A FICÇÃO CIENTÍFICA

May 20, 2018 | Author: Aberração | Category: Science Fiction, Science, Time, Languages, Philosophical Science
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A FICÇÃO CIENTÍFICA, IMAGINÁRIO DO SÉCULO XX Uma introdução ao gênero Ciro Flamarion Cardoso Este livro é dedicado a meus ex-alunos Edgard Leite Ferreira Neto, Daniel da Cunha Baptista e João Daniel Lima de Almeida, cada um deles simbolizando uma das turmas a que lecionei disciplinas relativas à ficção científica na Universidade Federal Fluminense.

1998

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ÍNDICE: Página: Preâmbulo 

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I. Definições da ficção científica 

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II. História sumária da literatura lit eratura de ficção científica 

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1. A proto-ficção proto- ficção científica 2. Um período fundador: do começo da carreira de Júlio Verne àquele da de H. G. Wells (1862-1901) (1862- 1901) 3. O início do século XX (1901-1926): a ficção científica nos veículos da cultura literária popular popu lar 4. Da autoconsciência à “idade de ouro” (1926 -1946) 5. O boom editorial e o início das incertezas (1946-1968) (1946- 1968) 6. New wave (1968-1982) 7. Cyberpunk  (1982-?) III. Outros domínios da ficção científica 

1. História em quadrinhos quadr inhos 2. Cinema 3. Rádio 4. Televisão IV. Alguns temas da ficção científica 

1. Em busca de um contexto 2. Utopias e distopias 3. Antecipação; passados e futuros alternativos 4. Inteligências artificiais 5. Outros mundos, outros seres

13 14 17 18 20 24 26 29

29 34 41 43 47

47 52 59 64 73

V. A ficção científica no Brasil 

83

Conclusão 

87

Bibliografia Bibliografia básica

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ÍNDICE: Página: Preâmbulo 

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I. Definições da ficção científica 

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II. História sumária da literatura lit eratura de ficção científica 

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1. A proto-ficção proto- ficção científica 2. Um período fundador: do começo da carreira de Júlio Verne àquele da de H. G. Wells (1862-1901) (1862- 1901) 3. O início do século XX (1901-1926): a ficção científica nos veículos da cultura literária popular popu lar 4. Da autoconsciência à “idade de ouro” (1926 -1946) 5. O boom editorial e o início das incertezas (1946-1968) (1946- 1968) 6. New wave (1968-1982) 7. Cyberpunk  (1982-?) III. Outros domínios da ficção científica 

1. História em quadrinhos quadr inhos 2. Cinema 3. Rádio 4. Televisão IV. Alguns temas da ficção científica 

1. Em busca de um contexto 2. Utopias e distopias 3. Antecipação; passados e futuros alternativos 4. Inteligências artificiais 5. Outros mundos, outros seres

13 14 17 18 20 24 26 29

29 34 41 43 47

47 52 59 64 73

V. A ficção científica no Brasil 

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Conclusão 

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Bibliografia Bibliografia básica

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Preâmbulo Este texto tem duas origens diferentes. A primeira remonta a 1951, quando, aos nove anos de idade, comecei a ir ao cinema sozinho e interessei-me pelos filmes de ficção científica. Para minha sorte, a década de 1950 coincidiu com o primeiro boom cinematográfico desse gênero, pelo qual eu sempre encontrava uma oferta razoável de filmes ao longo dos meses e anos daquela década - e das seguintes, já que minha ligação com a ficção científica nunca desapareceu. E não somente no tocante ao cinema: os filmes puxaram a literatura, as histórias em quadrinhos, a televisão. Esta última em menor medida, pois nunca me convenceu de verdade o tipo de produtos que tem a oferecer, mesmo em meu gênero favorito de cultura popular, pelo menos em se tratando da TV comercial e privada de países como os Estados Unidos. Com o passar dos anos, comecei a comprar livros e revistas acerca da ficção científica, a adentrar-me aos poucos - sendo esta, por muito tempo, uma atividade exclusivamente de lazer, praticada em meu tempo livre - no terreno da crítica do que se produzia, em especial na literatura e no cinema. A segunda origem do livro é minha atividade docente na Universidade Federal Fluminense. Em três ocasiões, duas na Graduação e uma na Pós-graduação do Departamento de História, lecionei disciplina acerca da ficção científica e das formas possíveis de efetuar análises dela em seus diferentes veículos que fossem úteis para o estudo de diversos aspectos dos séculos XIX e XX. A ambição de transformar as aulas em um pequeno volume decorre de ter constatado que, embora existam obras introdutórias ao gênero em português, ou se acham esgotadas há muito tempo, ou estão já muito carentes de atualização, ou ainda, não efetuam uma cobertura que me satisfaça. Algumas são descritivas demais, pouco analíticas, outras concedem privilégio excessivo à literatura e não tratam suficientemente do cinema, por exemplo, e assim por diante. Acho, portanto, que existe espaço, atualmente, para um texto curto, de tipo introdutório, que apresente a ficção científica a leitores de língua portuguesa. Pretender fazê-lo é empresa ao mesmo tempo limitada e difícil, em especial na decisão do que deve ser incluído ou não, tendo em conta a pequena extensão do livro a ser escrito. As escolhas refletem muitas vezes, como não poderia deixar de ser, minhas preferências por dados autores, certas obras ou determinados setores temáticos pertencentes ao gênero abordado. Prefiro ler na língua original, quando possível, os contos e romances; e compro sempre que posso os filmes em vídeo-cassete também na língua original, sem legendas, mesmo porque há uma quantidade enorme de produções cinematográficas

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que não foram lançadas no Brasil para VCR. Isto traz - também em função do fato de eu ter vivido fora de meu país entre outubro de 1967 e fevereiro de 1979 - o problema de ignorar com freqüência como determinado texto, filme ou série televisiva chamouse em português. Quando não o pude averiguar, simplesmente traduzi o título: em tais casos, os títulos traduzidos de obras em qualquer veículo foram grafados entre aspas. Naquelas ocasiões em que pude verificar com certeza os títulos de fato atribuídos às obras em português, escrevi-os em itálico, da mesma forma que os títulos na língua original. Diga-se de passagem que, sobretudo nos últimos anos, paralelamente a legendas de filmes e traduções de textos literários aparecerem com excessiva freqüência num português cada vez mais errado e serem crescentemente infiéis ao original que se pretende traduzir, este deve ser um dos países do mundo onde se inventam títulos mais tolos para obras estrangeiras - quando, por razões mercadológicas ou por ignorância, não se deixa, simplesmente, o título estrangeiro sem traduzir, em especial no caso dos filmes. Também acontece que se acredite ter traduzido mas, ao não se saber de verdade a língua original, a tradução seja simplesmente um erro primário: é assim, por exemplo, que, ao estar o original em francês, um “professor de música” pode virar um “mestre da música”; ou, o que em inglês significava um “rapaz”, tornar -se em português um “jovem homem”... Um dos erros favoritos nas dublagens de filmes é transformar actually em inglês em atualmente em português. É verdade que barbaridades assim às vezes abrem caminho, sobretudo no caso de textos escritos traduzidos, a um exercício divertido: tentar adivinhar, pelo erro cometido, qual seria o original. Por exemplo, ao ler- se “a polícia   buscou as premissas”, inferir que se tratava de “a polícia revistou o edifício” (searched the premises ). Há exceções, sem dúvida: acabo de ler, por exemplo, em reedição (a publicação original é de 1985), uma excelente tradução de Henry James... por Fernando Sabino!

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I. Definições da ficção científica Se começarmos pela própria expressão, “ficção científica” é tradução do inglês science fiction, cuja prioridade, ao que parece, pertence ao editor Hugo Gernsback no editorial do primeiro número da revista norte-americana Science Wonder Stories , em 1929. Claro está, porém, que desde muito antes se tinha a noção da existência de um tipo de literatura similar àquela a que depois se aplicou tal expressão, difundida na década de 1930. Os autores e críticos ingleses, até 1955, preferiam a expressão romance científico. Embora desde então também na Grã-Bretanha predominasse “ficção científica” como denominação, um autor e crítico inglê s, Brian Stableford, advogou em 1985 que se retomasse “romance científico”, com o sentido, agora, de marcar as diferenças entre as tradições respectivas da ficção especulativa norte-americana e britânica. Um romance científico à maneira do Reino Unido se caracterizaria, segundo ele: 1) por uma perspectiva evolucionista de prazo muito longo; 2) por um tom pessimista de tipo peculiar acerca do futuro; 3) por ser pouco freqüente, nesse tipo de romance, a figura de uma personagem derivada das revistas norte-americanas conhecidas como  pulp magazines, isto é, um herói capaz de ultrapassar as fronteiras estabelecidas. Nos Estados Unidos, antes da generalização da expressão  ficção científica, falou-se, por exemplo, de scientifiction (“cientificção”). O já menciona do Gernsback, em 1926, no editorial do primeiro número da revista  Amazing Stories, definia-a como aplicando-se ao tipo de história que se atribui a autores como Júlio Verne, H. G. Wells e Edgar Allan Poe; isto é, um texto ficcional em que a ficção se mistura com fatos científicos e visão profética, dando-lhe um caráter didático e a função de ensinar numa forma de fácil absorção. Dizia explicitamente Gernsback que o que hoje é definido como ficcional nesse tipo de literatura pode realizar-se amanhã. Em certo sentido, então, ter-se-ia, aí, um tipo de literatura destinado a ser como que um “arauto do progresso”. Este tipo de visão, em que a ficção científica teria uma base solidamente ancorada no conhecimento científico contemporâneo, foi atenuado mas não abandonado por outros editores. Assim, John W. Campbell Jr., em seu manifesto para a revista que dominaria o campo na década de 1940,  Astounding Science-Fiction, definia-a como uma literatura aparentada à ciência num sentido metodológico. A ficção científica elabora extrapolações que, a partir da ciência contemporânea, procuram explorar hipoteticamente, na forma de narrativas literárias, o que poderia ser

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o futuro, no tocante a fenômenos novos, ainda não descobertos, às máquinas - ou seja, à tecnologia - e também à sociedade humana. Kingsley Amis limita sua definição à literatura, mas não haveria dificuldade em estendê-la a outros veículos. Para ele, a ficção científica é um “Relato em prosa que trata de uma situação que não poderia apresentar-se no mundo que conhecemos, mas cuja existência se baseia na hipótese de uma inovação qualquer, de origem humana ou extraterrestre, no domínio da ciência ou da tecnologia; ou, poder-se-ia dizer, da pseudociência ou da pseudotecnologia.” 1 As definições consideradas até agora ligam entre si, explícita ou implicitamente, as noções de   ficção científica e de  futuro. Mas será possível, de verdade, escrever sobre o futuro? Ben Bova acha, a respeito, o seguinte: “Ninguém, de fato, escreve sobre o futuro. Os escritores usam situações futuristas para iluminar mais fortemente os problemas e oportunidades do presente.” 2 Justamente porque ninguém pode efetivamente falar do futuro é que a definição de Amis menciona “pseudociência” e “pseudotecnologia”: trata -se de um futuro extrapolado; ou, simplesmente, inventado. Não é menos pertinente, entretanto, que a idéia de situar no futuro tantos relatos de ficção científica implique a noção pelo menos implícita - de um tempo dotado de orientação, em função do qual se possam fazer extrapolações causais a partir do presente. Que isto só possa ser feito assim é evidente. Em  A ilha do Dr. Moreau , H. G. Wells teve de pensar em termos de transformações cirúrgicas as tentativas evolutivas de sua megalomaníaca personagem; outros pensaram em termos de cruzamentos seletivos: mas, antes do final da década de 1950, ninguém poderia pensar em engenharia genética baseada na manipulação do ADN. Será, porém, além de habitual, necessária a ligação ficção científica/futuro? Um filme como Tarântula (1955), que apresenta o oeste americano - como era na década de 1950 - sofrendo a invasão de uma aranha gigantesca, resultante do uso de um isótopo radioativo no contexto da busca de um nutriente que resolvesse o problema da fome no mundo, pode e deve ser considerado ficção científica, mesmo situando-se no que era o presente quando de sua filmagem. É verdade que um aracnídeo gigantesco não conseguiria ficar de pé: sofreria um colapso devido ao seu próprio peso; mas a ficção científica não o deixa de ser por conter erros científicos. Tentando atrair jovens para os estudos pré-históricos, escreveu Louis-René Nougier, um pré-historiador francês: 1

AMIS, Kingsley. L’univers de la scie nce-fiction. Paris: Payot, 1960, p. 17.

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BOVA, Ben. Challenges. New York: Tor, 1993, p. 295.

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“Indo além das imagens de nossa vida quotidiana, nossas necessidades de sonho e evasão nos levam a descobrir mundos diferentes, nascidos de nossa imaginação ou de nossa curiosidade. Assim, durante muitos anos, os relatos de viagens ou explorações, numa Terra que nossos antepassados conheciam mal, tiveram grande sucesso. Similarmente, hoje a literatura de antecipação satisfaz o gosto de um vasto público. “O futuro, entretanto, não constitui o único domínio em que possamos sonhar: o passado nos o ferece, igualmente, consideráveis riquezas! (...)” 3 O passado, aliás, também pode ser a dimensão em que se ambientem obras de ficção científica (e não somente as que tenham a ver com viagens no tempo). Ao imaginar (em 1919, sendo o texto revisto em 1925), num passado longínquo, uma civilização tecnológica muito mais avançada do que a de sua época, no romance Out  of the silence (publicado em português como  A esfera de ouro), o escritor australiano Erle Cox (1873-1950), claro está, não foi além de um imaginário pré-nuclear; nem conseguiu imaginar um avião que voasse mais do que 500 km por hora, o que então  parecia fantástico mas deixaria de o ser depois. O “sonho” e a “evasão” de qu e falava Nougier não podem evitar as marcas do presente em que sejam concebidos. É interessante notar que, poucos anos depois de surgir, a expressão ficção científica já se aplicava não só a um conjunto de obras literárias como, também, a uma espécie de subcultura envolvendo autores, editores de revistas (mais tarde também de livros), críticos e fãs: desde então, as histórias subsumidas sob o termo partilhavam certos códigos lingüísticos, narrativos e temáticos, bem como um sentimento de separação em relação a outros tipos de literatura ficcional. A adesão aos códigos era esperada; o abandono deles - e, nos Estados Unidos, das instituições que a subcultura foi criando - era encarado como uma traição e fortemente ressentido. O primeiro estudo crítico de maior envergadura saiu, porém, de fora dessa subcultura e veio do ambiente universitário de Letras. Trata-se do livro de J. O. Bailey Pilgrims through space and time (“Peregrinos através do espaço e do tempo”), de 1947. Nele, a ficção científica era definida como a narrativa de uma invenção imaginária ou uma descoberta imaginária no domínio das ciências naturais, bem como das aventuras e conseqüências fictícias de tal invenção ou descoberta. Deveria, no entanto, ter como ponto de partida algo que, no mínimo, o autor racionalizasse como sendo cientificamente possível. A ênfase das definições no elemento científico - quanto ao conteúdo ou quanto ao método - permaneceu até a primeira parte da década de 1960. Ela não desapareceu, ainda há quem a defenda mesmo hoje em dia. Um bom exemplo é Ben Bova. Reconhece que, por decisão das editoras, muito se publica atualmente, sob a 3

NOUGIER, Louis-René. Guide de la préhistoire. Paris: Hachette, 1977, p. 6.

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denominação de ficção científica, que nada tem a ver tematicamente com a ciência, em especial fantasias do tipo “espada e feitiçaria”. Mas afirma: “Quando eu falo de ficção científica , quero dizer uma ficção em que algum elemento de ciência ou tecnologia futura é tão integral à narrativa, que esta entraria em colapso se o elemento científico ou tecnológico fosse removido.” 4 Não há dúvida, no entanto, de que, desde o final da década de 1960, esta opinião tenha-se enfraquecido, o que influi nas definições. Isto se liga a vários fatores, que estudaremos melhor ao enfocar a história da literatura de ficção científica. Um deles é, paralelamente ao enfraquecimento progressivo da confiança na ciência e em seu método, uma ênfase que se desloca da ficção científica chamada hard  (ou seja, que tem seu ponto de partida nas ciências do tipo da física ou da astronomia) para a ficção científica soft  (mais interessada em extrapolações a partir da psicanálise, da sociologia ou da antropologia, por exemplo). Embora seja verdade que ambos os subgêneros se misturavam desde a década de 1940 nas obras concretas, definindo-se cada um mais pelo que predominasse na mistura do que por algum domínio exclusivo, também o é que, desde mais ou menos 1968, passou a haver uma presença bastante reforçada do elemento soft  nas mesclas, em comparação com o que ocorria anteriormente. Em parte pelo menos, as novas definições também refletiam uma tendência a deixar de considerar a ficção científica exclusivamente como fenômeno estadounidense derivado, em primeiro lugar, das revistas conhecidas como  pulp magazines. Em especial, começaram a aparecer estudos e tendências de definição diferentes de origem européia - sobretudo britânica e francesa, embora não exclusivamente - em decorrência do êxito editorial do gênero na Europa. Em quase todos os casos, entretanto, existe em comum uma ênfase menor ou mesmo a ausência de ênfase no componente científico. O britânico Brian Aldiss, por exemplo, diz que, do mesmo modo que a literatura sobre fantasmas não se destina aos fantasmas, a ficção científica não se destina aos cientistas. James G. Ballard, por sua vez, afirmou em 1969 que a idéia de que as revistas típicas da literatura de ficção científica tenham algo a ver com ciência é ridícula, bastando examinar Scientific American ou  Nature para que a diferença fique patente. Em 1973, Aldiss referiu-se à ficção científica como sendo a busca de uma definição do homem e de sua posição no universo, a qual, sem dúvida, se baseia às vezes em nossos conhecimentos científicos a respeito, avançados embora confusos; mas que tem igualmente um forte componente em comum com o que em inglês se chama de gothic, isto é, com a literatura de terror. É assim que, em lugar dos “santos 4

BOVA, Ben. Op. cit., p. 293.

