A Historia de Kullervo - J.R.R. Tolkien

April 13, 2019 | Author: marcelo | Category: J. R. R. Tolkien, Finland, Tragedy, Dogs, King Arthur
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 A terra terr a de d e Pohja  Pohja , de J. R. R. Tolkien

 A HISTÓRIA  DE KULLERVO DE  J. R. R. Tolkien Editada por Verlyn Flieger Tradução RONALD EDUARD KYRMSE Membro da Tolkien Society e do grupo linguístico “Quendily”

SÃO PAULO 2016

ÍNDICE Lista de ilustrações Prefácio Introdução

 A histór ia de Kullervo Lista de nomes Esboços de sinopses do enredo Notas e comentários Introdução aos ensaios Sobre “O Kalevala” ou Terra dos Heróis Notas e comentários O Kalev ala  Notas e comentários Tolkien, o Ka levala e “A história de Kullervo”, por Verlyn Flieger Bibliografia  Créditos

LISTA DE ILUSTRAÇÕES

 A terra de Pohja , de J. R. R. Tolkien 1. Original da página de rosto manuscrita por Christopher Tolkien 2. Original da primeira página do manuscrito 3. Rascunho dos nomes dos personagens 4. Notas descontínuas e sinopse do enredo preliminar 5. Outras sinopses do enredo preliminar 6. Original da página de rosto do ensaio “Sobre ‘O Kalevala’”, manuscrita por J. R. R. Tolkien

PREFÁCIO Kullervo, filho de Kalervo, talvez seja o menos simpático dos heróis de Tolkien: grosseiro, taciturno, mal-humorado e vingativo, e ainda fisicamente pouco atraente. Esses traços, porém, acrescentam realismo ao seu caráter, tornando-o perversamente encantador apesar deles, ou quem sabe por causa deles. É bem-vinda a possibilidade de apresentar esse complexo personagem a um número maior de leitores do que foi possível até agora. Também agradeço a oportunidade de aprimorar minha primeira transcrição do manuscrito, restaurar omissões involuntárias, emendar leituras hipotéticas e corrigir erros de digitação que acabaram reproduzidos no material impresso. O presente texto, espero, constitui uma representação melhorada do que Tolkien pretendia. Desde a publicação inicial da história foram realizados trabalhos adicionais sobre seu papel na evolução do primitivo proto-idioma de Tolkien, o qenya. John Garth e ndrew Higgins exploraram os nomes de pessoas e de lugares nos esboços que sobraram e os relacionaram com sua invenção de línguas. John fez isso em seu artigo “The road from adaptation to invention” [O caminho da adaptação à invenção] ( Tolkien Studies , v. XI, pp. 1-44), e Andrew, no capítulo 2 de sua inovadora dissertação de doutorado sobre os idiomas primitivos de Tolkien, The Genesis of J. R. R. Tolkien’s   Mythology  [A gênese da mitologia de J. R. R. Tolkien] (Cardiff Metropolitan University, 2015). O trabalho deles representa um acréscimo a nosso conhecimento sobre os primeiros esforços de Tolkien e enriquece nossa compreensão do seu legendário como um todo. Os materiais aqui publicados, a obra precoce e inacabada  A história de Kullervo, de . R. R. Tolkien, e os dois esboços de sua palestra na Universidade de Oxford sobre sua  fonte, “Sobre ‘O Kalevala’”, apareceram inicialmente em Tolkien Studies   (v. VII), em 2010. Agradeço a permissão do Espólio de Tolkien para reproduzi-los aqui. As “Notas e comentários” foram reproduzidos com a permissão da West Virginia University Press. O ensaio “Tolkien, Kalevala e ‘A História de Kullervo’”, de minha autoria, foi reproduzido com a permissão da Kent State University Press. Este livro não teria sido possível se não fosse a contribuição de várias pessoas, às quais agradeço, pois sem elas ele possivelmente jamais teria chegado a existir. Em primeiro lugar, agradeço a Cathleen Blackburn, a quem primeiramente fiz a proposta de que A história de Kullervo precisava alcançar um público mais amplo do que o de um periódico acadêmico. Sou grata a Cathleen por acompanhar o projeto ao longo de todo o processo de permissão pelo Espólio de Tolkien e por sua editora, a HarperCollins. Sou grata ao Espólio e à HarperCollins por terem concordado comigo e aceitado que a  republicação em volume independente era o que o Kullervo  de Tolkien merecia. Obrigada também a Chris Smith, diretor editorial da HarperCollins encarregado de

assuntos tolkienianos, por sua ajuda, seus conselhos e pelo estímulo em trazer  A história  de Kullervo, de Tolkien, ao público mais amplo que ela merece.

INTRODUÇÃO Para avaliar plenamente o lugar que A história de Kullervo ocupa no conjunto das obras de J. R. R. Tolkien, é preciso contemplá-la de diversos ângulos. Não se trata apenas do conto mais antigo de Tolkien, mas também de sua tentativa mais precoce de escrever uma  tragédia, bem como de sua primeira tentativa de criar um mito em prosa. O conto é, portanto, precursor geral de todo o seu cânone ficcional. Num foco mais restrito, é uma  fonte seminal do que acabou sendo chamado de sua “mitologia da Inglaterra”, o “Silmarillion”. Sua narrativa sobre a saga do infeliz Kullervo é a matéria-prima da qual derivou uma de suas histórias mais poderosas, a dos filhos de Húrin. Ainda mais especificamente, o personagem de Kullervo foi o germe do mais – alguns diriam do único – trágico herói da mitologia de Tolkien, Túrin Turambar. Há muito que as cartas de Tolkien revelaram que sua descoberta, nos tempos de escola, do Kalevala   ou “Terra dos Heróis” – uma coleção então recém-publicada das canções ou runos de camponeses analfabetos da região rural da Finlândia – teve um grande impacto em sua imaginação e foi uma das primeiras influências em seu legendário inventado. Na carta de 1951 em que descreve sua mitologia ao editor Milton Waldman, Tolkien revelou a preocupação que sempre tivera com a “pobreza” mitológica de seu país. Na visão dele, faltavam-lhe “histórias próprias” comparáveis aos mitos de outros países. Havia histórias “gregas, celtas e românicas, germânicas, escandinavas” e (destacado em menção especial) “finlandesas”, que, segundo dizia, muito o influenciaram ( Cartas de J. R. R. Tolkien , p. 141, daqui por diante Cartas *). Não há dúvida disso, pois ele se envolveu tanto com o assunto que quase arruinou o seu exame de Honour Moderations** de 1913, conforme confessou ao filho Christopher em 1944 ( Cartas , p. 55), e “deu o pontapé inicial na história”, como escreveu a W. H. Auden em 1955 ( Cartas , p. 206). Na época em que Tolkien elaborava sua história, sua fonte, o Kalevala   finlandês, tinha sido incorporado fazia pouco tempo ao corpus   das mitologias mundiais. Diferentemente dos mitos de procedência literária mais antiga, como os gregos e os romanos, os celtas ou os germânicos, as canções do Kalevala   foram recolhidas e publicadas somente em meados do século XIX, pelo médico e folclorista amador Elias Lönnrot. Essas canções eram de tom tão diferente do resto do corpus  mítico europeu que levaram a uma reavaliação do significado de termos como “épico” e “mito”***. A despeito da diferença e da reavaliação, a publicação do Kalevala  causou um impacto profundo nos finlandeses, que durante séculos haviam vivido sob dominação estrangeira, tendo pertencido à Suécia do século XIII até 1809, e, desse ano até 1917, à Rússia, à qual grandes partes do território finlandês foram cedidas pelos suecos. A descoberta de uma  mitologia indígena finlandesa, tendo ocorrido numa época em que o mito começava a ser

associado ao nacionalismo, deu aos finlandeses um senso de independência cultural e uma identidade nacional, fazendo de Lönnrot um herói nacional. O Kalevala   revigorou um nascente nacionalismo finlandês e influenciou a declaração de independência  finlandesa da Rússia em 1917. É muito provável que o impacto do Kalevala  nos finlandeses como “uma mitologia para a Finlândia” tenha impressionado Tolkien tão profundamente quanto as próprias canções, e desempenhado um importante papel em seu desejo explícito de criar sua chamada “mitologia para a Inglaterra”, embora o que ele de fato descreveu foi uma mitologia que ele podia “dedicar” à Inglaterra ( Cartas , p. 141). O fato de que prosseguiria assimilando seu Kullervo ao personagem Túrin Turambar, da própria mitologia, é prova da influência duradoura do Kalevala   em seu processo criativo. Tolkien havia lido o Kalevala , pela primeira vez, na versão traduzida do inglês de 1907, de W. F. Kirby, quando era estudante da King Edward’s School, em Birmingham, em 1911. Achou insatisfatória a tradução de Kirby, mas considerou o material propriamente dito “um vinho estupendo” ( Cartas , p. 206). Tanto sua história  quanto os dois esboços de sua palestra universitária “Sobre ‘O Kalevala’” que a  acompanham dão prova do desejo ardente de Tolkien de comunicar o sabor desse vinho novo, seu aroma fresco e pagão, os “deliciosos exageros” do que eram para ele “contos [...] selvagens, incivilizados e primitivos”. Esses contos incivilizados e primitivos capturaram sua imaginação de tal maneira que, quando seguiu para Oxford, no outono de 1911, tomou emprestada a Finnish grammar   [Gramática finlandesa], de C. N. E. Eliot, da biblioteca do Exeter College, numa tentativa de aprender sozinho o finlandês, o suficiente para poder ler o original. Fracassou em larga medida, e confessou, magoado, que fora “rechaçado com pesadas baixas”. Tolkien ficou especialmente fascinado com o personagem que chamou de “Kullervo, o infeliz” ( Cartas , p. 206), o mais próximo de um herói trágico que o Kalevala  apresenta. Ficou de tal modo fascinado que, no último ano de sua graduação em Oxford, escreveu à noiva, Edith Bratt, em outubro de 1914, que estava “tentando transformar uma das histórias – que é realmente uma história muito importante e extremamente trágica  em um conto [...] com pedaços de poesia no meio” ( Cartas , pp. 13-14). Era  A história de Kullervo, da qual a maior parte foi produzida, até onde se pode determinar, entre os anos de 1912 e 1914 (ibid., p. 206), e quase certamente antes de Tolkien ser convocado para a guerra e enviado à França em 1916. A datação é duvidosa. O próprio Tolkien localizou-a bem cedo, em 1912; os pesquisadores Wayne Hammond e Christina Scull preferem 1914; e John Garth, o final de 1914. A página de rosto do manuscrito traz uma data entre parênteses (1916), com a letra de Christopher Tolkien, mas como isso aparece escrito no verso de uma avaliação por ocasião do doutorado honorário de Tolkien na National University da Irlanda, em 1954, a data de 1916 antecede-a em quase quarenta anos. Além disso, essa data também é posta em dúvida por causa de uma anotação a lápis escrita abaixo dela: “HC [Humphrey Carpenter] diz

1914”. Esse comentário teria sido feito durante ou após a época em que Carpenter trabalhava em sua biografia de Tolkien, publicada em 1977.  A época de composição de qualquer obra é muitas vezes difícil de determinar com precisão, já que a maior parte da atividade criativa se desenvolve ao longo de um extenso período, desde a primeira ideia até a versão final, e pode ser iniciada, interrompida e diversas vezes revisada. Sem mais evidências manuscritas do que temos agora em mãos, é impossível determinar quanto tempo levou o trabalho de Tolkien no “Kullervo”, desde a  inspiração até a finalização, com precisão maior do que durante os anos de 1912-1916. O que é bastante certo é que ele não começou a escrever a história antes de ter lido o Kalevala   em 1911, e pode não ter mais trabalhado nela depois de ter sido enviado à  França em junho de 1916. Pelo comentário de Tolkien na carta a Edith, parece que foram as características trágicas da história, tanto quanto as míticas, que deram “o pontapé inicial na história” e o atraíram tão fortemente que ele sentiu a necessidade de recontá-la. No entanto, além de sua evidente influência na história de Túrin Turambar,  A história de Kullervo também é notável pelo modo como antecipa os estilos narrativos do futuro conjunto da obra de Tolkien. Ela prefigura, sem situar com precisão, um bom número dos gêneros, categorias ou formas – conto, tragédia, recontagem de mito, verso, prosa – que ele escreveu mais tarde. É ao mesmo tempo um conto, uma tragédia, um mito, uma mescla de prosa e poesia, e no entanto tudo isso em embrião, nada totalmente acabado – o que dificilmente surpreende numa obra tão precoce. Assim, em todas essas áreas ela fica um pouco à parte do restante do cânone. Como conto, convida à  comparação com seus contos posteriores: Roverandom, Folha, de Migalha ,  Mestre Gi  de Ham e Ferreiro de Bosque Grande ; como recontagem de mito, junta-se às suas  A lenda de Sigurd e Gudrún e  A queda de Artur   ; em sua mistura de prosa e poesia, lembra uma mescla semelhante na obra-prima de Tolkien, O Senhor dos Anéis . Estilisticamente a comparação também se justifica, pois os “pedaços de poesia” não raro se desenvolvem numa prosa rítmica que evoca a mistura de poesia e prosa da fala de Tom Bombadil. Porém, as comparações param por aí, já que em outros aspectos  A história de  Kullervo  tem pouco em comum com a maioria das obras recém-mencionadas. Só  A lenda de Sigurd e Gudrún  transmite a atmosfera pagã que é a essência de Kullervo, e  A queda de Artur , seu sentido de sina inevitável. Roverandom, apesar de, como explicitado, apresentar semelhanças evidentes com as imramma   míticas irlandesas, ou histórias de viagem****, foi, em sua gênese, e permanece, em sua essência, um conto para crianças. Folha, de Migalha , apesar de ambientada em tempos vagamente modernos e num lugar que, apesar de nunca identificado, é, sem sombra de dúvida, a própria Inglaterra de Tolkien, é uma parábola sobre a viagem da alma, e de longe a mais alegórica de todas as obras do autor.  Mestre Gil de Ham   é um conto folclórico jocosamente satírico, com diversas piadas internas eruditas e referências tópicas à Oxford de Tolkien. Ferreiro de 

Bosque Grande  é puro conto de fadas, a mais consistente, em termos artísticos, de todas as suas obras curtas. Contrastando com todas essas,  A história de Kullervo – certamente não para crianças, nem jocosa, nem satírica, nem alegórica, com pouco da característica  de faërie ***** que Tolkien considerava essencial aos contos de fadas – é implacavelmente sombria, um conto agourento e trágico de rixa de sangue, assassinato, abuso infantil, vingança, incesto e suicídio, tão diferente em tom e conteúdo de suas outras ficções curtas que constitui quase uma categoria à parte. Como tragédia,  A história de Kullervo  se adequa em grande medida às especificidades aristotélicas da tragédia: catastrophe , ou mudança da sorte;  peripeteia , ou inversão, em que um personagem inadvertidamente produz um efeito oposto ao pretendido; anagnoresis , ou reconhecimento, em que um personagem se move da  ignorância ao autoconhecimento. O exemplo clássico é Édipo, cujo drama Sófocles situou em um tempo e um lugar quase históricos: Tebas no século IV a.C. Os exemplos da Terra-média fictícia de Tolkien são Túrin Turambar, rigorosamente baseado em Kullervo, e o menos provável de seus heróis trágicos, Frodo Bolseiro, cuja viagem e trajetória emocional de Bolsão à Montanha da Perdição o conduzem por todo o conjunto de normas aristotélicas dentro do contexto maior da história da Terra-média, assim como as de Túrin. Em contraste,  A história de Kullervo  é sobretudo não histórica, criando seu próprio mundo autônomo, cujo único período temporal é aquele “quando a  magia ainda era recente”. Como primeiro esforço de Tolkien para adaptar um mito existente ao seu propósito, A história de Kullervo se une aos seus dois outros esforços do gênero, mais maduros, ambos hipoteticamente datados das décadas de 1920 ou 1930:  A lenda de  Sigurd e Gudrún, sua renarrativa em versos da história dos Völsungs da Edda Poética  islandesa, e  A queda de Artur , sua reinterpretação em versos aliterantes modernos de dois poemas arturianos em inglês médio. Assim como seu Artur e seu Sigurd, o Kullervo de Tolkien é a mais recente versão de um vulto mítico que passou por muitas repetições. Aspectos de Kullervo podem remontar ao Amlodhi irlandês, do início da  Idade Média, ao Amlethus escandinavo do Gesta Danorum, de Saxo Grammaticus, do século XII, e ao príncipe Hamlet, de Shakespeare, renascentista e mais moderno. A  sequência culmina no Kullervo do Kalevala , do qual Tolkien é devedor mais direto. E, no entanto, a história de Tolkien tampouco combina totalmente com suas adaptações míticas posteriores. Primeiramente, tanto o Kalevala   quanto o Kullervo de Tolkien são consideravelmente menos conhecidos do que Sigurd e Artur.  A história de Kullervo  será, para muitos leitores que estão familiarizados com Sigurd e Artur, sua primeira  apresentação a esse herói improvável. Assim, a versão de Tolkien não contém referências e provavelmente será recebida sem preconceitos. Poucos dos seus leitores, se é que haverá  algum, reconhecerão o príncipe Hamlet de Shakespeare no Kullervo de Tolkien, por muito que olhos aguçados possam enxergar, no impiedoso e inescrupuloso tio de Kullervo, Untamo, o germe do impiedoso e inescrupuloso Claudius, tio de Hamlet.

Em termos de forma narrativa, o Kullervo de Tolkien se situa em algum lugar entre os contos e os poemas longos, por ser redigido numa mistura de prosa e verso, intercalando longos trechos de poesia numa narrativa de prosa estilizada. Assim como Sigurd e Gudrún, é uma história de amor e sina, sem perdão para os atores humanos, e, assim como A queda de Artur , é uma história sobre a mistura do destino com a decisão humana como determinantes implacáveis da vida humana. Também como  A queda de  rtur , mas diferentemente de Sigurd e Gudrún, está inacabado, interrompendo-se antes do clímax das cenas finais, que permanecem apenas esboçadas num esquema e em notas rabiscadas. Seu estado inacabado também é tristemente típico de grande parte da obra de Tolkien. Entre suas histórias do “Silmarillion”, era maior o número daquelas que continuavam como obras inacabadas no momento de sua morte do que aquelas que foram concluídas ao longo de sua vida. À parte esse aspecto negativo,  A história de  Kullervo  mereceria um lugar no conjunto da obra de Tolkien, por todas as razões já  mencionadas. Mas a maior importância da História de Kullervo, como observado, é o fato de ser preliminar de uma das narrativas fundamentais de seu legendário, Os filhos de Húrin, pois seu personagem central é o precursor evidente do protagonista daquela história, Túrin Turambar. Tolkien também mencionou outros modelos de Túrin, tais como a  Edda islandesa, da qual emprestou o episódio da morte violenta do dragão, e o Édipo de Sófocles, que, como Túrin, é (conforme definido anteriormente) um herói trágico em busca de sua própria identidade. Ainda assim, não é exagero dizer que sem o Kalevala  não haveria  A história de Kullervo, e sem  A história de Kullervo  não haveria Túrin. Certamente, sem a história de Túrin, a mitologia inventada por Tolkien perderia muito do seu poder trágico, bem como sua mais atraente trajetória narrativa, com exceção de O  Senhor dos Anéis . Também podemos identificar no Kullervo, se bem que de maneira mais distante, certo número de padrões repetidos que perpassam a ficção de Tolkien: a criança  órfã, o ajudante sobrenatural, o relacionamento tenso entre tio e sobrinho e a valiosa  relíquia de família ou talismã. Apesar de esses padrões serem traduzidos em novas circunstâncias narrativas, e às vezes voltados em direções bem diversas, ainda assim formam um contínuo, que se estende da História de Kullervo, sua mais antiga ficção, até Ferreiro de Bosque Grande , sua última história publicada em vida. Na carta anteriormente mencionada, escrita para Milton Waldman, Tolkien manifestou a esperança de que seu mito inventado abrisse espaço para “outras mentes e mãos, lidando com a tinta, a música e o drama” ( Cartas , p. 141). Aqui também ele poderia estar pensando no Kalevala , pois sua referência à pintura, à música e ao espaço para outras mãos pode muito bem ser uma alusão às traduções do material do Kalevala  sobre pintura e música, feitas por outros artistas, que encontraram nele inspiração para  sua arte. Dois exemplos proeminentes são o compositor clássico Jan Sibelius e o pintor kseli Gallen-Kallela, que estão entre os mais conhecidos artistas finlandeses do final do século XIX e início do XX. Sibelius explorou o Kalevala   em suas suítes orquestrais “Lemminkainen” e “Tapiola” e na mais longa, “Suíte Kullervo”, para orquestra e coro,

transformando mitos em música. Akseli Gallen-Kallela, o maior pintor finlandês da era  moderna, produziu uma série de cenas do Kalevala , incluindo quatro pinturas que ilustram momentos-chave da vida de Kullervo. A popularidade desse personagem e sua  atratividade para os artistas sugerem que ele possa ser visto como uma espécie de personificação folclórica da violência e da perturbada irracionalidade da era moderna, igualmente inquieta. Não é preciso grande esforço de imaginação para enxergar o Túrin Turambar de Tolkien, produto da mesma era devastada pela guerra, à mesma luz e como a mesma espécie de herói.  A trajetória narrativa da história de Tolkien segue de perto os runos 31-36 do Kalevala . Na tradução de Kirby, eles foram intitulados “Untamo e Kullervo”, “Kullervo e a esposa de Ilmarinen”, “A morte da esposa de Ilmarinen”, “Kullervo e seus pais”, “Kullervo e sua irmã” e “A morte de Kullervo”. Apesar de apresentados como poemas separados, eles compõem uma sequência coerente (se não sempre plenamente integrada) que conta a história ininterrupta de um conflito catastrófico entre irmãos, o qual deixa  um deles morto e o outro como tutor homicida de Kullervo, filho recém-nascido do irmão morto. Maltratado e abusado tanto pelo tutor quanto pela esposa deste, o menino sobrevive a uma infância infeliz que inclui três tentativas de assassinato – por afogamento, pelo fogo e por enforcamento – e finalmente se vinga de ambos, mas ele próprio, em seguida, é destruído, ao descobrir a prática involuntária de um incesto com uma irmã, que ele só reconheceu quando já era tarde demais. O tratamento que Tolkien dá à  história aprofunda-a, prolonga o suspense e acrescenta-lhe, ao mesmo tempo, psicologia  e mistério. Ele desenvolve os personagens preservando e realçando as qualidades pagãs e primitivas que o atraíram pela primeira vez ao Kalevala .  A história de Kullervo  existe em um único manuscrito, Bodleian Library MS Tolkien B 64/6. É um esboço legível, porém tosco, com muitos trechos riscados, acréscimos laterais e, por cima das linhas, correções e emendas. O texto está escrito a  lápis nos dois lados de treze folhas numeradas de papel ofício de duas dobras. A  narrativa principal é interrompida abruptamente na metade do anverso da folha 13, correspondente a cerca de três quartos da história. Na mesma página, há notas e esboços para o que será escrito a seguir que preenchem o restante do espaço e continuam pelo topo do verso. Além disso, existem várias folhas soltas, de tamanho variável, contendo o que são, evidentemente, esboços preliminares do enredo, notas rabiscadas, listas de nomes, listas de palavras rimadas e diversos esboços de um longo trecho da história em versos “Já sou de fato um homem”. Se, como parece provável, MS Tolkien B 64/6 contém o esboço mais antigo e, à parte as páginas de notas, o único, as revisões de Tolkien nesse manuscrito devem ser consideradas definitivas. Deixei intatos o estilo por vezes peculiar de Tolkien e sua sintaxe frequentemente retorcida. Acrescentei pontuação em alguns trechos, onde ela se mostrou necessária para  esclarecer o significado. Aparecem entre colchetes interpretações hipotéticas e palavras ou elementos verbais que não constam no manuscrito, mas foram incluídos para assegurar

maior clareza. O uso que ele faz dos sinais diacríticos sobre as vogais – especialmente o macro, mas também ocasionalmente o breve e o trema – também é inconsistente, atribuível mais à velocidade da redação do que à omissão proposital. Começos descartados, palavras e linhas canceladas foram omitidos, com quatro exceções. Nestes casos, aparecem entre chaves as frases canceladas no manuscrito, mas mantidas aqui como de especial interesse na história. Três trechos cancelados dão prova da grande preocupação de Tolkien com a natureza da magia e do sobrenatural. Os dois primeiros ocorrem na sentença inicial: 1) “de magia muito tempo atrás”; 2) “quando a magia ainda  era recente”. O terceiro, a longa frase que começa com: “e a Kullervo ele [Musti] deu três pelos [...]”, refere-se ao ajudante sobrenatural de Kullervo, o cão Musti, e também constitui evidência da presença da magia na história. O quarto trecho cancelado, que ocorre mais adiante no texto, trata-se possivelmente de uma referência autobiográfica: “De pequeno perdi a mãe [...]”. Preferi não interromper o texto (e desviar a atenção do leitor) com notas, mas uma  seção de Notas e comentários segue-se à narrativa propriamente dita, explicando termos e usos, citando referências e esclarecendo e relação da história de Tolkien com sua fonte no Kalevala . Essa seção inclui também as notas de esboço preliminar de Tolkien para a  história, possibilitando ao leitor acompanhar alterações aparentes e seguir a trilha da  imaginação do autor.  A presente edição da história de Tolkien, juntamente com os esboços em anexo de seu ensaio “Sobre ‘O Kalevala’”, torna disponível, ao mesmo tempo, aos estudiosos, críticos e leitores, a história “muito importante” e “extremamente trágica” sobre a qual Tolkien escreveu para Edith em 1914 e que tanto contribuiu para o seu legendário. Espera-se que eles a considerem um acréscimo vantajoso e valioso a sua obra.

Nota sobre os nomes   A história é uma obra em construção, não apenas pela incompletude narrativa, mas porque Tolkien começou seguindo a nomenclatura do Kalevala , porém, no decorrer da  composição, inventou e mudou os nomes e apelidos de todos os personagens, exceto os principais, que são o irmão assassinado Kalervo, seu filho Kullervo e o irmão/tio homicida Untamo. Mesmo a estes atribuiu variados apelidos que não são do Kalevala . Seu texto, no entanto, nem sempre é coerente. Às vezes ele retorna a um nome anteriormente descartado, ou se esquece de alterá-lo. A mudança de nome mais notável que ele realizou foi de “Ilmarinen”, nome do ferreiro no Kalevala , para “Āsemo” na  história que escreveu. Ver no verbete Āsemo, o ferreiro, nas Notas e comentários, uma  discussão mais longa sobre a etimologia do nome. Tolkien também fez experiências com nomes alternativos de dois personagens, Wanōna, irmã de Kullervo, e Musti, o cão deste.

Carl Hostetter chamou minha atenção para o fato de que alguns dos nomes inventados de  A história de Kullervo  ecoam ou prefiguram os mais antigos esforços conhecidos de Tolkien com sua protolíngua inventada, o qenya. Entre os nomes de caráter qenya na história incluem-se os dos deuses Ilu, Ilukko e Ilwinti, os quais lembram bastante Ilúvatar, o personagem divino do “Silmarillion”. O apelido Kampa, de Kalervo, aparece em qenya primitivo como nome de um dos mais antigos personagens de Tolkien, Earendel, com o significado de “Saltador”. O topônimo usado ora como Kemē  e ora como K ĕ mĕ nūme, glosado na história de Tolkien como “A Grande Terra, Rússia” (ilustração 2), é definido em qenya como “terra, solo”. O topônimo Telea (a  Carélia) evoca os teleri do “Silmarillion”, um dos três grupos de elfos que foram a  Valinor, partindo da Terra-média. Manalome, Manatomi, Manoini, palavras usadas para  denominar o firmamento, o céu, relembram o qenya Mana/ Manwë, chefe dos Valar, os semideuses do “Silmarillion”. Indícios circunstanciais parecem sustentar uma relação cronológica entre os nomes da História de Kullervo e o nascente qenya de Tolkien, do qual os mais antigos testemunhos estão contidos no Qenya Lexicon [Léxico do qenya]. Para uma visão mais ampla da evolução do qenya, o leitor deve consultar a obra de Tolkien Qenyaqetsa: The Qenya Phonology and Lexicon  [Qenyaqetsa: fonologia e léxico do qenya], aparentemente escrita em 1915-1916 e publicada em Parma Eldalamberon (v. XII, 1998). VERLYN FLIEGER 

* Na presente edição, as citações dessa obra são da versão brasileira de The Letters of J. R. R. Tolkien: As cartas de J. R. R. Tolkien   (trad. Gabriel Oliva Brum). Curitiba: Arte e Letra, 2006. (N. do T.) ** Conjunto de provas realizadas durante a primeira parte do curso de graduação em Oxford. (N. do T.) *** Também levantaram questões sobre o papel do coletor ao selecionar, editar e apresentar o que foi recolhido, levando à acusação, especificamente em relação ao Kalevala, de ser “folclore ou falsolore [ fakelore ]”, mas isso é assunto para outra  discussão. Quando Tolkien leu o Kalevala  pela primeira vez, ele e outros o tomaram em termos nominais. **** Ver o artigo de Kris Swank, “The Irish Otherworld Voyage of Roverandom” [“A  história irlandesa de viagem ao outro mundo de Roverandom”] em Tolkien Studies  (v.  XII), 2015. ***** Faërie   (a grafia varia) denota, em inglês, especialmente nas obras de Tolkien que tratam dos contos de fadas, a qualidade mágica do Reino Fantástico. (N. do T.)

