A Farsa de Inês Pereira

January 10, 2018 | Author: naniviver | Category: Theatre, Marriage, Renaissance, Time, Love
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A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente A Farsa de Inês Pereira é considerada a mais complexa peça de Gil Vicente. Gil Vicente havia sido acusado de plagiar obras do teatro espanhol de Juan del Encina. Em vista disso, pediu para que aqueles que o acusavam dessem um tema para que ele pudesse, sobre ele, escrever uma peça. Deram-lhe o seguinte ditado popular como tema: Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube. No auge de sua carreira dramática, sobre este tema, Gil Vicente criou A Farsa de Inês Pereira, respondendo assim àqueles que o acusavam de plágio. A peça foi apresentada pela primeira vez para o rei D. João III, em 1523. Ao apresentá-la, o teatrólogo português diz: "A seguinte farsa de folgar foi representada ao muito alto e mui poderoso rei D. João, o terceiro do nome em Portugal, no seu Convento de Tomar, na era do Senhor 1523. O seu argumento é que, porquanto duvidavam certos homens de bom saber, se o Autor fazia de si mesmo estas obras, ou se as furtava de outros autores, lhe deram este tema sobre que fizesse: é um exemplo comum que dizem: Mais vale asno que me leve que cavalo que me derrube. E sobre este motivo se fez esta farsa." A Farsa de Inês Pereira é também considerada a peça mais divertida e humanista de Gil Vicente. O aspecto humanístico da obra vê-se pelo fato de que a protagonista trai o marido e não recebe por isso nenhuma punição ou censura, diferentemente de personagens de O Auto da Barca do Inferno e O Velho da Horta, que são castigadas por fatos moralmente parecidos. É uma comédia de caráter e de costumes, que retrata a vida doméstica e envolve tipos psicologicamente bem definidos. A protagonista, Inês Pereira, é uma típica rapariga, leviana, ociosa, namoradeira, que passa o tempo todo diante do espelho, a se enfeitar, tendo em vista um casamento nobre. Por meio dessa personagem, Gil Vicente critica as jovens burguesas, ambiciosas e insensatas. Criticas também na figura de Brás da Mata, o falso escudeiro, tirano e ambicioso, malandro, galanteador, bem-falante e bom cantante, superficial e covarde. As alcoviteiras, alvo freqüente da sátira de Gil Vicente, têm na fofoqueira Lianor Vaz mais um tipo inesquecível da galeria gilvicentina. A classe sacerdotal também é satirizada. Os judeus casamenteiros, Latão e Vidal, aparecem com seu linguajar e atitudes característicos. Gil Vicente esmera-se em compor o contraste entre Pero Marques, o primeiro pretendente, camponês rústico, provinciano, meio bobo, mas honesto e com boas intenções, e Inês Pereira, calculista, frívola e ambiciosa - uma rapariga fútil e insensata, a quem a experiência acabou ensinando a sua lição de vida. Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discurso - simboliza os valores de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e prérenascentista, nosso estudo propõe uma análise do auto em questão à luz dessa transição, em seus aspectos histórico, social e lingüístico, no olhar desse escritor situado entre dois mundos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher. Estrutura da obra A Farsa de Inês Pereira é composta de três partes: 1. Inês fantasiosa - mostra Inês, seus desejos e ambições, e o momento em que é apresentada pela alcoviteira a Pero Marques. Essa parte retrata o cotidiano da protagonista e a situação da mulher na sociedade da época, por meio das falas de Inês, da mãe e da alcoviteira Lianor Vaz. 2. Inês mal-maridada - mostra as agruras do primeiro casamento de Inês. Nessa parte, o autor aborda o comércio casamenteiro, por meio das figuras dos judeus comerciantes e do arranjo matrimonial-mercantil, e o despertar de Inês para a realidade, abandonando as fantasias alimentadas até então. 3. Inês quite e desforrada - a protagonista casa-se pela segunda vez e trai o marido com um antigo admirador. Experiente e vivida, aqui Inês tira todo o proveito possível da situação que vive. Foco narrativo Não há, do modo tradicional, um narrador; em geral, há rubricas, isto é, anotações à parte da narrativa que servem de orientação para os atores ou para o leitor. São elas que esclarecem, geralmente, as questões de vestimenta, cenário, tempo, posição das personagens etc. As peças de Gil Vicente não trazem rubricas muito específicas.

Outra grande característica presente no gênero dramático é a predominância do discurso direto. Como as personagens são representadas concretamente, elas mesmas têm direito à fala, sendo o diálogo o meio usado para criar a trama narrativa. Uma vez que as personagens falam diretamente, Gil Vicente, muito habilmente, soube usar essa artimanha para garantir o humor. Na fala de cada uma encontramos marcas importantes na delimitação de suas características: a ingenuidade de Pero Marques, o descaso e a argúcia de Inês, a malandragem do Escudeiro e daí em diante. Gil Vicente seguiu a Medida Velha, característica da poesia medieval. Todas as falas foram compostas em verso redondilhos maiores, isto é, com sete sílabas poéticas, e sempre rimados. Tempo / Espaço / Ação O tempo representado na peça não é indicado. As cenas vão tendo seqüência não dando a idéia de tempo decorrido entre uma e outra. A única menção feita é do período passado desde que o Escudeiro foi à guerra até a chegada da notícia de sua morte: três meses, segundo o Moço. A maioria das cenas se passa num mesmo espaço especificado apenas como a casa de Inês. Todos os personagens acabam passando por ali. Em alguns momentos, os personagens vêm se preparando no caminho para a casa, como acontece com Pero Marques, o Escudeiro e o Moço. Mas de nenhum desses lugares há indicações cenográficas específicas como descrição do ambiente, iluminação etc. A mesma desatenção aparece com relação aos trajes dos personagens. Apenas Pero Marques tem sua roupa genericamente explicitada: “Aqui vem Pero Marques, vestido como filho de lavrador rico, com um gibão azul deitado ao ombro, com o capelo por diante”. Personagens Inês Pereira: jovem esperta que se aborrece com o trabalho doméstico. Deseja ter liberdade e se divertir. Sonha casar-se com um marido que queira também aproveitar a vida. Principal personagem da peça. Moça bonita, solteira, pequena-burguesa. Seu cotidiano é enfadonho: passa os dias bordando, fiando, costurando. Sonha casar-se, vendo no casamento uma libertação dos trabalhos domésticos. Despreza o casamento com um homem simples, preferindo um marido de comportamento refinado. Idealiza-o como um fino cavalheiro que soubesse cantar e dançar. Contraria as recomendações maternas rejeitando Pero Marques e casando-se com Brás da Mata, frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser boa ao lado de um humilde camponês. Inês deixa-se levar pelas aparências e ridiculariza Pero Marques despedindo-o de sua casa para receber Brás da Mata. Casa-se com ele, mas sua vida torna-se uma prisão, ela não pode sair e é constantemente vigiada por um moço. Inês sofre e chega a desejar a morte do marido. Ele morre covardemente na guerra e Inês casa-se com Pero Marques. Ele satisfaz todos os seus desejos e chega até a carregá-la nas costas para um encontro com um amante (sem saber, porém, que era para isso). Mãe de Inês: mulher de boa condição econômica, que sonha casar Inês com um homem de posses. É a típica dona de casa pequeno-burguesa e provinciana. Preocupada com a educação e o futuro da filha em idade de casar. Dá conselhos prudentes, inspirada por uma sabedoria popular imemorial. Chega a ser comovente em sua singela ternura pela filha, a quem presenteia com uma casa por ocasião das núpcias. Leonor Vaz: fofoqueira, encarregava-se normalmente em arranjar casamentos e encontros amorosos. É o esterótipo da comadre casamenteira que sabe seu ofício e dele se desincumbe com desenvoltura. Sabe valorizar seu produto com argumentos práticos de quem tem a experiência e o senso das coisas da vida. Pero Marques: primeiro pretendente de Inês rejeitado por ser grosseiro e simplório, apesar da boa condição financeira. Foi seu segundo marido. Camponês simples, não conhece os costumes das pessoas da cidade. É uma personagem ambígüa, ao mesmo tempo que é ridicularizado pela ingenuidade, é valorizado pela integridade de caráter. Fiel e dedicado, revela se um gentil e carinhoso marido. É tão simples que não sabe para que serve uma cadeira. É teimoso como um asno e diz que não se casará até que Inês o aceite um dia. Latão e Vidal: judeus casamenteiros, assim como Leonor. Os judeus casamenteiros são muito parecidos, têm as mesmas características, na verdade são o mesmo repartido em dois. São a caricatura do judeu hábil no comércio. Faladores, insinuantes, humildes, serviçais e maliciosos, são o estereótipo de que a literatura às vezes se serviu, como, por exemplo, no caso desta peça de Gil Vicente.

