A EXPERIÊNCIA FORMATIVA SEGUNDO ADORNO
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Texto do professor Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN)...
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A EXPERIÊNCIA FORMATIVA SEGUNDO ADORNO Humberto Hermenegildo de Araújo (UFRN) ( UFRN)
Em Educação e emancipação emancipação, Theodor W. Adorno alerta sobre a necessidade da crítica permanente a partir da experiência da sociedade que produziu em um grau mais elevado a barbárie dos campos de concentração. Tal experiência resulta de um processo social no qual se manifesta uma regressão associada ao progresso, “um processo de coisificação que impede a experiência formativa ” (ADORNO, 2006, p. 22) 1. Nesse contexto, Auschwitz não representaria apenas um genocídio, mas “simboliza a tragédia da formação na sociedade capitalista ”. Subordinada à lei da troca, que é atemporal, essa sociedade dispensa a experiência acumulada e se rege pelo princípio da racionalidade que, em princípio, seria uma oposição ao princípio do tradicionalismo atribuído às formas sociais feudais. Na sociedade burguesa, portanto, a memória, memória, o tempo e a lembrança são transformados em resíduos do irracional. Da mesma forma, a categoria da aprendizagem se transforma em um resíduo do tempo de aquisição da experiência no ofício (p. 33). Na conjuntura em que se produziram os textos t extos do pensador alemão, qual seja, a conjuntura política dos anos 1960, a sobrevivência do fascismo e o insucesso da, segundo ele, tão falada elaboração do passado se devem
“à
persistência dos
pressupostos sociais objetivos que geram o fascismo ” (p. 43). Segundo ele, “O passado só estará plenamente elaborado no instante em que estiverem eliminadas as causas do que passou. O encantamento do passado pôde manter-se até hoje unicamente porque continuam existindo as suas causas ” (p. 49). Em contraposição à barbárie, Adorno defende a educação voltada para a autonomia do sujeito, para sua liberdade. liberdade. Neste sentido, a educação para a emancipação emancipação significa a “ produção de uma consciência verdadeira ” (p. 141) sob o princípio do esclarecimento geral que produz um clima intelectual, cultural e social – “[...] um clima em que os motivos que conduziram ao horror tornem-se de algum modo conscientes ” (p. 123). Trata-se de uma educação dirigida a uma auto-reflexão crítica (p. 121) a partir
1
A partir deste ponto, todas as citações do texto Educação e emancipação (ADORNO, 2006) serão identificadas apenas pelo número da página da edição citada do livro nas “Referências”.
do enfrentamento da consciência reificada ou coisificada que gera
“a
inaptidão à
existência e ao comportamento livre e autônomo em relação a qualquer assunto ” (p. 60). Adorno avalia que, na sociedade em que se gerou essa consciência coisificada, foi rompido o nexo entre objeto e reflexão. No âmbito do sistema educacional, os exames de admissão à carreira do magistério constatam essa ruptura e levam a concluir pela ausência da formação cultural necessária a quem pretende ser um formador. Trabalhando com dados empíricos, o pensador alemão verifica que esses exames demonstram uma deficiência de formação cultural na perspectiva de que:
[...] a formação cultural é justamente aquilo para o que não existem à disposição hábitos adequados; ela só pode ser adquirida mediante esforço espontâneo e interesse, não pode ser garantida simplesmente por meio da frequência de cursos, e de qualquer modo estes seriam do tipo “cultura geral”. Na verdade, ela nem ao menos corresponde ao esforço, mas sim à disposição aberta, à capacidade de se abrir a elementos do espírito, apropriando-os de modo produtivo na consciência, em vez de se ocupar com os mesmos unicamente para aprender. (p. 64).