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 patronos” habituais, Verne e Wells, Aldiss valoriza como antepassada Mary Shelley, a autora, em 1818, de Frankenstein. Na verdade, para Aldiss, a ficção científica seria um ramo novo suscitado na tradição da história de horror pela Revolução Industrial e pelos avanços científicos, desde o início do século XIX. Outro autor britânico, Brian Stableford, escreve a respeito numa veia similar. A década de 1970 assistiu a um interesse acadêmico pela ficção científica bem maior do que anteriormente. Como para ensinar algo é preciso saber do que se trata, proliferaram definições e tratados a respeito. Uma das visões mais influentes foi a do iugoslavo Darko Suvin, para quem a ficção científica une e faz interagir necessariamente um aspecto cognitivo (ou seja, a busca de uma explicação racional) e um “estranhamento” - sendo este último termo uma adaptação do alemão Verfremdungseffekt , expressão usada em 1948 por Bertold Brecht para referir-se a um tipo de representação que, no tocante a um dado tema, faz com que o público o perceba como algo ao mesmo tempo reconhecível e estranho (insólito). O método específico utilizado para obter tal estranhamento na ficção científica é o da ampliação dos elementos intervenientes: tempo, espaço, tamanho (neste caso, o infinitamente grande ou o infinitamente pequeno têm o mesmo efeito), indivíduos que na realidade representam espécies, intensificação de sensações e expressões, exotismo, busca de paradoxos, poderes extraordinários, entre outros, são, todos, elementos de tal método, convergindo numa “estética do sensacional”. Isto, aliás, constituiu um dos fatores conducentes a que, no passado, o gênero fosse relegado à cultura popular, considerado como subcultura. Semelhante, até certo ponto, à opinião de Suvin é a insistência de universitários franceses como Louis-Vincent Thomas e Jacques Goimard nos aspectos míticos da ficção científica. Esta tendência foi criticada por um escritor e crítico norteamericano da área, James Blish, ao dizer que, sendo o mito estático e final em seu objetivo, teria um espírito contrário ao da ficção científica, que parte do princípio de que a mudança é contínua. No entanto, isto mostra unicamente a ignorância de Blish acerca das construções míticas, que, enquanto permaneçam vivas numa cultura, conhecem múltiplas variantes no espaço e no tempo, nada tendo de ahistóricas. Thomas encara a ficção científica como a alternativa mítica possível numa era racionalista e científica: “Numa perspectiva dessacralizada e aparentemente lúdica - da qual a mensagem não fica excluída -, a ficção científica ocupa no imaginário de hoje a   posição que o relato mítico ocupava no imaginário de ontem: em ambos os casos, trata-se de resolver pela fabulação uma situação fora do comum que não  poderia ser resolvida na realidade. Com a restrição de que o romance de ficção científica se desenrola numa atmosfera de credibilidade relativa, sua hipótese

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inicial sendo teoricamente plausível, suas conseqüências sendo encaradas  segundo um desenvolvimento compatível com a lógica.” 5

Tratar-se-á, agora, de detalhar o caminho pelo qual Goimard chega a definir a ficção científica. Uma boa definição é a que se aplica a todos os objetos a definir e unicamente a eles. O caminho mais usual para obtê-la ainda é o de Aristóteles e dos escolásticos, procedendo  per genus proximum et differentiam specificam . Por exemplo, o quadrado é um retângulo (gênero próximo) equilateral (diferença específica). O retângulo é um quadrilátero (gênero próximo) cujos quatro ângulos são retos (diferença específica). “Ficção científica” e “fantástico” parecem depender de um mesmo conjunto ou gênero maior: toda a questão consiste em achar o que singulariza a primeira dentro de tal conjunto. O ponto de partida é a questão da verossimilhança. Para Aristóteles, “verossímil” é o que o público julga ser possível, isto é, uma norma que depende de uma opinião partilhada; ao verossímil contrapor-se- ia o “verdadeiro”, isto é, aquilo que os sábios julgam ser possível. O verossímil em literatura, porém, entende-se, desde o século XVIII, como conformidade às regras particulares de um gênero (sendo tais regras convenções sociais historicamente mutáveis). No cinema, a forma mais usual do verossímil, independentemente do gênero específico, é o efeito ou ilusão de realidade que se cria pela multiplicação de detalhes concretos introduzidos pela imagem. O cinema se esforça no sentido de fazer crer ao espectador que “foi assim”, “é assim”, “será assim”, pela força persuasiva da imagem. É verdade que isto funciona melhor ou pior conforme os filmes, tendo a ver, por exemplo, com o caráter mais ou menos convincente da técnica empregada e com a qualidade artística. Ao real opõe-se o maravilhoso ou fantástico, um efeito devido a acontecimentos inverossímeis que produzem uma impressão de surpresa e estranhamento. Note-se, porém, que na prática - no cinema, na literatura, nas artes em geral - real e fantástico se interpenetram. Outrossim, como qualquer gênero, o fantástico tem sua própria verossimilhança intrínseca, específica. No antigo Oriente Próximo, para tomar um exemplo, o pensamento mítico não pertencia, para as pessoas de então, ao imaginário mas, sim, ao real. Para nós, em contraste, o mito é uma “mentira” e nos apegamos ao real devido à exigência racionalista de uma civilização técnico-científica. Ocorreu, historicamente, um deslocamento da verossimilhança no nível social mais vasto. Mas - no inconsciente tanto quanto sociologicamente - o traço de épocas anteriores (da criança no adulto, de outras épocas na nossa) não desaparece de todo. Apesar do racionalismo dos últimos 5

THOMAS, Louis-Vincent. Civilisation et divagations. Mort, fantasmes, science-fiction. Paris: Payot, 1979, p. 12.

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dois séculos, o fantástico permanece sedutor; desprezado, é também tentador. Daí dessa tensão - decorre a proliferação de pseudociências (um fantástico travestido de ciência): dianética ou cientologia, discos voadores, certas formas de psicanálise. Em cada caso, no convívio social, a verossimilhança se localiza diferentemente. As pessoas passam de um a outro nível de verossimilhança conforme a atividade ou o tipo de convívio em que estão sucessivamente inseridas. Inclui-se entre tais níveis a “suspensão da incredulidade”, necessária para a fruição de qualquer  forma de ficção, sem excluir a realista. Existem gêneros literários e cinematográficos que operam centralmente a partir de uma suspensão da incredulidade mais exigente, por depender de deslocamentos de verossimilhança: o fantástico, a ficção científica. Parte-se, então, do realismo para desembocar na irrupção do maravilhoso e, então, instaurar algum tipo próprio de verossimilhança, segundo certas regras. Este deslocamento é característico do genus proximum . Mas, que dizer quanto à differentia specifica? Isto é, em que a ficção científica se afasta do fantástico? Na forma, talvez? Já se pretendeu isto. Segundo os formalistas russos e, mais perto de nós, Tzvetan Todorov, por exemplo, o próprio do fantástico como gênero seria que o maravilhoso não aparece, nele, em forma aberta, ao contrário do gênero maravilhoso propriamente dito (por exemplo: horror, vidas de santos, contos de fadas, para Todorov também a ficção científica). Os acontecimentos da trama não devem obrigar a sua interpretação mística, sobrenatural ou mágica: tal interpretação é aludida, sugerida, mas mantém-se, como uma espécie de porta dos fundos, a possibilidade de uma interpretação simples, realista, racional - ao mesmo tempo, porém, esvaziando-se esta última de probabilidade intrínseca no contexto da obra. Exemplo adequado é um curto romance de Henry James, The turn of the screw (“A volta do parafuso”), de 1898. Pretendeu-se contrastar o anterior com a constatação de que na ficção científica, pelo contrário, o leitor ou espectador, mais cedo ou mais tarde, é mergulhado num outro universo. Vendo a coisa mais em detalhe, porém, não é bem assim. A presença do realismo e do quotidiano é forte na ficção científica, mesmo  porque: 1) o insólito só se percebe por contraste, pelo qual um universo “outro” deve, ao mesmo tempo, manter pontos comuns com o universo corriqueiro do dia-a-dia da época em que a obra seja produzida; 2) um mundo totalmente distinto, se pudesse ser concebido e descrito, seria ininteligível para o leitor. Outrossim, em etapas mais recentes da ficção científica, o aspecto didático foi em boa parte deixado de lado, mantendo-se o inexplicado, o enigma (por exemplo em 2001: uma odisséia no espaço, o livro e mais ainda o filme). É difícil, portanto, fazer a distinção por critérios

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formais, intrínsecos às obras, posto que logo esbarraríamos em exceções numerosas demais. Segundo Goimard, a differentia specifica da ficção científica em relação ao fantástico tem de ser buscada é na função da obra: isto é, na relação entre obra e público. Os mitos, na Antigüidade, tinham como base a religião. No mundo do século XX a ciência é que, por muitas décadas, ocupou no imaginário um papel que, no passado, desempenhava a religião: o de um corpo de conhecimentos e crenças de ampla aceitação social como válido em tese (o que, nem em um nem no outro caso, exige que a maior parte das pessoas de fato entenda em profundidade tal corpo de conhecimentos). Em outras palavras, a relação entre fantástico e ficção científica seria análoga à relação, no passado, entre magia e religião. O fantástico acede ao sentido que ultrapassa o do quotidiano mediante a transgressão da norma. A ficção científica,  porém, não é “mágica”, é “mítica”: ela se instala num aspecto da norma socialmente aceita - a ciência ou a aparência dela - e, a partir desse lugar, finge responder às questões que a ciência da época em que a obra é realizada não sabe resolver. No interior das obras de ficção científica o que se tem é uma ficção de ciência, uma ciência virtual ou imaginária, mesmo se às vezes misturada com elementos científicos autênticos. Assim, em conclusão, para Goimard “....a ficção científica é um gênero que comporta um deslocamento da verossimilhança e cumpre uma função mítica.” 6

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GOIMARD, Jacques. “Une définition, une définition de la définition, et ainsi de suite”. Cinéma d’au jourd’hui. Nova série, no 7, primavera de 1976, pp. 11-20 (a citação é da pág. 20). Trata-se de um número especial sobre o cinema de ficção científica.

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II. História sumária da literatura de ficção científica Como gênero literário, a ficção científica configurou-se plenamente na segunda metade do século XIX, quando certas condições surgidas em diferentes momentos se reuniram. Ela supõe uma visão de mundo marcada pela ciência e pela consciência da mudança, tanto social quanto tecnológica. Um modo científico de encarar o universo começou a tomar forma no século XVII, mas demorou bastante a influenciar a sociedade como um todo: a tendência em tal sentido foi ainda parcial no século XVIII, muito mais importante no XIX. Outrossim, a conjuntura revolucionária e suas seqüelas - no período 1789-1815, depois nos surtos revolucionários de 1830, de 1848, da Comuna de Paris (1870) tornaram muito mais palpáveis que antes a fragilidade e a possibilidade de mudança dos regimes sociais e políticos. Assim, no século passado já estavam reunidos os principais elementos sociais necessários para que a ficção científica pudesse surgir como gênero. O mesmo quanto aos elementos formais: o romance moderno data do século XVIII e o conto teve um de seus primeiros teóricos em Edgar Allan Poe. 1. A proto-ficção científica 

O que for chamado de “proto -ficção científica” dependerá, antes de mais nada, da definição da ficção científica como gênero que se adotar. Consideraremos, aqui, que foi por volta de 1860 que surgiu o gênero - a década em que os romances de Júlio Verne começaram a difundir-se -, embora não ainda a designação atualmente usual (que, como vimos ao tratar das definições, ainda na forma scientifiction, é de 1926, de 1929 na forma science fiction). Tudo que preceder 1860, então, será para nós proto-ficção científica. Surge, porém, um outro problema: quando começar? Há autores que não hesitam em remontar a Homero ou pelo menos a Luciano de Samósata, outros que sublinham o fato de que a  Divina comédia de Dante, ao descrever a cosmologia aceita em sua época, deveria ser considerada proto-ficção científica! Analogamente, nos Tempos Modernos poder-se-iam buscar muitos elementos da futura ficção científica em Francis Bacon, Johannes Kepler, Cyrano de Bergerac, Jonathan Swift e Voltaire, para citar só os autores invocados com maior insistência como precursores. É mais razoável, porém, considerar assim este assunto: a ficção científica representou a continuação, sobre novas bases, de uma tradição ficcional milenar, caracterizada por favorecer a imaginação e a extrapolação. Ela surgiu, no século XIX, da confluência de diversos gêneros mais antigos de narrativas, originados em épocas variadas. Eis aqui os principais: 1) viagens fantásticas e extraordinárias, incluindo-se aqui os “mundos perdidos”, a noção de uma “Terra oca”, a Atlântida; 2) u topias; ou o

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seu contrário, desde o século passado tendo- se cunhado o termo “distopias”; 3) o conto filosófico, com freqüência de intenção satírica; 4) o gótico ou horror sobrenatural; 5) a antecipação sociológica ou tecnológica. Note-se que tais gêneros podiam combinar-se: assim, as Viagens de Gulliver  (1726; livro revisto em 1735), de Jonathan Swift, associavam viagens fantásticas a uma visão distópica. Achamos ser possível falar mais apropriadamente de proto-ficção científica a respeito de escritores da primeira metade do século XIX, em especial Mary Shelley (1797-1851), a autora de Frankenstein (1818), e Edgar Allan Poe (1809-1849). Estes eram autores situados na tradição - iniciada no século XVIII - do gótico ou horror, mas em ambos os casos achamos também elementos de especulação científica mais insistentes (e consistentes) do que anteriormente. Em sua esteira, quando chegamos à metade do século passado, era bastante freqüente já o uso de aspectos do que viria a ser pouco depois a ficção científica como gênero por autores como Nathaniel Hawthorne e Herman Melville, dos Estados Unidos, ou o inglês Edward Bulwer Lytton. 2. Um período fundador: do começo da carreira de Júlio Verne àquele  da de H. G. Wells (1862-1901) 

Entre 1862, quando começou a associação entre Júlio Verne (1828-1905) e o editor Hetzel, dando início às “viagens extraordinárias” daquele autor, e 1901, quando H. G. Wells (1866-1946) completou a lista de seus primeiros (e mais importantes) “romances científicos” ao publicar  Os primeiros homens na Lua , nasceu a ficção científica como gênero plenamente caracterizado. E não somente devido a esses “pais fundadores” de grande renome - dos quais foi o segundo, de longe, o de mais durável influência literária. Uma plêiade de autores, alguns já esquecidos, outros ainda reeditados e muito lidos, ajudaram nessas quatro décadas a dar forma ao gênero e a muitos de seus temas; entre eles estão: George T. Chesney, Samuel Butler, o já mencionado Bulwer Lytton, Camille Flammarion, Villiers de L’Isle -Adam, Robert Louis Stevenson, J. H. Rosny aîné, Edward Bellamy, Mark Twain, Henry Rider Haggard. Fora do domínio da ficção, teria grande influência O espaço livre, texto do russo Konstantin Tsiolkovsky (1857-1935) publicado em 1883, monografia que descrevia espaçonaves movidas por propulsão a jato. O autor também publicou numerosos relatos de ficção científica didática, destinados a um público adolescente. Júlio Verne, um francês de Nantes, não teve a idéia de estar iniciando um gênero novo: instalou-se numa tradição de literatura popular já florescente e com público amplo. No entanto nada, no passado, se parecera tanto ao que depois seria chamado de ficção científica quanto os seus romances, a partir de Cinco semanas em

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balão e Viagem ao centro da Terra (ambos de 1863; o segundo seria ampliado em 1867). Já então estavam reunidos os elementos básicos de suas “viagens extraordinárias”: uma mescla de certeza moral típica do século XIX - visto como época de ascensão contínua da humanidade com base na ciência e na tecnologia, em que o homem branco “superior” teria uma missão para com as partes menos desenvolvidas do planeta -, protagonistas numerosos cumprindo papéis definidos - o cientista, o atleta, o homem comum com que o leitor se identifica... -, didatismo, extrapolação mantida dentro de limites relativamente estreitos, com freqüência uma postura pró-Estados Unidos e anti-britânica. Exceção parcial ao otimismo habitual em Verne na fase que mencionamos é a personagem sombria do capitão Nemo, inventor e capitão do submarino Nautilus, no que é talvez o melhor de seus romances, Vinte mil léguas submarinas , de 1870; mas, no fim das contas, o texto não assume as tenebrosas ruminações e atitudes do capitão. Note-se que nem todos os romances de Verne podem ser considerados de ficção científica: vários deles tratam simplesmente de viagens de aventuras, ou de aventuras ocorridas num local específico. Na segunda metade da década de 1880 verifica-se uma mudança de curso: uma personagem como Robur, por exemplo, criado em 1886 e reutilizado em 1904, aparece como um megalomaníaco obsessivo que simboliza talvez o perigo, agora percebido por Verne, de uma ciência não submetida a controles; sendo, quanto a isto, semelhante ao doutor Moreau de H. G. Wells. A confiança do autor francês nas certezas do século XIX começava a enfraquecer-se. Isto ficaria patente num conto distópico publicado postumamente em 1910, “O eterno Adão”: um sábio de longínquo futuro descobre que a atual civilização foi totalmente destruída por uma convulsão geológica, ao que parece no século XXI . As civilizações são cíclicas e não lineares. Resumimos acima o que parecia inferir-se da copiosa obra conhecida de Verne. Em 1989, entretanto, seu bisneto achou, num cofre, um manuscrito inédito, logo autenticado. Era um romance que se sabia haver sido recusado por Hetzel em 1863: Paris au XX e siècle (“Paris no século XX”), o qual foi publicado em 1994. O herói da narrativa de Júlio Verne, Michel Dufrénoy, jovem poeta de dezesseis anos, tem como cenário a Paris de 1960 tal como imaginada pelo autor: brilhante, nadando em novidades - muito mais ousadamente imaginadas do que nas extrapolações bem mais tímidas das outras obras - e, acima de tudo, distópica a mais não poder! O texto está cheio de tiradas românticas contra a tecnologia, a ciência e a indústria, causadoras de desemprego, poluição, abandono dos valores humanísticos e outros males. Cabe perguntar, então, se a veia pessimista que afloraria após 1880 não existia já no início da época de sucesso do autor e, mais do que ser por ele abandonada em suas convicções íntimas, foi contornada para dar ao editor e ao público do século passado o que de fato queriam ler.

