A Arte de Inventar o Passado

November 15, 2022 | Author: Anonymous | Category: N/A
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Rua Irmã Arminda, 10-50

CEP L70L1-160 - Bauru - SP Fone (14) 2107-7111 - Fax (14) 2t07-7219 í www.edusc.com.br

A345h

Albuquerque Junior, Durval Muniz de. Historia: à ante de inventar o passado. Ensaios de teoria da históna/ Durval Muniz de Albuquerque Júnior -- Bauru, SP: Edusc, 2007. 256 p.; 27 cm -- (Coleção Históna) rsBN

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1. História' 2. História e literatura 3. Teoria da

II. Série

história I. Título

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Capítulo 2

Hrsrórun: A ARTE DE,II\NTENTAR O PASSADO ,,

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Bouvard e Pécuchet, protagonistas de um romance de Gustave Flaua vida que bert,' eram dois funcionários públicos, medíocres e entediados com no BuleIevavam em Paris. Numa tarde sufocante de domingo se conhecem' amigos' Um dia' o inesperado'.a qulbra da , var Bourdon, e se tornam grandes rotina, acontece com a chegada de uma carta que comunica o enriquecimento pensam imediatade Bouvald com a herança deixada pelo seu padrasto. Eles compram um símente em se tornarem agricultores'Após muitas negociações' com tio onde iniciam uma série de fracassadas orperiências com a agricúturâ, espantar a tediosa a jardinagem, com a pecuária e com. a qúmica' Tentando no campo, os dois amigos terminam enveredando pela fuqueologia existênciâ e pela História. Em pouco tempo, transformaram a casa num museu: Umavelhaügademadeiraerguia-senovesúbulo.osespécimesdeçologia

entulhavam a eraidâ;

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o*" "norme corrente estendia-se no chão, ao longo do cor-

redor.Naparededafrente,umcaldeirãodominavadoiscãesdechaminéeuma

rE)resentândo um mongea acariciar uma pastora. Ao_redor, sobre O soalho depequenas prateleirar, üum-'e castiçais,{Lchaduras' parafusos' Porcas' saparecia sob os cacos de telhas vermelhas''

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Depoisdefaznreminúmerasescavaçõeseaquisiçõesdeobjetososmais raríssimo vadisparatados, que eram oferàcidos pelos vizinhos como-P€çâs de diriam lor, Boovard e Pécuchet se dão conta de que aqueles objetos não lhes e as nada sem um conhecimento prévio da História da França. os objetos o pasmarcas deixadas pelo passado náo ttaziam em si mesmos seu sentido' 53

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Parte 1

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História e Literatura

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sado não era o documento, nem os vestígios por ele deixados, mas a compreensão da trama histórica em que estavaú envolvidos, só possível com um saber histórico e rrma erudição previamente adquirida. "Tinham na biblioteca a obra de Anquetil, masã série dos reis madraços muito pouco os ilivertiu". À procura da melhor História da França, reram Augustin Thierry e de Genoude, que divergiam em qtüNe tudo. para de Genoude:

,

a realeza,a religião e as assembléias nacionais eram os "princípios" da naso francesa instituídos pelos Meroúngios. os carloúngios os derrogaram. de acordo corn a vontade do povo, esforÇaram-se por mairtêJos. sob Luís capetos, os XIII, foi res-

,t1be§ido o poder absoluto, a fim de vencer o protestantismo, último esforço do feudalismo, e 89 é um retorno à constituição dos antepassados. Pécuchet adúirou tais idéias. Bouvard, ao contrário, deplorou, por haver Iidg Augustin Thierry: - Que queres dizer com nação francesa, pois não havia ainda França, nem as_ sembléias nacionais os carloúngios não usurparam absolutamente nada, e os reis não'libertaram as comunas. Lê e verás.l

vivendo no século em que a consciência da historicidade dos fenômenos era mais aguçada, em que o aceleramento das transformações históricas tornou sensível o movimento e a mudança da sociedade, num momento em que o paradigma realista metaffsico tenta tornar a História uma ciência de ver-