 A HISTÓRIA DE KULLERVO

1. Original da página de rosto manuscrita por Christopher Tolkien. [MS Tolkien B 64/6 Folha 1 anverso].

2. Original da primeira página do manuscrito. MS Tolkien B 64/6 Folha 2 anverso].

 história de Honto Taltewenlen

 A história de Kullervo (Kalervonpoika) Nos dias {de magia, muito tempo atrás, quando a magia ainda era recente}, uma mãe cisne criou sua ninhada de filhotes junto às margens de um rio tranquilo, no pântano cheio de juncos de Sutse. Certo dia, quando navegava entre as lagoas cercadas de juncos, seguida de sua fileira de crias, uma águia se precipitou do firmamento e, voando alto, carregou um de seus filhotes até Telea. No segundo dia, um enorme falcão roubou-lhe outro e levou-o para Kemenūme. O filhote levado para Kemenūme cresceu e se transformou em mercador, e não aparece nesta triste história: mas aquele que o falcão levou para Telea é o que os homens chamam de Kalerv ō, enquanto o terceiro filhote, que ficou para trás, é aquele de quem os homens falam com frequência e chamam de Untam ō, o malvado, e ele se tornou um cruel feiticeiro e homem poderoso. Kalervo morava junto aos rios de peixe, onde tinha muita diversão e boa carne. Sua  esposa havia concebido, em anos passados, um filho e uma filha, e agora mesmo estava  outra vez prestes a dar à luz. Naqueles dias, as terras de Kalervo faziam divisa com os confins do sinistro reino de seu poderoso irmão, Untamo, que cobiçava suas agradáveis terras fluviais e seus peixes abundantes.  Assim, Untamo colocou redes nas águas piscosas de Kalervo, privando-o de sua  pesca com caniço, o que lhe trouxe grande pesar. Primeiro surgiu a amargura entre os irmãos e, depois, a guerra declarada. Após um combate nas margens do rio, no qual um não conseguiu sobrepujar o outro, Untamo voltou à sua soturna herdade e, em cisma  malévola, teceu (nos dedos) um esquema de ira e vingança. Fez suas enormes reses invadirem os pastos de Kalervo, expulsarem suas ovelhas e devorarem sua ração. Então Kalervo soltou seu negro cão de caça Musti para devorá-las. Untamo, irado, reuniu seus homens e lhes deu armas, armou seus sequazes e jovens escravos com machados e espadas e marchou para a batalha, mesmo sendo a infeliz contenda contra o próprio irmão.  A esposa de Kalervoinen, sentada junto à janela da herdade, divisou um turbilhão, que se erguia da fumaça do exército ao longe, e disse a Kalervo: “Ó marido, um vapor maléfico se ergue acolá. Vem aqui comigo. É fumaça que vejo ou apenas uma nuvem sombria que passa depressa, mas agora paira sobre as bordas dos trigais, logo ali, acima  da trilha recém-construída?” Kalervo respondeu com humor tristonho: “Acolá, esposa, não há vapor de fumaça  de outono nem sombra passante, mas receio que seja uma nuvem que não anda nada  depressa, não antes que tenha causado dano à minha casa e à minha gente em maligna  tempestade.” Então surgiu à vista de ambos o grupo de Untamo, e eles puderam ver à  frente a multidão com sua força e seu vistoso traje escarlate. O aço rebrilhava ali. Traziam

as espadas penduradas na cintura, e, nas mãos, os robustos machados brilhantes, e, sob os gorros, os malvados rostos carrancudos, pois Untamoinen sempre se fazia  acompanhar de vilões cruéis e desprezíveis. Como os homens de Kalervo estivessem fora, dispersos pelas plantações, ele, agarrando o machado e o escudo, correu sozinho de encontro aos inimigos, sendo logo abatido, em seu próprio pátio, junto ao estábulo das vacas, ao sol de outono de sua bela  estação de colheita, pelo peso da multidão de inimigos. Untamoinen lidou perfidamente com o corpo do irmão, diante dos olhos de sua esposa, e tratou de maneira abominável sua gente e suas terras. Seus homens selvagens mataram todos que encontraram, tanto homens como animais, poupando somente a esposa de Kalervo e seus dois filhos, apenas para escravizá-los nos sombrios salões de Untola.  A amargura penetrou então no coração daquela mãe, pois ela amara Kalervo apaixonadamente, e o estimara. Morou nos salões de Untamo sem se importar com nada  do mundo ensolarado, e no devido tempo deu à luz, em meio ao seu pesar, os bebês de Kalervo: um menino e uma menina, no mesmo parto. Grande força tinha um, e grande beleza, a outra, mesmo ao nascerem, e tiveram ternura um pelo outro desde as primeiras horas. Mas o coração de sua mãe estava morto dentro do peito, e ela não deu a menor importância à graça deles, nem eles alegraram seu luto ou fizeram mais do que lhe recordar os tempos de outrora, na herdade que tinham, junto ao rio tranquilo e às águas piscosas entre os juncos, e lhe fazer pensar no falecido pai deles, Kalervo. A mãe chamou o menino de Kullervo, ou “Cólera”, e a filha de Wan ōna, ou “Choro”. Untamo poupou as crianças porque acreditava que cresceriam e se tornariam servos solícitos, aos quais poderia mandar cumprir suas ordens e tratar de seu corpo, sem lhes pagar o soldo que recebiam os outros vilões rudes. Mas, sem os cuidados da mãe, as crianças foram criadas de modo distorcido, pelo maldoso embalo do berço dado aos bebês por aquele que os adotou na servidão, sugando amargura do peito daquelas que não haviam parido.  A força não abrandada de Kullervo transformou-se em vontade indômita, que não abria mão de nada que fosse do seu desejo e se ressentia de toda injúria. E Wan ōna  cresceu como rapariga selvagem, vagando sozinha, caminhando pelas repugnantes florestas de Untola assim que aprendeu a ficar de pé, o que logo aconteceu, pois eram admiráveis aquelas crianças, separadas por uma só geração dos homens da magia. Kullervo era como ela: sempre tinha sido uma criança difícil de lidar, até chegar o dia em que, furioso, despedaçou os cueiros e fez em estilhaços, a pontapés, o berço de tília. Mas os homens diziam que parecia que ele iria prosperar e se tornar um homem poderoso, e Untamo se alegrou, pois acreditava que Kullervo algum dia seria um guerreiro forte e um assecla extremamente corajoso. Isso não parecia improvável, pois em seu terceiro mês, quando ainda não ultrapassava a altura de um joelho, Kullervo se pôs de pé e falou repentinamente à mãe, que ainda lamentava pelo sofrimento vivo até então: “Ó minha mãe, ó minha caríssima, por que te lamentas assim?” E a mãe contou-lhe a infame história da Morte de Kalervo

em sua própria herdade, como tudo que conquistara fora arrebatado, como fora morto pelo irmão Untamo e seus sequazes, sem pouparem nem salvarem ninguém, exceto seu grande cão de caça Musti, que voltara dos campos para encontrar o dono morto e a dona  com seus filhos feitos prisioneiros, e seguira seus passos rumo ao exílio até a floresta  azul que rodeia os salões de Untamo, onde agora vivia na selva, com medo dos homens de Untamo. De vez em quandoabatia uma ovelha, e muitas vezes, à noite, se podiam ouvir seus uivos, e os sequazes de Untamo diziam que era o cão de caça de Tuoni, Senhor da  Morte, mas isso não era verdade. Tudo isso ela lhe contou, e lhe deu um grande punhal de curioso feitio que Kalervo sempre usara na cintura quando viajava para longe, uma lâmina de espantosa agudeza  feita, por ele, em seus dias sombrios, que ela apanhara da parede na esperança de auxiliar seu amado. Com isso, ela voltou a se lamentar, e Kullervo exclamou em voz alta: “Pelo punhal de meu pai, quando eu for maior e meu corpo se tornar mais forte, hei de vingar seu assassinato e expiar tuas lágrimas, minha mãe que me deu à luz.” E essas palavras nunca  mais repetiu depois, porém, dessa vez, Untamo ouviu-as por acaso, e de ira e de medo tremeu e disse: ele arruinará minha raça, pois Kalervo renasceu nele. Dessa forma, inventou toda espécie de males para o rapaz (pois essa já era a  aparência do bebê, tão súbito e admirável era seu crescimento em aspecto e força), e somente sua irmã gêmea, a bela Wanōna (pois essa já era a aparência do bebê, tão grande e espantoso era seu crescimento em aspecto e beleza), tinha compaixão dele, e era sua  companheira nas andanças pela floresta azul, pois seu irmão e sua irmã mais velhos (a  quem a lenda se referiu anteriormente), apesar de terem nascido em liberdade e contemplado o rosto do pai, pareciam-se mais a escravos do que os órfãos nascidos em servidão, submetendo-se a Untamo e cumprindo todas as suas ordens malignas. De forma alguma tentavam consolar a mãe, que os nutrira nos dias de riqueza junto ao rio. Vagando na floresta um ano e um mês depois que seu pai Kalervo fora assassinado, aquelas duas crianças selvagens toparam com Musti, o cão de caça, com o qual Kullervo aprendeu muitas coisas acerca do pai e de Untamo, e sobre coisas mais obscuras, apagadas e remotas, talvez até anteriores aos seus dias de magia e mesmo anteriores à  captura de peixes pelos homens no pântano de Tuoni. Ora, Musti era o mais sábio dos cães de caça. Os homens nada dizem sobre onde ou como ele nasceu, mas sempre falam dele como de um cão de feroz poderio e força e de grande sabedoria. Musti tinha parentesco e afinidade com as coisas agrestes, e conhecia o segredo da troca de pele: podia aparecer como lobo ou urso, ou como gado grande ou pequeno, e conhecia muitas outras magias além dessas. E, na noite sobre a  qual se fala, o cão os alertou sobre a mente maldosa de Untamo, e disse-lhes que não havia nada que este desejasse tanto como a morte de Kullervo {e a Kullervo ele deu três pelos de sua pelagem e disse: “Kullervo Kalervanpoika, se alguma vez estiveres em perigo

por conta de Untamo, toma um destes e grita: ‘Musti, ó Musti, tua magia me ajude agora’, e então encontrarás ajuda admirável na tua aflição}. No dia seguinte, Untamo mandou aprisionar Kullervo, espremê-lo dentro de um barril e lançá-lo nas águas de uma forte correnteza, que ao rapaz pareceu serem as águas de Tuoni, o Rio da Morte. Mas, quando voltaram ao rio três dias depois, ele havia se libertado do barril e estava sentado sobre as ondas, pescando com uma vara de cobre e linha de seda, e desse dia em diante foi sempre um hábil pescador. Ora, isso fora obra da  magia de Musti. Mais uma vez Untamo tentou destruir Kullervo. Mandou seus servos ao bosque, onde reuniram enormes bétulas e pinheiros, com suas mil agulhas, dos quais escorria a  resina. Trenós carregados de casca ele juntou, e grandes freixos de [cem] braças de comprimento, pois eram altaneiros de fato os bosques da sombria Untola. E tudo isso empilharam para queimar Kullervo.  Atiçaram a chama sob a madeira. A grande fogueira estalava. O odor de troncos e a  fumaça pungente os sufocavam imensamente. E então tudo se inflamou em calor rubro, e nisso lançaram Kullervo no meio daquilo. O fogo queimou por dois dias, e por um terceiro dia, e depois lá estava o rapaz sentado, com cinzas até os joelhos e brasas até os cotovelos. Tinha na mão um ancinho de carvão e reunia em torno de si os fragmentos mais quentes. Ele próprio nem ao menos estava chamuscado. Untamo, então, cego pela raiva, vendo que de nada adiantava toda a sua feitiçaria, fez com que o enforcassem vergonhosamente numa árvore. E ali o filho de seu irmão Kalervo pendeu, do alto de um grande carvalho, por duas noites, e por uma terceira  noite. Então Untamo mandou ver de madrugada se Kullervo tinha ou não morrido na  forca. Seu servo voltou apavorado, e foram estas as suas palavras: “Senhor, Kullervo ainda não pereceu, de modo algum, nem está morto na forca. Mas na mão segura um grande punhal, e com ele gravou coisas espantosas na árvore, e toda a sua casca está  coberta de entalhes, onde se vê principalmente um grande peixe (ora, este era outrora a  marca de Kalervo), e lobos, e ursos, e um enorme cão de caça que poderia muito bem ser da grande matilha de Tuoni.” Essa magia que salvara a vida de Kullervo fora o último pelo de Musti, e o punhal era o grande punhal Sikki, o de seu pai, que a mãe lhe dera, e depois disso Kullervo passou a considerar que o punhal Sikki era mais precioso que toda prata e todo ouro. Untamoinen sentiu medo e viu-se forçado a ceder à formidável magia que protegia  o rapaz. Mandou-o trabalhar como escravo para ele, sem paga e somente com parco sustento. Muitas vezes, ele teria morrido de fome, não fosse por Wan ōna, que, apesar de Unti não tratá-la melhor, muito guardava para o irmão do pouco que tinha. Nenhuma  compaixão por aqueles gêmeos demonstravam seu irmão e sua irmã mais velhos, mas sim buscavam, sendo subservientes a Unti, ter uma vida mais fácil. Grande ressentimento

Kullervo acumulou consigo, e dia a dia se tornava mais taciturno e violento. Com ninguém falava mansamente, salvo com Wanōna, e não raro era ríspido com ela. Quando Kullervo cresceu em estatura e força, Untamo mandou buscá-lo e faloulhe: “Em minha casa eu te mantive e te dei paga como pensei que tua atitude merecia – comida para tua barriga ou uma bofetada para tua orelha. Agora precisas trabalhar, ou te designarei trabalho de escravo ou de servo. Agora vai, faze-me uma clareira no matagal próximo da Floresta Azul. Agora vai.” E Kuli foi, e cantava ao partir para a floresta. Não estava contrariado. Apesar de ter apenas dois anos de idade, acreditava ter atingido a  idade adulta, já que tinha um machado pronto à mão. Canção de Sā kehonto na floresta:  Já sou de fato um homem De verões só conto poucos Cá no bosque a primavera  Inda é nova, deliciosa. Sou mais nobre do que fui E de cinco tenho a força. Valentia de meu pai Pois no bosque é primavera  Cresce em mim, sou S ā kehonto. Ó machado, irmão querido – Um machado bom para um chefe Vamos derrubar as bétulas E cortar seus alvos troncos.  Afiei-te de manhã  E à tarde fiz teu cabo. Que teu gume atinja os troncos E desperte o bosque, o monte.  A madeira estale em terra  Cá no bosque, primavera   Ao teu golpe, irmão de ferro. E assim foi Sā kehonto pela floresta, golpeando tudo o que via pela frente, pouco se importando com a destruição. Uma grande fila de árvores jazia atrás dele, pois grande era sua força. Chegou então a uma parte densa da floresta, no alto de uma das encostas

das montanhas das trevas, mas não teve medo, pois tinha afinidade com os seres selvagens, e a magia de Mauri [Musti] estava ao seu redor. Ali escolheu as maiores árvores e as derrubou, abatendo as robustas com um golpe e as mais fracas com meio golpe. E quando sete árvores enormes jaziam diante dele, subitamente lançou longe o machado, partindo ao meio um grande carvalho, que gemeu sob o impacto, mas o machado ali ficou tremendo. Sā ki exclamou: “Que Tanto, Senhor do Inferno, faça esta labuta e mande Lempo para trabalhar as madeiras.” E cantou: Não mais cresça aqui rebento Nem verdeje a folha, a relva. Quanto dure a grande Terra  Ou a Lua brilhe áurea  E sua fraca luz penetre Pelos ramos da mata Saki.  Já no chão caiu semente E o trigo se ergue novo Desdobrando a tenra folha  Para crescerem nele os talos. Nunca forme as espigas Nem incline a fronte d’ouro Na clareira da floresta  Bosque que é de Sā kehonto. Pouco tempo depois, chegou Ūlto para olhar em volta e saber como o filho de Kampo, seu escravo, fizera uma clareira na floresta, mas não encontrou clareira, e sim um impiedoso retalhamento, aqui e ali, e desperdício das melhores árvores, e refletiu sobre isso, dizendo: “Para tal trabalho o patife não serve, pois estragou a melhor madeira, e agora não sei para onde o mando ou com que o faço trabalhar.” Mas reconsiderou e mandou o rapaz fazer uma cerca entre alguns de seus campos e o ermo. E para esse trabalho Honto partiu, reuniu as maiores dentre as árvores que derrubara, e abateu ainda outras: abetos e altivos pinheiros da azul Puh ōsa, e os usou como mourões de cerca. Amarrou-os firmemente com sorva e vime, e fez um muro contínuo de árvores, sem interrupção nem brecha. Não pôs nele portão nem deixou abertura ou fresta. E falou severamente consigo: “Quem não puder planar no alto, rápido

como uma ave, nem cavar como os seres selvagens, jamais poderá passar pela cerca feita  por Honto nem perfurá-la.”  Aquela cerca excessivamente robusta, porém, desagradou a Ūlto, e ele repreendeu seu escravo de guerra, pois a cerca se erguia sem portão nem brecha por baixo, sem fresta nem abertura, apoiada na ampla terra e elevando-se entre as nuvens de Ukko, lá em cima. Por esse motivo os homens chamam uma alta crista de pinheiros de “sebe de S ā ri”. “Para tal trabalho”, disse Ūlto, “tu não serves, nem eu sei com que te posso fazer trabalhar. Mas vai-te embora, há centeio pronto para debulhar.” Então Sā ri foi, irado, para a debulha, e debulhou o centeio, fazendo-o em pó e palha. Os ventos de Wenwe o apanharam e sopraram como poeira nos olhos de Ūlto, que se enfureceu. S ā ri fugiu. Sua  mãe temeu por isso, e Wanōna chorou, mas seu irmão e sua irmã mais velha o censuraram, pois disseram que S ā ri nada fazia senão enraivecer Ūlto, e do mal daquela  raiva todos partilhavam, enquanto Sā ri se escondia na floresta. O coração de S ā ri ficou amargo com isso, e Ūlto falou em vendê-lo como escravo agrilhoado para uma terra  distante e livrar-se do rapaz. Então sua mãe falou, implorando: “Ó S ā rihonto, se viajares para o estrangeiro, se fores como escravo agrilhoado para uma terra distante, se pereceres entre homens desconhecidos, quem há de pensar em tua mãe ou cuidar todos os dias da desafortunada  senhora?” E Sā ri, mal-humorado, respondeu, cantando lépido e assobiando para  acompanhar: Passe fome sobre o feno E sufoque no estábulo E seu irmão e sua irmã uniram as suas vozes à dele, dizendo: Teu irmão, quem lhe acode? Quem mais tarde vai criá-lo? E a isso só tiveram esta resposta: Que pereça na floresta  Ou desmaie lá no prado. E sua irmã o repreendeu, dizendo que ele tinha o coração duro, e ele respondeu: “Contigo, irmã traiçoeira, embora sejas filha de Keime, não me preocupo, mas

lamentarei afastar-me de Wanōna.” Então ele os deixou, e Ūlto, pensando no tamanho e na força do rapaz, cedeu e resolveu mandá-lo fazer outras tarefas. Conta-se que ele foi estender sua maior rede de arrasto e, ao empunhar o remo, perguntou em voz alta: “Agora devo puxar com toda  força, com todo o meu vigor, ou apenas com esforço comum?” E o timoneiro respondeu: “Agora rema com toda força, pois não consegues fazer partir este barco.” Então Sā ri, filho de Kampa, remou com toda a força, e fendeu as cavilhas de madeira dos remos, e despedaçou as nervuras de junípero, e lascou as pranchas de álamo do barco.  Ao ver isso, Ūlto disse: “Não, não entendes de remar. Vai bater os peixes para  dentro da rede de arrasto. Talvez com uma haste de debulhar batas a água com mais êxito do que com espuma.” Mas S ā ri, ao erguer a haste, perguntou em voz alta: “Devo bater com toda força, com vigor de homem, ou apenas lentamente, com esforço comum de quem debulha com a vara?” E o homem da rede disse: “Não, bate com toda força. Dirias que é labuta se batesses, não com tua força, mas apenas a teu bel-prazer?” Então S ā ri bateu com toda a sua força, e agitou a água como sopa, e bateu a rede com a estopa, e malhou os peixes no lodo. Como a ira de Ūlto não conhecesse mais limites, ele disse: “É totalmente inútil o rapaz. Qualquer trabalho que lhe dou, ele estraga por maldade. Vou vendê-lo como escravo na Grande Terra. Lá o Ferreiro Āsemo o admitirá para golpear o martelo com sua força.” E S ā ri chorou de ira e de amargura no coração por separar-se de Wan ōna e do cão negro Mauri. Então seu irmão disse: “Não chorarei por ti se souber que pereceste longe daqui. Encontrarei para si um irmão melhor que tu, e mais gracioso de se ver.” Pois S ā ri não era belo de rosto, e sim moreno e desgracioso, e sua estatura não combinava com a  largura. E S ā ri disse: “Não por ti hei de chorar Se ouvir que pereceste Pois farei para mim irmão com muita facilidade, por cima uma cabeça de pedra e uma boca de salgueiro, e seus olhos serão arandos, e o cabelo de restolho murcho, e lhe farei pernas de ramos de chorão, e formarei sua carne de árvores podres, e mesmo assim ele será mais irmão e melhor do que tu és.” E sua irmã mais velha perguntou se ele chorava por sua insensatez, e ele respondeu que não, pois ansiava deixá-la, e ela disse que de sua parte não lamentaria que fosse mandado embora, nem se ouvisse que ele perecera nos pântanos e sumira dentre a gente,

pois assim haveria de encontrar para si um irmão mais habilidoso e, além de tudo, mais bonito. E Sā ri falou: “Não por ti hei de chorar se ouvir que pereceste. Pois farei para  mim irmã de barro e junco, com cabeça de pedra, e olhos de arandos, e orelhas de lírios d’água, e corpo de bordo, e uma irmã melhor do que tu és.” Então sua mãe lhe falou para acalmá-lo: Ó meu doce, ó meu caro Eu que te pari, a bela, Eu que te criei, dourada  Chorarei por tua ruína  Se ouvir que pereceste E sumiste dentre a gente. O que sente a mãe mal sabes Nem seu coração, parece E se lágrimas tiver Para lamentar teu pai Chorarei por nosso adeus Chorarei por tua ruína  E meu pranto no verão Inda quente flui no inverno  Até fundir a neve em torno E o solo nu degela  E outra vez verdeja a terra  E meu pranto molha o verde. Ó meu lindo, ó minha cria, Kullervoinen Kullervoinen Sā rihonto que é de Kampa. Mas o coração de Sā ri estava negro de amargura, e ele disse: “Não hás de chorar, mas, se quiseres, então chora, chora até que a casa se alague, chora até que os caminhos se inundem e o estábulo seja um pântano, pois não me importo e estarei longe daqui.” E Sā ri, filho de Kampa, foi levado por Ūlto para longe, através da terra de Telea, onde morava Āsemo, o ferreiro, e S ā ri nada viu de Oanōra [Wanōna] em sua partida, e isso lhe doeu, mas Mauri o seguiu de longe, e seus latidos na noite deram a S ā ri alguma  coragem, e ele ainda tinha o punhal Sikki.

E o ferreiro, por considerar S ā ri um patife inútil e grosseiro, deu a Ūlto somente dois caldeirões gastos, cinco ancinhos velhos e seis foices em pagamento, e com isso Ūlto teve de voltar descontente. E então Sā ri bebeu não apenas o trago amargo da servidão, mas comeu ainda o pão envenenado da solidão e do isolamento. Tornou-se mais sem graça e deformado, largo e malfeito, nodoso, irrefreado e endurecido. Muitas vezes caminhava nos ermos selvagens com Mauri, e passou a conhecer os lobos ferozes e a conversar até com Uru, o urso. Tais companhias não lhe melhoraram a mente nem o humor de seu coração, porém, nas profundezas da memória, jamais esqueceu seu juramento de outrora nem a ira contra  Ūlto, mas não deixava o coração acalentar sentimentos ternos por sua gente lá longe, exceto, às vezes, por Wanōna. Ora, Āsemo tinha por esposa a filha [de] Koi, rainha dos pântanos do Norte, de onde ele havia trazido magia e muitas outras coisas obscuras para Puh ōsa e até para Sutsi, pelos largos rios e pelas lagoas cercadas de juncos. Ela era bela, porém meiga somente com Āsemo. Era traiçoeira e dura, e pouco amor concedia ao servo grosseiro, e pouco Sā ri solicitava seu amor ou sua bondade. Durante certo tempo Āsemo não impôs ao novo servo nenhuma labuta, pois tinha  homens bastantes, e por muitos meses S ā ri vagueou pelas terras selvagens, até que, por insistência da esposa, o ferreiro mandou S ā ri tornar-se criado dela e fazer tudo que ela  mandasse. Então a filha de Koi se alegrou, pois esperava usar a força dele para aliviar seu trabalho na casa, e provocá-lo e puni-lo pelas desfeitas e pela rudeza que lhe demonstrara  antes. Mas, como era de esperar, S ā ri demonstrou ser um mau escravo, e grande aversão por ele cresceu no coração de sua esposa [de Āsemo], e a nenhuma maldade que lhe pudesse infligir ela jamais renunciou. E aconteceu certo dia, muitos e muitos verões depois de S ā ri ter sido vendido da Cara Puh ōsa e ter deixado a floresta azul e Wanōna, que, tentando livrar a casa de sua presença desajeitada, a esposa de Āsemo refletiu bastante e teve a ideia de fazer dele seu boiadeiro e mandá-lo para longe, para vigiar seus grandes rebanhos nas planícies ao redor. Pôs-se então a cozer, e com maldade preparou a comida para o vaqueiro levar consigo. Trabalhando a sós, com crueldade, fez um pão e um grande bolo. Ora, o bolo foi feito de aveia por baixo com um pouco de trigo por cima, mas, no meio, ela inseriu uma grande pederneira, enquanto dizia: “Quebra os dentes de S ā ri, ó pederneira, dilacera a língua do filho de Kampa, que sempre fala com aspereza e não conhece respeito com os seus superiores. Pois pensava que S ā ri enfiaria tudo na boca de uma só vez, já  que era guloso ao comer, não diferente dos seus companheiros lobos. Então ela cobriu o bolo de manteiga e, na crosta, espalhou toucinho. Chamou S ā ri e mandou que fosse cuidar dos rebanhos naquele dia, e que não voltasse antes do

entardecer. Deu-lhe o bolo como compensação, ordenando que não comesse antes de a  manada ser guiada para a floresta. Então mandou-o embora, dizendo: Toque o gado entre as moitas E as leiteiras lá no prado. Chifres largos pelos álamos Chifres curvos pelas bétulas Para que engordem e desse modo Tenham carne saborosa. Lá por todo o prado aberto Lá nas bordas da floresta  Entre as bétulas errando Entre os álamos que se erguem Mugem nos bosques de prata  Vagam nos abetos d’ouro. E, à medida que se afastavam seus grandes rebanhos e seu boiadeiro, apossou-se dela um pensamento, como se fosse um presságio, e ela orou a Ilu, o Deus do Céu, que é bondoso e habita em Manatomi. Sua oração, em forma de canção, foi muito longa, e uma parte dela dizia assim: Guarda o gado, ó bom Ilu Das agruras do caminho Que se livre do perigo E a má sorte não o colha. Se for mau o meu vaqueiro Que o chorão toque a boiada  O amieiro olhe o gado E que o freixo o proteja  Cerejeira o traga à casa  Esta tarde para ordenha. Se o chorão não o tocar Nem o freixo o proteger Cerejeira não trouxer

Manda teus melhores servos, Manda as filhas de Ilwinti Para proteger de risco as vacas Proteger o gado cornudo Pois são tantas tuas donzelas  Às tuas ordens em Manoini Hábeis com as vacas brancas Lá no prado azul d’Ilwinti  Até que Ukko tire o leite, Dá-o a Kemē , que tem sede. Ó donzelas, vinde antigas Lá do Céu filhas pujantes De Malōlo filhos, vinde Vinde a mando de Ilukko Ó [Uorlen?] muito sábia  Tira o mal desta manada  Se os chorões não a vigiarem Lá nos pântanos que boiam Onde a tona mexe sempre E o voraz abismo traga. Ó encantadora Sampia, Sopra a trompa que é do mel. Se o amieiro não vigia   Apascenta tu meu gado E põe flores nos outeiros. Quando a trompa-mel ressoa  Embeleza o urzal, a beira, E encanta a mata à margem Para meu gado ter seu pasto E bastante feno d’ouro E o talo de erva-prata. Ó donzela de Palikki

E Telenda, a companheira  Se a sorveira não vigia  Faz para o gado poços, prata  Cá e lá, margeando o pasto C’os pés que mágicos vagam Faz brotar fontes cinzentas E as torrentes repentinas E os rios que vão velozes Entre as margens, brilho d’erva  Para dar goles doces, mel Que o rebanho sorva a água  E o suco escorra basto  Às suas tetas cheias, fartas. Corra o leite em regatos E espume em branco fluxo.  A frugal ama Kaltūse Que detém toda maldade Se o ermo não guardá-los Trasgos maus não se aproximem Mãos ociosas não ordenhem Nem seu leite se derrame Nem a Pūlu desçam gotas E que Tanto não o beba  Mas que em Kame na ordenha  Flua o leite em abundância  E os baldes lá transbordem E se alegre a esposa. Ó Terenye que é de Samyan Donzelinha das florestas Trajas vestes lisas, belas Com cabelos d’ouro lindos Nos pés couro escarlate

Se a cereja não os leva Sê vaqueira e pastora. Quando o sol desceu, descansa  Canta a ave vespertina  E a penumbra se aproxima  Fala ao gado meu chifrudo Vinde a mim, bichos de casco Vinde ao lar, já rumo à casa. Casa alegre, aprazível Piso bom para o descanso Não é bom vagar no ermo Ir pelas margens vazias Desses lagos cá de Sutse. Vinde pois, gado de cornos Farão fogo as mulheres Onde é doce o capim Solo farto de frutinhas. [Os versos seguintes estão desalinhados para indicar mudança de tom. A edição de Kirby não os diferencia dessa maneira, mas menciona, no Argumento do início do Runo, que eles contêm “as súplicas e os encantamentos de costume” (Kirby, v. 2, p. 78). Magoun dá o seguinte título aos versos: “Encantamentos para trazer o gado de volta ao lar, versos 273-314” (Magoun, p. 232).]  A donzela de Palikki E Telenda, a companheira  Chicoteiam-nos com bétula  Com junípero os tangem Do cercado que é de Samyan Das encostas de amieiros  À tardinha, na ordenha. [Como os anteriores, estes versos também estão desalinhados para indicar alteração de tom e para separá-los dos precedentes. O Argumento de Kirby  menciona um encantamento para “proteção contra ursos nos pastos” (p. 78),

enquanto Magoun fornece o cabeçalho: “Encantamentos admonitórios contra  ursos, linhas 315-542” (p. 232).] Ó meu Uru, ó querido Pata-Mel, senhor da mata  Haja trégua entre nós Nestes belos dias estivos No verão do Criador Dias em que Ilu ri Que tu durmas sobre o prado Co’as orelhas no restolho Ou te escondas nas touceiras Que não ouças os cincerros Nem a fala do vaqueiro. Que os tinidos e mugidos E os barulhos do urzal Não te exaltem nesta hora  Nem teus dentes tenham ânsia. Vaga, sim, lá pelos brejos Embrenha-te na mata. Teu rosnado soe no ermo Tua fome aguarde o tempo Quando há muito mel em Samyan Fermentando nas encostas Da áurea terra que é Kemē No zumbido das abelhas. Nosso pacto seja eterno Nossa paz seja infinda  No verão em paz vivamos No verão do Criador. [Assim como nas demais separações, o recuo que se segue está alterado para  indicar mudança de tom; neste caso, para a conclusão ou peroração das súplicas

da senhora. Nem Kirby nem Magoun distinguem estes versos.] Toda a súplica, todo o canto Ukko, rei de prata, assim Ouve o pedido que faço.  Ata à trela os cães de K ūru Prende as feras da floresta  Põe o astro-sol em Ilwe Seja d’ouro cada dia. Ora, a esposa de Āsemo era grande entoadora de súplicas, além de também ser uma  mulher extremamente gananciosa e demasiado ciosa de seus bens, o que se pode compreender [pela] extensão de sua súplica a Ilukko e suas donzelas em favor do gado, que era muito bonito e lustroso. Mas agora Sā ri avançara um pouco, e colocara a comida na bolsa, enquanto tangia  o gado pelos prados úmidos e pântanos, seguindo pela charneca até a fértil borda da  floresta. À medida que andava, ele se lamentava e murmurava para si mesmo: “Ai de mim,  jovem desgraçado, sorte negra malvada e duro caminho. Aonde quer que me leve minha  trilha, nada me espera senão o ócio e a infinda contemplação das caudas dos bois, sempre perambulando nos brejos, e a monótona paisagem plana.” Então, chegando a uma  encosta ensolarada, sentou-se, tirou o almoço, admirou-se do seu peso e disse: “Esposa  de Āsemo, não costumas repartir comigo tal peso de comida.” Pôs-se então a pensar em sua vida e no luxo de sua maldosa senhora, e a ansiar por pão de trigo em fatias grossas, com manteiga, e por bolos da mais fina feitura, e por uma  bebida que não fosse água para saciar a sede. Crostas secas, pensou, é tudo o que ela me dá para mastigar e, quando muito, bolo de aveia, não raro misturado com este farelo, ou palha, ou casca de abeto, e repolho do qual seu vira-lata comeu toda a gordura. Lembrou então dos dias de total liberdade de outrora e de Wanone [sic] e sua gente, e em seguida  dormiu até que um pássaro, tagarelando à tardinha, o despertou, e [ele] tangeu o gado ao descanso, sentou-se num outeiro e tirou das costas a bolsa.  Abriu-a e virou-a, dizendo que muitos bolos são bonitos por fora, mas ruins por dentro, e são como este: trigo por cima e aveia por trás. Como estivesse mal-humorado e com pouca fome, pegou o grande punhal para cortar o bolo, e ele atravessou a crosta fina  e rangeu com tal força contra a pederneira que o gume se torceu e a ponta se partiu, dando fim a Sikki, herança de Kampa. S ā ri, tomado primeiramente por uma cólera  profunda e, depois, pelo pranto, pois apreciava aquela herança mais do que prata ou ouro, disse:

Ó meu Sikki, companheiro Ó tu, ferro de Kalervo Que o herói usava em punho Na dor minha eu só amava  Meu punhal entalhador E partiu-se contra a pedra  Por rancor da má mulher. Ó meu Sikki, ó meu Sikki Ó tu, ferro de Kalervo. Pensamentos malignos sussurraram-lhe na cabeça, e a ferocidade do ermo penetrou-lhe o coração. Teceu com os dedos um intento de fúria e vingança contra a bela  esposa de Āsemo. E, pegando duma touceira uma vara de bétula e junípero, tocou todas as vacas e o gado para os brejos d’água e os pântanos sem trilha. Chamou os lobos e os ursos para que tomassem metade por presa e lhe deixassem somente um osso da perna  de Urula, a vaca mais velha do rebanho. Com ele fez uma grande flauta, e tirou dela um som estridente e estranho. Isso foi magia do próprio S ā ri, nem os homens sabem onde ele a aprendeu. Assim, cantaram os lobos ao gado e os ursos aos bois e, quando o sol descia vermelho no poente e se inclinava para os pinheiros, perto da hora da ordenha, tangeu os ursos e lobos para casa, diante de si, exausto e empoeirado de chorar no chão e encantar os seres selvagens. Ora, ao aproximar-se do terreiro da fazenda, ele deu às feras uma ordem: quando a  esposa do ferreiro fosse olhar em torno e se agachasse para a ordenha, elas deveriam agarrá-la e triturá-la com os dentes. E assim foi ao longo do caminho, tocando músicas entrecortadas e estranhas na  flauta de osso de vaca. Três vezes soprou na encosta da colina e seis vezes no muro do  jardim. E a esposa de Āsemo admirou-se, pensando onde o boiadeiro teria obtido o osso de vaca para sua flauta, mas não se importou demasiado com o assunto, pois há  tempo esperava as vacas para ordenhar. Agradeceu a Ilu pelo retorno de seu rebanho, saiu e mandou que Sā ri parasse com o alarido ensurdecedor, depois disse à mãe de Āsemo: Mãe, as vacas vêm para a ordenha. Vai e cuida do meu gado Pois não posso terminar De amassar a massa a tempo.

