7085907 Anne de Green Gables

July 18, 2017 | Author: tianem | Category: Sky, Red, Love, Train, Beauty
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Índice Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo

I II III IV V VI VII VIII IX

Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo

X XI XII XIII XIV XV XVI

Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo

XVII XVIII XIX XX XXI XXII XXIII XXIV

Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo Capítulo

XXV XXVI XXVII XXVIII XXIX XXX XXXI XXXII XXXIII XXXIV XXXV XXXVI XXXVII XXXVIII

A senhora Rachel Lynde é surpreendida Matthew Cuthbert é surpreendido Marilla Cuthbert é surpreendida Manhã em Green Gables A história de Anne Marilla toma uma decisão Anne diz as suas orações Começa a educação de Anne A senhora Rachel Lynde fica devidamente horrorizada As desculpas de Anne As impressões de Anne sobre a escola dominical Um voto solene e uma promessa As delícias da antecipação A confissão de Anne A tempestade no copo de água da escola Diana é convidada para o chá com um resultado trágico Um novo interesse na vida Anne em auxílio Um concerto, uma catástrofe e uma confissão Uma boa imaginação dá para o torto Uma nova evolução nos sabores Anne é convidada para tomar chá Anne tem um desgosto num assunto de honra A menina Stacy e os seus alunos dão um concerto Matthew insiste nas mangas de balão Forma-se o Clube de Histórias Vaidade e humilhação Uma infeliz dama dos lírios Um ponto alto na vida de Anne A classe de Queens é organizada Onde o riacho se encontra com o rio Saem as notas de passagem O concerto do Hotel Uma rapariga de Queen’s O Inverno em Queen’s A glória e o sonho A ceifeira cujo nome é morte A curva na estrada

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Capítulo I A senhora Rachel Lynde é surpreendida A senhora Rachel Lynde vivia mesmo onde a estrada principal de Avonlea mergulhava numa pequena concavidade, rodeada por amieiros e brincos de princesa, e atravessada por um riacho que se formava bem atrás do bosque do velho Cuthbert; era conhecido por ser um riacho intrincado e cheio de força no seu início através do bosque, com charcos e cascatas secretas e escuras; mas na altura em que atingia o declive dos Lynde era um pequeno riacho calmo e ordeiro, pois nem sequer um riacho poderia passar pela porta da senhora Rachel Lynde sem o devido respeito pela decência e decoro. Estaria porventura consciente que a senhora Rachel estava sentada à janela, deitando o olho a qualquer coisa que passasse, desde riachos a crianças, e que se notasse qualquer coisa estranha ou fora do lugar não descansaria até que tivesse descoberto todos os comos e porquês de tais impertinências. Há em Avonlea e fora dela imensas pessoas que gostam de tomar conta dos assuntos dos vizinhos, muitas vezes com o risco de negligenciarem os seus, mas a senhora Rachel era uma dessas criaturas eficientes que conseguem tomar perfeitamente conta das suas preocupações e das dos outros. Ela era uma notável dona de casa - o seu trabalho estava sempre feito e bem feito; ela presidia ao grupo de costura; ajudava a organizar a escola dominical e era o membro mais activo da Liga dos Amigos da Igreja e dos Auxiliadores para as Missões Estrangeiras. Mesmo com todas estas obrigações, a senhora Lynde tinha tempo de sobra para se sentar durante horas à janela da sua cozinha, tecendo colchas de fio de algodão – tinha feito dezasseis, segundo diziam as incrédulas donas de casa de Avonlea - e mantendo debaixo de olho a estrada principal que atravessava o declive e percorria os montes vermelhos e íngremes mais à frente. Uma vez que Avonlea ocupava uma pequena península triangular que penetrava no golfo de St Lawrence com água dos dois lados, qualquer pessoa que quisesse sair ou entrar teria que passar pela vigilância cerrada da senhora Rachel. Aí se sentava numa certa tarde no início de Junho. O sol entrava pela janela quente e brilhante, o pomar na metade abaixo da casa estava repleto de rebentos floridos de rosa e branco, e no ar pairava o zumbido de muitas abelhas. Thomas Lynde, um homem pequeno e pacífico a quem os habitantes de Avonlea chamavam ‘o marido de Rachel’, estava a plantar as sementes tardias de nabo no terreno do monte por detrás do celeiro, e Matthew Cuthbert deveria estar a plantar as suas no campo vermelho ao pé do riacho, já perto dos Green Gables1. A senhora Rachel sabia porque o tinha ouvido ontem, na loja do William J. Blair em Carmody respondendo ao Peter Morrison, que pretendia colher os seus na próxima tarde. E isto porque Matthew nunca foi ouvido a dar qualquer informação que não lhe tivesse sido pedida. E no entanto, lá estava Matthew Cuthbert, às três e meia da tarde de um dia de trabalho, guiando calmamente através do declive e subindo o monte; mais ainda, usava uma camisa branca e o seu melhor fato, o que demonstrava que ia para Avonlea; e guiava o buggy2 com a égua alazã, o que indicava que iria percorrer uma distância considerável. Então onde ia o Matthew Cuthbert e porquê? Se tivesse sido qualquer outro homem em Avonlea, a senhora Rachel, rapidamente juntando as pontas teria uma boa ideia sobre qualquer das questões. Mas o Matthew ia tão raramente para fora que teria que ser

1 Em muitas zonas do Canadá e dos Estados Unidos é vulgar atribuir um nome ás casas de habitação, sendo muitas vezes as pessoas identificadas não só pelo nome de família como pela casa a que pertencem. Daí o título do livro, e a designação Anne of Green Gables, ou seja, Anne de Telhados Verdes. A tradução não é no entanto exacta porque gable refere-se não ao telhado mas á zona triangular de parede que une as duas vertentes do telhado. 2 Um buggy é uma carruagem pequena geralmente utilizada para transportar passageiros

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qualquer coisa urgente e fora do comum que o estava a levar: ele era um dos homens mais tímidos que se conheciam, e odiava ter que se dirigir a estranhos ou a qualquer lugar onde tivesse que falar. Matthew, vestido com uma camisa branca e guiando o buggy era algo que não se via com frequência. A senhora Rachel, por muito que pensasse no assunto não conseguia tirar nenhuma conclusão, e a sua tarde ficou por assim dizer estragada. “Vou passar por Green Gables depois do chá e perguntar à Marilla onde é que ele foi e porquê” concluiu finalmente a digna senhora. “Ele nunca vai à cidade nesta altura do ano e nunca faz visitas; se se tivesse acabado a semente de nabo não se vestiria tão bem para ir comprar mais, e não ia suficientemente depressa para ir buscar o médico. Mas alguma coisa deve ter acontecido desde ontem para o fazer sair. Estou completamente baralhada, e não terei um minuto de paz de espírito enquanto não souber o que levou o Matthew a sair de Avonlea hoje!” Assim, após o chá a senhora Rachel saiu, e não tinha que ir longe. A casa onde os Cuthbert viviam, grande e rodeada por um pomar estava a menos que um quarto de milha acima do vale dos Lynde. Ao chegar lá, a alameda ainda prolongava um pouco mais o caminho para dentro. O pai de Matthew, tão tímido e silencioso como o seu filho, tinha-a feito tão longe quanto possível das outras casas, sem no entanto a fazer entrar no bosque. Green Gables foi construída na ponta mais interior do pedaço de terra, e aí permaneceu, mal se avistando da estrada principal ao longo da qual todas as casas de Avonlea se situavam de uma forma mais sociável. A senhora Lynde não considerava que habitar em tal sítio se pudesse considerar Viver. “ É só estar, só isso”, dizia enquanto andava pela alameda compactada e rodeada de relva e roseiras selvagens. “Não admira que o Matthew e a Marilla sejam os dois tão esquisitos, vivendo aqui atrás sozinhos. As árvores não são grande companhia, por muitas que sejam. Eu sempre prefiro olhar para pessoas... Eles parecem gostar, mas ao fim ao cabo estão habituados a isto. Uma pessoa habitua-se a tudo, até a ser enforcado, como diria o Irlandês.” Com estes pensamentos a senhora Rachel saiu da alameda para o pátio das traseiras de Green Gables. Este era muito verde, arranjado e preciso, com grandes salgueiros patriarcais de um lado, e no outro com álamos negros. Não havia nem um pau ou pedra fora do lugar, e a senhora Rachel tê-los-ia visto se houvesse. Pensava para si que a Marilla devia varrer aquele quintal tantas vezes como varria a casa. Uma pessoa poderia comer uma refeição naquele chão sem que se sujasse de terra. A senhora Rachel bateu levemente à porta, e entrou quando lhe disseram para entrar. A cozinha de Green Gables era uma divisão alegre, ou assim seria se não estivesse tão limpa que fizesse duvidar do seu uso. Tinha janelas viradas a este e a oeste: através da janela oeste, que dava para as traseiras, entrava a luz suave de Junho, e através da janela este avistavam-se as cerejeiras em flor do pomar da esquerda, e mais à frente as longas bétulas lá em baixo no declive perto do riacho, verdejantes com um emaranhado de vinhas. Aí se costumava sentar Marilla Cuthbert, sempre desconfiada com a luz do sol, que lhe parecia demasiado volátil e irresponsável num mundo que deveria ser levado a sério: aí se sentava agora tricotando, e a mesa atrás dela estava posta para o jantar. A senhora Rachel, antes de ter fechado a porta, tomou nota de tudo o que havia na mesa. Estavam três pratos colocados, pelo que a Marilla deveria estar à espera de alguém que vinha com o Matthew para o chá; mas os pratos eram do serviço comum, e só havia doce de maçã e um tipo de bolo, pelo que a visita não devia ser de cerimónia. Nesse caso, porque é que o Matthew ia de camisa branca e levava a égua vermelha? A

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senhora Rachel estava a ficar um pouco tonta com este enigma tão pouco usual na calma e pouco misteriosa casa dos Green Gables. “Boa tarde Rachel,” disse a Marilla secamente. ”É de facto uma belíssima tarde, não é?... Não te queres sentar? Como estás, tu e os teus?” Sempre tinha existido algo que se poderia considerar amizade (na falta de outro nome qualquer) entre Marilla Cuthbert e a senhora Rachel, apesar – ou talvez por causa – das suas diferenças. Marilla era uma mulher alta e magra, com ângulos e sem curvas; o seu cabelo escuro tinha já algumas madeixas grisalhas, e estava sempre torcido num pequeno troço apertado entre dois ganchos, espetados firmemente à sua volta. Parecia ser uma mulher de consciência rígida e pouca experiência, o que era realmente, mas havia uma expressão nos seus lábios que apesar de pouco desenvolvida, poderia ser considerada indicativa de algum sentido de humor. “Estamos todos bastante bem,” disse a Rachel. “ Eu estava com receio que tu não estivesses, quando vi o Matthew sair hoje. Pensei que talvez tivesse ido buscar o médico.” Os lábios de Marilla comprimiram-se ao abafar um sorriso. Ela tinha estado à espera da Rachel; sabia que a saída tão fora do comum de Matthew seria demasiado para a curiosidade da sua vizinha. “Oh não, estou bem, apesar de ter tido uma dor de cabeça bastante forte ontem” disse. “O Matthew foi a Bright River. Vamos receber um rapazinho de um orfanato de Nova Escócia, e ele chega no comboio hoje à tarde”. Se Marilla tivesse dito que o Matthew tinha ido a Bright River buscar um canguru vindo da Austrália a senhora Rachel não teria ficado mais atónita. Chegou a ficar sem palavras durante cinco segundos. Não era possível que a Marilla estivesse a fazer pouco dela, mas a senhora Rachel quase se viu forçada a crer nessa possibilidade. “Estás no teu sentido, Marilla?” perguntou quando recuperou a voz. “Sim, claro” disse Marilla, como se receber rapazes de orfanatos de Nova Escócia fosse parte do trabalho normal de Verão numa quinta de Avonlea em vez de ser uma inovação nunca antes vista. A senhora Rachel sentiu que tinha recebido um golpe mental. Pensou em pontos de exclamação. Um rapaz! Marilla e Matthew Cuthbert de entre todas as pessoas a adoptarem um rapaz! De um orfanato! Bem, o mundo estava virado do avesso! Não se surpreenderia com nada depois disto! Nada! “Como é que te passou tal coisa pela cabeça?” perguntou de forma reprovadora. Isto tinha sido feito sem que lhe fosse pedido conselho, e deveria por tanto ser reprovado. “ Bem, há algum tempo que vimos pensando nisso, de facto desde o Inverno” respondeu Marilla. “A senhora Spencer esteve cá um dia antes do Natal e ela disse que estava à espera de uma menina do asilo em Hopetown para a Primavera. Tem uma prima que vive lá, e a senhora Spencer já visitou o asilo e sabe tudo sobre o assunto. Então eu e o Matthew temos falado nisso de vez em quando desde aí. Pensámos em receber um rapaz. O Matthew está a ficar mais velho, fez sessenta anos, e já não é tão ligeiro como já foi. Tem problemas de coração e tu sabes como é difícil encontrar moços de lavoura. Nunca há ninguém para contratar a não ser aqueles estúpidos miúdos franceses, que quando os consegues ensinar e fazer alguma coisa deles se vão embora para os viveiros de lagostas ou para os Estados Unidos. No início o Matthew pensou em pedir um órfão de Inglaterra, mas eu disse logo que não. Podem até sair bem, não digo que não, mas não quero nenhum londrino vagabundo para mim. Que seja um rapaz da terra pelo menos. Vai ser sempre um risco, seja quem for que venha, mas eu sentir-me-ei melhor e dormirei melhor de noite se tivermos cá um rapaz canadiano”. Então por fim pedimos à senhora Spencer que nos escolhesse um quando fosse buscar a menina dela. Soubemos que ia lá na semana passada, e

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mandámos dizer pelos familiares do Richard Spencer de Carmody que nos trouxesse um rapaz esperto de mais ou menos onze anos. Decidimos que seria a melhor idade, suficientemente crescido para ajudar nalgumas tarefas, mas novo o bastante para o podermos educar convenientemente. Pretendemos dar-lhe um bom lar e educação. Tivemos hoje um telegrama da senhora Spencer dizendo que vinham no comboio das cinco e meia, e o Matthew foi à estação de Brigth River ter com eles. Ela vai deixá-lo lá e segue para White Sands com a menina.” A senhora Rachel orgulhava-se de dizer sempre o que pensava, e tratou de o fazer, já recuperada do impacto das novidades. “Bem Marilla, vou dizer-te desde já que penso que estás a fazer uma coisa muito pouco sensata – uma coisa arriscada é o que é. Não fazes a mais pequena ideia do que vais receber. Estás a trazer uma criança estranha para dentro da tua casa – do teu lar –, e não sabes uma única coisa sobre ele, nem sobre as suas propensões nem quem foram os pais dele, ou como é de esperar que venha a ficar. Ora, se ainda na semana passada li no jornal que um casal do lado oeste da ilha acolheu um rapaz de um asilo de órfãos e ele pegou fogo à casa de noite – pegoulhe fogo de propósito, Marilla – e quase os matou queimados nas suas camas. E conheço outro caso em que um miúdo adoptado costumava chupar os ovos, e não o conseguiam fazer deixar esse hábito. Se me tivesses pedido conselho sobre esse assunto – que não pediste Marilla – ter-teia dito por amor de Deus que não pensasses em tal coisa.” Estas afirmações tão caridosas não pareceram ofender nem alarmar Marilla, que continuou a tricotar com a mesma calma. “Não nego que tenhas razão naquilo que dizes Rachel. Eu também tive as minhas dúvidas. Mas o Matthew estava tão determinado. Eu vi isso e acabei por ceder. O Matthew faz questão de tão poucas coisas que quando isso acontece eu sinto que é o meu dever fazer-lhe a vontade. Quanto aos riscos, há sempre riscos em qualquer coisa que se faça neste mundo. Até há riscos em se ter uma criança nossa se pensarmos nisso, as coisas nem sempre correm bem. E depois a Nova Escócia é muito próxima da nossa ilha, não é como se o tivéssemos mandado vir de Inglaterra ou dos Estados Unidos. Não pode ser muito diferente de nós.” “Bem, eu só espero que tudo corra bem,” disse Rachel num tom que indicava claramente as suas dúvidas. “Só não digas que não te avisei se ele queimar os Green Gables ou deitar estricnina no poço – ouvi contar um caso em New Brunswick em que uma criança de um orfanato fez isso e toda a família morreu em agonia. Só que era uma miúda neste caso”. “Sim, mas nós não vamos adoptar uma rapariga”, disse Marilla, como se o envenenamento de poços fosse um feito demasiado feminino e não se pudesse temer tal coisa no caso de um rapaz. “Eu nunca aceitaria receber uma rapariga para criar. Até me admiro da senhora Spencer ir fazer isso. Bem, mas ela não passava sem adoptar um orfanato inteiro se se lhe metesse tal coisa na cabeça”. A senhora Rachel teria gostado de ficar até o Matthew aparecer com o seu órfão importado. Mas pensando que ainda faltavam umas duas horas antes que ele chegasse, ela decidiu ir rua acima até ao Robert Bell contar as novidades. Iam com certeza causar sensação, e a senhora Lynde gostava sempre de causar sensação. Partiu assim, deixando Marilla de certa forma aliviada, porque sentiu as suas dúvidas e receios reavivados sob a influência do pessimismo da Senhora Rachel. “Ora de todas as coisas possíveis e imaginárias!” desabafava a senhora Lynde quando se viu em segurança já fora da alameda. “Realmente parece que estou a sonhar. Bem, até tenho pena do pobre que está para chegar. O Matthew e a Marilla não sabem nada sobre crianças, e vão estar à espera que ele seja mais desenrascado e sensato do que o pai dele, se é que ele alguma vez teve pai...Parece estranho, pensar numa criança em Green Gables, quando a casa acabou de ser construída o Matthew e a

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Marilla já eram crescidos, e olhando para aqueles dois agora faz-nos duvidar se alguma vez foram crianças. Não gostava nada de estar na pele daquele órfão. Até tenho pena dele, é o que é” E foi o que disse a senhora Rachel para as roseiras selvagens do fundo do seu coração, mas se ela tivesse visto a criança que aguardava pacientemente na estação de Bright River naquele mesmo momento, a sua pena seria ainda mais profunda e completa. Capítulo II Matthew é surpreendido Matthew Cuthbert e a égua alazã trotavam confortavelmente através das oito milhas até Bright River. Era uma estrada bonita, desenrolando-se entre quintas bem cuidadas, com uma ou outra balsa, ou por um vale onde ameixas selvagens se penduravam por entre os ramos floridos. O ar estava perfumado com os aromas de muitos pomares de macieiras e os prados sucediam-se à distância entre mantos de pérola e púrpura; enquanto “As aves cantavam como se fosse O único dia de Verão em todo o ano.” O Matthew gostava da viagem à sua maneira, excepto nos momentos em que encontrava mulheres e tinha que lhes acenar com a cabeça – porque na Ilha do Príncipe Eduardo tem que se acenar a todas as pessoas que se encontram no caminho, quer se conheçam quer não. Matthew temia todas as mulheres excepto Marilla e Rachel: Tinha a desconfortável sensação que se estavam a rir dele em segredo. Pode até ter tido razão algumas vezes ao pensar isso, porque ele era uma figura desalinhada com um cabelo cinza escuro que lhe chegava aos ombros, e uma barba castanha clara que usava desde os seus vinte anos. Com efeito, o aspecto que tinha agora era o aspecto que tinha tido aos vinte anos, com mais uns tons de cinzento. Quando chegou a Bright River não havia sinais do comboio. Pensou que chegara cedo demais, pelo que atou o cavalo no pequeno Hotel de Bright River e dirigiu-se à estação. A plataforma comprida estava quase deserta; a única criatura à vista era uma rapariga sentada numa pilha de telhas a uma ponta. Matthew, mal notando que se tratava de uma rapariga, passou tão depressa quanto podia sem olhar para ela. Se o tivesse feito, não deixaria de reparar na sua expressão de tensão e ansiedade. Estava lá sentada à espera de algo ou de alguém, e uma vez que esperar sentada era a única coisa que podia fazer, então sentada estava esperando com toda a convicção. Matthew encontrou o chefe da estação a fechar a bilheteira e a preparar-se para ir para casa jantar, e perguntou-lhe se o comboio das cinco e meia ainda estaria demorado. “O comboio das cinco e meia já chegou e partiu há cerca de meia hora”, respondeu secamente o chefe. “Mas deixaram um passageiro para si – uma rapariguinha. Está ali fora sentada nas telhas. Eu disse-lhe que viesse aqui para dentro esperar na sala de espera das senhoras mas ela informou-me que preferia esperar lá fora. ‘Aqui há mais amplitude para a imaginação,’ disse ela. Deve ser cá uma personagem...” “Não estou à espera de uma rapariga,” respondeu simplesmente Matthew. “É um rapaz que venho buscar. Ele devia estar aqui. A senhora Spencer devia tê-lo trazido de Nova Escócia para mim.” O chefe de estação assobiou de admiração. “Deve ter havido um engano,” disse, “a senhora Spencer saiu do comboio com aquela rapariga e disse-me que tomasse conta dela. Disse que você e a sua irmã a iam adoptar e que você a viria buscar. É tudo o que sei, e não tenho mais órfãos escondidos por aqui.”

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“Não compreendo,” disse o Matthew desconsolado, desejando que Marilla soubesse o que fazer com o assunto. “Bem, acho melhor que pergunte à rapariga” disse o chefe de estação despreocupadamente. “Parece-me que ela será capaz de explicar – tem uma bela língua, disso não há dúvida. Talvez não tivessem rapazes do género que vocês pediram.” E dito isto saiu dali com ligeireza, uma vez que tinha fome, e o pobre Matthew ficou, tendo que fazer o que para ele era mais difícil que entrar na cova de um leão: dirigir-se a uma rapariga, uma rapariga desconhecida, uma órfã, e perguntar-lhe porque é que ela não era um rapaz. Matthew gemia por dentro enquanto se virou e dirigiu lentamente para a plataforma, em direcção a ela. Ela tinha-o estado a observar desde que ele passara por ela, e estava a olhar para ele neste momento. O Matthew não estava a olhar para ela, e não teria visto como ela era mesmo se estivesse, mas um observador normal teria visto o seguinte: uma criança de cerca de onze anos, com um vestido de lã amarelo acinzentado muito curto, muito apertado e muito feio. Usava um chapéu de marinheiro castanho desbotado, e debaixo do chapéu e descendo até às costas estavam duas tranças grossas de cabelo muito ruivo. Tinha um rosto pequeno, branco, magro e com muitas sardas; a boca era grande bem como os olhos, que pareciam verdes com certas luzes e estados de espírito, e cinzentos noutras. Isto para um observador vulgar – um observador mais atento teria visto que o seu queixo era pontiagudo e pronunciado, que os seus grandes olhos eram cheios de vivacidade e espírito, que a sua boca era cheia e expressiva, que a sua testa era alta e larga, ou seja, o nosso observador mais atento teria concluído que não era uma alma vulgar que habitava o corpo daquela rapariga desamparada, de quem Matthew Cuthbert tinha tanto receio. O Matthew foi, no entanto, poupado ao suplício de lhe ter que dirigir a palavra, porque assim que ela concluiu que era ele que a vinha buscar levantou-se, e enquanto agarrava com uma mão magra o saco de viagem antiquado e gasto que trazia, estendeu-lhe decididamente a outra. “Suponho que o senhor seja Matthew Cuthbert de Green Gables?” disse, numa voz muito clara e doce. “Estou muito contente por o ver. Estava a ficar com receio que não me viesse buscar e estava a imaginar tudo o que poderia ter sucedido para o impedir. Tinha decidido que se o senhor não me viesse buscar hoje iria até aquela cerejeira selvagem ali em baixo na curva, e subiria lá para cima para passar a noite. Não teria medo nenhum, e seria maravilhoso dormir numa cerejeira toda florida ao luar, não acha? Podia imaginar que morava em salões de mármore, não podia? E eu tinha a certeza que me viria buscar de manhã, se não pudesse vir hoje.” Matthew tinha tomado a pequena mão escanzelada na sua, e logo ali decidiu o que fazer. Ele não conseguia dizer a esta criança com olhos brilhantes que tinha havido um engano; ia levá-la para casa e deixar que Marilla lhe dissesse. Ela não podia ser deixada em Bright River, qualquer que fosse o engano, por isso todas as perguntas e explicações teriam que ser guardadas para quando ele estivesse a salvo nos Green Gables. “Desculpa o atraso”, disse timidamente. “Anda, o cavalo está na praça. Dá-me o teu saco.” “Oh, eu posso levá-lo”, respondeu a criança alegremente. “Não é muito pesado. Tenho todos os meus bens terrenos dentro dele, mas não é pesado. E se não o segurarmos de uma certa maneira a pega salta, por isso é melhor ser eu a levá-lo porque eu sei a maneira de o agarrar. É um saco extremamente velho. Oh, estou tão contente que tenha vindo, mesmo que fosse bom dormir numa cerejeira selvagem. Temos que viajar um bom bocado, não é? A senhora Spencer disse que seriam cerca de 13 quilómetros. Estou contente porque gosto imenso de viajar. Oh, é

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maravilhoso ir viver com vocês e pertencer-lhes. Nunca pertenci a ninguém, pelo menos assim. Mas o orfanato foi o pior. Só lá estive quatro meses, mas foi o suficiente. Suponho que nunca foi órfão e viveu num asilo, por isso não deve compreender como é. É pior que qualquer coisa que o senhor imagine. A senhora Spencer diz que eu sou má por falar assim, mas eu não pretendo ser má. É tão fácil ser má sem dar por isso, não é? Elas eram boas, sabe, as pessoas do orfanato. Mas há tão pouca amplitude para a imaginação num orfanato – só nos outros órfãos. Era muito interessante imaginar coisas acerca deles - imaginar que a menina que se sentava ao nosso lado era realmente a filha de um conde, roubada dos seus pais por uma ama cruel que morreu antes de poder confessar. Costumava ficar acordada à noite a imaginar coisas destas porque não tinha tempo durante o dia. Talvez seja por isso que sou tão magra – sou horrivelmente magra, não acha? Não tenho nada em cima dos ossos. Adoro imaginar que sou redondinha e bonita, com covinhas nos cotovelos.” E com isto a companheira de Matthew deixou de falar, em parte porque tinha ficado sem fôlego e em parte porque tinham chegado ao Buggy. Não disse nem mais uma palavra até que deixaram a aldeia e começaram a descer um pequeno monte cujo pedaço de estrada tinha sido escavado tão profundo que as bermas orladas por cerejeiras bravas e balsas estavam vários pés acima da cabeça deles. A criança esticou o braço e arrancou um ramo de ameixeira brava que roçava de lado do buggy. “Não é lindo? O que é que aquela árvore, inclinada sobre o monte, toda branca e recortada lhe faz lembrar?” Perguntou. “Bem, não sei,” respondeu Matthew. “Pois uma noiva, claro – uma noiva com um lindo véu transparente. Eu nunca vi nenhuma, mas posso imaginar como será. Eu não espero no entanto vir a ser uma noiva. Sou tão magra que ninguém quererá casar comigo – a não ser um missionário que vá para o estrangeiro. Penso que os missionários que vão para o estrangeiro não devem ser muito exigentes. Mas tenho esperança que um dia venha a ter um vestido branco. É o meu ideal mais elevado de felicidade terrena. Eu gosto imenso de roupas bonitas. E nunca tive um vestido bonito na vida desde que me lembro – mas claro, isso só me traz mais coisas para desejar, não é? E depois posso imaginar que estou lindamente vestida. Esta manhã quando deixei o orfanato senti-me tão envergonhada por ter que usar este horrível vestido de lã. Todas as órfãs os têm que usar, sabe. Um retroseiro de Hopetown doou trezentos metros deste tecido ao asilo no Inverno passado. Algumas pessoas disseram que foi porque não o conseguiu vender, mas eu prefiro acreditar que o fez por bondade genuína, não acha? Quando entrei no comboio pensei que toda a gente devia estar a olhar para mim com pena. Mas comecei logo a imaginar que eu tinha um vestido de seda do mais lindo tom de azul claro – porque quando imaginamos alguma coisa bem podemos imaginar algo que valha a pena - e um grande chapéu com flores e plumas, e um relógio de ouro, e luvas de pelica e botas. Senti-me logo alegre e desfrutei da viagem até à Ilha com todo o meu coração. Não enjoei nada no barco. Nem a senhora Spencer, apesar de geralmente enjoar. Ela disse que não tinha tido tempo para isso, por ter que se assegurar que eu não caía borda fora. Disse que quase nem me via de tanto que eu me debruçava e espreitava. Mas se a impediu de enjoar ainda bem que me debrucei e espreitei, não é? E eu queria ver tudo o que havia para ver naquele barco porque eu nunca tinha andado de barco e não sei se terei outra oportunidade. Oh, mas há muito mais cerejeiras em flor! Esta ilha é o sítio mais florescente. Já gosto tanto dela, e estou tão contente de ir viver aqui. Eu sempre ouvi dizer que a Ilha do Príncipe Eduardo era o sítio mais bonito do mundo, e costumava imaginar que vivia aqui, mas nunca esperei vir a viver. É delicioso quando as coisas que imaginamos se realizam, não é? Ah, aquelas estradas vermelhas são tão engraçadas.

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Quando entrámos no comboio em Charlottetown e começaram a aparecer as estradas vermelhas eu perguntei à senhora Spencer o que é que as tornava vermelhas, e ela disse que não sabia e que por amor de Deus não fizesse mais perguntas. Ela disse que eu já lhe devia ter feito mil perguntas. Suponho que sim, mas como é que podemos ficar a saber alguma coisa se não perguntarmos? E o que é que torna as estradas vermelhas?” “Bem, não sei,” disse Matthew. “Bem, essa é uma das coisas que eu tenho que descobrir um dia destes. Não é esplêndido pensar em todas as coisas que há para descobrir? Fazme ficar tão contente por estar viva – é um mundo tão interessante. Não teria metade do interesse se soubéssemos tudo sobre todas as coisas, não é? Não haveria qualquer amplitude para a imaginação, não é? Mas não estarei a falar demais? As pessoas estão sempre a dizer que eu falo demais. Preferia que eu não falasse? Se preferir eu calo-me. Eu consigo calar-me se me decidir a fazê-lo, apesar de ser difícil.” Matthew, para sua grande surpresa, estava a gostar muito. Como a maioria das pessoas caladas ele gostava de pessoas faladoras que estivessem dispostas a conversar e não esperassem que ele fosse falando também. Mas ele nunca esperou gostar da companhia de uma rapariguinha. As mulheres eram más em todos os aspectos, mas as raparigas eram piores. Ele detestava a forma que elas tinham de passar por ele timidamente, olhando de soslaio, como se temessem que ele as engolisse de um trago se elas se aventurassem a dizer uma palavra. Esse era o comportamento típico de uma rapariga bem-educada de Avonlea. Mas esta miúda sardenta era muito diferente, e apesar de a sua inteligência mais lenta ter uma certa dificuldade em acompanhar a vivacidade e rapidez do discurso dela, pensou que “de certa forma gostava do seu paleio”. Então disse, timidamente como de costume: “Oh, podes falar o que quiseres. Eu não me importo” “Oh, ainda bem. Eu sei que nós nos vamos dar muito bem. É um alívio tão grande poder falar quando nos apetece e não nos estarem sempre a dizer que as crianças devem ser vistas e não ouvidas. Já me disseram isso mais de mil vezes. E as pessoas costumam rir-se de mim porque uso palavras complicadas. Mas se temos ideias complicadas temos que ter palavras complicadas para elas, não é?” “Bem, isso parece razoável,” disse Matthew. “A senhora Spencer disse que eu devia ter a língua solta, mas não está, está bem presa no fim. A senhora Spencer disse que a vossa casa se chama Green Gables. Eu quis saber tudo sobre ela, e ela disse que tinha árvores à volta. Fiquei mais contente que nunca. Eu adoro árvores. E não havia nenhumas no orfanato, só umas pobres coisinhas pequeninas lá à frente, com uma espécie de gaiolas à volta pintadas de branco. Pareciam órfãs elas próprias, pobrezinhas. Costumavam dar-me vontade de chorar quando olhava para elas. Eu costumava dizer-lhes ‘Oh pobrezinhas, se vocês estivessem numa grande floresta com outras árvores à vossa volta, e com musgo e campainhas a crescer perto das vossas raízes e um riacho não muito longe vocês podiam crescer, não podiam? Mas não podem, aqui onde estão. Sei exactamente como se sentem arvorezinhas.’ Tive tanta pena de as deixar esta manhã. O senhor também se afeiçoa assim às coisas, não é verdade? Há algum riacho perto de Green Gables?” “Bem...sim, há um mesmo abaixo da casa.” “Que giro. Sempre foi um sonho meu viver perto de um riacho. Nunca esperei que viesse a acontecer. Os sonhos não se realizam com frequência, pois não? Não seria agradável se se realizassem? Mesmo agora sinto-me mesmo quase perfeitamente feliz. Eu não posso sentir-me mesmo perfeitamente feliz porque – bem, que cor daria a isto?” Ela pegou numa das suas longas e brilhantes tranças e levantou-a à frente dos olhos de Matthew. Matthew não estava habituado a

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discriminar as cores dos vestidos das senhoras, mas no caso desta trança não havia grande dúvida. “É vermelho, não é?” A rapariga largou a trança com um suspiro que veio bem lá do fundo, e deixou-o sair como se carregasse todas as mágoas do mundo. “Sim, é vermelho,” disse resignada. Agora vê porque não posso ser perfeitamente feliz. Ninguém poderia sendo ruiva. Não me importo muito com as outras coisas, as sardas, os olhos grandes e a magreza. Posso imaginar que não os tenho. Posso imaginar que tenho uma pele rosada, e lindos olhos violeta. Mas não posso imaginar o cabelo de outra cor. E esforço-me tanto! Penso para mim mesma ‘Agora o meu cabelo era de um negro glorioso, negro como as asas de um corvo’. Mas eu sei sempre que é simplesmente ruivo, e parte-me o coração. Vai ser a minha mágoa para toda a vida. Li uma vez numa novela que uma rapariga tinha uma mágoa para toda a vida, mas não era o cabelo ruivo. Ela tinha um cabelo dourado que caía desde a sua fronte de alabastro. O que é uma fronte de alabastro? Nunca consegui descobrir. O senhor sabe dizer-me o que é? “Bem...não, temo bem que não,” disse Matthew, estando já um pouco tonto. Sentia-se como quando uma vez em rapaz outro miúdo o tinha desafiado a andar de carrossel num piquenique. “Bem, seja o que for, devia ser qualquer coisa boa porque ela era divinamente bonita. Já alguma vez imaginou como seria ser divinamente bonita?” “Bem... não, nunca,” confessou Matthew ingenuamente. “Eu já, muitas vezes. O que é que o senhor preferia ser, se tivesse possibilidade de escolher – divinamente bonito, brilhantemente inteligente ou angelicamente bom? “Bem...eu, eu não sei bem.” “Nem eu. Nunca consigo decidir. Mas também não tem muita importância uma vez que não é provável que vá acontecer. É certo que nunca vou ser angelicamente boa, a senhora Spencer diz...Oh senhor Cuthbert, Oh senhor Cuthbert, Oh Senhor Cuthbert!!!” Isso não era o que a senhora Spencer tinha dito; nem a criança caiu do buggy, nem o Matthew fez algo espantoso. Eles tinham simplesmente descrito uma curva da estrada e estavam na “Avenida”. A “Avenida”, como era chamada pelas pessoas de Newbridge, era um pedaço de estrada com cerca de 400 metros, completamente coberta por macieiras enormes e largas, plantadas há muitos anos por um agricultor excêntrico. Em frente, via-se um longo túnel de flores brancas e perfumadas. Abaixo dos ramos o ar estava repleto de uma luz lilás e à frente ao longe avistava-se o céu do pôr-do-sol, colorido e brilhante como o vitral de uma catedral. Toda esta beleza pareceu ter paralisado a criança. Inclinou-se para trás no buggy, apertou as mãos e o seu rosto levantou-se extasiado perante o esplendor branco à sua frente. Mesmo depois de passarem e começarem a descer em direcção a Newbridge ela não se mexeu nem falou. Ainda com um ar embevecido ela olhou longamente o pôr-do-sol no oeste, como quem vê visões marchando num cenário brilhante. Através de Newbridge, uma aldeia pequena onde os cães ladraram, os miúdos assobiaram e algumas pessoas espreitaram por detrás das janelas, passaram ainda em silêncio. Passados cinco quilómetros, deixando para trás a aldeia, a criança continuava sem falar. Ela conseguia manter-se em silêncio, era evidente, com tanta determinação como a que utilizava para falar. “Deves estar a sentir-te muito cansada e com fome,” aventurou-se Matthew a dizer por fim, não encontrando outra razão para o seu silêncio e entorpecimento. “Mas já não falta muito - só mais dois quilómetros.” Ela saiu dos seus pensamentos com um suspiro e olhou-o com a expressão de alguém que esteve pairando longe, guiada pelas estrelas.

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“Oh, senhor Cuthbert” segredou, “aquele sítio por onde passámos, aquele sítio branco, o que era?” “Bem... deves querer dizer a Avenida,” disse Matthew após uns momentos de reflexão profunda. “Até é um sítio bonito.” “Bonito? Oh, bonito não me parece a palavra certa para dizer. Nem lindo. Não vão suficientemente longe. Oh, foi maravilhoso, maravilhoso. É a primeira coisa que vejo que não pode ser melhorada pela imaginação. Satisfaz-me aqui”- pôs uma mão sobre o peito- “fez-me uma dor estranha, e no entanto foi uma dor agradável. Alguma vez teve uma dor assim senhor Cuthbert?” Bem...não consigo lembrar-me de ter alguma vez a ter tido.” “Eu tenho-a muitas vezes – sempre que vejo alguma coisa verdadeiramente bonita. Mas não deviam chamar àquele lugar encantador a Avenida. Não há qualquer sentido num nome assim. Deveriam chamarlhe...deixe-me ver: O Caminho Branco das Delícias. Não é um nome tão imaginativo? Quando eu não gosto do nome de um sítio ou de uma pessoa eu imagino sempre um novo, e passo a pensar sempre neles assim. Havia uma menina no orfanato que se chamava Hephzibah Jenkins, mas eu imaginava-a sempre como Rosália DeVere. Outras pessoas poderão chamar Avenida àquele lugar, mas eu vou sempre chamar-lhe o Caminho Branco das Delícias. Só falta mesmo uma milha até chegarmos a casa? Estou contente e estou triste. Estou triste porque este caminho foi tão agradável e fico sempre triste quando as coisas agradáveis terminam. Algo ainda mais agradável pode vir a seguir, mas nunca se pode saber de certeza. E normalmente não é mais agradável. Pelo menos tem sido a minha experiência. Mas estou contente por saber que estou a chegar a casa. Sabe, eu nunca tive uma casa desde que me lembro. Dá-me outra vez aquela dor agradável só de pensar que estou a chegar a um lar de verdade. Oh, não é bonito?” Tinham chegado ao cimo do monte. Abaixo estava um lago, que de tão comprido e sinuoso mais parecia um rio. Uma ponte atravessava-o ao meio, e dali até à sua ponta mais baixa, onde uma cintura de dunas douradas o escondiam do golfo situado abaixo, a água reflectia inúmeros cambiantes de cores- desde azuis a e rosas, a verdes etéreos e outras cores cujos nomes não foram ainda encontrados. Acima da ponte o lago subia até ao recorte de um bosque de abetos e bordos, e estendia-se reluzente nas suas sombras inconstantes. Aqui e ali uma ameixeira selvagem debruçava-se sobre a margem como uma rapariga vestida de branco que procura o seu reflexo na água. Do charco ao final do lago vinha um claro e suavemente triste coro de rãs. Havia uma pequena casa cinzenta espreitando através de um pomar de macieiras brancas numa curva mais à frente, e apesar de ainda não estar muito escuro uma luz brilhava por detrás de uma janela. “É o lago do Barry” disse Matthew. “Oh, também não gosto desse nome. Vou chamar-lhe –deixe ver- Lago das Água Brilhantes. Sim, esse é o nome certo para ele. Sei por causa o arrepio. Quando acerto num nome que serve na exactidão dá-me sempre um arrepio. Também há coisas que o arrepiam?” Matthew pensou longamente. “Bem, sim. Sempre me deu uma espécie de arrepio quando vejo aquelas larvas brancas muito feias que aparecem nos regos dos pepinos. Odeio o aspecto delas.” “Oh, não creio que possa ser bem o mesmo tipo de arrepio. Pensa que sim? Não me parece que possa haver grande ligação entre um lago de águas brilhantes e larvas. Mas porque é que as pessoas lhe chamam o lago do Barry?” “Penso que seja porque o senhor Barry vive ali naquela casa. Orchard Slope é o nome dela. Se não fosse por esse bosque atrás dela podia ver-se Green Gables daqui. Mas temos que passar pela ponte e dar a volta pela estrada, por isso são quase mais 700 metros em frente.

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“O senhor Barry tem filhas pequenas? Bem, também não muito pequenas, assim para o meu tamanho.” “Tem uma com cerca de onze anos. O nome dela é Diana.” “Oh!” seguido de uma longa inspiração. “Que nome perfeitamente encantador!” “Bem, não sei. Tem algo de terrivelmente ateu, parece-me. Eu preferiria Jane ou Mary ou outro nome simples do género. Mas quando a Diana nasceu estava um professor hospedado aqui e pediram-lhe que lhe desse o nome e ele chamou-lhe Diana.” “Gostava muito que tivesse havido um professor como esse quando eu nasci. Oh, cá estamos nós na ponte. Vou fechar os olhos com força. Tenho sempre medo quando atravesso pontes. Não consigo deixar de imaginar que se vão fechar como um canivete e morder-nos. Por isso fecho os olhos. Mas tenho sempre que os abrir quando julgo que estamos a chegar ao meio. Porque se a ponte de facto se fechasse eu quereria vê-la fechar-se. Faz um barulho tão alegre. Gosto sempre da parte do barulho. Não é esplêndido que hajam tantas coisas para gostar no mundo? Pronto, passámos. Vou olhar para trás. Boa noite, querido Lago das Águas Brilhantes. Eu digo sempre boa noite às coisas de que gosto, tal como diria às pessoas, acho que elas gostam. Essa água parecia estar a sorrir para mim.” Quando chegaram ao cimo da colina e descreveram a curva, Matthew disse: “Estamos muito perto de casa. Green Gables está ” “Oh, não me diga, “interrompeu sem fôlego, agarrando-lhe o braço semi levantado e cerrando os olhos para não ver o gesto. “Deixe-me adivinhar. De certeza que vou conseguir adivinhar.” Ela abriu os olhos e olhou à volta. Eles estavam no cimo de um monte. O sol já se tinha posto há algum tempo mas a paisagem ainda se via na luz suave do anoitecer. A oeste uma igreja escura erguia-se contra um céu dourado. Abaixo havia um pequeno vale e para além dele um campo longo e levemente ascendente com quintas bem cuidadas espalhadas. De um lado para o outro, os olhos da criança saltitavam, desejosos e ávidos. Por fim detiveram-se numa casa longe à esquerda, longe da estrada, branca com árvores em flor no crepúsculo do bosque que a rodeava. Acima dela, no céu limpo do sudoeste uma grande estrela branca e cristalina brilhava como uma luz de guia e promessa. “É ali, não é?” disse apontando. Matthew tocou as rédeas da égua castanha deliciado. “Bem, adivinhaste! Mas imagino que a senhora Spencer ta descreveu, e conseguiste ver qual era.” “Não, não descreveu, realmente não o fez. O que ela me disse poderia ser acerca de qualquer outra quinta. Eu não tinha nenhuma ideia do aspecto que tinha. Mas assim que a vi senti que era a casa. Oh, parece que estou a viver um sonho. Sabe, o meu braço deve estar negro e roxo do cotovelo para cima de tantas vezes que me belisquei hoje, só para ver se era a sério – até que me apercebi que se de facto era um sonho mais valia ir sonhando enquanto pudesse - e parei de me beliscar. Mas é real e estamos quase em casa.” Com um suspiro de felicidade regressou ao silêncio. Matthew esticou-se pouco à vontade. Estava contente por ser a Marilla e não ele que diria a esta desamparada do mundo que o lar por que ela tanto ansiava não chegaria a ser seu. Passaram pelo declive dos Lynde, onde já estava bastante escuro, mas não tanto como para que a senhora Lynde não os visse chegar pela sua janela, subiram o monte e atravessaram a longa alameda até Green Gables. Quando chegaram a casa Matthew estava inquieto com a revelação que se seguiria, com uma intensidade que ele próprio não conseguia compreender. Não era em si próprio ou em Marilla que estava a pensar, ou nos aborrecimentos que este engano lhes traria, mas na desilusão da criança. Quando pensou na felicidade radiante nos olhos dela a esmorecer teve a sensação desconfortável de

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que iria assistir ao assassinato de algo – mais ou menos o sentimento que tinha quando era preciso matar um cordeiro, vitelo ou qualquer outra criatura pequena e inocente. O pátio estava bastante escuro quando viraram para lá, e as folhas dos álamos sussurravam suavemente à sua volta. “Oiça as vozes das árvores a falar durante o sono” murmurou enquanto ele a levantou e colocou no chão. ”Que sonhos agradáveis devem ter!” Então, agarrando com força no saco velho que continha “todos os seus bens terrenos”, seguiu-o para dentro da casa. Capítulo III Marilla Cuthbert é surpreendida Marilla veio rapidamente quando Matthew abriu a porta. Mas quando os seus olhos caíram na estranha pequena criatura de vestido feio e curto, tranças longas de cabelo ruivo e olhos ávidos e luminosos parou imediatamente espantada. “Matthew Cuthbert, quem é esta?” disse alto e rapidamente. “Onde está o rapaz?” “Não havia nenhum rapaz,” disse Matthew inquieto. “Só lá estava ela.” Ele acenou em direcção à criança, lembrando-se que nem sequer lhe tinha perguntado o nome. “Não havia nenhum rapaz?! Mas tinha que haver um rapaz” insistiu Marilla. “Nós mandámos dizer à senhora Spencer que trouxesse um rapaz.” “Pois, mas não trouxe. Trouxe-a a ela. Eu perguntei ao chefe da estação. E tinha que a trazer para casa. Não podia tê-la deixado lá, qualquer que tenha sido o engano que a trouxe.” “Bem, pois temos um lindo serviço!” despejou Marilla. Durante este diálogo a criança permanecera silenciosa, os seus olhos saltitavam de um para o outro, todo o entusiasmo a esmorecer-se do seu rosto. Subitamente pareceu aperceber-se do significado do que estava a ser dito. Deixando cair o precioso saco de viagem, deu um passo em frente e apertou as mãos. “Vocês não me querem!” gritou. “Vocês não me querem porque não sou um rapaz! Eu devia estar à espera. Nunca ninguém me quis. Eu devia saber que era tudo muito bonito para durar. Devia saber que nunca ninguém me quereria. Oh, o que devo fazer? Vou desfazer-me em lágrimas!” E de facto, foi o que fez. Sentada numa cadeira ao pé da mesa, de braços esticados ao longo dela e enterrando a cara neles tratou de chorar convulsivamente. Marilla e Matthew olharam um para o outro por cima do fogão, completamente chocados. Nenhum deles sabia o que fazer ou dizer. Finalmente Marilla avançou debilmente para a desgostosa criança. “Então, então, não há razão para chorar tanto por causa disto.” “Sim, há razão!” A criança levantou a cabeça rapidamente, mostrando um rosto molhado de lágrimas e lábios trémulos. “Você também chorava, se fosse órfã e chegasse a um sítio que pensava que seria a sua casa e descobrisse que não a queriam porque não era um rapaz! Oh, esta é a coisa mais trágica que alguma vez me aconteceu!” Algo semelhante a um sorriso, um pouso enferrujado pela falta de uso, aliviou a expressão séria de Marilla. “Bom, não chores mais. Não te vamos pôr na rua hoje. Terás que ficar aqui até investigarmos este assunto. Como te chamas?” A criança hesitou por um momento. “Podia chamar-me Cordélia, por favor?” disse ansiosamente. “Chamar-te Cordélia? É esse o teu nome?” “Não, não é exactamente o meu nome, mas eu adorava ser chamada de Cordélia. É um nome tão perfeitamente elegante.” “Não faço ideia do que estás a dizer. Se Cordélia não é o teu nome, então qual é?”