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Em sua vida privada, Verne foi um burguês próspero desde a época de seu apogeu literário, participando da administração local de Nantes, praticando o iatismo (desde criança tivera enorme fascinação pelo mar). Se Verne foi um burguês, Herbert George Wells pertencia à pequena burguesia inglesa (era filho de um lojista que faliu, sua mãe voltando, então, à função de governanta). Depois de uma temporada malsucedida como aprendiz de um mercador de tecidos, Wells, em 1883, tornou-se ao mesmo tempo aluno e professor da Midhurst Grammar School. A seguir, com uma bolsa de estudos, formou-se na Normal School of Science de Londres, onde um de seus professores - de enorme influência em suas idéias - foi o evolucionista T. H. Huxley. Possuía, portanto, uma sólida base científica. Foi na década de 1890 que Wells começou a publicar contos que podem ser considerados de ficção científica. Seu primeiro “romance científico”,  A máquina do tempo (em português às vezes intitulado  A máquina de explorar o tempo ), é de 1895. Nos anos seguintes surgiriam, em rápida sucessão, seus outros romances mais influentes:   A ilha do Dr. Moreau (1896), O homem invisível (1897),   A guerra dos mundos (1898), Quando o adormecido desperta (1899: revisto em 1910) e Os   primeiros homens na Lua (1901). Estes livros inauguraram (ou reinauguraram e modificaram em profundidade) temáticas duravelmente praticadas pela ficção científica posterior: distopia futura ou situada em outro mundo (a Lua), darwinismo biológico e social, seres voluntariamente modificados por experimentos biológicos, invisibilidade, invasão extraterrrestre, monstros tentaculares alienígenas, suspensão da vida, uma personagem messiânica do presente atuando num futuro distópico... A influência de Wells sobre seus sucessores vai além das temáticas: consiste também no equilíbrio que conseguiu estabelecer entre especulação abstrata e descrição de circunstâncias e caracteres concretos, bem como entre a especulação científica e a sociológica. Stanislaw Lem, romancista e ensaísta polonês de ficção científica, afirmou que o grande feito de Wells em sua primeira fase foi “examinar a totalidade da espécie humana n uma situação extrema” (Lem pensava sobretudo n’ A guerra dos mundos ).7 Politicamente, Wells era um socialista moderado. Nunca aceitou o socialismo proletário: acreditava que a justiça social poderia ser imposta por uma intelectualidade benevolente. Em 1906 tentou assumir o controle de uma agremiação de socialistas moderados, a Sociedade Fabiana, em que ingressara em 1903, mas falhou e a ela deixou de pertencer em 1908.

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LEM, Stanislaw. Microworlds. Writings on science fiction and fantasy. San Diego/New York: Harcourt Brace Jovanovich, 1984, p. 13.

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Não deve ser por acaso que a última fase de Verne e a primeira de Wells estivessem marcadas por uma forte carga distópica: isto reflete o  fin de siècle, com sua erosão das certezas do século XIX. No caso de Wells, vivo até 1946, a uma primeira fase marcada pela distopia sucederia outra claramente utópica; mas ele retomaria, mais tarde, uma posição pessimista. 3. O início do século XX (1901-1926): a ficção científica nos veículos da  cultura literária popular 

Do mesmo modo que o período entre os inícios de carreira de Verne e Wells aparece marcado por numerosos outros autores, também aquele que se segue aos primeiros romances do último escritor conheceu muitos outros nomes. Na Inglaterra, H. G. Wells foi contemporâneo de numerosos romancistas de qualidade variável, alguns de grande sucesso na época. Com ele competiam, entre outros, George Chetwynd Griffith-Jones (que assinava George Griffith), C. J. Cutcliffe Hyne, George C. Wallis, Sax Rohmer (o criador de Fu Manchu), Fred M. White. Na fase que agora abordamos havia, em diversos países, uma quantidade considerável de escritores de ficção científica, muitos dos quais escreviam também outros tipos de narrativas. Entre eles: Gustave Le Rouge, Edgar Rice Burroughs, Karel Capek, Arthur Conan Doyle, Abraham Merritt, Murray Leinster. O próprio Wells publicou suas primeiras obras longas inicialmente em forma seriada, em revistas voltadas para um público relativamente pequeno. Mas, desde a década de 1880, começava a aparecer um outro tipo de revista, mais barata, dedicada à publicação de histórias - entre elas, as de ficção científica - destinadas a um público mais popular. Esta tendência se confirmou, marcada tanto pela organização de uma distribuição maciça e pela ampliação da publicidade, permitindo baixar os custos, quanto por certas opções de formato (quase sempre 25 cm por 18 cm) e papel grosseiro ( pulp), conduzindo em 1896 à invenção dos chamados  pulp magazines pelo norte-americano Frank A. Munsey. Numa época em que países como a Inglaterra e os Estados Unidos conheciam já uma educação básica estendida a setores muito amplos de suas sociedades, a literatura popular, nessas revistas, pôde desenvolver-se muito. Este foi um fenômeno que marcou ainda mais o início do século XX, quando, nos Estados Unidos, boa parte da ficção científica se publicava nas revistas em questão. No entanto, só em 1926 surgiu o primeiro   pulp magazine destinado a publicar exclusivamente histórias de ficção científica ( Amazing Stories). Este tipo de revista continuaria a existir até meados da década de 1950, quando se extinguiu; alguns de seus títulos puderam sobreviver em outros formatos.

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Na Inglaterra, as narrativas de ficção científica se publicavam sobretudo em revistas destinadas a um público infanto-juvenil - o que não era sempre o caso quanto aos   pulp magazines norte-americanos. Nos primeiros anos do século XX, o tema preferido era, naquelas revistas britânicas, o das guerras futuras. Os  pulp também competiram, como veículo da ficção científica, com os “romances de vintém” ( dime novels ), igualmente periódicos e muito baratos, que existiam desde 1868 e, no início do século XX, conheceram o êxito da série norte-americana (iniciada em 1892) que girava em torno de Frank Reade e sua família de inventores, cujas narrativas mostravam forte influência de Verne. Além dos Estados Unidos, também existiram dime novels na Europa, notadamente na Alemanha. Note-se que na Europa, muito mais do que nos Estados Unidos, mantinha-se a publicação de ficção científica em forma de livros, destinada a um público adulto. Assim, por exemplo, apareceram as obras do tcheco Karel Capek (1890-1938), entre elas a peça teatral R.U.R., que introduziu o termo “robô” (1921). Um autor como H. G. Wells - que também produziu ficção de outro tipo não era considerado escritor de ficção científica mas, sim, simplesmente um escritor (e de grande prestígio), o mesmo se aplicando, por exemplo, ao já mencionado Capek. No entanto, nos Estados Unidos os autores de ficção científica, na sua imensa maioria, passaram a ser encarados (às vezes com razão, mas nem sempre) como autores de uma sub-literatura ou literatura popular, considerada inferior ao que em língua inglesa se chama de mainstream literature. O mesmo acontecia na Europa com os autores que trabalhavam para as revistas populares ou infanto-juvenis e produziam volumes do tipo conhecido em inglês como dime novels. Esta tendência, acoplada à extraordinária multiplicação e às grandes vendas dos  pulp magazines a partir da década de 1920 nos Estados Unidos, onde em 1926 começariam a existir as revistas só de ficção científica, como vimos, contribuíram a fazer surgir tal ficção científica como uma subcultura com seus próprios canais de associação e difusão - e com suas próprias regras -, algo que ficou claro quando percebeu a si mesma como um gênero à parte, desprezado pela literatura mainstream e desprezando-a por sua vez. Trata-se, entretanto, de fenômeno principalmente típico dos Estados Unidos. 4. Da autoconsciência à “idade de ouro” (1926 -1946) 

Com o surgimento, em 1926, da revista  Amazing Stories - um pulp magazine mensal de dimensões ainda maiores do que as de costume - seu fundador, Hugo Gernsback, anunciou o surgimento da “cientificção” (que trê s anos depois passaria a chamar de “ficção científica”) como gênero à parte, invocando Poe, Verne e Wells como pais fundadores. O próprio Gernsback perdeu o controle da empresa que publicava   Amazing Stories em 1929 e seu ex-assistente, T. O’Conor Sloane, logo

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assumiu o posto editorial. A linha centralmente científica impressa por Gernsback durou até 1938 e, ao que parece, não teve grande sucesso de público. A outra revista importante dessa época, que terminaria assumindo (em 1938) o nome de  Astounding Science-Fiction, foi criada em 1930. A década de 1930, em reação às dificuldades da depressão econômica, trouxe uma multiplicação impressionante das revistas de ficção; no entanto, o mesmo só ocorreria com as de ficção científica especificamente na década seguinte. Considerando-se também a publicação de histórias de ficção científica em   pulp magazines que divulgavam igualmente narrativas pertencentes a outros gêneros, no conjunto, na década de 1930, o gênero que nos ocupa representava somente 2 a 3% desse mercado. Em outubro de 1937, John W. Campbell Jr. (1910-1971), que como escritor assinava às vezes Don A. Stuart, assumiu a direção editorial de  Astounding Science Fiction: deste fato é costume datar a “idade de ouro” da ficção científica, que iria de 1938 a 1946. Por que a designação nostálgica aplicada a tal período? Ela é justificada por diversos críticos que também são autores tradicionais de ficção científica pelo fato de ter Campbell reunido em sua revista uma proporção considerável dos melhores escritores então ativos - L. Ron Hubbard, Clifford D. Simak, Jack Williamson, L. Sprague de Camp e vários outros -, bem como por sua energia como editor, decidido a elevar o nível dos textos de ficção científica que publicava. Outrossim, foi ele o descobridor e encorajador dos então principiantes Isaac Asimov, Lester del Rey, Robert A. Heinlein, Theodore Sturgeon e A. E. van Vogt, os quais, em conjunto com o britânico Arthur C. Clarke, dominariam a etapa seguinte do gênero. Nenhuma revista tivera antes um prestígio e uma influência semelhantes. Mesmo assim, a expressão “idade de ouro”, justificada deste modo, é discutível. Admitindo-se que foi uma época de grande atividade, quando muitos dos temas da ficção científica estavam assumindo formas que seriam influentes por décadas ou mesmo até o presente, numa maturação do gênero e num processo de aperfeiçoamento desse tipo de histórias tal como se publicava nas revistas populares, a designação é aplicada pensando-se unicamente na produção dos Estados Unidos: e nem mesmo em toda ela, já que, embora o boom da ficção científica em forma de livro iria ocorrer só na década de 1950, havia bons autores que, na fase anterior, publicavam livros naquele país e nada tinham a ver com a indústria  pulp. Produção, aliás, destinada prioritariamente a um público infanto-juvenil. Que pensar, então, de autores que escreviam para adultos, fora das restrições impostas pela indústria editorial pulp - autores como o britânico Olaf Stapledon (1886-1950), por exemplo? O que ocorre é que a noção de um a “idade de ouro” em 1938-1946 está intimamente ligada ao que em inglês se conhece como genre science fiction : a ficção científica que assim denomina a si mesma, ou que é imediatamente reconhecida como

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pertencente ao gênero; a qual, com o tempo, expandiu-se numa verdadeira subcultura, com associações de escritores, prêmios próprios, associações de fãs e congressos. Este tipo de ficção se reconhece por certas regras, hábitos, expectativas e convenções temáticas e narrativas - que alguns chamam de “protocolos” - nascidos dos textos de sucesso e, mais tarde, também do cinema, da televisão e da história em quadrinhos. Convenções que, nos piores casos, são geradoras de verdadeiros clichês estereotipados que se repetem impiedosamente. Ora, trata-se de um fenômeno por muito tempo confinado aos Estados Unidos. Mesmo na Grã-Bretanha, tão ligada de vários modos às tendências norte-americanas, antes de meados da década de 1950 os escritores nem mesmo usavam correntemente a expressão “ficção científica”. Há, sem dúvida, escritores e críticos dos Estados Unidos que afirmam ser a ficção científica um fenômeno exclusivo da cultura popular de seu país, quando muito aceitando incluir aqueles britânicos ou canadenses “convertidos” ao tipo norte americano de ficção científica. Mas, desde que não se aceitem critérios tão limitativos, é óbvio que, inclusive nos anos da soi-disant  “idade de ouro”, havia boa ficção científica fora dos Estados Unidos e, lá mesmo, excelentes escritores que não poderiam ser incluídos na genre science fiction. Continua sendo verdade, porém, que nos Estados Unidos e na Grã-Bretanha se gerou neste século a enorme maioria das obras de ficção científica de todos os tipos: um gênero que, por volta de 1970, viria a abarcar cerca de 10% das obras de ficção escritas em língua inglesa. 5. O boom editorial e o início das incertezas (1946-1968) 

Em 1950, em sua introdução a uma antologia por ele compilada, um editor quase sempre free lancer , Groff Conklyn (1904-1968), escreveu: “A ficção científica chegou por fim. M ilhares de pessoas que costumavam pensar nela em termos de revistas de histórias em quadrinhos ou de revistas  pulp de aventuras descobriram que uma parte dos escritos de imaginação mais efetivos de nossa época estão sendo produzidos nesse campo. Outros milhares que jamais haviam sequer ouvido falar dela estão aprendendo que pode ser um tipo excitante de diversão para suas horas de lazer. Por  conseguinte, a circulação das principais revistas de ficção científica está crescendo aos saltos; novas revistas estão sendo planejadas; e muitos editores sóbrios e cautelosos de livros, percebendo o sucesso das pequenas editoras especializadas em ficção científica, se dão conta de que existe um público leal  para este notável ramo novo da árvore da literatura.” 8 Considerando-se o que de fato aconteceu, estas palavras foram acuradas e proféticas. Foi exatamente a partir de 1950 que o antes pequeno mundo da ficção científica começou um processo de expansão que não se interrompeu até hoje. 8

CONKLIN, Groff (org.). The science fiction galaxy. New York: Permabooks, 1950, p. IX.