O fracasso da formação cultural, que não se aplica apenas ao caso dos candidatos à carreira do magistério, mas pode ser demonstrado de um modo geral, tem como base de sustentação o conceito de ciência como ritual que dispensa o pensamento e a liberdade. Segundo Adorno, “As pessoas acreditam estar salvas quando se orientam conforme regras científicas, obedecem a um ritual científico, se cercam de ciência ”; “Quem
deseja se qualificar cientificamente precisa demonstrar também o domínio das
regras do trabalho científico ” (p. 70). Essa obediência cega ao ritual científico revela que os homens não são mais aptos à experiência; ao contrário, “[...] interpõem entre si mesmos e aquilo a ser experimentado aquela camada estereotipada a que é preciso se opor ” (p. 148-149). Em um debate realizado na Rádio de Hessen, com o título “Educação: para quê?”, Adorno questiona: “afinal, o que é isto, esta inaptidão à experiência? O que acontece, e o que, se houver algo, poderia ser feito para a reanimação da aptidão a realizar experiências? ” (p. 149). Mais à frente, no mesmo debate, afirma: Creio que isto se vincula intimamente ao próprio conceito de racionalidade ou de consciência. Em geral este conceito é apreendido
de um modo excessivamente estreito, como capacidade formal de pensar. Mas esta constitui uma limitação da inteligência, um caso especial da inteligência, de que certamente há necessidade. Mas aquilo que caracteriza propriamente a consciência é o pensar em relação à realidade, ao conteúdo – a relação entre as formas e estruturas de pensamento do sujeito e aquilo que este não é. Este sentido mais profundo de consciência ou faculdade de pensar não é apenas o desenvolvimento lógico formal, mas ele corresponde literalmente à capacidade de fazer experiências. Eu diria que pensar é o mesmo que fazer experiências intelectuais. Nesta medida e nos termos que procuramos expor, a educação para a experiência é idêntica à educação para a emancipação. (p. 151).
Um dos pontos de partida da crítica ao fracasso da formação cultural diz respeito à própria realidade do magistério cercado de tabus pelo senso comum. Sobre os tabus, no entanto, não apresenta reflexões a partir de resultados de investigações empíricas. O seu objetivo é “[...] tornar visíveis algumas dimensões da aversão em relação à profissão de professor ” (p. 97) e demonstrar a necessidade de se libertar dos tabus, vistos como: [...] representações inconscientes ou pré-conscientes dos eventuais candidatos ao magistério, mas também de outros, principalmente das próprias crianças, que vinculam esta profissão como que a uma interdição psíquica que a submete a dificuldades raramente esclarecidas (p. 98)2.
Dentre os tabus, destaca-se: a imagem construída de que universitários das licenciaturas são futuros professores como uma imposição a que se curvam apenas por falta de alternativas; a imagem do magistério como profissão de fome; a imagem do “responsável por castigos ” (p.
107).
Com tal imagem formada e apresentando, via de regra, deficiências crônicas como ausência de urbanidade no uso da linguagem (p. 65), estilo incompreensível (p. 66) e incapacidade de emancipação da província (p. 67), o candidato a professor ingressa na universidade imerso em uma grande contradição, pois o objetivo das escolas superiores deve ser a “verdadeira formação do espírito ” (p. 60). Na conjuntura em que escreveu as suas reflexões, Adorno adverte, contudo, que “[...] 2
podem ser observados sintomas que justificam a esperança de que tudo isto se
Esclarece o pensador: “Portanto utilizo o conceito de tabu de um modo relativamente rigoroso, no sentido de sedimentação coletiva de representações que, de um modo semelhante àquelas referentes à economia [...] em grande parte perderam a sua base real, mais duradouramente até do que as econômicas, conservando-se porém com muita tenacidade como preconceitos psicológicos e sociais, que por sua vez retroagem sobre a realidade convertendo-se em forças reais” (p. 98).
transforme quando a democracia tomar a sério sua chance, desenvolvendo-se na Alemanha. Esta é uma dessas parcelas limitadas da realidade para a qual a reflexão e a ação individual podem contribuir ” (p. 116). Segundo Fredric Jameson (1985), o objetivo principal de Adorno no campo da sociologia da cultura é despertar e exacerbar o fenômeno que denuncia: a divisão do trabalho, a fragmentação das energias intelectuais em disciplinas especializadas e aparentemente desconexas. Os fenômenos da cultura moderna, à qual faz a crítica, devem ser compreendidos no contexto da superestrutura . Nesse contexto, destacamos o professor de literatura e a sua função no sistema educacional, assim como a sua habilidade em trabalhar os conteúdos, em sala de aula, na perspectiva da formação cultural em contraposição a uma educação eminentemente tecnicista e fortalecedora da prática científica como mero ritual. A produção intelectual de Adorno dá mostras de como perseguir os meios necessários à superação da problemática verificada. Em
“O
ensaio como forma ”
(ADORNO, 2003), por exemplo, vê-se a possibilidade de, por meio do gênero ensaístico, surgir um produto oriundo da reflexão defensora da diferença, de modo a escapar ao padrão linear e totalizador do pensamento de origem cartesiana. Ao concluir uma das suas palestras – “A filosofia e os professores ” – , Adorno afirma: É preciso não se conformar com a constatação da gravidade da situação e a dificuldade de reagir frente a ela, mas refletir acerca dessa fatalidade e as suas consequências para o próprio trabalho, inclusive o exame. Esta seria o começo daquela filosofia que se oculta somente àqueles que se encontram obnubilados frente aos motivos pelos quais ela se oculta a eles (p. 73).