dades exatas, de leis universais, estes personagens recorreram sucessivamente a

várias

clássicas a história da França: à coleção de Buchez e Roux, em queobras o excesso desobre debate lhes pareceu prejudicar a visão de conjunto; a Thiers, que pôs os dois amigos em lugares opostos, ao tematizar a revolu@o; "Bôuvard, espírito liberal e coração sensível, tornou-se constitucional, girondi. no termidoriano. Pécuchet, bilioso e de tendências autoritárias, declarou-se mns-culotte e até mesmo robespierrista". "para umas, a Revolução é um acontecimento satânicô. outras a proclamam.uma sublime exceção. os vencidos de ambos os lados; naturalmente, são mártires". Âpós compilarem inúmeros escritos sobre a revoluSo, chegam à conclusão de que já não tinham uma idéia pre- . cisa sobre os homens e'os fatós daquela época. "para julgá-la seria preciso ler todas as histórias, todas as memórias, todos os jornais, todos os manuscritos.

Renunciaram à taref a-'.n Tirlvez fossem, encontrar a verdade nas épocas antrgas. Afastados dos acontecimentos, os autores certamente os analisariam desapaixonadamente e a 54

 

CaPítulo 2

História: a arte de inventar

o passado

a

No entanto, oS autoneutralidade e a objetividade científicas seriam respeitadas-. resnãochegavamaumacordosobredatas,fatos;eramoutrostantosequívocos:

TitoLíüoatribuiafundaçãodeRomaaRômulo.Salústio,aostroianosde Pictor; foi útima dos estrataEnéias. Coriolano morreu no exflio, segundo Fábio Ct-:lt: ÁtL f"ft, t. pi""ftio merece-crédito'Sêneca afirma-q":

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le Vayer'exteri.gr".ro,, vitorioso, e Dion que ele foi ferido na Perna' E La Mathe ,r""dúrrid", semelliantes relativamente a outros povos''

datas, passaram a inailJ1nça. pelqs fatos' da indiferença pelas A História, para além passamAssim, a achar qo. o i*poiturrt" é Filorofia da História.

.

" dasmigalhasdosacontecimentossingulares,expressarianãoapenasumaorgauma finwaçãosistêmica, como revelaria uma racionalidade,uma lecessidade' estaria o homem, naliáade. Acima dos homen§ e de suas existências individuais assim como este ente empírico e transcendental, inventado pelagnodernidade uma vez se perderam a humanidade com seus fins ultimos' No entanto' mais uma reügiao' uma naentre narrativas empolgadas por razÕes as mais díspares: uma ideologia' ou para censuraÍ os rels' aconseção, um partido, um sistema, Daunou' lhar o povo, apresentar exemplos morais' Compilaram Bossuet'Vico; em matéria de História'6 e terminam por se confessarem desnorteados mesmo drama de Parece que, mais de um século depois' vivemos o

BouvardePécuchet.Separaelesamodernidadetrouxeraavontadedesaber' que os fazia nomadizar entre um saber e outÍo' uma esa vontade de

verdade, pecialidadeeoutra,umaidentidadeeoutra'descobrindo,coldor.edilaceranós, hoie, temento, o carâter relativo dos saberes e as incertezas da ciência, mosqfleconviver,nãoapenascomarelatividadedosdiscursos,comarelati. realidade' vidade do saber históricà,Vnas com a relatiúdade da própria o termo Tendo surgido na década de cinqüenta' no campo da estética' termipói_modernidadã foi se ampliando para outros setores da vida social,

nandoPornome.rronovohorizontedenossaexperiênciacultural.Embora

algunsconsideremapós-modernidadeumadecadênciamomentâneadamoarústico, que faz a crttiia das vanguar-' , dernidade ou a considerem;um estilo podemos definir a pós-modernidade como a nossa condição áu.

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histórica, a nossa ePisteme.