Mas Sā ri zombou dela, dizendo que nenhuma dona de casa mandaria outra, e [uma] anciã, para ordenhar as vacas. A esposa de Āsemo então dirigiu-se depressa para  os galpões e se pôs a ordenhar suas vacas. Contemplou o rebanho, dizendo: “Lindo de ver é o rebanho, e lustrosos são os bois chifrudos, e bem repletas as tetas das vacas.” Então agachou-se para ordenhar, e eis que um lobo saltou sobre ela, e um urso a  agarrou em seu abraço cruel, e dilaceraram-na ferozmente, e esmagaram seus ossos, e assim foram retribuídos sua pilhéria, sua zombaria e seu rancor, e a cruel esposa se pôs a  chorar. Sā ri estava junto a ela, nem exultante nem indiferente, e ela disse-lhe gritando: “Fazes mal, ó mais malvado dos boiadeiros, em trazer ursos e enormes lobos a estes pátios pacíficos.” Então Sā ri a repreendeu por sua maldade e pelo rancor que sentia por ele e por ter quebrado sua querida herança.  A esposa de Āsemo, com lisonjas, então falou: “Vem, boiadeiro, caríssimo boiadeiro, vem, maçã desta herdade, altera tua cruel resolução, e suplico que afastes de mim essa magia e liberte-me da queixada do lobo e dos braços do urso. Se assim fizeres, hei de te dar melhores trajes, e lindos enfeites, e pão de trigo e manteiga, e os mais deliciosos goles de leite para consumires, e não hás de ter nenhum trabalho por um ano, e um trabalho leve no segundo.” Sā ri respondeu: “Se morreres, podes perecer assim. Há espaço bastante em muntu para ti.” Então a esposa de Āsemo, à beira da morte, lançou-lhe uma maldição usando seu nome e o do [próprio?] pai, e clamou a Ukko, o maior dos deuses, que ouvisse suas palavras.  Ai de Sā ri que é de Kampa   Ai do filho criado Nyelid Má tua sorte, andança escura  Nesta estrada da tua vida. Como servo caminhaste No ermo árido do exílio Mas teu fim será mais atro Para que os homens contem sempre Sina de pesar [e] horror Mais que a aflição de Amuntu. Virão homens lá de Loke Que fica nas sombras, longe, ao Norte Também homens lá de Same

Do verão das trilhas-sul E nos chegarão de Kemē E do oceano, banho d’oeste Hão de estremecer ouvindo Tua sina, e fim terrível.  Ai de ti que como [ilegível] [O verso se interrompe aqui sem pontuação final nem qualquer indicação de que havia a intenção de ser dada continuidade a ele.] Sā ri foi embora, e ela morreu ali, a filha de Koi, a bela que o ferreiro primevo Āsemo cortejou, na longínqua Lohiu, por sete anos. Seus gritos chegaram ao seu marido, na forja. Ele deu as costas à oficina e foi escutar na vereda, e depois, com temor no coração, apressou-se e percorreu o pátio com o olhar. Chegou-lhe aos ouvidos o som distante de uma flauta, estridente e estranha, afastando-se ao longe pelo pântano sob as estrelas, e mais nada, mas aos olhos logo chegou-lhe aquela visão maligna no solo, e sua alma se turvou mais profundamente do que a noite, e sem estrelas. S ā ri estava longe, no ermo, com a flauta de osso, e ninguém podia segui-lo, pois a magia de Mauri estava à  sua volta, e a sua própria magia, sempre crescente, também ia com ele. Sā ri vagou sem destino aquela noite e um dia inteiro, através da mata mais espessa, até que, na noite seguinte, viu-se no mais denso terreno de madeira de P ūhu. A treva se tornou sufocante e ele se lançou ao chão, refletindo amargamente: Por que é que fui criado? Quem me fez, me condenou  A vagar sob sol e lua  Sob o céu aberto sempre? Outros rumam aos seus lares Que reluzem à tardinha  Mas meu lar é na floresta. No salão do vento durmo Banho-me na amarga chuva   A lareira é em meio à urze Na ampla sala do ar que sopra  É na chuva, é no tempo.

Nunca Jumala, o sagrado Nestas eras dentre as eras Fez criança tão disforme Cuja sina é não ter amigos Sob o céu andar sem pai Sem ter mãe que dele cuide.  Assim, Jumala, fizeste-me Qual gaivota gemo e vago Como ave voo ao vento Pelas costas, rochas, névoa  Mas o sol reluz na andorinha   Andorinha que se anima  Fazem festa aves do ar Mas jamais, jamais me alegro. Ó Ilu, a vida não tem graça. {De pequeno perdi a mãe o pai Era jovem (fraco), perdi a mãe. Toda minha gente é morta  Toda minha gente} Então Ilu enviou-lhe um pensamento ao coração, e ele ergueu a cabeça e disse: “Hei de matar Ūlto.” E a lembrança da injustiça feita a seu pai, seu juramento e as lágrimas de toda a sua vida vieram a ele, e ele disse: “De bom grado hei de matar Ūlto.” E seu coração ainda estava amargo também contra sua própria gente, exceto contra Oan ōra. Recordou, furioso, da luz vermelha que irrompia da habitação de Untamo, e Untamo morto, no chão manchado de seus próprios salões soturnos. Mas Kullervo não sabia  qual caminho levava até lá, pois de todos os lados a floresta o cercava. Ainda assim prosseguiu em frente, dizendo: “Espera tu, espera Untamoinen, destruidor da minha  raça. Se eu te encontrar, depressa tua habitação há de irromper em chamas, e os campos cultivados hão de jazer vazios e murchos.” Enquanto andava absorto em seus pensamentos, uma anciã, a própria Senhora  Vestida de Azul da Floresta, foi ter com ele e lhe perguntou: “Aonde, ó Kullervo, filho de Kalervo, tu vais com tanta pressa?” Então Kullervo contou-lhe o seu desejo de deixar a floresta, vagar rumo ao lar de Untamo e, com fogo, vingar a morte do pai e as lágrimas da mãe.

Ela então disse: “É fácil para ti viajar, apesar de não conheceres a trilha através da  floresta. Deves seguir o caminho do rio e marchar por dois dias, e um terceiro dia, e aí, virando a noroeste, encontrarás uma montanha coberta de bosques. Não te dirijas até ela  para que o mal não te encontre. Segue marchando sob a sombra, virando-te sempre à  esquerda quando chegares a outro rio. Quando tiveres seguido suas margens, logo chegarás a um lugar bonito, e a uma grande clareira, e a uma cachoeira tripla espumando sobre um grande precipício. Então saberás que estás na metade do caminho. Ainda assim precisas continuar a subir o rio, com força, rumo à sua nascente. O solo se inclinará  contra ti, e o bosque escurecerá e se afastará de novo, até que, durante um dia, tropeçarás por um árido deserto, e então logo verás o azul da floresta de Untamo se erguendo ao longe, e quem sabe ainda não a tenhas esquecido por completo. Então a Mulher da Floresta escapuliu por entre os troncos das árvores, e Kullervo, seguindo o rio – pois havia um não muito extenso perto dali –, marchou durante dois dias, e um terceiro dia, depois virou-se para o noroeste e avistou a montanha com a  floresta. O sol brilhava sobre ela, e as árvores estavam floridas. Ali parecia que as abelhas zumbiam e os pássaros cantavam. Kullervo se cansou das sombras azuis da floresta e pensou: “Minha demanda há de esperar, pois no fim jamais Untamo poderá me escapar. Vou beber a luz do sol.” Desviou-se da trilha da floresta rumo ao sol. Subiu as encostas até chegar a uma ampla clareira. Sobre um tronco caído numa mancha de luz, em meio às sarças, ele viu uma donzela com cabelos louros ondulados, e a maldição da filha de Louhi caiu sobre ele. Seus olhos viam e não viam, e esqueceu-se do assassinato de Untamo e caminhou até a donzela, que não lhe dava atenção. Ela trançava uma guirlanda de flores e cantava para si, porém abatida e meio pesarosa. “Ó bela, orgulho da Terra”, falou Kullervo, “vem comigo, vaga comigo pela  floresta, a não ser que sejas de fato filha de Tapio, e não donzela humana; mas ainda  assim desejo que sejas minha companheira.”  A donzela se assustou e se esquivou dele. “A morte anda contigo, caminhante, e a  desgraça está a teu lado.” Kullervo zangou-se, mas era muito linda a donzela, e ele disse: “Não é bom que estejas sozinha na floresta, nem isso me agrada. Vou trazer-te comida, e andarei ao longe para te aguardar, e ouro e trajes e muitas coisas valiosas te darei.”  A donzela respondeu:“Apesar de eu estar perdida na floresta maligna e Tapio me ter firme em seu domínio, ainda assim jamais desejaria vagar com alguém como tu, vilão. Teu aspecto pouco combina com donzelas. Mas tu desejas, e, se fores honesto, ajuda-me a encontrar a estrada do lar até minha gente, que Tapio de mim esconde.” Kullervo enfureceu-se por ela ter criticado sua deselegância e, afastando de si propósitos generosos, exclamou: “Que Lempo tome os teus, e depressa eu os passaria  pela espada se topasse com eles, mas quero ter a ti, não voltarás a morar na casa de teu pai.”

Diante disso, ela ficou com medo e fugiu dele através das plantas emaranhadas como um animal selvagem da floresta. Irado, ele correu atrás dela, até alcançá-la, e carregou-a para longe, nos braços, para as profundezas da mata. Porém era bela a donzela, e ele era carinhoso com ela. A maldição da esposa de Ilmarinen [sic] estava sobre ambos, de modo que ela não resistiu a ele por muito tempo. Moraram juntos no ermo até que, certo dia, quando Jumala trazia a manhã, a donzela em seus braços, questionando-o, disse: Fala agora da tua gente Da brava raça de que nasceste Raça forte me parece Ser a tua, forte pai. E a resposta de Kullervo foi esta: [Estes versos estão desalinhados, aparentemente para indicar uma mudança de interlocutor.] Não é grande minha raça  Nem é grande nem pequena. Sou de condição mediana. De Kalervo filho infausto  Jovem rude, sempre tolo Filho inútil, bom para nada. Fala-me da tua gente Brava raça da qual vens. Forte raça há de ser Linda filha, forte pai. E a garota respondeu depressa (sem deixar Kullervo ver seu rosto): Não é grande minha raça  Nem é grande nem pequena  Sou de condição mediana  Moça errante sempre tola 

Filha inútil, boa para nada. Então pôs-se de pé e, fitando Kullervo com a mão estendida e os cabelos caindo em torno dela, exclamou: Fui à mata catar bagas Minha boa mãe deixei. Sobre plano e urze aos morros Vim dois dias e um terceiro  Até perder do lar a trilha. Vim por sendas mais profundas Fundas, fundas para a treva  Fundas, fundas para a pena   Ao pesar e ao horror. Luz do sol, ó luz da lua  Brisas livres, ó tão caras Nunca, nunca hei de vos rever De sentir-vos em minha fronte. Em terror atro caminho Desço a Tuoni junto ao rio. E, antes que Kullervo pudesse se erguer de um salto e agarrá-la, ela saiu correndo pela clareira (pois moravam numa habitação selvagem, junto à clareira de que lhe falara a  Mulher Azul da Floresta), como um tremente raio luminoso à luz da aurora, mal parecendo tocar a verde relva orvalhada, até chegar à tripla cachoeira, e se lançou nela, descendo pela coluna de prata às profundezas temíveis, justamente quando Kullervo a  alcançava. Ele ouviu seu último gemido, e parou de pé na beira, pesadamente curvado como um torrão de rocha, até o sol se erguer, e assim a relva se tornar verde, e os pássaros cantarem, e as flores se abrirem, e passar o meio-dia, e todas as coisas parecerem felizes, e Kullervo as amaldiçoou, pois ele a amava.  A luz se desvaneceu e o presságio lhe roeu o coração. Alguma coisa nas últimas palavras e no murmúrio da donzela, e no seu amargo fim, despertou um antigo conhecimento em seu coração cego pelo feitiço. Sentiu que explodiria de aflição, e pesar, e forte temor. Então foi acometido por um ódio violento, praguejou, agarrou a espada e [foi-se] cegamente no escuro, sem se importar com quedas ou contusões, subindo o rio

como a Senhora ordenara, ofegante nas encostas inclinadas contra ele, até que, ao amanhecer, sua pressa tão terrível [A narrativa se interrompe nesse ponto, e o que se segue no restante da página é um esboço com anotações sobre o final da história, escrito rapidamente e com desvios de sintaxe atribuíveis à pressa. Aqui ele é mostrado por completo.] Ele vai até Untola e cegamente destroça tudo, reunindo um exército de ursos e lobos que desaparecem ao anoitecer e matam Musti, que está seguindo, fora do vil[arejo]. Quando tudo está destruído, ele se lança, embebido de sangue, sobre o leito de Untamo, sua própria casa, a única não queimada. O espectro da mãe lhe aparece e lhe diz que o seu irmão e a sua irmã estão entre os que ele matou. Ele fica horrorizado, mas não angustiado. Então ela lhe diz que também foi [morta], e ele se ergue suado e horrorizado, acreditando que está sonhando, e fica prostrado quando descobre que não é assim. Então ela continua. (Eu tive uma filha mais linda donzela, que saiu procurando frutas silvestres) Contando como ela encontrou uma linda donzela perturbada, vagando com o olhar triste junto à margem do rio de Tuoni, e descreve o encontro deles, acabando por revelar que foi ela que se matou. K[ullervo] morde o punho da espada angustiado e ergue-se violentamente enquanto sua mãe desaparece. Então ele a pranteia e sai incendiando o salão, passando pelo vilarejo repleto de mortos e entrando na floresta [na margem há a nota: “cai sobre o corpo de Musti, morto”], gemendo “Kivutar”, pois nunca a tinha visto (como sua irmã) desde que fora vendido para Ilmarinen. Encontra a clareira agora deserta e desolada e está prestes a  se lançar por cima da mesma cachoeira quando decide que não é digno de se afogar nos mesmos poços que Kivutar, e saca a espada perguntando-lhe se ela o matará.  A espada diz que, se teve prazer na morte de Untamo, tanto mais terá na morte de Kullervo, ainda mais malvado, que matara [sic] muitas pessoas inocentes, mesmo sua  mãe, portanto não vacilaria com K. Ele se mata e encontra a morte que buscava.

MS Folha 6

Lista de nomes 

[ Aqui o espaçamento é como consta do manuscrito.]

[ Anverso] Tūva (w. Ny ē li) Kampa (Ny ē li) ou K ē ma

Ulto Ūlto Kem (Puhōsa, sua terra)

Sā aki ou hontō

Wanōna 

Cão negro Ferreiro   cf.

Mauri Āsemo Āse

Lumya Teleä K ĕ mĕ nūme

Terra pantanosa  terra natal de Kemē ou Grande Terra 

Ilu

Iluko

Deus do Firmamento (o bom Deus) Muitas vezes confundido com Ukko :. ran muntu inferno Tanto deus do inferno Pūh Lempo praga & morte também chamado de Q ē le e ou como [caçador?]

Kuruwanyo

O grande rio negro da morte K ūru Ilwe Ilwinti Firmamento céu (Manatomi)  Wanwe deusa armada  Sutse a terra pantanosa  Samyan deus da floresta  Koi Rainha de [ilegível] Lōke [ Verso]

Malōlo, um deus da terra  Kaltūse ou

o criador

3. Rascunho dos nomes dos personagens [MS Tolkien B 64/6 Folha 6 anverso].

4. Notas descontínuas e sinopse do enredo preliminar [MS Tolkien B 64/6 Folha 21 anverso].

Esboços de sinopses do enredo Uma folha solta, com numeração 21, contém anotações descontínuas, rascunhadas, e, de ambos os lados, esquemas esboçados de enredo, alternativas à narrativa contínua. O uso dos nomes Ilmarinen e Louhi comprova que ele antecede o manuscrito principal. [ Anverso] Kalervo e sua esposa e filho e filha  Kullervo um menino criança com seu pai Kalervo  disputa e ataque de Untamo. A herdade devastada – Kalervo morto e quando Kullervo em desespero & toda a sua gente e sua esposa é levada por Untamo. Ela dá à luz Kullervo e uma irmã mais nova em pesar & angústia e lhes relata a História de Kalervo. Untam Kull. se torna incrivelmente forte: seu juramento quando bebê: – o punhal – (sua  natureza ressentida e passional) seus maus-tratos por parte de Untamo Sua única amiga sua irmã. O mau comportamento de K e venda como escravo a  Ilmarinen. Seu sofrimento absoluto: aqui ele conversa com lobos na montanha. entalhando estranhas figuras com o punhal do pai O bolo da filha de Louhi: Fúria e vingança de Kullervo: recusa-se a desfazer o encantamento e é amaldiçoado pela esposa moribunda de Ilmarinen. Foge de Ilmarinen e vai matar Untamo: retornando de seu triunfo ele encontra uma donzela e a obriga a  morar com ele: ele revela seu nome e ela corre gemendo para as trevas e se lança na  cachoeira fatal. Kullervo de pé aflito junto à cachoeira  [ Verso] Com 36/140–270 cão Musti Briguento mau Kalervo irmã & irmão mais velhos mesquinhos.

Mãe bondosa 

topa com a Senhora-Pohie da Floresta Que lhe conta onde sua mãe está morando (dar descrição) com seu irmão e filhas.

Ele encontra a mãe em prantos, ela buscou sua filha mais nova e muito amada durante três anos na floresta e a descreve. Kullervo vê o que acont à sua irmã  e viaja afoito pelos caminhos até as cachoeiras onde ele se mata. Ou ele pode encontrar a donzela na mata enquanto foge de Ilmarinen e para afogar sua  mágoa*, ir destruir Untamo e resgatar sua mãe da servidão descobre que é sua irmã e retorna rubro do sangue de Untamo e se mata nas Cachoeiras. pôr a fala de Unt Kuli R. 36/40 cap. Kuli encontrou[?] quando sua mãe lhe implora que seja mais obediente a Untamo quando menino. (Mãe e Irmão estão contentes que ele se vai. Só Irmã lamenta) Ou fazer assim após fuga de Ilma ele encontra sua gente – depois destrói Untamo reunindo um exército [sic] mágico de seus velhos amigos os lobos e ursos: Untamo o amaldiçoa enfeitiça e ele vaga cego pela floresta. Chega a um vilarejo e o saqueia matando o antigo chefe e sua esposa e tomando sua filha como esposa à força. Que perguntando-lhe sua linhagem ele revela ela revela a origem dele e como ele matou tanto o pai quanto a mãe e espoliou sua irmã  Lamento de Honto 34/240

5. Outras sinopses do enredo preliminar [MS Tolkien B 64/6 Folha 21 verso].

* Escrito na margem: “atenuar a suspeita levantada pela morte da irmã”. [N. da Ed. orig.]

Notas e comentários  5

 A história de Honto Taltewenlen. Um título alternativo, ou subtítulo, escrito no canto superior esquerdo da primeira folha: Honto é um dos diversos cognomes que Tolkien dá a Kullervo (ver a seguir); Talte é seu cognome para Kalervo (ver a seguir); - wenlen, sufixo patronímico equivalente a  poika , é aparentemente uma  invenção de Tolkien, baseada no modelo finlandês. Taltewenlen seria, portanto, “Filho de Talte (Kalervo)”. (Kalervonpoika). Poika   é um sufixo patronímico finlandês. Portanto, o nome completo significa “Filho de Kalervo”. quando a magia ainda era recente.  Esta frase, cancelada no manuscrito, foi aqui mantida entre chaves, visto que a magia (também chamada de feitiçaria) é praticada ao longo de toda a história por Untamo, descrito como “um cruel feiticeiro e homem poderoso”, pelo cão de caça Musti (ele próprio possuidor de habilidades mágicas) e por Kullervo, que é capaz de mudar a forma dos animais. O Kalevala   tem inúmeras referências à magia, provavelmente remanescentes do xamanismo primitivo e de práticas xamanísticas, normalmente realizadas por meio do canto. Um dos “três grandes” heróis do Kalevala , Väinämöinen, tem sido interpretado como um xamã. Recebe o epíteto de “eterno cantor” e derrota  um mago rival numa competição de canto, levando-o a um lodaçal, graças à sua  canção. Na história de Tolkien, tanto Untamo quanto Kullervo “tecem” magia  com os dedos. Kullervo também usa a música, cantando e tocando uma flauta  mágica de osso de vaca. Sutse. Um nome inventado por Tolkien com a intenção de substituir o anterior “Suomi” (nome finlandês da Finlândia) no texto. Outros nomes substitutivos, todos escritos na margem esquerda desse parágrafo de abertura, incluem “Telea”, pelo anterior Karelja, “a Grande Terra / Kemen ūme”, pelo anterior Rússia, e “Talte” (ver acima), pelo anterior Kalervo. Asteriscos ao lado dos nomes, tanto no texto quanto na margem, demarcam as emendas. Com exceção de “Talte”, os nomes substitutivos passam a ser o padrão e são utilizados de maneira mais ou menos consistente em todo o restante do texto. Essas mudanças representam a  prova mais clara da tendência de Tolkien de se afastar do mero uso da  nomenclatura do Kalevala  e utilizar nomes inventados por ele próprio.* Kemenūme (A Grande Terra).  Substitui Rússia no texto. Pode estar baseado em Kemi, um rio no Norte da Finlândia, onde se localiza a cidade de mesmo nome. Ver a nota de rodapé no verbete “Sutse”.

Telea.  Substitui o anterior Karelja, uma grande área de ambos os lados da  fronteira russo-finlandesa, a região onde foi coletada a maior parte dos runos (cantos) narrativos compilados por Lönnrot. Kalervo.  Pai de Kullervo. Seu nome é provavelmente uma variante de Kaleva, ancestral patronímico e herói cultural finlandês, cujo nome sobrevive no Kalevala   (com o sufixo locativo -la , “lugar ou habitação”, portanto Terra de Kaleva ou Terra dos Heróis), e no de seu descendente Kalervo, o qual também é chamado por Tolkien de Talte, Taltelouhi, Kampa e Kalervoinen, este último formado com o sufixo diminutivo finlandês -inen. Em finlandês, um nome pode apresentar várias formas diferentes, dependendo do uso de diminutivos. Ver Untamoinen, a seguir. Untamo. Irmão de Kalervo, tio de Kullervo. Possui poderes mágicos. É sádico e um suposto assassino. Também chamado de Untamoinen, Unti, Ūlto, Ulko, Ulkho. havia concebido, em anos passados, um filho e uma filha, e agora mesmo estava outra vez prestes a dar à luz. O irmão e a irmã mais velhos de Kullervo aparecem no Kalevala , mas só entram na história depois que Kullervo deixa a  casa do ferreiro. Com isto, é ignorado o fato de que Untamo já destruiu todos, exceto a esposa de Kalervo, que está grávida e dá à luz Kullervo, no cativeiro. O compilador do Kalevala , Elias Lönnrot, aparentemente combinou duas histórias diferentes para incluir o incesto e a morte de Kullervo. Tolkien soluciona a  incoerência apresentando o irmão e a irmã mais velhos no início da história. 6

negro cão de caça Musti. Primeiro Tolkien chamou o cão de Musti, um nome finlandês convencional baseado em musta   (“preto”), traduzido por algo como “Pretinho”. A meio caminho do esboço, alterou o nome para Mauri – possivelmente formado a partir do finlandês  Muuri  /  Muurikki   (“Preta” ou “Pretinha”, usado para uma vaca) – e depois voltou a Musti. Mantive ambos. Na  primeira ocorrência de Mauri, aparece junto o nome Musti entre colchetes.

6

vilões cruéis e desprezíveis.   [No original] carl : vilão, rústico, camponês. Compare-se com o anglo-saxão ceorl . O texto de Tolkien mistura anglo-saxão arcaico com nomes finlandeses e pseudofinlandeses.

7

tratou de maneira abominável sua gente e suas terras. A palavra entreat  (no original), que convencionalmente significa “suplicar” ou “protestar”, parece surpreendentemente inadequada nesse contexto. No entanto, não se trata de erro, e sim do uso deliberado por Tolkien da palavra com seu significado arcaico, “tratar” ou “lidar com”, conforme o Oxford English Dictionary.  Esse dicionário traz um exemplo de 1430: “So betyn [beaten], so woundyd, entretyd so fuly  [foully]” [“Tão batido, tão ferido, tratado tão injustamente”].

sombrios salões de Untola.  O sufixo locativo ou habitativo -la   identifica esse lugar como o lar de Unto (Untamo). bebês de Kalervo. Kullervo, no Kalevala , descobre no final da história, depois de escapar do ferreiro, que tem uma irmã, mas fazer dos irmãos um par de gêmeos, na presente narrativa, é invenção de Tolkien e não consta no original. Kullervo.  Tolkien traduz o nome por “cólera”, significado não atestado no Kalevala , onde se diz que tem origem controversa. Supõe-se que o nome tenha  se formado a partir do patronímico Kalervo. Tolkien descreveu seu herói como “infeliz Kullervo” e o identificou como “germe de minha tentativa de escrever lendas minhas” ( Cartas , p. 328). Kullervo é o mais antigo dos deslocados, heróis, órfãos e exilados de Tolkien, uma sucessão que incluiria Túrin (moldado diretamente em Kullervo), Beren e Frodo. Tolkien dá a seu Kullervo uma  variedade de cognomes ou epítetos: Kuli (uma evidente abreviação de Kullervo), Sake, Sā kehonto, Honto, Sā ri, Sā rihontō. Essa multiplicidade de nomenclatura  é típica do Kalevala , no qual, por exemplo, o herói Lemminkainen tem os apelidos de Ahti (“rei das ondas”), Ahti-Saarelainen (“Ahti da ilha” ou “homem da ilha”), Kaukomieli (“homem [belo] de mente que vagueia ao longe”), Kaukolainen (“homem da fazenda longínqua”).  Wanōna, ou “Choro”.  Compare-se com os nomes Nienor / Níniel, que significam, respectivamente, “luto” e “donzela das lágrimas”, atribuídos à irmã  sobrevivente de Túrin Turambar. Wanōna é um nome inventado pelo próprio Tolkien, pois no Kalevala  a irmã não é mencionada pelo nome. No manuscrito, em uma ocorrência primitiva, ela é chamada de Welin ōre, mas este nome foi imediatamente cancelado e substituído por Wanōna. O W foi também riscado e um U escrito em cima (Folha 3). O nome ocorre uma vez como Wanilie (Folha  4). No final do manuscrito, ocorre um caso de mudança de Wanōna para   Wanōra (Folha 7), com o W obliterado por um O, portanto Oan ōra (por  Wanōna), que aparece novamente no verso da Folha 11, na frase: “E seu coração ainda estava amargo também contra sua própria gente, exceto apenas por Oanōra”. A irmã não é mencionada pelo nome nos trechos seguintes do texto. 8

pelo maldoso embalo do berço. Nessa frase, “pelo” deve ser entendido com o significado de “por causa de”. É antiga a tradição de que maus-tratos físicos a um bebê podem ter repercussões psicológicas. Compare-se com o dito: “as the twig  is bent so grows the tree”**. separadas por uma só geração dos homens da magia. Compare-se com o uso da palavra “magia” na abertura: “quando a magia ainda era recente”. Kullervo está  em contato com antigas práticas xamanísticas. quando ainda não ultrapassava a altura de um joelho.  Os heróis míticos tradicionalmente crescem em ritmo acelerado. Compare-se o Hércules grego e o

Cú Chulainn irlandês. Wanōna, cujo crescimento é descrito como “espantoso”, também cresce em ritmo acelerado. Nesse contexto, os gêmeos podem dever algo aos clássicos Apolo e Artemis, que eram filhos gêmeos de Leto, o qual era filho de Zeus. Em algumas versões da história destes, ambos se tornaram plenamente adultos no dia do nascimento.

9

cão de caça de Tuoni. Na mitologia, os cães de caça com frequência aparecem associados ao mundo inferior, seja como guardiães, seja como guias. No Kalevala , Tuoni é a morte (personificada) e também é chamado de Senhor da  Morte. Seu domínio é Tuonela, o mundo inferior, junção do seu nome com o sufixo locativo / habitativo -la .

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pântano de Tuoni. Talvez um equívoco: Suomi pode ter sido usado no lugar de Tuoni. Ver o verbete “Sutse” anteriormente. {e a Kullervo ele deu três pelos [...]}.  Esta frase, cancelada no manuscrito, foi mantida neste texto, visto que um pelo mágico de Musti mais tarde salva a vida de Kullervo.

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[cem] braças.  A palavra entre colchetes está ilegível no manuscrito, mas “hundred” [“cem”] é usado na tradução de Kirby. o grande punhal Sikki. No Kalevala , o punhal não é mencionado pelo nome. Em seu artigo “From adaptation to invention” [Da adaptação à invenção], John Garth cita as etimologias de Tolkien, uma raiz sikcom os derivados em qenya e sindarin sikil, sigil, significando “punhal, faca” ( Tolkien Studies , 2014, v. XI, p. 40, The Lost Road  [A estrada perdida], 385).

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Já sou de fato um homem.  Este é o primeiro dos “trechos de poesia” intercalados entre as seções de prosa que Tolkien descreveu ( Cartas , p. 14) como seu estilo narrativo de A história de Kullervo. Existem rascunhos esboçados entre as folhas de notas. É na chamada “métrica do Kalevala ”, que Tolkien conheceria na tradução de Kirby, em que leu o Kalevala  pela primeira vez. Essa é uma transposição, para o inglês, do verso finlandês de quatro acentos e oito sílabas, mais familiar aos falantes da língua inglesa como métrica do Hiawatha, de Longfellow, menos monótona em finlandês. Versões alternativas do poema  aparecem nas folhas 22 anverso e no verso, de cabeça para baixo.

13

Lempo.  Descrito na Folha 6 como “praga e desolação”. O nome é bastante próximo do nome de Lempi no Kalevala , o pai do desajuizado Lemminkäinen. Em finlandês, lempi   significa “amor erótico”. Tolkien tomou emprestado o nome, mas não o significado.

16

filha de Keime.  Obscuro. Possivelmente uma referência à Rússia, chamada de Kemenūme no texto. Pode tratar-se também de uma possível referência a  Teleä/Karelja, glosado na Folha 6 como “terra natal de Kemē ”.

17

o Ferreiro Āsemo. O nome Āsemo aparentemente foi criado por Tolkien para  ser usado no lugar de Ilmarinen (-ilma significa “firmamento, ar”), nome desse personagem no Kalevala. Āsemo pode ter derivado do finlandês ase , “arma, ferramenta” (afinal de contas, ele é ferreiro) com o sufixo -mo, usado para  transformar um substantivo em nome próprio. No Kalevala , o ferreiro Ilmarinen tem papel de muito mais destaque. A marteladas, construiu a tampa do firmamento e forjou o mágico Sampo, ações que o qualificam como uma espécie de deus-criador, mas podem tê-lo tornado um vulto demasiado potente para seu papel menor na história de Tolkien. Heróis míticos como Kullervo são muitas vezes dados a ferreiros para serem criados. Por exemplo, o Setanta irlandês foi criado pelo ferreiro Culann, de quem tomou o nome pelo qual ficou conhecido dali em diante, Cú Chulainn, “cão de caça de Culann”. O herói nórdico Sigurd teve o ferreiro Regin como mentor. Puhōsa, a herdade do ferreiro, é difícil de localizar geograficamente. Em várias ocasiões, diz-se que fica nas Grandes Terras, identificadas com a Rússia nos parágrafos iniciais, mas também em Telea, identificado com Karelja.

17

moreno e desgracioso. É invenção de Tolkien fazer com que o estado emocional interior de seu herói, irado e ressentido, se externalize em sua aparência exterior, escura e feia. No Kalevala, o personagem Kullervo é descrito como bonito e de cabelos amarelos. A Folha 23, no anverso, contém a nota marginal “Kullervo feio” e, abaixo, também na margem, “Mauri preto”.