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“Anne Shirley,” disse relutantemente a dona de tal nome, ”mas, oh, por favor chame-me Cordélia. Não pode ter grande importância o que me vai chamar se só cá vou estar pouco tempo, não é? E Anne é um nome tão pouco romântico.” “Pouco romântico uma ova!” disse a pouco compreensiva Marilla. “Anne é um nome muito bom, simples e sensato. Não tens qualquer necessidade de te envergonhares dele.” “Oh, mas eu não tenho vergonha dele,” explicou Anne, “só gosto mais de Cordélia – pelo menos nestes últimos anos. Quando era pequena eu imaginava que me chamava Geraldine, mas agora gosto mais de Cordélia. Mas se me chamar Anne, por favor chame-me com um e no fim.” “Que diferença faz com e ou sem e?” Perguntou Marilla com outro sorriso ferrugento enquanto agarrava na chaleira. “Oh, faz tanta diferença. Fica muito melhor. Quando ouve um nome não o imagina logo escrito na sua cabeça, como se estivesse impresso? Eu imagino, e Ann parece-me horrível, mas Anne é muito mais distinto. Se você me tratasse por Anne eu tentaria reconciliar-me com o facto de não me chamar Cordélia.” “Muito bem então, Anne com e no fim, podes-nos dizer como se arranjou este engano? Nós mandámos dizer à senhora Spencer que nos trouxesse um rapaz. Não havia rapazes no orfanato?” “Oh, sim, havia-os em abundância. Mas a senhora Spencer disse claramente que a senhora queria uma rapariga de cerca de onze anos. E a directora disse que achava que eu servia. Não sabe como fiquei encantada. Não consegui pregar olho esta noite de alegria. Oh,” acrescentou magoada virando-se para Matthew, “porque é que não me disse na estação que não me queria e me deixou ali? Se eu não tivesse visto o caminho branco das delícias e o Lago das Águas Brilhantes não seria tão difícil.” “O que é que ela está a dizer?” perguntou Marilla, olhando para Matthew. “Ela... está-se a referir a uma conversa que tivemos no caminho”, disse Matthew rapidamente ”vou lá fora pôr a égua no estábulo, Marilla. Faz-me um chá para quando voltar.” “A senhora Spencer trouxe mais alguém para além de ti?” continuou Marilla enquanto o Matthew estava fora. “Ela trouxe a Lily Jones para ela. A Lily só tem cinco anos e é muito bonita - tem o cabelo cor de avelã. Se eu fosse muito bonita e tivesse cabelo cor de avelã ficava comigo?” “Não. Nós queremos um rapaz para ajudar o Matthew na quinta. Não temos qualquer necessidade de uma rapariga. Tira o teu chapéu. Vou pô-lo e ao teu saco na mesa da entrada.” Anne tirou o chapéu suavemente. Matthew chegou entretanto, e eles sentaram-se para o jantar. Mas Anne não conseguia comer. Em vão mordiscava o pão com manteiga, e provava a conserva de maçã de dentro do prato de vidro à sua frente. Não conseguia comer nada de especial. “Não estás a comer nada,” disse Marilla olhando-a como se fosse um contratempo. Anne suspirou. “Não consigo. Estou nos abismos do desespero. Você consegue comer quando está nos abismos do desespero?” “Nunca estive nos abismos do desespero, por isso não posso dizer,” respondeu Marilla. “Não? Bem, ao menos tentou imaginar que estava nos abismos do desespero?” “Não, não tentei.” “Então acho que não pode compreender como é. É um sentimento mesmo muito desconfortável. Quando tentamos comer aparece-nos um alto na garganta e não conseguimos engolir nada, nem se fosse caramelo de chocolate. Eu comi um caramelo de chocolate há dois anos e foi simplesmente delicioso. Desde então sonho muitas vezes que tenho imensos caramelos de chocolate, mas acordo sempre quando os vou comer.

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Espero que não se ofenda por eu não conseguir comer. Está tudo muito bom, mas eu não consigo comer.” “Calculo que ela esteja cansada,” disse Matthew, que não tinha falado desde que regressara do estábulo. ”É melhor metê-la na cama Marilla.” Marilla tinha estado a pensar onde iria deitar Anne. Tinha preparado um divã para o esperado rapaz na salinha ao lado da cozinha. Mas apesar de ser limpo e arrumado, não lhe parecia adequado para uma rapariga. Mas o quarto de hóspedes estava fora de questão para a visita incerta, portanto sobrava apenas o quarto este do sótão. Marilla acendeu uma vela e disse à Anne para a seguir, o que ela fez desconsolada, levando o seu chapéu e o saco de viagem enquanto passava pela entrada. A entrada estava assustadoramente limpa; o pequeno quarto do sótão onde ela se encontrou parecia ainda mais limpo. Marilla colocou a vela numa mesinha triangular com três pernas e abriu a cama. “Suponho que tenhas uma camisa de dormir?” perguntou. Anne acenou afirmativamente. “Sim, tenho duas. A directora do orfanato mandou fazê-las para mim. São muito curtas. Nunca há nada suficiente num orfanato, por isso as coisas são sempre curtas – pelo menos num orfanato pobre como o nosso. Eu odeio camisas de noite curtas. Mas sempre podemos sonhar que temos camisas compridas, com rendinhas à volta do pescoço e isso é um consolo.” “Bem, despe-te tão depressa como possas e mete-te na cama. Eu vou voltar daqui a um bocado para vir buscar a vela. Não vou esperar que tu a apagues. Podias deitar fogo à casa.” Quando a Marilla saiu, Anne olhou à sua volta desiludida. As paredes estucadas e brancas pareciam tão vazias e expectantes que ela pensou que lhes devia doer tanta nudez. O chão também estava vazio, à excepção de um tapete redondo entrançado no meio, como Anne nunca tinha visto nenhum. Num canto estava a cama, uma cama alta, antiquada e escura. No outro canto estava a já descrita mesa de três cantos, enfeitada com uma almofada para agulhas tão cheia que assustaria o alfinete mais aguçado. Acima dela estava pendurado um espelho pequeno. A meio caminho entre a mesa e a cama estava uma janela com uma cortina branca como gelo, e na parede oposta estava o lavatório. Toda a divisão era de uma rigidez que não podia ser descrita em palavras, mas que provocou um arrepio na espinha de Anne. Com um soluço despiu rapidamente as suas roupas, vestiu a camisa de noite curta e meteu-se na cama, onde enterrou a cara na almofada e puxou a roupa para cima da cabeça. Quando a Marilla veio buscar a vela, várias peças de roupa curtas estavam espalhadas de uma forma desalinhada pelo chão, e uma certa aparência tempestuosa da cama eram os únicos indicativos de outra presença salvo a sua. Ela apanhou deliberadamente as roupas de Anne, colocou-as cuidadosamente dobradas numa cadeira amarela, e então, apanhando a vela, dirigiu-se à cama. “Boa noite” disse, com estranheza mas não sem simpatia. A cara branca de Anne e os seus olhos grandes apareceram sob as roupas de cama com uma rapidez assombrosa. “Como é que pode chamar-lhe uma boa noite quando sabe que é a pior noite que eu já tive?” disse zangada. E mergulhou de novo na invisibilidade. Marilla desceu lentamente para a cozinha e começou a lavar a loiça do jantar. Matthew estava a fumar, um sinal certo de que estava perturbado. Ele fumava muito raramente porque a Marilla achava que era um hábito pouco asseado, mas em certas ocasiões ele sentia-se na necessidade de o fazer e Marilla fazia de conta que não via, compreendendo que um homem tem que ter algum escape para as suas emoções.

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“Bem, temos aqui um lindo sarilho,” disse zangada. “É o que acontece quando se manda recado em vez de irmos pessoalmente. Os familiares do Richard Spencer devem ter percebido mal a mensagem. Um de nós vai ter que ir falar com a senhora Spencer amanhã, isso é certo. Esta rapariga tem que ser mandada de volta para o asilo.” “Pois, suponho que sim,” disse Matthew relutantemente. “Tu supões que sim! Não sabes que sim?” “Bem, ela é uma coisinha simpática, Marilla. É uma pena mandá-la de volta quando ela tinha tanta vontade de ficar aqui.” “Matthew Cuthbert, tu não queres dizer que achas que devíamos ficar com ela!” O espanto de Marilla não teria sido maior se Matthew lhe tivesse demonstrado uma predilecção súbita por fazer o pino. “Bem, suponho que não, não exactamente,” balbuciou Matthew, desconfortavelmente forçado em relação ao que queria dizer. “Suponho...não seria de esperar que ficássemos com ela.” “Acho que não. De que nos serviria ela?” “Nós podíamos servir-lhe de alguma coisa,” disse Matthew, súbita e inesperadamente. “Matthew Cuthbert, eu acho que essa criança te enfeitiçou. Estou a ver claro como a água que queres ficar com ela.” “Bem, ela é uma coisinha muito interessante”, continuava Matthew. “Devias tê-la ouvido falar quando vínhamos da estação.” “Oh, ela fala muito bem. Eu vi logo isso. Também não joga nada a seu favor, digo-te. Não gosto de crianças que têm demasiado a dizer. Eu não quero uma rapariga órfã, e mesmo que quisesse ela não é do estilo que eu escolheria. Há qualquer coisa que eu não compreendo nela. Não, ela tem que ser enviada sem demora para o sítio de onde veio.” “Eu podia contratar um rapaz francês para me ajudar,” disse Matthew, “e ela fazia-te companhia a ti.” “Eu não me queixo de solidão,” disse Marilla. “E não vou ficar com ela.” “Pois, tens toda a razão, claro, Marilla,” disse Matthew levantando-se e guardando o cachimbo. ”Vou-me deitar.” E foi o que fez. Também Marilla se deitou depois de arrumar todos os pratos, muito firme na sua resolução. E lá em cima, no sótão, uma criança sozinha e sedenta de amor adormeceu a chorar. Capítulo IV Manhã em Green Gables Já era manhã alta quando a Anne acordou e se sentou na cama, olhando com estranheza para a janela por onde entrava uma alegre enxurrada de luz e do lado de fora qualquer coisa florida lhe acenava com o azul do céu por detrás. Por um momento, não se conseguia lembrar onde estava. Primeiro veio um arrepio delicioso, como se houvesse algo muito agradável, e depois uma recordação horrível. Era a casa de Green Gables, e eles não a queriam porque ela não era um rapaz! Mas era manhã, e sim, havia uma cerejeira em flor mesmo do lado de fora da janela. Com um salto ficou fora da cama e atravessou o quarto. Levantou a janela, que subiu rangendo com dificuldade, como se não fosse aberta há muito tempo, o que era o caso, e ficou de tal maneira presa lá em cima que não foi preciso nada para a segurar. Anne ajoelhou-se e olhou deslumbrada para a manhã de Junho, com os olhos brilhantes de entusiasmo. Oh, não era lindo? Não era um lugar lindo? Só de pensar que não ia ficar aqui! Ela ia imaginar que ficava. Aqui havia amplitude para a imaginação. Uma cerejeira enorme crescia lá fora, tão perto que os seus ramos batiam na casa, e estava tão cheia de flores que quase não se viam as folhas. Dos dois lados da casa haviam grandes pomares, um de macieiras

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e outro de cerejeiras, também cobertas de flores; e a relva do chão estava coberta de dentes-de-leão. No jardim abaixo haviam lilases cobertos de flores, e o seu cheiro forte e doce chegava até à janela com o vento da manhã. Abaixo do jardim um campo verde repleto de trevo descia até ao declive onde o riacho corria e onde cresciam bétulas brancas, elevando-se com leveza acima de um maciço de arbustos que sugeria muitas possibilidades, tais como fetos, musgo e outras plantas típicas dos bosques. Mais para lá havia um monte, verde e emplumado com pinheiros de vários tipos, e havia uma zona onde numa falha se podia ver o telhado cinzento da casa que ela tinha visto no outro lado do Lago das Águas Brilhantes. Do lado esquerdo viam-se grandes celeiros e mais ao longe, bem depois dos campos verdes e ondulados, havia o brilho azul do mar. Os olhos sedentos de beleza da Anne passaram por tudo isto, fixando cada pormenor com sofreguidão: ela tinha visto tantos lugares feios na sua vida, pobre criança; mas isto era tão lindo como qualquer coisa que ela imaginasse. Ali ficou ajoelhada, perdida para tudo menos para a beleza à sua volta, até que foi surpreendida por uma mão no seu ombro. Marilla tinha entrado sem ser ouvida pela pequena sonhadora. “É altura de te vestires” disse secamente. Marilla não sabia como falar com a criança e a sua ignorância desconfortável tornava-a seca e rude quando não o pretendia ser. Anne levantou-se e inspirou fundo. “Oh, não é maravilhoso?” disse, descrevendo com a mão um gesto que abarcava o mundo lá fora. “É uma árvore grande”, disse Marilla, “e floresce muito, mas não dá grandes frutos, sempre pequenos e bichosos.” “Oh, não me refiro só à árvore; claro que é linda – sim, é de uma beleza irradiante – floresce como se tivesse intenção – mas refiro-me a tudo, o jardim, o pomar e o riacho, e o bosque, o mundo inteiro. Não se sente como se amasse o mundo numa manhã destas? E eu consigo ouvir o riacho rindo todo o caminho até aqui. Já reparou como os riachos são alegres? Estão sempre a rir. Até no Inverno já os ouvi debaixo do gelo. Estou tão contente por haver um riacho perto de Green Gables. Talvez pense que não me faça grande diferença uma vez que não vão ficar comigo, mas faz. Eu vou sempre gostar de me lembrar que há um riacho em Green Gables mesmo que não o veja outra vez. Se não houvesse eu ficaria para sempre assombrada pelo sentimento desconfortável que devia haver um. Não estou nos abismos do desespero esta manhã. Nunca consigo estar, de manhã... Não é esplendido que hajam manhãs? Mas sinto-me muito triste. Tenho estado a imaginar que afinal era mesmo a mim que vocês queriam, e que eu ia aqui ficar para todo o sempre. Foime de grande conforto enquanto durou. Mas o pior de imaginar é que chega um momento em que acaba e dói.” “É melhor vestires-te e vir lá para baixo, e não te preocupes com as tuas imaginações,” disse Marilla assim que conseguiu encontrar palavras. “O pequeno-almoço está servido. Lava a cara e penteia o cabelo. Deixa a janela aberta e puxa os cobertores para os pés da cama. Faz tudo tão bem como fores capaz.” Anne foi bem capaz de tudo, e dali por dez minutos estava lá em baixo, com as roupas bem compostas, o cabelo penteado e entrançado, a cara lavada e a consciência tranquila pensando que tinha cumprido todas as exigências de Marilla. De facto, tinha-se esquecido de puxar as roupas para os pés da cama.” “Tenho muita fome esta manhã,” anunciou enquanto se sentava na cadeira que Marilla lhe indicou. “O mundo já não me parece uma selvajaria gritante como me parecia esta noite. Estou tão contente por esta manhã ser solarenga. Mas também gosto de manhãs chuvosas. Todos os tipos de manhãs são interessantes, não acha? Não sabemos o que vai acontecer ao

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longo do dia, e há muita amplitude para a imaginação. Mas estou contente por não estar a chover porque é muito mais fácil estar alegre e suportar uma aflição quando há sol. Sinto que ainda tenho muitas que suportar. É muito giro ler acerca de mágoas e imaginarmo-nos a passar por elas heroicamente, mas não é assim tão giro quando passamos mesmo, não é?” “Por amor de Deus, pára de falar,” disse Marilla. “ Tu falas demasiado para uma rapariguinha.” Assim, Anne calou-se tão completamente que o seu silêncio continuado deixou a Marilla um pouco nervosa, como se estivesse na presença de algo pouco natural. Matthew também não falava, mas pelo menos nele isso era normal, e a refeição foi tomada em silêncio. À medida que a refeição avançava Anne abstraía-se cada vez mais, comendo mecanicamente, com os seus olhos grandes fixos sem expressão no céu que se avistava através da janela. Pensar que enquanto o corpo desta estranha criança estava à mesa, o seu espírito estivesse longe num qualquer país de nuvens, levado pelas asas da imaginação enervou Marilla ainda mais. Quem quereria uma criança assim em casa? No entanto, o Matthew queria-a, para cúmulo do inesperado! Marilla sentia que ele a queria tanto como na noite anterior, e que continuaria a querê-la. Essa era a maneira de ser de Matthew – metia uma coisa na cabeça e fixava-se nela com a mais assombrosa persistência silenciosa – uma persistência dez vezes mais potente no seu silêncio do que se falasse dela. Quando a refeição acabou, Anne saiu dos seus sonhos e ofereceu-se para lavar a loiça. “Sabes lavar bem a loiça?” perguntou Marilla desconfiada. “Muito bem. Mas sou melhor a tomar conta de crianças. Tive tanta experiência nisso. É uma pena que não tenham nenhuma aqui para eu tomar conta.” “Não me parece que eu queria mais crianças para tomar conta do que aquelas que tenho agora. Tu já és um problema suficiente. Continuo sem saber o que devemos fazer contigo. Matthew é o homem mais ridículo.” “Eu acho-o encantador,” discordou Anne. “Ele é tão compreensivo. Não se importou que eu falasse – pareceu gostar. Senti que ele era um espírito afim assim que o vi.” “São os dois suficientemente esquisitos, se é isso que queres dizer com espíritos afins”, disse Marilla. “Sim, podes lavar a loiça. Usa muita água quente e seca-a bem. Tenho muito que fazer hoje porque quero ir até White Sands à tarde para falar com a senhora Spencer. Tu vens comigo para decidirmos o que fazemos contigo. Depois de acabares a loiça vai lá acima e faz a cama.” Anne lavou os pratos suficientemente depressa como Marilla observou pelo canto do olho. Depois fez a cama com menos sucesso, pois nunca antes se tinha defrontado com um colchão de penas. Mas lá deu conta do recado e Marilla, para se ver livre dela, disse-lhe que podia ir lá para fora divertir-se até à hora do almoço. Anne voou para a porta com o rosto alegre e o olhar iluminado. Na soleira da porta parou, deu meia volta e voltou para trás sentando-se à mesa, com a alegria e o brilho apagados da sua expressão como se lhos tivessem roubado. “O que é que se passa agora?” perguntou Marilla. “Não me atrevo a sair,” disse Anne, com o tom de um mártir que renuncia a todos os prazeres terrenos. “Se não posso aqui ficar não vale a pena gostar de Green Gables. E se eu sair e descobrir aquelas árvores e as flores e o pomar e o riacho, não vou ser capaz de me impedir de os amar. Já é suficientemente difícil, e não o vou tornar ainda mais. Gostava tanto de sair – tudo parece chamar-me, ’Anne, Anne. Vem ter connosco. Anne, Anne, nós queremos brincar’, mas é melhor não. Não há qualquer sentido em amar as coisas se elas nos destroçarem, não é? Por isso é que eu estava tão contente quando

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achava que ia viver aqui. Pensei que ia ter tanta coisa para amar e nada que me impedisse. Mas esse breve sonho abandonou-me. Estou conformada outra vez. Por favor, qual é o nome daquela malva no parapeito da janela?” “É uma malva com cheiro a maçã.” “Oh, não me refiro a esse tipo de nome. Quero dizer o nome que você lhe deu. Não lhe deu um nome? Posso dar-lhe um nome, então? Posso chamar-lhe – deixe-me ver - Bonny servia – posso chamar-lhe Bonny enquanto aqui estou? Oh, por favor deixe!” “Eu não me importo, por amor de Deus. Mas que sentido tem dar um nome a uma malva?” “Gosto que as coisas tenham nomes mesmo que sejam só malvas. Como é que sabe se não magoa os sentimentos das malvas ao chamar-lhe só isso o tempo todo? A senhora não gostava que só lhe chamassem mulher e nada mais. Sim, vou chamar-lhe Bonny. Esta manhã dei um nome àquela cerejeira do lado de fora da minha janela. Chamei-lhe Rainha da Neve porque é tão branca. Claro que não vai estar sempre assim, mas sempre podemos imaginar, não é?” “Nunca na minha vida vi ou ouvi algo como ela,” resmungava Marilla, batendo em retirada para o celeiro em busca de batatas. “É interessante, como o Matthew disse. Já me sinto como se estivesse sempre à espera do que ela vai dizer a seguir. Daqui a pouco lança-me um feitiço a mim também. Já enfeitiçou o Matthew. Aquele olhar que ele me dirigiu quando saiu confirmou tudo o que ele disse ou deu a entender ontem à noite. Só queria que ele fosse como os outros homens e falasse das coisas. Uma pessoa podia responder-lhe e argumentar com ele. Mas o que é que se pode fazer com um homem que se limita a olhar?” Anne tinha voltado a sonhar, com o queixo apoiado nas mãos e os olhos no céu quando a Marilla regressou da peregrinação ao celeiro. Então Marilla deixou-a até que o almoço foi posto na mesa. “Suponho que posso levar a égua e o buggy esta tarde Matthew?” disse Marilla. Matthew acenou afirmativamente e olhou inquieto para Anne. Marilla interceptou esse olhar e disse secamente: “Vou a White Sands esclarecer este assunto. Vou levar a Anne comigo e a senhora Spencer vai provavelmente tomar providências para a mandar de volta para Nova Escócia assim que possa. Vou preparar-te o chá e estarei em casa a horas de ordenhar as vacas.” Ainda assim Matthew não disse nada e Marilla teve a sensação que tinha desperdiçado as palavras. Não há nada mais irritante que um homem que não responde - a não ser uma mulher que não o faz. Matthew atrelou a égua ao buggy no tempo devido, e Marilla e Anne partiram. Matthew abriu-lhes o portão, e enquanto elas passavam disse para ninguém em particular: “O Jerry Buote da enseada esteve aqui esta manhã e eu disse-lhe que me parece que o vou contratar este Verão.” Marilla não respondeu, mas deu uma tal chicotada na pobre da égua que ela, pouco habituada a estes tratamentos trotou indignada pela alameda a uma velocidade alarmante. Marilla olhou para trás por entre solavancos, e viu aquele irritante Matthew inclinado ao portão olhando ansioso para elas.

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Capítulo 5 A história de Anne “Sabe,” confidenciou Anne, “decidi desfrutar deste passeio. Tenho sentido que podemos quase sempre desfrutar das coisas se nos convencermos firmemente que o vamos fazer. Claro que temos que nos convencer firmemente. Não vou pensar em voltar para o asilo enquanto estivermos a caminho. Vou só pensar no caminho. Olhe, ali está uma pequena rosa selvagem a florir! Não é lindo? Não acha que deve estar contente por ser uma rosa? Não seria bom se as rosas pudessem falar? Tenho a certeza que nos contariam tantas coisas lindas. E o cor-derosa não é a cor mais cativante do mundo? Eu adoro cor-de-rosa, mas não posso usar essa cor. As pessoas ruivas não podem, nem em imaginação. Alguma vez conheceu uma pessoa que fosse ruiva em pequena e que ao crescer mudasse para outra cor?” “Não, não sei se alguma vez conheci,” disse Marilla sem piedade, “e também não acho que seja provável acontecer no teu caso.” Anne suspirou. “Bem, é outra esperança que me abandona. A minha vida é um perfeito cemitério de esperanças enterradas. Esta frase li-a uma vez num livro e digo-a para me reconfortar a mim mesma sempre que estou desiludida com alguma coisa.” “Não vejo como pode ser reconfortante,” disse Marilla. “Ora porque é tão bonito e romântico, tal como se eu fosse uma heroina num livro, sabe. Eu gosto tanto de coisas românticas, e um cemitério cheio de esperanças enterradas é uma das coisas mais românticas que eu consigo imaginar, não é? Eu até estou contente por ter um. Vamos atravessar o Lago das Águas Brilhantes hoje?” “Não vamos atravessar o lago do Barry, se é isso que queres dizer com o Lago das Águas Brilhantes. Vamos pela estrada da costa.” “Estrada da costa soa bem,” disse a Anne com ar sonhador. “É tão agradável como soa? Quando você disse estrada da costa eu vi-a logo na minha cabeça tão depressa como o disse. E White Sands é um nome bonito também, mas não gosto tanto dele como de Avonlea. Avonlea é um nome lindo. Soa a música. Quanto falta para White Sands?” “São cinco milhas, e como estás virada para a conversa bem podes dizer alguma coisa com interesse do que sabes sobre ti própria.“ “Oh, o que eu sei sobre mim própria não vale a pena ser dito” disse a Anne tristemente. “Se ao menos me deixasse contar o que imagino acerca de mim seria muito mais interessante.” “Não, não quero saber das tuas imaginações. Conta-me os factos simples. Começa pelo começo. Onde nascestes e quantos anos tens?” “Fiz onze anos em Março,” disse Anne, resignando-se aos factos simples com um pequeno suspiro.” E nasci em Bolingbroke, Nova Scotia. O nome do meu pai era Walter Shirley, e era professar na escola de Bolingbroke. O nome da minha mãe era Bertha Shirley. Bertha e Walter

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não são nomes bonitos? Fico tão contente por os meus pais terem nomes bonitos. Seria mesmo triste ter um pai chamado, sei lá Jedediah, não é?” “Acho que não interessa o nome de uma pessoa desde que ela se comporte,” sentindo a responsabilidade de lhe inculcar algum senso moral. “Bem, não sei,” Anne pareceu pensativa, “eu li num livro uma vez que uma rosa com qualquer outro nome poderia cheirar igualmente bem, mas nunca consegui acreditar nisso. Não acredito que uma rosa pudesse ser tão bonita se se chamasse couve ou cardo. E suponho que o meu pai teria sido um homem bom mesmo que se chamasse Jedediah; mas tenho a certeza que seria um suplício. E a minha mãe também era professora na escola, mas quando casou com o meu pai deixou de ensinar, claro. Um marido era responsabilidade suficiente. A senhora Thomas disse que eles eram um par de miúdos e que eram muito pobres. Foram viver numa casinha amarela muito pequenina em Bolingbroke. Nunca vi essa casa mas imaginei-a mais de mil vezes. Penso que deveria ter madressilvas na janela da sala e lilases no jardim da frente, e lírios do vale mesmo ao pé do portão de entrada. Ah, e cortinas de musselina em todas as janelas. As cortinas de musselina dão tão bom aspecto às casas. Eu nasci nessa casa. A senhora Thomas disse que eu era o bebé mais sem graça que ela já viu, era tão pequena, escanzelada e só olhos, mas a minha mãe achou que eu era perfeitamente bonita. Eu acho que a opinião de uma mãe devia ser mais credível do que a de uma pobre mulher que veio fazer limpeza, não acha? Fico contente por ela ter ficado satisfeita comigo, de qualquer forma; seria tão triste pensar que fui uma desilusão para ela – porque ela não viveu muito mais, sabe. Ela morreu da Febre quando eu só tinha três meses. Gostava tanto que ela tivesse vivido o suficiente para eu me lembrar de a chamar mãe. Penso que seria tão bom poder dizer mãe, não acha? E o pai morreu três dias depois também da Febre. Deixaram-me órfã, e as pessoas ficaram fora de si sem saber o que fazer comigo, como disse a senhora Thomas. É que já ninguém me queria nessa altura. Parece ser o meu destino. Tanto o pai como a mãe tinham vindo de sítios longínquos e era sabido que não tinham familiares vivos. Finalmente a senhora Thomas disse que ficava comigo apesar de ser pobre e ter um marido ébrio. Ela criou-me à mão. Acha que há alguma coisa que devia fazer as pessoas criadas à mão melhores que as outras? É que quando eu me portava mal ela perguntavame sempre porque é que eu era tão má para ela se ela me tinha criado à mão. O senhor e a senhora Thomas mudaram-se de Bolingbroke para Marysville, e eu vivi com eles até aos oito anos. Eu ajudei a tomar conta das crianças deles – eram quatro mais novas que eu - e posso dizer que havia muito que tomar conta. Então o senhor Thomas morreu atropelado por um comboio e a mãe da senhora Thomas ofereceu-se para ficar com ela e as crianças, mas não me queriam a mim. A senhora Thomas estava no limite, pelo que disse, e sem saber o que fazer comigo. Então a senhora Hammond, que morava lá em cima ao pé do rio veio e disse que ficava comigo, uma vez que eu tinha jeito para crianças, e fui viver com ela lá para cima numa clareira entre os cotos das árvores. Era um sítio muito solitário. Tenho a certeza que nunca teria conseguido viver lá se não tivesse imaginação. O senhor Hammond trabalhava numa serração, e a senhora Hammond tinha oito crianças. Ela teve gémeos três vezes. Eu gosto de bebés com moderação, mas três vezes gémeos de seguida é demais. Disse-o claramente à senhora Hammond quando veio o último par. Costumava cansar-me imenso, pegando-lhes ao colo. Vivi com a senhora Hammond dois anos, e então o senhor Hammond morreu e a senhora Hammond deixou de trabalhar a dias. Dividiu os filhos pelos parentes e foi para os Estados Unidos. Eu tive que ir para o asilo em Hopetown, porque ninguém quis ficar comigo. Também não me queriam no orfanato, disseram que já estavam superlotados. Mas tiveram

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que ficar comigo e estive lá quatro meses até que a senhora Spencer veio.” Anne terminou com um longo suspiro, de alívio desta vez. Era evidente que não gostava de falar das suas experiências num mundo que não a queria. “Chegaste a ir à escola?” perguntou Marilla dirigindo a égua para a estrada da costa. “Nem por isso. Fui algumas vezes no último ano que estive com a senhora Thomas. Quando fui viver para o bosque estava tão longe da escola que não podia ir no Inverno, no Verão eram as férias e só ia na Primavera e no Outono. Mas no orfanato fui. Leio muito bem, e sei muitas poesias de cor – ‘A Batalha de Hohenlinden’ e ‘Edinburgh depois de Flodden’ e ‘Bingen no Rhine’ e muito da ‘Senhora do Lago’ e a maior parte das ‘Estações’ de James Thompson. Não adora o tipo de poesia que nos dá uma sensação arrepiante pela espinha? Há uma peça da Quinta Classe – ‘A Queda da Polónia’ que está cheia de arrepios. Claro que eu não estava na quinta classe, estava na quarta, mas as raparigas mais velhas costumavam emprestar-me a delas para ler.” “Essas mulheres – a senhora Thomas e a senhora Hammond - eram boas para ti?” perguntou Marilla, olhando Anne pelo canto do olho. “O-o-o-h” hesitou Anne. O seu pequeno rosto sensível ficou subitamente vermelho e o embaraço baixou-lhe as sobrancelhas. “Oh, elas queriam ser - eu sei que elas queriam ser tão boas e simpáticas como podiam. E quando as pessoas querem ser boas para nós não nos podemos importar muito quando não o são, bem, quase sempre. Também tinham muito com que se preocupar, sabe? É muito difícil ter um marido ébrio, percebe, e ter gémeos três vezes seguidas também deve ser difícil, não acha? Mas eu tenho a certeza que elas queriam ser boas para mim.” Marilla não fez mais perguntas. Anne entregou-se a um deslumbramento silencioso pela estrada da costa, e Marilla guiou a égua distraidamente enquanto ponderava. A pena crescia subitamente no seu coração por aquela criança. Que vida faminta, mal amada tinha tido – uma vida de esforço e miséria, e negligência; pois Marilla era suficientemente astuta para ler nas entrelinhas da história de Anne e adivinhar a verdade. Não admira que ela tivesse ficado encantada com a perspectiva de um verdadeiro lar. Era uma pena ter que ser mandada de volta. E se ela, Marilla, satisfizesse o desejo ardente de Matthew e a deixasse ficar? Ele estava tão decidido, e a criança parecia-lhe uma menina simpática e fácil de ensinar. “Ela tem sempre demasiado a dizer,” pensou Marilla, ”mas pode ser treinada a não o fazer. E não há nada de rude ou ordinário naquilo que diz. É muito educada. É provável que os pais dela fossem pessoas de bem.” A estrada da costa era “cheia de arbustos, selvagem e solitária”. Do lado direito, pinheiros baixos, com espíritos ainda intactos após longos anos de luta com os ventos do mar cresciam apertados. Do lado esquerdo haviam penhascos íngremes de pedra e areia vermelha, tão perto da estrada que uma égua de menos segurança teria enervado as pessoas que transportava. Na base dos penhascos havia muitas rochas desgastadas pelas ondas, e pequenas covas arenosas cravejadas de seixos como jóias do oceano; mais atrás ficava o oceano, brilhante e azul, e sobre ele voavam as gaivotas, com as suas guias brilhando como prata ao sol. “O mar não é maravilhoso?” disse Anne, saindo de um longo silêncio absorto. “Uma vez, quando vivia em Marysville o senhor Thomas alugou um vagão e levou-nos a todos a passar o dia na praia. Eu adorei cada momento desse dia, mesmo tendo que tomar conta das crianças o tempo todo. Revivi-o em sonhos durante anos. Mas esta costa é mais bonita do que a costa de Marysville. Não são esplêndidas as gaivotas? Não gostava de ser uma gaivota? Eu acho que gostava, se não pudesse ser uma criança humana. Não acha que seria agradável acordar ao nascer do

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sol e voar sobre a água e ao longo desse lindo azul todo o dia; e à noite regressar ao nosso ninho? Consigo imaginar-me a fazer isso. Que casa grande é aquela ali à frente?” “É o Hotel de White Sands. O senhor Kirke dirige-o, mas ainda não começou a época. Há imensos americanos que vêem cá passar o Verão. Acham esta costa muito boa.” “Tinha medo que fosse a casa da senhora Spencer,” disse Anne com tristeza. “Eu não quero lá chegar. Vai parecer o fim de tudo, de certa forma.”

Capítulo VI Marilla toma uma decisão Acabaram no entanto por chegar no seu devido tempo. A senhora Spencer vivia numa grande casa amarela na parte baixa de White Sands, e recebeu-as com simpatia e surpresa misturadas na sua cara benevolente. “Minhas queridas,” exclamou, “vocês são as últimas pessoas que eu esperava ver hoje, mas estou muito contente por vê-las. Querem guardar o vosso cavalo? E como estás, Anne?” “Tão bem como seria de esperar, obrigada,” disse Anne sem sorrir. Parecia ter murchado. “Suponho que vamos ficar por um bocado, enquanto a égua descansa”, disse Marilla, “mas eu prometi ao Matthew que estaria cedo em casa. De facto, senhora Spencer, houve aqui um erro estranho, e viemos ver como aconteceu. Nós mandámos dizer, o Matthew e eu, que queríamos que nos trouxesse um rapaz do orfanato. Pedimos ao seu irmão Robert que lhe dissesse que queríamos um rapaz de dez ou onze anos.” “Marilla Cuthbert, não me diga!” disse a senhora Spencer perturbada. “O Robert mandou-me recado pela filha Nancy, e ela disse que você queria uma rapariga, não foi Flora Jane?” perguntou à filha que vinha descendo a escada. “Disse sim, Miss Cuthbert,” confirmou Flora Jane . “Peço imensa desculpa,” disse a senhora Spencer. “É muito desagradável, mas não foi culpa minha como pode ver, senhora Cuthbert. Fiz o melhor que pude e pensei que estava a seguir as suas instruções. A Nancy é terrivelmente distraída. Tive muitas vezes que lhe ralhar pela sua distracção.” “A culpa foi nossa,” disse Marilla resignada. “Nós devíamos ter vindo pessoalmente e não ter deixado que um recado importante como este passasse de boca em boca desta forma. De qualquer forma, o erro foi feito e só nos resta emendá-lo. Podemos mandar a criança de volta para o orfanato? Penso que a aceitarão de volta, não acha?” “Penso que sim, mas não acho que seja necessário mandá-la de volta. A senhora Blewett esteve aqui ontem e disse-me que tinha pena de não me ter pedido também uma menina para a ajudar. A senhora Blewett tem uma grande família como sabe, e tem dificuldade em arranjar empregadas. Anne vai ser mesmo a rapariga indicada para ela. Foi um engano providencial.” Marilla não ficou com cara de quem achasse que a Providência tinha muito que ver com o caso. Aqui estava uma inesperada oportunidade de ficar livre da órfã indesejada e nem sequer se sentia grata por isso. Ela conhecia a senhora Blewett apenas de vista e era uma mulher de cara antipática e sem uma grama de carne supérflua nos ossos. Mas tinha ouvido falar dela: ‘uma condutora e trabalhadora terrível’ dizia-se; e algumas criadas despedidas da sua casa contavam histórias assustadoras sobre o seu génio e avareza, e da sua família de crianças conflituosas e impertinentes. Marilla sentiu uma dor na consciência de entregar a Anne aos seus ternos cuidados.

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“Bem, vou entrar e vamos falar do assunto” disse. “Olha, ali vem a senhora Blewett na alameda mesmo a tempo!” exclamou a senhora Spencer arrastando as convidadas da entrada para a sala de visitas, onde um ar frio as atingiu, como se filtrado há tanto tempo pelas persianas verde escuras bem fechadas, tivesse perdido todas as partículas de calor que alguma vez possuira. “Que sorte, podemos resolver já o assunto. Fique no cadeirão, senhora Cuthbert. Anne tu sentas-te aqui no sofá e não te balances. Dêem-me os vossos chapéus. Flora Jane, vai pôr a chaleira ao lume. Boa tarde senhora Blewett. Estávamos mesmo agora a dizer que foi uma sorte a senhora ter aparecido. Deixe-me apresentar estas duas senhoras. Senhora Blewett, Miss Cuthbert. Desculpem-me um momento, esqueci-me de dizer à Flora Jane que tirasse os bolinhos do forno.” A senhora Spencer saiu depois de ter levantado as persianas. Anne sentada calada no sofá, com as mãos apertadas com força no colo, olhava para a Sr. Blewett como se estivesse fascinada. Ela era para ser entregue aos cuidados daquela mulher de rosto pontiagudo e olhar aguçado? Sentiu um aperto na garganta e os seus olhos picaram dolorosamente. Estava a começar a ter medo de não conseguir evitar as lágrimas quando a Sr. Spencer regressou, corada e brilhante, capaz de ultrapassar qualquer dificuldade física, mental ou espiritual e afastá-la rapidamente. “Parece ter havido um engano relativamente a esta menina, Sr.ª Blewett.” Disse. “Eu fiquei com a ideia que o Sr. Cuthbert e a Miss Cuthbert queriam adoptar uma rapariga. Foi isso que me foi dito. Mas parece que eles queriam um rapaz. Por isso, se ainda tiver a mesma ideia que ontem, eu penso que ela talvez seja a indicada para si.” A senhora Blewett examinou a Anne da cabeça aos pés. “Quantos anos tens e como te chamas?” perguntou. “Anne Shirley,” balbuciou a trémula criança, sem sequer se atrever a esclarecer a forma como se escrevia o seu nome, “e tenho onze anos.” “Humpf! Não me pareces grande coisa. Mas és magra. Não sei porquê, as magras são sempre melhores. Bem, se eu ficar contigo tens que ser boa rapariga, despachada, esperta e respeitadora. Espero que trabalhes para comer, e não tenhas ilusões acerca disso. Sim, suponho que a posso aliviar, senhora Cuthbert. O bebé é muito irritável e eu estou esgotada de tomar conta dele. Se quiser posso levá-la para casa agora já.” Marilla olhou para Anne e comoveu-se com o ar pálido e o olhar mudo de infelicidade – a infelicidade de uma criatura indefesa que se vê mais uma vez presa numa armadilha da qual havia escapado. Marilla sentiu que se negasse o apelo daquele olhar ele a perseguiria até à hora da sua morte. Para além disso, ela não gostou da senhora Blewett. Entregar uma criança sensível e nervosa a uma mulher assim! Não, ela não podia assumir a responsabilidade de fazer tal coisa. “Bem, não sei,” disse lentamente. “Eu não disse que eu e o Matthew tínhamos decidido que não ficávamos com ela. Até posso dizer que o Matthew está disposto a ficar com ela. Eu só cá vim para saber como se tinha dado o engano. Acho que é melhor levá-la para casa outra vez e falar com o Matthew sobre isto. Não posso decidir nada sem o consultar antes. Se decidirmos não ficar com ela nós vamos trazê-la ou mandá-la para sua casa amanhã à noite. Pode ser assim, senhora Blewett?” “Suponho que tenha que ser,” disse a senhora Blewett pouco satisfeita. Durante o discurso de Marilla tinha nascido uma alma nova no rosto de Anne. Primeiro, o olhar de desespero desapareceu, depois veio um rubor de esperança, os seus olhos tornaram-se profundos e brilhantes como a estrela da manhã. A criança ficou transfigurada, e um momento depois, quando a senhora Spencer e a senhora Blewett saíram para ir buscar uma receita que esta tinha vindo pedir emprestada, ela voou em direcção a Marilla.

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“Oh, Miss Cuthbert, você disse realmente que talvez me deixasse ficar em Green Gables?” disse num sussurro sem fôlego, como se ao falar alto pudesse estilhaçar essa gloriosa possibilidade. “Disse mesmo isso? Ou fui eu que imaginei que o disse?” “Acho que é melhor aprenderes a controlar essa tua imaginação Anne, se não consegues distinguir o que é real do que não é,” disse Marilla com ar zangado. “Sim, tu ouviste-me dizer isso mesmo e nada mais. Não está nada decidido, e talvez se conclua que afinal vais para a senhora Blewett. Ela precisa concerteza mais de ti do que eu.” Marilla abafou um sorriso convencida que Anne deveria ser repreendida por tal discurso. “Uma menina como tu devia estar envergonhada de falar assim de uma senhora estranha,” disse severamente. “Vai para ali e senta-te com juízo, deixa-te estar calada e porta-te como uma boa menina se deve portar.” “Vou tentar ser e fazer tudo o que você quiser, se ficar comigo”, disse Anne, voltando para o sofá. Quando chegaram a Green Gables essa tarde, Matthew foi ter com elas à alameda. Marilla notou de longe que ele as seguia com o olhar e adivinhou-lhe os motivos. Estava preparada para o alívio que lhe leu no rosto quando viu que pelo menos ela tinha trazido Anne de volta. Mas ela não lhe disse nada acerca do assunto, até que se encontraram no campo atrás do celeiro para ordenhar as vacas. Então contou-lhe rapidamente a história de Anne e o resultado do encontro com a senhora Spencer. “Eu não entregava um cão a essa mulher Blewett”, disse Matthew com uma agressividade anormal. “Eu também não gostei nada do estilo dela,” admitiu Marilla, “mas é dar-lha ou ficarmos nós com ela, Matthew. E uma vez que tu pareces querer ficar com ela, eu posso aceitá-la, ou tenho que aceitá-la. Tenho pensado tanto no assunto que me estou a habituar mais ou menos à ideia. Quase parece um dever moral. Nunca eduquei uma criança, especialmente uma rapariga, e talvez faça um mau trabalho. Mas darei o meu melhor. Por aquilo que me diz respeito, Matthew, ela pode ficar.” O rosto de Matthew iluminou-se de felicidade “Bem, eu pensei que tu ias acabar por ver as coisas dessa maneira, Marilla,” disse. “Ela é uma menina tão interessante.” “Seria melhor se ela fosse uma menina útil,” retorquiu Marilla, “mas eu vou encarregar-me disso. E vê lá se não interferes com os meus métodos. Eu posso ser uma solteirona e não sei muito sobre a educação de crianças, mas acho que sempre sei mais que um velho solteirão. Por isso deixa-me tomar conta dela. Quando eu não conseguir será a tua vez de meteres o bedelho.” “Então, então, Marilla, podes fazer as coisas à tua maneira,” disse de uma forma reconfortante. “Mas vê se és tão boa e meiga como puderes sem a estragares com mimos. Tenho a impressão que ela é daquelas crianças que farão tudo por nós se conseguirmos que ela goste de nós.” Marilla abanou a cabeça, expressando a sua ideia sobre as opiniões de Matthew no que dizia respeito a assuntos femininos, e dirigiu-se para a vacaria com os baldes. “Não lhe vou dizer esta noite que vai cá ficar,” pensou enquanto coava o leite para retirar a nata, “ia ficar tão excitada que não ia pregar olho. Marilla Cuthbert, estás metida nisto até ao pescoço. Alguma vez pensaste adoptar uma rapariga órfã? Isso já é suficientemente surpreendente, mas mais ainda é que o Matthew esteja por detrás disto, ele que teve sempre um pavor de morte de rapariguinhas. De qualquer forma, decidimo-nos por experimentar, e só Deus sabe o que acabará por acontecer.”