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Naquele ano, o monopólio virtual de  Astounding Science Fiction nos Estados Unidos como a revista por excelência do ramo, com um prestígio bem acima do de  Amazing Stories, foi desafiado com o surgimento de Galaxy Science Fiction , periódico que duraria até 1980. Data também do imediato pós-guerra o predomínio visível, nesse campo, dos escritores que, bem posteriormente, Isaac Asimov chamaria de “os sobreviventes” autores que produziram por décadas obras de sucesso: o próprio Asimov, Robert Heinlein, Fritz Leiber, Frederik Pohl, o britânico Arthur C. Clarke, Poul Anderson. A eles seria preciso somar outros que emergiram para o êxito na mesma época, mas cuja produção se interrompeu depois por uma vida breve ou por outras razões: Cyril Kornbluth (morto em 1958), A. E. van Vogt, Alfred Bester, por exemplo; os que se tornaram eminentes a partir dos anos 50 e continuam ativos, como Ray Bradbury; e, ainda, escritores mais antigos, como Jack Williamson, Clifford D. Simak e L. Sprague de Camp, que continuaram escrevendo até a década de 1990. Conklin previu, com acerto, o boom editorial da ficção científica em forma de livro, além da expansão nunca vista das vendas de revistas especializadas no gênero. Estas últimas, porém, começaram a declinar já na década seguinte, ao contrário do que aconteceu com as publicações em forma de livro. A ficção científica embarcou, com outros gêneros de literatura popular, na revolução editorial e de marketing associada, nos Estados Unidos e logo em outros países, ao livro - de bolso ou em outro formato - desprovido de capa dura, barato, publicado em grande quantidade para um mercado maciço, objeto de grandes campanhas publicitárias e promocionais, embora, em muitos casos, os livros saíssem previamente em edição de capa dura. De início, esta explosão editorial dos livros se fez reimprimindo material que aparecera anteriormente nas revistas. De fato, até o fim do período agora abordado, a regra, mais do que a exceção, foi que os relatos de ficção científica fossem publicados primeiro em forma seriada, em revistas, só depois em livros. Grandes editoras - Doubleday, Simon and Schuster, depois Ace Books e Ballantine, entre outras - começaram a tirar do mercado as pequenas, que haviam iniciado o boom editorial. Outrossim, na década de 1960 as revistas de ficção científica começavam a ser seriamente abaladas em suas finanças pela concorrência dos livros. Uma evolução similar ocorreu na Inglaterra, com algum atraso no tocante à qualidade das obras publicadas em formato de bolso ou sem capa dura, de nível bastante baixo até o final da década de 1950; ali também, gigantes como Weidenfeld & Nicolson investiram pioneira e pesadamente no setor. Autores como John Wyndham (1903-1969) - que, no entanto, escrevia havia muito, com sucesso moderado, usando vários pseudônimos - e John Christopher (1922- ) emergiram para

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a fama em função de tal movimento editorial. A França e a Itália conheceram também uma grande expansão das edições de ficção científica, nestes casos tendendo a predominar, no conjunto, as traduções do inglês sobre as produções nacionais, como também acontecia em muitos outros países. Se recordarmos, acerca da década de 1950, que ela viu o primeiro boom efetivo da ficção científica também no cinema e em séries de TV, além de que sua primeira metade presenciou igualmente o auge inicial das histórias em quadrinhos desse tipo (destacando-se as produções da empresa EC Comics), não pode haver qualquer dúvida acerca da vitalidade, na época, do nosso objeto de estudo. Isto se espelharia, na década seguinte, na criação da associação dos escritores estadounidenses de ficção científica, Science Fiction Writers of America (1965); e, já em 1953, no estabelecimento do mais famoso prêmio de ficção científica, conhecido como Hugo (o outro grande prêmio do setor, Nebula, apareceria em 1965). Associação profissional e prêmios vincularam-se ao caráter crescentemente coletivo e institucionalizado do mundo da ficção científica, marcado pelas poderosas empresas que investiram no gênero, mas igualmente por congressos regulares e por vigorosas e influentes associações de fãs. Cabe notar, entretanto, que o período agora analisado provavelmente concluiu a vigência - que parece ter durado de 1926 a 1965 - da ficção científica como gênero separado e definível em seus contornos com alguma facilidade. Por volta de 1968, instalara-se já uma forte tendência a tornar-se minoritária a ficção científica hard , aquela que delimitava o que, como vimos, se conhece como genre science  fiction, em favor da preocupação com temáticas de outros tipos: mutantes, poderes extra-sensoriais, enfoques sociológicos e psicológicos... O anterior tem a ver com as próprias razões históricas da emergência com tanta força da ficção científica no imaginário popular do pós-guerra. Uma delas foi, sem dúvida, ter melhorado muito de nível com o passar do tempo a produção média dos escritores especializados no setor. Interessa-nos mais neste contexto, entretanto, o fato - propalado com insistência pelos editores e promotores - de ter a ficção científica prenunciado corretamente e com grande antecedência a invenção da bomba atômica e o uso da energia nuclear, os foguetes de longo alcance, os satélites artificiais (uma realidade desde 1957), os vôos espaciais (o primeiro desembarque na Lua se daria em 1969), por exemplo. Ora, estes e outros elementos eram vistos ambiguamente pelo público em geral, em função da Guerra Fria e do perigo atômico, da rivalidade entre blocos políticos e ideológicos que partilhavam o mundo, do enorme custo financeiro da corrida espacial entre os Estados Unidos e a União Soviética. Se o ânimo, nos Estados Unidos, na Inglaterra e em outros países, logo após a Segunda Guerra

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Mundial, era de euforia pela derrota do nazismo e seus aliados, novas preocupações estavam emergindo não muito mais tarde. Os anos 1955-1965, em retrospectiva, parecem ser o limiar de uma época diferente: foram os anos em que iniciaram sua expansão a pílula anticoncepcional, o transporte comercial em aviões a jato, os computadores; em que a enorme influência dos meios de comunicação de massa se tornou mais perceptível. Nos Estados Unidos, pela primeira vez se percebeu que os trabalhadores dos setores primário (agricultura e atividades extrativas) e secundário (indústrias de transformação) da economia estavam sendo superados em número pelos do setor terciário (aqueles ligados ao comércio, aos serviços e à gestão), ao mesmo tempo que se manifestava grande preocupação com um crescimento urbano que não parecia conhecer limites e com seus efeitos perversos, em reação aos quais o movimento em direção aos novos subúrbios de classe média tornara-se já muito forte. Em suma, transformações radicais nas vivências do século XX, percebidas primeiro nos Estados Unidos, não demoraram a ter efeitos sobre as temáticas da ficção científica que, como subsetor da cultura de massa, é muito sensível às preocupações socialmente predominantes. Isto foi notado em diversas análises. Isaac Asimov, por exemplo, percebeu três etapas sucessivas no gênero: ficção científica com domínio da aventura (1926-1938), com acento tecnológico (1939-1950) e de tônica sociológica (depois de 1950). Uma visão diferente é a de John Clute: em 1942, predominavam na ficção científica as narrativas de impérios; em 1952, as que salientavam a hybris ou soberba, prenúncio da queda; em 1962, as que focalizavam o solipsismo, aparecendo o mundo real como algo cuja existência dependia do eu individual. Note-se, porém, que o período que ora estudamos tinha características mistas. Ainda era muito forte então, nos Estados Unidos e alhures, a ficção científica hard  e triunfalista; mas começavam a surgir tendências menos otimistas, em parte influenciadas em seus inícios pelo movimento beat , que terminariam por confluir, no final da década de 1960, na new wave, fase prenunciada no cinema, desde 1965, por um filme francês: Alphaville, dirigido por Jean-Luc Godard. Por dominante que seja a ficção científica norte-americana, entendida como um subsetor da cultura popular ou de massa profundamente marcado pelo marketing, por mais que tenha repercussões indubitáveis no mundo todo, mesmo nos Estados Unidos, com maior razão em outros países, seria uma simplificação limitar o gênero a tal aspecto. Escritores como o britânico George Orwell (1903-1950), o autor de 1984 (1949), o polonês Stanislaw Lem (1921- ) - cuja melhor fase é provavelmente a que se estende de 1956 a 1968 (por exemplo: Soláris, de 1961) -, os irmãos russos Arkady e Boris Strugatsky (1925-1991 e 1931- ), o norte-americano George R. Stewart (1895-1980), com o seu Earth abides (“A Terra permanece”, 1949), nada tiveram a

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ver com o mundo, subcultura ou como se quiser chamar, gerado primeiro na era das revistas  pulp; produziram, no entanto, algumas das melhores narrativas de ficção científica do período que acabamos de focalizar. 6. New wave (1968-1982) 

Às preocupações anteriores com um mundo e relações sociais que mudavam rapidamente demais, o final da década de 1960 viu agregarem-se outras: destruição ecológica e superpopulação, tendo sido grande o impacto do Relatório ao Clube de Roma, elaborado por técnicos do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (M.I.T.), com suas projeções alarmistas estendidas até o ano 2100; envolvimento dos Estados Unidos no Sudeste asiático, com as matanças e atrocidades resultantes agora muito divulgadas e debatidas, em especial depois que começaram a morrer também muitos   jovens norte-americanos; auge do terrorismo organizado; a autodenominada “revolução sexual”. Outrossim, em 1968 deu -se a eclosão na França, mas também em muitos outros países, incluindo os Estados Unidos, de maciços protestos estudantis acompanhados - em particular nos Estados Unidos - de idéias do que se chamava na época de “contracultura”, associada ao movimento hippy que teve no filme Sem destino (Easy rider : 1969) um de seus ícones principais. A este contexto, aquele específico da ficção científica somou outras influências. O filme 2001: uma odisséia no espaço (1968), fazendo com que se levasse a ficção científica a sério no cinema - o que antes já acontecia na Europa mas, não, nos Estados Unidos -, teve efeitos também na literatura. Aceitava-se agora, mais que antes, a ficção científica como gênero respeitável e para adultos. Muitos escritores do ramo iniciaram um movimento deliberado - embora de modo algum organizado no sentido estilístico, no que na verdade foi uma influência de mão dupla entre as estratégias narrativas da literatura em inglês chamada mainstream e da de ficção científica. Diversos autores de ficção científica conseguiram, de fato, atravessar a  barreira e passaram a ser considerados autores de “alta” literatura: por exemplo Ray Bradbury e Kurt Vonnegut, nos Estados Unidos; na Grã-Bretanha, J. G. Ballard e Michael Moorcock. A preocupação da cultura popular com os problemas da época, nos Estados Unidos acoplada à crise do mito da presidência (o escândalo envolvendo o vicepresidente Spiro Agnew e em seguida o de Watergate, em 1973-1974, que levaria ao fim da era de Richard Nixon), conduziria a uma onda de pessimismo, fortemente distópica, nos escritos de ficção científica, muito mais críticos agora dos valores ocidentais: de gênero machista e, nos países ocidentais, situado tradicionalmente à direita que era, passou a contar com um setor de esquerda e uma ala feminina (e feminista) consideráveis. Ironicamente, isto era contrabalançado por acontecer no

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bojo de um movimento mercadológico sem precedentes, que culminaria depois de 1980.  New wave, tradução inglesa de nouvelle vague - etiqueta de início limitada a certo tipo de cinema experimental associado a diretores como Godard ou Truffaut, por exemplo -, foi expressão que começou a ser usada no final da década de 1960 também para caracterizar as novidades que se faziam presentes no modo de escrever ficção científica. Tal uso e portanto a percepção das novidades em questão começaram na Inglaterra, associando-se à revista   New Worlds, que na época, sob a batuta de Moorcock, favorecia o tipo de escritos de que se trata ao falar de new wave . Assim, de início viu-se o movimento - nunca organizado - como estando associado a autores britânicos do tipo de Brian Aldiss, J. G. Ballard, Christopher Priest ou o próprio Moorcock, mais tarde Ian Watson. É curioso observar um caso como o de John Brunner, até então autor de ficção espacial otimista ( space opera ), o qual embarcou com entusiasmo na nova onda distópica. As tendências em questão, porém, também se faziam presentes nos Estados Unidos e em muitos outros países, sem mencionar os fortes intercâmbios entre ingleses e norte-americanos no setor; de modo que a consciência de uma “onda nova” (ou, se se preferir, “bossa nova”) na ficção científica logo se estendeu além das fronteiras do Reino Unido. A ela estão ligados Thomas M. Disch, Harlan Ellison, Robert Silverberg, Roger Zelazny, Samuel R. Delany, autores que vinham de uma carreira anterior mas tomaram consciência de que a genre science fiction acabara por tornar-se uma camisa de força ou, o que é pior, uma coleção de clichês. Autores emergentes que começaram a ser importantes já na nova tendência foram, por exemplo, Barry N. Malzberg, Gene Wolfe e Michael Bishop. Mesmo romancistas como Stanislaw Lem e os irmãos Strugatsky, na Europa Oriental, associaram-se às temáticas, às preocupações e eventualmente às estratégias narrativas da new wave , o que demonstra que a “cortina de ferro” já não funcionava com a força de antes: em um escrito autobiográfico, Lem conta que, até a década de 1950, era-lhe pouco menos que impossível conseguir livros ocidentais de ficção científica na Polônia. Note-se que, como sempre acontece com movimentos não-organizados e passavelmente heterogêneos como este, alguns autores - é o caso de Thomas M. Disch, por exemplo pretenderam não estar associados à new wave, por mais que houvesse elementos para que se afirmasse o contrário; ou, até mesmo, proclamaram que ela não existia. Escritores e críticos vinculados à genre science fiction , tais como Ben Bova, David Kyle, Sam Moskowitz e Donald A. Wollheim, reagiram negativamente às novas tendências, como era previsível. Ressentiam-se, sobretudo, de que, na ficção científica, o elemento  ficção agora primasse em caráter absoluto sobre o elemento ciência. Não estavam equivocados: já dissemos que, por volta de 1965, estavam-se

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encerrando as quatro décadas durante as quais, pelo menos no subsetor da cultura de massa gerado nas revistas  pulp de ficção científica, o gênero estivera passavelmente fechado em seus próprios circuitos e regras, o que o tornava familiar, confortável, fácil de definir e delimitar. 7. Cyberpunk (1982- ) 

Pode-se dizer que a consciência de uma fase diferente na ficção científica foi evidenciada primeiro pelo cinema:  Blade runner, o caçador de andróides (1982), de Ridley Scott, constituiu-se no primeiro produto cultural que chamou a atenção para isso. No filme, o futuro próximo, representado por ruas repletas de passantes sob uma chuva constante, pelo contraste de elementos de alta tecnologia e da publicidade vistosa - japonesa e relativa à vida nos mundos em processo de colonização, por exemplo - com a pobreza, a ruína e o lixo, traduzia-se em imagens que tiveram um poderoso impacto, independentemente dos defeitos (narrativos e outros) do próprio filme. Outro diretor muito influente na criação da imagem cyberpunk foi - no domínio do horror com eventuais elementos de ficção científica - David Cronenberg; Videodrome, a síndrome do vídeo (1982) é emblemático do cyberpunk  e suas temáticas: metamorfoses corporais, sexo como fator de destruição, impacto intrusivo e devastador dos meios de comunicação de massa na vida dos indivíduos. O período em questão, posterior a 1980, viu chegar o auge mercadológico da ficção científica, marcado entre outras coisas pelo entrecruzamento dos veículos ou meios de expressão. Filmagens de romances (modificando-os em forma extrema muitas vezes), romances derivados de roteiros de filmes, séries de TV engendrando histórias em quadrinhos, romances ou filmes, além de outras possibilidades, não eram propriamente uma novidade, vinham sobretudo da década de 1950; mas, agora, intensificaram-se muito. A partir da década de 1980, o gênero tornou-se um verdadeiro pesadelo para os que tentassem compilar bibliografias e catálogos, devido a tais influências cruzadas entre setores. Sem mencionar que filmes e séries de TV engendram, além de livros, revistas e fotonovelas, também bonecos, maquetes, camisetas e outros objetos cujo marketing envolve milhões de dólares. O termo cyberpunk  parece ter sido cunhado em 1983 por Bruce Bethke, num conto homônimo. O editor e escritor Gardner Dozois dele se apossou entusiasticamente para caracterizar uma tendência que enxergava nos escritos de Bruce Sterling, William Gibson e Lewis Shiner, por exemplo. Na denominação, o elemento cyber  remete a cibernética e  punk  foi tomado à terminologia roqueira dos anos 70. Aplica-se a relatos marcados por elementos temáticos bem definidos: um futuro quase sempre próximo, dominado por grandes corporações capitalistas, seja na Terra, seja no espaço, globais mais do que nacionais, as quais controlam redes

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mundiais de informação; as possibilidades do corpo humano aumentadas por implantes de elementos mecânicos e cibernéticos, pela engenharia genética ou pelo uso de drogas; a realidade virtual como uma espécie de mundo à parte, ao mesmo tempo simulacro e realidade alternativa em que se movem as personagens; bandos de rua rivais, hostis aos poderes estabelecidos, agressivos (há um verdadeiro culto à violência, embora mais sistematicamente no cinema), agindo em cidades cheias de lixo e sucata; desilusão e alienação: uma estratégia narrativa típica do cyberpunk  é a do desvelamento, camadas sucessivas de engodo, falsas aparências e falsas informações sendo sucessivamente removidas diante dos olhos de um herói muitas vezes frágil e perplexo. De certo modo, o cyberpunk  é a continuação da distopia típica da new wave, numa época em que a generalização dos microcomputadores e das redes interativas, bem como a presença invasora dos outros meios de comunicação de massa (TV a cabo, telefonia celular, fax), trouxeram a informática e os problemas envolvendo a informação, seu controle e sua transmissão ao proscênio, já que se haviam transformado em fatos da vida quotidiana. Alguns autores consideram o cyberpunk  como subsetor do pós-modernismo literário, uma de cujas características é a fragmentação da narrativa, explodindo-se os esquemas tradicionais do modo linear de contar histórias, com grande influência, em literatura, do estilo nervoso de montagem dos filmes de ação e dos videoclips televisivos. As discussões em torno do cyberpunk  - cujo profeta maior foi Bruce Sterling -, bem mais veementes do que as que acompanharam a new wave, tentaram transformá-lo num movimento político progressista, a única tentativa à vista de sacudir a complacência de uma ficção científica dominada pelo marketing. Mas a verdade é que este último também domina o cyberpunk , em literatura como em seus outros meios de expressão. Analogamente ao fato de que a new wave nunca eliminou as formas mais antigas de escrever ficção científica, o mesmo pode ser dito do cyberpunk . Autores como Asimov, Clarke e outros sofreram, sem dúvida, alguma influência das novas tendências; mas não mudaram radicalmente seu estilo, suas temáticas, a ênfase numa ficção científica do tipo hard . Isto não impediu que vendessem muito bem e acumulassem prêmios também depois de 1982. Na verdade, a new wave e mais ainda o cyberpunk , apesar de sua novidade, foram movimentos influentes mas minoritários. Um dos grandes opositores do último foi o romancista Orson Scott Card, que escreveu em 1990: “...a pior coisa acerca do  cyberpunk era a pouca profundidade de seus imitadores. Joguem-se algumas drogas numa interface de cérebro com  microchips  , misture-se com uma contracultura vagamente no estilo dos anos

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60, então use-se uma linguagem realmente artificial e afetada: o resultado será o cyberpunk .”9

O movimento cyberpunk , na literatura como no cinema, foi grande criador de clichês e fórmulas prontas, exploradas cinicamente pelo marketing. Mas esta constatação não o esgota. Norman Spinrad vê no movimento em questão um novo romantismo - ou, mais exatamente, a confluência entre o impulso romântico, a ciência e a tecnologia. De certa forma, tratar-se-ia da reconciliação, sobre bases diferentes, dos dois elementos da expressão “ficção científica”, cujo aspecto integral teria sido afetado primeiro por uma ênfase exagerada no componente científico e, a seguir e contraditoriamente, pelo exagero do elemento ficcional em detrimento da preocupação científica e tecnológica. Retomando uma opinião de John Clute que já citamos no tocante a fases anteriores, acha ele que, em 1972, as histórias de ficção científica enfatizavam o castigo que se segue à falta cometida, em 1982 a memória, em 1992 a exogamia (preocupação com o multiculturalismo, a alteridade; fusão de gêneros também).