19

servidão.  Escravatura, condição de servo, estado de cativeiro. [Em inglês thralldom , do anglo-saxão thræl , do antigo nórdico thræll , “servo”].

20

filha [de] Koi, rainha dos pânta nos.  A esposa do ferreiro, chamada no Kalevala   de Pohjan neiti, “donzela do Norte, senhorita do Norte”, não recebe nome na história de Tolkien, sendo identificada apenas como filha de Koi. Em finlandês, koi   não é nome próprio, e sim uma palavra que significa “aurora, nascer do dia”. Esse uso, portanto, é invenção de Tolkien. Apesar de Koi não aparecer na história, Tolkien a inclui na lista de nomes como “Rainha de Lōke” (ver a seguir). Fica claro que sua intenção é que a personagem corresponda a  Louhi, importante no Kalevala , no qual ela é uma feiticeira, Senhora de Pohjola, a Terra do Norte, e mãe maquinadora da donzela do Norte. O nome Louhi é uma forma abreviada de Loviatar, sem o sufixo feminino - tar . Loviatar, no Kalevala , é chamada de filha da Morte, a filha meio cega do Domínio da Morte. Uma das listas de nomes de Tolkien identifica Louhiatar como “nome da esposa  do ferreiro” (ver verbete Kivutar a seguir). Puhōsa.  A herdade de Untamo. Também chamada de Puhu, talvez um diminutivo.

20

floresta azul/Floresta Azul.  Traduz-se literalmente sininen salo, do finlandês, como “ermo azul”, mas com frequência traduz-se como “ermo azul enevoado” ou “névoa azul da floresta”, resultado da neblina que se ergue em áreas de bosque, em especial em terreno baixo. Tolkien associa a cor e o fenômeno com o mistério e a magia – Puhōsa azul, a mata azul em torno da habitação de Untamo, a  Floresta Azul das viagens de Kullervo.

21

Ilu, o Deus do Céu.  Também chamado de Iluku e às vezes confundido com Ukko. Na lista de nomes de Tolkien, na Folha 6 (ver a seguir), Ilu é identificado como Deus do Firmamento. Compare-se com Mal ōlō a seguir. Ressalte-se que Ilu também é o elemento inicial de Ilúvatar, o nome élfico da divindade da  mitologia de Tolkien, o “Silmarillion”.

22

Manatomi. Firmamento, céu, também chamado de Ilwe, Ilwinti. Guarda o gado.  O mais longo dos “trechos de poesia” de Tolkien. Esse sortilégio para proteger o gado segue de perto o encantamento, de extensão equivalente, pronunciado pela esposa do ferreiro no Runo 32, da seção “Kullervo”, do Kalevala , que Tolkien chama de “esplêndida canção das vacas” (ver Ensaio e Notas). Fica claro que para ele tratava-se de um elemento importante, tanto no Kalevala  quanto na sua própria história. Ambos os trechos são testemunhos da importância da criação de animais numa economia de subsistência e, por darem nome a muitos espíritos do bosque e da natureza  (apesar de aqui Tolkien se permitir alguma invenção poética), oferecem uma boa  imagem da visão de mundo pagã finlandesa. filhas de Ilwinti. Aparentemente, espíritos do ar, talvez brisas. Ilwinti é formado a partir de ilma , “firmamento, ar”. A deusa-mãe do Kalevala   é chamada Ilmatar, “Donzela do Ar” (Magoun), ou “Filha do Ar” (Kirby). Literalmente, “donzela  do ar”, de ilma  (“ar”) mais -tar , o sufixo feminino. Manoine. Pelo contexto, com “filhas de Ilwinti”, “prado azul d’Ilwinti” e “vacas brancas” (nuvens), Manoine provavelmente equivale a Manatomi, como firmamento ou céu (ver Manatomi, anteriormente). Ukko.  O antigo deus do trovão finlandês. O nome significa “ancião” e o diminutivo, ukkonen, é um termo usado para denominar o trovão. Ver “Ilu”, anteriormente. De Malōlo filhos.  A Folha 6 identifica Malōlō  como “um deus, o criador da  terra”. Nas linhas precedentes, as filhas são chamadas de “donzelas [...] antigas” e “do Céu filhas pujantes”. Parece tratar-se de antigas divindades ou espíritos femininos.

23

donzela de Palikki, Telenda, Kalt ūse, Pūlu. Aparentemente, trata-se de nomes inventados por Tolkien.

24

Kame. Talvez uma variante de Kemē . Terenye que é de Samyan. Na Folha 6, Samyan aparece como “deus da floresta”, tornando-o equivalente (ou substituto) a Tapio, cuja filha é Tellervo, também chamada de “espírito do vento”. Terenye, então, poderia ser um espírito da  floresta, uma dríade, ou semelhante às filhas de Ilwinti.

25

Farão fogo as mulheres.  Nas fazendas finlandesas, à tardinha, eram acesas fogueiras fumarentas, para que a fumaça espantasse os mosquitos que incomodavam o gado.

26

Pata-mel. Certos animais selvagens da Europa setentrional, como o urso e o lobo, eram considerados tão poderosos que dizer seus nomes era um convite para que aparecessem, com previsível perigo à vida humana. Por isso, com frequência eram usados circunlóquios, cognomes ou descrições, tais como “patamel”, “marrom”, “dorminhoco do inverno” ou “maçã do bosque” para o urso. Todas essas denominações são usadas para ursos no Kalevala , em que a palavra  empregada para denominar “urso” é karhu. O próprio Tolkien usaria esse nome em uma “carta do Papai Noel”, de 1929, em que o Urso Polar do Norte revela  que seu “nome verdadeiro” é “Karhu”. No seu poema, a esposa do ferreiro chama o urso de “Uru” (urso), mas também o lisonjeia com um apelido afetuoso.

27

K ūru.  Na Folha 6 é referido como “o grande rio negro da morte”, com a  possível variante Kuruwanyo. O finlandês kuolema   significa “morte”, e Tolkien pode ter formado esse nome a partir dessa palavra.

29

boiadeiro [neatherd].  No original, uma palavra antiga usada para designar vaqueiro. A palavra neat   é arcaica e obsoleta, mas específica, por distinguir o gado (vacas e bois) de outros animais domésticos com cascos, como carneiros e cabras.

31

Amuntu. Na Folha 6, é identificado como o inferno. Nyelid. A lista de nomes na Folha 6 traz Ny ē li como cognome de Kampa, que por sua vez é cognome de Kalervo. Nyelid poderia significar algo como “do clã  de”. Vejam-se as “Etimologias” em The Lost Road , onde nyelé glosado como “soar, cantar, produzir som doce. Q nyello  cantor; nyelle   sino; T Falline  ( Fallinelli ) = Teleri [phal]. N nell  sino; nella soar sinos; nelladel   tocar de sinos. Q Solonyeldi  = Teleri (ver “sol”); em Telerin forma Soloneldi ”.  Virão homens lá de Loke.  Topônimo que aparentemente equivale a Lohiu. A  semelhança com Loki, nome do deus trapaceiro nórdico antigo, pode ser proposital. Uma relação etimológica entre Loki e Louhi foi sugerida, mas não pode ser demonstrada. Hão de estremecer ouvindo.  Esta frase e as duas que se seguem estão

sintaticamente inadequadas e demandam mudanças. O fato de também serem metricamente irregulares pede ao mesmo tempo uma suavização poética e gramática. A palavra que transcrevi como hear   [ouvindo] (e certamente ela tem esse aspecto) possui, porém, o ascendente do “h” firmemente cruzado como um “t”. Logicamente, hear them  deveria ser seguido de of  : hear them of thy fate  [ouvindo[da] tua sina], mas of    não consta no original. To” [a; para] está  rabiscado na margem à esquerda das duas últimas linhas e, estranhamente, entre elas. A letra inicial é maiúscula, como se começasse uma sentença, mas funciona  melhor após woe  [ai]. A palavra (ou as palavras) final está ilegível. Uma mudança  possível seria: “But shall shudder when they hear them / [of ] Thy fate and end [está escrito ‘and’] of terror. / Woe to thou who [...]” [Hão de estremecer ouvindo / [da] tua sina e fim terrível / Ai de ti que [...]].

32

longínqua Lohiu.  Etimologicamente semelhante a “Louhi” e “Louhiatar”, mas aqui fica claro que se refere a um lugar, não a um personagem. Ver o verbete Lōke, a seguir.

33

Jumala, o sagrado. No Kalevala , trata-se de um ser sagrado. Muitas vezes, a  palavra é traduzida como “Deus”, “Deus no alto” ou “Criador”. Originalmente, talvez, refira-se a um vulto pagão, mas assimilado ao cristianismo. De pequeno perdia mãe o pai / Era jovem (fraco), perdi a mãe. Cancelados no manuscrito, esses versos são uma citação quase direta da tradução do Kalevala  feita por Kirby: “De pequeno, perdi o pai; era fraco, perdi a mãe”. Estão mantidas aqui como possível indicação do interesse pessoal de Tolkien no que ele chamou de “uma história muito grande e muitíssimo trágica”. O paralelo com a vida do próprio Tolkien – seu pai morreu quando ele tinha quatro anos, sua  mãe, quando tinha doze – é evidente.

34

Senhora Vestida de Azul da Floresta / Mulher da Floresta / Mulher Azul da  Floresta. O primeiro título segue o da tradução de Kirby, e Tolkien acrescentou variações do epíteto. A tradução de Magoun traz “donzela de trajes verdes da  mata”; a de Friburg, “matrona vestida de azul da floresta”. A senhora da floresta, tradicionalmente chamada de Mielikki, é consorte ou esposa de Tapio, uma  importante divindade do bosque. O mundo do Kalevala   está repleto de espíritos da natureza, semideuses do bosque que surgem quando necessário. Essa tem um papel de especial destaque, pois é quando Kullervo desobedece às suas instruções para evitar a montanha que ele tem o predestinado encontro com sua irmã.

35

filha de Louhi. Quase certamente uma troca, em vez de “filha de Koi”, a esposa  do ferreiro. filha de Tapio. Uma dríade, um espírito do bosque. Tapio. Deus da floresta.

37

esposa de Ilmarinen. Um equívoco: em vez de Āsemo, aparece Ilmarinen, que é o ferreiro no Kalevala. Tolkien originalmente manteve o nome, depois o alterou para Āsemo (ver anteriormente).

40

gemendo “Kivutar”.   Aparentemente, a irmã de Kullervo, em certa etapa da  composição, tinha o nome de Kivutar (talvez um apelido). No topo da Folha 22, no verso, aparece uma breve lista de nomes:

Kalervo > Paiväta  donzela da  Kiputyltö dor Kivutar

filha da dor

Louhiatar

nome da  esposa do ferreiro

Saari

Kalervoinen

Os nomes Kiputyltö e Kivutar são formados a partir do finlandês kipu, “dor”. Friburg, em sua tradução do Kalevala , chama Kiputyltö de “Donzela da Dor”. Magoun refere-se a ela como “Menina da Dor” e traduz Kivutar como “Espírito da Dor”, idêntico a “Menina da Dor” (isto é, “Donzela da Dor”). Kirby conserva  os nomes, sem traduzi-los.

* Uma circunstância digna de nota é que Kemen ūme aparece em notas muito antigas sobre o qenya como nome da Rússia. Ver também “Ilu” a seguir. [N. da Ed. orig.] ** Literalmente, “a árvore cresce conforme se torce o ramo”, com o sentido de “é de pequenino que se torce o pepino”. [N. do T.]

Introdução aos ensaios  Diferentemente da história, o ensaio de Tolkien sobre o Kalevala é encontrado em dois formatos: um rascunho esboçado, manuscrito, com parágrafos numerados para  reorganização, e uma caprichada cópia datilografada. Estão catalogados juntos como Bodleian Library MS Tolkien B 61, Folhas 126-60. O manuscrito, escrito a tinta sobre lápis e com muitas emendas, possui 24 páginas, nem todas em sequência, e uma folha  adicional menor, não incluída aqui, que contém notas rascunhadas dos dois lados. O texto datilografado, que tem apenas algumas emendas escritas a tinta, foi feito sobre papel pautado, com linhas nas margens; possui 19 páginas, com espaço simples entre linhas e apresenta uma interrupção no meio de uma frase, bem no final da página 19.  A página de rosto do manuscrito, escrita à mão, traz:“Sobre o ‘Kalevala’ ou Terra  dos Heróis”. Também traz as anotações: (C.C. Coll [Corpus Christi College] Oxford ‘Sundial’ Nov. 1914) e Exeter Coll. Essay Club [Clube de Ensaios do Exeter College]. Fev. 1915, as duas datas em que Tolkien fez a palestra. A apresentação de novembro de 1914, feita praticamente um mês após ele ter enviado sua carta, no mês de outubro, para  Edith, e a de fevereiro, feita três meses depois, são do mesmo período da história. Não é possível atribuir uma data precisa ao rascunho datilografado, que sofreu várias revisões e não tem página de rosto em separado, somente o cabeçalho: “O Kalevala”. Uma referência no texto à “recente guerra” permitiria situá-lo no tempo após o armistício da Primeira Guerra Mundial, ocorrido em novembro de 1918, e uma alusão à  “Liga” (presumivelmente a Liga das Nações, formada em 1919-1920) sugeriria o ano de 1919 como terminus a quo. Com base em uma comparação entre manuscritos e datilografados poéticos de Tolkien iniciais, Douglas A. Anderson sugere os anos de 1919-1921 (comunicação pessoal), enquanto Christina Scull e Wayne Hammond propõem uma data um pouco posterior, se bem que hipotética: “?1921-?1924” ( Chronology , p. 115). Pela datação de Anderson, a revisão teria ocorrido em uma época  em que Tolkien ainda morava em Oxford (ele fez parte da equipe do New English Dictionary   de novembro de 1918 até a primavera de 1920), enquanto o período de tempo de três anos de Scull-Hammond remeteria ao período em que Tolkien atuava  como instrutor [ reader ] de Língua Inglesa na Universidade de Leeds. Em qualquer dos casos, não há evidência de que essa versão revisada da palestra tenha sido algum dia  apresentada.  Assim como em  A história de Kullervo, editei as transcrições dos dois ensaios para  tornar a leitura fluente. Palavras ou partes de palavras ausentes do texto aparecem entre colchetes, acrescentadas onde se mostrou necessário por razões de clareza. Tentativas frustradas, palavras e linhas canceladas foram omitidas. Também como na história, optei por não interromper os textos (e desviar a atenção do leitor) com chamadas de notas.

Uma seção de Notas e Comentários segue-se a cada ensaio propriamente dito, na qual são explicados termos e usos e são citadas as referências.

6. Original da página de rosto do ensaio “Sobre ‘O Kalevala’”, manuscrita por J. R. R. Tolkien [MS Tolkien B 61 Folha 126 anverso].

Sobre “O Kalevala” ou Terra dos Heróis [ Rascunho manuscrito] Receio que este ensaio não tenha sido escrito originalmente para esta sociedade. Espero que me perdoem, pois ele foi escrito principalmente para servir como um tapa-buraco esta noite, para entretê-los na medida do possível, malgrado o súbito colapso do orador previsto. Espero que, além do caráter de segunda mão deste ensaio, esta associação também me perdoe sua qualidade, que dificilmente será a de um ensaio, mas sim de um solilóquio desconexo, acompanhado de sossegados tapinhas no verso de um livro de estimação. Se eu falo destes poemas tão repetidamente, como se ninguém nesta sala os tivesse lido antes, é porque ninguém os havia lido mesmo quando os li pela primeira vez. Também falo muito deles devido a um sentimento de estima. Gosto muito destes poemas. Eles constituem uma literatura tão diferente de qualquer coisa que seja familiar aos leitores em geral, ou mesmo aos versados nos aspectos mais curiosos; são tão não europeus, e, no entanto, só poderiam ter vindo da Europa. Creio que qualquer um que tenha lido esta coleção de baladas (sobretudo no original, que é bastante diferente de qualquer tradução que tenha sido feita delas) concordará com isso. A maioria das pessoas está familiarizada, desde os primeiros livros que leu, com a forma e as características gerais das histórias mitológicas; lendas e romances que chegam até nós provenientes de inúmeras fontes: dos helenos, por muitos canais, dos povos celtas irlandês e britânico, dos teutões (menciono-os em ordem crescente da atratividade que exercem sobre mim), e que compõem coletâneas cuja glória  culminante são os Books for the Bairns   [Livros para as crianças], de Stead, essa mina da  antiga tradição. Eles têm certo estilo, certo sabor, algo em comum, a despeito das enormes divisões entre eles, que nos faz sentir que, não importam as diferentes raças, existe uma afinidade na imaginação dos falantes das línguas indo-europeias. Chegam, é claro, gotas vindas de um leste vago e estranho (o qual até se reflete nas apreciadas capas cor-de-rosa mencionadas anteriormente), mas a influência alienígena, se sentida, é mais sobre as formas literárias finais do que sobre as histórias fundamentais. Depois, talvez, descobrimos o Kalevala , ou, traduzindo de modo mais simples, e tão mais fácil de dizer, a Terra dos Heróis, e imediatamente nos encontramos em um novo mundo, e podemos nos deleitar com uma espantosa animação. Sentimo-nos como Colombo num novo continente, ou Thorfinn na boa Vinlândia. Quando colocamos os pés na nova terra, podemos, se este é o nosso desejo, começar imediatamente a compará-

la com aquela da qual viemos. Montanhas, rios, relva e muitas outras coisas são provavelmente características comuns de ambas. Algumas plantas e alguns animais podem nos parecer familiares, especialmente a selvagem e feroz espécie humana. Porém, mais provavelmente, o que nos perturbará ou encantará será a sensação de novidade ou estranheza, muitas vezes quase indefinível. As árvores se agruparão de modo diferente no horizonte, os pássaros executarão uma música pouco familiar, os habitantes falarão um idioma selvagem e inicialmente incompreensível. Na pior das hipóteses, contudo, espero que, depois que essa região e seus usos tiverem se tornado mais familiares e tivermos começado a nos comunicar com os nativos, achemos bem divertido conviver por algum tempo com essa gente estranha e esses novos deuses, com essa raça de heróis escandalosos e não hipócritas, e de amantes tristemente não sentimentais. E, por fim, poderemos sentir que não queremos voltar para casa por um bom tempo, se é que desejaremos fazê-lo um dia.  Assim foi para mim quando pela primeira vez li o Kalevala . Atravessei o abismo entre os povos da Europa que falam indo-europeu e esse reino menor, daqueles que, em cantos esquisitos, se agarram às línguas esquecidas e aos costumes de outrora. A  novidade me preocupou, empacando em trechos deselegantes devido à falta de jeito de uma tradução que não superara em nada suas dificuldades peculiares. Ao mesmo tempo que irritava, atraía, e, a cada vez que a lia, mais me sentia à vontade e me divertia. Quando as H. Mods* deveriam estar concentrando todas as minhas forças, desferi um violento ataque à fortaleza do idioma original. Inicialmente fui rechaçado com pesadas baixas. Mas é fácil descobrir o motivo pelo qual as traduções não são muito boas: porque lidamos com uma linguagem separada do inglês por um abismo totalmente incomensurável, tanto em método como em expressão. No entanto, há um possível terceiro caso que não considerei: podemos ser simplesmente antagônicos e desejar pegar o próximo barco de volta para o nosso país, que nos é familiar. Nesse caso, antes de partirmos, de preferência logo, acho adequado dizer que, se sentirmos que os heróis do Kalevala   se comportam com singular falta de dignidade, dispostos a verter lágrimas e a um jogo sujo, eles não são menos dignos, nem mais difíceis de lidar do que o amante medieval que cai na cama para chorar pela  crueldade de sua senhora, a qual não se apieda dele e o condena a uma morte comovente, mas que se choca com o inesperado da ideia, quando seu bondoso conselheiro o faz ver que a pobre senhora ainda não foi informada, de nenhum modo, de sua paixão. Os amantes do Kalevala  são diretos e aguentam muitas rejeições. Não há Troilo que precise de um Pândaro para cortejar timidamente em seu lugar, mas aqui são as sogras que fazem acertos sólidos por baixo dos panos e dão às filhas conselhos cínicos, destinados a  despedaçar as ilusões mais robustas. Repetidamente, a “Terra dos Heróis” aparece descrita como “a epopeia nacional finlandesa”, como se uma nação, além possivelmente de um banco, de um teatro nacional e de um governo, também devesse automaticamente ter uma epopeia nacional. A 

Finlândia não tem. O K[alevala]   certamente não é uma. É uma massa de material possivelmente épico, mas – creio ser este o ponto principal – perderia quase tudo que constitui seu maior deleite se alguma vez fosse tratado de modo épico. As histórias principais, os eventos isolados, só eles poderiam permanecer. Todo aquele mundo inferior, toda aquela rica profusão e exuberância seriam desfeitos. A “T[erra] dos H[eróis]” é na realidade uma coletânea desse material delicioso e absorvente que, com o surgimento de um artista épico, por causa do seu teor emocional relativamente baixo, em outros lugares foi deixado de lado e, depois, com excessiva frequência, foi eclipsado e caiu em desuso e no esquecimento total. Seja como for, é a todo esse corpo mítico de estranha história troglodita, aos extravagantes malabarismos com o Sol e a Lua, as origens da Terra e as formas do homem que, em Homero, por exemplo, foram corretamente suprimidos – é a isso que o Kalevala  pode ser comparado, não à grandiosidade maior do tema épico. Ou, por outro lado, é aos contos bizarros, aos fantasmas terríveis, às feitiçarias e aos desvios da  imaginação e da crença humana que se destacam aqui e ali, no ar normalmente claríssimo das sagas, que a “T dos H” pode ser comparada, não à altiva dignidade e coragem, à  nobreza de que falam as sagas mais importantes. Mas o singular e o estranho, o irrestrito, o grotesco não são apenas interessantes, são valiosos. Nem sempre é necessário expurgá-los por completo para atingir o sublime. Podemos ter nossas gárgulas em nossa nobre catedral, mas a Europa perdeu muita coisa  por tentar, demasiadas vezes, construir templos gregos. Temos aqui, portanto, uma coleção de baladas mitológicas repletas daquele substrato muito primitivo que a literatura da Europa em geral vem aparando e reduzindo há séculos, de forma mais ou menos completa ou precoce, em diferentes povos. Tal coleção sem dúvida seria a pilhagem dos antropólogos, que aí se deleitariam por um tempo. Comentaristas que conheço incluem muitas notas em suas traduções, dizendo: “Compare esta história com aquela contada nas ilhas Andamão” ou “Compare esta  crença com aquela dos contos populares hauçá”, e assim por diante. Mas evitemos tal atitude. Afinal de contas, isso só prova que os finlandeses e os ilhéus de Andamão são animais bastante aparentados (o que já sabíamos). Portanto, isto sim, alegremo-nos por termos topado de repente com um repositório dessa imaginação popular, que temíamos estar perdida, alimentado com histórias simples e com senso de proporção, sem preocupação com os limites adequados, nem mesmo do exagero, sem o senso, ou melhor, sem o nosso senso de incongruência (exceto quando suspeitamos que a  incongruência é fonte de deleite). Estamos tirando férias de todo o curso do progresso dos últimos três milênios e, por algum tempo, vamos ser alegremente não helênicos e bárbaros, como o menino que esperava que a vida futura proporcionaria meios feriados no inferno, longe dos colarinhos e hinos de Eton. Os gloriosos exageros dessas baladas, a título de ilustração, relembram o método de contar histórias do Mabinogion, mas na realidade são casos bem diferentes. No

K[alevala]   não há a intenção de plausibilidade, não há a astuciosa dissimulação do impossível, apenas o deleite da criança que conta como derrubou um milhão de árvores e abateu vinte policiais, sem querer nos convencer de que é verdade. Trata-se de uma  primitiva história de herói. No  M[abinogion]   existe o mesmo deleite com uma boa  história, numa estranha troca da imaginação, mas a imagem envolve mais técnica: suas cores são maravilhosamente engendradas, suas figuras estão agrupadas. Não é assim na  T. dos H. Se um homem mata um alce gigante numa linha, este pode se tornar uma ursa  na linha seguinte. Parece desnecessário, mas vou aproveitar a ocasião para dizer exatamente como vejo a atmosfera do Kalevala. Vocês podem fazer correções levando em conta o conhecimento que possuem, ou pelos extratos que gostaria de ler para vocês até esgotar sua paciência e vocês se convencerem de que são adequadas as últimas observações do Kalevala . “A cascata quando corre / não dá água infinita. / Nem cantor que é perfeito / canta  tudo o que ele sabe.” Para mim não há um pano de fundo de tradição lit[erária]. O  M[abinogion]   possui esse pano de fundo: uma sensação de uma grande evol[ução], que resultou num campo com cores mais esplendidamente harmonizadas e sutilmente variadas, diante do qual os vultos dos atores das histórias se destacam, mas também se harmonizam com o maravilhoso esquema de cores à sua volta e perdem em surpresa, se não em clareza. A  maioria das lit[eraturas] de lendas nacionais possui algo semelhante. O Kalevala , para  mim, parece não ter nada disso. As cores, os feitos, as maravilhas, os vultos dos heróis foram todos salpicados numa tela limpa e desnuda por uma mão inesperada. Mesmo as lendas acerca das origens das coisas mais antigas parecem provir frescas da quente imaginação momentânea do cantor. Não há ali ultramodernidades, como bondes, pistolas ou aeroplanos. As armas dos heróis são os chamados “antigos” arco e lança ou espada, mas ao mesmo tempo existe uma “atualidade”, uma transitoriedade e uma  presencialidade não romântica e bem pouco nebulosa que nos surpreende bastante, em especial quando descobrimos que todo esse tempo estamos lendo sobre a criação da  Terra a partir de um ovo de marreca, ou sobre o Sol e a Lua sendo encerrados numa  montanha.

II Sobre a origem do Kalevala , sabe-se que desde a chegada de Väinämöinen, que fabricou a grande harpa, a sua Kantele, feita de osso de lúcio, os finlandeses sempre apreciaram baladas, as quais foram transmitidas e cantadas dia após dia, com grande entusiasmo, de pai para filho, de filho para neto, até o presente dia, quando, como agora, pranteiam as baladas: “Os cantos cantam tempo antigo / voz oculta do saber / que nem todo infante canta / mais do que entende o homem / nestas eras de infortúnio / quando está findando a raça.” A sombra da Suécia e depois da Rússia estendeu-se sobre o país por muitos séculos. Petrogrado fica na Finlândia. Mas o que é notável e encantador é que esses “cantos de eras passadas” não foram modificados.  A Suécia, finalmente, [no] séc[ulo] XII, conq[uistou] a Finlândia (após contín. combates combinados, com algum intercâmbio, que remontam ao começo de nossa era, nos quais também nossos ancestrais em Holstein tiveram grande participação). E então o cristianismo começou a ser introduzido lentamente. Em outras palavras, os finlandeses foram um dos últimos povos reconhecidamente pagãos da Eur[opa] Med[ieval]. O Ka[levala] , como o conhecemos hoje, está prat[icamente] intocado e, exceto pelo final e por algumas referências a Ukko, Deus do Céu, mesmo alusões à existência do cristianismo estão quase inteiramente ausentes nele. Isso é responsável em grande parte pelo seu interesse e por seu caráter de “substrato”, mas também por seu tom menor emoc[ional], por sua visão estreita e tacanha (coisas que não deixam de ter deleite em si mesmas).  Ao longo de outros sete séc[ulos], as baladas continuaram sendo transmitidas oralmente, a despeito da Suécia e da Rússia. Só foram escritas depois que Elias Lönnrot fez uma seleção delas, em 1835. Como a coleta foi feita na Finlândia oriental, elas estão escritas em um dialeto dif[erente] do moderno finlandês literário. Esse dial[eto] tornouse uma espécie de convenção poética. Lönnrot não foi o único a coletá-las, mas foi ele que tomou a iniciativa de realizar uma seleção de forma livremente relacionada e, a julgar pelo resultado, com grande habilidade. Ele deu o nome de Terra dos Heróis, Kalevala, de Kaleva, o ancestral mitológico de todos os heróis, à sua seleção, que consistia em 25 runos (ou cantos), número que dobrou graças ao novo material coletado. A seleção foi publicada novamente em 1849, e quase imediatamente foram feitas traduções para outras líng[uas]. É interessante observar, no entanto, que esse cantar de baladas ainda prossegue e que essas baladas, cristalizadas para nós por acaso, sofrem e ainda poderão sofrer inúmeras variações. O Kalevala   também não contém toda a lit[eratura] de baladas da  Finlândia, nem todas as baladas coletadas pelo próprio Lönnrot, que reuniu todas em uma publicação denominada “Kanteletar” ou “Filha da Harpa”. O Kalevala  só é diferente pelo fato de ter certa sequência lógica e, portanto, ser mais legível. Abrange a maior parte

da mitologia finlandesa, desde a gênese da Terra e do Firmamento até a part[ida] de Väinämöinen. O fato de constituir uma coleção tardia pode provocar dúvidas naqueles que têm uma sede moderna, talvez mesmo doentia, por coisas “autenticamente primitivas”. No entanto, muito provavelmente, esse é o motivo real pelo qual a casa do tesouro não foi devassada: ela não foi redecorada nem estofada, caiada ou estragada de outro modo, mas deixada aos cuidados da sorte, ao gênio do pé da lareira, escapando ao pedante e à pessoa instruída. [Jumala, cujo nome traduz o deus da Bíblia, é ainda, no Kalevala , o deus das nuvens e da chuva, o ancião do firmamento, o guardião das muitas Filhas da Criação] – É muito semelhante ao interesse dos bispos islandeses pelas aventuras [de] Thórr e Óðinn. Dificilmente será um exemplo, como ouvi afirmarem, da presença ainda  recalcitrante do paganismo na Europa moderna, por baixo de camadas de cristianismo ou, mais tarde, de biblicidade hebraica. Mesmo quando foram coletados e finalmente sofreram a sina de serem reproduzidos em forma impressa, por sorte esses poemas escaparam do manuseio rude ou moralista. Trata-se de uma literatura admirável, por ser tão popular entre esse povo, agora o mais respeitador das leis e o mais luterano da  Europa.

III  língua na qual foram escritos esses poemas, o finlandês, tem grande chance de ser a  mais difícil da Europa. Apesar de não ser nada feia, ela sofre, como muitas outras líng[uas] do seu tipo, de excesso de eufonia, tanto que a música, nessa língua, corre o risco de ser empregada automaticamente e de não deixar margem para que se possa  ampliar a emoção de um trecho lírico. Nos trechos em que a harmonia vocálica e o abrandamento das cons[oantes] fazem parte da fala usual, há menos chance para súbitas e inesperadas doçuras. Trata-se de uma língua praticamente isolada na Europa. Apenas a  Estônia, aparentada e vizinha, tem histórias e idioma bastante afins à língua finlandesa. (Disseram-me que ela tem uma relação muito distante com falas tribais da Rússia, com o magiar, com o turco.) Não guarda relação com nenhum dos seus vizinhos, exceto no que diz respeito ao processo de empréstimo. É também uma língua bem mais primitiva do que a maioria das línguas da Europa. Ainda partilha um estado flexível, fluido, não fixo, inconcebível em inglês. Na poesia, são inseridas livremente sílabas e até mesmo palavras sem sentido, que apenas soam joviais. Versos como “Enkä lähe Inkerelle Penkerelle Pänkerelle” ou “Ihveniä ahvenia  Tuimenia Taimenia” são possíveis. Pänkerelle lembra simplesmente Penkerelle, e Ihveniä e Tuimenia são meras invenções para destacar ahvenia e taimenia. Sua métrica é quase a mesma da tradução, porém muito mais livre: linhas octossilábicas com cerca de quatro acentos (dois principais, em geral dois subordinados). É, naturalmente, a métrica trocaica, sem rimas, do “Hiawatha”. Foi pirateada, assim como o foi a ideia do poema e grande parte dos incidentes (porém nem um pouco do seu espírito) por Longfellow – fato que menciono apenas porque costuma  ser mantido obscuro em notas biográficas sobre esse poeta. “Hiawatha” não é um genuíno repositório do folclore indígena, mas sim um brando e suave expurgo do Kalevala , colorido, imagino, com trechos desconexos de tradições indígenas e talvez alguns nomes genuínos. Os nomes de L[ongfellow] são muitas vezes bons demais para  terem sido inventados. Foi na segunda ou terceira viagem à Europa (com o objetivo de aprender dinamar[quês] e sue[co]) que L[ongfellow] entrou em contato com o primeiro fluxo de traduções do Kal[evala]   para o escandinavo e o alemão. Creio que o caráter patético do Kalevala   encontra reflexo parcialmente igual em seu imitador (um professor

universitário dócil, brando e um tanto obtuso, autor de Evangeline), “que, admitiu o London Daily News   (cito agora um elogio americano), produziu uma das linhas mais maravilhosas em toda a língua inglesa: ‘Chanting the Hundredth Psalm that Grand old Puritan Anthem’”**. Essa métrica, monótona e rala como ela só, é de fato capaz, se bem conduzida, do mais pungente sentimento patético (se não de coisas mais majestosas). Não me refiro à  “Morte de Minnehaha”, mas, no Kalevala , à “Sina de Aino” e à “Morte de Kullervo”, onde ele é reforçado, mas não impedido, pela bem-humorada ingenuidade, engraçada  para nós, do entorno mitológico pouco sofisticado. O sentimento patético é comum no Kalevala   – frequentemente muito verdadeiro e aguçado. Um dos assuntos favoritos – não majestoso, porém muito bem conduzido – é o outro lado de um casamento que o estilo de lit[eratura] do “viveram felizes para sempre” costuma evitar: o lamento e a  tristeza, mesmo de uma noiva de boa vontade, ao deixar a casa do pai e as coisas familiares do lar. Isso, no momento da sociedade refletido na “Terra dos Heróis”, era, evidentemente, quase uma tragédia, em que as sogras eram piores do que em qualquer outro cenário da literatura, em que as famílias moravam em lares ancestrais durante gerações – filhos e suas esposas, todos debaixo da mão férrea da matriarca. Se você se aborrecer com o caráter de cantilena dessa métrica, como pode acontecer, é oportuno recordar que se trata de coisas escritas apenas acidentalmente, por assim dizer. Trata-se, em essência, de cantilenas entoadas ao som da harpa, com os cantores balançando para trás e para a frente, seguindo o ritmo. Há muitas alusões a esse costume, como no início: “Vamos apertar as mãos Vamos enlaçar os dedos Vamos lá, cantar alegres Vamos nos empenhar muito **** Relembrar canções e lendas do cinto de Väinämöinen da forja de Ilmarinen do gume de Kaukomieli.”