Diante do exposto, acreditamos que uma linha de pesquisa em literatura e ensino deve promover uma auto-reflexão crítica fundamentada em questões sociais, tomando como ponto de partida o exame dos sistemas literários, por meio de análise e discussão permanente de aspectos tais como: a)
a constituição do sistema e sua relação com a tradição constituída, do ponto de vista da sua formação;
b)
as políticas governamentais relativas ao sistema escolar, especialmente ao uso do patrimônio cultural e literário no ensino;
c) d) e)
f)
as práticas educativas junto aos públicos escolares, incluindo as possibilidades de uso das tecnologias educacionais no ensino de literatura; a composição dos componentes curriculares da área de literatura nos cursos de Letras, especialmente nas licenciaturas; a permanência de tabus relativos à imagem do professor, seja por meio do estudo de personagens de obras literárias, seja por meio de observação em pesquisas no âmbito do sistema escolar; a composição dos conteúdos da área de literatura nos materiais didáticos disponíveis no mercado editorial e nas publicações promovidas pelos órgãos governamentais. Com tais eixos básicos de ação, talvez uma linha de pesquisa em literatura e
ensino seja capaz de colaborar com a escola no cumprimento da sua função, ajudando, como esperava Adorno (p. 117), a sociedade a se conscientizar “do pesado legado de representações que carrega consigo ”. Pesquisar requer, contudo, uma metodologia, questão que geralmente aparece, no campo dos estudos literários, como um problema mal resolvido pelos estudiosos. Questiona-se o estatuto da metodologia da pesquisa com o objetivo de atingir a objetividade em meio aos princípios que regem a liberdade de expressão do objeto literário, tão envolto nas questões da subjetividade. Seria possível aplicar um método em um estudo dessa natureza? A falta de método não é já uma forma de enfrentar as tendências racionalistas de um tecnicismo enraizado na modernidade 3 e, portanto, propenso a levar a uma padronização extrema do pensamento? Tal questionamento não é, no entanto, exclusivo dos estudos literários. Na área das ciências humanas, em que a qualidade se impõe como necessidade de interpretação da quantidade (talvez, mais do que em outras áreas de conhecimento), o método tem se mostrado na sua carência de uma especificidade capaz de responder aos princípios questionadores da própria ciência. No caso dos estudos literários, cujo objeto de estudo abrange uma forma de conhecimento próxima da complexidade filosófica, aberta a todas as outras formas de conhecimento e de representação do mundo, como se posicionar objetivamente diante do dilema do enfrentamento dessa questão? 3
Em “Palestra sobre lírica e sociedade”, Adorno (2003, p. 69) esclarece que “A idiossincrasia do espírito lírico contra a prepotência das coisas é uma forma de reação à coisificação do mundo, à dominação das mercadorias sobre os homens, que se propagou desde o início da Era Moderna e que, desde a Revolução Industrial, desdobrou-se em força dominante da vida.