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 Apud CLUTE, John e NICHOLLS, Peter (orgs.). The encyclopedia of science fiction. New York: St. Martin’s Griffin, 1995, p. 289.

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III. Outros domínios da ficção científica

1. História em quadrinhos 

A primeira história em quadrinhos propriamente dita - isto é, contendo as características formais básicas desta forma de expressão - foi publicada em 1833: trata-se de L’histoire de M. Jabot (“A história do senhor Jabot”), desenhada em 1831, cujo autor foi o desenhista suíço Rodolphe Töppfer. Era o que hoje em dia se conhece como romance gráfico ( graphic novel ), ou seja, uma narrativa completa de dimensões consideráveis, publicada como se fosse um livro ou revista contendo uma única história. Tal forma de dar a público histórias em quadrinhos, mesmo tendo sido a primeira a surgir, demorou muito a se firmar no mercado, o que só ocorreu na segunda metade do século XX. Até então, a história deste meio de expressão existiu em ligação privilegiada e quase exclusiva com publicações periódicas - jornais; revistas que divulgavam também outros tipos de matérias; revistas contendo várias histórias, em inglês conhecidas como comic books -, nas quais as histórias em quadrinhos apareciam em forma habitualmente seriada. No tocante às histórias em quadrinhos pertencentes, no plano temático, à ficção científica, seria possível mencionar em primeiro lugar uma série devida a desenhista anônimo, surgida em 1895 na Inglaterra: Our office boy’s fairy tales (“Os contos de fadas de nosso contínuo”), n a qual uma família vivia aventuras nada plausíveis no planeta Marte. A linguagem gráfica usada posteriormente para narrar ficção científica em quadrinhos desenvolveu-se mais na série fantástica de Winsor McCay, publicada no jornal   New York Herald  de 1905 a 1911,   Little Nemo in Slumberland (“O pequeno Nemo no País do Sono”). Na década de 1920 a depressão subseqüente à Primeira Guerra Mundial suscitou uma demanda de narrativas escapistas, tendência ampliada depois pela crise de 1929, a que se seguiu a depressão da década de 1930. Em tal contexto é que surgiram os primeiros seriados de ficção científica - que podem ser adscritos ao gênero muito mais pela temática (outros mundos, viagens espaciais) do que pelo tratamento, decididamente da ordem do fantástico e do romance épico de aventuras:   Buck Rogers in the 25th century (“Buck Rogers no século XXV”), de bem longa duração (1929-1967), destinado a um público adulto e cuja origem foi um romance seriado numa revista  pulp,   Amazing Stories; Flash Gordon (iniciado em 1934, contando em sua primeira fase com o belo desenho de Alex Raymond); e outros. Na

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Europa, materiais similares apareceram pouco depois, na França (a partir de 1937: séries desenhadas por René Pellos) e na Inglaterra ( Garth, que teve início em 1943). As primeiras revistas contendo unicamente histórias em quadrinhos ( comic books), cujo início data de 1934, foram simplesmente reedições, nesta forma, de narrativas de sucesso antes seriadas em jornais ou revistas de variedades. Mas a demanda cresceu e, com isto, surgiu a era dos super-heróis, sendo o primeiro o SuperHomem, lançado em 1938 pela  Action Comics, cujo sucesso não demorou a engendrar outras personagens similares, como o Capitão Marvel da  Marvel Comics . Note-se que as histórias de super-heróis são ficção científica só marginalmente, não em sua essência, no tom ou nos objetivos. Juntamente com narrativas do tipo das épicas espaciais ( space operas), cuja idéia vinha das revistas  pulp, estavam presentes na primeira revista de histórias em quadrinhos exclusivamente dedicada à ficção científica,  Amazing Mystery Funnies (1938-1940), que lançou desenhistas importantes nesse meio de expressão, como Bill Everett, Will Eisner e Basil Wolverton. A explosão editorial das histórias em quadrinhos de todos os tipos, ocorrida na década de 1940, permitiu, no início da década seguinte, um primeiro auge da ficção científica em tal veículo. Houve revistas derivadas de séries de televisão, como Space Patrol (“Patrulha espacial”:1952) e Tom Corbett, Space Cadet  (“Tom Corbett, cadete do espaço”: 1952-1956), cujas personagens também freqüentavam os jornais diários. Muitas das narrativas da época refletiam o militarismo - derivado da vitória na Segunda Guerra Mundial e da participação dos Estados Unidos na Guerra da Coréia (1950-1953) - e a paranóia anticomunista da primeira fase da Guerra Fria. O melhor da década, entretanto, ficou por conta da EC Comics, editora responsável por numerosas revistas, de horror algumas, de ficção científica outras (por exemplo, Weird Science Fantasy , Incredible Science Fiction ). Em tais publicações, entre 1950 e 1956, apareceram as melhores histórias de ficção científica em quadrinhos existentes até então, desenhadas por mestres como George Evans, Frank Frazetta, Wallace Wood, Al Williamson e outros. Tais histórias mostravam um gosto por finais surpreendentes que parece derivar da leitura de Philip K. Dick. Várias delas foram adaptações de contos de Ray Bradbury e, em menor quantidade, também de outros escritores (como a dupla de irmãos que assinava Eando Binder). O boom da década de 1950 foi interrompido - literalmente - pelos resultados da campanha contra os quadrinhos chefiada por um médico alemão emigrado para os Estados Unidos, Fredric Wertham (1895-1981), e da investigação levada a cabo por uma subcomissão do Senado, coisas que acabaram por confluir, levando ao surgimento do Comics Code (“Código das histórias em quadrinhos”), bem como da Comics Magazine Association of America (“Associação das revistas de histórias em qudrinhos dos Estados Unidos”) , que se encarregou da aplicação do código (1954).

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A campanha pública de Wertham começou em 1948, culminando no livro Seduction of the innocent  (“A sedução do inocente”), de 1954, em que expunha casos de delinqüência de menores em que os culpados sempre admitiam terem-se inspirado nas histórias em quadrinhos, assim enfocadas como um fator do aumento, percebido na época, da violência e da criminalidade, em sua modalidade infanto-juvenil. Em 1948 tal campanha já levara a queimas públicas de revistas de histórias em quadrinhos. O Senado instalou em 1950 uma comissão para investigar o crime organizado, a qual, numa subcomissão específica, ouviu grande quantidade de pessoas - incluindo o Dr. Wertham e desenhistas e editores dos quadrinhos - e, em 5 de junho de 1954, concluiu pela má influência dessa forma de expressão, em especial quando a temática fosse o crime ou o horror. Em tal contexto, ameaçados de extinção - a comissão senatorial recomendava a eliminação da produção, distribuição e venda das revistas em quadrinhos -, os editores dessas revistas formaram a sua Associação já mencionada; e esta adotou, em 26 de outubro de 1954, o aludido Comics Code, a ser por ela gerido, num processo de autocensura (o que a subcomissão senatorial declarou no ano seguinte ser um passo positivo). Posteriormente aplicado pela Comics Code Authority , o código foi modificado em 1971 e 1994; ainda em vigor na atualidade, na prática seu rigor diminuiu com o tempo. Mas tal código não parece ter resultado unicamente de uma reação de defesa dos editores ameaçados: houve, nele, um conluio dos outros editores contra o sucesso de público de William Gaines e sua EC Comics, no sentido de eliminá-los do mercado. Isto se nota, por exemplo, num dos pontos específicos do código em sua forma original: “Cenas que abordam - ou instrumentos associados a - mortos-vivos, tortura, vampiros e vampirismo, almas penadas, canibalismo e licantropia são  proibidas.” 10 A EC Comics tivera especial êxito em seus títulos de horror, recheados de almas do outro mundo, vampiros e lobisomens. E, de fato, Gaines retirou do mercado a maior parte de seus títulos pouco após a aprovação, pela subcomissão senatorial, do código e da Associação (que nomeara um admi nistrador do código) como “passos na direção certa”. Seguiu-se um período de estagnação e falta de originalidade nos quadrinhos dos Estados Unidos. Na Inglaterra, em 1950, surgiu a história em quadrinhos seriada  Dan Dare  pilot of the future (“Dan Dare: piloto do futuro”) - criada por Frank Hampson para o semanário infanto-juvenil Eagle -, que continuou até 1969, sendo retomada 10

SHUTT, Craig. “Código”. Wizard. 8, março de 1997, p. 48-51.

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posteriormente para durar até 1992. Mesmo na ausência de algo semelhante ao código norte-americano de 1954, as aventuras de Dan Dare se caracterizavam não só por evitarem temas ousados como o sexo, mas até mesmo pela escassez de personagens femininas. Eram, entretanto, muito bem-desenhadas. Desenvolviam temas espaciais e épicos, com conotação militar. Arthur C. Clarke foi consultor da série durante o primeiro semestre de existência da mesma. Nestas últimas décadas, em especial a partir da segunda metade da década de 1970, mudanças consideráveis na linguagem e nos temas chegaram ao mundo dos quadrinhos - incluindo os de ficção científica - por uma enorme influência das formas da narrativa cinematográfica e também, o que trataremos de detalhar a seguir, pela   junção de tradições da própria história em quadrinhos até então separadas ou paralelas. O sexo chegaria à história em quadrinhos de ficção científica através da série francesa  Barbarella, de Jean-Claude Forest, iniciada em 1962 na revista V. Magazine. As aventuras espaciais - numa paródia da space opera das revistas do tipo  pulp dos anos 1930 e 1940 - e acima de tudo eróticas da pouco vestida heroína fizeram escola dentro e fora da França (neste último país, os censores a perseguiram bastante). Filmada por Roger Vadim em 1967,  Barbarella influenciou em forma duradoura a temática da ficção científica em quadrinhos para adultos. Mas o influxo assim iniciado não foi unicamente temático: significou também o início de uma confluência de duas das grandes tradições da história em quadrinhos neste século - a anglo-saxônia e a franco-belga - em termos de ficção científica. Em tal sentido, foi ainda mais importante a difusão da estética e do estilo da revista francesa  Métal Hurlant  (19751987) fora de seu país de origem. A revista, em que atuaram artistas de peso, incluindo Forest, que antes criara  Barbarella, e sobretudo Moebius (Jean Giraud), foi influente ao ponto de suscitar similares nos Estados Unidos ( Heavy Metal: 1977- ), Itália, Holanda e Espanha. Além de inspirar tipos de ilustração e de disposição dos quadrinhos na página diferentes dos anteriormente existentes nos quadrinhos de ficção científica, enfatizou tematicamente o erotismo, o horror, o grotesco e o épico. Moebius, desde 1985 residente na Califórnia, atuou em áreas variadas além da que aqui nos interessa: foi, por exemplo, contratado em diversas ocasiões para elaborar o design de filmes importantes de ficção científica (como  Alien, o oitavo passageiro , de Ridley Scott, em 1979), aos quais levou uma tradição de desenho proveniente da linha franco-belga de histórias em quadrinhos. Paralelamente, ou talvez um pouco mais tarde, outra influência que se estava generalizando, em especial no enorme mercado norte-americano, era a da história em quadrinhos japonesa - sendo o Japão, por sua vez, um país com um imenso mercado próprio para os quadrinhos e uma tradição específica de desenho e diagramação.

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Os mangás japoneses são às vezes muito volumosos, lidos da direita para a esquerda. Contêm, eventualmente, mais de cem páginas em preto e branco (ou coloridas em cor única). Osami Tezuka, mais conhecido por seus desenhos animados, foi, logo após a Segunda Guerra Mundial, o criador do “mangá de história longa”, que capacitou narrativas mais complexas, às vezes, mesmo, com aprofundamento psicológico de personagens. Mais até do que nos Estados Unidos, as revistas em quadrinhos japonesas estabeleceram uma relação simbiótica com outros setores da cultura popular: muitas séries publicadas em mangás tornaram-se desenhos animados, seriados de televisão, filmes, jogos de vídeo ou computador, livros etc. A ficção científica é apenas um dos muitos gêneros - alguns não-ficcionais - cobertos pelo mangá japonês. Se continua sendo verdade que as mais populares destas revistas têm tiragens de mais de um milhão de exemplares, a indústria dos mangás atravessa problemas de mercado na atualidade, em parte devidos à forte concorrência de outras formas de lazer: aquelas ligadas ao computador, por exemplo. A maior diferença dos desenhos de mangá para com os das tradições ocidentais é que, sendo as histórias longas, os artistas desenham em forma mais caricatural, mais esboçando do que detalhando. Artistas norte-americanos que adotaram este estilo de traço são, por exemplo, Billy Tucci e Joe Madureira. Se examinarmos alguns títulos recentes, como por exemplo Primortals e Lost  Universe , ambos lançados em 1995 pela Tekno-Comix norte-americana, a confluência das tradições dos Estados Unidos, franco-belga e japonesa aparece muito claramente em diversos níveis: linguagem específica (no sentido semiótico do termo, isto é, verbal e não-verbal: no caso, gráfica) no uso do meio de expressão, temáticas, desenho. Outra tendência das últimas décadas é à multiplicação dos romances gráficos (graphic novels), desde fins da década de 1970 sobretudo. Podemos definir esta modalidade como sendo uma narrativa completa e autocontida em forma de revista (às vezes de livro) de história em quadrinhos. Não se trata de veículo novo: vimos que foi, mesmo, mais antigo do que os quadrinhos seriados dos jornais e das revistas. Neste século existiu, esporadicamente, em paralelo a estes últimos, por exemplo nos trabalhos de Frans Masereel (1889-1972). A expressão graphic novel foi cunhada em 1977 pelo veterano artista Will Eisner. Embora nos anos 1980 houvesse trabalhos neste formato - que permite a artistas ambiciosos uma amplitude de expressão bem maior do que em outros - destinados a um público adulto e apresentando um nível claramente superior à média das revistas de histórias seriadas em quadrinhos, devidos a artistas como Art Spiegelman, Alan Moore/David Gibbons ou Frank Moore, entre outros, na década de 1990 muitos romances gráficos são rotineiros e carecem de real interesse, apesar de seu alto preço de venda.

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2. Cinema 

A existência de uma enciclopédia relativa ao cinema de ficção científica cuja cobertura chega perto de estar completa (independentemente dos critérios de inclusão ou exclusão, sobre cujas bases não há unanimidade), compilada por Phil Hardy, permite-nos, de início, apresentar uma quantificação do gênero no cinema, de 1921 a 1993: isto é, a representação, numa curva estatística, dos lançamentos de filmes de ficção científica, ano a ano, durante o período em questão. Note-se que a enciclopédia mencionada provê informações desde 1895 e chega até 1994. Este último ano foi descartado por parecer incompleto no livro. Quanto ao período anterior a 1921, deixamos de incluí-lo por corresponder, grosso modo, à fase de constituição progressiva dos traços fundamentais dos códigos da representação e da narrativa cinematográficas. Noël Burch e Jorge Dana, que o afirmam para período ligeiramente diferente (1895-1919), acham, e estamos de acordo com eles, que mesmo a introdução posterior do cine sonoro significou um reforço dos códigos dominantes da imagem instaurados naqueles anos iniciais e, não, uma modificação deles em profundidade. Há autores, também, que ressaltam a importância, na formação do cinema narrativo clássico, de D. W. Griffith, razão pela qual restringem o seu período formativo propriamente dito aos anos 1908-1919: é o caso, por exemplo, de Ismail Xavier. Construímos o gráfico numa escala semilogarítmica, que torna as tendências mais visíveis. É possível analisar o gráfico em questão considerando quatro fases. A primeira, de 1921 a 1946, evidencia grandes oscilações - aumentadas ainda pela propensão dos pequenos números a apresentarem flutuações aleatórias pouco significativas estatisticamente - numa tendência geral marcada por um patamar numérico baixo: as oscilações envolvem cifras que, em média, se situam ao redor de seis filmes por ano. A depressão que encerra o período (1939-1946) corresponde, no essencial, à Segunda Guerra Mundial. Vem a seguir uma fase de pouco mais de uma década (1946-1958) caracterizada por uma ascensão abrupta, não isenta de oscilações, configurando uma nítida mudança de patamar: é o período conhecido como “o boom dos anos 50” no cinema de ficção científica. A partir de então pode-se falar com propriedade na existência da ficção científica como gênero cinematográfico.

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Curva dos lançamentos anuais de filmes de ficção científica (1921-1993), quantificando dados providos por Phil Hardy Fonte: HARDY, Phil (org.). Science fiction. Woodstock (New York): The Overlook Press, 1995. Coleção “The Overlook film encyclopedia”.