IV    religião desses poemas é um animismo luxuriante, que mal pode ser separado do puramente mitológico. Isso quer dizer que, no Kalevala , cada pau e pedra, cada árvore, os pássaros, as ondas, as colinas, o ar, as mesas, as espadas e a própria cerveja têm personalidades bem definidas, e um dos curiosos méritos dos poemas é destacá-las com singular habilidade e adequação em numerosas “falas como personagem”. A mais notável é a da espada a Kullervo, antes que ele se lance sobre sua ponta. Se uma espada tivesse caráter, seria exatamente como descrito aqui: um rufião cruel e cínico (ver Runo 36/330). Também pode ser feita menção ao lamento da bétula, ou ao trecho (reminiscente do “Hiawatha”, mas melhor) em que Väinämöinen busca uma árvore para  obter madeira para o barco (Runo XVI), ou ao trecho em que a mãe de Lemminkainen, em busca do filho perdido (R XV), pede notícias dele a tudo que encontra, à Lua, às árvores, até à trilha, e elas respondem como personagens. Essa é uma das características mais essenciais de todo o poema: até a cerveja fala de vez em quando, como num trecho que espero ter tempo de ler, sobre a história da origem da cerveja (Runo XX 522/546).  A ideia kalevalaica de cerveja muitas vezes é expressa com entusiasmo, mas a frase, várias vezes repetida: “A cerveja é das mais finas, boa bebida para os prudentes”, expressa  (como também o resto dos poemas) certa moderação. As alegrias da embriaguez teutônica não parecem ter agradado tanto quanto outros vícios, porém o fato de a bebida  soltar a imaginação (e a língua) muitas vezes era louvado (Runo 21. 260): “Ó cerveja deliciosa  Bebam todos sem rabugem Faz que cante a gente Clamem com boca dourada  Surpreendam-se os senhores Pensem sério as senhoras Pois vacilam as canções Silenciam línguas gaias. Se a cerveja é mal provida  Má bebida à nossa frente Cantam mal os menestréis Não entoam canções boas Convidados silenciam

Nem um pio mais dão os cucos.” Mas além disso existe uma abundância de mitologia. Cada árvore, cada onda, cada  colina tem uma ninfa e um espírito (distinto ap[arentement]e do caráter de cada objeto individualmente). Há a ninfa do sangue e das veias, o espírito do leme. Há a Lua e seus filhos, o Sol e os seus (são ambos masculinos). Há um vulto obscuro e aterrador (o mais próximo da dignidade régia), Tapio, Deus da Floresta, e sua esposa Mielikki, com seu filho e sua filha semelhantes a fadas, “Tellervo, donzelinha da Floresta, trajes belos e macios” e seu irmão Nyyrikki, de gorro vermelho e casaco azul. Há Jumala ou Ukko nos céus e Tuoni na terra, ou em alguma vaga região sinistra, junto a um rio de coisas estranhas.  Ahti e sua esposa Vellamo habitam as águas, e existem mil personagens novos e estranhos para se conhecer – Pakkanen para a geada; Lempo, deus do mal; Kankahatar, deusa da tecedura –, mas receio que listá-los não inspire os que não foram apresentados a eles e aborreça os demais. A separação entre a descendência das ninfas e dos espíritos – não se pode realmente chamá-los de deuses, seria olímpico demais – e os personagens humanos mal é traçada com clareza. Väinämöinen, o mais humano dos mentirosos, o mais versátil e robusto dos patriarcas, que é o vulto central, é filho do Vento e de Ilmatar (filha do Ar). Kullervo, o mais trágico dos rapazes camponeses, está a apenas duas gerações de um cisne.  Apresento-lhes somente essa profusão de deuses grandes e pequenos para dar alguma ideia da deleitosa atmosfera em que se mergulha no Kalevala   – caso alguém  jamais tenha mergulhado. Se você não tiver esse temperamento, ou se acredita que não foi destinado a se dar bem com esses personagens divinos, asseguro-lhe que eles se comportam de modo muito encantador. Todos obedecem à grande regra do jogo do Kalevala , que é dizer pelo menos três mentiras antes de transmitir qualquer informação exata, não importa quão trivial ela seja. Isso tinha se tornado, creio, uma espécie de fórmula de comportamento polido, pois ninguém parece acreditar em nós antes da nossa  quarta afirmação (que prefaciamos modestamente com “digo já toda a verdade, menti um pouco no começo”[)].

V  Basta de religião, se assim podemos chamá-la, e do pano de fundo imaginário. O verdadeiro cenário dos poemas, o lugar onde ocorre a maior parte da sua ação, é Suomi, a Terra Pantanosa, a Finlândia [sic], como a chamamos, ou, como os finlandeses a  chamam muitas vezes, a Terra dos Dez Mil Lagos. Se não a visitarmos, imagino que dificilmente obteremos uma imagem melhor da região do que aquela que aparece no Kalevala   (pelo menos da região um século atrás, senão de tempos de progresso moderno), que se mostra repleto de amor por ela, pelos seus brejos e amplos pântanos, nos quais se erguem espécies de ilhas formadas por uma elevação do solo, ou talvez por colinas encimadas de árvores. Os brejos estão sempre diante de nós, ou ao nosso lado, e um herói derrotado ou sobrepujado em astúcia sempre é jogado dentro de um deles. Vemos os lagos e as planícies cercados de juncos, rios que correm lentos, a ininterrupta  pescaria, as casas construídas com palafitas. Depois, no inverno, a terra coberta de trenós e homens que caminham sobre raquetes de neve, do mesmo modo sobre solo movediço ou firme.  Juníperos, pinheiros, abetos, álamos, bétulas, quase nunca carvalhos, raras quaisquer outras árvores são mencionados continuamente. E, não importa o que sejam na Finlândia hoje em dia, o urso e o lobo são indivíduos de grande importância no Kalevala , além de muitos animais subárticos que não conhecemos na Grã-Bretanha. Os costumes são todos estranhos, e as cores. São diferentes os prazeres e os perigos. Em geral, o frio é visto com horror. Os constantes banhos quentes de vapor são um dos costumes marcantes do cotidiano. A sauna ou casa de banho (uma construção bem separada e bem trabalhada, anexa a todas as residências confortáveis) a meu ver constitui uma caract[erística] das habitações finlandesas desde tempos imemoriais. Os finlandeses usam-na quente e com frequência.  A sociedade é composta de famílias prósperas que vivem em aldeias espalhadas. Os poemas tratam da vida mais elevada, mas apenas os fazendeiros mais ricos, que moram um pouco afastados da aldeia, têm essa vida. Nada causa mais ira a qualquer um dos heróis do que sua esposa rebaixar-se indo conversar “lá embaixo, na aldeia”. O povo é tranquilo e razoavelmente contente, mas não desfruta de todos os aspectos mais elevados e mais majestosos da vida ou da tradição nacional. São governados de cima, por um poder estrangeiro. Raramente emprega-se uma palavra como “rei”. Não há  grandiosidade cortesã, nem castelos (quando são mencionados, muitas vezes trata-se apenas de má tradução). Os patriarcas, robustos proprietários rurais de barbas brancas, são as figuras mais majestosas que se podem ver (quando as esposas não estão presentes). O poder das mães é a característica mais impressionante desse povo. Até o velho Väinämöinen consulta sua 

mãe na maioria das ocasiões difíceis. Essa ligação às saias continua mesmo depois da  morte. Ocasionalmente, instruções maternas são emitidas do túmulo. A opinião da dona  da casa é posta por todos em primeiro lugar. Os sentimentos em relação às mães e às irmãs são de longe os mais genuínos, profundos e poderosos em toda parte. Um vilão conhecido, de moral duvidosa, propenso a bater na esposa, como o vivaz Lemminkainen (como o chamam), só demonstra os melhores e mais afetuosos sentimentos pela mãe. A  grande tragédia de Kullervo (o imprudente rapaz camponês) é de irmão e irmã. Para além da Finlândia, muitas vezes somos levados de trenó ou barco, ou por meios mais velozes e mágicos, até Pohja, um escuro e nevoento país setentrional que às vezes é identificado com a Lapônia. Com mais frequência, ninguém parece ter certeza de onde vem a magia e toda espécie de maravilhas, onde habita Luohi [sic], que escondeu o Sol e a Lua. A Suécia, a Lapônia e a Estônia são mencionadas amiúde. A Saxônia (nossa  inimiga atualmente), raras vezes. A Rússia, nossa aliada, não com frequência, e muitas vezes de modo antipático. Diz-se sobre uma esposa, megera desalmada, que “alheado é teu irmão, sua esposa é como russa” e que a vida mais desesperada e miserável é “qual cativo lá na Rússia: só lhe falta a prisão”.

VI Tentei oferecer aqui, sem qualquer descrição do enredo nem oferta de minúcias, uma  indicação do estilo e da qualidade do Kalevala , a Terra dos Heróis. É claro que seu estilo depende em larga medida de todas aquelas crenças e características sociais que mencionei, porém existem alguns traços [?] muito curiosos, de caráter mais acidental e individual, que de tal modo tingem tudo que vale a pena mencionar antes que eu interrompa meu discurso sinuoso. Existe algo curioso que eu gostaria de chamar de “superacréscimo”: frequentemente, uma comparação que se segue logo após uma afirmativa, já no verso seguinte, contém uma grande ampliação, muitas vezes com imprudente alteração de detalhes ou de fatos: cores, metais, nomes são acumulados, não tanto para representar ideias diferentes, mas mais pelo efeito emocional. Há um emprego estranho e muitas vezes até pródigo das palavras “ouro”, “prata” e “mel”, espalhados pelos versos. Os nomes de cores são mais raros, porém encontramos ouro e prata, luz da lua e luz do sol, dos quais irrompe com frequência uma profunda alegria. Existem muitos detalhes como esses. Os encantamentos, ou orações de condenação, são essenciais. Ocorrem sempre, em presença de qualquer mal, ou de um mal temido. Podem ter de cinco a quinhentos versos, como é o caso da esplêndida “Canção das Vacas”, da esposa de Ilmarinen. Porém, as mais deliciosas são também “canções de origem” – basta conhecer a história precisa e detalhada da origem, do nascimento e da  linhagem de alguém (não digo de algo porque no Kalevala   praticamente não existe tal diferença) para possuir o poder de deter o mal e curar os danos que ele provocou, ou para lidar com ele de outro modo. As canções “Origem do ferro” e “Origem da cerveja” são as mais deliciosas. Concluindo – apesar de estar claro que, com nosso gosto moderno, artificial e um tanto tímido além da medida, podemos tirar desses poemas muitos sorrisos baratos (sobretudo diante de uma tradução ruim ou medíocre) –, ainda assim não é com essa  atitude que desejo apresentá-los a vocês. Existe um certo humor (no diálogo entre os personagens e em outras situações) que justifica um sorriso, mas será realmente rir de [nossa] própria fraqueza, de nossa própria visão embaçada, como na velhice, se rimos muito facilmente da simplicidade dos trechos mais despojados da Terra dos Heróis, a  não ser que riamos de prazer por encontrar algo tão fresco e deleitoso. Mas há trechos que não são apenas histórias interessantes de magia e aventura, mitos estranhos ou lendas; mas que são de fato líricos e deleitosos, mesmo na tradução. Esses elevados sentimentos poéticos ocorrem continuamente em versos, ou dísticos, ou trechos de versos ao longo dos runos, mas de forma muito diferente, de modo que se torna inútil cit[ar] trechos. Também os episódios e as situações não são em nada 

inferiores (muitas vezes, são bastante superiores) às baladas de países muito mais famosos do que a Finlândia. Estamos lidando com uma poesia popular, sobrecarregada  de falta de técnica, inconsciente e irregular. Mas o deleite da Terra, o assombramento que causa, a sensação essencial, como de necessidade da magia, o ilusionismo com a Lua dourada e o Sol prateado (são assim), que é o passatempo universal do homem, essas são as coisas a serem buscadas no Kalevala . O mundo inteiro para rodopiarmos nele, a Grande Ursa para brincarmos, Órion e as Sete Estrelas, todos balançando magicamente dos ramos de uma bétula de prata encantada por Väinämöinen. Os esplêndidos, enfeitiçantes, escandalosos vilões de outrora para contar quando nos banhamos na “sauna”, depois de prender as vacas, no final do dia, nos pastos da pequena Suomi, nos pântanos. [Aparentemente, o texto termina aqui, mas fica claro que a página seguinte é uma  sequência dele. Ela contém uma introdução e notas sobre trechos a serem lidos em voz alta.]

VII Citação  tradução que vou usar é a da série “Everyman” (2 vols.), de W. H. Kirby, que às vezes parece apoiar, sem necessidade, o prosaico e verbalmente despropositado, apesar de estar claro que é difícil exagerar a grande dificuldade do estilo original. Até onde posso ver, ele parece ter tentado, na medida do possível, fazer com que cada verso correspondesse a um verso do original, o que não melhorou as coisas, mas em certos momentos ele se sai muito bem. Para o caso de alguém não conhecer a história (e se houver tempo), o melhor a  fazer é ler o resumo do prefácio dessa edição. Trechos: Os favoritos entre os finlandeses são os episódios de “Aino” e “Kullervo”. 1) Aino R. III 530 (aprox.) até o fim: R. IV (140-190) 190-470 2) Kullervo R. 31:. 1-200 34 1-80 35 (170) 190-290 36 (60-180) 280 – fim 3) A “Canção das Vacas” (cp. página acima) 32 60-160 210-310 (Isso inclui o exemplo clássico de “lisonja”: é claro que o urso é o mais odiado de todos os animais para a esposa do fazendeiro, e é assim que ela se dirige a ele. 32 310-370;. 390-430;. 450-470) 4) Origem do ferro IX 20-260 5) Origem da cerveja XX 140-250:. 340-390 6) Forja de Sampo X 260-430 7) Grande boi XX 1-80 8) Joukahainen III 270-490 9) Tormento da noiva XXII 20-120; (130-190) (290-400)

* Honour moderations  (ver anteriormente). (N. do T.)

** “Recitando o Salmo Cem, esse grandioso antigo hino puritano.” (N. do T.)

Notas e comentários  67

não tenha sido escrito originalmente para esta sociedade. Ver a “Introdução aos Ensaios”. Tolkien proferiu esta palestra primeiramente para a Sundial Society do Corpus Christi College, Oxford, em 22 de novembro de 1914, e depois para o Essay Club do Exeter College, em fevereiro de 1915. Este texto é o que foi proferido nessa última data. o súbito colapso do orador previsto.  Não consegui encontrar nenhuma  informação adicional sobre a identidade do orador ou a natureza do colapso. original, que é bastante diferente de qualquer tradução [...].  Quando estudou no Exeter College, Tolkien tomou emprestado da biblioteca  A Finnish grammar  [Uma gramática finlandesa], de C. N. E. Eliot, para tentar ler o Kalevala  no idioma original. Supõe-se que ele já estivesse trabalhando a teoria expressa no manuscrito A de “Sobre contos de fadas”, segundo a qual “mitologia é língua e língua é mitologia” ( Tolkien On Fairy-stories  [Tolkien sobre contos de fadas], p. 181).

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Books for the Bairns, de Stead. Uma série de livros juvenis publicada por W. T. Stead, jornalista, filantropo e político inglês. Books for the Bairns   reeditou clássicos, contos de fadas, fábulas, versos infantis, grandes eventos da história  britânica e os evangelhos, dando-lhes uma perspectiva moral e cristã que visava  reformar o mundo. Os Books for the Bairns , Primeira Série 1806-1920, eram bem conhecidos dos jovens da geração de Tolkien. línguas indo-europeias.  A teoria das línguas indo-europeias, derivada da  filologia e da mitologia comparadas do século XIX, reconstruiu, através de correspondências fonológicas e princípios de mutação de sons, uma língua préhistórica hipotética chamada de proto-indo-europeu, da qual derivaram as modernas famílias linguísticas indo-europeias. O finlandês, aparentado com o húngaro e, distantemente, com o turco, não é uma língua indo-europeia, e sim fino-úgrica. apreciadas capas cor-de-rosa mencionadas anteriormente.  Apesar de não haver capas cor-de-rosa mencionadas “anteriormente”, o ensaio posterior datilografado de Tolkien menciona que os Books for the Bairns   de Stead tinham capa dessa cor. Thorfinn na boa Vinlândia.  Thorfinn Karlsefni foi um islandês do século XI que tentou estabelecer uma colônia em Vinland [Vinlândia], assim chamada por Leif Eríksson e que se acredita ficasse em algum lugar da costa nordeste da   América do Norte. Sua expedição foi mencionada em dois manuscritos islandeses

do século XIV, o Hauksbók   (Livro de Haukr) e o Flateyjarbók   (Livro da Ilha  Chata).

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quando pela primeira vez li o Kalevala . De acordo com Humphrey Carpenter e John Garth, Tolkien leu a tradução de Kirby pela primeira vez em algum momento em 1911, seu último ano na King Edward’s School. Ele se mudou para Oxford no outono daquele ano e tomou emprestada a Gramática   finlandesa , de Charles Eliot, da biblioteca do Exeter College. falta de jeito de uma tradução. Tolkien não apenas tinha antipatia pela tradução de Kirby, mas seu princípio expresso de que “mitologia é língua e língua é mitologia” (ver verbete “tradução original” anteriormente) invalidaria qualquer tradução de uma obra como representação fiel do original. H. Mods.  Classical Honour Moderations, uma primeira rodada de exames realizada na Universidade de Oxford, em que o estudante pode obter um Firs  [Primeiro] (altamente desejável), um Second   [Segundo] (bom, mas não ótimo) ou um Third  [Terceiro] (aprovação sofrível). Tolkien obteve um Second .

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Troilo que precise de um Pândaro.  Tolkien podia estar pensando na história  contada no poema Troilus and Criseyde , de Chaucer, ou na peça Troilo e  Créssida , de Shakespeare. Em ambas as obras, Pândaro, tio de Créssida, age como intermediário dos amantes.

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estranha história troglodita.  O significado original de troglodita é “morador de caverna” (do grego trogle , “buraco”, com o sentido estendido de “eremita”). Tolkien presumivelmente quis dizer uma história que havia sido isolada do resto da sociedade. Ver também o uso feito por Andrew Lang, no verbete que se segue, sobre as Ilhas Andamão. Ilhas Andamão.  As ilhas Andamão, um território da Índia, situam-se no Oceano Índico, a meio caminho entre o subcontinente indiano e o sudeste da   Ásia. Em Custom and myth  [Costume e mito], Andrew Lang se refere duas vezes a ilhéus de Andamão, questionando: “Se um troglodita terciário fosse como um ilhéu moderno de Andamão [...] ele, de pé, meditaria de modo reverente sobre o fato de que uma árvore era mais alta do que ele [...]?” (p. 233). Depois, sugere: “Se a história da religião e da mitologia deve ser desemaranhada, precisamos examinar o que as classes ditas mais baixas da Europa têm em comum com os australianos, os bosquímanos e os ilhéus de Andamão” (p. 241). Vale notar a  sugestão de Tolkien, feita muito posteriormente, nos rascunhos A e B de “Beowulf  : the monsters and the critics” [“Beowulf   : os monstros e os críticos”], (datados conjecturalmente por Michael Drout de cerca de 1933-1935), de que os críticos contemporâneos poderiam substituir “ilhéus de Andamão [...] por anglo-saxões” ( Beowulf and the Critics , pp. 33, 81).

contos populares hauçá.  Os hauçá são um povo do Sahel que ocupa um território que se estende pelo nordeste da Nigéria e o sudeste do Níger. Em The  British Folklorists: A History [Os folcloristas britânicos: uma história], Richard Dorson observa: “Num período de cinco anos, 1908-1913, quatro coleções de folclore e linguagem foram publicadas sobre os hauçá” (p. 368). Dorson cita o livro Hausa Folktales   [Contos populares hauçá], do major Arthur John Newman Tremearne, publicado em 1914. Um artigo intitulado “Contos populares hauçá”, escrito por F. W. H. M., foi publicado no periódico  African  Affairs , Oxford University Press, 1914, v. XIII, p. 457. Publicadas na época em que Tolkien estava escrevendo, essas fontes estariam disponíveis para ele. A visão cética da mitologia comparativa nelas expressa prenuncia a posterior opinião de Tolkien, igualmente de repúdio, sobre a abordagem comparativa, em seu ensaio “Sobre contos de fadas”. 72

Mabinogion. O grande repositório literário da mitologia galesa. A maior parte dele é encontrada em dois manuscritos, o Livro branco de Rhydderch ( Llyfr  Gwyn Rhydderch , 1300-1325) e o Livro vermelho de Hergest ( Llyfr Coch Hergest , 1375-1425). Foi traduzido para o inglês por Lady Charlotte Guest em 18381849. Tolkien possuía exemplares dos três volumes em sua biblioteca.

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Väinämöinen.  O cantor primevo e mais antigo herói, o primeiro dos “três grandes” heróis do Kalevala . Os outros dois eram o ferreiro Ilmarinen e o inconsequente tratante Lemminkainen. Väinämöinen é o primogênito e o mais folclórico dos três, apresentando em seu caráter aspectos de xamanismo. Petrogrado fica na Finlândia.  Tolkien aqui fala em termos geográficos, não políticos, apesar de, no caso da Finlândia, as duas coisas muitas vezes se sobreporem, visto que o país se tornou Grão-Ducado da Rússia em 1809. Petrogrado (em lugar do nome São Petersburgo, em 1914) fica no fundo do golfo da Finlândia, na base do istmo da Carélia. A Carélia, que tem uma grande população finlandesa, está agora dividida entre Finlândia e Rússia. Muitos dos runos coletados por Lönnrot, especialmente com relação a Kullervo, vieram da  Carélia.

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Elias Lönnrot fez uma seleção delas, em1835.  Elias Lönnrot, médico e colecionador de folclore finlandês, publicou nesse ano o  Antigo Kalevala , uma  seleção de sua extensa coleção de runos ou canções. Lönnrot não foi o único a coletá-las.  Entre os coletores anteriores incluem-se Zachris Topelius, Matthias Castrén, Julius Krohn e o filho deste, Kaarle Krohn. Para uma discussão mais ampla, ver Domenico Comparetti, Traditional Poetry o the Finns  [Poesia tradicional dos finlandeses], Londres: Longmans Green, 1898, e Juha Pentikäinen, Kalevala Mythology   [Mitologia do Kalevala ], trad. Ritva  Poom, Indiana University Press, 1989.

publicada novamente em 1849. A edição ampliada do Kalevala , a partir da qual são feitas todas as traduções atuais. 77

“Hiawatha” não é um genuíno repositório do folclore indígena, mas sim um brando e suave expurgo do Kalevala. Para saber mais sobre isto e sua relação com as línguas inventadas por Tolkien, ver o ensaio de John Garth sobre Tolkien e Longfellow, “From adaptation to invention” [Da adaptação à invenção], em Tolkien Studies , v. XI, p. 1-44.

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Os nomes de L[ongfellow] são muitas vezes bons demais para terem sido inventados.  Ver o ensaio de Garth (citado anteriormente) para uma extensa  discussão sobre a relação entre os nomes do Kalevala , “Hiawatha” e o qenya / quenya de Tolkien. primeiro fluxo de traduções do Kal[evala] para o escandinavo e o alemão.  Aconteceu de fato o que se pode chamar de um “ímpeto de traduções”, que começou com uma tradução para o sueco do  Antigo Kalevala   (1835), feita por Matthias Castrén (finlandês) em 1841. Em 1845, Jakob Grimm incluiu 38 linhas do runo 19 em uma apresentação à Academia Alemã de Ciências. Uma  tradução completa em alemão do Novo Kalevala  (1849) foi produzida por Anton Schiefner em 1852. “Chanting the Hundredth Psalm that Grand old Puritan Anthem”.  A sintaxe de Tolkien torna difícil determinar exatamente quem disse o que a quem, mas aparentemente trata-se de um “elogio americano” citado no London Daily News , exaltando “The Courtship of Miles Standish” [A corte de Miles Standish], de Longfellow, por conter “um dos versos mais maravilhosos de toda a língua  inglesa”. O verso em questão (citado erroneamente no texto de Tolkien) menciona Priscilla Mullens, objeto da corte, “entoando o Salmo Cem, o grandioso antigo hino puritano”. Também está pouco claro o objeto do evidente sarcasmo de Tolkien, seja o admirador americano da citação, o London Daily  News , por seu gosto poético, ou Longfellow, por chamar um salmo hebraico de “hino puritano”. Ou todos eles.

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Ilmarinen. Um dos “três grandes” heróis do Kalevala . Seu nome é formado da   junção de ilma , “firmamento”, com o sufixo ocupacional -ri . Tem os epítetos seppo, “artesão”, e takoja , “martelador, forjador”. Foi originalmente o criador do firmamento (em finlandês, kirjokansi , a “tampa decorada / multicor”) e forjou o Sampo, a misteriosa criação que é objeto de contenda no Kalevala . Kaukomieli.  Um cognome ou epíteto de Lemminkainen, o inconsequente tratante, terceiro dos “Três Grandes”. Magoun traduz Kaukomieli como “homem de mente que vagueia ao longe”; Friburg, como “de mente longínqua”; Kuusi, Bosley e Branch, como “previdente” ou “altivo”.

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“falas como personagem”. Convenção dos contos e poemas folclóricos em que objetos inanimados, porém personificados, têm vozes e falam por si sós, normalmente com personagens humanos ou sobre eles. A harpa de “João e o pé de feijão”, que conta ao gigante que João o está roubando, é um exemplo. Tolkien usou esse recurso no Hobbit , quando fez a bolsa dos trolls falar com Bilbo, que estava tentando roubá-la.

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Ahti e sua esposa Vellamo habitam as águas.  Ahti aparece mais frequentemente como cognome de Lemminkainen, enquanto Kirby considera   Ahto o nome do Deus do Mar e das Águas, marido de Vellamo; de acordo com Kirby, “a Deusa do Mar e das Águas, esposa de Ahto”. Ahti como variante de  Ahto, porém, aparece ocasionalmente como nome de um deus aquático.