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Capítulo VII Anne diz as suas orações Quando Marilla acompanhou Anne à cama naquela noite disse secamente: “Anne, notei na noite passada que tu deixaste as tuas roupas todas espalhadas pelo chão quando as despiste. Isso é um hábito muito desleixado, e eu não posso permitir-lo. Assim que tirares qualquer peça de roupa dobra-la com cuidado e coloca-la na cadeira. Não tenho qualquer interesse por raparigas que não sejam arrumadas.” “Eu estava tão perturbada ontem à noite que nem sequer me lembrei das minhas roupas.” Disse Anne. ”Vou dobrá-las muito bem hoje. Eles mandavam-nos sempre fazer isso no orfanato. Metade das vezes esqueciame, estava sempre com tanta pressa de me meter na cama para começar a imaginar coisas.” “Vais ter que te lembrar melhor se ficares aqui”, advertiu Marilla. “Assim sim, está bem. Agora diz as tuas orações e mete-te na cama.” “Eu nunca digo orações”, anunciou Anne. Marilla ficou horrorizada. “Como, Anne, o que queres dizer? Nunca te ensinaram a rezar? Deus quer sempre que as meninas digam as suas orações. Não sabes quem é Deus, Anne?” “Deus é um espirito infinito, eterno e imutável no seu ser, de sabedoria, poder, justiça, bondade e verdade,” respondeu Anne pronta e rapidamente. Marilla ficou bastante aliviada. “Então sempre sabes alguma coisa, graças a Deus! Não és completamente ateia. Onde é que aprendeste isso?” “Na escola dominical do orfanato. Faziam-nos aprender o catecismo inteiro. Eu gostava bastante. Há algo esplêndido em algumas palavras. ‘Infinito, eterno e imutável’ Não é grandioso? Tem um certo ritmo como uma peça de órgão. Não se poderia bem chamar poesia, mas soa um bocado como isso, não é?” “Não estamos a falar de poesia, Anne – estamos a falar sobre tu dizeres as tuas orações. Não sabes que é uma coisa terrivelmente má não dizeres as tuas orações todas as noites? Estou com medo que sejas uma rapariguinha má.” “Acharia mais fácil ser má do que boa se tivesse o cabelo ruivo,” disse Anne de forma reprovadora. “As pessoas que não têm cabelo ruivo não sabem o que são problemas. A senhora Thomas disse-me que Deus tinha feito o meu cabelo vermelho de propósito e eu nunca mais quis saber Dele desde então. E depois estou sempre cansada demais de noite para dizer orações. As pessoas que tomam conta de gémeos não podem ser obrigadas a dizer orações. Ou acha honestamente que sim?” Marilla decidiu que o treino religioso de Anne tinha que começar naquele momento. Não havia claramente tempo a perder. “Tens que dizer as tuas orações enquanto estiveres debaixo do meu tecto, Anne.” “Pois concerteza, se você quiser que eu o faça,” disse Anne alegremente. “Farei qualquer coisa para lhe agradar. Mas vai ter que me ensinar o que dizer desta vez. Depois de estar na cama imaginarei uma coisa bem bonita para dizer. Agora que penso nisso, acho que vai ser bem interessante.” “Tens que te ajoelhar”, disse Marilla atrapalhada. Anne ajoelhou-se aos pés de Marilla e olhou para cima com seriedade. “Porque é que as pessoas se têm que ajoelhar para rezar? Se eu quisesse mesmo rezar vou-lhe dizer o que fazia: ia para um grande campo aberto sozinha ou para um bosque muito cerrado, e olhava para o céu, lá em cima, para aquele lindo céu azul que parece não ter fim. E depois sentiria uma oração. Aí está, estou pronta. O que devo dizer?” Marilla sentiu-se mais embaraçada que nunca. Ela tinha pensado em ensinar a Anne o clássico infantil, “Agora que me vou deitar...”. Mas

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ela tinha, como já disse, resquícios de um certo sentido de humor – que é simplesmente outro aspecto do sentido de ordem das coisas; e pareceu-lhe subitamente que essa simples oração, sagrada para qualquer criança vestida de branco aos pés da mãe, não era de todo adequada para esta pestezinha sardenta que não conhecia nem se importava com o amor de Deus, uma vez que nunca o conhecera através do seu intermediário, o amor humano. “És suficientemente grande para rezares por ti própria, Anne,” disse finalmente. “ Agradece simplesmente a Deus as tuas bênçãos, e pede-lhe humildemente aquilo que desejas.” “Bom, vou fazer o meu melhor,” prometeu Anne, enterrando a cara no colo de Marilla: “ Pai-nosso que estais no céu – é assim que os pastores dizem na igreja, por isso deve estar bem para uma oração particular, não é?” perguntou, levantando o rosto por um momento. “Gracioso Pai do Céu, eu agradeço-te pelo Caminho Branco das Delícias e pelo Lago das Águas Brilhantes, por Bonny e pela Rainha da Neve. Estou extremamente agradecida por elas. E são todas as bênçãos de que me lembro por agora para te agradecer. Quanto às coisas que quero, são tantas que me levaria muito tempo a nomeá-las todas, pelo que vou pedir só as duas mais importantes. Por favor, deixa-me ficar em Green Gables e por favor, deixa-me ser bonita quando crescer. Sem outro assunto, atenciosamente: Anne Shirley” “Então, fiz tudo bem?” perguntou ansiosa, levantando-se. “Tê-la-ia feito muito mais floreada se tivesse tido mais tempo para pensar.” A pobre Marilla foi salva de um colapso nervoso pela noção de que não fora a irreverência, mas a simples ignorância espiritual que dera origem a esta estranha petição. Aconchegou a criança na cama, prometendo a si própria que amanhã lhe ensinaria uma oração melhor, e estava a ir-se embora com a vela quando Anne a chamou. “Pensei numa coisa mesmo agora. Devia ter dito Amen em vez de atenciosamente, não devia? Os pastores dizem assim. Esqueci-me mas senti que uma oração devia terminar de alguma maneira e pus a outra terminação. Acha que faz muita diferença?” “Eu... eu não suponho que faça,” disse Marilla. “Agora dorme, como uma boa menina. Boa noite.” “Hoje posso dizer boa noite com a consciência tranquila,” disse Anne, aninhando-se para baixo entre as almofadas. Marilla encaminhou-se para a cozinha, pousou a vela na mesa e dirigiuse a Matthew. “Matthew Cuthbert, já não era sem tempo que alguém adoptasse esta criança e lhe ensinasse alguma coisa. É praticamente ateia. Acreditas que nunca tinha dito as orações até hoje? Amanhã vou a casa do Pastor pedir-lhe o primeiro catecismo, é o que vou fazer. E ela vai para a escola dominical assim que eu lhe consiga fazer roupas decentes. Acho que vou estar cheia de trabalho... Bem, bem não podemos passar por este mundo sem a nossa conta de problemas. Tenho tido uma vida muito fácil, mas chegou por fim a minha altura e acho que tenho que aproveitá-la o melhor que puder.

Capítulo VIII Começa a educação de Anne Por razões só por ela conhecidas, Marilla não disse a Anne que ela ia ficar em Green Gables até à tarde seguinte. Até lá, manteve a criança ocupada com variadas tarefas, e debaixo de olho enquanto as fazia. Por

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volta do meio-dia tinha concluído que Anne era esperta e obediente, com vontade de trabalhar e rápida a aprender; o seu maior defeito parecia ser a sua tendência para cair divagações a meio de uma tarefa e esquecer-se dela até que algo lhe chamasse a atenção, como uma reprimenda ou uma catástrofe. Quando Anne finalmente acabou de lavar os pratos do almoço, confrontou Marilla com o ar de quem esperava desesperadamente saber o pior. O seu pequeno corpo magro tremia dos pés à cabeça, o seu rosto estava corado e os seus olhos tão dilatados que pareciam pretos; apertando com força as mãos disse numa voz implorante: “Oh, por favor miss Cuthbert, não me vai dizer se me vai mandar ou não embora? Tentei ser paciente toda a manhã, mas sinto realmente que não posso mais suportar não saber. É uma sensação horrível. Diga-me por favor.” “Não escaldaste o pano da loiça em água quente limpa como eu te mandei,” disse Marilla impassível. “Vai fazer isso antes de fazeres mais perguntas, Anne.” Anne foi tratar do pano da loiça. Quando regressou ao pé de Marilla enviou-lhe mais um olhar implorante. “Pois bem,” disse Marilla, incapaz de arranjar mais desculpas para continuar a adiar a informação, “acho que te posso dizer. Matthew e eu decidimos ficar contigo – isto é, se tu tentares ser uma boa menina e te mostrares agradecida. Então pequena, o que se passa contigo?” “Estou a chorar,” disse Anne num tom maravilhado. “ Eu não consigo saber porquê. Estou tão contente quanto possível. Oh, contente não me parece a palavra adequada. Estou contente pelo Caminho Branco, e pelas flores de cerejeira, mas isto! Oh, é qualquer coisa mais do que contentamento, estou tão feliz! Vou tentar ser tão boa. Vai ser um trabalho duro, porque a senhora Thomas dizia-me muitas vezes que eu sou desesperantemente má. No entanto, vou dar o meu melhor. Mas por favor, diga-me porque é que estou a chorar?” “Suponho que é porque estás excitada e cansada,” censurou Marilla. “Senta-te nessa cadeira e tenta acalmar-te. Começo a temer que tu chores e rias com demasiada facilidade. Sim, podes ficar aqui e nós vamos tentar tratar-te bem. Mas tens que ir para a escola; agora já falta pouco para as férias por isso vais ter que esperar até Setembro.” “Como é que a vou chamar?” perguntou Anne. ”Devo chamar-lhe sempre Miss Cuthbert? Posso chamar-lhe tia Marilla?” “Não. Podes chamar-me simplesmente Marilla. Não estou habituada a ser chamada de Miss Cuthbert e ias-me deixar nervosa.” “Soa terrivelmente desrespeitoso chamar-lhe só Marilla,” protestou Anne. “Acho que não terá nada de desrespeitoso se tiveres o cuidado de o dizer com respeito. Toda a gente em Avonlea, novos e velhos, me chama Marilla excepto o pastor. Ele chama-me Miss Cuthbert, quando se lembra disso.” “Eu adorava chamar-lhe tia Marilla,” disse Anne. “Nunca tive nenhuma tia, nem qualquer parente de qualquer tipo – nem sequer uma avó. Sentir-me ia como se realmente lhe pertencesse. Não lhe posso chamar tia Marilla?” “Não. Não sou tua tia e não acho que se devam chamar às pessoas nomes que não lhes pertençam.” “Mas poderíamos imaginar que você era minha tia.” “Eu não podia.” Disse Marilla secamente. “Você nunca imagina as coisas diferentes do que são?” perguntou Anne de olhos muito abertos. “Não.” “Oh!” Anne inspirou fundo. “Oh, Miss Marilla, o que você perde!” “Não acredito que seja bom imaginarmos as coisas diferentes do que elas são,” respondeu Marilla. “Quando o Senhor nos põe em certas

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circunstâncias Ele não pretende que nos imaginemos fora delas. E isso recorda-me de uma coisa. Vai para a sala de estar Anne – assegura-te que tens os pés limpos e não deixes entrar as moscas – e traz-me o cartão ilustrado que está na lareira. Tem a Oração do Senhor e tu vais dedicar a tua tarde a aprendê-la de cór. Não quero ouvir mais orações como a de ontem à noite.” “Suponho que foi muito estranha,” desculpou-se Anne, ”mas também nunca tive muita prática. Não é de esperar que uma pessoa reze muito bem da primeira vez que tenta, não é? Eu pensei numa oração esplêndida assim que me deitei, tal como tinha prometido. Era quase tão comprida como a de um pastor, e tão poética! Mas sabe o que me aconteceu? Hoje de manhã quando acordei não me lembrava nem de uma palavra. Acho que nunca conseguirei pensar noutra tão boa. Parece que as coisas nunca são tão boas quando as temos que pensar pela segunda vez. Já alguma vez reparou nisso?” “Pois, aqui está uma coisa para tu reparares, Anne. Quando te peço para fazeres qualquer coisa quero que me obedeças logo, e não que te ponhas a falar sobre ela. Vai fazer o que te mandei.” Anne foi imediatamente para a sala de estar, mas demorou a regressar; depois de esperar dez minutos, Marilla pôs a malha de lado e foi atrás dela com uma expressão severa. Encontrou Anne quieta em frente a uma figura pendurada na parede entre as duas janelas, com o olhar perdido em sonhos. A luz branca e verde filtrada através das árvores caía sobre a criança encantada com reflexos celestiais. “Anne, em que é que estás a pensar?” perguntou Marilla. Anne voltou à terra e disse: “Para aquilo,” disse, apontando para a figura – uma imagem muito realista intitulada ‘Cristo abençoando as crianças’ – “e eu estava a imaginar que era uma delas – que eu era aquela menina ali com o vestido azul, um bocado sozinha como se não pertencesse a ninguém, como eu. Parece sozinha e triste, não acha? Acho que ela não teve pai nem mãe. Mas também queria ser abençoada, por isso esgueirou-se timidamente pelos lados da multidão, esperando que ninguém desse por ela, excepto Ele. Tenho a certeza que sei como ela se sentia. O coração dela devia ter batido acelerado, e as suas mãos deviam estar frias como as minhas quando lhe perguntei se podia cá ficar. Ela tinha medo que Ele não reparasse nela. Mas é provável que Ele tenha reparado, não acha? Tenho tentado imaginar tudo – ela aproximando-se cada vez mais até estar muito perto; e então Ele olhava para ela e punha-lhe a mão no cabelo, oh que contentamento ela teria. Mas é pena que o artista O tenha desenhado com um ar tão triste. Todas as imagens Dele são assim, não sei se já reparou. Mas não acho que Ele pudesse ter esse aspecto tão triste, porque as crianças assim tinham medo dele.” “Anne,” disse Marilla, pensando porque é que não tinha falado antes, “tu não devias falar assim. É irreverente, completamente irreverente.” Anne abriu muito os olhos admirada. “Como, se me senti tão reverente quanto podia? Tenho a certeza que não quis ser irreverente.” “Pois, talvez não, mas não soa bem falares destas coisas com um tom tão familiar. E outra coisa, Anne, quando eu te mandar ir buscar qualquer coisa deves traze-la logo e não te deixares ficar a sonhar acordada diante de qualquer imagem. Lembra-te disso. Apanha o cartão e vem já para a cozinha. Agora senta-te ali ao canto e aprende a oração de cór. Anne colocou o cartão apoiado num copo alto cheio de flores de macieira que Anne tinha trazido para alegrar a cozinha - Marilla tinha olhado de lado para a decoração mas não tinha dito nada – e apoiou o queixo nas mãos, estudando o cartão com atenção durante uns minutos. “Gostei disto,” anunciou depois. “É muito bonito. Já o tinha ouvido antes – ouvi o responsável pela escola dominical do orfanato dizê-la

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uma vez. Mas não gostei dela nessa altura. Ele tinha uma voz esganiçada e rezou-a de uma forma tão triste. Pensei que para ele rezar devia ser um dever desagradável. Isto não é poesia, mas faz-me sentir da mesma forma que a poesia. ‘Pai Nosso que estais no céu, louvado seja o teu nome’. Parece a letra de uma música. Estou tão contente por ter pensado em me dar isto para aprender, miss Marilla.” “Pois então aprende-o e cala-te,” disse rapidamente Marilla. Anne aproximou o vaso de flores de macieira o suficiente para beijar uma flor rosada, e dedicou mais uns momentos ao estudo. “Marilla,” perguntou então, “acha que eu vou ter uma amiga do peito em Avonlea?” “Uma amiga quê?” “Uma amiga do peito – uma amiga íntima, sabe – um espírito verdadeiramente afim a quem eu possa confiar todos os segredos da minha alma. Sonhei encontrá-la toda a vida. Nunca pensei que a encontrasse, mas realizaram-se tantos dos meus sonhos de uma vez que talvez este também se venha a realizar. Acha que é possível?” “A Diana Barry vive ali em Orchard Slope, e tem mais ou menos a tua idade. É uma menina muito simpática, e talvez venha a ser uma companheira de brincadeiras para ti, quando vier para casa. Está de visita a uma tia em Carmody agora. Mas tens que ter atenção ao teu comportamento. A senhora Barry é uma mulher muito exigente. Não te vai deixar brincar com a Diana se tu não fores simpática e educada.” Anne olhou para Marilla através das flores de macieira com os olhos brilhantes de interesse. “Como é a Diana? O cabelo dela não é ruivo, pois não? Oh, espero que não. É suficientemente mau eu ter cabelo ruivo, acho que não o ia suportar numa amiga do peito.” “Diana é uma rapariga muito bonita. Tem olhos e cabelo preto e faces rosadas. E é boa e esperta, o que é melhor do que ser bonita.” Marilla gostava tanto de lições morais como a duquesa da Alice no País das Maravilhas, e estava firmemente convencida que uma pessoa tinha que ser muito cuidadosa com tudo o que dizia a uma criança que estava a ser educada. Mas Anne pôs a moral de lado, e viu apenas as maravilhosas possibilidades que se abriam à sua frente. “Ah, estou tão contente que ela seja bonita. A seguir a sermos nós bonitas – e isso é impossível no meu caso – seria muito bom ter uma amiga do peito bonita. Quando eu vivia com a senhora Thomas ela tinha uma estante na sala com portas envidraçadas. Não haviam lá livros, a senhora Thomas guardava lá o serviço melhor, e as conservas quando as tinha. Uma das portas estava partida. O senhor Thomas partiu-a uma noite quando estava um pouco ébrio. Mas a outra estava inteira, e eu costumava fingir que o meu reflexo era outra menina que vivia lá. Chamei-lhe Katie Maurice, e éramos muito íntimas. Eu costumava falar com ela, especialmente nos Domingos, e contava-lhe tudo. Katie era o conforto e consolo da minha vida. Eu costumava fazer de conta que a estante estava encantada, e que se eu descobrisse o encantamento podia abrir a porta e passar para a sala onde a Katie vivia, em vez das prateleiras da senhora Thomas com as compotas e a loiça. E a Katie Maurice ia levar-me ao seu mundo maravilhoso de flores e luz do sol e fadas, e viveríamos lá felizes para sempre. Quando fui viver com a senhora Hammond partiu-me o coração deixar a Katie Maurice. Ela também se sentiu terrivelmente, eu sei que sim, porque chorava quando me deu um beijinho de despedida através do vidro da estante. Não havia nenhuma estante na casa da senhora Hammond. Mas lá em cima no rio, um bocadinho afastado da casa, havia um vale maravilhoso onde vivia um eco lindo. Ecoava todas as palavras que nós dizíamos, mesmo se falássemos baixinho. Então eu imaginava que o eco era uma menina chamada Violetta, e que éramos grandes amigas, e eu gostava quase tanto dela como da Katie Maurice – não tanto, mas quase. Na noite

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antes de ir para o orfanato eu fui-me despedir da Violetta e o seu adeus ouviu-se com tanta tristeza! Eu tinha-me afeiçoado tanto a ela que não tive coragem de imaginar uma amiga do peito no orfanato, mesmo se lá tivesse havido alguma amplitude para a imaginação.” “Ainda bem que não, “disse Marilla secamente. “Não aprovo nada essas ideias. Tu pareces acreditar nessas coisas que imaginas. Vai ser muito bom para ti teres uma amiga verdadeira, para ver se te tira essas ideias estranhas da cabeça. Mas não deixes que a senhora Barry te oiça falar da tua Katie Maurice e da tua Violetta ou vai pensar que és mentirosa.” “Oh, não. Eu nunca falaria delas a qualquer pessoa – as suas memórias são demasiado sagradas para mim. Mas pensei que gostava que você soubesse delas. Olha, uma abelha saiu mesmo agora de uma flor de macieira. Pense só que sítio maravilhosos para viver, uma flor de macieira! Como seria bom adormecer nelas quando o vento as embala. Se eu não fosse uma criança humana, acho que gostava de ser uma abelha e viver entre as flores.” “Ontem querias ser uma gaivota,” disse Marilla. “Parece-me que és muito inconstante. Disse-te para aprenderes a oração e não falares. Mas parece impossível que te cales se tiveres alguém para te ouvir. Por isso vai lá para cima para o teu quarto aprendê-la.” “Mas eu já a sei quase toda – toda menos a última frase.” “Pois, não interessa, faz como te disse. Vai para o teu quarto e aprende-a bem, e fica lá até eu te chamar para me ajudares com o chá.” “Posso levar as flores de macieira comigo para me fazerem companhia?” pediu Anne. “Não. Tu não vais querer o quarto atafulhado com flores. Devias tê-las deixado na árvore.” “Por acaso também senti um pouco isso.,” disse Anne. “Senti que não devia abreviar as suas lindas vidas colhendo-as – eu não quereria ser colhida se fosse uma flor de macieira. Mas a tentação foi irresistível. O que faz quando encontra uma tentação irresistível?” ”Anne, não me ouviste dizer para ires para o teu quarto?” Anne suspirou, retirou-se para o quarto do sótão e sentou-se numa cadeira perto da janela. “Pronto, já sei esta oração. Aprendi a última frase enquanto subia as escadas. Agora vou imaginar coisas para este quarto, para que fiquem imaginadas para sempre. Agora o chão estava coberto com uma carpete de veludo branco com rosas cor-de-rosa, e haviam cortinas de seda cor-derosa na janela. As paredes estavam forradas com tapeçarias de brocado de ouro e prata. A mobília era de mogno. Eu nunca vi mogno, mas o nome parece tão luxuoso. Isto era um sofá todo coberto de almofadas sedosas, cor-de-rosa e azul e carmim e douradas, e eu estava graciosamente reclinada nele. Vejo o meu reflexo naquele esplêndido espelho grande pendurado na parede. Sou alta e elegante, vestida numa camisa de noite com rendas, uma cruz de pérolas ao pescoço e pérolas no cabelo. O meu cabelo é negro como a meia-noite, e a minha pele é branca como o mais pálido marfim. O meu nome é lady Cordélia Fitzgerald. Não, não é, não consigo que pareça real.” Ela dançou até ao pequeno espelho, e olhou para ele. A sua cara sardenta e pontiaguda e os olhos cinzentos olhavam-na do outro lado. “Tu és só a Anne de Green Gables,” disse simplesmente, “e eu vejo-te, tal como tu és agora, quando tento imaginar que sou a lady Cordélia. Mas é um milhão de vezes melhor ser a Anne de Green Gables do que ser a Anne de sítio nenhum em especial, não é?” Inclinou-se para a frente, beijou o seu reflexo com afecto e dirigiuse para a janela aberta: “Querida Rainha da Neve, boa tarde. E boa tarde queridas bétulas lá em baixo no declive. E boa tarde querida casa cinzenta lá em cima no monte. Será que a Diana vai ser a minha amiga do peito? Espero que sim, e eu vou gostar muito dela. Mas nunca devo esquecer a Katie

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Maurice e a Violetta. Elas ficariam tão magoadas se o fizesse e eu odiaria fazê-lo a alguém, mesmo a uma menina da estante ou do eco. Tenho que ter o cuidado de me lembrar delas e mandar-lhes um beijo todos os dias.” Anne mandou um par de beijos pelo ar até às flores de cerejeira, e depois, com o queixo apoiado nas mãos, mergulhou num maravilhoso mar de sonhos. Capítulo IX A Senhora Rachel fica devidamente horrorizada Anne já estava há dois dias em Green Gables quando a senhora Lynde chegou para a inspeccionar. A senhora Rachel, diga-se em abono da verdade, não podia ser responsabilizada por isso. Um ataque de gripe severo e fora de época tinha-a confinado a casa desde a sua última visita a Green Gables. A senhora Rachel muito raramente adoecia, e tinha um certo desprezo pelas pessoas doentes, mas a gripe, dizia, não era como outra doença qualquer, e só podia ser interpretada como sinal da Divina Providência. Assim que o médico lhe permitiu sair de casa apressou-se a ir a Green Gables, quase rebentando de curiosidade sobre o órfão de Marilla e Matthew, acerca de quem todos os tipos de histórias e suposições tinham sido levantadas em Avonlea. Anne tinha feito bom uso de cada momento em que estivera acordada naqueles dias. Já conhecia cada árvore e arbusto à volta da casa. Tinha descoberto que a alameda continuava para além do pomar de macieiras e correu através do bosque; tinha-o explorado até ao fundo com todos os riachos e pontes, pinhas e cerejeiras bravas, cantos repletos de fetos e ramos de bordo. Tinha feito amizade com a nascente lá em baixo no declive, essa maravilhosa nascente fria como gelo; corria sobre pedras vermelhas, e estava rodeado por grades fetos aquáticos, e era atravessada por uma ponte improvisada com troncos. Essa ponte levou os pés inquietos de Anne a um monte cheio de árvores, onde a escuridão imperava debaixo de densos e altos pinheiros e cedros; as únicas flores ali eram miríades de campainhas; as mais tímidas e adoráveis flores do bosque, e algumas poucas flores-estrela pálidas e aéreas, como espíritos das flores do ano anterior. Teias de aranha brilhavam como fios de prata entre as árvores e os ramos entrelaçados dos pinheiros pareciam falar amistosamente. Todas estas deliciosas viagens de exploração foram feitas nas meias horas em que Anne estava autorizada a ir brincar para fora de casa, e ela falava delas até Matthew e Marilla quase ficarem surdos. Matthew não se queixava, ele ouvia tudo com um sorriso silencioso de divertimento estampado no rosto; Marilla permitia a conversa até que dava por si demasiado interessada nela, altura em que dava a Anne ordens para se deixar estar calada. Anne estava no pomar quando a senhora Rachel chegou, vagueando à sua vontade por entre a relva iluminada pela luz do sol da tarde; pelo que a boa senhora teve bastante tempo para falar exaustivamente da sua doença, descrevendo cada dor e batimento cardíaco com tanta satisfação que Marilla pensou que até a gripe devia ter as suas compensações. “Tenho ouvido coisas bastante surpreendentes sobre ti e o Matthew.” “Não me parece que estejas mais surpreendida do que eu própria,” disse Marilla. “Só agora começo a ultrapassar a surpresa.” “Que aborrecimento, ter havido um engano assim,” disse a senhora Rachel com pena. “Não a podiam ter mandado de volta?” “Suponho que sim, mas decidimos que não o íamos fazer. Matthew gostou dela. E eu devo dizer que também gosto, embora admita que ela tem os seus defeitos. A casa já parece diferente. Ela é uma pequena mesmo muito esperta.”

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Marilla viu que tinha dito mais do que tencionava, pela expressão de desagrado da senhora Rachel. “Assumiste uma grande responsabilidade,” disse seriamente a senhora, “especialmente porque tu não tens experiência com crianças. Não sabes nada sobre ela ou sobre o temperamento dela, suponho, e ninguém pode dizer como é que a criança irá ficar. Mas não quero com certeza desanimar-te, Marilla.” “Não me sinto desanimada,” foi a resposta seca de Marilla, “quando decido qualquer coisa fica decidida. Suponho que gostavas de ver a Anne. Vou chamá-la para dentro.” Anne veio logo a correr, com o rosto brilhante com a alegria dos seus passeios pelo pomar; mas estranhando a presença de uma desconhecida, parou subitamente à entrada da porta. Ela era certamente uma criatura estranha, com o vestido curto e apertado de lã que tinha trazido do orfanato, debaixo do qual as suas pernas magras pareciam miseravelmente longas. As suas sardas eram mais numerosas e evidentes que nunca, o vento despenteara-lhe o cabelo numa desordem florescente, e nunca tinha parecido mais encarnado. “Pois não te escolheram pelo aspecto, isso é certo,” foi o comentário enfático da senhora Lynde. Ela era uma pessoa que se gabava de dizer sempre aquilo que pensava, quaisquer fossem as circunstâncias. “É terrivelmente magra e vulgar, Marilla. Vem cá pequena, e deixa-me verte bem. Santo Deus, já alguma vez viste umas sardas assim? O cabelo é vermelho como as cenouras! Vem aqui, menina, já te disse.” Anne “foi lá”, mas não exactamente como a senhora Rachel esperava. Num passo atravessou a cozinha e ficou parada à frente dela, com o rosto escarlate em fúria, os lábios cerrados, e todo o seu magro corpo a tremer dos pés à cabeça. “Odeio-a,” gritou numa voz abafada, batendo com o pé no chão. “Odeio-a – odeio-a – odeio-a”, com um batimento de pé a acompanhar cada nova declaração de ódio. “Como se atreve a chamar-me magra e feia? Como se atreve a dizer que eu sou sardenta e ruiva? Você é uma mulher maleducada, rude e insensível!” “Anne!” exclamou Marilla consternada. Mas Anne continuou a enfrentar a senhora Rachel, destemida, com a cabeça bem levantada, os olhos em fúria, as mãos apertadas com uma indignação profunda emanando dela como uma aura. “Como se atreve a dizer essas coisas de mim?” repetiu veementemente. “Gostava que dissessem essas coisas de si? Gostaria que lhe dissessem que era gorda e desastrada, e que provavelmente não tinha um pingo de imaginação? E não me importo se magoar os seus sentimentos por dizer isto! Espero magoá-los. Você magoou os meus como nunca antes tinham sido magoados, nem pelo marido ébrio da senhora Thomas. E nunca a vou perdoar, nunca, nunca!” Bam! Bam! Finalizou batendo o pé. “Nunca tinha visto tal mau génio!” exclamou a horrorizada senhora Rachel. “Anne, vai para o teu quarto e fica lá até eu ir ter contigo,” disse Marilla recuperando com dificuldade a capacidade de falar. Anne, debulhando-se em lágrimas, correu para a porta da entrada, fechou-a com tanta força que até as latas penduradas lá fora estremeceram, e fugiu pelas escadas como um furacão. Um som posterior veio indicar que a porta do quarto tinha sido sujeita a um tratamento equivalente. “Pois posso dizer que não te invejo o trabalho de criar ‘aquilo’, Marilla,” disse a senhora Rachel com uma grave solenidade. Marilla abriu a boca para dizer que não tinha desculpa nem perdão. O que acabou por dizer foi uma surpresa para ela nessa altura e mais tarde. “Não devias ter feito aqueles comentários sobre o aspecto dela, Rachel.”

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“Marilla Cuthbert, não me vais dizer que a apoias numa exibição de mau génio como eu acabei de ver?!” perguntou a senhora Rachel indignada. “Não,” disse Marilla lentamente, “não estou a tentar desculpá-la. Ela foi muito má e eu vou ter que falar com ela sobre isso. Mas temos que lhe dar um desconto. Nunca lhe ensinaram o que é correcto. E tu foste demasiado dura com ela, Rachel.” Marilla não conseguia evitar repisar aquela última frase, apesar de se surpreender a ela mesma por o fazer. A senhora Lynde levantou-se com um ar de dignidade ofendida. “Pois, eu vejo que vou ter que ter muito cuidado com o que digo depois disto Marilla, uma vez que os sentimentos dos órfãos vindos sabe Deus de onde têm que ser levados em consideração antes de tudo o resto. OH, não, não estou ofendida, não te preocupes. Tenho demasiada pena de ti para ter qualquer espaço para a zanga no meu espírito. Tu vais ter os teus próprios problemas com aquela criança. Mas se quiseres o meu conselho – que suponho que não queres, apesar de eu ter criado dez crianças e enterrado duas, fazia a tal conversa de que falaste com um pau de bordo bem grande. Acho que essa será a linguagem mais adequada para este tipo de criança. Tem um temperamento a condizer com o cabelo. Pois boa tarde, Marilla. Espero que me venhas ver tantas vezes como é habitual. Mas não podes esperar ver-me aqui tão cedo, se posso ser insultada e ofendida desta forma. É algo novo para mim.” Posto isto a senhora Rachel deslizou para fora da casa, se deslizar fosse possível para uma mulher gorda que sempre martelou a sua passagem, e Marilla com uma expressão muito solene dirigiu-se para o quarto do sótão. Enquanto subia as escadas pensou com muito cuidado no que ia fazer. Sentia-se muito mal pela cena que tinha decorrido. Que pouca sorte a Anne ter mostrado tal mau génio logo à frente da senhora Lynde. Então Marilla apercebeu-se de uma forma desconfortável e certa que se sentia mais humilhada com isto do que zangada pela descoberta de um defeito tão grave no temperamento de Anne. E como devia castigá-la? A sugestão do pau de bordo – cuja eficiência poderia ser atestada pelas dez crianças da senhora Lynde – não cativou Marilla. Ela não achava que pudesse bater numa criança. Não, outro método tinha que ser encontrado para obrigar Anne a aperceber-se da enormidade da sua ofensa. Marilla encontrou Anne na cama, chorando amargamente, sem se aperceber das botas enlameadas em cima da colcha limpa. “Anne,” disse lentamente. Sem resposta. “Anne,” disse com mais severidade, “sai da cama imediatamente e ouve o que tenho para te dizer.” Anne deslizou para fora da cama e sentou-se rigidamente numa cadeira ao lado, com a cara inchada e molhada pelas lágrimas, e os olhos teimosamente fixos no chão. “Que linda forma de te comportares. Anne! Não tens vergonha?” “Ela não tinha o direito de me chamar feia e ruiva,” respondeu de forma evasiva e desafiadora. “E tu não tinhas o direito de te enfureceres daquela maneira e falares como falaste para ela, Anne. Tive vergonha de ti - muita vergonha. Eu queria que te comportasses bem para com a senhora Lynde, e em vez disso envergonhaste-me. Não sei porque é que havias de te descontrolar daquela maneira só porque a senhora Lynde disse que eras ruiva e vulgar. Já o disseste tu e muitas vezes.” “Oh, mas há uma grande diferença entre dizermos nós as coisas e ouvirmos outras pessoas dize-las,” respondeu Anne. “Podemos saber que qualquer coisa é de uma forma e mesmo assim desejarmos que as outras pessoas não pensem o mesmo. Acho que agora pensa que eu tenho um génio terrível, mas não consegui evitar. Quando ela disse aquelas coisas, qualquer coisa dentro de mim inchou e sufocou-me. Tive que lhe responder.”

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“Pois fizeste uma linda figura, devo dizer. A senhora Lynde vai ter uma bela história para contar a toda a gente – e podes crer que vai fazê-lo. Foi muito mau teres perdido a cabeça assim, Anne.” “Mas imagine que alguém lhe dizia na cara que você era feia e magra,” implorou Anne. Uma velha lembrança subitamente ocorreu a Marilla. Ela era muito pequena quando ouviu uma tia dizer para outra, ’que pena que ela seja tão escura e vulgar’. Passaram muitos anos até que Marilla ultrapassasse aquele espinho na sua memória. “Eu não estou a dizer que acho que a senhora Lynde tivesse razão ao dizer o que te disse, Anne,” admitiu num tom de voz mais doce. “A Rachel é demasiado sincera. Mas isso não é desculpa para tu te comportares daquela forma. Ela era uma pessoa estranha, mais velha e uma visita na minha casa – três boas razões para tu a teres respeitado. Foste rude e mal educada e - ” Marilla teve uma ideia inspiradora de castigo- “tu tens que ir ter com ela e dizer-lhe que estás muito arrependida pelo teu mau génio e pedir-lhe perdão.” “Eu nunca poderei fazer isso,” disse Anne determinada. “Você pode castigar-me como quiser, Marilla. Pode fechar-me numa masmorra escura e húmida, habitada por cobras e sapos, alimentar-me a pão e água que eu não me queixarei. Mas não posso pedir perdão à senhora Lynde.” “Nós não temos o hábito de fechar as pessoas em masmorras escuras e húmidas,” disse Marilla secamente, “até porque não há muitas aqui em Avonlea. Mas tens que pedir desculpa à senhora Lynde e é o que vais fazer, e ficas aqui no quarto até decidires fazê-lo.” “Terei que aqui ficar para sempre, então,” disse Anne pesarosa, “porque eu não posso dizer à senhora Lynde que estou arrependida de lhe ter dito aquelas coisas. Como é que posso? Eu não estou arrependida. Estou arrependida de a ter envergonhado, mas estou contente por lhe ter dito o que disse. Fiquei muito satisfeita. Não posso dizer que me arrependo se não for verdade, não é? Nem sequer me imagino arrependida.” “Talvez a tua imaginação esteja a trabalhar melhor amanhã de manhã,” disse Marilla, levantando-se para se ir embora. “Vais ter toda a noite para pensares no que fizeste e reconsiderares. Tu disseste que ias tentar ser uma boa menina se ficássemos contigo aqui em Green Gables, mas devo dizer que não foi o que pareceu esta tarde.” Deixando este argumento no peito tempestuoso de Anne, Marilla desceu para a cozinha muito perturbada de espírito e envergonhada na alma. Estava tão zangada consigo própria como com Anne, porque quando se lembrava da contenção assombrada da senhora Lynde os seus lábios torciam-se de divertimento, e ela sentia uma grande vontade muito repreensível de rir. Capítulo X As desculpas de Anne Marilla não disse nada a Matthew sobre o assunto nessa noite, mas quando na manhã seguinte Anne ainda não estava convencida, teve que explicar a sua ausência na mesa do pequeno-almoço. Marilla contou toda a história, esforçando-se por o fazer ver a enormidade do comportamento de Anne. “Ainda bem que alguém disse umas boas verdades à Rachel; ela é uma intrometida e uma mexeriqueira terrível,” foi a resposta consoladora de Matthew. “Matthew Cuthbert, estou espantada contigo. Tu sabes que o comportamento da Anne foi péssimo, e tomas o partido dela! Suponho que a seguir vais dizer que ela não deve ser castigada de todo!” “Bem, não, não propriamente,” disse Matthew pouco à vontade. “Acho que ela devia ser um pouco castigada. Mas não sejas muito dura com ela,

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Marilla. Não te esqueças que ela nunca teve ninguém que a ensinasse de outra forma. Tu vais...vais dar-lhe qualquer coisa para comer, não vais?” “Quando é que ouviste dizer a alguém que eu esfomeava as pessoas até elas se comportarem bem?” perguntou Marilla indignada. “Ela vai ter as suas refeições, e eu própria lhas vou levar lá a cima. Mas vai ficar lá até estar disposta a pedir desculpa à senhora Lynde e pronto, Matthew.” O pequeno-almoço, o almoço e o jantar foram refeições muito silenciosas, pois Anne continuava irredutível. Depois de cada refeição Marilla levava um tabuleiro bem cheio ao quarto do sótão e trazia-o mais tarde não muito menos cheio. Matthew observou a sua última descida com uma certa preocupação. Teria Anne comido alguma coisa? Quando a Marilla saiu nessa noite para trazer as vacas do pasto, Matthew, que tinha andado pelo celeiro a observá-la, esgueirou-se para a casa com olhar furtivo e subiu lá acima. Normalmente, Matthew circulava entre a cozinha e o pequeno quarto ao lado da entrada onde dormia; algumas vezes aventurava-se até à sala de visitas ou à sala de estar quando o pastor era convidado a tomar chá. Mas nunca mais tinha ido ao sótão da sua própria casa desde que ajudara a Marilla a pôr papel de parede no quarto de hóspedes, e isso fora há quatro anos atrás. Ele caminhou lentamente através do corredor e esperou ali durante alguns minutos à porta antes de arranjar coragem para bater e então abriu-a para espreitar. Anne estava sentada na cadeira amarela ao pé da janela, com o olhar perdido no jardim e um ar triste. Parecia muito pequena e infeliz, e o coração de Matthew encolheu-se. Fechou a porta com suavidade e caminhou suavemente até ela. “Anne,” sussurrou, com medo de ser ouvido lá fora, “como tens passado, Anne?” Anne sorriu tristemente “Mais ou menos bem. Eu imagino muitas coisas, e isso ajuda a passar o tempo. Claro que me sinto sozinha. Mas também me posso ir habituando.” Anne sorriu novamente, enfrentando com bravura os longos anos de prisão solitária que tinha à sua frente. Matthew lembrou-se que tinha que dizer o que tinha vindo dizer sem perdas de tempo, pois a Marilla podia voltar mais cedo. “Pois bem, Anne, não achas que mais valia fazeres isso e acabares com o assunto?” murmurou. “Vais ter que o fazer mais cedo ou mais tarde, não sabes, porque a Marilla é uma mulher terrivelmente determinada, terrivelmente determinada, Anne. Fá-lo de uma vez, e acaba com isto.” “Mas está-se a referir a pedir desculpa à senhora Lynde?” “Sim, pedir desculpa, é esse o termo,” disse Matthew ansiosamente. “Suaviza as coisas, por assim dizer. Era aí que eu queria chegar.” “Acho que podia fazê-lo para lhe fazer a vontade,” disse Anne pensativa. “Agora seria verdade dizer que estou arrependida porque estou. Não estava nada arrependida ontem à noite. Estava louca de raiva, e continuei louca de raiva toda a noite. Sei porque acordei três vezes durante a noite e continuava furiosa. Mas esta manhã já não estava. Já não estava com a birra – e deixou-me um sentimento horrível de vazio. Tive tanta vergonha. Mas eu não podia pensar em ir pedir desculpa à senhora Lynde. Seria tão humilhante. Tinha decidido que antes preferia ficar aqui fechada para sempre. Mas eu farei qualquer coisa por si – se você realmente quiser. “Bem, pois eu quero. Estamos terrivelmente sozinhos lá em baixo sem ti. Vai suavizar as coisas, - assim é que é uma boa menina.” “Muito bem,” disse Anne resignada. “Vou dizer à Marilla assim que ela venha que me arrependi.”