Sendoapós-modernidadeumanovacondi$ohistóricaesendooco' históricas de nhecimento hiúorico um conhecimento relativo às condições 55

 

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História e Literatura

produÉo, portanto, não pode mais ser prodüzido a partir dos mesmos paradigmas, teorias e metodologias com os quais se produzia história na modernidade. Discutiremos, neste texto, portanto, o estatuto do saber histórico na como o fato de vivermos numa sociedade.pós-moôerna . pós-modernidade. ainda está em discussão, vamos, inicialmente, apresentar, em linhas gerais, que transformações Àistóricas levaram à pós-modernidaile, o que caracteriza a condiso pós-modern a,parasó então abordarmos as rnudanças paradigmátios desdobra-" cas do saber histórico que esta implica, a nova idéia de História e mentos teórico-metodológicos que esta requer' ao olhar no horizonEm Rapsôàias de agosto,filme de Akiru k*o"*', grande olho vermeum pensa japonesa ver te e ver o cogumelo atômico, uma lho, cheio de raios de sangue, a piscar para ela. Essa talvez tenha sido a primeira piscadela da pós-modernidade. Neste acôntecimento simbóüco secondendo sosa todo o fracasso da modernidade, a falência do humanismo e o fim nho iluminista. Todasas promessas das'filosofias da História do século 19, de uma história teleológica, atrave§sada pelatazão, em direso à civilização, ao progresso, à liberdade, à igualdade e à fraternidade são calcinadas iunto 1om milhares de japoneses. A validade destas metanarrativas que tentaram unificar a totalidade da experiência histórica da modernidade, dcntro de um Proieto de emancipação humana global, é contestada violentamente' Imalinemos que, após esta cena devastadora, nossos personagens do séséculo 1§ ertrasse- numa máquina do tempo e aterrizassem no fim deste sua

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culo. Passeando pelo mesmo Bulevar Bourdon,'dar-se-iaú conta de'que aquilo que chamaram de sociedade industrial, de capitalismo, de sociedade do trabalho, do progresso, de sociedade burguesa, transformara-se radicalmente. Ninguém mais mitifica as máqúnas e o trabalhota$oÍa só se fala em tecnociência. A informação e a comunicação vão se tornando os principais meios de produção. Fala-se em sociedade pós-indusÚial, cuja economia não é mais o reino das coisas, mas o reino do fluxo de signos, em'que nãó se lida com grandes somas de papel-moeda, mas com grandes cifras numa tela de computador. A eionomia se desmaterializa, seguindo de perto as descobertas da Fisica, que progressivamente relâtivizaram os fenômenos naturais, Puseram em dúvidas as leis que regeriam o universo e desmaterializarama matéria. A invenção do chip iniciou uma Progressiva desreferencialização do mundo e sua integração em circuitos telemáticos. Passou a ser possível a si-

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CaPítulo 2

Históíiü a aíte ile intentar o pasmdo

mulação de realidades virtuais, em que o homem convive com o simulacro. Um mundo de escolhas rápidas, quantitativas, bíticas. Â robótica, filha dileta desta revolução telemática, aumenta o desemprego relativo em todas as economias e permite superar o Padrão fordista de funcionamento das fábricas. Surge a chamada acumulação fleúvel, aterceirização, que buscam superar a chamada rigidez do sistema, engessado nos países centrais pelas exigências trabalhistas dos operários e o seu sindicalismo superorganizado. Â vai dando lugar à sociedade do ócio, voluntário ou sociedade do trabalho capital muda de qualidade ao ser cada vez mais capital çonsnão. O próprio tante e meno_icapital variável e, no entanto, não entrar em crise como pte: vira Marx. O cairitalismo não só transforma constantemente as relações sociais preexistentes, o que desorientava nossos personagens no século 19 e levava a réações românticas e nostálgicas da sociedade comunitária, como as próprias rel4ções criadas por ele. Estas dissoluções parciais, que pareciam, no começo do século, rêr -"r." do apodrecimento do sistema e de seu inevitável fim, " fim predeterminável, revelaÍam-se gm processo contingente cujas conseqüências são largamente indeterrhinadas. O capitalismo foi capaz de encontrar soluções diferenciadas Para as sús crises, conúariando qualquer determinismo e previsão. No século 19, a nação, a cwilizafio e a revolução erÍrm razões de históadquiria sentido, a.institucionalizaçáo do fazer ria. , O discurso historiográfico história ganhava um objetivo esúatégico que era o de recuperar o passado nacional, o passado da civthzaçáo ou mesmo o Passadci que precisava ser ievolucionado. Por isso era tão importante saber a História da França, de sua civihzafioe de sua revolução. Hoje nossos personagens olhariam paÍa um mundo onde as nações têm, cada vez menos, significado. Já com a Guerra Fria, o mundo se dividira em dois grandes blocos internacionais e, após o fim do socialismo real, se fragmenta em blocos regionais, sob o polkiamento dos orgar nismos internacionais. A cililizaÇão ocidental e Cristã trouxe no seu bojo tantos barbarismos quanto aqueles que se propôs a superar.A revolução, que destruiria o capitalismo, seria feita por uma força, que era, ao mesmo tempo, interna e externa ao sistema, o proletariado. Mas esta classe foi, em grande medida, cooptada pelo sistema e-abandonou a revolução, atraída pelos Estados de bem-estar social, montados pelo trabalhismo e a social-democracia ho pós57