O período seguinte, 1958-1976, é de depressão em termos gerais, apesar de, paradoxalmente, conter um pico isolado que corresponde aos maiores números anuais de filmes de ficção científica até o presente, em dois anos subseqüentes - 47 em 1965, 46 em 1966 -, vindo a seguir uma retomada da tendência à queda. A depressão se explica por dois fatores básicos: 1) no cinema dos Estados Unidos, que quantitativamente domina a indústria mundial, houve uma tendência, após 1958, a que os grandes estúdios se retirassem por alguns anos do gênero, abandonando-o a pequenos produtores independentes, ocupando-se os primeiros, eventualmente, só da distribuição; 2) foram anos em que, no cinema, o horror suplantou e mesmo ocasionalmente substituiu a ficção científica: como, aliás, já havia acontecido nas décadas de 1930 e 1940, a não ser no tocante a seriados infanto-juvenis. O pico passageiro de 1965-1966 parece dever-se a uma presença conjuntural muito mais forte do que de costume, no cinema de ficção científica, das produções européias e  japonesas ao lado das dos Estados Unidos, situação que não iria durar. Temos, por fim, os anos 1976-1993, fase de expansão não desprovida de marcadas oscilações. É costume explicar-se este novo boom pelas repercussões do enorme sucesso financeiro de filmes como Guerra nas estrelas (1977), Contatos imediatos do terceiro grau (1977) e E.T. (1982), mas na verdade a curva já havia mudado de sentido um pouco antes. O aspecto acidentado da curva, em dentes de serra, liga-se muito provavelmente ao fato de dar-se esta expansão no contexto de uma indústria cinematográfica cujo ímpeto diminui na medida em que vai perdendo público, maciçamente, para a TV, os filmes feitos para televisão e a difusão da televisão a cabo. Observe-se que é perfeitamente factível considerar, em termos quantitativos, o conjunto dos anos 1958-1993 como um bloco: caracterizá-lo-ia um patamar elevado (mais do que quadruplicando aquele que vimos na primeira fase considerada), em média uns 28 filmes por ano, apesar de flutuações muito consideráveis. Uma vez feitas estas observações quantitativas, voltemos aos começos do cinema para analisar a trajetória da ficção científica nesse meio de expressão. Na era do cinema mudo, elementos de ficção científica estiveram presentes desde muito cedo: por exemplo, no filme de George Méliès  Le voyage dans la Lune

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(“Viagem à Lua”), de 1902. No entanto, existe bastante diferença entre a presença de alguns elementos típicos da ficção científica, por um lado, e filmes que de fato pertençam a tal gênero, por outro. Mais próximas do gênero estiveram, na década de 1920, quatro produções européias:  Metrópolis (1926) e Die Frau im Mond  (“A mulher  na Lua”: 1929), do alemão Fritz Lang; Paris qui dort  (“Paris adormecida”: 1923), do francês René Clair; e  Aelita (1924), do soviético Jakov Protazanov. Estes filmes, típicos do que poderíamos chamar de proto-ficção científica cinematográfica, evidenciam, no final da fase do cinema mudo, um contraste com os filmes dos Estados Unidos. Na Europa, em especial na Alemanha e na Rússia, notamos o impacto de um expressionismo cuja origem estava no teatro, em oposição a um predomínio entre os norte-americanos, já então, de uma busca da ação rápida, do apelo à técnica e aos objetos e do melodrama à maneira de Hollywood. Além disto, o nível daquilo que se produzia na Europa estava, então, muito acima do que saía dos estúdios dos Estados Unidos. É verdade que o diretor Fritz Lang teve uma fase estadounidense, à qual trouxe seu estilo expressionista. Já na época do cinema falado, as décadas de 1930 e 1940 se caracterizaram pelo fato de que os filmes de ficção científica propriamente ditos eram raros - o exemplo mais notável sendo o britânico Things to come (“Coisas vindouras”: 1936), dirigido por William Cameron Menzies, baseado em romance de H. G. Wells -, embora com muita freqüência aparecessem elementos do gênero em filmes que, no essencial, eram de horror - por exemplo o famoso Frankenstein de James Whale (1931). Assim, em minha opinião ainda não seria possível falar, em se tratando dessas décadas, da ficção científica como gênero cinematográfico já constituído. O mais próximo disto que havia eram, então, seriados para um público infanto-juvenil, muito semelhantes, em espírito, às épicas espaciais das revistas  pulp, ou space operas: é o caso das séries cujos protagonistas foram Flash Gordon (1936, 1938 e 1940) e Buck Rogers (1939), todas com o mesmo ator, Larry Buster Crabbe, feitas com orçamentos baixos e ostentando efeitos especiais pobres. É verdade, entretanto, que os efeitos especiais da época já podiam ser muito respeitáveis, como por exemplo no  Dr. Cyclops (“Dr. Cíclope”: 1940) de Ernest B. Schoedsack (com efeitos especiais de Farciot Edwards e Albert Hay), em que a miniaturização de seres humanos, mostrada com grande realismo, era muito convincente. Também é certo que os principais ingredientes temáticos e de linguagem para um cinema de ficção científica propriamente dito já estavam reunidos. Faltava algum catalisador que realizasse a junção deles, permitindo a constituição de um gênero cinematográfico plenamente caracterizado. Isto aconteceu em 1950.

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Os elementos catalisadores principais foram duas paranóias, típicas do início da Guerra Fria. Em primeiro lugar, o medo de uma invasão soviética e da bomba atômica em mãos comunistas: o que a bomba em questão podia fazer estava bem claro desde a devastação de Hiroshima e Nagasáki pelas bombas nucleares norteamericanas, em 1945. Em segundo lugar, a primeira fase das pretensas observações de discos voadores, começada em 1947, em conjunto com a idéia de que as autoridades da Força Aérea dos Estados Unidos estavam ocultando os fatos relativos aos discos para evitar o pânico. Também agiram como catalisadores a noção e a imagem, poderosas, derivadas das bombas V-2 e dos experimentos nessa linha continuados por técnicos alemães nos Estados Unidos e na União Soviética, levando a crer que a conquista do espaço já se tornara possível e que as primeiras espaçonaves humanas seriam impulsionadas por foguetes de forma cilindro-cônica. Que de fato fossem estes os catalisadores parece certo. Com freqüência, as naves em que os visitantes (quase sempre invasores) alienígenas chegavam à Terra nos filmes tomavam a forma de discos voadores, os quais podiam também, ocasionalmente, ser atribuídos a humanos do futuro (como em Planeta proibido, 1956). As espaçonaves humanas quase sempre eram, no entanto, foguetes cilindrocônicos. A bomba e a energia atômicas como temáticas eram um lugar comum no cinema da década, a ponto de se tornarem um clichê multifuncional, em especial criando monstros pela ação da radiação liberada provocando mutações - insetos, aracnídeos ou polvos gigantescos, por exemplo -, ou livrando dos gelos polares seres ameaçadores que hibernavam. Na década de 1950, então, surgiu por fim a ficção científica como gênero cinematográfico. Note-se que, como tal, é bastante diferente da ficção científica literária: volta-se menos para as idéias, insiste nos efeitos especiais e nas imagens de impacto. Sua linha narrativa é próxima à dos filmes de horror. Com a diferença, entretanto, de que na década de 1950 era a ficção científica que, contendo elementos de horror, tendia a subsumir este último gênero em seus filmes de monstros invasores - por um curto período, entretanto. Tais filmes não eram propriamente pessimistas: monstros e invasores, na maioria dos casos, acabavam sendo vencidos pelos militares ou pela iniciativa de heróis (eventualmente cientistas) marcados por forte individualismo, bem ao gosto da cultura popular em sua vertente ocidental. O predomínio da chegada de invasores -  A guerra dos mundos (The war of  the worlds: 1952),  Assassinos do espaço (Killers from space: 1954) e tantos outros -, ou de visitantes sem intenções de conquista, embora com menor freqüência - O dia em que a Terra parou (The day the earth stood still : 1951), O meteoro do espaço ( It came  from outer space: 1953)  , O homem do planeta X  (The man from planet X : 1951) -, bem como dos filmes de monstros em sua maioria, mas não sempre, derivados da

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radiação atômica ou por ela liberados - Tarântula (Tarantula: 1955), O escorpião negro (The black scorpion : 1957), O monstro da Lagoa Negra (Creature from the black lagoon : 1954), diversos monstros imaginados pelo cinema japonês - sobre filmes cujos temas fossem a viagem espacial e a descrição de outros mundos  Mundos em colisão (When worlds collide : 1951), A conquista do espaço (Conquest of  space: 1955), Planeta proibido (Forbidden planet : 1956),  Náufragos do infinito (This island earth: 1955) - se devia sobretudo a serem estes últimos muito mais caros em sua produção, sendo difícil obter imagens convincentes do espaço sideral e de mundos alienígenas; mas também o explica o fato de que os filmes de monstros e invasões eram, além de baratos, muito populares. Alguns temas que vinham de décadas passadas, como a invisibilidade e a miniaturização de seres humanos, ao lado de temas novos que emergiam ou tinham algum desenvolvimento pela primeira vez robôs, a revolta de um computador superpoderoso - apareciam num plano secundário em relação às temáticas predominantes já mencionadas. Era notável, também, o subtexto religioso presente em numerosos filmes:  Mundos em colisão,  A guerra dos mundos , A conquista do espaço. Depois de 1958, os grandes estúdios se afastaram temporariamente do gênero. Mas este já estava definitivamente instalado no cinema. Por enquanto, como setor de filmes predominantemente infanto-juvenis, na esteira dos seriados cinematográficos que haviam começado na década de 1930. Se bem que, na sua maioria, os filmes de ficção científica da década de 1950 apresentassem uma qualidade ruim ou duvidosa, houve também obras-primas indubitáveis. Foi o caso de O dia em que a Terra parou (1951), em que numerosos elementos positivos - um roteiro de bom nível literário (redigido por Edmund H. North), a economia narrativa do diretor Robert Wise, bons atores (Michael Rennie, Patricia Neal, Hugh Marlowe), imagens poderosas (como a do robô Gort), cinematografia e efeitos especiais respeitáveis (devidos a Leo Tover e Fred Sersen), por fim a trilha musical muito imitada de Bernard Herrmann - convergiram no surgimento de um dos melhores filmes de ficção científica de todos os tempos. Outro exemplo: Planeta proibido (1956), dirigido por Fred M. Wilcox, cujas imagens do espaço e de um outro mundo permaneceram inigualáveis até ser lançado, doze anos mais tarde, o 2001 de Kubrick. A década de 1960, antes de 1968, teve suas melhores produções saídas do cinema europeu, enquanto, nos Estados Unidos, o horror se emancipava e, como no passado, tendia a eclipsar a ficção científica como gênero cinematográfico por vários anos - coisa que também aconteceu, mas só em parte, na Inglaterra. Da nouvelle vague francesa resultaram  Alphaville (1965), de Jean-Luc Godard, Fahrenheit 451 (1966), filme britânico mas dirigido por François Truffaut, e  Je t’aime, je t’aime (“Eu te amo, eu te amo”: 1967), de Alain Resnais. Também da França veio  Barbarella (1967), de

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Roger Vadim. Todos estes eram filmes para adultos, de um nível impossível de achar nos Estados Unidos na mesma época. Boa qualidade aparecia mais, no cinema norteamericano, em produções que só marginalmente podiam adscrever-se à ficção científica, embora dela incluíssem vários elementos: é o caso dos filmes fortemente distópicos e conspiratórios de John Frankenheimer - Sob o domínio do mal (The  Manchurian candidate : 1962), Sete dias de maio (Seven days in May : 1964) -, de Os  pássaros (The birds: 1963) de Alfred Hitchcock ou do   Dr. Fantástico ( Doctor  Strangelove, or how I learned to stop worrying and love the bomb : 1964) de Stanley Kubrick. Tais obras pareciam indicar que os monstros fossem provenientes pelo menos em boa parte de dentro, não de fora dos Estados Unidos - ou, mais em geral, do mundo ocidental, com sua cultura característica e seus valores agora postos em dúvida. Na Grã-Bretanha, aspectos da ficção científica foram incluídos em filmes de suspense de enorme sucesso, os da série cujo protagonista era o agente 007, James Bond. Podemos considerar 1968 como um momento de especial importância no cinema de ficção científica dos Estados Unidos: foi o ano de 2001: uma odisséia no espaço (2001 - a space odyssey ) , de Stanley Kubrick, O planeta dos macacos (Planet  of the apes), de Franklyn J. Schaffner, e  A noite dos mortos-vivos ( Night of the living dead ), de George A. Romero. Os dois primeiros pertenciam ao gênero; o último, só marginalmente: mas os três tiveram um efeito muito forte nas temáticas e na linguagem cinematográfica da ficção científica posterior. Uma ficção científica quase sempre distópica e decididamente para adultos, numa fase de crescente perda de confiança no sistema norte-americano, na ciência como valor positivo e na civilização ocidental. Na década de 1970, as tendências que pesavam acima de tudo sobre a indústria cinematográfica tinham a ver com custos de produção crescentes ao ponto de tornar-se astronômicos, ao passo que ocorria uma retração do público; isto significava que menos filmes eram produzidos. Já na década anterior, dera-se o retorno dos grandes estúdios e dos grandes orçamentos ao cinema de ficção científica. Agora estes, no tocante ao gênero que nos ocupa, apostavam de preferência nos efeitos especiais, como também acontecia, paralelamente, nos filmes então populares que enfocavam desastres (incêndios, terremotos, acidentes aéreos...). O cinema configurado como grande espetáculo parecia o único capaz de competir com a telinha da TV. Não faltam exemplos de filmes em que os efeitos especiais primavam - e de longe - sobre as qualidades de narrativa, ou quaisquer outras (  Rollerball: os gladiadores do futuro - Rollerball , 1975; Fuga do século 23 - Logan’s run, 1976). E há, obviamente, exceções positivas, como  Laranja mecânica (  A clockwork orange: 1971), de Stanley Kubrick, o desigual mas inovador O homem que caiu na Terra (The

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man who fell to earth : 1976), de Nicolas Roeg, ou o magnífico filme soviético Soláris (Solaris: 1971), de Andrei Tarkovsky. A aposta nos efeitos especiais e no grande espetáculo culminou no que muitos acham ser o segundo grande boom do gênero, inaugurado pelo sucesso financeiro de Guerra nas estrelas (Star wars: 1977) e Contatos imediatos do terceiro grau (Close encounters of the third kind : 1977), passando por   Alien: o oitavo  passageiro ( Alien: 1979),  Blade runner: o caçador de andróides ( Blade runner : 1982) e E.T, o extraterrestre (E.T., the extraterrestrial : 1982), para estender-se até a atualidade, embora com flutuações às vezes violentas, função, entre outros fatores, de uma história complicada dos grandes estúdios cinematográficos e do controle capitalista sobre os mesmos. Este segundo boom contém elementos bastante variados, às vezes contraditórios, num cinema de ficção científica, no conjunto, altamente comercial. Uma volta do otimismo, numa onda escapista (até mesmo desembocando em filmes bem-comportados “para toda a família”) e às vezes encharcada de sentimentalismo açucarado e boçal. Uma visão mais distópica do que nunca do futuro próximo, lançando a tendência chamada cyberpunk . Uma continuação da exploração comercial do sexo na ficção científica, algo presente desde  Barbarella. Uma fase fortemente conservadora dos estúdios, conduzindo-os a querer repetir os sucessos com continuações quase sempre lamentáveis, ou através de refilmagens de êxitos do passado raramente bem-sucedidas; e limitadora da inventividade, sendo a aposta habitual principalmente nos efeitos especiais - a que o computador trouxe uma renovação de meios e uma qualidade sem precedentes na década de 1990 -, na violência, no sexo, na reiteração incansável das mesmas fórmulas visuais ou narrativas e no emprego de atores famosos. Mais inventivas costumam ser as produções independentes, fora dos grandes estúdios (as do primeiro David Cronenberg, por exemplo). 3. Rádio 

  Na “era de ouro” do rádio nos Estados Unidos - 1930-1950 -, era bem mais freqüente a presença de elementos de ficção científica em dramatizações de outros gêneros (horror, aventura, mundos perdidos) do que, propriamente, de ficção científica no sentido exato do termo. Um exemplo disto foram os programas produzidos por Carlton E. Morse, em São Francisco (Califórnia), desde 1929. Antes de ser um seriado destinado às matinês cinematográficas infantis,  Buck    Rogers no século XXV  foi um seriado de rádio, iniciado em 1932, baseando-se na história em quadrinhos publicada em jornais; vinculou-se principalmente ao trabalho do produtor Jack Johnstone. Com freqüência, os episódios tinham mais de autêntica