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“É mesmo isso, é mesmo isso Anne. Mas não digas à Marilla que te disse alguma coisa sobre o assunto. Ela pode pensar que estive a meter o bedelho e prometi não fazer isso.” “Nem cavalos selvagens me arrancariam esse segredo,” prometeu solenemente. “De qualquer forma, como é que os cavalos selvagens podem arrancar um segredo a uma pessoa?” Mas Matthew já lá não estava, assustado com o seu sucesso. Fugiu rapidamente para o canto mais afastado da pastagem do cavalo, com receio que Marilla descobrisse o que ele tinha feito. Esta por sua vez foi agradavelmente surpreendida por uma voz doce que chamava ‘Marilla’ do corrimão. “Sim?” disse, passando para a entrada. “Estou arrependida de ter perdido as estribeiras e dito coisas que não devia, e estou disposta a ir dizer isso à senhora Lynde.” “Muito bem.” A rispidez de Marilla não deu sinal do seu alívio. Ela tinha estado a pensar o que diabo faria se Anne não cedesse. “Vou-te lá levar depois da ordenha.” E assim, depois da ordenha, pôde-se ver a Marilla e a Anne caminhando pela alameda, a primeira direita e triunfante, a segunda caída e resignada. Mas a meio do caminho a resignação de Anne desapareceu como por encanto. Ela levantou a cabeça e caminhou com leveza, os olhos fixos no céu do pôr-do-sol, e um ar de triunfo à sua volta. Marilla assistiu à mudança com um ar reprovador. Não era uma frágil penitente que ela ia levar à presença da ofendida senhora Lynde. “Em que estás a pensar Anne?” perguntou. “Estou a imaginar o que devo dizer à senhora Lynde,” respondeu vagamente Anne. Esta resposta era satisfatória, ou deveria ter sido. Mas Marilla não se conseguia livrar da sensação que qualquer coisa no seu plano de castigo não corria bem. Anne não tinha nada que estar tão encantada e radiante. Mas encantada e radiante permaneceu até se encontrarem na presença da própria senhora Lynde, que estava sentada a tecer ao pé da janela da cozinha. Então a radiância desapareceu. Em cada traço apareceu uma penitência chorosa. Antes que uma palavra tivesse sido proferida, Anne caiu de joelhos perante a incrédula senhora e ficou de mãos postas. “Oh senhora Lynde, estou tão profundamente arrependida,” disse com voz tremida. “Eu nunca conseguirei exprimir toda a minha mágoa, não, nem que usasse todo o dicionário. A senhora deve imaginar. Eu portei-me terrivelmente consigo, e desgracei os meus caros amigos, Matthew e Marilla, que me deixaram ficar em Green Gables apesar de eu não ser um rapaz. Sou uma rapariga terrivelmente ingrata e má, e eu mereço ser castigada e banida da convivência com pessoas respeitáveis para sempre. Fui muito má por ter tido um ataque de fúria porque a senhora me disse a verdade. Era a verdade; cada palavra que me disse era verdade. O meu cabelo é ruivo, e eu sou sardenta e magricela e feia. O que eu disse de si também é verdade, mas não o devia ter dito. Oh, senhora Lynde, por favor, por favor, perdoe-me. Se mo recusar, vai infligir uma mágoa para toda a vida a uma pobre pequena órfã, mesmo que ela tenha um génio terrível. Não o faria, pois não? Por favor, diga que me perdoa senhora Lynde.” Anne apertou as mãos juntas, baixou a cabeça e esperou pela sentença. Não haviam dúvidas quanto à sua sinceridade – transparecia em cada flutuação da sua voz. Tanto Marilla como a senhora Lynde reconheceram o seu tom inconfundível. Mas a primeira compreendeu com espanto que Anne estava a gostar da sua humilhação – estava encantada com a sua completa abnegação. Era este o castigo do qual Marilla se orgulhara? Anne tinha-o tornado numa espécie de prazer. A boa senhora Lynde, não estando sobrecarregada com este entendimento, não viu isto. Só entendeu que Anne tinha feito um pedido de desculpas

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muito completo e todo o ressentimento desapareceu do seu gentil, se bem que quezilento, coração. “Então, então, pequena,” disse do fundo do coração,” claro que te perdoo. Acho que fui um pouco dura para ti, de qualquer forma. Mas eu sou uma pessoa tão sincera... Não me deves levar a mal, é isso. Não se pode negar que o teu cabelo é terrivelmente vermelho, mas eu conheci uma rapariga há muito tempo – andei na escola com ela, de facto – que tinha uma cabelo tão ruivo como o teu quando era nova e que quando cresceu escureceu para um tom de castanho muito bonito. Não ficaria nem um pouco surpreendida se isso acontecesse ao teu, nem um pouco.” “Oh, senhora Lynde!” Anne inspirou fundo enquanto se levantava do chão. “A senhora deu-me esperança. Eu vou vê-la para sempre como uma benfeitora. Eu suportaria tudo se soubesse que o meu cabelo se ia tornar castanho quando crescer. Seria tão mais fácil ser boa se o meu cabelo fosse de um lindo tom de castanho, não acha? E agora posso ir para o seu jardim e sentar-me ali naquele banco debaixo da macieira, enquanto você e Marilla conversam? Ali há muito mais amplitude para a imaginação.” “Claro, sim, vai andando. E podes levar um ramo daqueles lírios brancos ali do canto se quiseres.” Enquanto a porta se fechava, a senhora Lynde levantou-se para ir buscar um candeeiro. “Ela é uma menina muito estranha. Senta-te aqui nesta cadeira, Marilla, é melhor do que essa onde estás; está aí para o rapaz da lavoura. Sim, é certamente uma miúda estranha, mas tem qualquer coisa de apelativo afinal de contas. Não me surpreende nada que tu e o Matthew tenham ficado com ela. Talvez se venham a sair bem. Claro que ela tem uma forma estranha de se expressar, um pouco...talvez forçada, sabes, mas talvez venha a ultrapassar isso se começar a viver entre gente civilizada. E tem um génio explosivo, parece-me, mas isso é bom, porque uma criança que tem um génio assim explode e arrefece rapidamente, e não é provável que venha a ser falsa ou traiçoeira. Livra-me de uma criança falsa! No fundo, Marilla, acho que gosto dela.” Quando Marilla foi para casa, Anne veio ao seu encontro vinda da escuridão perfumada do pomar com um ramo de narcisos brancos nas mãos. “Pedi muito bem desculpa, não foi?” disse orgulhosamente enquanto caminhavam pela alameda. “Pensei que se tinha que o fazer, mais valia fazê-lo como deve ser.” “Foi como deve ser, sim,” foi o comentário de Marilla. Marilla estava surpreendida de ser ver inclinada a rir da recordação. Também tinha a inquietante sensação que devia ralhar com a Anne por se ter desculpado tão bem, mas isso seria ridículo. Ela encontrou um meio-termo com a sua consciência dizendo: “Espero que não tenhas ocasião de fazeres mais pedidos de desculpa. E espero que tentes controlar o teu mau génio daqui para a frente, Anne.” “Isso não seria difícil, se as pessoas não fizessem comentários sobre o meu aspecto,” disse com um suspiro. “Eu não me zango com outras coisas, mas estou tão cansada de ser gozada pelo meu cabelo que me faz ferver de raiva. Acha que o meu cabelo se vai tornar num bonito cabelo castanho quando eu crescer?” “Não devias pensar tanto sobre o teu aspecto, Anne. Tenho medo que sejas uma menina muito vaidosa.” “Como é que eu posso ser vaidosa se sou feia?” protestou Anne. “Eu gosto tanto de coisas bonitas; e odeio olhar para o espelho e ver uma coisa que não é bonita. Faz-me sentir tão triste - tanto como quando vejo qualquer coisa feia. Tenho pena dela porque não é bonita.” “Bonito é fazer coisas bonitas,” disse Marilla. “Já me disseram isso antes, mas eu tenho as minhas dúvidas,” disse Anne num tom céptico, cheirando os narcisos. “Não são lindas estas

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flores? A senhora Lynde foi amorosa por mas dar. Não guardo ressentimentos contra ela, agora. Dá-nos uma sensação tão boa, pedir desculpa e ser perdoada. Não estão lindas as estrelas hoje? Se pudesse escolher uma estrela para viver, qual escolheria? Eu escolhia aquela grande e bonita ali por cima do monte escuro.” “Anne, deixa-te estar calada,” disse Marilla, cansada de tentar seguir as deambulações do pensamento de Anne. Esta não disse mais nada até que viraram para a sua alameda de acesso. Um vento nómada veio recebê-las, carregado com o perfume forte dos pinheiros molhados pela maresia. Lá em baixo nas sombras uma luz alegre brilhava através das árvores desde a cozinha de Green Gables. Anne subitamente aproximou-se de Marilla e juntou a sua mão com a outra, mais áspera, da mulher mais velha. “É maravilhoso ir para casa e saber que é a nossa casa,” disse. “Já adoro Green Gables, e nunca antes gostei de um sítio. Nenhum sítio me parecia casa. Oh Marilla, estou tão feliz. Podia rezar mesmo agora e não me custava nada.” Qualquer coisa morna e agradável se instalou no coração de Marilla seguindo-se ao toque daquela mão magra e pequena na sua – o latejar de uma maternidade de que ela sentia falta, talvez. A sua própria estranheza e doçura perturbou-a. Apressou-se a fazer regressar as emoções á sua calma habitual dando uma lição moral. “Se tu fores uma boa rapariga vais ser sempre feliz, Anne. E nunca vais achar difícil dizer as tuas orações.” “Dizer as nossas orações não é bem a mesma coisa que rezar,” disse Anne meditando. “Mas vou imaginar que sou o vento que sopra lá em cima nas copas das árvores. Quando me cansar das árvores vou imaginar que estou a deslizar suavemente aqui em baixo nos fetos, e então vou voar por cima do jardim da senhora Lynde e pôr as flores a dançar – e então irei com um grande remoinho através do campo de trevo – e depois vou soprar por cima do Lago das Águas Brilhantes e encrespá-lo com pequenas ondas luminosas. Há tanta amplitude para a imaginação no vento. Por isso não vou falar mais, Marilla.” “Graças a Deus,” respirou Marilla de devoto alívio. Capítulo XI As impressões de Anne sobre a escola dominical3 “Então, o que achas deles?” perguntou Marilla. Anne estava no quarto do sótão, olhando com solenidade para três vestidos novos estendidos na cama. Um era de quadradinhos de uma cor apagada que Marilla tinha comprado a um vendedor ambulante no Verão anterior porque o achou muito prático; outro era em cetim com um xadrez branco e preto que tinha comprado num saldo no Inverno; o outro era de um padrão em tons de azul que tinha comprado nessa semana numa loja em Carmody. Ela tinha-os feito a todos, e eram todos do mesmo género – saias simples que se juntavam numa cintura apertada, com mangas tão simples como a cintura e a saia, e tão apertadas quanto possível. “Vou imaginar que gosto deles,” disse Anne com seriedade. “Não quero que imagines,” disse Marilla ofendida. “Bem vejo que não gostas dos vestidos! Qual é o problema? Não são bem feitos e limpos e novos?” “Sim.” “E então porque é que não gostas deles? “Eles não são...não são bonitos,” disse Anne relutante. “Bonitos!” protestou Marilla. “Eu não macei a minha cabeça a fazer vestidos bonitos para ti. Não acredito que se deva alimentar a vaidade

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A Anne, sendo protestante, não ia á catequese, mas à escola dominical, que é o equivalente á catequese das crianças católicas.

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Anne, digo-te já. Estes vestidos são bons, sensatos e práticos, sem folhos nem fitas, e são os que vais ter este Verão. O de quadrados castanhos e o azul vão servir para a escola quando começares. O de cetim é para a escola dominical e para a igreja. Espero que os mantenhas em bom estado e limpos, e que não os rasgues. Acho que devias estar agradecida fosse pelo que fosse, depois de teres usado aquele vestido curto de lã.” “Oh, mas eu estou agradecida,” protestou Anne. “Mas eu teria ficado muito mais agradecida se – se tivesse feito só um deles com mangas de balão. As mangas de balão estão tão na moda hoje em dia. Ia dar-me arrepios, Marilla, só de usar um vestido com mangas de balão.” “Pois, mas vais ter que passar sem os arrepios. Não tinha material para desperdiçar em mangas de balão. Acho que são ridículas, de qualquer forma. Eu prefiro mangas simples e discretas.” “Mas eu preferia parecer ridícula com toda a gente do que parecer discreta sozinha,” continuou Anne pesarosa. “E eu acredito que sim. Pois pendura os vestidos com cuidado no teu armário, e depois senta-te para estudares a tua lição da escola dominical. Tenho aqui um semanário que o senhor Bell mandou para ti e quero que vás à escola dominical amanhã,” disse Marilla desaparecendo para o andar de baixo com pressa. Anne apertou as mãos e olhou para os vestidos. “Eu esperava mesmo que houvesse um branco com mangas de balão,” sussurrou desconsolada. “Rezei por ele, mas não estava mesmo à espera disso. Não me parece que Deus tenha tempo para se preocupar com uma órfã que quer um vestido. Eu sabia que só podia contar com a Marilla para isso. Bem, felizmente consigo imaginar que um deles é de musselina branca como a neve com folhos de renda e mangas de balão a três quartos.” Na manhã seguinte uma grande dor de cabeça impediu Marilla de levar a Anne à escola dominical. “Vais ter que ir lá abaixo e pedir à senhora Lynde, Anne,” disse. “Ela leva-te à classe certa para ti. Agora vê se te portas bem. Fica para o sermão a seguir e pede à senhora Lynde que te mostre onde te deves sentar. Aqui está um cêntimo para a colecta. Não olhes para as pessoas e deixa-te estar sossegada. Vou estar à espera que me digas o sermão quando voltares a casa.” Anne iniciou o caminho irrepreensível, usando o vestido preto e branco, que embora decente no que dizia respeito ao comprimento e sem poder ser acusado de ser apertado, contribuía para realçar todos os ângulos e cantos da sua figura magra. O chapéu que levava era um chapéu pequeno, achatado e brilhante de marinheiro, cuja extrema simplicidade a tinha desapontado e dado origem a visões secretas de fitas e flores. Estas foram adquiridas antes que Anne alcançasse a estrada principal, pois confrontada a meio da alameda com um frenesim dourado de botões-de-ouro agitados pelo vento e por algumas rosas bravas, Anne prontamente engalanou o chapéu com um pesado ramo delas. Qualquer que fosse a opinião das outras pessoas, o resultado satisfez a Anne, e ela continuou contente estrada abaixo, levantando a cabeça decorada de rosa e amarelo com muito orgulho. Quando chegou a casa da senhora Lynde viu que esta já lá não estava. Nada que atemorizasse Anne, que prosseguiu até à igreja sozinha. Na entrada encontrou uma multidão de rapariguinhas, todas mais ou menos alegremente vestidas de azul e branco e cor-de-rosa, todas a olhar com olhos curiosos esta estranha com o seu extraordinário adorno de cabeça. As meninas de Avonlea já tinham ouvido histórias estranhas sobre Anne. A senhora Lynde tinha dito que ela tinha um génio terrível; Jerry Buote, o empregado de Green Gables, disse que ela estava sempre a falar sozinha ou com as árvores e as flores como se fosse maluca. Elas olhavam para ela e murmuravam umas para as outras

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por detrás dos semanários. Ninguém se dirigiu a ela, ali ou quando os exercícios começaram, e Anne foi ter à classe da menina Rogerson. A menina Rogerson era uma senhora de meia-idade que ensinava na escola dominical há vinte anos. O seu método consistia em fazer as perguntas impressas no semanário e olhar por cima dele para a rapariguinha que ela achava que devia responder. Olhava muitas vezes para Anne, e esta, graças às instruções de Marilla, respondia muito rapidamente, mas era questionável que percebesse bem quer as perguntas, quer as respostas. Não lhe parecia que gostasse da menina Rogerson, e sentia-se muito infeliz; todas as outras meninas da classe tinham mangas de balão. Anne sentiu que a vida não valia a pena sem mangas de balão. “Então, gostaste da escola dominical?” quis saber Marilla quando Anne voltou a casa. A sua coroa de flores tinha murchado, e Anne tinha-a deitado fora, pelo que Marilla foi poupada a esse pormenor por um tempo. “Não gostei nem um bocadinho. Foi horrível.” “Anne Shirley!” disse Marilla zangada. Anne sentou-se na cadeira de baloiço com um longo suspiro, beijou uma das folhas de Bonnie, e acenou a uns brincos de princesa floridos. “Elas podem ter-se sentido sozinhas enquanto eu estive fora,” explicou. “E agora sobre a escola dominical. Eu portei-me bem, tal como me disse. A senhora Lynde já tinha saído, mas eu fui lá ter sozinha. Entrei na igreja com um monte de raparigas e sentei-me num canto de um banco perto da janela enquanto faziam os primeiros exercícios. O senhor Bell fez uma oração terrivelmente longa. Eu teria ficado muito cansada antes de ele ter acabado se não estivesse ao pé da janela. Mas dava para o Lago das Águas Brilhantes, por isso olhei para lá e imaginei todo o tipo de coisas esplêndidas.” “Tu não devias ter feito nada disso. Devias ter ouvido o senhor Bell. “Mas ele não estava a falar comigo,” protestou Anne. “Estava a falar com Deus e ele também não me pareceu muito interessado na oração. Acho que ele acha que Deus está demasiado longe. Havia uma fila grande de bétulas brancas debruçadas por cima do lago e a luz do sol passava mesmo através delas, para o fundo da água. Oh Marilla, era como um lindo sonho! Deu-me um arrepio e eu disse ‘Obrigada por isto Deus’, duas ou três vezes.” “Não disseste alto, espero,” disse Marilla ansiosamente. “Não, só murmurei. Bem, o senhor Bell terminou por fim e disseram-me para ir para a sala da menina Rogerson. Havia lá mais nove meninas. Tinham todas mangas de balão. Eu tentei imaginar que as minhas também eram de balão, mas não consegui. Porque é que não consegui? Era mesmo muito fácil imaginá-las assim quando estava sozinha no quarto do sótão, mas foi terrivelmente difícil ali entre as outras que as tinham mesmo.” “Não devias ter pensado nas mangas na escola dominical. Devias ter dado atenção à lição. Espero que o saibas.” “Oh, sim, e respondi a muitas perguntas. A menina Rogerson fez-me imensas. Eu não acho que tenha sido justo ela ter feito as perguntas todas. Havias muitas que eu queria fazer, mas não fiz porque não pensei que ela fosse um espírito afim. Então todas as outras meninas recitaram uma citação. Ela perguntou-me se eu sabia alguma. Eu disselhe que não, mas que podia recitar ‘O cão na sepultura do dono’, se ela quisesse. Está no livro de leitura da terceira classe. Não é uma peça verdadeiramente religiosa, mas é tão triste e melancólica que até podia servir. Ela disse que não servia, e mandou-me aprender a décima nona citação até ao próximo sábado. Eu li-a depois na igreja e é esplêndida. Há duas linhas em particular que me arrepiam: ‘Tão depressa quanto caíam os esquadrões chacinados No dia malévolo de Midian.’ Não sei o que quer dizer esquadrões, nem Midian, mas soa tão trágico. Mal posso esperar pelo próximo Domingo para o recitar. Vou praticar

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toda a semana. Depois da escola dominical pedi à menina Rogerson – porque a senhora Lynde estava muito longe – que me mostrasse onde era o seu lugar. Sentei-me tão quieta como pude e o texto foi do Apocalipse, terceiro capítulo, segundo e terceiro versículo. Era um texto muito longo. Se eu fosse pastor escolhia os textos mais curtos e rápidos. O sermão também foi terrivelmente longo. Acho que o pastor teve que o equiparar ao texto. Não achei que fosse nem um pouco interessante. O problema é que acho que ele não tem imaginação suficiente. Não o ouvi muito tempo. Deixei os meus pensamentos correrem livremente, e pensei nas coisas mais surpreendentes.” Marilla sentiu impotente que tudo isto tinha que ser vivamente desaprovado, mas foi detida pelo facto inegável que algumas coisas que Anne dissera, especialmente sobre os sermões do pastor e as orações do senhor Bell, serem aquilo que ela realmente achava há anos do fundo do coração, mas que nunca tinha expressado. Quase parecia que aqueles pensamentos secretos, críticos e silenciados tinham aguda e subitamente tomado forma neste pedaço de humanidade sincero e negligenciado. Capítulo XII Um voto solene e uma promessa Só na sexta-feira seguinte é que a Marilla veio a saber do chapéu enfeitado de flores. Veio de casa da senhora Lynde e chamou Anne a contas. “Anne, a senhora Rachel disse que tu foste para a igreja no domingo passado com uma coroa de flores ridícula, com rosas e botões-de-ouro. O que diabo te passou pela cabeça para usares tal coisa? Deves ter ido bonita!” “Oh... Eu sei que o cor-de-rosa e o amarelo não me ficam bem,” começou Anne. “Não te ficam bem uma ova! Só o facto de teres posto flores no chapéu, de qualquer cor que fossem, foi ridículo. Tu és uma criança impossível!” “Não vejo porque é que é mais ridículo usar flores no chapéu do que no vestido,” protestou Anne. “Muitas meninas tinham raminhos nos vestidos. Qual é a diferença?” Marilla não se ia deixar arrastar do concreto seguro para os dúbios campos do abstracto. “Não me respondas, Anne. Foste muito tola em fazer isso. Não queiras que eu te apanhe nesses atavios de novo. A senhora Rachel disse que só lhe apeteceu enfiar-se pelo chão a dentro quando te viu toda engalanada daquela maneira. Não conseguiu aproximar-se de ti a tempo de te dizer para tirares aquilo da cabeça. Disse que as pessoas só falavam disso, uma coisa horrível. Claro que pensaram que eu não tive senso suficiente para te impedir de ires assim.” “Oh, tenho tanta pena,” disse Anne, com as lágrimas a crescerem nos olhos. “Nunca pensei que se importasse. As rosas e os botões-de-ouro eram tão bonitos e perfumados que eu achei que ficavam lindos no meu chapéu. Muitas meninas tinham flores artificiais nos chapéus. Estou com medo de vir a ser uma cruz para si. Talvez seja melhor mandar-me de volta para o orfanato. Isso seria terrível; não sei se suportaria; provavelmente ficava tuberculosa; já estou tão magra, como vê. Mas isso seria melhor do que ser uma cruz para si.” “Que disparate,” disse Marilla, envergonhada consigo própria por ter feito chorar a criança. “Eu com certeza não quero mandar-te de volta para o orfanato. Só quero que tu te comportes como as outras meninas e que não caias no ridículo. Não chores mais. Tenho novidades para ti. A Diana Barry chegou a casa esta tarde. Vou lá ver se a senhora Barry me

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empresta o molde de uma saia, e se tu quiseres podes vir comigo conhecer a Diana. Anne levantou-se com as mãos apertadas e as lágrimas ainda brilhantes no rosto; a toalha da loiça que tinha nas mãos deslizou sem ser sentida para o chão. “Oh, Marilla, estou assustada – agora que chegou o momento estou mesmo assustada. E se ela não gostar de mim! Seria a desilusão mais trágica da minha vida.” “Vá, não fiques tão excitada. Eu gostava tanto que não usasses essas palavras complicadas. Soa tão estranho numa menina. Acho que a Diana vai gostar bastante de ti. É com a mãe dela que tens que te preocupar. Se ela não gostar de ti, não interessa quanto a Diana goste. Se ela ouviu falar da tua fúria com a senhora Lynde ou do facto de teres ido à igreja com botões-de-ouro no chapéu não sei o que vai pensar de ti. Deves ser educada e bem comportada, e não fazeres nenhum discurso espantoso. Por amor de Deus, a pequena está a tremer!” Anne tremia de facto. O seu rosto estava pálido e tenso. “Oh, Marilla, você também estaria excitada, se fosse conhecer uma rapariga que esperasse vir a ser a sua amiga do peito, e cuja mãe pudesse não gostar de si,” disse enquanto se apressava para ir buscar o chapéu. Foram para Orchard Slope pelo atalho através do riacho e subiram o monte. A senhora Barry veio à porta da cozinha atender a Marilla. Era uma mulher alta de olhos e cabelo negros, com uma boca muito resoluta. Tinha a reputação de ser muito severa com as suas crianças. “Como está, Marilla?” disse cordialmente. “Entre. E esta é a menina que adoptou, não é?” “Sim, esta é a Anne Shirley,” disse Marilla. “Escreve-se com e no fim,” gaguejou Anne, que embora trémula e excitada, estava determinada a que não houvessem mal entendidos quanto a esse importante ponto. A senhora Barry, que não ouviu ou não compreendeu, apertou-lhe a mão e disse gentilmente: “Como estás?” “Estou bem de saúde, se bem que consideravelmente perturbada de espírito, obrigada minha senhora,” disse Anne com gravidade. Depois disse para Marilla baixinho, “Não teve nada de espantoso, pois não?” Diana estava sentada no sofá a ler um livro, que deixou quando as visitas entraram. Era uma menina muito bonita, com os cabelos e olhos negros da mãe, faces rosadas e uma expressão alegre que herdou do seu pai. “Esta é a minha filha Diana,” disse a senhora Barry. “Diana podes levar a Anne lá para fora para o jardim e mostrar-lhe as tuas flores. Vai ser melhor para ti do que cansares a vista com esse livro. Ela lê demasiado – disse para Marilla enquanto as meninas saíam – e eu não posso fazer nada porque o pai dá-lhe razão. Está sempre agarrada aos livros. Ainda bem que há perspectivas de vir a ter uma companheira – talvez a faça sair mais de casa.” Lá fora no jardim, que estava cheio de uma doce luz de pôr-do-sol atravessando os pinheiros desde o oeste, ficaram Anne e Diana, olhando sem palavras uma para a outra ao pé de uma maciço de lírios matizados. O jardim dos Barry era uma profusão de flores que teriam deliciado o coração de Anne em qualquer outro momento menos carregado pelo destino. Estava rodeado por velhos salgueiros enormes e pinheiros altos, por baixo dos quais floresciam as plantas que gostam de sítios sombrios. Caminhos bem arranjados e direitos, bordejados por conchas atravessavam-no como fitas vermelhas, e nos canteiros entre flores antiquadas reinava um motim. Haviam ervas molarinhas rosadas e peónias escarlates grandes e esplêndidas; narcisos brancos e doces rosas escocesas; aquilégias rosa, azuis e brancas e saboeiros lilases; maciços de artemísias e bandas de relva e menta; orquídeas roxas,

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narcisos, e montes de trevos com os seus delicados penachos brancos; íris escarlates que lançavam as suas folhas sobre malvas bem cuidadas; um jardim que era banhado pelo sol e habitado por abelhas, e onde o vento, levado a passear ronronava e serpenteava. “Oh, Diana,” disse Anne por fim, apertando as mãos e falando quase num murmúrio, “oh, achas que podes gostar de mim só um bocadinho – o suficiente para seres a minha amiga do peito?” Diana riu-se. Diana ria sempre antes de falar. “Acho que sim,” disse abertamente. “Estou muito contente que tenhas vindo viver para Green Gables. Vai ser muito bom ter alguém para brincar. Não há mais raparigas aqui por perto, e não tenho nenhuma irmã suficientemente crescida para brincar comigo.” “Juras que vais ser a minha amiga do peito para todo o sempre?” pediu Anne ansiosamente. Diana pareceu chocada. “Mas jurar é uma coisa muito má4,” disse relutante. “Oh, não, o meu tipo de tipo de jura não. Há dois tipos, sabes.” “Só ouvi falar de um,” disse Diana duvidosa. “Há realmente outro, e não é nada de mal. Só quer dizer prometer solenemente.” “Bem, não me importo de fazer isso,” concordou Diana aliviada. “Como é que se faz?” “Temos que dar as mãos – assim,” disse Anne com gravidade. “Devia ser feito sobre água corrente. Vamos imaginar que este caminho é água corrente. Vou repetir o juramento primeiro. Eu juro solenemente ser fiel à minha amiga do peito, Diana Barry, enquanto durarem o sol e a lua. Agora dizes tu com o meu nome.” Diana repetiu o juramento com uma risada antes e depois. Então disse: “És uma rapariga estranha, Anne. Já tinha ouvido dizer que eras diferente. Mas acho que vou gostar muito de ti.” Quando Marilla e Anne foram para casa, Diana foi com elas até à ponte de troncos. As duas meninas caminharam com os braços por cima uma da outra. No riacho separaram-se com muitas promessas de passarem a próxima tarde juntas. “Então, achaste que a Diana é um espírito afim?” perguntou Marilla enquanto passavam no jardim de Green Gables. “Oh, sim,” suspirou Anne, ingenuamente inconsciente de qualquer ironia por parte de Marilla. “Oh, Marilla, sou a rapariga mais feliz da Ilha do Príncipe Eduardo neste momento. Hoje asseguro-lhe que vou dizer as minhas orações com a melhor das boas vontades. A Diana e eu vamos construir uma casinha de brincar no bosque de faias do senhor William Bell amanhã. Posso ficar com aqueles pedaços de loiça que estão no barracão da madeira? A Diana faz anos em Fevereiro e eu em Março. Não acha que é uma coincidência estranha? A Diana vai emprestar-me um livro para ler. Ela diz que é perfeitamente esplêndido e tremendamente excitante. Ela vai-me mostrar um sítio no bosque onde crescem lírios de arroz. Não acha que a Diana tem uns olhos muito expressivos? A Diana vai-me ensinar uma canção chamada ‘Nelly in the hazel dell’. Ela vai dar-me um quadro para pôr no meu quarto; ela diz que é uma figura perfeitamente bonita: uma linda senhora num vestido de seda azul claro. Foi um vendedor de máquinas de costura que lho deu. Gostava tanto de ter qualquer coisa para lhe dar. Sou mais alta dois centímetros e meio que a Diana, mas ela é muito mais roliça; ela diz que gostava de ser magra porque é muito mais gracioso, mas acho que só disse isso para me fazer sentir melhor. Qualquer dia vamos até à praia apanhar conchas. Acordámos chamar ao riacho da ponte de troncos a Driad’s Bubble5. Não é um nome perfeitamente elegante? Uma vez li uma

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Em inglês usa-se a mesma palavra para jurar e praguejar, e todas as meninas sabem que não devem praguejar. Diana não sabia que a palavra também se aplicava a juramentos. 5 Driad’s Bubble: bolha da dríade

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história sobre um riacho chamado assim. Uma dríade é uma espécie de fada crescida, acho eu.” “Pois, pois, só espero que não mates a Diana com conversas,” disse Marilla. “E lembra-te que isto são tudo planos teus Anne. Tu não vais brincar o tempo todo, nem a maior parte dele. Vais ter o teu trabalho a fazer e este tem que ser feito em primeiro lugar.” Anne estava radiante, e Matthew veio dar-lhe ainda mais um motivo. Tinha acabado de chegar a casa vindo da loja de Carmody, e tirou timidamente um pequeno pacote do bolso que entregou a Anne, com um olhar desaprovador de Marilla. “Ouvi-te dizer que gostavas de chocolates, por isso trouxe-te uns,” disse. “Humpf,” fungou Marilla. “Vais-lhe estragar os dentes e o estômago. Pronto, pronto, não fiques tão desconsolada. Podes comer esses, já que o Matthew tos foi comprar. Mais valia ter-te trazido rebuçados de menta. São mais saudáveis. Trata de não adoeceres por os comeres todos de uma vez.” “Oh, não, não vou,” disse Anne ansiosamente. “Vou comer só um esta noite. E posso dar metade à Diana, não posso? A outra metade vai-me saber muito melhor se lhe der alguns. É tão bom pensar que tenho qualquer coisa para lhe dar.” “Vou dizer isto em abono da criança,” disse Marilla quando Anne foi para o quarto, “ela não é egoísta. Ainda bem, porque de todos os defeitos o que eu mais detesto numa criança é o egoísmo. Valha-me Deus, só há três semanas que cá está e parece que sempre cá esteve. Não consigo imaginar a casa sem ela. Pois, e não estejas com esses olhos de ‘eu bem te disse’. Isso já é suficientemente mau numa mulher, mas num homem não se pode aturar. Sou perfeitamente capaz de admitir que estou contente por ter consentido em ficar com ela e que começo a gostar dela, mas não te andes a gabar disso, Matthew.” Capítulo XIII As delícias da antecipação “Já era tempo de a Anne estar em casa para a costura,” disse Marilla, olhando para o relógio e depois lá fora para a tarde amarela de Agosto em que tudo ondulava com o calor. “Ela ficou a brincar com a Diana mais do que a meia hora que lhe dei para isso; e agora ficou ali na pilha de lenha a falar com o Matthew, podia apostar, quando sabe perfeitamente que tem trabalho a fazer. E claro que ele está a ouvi-la como se fosse um palerma. Nunca vi um homem tão encantado. Quanto mais ela fala e quanto mais estranhas são as coisas que ela diz, mais deliciado fica, evidentemente. Anne Shirley, vem cá imediatamente, ouviste!” Uma série de batidas na janela este trouxeram a Anne voando do campo, com os olhos brilhantes, as faces vagamente avermelhadas e o cabelo em desalinho atrás dela numa torrente de luz. “Oh, Marilla,” exclamou sem fôlego, “vai haver um piquenique da escola dominical na próxima quarta-feira – nos campos do senhor Harmon Andrews, mesmo ao pé do Lago das Águas Brilhantes. E o senhor superintendente Bell e a senhora Lynde vão fazer gelado – pense só, Marilla, gelado! E oh, Marilla, posso ir?” “Olha só para o relógio, se fazes favor Anne. A que horas te disse para voltares?” “Às duas – mas não é esplêndido o piquenique, Marilla? Posso ir, por favor? Oh, nunca estive num piquenique – eu sonhei com piqueniques mas nunca pensei que -“ “Sim, disse-te que estivesses aqui às duas horas. E falta um quarto para as três. Gostava de saber porque é que não me obedeceste, Anne.” “Mas eu quis, Marilla, tanto quanto possível. Mas você não faz ideia de como Idlewild é fascinante. E depois, claro que tive que contar a

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Matthew do piquenique. O Matthew é um ouvinte tão atento. Por favor, posso ir?” “Vais ter que aprender a resistir ao fascínio do Idlequalquer coisa. Quando eu te digo para vires a uma certa hora eu quero dizer essa hora e não meia hora depois. Também não tens que parar para falar com ouvintes atentos pelo caminho. Quanto ao piquenique claro que podes ir. Tu és uma aluna da escola dominical e não era razoável que eu não te deixasse ir se todas as meninas vão.” “Mas – mas,” hesitou Anne, ”a Diana diz que toda a gente tem que levar um cesto de comida. E eu não sei cozinhar, como você sabe, Marilla e – e eu não me importo muito de ir a um piquenique sem mangas de balão, mas sentia-me terrivelmente humilhada se tivesse que ir sem o cesto de comida. Está-me a preocupar desde que a Diana me disse.” “Bem, não precisas de te preocupar mais. Eu preparo-te o cesto.” “Oh, querida boa Marilla. Oh, você é tão boa para mim. Oh, estou-lhe tão agradecida.” Continuando com os seus Ohs de satisfação, Anne atirou-se para os braços de Marilla e beijou-lhe efusivamente a face magra. Foi a primeira vez na sua vida que os seus lábios tocaram voluntariamente a face de Marilla. Mais uma vez, aquela sensação de doçura avassaladora arrepiou-a. Estava secretamente muito feliz com os carinhos impulsivos de Anne, e provavelmente foi esta a razão que a fez dizer bruscamente: “Então, então, deixa lá esse disparate de beijaroquices. Mais valia que fizesse mais cedo o que te dizem. Quanto a cozinhar, penso começar a ensinar-te um destes dias. Mas és tão desmiolada Anne. Tenho estado à espera que acalmes um pouco e aprendas a ter juízo antes de começarmos. Tens que te manter atenta enquanto cozinhas e não parar a meio das coisas para deixar que os teus pensamentos reinem sobre toda a criação. Agora vai para a tua manta de retalhos e faz o teu quadrado antes do chá.” “Eu não gosto de mantas de retalhos,” disse Anne aborrecida, procurando o cesto do trabalho e sentando-se à frente de um conjunto de retalhos em diamante vermelhos e brancos com um suspiro. “Acho que alguns tipos de costura são agradáveis, mas não há qualquer amplitude para a imaginação no patchwork6. É só um retalhinho depois do outro, e nunca se chega a lado nenhum. Mas claro que prefiro ser a Anne de Green Gables cozendo retalhos do que ser a Anne de lugar nenhum com todo o tempo do mundo para brincar. Só gostava que o tempo quando estou a fazer a manta de retalhos corresse tão depressa como quando estou a brincar com a Diana. Oh, passamos uns bocados tão elegantes, Marilla. Eu tenho que imaginar quase tudo, mas sou bem capaz de o fazer. A Diana é simplesmente perfeita em tudo o resto. Sabe aquele pedaço de terra do outro lado do riacho que corre entre a nossa quinta e a do senhor Barry. Pertence ao senhor William Bell, e mesmo ao canto há um pequeno círculo de bétulas brancas – o sítio mais romântico, Marilla. A Diana e eu temos lá a nossa casinha de brincar. Chamamoslhe Idlewild7. Não é um nome poético? Fiquei acordada quase uma noite inteira para o inventar. Depois, quando estava quase a adormecer, veio como uma inspiração. Diana ficou extasiada quando o ouviu. Arranjámos a nossa casa de uma forma muito elegante. Você podia vir vê-la, Marilla, não podia? Temos umas pedras muito grandes todas cobertas de musgo, como assentos, e tábuas de uma árvore a outra para prateleiras. E temos lá todos os nossos pratos em cima. É claro que estão todos partidos, mas é a coisa mais fácil do mundo imaginar que estão inteiros. Há um pedaço de prato com uma hera amarela e vermelha que é especialmente bonito. Nós temo-lo na sala de visitas, e temos lá o vidro das fadas também. O vidro das fadas é lindo como um sonho. A Diana encontrou-o no bosque por trás do galinheiro dela. Está cheio de 6

Patchwork: nome que se dá aos trabalhos com retalhos de tecido, muito desenvolvidos nos países anglosaxónicos. Era a forma habitual de ensinar costura ás meninas. 7 Idlewild: acalmia silvestre é mais ou menos o sentido.

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arco-íris, como se fossem arco-íris pequeninos que ainda não cresceram, e a mãe da Diana disse-lhe que era de um candeeiro deles que se partiu. Mas é agradável imaginar que as fadas o perderam uma noite em que deram um baile, por isso chamamos-lhe o vidro das fadas. O Matthew vai fazer-nos uma mesa. Oh, e chamámos Willowmere8 àquele charco redondo no campo do senhor Barry. Tirei esse nome de um livro que a Diana me emprestou. Era um livro excitante, Marilla. A heroína tinha cinco apaixonados. Eu ficava satisfeita só com um, você não Marilla? Ela era muito bonita e passou por muitas tribulações. Ela podia desmaiar com toda a facilidade. Eu adorava ser capaz de desmaiar com facilidade, você não, Marilla? É tão romântico. Mas apesar de ser tão magra sou realmente muito saudável. Mas acho que estou a engordar. Não acha que estou? Todos os dias olho para os cotovelos quando me levanto para ver se já têm covinhas. A Diana vai ter um vestido novo com mangas de balão a três quartos. Vai levá-lo ao piquenique. Oh, espero bem que o tempo esteja bom na quarta-feira. Acho que não suportava a desilusão se houvesse algo que me impedisse de ir ao piquenique. Acho que sobrevivia, mas seria uma mágoa para toda a vida. Não teria qualquer importância se eu fosse a cem piqueniques mais tarde; não iam compensar ter perdido este. Vão haver barcos no Lago das Águas Brilhantes – e gelado, como lhe disse. Nunca provei gelado. A Diana tentou explicar-me como era, mas acho que gelado é uma coisa que está para além da imaginação.” “Anne, está a falar sem interrupção desde há dez minutos contados pelo relógio,” disse Marilla. “Agora, só por curiosidade, vamos ver se consegues estar calada o mesmo período de tempo.” Anne calou-se conforme desejado. Mas durante toda a semana falou do piquenique e sonhou com o piquenique. No Sábado choveu e ela ficou num tal estado de agitação com receio que pudesse chover até quarta que Marilla a fez coser um quadrado extra de patchwork para ver se lhe acalmava os nervos. No Domingo confidenciou a Marilla no caminho para casa depois da igreja que tinha ficado gelada de excitação quando o pastor tinha anunciado o piquenique do púlpito. “Um arrepio tão grande que me subiu e desceu a espinha, Marilla! Eu honestamente nunca acreditei que houvesse um piquenique até àquele momento. Não podia deixar de ter medo de só o ter imaginado. Mas quando um pastor diz qualquer coisa no púlpito temos que acreditar.” “Tu entusiasmas-te demais com as coisas, Anne,” disse Marilla com um suspiro. “Receio que tenhas muitas desilusões guardadas ao longo da vida.” “Oh, Marilla, mas antecipar as coisas é ter metade do prazer,” exclamou Anne. “Você pode até nem vir a ter o que deseja, mas nada nos pode impedir do prazer de antecipar. A senhora Lynde diz ‘ Abençoados aqueles que não esperam nada pois não serão desapontados’. Mas eu acho que seria pior não esperar nada do que ser desapontado.” Marilla levou o pregador de ametista à igreja naquele dia como habitual. Marilla levava sempre o pregador de ametista à igreja. Ela teria pensado que era quase sacrilégio não o pôr, tão mau como esquecer-se da Bíblia ou da moeda para o peditório. Aquele pregador de ametista era o bem mais precioso de Marilla. Um tio marinheiro tinha-o dado à sua mãe, que por sua vez o tinha deixado a Marilla. Era de uma forma oval antiquada, e tinha dentro uma madeixa de cabelo da sua mãe, rodeada por um rebordo de ametistas muito bonitas. Marilla percebia muito pouco de pedras preciosas para perceber como eram valiosas; mas achava-as muito bonitas, e estava sempre agradavelmente consciente do seu brilho violeta na sua garganta, por cima do seu vestido dos domingos de cetim castanho, apesar de não o conseguir ver. Anne tinha ficado encantada quando viu o pregador pela primeira vez. 8

Willowmere: lago dos salgueiros

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“Oh Marilla, é um pregador perfeitamente elegante. Nem sei como pode estar atenta ao sermão ou às orações quando o põe. Eu não conseguia, sabe. Eu acho as ametistas tão amorosas. Elas são como eu pensava que eram os diamantes. Há muito tempo, antes de eu ter visto um diamante, eu li sobre eles e tentei imaginar como seria. Pensei que fossem pedras roxas lindas e brilhantes. Quando vi um diamante verdadeiro num anel de uma senhora fiquei tão desapontada que chorei. Claro que era muito bonito, mas não era como eu tinha idealizado. Deixa-me pegar no pregador por um minuto, Marilla? Acha que as ametistas podem ser as almas das violetas boas?” Capítulo XIV A confissão de Anne Na noite de segunda-feira antes do piquenique Marilla veio do seu quarto com uma expressão perturbada. “Anne,” disse à pequena personagem sentada à mesa a descascar ervilhas e a cantar ‘Nelly of the Hazel Dell’ com um vigor e expressão que davam crédito aos ensinamentos de Diana, “Viste o meu pregador de ametista? Pensei que o tinha pregado na minha almofada das agulhas ontem depois de vir da igreja, mas não o encontro em lado nenhum.” “Eu...eu vi-o esta tarde quando foi à Aid Society,” disse Anne lentamente. “Eu ia a passar pelo seu quarto e vi-o na almofada, por isso entrei para o ver.” “Mexeste-lhe?” disse Marilla secamente. “Sim,” admitiu Anne, “Eu tirei-o e preguei-o no meu peito só para ver como ficava.” “Não tinhas nada que fazer isso. É muito feio ser intrometida. Em primeiro lugar não devias ter entrado no meu quarto, e em segunda não devias ter tocado num pregador que não te pertencia. Onde é que o puseste?” “Oh, pu-lo de novo na cómoda. Nem o cheguei a ter posto um minuto. De verdade, não quis ser intrometida Marilla. Não pensei que fosse mau ir lá dentro e experimentar o pregador, mas vejo agora que foi e nunca mais o faço. É uma coisa boa que eu tenho. Nunca faço a mesma asneira duas vezes.” “Não o voltaste a pôr no sítio,” disse Marilla. “Esse pregador não está em sítio nenhum na cómoda. Tu tiraste-o ou qualquer outra coisa, Anne.” “Mas eu pu-lo lá outra vez,” disse Anne rapidamente – prontamente pensou Marilla. “Só não me lembro se o voltei a espetar na almofada ou se o deixei na caixinha de porcelana. Mas tenho a certeza que o deixei lá.” “Eu vou lá ver outra vez.,” disse Marilla, determinada a ser justa. “Se tu o deixaste lá ainda lá está. Se não estiver sei que o tiraste.” Marilla foi ao quarto dela e procurou cuidadosamente, não só na cómoda mas também em qualquer outro sítio onde ela achou possível estar o pregador. Não o encontrou e regressou à cozinha. “Anne, o pregador não está lá. Pelo que dizes foste a última pessoa a mexer-lhe. Então o que é que fizeste com ele? Diz-me já a verdade. Tiraste-o ou perdeste-o?” “Não,” disse Anne solenemente, encarando os olhos zangados de Marilla de frente. “Eu nunca levei o pregador para fora do seu quarto e isto é a mais pura verdade, asseguro-lhe. E pronto, Marilla.” O ‘pronto’ da Anne era só para enfatizar a sua afirmação, mas Marilla encarou-o como uma demonstração de desafio. “Acho que me estás a mentir, Anne,” disse com um tom aguçado. “Eu sei que estás. Agora não digas mais nada a não ser que estejas preparada para me dizer a verdade. Vai para o teu quarto e fica lá até que estejas disposta a confessar.”

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“Devo levar as ervilhas comigo?” disse Anne submissa. “Não, eu acabo de as descascar. Faz o que te mandei.” Quando Anne saiu Marilla tratou das tarefas da noite num estado de espírito muito perturbado. Estava preocupada com o seu valioso pregador. E se a Anne o tivesse perdido? E que maldade ter negado que o tirou, quando qualquer pessoa podia ver que tinha que ser ela! E com uma cara tão inocente! “Não sei o que podia ter acontecido pior,” pensou Marilla, enquanto descascava nervosa as ervilhas. “Claro que não acho que o tenha roubado de propósito ou qualquer coisa assim. Levou-o só para brincar ou para ajudar numa das fantasias dela. Deve tê-lo levado, isso é certo, porque pelo que ela disse não foi mais ninguém ao quarto desde que ela lá esteve, até que eu lá fui esta tarde. E o pregador desapareceu, não há dúvida. Deve tê-lo perdido e agora está com medo de dizer, não venha a ser castigada. É uma coisa terrível pensar que ela mente. É muito pior do que os seus acessos de mau génio. É uma responsabilidade tremenda ter em casa uma criança em quem não se pode confiar. Falsidade e mentira – foi o que demonstrou. Acho que me sinto pior por isso do que pelo pregador. Se ao menos me tivesse dito a verdade eu não me importava tanto.” Marilla foi várias vezes ao quarto à procura do pregador durante o serão sem o encontrar. Uma visita antes de deitar ao quarto do sótão também se revelou infrutífera. Anne teimava em negar que tivesse levado o pregador, mas Marilla só se convencia mais de que o tinha feito. Contou a história ao Matthew na manhã seguinte. Ele ficou confundido e baralhado: não conseguia perder a confiança em Anne tão rapidamente mas tinha que admitir que as circunstâncias estavam contra ela. “Tens a certeza que não caiu para trás da cómoda?” foi a única sugestão que pode dar. “Já a desviei e tirei as gavetas, vi em cada racha e frincha” foi a resposta de Marilla. “O pregador desapareceu e a criança levou-o e mentiu sobre isso. Essa é a verdade pura e simples, Matthew, e mais vale encararmo-la de frente.” “Bem, e agora o que vais fazer sobre isso?” perguntou Matthew desconsolado, sentindo-se secretamente agradecido por ser a Marilla e não ele a ter que lidar com a situação. Desta vez não tinha a mais pequena vontade de meter o bedelho. “Ela vai ficar no quarto até confessar,” disse Marilla triste, lembrando-se do sucesso deste método no caso anterior. “Depois logo vejo. Talvez seja capaz de encontrar o pregador se ela ao menos disser para onde o levou: mas em qualquer caso vai ter que ser severamente castigada, Matthew.” “Bem, pois então vais ter que a castigar,” disse Matthew, pegando no chapéu. “Eu não tenho nada a ver com o assunto, se bem te lembras. Tu é que me avisaste disso no início.” Marilla sentiu-se abandonada por todos. Nem sequer podia ir ter com a senhora Lynde para pedir um conselho. Foi ao quarto do sótão com uma expressão muito séria, e saiu com um rosto ainda mais sério. Anne recusava-se abertamente a confessar. Continuava a afirmar que não tinha levado o pregador. A criança tinha evidentemente estado a chorar, e Marilla sentiu uma pontada de pena que reprimiu prontamente. Á noite estava, como ela própria disse, ‘esgotada’. “Vais ficar neste quarto até confessares, Anne. Podes convencer-te disso,” disse com firmeza. “Mas o piquenique é amanhã, Marilla,” exclamou Anne. “Você não me vai impedir de ir, pois não? Vai-me deixar sair durante a tarde, não vai? Depois posso aqui ficar o tempo que quiser encantada da vida. Mas eu tenho que ir ao piquenique.” “Tu não vais a piqueniques nem a mais lado nenhum enquanto não confessares, Anne.”