Para sair do senso comum, é necessário reconhecer que, mesmo aqueles que se colocam frontalmente no campo adversário à explicitação de um método, terminam cedendo às imposições institucionais presentes na obrigatoriedade dos “ projetos” que acompanham toda a trajetória dos trabalhos acadêmicos. Somos obrigados a elaborar projetos para as seleções de concursos, para concorrer a editais, para a ascensão funcional, etc., tornando-nos inclusive leitores de projetos que nos chegam às mãos por imposição institucional. Não se pode, portanto, fugir a esse dado da realidade, sob a pena de pagar o alto preço da intransigência, da recusa do diálogo com a comunidade na qual se está situado. O código científico disponível, por meio do qual participamos de uma comunidade de pesquisadores e professores, obriga-nos a conhecê-lo e a adotá-lo, sob pena de não conseguirmos disputar o espaço que queremos dar ao nosso discurso na academia. Os projetos, mas também as dissertações e teses, assim como os ensaios exigem uma linguagem, uma formatação, uma normatização técnica. Ou seguimos essas leis ou veremos reprovados os produtos resultantes das nossas leituras. A formatação dos textos e a normatização técnica são baseadas na máxima objetividade, portanto, devem ser encaradas como uma via de mão única. Só o convívio com essas formas de linguagem, com as suas normas, permite a sua apreensão e, poderíamos dizer, a sua automatização. A linguagem segue um padrão privilegiado pela urbanidade, portanto, não podemos insistir nos padrões regionais (geralmente marcados pela oralidade) ao utilizar o código científico. O desvio do padrão socialmente privilegiado só se justifica por questão de estilo, mas para isso é necessário o escritor ter um vasto domínio da língua considerada culta e, ao mesmo tempo, conhecer profundamente a cultura popular. É aceitável que uma pessoa formada em Letras dispense a revisão dos seus textos por terceiros, mas a condição para a adoção desse comportamento é a autoavaliação e a verificação (pela experiência na recepção dos seus textos por terceiros) de que já é possível proceder assim. “Como” realizar
a pesquisa a partir de uma metodologia que se apresenta como
um conjunto de normas técnicas, como um modelo científico de análise do objeto de estudo, como um indicador de análise quantitativa, como um porto seguro para o pesquisador? Vista por esse ângulo, a metodologia ganha o sentido do senso comum, mas parece ser este o fator atrativo para a conscientização quanto à sua necessidade,
sobretudo para boa parte dos iniciantes em pesquisa. Não obstante, também por esse ângulo, ela pode ser fator de repulsa para aqueles portadores de um apurado senso crítico e que já não confiam nas promessas da racionalidade científica, sobretudo na nossa área. Se adotarmos, contudo, o ângulo da análise qualitativa apontado pelos estudiosos das ciências humanas, o “como” terá como ponto de partida (para efeito prático) as questões técnicas, mas terá como eixo central de trabalho o suporte teóricometodológico. Neste aspecto, faz-se necessário ressaltar que lidamos com a impossibilidade de separar, na nossa área, a teoria e a metodologia. Não é possível uma metodologia sem o conhecimento das teorias críticas que permitiram o avanço do conhecimento sobre o fenômeno literário, tampouco sem o diálogo com as teorias que, na atualidade, dão continuidade a esse processo. Somente a discussão dos aspectos, dos problemas e das soluções formais encontradas possibilita ao pesquisador um posicionamento mais objetivo sobre o seu objeto de estudo. Não é possível a neutralidade nem a completa isenção diante desse objeto. Neste caso, a chamada frieza científica mataria por antecipação a matéria viva da palavra. Tal método requer posicionamento e em toda e qualquer posição haverá uma labareda de fogo a arder sobre o requerente da palavra (o pesquisador, que requer a palavra do poeta para se inserir no diálogo com a linguagem, que é suporte de conhecimento acumulado). Para chegar a esse ponto (ter a habilidade de dialogar com o poeta), o pesquisador de literatura precisa conhecer a especificidade do objeto literário, antes de qualquer juízo de valor sobre o objeto. Assim, não deve ser estranho perguntar: “ por que estou estudando um romance, um poema, uma palavra plena de elementos estéticos e não uma bactéria, e não o problema das minorias, e não as leis do inquilinato, e não o genoma, e não a melancolia no mundo pós-moderno? Como é possível estudar o meu objeto específico e manter um diálogo com todos os outros, específicos, que não me interessam de imediato, mas cuja compreensão é imprescindível? Qual é o meu laboratório?”. Pareceria óbvio insistir na especificidade da linguagem literária, na necessidade da análise da forma como ponto de partida de toda e qualquer especulação na nossa área? Este é o ponto em comum entre os produtores (os poetas, romancistas, escritores)