Brás da Mata: escudeiro, índole má, primeiro marido de Inês. Interesseiro e dissimulado é a representação da esperteza das classes superiores. É um nobre empobrecido que não perde o orgulho e pretende aproveitar-se economicamente de Inês através do dote. Brás da Mata é um escudeiro, isto é, homem das armas que auxiliava os cavaleiros fidalgos. Na mudança do feudalismo para o capitalismo, a maioria permaneceu numa condição subalterna, procurando imitar a aristocracia. Moço: criado de Brás. Pobre coitado, explorado por um amo infame. Humilde, deixa-se explorar e acredita ingenuamente nas promessas do Escudeiro. Cumpre sua obrigação sem ver recompensa, mas é capaz de, em suas queixas, insinuar as farpas com que cutuca o mau patrão. Ermitão: antigo pretendente de Inês e amante depois de seu casamento com Pero. É um falso monge que veste o hábito para conseguir realizar seu propósito de possuir Inês. Fernando e Luzia: amigos e vizinhos da mãe de Inês. Enredo A peça tem início com a entrada de Inês Pereira cantando e fingindo que trabalha em um bordado. Logo começa a reclamar do tédio deste serviço e da vida que leva, sempre fechada em casa. A mãe, ouvindo suas reclamações, aconselha-a a ter paciência. Inês é uma jovem solteira que sofre a pressão constante do casamento. Imagina Inês casar-se com um homem que ao mesmo tempo seja alegre, bem-humorado, galante e que goste de dançar e cantar, o que já se percebe na primeira conversa que estabelece com sua mãe e Leonor Vaz. Essas duas têm uma visão mais prática do matrimônio: o que importa é que o marido cumpra suas obrigações financeiras, enquanto que Inês está apenas preocupada com o lado prazeroso, cortesão. Lianor Vaz aproxima-se contando que um padre a assediou no caminho. Depois de contar suas aventuras, diz que veio trazer uma proposta de casamento para Inês e lhe entrega uma carta de seu pretendente, Pero Marques, filho de lavrador rico, o que satisfazia a idéia de marido na visão de sua mãe. Inês aceita conhecê-lo apesar de não ter se interessado pela carta. Pessoalmente, acha Pero ainda mais desinteressante ainda e recusa o casamento. Sua esperança agora está nos Judeus casamenteiros a quem encomendou o noivo de seus sonhos. Aceita então a proposta de dois judeus casamenteiros divertidíssimos, Latão e Vidal, que somente se interessam no dinheiro que o casamento arranjado pode lhes render, não dando importância ao bemestar da moça. Então lhe apresentam Brás da Mata, um escudeiro, que mostra-se exatamente do jeito que Inês esperava, apesar das desconfianças de sua mãe. Antes de vir conhecê-la, porém, o tal Escudeiro, na verdade, pretensioso e falido, combina com seu mal-humorado pajem as mentiras que dirá para enganar Inês. O plano dá certo e eles se casam. No entanto, consumado o casamento, Brás, seu marido, mostra ser tirano, proibindo-a de tudo, até de ir à janela. Chegava a pregar as janelas para que Inês não olhasse para a rua. Proibia Inês de cantar dentro de casa, pois queria uma mulher obediente e discreta. Encarcerada em sua própria casa, Inês encontra sua desgraça. Mas a desventura dura pouco pois Brás torna-se cavaleiro e é chamado para a guerra, onde morre nas mãos de um mouro quando fugia de forma covarde. Finalmente em liberdade, a moça não perde tempo.Viúva e mais experiente, fingindo tristeza pela morte do marido tirano, Inês aceita casar-se com Pero Marques, seu antigo pretendente. Aproveitando-se da ingenuidade de Pero, o trai descaradamente quando é procurada por um ermitão que tinha sido um antigo apaixonado seu. Marcam um encontro na ermida e Inês exige que Pero, seu marido, a leve ao encontro do ermitão. Ele obedece colocando-a montada em suas costas e levando Inês ao encontro do amante. Consuma-se assim o tema, que era um ditado popular de que "é melhor um asno que nos carregue do que um cavalo que nos derrube".

A FARSA DE INÊS PEREIRA A FIGURA FEMININA NUM MUNDO EM TRANSIÇÃO Tatiana Alves Soares Caldas (UNESA e UniverCidade) Mas coitada da molher sempre encerrada que pera seu passatempo não tem desenfadamento mais que agulha e almofada! (Camões, Filodemo)

A Farsa de Inês Pereira, um dos mais conhecidos autos de Gil Vicente, teatrólogo do Humanismo português, conta a história de uma moça que recusa os papéis preestabelecidos e questiona o destino imposto à mulher na sociedade quinhentista. Com a ironia característica das farsas medievais, o auto apresenta um desfecho surpreendente, sugerindo as transformações que ocorriam à época. As personagens femininas do texto são marcantes – não por acaso, uma delas dá título à peça - e apresentam diferenças entre si, sendo expressivo o fato de cada uma refletir um aspecto da sociedade de então. Por meio dos diferentes discursos enunciados por elas, o texto desvela a ideologia de cada uma, num entrelaçamento de falas, provérbios e negações. Acreditando que a atitude da protagonista – expressa, inclusive, a partir de seu discurso – simboliza os valores de um mundo em transição, propiciando uma reflexão acerca das mentalidades medieval e pré-renascentista, nosso estudo propõe uma análise do auto em questão à luz dessa transição, em seus aspectos histórico, social e lingüístico, no olhar desse escritor situado entre dois mundos, sobretudo no que se refere ao papel da mulher. Originalmente concebido como o desenvolvimento dramático do provérbio “mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”, a Farsa de Inês Pereira constitui-se no primeiro provérbio glosado em teatro. Trata-se de uma sátira com intenção moralizadora, apresentando traços de uma comédia de caráter e de costumes com tipos bem definidos. Além de explorar a dicotomia ser / parecer, o texto reflete sobre o momento histórico, na medida em que mostra a decadência da nobreza – um cavaleiro sem posses – e a ascensão de uma povo pré-burguês, na figura do parvo Pero Marques. Segundo classificação proposta por Fidelino de Figueiredo, o auto estrutura-se a partir de sete quadros que se sucedem, organizados da seguinte forma: apresentação da vida de Inês, ainda solteira, com a mãe; conselhos de Lianor Vaz sobre o casamento; apresentação de Pero Marques; entrada do escudeiro; as desilusões do casamento; a viuvez de Inês Pereira e a vida de casada com Pero Marques.

A apresentação de Inês, já no início do texto, é marcada por uma atitude de revolta diante das entediantes tarefas impostas à mulher da época. Só, em casa, cantarola e amaldiçoa a própria condição: Inês: Renego deste lavrar e do primeiro que o usou! Ao diabo que o eu dou, que tão mau é d'aturar! Ó Jesu! Que enfadamento, e que raiva, e que tormento, que cegueira, e que canseira! Eu hei de buscar maneira d'algum outro aviamento. (VICENTE, 1984: 303-304.)

A fala da protagonista é marcada pela amargura e pela revolta diante de um trabalho que lhe é odioso, sensações acentuadas pelos termos tormento, cegueira e canseira, refletindo o tédio presente em sua vida. Sua fala é repleta de expressões que sugerem uma crítica à falta de perspectivas para a mulher da época. Seu desencanto diz respeito, principalmente, à estagnação que vitimava as moças de então. Isabel Allegro de Magalhães, em seu estudo O Tempo das Mulheres, destaca o tempo estático das mulheres na Idade Média, um tempo de ficar, em contraste com o tempo masculino, o tempo de partir, marcado por aventuras e por um espaço aberto e externo. Já às mulheres resta a clausura, o emparedamento. Note-se que é justamente nesse ponto que reside a queixa de Inês, que lamenta o marasmo de sua vida: Inês: Já tenho a vida cansada De jazer sempre dum cabo. (...) Esta é mais que morta. São eu coruja ou corujo, Ou são algum caramujo Que não sai senão à porta? (Ibidem, p.304.)

A Farsa de Inês Pereira apresenta a condição da mulher encerrada em casa, mas, num vislumbre do novo tempo, mostra uma protagonista que se rebela, renitente, contra o destino que lhe é oferecido. Inês representa a fala destoante, pois nega os lugares-comuns, inclusive por meio de uma linguagem que defende a mudança. Seu posicionamento ideológico de recusa dos valores vigentes verifica-se, lingüisticamente, por um discurso repleto de exclamações – marcando o seu temperamento intempestivo - , e por indagações, como que a interrogar a própria condição:

Inês: Coitada, assi hei d’estar encerrada nesta casa como panela sem asa, que sempre está num lugar? E assi hão de ser logrados dous dias amargurados, que eu possa durar viva? E assim hei d’estar cativa Em poder de desfiados? (Ibidem, p. 304.)