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ficção científica do que a história em quadrinhos, bem como um nível bastante aceitável. Nos anos 1950, séries de TV geraram séries radiofônicas - por exemplo Space patrol (“Patrulha espacial”) e Space cadet  (“O cadete do espaço”) - que, entretanto, eram originais e, não, repetições ou adaptações dos episódios televisivos. Sempre no domínio do público infanto-juvenil, o seriado Super-Homem (19401952), proveniente, como Buck Rogers, das histórias em quadrinhos, no rádio teve menos de ficção científica. Curiosamente, Batman e Robin apareciam ocasionalmente no programa como personagens convidadas. No período 1933-1951, uma das séries radiofônicas de grande audiência foi  Jack Armstrong, the all-American boy (“Jack Armstrong, o típico garoto americano”): em 1938, o interesse nacional pela questão da energia atômica levou a episódios em que a personagem em questão levava a cabo experimentos com um isótopo, o urânio 235. Um dos produtores e escritores mais capazes de usar de modo adequado a linguagem do rádio, baseada exclusivamente em palavras, sons e música, foi Arch Oboler, o qual se especializou no horror, ocasionalmente com toques de ficção científica, em especial no programa  Lights out  (“Luzes apagadas”), iniciado em 1938. Como outras pessoas ligadas ao rádio como meio, Oboler se caracterizou por um grande ódio à TV, que, na década de 50, adquiriu a primazia e roubou-lhe a audiência. Em 1953, dirigiu um filme mais curioso do que bom, The twonky - uma sátira que prenunciava Videodrome, a síndrome do vídeo (1982) -, baseado num conto do escritor de ficção científica Henry Kuttner: um homem ganha de presente de sua esposa um aparelho de TV que funciona como se fosse um ser pensante, começa a controlar-lhe a vida e, no final, deve ser destruído. Stephen King recorda que, quando criança, ficou apavorado com uma das emissões do programa de ficção científica  Dimension X  (“Dimensão X”), adaptação de um dos contos - de fato potencialmente assustador - integrante das Crônicas marcianas de Ray Bradbury, provavelmente em 1951. Quase todos os que viveram a era do rádio se lembram de alguma experiência similar. Uma das vantagens do rádio é uma facilidade maior do que a da TV no sentido de obter credibilidade, já que se limita ao meio sonoro: as imagens ficam por conta da imaginação do ouvinte, enquanto na televisão, como também no cinema, imagens de baixo nível devido a um orçamento insuficiente podem, com alguma facilidade, estragar até mesmo boas idéias, ao impedirem a suspensão da incredulidade sem a qual não se entra no jogo de uma narrativa qualquer. O ápice das experiências radiofônicas dos Estados Unidos no domínio da ficção científica foi a emissão do   Mercury theater on the air  (“Teatro Mercúrio do ar”), programa cujo produtor e estrela era Orson Welles (1915-1985), que, em 1938,

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apresentou uma adaptação do romance   A guerra dos mundos, de H. G. Wells, na forma de rádio-jornalismo. Milhares de ouvintes de fato acreditaram numa invasão da Terra pelos marcianos e fugiram em pânico, causando gigantescos engarrafamentos nas estradas. É possível que tenha sido este, aliás, o mais famoso programa de rádio de qualquer tipo em toda a história. A BBC inglesa reprisou-o em 1991. Welles também fez uma adaptação radiofônica do Frankenstein de Mary Shelley. A situação do rádio em países como a Grã-Bretanha e a França foi muito diferente da dos Estados Unidos, devido à presença duradoura de emissoras estatais poderosas e consistentes. A BBC britânica, por exemplo, não dependia de publicidade para manter-se e não tinha, portanto, de interromper seus programas para anúncios. Pela mesma razão, sobreviveu melhor à concorrência da televisão. O rádio, no Reino Unido, desde a década de 1930 difundiu adaptações da obra de grandes autores da ficção científica, como H. G. Wells e, bem mais tarde, Brian Aldiss ou John Christopher. E, ao fazê-lo, não pensava num público unicamente infanto-juvenil, como era o mais comum nos Estados Unidos: havia, sem dúvida, programas para crianças e adolescentes mas, também, outros para adultos. Uma das séries noturnas de maior sucesso no rádio britânico, na década de 1950 (embora de curta duração: 1953 a 1955), foi  Journey into space (“Viagem espacial”). Seu herói, Jet Morgan, que viajava à Lua e a Marte, chegou a ter uma audiência de cinco milhões de pessoas, a maior da história do rádio britânico; suas aventuras fora m vendidas para mais de meia centena de países, geraram livros e uma história em quadrinhos. Outra série similar da mesma época, neste caso derivada de uma famosa história em quadrinhos de longa duração, foi   Dan Dare, programa de aventuras espaciais. Mesmo se a decadência do rádio não foi tão profunda no Reino Unido quanto nos Estados Unidos, ele sem dúvida perdeu espaço para a TV também lá. Ainda assim, na década de 1970 e nas seguintes continuaram as iniciativas radiofônicas de peso, como a dramatização em seis episódios da famosa trilogia de Isaac Asimov (Fundação, Fundação e Império, Segunda Fundação ). 4. Televisão 

A televisão norte-americana é e sempre foi extremamente hierarquizada: só os programas consistentemente incluídos entre os de maior audiência têm orçamentos polpudos. Isto, sobretudo nos anos 1950, significava para a ficção científica considerada como veículo infanto-juvenil - um financiamento extremamente baixo. O que, somado ao fato de serem os programas transmitidos ao vivo naquela época, explica a aparência tão pobre dos episódios que, tendo-se conservado em filme, podem ser revistos hoje. Mas, mesmo mais tarde, muitas tentativas de montar um bom

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programa com elementos de ficção científica, atraindo bons escritores, como a de Steven Spielberg com Amazing stories ( Histórias maravilhosas / Contos assombrosos), em 1985-1987, deram resultados comercialmente medíocres e não puderam durar. A ficção científica, dentre os gêneros da literatura popular, é talvez o que mais lida com idéias. Mas a televisão comercial, sob pressão constante de patrocinadores desejosos de evitar qualquer ponto de controvérsia, é inimiga figadal das idéias, ao optar quase sempre pelo populismo que consiste em apelar para o nível mais baixo do público, que ela trata como se fosse constituído inteiramente de iletrados ou débeis mentais. Pela mesma razão, o desejo de aproveitar na TV o êxito do novo boom cinematográfico inaugurado por Guerra nas estrelas e Contatos imediatos do terceiro grau (ambos de 1977) fracassou rotundamente nos Estados Unidos. A coisa funcionou de modo bastante diferente no Reino Unido ou na França devido, também neste caso, à presença das emissoras estatais. As estações particulares surgidas depois tiveram de competir com os níveis bastante mais elevados de uma BBC, por exemplo, o que pode explicar uma TV que é mais intessante do que a norteamericana, além de se aventurar e ousar muito mais. No entanto, mesmo entre os britânicos, a ficção científica televisiva foi prejudicada pelo preconceito que a relegava quase sempre a gênero para crianças. Na televisão norte-americana, a primeira série de ficção científica foi Captain Video (“Capitão Vídeo”: 1949-1953, 1955-1956). Seguiram-se outras -  Buck   Rogers (1950-1951), Tom Corbett , space cadet  (“Tom Corbett, cadete do espaço”: 1950-1955), Space patrol (“Patrulha espacial”: 1950 -1955) etc. -, todas com orçamentos baixíssimos e grande pobreza de cenários e efeitos especiais. Estes últimos tinham de ser filmados previamente e então inseridos, por meio duma câmera que apontava para a lente de um projetor cinematográfico, quase sempre de modo perceptivelmente artificial, rompendo a unidade do episódio. Tais séries se basearam em fórmulas derivadas, seja dos seriados das matinês de cinema, seja do rádio das décadas de 1930 e 1940, não da literatura de ficção científica. A ciência, aliás, tinha nelas participação muito pequena, com a exceção de Tom Corbett , que contou como consultor científico com o famoso Willy Ley, autor de livros não-ficcionais acerca dos outros planetas e das futuras viagens espaciais. Na Grã-Bretanha, apesar de tudo, o panorama foi mais animador. Uma das razões parece ter sido que, ao contrário da TV norte-americana - na qual a ficção científica levava-se a sério a ponto de adotar um tom ocasionalmente pomposo e declamatório, apesar de sua pobreza, o que a tornava um tanto ridícula por suas pretensões irrealizáveis -, na do Reino Unido, sobretudo ao tratar-se de séries infanto juvenis, havia sempre um enfoque humorístico e um tanto irônico que salvaguardava os programas. Os melhores, entretanto, foram para adultos.

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Em 1954, a adaptação televisiva de Nigel Kneale do romance 1984, de George Orwell, publicado em 1949, foi a mais fiel e interessante de todas as que existiram até a presente data, sem excetuar as duas tentativas cinematográficas de 1955 e 1984. Por outro lado, da década de 1950 foi também a série The Quatermass experiment  (“O experimento de Quatermass”: 1953, 1955, 1958 -1959), muito superior a qualquer coisa que os Estados Unidos pudessem mostrar naquela época. A BBC, sendo pública, dava maior liberdade e orçamentos menos ridículos aos produtores britânicos. A ausência de anúncios, outrossim, tornava desnecessário um ritmo quebrado por suspenses artificiais, típico dos programas norte-americanos. Nos Estados Unidos, foram de melhor nível duas séries que misturavam horror, fantasia e ficção científica: The twilight zone (  Além da imaginação: 19591964), criada por Rod Serling, e The outer limits ( No limite da realidade : 1963-1966). Na década de 1960, entretanto, a série mais importante, em especial pelas repercussões que teve posteriormente, gerando numerosos filmes, novas séries de TV, livros, fotonovelas, histórias em quadrinhos, objetos variados de marketing, para não mencionar convenções e clubes de fãs, foi  Jornada nas estrelas (Star trek , 19661969), criada por Gene Roddenberry. Apresentava roteiros de alguns bons escritores, em especial nos dois primeiros anos - Robert Bloch, Richard Matheson, Norman Spinrad, Theodore Sturgeon, Jerry Sohl -, e era dotada de um orçamento relativamente alto para a televisão, bem como de atores com que o público se identificou, com destaque para a personagem Spock, de orelhas pontudas, um ser meio humano e meio alienígena, representado por Leonard Nimoy. O programa sofreu, no entanto, com a repetição incansável da mesma fórmula: a tripulação da nave espacial Enterprise, a cada episódio, encontrava alguma ameaça, quase sempre alienígena - monstro, pseudo-deus, telepata, animal de rápida reprodução etc. -, que, após pôr em perigo os tripulantes, era por fim contornada ou vencida. O melhor roteiro foi o do episódio City on the edge of forever  (“Cidade à beira da eternidade”, 1967), redigido por Harlan Ellison, ganhador de um prêmio Hugo em 1968: sintomaticamente, este roteiro premiado escapava à fórmula habitual da série. No Reino Unido, uma série que merece menção especial é   Dr. Who, transmitida desde 1963 até 1992 sem interrupções de monta, com elencos, produtores e diretores que variaram com os anos. Trata-se de um programa infanto-juvenil, mas de grande sucesso junto a um público numeroso de todas as idades. Sua permanência só é explicável pela existência da BBC: nos Estados Unidos, uma série similar, mesmo com o êxito que quase sempre teve esta que examinamos, não poderia sobreviver por três décadas às flutuações de audiência, inevitáveis num período tão longo. A personagem-título é um extra-terrestre instalado na Terra, o qual viaja no tempo e no espaço, envolvendo-se em aventuras variadas. A mudança, ao longo dos

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anos, dos atores que desempenharam o papel foi racionalizada com a afirmação de o Dr. Who ser capaz, de vez em quando, de regenerar o seu corpo, adquirindo por tal razão nova fisionomia. Embora, como Jornada nas estrelas , esta série apresente pelo menos um monstro por episódio, e mesmo que ela tenha ido buscar nas revistas  pulp uma multidão de idéias e roteiros, sua inteligência e humor são bem superiores. Os monstros de maior popularidade foram os Daleks, criaturas malignas, instaladas no interior de robôs e decididas a acabar com os humanos. A série - cujo auge de popularidade deu-se na década de 1970 - desembocou em dois filmes para o cinema e mesmo numa outra série de TV em 14 episódios, em 1986 ( The trial of a time lord : “O julgamento de um senhor do tempo”). Os esforços televisivos na área da ficção científica são bem mais respeitáveis no Reino Unido do que nos Estados Unidos; mas em ambos os casos, numa trajetória que já se aproxima de meio século de duração, o gênero, no conjunto, não tem dado bons resultados na TV, sendo, nela, de nível médio muito inferior ao da literatura, mesmo ao do cinema. Aliás, filmes de sucesso geraram séries ou minisséries de televisão, sobretudo nos Estados Unidos, só para naufragar melancolicamente na rotina, na política medíocre de grupos fechados (quase sempre os mesmos diretores e escritores), também em controles e pressões que estrangulam a televisão como veículo inteligente e criativo. É verdade, no entanto, que a profissionalização e a qualidade técnica, incluindo a dos efeitos especiais, melhoraram muitíssimo ao longo dos anos. A fórmula da década de 1990, nos Estados Unidos, parece ter apostado em substituir a ênfase no monstro de cada episódio por uma insistência no dilema moral de cada episódio, além de aderir ao “politicamente correto” e ao multiculturalismo pós moderno. Tem em comum com as fórmulas que a precederam uma robusta afirmação do individualismo burguês como valor máximo, mesmo se temperado pelo espírito de equipe. Com o desenvolvimento dos filmes de longa metragem feitos para a TV e sobretudo, mais recentemente, para a TV a cabo - refiro-me em especial a filmes que não tivessem a pretensão de ser pilotos servindo ao lançamento de séries -, algumas coisas mais interessantes puderam surgir. Um bom exemplo é o filme Protótipo 2-VR (Prototype: 1983), dirigido por David Greene para a TVM. Além de contar com um ator de excelente nível, Christopher Plummer, no papel do cientista-inventor, trata-se de uma retomada inteligente, em termos da criação de um robô-andróide, do tema de Frankenstein e sua criatura, tema este que, desde 1818, já teve tempo de transformarse num mito moderno e num paradigma referencial.

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IV. Alguns temas da ficção científica 1. Em busca de um contexto 

Não é tão difícil elaborar, empiricamente, uma lista dos temas freqüentados pela narrativa de ficção científica em seus principais veículos (romances e contos, cinema, história em quadrinhos, rádio, TV). Para citar um exemplo brasileiro, o filósofo Raul Fiker, ele mesmo autor de contos de ficção científica, escolheu fazê-lo usando um método simples: basear-se no índice de uma enciclopédia organizada tematicamente. Assim procedendo, listou as temáticas seguintes: 1) viagens em naves interplanetárias e interestelares; 2) exploração e colonização de outros mundos; 3) guerras e armamentos fantásticos; 4) antecipação, futuros e passados alternativos; 5) utopias e distopias; 6) cataclismas e apocalipses; 7) mundos perdidos e mundos paralelos; 8) viagens no tempo; 9) tecnologia e artefatos; 10) cidades e culturas; 11) robôs e andróides; 12) computadores; 13) mutantes; 14) poderes extra-sensoriais. 11 A lista, como qualquer outra que se fizesse, é discutível em suas inclusões e exclusões, bem como em sua organização interna. Será desejável, por exemplo, discutir discutir robôs ro bôs e andróides por um lado, computadores por outro, em lugar de reuni-los r euni-los sob a temática maior das inteligências artificiais, em função de um substrato arquetípico comum que inclui tanto mitos antigos, como o de Pigmalião, quanto modernos, como o de Frankenstein e sua criatura? É perfeitamente possível, no entanto, a partir daquele rol, abordar descritivamente o assunto dos temas do gênero de maneira ordenada e didática. Fiker, aliás, tem o cuidado de mostrar que os temas se mesclam, também que podem degenerar em clichês ou estereótipos; e tenta tirar de sua análise uma conclusão acerca da ideologia predominante na ficção científica (com a qual não estou de acordo, mas isto é outra questão). Quero, aqui, expor o contexto que me parece o mais adequado para pôr em perspectiva as temáticas da ficção científica. Em minha opinião, tal contexto, relativo à visão de mundo contemporânea, organiza-se numa oposição polar - variável no tempo quanto aos detalhes de seus conteúdos - em que cada um dos pólos pode dar lugar a posições diferentes ou mesmo opostas de parte dos autores de ficção científica nos diferentes veículos em que ela se expressa; se bem que, numa análise detalhada, que não vou empreender, seria possível distinguir em tais veículos variações quanto a isso. O primeiro pólo poderia ser chamado de ultrapassagem dos limites ; o segundo, de limites apesar de tudo . 11

FIKER, Raul. Ficção científica. Ficção, ciência ou uma épica da época? Porto Alegre: L & PM, 1985, pp. 44-45. A enciclopédia utilizada foi: ASH, Brian (org.). The visual encyclopedia of science  fiction. London: Pan, 1977.