 

Parte 1

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HistóÍia e Litaatara

guerra. Gramsci, no começo do século, já percebera as contradições da teoria de classe nas formulações dásSicas do marísmo, ou seja, se o proletariado era uma classe cuja identidade seria dada pelo próprio sistema e esta identidade seria fixa, como.ela poderia mudar o sistema se este seria um sistema fechado? Se a identidade do proletariado se alterava Permanentemente' como ele poderia ter sempre a mesma tarefa,ou seia, como poderia ele fundar a História se estava em mutação histórica? Admitindo que o proletariado era pragmáúco e

contingente, que a identidade de classe era relacional, suas mudanças se davam na relaÉo com o tempo, espaço e outras classes, Gramsci admite a Possibilidade de o proletariado não rcalizar a sua tarefá, de ser cooptado pelo sistema, dissolvendo, assirn, a possibilidade da elaborafo de uma Filosofia da História, tendo a ideritidade proletária como referente. Estas e outras leituras do marxismo vão colocando-o cadavezmais longe do marxismo clássico, alterando em vários pontos a mais bem acabada Filosofia da História do século 19,'que tinha a idéia de revolução como pressuPosto. Â não-realização das previsões históricas das filosofias da História do século 19 coloca nossos personagens diante do questionamento da próptiaracionalidade da História, dos mitos das fundações, ou seja, da existência de uma determinação em ultimà instância da História. O caráter relacional, contextual e plural de qualquer acontecimento histórico elimina a possibilidade que tome, como ponto de partida, um ponto fixo, rede uma argumentaÉo a própria relatividade da realidade. velando Continuàndo seu passeio por Paris de hoie, Bouvard e Pécuchet seriam confrontados com toda amaquinaria da cultura de massas: um mundo de iniagens, simulacros, signos luminosos. A arte pop, levando às últimas conseqüências a liberdade de criação e experimentação instaurada pelas vanguardas modernistas, põe em crise a representação realista do mundo. Â própria Psicanálise, ao nos informar sobre o nosso universo inconsciente, põe em xeque o império do realismo e da tàzáo cartesiana. Descobrimos que, para além da consciência, nossas ações e produções sociais são produtos de desejo, de suas maquinações e agenciamentos. Esta cultura de rnassa instaura uma nova sensibilidade, aberta para o choque, a surpresa, o caráter relacional das identidades. O sujeito deixa de ser visto como uma totalidade fechada e fundante das ações e representações, para ser pensado como uma produção histórica, como um lugar que diferentes pessoas vêm ocuPÍy suces-