O lamento de Inês esbarra na oposição da mãe, humilde e simples, cuja fala reflete o conformismo diante da sociedade de então. Além de censurar os desejos da filha, defende as regras e valores da época, ao aconselhar Inês a ter bom senso: Mãe: Toda tu estás aquela... Choram-te os filhos por pão? (...) Como queres tu casar com fama de preguiçosa? (...) Não te apresses tu, Inês: «Maior é o ano que o mês». Quando te não precatares, virão maridos a pares, e filhos de três em três. (Ibidem, p. 305-306)

O discurso da Mãe, impregnado de lugares-comuns e provérbios populares, marca a reprodução de valores da época. Sua fala, que atua como contraponto à de Inês, é marcada pelo conservadorismo. Valendo-se de frases feitas, demonstra, no plano discursivo, sua identificação com o pensamento de então. Enquanto Inês simboliza a renovação, as demais personagens femininas representam a perpetuação de um pensamento ainda marcado por um ranço medieval. A Mãe, conformista, pensa que o destino natural da filha é o casamento e a maternidade, chegando mesmo a instruí-la a agir de modo a causar boa impressão no pretendente: Mãe: Se este escudeiro há-de vir e é homem de discrição hás-te de pôr em feição,

e falar pouco e não rir. E mais, Inês, não muito olhar, e muito chão o menear, porque te julguem por muda, porque a moça sesuda é ua perla pera amar. (Ibidem, p. 323-324)

A Mãe parece sugerir à moça que represente um papel para agradar ao rapaz, sugerindo a hipocrisia vigente. Expressivos são os conselhos dados à filha, demonstrando que os atributos femininos desejáveis então eram aqueles ligados à passividade e à submissão: falar pouco, não rir, não encarar e olhar para baixo, numa atitude subserviente condizente com a misoginia da época. O conservadorismo da Mãe é visto também por ocasião da chegada de Lianor Vaz, que afirma ter sido violentada por um clérigo. Dignas de destaque são as palavras de ambas, uma valendo-se de subterfúgios para se justificar por não ter resistido ao ataque – estava cansada, teve um acesso de tosse, outro de riso – e outra desfiando todas as possibilidades, e demonstrando desconfiança, uma vez que Lianor não apresentava as marcas de laceração decorrentes do autoflagelo que deveria seguir-se ao estupro. Ambas comungam dos códigos vigentes, fato que pode ser percebido nos conselhos dados por Lianor a Inês: Lianor: Não queirais ser tão senhora! Casa, filha, que te preste, não percas a ocasião. Queres casar a prazer No tempo d'agora, Inês? Antes casa em que te pês, que não é tempo d'escolher. Sempre eu ouvi dizer: «ou seja sapo ou sapinho, ou marido ou maridinho, tenha o que houver mister.» Este é o certo caminho. (Ibidem, p. 312-313)

Em uma sociedade em que a única forma de sobrevivência feminina estava no matrimônio, a alcoviteira aconselha a moça a se casar, mesmo que isso a incomode, numa reprodução dos valores da época. Na repetição de ditados, um discurso que se limita a repetir os costumes e pensamentos de então, sem questioná-los: Mãe: «Mata o cavalo de sela

e bô é o asno que me leva». Lianor: Filha, «no Chão do Couce quem não puder andar, choute.» E «mais quero eu quem me adore que quem faça com que chore». (Ibidem, p. 313)

Significativa é uma das imagens evocadas pela Mãe: mais vale um asno que a leve do que um cavalo que a derrube, numa retomada do mote e num prenúncio do desfecho do auto. Inês é firme em suas convicções: quer um homem culto, ainda que não seja rico, e que a faça feliz. Movida por essa ilusão, despreza o primeiro pretendente, o rude Pero Marques, filho de lavradores ricos, mas que peca pela rusticidade. Sua linguagem revela a timidez e a ignorância, além de marcar a sua ingenuidade, aspecto fundamental para o desfecho da peça. No processo de caracterização por meio da linguagem, os traços mais flagrantes de Pero Marques são evidenciados, gerando o repúdio de Inês. Seu discurso denuncia a sua ingenuidade, ora exagerando na formalidade, ora indicando a sua forma provinciana de se expressar: Senhora amiga Inês Pereira, Pêro Marquez, vosso amigo, que ora estou na nossa aldea, mesmo na vossa mercea me encomendo. E mais digo, digo que benza-nos Deus, que vos fez de tão bom jeito; bom prazer e bom proveito veja vossa mãe de vós. e de mi também assi, ainda que eu vos vi, estoutro dia de folgar, e não quisestes bailar,

nem cantar presente mi... (Ibidem, p. 311) Inês repudia o pretendente em virtude de sua rusticidade, chegando mesmo a depreciá-lo, criticando-lhe a simplicidade. Sua condição financeira não a atrai, e ela recusa o pedido de casamento. Tal recusa, nesse momento, é importante, pois marcará a diferença de perspectivas da protagonista no decorrer da história. Curiosamente, a ingenuidade de Pero Marques, que será vista ao final como algo extremamente conveniente, é agora motivo de escárnio por parte de Inês, que o ridiculariza por não se ter aproveitado de estarem a sós: Inês: Pessoa conheço eu

que levara outro caminho... Casai lá com um vilãozinho, mais covarde que um judeu! Se fora outro homem agora, e me topara a tal hora, estando assi às escuras, falara-me mil doçuras,

ainda que mais não fora... (Ibidem, p. 318) E, na sociedade em que o parecer vale mais do que o ser, surge a figura do escudeiro Brás da Mata, calculista e mentiroso, que finge viver de forma abastada, apenas para impressionar. Os Judeus casamenteiros, através das críticas que fazem entre si, desnudam a verdade sobre o Escudeiro, bem como o Moço que o acompanha, fazendo-nos sabedores de suas mentiras e dificuldades financeiras. Impressiona Inês de imediato, pois seu discurso é galante e é habilmente utilizado para conquistá-la. Curioso é o fato de tanto a má impressão deixada por Pero Marques quanto o deslumbramento inspirado por Brás da Mata serem decorrentes de seus discursos. Com um tom que remonta aos cantares de amor, o escudeiro encanta a moça: Escudeiro: Antes que mais diga agora, Deus vos salve, fresca rosa, e vos dê por minha esposa, por mulher e por senhora; Que bem vejo Nesse ar, nesse despejo, Mui graciosa donzela, que vós sois, minha alma, aquela que eu busco e que desejo. Obrou bem a Natureza em vos dar tal condição que amais a discrição muito mais que a riqueza. (...) Sei bem ler e muito bem escrever,

e bom jugador de bola, e quanto a tanger viola,

logo me ouvireis tanger. (Ibidem, p. 325-326) Após casar-se com o escudeiro, Inês é rapidamente confrontada com a verdade: o marido revela-se um déspota, proibindo-a de cantar, chegando mesmo a ameaçála fisicamente em caso de desobediência. A reclusão de Inês fica ainda mais patente, pois ele informa que manterá trancada, sob permanente vigilância: Escudeiro: Ó esposa, não faleis, Que casar é cativeiro. (...) Vós cantais, Inês Pereira? Em vodas m'andáveis vós? Juro ao corpo de Deus Que esta seja a derradeira! Se vos eu vejo cantar Eu vos farei assoviar. (...) Vós não haveis de falar com homem nem mulher que seja; nem somente ir à igreja não vos quero eu leixar Já vos preguei as janelas, porque vos não ponhais nelas; estareis aqui encerrada, nesta casa tão fechada, como freira d'Oudivelas. (...) Vós não haveis de mandar Em casa somente um pêlo. Se eu disser: – isto é novelo – Havei-lo de confirmar E mais quando eu vier

De fora, haveis de tremer; E cousa que vós digais Não vos há-de valer mais

Que aquilo que eu quiser. (Ibidem, p. 332-335) Arrependida de sua precipitação, Inês afirma que, se lhe fosse dada outra chance, não incorreria no mesmo equívoco. Significativamente, ela principia seu novo discurso com o mesmo termo com que antes amaldiçoava o lavrar: renego. Entretanto, o que ela renega aqui é a discrição, qualidade que a fez desposar o homem que a faz infeliz. A protagonista modifica-se ao longo do auto, passando por um processo de sofrimento e de aprendizagem: Inês: Renego da discrição, comendo ao demo o aviso, que sempre cuidei que nisso estava a boa condição; cuidei que fossem cavaleiros fidalgos e escudeiros, não cheos de desvarios, e em suas casas macios, e na guerra lastimeiros. Juro em todo meu sentido que, se solteira me vejo, assi como eu desejo, que eu saiba escolher marido, à boa fé, sem mau engano, pacífico todo o ano, e que ande a meu mandar... Havia-me eu de vingar

deste mal e deste dano! (Ibidem, p. 337) A trama sofre uma reviravolta, pois Inês é informada de que o escudeiro havia sido morto. Tal acontecimento possibilita que ela ponha em prática sua nova visão de mundo. Pero Marques, ainda mais abastado, volta a cortejá-la, e a moça agora aceita seu pedido: Inês: Andar! Pero Marques seja! Quero tomar por esposo

quem se tenha por ditoso de cada vez que me veja. Por usar de siso mero, asno que me leve quero, e não cavalo folão; antes lebre que leão,

antes lavrador que Nero. (Ibidem, p. 340) Após ter sofrido nas mãos do marido, Inês chega à conclusão: mais vale o asno que a carregue do que o cavalo que a derrube. Numa sociedade em transição, os valores aos poucos se modificam: mais vale o camponês simplório – o asno – do que o representante de uma aristocracia decadente – o cavalo – que simbolicamente a derruba. Dessa vez, a moça é quem dita as regras, com as quais Pero Marques concorda. Em dado momento, Inês reencontra um ermitão a quem desprezara no passado, e o texto sugere que ela o tomará como amante. A referência ao asno que a carrega assume aqui uma dimensão literal, uma vez que o casal tem de cruzar um rio, e ela pede que ele a leve às costas. A passagem, que termina o auto, mostra-nos ainda o marido fazendo-lhe as vontades, e Inês, numa dose de ironia, começa a cantarolar, e o marido a acompanha no refrão Pois assi se fazem as cousas, num indício de que Inês dará as ordens, cabendo a ele apenas repetir o refrão, uma frase que sintetiza a sua aquiescência: Inês: Pois eu hei só de cantar e vós me respondereis, Cada vez que eu acabar: Pois assi se fazem as cousas. Canta Inês Pereira: Inês: Marido cuco me levades, e mais duas lousas. Pero: Pois assi se fazem as cousas. Inês: Bem sabedes vós, marido, quanto vos amo; sempre fostes percebido pera gamo. Carregado ides, noss'amo, Com duas lousas. Pero: Pois assi se fazem as cousas Inês: Bem sabedes vós, marido,

quanto vos quero; sempre fostes percebido pera cervo. Agora vos tomou o demo Com duas lousas.