O Kalevala  [ Rascunho datilografado] Receio que este ensaio não tenha sido escrito originalmente para esta sociedade. Espero que me perdoem, pois ele foi escrito principalmente para servir como um tapa-buraco esta noite, para entretê-los na medida do possível, malgrado o súbito colapso do orador apropriado. Espero que, além do caráter de segunda mão deste ensaio, esta associação também me perdoe sua qualidade, que dificilmente será a de um ensaio, mas sim de um solilóquio desconexo, acompanhado de sossegados tapinhas no verso de um livro de estimação. Se eu falo destes poemas tão repetidamente, como se ninguém nesta sala os conhecesse, exceto eu, atribuam isso ao estranho acaso de que ninguém os conhecia  quando fiz a palestra antes; e também ao sentimento de “estima”. Gosto muito destes poemas. Eles constituem uma literatura tão diferente de qualquer coisa que seja familiar aos leitores em geral, ou mesmo aos que vagam pelos atalhos mais curiosos; são tão não europeus, e, no entanto, só poderiam ter vindo da Europa. Creio que qualquer um que tenha lido a coleção de baladas que atende por este nome (sobretudo se as leu inteiras, ou mesmo parte delas, no original – algo bastante diferente de qualquer tradução) concordará com isso. A maioria das pessoas está  familiarizada, desde que começou a ler os primeiros livros, com o molde e as características gerais das histórias mitológicas, lendas, contos, romances, e assim por diante, que nos chegam por muitos e tortuosos canais da antiga Hélade e das terras meridionais, do norte e dos austeros povos germânicos, das ilhas do oeste e de seus antigos senhores célticos (seja lá o que signifique céltico). Para alguns de nós, para as pessoas que têm vontade ou honestidade suficiente para confessar, eles atingiram sua  maior glória e deleite nos Books for the Bairns   [Livros para as crianças], de Stead, de capas cor-de-rosa, essa mina de antiga e imorredoura tradição. Eles têm certo estilo, certo sabor, algo em comum, a despeito de suas vastas divisões. Algo que é mais do que a comunidade universal da imaginação humana, e que nos faz sentir que, não importam as diferenças de raças, existe uma afinidade na imaginação dos falantes das línguas indoeuropeias. Havia coisas remotas, é claro, mesmo naqueles livrinhos cor-de-rosa, ecos do coração negro da África, gotas de um leste distante e estranho. Nesse mundo, nada pode ser descrito de maneira definitiva ou demarcado com linhas rígidas. Assim acontece com a Europa. Ela tem fronteiras a sudeste sobre as quais se têm derramado desde sempre as influências, meio asiáticas, meio parentes próximas nossas, das línguas e culturas semíticas, assimiladas depressa, e muitas vezes indo além do fácil reconhecimento, na  Europa. Mas essa é uma história antiga, e talvez, enquanto ainda discutimos se o Extremo Oriente nos deu mais do que um enredo aqui, a sombra de um antigo conto ali,

empregados em nossos próprios usos, topemos, num belíssimo dia, com o Kalevala , a  Terra dos Heróis. Então estaremos de fato em um mundo muito novo, e poderemos nos deleitar com uma espantosa nova animação. Evitaremos o pico de Darien, nem que seja só porque eu, de qualquer modo, não estou mantendo silêncio sobre/acerca dele. Ainda assim, sentiremo-nos como um Colombo desembarcando num novo continente, um Thorfinn Karlsefni na boa  Vinlândia, e em melhor condição, pois nossos novos heroicos conhecidos são mais divertidos do que os Skraelings ou os índios pele-vermelha. É claro que, quando primeiro colocamos os pés no novo solo, se quisermos poderemos começar imediatamente a compará-lo com os lugares de onde viemos. Há montanhas, rios, relva e outras coisas aqui, tanto quanto hav[ia] lá. Muitas plantas e alguns animais (especialmente a feroz espécie humana) podem parecer familiares, porém é mais do que provável que um indefinível senso de novidade nos encante ou perturbe demais para  fazermos comparações. Haverá um fascínio de estranheza até nas coisas familiares. As árvores se agruparão de modo incomum no horizonte, os pássaros executarão música  pouco familiar, os habitantes falarão um idioma selvagem e, de início, incompreensível. Depois de conhecermos melhor essa região e seus usos, e de termos começado a nos comunicar com os nativos, acharemos divertido morar algum tempo com essa gente estranha e esses novos deuses, com essa raça de heróis simplórios, escandalosos e não hipócritas e seus amantes tristemente não sentimentais. Alguns pensarão com pesar que, algum dia, terão de abandonar aquela terra. No entanto, possivelmente existirão alguns, que ainda não considerei, gente de educação irrepreensível e urbanidade impecável, que só desejarão pegar o primeiro navio de volta para suas cidades familiares. Essa gente, é melhor que parta logo. Não tenho argumentos a lhes oferecer a favor da “terra” ou de seus “heróis”, pois é inútil dizer-lhes que, se os heróis do Kalevala   se comportam com singular falta de dignidade e até mesmo decência, dispostos a verter lágrimas e a um jogo sujo, isso é o que os torna especialmente atraentes! Afinal de contas, eles não são menos dignos – e são muito mais fáceis de lidar – do que o amante medieval que cai na cama  para lamentar a crueldade de sua senhora, que não se apieda dele, condenando-o a uma  morte comovente, mas que se choca com o inesperado da ideia, quando seu bondoso conselheiro o faz ver que a pobre senhora ainda não foi informada, de nenhum modo, de sua paixão. Os amantes do Kalevala   são diretos e aguentam uma porção de rejeições. Não há Troilo que precise de um Pândaro para cortejar timidamente em seu lugar. Mas aqui são as sogras que fazem acordos sólidos por baixo dos panos e dão às filhas conselhos cínicos, destinados a despedaçar as ilusões mais robustas. Seja como for, assombro e um pouco de perplexidade foi o que experimentei quando me deparei pela primeira vez com o Kalevala . Atravessei o abismo entre os povos da Europa que falam indo-europeu e o reino menor dos que, em cantos esquisitos, ainda se agarram às línguas meio esquecidas e às lembranças de dias passados. A novidade me preocupou, empacando em trechos deselegantes devido à falta  de jeito de uma tradução que não superara em nada as dificuldades peculiares de sua 

tarefa. Ao mesmo tempo que irritava, ela atraía – e quanto mais eu a lia, mais me sentia  em casa e me divertia. Então empreendi um selvagem ataque ao idioma original. Fui inicialmente rechaçado com pesadas baixas, e não se pode dizer que alguma vez eu tenha  conquistado a posição. Ainda assim, é fácil enxergar o motivo pelo qual as traduções não são muito boas, nem muito próximas de seus originais – elas lidam com uma linguagem distante do inglês por um abismo incomensurável, na natureza e no modo de expressão. O finlandês é uma língua esquisita, muito adequada à “Terra dos Heróis” (como é natural), e tão diferente de tudo que nos seja familiar quanto os contos desses poemas são diferentes dos contos que conhecíamos antes. Ouvimos repetidamente a “Terra dos Heróis” ser descrita como a epopeia nacional finlandesa. Como se fosse da natureza do universo que toda nação (palavra enfadonha), além de um banco nacional e um governo, também devesse, antes de se qualificar para ser membro da Liga, ter a posse legal de uma epopeia nacional. A Finlândia não tem. O Kalevala   certamente não é uma. É uma massa de material concebivelmente épico (consigo conceber com dificuldade, confesso, a epopeia que surgiria dele), mas – creio que este é o ponto principal – ele perderia quase tudo o que constitui seu maior deleite se, em algum dia infeliz, fosse manuseado de modo épico. As histórias simples, os acontecimentos isolados, só eles poderiam permanecer. Todo aquele substrato, aquela  rica profusão e exuberância que os recobrem teriam de ser removidos. Na verdade, a  “Terra dos Heróis” é uma coletânea justamente desse absorvente material encantador, que, com o surgimento de um artista épico, pertencente a uma era de espírito bastante elevado para produzi-lo, em outros lugares foi inevitavelmente deixado de lado e por fim desapareceu até da “literatura oral”, caindo em desuso e no esquecimento. Dificilmente aparecem no Kalevala   trechos ou episódios que se possam conceber como capazes de sintonia com os mais altos graus emocionais exigidos pela grande poesia. É a todo esse corpo de estranho mito, de peculiar e troglodita submundo de histórias, aos selvagens ilusionismos com o Sol e a Lua, as origens da Terra e as formas do homem, que em Homero, por exemplo, foram levianamente suprimidos, até permaneceram apenas uns poucos resquícios incongruentes de sua presença, é a isso que a maior parte do Kalevala  pode ser comparada, e não à grandiosidade maior do tema épico, nem à sua humanidade consciente. Ou, por outro lado, é aos contos estranhos, aos fantasmas ultrajantes, às feitiçarias e aos desvios da imaginação setentrional, que às vezes se destacam, aqui e ali, no ar superior, normalmente claríssimo, das sagas, que a Terra dos Heróis pode mais amiúde ser comparada, não à altiva dignidade e coragem, à nobreza de mente e corpo de que falam as grandes sagas. Porém, o singular e o estranho, o irrestrito, o grotesco não são apenas interessantes, mas valiosos; representam alguns dos interesses e atrações eternos e permanentes dos homens. Nem sempre é necessário expurgá-los completamente para atingir o sublime. Podemos ter nossas gárgulas em nossa nobre catedral. Mas a Europa setentrional perdeu muita coisa por tentar demasiadas vezes construir templos gregos. Esta noite não estou nem um pouco preocupado em ser sublime. Contento-me em virar as páginas dessas baladas mitológicas, cheias daquele

substrato primitivo que a literatura da Europa, no geral, tem continuamente aparado e reduzido, durante muitos séculos, com diferente e prévia completude entre diferentes povos [.] Gostaria que nos tivesse restado mais disso – algo do mesmo tipo que pertenceu aos ingleses. Mas esse meu desejo não se deve a um motivo terrível e fatal, não está adulterado pela ciência, está isento de toda suspeita de antropologia. Qualquer coletânea como esta seria – e de fato estou consciente de que é – o parque de diversões dos antropólogos e mitólogos comparativos, onde eles proliferam abundantemente. Mas, não importa o quanto possam, à sua própria maneira, ser bons e interessantes o seu esporte e a sua caçada (temo ser cético, muitas vezes), eles são tão alheios ao meu propósito quanto o seriam os processos de manufatura de queijo. Comentaristas, eu sei, incluem em seus escritos muitas notas sobre esses poemas, como: “compare esta história  com aquela contada nas ilhas Andamão” ou “compare aquela crença com a mencionada  nos contos populares hauçá”, e assim por diante. Mas vamos evitar isso. Essas notas raramente provam qualquer coisa além do fato de que os finlandeses e os ilhéus de ndamão, apesar de terem aspecto bem diferente, são animais bastante aparentados, o que já sabíamos. Portanto, fiquemos contentes por termos nos deparado de repente com um repositório dessa imaginação popular que temíamos perdida, acumulada na forma de histórias simples, sem senso de proporção, sem preocupação com os limites adequados, nem mesmo do exagero, sem senso (ou certamente sem o nosso senso) de incongruência, a não ser que, como às vezes podemos suspeitar, a incongruência seja  fonte de prazer. Estamos tirando férias de todo o curso do progresso europeu dos últimos três milênios. Vamos, por um tempo, ser selvagemente não helênicos e bárbaros, como o menino que esperava que a vida futura proporcionaria meios feriados no inferno, bem longe dos colarinhos e hinos de Eton. Por ora, não devemos aplicar nosso superior intelecto moderno à análise dessas coisas. Devemos, isto sim, tentar penetrar no seu espírito especial em termos de igualdade. O vivisseccionista é capaz de ganhar a vida, mas ninguém crê que ele saiba mais sobre cães do que o homem que os tem como animais de estimação. Deveríamos nos livrar até da superioridade expressa no termo “animal de estimação” – eu deveria ter dito do homem que faz de um cão o seu companheiro. A  única análise que me permiti foi uma leve investigação sobre as minhas próprias sensações de prazer pelo sabor percebido nesses poemas; um pequeno esforço para  descrever a vida, a paisagem e a gente daquela terra como se apresentaram para mim. Os deliciosos exageros desses contos selvagens sem dúvida poderiam ser eruditamente comparados a centenas de literaturas, primitivas ou modernas não civilizadas, e a coleções de lendas. Mas, mesmo que eu pudesse, por ora não me deslocaria para fora da Europa. Não importa o quanto essas coisas possam parecer selvagens, não civilizadas, primitivas, sua atmosfera e sua paisagem pertencem essencialmente à Europa setentrional, e para enfatizar isso eu abriria mão de bom grado de uma centena de paralelismos. Ainda assim, é verdade que a falta de moderação e o exagero do Kalevala  recordam de imediato coisas como, digamos, as histórias galesas do Mabinogion, além de outras semelhantes em galês e irlandês. Mas, na realidade, trata-se

de coisas muito diversas. No Kalevala , muitas vezes não há nem a tentativa da limitada  plausibilidade dos contos de fadas, não há a astuciosa dissimulação do impossível – somente o deleite da criança que conta que derrubou um milhão de árvores, ou que vai nocautear algum personagem augusto, como seu pai, se é que já não matou vinte policiais. Nada nele pretende nos enganar, nem lançar sobre nós o breve encanto da  ilusão do contador de histórias. Seu deleite provém da nascente percepção dos limites das possibilidades humanas e, ao mesmo tempo, do ilimitado poder de movimento e criação da fantasia e da imaginação humanas. Estão latentes ali, sem dúvida, o heroísmo das batalhas do homem contra o destino esmagador e a coragem indômita diante de pendências insuperáveis. Porém, não é por esse motivo que o escutamos. Gostamos dele ou o desprezamos como esforço de fantasia fresca e sem sofisticação. É claro que nos contos galeses está evidente com frequência, de fato continuamente, o mesmo deleite que há numa mentira pitoresca, num vigoroso e aflito voo da imaginação. Mas, paradoxalmente, os contos galeses são, ao mesmo tempo, muito mais e muito menos absurdos do que os finlandeses. Mais absurdos porque, quando os recebemos, estão menos frescos do que já o foram. Por cima deles, em muitos lugares, há uma espessa  poeira de tradição não mais compreendida, fileiras de nomes e alusões que já não têm significado, que já eram disparatados para os bardos que os relatavam. Quem quiser entender o que estou querendo dizer, só precisa dar uma olhada no catálogo dos heróis da corte de Artur na história de Kilhwch e Olwen, ou no relato dos feitos de Kilhwch para o gigante Yspaddaden Penkawr com o objetivo de conquistar sua filha Olwen. Pouco ou nada desses estranhos trastes existe no Kalevala . Por outro lado, as histórias galesas são muito menos absurdas, pois os quadros pintados revelam muito mais técnica. Suas cores são engendradas de modo astuto, até maravilhoso. Seus vultos são agrupados com esperteza. A plausibilidade própria dos contos de fadas é respeitada. Se um homem mata um monstro impossível de abater, a história se mantém firme em sua mentira. Na  Terra dos Heróis, um homem pode matar um alce gigante em um verso e achar mais poético chamá-lo de ursa no verso seguinte. É desnecessário, talvez, comentar isto, mas posso aproveitar a ocasião para tentar dizer exatamente qual considero ser a atmosfera do Kalevala   – minhas conclusões vocês mesmos podem corrigir de acordo com seu próprio conhecimento, ou pelos extratos que gostaria de ler para vocês até esgotar sua  paciência e vocês se convencerem de que são adequadas as últimas linhas do Kalevala : “A cascata quando corre Não dá água infinita  Nem cantor que é perfeito Canta tudo que sabe.” Parece-me que sentimos de imediato que não há um pano de fundo de tradição literária ou artística. O Mabinogion, por exemplo, tem esse pano de fundo. Está repleto

do sentido de longos anos de evolução, e mesmo de decadência, o que, por um lado, resultou no atulhamento do conto com nomes e materiais tradicionais esquecidos, mas, por outro, produziu um campo com cores notavelmente harmonizadas e sutilmente variadas, diante do qual os vultos dos atores se destacam, mas também se harmonizam com o maravilhoso esquema de cores à sua volta, e perdem em surpresa, senão em clareza. Se poucos têm o mesmo senso de cor, intensamente vívido, revelado nos contos célticos, ainda assim a maioria das literaturas lendárias nacionais possui algo semelhante. O Kalevala , para mim, parece não ter nada disso. As cores, os feitos, as maravilhas, os vultos dos heróis foram todos salpicados numa tela limpa e desnuda por uma mão inesperada. Mesmo as lendas acerca das origens das coisas mais antigas do mundo parecem provir frescas da quente imaginação momentânea do cantor. Certamente, não há  ali modernidades como bondes, pistolas ou aeroplanos. As armas dos heróis, é verdade, são os chamados antigos arco, lança e espada, mas, ao mesmo tempo, existe uma  “atualidade”, uma momentaneidade e uma presença não românticas e bem pouco nebulosas que nos surpreendem imensamente, em especial quando descobrimos que todo esse tempo estamos lendo sobre a Terra sendo criada a partir de um ovo de marreca, ou sobre o Sol e a Lua sendo aprisionados numa montanha. Todas as coisas têm de ser compradas por um preço, e adquirimos a comparat[iva] consistência e razoabilidade de nossos contos, a mais clara cristalização de nossas tradições, com a  perda desse frescor mágico e imaculado. Quanto ao que se conhece sobre a origem desses poemas, sei bem pouca coisa, e não tentarei contar mais do qu[e] sei. Desde a chegada de Väinämöinen, que fabricou a  grande harpa, a “kantele”, com osso de lúcio, os finlandeses, pelo que sabemos, sempre apreciaram baladas desse tipo, que foram transmitidas e cantadas dia após dia, com entusiasmo infinito, de pai para filho, de filho para neto, até o presente dia, quando, como agora, lamentam as baladas: “os cantos cantam tempo antigo, voz oculta do saber, que nem todo infante canta, mais do que entende o homem”. A sombra da Suécia e, depois, da Rússia esteve sobre o país por muitos séculos. Petrogrado fica na Finlândia. Hoje em dia, as coisas não estão muito melhores. Porém, o que há de notável e deleitoso para nós é que esses “cantos do tempo antigo” foram conservados, de algum modo, sem serem modificados. A Suécia finalmente, no século XII, conquistou a Finlândia (ou melhor, os finlandeses – a terra deles jamais teve as fronteiras bem definidas dos modernos Estados europeus). Antes disso, houve contínuos combates e contínuo intercâmbio com os povos germânicos setentrionais, que remontam ao começo da nossa  era, nos quais, sem dúvida, os primeiros a receber o nome de ingleses, em Holstein e nas ilhas, tiveram grande participação, mas o intercâmbio remonta mesmo a antes desse tempo remoto. Pela conquista sueca e pelas espadas dos cavaleiros teutônicos, o cristianismo começou a ser introduzido lentamente. Em outras palavras, os finlandeses foram um dos últimos povos reconhecidamente pagãos da Europa medieval. Hoje o Kalevala   e seus temas ainda permanecem praticamente intocados por essa influência, muito menos afetados por ela do que a mitologia da antiga Escandinávia, como aparece

na Edda, exceto pela história da virgem Marjatta, no final, e por algumas poucas referências a Jumala ou a Ukko, deus dos Céus, e assim por diante. Mesmo as alusões à  existência do cristianismo estão quase inteiramente ausentes. Do seu espírito nada existe, como pode ver qualquer um que compare a grosseira história de Marjatta com a fé cristã. É a isso, claro, que se deve em grande medida o interessante primitivismo dos poemas, seu caráter de “substrato”, apesar de isso também ser em parte responsável pelo seu menor tom emocional, pela sua visão estreita e tacanha, coisas que, em nosso atual espírito de férias, não deixam de ter sua atração. Durante outros sete séculos, as baladas foram cantadas, a despeito da Suécia, a despeito da Rússia. Jamais foram escritas de alguma forma até que Elias Lönnrot fez uma coletânea de muitas delas em 1835 e publicou uma seleção delas. Foram todas coletadas na Finlândia oriental e, consequentemente, estão escritas em um dialeto diferente daquele que se tornou, desde então, o moderno dialeto finlandês literário. Esse dialeto do Kalevala   tornou-se agora  uma espécie de convenção poética. Lönnrot não foi o único a coletar, mas foi a ele que ocorreu fazer uma seleção de forma vagamente conexa, e, a julgar pelo resultado, com grande habilidade. Foi ele quem chamou essa série de Terra dos Heróis, ou Kalevala, de Kaleva, o ancestral mitológico de todos os heróis. A série consistia em 25 runos ou cantos. O tamanho dobrou com o novo material coletado, e a coletânea foi publicada  novamente em 1849. Quase imediatamente, foram feitas traduções.  A respeito do que foi dito anteriormente, vale lembrar que, à parte a seleção e o arranjo, tudo foi registrado diretamente dos lábios dos menestréis finlandeses, e a  coletânea não destruiu a arte do menestrel. O cantar de baladas ainda prossegue (ou prosseguia, até a recente guerra). Essas baladas, cristalizadas para nós por acaso, sofrem e ainda poderão sofrer infinitas variações. O Kalevala   de forma alguma reúne toda a  literatura de baladas da Finlândia, nem mesmo toda a coletânea reunida só por Lönnrot, que publicou outro volume delas com o nome de “Kanteletar”, a Filha da Harpa. O Kalevala   só é diferente pelo fato de estar mais bem apresentado e, portanto, de ser mais legível. Abrange a maior parte do campo da mitologia finlandesa, desde a gênese da  Terra e do firmamento até a partida de Väinämöinen. O fato de se tratar de uma coletânea  e de uma publicação tardias pode provocar dúvidas naqueles que têm uma sede moderna  (e provavelmente não de todo saudável) por coisas “autenticamente primitivas”, por mercadorias genuínas. Leiam e não duvidem mais. O arcaísmo falsificado e o pseudoprimitivismo são tão diferentes disso quanto Ossian é do romance em irlandês médio. E, de qualquer modo, a evidência externa da legitimidade dessas mercadorias é mais do que suficiente. Na verdade, o próprio fato de a coleção ser tardia muito provavelmente constitui o verdadeiro motivo pelo qual a casa do tesouro permaneceu intocada. Sua carcaça vazia não foi caiada, redecorada, estofada à moda do século XVIII, ou destruída de outro modo. Foi deixada, despercebida, aos cuidados da sorte e ao gênio de homens trabalhadores sem educação ao pé da lareira, escapando ao pedante e à pessoa  instruída. O que é ainda mais notável, mesmo quando foram coletados e finalmente sofreram a sina de serem reproduzidos impressos, por sorte esses poemas escaparam do

tratamento rude ou moralista. Não foram distorcidos em nenhuma forma edificante e continuam sendo um tipo de leitura muito notável, por serem tão populares entre esse povo, agora o mais respeitador das leis e o mais luterano da Europa, os modernos finlandeses educados. Um paralelo pode ser encontrado no interesse dos sacerdotes e bispos islandeses medievais pelos feitos ferozes dos escandinavos pré-cristãos e pelas aventuras, frequentemente escandalosas, de Thórr e Ódinn. Na verdade, às vezes o Kalevala   e coisas semelhantes são citados como evidência do persistente paganismo da  Europa, que (dizem) ainda sustenta um nobre e santo combate contra a opressão do cristianismo e da biblicidade hebraica. Argumentar a respeito disso seria, de fato, afastarme de meu tema e propósito presentes, mas a tentação de dizer algo sobre nossa atitude diante dos antigos deuses é forte demais. Sem discutir a atitude do povo finlandês até, digamos, cerca de um século atrás, quando essas coisas foram registradas (pois não sei o bastante a respeito deles), ainda assim estou muito disposto a admitir que, sem algo próximo a uma crença objetiva nos velhos deuses, nós definitivamente perderemos parte da magia de todos os contos antigos. Algo neles está “bem além de nossa compreensão”. Não adianta dizer que o mar ainda é poeticamente ilimitado, pois, para as mesmas pessoas que conseguem apreciar a poesia do mar, a redondeza da Terra e a infeliz existência da América do outro lado de um oceano Atlântico estritamente limitado estão, de maneira extremamente constante e vívida, presentes na imaginação. Os corpos celestes são, mais claramente do que tudo, percebidos por elas não como seres celestiais. A  organização e a maior segurança da vida moderna, os hábitos sociais mais tolerantes, um sem-número de conveniências corporais e confortos, até luxos destrutivos, tabaco, médicos, e polícia, e, mais, a única coisa que certamente vale a pena, estar livre da sombra  das superstições mais obscuras, cruéis e imundas, isso nós adquirimos por um preço – não há ilhas mágicas em nosso mar ocidental, e, como diz Francis Thompson, “ninguém voltará a contemplar Apolo à frente da manhã, nem verá Afrodite, nas alturas, soltar seus longos cachos dourados brilhantes”. Ficamos mais velhos e precisamos encarar esse fato.   poesia dessas coisas antigas continua sendo imortal, porém não é mais para nós a  embriaguez tanto da poesia quanto da crença. As férias que sugeri são férias da evolução poética e literária, do peso há tanto tempo acumulado da tradição e do conhecimento civilizados, não um movimento decadente e retrógrado, não uma “nostalgie de la boue” – apenas férias. E se, durante essas férias, escutamos a voz de Ahti nos ruídos do mar, estremecemos à ideia de Pohja, sombria terra da feitiçaria, ou de Tuonela, ainda mais obscura região dos mortos, fazemos isso, não obstante, com uma parte da mente diferente daquela que reservamos para nossas crenças reais e nossa religião, assim como ocorria, sem dúvida, com os padres islandeses de outrora. Mas pode haver alguns para  os quais essas velhas canções instigarão a nova poesia, exatamente como as velhas canções de outros dias pagãos instigaram outros cristãos. Pois é verdade que só os cristãos tornaram Afrodite extremamente bela, um assombro para a alma. Os poetas cristãos, ou aqueles que, mesmo renunciando ao seu cristianismo, devem a ele todos os seus

sentimentos e a sua arte, moldaram ninfas e dríades com que nem os gregos jamais sonharam. A verdadeira glória de Latmos foi feita por Keats. [A frase seguinte está manuscrita a tinta.] À medida que o mundo envelhece, há  perdas e ganhos. Não imaginemos, com moderna insolência e cegueira, que tudo seja  ganho (para que isso não aconteça, canções como a “Terra dos Heróis” foram mantidas, para nossa desilusão), tampouco devemos, com a ignorância do pensamento neopagão, imaginar que isso tudo seja perda. Voltando da minha digressão injustificada, sinto que não posso prosseguir sem dizer algo sobre a língua na qual foram escritos os poemas. O finlandês está, pelo menos para os ingleses, perto do topo da lista das línguas muito difíceis da Europa, porém não é nada feia. Na verdade, como muitas outras línguas, sofre de excesso de eufonia. Tanto que a música, nessa língua, corre o risco de ser empregada automaticamente e não restar margem para que se possa intensificar a emoção de um trecho lírico. Onde a harmonia  vocálica, a assimilação e o abrandamento das consoantes fazem parte integral da gramática  e da fala cotidiana, há muito menos chance para súbitas e inesperadas doçuras. É uma  língua praticamente isolada na Europa moderna. A exceção é a língua dos estonianos, muito próxima, assim como seus contos e seu sangue. A filologia fino-úgrica, que não nos interessa neste momento, descobriu uma relação com falas tribais não russas da  Rússia moderna e, a grande distância (apesar de existir aí mais uma relação de tipo do que um parentesco definitivo de descendência), com o magiar da Hungria, e, mais além, com o turco. Tampouco apresenta algum parentesco com seus vizinhos imediatos, germânicos ou eslavos, exceto no que diz respeito ao processo de empréstimo milenar, que a encheu até a borda de palavras eslavas, lituanas e germânicas, muitas das quais preservam, em seu novo solo, a forma perdida há séculos em seus próprios idiomas. É o caso, por exemplo, do finlandês “kuningas”, rei, que é exatamente a forma que os filólogos presumem que a palavra “king” possuía cerca de dois mil anos atrás. A despeito de todos esses empréstimos e da constante influência cultural das línguas indo-europeias vizinhas, que deixou pistas definidas, o finlandês continua sendo uma língua muito mais primitiva (e portanto, ao contrário da crença geral, muito mais complicada) do que a  maioria das demais línguas da Europa. Ainda conserva um estado flexível, fluido, não fixo, inconcebível mesmo no mais primitivo jargão do inglês. Não é preciso procurar um exemplo mais notável disso do que a maneira como, na poesia, são inseridas livremente sílabas, e até mesmo palavras, sem sentido, que apenas soam joviais. Por exemplo, em versos como os que se seguem: “Enkä lähe Inkerelle Penkerelle Pänkerelle” – ou “Ihveniä ahvenia  Tuimenia taimenia”

“Pänkerelle” apenas ecoa “Penkerelle”. “Ihveniä” e “tuimenia” foram criadas para  destacar “ahvenia” e “taimenia”. Não quero dizer que coisas desse tipo são feitas com frequência, de modo a reduzir as canções a rimas disparatadas com lampejos de sentido. Mas o simples fato de tais coisas serem possíveis, mesmo que para efeito ou ênfase especial, é bastante assombroso. A métrica empregada é aproximadamente a mesma das traduções, porém muito mais livre e menos monótona do que pensaríamos em vista do inglês. É a linha octossilábica, com cerca de quatro batidas ou acentos; o ritmo é uniformemente trocaico, sem batida ascendente, e não há rima. Dois dos acentos ou batidas (normalmente o primeiro e o terceiro) tendem a se destacar como mais importantes. Essa, é claro, é a métrica do “Hiawatha”, o máximo que o inglês pode fazer para produzir o mesmo efeito que o finlandês. Mas o que não é tão amplamente sabido é que não apenas a métrica, mas a ideia do poema e também grande parte do tema e dos incidentes, foram pirateadas pelo “Hiawatha”, o primeiro descendente literário do Kalevala , e nada poderia enfatizar ou ilustrar melhor minhas observações sobre o espírito e a natureza das canções finlandesas do que uma comparação com seu descendente civilizado. O “Hiawatha” não é um genuíno repositório do folclore indígena, mas sim um brando e suave expurgo do Kalevala , colorido com trechos desconexos de tradições indígenas e, imagino, nomes lendários genuínos – alguns dos nomes de Longfellow soam bons demais para serem inventados. Foi a segunda ou terceira viagem dele à Europa, com o objetivo de aprender dinamarquês e sueco – Longfellow era  professor universitário de línguas modernas –, que coincidiu com o primeiro fluxo de traduções do Kalevala  para o escandinavo e o alemão. Creio que só o caráter patético do Kalevala  encontra reflexo aproximadamente igual na obra de seu imitador, um professor universitário meigo e um tanto obtuso, autor de “Evangeline”, que o London Daily News   (cito agora um antigo elogio americano) admitiu ter sido o autor de um dos versos mais maravilhosos de toda a língua inglesa: “chanting the Hundredth Psalm, that grand old Puritan anthem”. Essa métrica, monótona e rala como ela só, sobretudo em inglês, é de fato capaz, se bem conduzida, do mais pungente sentimento patético, senão de coisas mais majestosas. Não me refiro apenas à “Morte de Minnehaha”, mas à “Sina de Aino” no Kalevala   e à “Morte de Kullervo”, em que esse sentimento patético é reforçado, não impedido, pela bemhumorada ingenuidade, quase engraçada (para nós), do entorno mitológico e fabuloso. O sentimento patético é comum no Kalevala   e frequentemente muito verdadeiro e aguçado. Um dos assuntos favoritos – não de destaque, porém muito bem conduzido – é aquele outro lado de um casamento, que o estilo de literatura do “viveram felizes para  sempre” costuma evitar: o lamento e a tristeza, mesmo de uma noiva de boa vontade, ao deixar a casa do pai e as coisas familiares do lar. Esse adeus, no estado da sociedade refletido no Kalevala , costumava ser quase uma tragédia, em que as sogras eram piores do que em qualquer outro cenário da literatura e em que as famílias moravam em lares ancestrais durante gerações, os filhos e suas esposas, todos debaixo da mão férrea da  matriarca.

Se, porém, com ou sem sentimento patético, você se enfadar com o interminável caráter de cantilena dessa métrica, é oportuno recordar outra vez que se trata de coisas escritas, por assim dizer, apenas acidentalmente. Trata-se, em essência, de cantigas, cantilenas entoadas com a repetição monótona de uma frase dedilhada na harpa, com os cantores balançando para trás e para a frente no ritmo. “Vamos apertar as mãos Vamos enlaçar os dedos Vamos lá, cantar alegres Vamos nos empenhar muito ................ Relembrar canções e lendas Do cinto de Väinämöinen Da forja de Ilmarinen Do gume de Kaukomieli.”  Assim começa o Kalevala , e existem muitas outras referências ao balançar rítmico dos monótonos cantores. Gostaria de tê-los escutado com meus próprios ouvidos, mas não escutei.  A religião dos poemas – depois de temas como “língua” e “métrica”, sentimo-nos obrigados a ter mais um, sobre “religião” –, se é que de fato tal nome pode ser aplicado a  ela, é um animismo luxuriante que, na verdade, não pode ser separado dos elementos puramente mitológicos. Isso quer dizer que no Kalevala   cada pau e cada pedra, cada  árvore, os pássaros, as ondas, as colinas, o ar, as mesas, as espadas, a própria cerveja têm personalidades definidas, e um dos curiosos méritos desses poemas é destacá-las com singular habilidade e adequação em numerosas falas. Uma das mais notáveis é a fala da  espada a Kullervo, antes que ele se lance sobre sua ponta. Se uma espada tivesse caráter, seria exatamente como descrito ali: um rufião cruel e cínico. Também podem ser mencionados outros casos, como o lamento da bétula, ou o trecho (cujo trecho semelhante do Hiawatha é uma imitação que não melhora seu modelo) em que Väinämöinen busca uma árvore para obter madeira para o barco (Runo XVI), ou aquele em que a mãe de Lemminkainen, em busca do filho perdido, pede notícias a todas as coisas que encontra, à Lua, às árvores, até à trilha, e todas respondem como personagens caracterizados (Runo XV). Esta é de fato uma das características mais essenciais das canções. Até a cerveja fala de vez em quando, como num trecho que espero ter tempo de ler, sobre a história da origem da cerveja. Segue-se um trecho dela (Runo XX 522-556). “[...] está pronto o pão assado, potes de mingau

  mexidos, e se passa um breve tempo, nos barris coze a cerveja, no porão ela espuma;‘venha alguém aqui beber-me, venha alguém aqui provar-me, que relatem minha    fama, meu louvor que todos cantem.’ Um menestrel lá vão   buscar, buscam cantador de fama, cuja voz seja mais forte, sabedor de belas lendas. O salmão chega primeiro, fosse forte a voz da truta. Mas não canta bem o   salmão, nem o lúcio conta lendas. O salmão tem boca torta, o lúcio, dentes espalhados. Um cantor já vão buscar, buscam cantador de fama, cuja voz seja mais forte, sabedor de belas lendas – encontraram um garoto, pois meninos têm voz forte. Mas não canta bem a    criança, sua fala é alvoroçada. Tem a criança língua torta, tortas são suas raízes. A cerveja amarga irou-se, praguejou a boa bebida, encerrada nos barris, são de cobre suas bicas. ‘Se um menestrel não encontrardes, nem um cantador de fama, cuja voz seja mais forte, sabedor de belas lendas, hei de estourar os aros, escorrendo na poeira [...]”  Aqui não somente a cerveja fala, mas há uma indicação da sua autoestima, como inspiração de poesia e canções, mas também ouvimos o menestrel finlandês aplaudindo a  própria profissão, se bem que de modo mais singular, astucioso e sutil do que era usual entre os menestréis da Inglaterra e da França medievais em semelhantes trechos de publicidade. No Kalevala , a cerveja é motivo de muito entusiasmo, mas a frase frequentemente repetida: “a cerveja é das mais finas, boa bebida para os prudentes” implica (como também o restante dos poemas) certa moderação no uso das coisas boas. Seja como for, as alegrias da embriaguez não parecem ter agradado tanto quanto outros

vícios, porém o fato de a boa bebida soltar a imaginação (e a língua) era muitas vezes louvado (Runo XXI 260). “[...] Ó cerveja deliciosa, bebam todos sem rabugem. Faz com que cante a gente. Clamem com boca dourada, surpreendam-se os senhores, pensem sério as senhoras. Pois vacilam as canções, silenciam línguas gaias, se a cerveja é mal provida, má bebida à nossa frente. Cantam mal os menestréis, não entoam canções boas, convidados silenciam, nem um pio mais dá o cuco   [...]”  Além dessa personificação, porém, existe uma abundância de mitologia. Cada  árvore, onda e colina tem sua ninfa e seu espírito, distinto, aparentemente, do caráter de cada objeto. Há a ninfa do sangue e das veias, o espírito do leme, a Lua e seus filhos, o Sol e os seus (são ambos masculinos). Há um vulto obscuro e aterrador, o mais próximo da dignidade régia nos poemas, Tapio, Deus da Floresta, sua esposa Mielikki, e seu filho e sua filha semelhantes a fadas: Tellervo, “donzelinha da floresta, trajes belos e macios”, e seu irmão Nyyrikki, de gorro vermelho e casaco azul. Há Jumala nos céus (Jumala é nome usado para Deus na Bíblia, mas nos poemas em geral é o deus do ar e das nuvens). E há Tuoni na terra, em alguma vaga região sinistra, junto a um rio de coisas estranhas. Ahti e sua esposa Vellamo habitam nas águas, e existem mil personagens novos e estranhos para se conhecer – Pakkanen, a geada; Lempo, o espírito do mal; Kankahatar, a deusa da tecedura – mas uma listagem não inspira os que ainda  não foram a eles apresentados, e aborrece os que já o foram. A distinção entre a  descendência das ninfas, dos espíritos e de outros seres (raramente se pode chamá-los de deuses, é olímpico demais) e os personagens humanos mal é traçada. Väinämöinen, o mais venerável dos patriarcas perenes, o mais poderoso dos heróis culturais (é o deus da  Música na Estônia), o mais humano dos mentirosos, é filho do Vento e de Ilmatar, filha  do Ar. Kullervo, o mais trágico dos moços camponeses, está a apenas duas gerações de um cisne. Ofereço-lhes apenas essa confusão de grandes e pequenos deuses para que tenham uma ideia da encantadora variedade da Terra dos Heróis. Se você não tiver têmpera para  se dar bem com esses personagens divinos e heroicos, asseguro-lhe, como já fiz antes, que eles se comportam de modo muito encantador. Todos obedecem à grande regra do  jogo do Kalevala , que é dizer pelo menos três mentiras antes de transmitir uma  informação exata, não importa quão trivial seja. Parece que isso se tornou uma fórmula  ou comportamento polido, pois não se acredita em ninguém no Kalevala   antes da sua 

quarta afirmação (que se inicia modestamente com “digo já toda a verdade, menti um pouco no começo”). Basta de religião (se assim podemos chamá-la) e do pano de fundo imaginário! O verdadeiro cenário dos poemas, o lugar onde acontece a maior parte da  ação, é Suomi, a Terra Pantanosa – a Finlândia, como a chamamos –, que os próprios finlandeses chamam muitas vezes de Terra dos Dez Mil Lagos. Se não formos para lá, imagino que dificilmente teremos chance de ver a terra mais vividamente do que lendo o Kalevala , pelo menos a terra de um século ou mais atrás, senão uma terra devastada pelo progresso moderno. Os poemas estão repletos de amor por ela, por seus brejos e amplos pântanos, onde se erguem ilhas como que formadas por uma elevação do solo, às vezes encimadas de árvores. Os brejos estão sempre conosco – e um herói derrotado ou sobrepujado em astúcia invariavelmente é jogado dentro de um deles. Vemos os lagos e as planícies cercadas de juncos com rios lentos, a eterna pescaria, as casas construídas com palafitas. Depois, no inverno, a terra coberta de trenós, e homens que caminham sobre raquetes de neve, do mesmo modo sobre solo movediço ou firme. Juníperos, pinheiros, abetos, álamos, bétulas são sempre mencionados, raramente carvalhos, muito pouco quaisquer outras árvores. E, não importa o que sejam na Finlândia hoje em dia, o urso e o lobo no Kalevala   são indivíduos de grande importância. Muitos animais subárticos, que não conhecemos na Inglaterra, também aparecem ali. Os costumes são todos estranhos, e também as cores da vida quotidiana, os prazeres e os perigos são [O texto datilografado é interrompido no meio de uma frase, na última linha da  página. As duas palavras finais, “perigos são”, estão espremidas logo abaixo da  linha que as precede e parcialmente sobrepostas a ela, como se o papel tivesse terminado inesperadamente antes que o escritor parasse de datilografar. Um comentário manuscrito a tinta abaixo do texto observa: “ [O texto se interrompe aqui]”. Aparentemente, o que teria sido a próxima página nunca foi datilografado, mas podemos conjecturar que, caso tivesse sido, teria se conformado mais ou menos à página e três quartos finais do rascunho manuscrito.]