e os receptores (leitores comuns, leitores críticos): a linguagem como mediação 4. A bibliografia (tanto os textos literários quanto os textos teóricos), na maioria das vezes, é apenas o suporte material. Mas nós não podemos nos confundir com os escritores (autores) nem com a linguagem deles (a nossa linguagem é a mesma e é outra, porque esta linguagem carrega a teoria, que nos é específica). Neste ponto, vale a pena reler “O ensaio como forma ”, de Adorno. Parece, então, que se engana quem afirma que nós podemos dispensar o método. Não há, pois, um caminho seguro a seguir, mas é possível confiar na objetividade da forma que abriga as subjetividades e se apresenta ao pesquisador, no seu objeto de estudo 5. Uma linha de pesquisa em literatura e ensino deve ter como eixo básico, então, o estudo do texto literário com ênfase no diálogo da literatura com outros campos das Ciências Humanas e das Ciências Sociais Aplicadas. Dentro desta abordagem, justificase o privilégio aos estudos de fenômenos socioculturais, como a leitura e o ensino, principalmente no que diz respeito ao ensino de literatura e à compreensão da experiência estética literária na sua relação com outras formas de conhecimento, de modo a possibilitar usos da literatura no sistema escolar, como um método integrado de análise das configurações estéticas e de contextos específicos. Tornam-se imprescindíveis as contribuições da Literatura Comparada e das Teorias Críticas ao ensino de literatura. Neste campo, analisar literatura significa também considerar a complexa situação do ensino de literatura no sistema educacional. Em face da perda curricular dos conteúdos humanísticos nos sistemas de ensino, torna-se cada vez mais difícil apresentar, no período de formação dos alunos na escola, a apreciação de obras literárias de modo a reconhecer nelas um legado capaz de condensar experiência humana. Nesse sentido, Antonio Candido (2004, p. 186) nos alerta:
4
“[...] a mediação está na própria coisa, não sendo algo que seja acrescido entre a coisa e aquelas às quais ela é aproximada. [...] Em outras palavras, refiro-me à questão muito específica, dirigida aos produtos do espírito, relativa ao modo como momentos da estrutura social, posições, ideologias e seja lá o que for conseguem se impor nas próprias obras de arte”. (ADORNO, 1986, p. 114). 5 Em outro momento do seu pensamento, Adorno (1986, p. 114) revela que “A extraordinária dificuldade do problema foi sublinhada sem subterfúgios por mim”, ao ressaltar a imprescindibilidade do exame da forma: “[...] algo que não se limite a perguntar como a arte se situa na sociedade, como nela atua, mas que queira reconhecer como a sociedade se objetiva nas obras de arte”.
A literatura corresponde a uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque pelo fato de dar forma aos acontecimentos e à visão do mundo ela nos organiza, nos liberta do caos e, portanto, nos humaniza. Negar a fruição da literatura é mutilar a nossa humanidade.
Na área de literatura, a perda curricular dos conteúdos humanísticos torna-se evidente quando se verifica nos programas e manuais a diminuição da ênfase na leitura dos textos literários. Muitas vezes, a presença desses textos é reduzida a partes de gêneros ou a modos inespecíficos (no mesmo patamar de textos não-literários). Uma vez consolidada na sociedade da economia global a “inutilidade” da Literatura ― assim como da Filosofia
―
, cria-se a situação iminente de considerar o ensino da língua
materna apenas no aspecto da sua vertente comunicativa, sem a espessura cultural que molda todos os idiomas, conforme as reflexões presentes no estudo “Cultura e formação de professores” (BERNARDES, 2010). Em tal situação, acredita-se que a literatura tem um papel na formação dos jovens e dos cidadãos em geral. Faz-se necessário destacar ainda o seu potencial de memória linguística e cultural, a sua fonte propiciadora do desenvolvimento das capacidades intelectuais e emocionais do homem, dentre outros fatores agregadores de civilidade. A literatura, como patrimônio cultural, convive com todas as formas de conhecimento e é imprescindível à humanização dessas formas, sobretudo em seu aspecto transformador. Diante de tal complexidade, a questão do ensino de literatura requer subsídios teórico-metodológicos que permitam, por exemplo, nos diversos níveis de ensino, fazer chegar aos alunos os meios de detecção de procedimentos formais, os meios de percepção da
“vinculação
dos procedimentos estético-literários das obras a um
determinado arquitexto de modo ou de gênero ” (MELLO, 1998, p. 94) 6. A questão do ensino de literatura, portanto, é inerente à experiência formativa e os discentes das licenciaturas em Letras carecem dessa discussão. Faz-se necessária a
6
É esta a perspectiva da reflexão da estudiosa Cristina Mello, que propõe, ao abordar os gêneros literários no contexto da leitura escolar por meio do estudo da leitura dos alunos, “conhecer as imagens que elaboram das obras literárias e investigar uma específica questão metodológica das práticas escolares de leitura: qual a importância que os modos e gêneros literários desempenham no processo de representação das obras literárias?” (MELLO, 1998, p. 93).