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passado

sivamente ou como a produção de uma identidade, em que vários fluxos de subjetivação e forças de sujeiçao se encontram. e sociedàe da serialização e do indiúduo obriga a que os indiúduos assumam uma série de papéis, de identidades, fr agmentando-se. Nossos personagens teriam que aprender a convivêr iom a crise do dado. Na sociedade pós-moderna, nadS é evidente. O referente, o fenômeno e o signo deixam de ser dados fixos, realidade objetiva de que partem ás representações; para serem revelados como produto de invenção social e lingüística. O modernismo rêalizou esta tarefa de crítica à idéia de realismo em arte. A relação entre significantes e significados se altera, não existindo mais significados fixos e universais. Cada significante, podendo ter muitos significados, levando àprópria crise da idéia de significante. Os homens descobrem o mundo coào,Hnguagem. Esta nova sensibilidade leva à erosão das categorias modernas e à instauração de novos paradigmas no campo do saber. Mas será que estas transformações são tão recentes assim? Os dois personagens voltam para casa convencidos a retomarem os estudos arqueológicos e fazerem uma ar. queologia do presente. Perguntam-se quais as descontinuidades, as rúpturas que ocorreram no próprio saber úoderno, que os levou até seus limites e fez com {ue se-ínstaurasse uma nova episteme no Ocidente? Bouvard lembra-se de Immanuel Kant, quando este enuncia: "a mente não cria suas leis com base nanafiJreza,mas as impõe a Si mesma"'e Pécuchet

vai até a biblioteca, sopra a poeira do livro A ciência nova, de Giambattista Vico, e lê este enunciado: "o homem pensante é o único responsável por seu pensamento'1E Estaúos no século 18, e estes dois enunciados provocam deslocamentos fundamentais para se pensar a historicidade do pensamento ocidental Nasce uma nova cosmovisão, uma nova teoria do conhecimento, em que este não é uma imagem do mundo, mas chave para possíveis mundos. Eles enunciam o fim do realismo metafísico que, durante muito tempo, afirmou a capacidade.do homem de conhecer o mundo tal como ele é, que peniou a verdade como uma opera$o de correspondência entre a representação, o enunciado e a realidade independentêmente do sujeito, uma realidade como dado objetivo. Desde Kant, instauram-se as preÍnissas do relativismo, em que conhecimento e realidade não correspondem, mas se adaptam funcionalmente. O,mundo da e4periência, sendo o único lugar da procura da verdade, não havendo outro mundo anterior. O conhecimento passa a ser útil e relçvante

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Parte

1

História e Literatura

resistir ao mundo da experiência e nos capacitar afazer prognósticôs e suscitar ou impedir a ocorrência de certos fatos. Tendo feito uma viagem pelo temp.o, Bouvard e Pécuchet chegam à ionclusão.de que nunca.cónhecemos o'mundo, mas certas circunstâncias Particulares, sendo nosso'real", nosso limité. O.conhecimento não se refere a o*rêrlid"d" ontológica "objetiva" mas, sim, a orgânizações e ordenamentos de um mundo constituído de nossas experiências. A inteligência organiza o mundo, organizando-se a si mesma. Portanto, já em Kant, a percep@o da realidade havia sido deslocada píra o campo dos fenômenos, pondo em dúvida a existência de um objeto isolado do resto do mundo, como uma coisa ou üma tmidade inteiriça. Desde Vico, toda ciência é o conhecimento das origens, das formas e do modo como se frzmam as coisas; nesta ciência, o verdadeiro é o feito, é a procura das condições de possibilidade. O ser humano só pode conhecer aquilo que fez, só pode conhecer as operações de produ$o do que fez, e o que faz é o que chamamos de real. Vindos de um século cujo paradigma realista e cientificista tinha a pre-. tensão de romper as aparências do mundo e encontr;r suas essências, nossos dois personagens se deparam com a crise desta concépção de ciência, no firn do século 20. Fica claro para eles que a arte, em que o conhecimento provém da cogsciência. do atg de construir, em que o ato de construção nunca é esca' moteado, parece se ofe,ecer melhor como paradigma diante desta nova visão acercado conhecimento. Em que o ser só o é quando conhecido e percebido, só é sendo, como dizia Heidegger.'A dicotomia essência e aparência é superada, o ser só é quando aparece. Por trás da aparência, nada há. Só que o ser aparece de diferentes modos, daí sua relatividade, O mundo constrúdo é um mundo de experiências que se constitui pelas experiências e não tem nenhuma pretensão à verdade, no sentido de corresponder a urha realidade ontológica. Os objetos e as experiências são produtos de nosso modo de experimentar,'determinado no tempo e no espaço. Ou seja, se o verdadeiro é o feito, demonsúar algo por meio de sua causa é causálo. A própria rra,uÍezanão é ern si mesma organizada,as leis que vemos na natlJrezà são nossa inteligência que as coloca. Nós ordenamos e organizamos a causa. O determinante é, pois, a história do que consúuímos, como consrruímos, as condições da construção, porque o já feito limita o que se pode fazer agora. A historicidade reside nesta dependência das ações e erperiências pre-

sentes e das ações e experiências passadas. 60

 