Pero: Pois assi se fazem as cousas (Ibidem, p. 346-347). A ingenuidade do inocente Pero impede-o de perceber o comportamento de Inês. Ela, irônica, mostra que o fará de bobo, num discurso em que o chama de gamo, símbolo do homem traído, e em seguida de cervo, numa exploração lúdica do léxico, que reforça a idéia do gamo, e remete, por semelhança fônica, à subserviência do servo. Ambos – traição e submissão – marcarão o casamento de ambos. Observe-se que a mudança de postura de Inês reflete os valores do mundo em que está inserida: do encantamento e da fantasia em relação à figura cortês do cavaleiro – imagem que significativamente desmorona no decorrer da farsa – , a protagonista percebe as vantagens de aceitar a chegada do simplório porém bem situado Pero Marques, numa troca que sugere as inúmeras mudanças a que a sociedade assistia. O mote da farsa –antes quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube - constitui a síntese estrutural do auto, e a dicotomia que atravessa o texto metaforiza a transição da sociedade medieval para a renascentista. Gil Vicente, um homem situado entre dois mundos, soube como poucos escrever a história de uma sociedade ainda guiada por um pensamento religioso e medieval, mas que se descobria aos poucos tão mais valiosa quando assinada pelo homem. BIBLIOGRAFIA MAGALHÃES, Isabel Allegro de. O tempo das mulheres. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1987. VICENTE, Gil. Antologia do teatro de Gil Vicente. Introdução e estudo crítico pela Prof.ª Cleonice Berardinelli. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984

1.

(UNIFESP) Para responder à questão, leia os versos seguintes, da famosa Farsa de Inês Pereira, escrita por Gil Vicente: Andar! Pero Marques seja! Quero tomar por esposo quem se tenha por ditoso de cada vez que me veja. Meu desejo eu retempero: asno que me leve quero, não cavalo valentão: antes lebre que leão, antes lavrador que Nero. Sobre a Farsa de Inês Pereira, é correto afirmar que é um texto de natureza: (A) satírica, pertencente ao Humanismo português, em que se ridiculariza a ascensão social de Inês Pereira por meio de um casamento de conveniências. (B) didático-moralizante, do Barroco português, no qual as contradições humanas entre a vida terrena e a espiritual são apresentadas a partir dos casamentos complicados de Inês Pereira. (C) religiosa, pertencente ao Renascimento português, no qual se delineia o papel moralizante, com vistas à transformação do homem, a partir das situações embaraçosas vividas por Inês Pereira. (D) reformadora, do Renascimento português, com forte apelo religioso, pois se apresenta a religião como forma de orientar e salvar as pessoas pecadoras. (E) cômica, pertencente ao Humanismo português, no qual Gil Vicente, de forma sutil e irônica, critica a sociedade mercantil emergente, que prioriza os valores essencialmente materialistas. 2. (PUC-SP) O argumento da peça A Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, consiste na demonstração do refrão popular “Mais quero asno que me carregue que cavalo que me derrube”. Identifique a alternativa que não corresponde ao provérbio, na construção da farsa: (A) A segunda parte do provérbio ilustra a experiência desastrosa do primeiro casamento. (B) O escudeiro Brás da Mata corresponde ao cavalo, animal nobre, que a derruba. (C) O segundo casamento exemplifica o primeiro termo, asno que a carrega. (D) O asno corresponde a Pero Marques, primeiro pretendente e segundo marido de Inês. (E) Cavalo e asno identificam a mesma personagem em diferentes momentos de sua vida conjugal.

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Análise da obra - parte I O autor e a época Durante a Idade Média portuguesa, os tipos de representação mais conhecidos foram os mistérios (encenação de episódios da vida de Cristo e dos santos) e os milagres (apresentação cênica de milagres operados pelos santos e pela Virgem), mas não eram, a rigor, teatro, uma vez que essas composições não utilizavam a fala. Quando Gil Vicente começou a escrever, não havia, portanto, modelos portugueses que ele pudesse seguir. Por isso se inspirou no espanhol Juan del Encina e produziu um teatro que, em Portugal, era uma grande novidade, conforme afirmam testemunhos da época: "E vimos singularmente fazer representações de estilo mui eloquente, de mui novas invenções, e feitos por Gil Vicente; ele foi o que inventou isto cá, e o usou com mais graça e mais doutrina posto que Juan del Encina o pastoril começou."

O momento histórico O Portugal do século XVI é uma nação rica em conquistas ultramarinas, mas deficiente em produção agrícola e manufatureira. Para conseguir abastecer-se internamente a única saída é trazer ouro e prata das viagens além-mar. A crise econômica gera um descontentamento que ameaça os antigos valores, dissolvendo a aliança entre clero e nobreza, entre mercadores e soberanos. Essa crise é retratada na obra de Gil Vicente pelas personagens que buscam enriquecer a qualquer preço, aproveitando a situação caótica do país.

Europa x Portugal Em toda a Europa, o século XVI é o momento de ascensão da burguesia, valorização da ciência e do homem e questionamento da Igreja, com a Reforma protestante.

Em Portugal, entretanto, desenvolve-se um humanismo um pouco diferente: as ciências são valorizadas, mas o poder da Igreja e da nobreza não é questionado. Muito pelo contrário: a Inquisição e a Companhia de Jesus são os principais instrumentos da Contra-Reforma, que chega para reprimir a cultura humanista proporcionada pelo contato com outras culturas, decorrente dos descobrimentos.

Religiosidade e reformismo Gil Vicente vive numa época de transição de valores: os ideais medievais se chocam com a realidade renascentista. Esse choque aparece nitidamente em sua obra. Critica os maus padres, mas poupa a Igreja; critica os maus nobres, mas não questiona o poder real. Os valores medievais são representados pela forte religiosidade, pela instituição da Igreja, pelos dogmas da fé. Por outro lado, o espírito reformista aparece na crítica aos padres que têm uma vida desregrada e exploram a ingenuidade dos crentes para manipulá-los. Um exemplo disso é o sermão em que Gil Vicente procura explicar racionalmente as causas do terremoto ocorrido em Lisboa, enquanto os padres diziam que era a ira de Deus manifestando-se contra a falta de fé dos cristãos-novos – os judeus convertidos ao cristianismo para escapar da Inquisição. Trazendo flashes da vida social para o teatro, as peças conquistam o público pela simplicidade com que mostram as falhas humanas, para que as pessoas possam se corrigir e receber as bênçãos da vida eterna. As peças conquistam o público pela simplicidade e divertem ao mesmo tempo que ensinam. Anote! Gil Vicente é importante na literatura portuguesa não só por fazer um retrato da sociedade de seu tempo, mas principalmente por abordar a vida do homem na sua totalidade, desde os problemas domésticos mais corriqueiros até os mais complicados conflitos morais.

O gênero Gil Vicente é um artista medieval escrevendo em plena Renascença, momento em que as próprias estruturas da arte estavam se transformando. O auto, gênero muito popular até então, caracterizava-se pelo conteúdo simbólico: os atores representavam entidades abstratas de caráter religioso ou moral, como o pecado, a hipocrisia, a luxúria, a avareza, a virtude, a bondade etc. Embora a Farsa de Inês Pereira tenha sido publicada primeiramente como Auto de Inês Pereira, o conteúdo da peça não corresponde às exigências do auto. Gil Vicente criou um novo gênero para o qual não havia um nome na época, a farsa. Anote! A farsa é um tipo de encenação teatral curta que explora situações engraçadas da vida cotidiana, apelando para a caricatura e os exageros, a fim de fazer o espectador rir, mas, ao contrário da comédia, não tem um fundo moralizante.

Desafio: um dito popular A popularidade de Gil Vicente despertou em seus inimigos dúvidas sobre a autenticidade de suas peças. Em resposta a um desafio do dramaturgo, os invejosos lhe propuseram como

mote o ditado popular "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube". A resposta veio com a Farsa de Inês Pereira, de 1523. O equilíbrio da ação, a graça das situações e o jogo de contrastes fizeram da peça a mais bem-acabada do teatro vicentino. Apesar de apresentar críticas ao comportamento de vários setores da sociedade, não há nessa obra nenhuma intenção moralizante, além daquela inerente ao próprio mote que deu origem ao enredo.

Enredo Inês Pereira é uma jovem sonhadora que se sente entediada com o trabalho doméstico. Despreza Pero Marques, um pretendente rico e grosseiro, em nome de um ideal de marido sensível, mesmo que pobre. Casa-se com Brás da Mata, um escudeiro galante que a conquista com belas palavras, semelhantes às das cantigas de amor.

Antes que mais diga agora Deus vos salve, fresca rosa, e vos dê por minha esposa, por mulher e por senhora. Que bem vejo nesse ar, nesse despejo, mui graciosa donzela, que vós sois, minha alma aquela que eu busco e que desejo."