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"Oh, Marilla," gaguejou Anne. Mas Marilla tinha saído e fechado a porta. A quarta-feira amanheceu tão limpa e bonita como se tivesse sido encomendada de propósito para o piquenique. Os pássaros cantavam à volta de Green Gables; os lírios de nossa senhora no jardim enviavam o seu perfume através dos ventos invisíveis que entravam por cada porta ou janela, e vagueavam por quartos e corredores como espíritos abençoados. As bétulas no declive acenavam os ramos como se esperassem pelo cumprimento habitual de Anne da janela do quarto do sótão. Mas Anne não estava à janela. Quando Marilla lhe levou o pequeno-almoço encontrou a criança muito arrumada sentada na cama, pálida e resoluta com os lábios cerrados e os olhos brilhantes. “Marilla, estou pronta a confessar.” “Ah!” Marilla pousou o tabuleiro. Mais uma vez o seu método tinha sido bem sucedido; mas o seu sucesso teve um gosto amargo. “Então deixa-me ouvir o que tens para dizer, Anne.” “Eu tirei o pregador de ametista,” disse Anne, como se repetisse uma lição bem decorada. “Levei-o tal e qual você disse. Mas eu não tive intenção de o levar quando entrei. Mas ficou tão bonito, Marilla, quando o preguei no peito que fui levada por uma tentação irresistível. Imaginei como seria perfeitamente arrepiante levá-lo para Idlewild e imaginar que era a lady Cordélia Fitzgerald. Seria tão mais fácil imaginar que era a lady Cordélia se tivesse um verdadeiro pregador de ametista. A Diana e eu fazemos colares de rosinhas selvagens, mas o que são rosinhas selvagens comparadas com ametistas? Por isso levei o pregador. Pensei que o podia trazer antes de você voltar a casa. Fui pela estrada para demorar mais tempo. Quando atravessei a ponte por cima do Lago das Águas Brilhantes eu tirei o pregador para olhar para ele outra vez. Oh, como brilhava ao sol! E então, enquanto me debruçava na ponte caiu-me dos dedos, e foi lá para o fundo, para o fundo, todo roxo e brilhante, e afundou-se para sempre no Lago das Águas Brilhantes. E é a melhor confissão que posso fazer, Marilla.” Marilla sentiu a zanga a subir até ao coração outra vez. Esta criança tinha levado e perdido o seu precioso pregador de ametista e estava ali recitando os detalhes sem a mais pequena mostra de arrependimento ou vergonha. "Anne, isto é terrível," disse, tentando falar calmamente. "Tu és a rapariga mais má que eu conheço." "Sim, acho que sou," concordou Anne tranquilamente. ”Eu sei que vou ter que ser castigada, e é o seu dever castigar-me, Marilla. Não pode fazê-lo depressa, porque eu gostava de ir ao piquenique sem mais preocupações.” “Ao piquenique! Tu não vais a piquenique nenhum hoje, Anne Shirley. Esse vai ser o teu castigo. E nem é metade daquilo que merecias pelo que fizeste.” “Não posso ir ao piquenique!” Anne ajoelhou-se aos pés de Marilla e agarrou-lhe a mão. “Mas você prometeu que eu podia! Oh, Marilla, eu tenho que ir ao piquenique. Foi por isso que confessei. Castigue-me como quiser menos assim. Oh Marilla, por favor, por favor, deixe-me ir ao piquenique. Pense no gelado! Sabe-se lá se vou ter oportunidade de provar gelado outra vez.” Marilla despegou-se das mãos de Anne fria como pedra. “Não precisas de implorar, Anne. Tu não vais ao piquenique e é tudo. Não, nem uma palavra.” Anne apercebeu-se que Marilla não ia ser demovida. Apertou as mãos juntas, deu um grito lancinante e depois atirou-se para a cama com o rosto para baixo, chorando e contorcendo-se em completo abandono ao desespero e à desilusão. “Valha-me Deus!” exclamou Marilla, saindo à pressa do quarto. “Acho que esta criança é maluca. Nenhuma criança no seu juízo perfeito se

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comportaria desta maneira. Se não é maluca é completamente maquiavélica. Oh, tenho medo que a Rachel tenha tido razão desde o princípio. Mas meti mãos à obra e não vou olhar para trás.” Foi uma manhã triste. Marilla trabalhou afincadamente e esfregou o chão do alpendre e as prateleiras da leitaria quando ficou sem nada para fazer. Nem as prateleiras nem o alpendre precisavam de ser esfregados, mas ela fê-lo. Então saiu para o quintal e foi passá-lo com o ancinho. Quando o almoço ficou pronto ela foi até às escadas e chamou a Anne. Uma cara manchada de lágrimas apareceu, olhando tragicamente por cima do corrimão. “Vem comer o teu almoço Anne.” “Eu não quero almoço nenhum, Marilla,” disse Anne, soluçando. “Eu não conseguiria comer nada. O meu coração foi estilhaçado. Você vai sentir remorsos um dia, eu espero, por o ter estilhaçado, Marilla, mas eu perdoo-lhe. Lembre-se quando chegar a altura que eu lhe perdoo. Mas por favor não me peça para comer nada, especialmente porco estufado com ervilhas. Porco estufado com ervilhas é tão pouco romântico quando estamos em aflição.” Exasperada, Marilla regressou à cozinha e despejou as suas queixas em Matthew, que entre o seu sentido de justiça e a sua pena indevida para com Anne, era um homem infeliz. “Pois bem, ela não devia ter tirado o pregador, Marilla, ou dito mentiras sobre isso,” admitiu, olhando pesaroso para o seu pouco romântico prato cheio de porco guisado com ervilhas, como se ele, tal como Anne, as achasse impróprias para crises sentimentais, “mas ela é cá uma criança...uma criança tão interessante. Não achas que é um pouco duro não a deixar ir ao piquenique quando queria tanto ir?” “Matthew Cuthbert, estou espantada contigo. Acho que até a deixei escapar-se com muita facilidade. E ela não parece aperceber-se de todo de como foi má – isso é o que mais me preocupa. Se ela se sentisse mesmo arrependida não seria tão mau. E tu também não pareces aperceber-te, estás a arranjar-lhe desculpas na tua cabeça, estou a ver.” “Bem, pois, ela é cá uma criança,” voltou Matthew timidamente a dizer. “E devias dar-lhe um desconto Marilla. Tu sabes que ela nunca teve quem lhe desse educação.” “Pois vai tê-la agora” respondeu Marilla. A resposta deixou o Matthew silencioso como se não o tivesse convencido. Esse almoço foi uma refeição muito infeliz. A única coisa alegre era o Jerry Buote, o rapaz de lavoura, e Marilla sentia a sua alegria como um insulto pessoal. Depois da loiça lavada, o pão amassado, e as galinhas alimentadas, Marilla lembrou-se que vira uma malha no seu melhor xaile de renda preto quando o tirou na tarde de segunda-feira depois de ter vindo da Aid Society. Ela ia remendá-lo. O xaile estava numa caixa na sua arca. Quando Marilla levantou a tampa, o sol passando através das folhas de videira que se agarravam à janela, tocou em qualquer coisa presa no xaile – qualquer coisa que brilhava com uma luz facetada e violeta. Marilla agarrou-o de uma vez. Era o pregador de ametista, preso por um fio da renda pelo alfinete! “Oh, Santo Deus,” disse Marilla atónita, “o que significa isto? Aqui está o meu pregador a salvo quando eu pensava que estava no fundo do lago do Barry. O que é que a Anne quis dizer quando contou que o levou e o perdeu? Acho que acredito que Green Gables esteja embruxado. Lembro-me agora que quando tirei o xaile na segunda-feira o deixei um minuto na cómoda. O pregador deve ter ficado preso nele de qualquer maneira. Pois bem!” Marilla dirigiu-se ao quarto do sótão de pregador na mão. Anne tinha chorado até à exaustão e estava sentada sem ânimo à janela.

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“Anne Shirley,” disse Marilla com ar solene, “acabei de encontrar o meu pregador pendurado no meu xaile de renda preto. Agora quero saber o que é que quer dizer aquela historieta que me contaste esta manhã.” “Mas você disse que eu tinha que ficar aqui até confessar,” respondeu debilmente Anne, ”e então decidi confessar porque queria muito ir ao piquenique. Pensei numa confissão ontem à noite depois de me deitar e tornei-a tão interessante como pude. E disse-a vezes sem conta para não me esquecer. Mas você não me deixou ir ao piquenique afinal de contas, por isso não valeu a pena o esforço.” Marilla teve que rir apesar de tudo. Mas a sua consciência incomodavaa. “Anne, tu és demais! Mas eu estava errada, vejo agora. Eu não devia ter duvidado da tua palavra quando nunca te ouvi uma mentira. Claro que não fizeste bem em confessar uma coisa que não tinhas feito, foi mesmo muito mal feito. Mas eu levei-te a isso. Por isso se me perdoares eu perdoo-te a ti e ficamos quites. E agora arranja-te para o piquenique.” Anne voou como um foguete. “Oh, Marilla, mas não é tarde demais?” “Não, são só duas horas. Eles ainda se devem estar a juntar e ainda deve faltar uma hora até que comecem a tomar o chá. Lava a cara e penteia-te e põe o vestido quadrejado. Vou-te arranjar um cesto de comida. Há cá muita coisa em casa. E vou pedir ao Jerry que prepare a égua e te leve lá abaixo ao campo do piquenique.” “Oh, Marilla,” exclamou Anne, voando para a bacia. “Há cinco minutos estava tão triste que desejava nunca ter nascido e agora não trocava de lugar com um anjo!” Nessa noite, uma Anne profundamente feliz e completamente exausta voltou a Green Gables num estado de beatificação impossível de descrever. “Oh Marilla, passei uma tarde perfeitamente suculenta. Suculenta foi uma palavra nova que aprendi hoje. Ouvi a Mary Alice Bell usá-la. Não é tão expressiva? Estava tudo lindo. Tivemos um chá estupendo e depois o senhor Harmon Andrews levou-nos a todos a dar um passeio no Lago das Águas Brilhantes, seis de cada vez. E a Jane Andrews quase caiu borda fora. Estava debruçada para colher nenúfares e se o senhor Andrews não a tivesse apanhado à última pelo cinto do vestido tinha caído e provavelmente afogava-se. Gostava de ter sido eu. Seria uma experiência tão romântica quase morrer afogada. Seria uma história tão arrepiante de contar. E comemos gelado. Não tenho palavras para descrever aquele gelado. Marilla, asseguro-lhe que estava sublime.” Nessa noite Marilla contou toda a história a Matthew enquanto remendava meias. “Estou disposta a admitir que errei,” concluiu abertamente, “mas aprendi uma lição. Tenho que me rir quando me lembro da confissão dela, apesar de achar que não devo porque foi uma mentira. Mas não me parece tão má quanto isso, e de qualquer maneira eu também sou responsável por ela. Aquela menina é difícil de compreender em certos aspectos. Mas acho que se vai sair bem. E uma coisa é certa, nenhuma casa é monótona com ela.” Capítulo XV Uma tempestade no copo de água da escola “Que dia esplêndido!” Disse Anne, inspirando fundo. “Não é bom estar vivo num dia como este? Tenho pena das pessoas que ainda não nasceram por o estarem a perder. Claro que podem ter dias bons, mas nunca vão ter este. E é ainda mais esplêndido ter um caminho tão bonito para a escola, não é?” “É muito mais bonito do que ir à volta pela estrada: é tão quente e poeirenta,” disse Diana de forma prática, espreitando para o cesto do almoço e calculando mentalmente se as três sumarentas e apetecíveis

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tartes de framboesa que continha fossem divididas por dez meninas, quantas dentadas dariam a cada uma. As meninas da escola de Avonlea partilhavam sempre os almoços, e pensar comer três tartes de framboesa sozinha ou até mesmo compartilhá-las apenas com uma melhor amiga seria arriscar-se a ser para sempre considerada “muito má” pelas outras meninas. Mas quando as tartes eram divididas por todas só se comia o suficiente para desejar mais. O caminho que Anne e Diana tomavam para a escola era um caminho bonito. Anne achava que aqueles passeios para a escola e de regresso não podiam mesmo ser melhorados pela imaginação. Ir à volta pela estrada principal seria tão pouco interessante; mas ir pela Alameda dos Apaixonados e pelo Willowmere, pelo Vale Violeta e pelo Caminho das Bétulas era o mais romântico possível. A Alameda dos Apaixonados começava abaixo do pomar em Green Gables e prolongava-se para dentro do bosque até ao fim da quinta dos Cuthbert. Era o caminho através do qual as vacas eram levadas para a pastagem de trás e onde a lenha era recolhida no Inverno. Anne tinha-lhe chamado Alameda dos Apaixonados antes de ter completado um mês em Green Gables. “Não que alguma vez aqui tenham passeado apaixonados,” explicara a Marilla, “mas a Diana e eu estamos a ler um livro perfeitamente magnífico e há lá uma Alameda dos Apaixonados. Por isso também queremos ter uma. E é um nome muito bonito, não acha? Tão romântico! Não conseguimos imaginar lá os apaixonados, sabe. Eu gosto daquela alameda porque nós lá podemos pensar alto sem que as pessoas nos chamem malucas.” Anne, começando o caminho sozinha pela manhã, atravessava a Alameda até ao riacho. Aí encontrava-se com Diana, e as duas meninas prosseguiam pela alameda por debaixo dos ramos arqueados e frondosos dos carvalhos. “Os carvalhos são árvores tão sociáveis,” disse Anne; ”estão sempre a restolhar e a sussurrar para nós” – até que chegavam a uma ponte rústica. Então deixavam a alameda e atravessavam o campo das traseiras do senhor Barry e passavam Willomere. Depois deste vinha o Vale Violeta – uma pequena cova na sombra do grande bosque do senhor Andrew Bell. “Claro que agora não há lá violetas,” disse Anne a Marilla, “mas a Diana diz que há lá milhões na Primavera. Oh Marilla, não imagina mesmo que as vê? Chega a tirar-me o fôlego. Chamei-lhe Vale Violeta. A Diana diz que nunca viu ninguém como eu para descobrir nomes giros para os sítios. É agradável sermos bons a qualquer coisa, não é? Mas a Diana deu o nome ao Caminho das Bétulas. Qualquer pessoa podia lembra-se de um nome assim. Mas o Caminho das Bétulas é dos sítios mais bonitos do mundo, Marilla.” E era. Outras pessoas para alem da Anne pensavam isso quando o descobriam. Era um caminho estreito e sinuoso, desenrolando-se sobre uma longa colina através dos bosques do senhor Bell, onde a luz descia filtrada por tantas cortinas esmeralda que era tão facetada como o centro de um diamante. Era rodeada em toda a sua extensão por jovens bétulas delgadas, de ramos brancos e ágeis; fetos e flores estrela, e lírios do vale silvestres; tufos de bagas escarlates cresciam espessos ao longo delas, e havia sempre um cheiro delicioso no ar e os chamamentos musicais dos pássaros e o murmúrio e riso do vento do bosque ecoavam nas árvores mais à frente. Aqui e ali podia ver-se um coelho atravessando rapidamente a estrada se fossemos muito em silêncio – o que com a Anne e a Diana acontecia uma vez por acaso. Lá em baixo no vale o caminho ia dar à estrada principal e depois era só subir a colina de abetos para chegar à escola. A escola de Avonlea era um edifício caiado de branco, com paredes baixas e janelas altas, mobilado por dentro com muitas carteiras confortáveis e antiquadas, que abriam e fechavam, e que tinham gravadas nas tampas as iniciais e hieróglifos de três gerações de

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crianças. A escola estava perto da estrada, e por detrás havia um bosque de pinheiros cerrados e um riacho onde as crianças punham as garrafas de leite de manhã para se manterem frescas até ao almoço. Marilla tinha vindo ver Anne partir para o seu primeiro dia de aulas com muitos receios secretos. Anne era uma menina tão estranha. Como se daria com as outras crianças? E como conseguiria estar calada durante as lições? No entanto, as coisas correram melhor do que Marilla esperara. Anne chegou a casa nessa tarde muito bem disposta. “Acho que vou gostar da escola aqui,” anunciou. “Mas não fiquei com grande impressão do professor. Está sempre a encaracolar o bigode e a fazer olhinhos à Prissy Andrews. A Prissy é crescida, sabe. Tem dezasseis anos e está a estudar para o exame de entrada para a Academia de Queen’s em Charlottetown. Tillie Boulter diz que o professor está caídinho por ela. Ela tem uma pele linda e cabelo castanho encaracolado, e usa-o apanhado de uma maneira tão elegante. Ela senta-se no banco corrido lá atrás e ele senta-se lá também, a maior parte das vezes para lhe explicar as lições, diz ele. Mas a Ruby Gillis diz que ela o viu escrever-lhe uma coisa na ardósia9, e quando a Ruby a viu ficou vermelha como um pimentão e riu-se; e a Ruby diz que acha que não tinha nada que ver com a lição.” “Anne Shirley, não te quero ouvir falar assim do teu professor,” recriminou Marilla. “Tu não vais à escola para criticares o professor. Acho que ele tem qualquer coisa para te ensinar e o teu trabalho é aprender. E eu quero que compreendas desde já que não é para vires para casa dizeres coisas dele. Isso é uma coisa que eu não encorajo. Espero que sejas uma boa menina.” “Mas eu fui,” disse Anne. “Também não foi tão difícil como você imagina. Sentei-me com a Diana. O nosso lugar é mesmo ao pé da janela e podemos ver o Lago das Águas Brilhantes. Há muitas raparigas simpáticas na escola e passamos momentos deliciosos a brincar na hora do almoço. É tão bom ter tantas meninas para brincar. Mas claro que a que eu gosto mais é a Diana, e vou sempre gostar. Eu estou terrivelmente atrasada em relação aos outros. Eles estão todos no quinto livro, e eu só estou no quarto. Eu acho que é uma vergonha de certa forma. Mas não há nem um deles que tenha uma imaginação como a minha e apercebi-me logo disso. Tivémos leitura e geografia, e história do Canadá e ditados hoje. O senhor Phillips disse que a minha ortografia era horrível, e levantou a minha ardósia para todos verem, toda riscada. Eu senti-me tão mortificada, Marilla : ele devia ter sido mais educado com uma estranha, acho eu. A Ruby Gillis deu-me uma maçã e a Sophia Sloane emprestou-me um lindo cartão cor de rosa com ‘posso ver-te em casa?’ escrito. Eu tenho que devolvê-lo amanhã. E a Tillie Boulter deixou-me usar o anel de missangas dela toda a tarde. Posso ficar com aquelas missangas velhas da almofada que está na cocheira para fazer um anel para mim? E oh, Marilla, a Jane Andrews disse-me que a Minnie Macpherson lhe disse que ouviu a Prissy Andrews dizer à Sara Gillis que eu tenho um nariz muito bonito. Marilla, foi o primeiro elogio que eu já tive na vida e você não pode imaginar como foi uma sensação estranha. Marilla, tenho mesmo um nariz bonito? Eu sei que você me diz a verdade.” “O teu nariz é bem feito,” limitou-se a dizer Marilla. Secretamente ela achava que o nariz de Anne era invulgarmente bonito, mas não tinha intenção de lho dizer. Isso tinha sido há três semanas e tudo tinha corrido sem incidentes até aí. E agora, numa fresca manhã de Setembro, Anne e Diana seguiam alegremente pelo Caminho das Bétulas, duas das raparigas mais felizes de Avonlea.

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Ardósia: nesta altura não haviam cadernos. As crianças escreviam numa ardósia preta com giz, e quando se acabava o espaço apagavam.

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“Acho que o Gilbert Blythe vai estar na escola hoje,” disse Diana. “Ele esteve de visita a uns primos em New Brunswick todo o Verão e só chegou a casa no sábado à noite. Ele é terrivelmente bonito, Anne. E ele arrelia as raparigas de uma forma terrível. Atormenta-nos as vidas.” A voz de Diana indicava que ela preferia ter a vida atormentada. “Gilbert Blythe?” disse Anne. “Não é o nome que está escrito na parede do alpendre com o de Julia Bell com um grande ‘Prestem Atenção’ por cima?” “Sim,” disse Diana, abanando a cabeça, “mas tenho a certeza que ele não gosta assim tanto da Julia Bell. Eu ouvi-o dizer que ele podia estudar as tabelas da multiplicação pelas sardas dela.” “Oh, não me fales em sardas,” implorou Anne. “Não é delicado quando eu tenho tantas. Mas acho que escrever ‘Prestem Atenção’ nas paredes sobre rapazes e raparigas uma coisa mesmo palerma. Eu gostava de ver alguém atrever-se a escrever o meu nome na parede com o de um rapaz. Claro,” apressou-se a acrescentar, “que ninguém o faria.” Anne suspirou. Ela não queria ver o seu nome escrito. Mas era um bocadinho humilhante saber que não havia grande risco disso acontecer. “Que disparate,” disse Diana, cujos olhos negros e grossas madeixas tinham feito tais estragos entre os corações dos rapazes de Avonlea que o seu nome figurava na parede do alpendre em meia dúzia de ‘prestem atenção’. “É só uma brincadeira. E não estejas tão convencida que o teu nome não vai ser escrito. O Charlie Sloane está caídinho por ti. Ele disse à mãe dele – à mãe vê só – que tu eras a rapariga mais esperta da escola. Isso é melhor do que ser bonita.” “Não, não é,” disse Anne, feminina até à medula. “Eu antes queria ser bonita do que esperta. E eu odeio o Charlie Sloane, não suporto um rapaz com olhos esbugalhados. Se alguém escrevesse o meu nome com o dele eu nunca conseguiria ultrapassar, Diana. Mas é bom ser a melhor da turma.” “Vais ter o Gilbert na tua classe a partir de hoje,” disse Diana, “ e ele está habituado a ser o melhor aluno, digo-te já. Ele só está no quarto livro apesar de ter catorze anos. Há quatro anos o pai dele esteve doente e teve que ir para Alberta para se tratar e o Gilbert foi com ele. Estiveram lá três anos e o Gil não foi quase nunca à escola até voltarem. Não vais achar tão fácil ser a melhor da turma agora Anne.” “Ainda bem,” disse Anne rapidamente. “Eu não me conseguia sentir realmente orgulhosa por ser a melhor numa classe de meninos de nove ou dez anos. Ontem levantei-me para dizer como se escreve ebulição. A Josie Pie estava à frente e, sabes, espreitou para o livro. O senhor Phillips não viu – estava a olhar para a Prissy - mas eu vi. Eu mandei-lhe um olhar de escárnio gelado e ela ficou vermelha como um pimentão e acabou por dizer mal a palavra.” “Aquelas miúdas Pye são todas umas batoteiras,” disse Diana indignada, enquanto trepavam a vedação da estrada principal. “A Gertie Pye ontem teve o desplante de pôr a garrafa de leite dela no meu lugar no riacho. Já viste? Agora não lhe falo.” Quando o senhor Phillips estava no fundo da sala ouvindo o latim de Prissy Andrews, Diana segredou a Anne, ”Ali está o Gilbert Blythe sentado mesmo à tua frente. Agora olha para ele e diz-me se não o achas bonito.” Anne olhou como indicado. Ela tinha boas hipóteses de o fazer, porque o dito Gilbert estava muito concentrado a pregar furtivamente a longa trança loira de Ruby Gillis, que se sentava à sua frente, às costas da cadeira. Ele era um rapaz alto, com cabelo castanho encaracolado, olhos castanhos matreiros e uma boca torcida num sorriso trocista. Nesta altura, Ruby Gillis começara a levantar-se para fazer uma soma para o mestre; caiu para trás na cadeira com um pequeno grito, pensando que o cabelo fora arrancado pelas raízes. Toda a gente olhou

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para ela e o senhor Phillips olhou de uma forma tão severa que a Ruby começou a chorar. Gilbert tinha escondido os alfinetes e estava a estudar história com o olhar mais sério do mundo: mas quando a sala acalmou ele olhou para Anne e piscou-lhe o olho com graça. “Acho que o teu Gilbert Blythe é bonito,” confidenciou Anne a Diana, “mas acho-o muito atrevido. Não é de boa educação piscar o olho a uma rapariga desconhecida.” Mas só naquela tarde é que as coisas começaram realmente a acontecer. O senhor Phillips estava lá atrás no canto a explicar um problema de álgebra à Prissy Andrews e o resto da classe estava a fazer mais ou menos o que lhe apetecia, comendo maçãs verdes, segredando, desenhando na ardósia e passeando grilos presos por fios para cima e para baixo entre os assentos. Gilbert Blythe estava a tentar que Anne olhasse para ele e falhando redondamente, porque Anne estava nesse momento completamente alheada não só da sua existência como da de qualquer outro aluno da escola. Com o queixo apoiado nas mãos e os olhos fixos no azul brilhante do Lago das Águas Brilhantes que se avistava da janela oeste, ela estava muito longe numa esplêndida terra de sonhos, não vendo nem ouvindo nada à excepção das suas próprias visões maravilhosas. Gilbert Blythe não estava habituado a ter que fazer fosse o que fosse para que uma rapariga olhasse para ele, e ainda menos a que falhasse. Ela devia olhar para ele, aquela ruiva miúda Shirley com o queixo pontiagudo e olhos grandes e brilhantes que não eram como os olhos das outras meninas da escola de Avonlea. Gilbert debruçou-se através do espaço entre as carteiras, pegou na ponta da longa trança de Anne, levantou-a o quanto pôde com o braço e disse num sussurro penetrante: “Cenoura! Cenoura!” Então Anne virou-se para ele com vingança nos olhos. E fez mais do que olhar. Pôs-se de pé, com os seus devaneios estilhaçados. Deitou um olhar indignado a Gilbert com olhos cujo brilho furioso foi rapidamente secundado por lágrimas de raiva. “Seu rapaz mau e odioso!” exclamou apaixonadamente. “Como te atreves!” E então -trash! Anne tinha batido com a ardósia dela na cabeça de Gilbert e partiu-a – a ardósia, não a cabeça – ao meio. Os miúdos da escola sempre gostaram de uma cena. Esta era especialmente engraçada. Toda a gente disse “Oh” deliciados de espanto. Diana engasgou-se. Ruby Gillis, que tinha inclinações para a histeria, começou a gritar. Tommy Sloane deixou toda a sua equipa de grilos escapar enquanto olhava de boca aberta para a cena. O senhor Phillips apressou-se a atravessar a sala e pousou uma mão pesada sobre o ombro de Anne. “Anne Shirley, o que significa isto?” disse zangado. Anne não respondeu. Seria demais esperar que ela dissesse perante toda a classe que tinha sido chamada ‘cenoura’. Foi Gilbert quem respondeu prontamente. “A culpa foi minha senhor Phillips. Eu irritei-a.” O senhor Phillips não prestou qualquer atenção a Gilbert. “Tenho muita pena de ver uma aluna minha fazer tal exibição de mau génio e espírito vingativo,” disse num tom solene, como se o facto de ser seu aluno devesse arrancar todas as paixões maléficas dos corações daqueles pobres e imperfeitos mortais. “Anne, vai para o estrado em frente ao quadro e fica lá até ao fim da tarde.” Anne teria preferido infinitamente uma palmada a este castigo, sobre o qual o seu espírito sensível sofria como se chicoteado. Com um rosto pálido e resoluto obedeceu. O senhor Phillips levou o giz e escreveu no quadro por cima da cabeça dela. “Ann Shirley tem muito mau génio. Ann Shirley tem que aprender a controlar o seu génio,” e depois leu alto para que até os da primeira classe, que não sabiam ler, pudessem compreender.

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Anne ali permaneceu o resto da tarde com a legenda por cima da cabeça. Ela não chorou nem baixou a cabeça. Com um olhar ressentido e bochechas vermelhas de raiva confrontou da mesma forma o olhar condoído de Diana, os acenos indignados de Charlie Sloane e os sorrisos maliciosos de Josie Pye. Quanto a Gilbert Blythe, ela nem sequer olhava para ele. Ela nunca mais ia olhar para ele! Nunca lhe falaria!! Quando a aula acabou Anne passou com o seu cabelo ruivo levantado bem alto. Gilbert Blythe tentou interceptá-la à porta do alpendre. “Estou muito arrependido por ter feito pouco do teu cabelo, Anne,” sussurrou envergonhado. “De verdade que estou. Mas não fiques zangada comigo para sempre.” Anne passou por ele desdenhosa, sem olhar ou dar sinal de ter ouvido. “Oh, como foste capaz, Anne?” murmurou Diana enquanto desciam a estrada com meia dose de admiração e outra meia de reprovação. Diana achava que nunca teria conseguido resistir ao pedido de Gilbert “Eu nunca irei perdoar o Gilbert Blythe,” disse Anne com firmeza. “E o senhor Phillips escreveu o meu nome sem e no fim. A minha alma foi trespassada, Diana.” Diana não fazia a mais pequena ideia do que Anne estava a dizer, mas percebeu que era uma coisa terrível. “Tu não podes ligar ao Gilbert por ter feito pouco do teu cabelo,” disse para a acalmar. “Ele faz pouco de todas as raparigas. Ele ri-se do meu porque é tão preto. Já me chamou corvo uma dúzia de vezes, e eu nunca o ouvi pedir desculpa por nada até hoje.” “Há uma grande diferença entre ser chamada de corvo e ser chamada cenoura,” disse Anne com dignidade. “Gilbert Blythe magoou-me os sentimentos de uma forma dilacerante, Diana.” Seria possível que o assunto tivesse passado sem mais dilacerações se mais nada tivesse acontecido. Mas quando as coisas começam a acontecer não é logo que param. Os alunos de Avonlea passavam normalmente a hora do meio-dia a apanhar goma de mascar nos abetos do senhor Bell em cima do monte e do outro lado do seu grande pasto. Daí podiam controlar a casa do senhor Eben Wrigth, onde o mestre estava hospedado. Quando viam o senhor Phillips sair corriam para a escola; mas como a distância era cerca de três vezes mais longa que a alameda do senhor Wright o mais provável era chegarem lá sem fôlego e engasgados, com cerca de três minutos de atraso. No dia seguinte o senhor Phillips foi atacado por uma súbita necessidade de mudança e anunciou antes de ir para casa que esperava encontrar todos os alunos sentados nos seus lugares quando regressasse. Quem chegasse atrasado seria castigado. Todos os rapazes e algumas raparigas foram para o bosque como habitual, com a intenção de apanhar um pedaço de goma para mastigar. Mas os bosques de goma são sedutores, e as bolas amarelas irresistíveis; eles apanharam-nas e foram ficando, e afastaram-se; e tal como habitualmente a primeira coisa que lhes fez lembrar do passar do tempo foi o Jimmy Glover gritando de cima de uma árvore ‘o mestre vem aí’. As raparigas que estavam no chão começaram primeiro e conseguiram chegar à escola mesmo a tempo. Os rapazes, que tinham que descer das árvores, chegaram depois, e Anne, que não tinha ido apanhar goma mas andava a passear contente, com fetos até à cintura e cantando baixinho para si, com uma coroa de lírios brancos no cabelo como se fosse uma divindade selvagem dos sítios sombrios, foi a última de todos. Anne corria como um veado e foi o que fez pelo que acabou por os ultrapassar mesmo a tempo de ser empurrada para dentro por eles mesmo quando o senhor Phillips estava a pendurar o chapéu. O senhor Phillips estava já sem a sua energia renovadora; ele não queria castigar doze alunos, mas era necessário fazer qualquer coisa

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para cumprir a sua palavra, por isso olhou em redor à procura de um bode expiatório e encontrou a Anne, que se tinha sentado, respirando fundo para recobrar o fôlego com uma coroa de lírios esquecida sobre uma orelha e dando-lhe uma aparência desalinhada e estranha. “Anne Shirley, uma vez que gosta tanto da companhia dos rapazes vamos fazer-lhe a vontade esta tarde,” disse de forma sarcástica. “Tire essas flores do cabelo e vá-se sentar com o Gilbert Blythe.” Os outros rapazes riram de gozo. Diana, pálida de piedade, tirou a coroa do cabelo de Anne e apertou-lhe a mão. Anne olhava para o mestre petrificada. “Ouviste o que eu disse, Anne?” questionou o senhor Phillips secamente. “Sim senhor,” disse Anne lentamente, “mas não achei que estivesse a falar a sério.” “Eu asseguro-te que estou” – ainda com aquela expressão sarcástica que todas as crianças e especialmente Anne, detestavam. “Obedece-me imediatamente.” Por um momento, Anne parecia disposta a desobedecer. Então, apercebendo-se que não tinha alternativa, levantou-se, atravessou o corredor entre as carteiras, sentou-se ao lado de Gilbert Blythe e enterrou a cara entre os braços na secretária. Ruby Gillis, que a viu antes de esconder a cara, disse aos outros quando iam para casa que “nunca tinha visto nada assim – tão branca com pintas vermelhas horríveis por toda a cara.” Para Anne, este episódio foi o fim de tudo. Já era suficientemente mau ter sido castigada sozinha entre uma dúzia de crianças igualmente culpadas; ainda era pior terem-na mandado sentar com um rapaz, mas que esse rapaz fosse o Gilbert Blythe era um insulto e uma agressão de um grau insuportável. Anne sentiu que não o conseguia aguentar e não serviria de nada tentar. Todo o seu ser fervia de vergonha e raiva e humilhação. De início os outros alunos olhavam e segredavam e davam risadinhas e cotoveladas. Mas como Anne não levantou a cara e o Gilbert trabalhava nas fracções como se toda a sua alma estivesse absorvida pelo trabalho, rapidamente voltaram às suas tarefas e Anne foi esquecida. Quando o senhor Phillips mandou sair dos alunos da classe de história, Anne devia ter ido com eles, mas não se mexeu. O senhor Phillips, que tinha estado a escrever alguns versos ‘para Priscilla’ antes de ter mandado sair a classe estava a pensar numa rima obstinada e não deu pela falta dela. Numa ocasião em que ninguém estava a ver, Gilbert tirou da carteira um pequeno coração cor-de-rosa de chocolate com ‘Tu és doce’ escrito e deu-lho por debaixo do braço. Anne levantou-se, apanhou o coração cor-de-rosa com as pontas dos dedos, deixou-o cair para o chão, esmagou-o com o calcanhar, e voltou à posição inicial ao lado de Gilbert sem sequer se dignar a olhar para ele. Quando a escola acabou Anne dirigiu-se à sua carteira e tirou ostensivamente tudo o que lá tinha, livros e folhas, pena e tinta, textos e aritmética, e empilhou-os cuidadosamente em cima da ardósia partida ao meio. “Para que é que estás a levar todas estas coisas para casa, Anne?” Quis saber Diana, assim que chegaram à estrada. Não se tinha atrevido a perguntar antes. “Eu não vou voltar à escola,” disse Anne Diana inspirou e olhou para Anne para avaliar se falava a sério. “A Marilla vai deixar-te ficar em casa?”, perguntou “Vai ter que deixar,” disse Anne. “Eu nunca mais vou para a escola com aquele homem.” “Oh, Anne!” Diana parecia prestes a chorar. “Eu acho que és mesmo má. O que é que eu vou fazer? O senhor Phillips vai-me obrigar a sentar com aquela horrível Gertie Pye – eu sei que vai porque ela está sozinha. Por favor volta, Anne.”

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“Eu faria quase tudo no mundo por ti, Diana,” disse Anne tristemente. “Eu deixaria que me trespassassem de um lado a outro se fosse para o teu bem. Mas eu não posso fazer isso, por isso por favor não me peças. Ias partir-me o coração.” “Mas pensa só no que vais perder,” lamentou-se Diana. “Nós vamos construir a mais linda casa perto do riacho, e vamos jogar à bola na próxima semana e tu nunca jogaste à bola, Anne. É tremendamente excitante. E nós vamos aprender uma canção nova – a Jane Andrews está a praticá-la agora e a Alice Andrews vai trazer um livro novo na próxima semana e vamos todas lê-lo alto lá em baixo no rio. E tu gostas tanto de ler alto, Anne.” No final, nada demoveu Anne. Ela tinha tomado uma decisão. Não voltaria para a escola do senhor Phillips, e disse-o à Marilla quando voltou a casa. “Que disparate,” disse Marilla. “Não é de todo um disparate,” disse Anne, olhando Marilla com olhos solenes e reprovadores. “Não compreende, Marilla? Eu fui insultada.” “Insultada uma ova! Tu amanhã vais para a escola como sempre.” “Oh, não.” Anne abanou a cabeça suavemente. “Eu não vou voltar, Marilla. Vou estudar as lições em casa e vou ser tão boa como puder e vou estar calada, se isso for possível. Mas não vou voltar à escola, asseguro-lhe.” Marilla viu algo muito semelhante a uma teimosia inamovível no rosto da pequena Anne. Ela compreendeu que não seria fácil ultrapassá-la, mas resolveu que seria melhor não dizer mais nada naquela altura. “Vou lá abaixo ver a Rachel e pedir-lhe a opinião,” pensou. “Não vale a pena discutir com a Anne agora. Ela está muito zangada e eu sei que ela pode ser terrivelmente teimosa se lhe der para isso. Do que compreendi da história, o senhor Phillips tem andado a tratar dos assuntos sem grande consideração pelos outros. Mas não era nada bom dizer-lhe isso. Vou falar com a Rachel sobre o assunto. Ela teve dez crianças na escola e deve saber algo sobre o assunto. Também já deve saber da história toda, por esta altura.” Marilla encontrou a senhora Lynde a tecer colchas com a mesma produtividade e alegria do costume. “Acho que sabes o que venho fazer,” disse, um pouco envergonhada. A senhora Rachel acenou afirmativamente. “Sobre o sarilho da Anne na escola, presumo,” disse. “A Tillie Boulter esteve aqui quando veio da escola e contou-me tudo.” “Eu não sei o que fazer com ela,” disse Marilla. “Ela afirma que não quer ir à escola. Nunca vi uma criança tão arrasada. Tenho estado à espera de sarilhos desde que ela começou as aulas. Eu sabia que as coisas estavam a ir bem demais. Ela é tão orgulhosa. O que me aconselhas Rachel?” “Bom, uma vez que me pedes conselho, Marilla,” disse a senhora Lynde amigavelmente – “Eu fazia-lhe a vontade no princípio, era o que fazia. Eu acho que o senhor Phillips agiu mal. Claro que não o devemos dizer às crianças, como sabes. E claro que ele ontem fez bem em tê-la castigado pelo acesso de fúria. Mas hoje foi diferente. Os outros que chegaram atrasados deviam ter sido castigados tal como a Anne, é o que acho. E eu não acho que seja correcto castigar as raparigas fazendo-as sentar com os rapazes. Não é decente. A Tillie Boulter estava realmente indignada. Ela tomou o partido da Anne logo, e disse-me que todos os outros alunos também o tomaram. A Anne parece ser muito popular entre eles de certa forma. Nunca pensei que se desse tão bem com as crianças.” “Então achas mesmo que é melhor deixá-la ficar em casa,” disse Marilla assombrada. “Sim. Quer dizer, eu não lhe falava em escola antes de ser ela a falar. Acredita em mim, Marilla, ela numa semana acalma e vai estar disposta a voltar por si só, enquanto que se tu a obrigasses a voltar

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sabe Deus que birra faria a seguir e armava mais sarilhos que nunca. Quanto menos atenção deres ao caso melhor, na minha opinião. Também não vai perder muito por não ir à escola, ao ponto a que chegámos. O senhor Phillips não é nada bom professor. A desordem na sala é escandalosa, e negligencia os mais novos para gastar mais tempo com os mais velhos que está a preparar para Queen’s. Ele nunca teria ficado com esta escola outro ano se o tio dele não fosse um dos procuradores10 – O procurador, porque ele consegue levar os outros dois a só fazerem aquilo que ele entende. Acho que não sei o que vai ser da educação nesta ilha.” A senhora Rachel abanou a cabeça como para dizer que se ela estivesse à frente do sistema educacional da província tudo estaria melhor organizado. Marilla seguiu o conselho de Rachel e não disse mais uma palavra à Anne sobre o regresso à escola. Ela aprendeu as lições em casa, fazia as suas tarefas e brincava com a Diana no fresco crepúsculo arroxeado do Outono; mas quando passava pelo Gilbert Blythe na rua ou o encontrava na escola dominical passava por ele com um desprezo gelado que não era minimamente apaziguado pelo desejo dele de a apaziguar. Até os esforços de Diana como pacificadora eram desperdiçados. Anne tinha-se certamente convencido que iria odiar Gilbert Blythe para o resto da vida. Tanto quanto odiava o Gilbert, Anne adorava Diana, com todo o seu intenso coração, tão apaixonado nas suas preferências como nas suas aversões. Uma certa noite, Marilla vinha do pomar com um cesto de maçãs, e encontrou Anne sentada na janela este ao anoitecer, chorando amargamente. “O que se passa contigo Anne?” perguntou. “É por causa da Diana,” soluçou Anne. “Eu gosto tanto da Diana, Marilla. Eu não consigo viver sem ela. Mas eu sei muito bem que quando crescermos ela vai casar e ir-se embora e deixar-me. E, oh, o que irei fazer? Eu odeio o marido dela – odeio-o furiosamente. Já imaginei tudo – a Diana vestida de branco, com um véu, e tão bonita e majestosa como uma rainha; eu como dama de honor, com um lindo vestido também, e mangas de balão, mas com o coração despedaçado escondido por baixo de um rosto sorridente. E depois a despedir-me de Diana e...e” - aqui Anne foi-se abaixo por completo e recomeçou a chorar ainda com mais amargura. Marilla virou-se rapidamente para esconder a cara, mas era escusado deixou-se cair para a cadeira mais próxima e desfez-se num riso tão sincero e pouco usual que o Matthew, a atravessar o pátio lá fora, parou admirado. Quando é que ele tinha ouvido Marilla rir daquela maneira? “Bem, Anne Shirley,” disse Marilla, assim que recuperou a fala, “se tens que inventar problemas, por favor tenta inventá-los mais próximos. Que imaginação que tu tens.” Capítulo XVI Diana é convidada para o chá com um resultado trágico Outubro era um mês lindo em Green Gables, quando as bétulas no declive se tornavam tão douradas como a luz do sol e os bordos por detrás do pomar se tingiam de um vermelho real, e as cerejeiras bravas ao longo da alameda se revestiam dos mais lindos tons de vermelho escuro e verde bronze, enquanto os campos se estendiam ao sol como tapetes. Anne deliciava-se com o mundo de cores à sua volta.

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Procurador: em muitas comunidades da América do norte as pessoas organizavam-se nomeando um grupo de pessoas que tomavam decisões pela aldeia, cidade ou distrito. Estas pessoas contratavam os professores, clérigos e administravam os bens comuns e os donativos das pessoas da comunidade.