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1) Um universo estável, recente (com uns 6000 anos de existência), onde uma humanidade considerada como habitante do centro desse universo, criada separadamente e posta à frente dos outros seres vivos do planeta, se organizaria de forma também imutável vem cedendo o lugar, desde o século XVII, a um universo diferente, bem como a uma percepção diversa do humano. As revoluções sociais e políticas contemporâneas - Francesa, de 1830, de 1848, Comuna de Paris, Revolução Russa de 1917, entre outras - demonstraram que as sociedades humanas são mutáveis. Elas podem transformar-se, seja por meio de processos longos e lentos sobre os quais não parece que indivíduos ou grupos tenham grande controle em termos gerais - revolução agrícola, revolução urbana, revolução demográfica, revolução industrial -, seja no curto prazo, em processos que dão a impressão de ligar-se mais à vontade e à decisão. As revoluções político-sociais e, depois, a crescente intervenção de políticas estatais em múltiplos domínios do social cujo controle, no passado, considerava-se vinculado exclusivamente a fatores naturais, foram os elementos que abriram caminho a que os historiadores pudessem perceber igualmente aqueles processos estruturais e lentos de mudança. Tudo isto significou uma profunda reinterpretação do tempo no contexto do humano. Vimos já que, sem isto, a ficção científica como gênero seria impossível. A percepção do tempo também mudou por outro caminho. Desde que Darwin propôs uma forma convincente de teoria da evolução biológica das espécies modificada e aperfeiçoada, décadas mais tarde, pela descoberta das mutações rápidas, rompendo com o gradualismo anterior, mais perto de nós pela interpretação do código genético -, o criacionismo religioso intransigente, com suas espécies imóveis e sua criação especial do ser humano, ficou cada vez mais difícil de defender racionalmente. Ao mesmo tempo, os progressos da astronomia, da cosmologia, da geologia e da paleontologia descartavam a possibilidade de um universo de curta duração em que a humanidade fosse mais ou menos coetânea com o “início dos tempos”. Sendo o homem um animal relativamente recente em termos geológicos, tão dependente da evolução biológica para seu surgimento no planeta quanto os outros, isto inaugurou interessantes especulações. Na medida em que existem, apesar de tudo, diferenças importantes entre nós e os outros animais, a que se devem? Ou, em outras palavras, o que nos torna humanos? A linguagem articulada e o raciocínio simbólico, ou a fabricação de instrumentos? Como se dará doravante a evolução biológica da humanidade? Pode tal evolução ser precipitada por elementos decorrentes da própria ação humana, como radiações atômicas provocando mutações, em analogia com a teoria que vincula as mutações biológicas à incidência de raios cósmicos? Todas estas

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aparecem como indagações que devem ser situadas no bojo de um tempo natural e social reinterpretado. As mesmas influências deram lugar, igualmente, a tentações  pseudocientíficas, como o darwinismo social ou a teoria do “macaco assassino”, que funcionaram como tentativas de achar uma caução natural (biológica, genética) ao imperialismo, à territorialidade e à agressão bélica. As teorias pseudocientíficas resultantes influenciaram as temáticas da ficção científica, talvez tanto quanto a ciência autêntica. Por fim, se o tempo sofria mudanças, a antropologia contemporânea reformulou o espaço mediante o reconhecimento da alteridade cultural, da multiplicidade das culturas e do direito delas a serem diferentes umas das outras. Empiricamente, isto já havia sido constatado, com tremendas repercussões e num quadro de muito menor tole to lerância rância para com co m a diferença, desde as grandes navegações naveg ações e a colonização da América. Os estudos antropológicos, já neste século, acabaram,   porém, por desembocar na idéia de que a percepção do “outro” não se refere unicamente às culturas exóticas, estende-se ao próprio mundo ocidental. No contexto de um movimento negro altamente militante, em especial nos Estados Unidos e na África do Sul, da descolonização e do ingresso à ONU dos novos países independentes da África, da Ásia, da Oceania e do Caribe, do acesso crescente das mulheres ao mercado de trabalho e de suas reivindicações de igualdade de direitos e oportunidades em dimensões desconhecidas no passado, da chamada “revolução sexual”, configuraramconfiguraram -se teorias que podem ser sintetizadas na noção de uma “culpa do Ocidente”. Retomaram, em novo contexto, a hi stória da colonização, moderna tanto quanto contemporânea, vista como história de massacres, confiscos e opressões; e, no seio da própria sociedade ocidental, em função de outras opressões e discriminações, serviram de embasamento (entre outros) a movimentos como o feminismo, o ecologismo, a liberação sexual.

2) Passando ao segundo pólo, é preciso ter consciência de que, apesar da crescente quebra da crença na imobilidade, por mais que existam a ultrapassagem dos limites tradicionais e a percepção da diferença, também continuam existindo, afinal de contas, limites que, pelo menos até agora, permanecem inamovíveis. Tais limites movem-se no tempo, sem dúvida. Assim, por exemplo, a teoria de que o nosso sistema solar seria uma aberração no universo, de que só o nosso Sol teria planetas à sua volta, se bem que há bastante tempo fosse muito minoritária entre astrônomos e cosmólogos, até estes últimos anos (e o telescópio Hubble, em especial) podia continuar a ser esgrimida por religiosos fundamentalistas ou cientistas conservadores,

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por faltarem provas conclusivas ou insofismáveis da existência de planetas fora do sistema solar - provas que, na atualidade, já existem. Alguns dos limites persistentes são físicos. Por exemplo, o tempo, para todos os efeitos práticos, flui num único sentido, do passado para o presente e deste para o futuro, por mais que a teoria quântica possa abrir caminho à noção da reversibilidade do tempo no nível das partículas elementares; e embora existam especulações a partir da teoria da relatividade - especulações não baseadas em observações, é bom lembrar - acerca de deslocamentos do fluxo temporal em função de objetos (teóricos somente até o momento) conhecidos como buracos negros, buracos brancos e buracos de verme. Outrossim, a teoria da relatividade estabelece a velocidade da luz como limite absoluto das velocidades. Os seres orgânicos, como nós, sendo materiais, ficam portanto limitados nas possibilidades, mesmo futuras, de seus deslocamentos por tal velocidade absoluta; a própria velocidade da luz, aliás, é-nos vedada pelo fato de que, ao ser atingida, a matéria se torna energia. No campo da biologia, o limite básico é que, até o momento, não há provas cabais da existência de vida num mundo que não seja o nosso. Neste planeta, a vida depende de coisas como a presença da água como dissolvente universal, uma atmosfera rica em oxigênio, cadeias de hidrogênio e carbono, um mecanismo específico de hereditariedade vinculado ao código genético. Este último elemento mostra que a descoberta do ADN, se rompeu limites e abriu caminho à engenharia genética, também estabeleceu um novo limite, como sói ocorrer com as descobertas importantes. A exobiologia, até agora, é uma disciplina hipotética, baseada exclusivamente na extrapolação a partir da única vida conhecida. Os corolários do anterior são, para o que nos interessa, principalmente, os seguintes. As únicas sociedades documentadas - das formigas, das abelhas, dos térmitas, humanas - são terrestres. A única inteligência biológica documentada baseiase no desenvolvimento do cérebro nos animais neste único planeta, em especial no animal humano. Tais corolários, na ficção científica, resultam por sua vez em outros, específicos, no nível das temáticas relativas à vida extraterrestre. Por diferentes de nós que sejam na aparência os extraterrestres que ela descreve, no fundo, quando inteligíveis e situados nos limites de especulações racionalmente aceitáveis, não passam de projeções da vida terrestre e, mesmo, quando inteligentes, das características dos humanos: suas motivações são semelhantes, por exemplo. Ao serem ultrapassados os limites de tais hipóstases do terrestre e do humano, surgem (ficticiamente) extraterrestres por definição incompreensíveis, com os quais a comunicação deveria ser totalmente impossível - embora nem sempre o seja nas narrativas ficcionais, pois já vimos que a ficção científica nem sempre é muito científica ou, mesmo, muito lógica e coerente.

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*** No mundo da ficção científica, tanto quanto em geral, os dois pólos sintetizados acima são vividos segundo posições variadas, quando não simetricamente opostas. Assim, o que chamamos de “ultrapassagem dos limites”, em qualquer de suas modalidades, pode ser encarado como um mal, a ciência como uma blasfêmia, a modernidade - ou a urbanização acelerada, ou as máquinas - como desumanização   pela destruição dos “verdadeiros” valores etc. Ou, pelo contrário, pode constituir a base de uma visão positiva e conquistadora que pretenda ampliar mais ainda, ficcionalmente, aquela ultrapassagem. Os limites até agora intransponíveis da velocidade da luz ou da irreversibilidade do tempo, por sua vez, serão eventualmente aceitos; ou, pelo contrário, contornados ficcionalmente pelo recurso ao que, como vimos, Amis chama de “pseudociência” e “pseudotecnologia”: invenção fictícia de mecanismos baseados num hipotético hiperespaço, ou de uma máquina do tempo. O fato de que não se descobriu, até agora, vida - ou, mais especificamente, vida inteligente - fora deste planeta pode ser o último reduto dos religiosos fundamentalistas, de cientistas tradicionalistas e de romancistas conservadores; ou, pelo contrário, pode ser ficcionalmente negado através da imaginação de como seriam extraterrestres inteligentes ou suas eventuais relações com os seres humanos da Terra. Certas fases na história da ficção científica como gênero podem ser mais favoráveis às opções mais ousadas, outras, às mais conservadoras, como se verá ao tratar de temáticas específicas. Uma pergunta passível de formulação é a seguinte: por que, acossada em um a um de seus redutos a partir do século XVII sobretudo, persiste a posição que teima em pretender fazer da humanidade algo único ou especial, resultante de um ato criador separado, alvo do cuidado específico e exclusivo da(s) divindade(s)? A tese em questão parece consolar aqueles que não aprenderam a lidar com a mortalidade individual, sua ou de seres queridos, e que têm medo de um universo indiferente aos humanos, onde o único sentido possível seja aquele construído individual e socialmente: onde, portanto, os homens não possam contar com uma ajuda externa, proveniente de um ser (ou de seres) transcendente(s) ou superior(es). Seria simplista, entretanto, querer ver, nas posturas conservadoras, somente, ou mesmo predominantemente, aspectos religiosos; pois há pessoas religiosas que conseguiram perfeitamente transcender as posturas reacionárias e, por outro lado, posições conservadoras aparecem também em contextos que nada têm a ver com religião. Por exemplo, elas caracterizam os que acham um absurdo gastar-se tanto

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dinheiro com a exploração do sistema solar ou, em geral, com programas espaciais. Também neste caso, seus argumentos são forçados a mudar com o tempo. Os satélites artificiais não começaram a ser lançados, em 1957, para servir às telecomunicações; mas, hoje em dia, servem-nas o tempo todo, bem como à espionagem militar e ao levantamento dos recursos terrestres ainda inexplorados, por exemplo. Assim, os que na atualidade querem atacar as atividades espaciais farão habitualmente a diferença: sim aos satélites e aos seus lançamentos por ônibus espaciais e pelos foguetes Arianne; não à exploração da Lua, de Marte ou de outros mundos. Contra tal exploração esgrimirão, como os conservadores de todas as épocas, argumentos mentirosos e obscurantistas. Por exemplo, pretendendo ser muito reduzido o que de fato se vem a conhecer com essa atividade, ou serem duvidosas as vantagens que a humanidade dela poderia esperar. Um dos argumentos favoritos a respeito é que, num mundo com tantos problemas sociais quanto o nosso, seja errado desviar recursos para o espaço. Como se fosse possível acreditar, considerando-se os sistemas vigentes de tomada de decisões nos países dotados de programas espaciais importantes, que o dinheiro destinado ao programa espacial, se deixasse de ser aplicado desta forma, viesse a ser destinado a programas sociais ou à assim chamada “ajuda externa”, em especial nos seus aspectos não-militares! Sendo minha intenção redigir um livro introdutório e, não, um tratado, querendo ao mesmo tempo efetuar, quanto às temáticas da ficção científica, análises e, não, descrições somente, fiz algumas escolhas. Vou me referir a quatro das temáticas em questão. Duas têm a ver com especulações acerca do tempo, do espaço e das sociedades humanas. As outras, com problemáticas envolvendo inteligências nãohumanas ou só parcialmente humanas. 2. Utopias e distopias 

Utopia é, como se sabe, termo cunhado por Thomas More em 1516, num texto escrito em latim (só apareceria em inglês em 1551): tratava-se de uma ilha imaginária cujo nome remete a “nenhum lugar”, à negação de um lugar concreto, palpável. A questão que se formula primeiro é a possibilidade, ou não, de generalizar o termo e o conceito de utopia, em especial, no que nos interessa, projetando-o em períodos anteriores ou posteriores ao renascentista e, mesmo, no que é ainda o futuro  para nós. Na opinião do medievalista Hilário Franco Jr. : [a] “palavra [utopia indica] toda sociedade idealizada, concebida como evasão do concreto ou como proposta de mudanças nele. Portanto, concebida como literatura e/ou como ideologia”. 12 Se 12

FRANCO JR., Hilário. As utopias medievais. São Paulo: Brasiliense, 1992, p. 11.

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adotada, esta postura permitiria uma aplicação a etapas históricas quaisquer, anteriores ou posteriores a 1516. Ela indica também, no conceito, dois eixos ou ênfases que de fato permitem caracterizar todas as construções utópicas: 1) comentar o mundo ou sociedade do autor mediante o uso da metáfora e da extrapolação; 2) criar alternativas imaginárias à sociedade do autor. Em 1868, John Stuart Mill, falando no Parlamento, usou o termo distopia. Em nosso século, o seu uso se disseminou, nos países de língua inglesa, a partir do livro Quest for Utopia (“Em busca da Utopia”), de Glenn Nedley e J. Max Patrick, publicado em 1952. Em tal linha, poderíamos considerar, tomando utopia como termo genérico, que ele pode ter, seja uma ênfase na dimensão espacial, seja na dimensão temporal. No primeiro caso teríamos eutopias ou distopias (o termo alternativo cacotopias, proposto por Anthony Burgess em 1978, não se difundiu); no segundo, eucronias que, na ficção científica, costumam ser localizadas no futuro remoto - e discronias. É possível também - mas menos usual - postular uma utopia ou distopia no presente, seguindo o modelo narrativo do “mundo perdido”, atualmente pouco freqüentado no que tange ao nosso próprio planeta. Achamos, no entanto, um exemplo brasileiro em   A cidade perdida (1948), de Jerônimo Monteiro (1908-1970), romance em que exploradores encontram uma Atlântida utópica em pleno Brasil: na região amazônica, embora não em área florestal. Em termos de vocabulário, vou ater-me ao par utopia/distopia. Seria possível, em princípio, afirmar a pertinência de todas as utopias para a ficção científica, por constituírem alternativas e extrapolações sociológicas ou políticas. De um ponto-de-vista estrito, porém, as utopias se aproximam mais do gênero que nos ocupa quando se apresentam, não principalmente como sátiras mas, sim, como especulações racionais que buscam ser críveis. Tais especulações podem ser divididas em dois grandes grupos: utopias científico-tecnológicas, as mais fáceis de encontrar em obras de ficção científica; e utopias bucólicas, que implicam um desejo de volta à natureza ou a valores tradicionais ameaçados que o autor valorize: as utopias deste grupo se prestam mais a obras de fantasia. Exemplo do primeiro tipo se acha em  Ralph 124C 41+, de Hugo Gernsback, livro de 1925 em que o Estado utópico futuro aparece como produto inevitável do progresso tecnológico. Nesta linha, uma obra de peso - mas sobretudo por inspirar respostas distópicas - foi não-ficcional:  Daedalus, or science and the future (“Dédalo, ou a ciência e o futuro”: 1924), do biólogo John B. S. Haldane, em resposta e contraposição à qual surgiram as distopias  Icarus, or the future of science (“Ícaro, ou o futuro da ciência”: 1924), de Bertrand Russell, e  Admirável mundo novo (1932), de Aldous Huxley.

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As distopias foram, no conjunto, apesar do esforço de pessoas como Haldane, Gernsback ou, posteriormente, Asimov, bem mais características da ficção científica do que as utopias. Na década de 1930, a utopia mais famosa apareceu, não na ficção científica mas, sim, na literatura fantástica. Trata-se de  Horizonte perdido (1933), de James Hilton, um sonho impossível destinado a leitores de classe média numa época insegura: um lugar remoto do Himalaia esconderia o segredo do prolongamento da vida e, ao mesmo tempo, ofereceria uma vida liberada das complicações e excessos do mundo contemporâneo, embora dotada dos confortos mais básicos. O fato de serem as distopias mais freqüentes e interessantes, no conjunto, do que as utopias se deve, parece, a conterem as situações negativas características delas maior potencial dramático, oferecendo à ficção elementos narrativos de peso. Os quais, aliás, bem rapidamente podem tornar-se clichês. Por exemplo, a noção de um indivíduo rebelde, ou de um pequeno grupo de revolucionários, enfrentando poderoso Estado distópico. Nesse tipo de história, outro clichê é que, de início, tem-se a impressão - logo corrigida - de ser aquele Estado uma utopia. Uma exceção foi, em especial no final da década de 1950 e na década seguinte, a ficção científica decididamente otimista acerca do estado de coisas no futuro que se produzia na União Soviética e em outros países socialistas europeus. O melhor autor, que por sinal relançou após algumas décadas de estagnação tal tipo de ficção entre os russos, foi Ivan Efremov, em obras como  A nebulosa de Andrômeda (1958). Efremov conseguiu garantir a tensão ficcional necessária para manter o interesse do leitor por intermédio dos riscos envolvidos: 1) na exploração do vasto cosmo, cheio de desconhecido e de perigo; 2) nas possibilidades de catástrofe implícitas na própria busca do progresso científico (um acidente gigantesco causado por uma experiência prematura, por exemplo; 3) na existência residual de uma parte do mundo não-assimilada ao comunismo mundial utópico que o livro descreve (noção tomada de Aldous Huxley). Tais elementos dinamizadores, que no livro funcionam bastante bem, falham na tediosa versão cinematográfica de Eugene Sherstobytov (1968), apesar de bons efeitos especiais, numa confirmação de que as visões utópicas tendem a ser estáticas e, portanto, pouco interessantes. As más línguas observaram que o elenco do filme se parece a um time olímpico soviético nas evidentes saúde e musculatura... e também na sua capacidade quase nula de representar! A utopia comunista futura é também um dos objetos do conto de Efremov “O coração da serpente”, de 1959, de que uma passagem é a seguinte: “Longe, muito longe dali, a uma distância de setenta e oito anos luz, havia ficado a Terra, a boa e maravilhosa Terra onde os homens haviam construído um paraíso através de um constante e inspirado trabalho de criação.  Naquela sociedade sem classes, todas as pessoas tinham perfeito conhecimento do planeta. Não se preocupavam apenas com suas fábricas e minas, suas

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