Mas após o casamento, ele a explora e maltrata. Vai para a guerra no Marrocos, onde morre, depois de se revelar um covarde. Com essa experiência, Inês percebe que a realidade funciona muito mais na base da conveniência do que da idealização e põe em prática a máxima "mais quero asno que me carregue do que cavalo que me derrube".

"Agora quero tomar, pera boa vida gozar, um muito manso marido. Não no quero já sabido, pois tão caro há-de custar."

Aceita o pedido de casamento de Pero Marques e passa a explorar a liberdade e a dedicação que ele lhe dá, chegando a, literalmente, carregá-la nas costas para atravessar um rio. Anote! Com essa peça, Gil Vicente quer mostrar que a sociedade da época é corrupta: a experiência de Inês Pereira mostra que o mundo é dos espertos e quem se dá bem são os mais hábeis na manipulação do contraste entre ser e parecer, entre essência e conveniência.

Farsa de Inês Pereira

Introdução A Farsa de Inês Pereira, teatro humanista Vicentino, foi escrita em 1523. Uma peça cheia de ambigüidades, mistura o conservadorismo com a rebeldia. Baseada no ditado popular: "Mais vale um asno que me carregue, que um cavalo que me derrube", a peça foi uma das melhores do grande teatrólogo Gil Vicente, que em seus anteriores trabalhos foi considerado copiador e acusado até de Plágio de um escritor espanhol. Dizem que deram um tema para que ele escrevesse a respeito para provar que as Farsas e Autos eram mesmo dele. Gil Vicente provou que realmente é o grande teatrólogo português vanguardista. Gil Vicente é, em suas criações, polêmico, crítico, moralizador, ético. Valoriza muito o social e critica algumas reações que ele exprime em suas peças. De um grande senso de humor, seus assuntos polêmicos tornam-se cômicas histórias da vida real.

Humanismo No final da idade média a Europa passava por transformações socioeconômicas, modificando alguns conceitos populares. O surgimento da burguesia traz consigo o início das relações comerciais, desenvolvendo então, a Expansão Marítima, aumentando a quantidade de cidades portuárias, atraindo camponeses e criando novas profissões. Nesse período, a economia baseada apenas na agricultura perde seu intenso valor e os burgueses passam ter melhores condições de vida do que os agricultores e nobres da corte. Mudando a sociedade, os pensamentos mais tradicionais também ganham suas alterações. O Homem é mais valorizado e menos inferior e assim, o Teocentrismo perde seu lugar para o Antropocentrismo, categorizando o Homem como o centro do universo. O surgimento da imprensa e a reprodução de livros ajudam a sociedade européia a compreender os fatos ocorridos. Outros inventos e desenvolvimentos também categorizam a época, como: Bússolas, lentes de óculos, armas de fogo e relógio mecânico. A produção Literária em Portugal desse período deve ser assim organizada:



Prosa: crônicas de Fernão Lopes;

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Poesia: poesia palaciana; Teatro: dramaturgia de Gil Vicente. O teatro Vicentino

O mais curioso nas obras de Gil Vicente é sua visão vanguardista da sociedade. O autor critica imoralidades, tais como: adúlteros, rebeldes, alcoviteiras e prostitutas. Faz uma mistura entre o velho e o novo, entre o certo e o errado, divindades mitológicas e Cristianismo. Há uma grande variedade de temas de suas peças. Seu grande talento está nessa capacidade de temas variados, acontecimentos corriqueiros, mas de um fato mais ousado. Outro aspecto que o deixa ainda mais talentoso é a estética que desenvolveu seus textos. Ele soube captar as essências de seu tempo, mas suas peças continuam atuais. Porém o que na época era absurdo, hoje é mais comum, demonstrando a capacidade de ir além de um escritor do século XVI. De uma maneira geral, as peças de Gil Vicente se caracterizam por:

• •

Autos: Teatro religioso com intenção moralizante; Farsas: Teatro profano e também moralizante.

Gil Vicente, em seus recursos de linguagem e estilo, não obedece à lei das três unidades (Ação, Tempo e Espaço). Na mudança de cenas, não há indicações temporais; pode ter passado um dia, como também um mês.

Farsa de Inês Pereira: A Peça e sua época, uma visão temática Em uma época em que as pessoas já nasciam com seus pretendentes para o casamento, o autor sugere, na peça, uma moça rebelde aos afazeres domésticos, que pretende se casar. O problema é que ela deseja que seu marido seja exatamente como ela quer, sem necessidade de riquezas ou posses. Dona de uma teimosia muito grande, rejeita o pretendente que sua mãe escolhera e casa-se com o que ela tinha como ideal. Na época, as moças não podiam pronunciar sua opinião para nada, mas, na peça, a jovem critica as opiniões da mãe e de qualquer um que fosse contra seus pensamentos. Sofre com sua escolha após o casamento, dando a entender, que a sociedade está correta e que as moças não devem escolher seus próprios maridos, pois sempre daria errado. Mas para a felicidade de Inês, seu marido morre, deixando-a livre para casar-se novamente. Dessa vez mais esperta, escolhe o primeiro pretendente, que sua mãe apoiara e casa-se com ele. Esse, por ser tolo e ingênuo Inês passa a ser superior perante ele. O que também era inexistente na época, ocorre na Farsa: A mulher comanda no casamento e trai o marido descaradamente, dando um desfecho engraçado.

Resumo da Obra A "Farsa de Inês Pereira" foi representada pela primeira vez ao rei D. João III, no convento de Tomar em 1523. A peça foi escrita por ocasião de um desafio feito pelos nobres. Cansados de serem desmoralizados nas peças do escritor, acusam-no de plagiar o teatro espanhol. Em resposta, ele sugere que lhe seja dado um tema, sobre o qual escreverá uma nova peça. O tema foi o ditado popular: "Mais quero asno que me leve que cavalo que me derrube". A peça tem início com Inês cantando e resmungando de ter afazeres domésticos e ficar sempre fechada em casa. A mãe, ouvindo suas reclamações, aconselha-a a ter paciência. Leonor Vaz, alcoviteira, aproxima-se contando que um padre a assediou no caminho. Depois de contar suas aventuras, diz que veio trazer uma proposta de casamento para Inês e lhe entrega uma carta de seu pretendente, Pero Marques, filho de um lavrador rico. Inês aceita conhecê-lo apesar de não ter se interessado pela carta.

Pessoalmente, acha Pero ainda mais desinteressante e recusa ao casamento. No diálogo com esse pretendente, Inês o insulta e é totalmente irônica ao falar com ele. Sua esperança agora está nos Judeus casamenteiros a quem encomendou o noivo de seus sonhos. Depois de haverem procurado muito, Latão e Vidal dizem ter encontrado um escudeiro que se encaixa nas exigências de Inês. Antes de vir conhecêla, porém, o tal Escudeiro, na verdade, pretensioso e falido, combina com seu mal-humorado criado as mentiras que dirá para enganar Inês. O plano dá certo e eles se casam. Logo no início da nova vida, o sonhado marido revela-se um ditador que não deixa sequer a esposa aparecer à janela. Mas logo ele segue para a guerra, deixando-a guardada pelo seu criado. Algum tempo depois, Inês recebe uma carta do irmão dela avisando-a de que o marido morrera covardemente na guerra, fugindo de um mouro. Finalmente em liberdade, a moça não perde tempo. Seguindo o conselho de Leonor Vaz, aceita casar-se novamente, agora com Pero Marques. Quando Inês está começando a perceber as vantagens de seu novo casamento, surge um ermitão pedindo esmolas e se identificando como um velho apaixonado de Inês. Torna-se, então seu amante e Pero, seu marido, a leva nas costas para visitá-lo.

Estrutura

Apresentação: A peça, como já foi dito anteriormente, começa com a Inês cantando e negando seu trabalho, afirmando que não nasceu para aquilo: fazer serviços domésticos e ficar trancada em casa. Sua mãe, ao ouvir a filha, diz para que ela tenha paciência, mas Inês fala que quer se casar. Só que Inês é muito preguiçosa, e sua mãe afirma que ninguém iria querer se casar com uma moça que não gostasse dos afazeres domésticos. A moça diz que deseja um homem que saiba e goste de curtir a vida; que saiba tanger viola. Nessa apresentação, aparece muitos ditos populares, tais como: "Maior é o ano que o mês" (P. 87) e "Ante a Páscoa vem os Ramos" (P.87). A apresentação começa:

"Finge-se que Inês Pereira, filha de hüa molher de baixa sorte, muito fantasiosa, está lavrando em sua casa, e sua mãe é a ouvir missa, e ela canta essa cantiga: "Inês: Renego deste lavrar E do primeiro que o usou... " (P.85) A apresentação termina:

" Inês – Quero-m’ora alevantar Folgo mais de falar nisso, Assi me dê Deos o paraíso, Mil vezes que não lavrar Isto não sei o que faz Mãe – Aqui vem Leonor Vaz... Inês – E ela vem se benzendo..." (P.87) Desenvolvimento: É o momento em que Leonor Vaz chega e começa contar "Causos". Conta que quando estava indo até a casa de Inês, encontrou um Clérigo (um padre) e ele, muito assanhado, a agarrou. Disse ela também que nem tinha como se defender e ninguém para acudí-la . Depois de contado o fato, Leonor pergunta se Inês já havia arrumado marido e a mãe responde que ainda não. Leonor diz que tem um pretendente muito bom para Inês e a moça já impõem seus pré-requisitos: " Porém não hei de casar/ senão com homem avisado/ ainda que pobre e pelado/ seja discreto em falar..." (P.90). Leonor fala que o

marido que trará para Inês é de boa família e é rico, mas isso não interessa muito à Inês, ela deseja um marido que fale bem, que saiba tanger viola e que seja sabido (inteligente). Leonor entrega à Inês uma carta de Pero Marques, seu pretendente, afirmando o seu interesse pela moça. A carta não agradou muito Inês, tanto que ela diz: "Vistes tão parvo vilão? / Eu nunca tal cousa vi / Nem tanto fora de mão." (P.91). Só que as duas (a mãe e a Leonor) insistem muito e Inês resolve receber o rapaz. O desenvolvimento começa:

"Leonor – Jesu a que me eu encomendo! Quanta cousa que se faz!" (P.87) O desenvolvimento termina:

"Inês - ... sabeis, mãe, que eu adivinho, Deve ser um vilãozinho Ei-lo, se vem penteando: Será algum ancinho?" (P. 91) Complicação: Essa parte começa com o Pero Marques chegando para conhecer Inês. Ao chegar, a mãe oferece uma cadeira e ele pergunta para que serve. Inês já não gosta desde aí, diz em pensamentos que ele é um ignorante. Quando falam que é para sentar-se, Pero senta-se de costas para as duas. Inês se irrita com isso e durante todo o diálogo, ela é irônica: "Oh galante despejado!" (P.93). Depois de muito falar, Pero Marques resolve ir embora, pois já estava tarde e também porque a mãe de Inês havia deixado-os a sós. Quando ele parte, Inês fica com seus pensamentos, imaginado se fosse outro homem que estivesse a cortejá-la. A mãe entra na sala e pergunta se ele já se foi. Inês afirma, dizendo que gostaria que não fosse ele que estivesse lá. Diz que com ele nunca irá se casar, pois ela quer um marido bonito, fino, educado e que saiba tanger viola. A mãe diz que ele viverá de tocar e Inês de cantar e quando faltar comida, não terá como se alimentar de música. Inês ignora a fala da mãe, como se isso não fosse importante. Entram em cena, então os judeus casamenteiros Latão e Vidal, que vieram para arrumar casamento para Inês. Chegam falando muito, sem, na realidade falar nada que seja importante à Inês. Ela pergunta se eles conseguiram-lhe um marido, eles dizem que o marido que ela deseja, só é encontrado na corte, mas trás más notícias. Dizem que os homens que eles encontraram não falavam a língua deles e eles ficavam sem entender nada. Quando Inês estava quase desistindo, os judeus disseram que havia um rapaz do jeito que Inês desejava, que falava e vestia-se muito bem e tangia viola perfeitamente. Esse em breve iria visitá-la. A Complicação começa:

"Pero – Homem que vai aonde eu vou (...) Que eu em meu siso estou. "(P. 91-92) A complicação termina:

"Vidal – Esperai, te aguardai ora! Soubemos dum escudeiro

(...) E tange... e com’ora tange! E alcança quanto abrange, E se preza bem de gala." (P. 97) Clímax: Essa parte da peça é a que Inês conhece o Escudeiro, Brás da Mata. Ele, antes de chegar à casa da moça, conversa com o seu empregado (o moço) a respeito de que se casará com Inês pelo dinheiro. O Moço joga indiretas sobre a pobreza do amo. Fala ao empregado sobre a beleza que os judeus disseram ter a moça e que também não deve ser muito inteligente, portanto será fácil de conquistá-la. Ao encontrar com Inês e sua mãe, antes que elas pudessem falar algo, o Escudeiro já declama suas declarações, chamando-a de "Fresca rosa" "Que vós sois, minha alma, aquela/ Que eu busco e que desejo" (P. 100). Pede para seu criado que pegue a viola, para que ele possa demonstrar suas habilidades com a música. Parte muito engraçada da peça, pois é quando o moço diz ao escudeiro que ele é muito pobre, que até a viola é emprestada e que ele não tem dinheiro nem para pagá-lo. O moço fala que precisa ir embora antes do inverno, mas o Brás desconversa, dizendo da viola que era muito afinada. A mãe de Inês fica meio equivocada com o rapaz e não acredita que ele seja tudo aquilo que os judeus falaram. Porém Inês, já cega de amor, acredita em tudo que o Escudeiro diz, e ainda diz que sua mãe está muito velha e incapaz de compreender as coisas. Inês casa com Brás da Mata e sua mãe, mesmo contrariada, dá a benção ao casório. Porém a felicidade que Inês imaginou ter, não passou da hora do casamento. Logo ao chegar em casa, Inês trabalhava e cantava e Brás começou a brigar, dizer que ela não deveria cantar, nem sair de casa e que mulher tem que obedecer ao marido. Diz que ela por ser teu tesouro, ele deve guardar como o tal. Prega as janelas para que ela não se ponha a ela e a impede de sair para qualquer lugar que seja. Brás vai para a guerra e deixa Inês trancada em casa (dizem que a pôs até um cinto de castidade). O moço ele deixou para tomar conta de que ela ficasse sempre em casa e que não saísse à rua. O Clímax começa:

"Vem o escudeiro, com seu moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando só: Escudeiro – se esta senhora é tal Como os judeus ma gabaram, Certo os anjos a pintaram, Não há de haver outra igual. " (P. 99) O Clímax acaba:

"Inês – ... havia-me eu de vingar deste mal e deste dano" ( P.109) Conclusão: Inês estava, como de costume em sua casa trancada e fazendo seus afazeres e cantando, quando o moço chega agitado, dizendo que havia chegado uma carta. Era uma carta de seu irmão, informando-lhe que ele havia morrido covardemente na guerra, fugindo de um mouro pastor. Imediatamente, sem sentir tristeza nenhuma, Inês pede ao moço sua chave para poder buscar sua vida. Diz que agora quer curtir sua vida, que quer ter um marido manso, porque os inteligentes "custam muito caro".

Quando Leonor Vaz chega, Inês finge tristeza e começa a chorar. Imediatamente, Leonor diz que ela deve se casar novamente, o mais rápido possível. Diz que Pero Marques está muito mais rico e que ela deveria se casar com ele. Inês concorda e diz que foi preciso um tombo para aprender a andar "Experiência... dá a Lição" (P.112). Inês casa-se com Pero e diz: "...Asno que me leve quero, / E não cavalo valentão." (P.112). Deixa bem claro que não o ama e que só o quer como marido, para que não fique solteira diz: "Antes Lebre que Leão, / antes lavrador que Nero" (P.112). Logo ao se casarem, Inês diz que precisa sair, pois por muito tempo ficou trancada. Ele permite que ela saia. De repente, um ermitão aparece pedindo esmola, reconhece que ele era um antigo pretendente e que ele ainda a deseja. Inês diz ao marido que o ermitão é um anjo e que desejaria visitá-lo. O marido, novamente permite, mas desta vez, Inês quer que ele a leve nos ombros. E lá vai o Pero, carregando Inês nos ombros à casa de seu amante. Ela cantava: "Marido cuco me levades / e mais duas lousas." e Pero dizia: "Pois assi se fazem as cousas"(P.116). E assim se vão e a farsa acaba.

A conclusão começa:

"Entra o Moço com uma carta de Arzila, e diz: Moço – Esta carta vem d’Além, Creio que é de meu senhor..." (P.110) A conclusão termina:

"Pero – Pois assi se fazem as cousas" E assi se vão, e se acaba a dita Farsa".(P.117)

Personagens

Principal/Protagonista: Inês Pereira : Principal Personagem da peça. Moça bonita, mas que odeia o trabalho doméstico. Teimosa e rebelde, deseja se casar, vendo no casamento uma libertação para os serviços que tanto detesta. Prefere um pretendente pobre, mas elegante e galanteador, do que um rico, mas simples. Contraria as recomendações de sua mãe e casa-se com Brás da Mata, rejeitando Pero Marques. Frustra-se com a experiência e aprende que a vida pode ser boa ao lado de Pero, que deixa-a fazer o que bem entende de sua vida. Antagonista: Brás da Mata: Interesseiro e dissimulado, ele deseja casar-se com Inês apenas por dinheiro. Nobre falido, mas que não perde a pose, quer se casar com a moça com interesse no dote. Galanteador e belo, seduz a Inês que se casa com ele. Após o casamento, Brás mostra-se um homem autoritário e ciumento, mesmo não tendo amor por sua senhora. O personagem é um escudeiro, porém muito covarde que morre ao fugir de um mouro na guerra. Secundários: Mãe de Inês: Típica dona de casa, ligada aos valores morais, mas também muito apegada a filha, mimando-a. Pessoa honesta e de uma doçura e generosidade incríveis, presenteia a filha com a casa, pelo casamento. Pero Marques: Camponês simples, porém de bons ganhos. Ignorante, não sabe nem para que serve a cadeira e os costumes da cidade. É uma personagem ambígua, ao mesmo tempo em que é castigada pela

ingenuidade. É um homem de bom caráter e bom marido. É rejeitado primeiramente por Inês, mas não desiste e se casa com ela depois que ela fica viúva, sendo então bobo e cego às traições de sua esposa.