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“Oh, Marilla”, exclamou numa manhã de Sábado, vinda da rua a dançar com os braços repletos de ramos. “Estou tão contente por viver num mundo onde há Outubros. Não seria terrível se passássemos de Setembro para Novembro? Olhe só para estes ramos de bordo. Não lhe dão um arrepio, vários arrepios? Vou decorar o meu quarto com eles.” “Que trapalhada!” disse Marilla, cujo sentido estético não era visivelmente desenvolvido. “Tu enches demais o quarto com essas coisas da rua, Anne. Os quartos foram feitos para lá se dormir.” “Oh, mas também para sonhar, Marilla. E sabe que se sonha muito melhor num quarto cheio de coisas bonitas. Vou pôr estes ramos no jarro azul, em cima da minha mesa.” “Então vê lá se não deixas cair folhas nas escadas. Eu vou a uma reunião da Aid Society esta tarde a Carmody, Anne, e provavelmente não vou chegar a casa antes da noite. Vais ter que dar o jantar ao Matthew e ao Jerry, por isso não te esqueças de pôr o chá na água quando te sentares à mesa como aconteceu na última vez. “Foi tão mau ter-me esquecido,” desculpou-se Anne, ”mas foi nessa tarde que estava a tentar dar um nome ao Vale Violeta, e isso ocupoume a atenção. O Matthew foi tão bom. Ele não me ralhou nem um bocadinho. Ele pôs o chá na água e disse que bem podíamos esperar um bocado. E eu contei-lhe um conto de fadas tão bonito enquanto estávamos à espera, por isso nem lhe custou a passar o tempo. Era um lindo conto de fadas Marilla. Eu esqueci-me do fim, por isso inventei um e o Matthew disse que não se percebia que tinha sido inventado.” “O Matthew acharia bem se tu pensasses em te levantar a meio da noite para jantar, Anne. Mas vê se tens atenção desta vez. E – não sei se faço bem, podes ficar ainda mais despistada – podes convidar a Diana para vir cá a casa passar a tarde contigo e tomar o chá.” “Oh, Marilla!” Anne apertou as mãos. “Que coisa perfeitamente linda! Afinal você é capaz de imaginar coisas, ou não teria compreendido que eu desejava tanto isso mesmo. Vai parecer tão adulto e bonito. Não precisa de recear que eu me esqueça de pôr o chá na água quando tenho visitas. Oh, Marilla, posso usar o serviço de chá com botões de rosa?” “Claro que não! O serviço de rosas! Não querias mais nada? Tu sabes que só o uso com os Pastores ou com os membros da Liga. Vais usar o velho serviço castanho. Mas podes abrir um frasco de conserva de cereja. Já é tempo de ser usado, de qualquer maneira, acho que já começa a estar bom. E podes servir bolo de frutas com bolachinhas e biscoitos.” “Já me imagino à cabeceira da mesa servindo o chá,” disse Anne, fechando os olhos extasiada. “E a perguntar à Diana se ela quer açúcar! Eu sei que ela não usa, mas claro que lhe vou perguntar como se não soubesse. E depois a insistir para ela comer outra fatia de bolo de fruta, e outra porção de conserva. Oh, Marilla é uma sensação maravilhosa só de pensar. Posso levá-la para o quarto de hóspedes para ela deixar o chapéu quando chegar? E depois podemos sentar-nos na sala de visitas?” “Não. A sala de estar vai servir perfeitamente para ti e para a tua visita. Mas há meia garrafa de cordial de framboesa que sobrou da reunião da Igreja na outra noite. Está na segunda prateleira do armário da sala de estar, e tu e a Diana podem beber se gostarem, e uma bolachinha para acompanhar à tarde, porque acho que o Matthew se deve demorar para vir para o chá porque vai levar as batatas ao navio.” Anne voou até ao declive, passou a Bolha da Dríade e subiu a Curva do Pomar para convidar a Diana para tomar chá. Depois, assim que a Marilla saiu para Carmody, a Diana chegou, vestida com o segundo melhor vestido e arranjada tal e qual como devia ao ter sido convidada para o chá. De outras vezes, ela corria para a cozinha sem bater à porta, mas agora batia levemente à porta principal. E então Anne, vestida com o seu segundo melhor vestido, abriu-a delicadamente, as

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duas meninas apertaram as mãos com tanta cerimónia como se nunca se tivessem conhecido. Esta solenidade tão pouco natural durou até que a Diana foi levada até ao quarto do sótão para deixar o chapéu e depois sentaram-se durante dez minutos na sala de estar, com os pés muito juntinhos. “E como está a tua mãe?” perguntou educadamente Anne, como se não tivesse visto a senhora Barry pela manhã a apanhar maçãs de excelente saúde e disposição. “Está muito bem, obrigada. Suponho que o senhor Cuthbert tenha ido levar as batatas ao Lily Sands, esta tarde, não foi?” disse Diana, que tinha ido à loja do senhor Harmon Andrews essa mesma tarde na carroça com Matthew. “Sim. As nossas batatas foram muito boas este ano. Espero que as do teu pai também tenham sido.” “Foram bastante boas, obrigada. Já apanhaste muitas maçãs?” “Oh, sim, tantas,” disse Anne, esquecendo-se de ser cerimoniosa e saltando rapidamente. “Vamos lá fora ao pomar e colher algumas, Diana. Marilla diz que podemos ficar com todas as que ainda estão na árvore. A Marilla é uma pessoa muito generosa. Ela disse que podíamos comer bolo de fruta e conserva de cereja ao lanche. Mas não é boa educação dizer aos convidados o que lhes vamos dar a comer, por isso não te digo o que vamos beber. Só digo que começa com R, tem um C e é vermelho vivo. Eu adoro bebidas vermelhas, tu não? Sabem duas vezes melhor do que as de outras cores. O pomar, com todos os seus ramos frondosos curvados com frutos mostrou-se tão encantador que as meninas lá passaram a maior parte da tarde, sentadas na relva a um canto onde a geada tinha poupado a relva e o sol doce de Outono batia morno, comendo maçãs e falando tanto como podiam. Diana tinha muito para contar a Anne sobre a escola. Ela tinha que se sentar com a Gertie Pye e odiava-a; a Gertie fazia chiar o giz de uma forma que arrepiava a Diana; a Ruby Gillis tinha encantado todos os seus sinais, de verdade, com um seixo que a velha Mary do riacho lhe tinha dado. Tinha que se esfregar os sinais com o seixo e depois deitá-lo por cima do ombro esquerdo na lua nova, e os sinais iam-se todos embora. O nome do Charlie Sloane estava escrito com o da Emm White na parede do alpendre e a Em estava completamente furiosa com isso; o Sam Boulter provocou o senhor Phillips na sala e ele bateu-lhe, e o pai do Sam veio à escola dizer ao senhor Phillips que nem se atrevesse a tocar num filho dele com um dedo que fosse; e a Mattie Andrews tinha um capuz vermelho novo e um cachecol azul com borlas, e por causa disso andava toda importante; e a Lizzie Wright não falava à Mamie Wilson porque a irmã mais velha dela fez com que a irmã mais velha da Lizzie Wrigth terminasse com o namorado; e toda a gente tinha saudades da Anne e gostava que ela voltasse para a escola; e o Gilbert Blythe Mas Anne não queria ouvir nada sobre o Gilbert Blythe. Levantou-se muito depressa e disse que deviam ir beber o cordial de framboesa. Anne procurou na segunda prateleira do armário da sala de estar, mas não havia lá nenhuma garrafa. Acabou por a encontrar na prateleira de cima. Anne pô-la num tabuleiro e levou-a para a mesa com um copo. “Serve-te à vontade, Diana,” disse delicadamente. “Acho que agora não vou beber. Não me apetece depois de ter comido aquelas maçãs todas.” Diana serviu-se de um copo cheio, olhou para o líquido vermelho vivo com admiração e bebeu-o de um trago. “Este cordial de framboesa é muito bom, Anne,” disse. “Eu não sabia que o cordial de framboesa era assim tão bom.” “Ainda bem que gostas. Bebe o que quiseres. Eu vou ali à cozinha acender o fogão. As donas de casa têm tantas responsabilidades, não é?”

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Quando a Anne voltou da cozinha, a Diana estava a beber o segundo copo de cordial; e dada a oferta de Anne, não recusou um terceiro copo. Os copos eram grandes e o cordial era mesmo muito bom. “É o melhor que já bebi,” disse Diana. “É muito melhor do que o da senhora Lynde, apesar dela se gabar tanto dele. Não sabe mesmo nada como o dela.” “Eu acho que o cordial de framboesa da Marilla devia ser melhor do que o da senhora Lynde,” disse Anne com lealdade. “A Marilla é uma cozinheira afamada. Ela está a tentar ensinar-me a cozinhar, mas asseguro-te que é um trabalho difícil, Diana. Há tão pouca amplitude para a imaginação na culinária. Há regras para tudo. A última vez que fiz um bolo esqueci-me de pôr a farinha. Eu estava a pensar numa história linda sobre tu e eu, Diana. Eu imaginei que tu estavas terrivelmente doente com varíola, e toda a gente te abandonava, mas eu fui corajosamente ter contigo, fiquei à tua cabeceira e tratei-te até recuperares. Depois eu apanhava varíola, morria e era enterrada debaixo daqueles álamos no cemitério, e tu plantavas uma roseira na minha campa e regava-la de lágrimas; e nunca, nunca te esquecias da tua amiga da juventude que tinha sacrificado a vida por ti. Oh, era uma história tão tonta, Diana. As lágrimas corriam-me pela cara abaixo enquanto eu batia o bolo. Mas esqueci-me da farinha e o bolo foi um triste fracasso. A farinha é tão essencial nos bolos, sabes. A Marilla ficou muito zangada, e eu não me admiro. Sou um grande problema para ela. Ela ficou terrivelmente mortificada por causa do pudim na semana passada. Nós tivemos pudim de ameixa para o almoço na terça-feira, e sobrou metade do pudim e um jarrinho de molho. A Marilla disse que era suficiente para outro almoço, e mandou-me pô-lo na prateleira da despensa e tapá-lo. Eu queria tapá-lo, de verdade, Diana, mas quando o levei estava a imaginar que era uma freira – claro que sou protestante, mas imaginei que era católica – e por um desgosto de amor ia ficar em clausura eterna; e esqueci-me de tapar o jarrinho. Lembrei-me disso na manhã seguinte e corri para a despensa. Diana, não podes imaginar o meu horror quando encontrei um rato afogado no molho do pudim! Eu tirei o rato com uma colher e deitei-o fora para o quintal, e lavei a colher três vezes. A Marilla estava a ordenhar as vacas, e eu pensei em perguntar-lhe se podia dar o molho aos porcos, mas quando ela voltou eu estava a imaginar que era uma fada do gelo a atravessar os bosques e a transformar as folhas das árvores de verde para amarelo e carmim, como elas quisessem, por isso nunca mais pensei no molho do pudim e a Marilla mandou-me ir apanhar maçãs. Então o senhor e a senhora Ross vieram de Spencervale nessa manhã. Tu sabes que eles são muito finos, especialmente a senhora Chester Ross. Quando a Marilla me chamou para dentro o jantar estava pronto e toda a gente estava à mesa. Eu tentei ser tão delicada quanto podia, para a senhora pensar que eu era uma menina educada apesar de não ser bonita. Correu tudo bem, até que eu vi a Marilla vir com o pudim de ameixa numa mão e o jarrinho do molho aquecido na outra. Diana, foi um momento terrível. Eu lembrei-me de tudo, e deixei-me ficar no meu lugar e sussurrei ‘Marilla, não deve usar esse molho de pudim. Estava lá um rato morto. Esqueci-me de lhe dizer.’ Oh, Diana, nunca me esquecerei daquele horrível momento, nem que viva cem anos. A senhora Ross olhou para mim de uma forma que eu pensei que me ia afundar pelo chão a dentro de vergonha. Ela é uma perfeita dona de casa, imagina o que pensou de nós. A Marilla não disse uma palavra mas ficou vermelha como um pimentão. Levou o pudim e o molho para dentro e trouxe conserva de morango. Até me ofereceu, mas eu não conseguia comer. Era como se tivesse carvão a arder na cabeça. Depois da senhora Ross se ter ido embora, Marilla ralhou imenso comigo. Mas Diana, o que é que tens?” Diana levantou-se muito cambaleante; e depois sentou-se outra vez, levando as mãos à cabeça.

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“Estou – estou muito mal disposta,” disse, um pouco entremelada. ”Eu – eu tenho que ir já para casa.” “Oh, nem penses em ir para casa sem tomar chá,” disse Anne preocupada. “Vou já prepará-lo, vou pôr o chá a fazer neste instante.” “Eu tenho que ir para casa,” repetiu Diana, estupidamente mas determinada. “Deixa-me dar-te o lanche de qualquer forma,” implorou Anne. “Deixa-me dar-te bolo de frutas e conserva de cereja. Deita-te no sofá um bocadinho e vais ficar melhor. Onde é que te dói?” “Eu tenho que ir para casa,” disse Diana, e era tudo o que ia dizer. Anne implorou em vão. “Nunca ouvi falar de visitas que se fossem embora sem tomar chá,” lamentou-se. “Oh, Diana, será possível que tenhas mesmo apanhado varíola? Se tiveres eu vou tratar de ti, podes contar com isso. Nunca te vou abandonar. Mas gostava mesmo que ficasses até ao chá. Onde é que te dói?” “Estou muito tonta,” disse Diana. E de facto caminhava muito cambaleante. Anne, com lágrimas de desilusão nos olhos, foi buscar o chapéu de Diana e acompanhou-a até à vedação dos Barry. Depois chorou todo o caminho de regresso até Green Gables, onde guardou o resto do cordial e preparou o lanche de Matthew e Jerry já sem cerimónias nenhumas. O dia seguinte era Domingo, e como choveu torrencialmente de manhã à noite Anne não saiu de Green Gables. Na manhã de segunda a Marilla mandou-a fazer um recado a casa de Rachel. Num pequeno espaço de tempo Anne voltou a correr pela alameda com lágrimas a correr pelo rosto. Irrompeu pela cozinha e atirou-se de frente para o sofá em agonia. “O que é que te aconteceu agora Anne?” questionou Marilla, entre a dúvida e o assombro. “Eu espero que não tenhas sido impertinente com a senhora Lynde outra vez.” Anne não deu resposta, à excepção de mais lágrimas e mais fortes soluços! “Anne Shirley, quando te pergunto qualquer coisa quero que me respondas. Senta-te como deve ser imediatamente e diz-me porque é que estás a chorar.” Anne sentou-se, a tragédia personificada. “A senhora Lynde esteve em casa da senhora Barry hoje e ela estava num estado terrível,” soluçou. “Ela diz que eu embriaguei a Diana no sábado e que ela foi para casa num estado desastroso. E ela diz que eu devo ser uma menina muito má e que ela nunca, nunca mais me vai deixar brincar com a Diana. Oh, Marilla, estou trespassada pela dor.” Marilla ficou muda de espanto. “Embebedar a Diana!” disse quando recuperou a voz. “Anne, tu ou a senhora Barry estão malucas? O que é que tu lhe deste?” “Nada a não ser cordial de framboesa,” soluçou Anne. “Nunca pensei que o cordial de framboesa pudesse embriagar as pessoas, Marilla – mesmo se bebessem três copos cheios como a Diana. Oh, é tão – como o marido da senhora Thomas! Mas eu não quis embriagá-la.” “Bêbeda uma ova!” disse Marilla, marchando para o armário da sala de estar. Ali na prateleira estava uma garrafa que ela reconheceu como sendo de um licor de groselha com três anos, pela qual ela era famosa em Avonlea, apesar de algumas pessoas mais austeras, entre as quais se incluíam a senhora Barry, fossem abertamente contra. E ao mesmo tempo Marilla lembrou-se que ela tinha posto a garrafa de cordial de framboesa na despensa e não no armário como tinha dito a Anne. Ela voltou à cozinha com a garrafa de licor na mão. O seu rosto estava contraído apesar de tudo. “Anne, tu tens uma habilidade para te meteres em sarilhos! Tu deste à Diana licor de groselha em vez de cordial de framboesa. Não viste a diferença?”

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“Eu não o provei,” disse Anne. “Eu pensei que era o cordial. Eu quis ser tão - tão hospitaleira. A Diana ficou terrivelmente doente e teve que ir para casa. A senhora Barry disse à senhora Lynde que ela estava perdida de bêbeda. Ela só se ria como tonta quando a mãe lhe perguntava o que se passou, e depois dormiu durante horas. A mãe dela cheirou-lhe o hálito e viu que ela estava bêbeda. Teve uma dor de cabeça fortíssima ontem todo o dia. A senhora Barry está tão indignada. Ela nunca vai acreditar que não fiz de propósito.” “Acho que mais valia que ela castigasse a Diana por ser gulosa ao ponto de beber três copos cheios de seja o que for.,” disse Marilla. “Mesmo se ela tivesse bebido só cordial tinha ficado doente com três copos cheios. Pois, e esta história vai dar razão a todas as pessoas que não aprovam que eu faça o licor de groselha, apesar de há três anos não o fazer desde que soube que o pastor não concorda. Só ali tinha aquela garrafa por causa de alguma doença. Pronto, pequena, não chores. Não vejo como podes ter sido acusada, e tenho pena que tenha acontecido.” “Eu tenho que chorar,” disse Anne. “O meu coração foi despedaçado. As estrelas jogam contra mim, Marilla. Diana e eu fomos separadas para sempre. Oh, Marilla, como podíamos imaginar, quando fizemos as nossas juras de amizade eterna...” “Não sejas palerma Anne. A senhora Barry vai pensar melhor quando vir que não tiveste culpa. Acho que ela pensa que fizeste isso como uma partida parva ou qualquer coisa assim. Tu devias ir lá esta tarde explicar-lhe o que aconteceu.” “Falta-me a coragem quando penso em enfrentar a mãe ofendida,” suspirou Anne. “Gostava que você lá fosse Marilla. Você é muito mais educada do que eu. É provável que a oiça antes que a mim.” “Bem, pois vou,” disse Marilla, achando que talvez fosse a opção mais sensata. “Não chores mais Anne. Vai correr tudo bem.” Marilla tinha mudado de ideias quanto a correr tudo bem na altura em que regressou da Curva do Pomar. Anne estava à sua espera e voou até à porta de entrada ao seu encontro. “Oh, Marilla, eu sei pela sua cara que não adiantou nada,” disse com pena. “A senhora Barry não me vai perdoar?” “A senhora Barry!” exclamou Marilla. “De todas as pessoas pouco razoáveis que conheci ela é a pior. Eu disse-lhe que foi tudo um engano, e que tu não tiveste culpa, mas ela simplesmente não acreditou em mim. E esfregou-me na cara que o meu licor de groselha não era inofensivo como eu sempre disse. Eu respondi-lhe logo que o licor de groselha não é para se beber aos três copos cheios de uma vez, e que se uma criança minha fosse tão gulosa eu refreava-a com uma boa sova.” Marilla e esgueirou-se para a cozinha, perturbada e triste, deixando uma alma muito desgraçada no alpendre das traseiras. Nesse momento, Anne saiu sem gorro no frio entardecer de Outono, de uma forma rápida e determinada tomou o caminho através do campo de trevo, passou a ponte de madeira e subiu o pinhal, iluminada por uma pálida e pequena lua que se erguia pouco abaixo dos bosques a oeste. A senhora Barry, vindo atender em resposta a uma batida tímida, encontrou uma pequena de lábios pálidos e olhos ansiosos suplicante no degrau de entrada. O seu rosto endureceu. A senhora Barry era uma mulher de preconceitos fortes e grandes antipatias, e a sua zanga era do tipo frio e intenso, sempre mais difícil de ultrapassar. Para dizer a verdade, ela acreditava mesmo que Anne tinha embebedado Diana por pura malícia e falsidade, e estava honestamente ansiosa por preservar a sua menina de qualquer convívio com tal criança. “O que queres?” disse com rispidez. Anne juntou as mãos em súplica. “Oh, senhora Barry, por favor perdoe-me. Eu não tive intenção de – de embriagar a Diana. Como poderia? Imagine só que era uma pobre órfã, adoptada por pessoas gentis e que tinha apenas uma amiga do peito em

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todo o mundo. Acha que a ia embriagar de propósito? Eu pensei que era só cordial de framboesa. Eu estava firmemente convencida que era cordial de framboesa. Oh, por favor, não diga que não me vai deixar brincar mais com a Diana. Se o fizer vai cobrir a minha vida com uma nuvem negra de infortúnio.” Este discurso, que teria amaciado o coração da boa senhora Lynde num piscar de olhos, não teve qualquer efeito sobre a senhora Barry à excepção de a irritar ainda mais. Ela tinha uma certa desconfiança das palavras complicadas e dos gestos dramáticos de Anne, e imaginou que a criança estava a fazer pouco dela. Por isso disse, com frieza e crueldade: “Não acho que sejas uma menina à altura para seres amiga da Diana. Mais vale ires para casa e aprenderes a comportar-te.” Os lábios de Anne tremeram. “Não me vai deixar ver a Diana nem uma vez para dizer adeus?” implorou. “A Diana foi a Carmody com o pai,” disse a senhora Barry, voltando-se para dentro e fechando a porta. Anne regressou a Green Gables com um desespero silencioso. “A minha última esperança foi perdida,” disse a Marilla. “Eu fui falar com a senhora Barry e ela tratou-me de uma forma insultuosa. Marilla, eu acho que ela não é uma mulher bem-educada. Não há mais nada a fazer a não ser rezar e eu não sei se isso adianta muito porque, Marilla, com uma mulher tão teimosa como a senhora Barry nem mesmo Deus pode fazer grande coisa.” “Anne, tu não devias dizer essas coisas,” respondeu Marilla, tentando conter uma pouco cristã tendência para o riso que via com desânimo ganhar peso dentro dela. E quando contou a história ao Matthew nessa noite acabou por rir abertamente das desventuras de Anne. Mas quando entrou no quarto do sótão antes de se deitar e viu que Anne tinha adormecido a chorar, uma doçura fora do vulgar suavizou-lhe as feições. “Pobre pequenina,” murmurou, afastando-lhe uma madeixa da cara molhada de lágrimas. Depois debruçou-se e beijou a face rosada pousada na almofada.

CAPÍTULO XVII Um novo interesse na vida Na tarde seguinte, debruçada sobre o seu patchwork à janela da cozinha, Anne olhou para fora e viu Diana lá em baixo na Bolha da Dríade acenando misteriosamente. Num instante Anne estava lá fora voando para o declive, com assombro e esperança nos olhos brilhantes. Mas a esperança esmoreceu quando viu a contenção triste de Diana. “A tua mãe não se demoveu?” sussurrou. Diana acenou com tristeza. “Não, e oh, Anne, ela diz que eu nunca mais posso brincar contigo. Eu chorei e chorei, e disse-lhe que a culpa não era tua, mas não valeu de nada. Tive tanta dificuldade a convence-la a deixar-me vir aqui a baixo dizer-te adeus. E ela disse que só podia ficar dez minutos e está a contá-los pelo relógio. “Dez minutos não é tempo suficiente para uma eterna despedida,” disse Anne por entre lágrimas. “Oh, Diana, tu prometes solenemente que nunca me vais esquecer, a amiga da tua juventude, quaisquer que sejam os amigos futuros que te acarinhem?” “Prometo,” soluçou Diana, “e nunca terei outra amiga do peito – eu não quero nenhuma. Nunca poderia gostar de ninguém como gosto de ti.”

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“Oh, Diana,” exclamou Anne, juntando as mãos, ”tu gostas de mim?” “Mas claro que sim. Tu não sabias?” “Não.” Anne respirou fundo. “Eu pensei que tu simpatizavas comigo, claro, mas nunca esperei que gostasses de mim. Pois, Diana, eu nunca esperei que ninguém gostasse de mim. Nunca ninguém gostou de mim desde que eu me lembro. Oh, é maravilhoso! É um raio de luz que vai brilhar para sempre na escuridão de um caminho aparte do teu Diana. Oh, di-lo outra vez.” “Eu gosto de ti com toda a devoção, Anne,” disse fielmente Diana, “E vou gostar sempre, podes ter a certeza.” “E eu gostarei sempre de ti, Diana,” disse Anne, estendendo solenemente a mão. “Nos anos vindouros a tua memória brilhará como uma estrela sobre a minha vida solitária, como dizia aquela última história que lemos juntas. Diana, poderias dar-me uma madeixa das tuas tranças negras como relíquia da tua partida para eu guardar eternamente?” “Tens alguma coisa com que a cortar?” perguntou Diana, limpando as lágrimas que os tocantes comentários de Anne tinham feito correr, e regressando aos assuntos práticos. “Sim. Tenho a minha tesoura do patchwork no bolso do avental, felizmente,” disse Anne. Ela cortou solenemente uma madeixa de cabelo. “Até sempre, minha cara amiga. De hora em diante seremos como estranhas lado a lado. Mas o meu coração será para sempre fiel ao teu.” Anne ficou parada a ver Diana partir, acenando dolorosamente a mão de cada vez que esta olhava para trás. Então regressou a casa, por enquanto nem um pouco consolada com esta despedida romântica. “Está tudo terminado,” informou. “Eu nunca mais terei outra amiga. Estou agora pior do que antes, porque já não tenho a Katie Maurice nem a Violetta. E mesmo se tivesse, não seria o mesmo. Por qualquer razão, as amigas imaginárias não são tão reconfortantes depois de se ter tido uma amiga real. A Diana e eu tivemos uma despedida tão sentida ali em baixo no riacho. Será para sempre sagrada na minha memória. Eu usei a linguagem mais romântica que consegui. A Diana deu-me uma madeixa do cabelo dela e eu vou cosê-la num saquinho e usá-la à volta do meu pescoço para o resto da vida. Por favor, faça com que eu seja enterrada com ela, pois não acredito que venha a viver muito tempo. Talvez quando me vir jazendo fria e morta perante ela, a senhora Barry sinta remorsos por aquilo que fez e deixe a Diana ir ao meu funeral. “Acho que não é de temer que morras de desgosto enquanto possas falar, Anne,” disse Marilla com muito pouca compaixão. Na segunda-feira seguinte, Anne surpreendeu a Marilla vindo escadas abaixo do seu quarto com o cesto dos livros apoiado na anca e os lábios apertados numa linha de determinação. “Eu vou voltar à escola,” anunciou. “É só o que me resta na vida, agora que a minha amiga foi cruelmente afastada de mim. Na escola posso olhar para ela e recordar os dias passados.” “Mais vale recordares as lições e as somas,” disse Marilla, escondendo o seu contentamento por este final para a situação. “Se voltares para a escola eu espero não ouvir mais histórias de ardósias partidas nas cabeças das pessoas e outras coisas assim. Porta-te como deve ser e faz o que o teu professor mandar.” “Vou tentar ser uma aluna modelo,” concordou Anne com pena. “Não espero que seja muito divertido. O senhor Phillips disse que a Minnie Andrews era uma aluna modelo e ela não tem uma única centelha de vida ou imaginação. É aborrecida e hirta, e nunca parece estar a divertirse. Mas eu sinto-me tão deprimida que talvez me seja fácil portar-me assim. Eu vou dar a volta pela estrada. Não suportaria ir pelo Caminho das Bétulas sozinha. Choraria lágrimas amargas se o fizesse.” Anne foi recebida de braços abertos no seu regresso à escola. A sua imaginação tinha feito imensa falta nos jogos, a sua voz nas cantigas

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e a sua habilidade para dramatizar o que lia na hora do almoço. A Ruby Gillis mandou-lhe sorrateiramente três ameixas durante a leitura; a Ella May MacPherson deu-lhe um amor-perfeito enorme e amarelo que recortou de um catálogo de flores, um tipo de decoração de secretária muito apreciado pelos alunos de Avonlea. A Sophia Sloane ofereceu-se para lhe ensinar um padrão de renda de duas agulhas perfeitamente elegante, muito adequado para debruar aventais. Kattie Boulter deu-lhe um frasco de perfume para guardar a água da ardósia, e a Julia Bell copiou cuidadosamente num pedaço de papel rosa claro de margens recortadas com as seguintes palavras: Quando o anoitecer desce a sua cortina E a fixa com uma estrela Lembra-te que tens uma amiga Apesar de estar distante “É tão agradável ser apreciada,” suspirou Anne encantada para Marilla nessa noite. As raparigas não eram os únicos alunos que apreciavam Anne. Quando ela se foi sentar depois da hora do almoço – tinha-lhe sido dito pelo senhor Phillips que se devia sentar com a aluna modelo Minnie Andrews – encontrou na sua secretária uma grande e lustrosa maçã. Anne apanhou-a pronta a dar uma dentada quando se lembrou que o único sítio em Avonlea onde havia maçãs daquelas era no pomar dos Blythe, do outro lado do Lago das Aguas Brilhantes. Anne largou-a então como se estivesse em brasa, e limpou ostensivamente os dedos com o seu lencinho de bolso. A maçã permaneceu intocada na secretária até que na manhã seguinte o pequeno Timothy Andrews, que varria o chão e acendia o fogão de sala, a tomou como vencimento. O lápis de ardósia do Charlie Sloane, luxuosamente forrado com papel de riscas vermelhas e amarelas, e que custava dois cêntimos quando os lápis vulgares custavam só um, foi aceite com mais agrado quando ele lho mandou depois da hora do almoço. Anne ficou muito contente por o ter recebido, e recompensou-o com um sorriso que elevou o vaidoso rapaz directamente ao sétimo céu e o fez dar erros tão crassos no ditado que o senhor Phillips o obrigou ficar na sala depois das aulas para o fazer de novo. Mas enquanto: ‘O cortejo de César trespassava o busto de Brutus Mais recordava Roma o seu filho dilecto’ Pelo que a marcada ausência de qualquer tributo ou reconhecimento por parte de Diana, que estava sentada com Gertie Pye, ensombrou o pequeno triunfo de Anne. “A Diana podia ao menos ter-me sorrido uma única vez,” lamentou-se a Marilla nessa noite. Mas na manhã seguinte, um bilhete dobrado da forma mais temerosa e torcida e um embrulho foram passados a Anne. “Querida Anne (lia-se) A mãe diz que não posso brincar contigo nem falar contigo mesmo na escola. A culpa não é minha e por favor não te zangues comigo, porque eu gosto tanto de ti como antes. Tenho muitas saudades de te contar os meus segredos, e não gosto nem um bocadinho da Gertie Pye. Eu fiz-te um marcador de livros de papel de seda vermelho. Estão muito na moda e só há três meninas na escola que os sabem fazer. Quando o vires recorda A tua verdadeira amiga Diana Barry”

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Anne leu o bilhete, beijou o marcador resposta ao outro lado da escola.

e

enviou

rapidamente

uma

“Minha querida Diana: Claro que não estou zangada contigo porque tens que obedecer à tua mãe. Os nossos espíritos comungam. Eu irei guardar o teu lindo presente para sempre. A Minnie Andrews é uma menina simpática – apesar de não ter imaginação – mas tendo sido amiga do peito de Diana não consigo ser da Minnie. Por favor desculpa os erros porque eu ainda não escrevo muito bem, apesar de ter melhorado muito. Para sempre tua até que a morte nos separe Anne ou Cordélia Shirley P.S. Irei dormir com a tua carta debaixo da almofada esta noite. A. ou C.S.” A Marilla esperava de forma pessimista mais problemas assim que Anne regressou à escola. Mas não houve nenhuns. Talvez Anne tivesse absorvido algum do espírito modelo de Minnie Andrews: pelo menos deuse muito bem com o senhor Phillips dali para a frente. Ela dedicou-se aos estudos de alma e coração, determinada a não se deixar ultrapassar pelo Gilbert Blythe em nenhuma matéria. A rivalidade entre ambos depressa se revelou; da parte de Gilbert era bem intencionado, mas era de recear que o não fosse da parte de Anne, que tinha uma tenacidade muito pouco admirável ao guardar ressentimentos. Os seus ódios eram tão intensos quanto os seus amores. Ela nunca teria admitido que rivalizava com o Gilbert nos trabalhos da escola, porque isso seria admitir a sua existência; mas a rivalidade existia e as honras flutuavam entre eles. Se numa altura Gilbert estava à frente da classe de ortografia, Anne com um aceno de tranças vermelhas, acabava por o ultrapassar. Numa manhã Gilbert tinha todas as contas certas e o seu nome foi escrito no quadro de honra; na manhã seguinte Anne, que tinha lutado duramente com os decimais toda a noite anterior, tirou-lhe o lugar. Num dia infeliz os seus nomes foram escritos juntos no quadro de honra. Era quase tão mau como um “prestem atenção”, e a irritação de Anne era tão evidente quanto a satisfação de Gilbert. Quando se faziam os exames escritos no fim de cada mês o suspense era terrível. No primeiro mês Gilbert teve três pontos de vantagem. No segundo, Anne ganhou-lhe por cinco. Mas o seu triunfo foi ofuscado pelo facto de Gilbert lhe ter dado uns sinceros parabéns à frente de todos os alunos. Teria sido muito mais satisfatório para ela se ele tivesse sentido a dor da derrota. O senhor Phillips talvez não fosse um bom professor, mas um aluno tão inflexivelmente determinado a aprender como Anne não tinha hipóteses de não progredir fosse qual fosse o professor. No fim do período tanto Gilbert como Anne foram promovidos à quinta classe e começaram a estudar os “ramos”, o que significava Latim, Geometria, Francês e Álgebra. Em Geometria Anne conheceu a derrota. “É uma matéria perfeitamente horrível Marilla,” refilou. “Tenho a certeza que nunca a irei compreender. Não tem qualquer amplitude para a imaginação. O senhor Phillips diz que eu sou a pior aluna que ele já teve na matéria. E o Gil- quer dizer, os outros são tão bons...É extremamente irritante, Marilla. Até a Diana percebe melhor que eu. Mas eu não me importo de ser pior do que a Diana. Apesar de nos cruzarmos como estranhas agora, eu ainda gosto dela com um afecto inextinguível. Fico muito triste quando penso nela. Mas realmente Marilla, não conseguimos ficar muito tempo tristes num mundo tão interessante, pois não?”

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CAPÍTULO XVIII Anne ao auxílio Todas as grandes coisas se conjugam com todas as coisas pequenas. Á primeira vista poderia parecer que a decisão de um certo primeiroministro canadiano de incluir a ilha do Príncipe Eduardo numa digressão política não teria muito a ver com a sorte de uma pequena Anne Shirley de Green Gables. Mas tinha. Foi em Janeiro que o Primeiro-ministro veio, para se dirigir aos seus leais eleitores e àqueles que não o tendo eleito também iriam estar presentes no grande encontro que teria lugar em Charlottetown. A maioria das pessoas de Avonlea era simpatizante do Primeiro-ministro; por isso quase todos os homens e uma boa parte das mulheres deslocaram-se as trinta milhas até à cidade. A senhora Rachel Lynde também tinha ido. A senhora Rachel era uma política fervorosa e não podia crer que tal encontro se pudesse dar sem a sua presença, apesar de ela pertencer ao outro partido. Por isso foi à cidade, e levou o seu marido - Thomas seria necessário para tomar conta do cavalo – e Marilla Cuthbert. Marilla por seu lado tinha um interesse pouco assumido pela política, e uma vez que achava que seria a sua única hipótese de ver um primeiro-ministro ao vivo, prontamente aceitou o convite, deixando Anne e Matthew encarregues da casa até ao seu regresso no dia seguinte. Assim, enquanto Marilla e a senhora Lynde se divertiam imensamente no comício, Anne e Matthew tinha a alegre cozinha de Green Gables por sua conta. Um lume agradável ardia dentro do fogão Waterloo, e cristais de gelo azulados brilhavam nas janelas. Matthew dormitava sobre um “Amigo do Lavrador”11 no sofá, enquanto Anne sentada à mesa estudava as suas lições com uma firme determinação, apesar de ir olhando para a prateleira do relógio onde estava pousado um livro que Jane Andrews lhe tinha emprestado. Jane tinha-lhe assegurado que era uma história arrepiante, e os dedos de Anne suplicavam por o ter na mão. Mas isso significava o triunfo de Gilbert Blythe pela manhã. Anne virou-lhe as costas e tentou imaginar que lá não estava. “Matthew, alguma vez estudou geometria quando andava na escola?” “Bem, não, não estudei.” Disse Matthew acordando de momento da sua soneca. “Que pena,” suspirou Anne, “porque se tivesse podia compreender-me. Não me pode compreender se nunca estudou geometria. Está a lançar uma nuvem sobre a minha vida toda. Sou tão burra a geometria, Matthew.” “Bem, não sei,” disse Matthew para a acalmar. “Eu acho que és muito esperta em algumas coisas. O senhor Phillips disse-me na semana passada que tu eras a aluna mais esperta da escola e que estavas a fazer rápidos progressos. ‘Rápidos progressos’ foram as suas palavras. Algumas pessoas dizem mal do Teddy Phillips, dizem que ele não é grande professor, mas eu acho que até é bom.” 11

Publicação tipo Borda d’Água

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Matthew teria achado boa qualquer pessoa que elogiasse Anne. “Eu tenho a certeza que seria melhor a geometria se ele não estivesse sempre a mudar as letras,” queixou-se Anne. “Eu aprendo a proposição de cór e depois ele desenha-a no quadro e põe outras letras diferentes das que estão no livro e eu baralho-me toda. Não acha que um professor não devia fazer estas coisas aos alunos? Agora estamos a estudar agricultura e já percebi porque é que as estradas são vermelhas. É um grande alívio. Será que a Marilla e a senhora Lynde se estão a divertir? A senhora Lynde diz que o Canadá está entregue aos bichos da maneira que estão a fazer as coisas em Ottawa e que isso é péssimo para os eleitores. Ela diz que se as mulheres pudessem votar nós depressa veríamos uma mudança positiva. Você é de que partido, Matthew?” “Conservador,” disse Matthew rapidamente. Votar nos conservadores era parte da religião de Matthew. “Então também sou conservadora,” disse Anne decidida. “Ainda bem, porque o Gil – porque alguns rapazes da escola são Trabalhistas. Eu acho que o senhor Phillips também é trabalhista porque o pai da Prissy Andrews é, e a Ruby Gillis diz que quando um homem faz a corte a uma mulher deve sempre concordar com a mãe da rapariga na religião e com o pai na política. É verdade Matthew?” “Bem, pois, não sei,” disse Matthew. “Alguma vez namorou, Matthew?” “Bem, pois não, acho que nunca o fiz,” disse Matthew, que de certeza nunca pensou em tal coisa em toda a sua existência. Anne reflectiu com o queixo apoiado nas mãos. “Deve ser bastante interessante, não acha, Matthew? A Ruby Gillis diz que quando crescer vai ter tantos pretendentes e que eles vão estar todos doidos por ela: mas acho que isso seria demasiado provocante. Eu preferia ter só um no seu juízo perfeito. Mas a Ruby Gillis sabe muita coisa sobre esses assuntos porque ela tem muitas irmãs mais velhas, e a senhora Lynde diz que elas são muito concorridas. O senhor Phillips vai ver a Prissy Andrews quase todas as noites. Ele diz que é para a ajudar com as lições mas a Miranda Sloane também está a estudar para Queen’s e eu acho que ela precisa muito mais de ajuda do que a Prissy porque é muito mais estúpida, mas ele nunca a vai ajudar ao serão. Há muitas coisas que eu não percebo muito bem no mundo, Matthew.” “Bem, eu também não sei se as compreendo,” respondeu Matthew. “Pois acho que devo terminar as minhas lições. Eu não me vou permitir abrir aquele livro que a Jane me emprestou até que acabe. Mas é uma tentação terrível, Matthew. Mesmo quando lhe volto as costas consigo vê-lo ali, a olhar para mim. A Jane diz que chorou como uma madalena por causa dele. Eu adoro um livro que me faça chorar. Mas eu acho que vou levar aquele livro para a sala de estar, tranco-o no armário e dou-lhe a chave. E você não ma pode dar, Matthew, até que eu termine a lição, mesmo que eu lhe implore de joelhos. É muito fácil dizer que se resiste à tentação, mas é muito mais fácil resistir-lhe se não tivermos a chave. E depois, vou a correr à cave buscar umas maçãs bravas, Matthew. Não gostava de uma maçã?” “Bem, não sei se gostava,” disse Matthew, que nunca tinha comido maçãs bravas na vida mas conhecia a fraqueza de Anne em relação a elas. No momento em que Anne emergia triunfante da cave com um prato cheio de maçãs ouviu-se o som de passos apressados no chão gelado da entrada, e no momento seguinte a porta da cozinha abriu-se e Diana Barry entrou de rompante, pálida e sem fôlego, com um xaile embrulhado à pressa na cabeça. Anne surpreendida, largou imediatamente o prato de maçãs e a vela que tinha na mão, e prato, vela e maçãs despenharam-se em conjunto pela escada abaixo, acabando por ser encontrados envoltos em cera derretida no dia seguinte por Marilla, que os apanhou e deu graças a Deus que a casa não tivesse ardido do telhado às fundações.

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“Mas o que é que se passa Diana?” gritou Anne. “A tua mãe reconsiderou por fim?” “Oh, Anne, vem depressa,” implorou Diana nervosa. “A Minnie May está tão doente – está com crupe. A Mary Joe é que disse – e o Pai e a Mãe estão fora e não há ninguém para ir buscar o médico. A Minnie May está muito mal e a Mary Joe não sabe o que fazer – e oh, Anne, estou tão assustada!” Matthew, sem dizer uma palavra, apanhou o chapéu e o casaco, passou por Diana e entrou na escuridão do pátio das traseiras. “Ele foi buscar a égua alazã para ir a Carmody buscar o médico,” disse Anne, apressando-se a pôr o gorro e o casaco. “Sei-o como se me tivesse dito. O Matthew e eu somos espíritos tão afins que consigo ler-lhe os pensamentos sem palavras.” “Eu não acredito que ele consiga encontrar o médico em Carmody,” soluçou Diana. “Eu sei que o Dr. Blair foi à cidade e acho que o Dr. Spencer também foi. A Mary Joe nunca tratou ninguém com crupe e a senhora Lynde não está. Oh, Anne!” “Não chores Di,” disse Anne. “Eu sei exactamente o que fazer com o crupe. Esqueces-te que a senhora Hammond teve três vezes gémeos. Quando se tem que tomar conta de três pares de gémeos ganha-se naturalmente muita experiência. Eles todos tiveram crupe com regularidade. Espera até eu ir buscar a garrafa de ipecaque12 – podes não ter na tua casa. Vá anda.” As duas meninas apressaram-se a sair de mãos dadas e correram através da Alameda dos Apaixonados e do campo gelado mais à frente, porque a neve era profunda demais para irem pelo caminho mais curto. Anne, apesar de estar com pena de Minnie May, estava muito mais sensível ao conteúdo romântico da situação e ao doce reencontro e partilha da aflição com a sua alma afim. A noite estava limpa e gelada, negra de sombras e prateada pelas encostas de neve: grandes estrelas brilhavam sobre os campos silenciosos, e aqui e ali os pinheiros de pontas escuras espetavam os ramos e o vento sussurrava passando por eles. Anne pensou que era realmente maravilhoso atravessar todo este mistério e deslumbramento com a sua amiga do peito, de quem tinha sido separada há tanto tempo. A Minnie May, de três anos de idade, estava realmente muito doente. Estava deitada no sofá da cozinha, febril e inquieta, enquanto a sua respiração ofegante se podia ouvir pela casa toda. A Mary Joe, uma rapariga francesa do riacho, a quem a senhora Barry tinha pedido que tomasse conta das crianças na sua ausência, estava impotente e assustada, incapaz de pensar no que fazer mesmo se soubesse o que havia a ser feito. Anne meteu mãos à obra com perícia e rapidez. “A Minnie May tem mesmo crupe; está muito mal, mas já vi pior. Primeiro temos que arranjar muita água quente. Pelo que vejo não há mais do que uma chávena na chaleira! Agora está cheia, e tu, Mary Joe, podes pôr lenha no fogão. Eu não te quero magoar os sentimentos, mas parece-me que podias ter pensado nisso se tivesses alguma imaginação. Agora eu vou despir a Minnie May e pô-la na cama, e tu tenta arranjar umas roupas macias de flanela, Diana. Vou-lhe já dar uma dose de ipecaque antes do resto.” A Minnie May não tomou o ipecaque com grande vontade, mas Anne não tinha cuidado de três pares de gémeos em vão. Fê-la engolir o ipecaque, não uma mas muitas vezes durante a longa noite em que as duas meninas trabalharam pacientemente para auxiliarem a Minnie May em sofrimento, e a Mary Joe, honestamente ansiosa por fazer o que pudesse, manteve o lume aceso e aqueceu água mais que suficiente para um hospital de bebés com crupe.