CaPítulo 2 História: a arte de inventar o passado

. Portanto, ao contrário do que pensavam Bouvard e Pécuchet e seu século, o ato de conhecer não é fruto de uma recepção passiva de um mun-

do transparente, feita pelo sujeito do conhecimento, mas conhecer é uma atividade. O organismo cognoscente examina suas vivências e, Por que o faz,tetdea repetir umas e evitar outras. A regularidade de certas experiências permite organizá-las como um mundo estável. As semelhanças e as di, ferenças são produto da comparação que vários sujeitos fazemsimultaneamente, portanto, elas são relativas ao lugar ocupado pelo sujeito cognoscente, ao seu ponto de vista. Iá que falamos do meio do mundo, jamais nos,é dado a ver suas fronteiras r- privilégio que só nossos personagens imaginários estão tendo -, sendo todo conhecimento relativo a este lugar que se ocuPa no mundo. Estas mudanças paradigmáticas rompem com as categorias da modernidade, cuja consciência histórica ocupou o centro na configuração de todos o, ,rb"r"r. Tal como Bouvard e Pécuchet, estamos céticos quanto à possibilidade de ie conhecer o pdssado, tal cámo ele realmente foi. Pensamos, hojÊ, o passado como uma invenção, de que frtmamparte sucessivas camadas de discursos e práticas. Percebemos o passado como um abismo que não sg pára de cavar; quanto mais queremos nos aproximar dele, mais nos afasiamos. Damonos conta de que a História não está a serviço da memória' de sua salvação, mas está, sim, a serviço do esquecimento. Ela está semPre Pronta a desmanchar uma'imagem do passado que já tenha sido produzida, institucionalizada, cristalizada. Inventado, a partir do presente, o passado só adquire sentido na relação com,este preiente que passa, portanto, ele enuncia já a sua morte Prematura. Como diz Nietzsche, a História só pode ser suportada por personalidades fortes, porque, ao falar de nossa finitude e da finitude de todas as coi-..

§as, ela estiá falando é da

morte.'o

O conhecimento histórico é perspectivista, pois ele também é histórico e o lugar ocupado pelo historiador também se altera ao longo do tempo. Nem sempre se fez a História do mesmo jeito, e ela serviu a diferentes funções no decorrer do tempo. O historiador não pode escamotear o lugar histórico e social de onde fala, e o lggar inititucional onde o saber histórico se produz. Por isso, a História, ;orÍio metanarrativa, está em crise. A metanarrativa se faz a partir de um sujeito de discurso que, a pretexto de falar do lugar da ciência, sobrevoaria a História e podçria falar de fora dela, ter uma visão global, de

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Parte

l

História e Literatura

conjunto e não comprometida com os embates do momento. Ilusões que Bouvard e Pécuchet podiam ainda ter no sécuro passado, mas os historiadores hoje jd admitem que o se alojar no passado não é nehhuma garantia de imparcialidade, simplesmente porque ela é impossível. A História, a partir do século- 19, instaurou-se como uma disciplina, . preteÀsamente científica. Naquele século, as orperiências históricas e o passado eram tomados como gÍau zÊro para o realismo, a realidade era mostrada e justificada pela'História. A modernidade buscou, na História, as leis da evolução humana, evolução civlizatória.Leis que ajudariam a prever o télos para a-hirmanidade. Tiatava-se de evitar encarar o caráter finito e ilimitado da existência do homem. A história anunciava o encontro futuro da humanidade com a sua redenção, proporcionada pelo avanço do conhecimento, da ciênciá, darazão, da consciência. É esta história.científica que, passando por sucessivas críticas, desde a Escola dos Annales,procurou livrar a históiia das filosofias e dotá-la de uma teoria e um método próprios, vive uma definitiva crise hoje. Durante quase dois mil anos, a escrita da História era vista como uma forma de arte, um gênero literário, em que se imbricavam outros gêneros como o épico, o lírico, o satírico e o dramático, devendo-se levar em óonta questões de retórica e de estilo. Â História, como o próprio termo grego sig-