Leonor Vaz: Alcoviteira e fofoqueira, encarregava-se de através de dinheiro conseguir casamentos. Tem argumentos práticos para tentar convencer Inês de casar-se com Pero. Latão e Vidal: Judeus casamenteiros. Ambos com as mesmas características. São faladores, comerciantes (vendem bem seu produto), insinuantes, serviçais e maliciosos. Prometem trazer o pretendente ideal para Inês e a apresenta Brás. Moço: Pobre e coitado é serviçal de Brás, o qual o explora. Ingênuo, acredita nas promessas de seu amo. Cumpre suas obrigações sem exigir recompensas, mas deixa a peça mais divertida, quando insinua a pobreza de seu amo e sua falta de comida. Ermitão: Falso monge, usa hábito para conseguir conquistar Inês. Torna-se, então seu amante. Luzia: Aparece somente na festa do casamento de Inês com Brás.

Tempo e Espaço Tanto nessa farsa, quanto em quase todas as obras de Gil Vicente, não aparece marcações de tempo e de espaço. Às vezes pode-se passar um dia, ou pode-se passar um mês, porém o leitor não tem consciência exata de tempo. Podemos também imaginar os locais no qual a peça se desenvolve. Esses porém não são descritos e nem citados por Gil Vicente, tanto que não sabemos em que lugar, cidade, estado, província e até país, a história ocorre. Tudo flui da imaginação de quem lê ou encena a peça, de tal forma que nunca parece ser a mesma se encenada por atores diferentes em lugares diferentes. De acordo com o nosso ver da peça, ela pode ter alguns cenários:





A casa da mãe de Inês: A peça passa maior parte de seu tempo nela, pois é nela que os pretendentes de Inês vão visitá-la, também é aonde Leonor Vaz vai para conversar com Inês e a mãe a respeito de casamento. Acontece o casamento e festa também na casa. Depois do casamento a mãe presenteia a casa à Inês e continua a história na mesma casa. A casa de Pero: Após a desilusão amorosa, Inês casa-se agora com o antigo pretendente, Pero. Crê-se que a história passa-se então na casa dele, pois ele era um lavrador rico.

Não se pode ter certeza de que os fatos aconteceram realmente nesses cenários, já que não há nenhuma indicação do autor a respeito do lugar ocorrido as cenas.

Foco Narrativo As falas do narrador indicam cenas em prosa de modo onisciente, ou seja, ele fala em 3º pessoa, porém sabe de todos os pensamentos e acontecimentos que ocorre. Geralmente, as falas do narrador, não exprimem alguma idéia de pensamentos ou opiniões, ele está presente somente para indicar cenas e descrever algo que só os atores não poderiam fazer. Gil Vicente não demonstra perfeitamente o foco narrativo, tanto que, por ser teatro, fica difícil mostrar quem é o narrador. Ex: "Vem a mãe da Igreja, e não a achando lavrando diz:"

"Chega o escudeiro onde está Inês Pereira, levantam-se todos e fazem suas mesuras, e diz o escudeiro:"

"Põe-se às costas do marido e diz:"

Recursos de Linguagem e estilo Predomínio absoluto de versos. Predomínio também da redondilha maior, ou seja, versos com 7 silabas poéticas: Ex: " Inês – Es/ta/ vi/da é/ mais/ que/ mor/ ta – 7 sílabas

Sou eu/ co/ru/ja,/ ou/ co/ru/jo,. – 7 sílabas Ou/ sou al/gum/ ca/ra/mu/jo – 7 sílabas Que/ não/ sai/ se/não/ à/ por/ta – 7 sílabas (P.86) (...) Escudeiro - ... Mo/ça/ de/ vi/la/ se/rá ela – 7 sílabas Com/ si/nal/ zi/nho/ pos/ti/ço, - 7 sílabas E/ sar/no/sa/ do/ tou/ti/ço, - 7 sílabas Co/mo/ bu/rra/ de/ Ca/ste/la." - 7 sílabas (P.99) Presença de redondilha menor, ou seja, versos com 5 sílabas: Ex: "Escudeiro - ... E ela/ co/mo/ se/ ca/la!" – 5 sílabas (P. 101)

"Latão – Dei/xa/-me/ fa/lar/" – 5 sílabas (P.96) Presença de versos irregulares de 3 ou quatro sílabas poéticas: Ex: "Vital – Já/ ca/lo/ - 3 sílabas

... Ou/ fa/las/tu?/" - 4 sílabas (P.96) Presença de prosa nas falas do narrador. Ex: "Vem o escudeiro, com seu moço, que lhe traz uma viola, e diz, falando só:" (P.100)

"Ida a mãe, fica Inês Pereira e o Escudeiro. E senta-se Inês Pereira a lavrar e canta esta cantiga:" (P.106) Narração Bilíngüe, tendo como línguas, além do Português arcaico, o castelhano: Ex: "Mal herida va la garça

Enamorada, Sola va y gritos daba. A las orillas de um rio..." (P.105) Rimas: a-b-b-a-c-c-d-d-c , sendo então emparelhadas e interpoladas.

Ex: "Escudeiro – Antes de mais diga agora, a

Deus vos salve, fresca rosa, b E vos dê por minha esposa, b Por mulher e por senhora; a Que bem vejo c Nesse ar, nesse despejo, c Mui graciosa donzela, d Que vós sois, minha alma, aquela d Que eu busco e que desejo" c . (P.100) Canções: Ex: "Bem sabeis vós, (meu) marido.

Quanto vos amo" (P.116) "Inês - Marido cuco me levades e mais duas lousas Pero – Pois assi se fazem as cousas" (P.116) Trocadilhos e ditos populares: Ex: "Maior é o ano que o mês" (P.87)

"Ou seja sapo ou sapinho, ou marido ou maridinho, pegue aquele que vier." (P.91) "Mata o cavalo de sela e bom é o asno que me leva" (P.91) "Mais quero eu quem m’adore, que quem faça com que chore" (P.91) Metáforas: Ex: "Encerrada nessa casa, como panela sem asa..." (P.85)

"... certo os anjos a pintaram..." (P.99) "... Porque a moça sesuda é uma perla pêra amar..."(100) "... Oh! Como é seca a velhice!" (P.102) Ironias: Ex: "Mãe - Hui! Nasceu-te algum unheiro?" (P.86)

"Inês – As perlas pera enfiar.../ Três chocalhos e um novelo.../ E as peias no capelo.../ E as pêras? Onde estão?" (P.93)

"Inês – Vós que me haveis de fazer?/ Nem ninguém há-de-dizer?/ Oh galante despejado" (P. 93) "Mãe – Sempre tu hás-de bailar/ E sempre ele há-de tanger?/ Se não tiveres que comer/ O tanger te háde fartar?" (P.95) "Moço – Sapatos me daria ele,/ se me vós désseis dinheiro..." (100) "Moço – (Homem que não tem nem vintém,/ Casa muito hora-má.)" (P.100) "Moço – E se ela é emprestada, / Quem na havia de pagar?" (P. 102) "Escudeiro – Vós buscastes discrição, / Que culpa tenho eu?" (P.107) "Moço – olhai, olhai, como rima! / E depois de ida a vindima?" (P.107) Hipérboles: Ex: "Inês – ... que tão mau é d’aturar..." (P.85)

"Inês - ... mil vezes que não lavrar" (P.87) "Latão – Que trago as tripas maçadas" ( P.95) "Escudeiro – Que vós sois, minha alma, aquela / Que busco e que desejo" (P.100) "Mãe – Agora vos digo eu / Que Inês está no paraíso!" (P.102) "Escudeiro – ... Em que ponha fogo a tudo,/ porque o homem sisudo/ Traz a mulher dominada." (P.106) "Escudeiro – Estareis aqui encerrada/ Nessa casa tão fechada/ Como freira d’Oudivelas" (P.107) Apótrofes: Ex: "Inês - ... mas eu, mãe, sou prestimosa..." (P.86)

"Mãe – não apresses tu, Inês" (P.87) "Mãe – Mana, conhecia-te ele?" (P.88) "Pero – Pois, Senhora, quero me ir" (P.93) "Escudeiro – Olha cá, Fernando, eu vou..." (P.100) "Latão –Senhora, perdei cuidade:..." (P.104) Repulsão de Inês a Pero: Ex: "Ó Jesus! Que João das Bestas" (P.92)

"Oh galante despejado" (P.93) "E não cureis mais de vir." (P.93) "Homem, não aporfieis, / Que não quero, nem me apraz. / Ide casar a Cascais." (P.94) "... Casai lá com um vilãozinho, / mais covarde que um judeu!" (P.94)

Galante de Brás: Ex: "...Certo os anjos a pintaram, / E não pode ser i al..." (P.99)

"... Deus vos salve, fresca rosa... mui graciosa donzela...Gozar vossa fermosura / Que é tal que, de ventura / Outra tal não se acontece." (P.100-101) "Daí-me cá essa mão, senhora" (P.104) Pleonasmo: Ex: " - > (P.88)

"Inês - ... Isto é vida que se viva?" (P.85) "Pero - ... Pêras de minha pereira..." (P.93). "Escudeiro - ... Diz que os olhos com que via..." (P.99) "Mãe - ... Vossa mulher e esposa..." (P.106) Metonímia: Ex: "Escudeiro – Daí-me cá essa mão, senhora." (P. 104)