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Medicamento natural, à base da raiz de uma planta tropical

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Eram três da manhã quando Matthew chegou com o médico, porque tinha tido que ir até Spencervale. Mas a necessidade urgente de assistência tinha passado. Minnie May estava muito melhor e dormia a sono solto. “Eu estive quase a desesperar,” explicou Anne. “Ela estava cada vez pior, até ficar ainda mais doente que os gémeos Hammond, mesmo o último par. Eu cheguei a pensar que ela fosse morrer sufocada. Dei-lhe até à ultima gota de ipecaque daquela garrafa e quando chegou ao fim eu disse a mim mesma - não à Diana, nem à Mary Joe, porque eu não as queria perturbar ainda mais, mas disse para mim mesma só para me aliviar ‘Esta é a última esperança e temo que seja em vão’. Mas passados três minutos ela expeliu a expectoração e começou logo a melhorar. O senhor tem que imaginar o meu alívio, porque eu não consigo exprimi-lo em palavras.” “Sim, eu sei,” confirmou o doutor. Ele olhou para Anne como se também achasse dela coisas que não podiam ser expressas em palavras. Mais tarde, no entanto, ele exprimiu-as à senhora Barry e ao marido. “Aquela pequena ruiva que têm na quinta do Cuthbert é esperta como poucas. Eu posso dizer-lhes que ela salvou a vida àquela bebé, porque seria tarde demais na altura em que cheguei. Ela parece ter uma habilidade e presença de espírito admiráveis numa criança daquela idade. Nunca vi nada como os olhos dela quando me explicou o caso.” Anne tinha voltado para casa naquela manhã de Inverno linda e gelada, com os olhos pesados por falta de descanso, mas ainda assim falando sem parar para Matthew enquanto atravessavam o longo campo branco e passavam através do arco brilhante de gelo por baixo dos bordos da Alameda dos Apaixonados. “Oh, Matthew, não é uma manhã maravilhosa? O mundo parece ter sido imaginado por Deus para o seu deleite, não é? Aquelas árvores parecem poder ser varridas com um sopro – pouf! Estou tão contente por a senhora Hammond ter tido três pares de gémeos. Se ela não os tivesse tido eu nunca seria capaz de tratar da Minnie May. Estou muito arrependida por me ter chateado com a senhora Hammond por ter tido gémeos. Mas oh, Matthew, tenho tanto sono. Eu não consigo ir para a escola. Eu sei que não era capaz de manter os olhos abertos e responder. Mas eu odeio ter que ficar em casa, porque o Gil – quer dizer, os outros vão ficar à minha frente na classe, e é tão difícil ficar à frente de novo, apesar de ser mais satisfatório se for mais difícil, não acha?” “Bem, pois eu acho que vais conseguir,” disse Matthew olhando para o rosto pequeno e branco de Anne e para os traços escuros por debaixo dos seus olhos. “Tu tens que te ir já deitar e dormir um bom bocado. Eu faço as tarefas da casa.” Anne foi então para a cama e dormiu de forma tão profunda que já era bem meia tarde quando acordou e desceu para a cozinha onde Marilla, que já tinha chegado, estava sentada a fazer tricot. “Oh, viu o Primeiro-ministro?” exclamou Anne assim que a viu. “Como é que ele é, Marilla?” “Bem, pode-se dizer que não chegou a primeiro-ministro pela boa figura.” Disse Marilla. “Que nariz que o homem tem! Mas ele sabe falar. Tive orgulho de ser Conservadora. A Rachel Lynde, sendo Liberal, claro que não lhe achou grande graça. O teu almoço está no forno, Anne, e podes ir buscar um pouco de conserva de ameixa da despensa. Deves estar com fome. O Matthew esteve a contar-me sobre a noite passada. Devo dizer que foi uma sorte tu saberes o que fazer. Eu não faria a mínima ideia, porque nunca vi um caso de crupe na vida. Agora não vale a pena pores-te a falar antes de almoçares. Vejo pela tua cara que estás morta de vontade de falar, mas bem podes esperar um bocado.” Marilla tinha algo para dizer a Anne, mas não o disse logo, porque sabia que se o fizesse ela ficaria tão entusiasmada que já não se

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voltaria a lembrar de coisas tão mundanas como a fome ou o almoço. Só quando ela acabou o prato de conserva de ameixa é que Marilla disse: “A senhora Barry esteve aqui esta tarde, Anne. Ela queria falar contigo mas eu não te quis acordar. Ela diz que tu salvaste a vida da Minnie May e está muito arrependida por ter agido como agiu no que diz respeito ao licor de groselha. Ela diz que percebeu que tu não embebedaste a Diana de propósito e espera que tu a perdoes e que sejas amiga dela outra vez. Disse para tu lá ires esta tarde porque a Diana não pode sair, apanhou uma constipação ontem à noite. Agora, por amor de Deus, Anne, não vás a correr pelos ares.” O aviso não pareceu desnecessário, tão aérea e alegre ficou a expressão de Anne e a sua atitude quando se pôs em pé, o seu rosto irradiava com a chama do seu espírito. “Oh, Marilla, posso ir já agora, sem lavar a loiça? Eu lavo-a quando voltar, mas não me consigo concentrar em algo tão pouco romântico como lavar a loiça neste momento arrepiante.” “Sim, sim, podes ir,” disse Marilla com indulgência. “Anne Shirley, estás maluca? Volta imediatamente para dentro e veste um agasalho. Estou a falar para o boneco. Foi sem gorro nem xaile. Olhem só para ela a correr pelo pomar com o cabelo a voar. Vai ter muita sorte se não apanhar uma constipação de morte.” Anne voltou para casa a dançar no anoitecer púrpura de Inverno, por entre os campos cheios de neve. Lá longe para sudoeste brilhava em tons pérola uma estrela no céu de um dourado pálido e rosa transparente, sobre espaços brancos de neve e negros recortes de pinhais. O tilintar dos guizos dos trenós nos montes ouvia-se como o rimar de elfos através do ar gelado, mas a sua música não era mais doce do que a música no coração de Anne e nos seus lábios. “Tem perante si uma pessoa perfeitamente feliz, Marilla,” anunciou ao entrar. “Estou perfeitamente feliz, sim - apesar do meu cabelo ruivo. Neste momento tenho a alma acima do cabelo ruivo. A senhora Barry beijou-me e chorou e disse que estava tão arrependida e nunca me poderia compensar. Senti-me tão embaraçada, Marilla, mas disse tão educadamente como pude ’Não guardo ressentimentos em relação a si senhora Barry. Eu asseguro-lhe de uma vez por todas que não quis embriagar a Diana e de hora em diante cobrirei o passado com o manto do esquecimento’. Foi uma forma muito digna de falar, não foi, Marilla? Senti-me como se tivesse posto a alma da senhora Barry em brasa. Eu e a Diana passámos uma linda tarde. A Diana mostrou-me um novo ponto de crochet que a tia dela de Carmody lhe ensinou. Nem uma pessoa em Avonlea o conhece, e nós fizemos um voto solene de nunca o ensinarmos a ninguém. A Diana deu-me um lindo cartão com uma coroa de rosas e um verso de poesia: ‘Se tu me amas como eu te amo a ti Só a morte nos pode separar’ E é verdade, Marilla. Vamos pedir ao senhor Phillips que nos deixe sentar juntas outra vez na escola, e a Gertie Pye pode ir para o lado da Minnie Andrews. Tivémos um lanche muito elegante. A senhora Barry usou a melhor porcelana, como se eu fosse uma visita de verdade. Não imagina os arrepios que me deu. Nunca ninguém tinha usado a melhor porcelana por minha causa. E comemos bolo de frutas, e bolo de libra, e donnuts e dois tipos de conservas, Marilla. E a senhora Barry perguntou-me como é que eu tomava o meu chá e disse ‘Pai, podia passar os biscoitos à Anne?’ Deve ser maravilhoso ser crescido, Marilla e quando somos tratados como se fossemos é tão bom.” “Não sei,” respondeu Marilla com um suspiro. “Bem, seja lá como for, quando eu for crescida,” disse Anne decidida, “vou sempre falar com as meninas como se elas também fossem, e nunca me vou rir quando elas usarem palavras complicadas. Eu sei por experiência própria que isso magoa os sentimentos de uma pessoa. Depois do chá, eu e a Diana fizemos caramelo. O caramelo não ficou

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muito bom, penso que foi porque eu e a Diana nunca tínhamos feito. A Diana deixou-me bater a massa enquanto ela untava as formas e eu esqueci-me e deixei-o queimar; e depois deixamo-lo a arrefecer e o gato passou por cima de uma das formas e tivemos que o deitar fora. Mas foi muito divertido cozinhá-lo. Quando me vim embora a senhora Barry pediu-me para vir tantas vezes quantas quisesse, e a Diana ficou à janela a mandar-me beijos enquanto eu descia a Alameda dos Apaixonados. Garanto-lhe Marilla que me apetece imenso rezar esta noite e que vou pensar numa oração nova em folha em honra da ocasião.” CAPÍTULO XIX Um concerto, uma catástrofe e uma confissão “Marilla, posso ir ter com a Diana só por um minuto?” perguntou Anne, vinda sem fôlego do quarto do sótão num fim de tarde de Fevereiro. “Não vejo porque tens que ir cirandar depois do escurecer,” disse Marilla. “Tu e a Diana vieram juntas da escola e ficaram na neve durante meia hora ou mais, sem pararem de falar, bla bla bla, o tempo todo. Por isso não vejo porque é que tens que ir falar com ela outra vez.” “Mas ela quer falar comigo,” pediu Anne. “Ela tem uma coisa muito importante para me dizer.” “Como é que tu sabes?” “Porque ela fez-me os sinais da janela. Nós inventamos uma maneira de fazer sinais com as velas e cartões. Colocamos a vela no parapeito da janela e fazemos sinais passando o cartão à frente da vela. Conforme o número de sinais assim é a coisa que queremos dizer. A ideia foi minha, Marilla.” “Pois concerteza que foi,” disse Marilla enfaticamente. “E a seguir vão puxar fogo às cortinas com os vossos sinais disparatados.” “Oh, nós somos muito cuidadosas, Marilla. E é tão interessante. Dois sinais querem dizer ‘estás aí?’, três querem dizer ‘sim’ e quatro ‘não’. Cinco querem dizer ‘vem cá depressa, eu tenho uma coisa importante para te dizer’. A Diana acabou de me fazer cinco sinais, e eu estou mesmo ansiosa por saber o que é.” “Pois não precisas de estar nessa ansiedade,” disse Marilla sarcástica. “Podes lá ir, mas vê se estás de volta em dez minutos, lembra-te disso.” Anne lembrou-se e estava de volta no tempo estipulado, apesar de nenhum mortal poder adivinhar o quanto lhe custou limitar a discussão da comunicação tão importante de Diana aos dez minutos impostos. Mas ao menos fez bom uso deles. “Oh, Marilla, o que é que acha? Você sabe que amanhã são os anos da Diana. Pois a mãe dela perguntou se eu podia ir lá para casa depois das aulas e passar a noite com ela. E os primos dela vêm de Newbridge num grande trenó para o concerto do clube de debate que vai haver no hall amanhã à noite. E eles vão-me levar a mim e à Diana ao baile, se você me deixar claro. Vai deixar, não vai, Marilla? Oh, estou tão entusiasmada!” “Podes-te acalmar então, porque não vais. Estás melhor em casa na tua cama, e quanto ao concerto do clube é um disparate e as rapariguinhas não deviam frequentar esses sítios de qualquer forma.” “Tenho a certeza que o Clube de Debate é um assunto muito respeitável,” implorou Anne. “Não estou a dizer que não seja. Mas tu não vais começar a ir a concertos e a ficar a pé até altas horas da noite. Não é coisa para crianças. Até fico surpreendida por a senhora Barry deixar ir a Diana.” “Mas é uma ocasião muito especial,” lamentou-se Anne, à beira das lágrimas. “A Diana só tem um aniversário no ano. Não é como se os aniversários fossem coisas muito comuns, Marilla. A Prissy Andrews vai recitar ‘O recolher obrigatório não deve soar esta noite’. É uma peça

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de tanta moral, Marilla, tenho a certeza que me fará imenso bem ouvila. E o coro vai cantar quatro lindas baladas que são quase como hinos. E, oh, Marilla, o pastor vai participar; sim, ele vai mesmo fazer uma leitura. Vai ser quase a mesma coisa que um sermão. Por favor, não posso ir, Marilla?” “Ouviste o que eu disse não ouviste, Anne? Descalça as botas e vai-te deitar. Já passa das oito.” “Há só mais uma coisa, Marilla,” disse Anne, com o ar de quem estava a utilizar o último argumento. “A senhora Barry disse à Diana que nós podíamos dormir no quarto de hóspedes. Pense só que honra, a sua pequena Anne a dormir no quarto de hóspedes.” “É uma honra que vais ter que declinar. Vai para a cama Anne, e não quero ouvir mais falar desse assunto.” Quando a Anne, com as lágrimas a rolarem pela cara abaixo, subiu as escadas com tristeza, Matthew que aparentemente tinha dormido profundamente durante toda a conversa abriu os olhos e disse decidido: “Pois bem, Marilla, acho que devias deixar ir a criança.” “Mas eu não acho,” respondeu Marilla. “Quem está a educar esta criança, Matthew, tu ou eu?” “Bem, pois és tu,” admitiu Matthew. “Então não interfiras.” “Bem, pois não estou a interferir. Não é interferir quando damos a nossa opinião. E a minha opinião é que deves deixar a Anne ir. “ “Tu ias achar que eu devia deixar a Anne ir à lua se ela se lembrasse disso, não duvido,” foi a resposta seca de Marilla. “Eu podia deixá-la passar a noite com a Diana, se fosse só isso. Mas eu não concordo com o concerto. Ela pode apanhar uma constipação, e ficar com a cabeça cheia de disparates e excitação. Ia perturbá-la uma semana inteira. Eu compreendo o feitio daquela criança e o que é bom para ela melhor do que tu, Matthew.” “Eu acho que devias deixar a Anne ir,” repetiu Matthew com firmeza. A troca de ideias não era o seu forte, mas a firmeza de opiniões era-o com certeza. A Marilla fez um gesto de impotência e refugiou-se no silêncio. Na manhã seguinte, quando Anne estava a lavar os pratos do pequeno-almoço na despensa, Matthew passou por Marilla a caminho do celeiro e disse de novo: “Acho que devias deixar a Anne ir, Marilla.” Por um momento, Marilla achou que as coisas deviam ficar como estavam. Depois, vergou-se ao inevitável e disse secamente: “Muito bem, ela pode ir, uma vez que só assim ficas satisfeito.” Anne saiu a voar da despensa, com o pano de lavar a loiça pingando nas mãos. “Oh, Marilla, Marilla, diga essas palavras abençoadas outra vez.” “Acho que é suficiente dizê-las uma vez. Isto é obra do Matthew, e lavo daí as minhas mãos. Se apanhares uma pneumonia por dormires numa cama estranha, ou por saíres da sala quente a meio da noite não me culpes a mim, culpa o Matthew. Anne Shirley, estás a pingar água gordurosa no chão da minha cozinha. Nunca vi uma criança tão descuidada.” “Oh, eu sei que sou uma grande cruz para si, Marilla,” disse Anne arrependida. “Eu faço tantas asneiras. Mas pense só em todas as asneiras que eu não faço, apesar de poder. Vou apanhar areia e esfregar as panelas antes de ir para a escola. Oh, Marilla, o meu coração estava tão desejoso de ir ao concerto. Eu nunca fui a um concerto na vida e quando as outras raparigas falam sobre eles na escola eu sinto-me tão de fora. Você não sabia que eu me sentia assim, mas o Matthew sabia. O Matthew compreende-me e é tão bom ser compreendida.” Anne estava demasiado entusiasmada para tomar atenção às lições da escola nessa manhã. O Gilbert Blythe ganhou-lhe nas provas de ortografia, e deixou-a muito para trás em aritmética. A humilhação

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consequente de Anne foi menor do que poderia ter sido, por causa do concerto e do quarto de hóspedes. Anne e Diana falaram tanto do assunto durante todo o dia que com um professor mais severo do que o Sr. Phillips teriam certamente sido castigadas. Anne sentia que não teria suportado se não pudesse ir ao concerto, porque nesse dia não se falou de mais nada na escola. O Clube de Debate de Avonlea, que se reunia todas as noites durante o Inverno, tinha tido algumas pequenas apresentações gratuitas, mas este seria um grande espectáculo com um bilhete de dez cêntimos a favor da Biblioteca. Os jovens de Avonlea vinham praticando há semanas, e todos os alunos da escola estavam particularmente interessados nele porque as suas irmãs e irmãos mais velhos iam participar. Todas as crianças da escola com mais de nove anos esperavam ir, excepto a Carrie Sloane cujo pai partilhava das ideias de Marilla relativamente à ida de meninas pequenas a concertos nocturnos. A Carrie Sloane toda a tarde chorou em cima da gramática, enquanto sentia que com tantos dissabores não valia a pena viver. Para Anne, a verdadeira excitação começou com o toque de saída e foi crescendo até que desembocou no êxtase no próprio concerto. Tiveram um chá ‘perfeitamente elegante’, e depois foram vestir-se para o quarto de Diana lá em cima. Diana arranjou o cabelo de Anne ao estilo pompadour, e Anne atou as fitas do cabelo de Diana com uns laços especiais que ela conhecia, e experimentaram pelo menos meia dúzia de maneiras diferentes de arranjar o cabelo que ficava solto atrás. Por fim ficaram prontas, com as bochechas vermelhas e os olhos brilhantes de excitação. Na verdade, a Anne não podia evitar um pequeno desgosto quando comparava o seu abafo preto e sem feitios, de mangas apertadas com a capa debruada a pele e casaquinha da Diana. Mas ela lembrou-se que tinha imaginação e que a podia usar. Então os primos de Diana, os Murrays de Newbridge chegaram: todos eles se apertaram no trenó, entre as roupas e os abafos peludos. Anne sonhou durante todo o caminho para o recinto, enquanto deslizava pelas estradas macias como cetim e o som da neve crepitando debaixo das lâminas do trenó. Havia um magnífico pôr-do-sol, e a água do Golfo de St. Lawrence parecia brilhar no esplendor como uma enorme taça de pérolas e safiras recortada a vinho e fogo. Gizos de trenós e risos distantes que lembravam o riso de elfos dos bosques, ecoavam por todo o lado. “Oh, Diana,” inspirou Anne, apertando a mão enluvada de Diana por baixo da capa de pele, “não é como um sonho lindo? Estou realmente igual? Sinto-me tão diferente que se deve ver na minha cara”. “Tu estás muito bonita,” disse Diana, que como tinha acabado de receber um elogio de um dos seus primos achou que o devia passar. “Tens o rosto radiante.” O programa dessa noite era uma série de emoções pelo menos para um ouvinte da plateia, e como Anne assegurou a Diana, cada emoção seguinte era mais forte do que a anterior. Quando a Prissy Andrews, vestida de seda cor-de-rosa com um colar de pérolas e cravos verdadeiros no cabelo – dizia-se que o mestre os tinha mandado vir da cidade para ela – “subiu a estreita escada, escura sem um único raio de luz”, Anne tremeu em empatia; quando o coro cantou ‘Para além das gentis margaridas’ Anne pôs os olhos no tecto como se estivesse pintado de anjos; quando o Sam Sloane explicou e ilustrou ‘Como o Sockery preparou uma galinha’ Anne riu até que as pessoas à sua volta se riram também, mais para a acompanhar do que pela escolha da peça, que era estranha até para os padrões de Avonlea; e quando o senhor Phillips declamou sobre o corpo de César num tom que destroçou corações – olhando para Prissy Andrews no final de cada frase - Anne sentiu que se poderia levantar um motim naquele instante se apenas um cidadão romano tomasse a iniciativa.

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Apenas uma parte do espectáculo não a cativou. Quando o Gilbert Blythe declamou ‘Bingen on the Rhine’ Anne apanhou o livro de Rhoda Murrays e leu-o até ele ter acabado, altura em que se sentou rígida e estática enquanto a Diana batia as palmas até lhe arderem as mãos. Era onze horas quando voltaram a casa, sossegadas mas com o imenso prazer de falar de tudo outra vez ainda para chegar. Todos pareciam dormir e a casa estava escura e silenciosa. Anne e Diana caminharam em bicos de pés até à sala de visitas, uma sala comprida e estreita que dava entrada para o quarto de visitas. Estava agradavelmente morna e ligeiramente iluminada por um lume ateado na lareira. “Vamos despir-nos aqui,” disse Diana. “Está tão agradável e quente.” “Não foi uma noite deliciosa?” suspirou Anne encantada. “Deve ser esplêndido subir ao palco e recitar. Achas que nós alguma vez o vamos fazer, Diana?” “Sim, claro, um dia mais tarde. Eles estão sempre a pedir aos alunos mais velhos que recitem. O Gilbert Blythe fá-lo muitas vezes e ele só é dois anos mais velho do que nós. Oh, Anne, como podes ter fingido que não o ouviste? Quando ele chegou à parte em que dizia: ‘Existe outra, não uma irmã’ ele olhou directamente para ti.” “Diana,” disse Anne com dignidade, ”tu és a minha amiga do peito, mas não te posso permitir que me fales dessa pessoa. Estás pronta para te deitar? Vamos fazer uma corrida e ver quem chega primeiro à cama.” A sugestão agradou a Diana. As duas figuras vestidas de branco correram através da comprida divisão, entraram no quarto de hóspedes e atiraram-se para a cama ao mesmo tempo. E então algo se moveu debaixo delas, houve um soluço e um grito e alguém falou numa voz abafada: “Santo Deus!” Anne e Diana não chegaram a perceber como tinham saído da cama e do quarto de hóspedes. Elas só sabiam que depois de uma corrida frenética deram por elas a tremer e em bicos de pés no primeiro andar. “Oh, o que foi isto - quem era?” sussurrou Anne, com os dentes a bater de frio e de medo. “Era a tia Josephine,” disse Diana, a gaguejar de riso. “Oh, Anne, era a tia Josephine, seja como for que lá tenha ido parar. Oh, e eu sei que ela vai ficar furiosa. É terrível, é mesmo terrível, mas já viste que coisa mais engraçada, Anne?” “Quem é a tua tia Josephine?” “Ela é tia do meu pai e vive em Charlottetown. É muito velha – tem setenta e qualquer coisa - e eu acho que nunca foi uma menina. Estávamos à espera de uma visita dela, mas não tão cedo. Ela é muito fina e educada, e vai-nos ralhar muito por causa disto. Bem, vamos ter que dormir com a Minnie May, e tu não imaginas como ela dá pontapés de noite.” A senhora Josephine Barry não veio tomar o pequeno-almoço na manhã seguinte. A senhora Barry sorria abertamente às duas meninas. “Vocês divertiram-se ontem à noite? Eu tentei ficar acordada até que vocês regressassem porque lhes queria dizer que a tia Josephine tinha chegado e que teriam que dormir lá em cima, mas estava tão cansada que adormeci. Espero que não tenham ido perturbar a tia, Diana.” A Diana conservou um silêncio discreto, mas ela e Anne trocaram sorrisos furtivos de culpa divertida através da mesa. Anne apressou-se a ir para casa depois do pequeno-almoço, e assim ficou tranquilamente ignorando a confusão que se instalara na casa dos Barry até quase ao fim da tarde, quando foi a casa da senhora Lynde levar um recado de Marilla. “Então, tu e Diana quase mataram a pobre senhora Barry de susto ontem à noite?” disse a senhora Lynde com severidade mas com um piscar de olho. “A senhora Barry esteve aqui há uns minutos a caminho de Carmody. Está muito arreliada com o que se passou. A tia estava com uma disposição terrível quando se levantou esta manhã, e o feitio da

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Josephine Barry não é para brincadeiras. Ela nem queria falar com a Diana.” “Mas a culpa não foi da Diana,” disse Anne arreliada. “Foi minha. Eu é que sugeri que fizéssemos uma corrida até à cama.” “Eu sabia!” disse a senhora Lynde contente por ter adivinhado. “Eu sabia que a ideia tinha vindo da tua cabeça. Bem, arranjaste um lindo sarilho, foi o que foi. A velha senhora Barry tinha vindo cá passar um mês, mas agora diz que não fica nem mais um dia e que se vai embora amanhã. Ela teria ido hoje se eles a tivessem levado. Ela tinha prometido pagar umas lições de música à Diana, mas agora não quer fazer nada por aquela maria-rapaz. Oh, acho que devem ter tido todos uma linda manhã. A senhora Barry deve estar envergonhadíssima. A velha senhora Barry é rica e eles gostavam de estar nas suas boas graças. A senhora Barry não me disse isso, mas eu sou boa a avaliar as pessoas, é o que é.” “Sou uma rapariga tão azarada,” lamentou-se Anne. “Estou sempre metida em sarilhos, e a meter os meus melhores amigos – pessoas por quem eu daria tudo na vida - em sarilhos também. Sabe dizer-me porquê, senhora Lynde?” “É porque és desmiolada e impulsiva, menina, é isso. Tu nunca paras para pensar – seja o que for que te vem à cabeça fazer ou dizer tu fazes ou dizes sem um momento de reflexão.” “Oh, mas isso é o melhor,” protestou Anne. ”Ocorre-nos qualquer coisa, tão excitante, e temos que a fazer. Se pararmos para pensar estragamos tudo. Nunca se sentiu assim, senhora Lynde?” Não, a senhora Lynde nunca se sentira assim. Acenou negativamente com a cabeça. “Tens que aprender a pensar um pouco, Anne, é o que é. O provérbio que precisas de ter em mente é ‘olha antes que tropeces’, especialmente em quartos de hóspedes.” A senhora Lynde riu-se confortavelmente da sua piada, mas Anne permaneceu séria. Ela não viu nada de engraçado na situação, que aos seus olhos parecia muito grave. Quando deixou a casa da senhora Lynde, dirigiu-se para a Orchard’s Slope. A Diana veio ter com ela à porta da cozinha. “A tua tia Josephine ficou muito zangada, não foi?” murmurou Anne. “Sim,” respondeu Diana, retendo um risinho e deitando um olhar apreensivo sobre o ombro à porta do quarto de hóspedes. “Ela estava doida de fúria. Oh, como ela ralhou. Disse que eu era a menina mais mal comportada que ela já tinha visto, e que os meus pais deviam ter vergonha da forma como me educaram. Ela diz que não fica cá, e eu não me importo nada. Mas o pai e a mãe importam-se.” “Porque é que não lhes disseste que a culpa era minha?” perguntou Anne. “Achas que ia fazer isso?” perguntou Diana com um olhar magoado. “Não sou queixinhas, Anne, e além disso tive tanta culpa como tu.” “Pois vou dizer-lho eu mesma.” Disse Anne resoluta. Diana olhou abismada. “Anne Shirley, não! Ela vai-te comer viva!” “Não me assustes mais do que eu já estou,” implorou Anne. “É como meter-me na cova do leão. Mas eu tenho que o fazer, Diana. A culpa foi minha e eu tenho que confessar. Felizmente tenho prática.” “Bem, ela está no quarto.” Disse Diana. “Tu podes lá ir, se quiseres. Eu não me atrevia. E não acredito que vá resolver nada.” Foi com este encorajamento que Anne se dirigiu ao leão na caverna, ou seja, andou resoluta até à porta da sala de estar e bateu levemente. Um “entre” aguçado fez-se ouvir. A senhora Josephine Barry, magra, rígida e muito arranjada estava a tricotar ao pé da lareira, com a raiva por apaziguar, olhando por detrás de uns óculos de aros dourados. Virou-se na cadeira, esperando

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ver a Diana e encontrou uma rapariga pálida em cujos olhos grandes se adivinhava uma mistura de coragem desesperada e terror. “Quem és tu?” perguntou a senhora Josephine Barry sem cerimónias. “Eu sou a Anne de Green Gables,” disse a pequena visitante tremendo e apertando as mãos com o seu gesto característico, “e vim confessar, se não se importar.” “Confessar o quê?” “Que a culpa foi minha, de saltar para a cama ontem à noite. Eu é que sugeri. A Diana nunca teria pensado em tal coisa, tenho a certeza. A Diana é uma menina muito educada, senhora Barry. Por isso pode ver como é injusto culpá-la.” “Oh, posso ver? Eu acho que a Diana também participou nos saltos, pelo menos. Um comportamento desses numa casa respeitável!” “Mas nós estávamos a brincar,” persistiu Anne. “Eu acho que nos devia perdoar, Senhora Barry, agora que eu pedi desculpa. E de qualquer forma, devia perdoar a Diana e deixá-la ter as suas lições de música. A Diana estava tão contente por ir ter lições de música, e eu sei muito bem como é estar contente por uma coisa e afinal não a ter. Se tiver que se zangar com alguém, por favor zangue-se comigo. Eu estou tão habituada desde pequena a que as pessoas se zanguem comigo que posso suportar isto muito melhor do que a Diana.” Muitas das faíscas tinham desaparecido dos olhos da velha senhora nesta altura, e foram substituídas por um brilho de interesse divertido. Mas ela ainda disse severamente: “Não acho que seja desculpa dizerem que só estavam a brincar. As meninas nunca se dedicavam a essas brincadeiras quando eu era nova. Tu não sabes como é ser acordada de um sono profundo depois de uma viagem longa e árdua, por duas raparigas pesadas que se atiram para cima de ti.” “Eu não sei, mas posso imaginar,” disse Anne com prontidão. “Tenho a certeza que deve ter sido muito perturbador. Mas depois, também há o nosso lado. A senhora tem imaginação, senhora Barry? Se tem, ponha-se no nosso lugar. Nós não sabíamos que havia uma pessoa deitada na cama e a senhora pregou-nos um susto de morte. Foi simplesmente horrível o que sentimos. E não pudémos dormir no quarto de hóspedes depois de nos ter sido prometido. Eu suponho que esteja habituada a dormir em quartos de hóspedes. Mas imagine que era uma pequena órfã que nunca tinha tido tal honra.” Todas as faíscas tinham desaparecido nesta altura. A senhora Barry chegou a rir, um som que fez com que Diana – que esperava numa ansiedade muda – desse um grande suspiro de alívio. “Tenho receio que a minha imaginação esteja um pouco enferrujada – há tanto tempo que não a uso,” disse. “Atrevo-me a dizer que o teu pedido de compreensão é tão forte como o meu. Depende tudo da forma como olhamos para as coisas. Senta-te aqui e conta-me coisas de ti.” “Tenho muita pena, mas não posso,” disse Anne com firmeza. “Eu gostaria imenso, porque você me parece uma senhora interessante, e até talvez seja um espírito afim apesar de não o parecer. Mas é meu dever ir para casa ter com a menina Marilla Cuthbert. A menina Marilla Cuthbert é uma senhora muito boa, que ficou comigo para me educar devidamente. Ela está a fazer o melhor que pode, mas é um trabalho desencorajador. A senhora não a pode culpar por eu ter saltado na cama. Mas antes de ir gostava que me dissesse se perdoa de facto a Diana e se fica como tinha pensado em Avonlea.” “Eu acho que talvez fique se tu vieres cá falar comigo ocasionalmente,” disse a senhora Barry. Nessa noite, a senhora Barry deu à Diana uma pulseira de prata e disse aos membros mais velhos da família que tinha voltado a desfazer as malas.

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“Decidi-me a ficar só para ficar a conhecer melhor aquela miúda Anne,” disse com franqueza. “Ela diverte-me, e na minha idade uma pessoa divertida é uma raridade.” O único comentário de Marilla quando ouviu a história foi - ”Eu bem te disse”. Foi dirigido a Matthew. A senhora Barry ficou, e foi uma hóspede mais agradável que o habitual, porque a Anne mantinha-a de bom humor. Tornaram-se grandes amigas. Quando a senhora Barry se foi embora disse: “Lembra-te miúda Anne, quando vieres à cidade deves vir visitar-me e eu vou-te pôr a dormir no melhor quarto de hóspedes que tiver.” “A senhora Barry afinal era um espírito afim,” confidenciou Anne a Marilla. “Não o diríamos ao olhar para ela, mas é. Não cheguei logo a essa conclusão, como no caso de Matthew, mas depois de um tempo tornase evidente. Os espíritos afins não são tão escassos como eu comecei por pensar. É esplendido descobrir que há assim tantos no mundo.” CAPÍTULO XX Uma boa imaginação dá mau resultado A Primavera chegara mais uma vez a Green Gables – uma linda e caprichosa Primavera canadiana, arrastando-se por Abril e Maio numa sucessão de dias doces, frescos e novos, com pores-do-sol rosados e milagres de ressurreição e crescimento. Os aceres da Alameda dos Apaixonados tinham rebentos vermelhos e os pequenos fetos encaracolados despontavam à volta da bolha da Dríade. Lá em cima no areal, por detrás da casa do senhor Silas Sloane, as flores de Maio floresciam, como estrelas rosas e brancas debaixo das folhas castanhas. Todas as raparigas e rapazes da escola passaram uma tarde dourada apanhando-as, chegando a casa perto do anoitecer com os braços e os cestos cheios de despojos primaveris. “Tenho tanta pena das pessoas que vivem em sítios onde não há flores de Maio,” disse Anne. “A Diana diz que talvez tenham algumas melhores, mas não pode haver nada melhor que flores de Maio, não acha Marilla? E a Diana diz que como as pessoas não sabem como são, não sentem a falta delas. Mas eu acho que isso é o mais triste de tudo. Acho que seria trágico Marilla, não saber como são as flores de Maio e não sentir a falta delas. Sabe o que eu acho que são as flores de Maio, Marilla? Eu acho que devem ser as almas das flores que morreram no ano passado e este é o céu delas. Mas nós hoje divertimo-nos imenso, Marilla. Comemos o almoço num declive cheio de musgo ao pé de um poço antigo – um sítio tão romântico. O Charlie Sloane desafiou o Arty Gillis para saltar por cima dele e o Arty saltou porque não ia deixar passar o desafio. Ninguém deixaria na escola. Está muito na moda fazer desafios. O senhor Phillips deu todas as flores de Maio que apanhou à Prissy Andrews e eu ouvi-o dizer ‘flores para uma flor’. Ele tirou isso de um livro, eu sei; mas demonstra que ele tem alguma imaginação. A mim também me ofereceram flores de Maio, mas eu não as aceitei. Não posso dizer o nome da pessoa que mas ofereceu porque eu jurei que nunca mais o pronunciaria. Nós fizemos coroas de flores de Maio e pusemo-las nos chapéus, e quando se fizeram horas de regressar a casa nós marchámos em fila a dois e dois com os nossos ramos e coroas cantando ‘A minha casa no monte’. Oh, foi tão arrepiante, Marilla. Toda a família do senhor Silas Sloane veio cá fora ver-nos e toda a gente que nos viu na estrada parou e ficou a olhar para nós. Fizemos sensação!” “Não me admiro! Tantas palermices!” foi a resposta de Marilla. Depois das flores de Maio vieram as violetas, e o Vale Violeta ficou púrpura com elas. Anne atravessou-o no caminho da escola com passos reverentes e olhos de adoração, como se estivesse sob solo sagrado.

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“De certa forma,” disse a Diana,” quando vou por aqui não me interessa se Gil- se quem quer que seja me passa à frente na escola ou não. Mas quando estou na escola é muito diferente e eu preocupo-me tanto como antes. Há muitas Annes diferentes em mim. Às vezes penso que é por isso que sou uma pessoa tão problemática. Se eu fosse só uma Anne seria muito mais confortável, mas não teria metade do interesse.” Num fim de tarde de Junho, quando os pomares estavam floridos de rosa outra vez, quando as rãs cantavam doces como prata nos charcos par além do Lago das Águas Brilhantes e o ar estava cheio do sabor dos campos de trevo e dos pinheiros balsâmicos, Anne estava sentada na janela do sótão. Tinha estado a estudar as lições, mas tinha ficado muito escuro para ver o livro pelo que ela se tinha afundado em devaneios, olhando através da Rainha da Neve, mais uma vez repleta de tufos de flores. Em todos os aspectos essenciais, o pequeno quarto do sótão não tinha mudado. As paredes eram brancas, a almofada igualmente dura, as cadeiras tão rígidas e amarelas como sempre. No entanto, todo o caracter da divisão estava alterado. Estava cheio de uma personalidade nova, pulsante e vital que parecia repassá-lo e ser independente dos livros da escola e dos vestidos e fitas, até mesmo do jarro azul rachado cheio de flores de macieira que estava em cima da mesa. Era como se todos os sonhos, nocturnos e diurnos, da sua vívida ocupante tivessem tomado uma forma visível apesar de etérea, e tivessem coberto o quarto vazio com tecidos de cenário de arco-íris e luar. Nesta altura, Marilla entrou discretamente com alguns aventais de Anne cuidadosamente passados a ferro. Pendurou-os de uma cadeira e sentouse com um breve suspiro. Tinha tido mais uma das suas dores de cabeça naquela tarde, e apesar da dor já ter passado ela sentia-se fraca e encolhida, como costumava dizer. Anne olhou para ela com olhos húmidos de pena. “Eu gostava realmente de poder ter as dores de cabeça no seu lugar, Marilla. Tê-las-ia suportado com alegria por si.” “Acho que fizeste a tua parte tratando do trabalho e deixando-me a descansar,” disse Marilla. “Pareces ter feito tudo bastante bem, e fizeste menos asneiras que de costume. Claro que não era mesmo necessário engomar os lenços do Matthew... E a maior parte das pessoas quando põem uma tarte no forno para aquecer tiram-na quando está quente e não a deixam ficar lá até estar reduzida a carvão. Mas essa não é evidentemente a tua forma de fazer as coisas.” As dores de cabeça deixavam sempre a Marilla mais sarcástica. “Oh, desculpe,” disse Anne arrependida. “Eu nunca mais me lembrei da tarte desde que a meti no forno até agora, apesar de ter sentido instintivamente que faltava qualquer coisa na mesa do jantar. Eu estava firmemente determinada, quando me deixou encarregue das coisas esta manhã, a não imaginar nada, a deixar os meus pensamentos só para os factos. Saí-me muito bem até que pus a tarte no forno, e então tomou conta de mim uma tentação irresistível de imaginar que era uma princesa encantada fechada numa torre, e que um príncipe vinha em meu auxílio na sua montada negra como carvão. Foi por isso que me esqueci da tarte. Eu não me lembro de ter engomado os lenços. Durante todo o tempo que estive a passar a ferro tentei imaginar um nome para uma nova ilha que eu e a Diana descobrimos no regato. É o sítio mais deslumbrante, Marilla. Há dois bordos lá no meio, e o riacho corre à volta dela. Por fim lembrei-me que seria esplêndido chamar-lhe Ilha Vitória porque a descobrimos no dia do aniversário da rainha. Tanto eu como a Diana somos súbditas leais. Mas desculpe pela tarte e pelos lenços. Eu queria ser extra-boa hoje porque é um aniversário. Sabe o que aconteceu neste dia do ano passado, Marilla?” “Não, não me lembro de nada de especial.” “Oh, Marilla, foi o dia em que vim para Green Gables. Eu nunca o esquecerei. Foi o ponto de viragem na minha vida. Claro que não lhes

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pareceria tão importante a vocês. Estou cá há um ano e tenho sido tão feliz. Claro que tive os meus aborrecimentos, mas podemos ultrapassar os aborrecimentos. Está arrependida de ter ficado comigo, Marilla?” “Não, não posso dizer que esteja arrependida,” disse Marilla, que pensava muitas vezes como tinha vivido antes de Anne vir para Green Gables, “não estou exactamente arrependida. Mas se terminaste as tuas lições quero que vás a casa da senhora Barry pedir-lhe se me empresta o molde do avental da Diana.” “Oh – está – está tão escuro,” lamentou-se Anne. “Muito escuro? Mas se acabou de se pôr o sol. E sabe Deus quantas vezes lá foste de noite.” “Eu vou lá amanhã de manhã,” disse Anne ansiosa. “Eu levanto-me ao nascer do sol e vou lá, Marilla.” “Mas o que é que se te meteu na cabeça agora, Anne Shirley? Eu quero o molde para começar a cortar o teu avental novo hoje à noite. Vai já e depressa.” “Vou ter que ir pela estrada, então,” disse Anne, apanhando o chapéu com relutância. “Ir pela estrada e desperdiçar meia hora? Não te percebo!” “Eu não posso ir pelo Bosque Assombrado, Marilla,” respondeu Anne desesperadamente. Marilla abriu muito os olhos. “O Bosque Assombrado! Estás doida? Mas que diabo vem a ser o Bosque Assombrado?” “O bosque de cedros ao pé do riacho.” Murmurou Anne. “Uma ova! Não há tal coisa em lado nenhum. Quem te andou a dizer essas coisas?” “Ninguém,” confessou Anne. “A Diana e eu imaginámos que o bosque estava assombrado. Todos os sítios lá eram tão vulgares. Pensámos nisso para nos divertirmos. Começámos em Abril. Um bosque encantado é tão romântico Marilla. Nós escolhemos o bosque dos cedros porque é tão sombrio. Oh, e nós imaginamos as coisas mais aterrorizantes. Há uma senhora vestida de branco que passeia ao longo da margem mais ou menos a esta hora da noite e torce as mãos e dá uns gritos terríveis. Ela aparece quando vai haver uma morte na família. E o fantasma de uma pequena criança assassinada assombra o canto ao pé de Idlewild; esgueira-se por trás de nós e toca-nos com os dedos gelados na mão, assim... Oh, Marilla, tremo toda só de pensar. E há um homem sem cabeça que sobe e desce o caminho e esqueletos que nos espreitam por entre os ramos. Oh, Marilla, eu não ia pelo Bosque Encantado por nada deste mundo a esta hora. Tenho a certeza que aquelas coisas brancas me iam apanhar por detrás das árvores.” “Nunca tal coisa se ouviu!” exclamou Marilla, que tinha escutado atordoada pelo espanto. “Anne Shirley, queres dizer que acreditas em todos esses disparates que imaginaste?” “Não é exactamente acreditar,” admitiu Anne. “Pelo menos não acredito nisso à luz do dia. Mas depois do anoitecer, Marilla, é diferente. É quando os fantasmas saem.” “Não há tal coisacomo fantasmas, Anne” “Ai, mas há Marilla,” gritou Anne ansiosamente. “Eu sei de pessoas que os viram. E são pessoas respeitáveis. O Charlie Sloanne diz que a avó dele viu o avô a trazer as vacas para o estábulo um ano depois de ele estar enterrado. Você sabe que a avó do Charlie Sloane não ia dizer uma mentira, ela é uma pessoa muito religiosa. E o pai da Senhora Thomas foi perseguido numa noite por um cordeiro em chamas com a cabeça cortada pendurada por um pedaço de pele. Ele disse que sabia que era o espírito do irmão dele e que o vinha avisar que ele ia morrer dentro de oito dias. Ele acabou por morrer dois anos mais tarde, por isso pode ver que é verdade. E a Ruby Gillis diz que...” “Anne Shirley,” interrompeu Marilla com firmeza,” eu nunca mais te quero ouvir falar dessa maneira. Sempre tive as minhas dúvidas em

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relação a essa tua imaginação, e se é este o resultado ficas a saber que eu não tolero tais coisas. Tu vais a casa dos Barry e vais pelo bosque de cedros para aprenderes. E que eu nunca mais oiça uma palavra sobre bosques assombrados.” Anne podia ter implorado e chorado quanto quisesse, e fê-lo porque o seu terror era real. A sua imaginação tinha tomado asas e ela tinha um pavor mortal ao bosque de cedros depois do anoitecer. Mas Marilla estava inflexível. Acompanhou-a através do bosque dos esqueletos até à ponte e ordenou-lhe que fosse através do escuro onde as senhoras gritavam e passeavam os espectros sem cabeça. “Oh, Marilla, como pode ser tão cruel?” soluçava Anne. “Como é que se sentia se um vulto branco me agarrasse e levasse?” “Vou correr esse risco.” Disse Marilla sem compaixão. “Tu sabes que a minha palavra é só uma. Podes crer que nunca mais vais imaginar fantasmas em lado nenhum. Vá, vamos embora.” Anne começou a andar. Quer dizer, ela tropeçou na ponte e foi cambaleando pelo horrível bosque acima. Anne nunca se esqueceu daquele caminho. Amargamente se arrependeu de ter deixado a sua imaginação tomar tais proporções. Os goblins da sua cena imaginária espreitavam detrás de cada sombra, esticando as suas mãos frias e sem carne para agarrar a aterrorizada rapariga que os tinha invocado. Uma faixa branca de casca de bétula elevou-se do declive até ao chão castanho do bosque de cedros e parou-lhe a respiração. O longo murmúrio de dois ramos que se roçavam um no outro criou-lhe gotas de suor frio na testa. O voo dos morcegos na floresta por cima dela era como asas de criaturas irreais. Quando ela chegou ao campo do senhor William Bell voou através dele como se perseguida por um exercito de vultos brancos, e chegou à porta da cozinha dos Barry tão sem fôlego que mal conseguiu pedir o molde do avental. A Diana não estava pelo que ela não teve desculpa para se deixar ficar. A terrível viagem de volta tinha que ser encarada. Anne regressou de olhos fechados, preferindo esmagar o crânio nos ramos a arriscar-se a ver um fantasma. Quando finalmente tropeçou na ponte de troncos deu um longo e tremido suspiro de alívio. “Então, não foste apanhada?” disse Marilla sem compaixão. “Oh, Ma-Marilla,” gaguejou Anne, “vou-me d-dar –p-por satisfeita c-com lu-lugares comuns depois disto.” CAPÍTULO XXI Uma nova perspectiva em sabores “Meu Deus, na vida tudo se resume a encontros e desencontros como a senhora Lynde costuma dizer,” comentou Anne desgostosa, pousando a lousa e os livros na mesa da cozinha no último dia de Junho e limpando os olhos vermelhos com um lenço muito molhado. “Não foi uma sorte, Marilla, ter levado mais um lenço para a escola hoje? Eu tinha o pressentimento que iria fazer falta.” “Nunca pensei que gostasses do senhor Phillips ao ponto de precisares de dois lenços para secares as lágrimas só porque ele se vai embora,” comentou Marilla. “Eu não acho que tenha chorado por gostar muito dele,” reflectiu Anne. “Eu só chorei porque todos os outros choraram. Foi a Ruby Gillis que começou. A Ruby Gillis sempre disse que detestava o senhor Phillips, mas assim que ele se levantou para fazer o discurso de despedida ela desatou a chorar. Depois todas as raparigas começaram a chorar, uma após outra. Eu tentei controlar-me Marilla. Tentei lembrar-me da altura em que o senhor Phillips me obrigou a sentar com o Gil- um rapaz; e da altura em que ele escreveu o meu nome no quadro sem e no fim; e de todas as alturas em que ele tinha sido tão mau e sarcástico; mas não fui capaz Marilla e comecei a chorar também. A Jane Andrews andava há um mês a dizer que estava muito contente por o senhor