nificava, era a narrativa, a descrição de testemunhos exemplares, de feitos qua-

se sempre ligados aos Estados e às aristocracias. narrativa histórica, como coloca Hayden white, implica a elaboração.de umA çnredo com a definição de

personagens, de agentes e agências da- ação histórica; imprica a elaboraso de um Írgumento, além da presença inevitável de implicações políticas e de pres-

supostos filosóficos.', A fundaçao de uma ciência áã História, que já se ensaiara com os iluministas, foi possível a partir de uma distinpo radical entre fato e ficçãq feita no século passado. Embora esta distinfo facaparteda idéia de história na Antigtiidade, como dei:ra ver TucÍdedes; que já afirmava o caráter limitado da imaginação histórica, que só podia se ater ao {úe realmente tinha ocorrido, a própria presença do mundo mítico como parte da história, relativiza esta separação. o historiador conta uma história, narra; apenas não inventando os dados de suas histórias. consultando arquivos, compila uma série de textos, leituras e imagens deixadas pelas gerações passadas, que, no entanto, são reescri62

 

CoPítulD 2= de ítwentar o passado

Histüia: a ane

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a

presente e de novos pressupostos' o do problemas dos a revistos e tos Partir

queterminatransformanaot"i'documentosemmonumentosesôulpidospelo m': *:l',T:-f]oespecialista próprio historiador, oo t";', o dado não é dado'

emHistória.oquese"t,u*udeevidênciaéfru emHistória.oquese"t,u*udee vidênciaéfrutodaspergu todasperguntasquesefaz ntasquesefazem em aodocumentoeaofatodeque,àoseremproblematizadospelohistoriador, o

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em larga medida' em sua criação'

o acontecimento'

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que se oferece por inteiro' ou em História nao é, pois, um dado transPaÍente' tecido que vai ser retramado e refeito um intriga' é-uma mas essência, sua em \

'Â distinção entre fato e ficSo' que sepârou o discuiso historiográfico' pelo'historiador. pela Literatura modernista ao romPer

do discurso literário, foi trançcendida tornal explícito com o par referente/representação' ao "utU:'-]e^fabricaSao frzcramemergir t-tT::];-Proust Pound' significante' próprio do foyce, uma lnseus livros' o passado é uma construção' Em *irirgi"o da escritura' memória' como a-História' são uma A escrita' própria a durante feita ven$o escritura sem fim, nem origem' a invenção de uma cultura O conhecimento histórico torna-se'. assim' que' embora se manteúa colado aos particular, num determinado momento'

monumentord"i*"do'pelopassado'àluatextualidadeeàsuavisibilidade' imprimir um novo significado a estes tem que lançar mão da imaginação para um é a imaginação de uma intriga' de fragmentos. À interpretaçao-em História

enredopaÍaosfragmentosdepassadoquesetêmnamão.EstaintrrgaParaser as alegorias' os narrada requer o uso de '"to"o' literários como as metáforas' jamais a liberdade de ter possa não diálogos, etc. Embora a narrativa histórica poderá se distanciar do fato de criapo de uma,'*'ut''" flccional' ela nunca relapo de proximidade com o fazer arque é narrativa poàto, guarda uma ", em torno deles' uma'.1trti:' tístico, quando recorta seus objetos e constrói' e o racionalismo A pós-modernidade' ao romPer com o cientificismo nas artes' Diante' po':'dl moderno, instaura um novo paradigma calcado o conheci;G";ia de um p*udig*" etico-estético nadepós-modernidade; li- mento histórico, história mudam estatuto' Podemos' enfim' " "ú"ã" como produção de um covrar-nos da exigência da cientifiêidade' entendida nhecimento"^p^,d"apreenderaverdadeúnicadopassado,dasleiseternas sistêmicas, o que já foi feito inclue imutáveis, a", org"ri-ções estÍuturais, a diil;i;ãu-udu, çiências da natureza. podemos voltar a enfatizar

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Parte I

História e Literatura a

mensão artísticâ de nosso conhecimento e da nossa prática. Tom ar aHistó_ ria como arte de inventar o passado, a partir dos materiais dispersos deixados por ele.

