. L. Fisiologia do Esporte e do Exercício. Editora Manole, Barueri, SP, 2001. 1ª ed. 10) CARNEIRO, J.; JUNQUEIRA, L. C. Histologia básica. 8ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1995. 11) KOEPPEN, B. M.; STANTON, B. A. Berne e Levy: Fisiologia. 6ª ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2009. 12) KATCH, F. I.; KATCH, V. L.; MCARDLE, W. D. Fisiologia do exercício: energia, nutrição e desempenho Humano. 6ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 2008.
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