"Escudeiro - ...Já vos preguei as janelas, / Por que não vos ponhais nelas." (P.107) "Moço – Esta carta vem d’Além..." (P.110) "Leonor - ... O cabeção da camisa." (P.88) Hipérbato: Ex: " Leonor - ... Quando o vi pegar comigo, / e me achei nesse perigo..." (P.87)

"Inês - ... Ou onde me viu ora ele? / Leonor Vaz, este é ele?" (P.90) "Pero – Gado tenho, nem sei quanto..." (P.92) "Mãe – Como às vezes isso queima!" (P.95) " Escudeiro – Moça de vila será ela..." (P.99) "Moço – (Ainda eu isso não vi)" (P.100) Eufemismo: Ex: "Muito honrada irmã, / Esforçai o coração / E tomais por devoção / de querer o que Deus quiser." (P.110-111)

"E vos não vos maravilhais / De cousa que o mundo faça / Que sempre nos embaraça / Com cousas..." (P. 111)

Ideologia da Obra

Antropocentrismo (a busca do prazer a qualquer tempo): Na peça, Inês busca um marido que seja como ela deseja, que goste de festas, cantigas, violas. Deseja satisfação pessoal, mesmo se não tiver a material. Não gosta do trabalho doméstico e, por isso, deseja um homem que a prive desses trabalhos. Ex: "Inês – Porém, não hei-de casar / Senão com homem avisado / Que ainda Pobre e pelado, / Seja discreto em falar." (P.90) Conservadorismo: A mãe de Inês é o maior exemplo de conservadorismo, pois deseja casar a moça com um homem rico e bom. Além disso, ela recrimina Inês de várias coisas que a moça faz e que não é muito conveniente para a época. Ex: "Mãe – Que siso, Inês, que siso / Tens debaixo desses véus..." (P. 96)

"Mãe – Como queres tu casar / Com fama de preguiçosa?" (P. 86) Rebeldia: Inês é uma jovem muito rebelde, respondona, que não aceita os conselhos de ninguém e não gosta de ouvir os ensinamentos de sua mãe. Ex: "Inês – Se fora outro homem agora, / E me topara a tal hora, / Estando assi às escuras, / dissera-me mil doçuras..." (P. 94)

"Inês – Que tendes de ver com isso? / Todo o mal há de ser meu" (P. 102)

Conclusão Concluímos, no decorrer do trabalho, que as Farsas Vicentinas, em especial a de Inês Pereira, são verdadeiros tesouros da humanidade, podendo ser lidos atualmente e manter o mesmo sentido moral que tinha na época. A Farsa de Inês Pereira, tem como visão principal o vanguardismo feminino, como a mulher mandante no relacionamento amoroso e também na escolha de seu marido. No decorrer das cenas, Gil Vicente mostra, comicamente, o papel na sociedade naquela época e o papel que Inês queria desenvolver. Nos dias atuais, são comuns essas situações de mulher que não quer fazer os serviços domésticos, que não quer um marido que seja apenas rico, que deseja um homem que fale bem e que saiba tocar instrumentos. Porém, para o ano de 1523 e os outros que se sucederam, pensar dessa forma era um tanto inaceitável. Em pensar que nessa época o Brasil acabara de ser descoberto e, nem se chamava Brasil. Tudo isso nos faz admirar o potencial de Gil Vicente e sua coragem de mostrar tantas coisas desconhecidas para o mundo Europeu.

Bibliografia

Livros consultados: MOISÉS, Massaud. A literatura Portuguesa através dos textos . São Paulo: Cultrix, 1968. MONGELLI, L.M.M. MALEVAL, M.A.T. VIEIRA, Y.F. A Literatura Portuguesa em perspectiva . Vol 1. São Paulo: Atlas, 1922.

SPINA, Sugismundo. O Velho da Horta, Auto da Barca do Inferno, Farsa de Inês Pereira . Ed. 28º. São Paulo: Brasiliense, 1993. DIAS DE MELO, Luiz Roberto, PAGNAN, Celso Leopoldo. Prática de texto: Literatura e Redação . Ed. 3º. São Paulo: W3 Editora, 2000.

A Farsa de Inês Pereira – Gil Vicente Conteúdo A Farsa de Inês Pereira é considerada a obra-prima dentre as demais farsas de GilVicente. As farsas sempre caíram mais no gosto do público pela maneira de tratar ostemas sexuais, no caso, por exemplo, a falta de compaixão para com o marido corno eparvo, provocando não só o riso mas também a cumplicidade com as mulheres esper-tas e adúlteras, capazes de driblar hipocritamente as convenções sociais para satisfa-zer seus desejos carnais. Sem dúvida, essa é a crítica central da peça, mas não é aúnica. Em segundo plano, mas não de menor importância dentro da totalidade da obrade Gil Vicente, encontramos a ironia e o desmascaramento do comportamento do cle-ro por meio do padre que tenta agarrar Lianor Vaz, do que já o tentou fazer com amãe de Inês e do que se tomará amante da jovem. Temos também a visão satírica docomportamento de nobres que não o são, mas fingem, dissimulam, como é o caso doEscudeiro. Temos a intromissão na base da família de alcoviteiras e alcoviteiros comoLianor e os Judeus. Enfim, retratando todo o trabalho de Gil Vicente, Farsa de InêsPereira não dispensa críticas a nenhum sector da sociedade. É o instrumento usadopor um homem medieval, com valores medievais, por meio de formas medievais, paramostrar a sua preocupação com o homem de seu tempo. É a arte baseada no teocen-trismo mas já preocupada com o homem que vive na terra. É a literatura humanista.Cabe ainda ressaltar que a grandeza da obra de Gil Vicente extrapola sua preocupaçãoem caracterizar uma determinada sociedade dentro de uma época específica. O domí-nio poético que exibe por meio dos versos em redondilha usados revelam sua cons-ciência artística, assim como o gosto na escolha de metáforas, trocadilhos, sonorida-de, garantindo a grandeza poética das peças. E por essa qualidade que o teatro vicen-tino é considerado rico enquanto texto e simples enquanto cenografia. Sem dúvida, osrecursos poéticos foram muito mais

valorizados que os cénicos. Tudo isso para retra-tar na sociedade portuguesa traços das sociedades de todos os tempos: o lado huma-no. Resumo Inês Pereira é uma jovem solteira que sofre a pressão constante do casamento, ereclama da sorte por estar presa em casa, aos serviços domésticos, cansandosedeles. Imagina Inês casar-se com um homem que ao mesmo tempo seja alegre, bem-humorado, galante e que goste de dançar e cantar, o que já se percebe na primeiraconversa que estabelece com sua mãe e Leonor Vaz. Essas duas têm uma visão maisprática do matrimónio: o que importa é que o marido cumpra suas obrigações finan-ceiras, enquanto que Inês está apenas preocupada com o lado prazeroso, cortesão.O primeiro candidato, apresentado por Leonor Vaz, é Pêro Marques, camponês de pos-ses, o que satisfazia a ideia de marido na visão de sua mãe, mas era extremamentesimplório, grosseirão, desajeitado, fatos que desagradam Inês. Por isso Pêro Marquesé descartado pela moça.Aceita então a proposta de dois judeus casamenteiros divertidíssimos, Latão e Vidal,que somente se interessam no dinheiro que o casamento arranjado pode lhes render,não dando importância ao bem-estar da moça. Então lhe apresentam Brás da Mata,um escudeiro, que mostra-se exactamente do jeito que Inês esperava, apesar dasdesconfianças de sua mãe.Eles casam-se. No entanto, consumado o casamento, Brás, seu marido, mostra sertirano, proibindo-a de tudo, até de ir à janela. Chegava a pregar as janelas para queInês não olhasse para a rua. Proibia Inês de cantar dentro de casa, pois queria umamulher obediente e discreta.Encarcerada em sua própria casa, Inês encontra sua desgraça. Mas a desventura durapouco pois Brás torna-se cavaleiro e é chamado para a guerra, onde morre nas mãosde um mouro quando fugia de forma covarde.Viúva e mais experiente, fingindo tristeza pela morte do marido tirano, Inês aceitacasar-se com Pêro Marques, seu antigo pretendente. Aproveitando-se da ingenuidadede Pêro, o trai descaradamente quando é procurada por um ermitão que tinha sido umantigo apaixonado seu. Marcam um encontro na ermida e Inês exige que Pêro, seumarido, a leve ao encontro do ermitão. Ele obedece colocando-a montada em suascostas e levando Inês ao encontro do amante.Consuma-se assim o tema, que era um ditado popular de que "é melhor um asno quenos carregue do que um cavalo que nos derrube". Uma visão de vanguarda da condição da mulher As produções literárias do Humanismo são combinações contraditórias em que o velhoe o novo se debatem: as figuras do Velho Testamento e os heróis lendários da Gréciae Roma/ as divindades mitológicas e a Virgem Maria/ anjos e demónios e homens emulheres reais/ reis fidalgos e pobres mendigos/ damas da corte e moças casadoiras eesposas infiéis, alcoviteiras e prostitutas/ festas palacianas e festas folclóricas/ a lín-gua culta e a menos cultaGil Vicente é o primeiro dramaturgo português (antes dele já havia o teatro, mas nãoera organizado literariamente). Sua primeira peça é o "Auto da visitação" ou "Monólo-go do Vaqueiro".

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