conscientização de um método, cuja eficácia só é garantida se houver apreensões teóricas concernentes à área de atuação correspondente. Além de uma educação voltada para a autonomia do sujeito, como defende Adorno, as licenciaturas em Letras não podem abrir mão da capacidade de disponibilizar aos discentes o conhecimento acumulado na área, por meio de um currículo flexível e aberto à interdisciplinaridade. Isto significa que a tradição literária e a tradição crítica não podem se ausentar dos conteúdos, assim como os modos de constituição dos gêneros. Significa também que não se podem apagar as diferenças entre professor e aluno diante dos conteúdos a serem apreendidos. Neste aspecto, os temas fundamentais das tecnologias educacionais e todas as possibilidades que elas oferecem (ambientes virtuais de aprendizagem, etc.) só fazem sentido com a presença indispensável de mestres, ou seja, de educadores com sólida formação cultural e experiência a ser transmitida. A liberdade que a literatura oferece só possível a partir da compreensão do sistema no qual ela se insere; a flor que é o texto vem de uma raiz, de um chão. Assim, o aspecto lúdico que prevalece no ensino fundamental precisa de estímulo para que, no ensino médio, possam se tornar visíveis algumas raízes que eram apenas intuídas naquele primeiro momento de aproximação com a estética textual. O currículo de Letras, no entanto, deve possibilitar a visão de todas as raízes e também do chão onde elas se estendem. Parece óbvia a analogia, mas tem prevalecido, no senso comum, certa desconstrução do conhecimento sem que se tenha a necessária apreensão do que está sendo desconstruído. A abordagem dos gêneros no contexto da leitura escolar implica no conhecimento, por parte do professor, dos modos de constituição desses gêneros, assim como da história das suas formações. Desconstruir 7 as verdades da história da literatura tradicional8 implica no conhecimento, por parte do professor, dos modos de invenção dessa história e do processo de formação do cânone. Do contrário, de nada adiantará a ruptura com o ensino baseado nos estilos de época, na periodização literária.
7
Neste sentido, considera-se a importância da desconstrução como prática de leitura crítica, especialmente o contributo teórico já presente em A escritura e a diferença (DERRIDA, 1971). 8 Cf. a respeito a interessante perspectiva de Hans Robert Jauss em A história da literatura como provocação à teoria literária (1994) e, mais recentemente, a perspectiva de Todorov em A literatura em perigo (2012).
A autonomia do professor na elaboração dos programas, incluindo aí o seu posicionamento diante do material disponível nos livros e manuais didáticos, só pode ser avalizada pela sua formação e pela sua experiência. O curso de Letras e os programas de pós-graduação da área podem ser os lugares privilegiados para a aquisição desse aval, mas, cabe uma pergunta: esses espaços tão caros à nossa formação estariam cumprindo plenamente, na atualidade, essa função?
Referências: ADORNO, Theodor W. Educação e emancipação. 4. ed. Tradução de Wolfgang Leo Maar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006. . Teses sobre sociologia da arte. In: COHN Gabriel (Org.). Theodor W. Adorno: sociologia. Tradução de Flávio R. Kothe, Aldo Onesti, Amélia Cohn. São Paulo: Ática, 1986. p. 108-114. . Notas de Literatura I . Tradução e apresentação de Jorge M. B. de Almeida. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2003. BERNARDES, José Augusto. Cultura literária e formação de professores. In: CARDOSO, João Nuno Corrêa (Coord.). Colóquio de didáctica : língua e literatura. Coimbra, 2010. p. 29-62. CANDIDO, Antonio. O direito à literatura. In: ______. Vários escritos. 4. ed. São Paulo: Duas Cidades, 2004. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 1971. JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à teoria literária . Tradução de Sérgio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994. JAMESON, Fredric. T. W. Adorno; ou tropos históricos. In: . Marxismo e forma: teorias dialéticas da literatura no século XX . Tradução de de Iumna Maria Simon; Ismail Xavier; Fernando Oliboni. São Paulo: Hucitec, 1985. p. 11-51. MELLO, Cristina. O ensino da literatura e a problemática dos gêneros literários . Coimbra: Livraria Almedina, 1998. TODOROV, Tzevetan. A literatura em perigo. Tradução de Caio Meira. 4. ed. Rio de Janeiro: DIFEL, 2012.
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