Notas e comentários  99

súbito colapso do orador apropriado.  Apesar de não ser impossível que Tolkien estivesse substituindo dois oradores que entraram em colapso, com cinco a dez anos de intervalo, isso parece um abuso de credibilidade. Porém, como não há evidências de que essa versão da palestra tenha sido apresentada, a  frase de abertura pode ter sido simplesmente transcrita, sem edição, da versão anterior.

102

conquistado a posição.  Uma expressão militar, referente à captura de um baluarte inimigo, não à tomada de uma postura política ou filosófica numa  discussão.

104

contos estranhos.  Este [ Weird Tales ] era o título de uma revista americana de  pulp fiction  de fantasia. A primeira publicação foi em 1923, mas ela não teve ampla circulação na Inglaterra. A alusão de Tolkien (se se tratar de uma alusão) foi mais provavelmente a Weird Tales , coleção de histórias escritas por E. T. A. Hoffmann, traduzidas do alemão por J. T. Bealby e publicadas na Inglaterra em 1884. Gostaria que nos tivesse restado mais disso – algo do mesmo tipo que pertenceu aos ingleses. Esta afirmação, que a biografia de Humphrey Carpenter equivocadamente associa ao tempo de formando de Tolkien, em Oxford, não aparece no rascunho manuscrito de 1914-15, escrito quando ele ainda era  estudante e ainda não tinha ido para a guerra. Portanto, o contexto é diferente daquele da palestra original, com que Carpenter relacionou a afirmação, e por isso mesmo deve ser associada com a ideia de Tolkien de uma “mitologia para a  Inglaterra”. A observação foi a reação de Tolkien ao movimento de mito e nacionalismo que se espalhou pela Europa ocidental e as ilhas ao longo do século XIX e no começo do século XX, que foi detido pela guerra de 1914. Desse movimento pré-guerra provieram os Kinderund Hausmärchen , de  Wilhelm Grimm, a Deutsche Mythologie , de Jacob Grimm, os  Myths and  Folklore of Ireland , de Jeremiah Curtin, a Norske Folkeeventyr , de Moe e  Asbjørnsen, a tradução do Mabinogion galês, por Lady Guest, adicionalmente ao  Antigo Kalevala   (1835) e ao Kalevala   expandido (1849) de Elias Lönnrot e grande número de outras coleções de mitos e folclore.

107

tradição não mais compreendida.  No século XIX e no começo do século XX, a  visão do mito galês, tal como visto no  Mabinogion, era a de um conceito outrora  considerado coerente que estava por trás das histórias. Ao longo do tempo, ele fora incompreendido e distorcido, em parte devido à supervenção do

cristianismo, em parte devido à pouca familiaridade dos redatores cristãos com as histórias histórias origin orig inai ais. s.

catá cat á logo dos he heróis róis da corte de Artur Art ur na hist história ória de Kilhw Kilhwch ch e Olwen Olwen..  A Lista  da Corte de Artur é uma “listagem” de cerca de 260 nomes, alguns históricos, outros lendários, alguns alegadamente de parentes de Artur, outros obviamente fantasiosos, como Clust mab Clustfeinad [Orelha filho do Ouvinte] e Drem mab Dremhidydd [Visão filho do Vidente]. A recitação teria sido um tour de force  para o bardo, assim como uma evocação para inúmeras outras histórias não contadas.  Yspadd  Ys paddade adenn Penkawr. Penkawr. Ys Y s paddade paddadenn [Gigant [ Gigantee Chef C hefee / Principal] rincipal] é pai de Olwen, Olwen, noiva pretendida de Kilhwch, e as tarefas que ele designa não se destinam a testar o amante pretendente, mas sim a matá-lo. O personagem contribuiu bastante com Thingol, pai de Lúthien, que encarregou Beren da tarefa de resgatar uma  Silmaril da Coroa de Ferro de Morgoth, esperando que ele morresse na  tentativa.

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senso de cor [...] revelado nos cont cont os célticos. célticos. A mudança de grafia [no original inglês] de Celtic , no ensaio manuscrito, para Keltic , na revisão datilografada, é evidente, mas sem explicação. Ambas as grafias são reconhecidas em dicionários modernos, provavelmente devido ao fato de a palavra ter ingressado duas vezes na  língua inglesa, uma através do francês, oriunda do latim, outra através do alemão, vinda do grego. A grafia com C vem do latim Celtae , e entrou no inglês no século XVII através do francês Celtes . A grafia com K vem da forma original Keltoi , o nome dado pelos gregos a tribos ao longo dos rios Danúbio e Ródano, e de seu uso pelos filólogos alemães do século XIX. Fui alertada por Edmund  Weiner, coaut coautor com Pet Peter Gilliver Gilliver e Jeremy Mars Marshall hall de The Ring of Words: Tolkien and the Oxford English Dictionary [O anel de palavras: Tolkien e o Oxford English Dictionary ],], de que nessa época, Tolkien “passava intensamente por uma fase – no glossário qenya o é usado em toda parte, e mais tarde ele muda para em élfico” (comunicação pessoal).

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como como diz Franc Fra ncis is Thompson, Thompson, “ninguém “ninguém v olt oltaa rá a cont cont emplar emplar”” . Francis Thompson (1859-1907) foi um poeta católico inglês, mais conhecido por “The Hound of Heaven” [O cão do céu], que Tolkien admirava. Os versos reproduzidos aqui são dos parágrafos finais de “Paganism Old and New: The  Att  Attempt empted ed Reviv Revival al of the Pagan spirit spir it,, wit with its its Tremend Tremendous ous Power Power of a Past, Though a Dead Past” [Paganismo antigo e novo: a tentativa de renascimento do espírito pagão, com seu tremendo poder de um passado, todavia um passado morto], publicado na coleção de Thompson:  A Renega Re negade de Poet  Poet   [Um poeta  desertor]. Christopher Tolkien comenta numa nota, em The Book of Lost Tales,   [O livro dos contos perdidos, Primeira parte], que Tolkien “adquiriu Part One  [O as obras de Francis Thompson em 1913 e 1914” ( Lost Lost Tales Tale s I , 29).

“nostalgie de la boue”.  Literalmente, “saudade da lama”. Metaforicamente, a  frase descreve o desejo, exemplificado pela atração romântica pelo primitivo, de atribuir valores espirituais superiores a povos e culturas considerados inferiores a nós. Essa postura estava difundida no final do século XIX e começo do século  XX. Foi Foi iniciad iniciadaa por antiquários, antiquários, est es timulada imulada pelas descobertas descobertas dos arqueólogos arqueólog os e alimentada pela pesquisa antropológica da mitologia e da filologia comparadas. Tudo isso incentivou a que se encontrassem valores no arcaico e no primitivo por seu próprio mérito. A palavra “folclore”*, com sua pressuposição condescendente de que o “folk” [povo] são os outros, menos educados do que os que usam o termo, ilustra essa mentalidade. a voz de Ahti nos ruídos do mar.  Ver a nota sobre “Ahti” que se segue à versão manuscrita. 120

mene menest strel rel finlandês finlandês a plaudindo plaudindo a própria profiss profissãã o.  Elogiando sua própria  profissão, louvando-a [no original: “cracking up his own profession”]. Tolkien usa crack   (derivado do médio inglês crak , “conversa em voz alta, fala de fanfarrão”) como verbo na expressão dialetal “to crack up”, significando “louvar, elogiar ( uma uma pessoa pess oa ou coisa)”. cois a)”. OED**, OED**, definiç definição ão 8.

* Em inglês, folklore , de folk  (povo)  (povo) + lore  (saber).  ( saber). (N. ( N. do do T.) ** Oxford English Dictionary  (N.  (N. do T.)

Tolkien, o Kalevala e  “A história de Kullervo”    história de Kullervo  foi um passo essencial no caminho de Tolkien da adaptação à  invenção, que resultou no “Silmarillion”. Foi o precursor e a inspiração de seu épico trágico de Túrin Turambar, um dos três “Grandes Contos” da mitologia fictícia da  Terra-média. Sem a história para inserir na sequência, teríamos apenas o começo (o Kalevala ) e o fim ( Túrin) do process pr ocesso, o, mas não a parte do meio, meio, essenc ess encial. ial.  A declaração declaração de Humphrey Humphrey Carpen Car pentter em  J. R. R. Tolkien: uma biografia , de que episódios do conto de Túrin Tura mbar, de Tolkien, “foram conscientemente inspirados na história de Kullervo, no Kalevala ” (p. 109) está correta. Parece, porém, conflitar com sua ideia, expressa no mesmo parágrafo, de que as influências do Kalevala  na   na história de Túrin foram “apenas superficiais” (id., p. 109). Essa ideia, assim como seu engano a  respeito do comentário de Tolkien sobre “algo do mesmo tipo” (ver nota, p. 128), é bastante equivocada. Longe de constituir uma influência superficial sobre Túrin, a  história de Kullervo do Kalevala  teve  teve um efeito profundo e foi raiz e fonte da história, se bem que filtrada através da adaptação do próprio Tolkien (desconhecida na época). A  biografia de Carpenter foi publicada em 1977, mesmo ano da edição do Silmarillion por Christopher Tolkien, que ofereceu aos leitores uma primeira visão da saga de Túrin e possibilitou que a comparassem com a história de Kullervo, do Kalevala . Um dos primeiros estudiosos* que se valeram da comparação foi Randel Helms. Seu livro Tolkien and the  Silmarils   [Tolkien e os Silmarils], de 1981, sugeria que a  história do Kalevala  “é  “é um conto que pede para ser transformado”. Mas, sem acesso a  A História de Kullervo, Helms só podia enxergar Tolkien “aprendendo a se livrar de uma  influência, a transformar uma fonte”, do “lascivo e homicida” Kullervo, do Kalevala  (Helms, p. 6), ao cativante mas obstinado e cabeçudo Túrin Turambar, de seu próprio legendário. Assim, o interesse por Kullervo como fonte cresceu pouco a pouco. O comentário crítico passou para a história não publicada, passando direto do Kalevala  ao Silmarillion . O resultado previsível foi que até um eminente estudioso de Tolkien, Tom Shippey, admitiu que “o contorno básico do conto (de Túrin) deve muito à ‘História de Kullervo’, do Kalevala ” (The Road to Middle-earth  [A estrada para a Terra-média], p. 297), ao observar as semelhanças com a família arruinada, a criação adotiva, o incesto com uma irmã, o diálogo com a espada, e para por aí. O ritmo aumentou na passagem do século XX para o XXI. Charles Noad admitiu que, “na medida em que Kullervo serviu de germe para Túrin, esse foi, em certo sentido, o começo do legendarium, mas só como modelo de obras futuras” ( Tolkien’s  legendarium  [O Legendário de Tolkien], p. 35). Dada a falta de outras evidências, isso foi, forçosamente, tudo o que os estudiosos puderam concluir. Richard West,

concordando de modo geral com Carpenter e Helms, observou que “a história de Túrin não permaneceu como uma recontagem da história de Kullervo”, e acrescentou que, “se tivéssemos a versão mais primitiva, sem dúvida veríamos que Tolkien começou daquele modo, como ele disse, mas em algum ponto mudou para contar uma história nova na  antiga tradição” (id., ibid., 238). Em artigo posterior, “Identifying England’s Lönnrot” [Identificando o Lönnrot da Inglaterra] ( Tolkien Studies   I, 2004, pp. 69-84), Anne Petty comparou Tolkien a Elias Lönnrot, o compilador do Kalevala , chamando a  atenção para o modo como ambos os criadores de mitos se basearam em fontes anteriores, organizando e escrevendo da sua própria maneira os elementos das histórias. s fontes de Lönnrot foram verdadeiros cantadores de runos, bem como antigos colecionadores de folclore, e as de Tolkien se limitavam (até onde se sabia) aos bardos, escribas e tradutores inventados no interior de sua ficção. Helms e Shippey, West e Petry  não tinham acesso à história transicional, extramitológica, e ao personagem transicional, que contribuíram de modo substancial para a transformação. Embora a publicação das Cartas de J. R. R. Tolkien , em 1981, nos tenha trazido mais informações, trouxe poucos esclarecimentos, visto que as cartas passavam sinais confusos, ou pelo menos demonstravam os sentimentos confusos de Tolkien a respeito da importância relativa do Kalevala   para a sua mitologia. Ao negar que, como “Os Filhos de Húrin”, o conto de Kullervo foi “inteiramente modificado, exceto no final trágico” ( Cartas , p. 345), provavelmente influenciou a avaliação de Carpenter: “apenas superficiais”. Mas, embora seja compreensível que Tolkien quisesse privilegiar a própria  invenção e estabelecer a independência da fonte de sua história, outras referências mais positivas ao Kalevala   em suas cartas dão uma impressão diferente. A mitologia “muito [o] influenciou” (144); o idioma era como “um vinho estupendo” (214); o “finlandês quase arruinou [seu H. Mods.]” (87); o Kalevala   “deu o pontapé inicial na história” (214); foi “o germe original do Silmarillion” (87). Não há dúvida de que Túrin Turambar é um personagem plenamente realizado por si só, muito mais rico e mais bem desenvolvido do que o Kullervo do Kalevala   e situado em um contexto inteiramente diferente. Desse ponto de vista, pode-se dizer que o conto foi “inteiramente modificado”. Mas foi omitido um passo essencial: a figura de Kullervo passou por uma etapa formativa  intermediária entre os dois. “A história de Kullervo” é o elo faltante da cadeia de transmissão. É a ponte pela qual Tolkien atravessou da Terra dos Heróis para a Terramédia. Como fez essa travessia e o que levou consigo, estes são os temas da minha  discussão. Tolkien leu o Kalevala   pela primeira vez na tradução inglesa de W. F. Kirby, em 1911, quando estava na King Edward’s School, em Birmingham. Apesar de a obra  propriamente dita ter causado nele forte impressão, a tradução de Kirby provocou uma  reação mista. Tolkien se referiu a ela como “a fraca tradução de Kirby” ( Cartas , p. 206), porém observou que, sob alguns aspectos, era “mais engraçada do que o original” (id., ibid., p. 88). Ambos os pontos de vista podem tê-lo motivado a tomar emprestado da  biblioteca do Exeter College, em novembro de 1911, um exemplar de  A Finnish

Grammar , de Eliot, um esforço para aprender finlandês o suficiente para ler o Kalevala  no original. Apesar de tanto Carpenter (Bodleian Library MS Tolkien B 64/6, folha 1; Biografia , p. 82) como Scull e Hammond ( Chronology , p. 55; Guide , p. 440) datarem  A história de Kullervo em 1914, de acordo com o relato do próprio Tolkien foi em algum momento de 1912 que ele começou o projeto. Em uma carta de 1955 para W. H. Auden ele menciona sua tentativa de “reorganizar algumas partes do Kalevala , em especial o conto de Kullervo, o infeliz, em uma forma de minha própria autoria” no “período do bacharelado [ Hon. Mods.] [...] Digamos de 1912 a 1913” ( Cartas , p. 206).  A memória de Tolkien para datas nem sempre é confiável. Veja-se a sua datação de O Senhor dos Anéis   “entre os anos de 1936 e 1949” ( O Senhor dos Anéis , Prefácio, xiii). O próprio Hobbit   só foi publicado em setembro de 1937, e O Senhor dos Anéis  – continuação daquele, de início chamado de “novo ‘ Hobbit ’” – só foi mencionado em dezembro daquele ano. A carta para Auden, citando 1912 a 1913, foi escrita perto de quarenta e três anos depois do “período” a que se referia. Ainda assim, as duas referências a “Hon. Mods.” (Honour Moderations – um conjunto de textos escritos que constitui o primeiro de dois exames prestados por um candidato à graduação) são explícitas e identificam uma fase e um tempo específicos na educação de Tolkien. Ele prestou suas Honour Moderations no final de fevereiro de 1913 ( Biografia , p. 62). O “período” de Hon. Mods . seria, assim, anterior a isso, o mais tardar, janeiro de 1913, momento em que também estava cortejando novamente Edith e tentando convencê-la a se casar com ele, e, mais provavelmente, também os últimos meses do ano precedente, 1912. Naquela época, supõe-se que Tolkien também estava iniciando as primeiras etapas de invenção do qenya (Carl Hostetter, comunicação pessoal). Alguns dos nomes inventados da história, que imitavam nomes finlandeses na forma e na fonologia, também apresentam notável semelhança com o primitivo vocabulário qenya. Tal convergência de interesses extracurriculares – aprender sozinho o finlandês, mesmo que sem sucesso, “reorganizar” o conto de Kullervo e inventar o qenya – certamente seria suficiente para  explicar a confissão de Tolkien, na carta citada, para Auden: “cheguei muito perto de ter minha bolsa de estudos tirada de mim, se não expulso” ( Cartas , p. 214). Não obstante, essa primeira união prática de “lit. e líng.” incorporou o princípio que Tolkien passaria  o resto da vida defendendo, sua crença solidamente sustentada de que “mitologia é língua, e língua é mitologia” ( Tolkien On Fairy-Stories , p. 181), de que as duas coisas não são polos contrários, mas sim lados opostos da mesma moeda. Esse foi um período de sua vida rico em descobertas, que abasteceram e alimentaram umas às outras. Muito tempo depois, ele escreveu a um leitor de O Senhor dos Anéis : “Assim que a Guerra de 1914 explodiu sobre mim, fiz a descoberta de que as ‘lendas’ dependem do idioma ao qual pertencem. Mas um idioma vivo depende igualmente das ‘lendas’ que ele transmite pela tradição” ( Cartas , p. 222). Tolkien acabou passando nas Hon. Mods ., porém com uma Segunda, e não com a Primeira esperada. Em consequência, não perdeu a bolsa de estudos e, felizmente, não foi expulso, apesar de ter sido persuadido a mudar de Clássicos para Língua e Literatura Inglesa. No longo prazo, foram “lit. e líng.” que

triunfaram, pois o Kalevala   e o finlandês geraram o qenya e  A história de Kullervo, o Kullervo  de Tolkien, conduziu ao seu Túrin, ao “Silmarillion”, e o “Silmarillion” conduziu-o, através do Hobbit , ao Senhor dos Anéis .  A datação do manuscrito, feita por Humphrey Carpenter, em 1914, provavelmente se baseia na afirmativa de Tolkien, na carta escrita a Edith de 1914, de que ele estava  “tentando transformar uma das histórias [do Kalevala ] – que é realmente uma história  muito grande e muitíssimo trágica – em um conto um pouco na linha dos romances de Morris, com trechos de poesia no meio” ( Cartas , p. 7). Mas é difícil determinar a  atividade de uma centelha criativa. Quando e onde e como começa o impulso para contar uma história? No momento em que se pensa “posso fazer isso” enquanto se lê o texto de outra pessoa? Com o acender de uma lâmpada mental no meio da noite? Uma anotação no verso de um envelope? Uma frase rabiscada num guardanapo? Tolkien reconheceu a  natureza quotidiana da inspiração, ao escrever, anos mais tarde (1956): “Acredito que boa parte desse tipo de trabalho ocorre em outros níveis (dizer inferiores, mais profundos ou mais elevados introduz uma falsa gradação), quando alguém está  desejando bom dia ou mesmo ‘dormindo’” ( Cartas , p. 222). No caso de  A história de  Kullervo (ao contrário da abertura do Hobbit , que, pelo relato do próprio Tolkien, foi escrita nas costas de uma prova), provavelmente jamais saberemos com certeza. Considerando algum momento, talvez no final de 1912, como data inicial mais antiga, e o ano de 1914, de Carpenter, como terminus ad quem, podemos considerar  A história de Kullervo como uma obra de um escritor principiante. Qualquer que fosse a  intenção imediata de Tolkien com relação à história, e qualquer que seja sua contribuição para a obra posterior, ela é mais bem compreendida, em retrospecto, como peça de ensaio de alguém que está aprendendo seu ofício e imitando conscientemente um material  já existente. Como Carpenter ressalta, e como Tolkien admitiu, o estilo tendia muito a   William Morris, em especial a The House of the Wulfings   [A casa dos Wulfings], que é, por sua vez, uma mistura estilística em que a prosa narrativa com frequência dá lugar a  “trechos” de fala poética. Assim como seu modelo, a história de Tolkien é deliberadamente antiquada, repleta de inversões poéticas – verbos antes de substantivos –, arcaísmos – “hath” por “has”, “doth” por “does”, “him thought” em vez de “he thought”, “entreated” no lugar de “treated” – e também de interpolações, cada vez mais longas, de versos ditos por vários personagens. Boa parte desse estilo foi transferida para as primeiras histórias da mitologia de Tolkien, como “The Cottage of Lost Play” [O chalé da brincadeira perdida], em The Book of Lost Tales, Part Two  [O livro dos contos perdidos, Parte 2], e pode ter influenciado a fala rítmica e cantada de Tom Bombadil. Quando inserimos esse período no arco total da vida criativa de Tolkien, emerge um padrão de etapas sucessivas de desenvolvimento. Todas elas revelam os mesmos interesses e métodos, mas cada uma tem seu próprio caráter. É importante saber que  A história de Kullervo foi escrita por um homem muito jovem: Tolkien tinha cerca de vinte anos de idade quando, provavelmente, a iniciou, e no máximo vinte e dois anos quando a 

interrompeu; no caso de O Senhor dos Anéis , ele estava na meia-idade, no quinto e sexto decênio da vida; e ao escrever seu último conto, Ferreiro de Bosque Grande   (19641967), tinha setenta e poucos anos. Um arco semelhante de mudanças ao longo do tempo marca as revisões do material do “Silmarillion” desde a fase mais antiga de “The Cottage of Lost Play” até o período médio do “Akallabêth”, de “The Notion Club Papers” [Os papéis do Notion Club] e da “Queda de Númenor”, às meditações tardias e profundamente filosóficas do “Athrabeth Finrod ah Andreth” e de “Laws and Customs mong the Eldar” [Leis e costumes entre os Eldar].  A história de Kullervo  pertence ao período anterior a “Silmarillion”. Existem indícios de que foi escrita antes de Tolkien prestar o serviço militar na França, em 1916, e três anos antes da explosão criativa de 1917-1918, após seu retorno desse país, que levou às mais antigas versões dos grandes contos. No entanto, apesar de lhe faltarem os marcadores de “The Shores of Faëry” [As margens da Terra-Fada] ou “The Voyage o Éarendel” [A viagem de Earendel] – dois poemas do mesmo período, os quais Tolkien, mais tarde, caracterizou como predecessores de sua mitologia –, ela deveria ainda assim ser creditada como precursora igualmente significativa da obra maior. Tolkien pode não ter tido em mente o “Silmarillion” quando escreveu  A história de Kullervo, mas certamente tinha A história de Kullervo na cabeça quando começou o “Silmarillion”. Essa  narrativa antiga foi essencial para o progresso de Tolkien como escritor. Ela contribuiu substancialmente para “Turambar and the Foalókë” [Turambar e o Foalókë], de 1917, e para versões posteriores dessa história, bem como para o “Tale of Tinúviel” [Conto de Tinúviel], de 1917, ele e as versões que se seguiram, nas quais ele incluiu, de modo um tanto surpreendente, um personagem significativo. Foi um eixo criativo que oscilou entre sua fonte no Kalevala  e o legendário do qual ele próprio foi fonte. O que havia nessa história em particular que tanto o atraiu e fez com que ele a  escrevesse não uma, mas várias vezes? Talvez pensando em sua orientação explicitamente pagã, “quando a magia ainda era recente”, John Garth considere-a “uma história estranha  para ter capturado a imaginação de um católico fervoroso” ( Tolkien and the Great War  [Tolkien e a Grande Guerra], p. 26). É evidente que Tolkien não a achou estranha  (“grande” e “trágica” foram os adjetivos que usou), e não parece ter sentido nenhum conflito com seu catolicismo, que, naquele momento, aparentemente, não era mesmo muito “fervoroso”. Carpenter menciona o fato de Tolkien ter admitido que seus primeiros tempos em Oxford “passaram-se ‘com praticamente nenhuma ou pouquíssima  prática religiosa’” ( Biografia , p. 58) e nota seus “lapsos do ano anterior” (id., ibid., p. 66). Relacionando a atração de Tolkien pela história de Kullervo com sua separação de Edith, imposta pelo tutor, Garth propõe que o apelo da história pode ter consistido “parcialmente na infusão de heroísmo rebelde, romance jovem e desespero” ( Tolkien and  the Great War , p.26). Sem desmerecer a relação estabelecida por Garth entre a história e o momento que Tolkien estava vivendo, parece possível que a história de Kullervo também tenha profunda ressonância nas circunstâncias de sua vida quando ainda muito  jovem. Quando Kullervo fala de si mesmo como “sob o céu [...] sem pai” e “sem ter mãe

desde o começo” (Kirby, v. 2, p. 101, versos 59-60), isso não pode ser desconsiderado, muito menos dois versos cancelados, duros e explícitos, transferidos literalmente do Kalevala   de Kirby, em que Kullervo lamenta sua sina para os “trechos de poesia” da  própria história de Tolkien: De pequeno perdi a mãe o pai Era jovem (fraco), perdi a mãe. (Tolkien MS B 64/6 Folha 11 verso) O fato de ele primeiro incluir e depois riscar essas linhas é significativo. Pode ser que fossem ao mesmo tempo próximas demais da tragédia de sua própria vida para serem confortadoras. Como Kullervo, Tolkien perdeu primeiro o pai e, depois, a mãe. Quando era pequeno (uma criança de quatro anos), seu pai morreu; quando era jovem (um menino de doze anos, mas certamente sentindo-se “fraco” com a perda), sua mãe faleceu súbita e inesperadamente de um diabetes não tratado. Vamos analisar a narrativa que Tolkien chamou de “muitíssimo trágica”. A  contenda entre irmãos leva ao assassinato de Kalervo, pai de Kullervo, por Untamo, tio deste, que devasta o lar de sua família e rapta a sua mãe, que não tem seu nome mencionado, sendo identificada no poema apenas como “uma garota que estava grávida” (Kirby, v. 2, p. 70, v. 71). Kullervo nasce no cativeiro, e ainda criança jura vingança  contra Untamo, o qual, após três tentativas de matar o menino precoce e de não conseguir fazê-lo trabalhar, vende-o como escravo ao ferreiro Ilmarinen. A esposa do ferreiro o manda conduzir o gado, mas, de maneira cruel e deliberada, coloca uma pedra  dentro de seu pão e o assa. Quando Kullervo corta o pão, seu punhal, única lembrança  do pai, bate na pedra, e a ponta se quebra. Sua vingança consiste em encantar ursos e lobos, fazendo com que assumam a forma de vacas, e levá-los ao terreiro na hora da  ordenha. Quando a esposa do ferreiro tenta ordenhar essas falsas vacas, elas a atacam e matam. Então Kullervo foge. Mas a Senhora Vestida de Azul da Floresta conta-lhe que sua família está viva, e ele decide então voltar para casa, mais uma vez, jurando matar Untamo. Desiste dessa vingança por causa de um encontro casual com uma garota, que ele seduz ou violenta (sobre isso, a história é ambígua). Quando revelam um ao outro sua ascendência, os dois descobrem que são irmão e irmã. Em desespero, a garota se lança numa cachoeira. Consumido pela culpa, Kullervo realiza sua vingança. Retorna à  herdade de Untamo para matá-lo e queimar todas as construções de sua fazenda. Depois pergunta à sua espada se ela o matará. A espada concorda, e Kullervo encontra enfim “a  morte que buscava” (Kirby, v. 2, p. 125, v. 341). Não estou sugerindo um cotejo entre Kullervo e Tolkien, nem afirmando que houve alguma intenção autobiográfica por parte de Tolkien. Os paralelos certamente existem, mas o padre Francis Morgan, tutor de Tolkien, não era um Untamo homicida  (apesar de ter separado John Ronald da garota que ele amava). Beatrice Suffield, a tia sob

os cuidados de quem Tolkien e o irmão ficaram, temporariamente, depois que sua mãe morreu, não era a maldosa e sádica esposa do ferreiro, apesar de Carpenter observar que “faltava-lhe [...] afeto” (Biografia , p. 33). Tolkien não era nem vaqueiro nem mago, apesar de ter se tornado escritor de fantasia, nem se empenhou em matar por vingança ou cometeu incesto. E, apesar de, ao contrário de Kullervo, não ter sido maltratado nem abusado, assim como o seu personagem ele não tinha controle sobre a própria vida. Inegavelmente, alguma coisa na história de Kullervo o tocou profundamente e o fez querer “reorganizar [...] o conto [...] em uma forma de [sua] própria autoria”. E essa  alguma coisa continuou viável à medida que seu legendário tomava forma. Garth, no entanto, tem razão em uma aspecto: é uma “história estranha”, como revela até mesmo uma sinopse superficial dela, uma desconcertante mistura de episódios frouxamente interligados, em que as pessoas fazem coisas inexplicáveis por razões inexplicáveis, ou pela razão errada, ou por nenhuma razão. Com exceção de Kullervo, os personagens são unidimensionais – o tio malvado, a mãe de criação cruel, a garota  afrontada. O próprio Kullervo, apesar de mais elaborado, é um enigma tanto para si quanto para aqueles que encontra em seu caminho. A história, porém, não é tão estranha  na versão de Tolkien, que cuidadosamente interliga causa e efeito, motivação e resultado. á está estabelecido certo modus operandi , o esforço de adaptar uma história tradicional ao seu próprio gosto, de preencher as lacunas de uma história existente e unir as pontas soltas. O exemplo mais conhecido é O Hobbit , em que o roubo cometido por Bilbo, de uma taça do tesouro do dragão, constitui uma reescrita difícil de perder (para quem leu o Beowulf   ) de um trecho problemático desse poema, cujo texto, visto que o manuscrito está  danificado, está repleto de buracos, com palavras, frases e versos inteiros faltando ou indecifráveis, o que torna todo o episódio um enigma insolúvel. No Beowulf    (versos 2.214-2.231), um homem não identificado, impelido por uma  estranha necessidade, se esgueira para dentro do covil do dragão e rouba uma taça. O dragão acorda, o que conduz ao confronto final, que termina com a morte de Beowulf. Falta muito material para sabermos mais sobre as circunstâncias. Apesar de ter negado qualquer intenção consciente, Tolkien preenche as lacunas e responde às perguntas numa  importante cena de O Hobbit . O ladrão desconhecido é Bilbo. Como precisa mostrar que é um “ladrão”, ele rouba a taça para provar sua bravura a Thorin e aos anões. Foge subindo pelo túnel, deixando atrás de si um Smaug colérico, que se vinga na Cidade do Lago. Tolkien fez algo muito parecido, porém de modo mais poético, em seus poemas Sigurd e Gudrún, corrigindo o emaranhado de antigas lendas nórdicas, islandesas e germânicas que constituem a história de Sigurd e dos Völsungs (por exemplo, inexplicavelmente, existem duas Brynhilds, sendo uma delas uma valquíria, e a outra, a  filha bastante humana do rei Buthli) e preenchendo as oito páginas extraviadas do manuscrito da Edda (para saber mais sobre isso, ver a discussão de Tom Shippey em seu excelente artigo-resenha sobre  A lenda de Sigurd e Gudrún, em Tolkien Studies , v. VII).