Isto não significa esquecermos nosso compromisso com a prodqção metódica de um, saber, com o estaberecimento de uma pragmática institucional, que ofereça regras paru aprodução destç conheciir.r",o, pois não de_ vemos abrir mão também da dimensão cienúfica que o nosso'ofí.io por." ter' Mesmo as artes também requerem métodos e não dispensam teorias, pois, mesmo tendo firosof,as da história, ,rao foa.-o. a"ra críticaàs conhecer também afeito dimensão firosófica e política de nosso .J;;;;;. As artes também Íequerem, acima de tudo, uma etit" r"itu á" princípios imanentes às próprias açoes L não preconceitos morais or, o, morais, que já orientaram determinadas correntes historiográficas.,r.."i Não podemos fugir do limite imposto pero nosso arquivo. só podernos historicizar aquilo que deixou rastros de sua produção pero homem, a"ao -o-ento e espaço' Mas desaparecem as fontes privilegiadas "da História, ou aspectos de que o historiador não poderia se ocupar t,rdo se torna histoiiciável e fon_ " te de historicidade. Não devemos reivindicar paÍa aHistória mais do que seu lugar como sabqr específico. se era jamais será uma ciência capaz deproposições inques"tionáveis, se não poderá ser uma arte com totar liberdade àe criaçao e nao pode submeter o devir histórico a uma fi.rosofia, a uma razão e*pli.rçao ,rri_ {e nosso espaço, ,l*fj.lTjlrr#j:',..,podemos fazer disso a dàimitaçao

podendomanrer,."Je.I:.H:;,lT:"il::#ffi::ffiff

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fatizando, conforme as probremáticas e.temáticas a ser estudadas em cada mo_

mento, um destes seus aspectos. se já não sç produz a história para servir de base para aconstrução da memória da nação e de quem a domina, se já não se produz a história para afirmar a superioridade de nossa civtriaçao,frente às irritirrçu"" *teriores e às sociedades contemporâneas n{o ocidentais e se já não proi*id; a narrativa das condições necessárias para avitória inevitável àa revoluçao, pâr€c€ que o nosÀo ofício perde a sua finaridade, ere se torna sem sentido e a história chega ao fim. Ora, não nos desesperemos como Bouvard e pécuchet, pgis, en_ quanto a sociedade demandar por narrativas históricas, enquanto o,

ho-"r,

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CaPítulo 2

História: a arte de inventar o passado

precisarern de uma narrativa do passado para orieirtar suas experiências.presenhores. Se a vida sentes, continuaremos sendo necessários; tranqüilizem-se, de'forma cadavez é amrga da arte, enguanto houver vida e quisermos vivê-la inventar novos mundos possíveis' in-elhor, precisaremos da arte, da arte de clusive da arte de inventar o passado.

NOTAS *

2, Tiãúo originalmente.publicado em: cademos de Históia,Natzü, Ed. da uFRN, n'

I

1981' FLAUBERT, Gustave . Bouvard e Pécuchet.z.ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,

p.07-12,1985.

2 Ibid., p. 89. 3

4 5

6

Ibid., p. 105. Ibid., p. 106. Ibid., p. 108. Ibid., p. 109.

KANT, Emann uel. Crítica da razão puro. São Paulo: Abril Cultural, L982' 8 VICO, Giambatista. A ciência noya. Sao Paulo: Record,lggg' petrópolis: vozes, 1993 .p.3 . 9 HEIDEGGER, Martin. ser e tempo.4. ed. são Paulo: Nova cultural, 10 NIETZSCHE, Friedrich . considerações extemporâneas. 7

1991 .p.28.

11

Hayde n. Meto-histór'ia: a imaginação histórica do século

XIX. São Paulo:

WHITE, Edusp, L992.

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