Retomemos agora o Kalevala  e  A história de Kullervo, e consideremos o que Tolkien resolveu manter, o que ele deixou de fora, o que mudou e como o fez em sua  mais precoce tentativa de reescrever um mito. Os itens principais incluem: 1. A família de Kullervo. 2. Sua irmã. 3. Sua personalidade. 4. Seu cão. 5. Suas armas. 6. Seu incesto. 7. Seu fim. Terminarei com uma breve consideração (breve porque será óbvia para quem tiver lido O Silmarillion) sobre o efeito que essa peça transicional teve sobre sua obra subsequente, contribuindo com episódios e personagens, aprofundando o nível emocional de seu legendário. Primeiro, observemos a família de Kullervo. Um dos pontos problemáticos da  história, no Kalevala , é que Kullervo tem duas famílias e fica órfão duas vezes. Sua  primeira família é destruída por Untamo, no ataque em que ele captura a mãe de Kullervo. A narrativa é clara nesse momento inicial da história. Conta que foi um massacre quase completo, deixando o menino recém-nascido sem lar, sem pai, sem parentes vivos, a não ser a mãe, que é feita escrava como ele e pouca ajuda ou apoio oferece. A maior parte dos leitores fica confusa quando, muito mais adiante, na história, surge uma segunda família, numa casa diferente, antes do incesto, mas depois de Kullervo matar a esposa do ferreiro. Nesse momento ele fica sabendo, para surpresa dele e do leitor, que sua família está viva. A justificativa temática para essa segunda aparição é que, com isso, Kullervo passa a ter outros parentes – outro pai, um irmão e uma irmã  recém-encontrados – cuja tarefa é lhe contar, em versos elaborados, que não se importam se ele viverá ou morrerá, reforçando assim os sentimentos de alienação e rejeição que Untamo e sua esposa já lhe tinham provocado. A função dessas personagens, no enredo, é fornecer a Kullervo uma irmã que ele jamais tinha visto, e assim preparar o palco para o incesto. De acordo com Domenico Comparetti, um dos primeiros estudiosos que escreveram sobre o Kalevala , a mistura de duas famílias é resultado do fato de Lönnrot combinar em uma só sequência canções que eram originalmente independentes entre si. Comparetti observou: “Kullervo encontrar sua família em casa depois que ela foi morta  por Untamo é uma contradição que revela a junção de diversos runos” (Comparetti, p. 148), runos que nem mesmo são das mesmas localidades e apresentam variantes

divergentes (id., p. 145). A confusão é a mesma que acontece na mistura das duas Brynhilds, na história dos Völsungs. Lönnrot pode ter feito malabarismos com seu material, mas tinha precedentes. Nessas versões mais primitivas, o nome do herói não é sempre Kullervo; na Íngria, é Turo ou Tuirikkinen; em Arcanjo e na Carélia, é Tuiretuinen (Comparetti, pp. 147-8). Não há evidência de que Tolkien tenha lido Comparetti, porém isso parece provável, dado seu fascínio pelo Kalevala , e sua  discussão, nas duas palestras acadêmicas, sobre o âmbito geográfico da coleta de Lönnrot muito provavelmente foi extraída de Comparetti. Mas foi o efeito do Kalevala   “tal e qual”, não a história de sua composição nem as suas partes componentes, o que tanto cativou Tolkien. Sua citação de George Dasent: “precisamos nos satisfazer com a sopa  que nos é apresentada, e não desejar ver os ossos do boi que foram cozinhados” ( The   Monsters and the Critics and Other Essays , p. 120) aplicava-se tanto à mitologia  finlandesa quanto aos contos de fadas. Tolkien ignorou os ossos, eliminando por completo a segunda família e dando à  primeira outros filhos, um irmão e uma irmã mais velhos, já existentes antes da investida  de Untamo. A mãe deles, outra vez grávida na época em que Untamo ataca, dá à luz gêmeos depois de ser raptada por Untamo. O menino, ela chama de Kullervo, ou “Cólera”, e a menina, de Wanōna, ou “Choro”. Os irmãos, antes e depois de Untamo, não têm nem idade aproximada nem se parecem no temperamento. Os mais velhos são hostis aos mais jovens, o que prepara o caminho para rejeitarem posteriormente Kullervo. Quando este é vendido como escravo, seu irmão e sua irmã mais velhos lhe dizem, em longas linhas de versos, que não sentirão saudades dele. Seu exílio o separa  geográfica e emocionalmente da mãe e da irmã, de forma que, quando reencontra   Wanōna, parece razoável que ele não a reconheça. Em segundo lugar, vejamos mais de perto a relação de Kullervo com a irmã. No Kalevala , eles não têm nenhuma relação. Com a combinação das duas famílias, ele a  encontra pela primeira vez por ocasião do incesto. Tolkien expande e complica  consideravelmente essa relação, estabelecendo a proximidade dos gêmeos na infância, enfatizando sua rejeição pelos irmãos mais velhos e a consequente dependência entre eles. Kullervo e Wanōna passam mais tempo um com o outro do que com qualquer outra  pessoa. São crianças “selvagens”, abandonadas, que vagueiam pelas matas, tendo por único amigo o cão de caça Musti, um cachorro com poderes sobrenaturais que age como companheiro e protetor. Quando Kullervo é vendido como escravo por Untamo, ele é seguido por Musti, mas isolado da família. Declara que não tem saudades de ninguém, exceto de Wanōna, porém, no exílio, esquece-a por completo, e não a reconhece quando voltam a se encontrar por acaso, com consequências fatais.Em terceiro lugar, observemos a personalidade e a aparência de Kullervo. Mais uma vez, no Kalevala , não é dada  nenhuma ou muito pouca informação sobre ele. Suas características, no épico finlandês, são a força precoce e a aptidão para a magia. Com apenas três dias de vida despedaça o berço a pontapés. Posto para embalar um bebê pouco depois, quebra os ossos da  criança, arranca-lhe os olhos e queima o berço. Além disso, ele é aparentemente

indestrutível. Untamo faz três tentativas de matá-lo, primeiro afogado, depois queimado e por fim enforcado, mas não tem êxito. Ele sobrevive ao afogamento e “mede o mar”, escapa de ser queimado e brinca nas cinzas, é encontrado na árvore do enforcamento entalhando figuras na casca. Posto para limpar um campo, ele cria um deserto; quando o mandam construir uma cerca, faz um tapume impenetrável, sem entrada nem saída; quando lhe ordenam que debulhe cereal, ele o reduz a pó. Nenhuma explicação, nenhuma razão é dada para esse comportamento, exceto que foi balançado com demasiada força quando era bebê. Simplesmente, é assim que ele é. Não dá para levá-lo a  nenhum lugar. Muito estranhamente, ele também é bonito e um tanto elegante, descrito como tendo “belos cachos amarelos”, “meias tintas de azul” e “sapatos do melhor couro”. O Kullervo de Tolkien é igualmente forte, mas está longe de ser bonito ou elegante. É “moreno”, “desgracioso e aleijado”, de baixa estatura, “largo, mal-feito, e nodoso, descontrolado, e embrutecido”. No entanto, conseguimos aceitá-lo e até simpatizar com ele. A grande diferença entre o Kullervo de Tolkien e o do Kalevala  é que, enquanto suas ações são as mesmas (ambos fazem todas as coisas esquisitas que descrevi), o de Tolkien é claramente marcado e motivado pelo trauma vivido quando ainda criança. É marcado pelo assassinato do pai e se torna amargo por ser, juntamente com a mãe, escravizado e tratado com crueldade por Untamo. Fica deformado por falta de cuidado materno. Tolkien o retrata como taciturno, ressentido, irado e alienado, próximo só da irmã   Wanōna e do cão de caça Musti. “Não deixava o coração acalentar sentimentos ternos por sua gente lá longe.” Nutre rancores, é solitário, mantém-se isolado, um perpétuo forasteiro, uma dessas pessoas que estão eternamente à margem da sociedade, incapazes ou sem vontade de se integrar. Entre os muitos personagens de Tolkien, Kullervo se destaca pela complexidade emocional e psicológica, superada apenas por uma  complexidade equivalente ou maior em seu descendente literário direto, Túrin Turambar. Em quarto lugar, seu cão. Não há nenhum outro animal sobrenatural como o grande cão de caça Musti nessa parte do Kalevala , mas existe um cachorro negro chamado Musti (que significa, simplesmente, “Pretinho”, em finlandês), que, depois da  morte de toda a segunda família, segue Kullervo até a floresta, até o lugar onde ele se mata. Já o Musti de Tolkien é um personagem destacado da história, que desempenha  papel ativo em diversos episódios. Inicialmente, ele pertence a Kalervo. Por ocasião do ataque de Untamo, retorna à herdade e a encontra destruída, seu senhor, morto, e a  esposa dele, única sobrevivente, capturada. Ele a segue, mas permanece no ermo, onde se torna amigo e mentor dos dois filhos dela, Kullervo e Wan ōna, e se alia ao cão de Tuoni, Senhor da Morte. Aqui Tolkien recorre a uma convenção mitológica padrão, a ligação entre os cães, a morte e o mundo inferior. Apesar de Musti não ser o cão de Tuoni, pressagia, com a sua presença, a tragédia que está por vir. Mesmo não sendo do mundo inferior, Musti é descrito como “cão de feroz poderio e força e de grande sabedoria”. Ele muda de forma e pratica a magia, que ensina a Kullervo, instruindo-o em “coisas mais obscuras e apagadas e remotas [...] até anteriores aos seus dias de magia”.

Musti se torna uma espécie de figura tutelar de Kullervo. Dá a ele talismãs mágicos, três fios de sua pelagem, com os quais este poderá chamá-lo ou invocá-lo em caso de correr perigo. Esses pelos salvam Kullervo das três tentativas que Untamo faz para matálo, explicitamente na primeira (afogamento), por implicação na segunda (queima) e outra  vez explicitamente na terceira (enforcamento), onde a narrativa não deixa dúvida de que “esta magia que salvara a vida de Kullervo fora o último pelo de Musti”. A magia de Musti “passa a acompanhar” Kullervo daí em diante. Musti o segue quando ele é vendido como escravo e ensina-lhe a magia que mais tarde permite-lhe usar os lobos e os ursos para matar a esposa do ferreiro. Nas notas de Tolkien para o final não concluído da  história, Musti ressurge duas vezes, uma quando é morto no ataque de Kullervo à  herdade de Untamo e na cena do suicídio, quando Kullervo tropeça no “corpo de Musti morto”. Em quinto lugar, suas armas. Assim como seu equivalente no Kalevala , o Kullervo de Tolkien tem um punhal e uma espada. No Kalevala , ele lamenta a quebra de seu punhal, “este ferro [...] herança de meu pai” (Runo XXXIII, linhas 92-93), e explica à  esposa do ferreiro, enquanto ela está sendo mordida pelos ursos e lobos, que aquele é seu castigo por tê-lo feito quebrar o punhal. Na história de Tolkien, o punhal tem um passado mais extenso. Ele é dado ao bebê Kullervo por sua mãe, quando, pela primeira  vez, ela lhe fala da Morte de Kalervo (com maiúsculas, como se fosse uma história por si só). Ele é descrito como “um grande punhal de curioso feitio” que sua mãe “apanhara da  parede” quando Untamo atacou a herdade, mas não tivera a oportunidade de usar, tão rápido tinha sido o ataque. O punhal tem um nome, Sikki, e, junto com o pelo de Musti, é usado para livrar Kullervo de ser enforcado. É com esse punhal que o menino entalha  figuras na árvore, lobos e ursos e um enorme cão de caça, assim como um grande peixe, que se diz que era “outrora a marca de Kalervo”. A quebra do punhal por causa da pedra  colocada no pão faz com que Kullervo lamente a perda em versos, dirigindo-se ao punhal pelo nome, chamando-o de seu único companheiro e de “tu, ferro de Kalervo”. A espada  surge no final da história, depois de Kullervo ter reencontrado Wan ōna e ter ocorrido a  tragédia que os envolveu. Ele leva a espada para matar Untamo e faz dela o instrumento de sua própria morte. Em sexto lugar, o incesto, que é o clímax emocional da história. Como já  observado, no Kalevala  esse episódio é uma combinação de runos diferentes do extremo leste da Finlândia, da Íngria, da Carélia e de Arcanjo, e com o protagonismo de diferentes heróis, com nomes diferentes. Lönnrot aparou as arestas e padronizou o nome do herói para ficar de acordo com os runos existentes em sua compilação. Seu Kullervo, a caminho de casa, após pagar os impostos, aborda algumas donzelas e convida cada uma  delas para seu trenó. A terceira aceita. O encontro deles é breve, logo seguido de uma  troca de informações familiares que revelam o incesto e conduzem ao suicídio dela. A  cena é potencialmente trágica, mas tratada de forma tão rápida e concisa que quase acaba  antes de nos darmos conta dos fatos.

Tolkien elabora muito mais o evento, preparando-o cuidadosamente. Seu Kullervo, após ter encomendado o assassinato da esposa do ferreiro, e em fuga para acertar as contas com Untamo, encontra a misteriosa Senhora da Floresta, que lhe indica o caminho a seguir e o aconselha a evitar a montanha coberta de bosques, onde “o mal o encontrará”. É claro que ele ignora esse conselho e vai “beber a luz do sol” na montanha. li, numa clareira nas alturas, vê uma donzela que lhe conta que está “perdida na floresta  maligna”. À vista dela, ele se esquece da missão e pede que ela seja sua “companheira”. Ela tem medo e lhe diz: “a morte anda contigo”, “teu aspecto pouco combina com donzelas”. Furioso por ela ter zombado de sua feiura e por ter sido rejeitado, Kullervo a  persegue através do bosque e a leva consigo. Apesar de a donzela rejeitar inicialmente suas propostas, não resiste por muito tempo. Os dois acabam vivendo juntos no ermo, aparentemente felizes, até o dia fatal em que ela lhe pede que conte quem são seus parentes. Quando Kullervo revela que é filho de Kalervo, a moça se dá conta de que ela e seu amante são irmãos. Na versão de Tolkien, esse é um dos momentos mais dramáticos da  história, pois ele constrói a cena de forma que o leitor descubra a verdade antes de Kullervo. A donzela não diz nada sobre sua descoberta. Permanece de pé, fitando-o “com a mão estendida”, dizendo que seu caminho a conduziu por vias “Fundas, fundas para a  treva / Fundas, fundas para a pena / Ao pesar e ao horror [...] / Em terror atro caminho / Desço a Tuoni junto ao Rio”. Fugindo de Kullervo “como um tremente raio luminoso à luz da aurora”, ela chega à cascata e se lança sobre ela. Mas isso é tudo que nos é revelado sobre a moça. Apesar de ela contar sua história, não revela sua ascendência. Nem Tolkien a revela explicitamente. Deixa que seu suicídio e a lembrança despertada em Kullervo, seu “antigo conhecimento” da fala dela e de seus modos, e a violência da reação dela intensifiquem a tragédia, sem explicá-la. Só no final da história Kullervo descobre quem ela era e o que ele fez. Em sétimo e último lugar, consideremos o final. Na versão de Lönnrot, confusa e incongruente, Kullervo volta para a sua segunda família, depois para a guerra contra  Untamo e depois para casa, quando descobre que toda a sua segunda família está morta. Decide então pôr fim à sua vida, e pergunta à espada se ela está disposta a matá-lo. Ela  aceita e realiza o seu pedido. Kullervo morre, ainda malquisto, isolado e sozinho. Tolkien deixou sua versão inacabada, interrompendo-a no instante em que Kullervo, horrorizado pelo surgimento da suspeita de que a donzela seja sua irmã, e tendo presenciando o suicídio dela, apanha a espada e se precipita cegamente na escuridão. Mas Tolkien tinha o final em mente e uma clara ideia de como queria construí-lo. Em notas rabiscadas do rascunho, Kullervo volta ao lar de Untamo, mata-o e devasta tudo. Depois é visitado em sonhos pelo fantasma da mãe, que lhe conta ter encontrado a filha no mundo inferior e confirma que é ela a donzela que se matou. Parece claro que Tolkien pretendia que fosse esse o momento adiado de discatástrofe**, no qual, diante da  informação, até então não revelada, de que ele havia violado a irmã, não existe a  possibilidade de ocorrer uma reviravolta favorável. Despertando aterrorizado desse

excesso de vergonha e pesar, o angustiado Kullervo se precipita para a floresta, gemendo “Kivutar” (outro nome da irmã), e chega à clareira onde primeiro se encontraram. É ali que pergunta à espada se esta o matará. Ela mostra-se mais do que disposta a fazer isso, e ele morre na ponta da espada. Tanto a reelaboração da fonte por Tolkien quanto a relação de sua história com sua  obra posterior são evidentes. Seu Kullervo é a articulação entre o Kullervo do Kalevala , um tanto esquisito, e o trágico e confuso Túrin Turambar do “Silmarillion”, fornecendo a Túrin todo um trauma familiar, toda ira e todo ressentimento acumulados, todas as emoções negativas que alimentam as decisões desastrosas desse personagem e o tornam tão memorável. O desajustado excêntrico do Kalevala   torna-se o forasteiro furioso, alienado e rancoroso de  A história de Kullervo, que por sua vez evolui para o vulto mais pleno, psicologicamente mais equilibrado e autoisolado de Túrin Turambar, claramente aparentado com seus antecessores, mas que recebe um mundo mais coerente e uma  estrutura mais clara para desempenhar sua tragédia. Tolkien uniformiza a desajeitada estrutura bifamiliar em uma só família, com diversos irmãos, e esta, por sua vez, se torna a família de Túrin, dilacerada pela guerra e desastrosamente reunida. A irmã desconhecida e inominada do Kalevala   se torna   Wanōna (“Choro”) em  A história de Kullervo, gêmea e companheira de agruras do irmão. Wanōna, por sua vez, contribui ao mesmo tempo para a irmã Lalaith (“Riso”) de Túrin, que ele muito ama e de quem sente falta, e para Niënor (“Lamentação”), que ele  jamais vê e que se torna Níniel (“Donzela das Lágrimas”), a qual ele encontra e desposa, sem saber quem ela é. Todos esses sentidos são significativos, mas o de Wan ōna  inconfundivelmente é precursor dos nomes da irmã / esposa de Túrin, nunca vista antes. Vale a pena notar que, no esboço de Tolkien para o final da história, seu Kullervo lamenta pela irmã, chamando-a de Kivutar (“Dor”). No Kalevala , Kivutar é a deusa da  Dor e do Sofrimento. Mesmo que Edith fosse claramente esposa, e não irmã, o romance adolescente e a subsequente separação forçada dos dois, e aquilo que Tolkien chamou de “os terríveis sofrimentos de nossas infâncias, dos quais resgatamos um ao outro” ( Cartas , p. 397), são fortes lembranças da solidão de Kullervo e Wan ōna quando crianças e da angústia dele quando ela o abandona com a sua morte. O punhal Sikki, de Kullervo, tudo o que ele tem do pai, encontra lugar proeminente na versão do “Narn i Hin Húrin” dos Contos inacabados , nos quais o punhal, “de curioso feitio”, se torna “[faca] feita pelos elfos”. A faca, que ali não é herança, e sim presente de aniversário, é dada pelo pai a Túrin quando ele completa oito anos de idade, e o pai a descreve como “lâmina cruel” ( Contos inacabados , p. 64). Túrin dá a faca ao criado Sador, mas depois sente falta dela e lamenta sua perda. Parece claro, porém, que a faca é uma ferramenta, não uma arma, ao contrário da espada cruel e agourenta que se torna morte para Kullervo, e suas múltiplas identidades, primeiro como nglachel, depois Gurthang e Mormegil, conferem a Túrin uma mesma identidade e um nome, e acabam por lhe tirar a vida. No entanto, como Richard West observou, Tolkien

desenvolveu a arma “muito além do que encontrou em sua fonte finlandesa”, transformando-a em “uma corporificação da triste sina que acomete o herói” ( Tolkien’s  legendarium , p. 239). Uma vez que a espada é a causa direta da morte do herói, vale a pena comparar os três casos, primeiro no Kalevala , depois em  A história de Kullervo  e por último na  história de Túrin, que a diferenciam de outras espadas pertencentes a outros heróis de Tolkien pelo fato de que ela fala e interage com o herói. Esta é a sua fala no Kalevala : Por que, já que assim desejas Não iria tragar tua carne Beber teu maligno sangue? Pois já comi carne pura  Bebi sangue de inocentes. Esta é a versão de A história de Kullervo que consta das notas de enredo de Tolkien:  A espada diz que, se teve prazer na morte de Untamo, tanto mais terá na morte de Kullervo, ainda mais malvado, que matara [sic] muitas pessoas inocentes, mesmo sua mãe; então, não vacilaria com K. Esta é a fala da espada a Túrin na versão do “Silmarillion”: Sim, beberei teu sangue de bom grado, para que eu possa esquecer o sangue de Beleg, meu dono, e o sangue de Brandir, morto injustamente. Matar-te-ei depressa. ( O Silmarillion, p. 288) Mesmo não havendo diferença significativa entre as três versões (apesar de a  segunda ser relatada, não dita diretamente), as duas últimas são mais próximas entre si do que cada uma delas o é da primeira. No lugar da “carne pura”, mais geral, e dos “inocentes” da fonte primária do Kalevala , nos outros dois trechos são citados nomes de pessoas que a espada matou. Na nota de Tolkien, o malvado Untamo é associado com o mais malvado Kullervo; no “Silmarillion”, o culpado Túrin é contrastado com os inocentes Beleg e Brandir. Ambas as espadas de Tolkien são mais críticas, têm mais conhecimento, mais personalidade e mais impacto dramático do que seu modelo no Kalevala . Vale a pena observar que, em seu ensaio “Sobre ‘O Kalevala’”, Tolkien descreveu a voz da espada de Kullervo como a de “um rufião cruel e cínico”, prenunciando os aspectos mais obscuros que mais tarde conferiu à sua própria espada, nglachel, na história de Túrin.

Um remanescente inesperado dessa história existente no material do “Silmarillion” é o episódio do retorno de Kullervo, quando ele exclama em voz alta o nome da irmã à  cascata onde ela se matou. Ele ressurge em “De Tuor e sua chegada a Gondolin” nos Contos inacabados , como um momento vívido, rapidamente vislumbrado, em que Tuor e Voronwë, nas quedas de Ivrin, ouvem “um grito no bosque” e veem “um homem alto, armado, trajado de negro, com uma longa espada desembainhada” exclamando com pesar, em voz alta, o nome: “Ivrin, Faelivrin!”. A explicação para o fato é mínima. “Não sabiam”, diz-se na narrativa, “que esse era Túrin, filho de Húrin”, e nunca mais “juntaram-se os caminhos desses parentes [Tuor e Túrin]” ( Contos inacabados , pp. 378). Curiosamente, a perda e a angústia de Túrin não são por causa de sua irmã / esposa  Níniel, como poderíamos supor, e sim por Finduilas, a donzela élfica que o ama e por cuja morte ele é de algum modo responsável. A inclusão desse momento na “História de Tuor” é um claro empréstimo do esboço registrado na nota de Tolkien, em que Kullervo, voltando à cascata onde ela se matou, chama em alta voz por “Kivutar”. Na  “História de Tuor”, o luto é testemunhado de fora por uma plateia que ignora as circunstâncias e, portanto, é incapaz de compreender a angústia e a perda. A cena é perturbadora, intencionalmente deslocada, um entrelaçamento de uma história com outra. O fato de ambas as histórias voltarem-se em direção à história ainda mais antiga é testemunho eloquente do domínio que o Kullervo de Tolkien tinha sobre sua  imaginação.  A revelação mais surpreendente é que Huan, o Cão, ajudante sobrenatural de Beren e Lúthien, não brotou totalmente formado da fronte de Tolkien, mas tem um claro precursor em Musti, talvez o mais importante acréscimo de Tolkien à sua fonte do Kalevala. Huan é, depois do próprio Túrin, o mais claro avatar transportado da história  mais antiga ao mundo do legendário. Animais falantes (e ajudantes) não são incomuns no mundo da Terra-média. A raposa (por mais que se trate de uma anomalia) no Livro I de A sociedade do Anel , o tordo falante e o corvo Roäc, filho de Carc, em O Hobbit , as águias, tanto em O Hobbit  quanto em O Senhor dos Anéis , o cachorro Garm, de  Mestre  Gil , são os exemplos mais significativos, a não ser, é claro, que consideremos dragões falantes, como Smaug e Glaurung, que têm precursores sólidos. Glaurung deriva  evidentemente do Fáfnir, da Edda poética , enquanto Smaug e o Chrysophylax, de Mestre  Gil , são exemplos cômicos, de tipo mais próximo do Dragão Relutante, de Kenneth Grahame, do que da mitologia islandesa. Garm pertence a essa mesma categoria  paródica. Musti é um pouco diferente. Ele é, em Tolkien, o melhor exemplo de determinado arquétipo de contos de fadas, o ajudante animal, um tipo que inclui o Gato de Botas, o loquaz cavalo Falada da “Menina dos Gansos”, dos Grimm, o Pássaro de Fogo da  história do Príncipe Ivan, o Pequeno Cavalo Corcunda e vários ursos e lobos que mudam de forma nos contos folclóricos nórdicos e islandeses. Na obra do próprio Tolkien, Beorn, de O Hobbit , chega perto, mas é de tipo mais próximo dos seres que mudam de forma das sagas do que dos animais dos contos de fadas e de seus próprios

animais, apesar de caminharem nas patas traseiras e servirem à mesa, não são ajudantes mágicos, e sim meros artistas de circo. Huan é um representante muito melhor do arquétipo. Ainda assim, ele não deriva imediatamente de seus precursores dos contos de fadas, mas descende em linha direta de Musti, de quem é herdeiro óbvio. Em ambas as histórias, o leal cão sobrenatural é um personagem poderoso por si só, e o cão é vítima  de sua própria lealdade, seguindo o herói até a morte em um violento episódio-clímax no final da narrativa.  A história de Kullervo, portanto, foi o estopim que “deu o pontapé inicial na  história”*** ( Cartas , p. 206), como Tolkien escreveu a Auden. Ele não estava  exagerando. Essa narrativa muito precoce, mesmo incompleta, inflamou sua imaginação e foi o primeiro prenúncio de alguns dos mais memoráveis vultos e momentos literários do “Silmarillion”. Além disso, não é demais conjecturar que, sem a primeira, poderíamos não ter a segunda, pelo menos na forma como a conhecemos. O órfão infeliz, a irmã desconhecida, o punhal herdado, a família rompida e as consequências psicológicas disso, o amor proibido entre jovens solitários, o desespero e a  autodestruição na ponta da espada, tudo se transfere para “A história dos filhos de Húrin”, não diretamente do Kalevala , mas filtrado através de  A história de Kullervo. gora podemos perceber de onde vieram esses elementos, como chegaram a ser o que são. O mais revelador, paradoxalmente, porque talvez seja o menos necessário, é o movimento de Musti para Huan – um vulto quase inalterado, salvo pelo nome. Parece claro que Tolkien achou Musti simplesmente bom demais para ser desperdiçado e o reutilizou. Da primitiva história inacabada ele passou para o contexto de conto de fadas posterior e mais plenamente realizado do romance de Beren e Lúthien.  A história de Kullervo foi a primeira tentativa de Tolkien de contar – e “reorganizar” durante o processo – um conto já existente. Como tal, ela ocupa um lugar importante em seu cânone. Trata-se, ademais, de um passo significativo no caminho sinuoso que vai da  imitação à invenção, uma peça de ensaio do menino órfão, estudante universitário, soldado de regresso, que amava o Kalevala , tinha muito de Kullervo e sentia a falta de “algo do mesmo estilo que pertenceu aos ingleses”. VERLYN FLIEGER 

* Para uma discussão geral sobre o tema, ver Randel Helms, Tolkien and the Silmarils . Boston, Houghton Mifflin Company, 1981; J. B. Hines, “What J.R.R. Tolkien Really  Did With the Sampo”  Mythlore   22.4 (# 86) (200): 69-85; B. Knapp, “A Jungian Reading of the Kalevala   500-1300: Finnish Shamanism – the Patriarchal Senex Figure” Parte 1.  Mythlore   8.3 (# 29) (1981): 25-28; Parte 2 “The Archetypal Shaman/Hero”  Mythlore   8.4 (# 30) (1982), 33-36; Parte 3 “The Anima Archetype”  Mythlore   9.1 (#

31) (1982): 35-36; Parte 4 “Conclusion”  Mythlore   9.2 (# 32) (1982): 38-41; Charles E. Noad, “On the Construction of ‘The Silmarillion’”, e Richard C. West, “Turin’s Ofermod ”, em Tolkien’s Legendarium: Essays on  The History of Middle-earth, Verlyn Flieger e Carl Hostetter (Orgs.), Westport, Connecticut, Greenwood Press, 2000; Tom Shippey, “Tolkien and the Appeal of the Pagan: Edda  and Kalevala ”, David Elton Gay, “J. R. R. Tolkien and the Kalevala ” e Richard C. West, “Setting the Rocket off in a  Story” em Tolkien and the Invention of Myth , Jane Chance (Org.), Lexington, University Press of Kentucky, 2004; Anne C. Petty, “Identifying England’s Lönnrot” ( Tolkien Studies  I, 2004, 69-84). ( N. da ed. orig.) ** Tolkien criou a palavra eucatástrofe  para designar o “Consolo do Final Feliz”, sinal do verdadeiro conto de fadas ( vide  “Sobre contos de fadas” em  Árvore e Folha , pág. 66). A  discatástrofe   (também um termo tolkieniano) foi definida por ele, no mesmo trecho, como o «pesar» e o «fracasso» que decorrem de uma (muitas vezes inesperada) reviravolta  negativa. (N. do T.) *** No original, a expressão é: “set the rocket off in story” [“lançou o foguete da  história”], o que explica a imagem do estopim. (N. do T.)

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Tolkien, J. R. R., 1892-1973.  A história de Kullervo [livro eletrônico] / de J. R. R. Tolkien ; editada por Verlyn Flieger ; tradução Ronald Eduard Kyrmse. – São Paulo : Editora WMF Martins Fontes, 2016. 1.72 Mb ; ePUB. Título original: The story of Kullervo ISBN 978-85-469-0087-9 1. Contos ingleses 2. Ficção fantástica 3. Ficção inglesa I. Título. 16-04233

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