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Phillips se ir embora, e tinha dito que não iria desperdiçar uma lágrima com ele. Pois ela foi a pior de nós todas, e teve que pedir um lenço emprestado ao irmão – claro que os rapazes não choraram – porque ela não tinha trazido, não estava à espera de precisar. Oh, Marilla, foi de despedaçar o coração. O senhor Phillips começou o discurso de despedida de uma maneira tão bonita ’é chegada a hora de nos separarmos’. Sensibilizou-nos muito. E ele também tinha lágrimas nos olhos, Marilla. Oh, eu senti-me terrivelmente arrependida de todas as vezes que falei nas aulas e fiz desenhos dele na lousa, e fiz pouco dele e da Prissy. Posso dizer-lhe que desejei ter sido uma aluna modelo como a Minnie Andrews. Ela tinha a consciência tranquila. As raparigas choraram todo o caminho de volta para casa. A Carrie Sloane volta e meia dizia ’é chegada a hora de nos separarmos’ e começávamos a chorar outra vez, mesmo que estivéssemos a animar. Sinto-me terrivelmente triste, Marilla. Mas não podemos ficar nos abismos do desespero quando temos dois meses de férias pela frente, não é Marilla? E depois, encontrámos o novo pastor e a esposa que vinha da estação. Por muito triste que eu estivesse por o senhor Phillips se ir embora, eu não podia deixar de me interessar pelo novo pastor e a esposa, ou podia? A senhora é muito bonita. Não é exactamente deslumbrante, claro, nem seria correcto a mulher de um pastor ser deslumbrante, poderia dar um mau exemplo. A senhora Lynde diz que a mulher do pastor de Newbridge dá muito mau exemplo porque se veste muito na moda. A mulher do nosso novo pastor estava vestida de musselina azul com lindas mangas de balão e tinha um chapéu debruado a rosas. A Jane Andrews disse que achava as mangas de balão muito mundanas para a esposa de um pastor, mas eu não fiz nenhum comentário menos caridoso, Marilla, porque eu sei o que é ansiar por mangas de balão. Depois, ela só é mulher do pastor há pouco tempo, por isso devemos dar-lhe o desconto, não é? Eles vão alojar-se com a senhora Lynde enquanto a casa paroquial não estiver pronta.” Se a Marilla, ao ir a casa da senhora Lynde nessa noite, foi compelida por mais do que a manifesta devolução dos bastidores que ela lhe tinha emprestado no Inverno passado, foi uma fraqueza que partilhou com a maior parte das pessoas de Avonlea. Muitas coisas que a senhora Lynde emprestou, algumas sem esperança de ver devolvidas, voltaram a casa nessa noite. Um novo pastor, e ainda mais um pastor com esposa, era um legítimo objecto de curiosidade num pequeno lugar campestre onde os acontecimentos eram poucos e muito espaçados. O velho senhor Bentley, o pastor que Anne tinha achado com pouca imaginação, tinha sido o pastor de Avonlea durante dezoito anos. Ele era viúvo quando veio, e viúvo permaneceu, apesar de a bisbilhotice o casar regularmente com esta ou aquela outra, à razão de uma por cada ano de serviço. No último Fevereiro ele tinha-se demitido e partiu para tristeza dos seus paroquianos, a maior parte dos quais lhe dedicavam um afecto nascido da longa convivência, apesar dos seus poucos préstimos como orador. Desde então a igreja de Avonlea desfrutou de uma grande variedade de distracções religiosas, ouvindo os muitos e variados candidatos que vinham Domingo após Domingo, para pregarem à experiência. Estes permaneciam ou caíam sob o julgamento dos pais e mães de Israel; mas uma certa pequena de cabelos ruivos, que se sentava timidamente ao canto do banco dos Cuthbert também tinha opiniões sobre eles e discutia-as abertamente com o Matthew, pois Marilla rejeitava por uma questão de princípio criticar os pastores fosse por aquilo que fosse. “Eu não acho que o senhor Smith servisse, Matthew,” foi a conclusão de Anne. “A senhora Lynde achou que o seu discurso era pobre, mas acho que a sua maior falha era como a do senhor Bentley – não tinha imaginação. E o senhor Terry tinha-a a mais; deixava-a levantar voo tal como eu fiz em relação ao bosque assombrado. Depois, a senhora Lynde disse que a teologia dele não era correcta. O senhor Gresham era

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um excelente homem e muito religioso, mas ele contava muitas histórias engraçadas e fazia as pessoas rirem na igreja; ele era pouco sério, e um ministro deve ter alguma seriedade, não acha Matthew? Eu achei que o senhor Marshall era sem dúvida atraente, mas a senhora Lynde disse que ele não era casado, nem mesmo noivo, porque ela andou a informarse, e ela diz que nunca se deveria admitir um pastor solteiro em Avonlea porque ele podia casar na congregação e isso ia trazer problemas. A senhora Lynde é uma mulher com muita visão, não é Matthew? Fiquei muito contente por terem escolhido o senhor Allan. Eu gostei dele porque o sermão foi interessante e ele rezou com sentimento, e não só porque fosse hábito. A senhora Lynde disse que ele não era perfeito, mas que também não se podia exigir um pastor perfeito por setecentos e cinquenta dólares por ano, e de qualquer forma o seu conhecimento de teologia é correcto porque ela interrogouo sobre todos os pontos da doutrina. E ela conhece a família da esposa dele e eles são pessoas muito respeitáveis e são todas muito boas donas de casa. A senhora Lynde diz que uma doutrina correcta num homem e bom sentido doméstico numa mulher fazem a combinação ideal para a família de um pastor.” O novo pastor e a esposa eram um casal novo e de aparência simpática, ainda em lua-de-mel, e cheios de entusiasmo pelo trabalho que tinham escolhido. Avonlea abriu-lhes o coração desde o início. Novos e velhos gostaram do jovem franco e alegre de ideais elevados e da jovem inteligente e meiga que iria ser a senhora da casa paroquial. Com a senhora Allan, Anne apaixonou-se rápida e completamente. Tinha descoberto outro espírito afim. “A senhora Allan é perfeitamente encantadora,” declarou numa tarde de Domingo. “Ela ficou com a nossa classe e é uma excelente professora. Disse logo que não era justo que ela fizesse todas as perguntas, e sabe Marilla, isso é exactamente o que eu sempre achei. Ela disse que podíamos perguntar tudo o que quiséssemos e eu fiz tantas perguntas! Eu sou muito boa a fazer perguntas, Marilla.” “Acredito,” foi o comentário empático de Marilla. “Mais ninguém fez perguntas à excepção da Ruby Gillis, e ela perguntou se iria haver um piquenique da escola dominical este Verão. Eu não acho que tenha sido uma pergunta muito adequada porque não tinha nenhuma ligação com a lição – a lição era sobre o Daniel na cova dos leões, mas a senhora Allan sorriu e disse que pensava que sim. A senhora Allan tem um sorriso bonito, tem umas covinhas deslumbrantes nas bochechas. Eu gostava tanto de ter covinhas nas bochechas, Marilla. Não sou nem metade do magra que era quando vim para cá, mas ainda não tenho covinhas. Se eu tivesse talvez conseguisse influenciar as pessoas para o bem. A senhora Allan diz que nós devemos sempre influenciar as pessoas para o bem. Ela falou tão bem acerca de tudo. Eu nunca pensei que a religião pudesse ser um assunto tão alegre. Sempre achei que fosse um pouco melancólica, mas a senhora Allan não é e eu gostava muito de ser cristã se conseguisse ser como ela. Eu não gostava de ser como o senhor superintendente Bell.” “És muito má por falares assim do senhor Bell”, disse Marilla com severidade. “O senhor Bell é um homem muito bom.” “Oh, claro que ele é bom,” concordou Anne, “mas ele não parece sentir grande conforto nisso. Se eu conseguisse ser boa eu quereria dançar e cantar todo o dia porque ficaria tão contente. Suponho que a senhora Allan é crescida demais para cantar e dançar, e claro que isso não seria correcto para a esposa de um pastor. Mas eu consigo ver que ela está contente por ser cristã, e que ela o seria mesmo se pudesse ir para o Céu sem ser.” “Acho que devíamos convidar o senhor e a senhora Allan para tomar chá um destes dias,” reflectiu Marilla. “Eles já foram a quase todas as casas menos aqui. Deixa ver…na próxima quarta-feira seria uma boa

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altura para os convidar. Mas não digas nada ao Matthew, porque se ele souber que eles vêm vai arranjar uma desculpa para não estar cá. Ele habituou-se de tal forma ao senhor Bentley que já não o estranhava, mas vai demorar a habituar-se a um novo pastor, e a esposa então vai aterrorizá-lo de morte.” “Vou ser silenciosa como um túmulo,” assegurou Anne. “Mas, oh, Marilla, vai-me deixar fazer um bolo para a ocasião? Eu adoraria fazer qualquer coisa para a senhora Allan, e você sabe que eu já consigo fazer bolos muito bons.” “Podes fazer um bolo de camadas,” prometeu Marilla. Na Segunda e na Terça grandes preparações foram feitas em Green Gables. Ter o pastor e a esposa para o chá era uma tarefa séria e importante, e Marilla estava determinada a não se deixar eclipsar por nenhuma das donas de casa de Avonlea. Anne estava doida de alegria e excitação. Ela contou tudo a Diana na terça à noite ao pôr-do-sol, sentadas nas grandes pedras vermelhas da Bolha da Dríade enquanto faziam pequenos arco-íris na água com ramos molhados em óleo de abeto. “Está tudo pronto, Diana, excepto o bolo que eu vou fazer de manhã e os biscoitos de fermento que a Marilla vai fazer na hora. Asseguro-te Diana, que eu e a Marilla tivemos dois dias muito ocupados. É uma grande responsabilidade ter a família do pastor para tomar chá. Eu nunca passei por nada de semelhante. Devias ver a nossa despensa. Dá gosto ver. Vamos ter galinha em gelatina e língua fria. Vamos ter dois tipos de geleia, vermelha e amarela, e creme de natas e tarte de limão, e tarte de cereja, e três tipos de bolachas, e bolo de frutas, e a famosa conserva de ameixa amarela da Marilla que ela faz só para os pastores, e bolo de libra e bolo de camadas, e biscoitos como já disse; e pão fresco e velho, para o caso do pastor ser dispéptico e não poder comer novo. A senhora Lynde diz que os pastores são dispépticos, mas eu acho que o senhor Allan não é pastor assim há tanto tempo que já tenha tido esse efeito sobre ele. Eu fico gelada só de pensar no meu bolo de camadas. Oh, Diana, e se não me sair bem? Eu sonhei na noite passada que era perseguida por todo o lado por um anão pavoroso com um bolo de camadas no lugar da cabeça.” “Vai-te sair bem de certeza,” assegurou Diana, que era uma amiga muito animadora. “Eu achei que aquela fatia do que tu fizeste, quando almoçámos em Idlewild há duas semanas, era perfeitamente elegante.” “Sim, mas os bolos têm o terrível hábito de saírem mal quando nós queremos especialmente que eles saiam bem,” suspirou Anne, fazendo flutuar um ramo especialmente bem coberto de óleo de bálsamo. “Acho que só posso confiar na Providência Divina e ter cuidado com o que misturo na farinha. Oh, Diana, olha que lindo arco-íris! Achas que a dríade vai aparecer depois de nós termos desaparecido para ficar com ele para fazer uma encharpe? “Tu sabes que não há dríades,” disse Diana. A mãe de Diana também tinha descoberto sobre o Bosque Assombrado e não tinha ficado contente. Como resultado, a Diana tinha-se abstido de mais surtos imaginativos e não achava prudente cultivar a crença até em seres inofensivos como as dríades. “Mas é tão fácil imaginar que as há,” disse Anne. “Todas as noites antes de me deitar olho pela janela e pergunto-me se a dríade está realmente lá sentada, a pentear os cabelos com a água a servir de espelho. Ás vezes procuro as pegadas dela no orvalho da manhã. Oh, Diana, não desistas da tua crença na dríade.” A manhã de quarta-feira chegou. Anne levantou-se ao nascer do sol porque estava demasiado excitada para dormir. Tinha apanhado uma tremenda constipação por andar a chapinhar no regato na tarde anterior mas nem uma pneumonia aguda a teria afastado dos interesses culinários nessa manhã. Depois do pequeno-almoço ela começou a fazer o bolo. Quando finalmente fechou a porta do forno deu um grande suspiro.

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“Tenho a certeza que não me esqueci de nada desta vez, Marilla. Mas acha que vai crescer bem? E se o fermento não estava bom? Usei o da lata nova. E a senhora Lynde diz que nunca podemos ter a certeza que o fermento é bom, hoje em dia as coisas estão tão adulteradas. A senhora Lynde diz que o governo devia ter estas coisas em atenção, mas que nunca verá o dia em que um governo conservador o faça. Marilla, e se o bolo não subir?” “Vamos ter muito o que comer sem ele,” foi a forma despreocupada como Marilla colocou a questão. O bolo acabou por subir, e saiu do forno tão leve como espuma dourada. Anne, corada de emoção, uniu-o com camadas de geleia vermelha e na sua imaginação já via a senhora Allan pedir uma segunda fatia! “Vai usar o melhor serviço de chá, claro, Marilla,” disse. “Posso enfeitar a mesa com fetos e rosas bravas?” “Acho que isso é um disparate,” respingou Marilla. “Na minha opinião é a comida que interessa, e não as decorações.” “A senhora Barry decorou a dela,” disse Anne, que não era totalmente desprovida da sabedoria da serpente, “e o pastor fez-lhe um elogio muito elegante. Disse que era uma delícia para os olhos, tal como para o paladar.” “Bem, então faz como quiseres,” disse Marilla, que estava determinada a não se deixar ultrapassar pela senhora Barry ou por qualquer outra pessoa. “Só não te esqueças de deixar espaço suficiente para a comida e para os pratos.” Anne dedicou-se a decorar de uma forma que deixaria a senhora Barry a milhas de distância. Tendo abundância de fetos e rosas silvestres e um gosto muito artístico, tornou a mesa do lanche num espectáculo de uma tal beleza que quando o pastor e a esposa se sentaram exclamaram em coro que estava linda. “Foi obra da Anne,” disse Marilla, secamente justa, e Anne sentiu que o sorriso de aprovação da senhora Allan era felicidade a mais para este mundo. Matthew estava lá, e só Deus e Anne sabiam como tinha permanecido em casa. Tinha ficado num estado tal de nervosismo e timidez que Marilla tinha desistido, mas Anne tomou conta do assunto com tanto sucesso que ele estava agora sentado à mesa com o seu colarinho branco e as melhores roupas, e conversava interessado com o pastor. Nunca disse uma palavra à senhora Allan, mas isso também não seria de esperar. Correu tudo muito bem até que se passou o bolo de camadas da Anne. A senhora Allan, que já se tinha servido de uma variedade incalculável de coisas, declinou a oferta. Mas Marilla, que viu a desilusão nos olhos de Anne, disse sorrindo: “Oh, tem que comer uma fatia, senhora Allan. A Anne fê-lo de propósito para si.” “Nesse caso tenho que provar,” riu-se a Senhora Allan, servindo-se de uma grossa fatia, tal como o pastor e Marilla. A senhora Allan comeu um pedaço e uma expressão peculiar surgiu no seu rosto; não disse uma palavra, mas engoliu rapidamente. Marilla viu a expressão e apressou-se a provar. “Anne Shirley!” exclamou, ”O que diabo puseste no bolo?” “Só o que a receita dizia, Marilla,” respondeu Anne, com um olhar angustiado. “Oh, não está bom?” “Bom?! Está simplesmente horrível. Senhor Allan, não coma. Anne prova tu. Que aroma usaste ? » “Baunilha,” disse Anne, vermelha de vergonha depois de provar o bolo. “Só baunilha. Oh, Marilla, deve ter sido o fermento. Eu suspeitei do fer-“ “O fermento uma ova! Vai lá dentro e traz-me a garrafa de baunilha que usaste.”

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Anne fugiu para a despensa e regressou com uma garrafa pequena parcialmente cheia com um líquido castanho e com um rótulo amarelo que dizia “A Melhor Baunilha”. Marilla pegou-lhe, destapou-o e cheirou-o. “Valha-nos Deus, Anne, tu puseste óleo de linhaça no bolo. Eu parti a garrafa do óleo de linhaça na semana passada e deitei o que sobrou para uma garrafa velha de baunilha. Acho que a culpa é em parte minha, devia ter-te avisado, mas porque é que não cheiraste antes de pôr?” Anne desfez-se em lágrimas sob o peso da vergonha. “Eu não podia, estou tão constipada!” e com isto se retirou a correr para o quarto do sótão, onde se deitou para cima da cama e chorou sem consolo. Pouco depois, uns passos ligeiros ouviram-se na escada e alguém entrou no quarto. “Oh, Marilla,” soluçou Anne, sem olhar para cima, ”estou desgraçada para sempre. Nunca vou conseguir ultrapassar isto. Vai-se saber, sabese tudo em Avonlea. A Diana vai-me perguntar como é que saiu o bolo, e eu vou ter que dizer a verdade. Vou ser sempre apontada como a rapariga que pôs óleo de linhaça no bolo. Gil - os rapazes da escola nunca vão deixar de rir do assunto. Oh, Marilla, se tem um pingo de caridade cristã não me peça para ir lá para baixo lavar os pratos depois disto. Eu lavo-os quando o pastor e a esposa se forem embora, mas eu não posso olhar a senhora Allan cara a cara outra vez. Talvez ela pense que eu a quis envenenar. A senhora Lynde diz que sabe de uma menina órfã que tentou envenenar o seu benfeitor. Mas o óleo de linhaça não é venenoso. Até é um medicamento, só não é para tomar por via oral. Não diz isso à senhora Allan, Marilla? ” “Podias levantar-te e dizer tu própria,” disse uma voz alegre. Anne olhou para cima e viu a senhora Allan sentada à beira da cama, olhando-a divertida. “Minha querida pequena, não podes chorar assim,” disse, genuinamente preocupada com a expressão trágica de Anne. “É só um engano engraçado que qualquer pessoa podia ter.” “Oh, não, só eu é que podia ter um engano destes,” disse Anne desgostosa. “E eu queria tanto fazer um bolo bom para si, senhora Allan.” “Sim, eu sei, querida. E podes ter a certeza que eu apreciei tanto a tua simpatia e dedicação como se o bolo te tivesse saído bem. Agora não chores e vem lá abaixo comigo mostrar-me o jardim. A senhora Cuthbert disse-me que tens uma zona só tua. Gostava de vê-la porque eu interesso-me muito por flores.” Anne deixou-se levantar e ser confortada, pensando que fora mesmo providencial que a senhora Allan fosse um espírito afim. Nada mais se disse sobre o bolo de linhaça, e quando os convidados se foram embora Anne viu que tinha apreciado a noite mais do que pensara, considerando o terrível incidente. Mesmo assim, suspirou profundamente. “Marilla, não é bom saber que amanhã é um novo dia, sem asneiras?” “Eu garanto-te que vais arranjar bastantes,” disse Marilla. “Nunca vi ninguém como tu para fazer asneiras, Anne.” “Sim, e eu sei,” admitiu Anne com tristeza. “Mas nunca reparou numa qualidade que eu tenho, Marilla? Eu nunca faço o mesmo erro duas vezes.” “Não sei se isso é assim tão bom, estás sempre a fazer asneiras novas.” “Oh, mas não percebe, Marilla? Deve haver um limite para as asneiras que uma pessoa pode fazer, e quando eu lá chegar já não posso fazer mais. É uma ideia reconfortante.” “Pois, bem podes ir dar o bolo aos porcos,” disse Marilla. “Não está em condições de ser comido por pessoas, nem pelo Jerry Buote.”

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CAPÍTULO XXII Anne é convidada para o chá “E porque é que os teus olhos estão tão esbugalhados? Então?” perguntou Marilla, quando Anne acabara de chegar dos correios. “Descobriste outro espírito afim?” A excitação envolvia Anne como um manto, brilhava nos seus olhos, revelava-se em cada gesto. Ela tinha dançado pela alameda como uma fada levada pelo vento, através do sol suave e das sombras preguiçosas da tarde de Agosto. “Não Marilla, mas oh, o que é que imagina? Fui convidada para tomar chá na casa paroquial amanhã à tarde! A senhora Allan deixou uma carta para mim na estação dos correios. Olhe só para ela Marilla: ‘Menina Anne Shirley, Green Gables’. É a primeira vez que me chamam ‘Menina’. Deu-me um arrepio! Irei guardá-la para sempre entre os meus mais preciosos tesouros.” “A senhora Allan contou-me que queria convidar todos os membros da escola dominical para o chá, um de cada vez.” Disse Marilla, olhando o maravilhoso evento de uma forma muito corriqueira. “Não precisas de ficar tão excitada por isso. Tens que levar as coisas com mais calma, Anne.” Para Anne levar as coisas com calma teria que mudar a sua natureza. Toda “espírito, e fogo e orvalho”, os prazeres e desgostos da vida vinham a ela numa intensidade ampliada. Marilla apercebia-se isso, e preocupava-se vagamente, pensando que os altos e baixos da vida teriam provavelmente grande impacto nesta alma impulsiva, sem compreender que a igualmente grande capacidade de se deliciar com as coisas boas a poderiam mais que compensar. Assim, Marilla considerava ser o seu dever levar Anne a uma tranquila uniformidade de disposição tão impossível e estranha a ela como a um raio de sol dançando entre as sombras do riacho. Ela não fazia grandes avanços, como tristemente admitia para si própria. Os reveses de algum plano ou esperança frustrada deixavam Anne em abismos de aflição. A realização, por sua vez, impelia-a a estonteantes estados de deleite. Marilla já tinha desesperado de transformar esta menina negligenciada no seu modelo de criança de modestas boas maneiras e postura recta. Nem sequer teria admitido que gostava muito mais de Anne tal como era. Anne foi para a cama muda de desgosto porque Matthew tinha dito que o vento estava de noroeste e ele temia que chovesse bastante no dia seguinte. O restolhar das folhas de álamo inquietava-a, soando quase como gotas de chuva, e o som longínquo do mar, que a deliciara noutras ocasiões em que adorava o seu sonoro ritmo, estranho e assombrado, parecia agora uma profecia de tempestade e desastre para uma pobre menina que desejava um dia particularmente agradável. Anne pensava que essa manhã nunca chegaria. Mas todas as coisas chegam a um fim, mesmo as noites que precedem os dias em que somos convidados a tomar chá na casa paroquial. A manhã, apesar das predições de Matthew, estava bonita e a disposição de Anne elevou-se ao seu melhor. “Oh, Marilla, hoje há qualquer coisa que me leva a gostar de toda a gente que vejo,” exclamou enquanto lavava os pratos do pequeno-almoço. “Você não calcula como me sinto bem! Não seria bom que pudesse durar para sempre? Eu acho que talvez conseguisse ser uma criança modelo se todos os dias fosse convidada para um chá. Mas, oh, Marilla, é uma ocasião solene. Sinto-me tão ansiosa. E se eu não me portar bem? Você sabe que eu nunca tomei chá numa casa paroquial antes, e não tenho a certeza de saber todas as regras de etiqueta, apesar de andar a estudar as que vêm na secção de etiqueta do ‘Mensageiro da Família’ desde que vim para cá. Tenho tanto medo de fazer algum disparate ou de me esquecer de qualquer coisa que deva fazer. Seria falta de educação

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servir-me segunda vez de qualquer coisa de que eu tivesse gostado muito?” “O problema contigo Anne, é que pensas demais em ti própria. Devias pensar mais na senhora Allan e no que seria mais simpático e agradável para ela,” disse Marilla, tropeçando por acaso num conselho extremamente sensato e simples. Anne apercebeu-se imediatamente disso. “Tem razão, Marilla. Vou tentar não pensar de todo em mim.” Anne passou pela visita sem nenhuma quebra séria de etiqueta, pois regressou ao anoitecer, debaixo de um céu magnífico, recortado por linhas cor de açafrão e nuvens rosadas num estado de espírito pleno de beatitude. Contou tudo a Marilla alegremente sentada no poial de pedra vermelha da entrada da cozinha, descansando a cabeça ruiva aos caracóis no avental que lhe cobria o colo. Um vento fresco soprava pelos grandes campos já ceifados, desde as orlas dos pinhais que revestiam os montes a oeste e assobiava através dos álamos. Uma estrela brilhante cintilava por cima do pomar, e a luz pirilampos tremelicava por cima da Alameda dos Apaixonados, dentro e fora dos maciços de fetos e dos ramos sussurrantes. Anne observava-os enquanto falava e pensava que de certa forma o vento, as estrelas e os pirilampos se uniam para fazer parte de algo indescritivelmente doce e encantador. “Oh, Marilla, passei uma tarde fascinante! Hoje sinto que não vivi em vão, e para sempre me sentirei assim, mesmo que nunca mais seja convidada para tomar chá numa casa paroquial. Quando lá cheguei a senhora Allan foi-me receber à porta. Estava vestida com o vestido mais amoroso, de organdi rosa claro, com dúzias de folhos e mangas de balão a três quartos, parecia um serafim. Eu acho mesmo que gostava de ser esposa de um pastor quando crescesse, Marilla. Um pastor não se devia importar dos meus cabelos ruivos porque não daria importância a essas coisas mundanas. Mas claro que teria que ser naturalmente boa, e eu nunca o serei, por isso acho que nem vale a pena pensar no assunto. Algumas pessoas são naturalmente boas, sabe, e outras não. Eu sou uma das outras. A senhora Lynde diz que eu estou cheia de pecado original. Por muito que eu me esforce para ser boa nunca conseguirei os mesmo resultados que aqueles que são naturalmente bons. É de certa forma como a geometria, presumo. Mas não acha que o facto de nos esforçarmos tanto devia contar para alguma coisa? A senhora Allan é uma das pessoas naturalmente boas. Eu gosto dela do fundo do coração. Sabe que há pessoas, como o Matthew e a senhora Allan, de quem gostamos dessa forma desde o primeiro momento. E há outras, como a senhora Lynde, de quem gostamos com esforço. Nós sabemos que devemos gostar delas, porque elas sabem muitas coisas e são tão activas nos seus trabalhos para a Igreja, mas temos que nos estar sempre a chamar a atenção para esse aspecto, senão esquecemo-nos. Havia outra menina na casa paroquial para tomar chá, da escola dominical de White Sands. Chamavase Lauretta Bradley, e era uma menina muito simpática. Não era exactamente um espírito afim, sabe, mas mesmo assim era muito simpática. Tivemos um chá muito elegante, e acho que respeitei todas as regras de etiqueta. Depois do chá a senhora Allan tocou e cantou, e pôs-nos a mim e a Lauretta a cantar também. A senhora Allan diz que eu tenho uma voz bonita, e que tenho que ir cantar para o coro da escola dominical depois disto. Nem consegue imaginar como fiquei arrepiada só de pensar. Desejava tanto cantar no coro da escola dominical, como a Diana, mas temia que fosse uma honra à qual não pudesse aspirar. A Lauretta teve que ir mais cedo para casa porque vai haver um grande concerto no Hotel de White Sands e a irmã mais velha dela vai recitar. A Lauretta diz que os americanos do Hotel dão muitos concertos a favor do Hospital de Charlottetown e pedem muitas vezes às pessoas de White Sands que recitem. A Lauretta espera que a convidem para recitar um dia destes. Eu fiquei tão impressionada! Depois de ela se ter ido

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embora eu e a senhora Allan tivemos uma conversa mais íntima. Eu contei-lhe tudo – sobre a senhora Thomas e os gémeos, sobre a Katie Maurice e a Violetta, sobre a vinda para Green Gables e os meus problemas com a geometria. E você quer acreditar, Marilla? Ela disseme que também era um zero à esquerda a geometria. Não sabe como isso me encorajou. A senhora Lynde chegou à casa paroquial quando eu me estava a ir embora e sabe o que disse, Marilla? Os administradores contrataram uma nova professora, uma senhora. O nome dela é Miss Muriel Stacy. Não é um nome romântico? A senhora Lynde diz que nunca tiveram uma professora aqui em Avonlea e acha que é uma inovação perigosa. Mas eu acho que vai ser esplêndido ter uma senhora professora, e não sei como vou aguentar as duas semanas que faltam para começarem as aulas. Estou tão impaciente para a ver.” CAPÍTULO XXIII Anne tem um desgosto numa questão de honra Anne acabou por ter que aguentar mais de duas semanas. Tendo passado mais de um mês sobre o episódio do bolo de linhaça, era já tempo de se meter em sarilhos outra vez, sem contar com pequenas distracções como deitar um balde cheio de leite para dentro de um cesto de novelos de lã em vez de o deitar para o balde dos restos, e cair da ponte de madeira para dentro do ribeiro enquanto passeava absorta em sonhos. Uma semana depois do chá na casa paroquial a Diana deu uma festa. “Pequena e selecta,” assegurou Anne a Marilla. “Só as raparigas da nossa classe.” Passaram uma tarde óptima, e não se passou nada de especial até depois do chá, quando foram para o jardim dos Barry, cansadas de todos os jogos e prontas para qualquer asneira que lhes ocorresse. E ocorreulhes desafiarem-se. Os desafios eram a distracção mais na moda entre as crianças de Avonlea nessa altura. Começara entre os rapazes, mas cedo alastrou para as raparigas, e todas as coisas palermas que foram feitas nesse Verão porque o protagonista tinha sido desafiado a fazê-las dariam para encher um livro por si só. No início, a Carrie Sloane desafiou a Ruby Gillys a trepar até um certo ponto de um velho salgueiro em frente da porta principal, o que a Ruby - apesar do medo terrível que tinha das lagartas verdes que infestavam a árvore, e do que a mãe lhe faria se rasgasse o vestido novo de musselina - prontamente fez, para desconsolo da referida Carrie Sloane. Depois a Josie Pie desafiou a Jane Andrews para percorrer o jardim a pé coxinho sem parar uma única vez ou pousar o pé direito no chão; o que a Jane Andrews tentou mas teve que desistir no terceiro canto e dar-se por vencida. O triunfo da Josie assumiu então proporções mais elevadas do que permitia o bom gosto, e a Anne desafiou-a a andar por cima da vedação de madeira que delimitava o lado este do jardim. A Josie fê-lo com um ar de despreocupação que parecia implicar que tal coisa nem servia de desafio. Uma admiração um tanto relutante saudou o seu sucesso, porque a maior parte das raparigas sabiam apreciar a façanha, tendo já sofrido alguns dissabores em desafios semelhantes. A Josie desceu, corada pela vitória, e lançou um olhar de desafio a Anne. Anne deitou as tranças para trás das costas. “Não acho que seja uma coisa assim tão espantosa andar por cima de uma vedação tão baixa e pequena,” disse. “Conheci uma rapariga em Marysville que conseguia andar na cumeeira de um telhado.” “Eu não acredito,” disse Josie. “Eu não acredito que quem quer que fosse pudesse andar na cumeeira de um telhado. Tu não eras capaz de certeza.” “Eu não conseguia?” exclamou Anne com rispidez.

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“Então desafio-te a fazê-lo,” disse Josie. “Eu desafio-te a subir ali acima e a andar pelo telhado da cozinha do senhor Barry.” Anne empalideceu, mas claramente só havia uma coisa a fazer. Dirigiuse à casa, onde uma escada estava encostada ao telhado da cozinha. Todas as meninas do quinto ano disseram, ”Oh!”, quer fosse de excitação ou de medo. “Não faças isso, Anne,” exclamou Diana. “Vais cair do telhado e morrer. Deixa lá a Josie Pie. Não é justo desafiar alguém a fazer uma coisa tão perigosa.” “Eu tenho que o fazer. A minha honra está em jogo,” disse Anne solenemente. “Eu irei atravessar aquela cumeeira ou perecer ao tentar. Se eu morrer tu deves ficar com o meu anel de missagas pérola.” Anne subiu pela escada por entre um silêncio sepulcral, agarrou-se à cumeeira, balançou o corpo até ter um pé apoiado lá em cima e ergueuse. Começou a andar, estonteada com a noção de estar muito alto e de que andar em cima de telhados não era coisa na qual a imaginação pudesse ter um papel relevante. Mesmo assim, conseguiu dar vários passos antes que a catástrofe se desse. Então oscilou, perdeu o equilíbrio, não o conseguiu recuperar e caiu, deslizando pelo telhado inundado de sol e despenhou-se num emaranhado de trepadeiras lá em baixo- tudo isto antes que o espantado grupo lá em baixo tivesse tempo de dar um grito aterrorizado em uníssono. Se a Anne tivesse caído para o lado do telhado por onde subiu, talvez a Diana tivesse herdado o anel de missangas naquela mesma hora. Felizmente caiu para o outro lado, onde o telhado se estendia descendo até ao alpendre pelo que a queda se tornou uma coisa muito menos séria. Mesmo assim, quando Diana e as outras meninas correram tresloucadas até ao outro lado da casa – à excepção da Ruby Gillis que permaneceu pregada ao chão e ficou histérica - encontraram Anne branca e imóvel em cima dos destroços da trepadeira. “Anne, morreste?” gritou Diana, atirando-se de joelhos ao lado da amiga. “Oh, Anne, querida Anne, diz-me só uma palavra, diz-me se morreste.” Para grande alívio de todas as meninas, e especialmente para Josie Pye, que apesar da falta de imaginação tinha sido acometida de visões em que se imaginava conhecida como a menina que tinha causado a morte trágica e prematura de Anne Shirley, Anne sentou-se e respondeu ainda em dúvida: “Não Diana, não morri, mas acho que estou inconsciente.” “Como?” soluçava Carrie Sloane. “Oh, como Anne?” Antes que Anne pudesse responder a senhora Barry apareceu. Quando a viu, Anne tentou pôr-se em pé mas voltou a cair com um grito de dor. “O que é que se passa? Onde é que te magoaste?” perguntou a senhora Barry. “O meu tornozelo,” balbuciou Anne. “Oh, Diana, por favor vai ver do teu pai e pede-lhe que me leve a casa. Eu sei que não vou ser capaz de ir sozinha. E nunca vou conseguir ir ao pé-coxinho, se a Jane nem conseguiu andar à volta do jardim.” Marilla estava no pomar a apanhar um cesto de maçãs quando viu o senhor Barry que vinha pela ponte de madeira, com a senhora Barry e uma procissão de meninas atrás. Ao colo trazia a Anne, cuja cabeça se apoiava sem forças no seu ombro. Nesse momento, Marilla teve uma revelação. Na súbita aflição que lhe dilacerou o coração apercebeu-se do que Anne significava para ela. Ela teria admitido que gostava de Anne, não, que gostava muito de Anne. Mas agora via, enquanto corria como louca até à ponte, que Anne lhe era mais cara que qualquer outra coisa no mundo. “Senhor Barry, o que é que lhe aconteceu?” gaguejou, branca e trémula como a reservada e sensata Marilla nunca tinha estado em muitos anos. Anne respondeu ela própria, levantando a cabeça.

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“Não se assuste muito, Marilla. Eu estava a andar por cima da cumeeira do telhado e caí. Penso que torci o tornozelo. Mas Marilla, eu podia ter partido o pescoço. Temos que olhar para o lado positivo das coisas.” “Eu devia saber que tu ias fazer uma coisa dessas quando te deixei ir a essa festa,” disse Marilla, ríspida até no seu alívio. “Traga-a para dentro senhor Barry, e deite-a no sofá. Valha-me Deus, a pequena desmaiou!” Era bem verdade. Aflita com a dor, Anne viu mais um dos seus desejos realizados. Desmaiou. Matthew, que fora chamado à pressa da colheita do campo, foi buscar o médico, que a seu tempo chegou e descobriu que a lesão era mais grave do que tinham pensado de início. O tornozelo de Anne estava partido. Nessa noite, quando Marilla subiu ao quarto do sótão onde uma pálida menina estava deitada, foi saudada por uma voz doce que se dirigia da cama. “Não está cheia de pena de mim, Marilla?” “A culpa foi tua,” disse Marilla, fechando a cortina e acendendo a luz. “E é mesmo por isso que devia ter pena de mim,” disse Anne, “ porque só de pensar que tudo foi culpa minha ainda fico pior. Se eu pudesse culpar outra pessoa iria sentir-me muito melhor. Mas o que é que você faria, Marilla, se fosse desafiada a andar sobre a cumeeira de um telhado?” “Eu tinha ficado em terra firme e deixava-as desafiarem à vontade. Que absurdo!” respondeu Marilla. Anne suspirou. “Mas você tem tanta força de carácter, Marilla. Eu não. Eu senti que não ia suportar o escárnio da Josie. Ela ia perseguir-me com isto para o resto da vida. E eu acho que fui tão castigada que você não precisa de se zangar comigo, Marilla. Afinal não é nada agradável desmaiar. E o médico magoou-me imenso quando pôs o meu tornozelo no lugar. Não vou poder sair durante 6 ou 7 semanas e vou perder o início das aulas com a nova professora. Já não vai ser novidade quando eu puder ir à escola. E o Gil...toda a gente me vai passar à frente. Oh, sou uma mortal afligida pela desgraça. Mas eu vou tentar suportar tudo com bravura se você não ficar zangada comigo, Marilla.” “Então, então, eu não estou zangada,” disse Marilla. “Tu és uma criança azarada, não há dúvida disso, mas como dizes, tu é que sofres as consequências. Agora tenta comer o teu jantar.” “Não tenho sorte em ter tanta imaginação?” disse Anne. “Vai-me ajudar a passar o tempo. O que é que acha que fazem as pessoas que não têm imaginação para passar o tempo quando partem os ossos, Marilla?” Anne teve boas razões e muitas oportunidades para abençoar a sua imaginação durante as tediosas sete semanas que se seguiram. Mas não esteve só dependente dela. Teve muitas visitas e não se passou um dia sem que uma ou mais meninas a viessem visitar e lhe trouxessem flores e livros e lhe contassem o que se passava no mundo juvenil de Avonlea. “Todos têm sido tão bons e gentis, Marilla,” suspirou alegremente Anne, no dia em que conseguiu andar pela primeira vez. “Não é muito agradável estar doente, mas também tem um lado positivo, Marilla. Ficamos a saber quantos amigos temos. Até o diácono Bell me veio ver, e ele afinal até é um bom homem. Não é um espírito afim, claro, mas eu gosto dele à mesma, e estou arrependida de ter criticado as orações dele. Agora acredito que ele as diga com sinceridade, só ganhou o hábito de as dizer daquela forma. Ele podia ultrapassar esse problema se se esforçasse. Eu dei-lhe uma sugestão. Disse-lhe como tentava que as minhas orações fossem interessantes. Ele contou-me que também tinha partido um tornozelo quando era novo. Mas parece-me estranho pensar no diácono Bell como rapazinho. Até a minha imaginação tem limites. Quando tento imaginá-lo vejo-o com bigodes cinzentos e óculos, como

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ele é na escola dominical, só que em pequeno. Mas a senhora Allan, por exemplo, é fácil de imaginar como uma menina. A senhora Allan veio ver-me catorze vezes. É um motivo de orgulho, Marilla, quando a esposa de um pastor tem tantas ocupações! E ela é uma pessoa tão agradável de ter como visita. Nunca me diz que a culpa foi minha e que espera que eu tenha ficado mais ajuizada. A senhora Lynde disse-me isso quando me veio visitar, e ela disse-o de uma forma que me pareceu que ela esperava que eu tivesse ganho juízo, mas que não acreditava muito nisso. Até a Josie Pye me veio ver. Eu recebi-a com a maior educação, porque eu acho que ela está arrependida de me ter desafiado a andar na cumeeira. Se eu tivesse morrido ela teria que carregar o pesado fardo do remorso para toda a vida. A Diana tem sido uma amiga fiel. Todos os dias me tem vindo ver. Oh, mas ficarei tão feliz quando puder voltar à escola, porque tenho ouvido tantas coisas excitantes sobre a nova professora. Todas as meninas acham que ela é perfeitamente querida. A Diana diz que ela tem um lindo cabelo encaracolado e uns olhos fascinantes. Ela veste-se muito bem e as mangas de balão dos vestidos dela são as maiores de Avonlea. Às sextas-feiras, semana sim semana não, organiza recitais e toda a gente tem que dizer uma parte dos diálogos. Oh, é glorioso só de pensar. A Josie Pye diz que detesta os recitais, mas isso é só porque a Josie tem tão pouca imaginação. A Diana, a Ruby Gillis e a Jane Andrews estão a preparar um diálogo chamado ‘Uma Visita Matinal’ para a próxima sexta-feira. E nas sextas em que não há recitais a senhora Stacy leva-os a todos para o bosque em visita de estudo para observarem os fetos, flores e pássaros. A senhora Lynde diz que nunca ouviu falar de tal coisa e que tudo se deve ao facto de ser uma professora. Mas eu acho que deve ser esplêndido e penso que vou achar na senhora Stacy um espírito afim.” “De uma coisa tenho a certeza, Anne,” disse Marilla, ”é que a tua queda do telhado dos Barry não te danificou de todo a língua.” Capítulo XXIV Miss Stacy e os seus alunos organizam um concerto Era de novo Outubro quando Anne pode regressar à escola – um Outubro glorioso, todo vermelho e dourado, com manhãs suaves em que os vales estavam cobertos de delicadas brumas como se o espírito do Outono os tivesse salpicado para o sol secar – ametista, pérola, prata, rosa e azul cinza. A névoa era tão cerrada que os campos brilhavam como panos de prata, e haviam montes de folhas crepitantes nos declives do bosque que eram deliciosas de pisar. O caminho dos álamos parecia forrado de cortinas amarelas, e os fetos revestiam o chão de castanho e verde seco. Havia qualquer coisa no ar que inspirava os corações das pequenas donzelas a caminho da escola; e era uma alegria estar de novo na pequena carteira castanha ao lado da Diana, com a Ruby Gillis a acenar na fila ao lado e a Carrie Sloane a mandar escritos e a Julia Bell a passar uma pastilha da carteira atrás. Anne inspirou de felicidade enquanto afiava o lápis e arrumava os postais em cima da carteira. A vida era certamente muito interessante. Na nova professora ela encontrou uma amiga verdadeira e prestável. A senhora Stacy era uma jovem mulher simpática e inteligente com o dom de ganhar e manter os afectos dos alunos e de fazer sobressair o melhor que eles tinham, quer moralmente quer mentalmente. Anne desabrochou como uma flor durante a sua saudável influência e todos os dias regressava a casa para partilhar com o encantado Matthew e a crítica Marilla as novidades escolares do dia. “Eu adoro a senhora Stacy do fundo do coração, Marilla. Ela é tão educada e tem uma voz tão doce. Quando ela pronuncia o meu nome eu sinto instintivamente que o está a pronunciar com e no fim. Nós tivemos um recital esta tarde. Eu gostava tanto que vocês lá

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estivessem para me ouvirem recitar ‘Mary, rainha dos escoceses’. Eu fi-lo com toda a minha alma. A Ruby Gillis disse-me quando voltámos a casa que a forma como eu disse a passagem, ‘agora para o braço de meu pai’, e ela disse, ‘a despedida do meu coração de mulher’, fez-lhe gelar o sangue.” “Pois, bem podes recitá-la para nós um destes dias, lá no celeiro,” sugeriu Matthew. “Claro que posso,” disse Anne pensativa, “mas não vou ser capaz de recitar tão bem, sabe. Não é tão excitante como quando temos uma sala inteira pendurada sem um suspiro das nossas palavras. Sei que não vou ser capaz de lhes fazer gelar o sangue.” “À senhora Lynde é que lhe gelou o sangue quando viu os rapazes a treparem aquelas árvores grandes no monte do Bell para apanharem ninhos de corvos na sexta-feira passada,” disse Marilla. “Será possível que a senhora Stacy encoraje esse tipo de coisas?” “Mas nós precisávamos de um ninho de corvo para ciências da natureza,” explicou Anne. “Essa foi a nossa visita de estudo. As visitas de estudo são esplêndidas, Marilla. A senhora Stacy explica tudo tão bem. Nós temos que escrever composições sobre as nossas visitas e eu escrevo as melhores.” “Então és muito vaidosa em dizeres isso. Mais vale deixares a tua professora dizer essas coisas.” “Mas ela disse, Marilla. E eu não estou vaidosa por isso. Como é que eu podia, se sou tão burra a geometria? Mas também já vou percebendo alguma coisa. A senhora Stacy explica muito bem. Mas mesmo assim nunca vou ser boa a geometria e asseguro-lhe que é uma reflexão humilde. Mas eu adoro escrever composições. Na maior parte das vezes a senhora Stacy deixa-nos escolher os temas, mas na semana que vem temos que escrever sobre uma pessoa que nós consideremos extraordinária. É muito difícil escolher de entre todas as pessoas extraordinárias que já viveram. Não é esplêndido ser extraordinário e ter pessoas a escreverem composições sobre nós depois de morrermos? Oh, eu adorava ser extraordinária. Eu acho que quando crescer vou ser enfermeira e vou trabalhar para a Cruz Vermelha num campo de batalha como mensageira de misericórdia. Isto se não for para o estrangeiro como missionária. Seria muito romântico, mas eu teria que ser muito boa para ser missionária e isso é uma barreira inultrapassável. Nós também temos educação física todos os dias. O exercício torna-nos graciosas e facilita a digestão.” “Graciosas uma ova!” disse Marilla, que achava sinceramente que era tudo um disparate. Mas todas as tardes de campo e recitais de sexta-feira e aulas de educação física foram postas de lado por causa de um projecto que a senhora Stacy apresentou à classe em Novembro. Tratava-se de um concerto organizado pelos alunos de Avonlea a ter lugar no salão na Noite de Natal, para angariarem fundos para comprar uma bandeira para a escola. Os alunos acolheram imediatamente o plano, e as preparações começaram desde logo. E de todos os excitados alunos nenhum estava mais excitado que Anne Shirley, que se atirou ao trabalho de alma e coração, apesar do desacordo de Marilla. A Marilla achava que era tudo uma parvoíce. “É só encher-vos as cabeças com palermices e gastar o tempo que deviam usar para estudar as lições,” resmungou. “Eu não concordo que as crianças organizem concertos e participem neles. Torna-as vaidosas, atrevidas e fúteis.” “Mas pense só na nobreza do objectivo,” pedia Anne. “Uma bandeira vai cultivar o espírito do patriotismo, Marilla.” “Pois com certeza! Não vejo grande patriotismo nas vossas cabeças. Só pensam em divertir-se.” “Pois, mas quando se pode juntar o patriotismo com divertimento, não acha que é correcto? Claro que é muito bom organizarmos um concerto.

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Vamos ter seis coros e a Diana vai cantar como solista. Eu estou em dois diálogos – ‘A Sociedade Para a Supressão dos Mexericos’ e ‘A Rainha das Fadas’. Os rapazes também vão ter um diálogo. E eu vou recitar duas vezes, Marilla. Tremo só de pensar, mas é um tremor agradável tipo arrepio. E vamos ter uma peça no fim – ‘Fé, Esperança e Caridade’. A Diana, a Ruby e eu vamos participar, todas embrulhadas em branco com o cabelo solto. Eu vou ser a esperança, com as mãos postas assim, e os olhos levantados para o céu. Vou praticar os meus recitais para a cocheira. Não fique preocupada se me ouvir gemer. Eu tenho que gemer aflitivamente num deles, e é muito difícil encontrar um gemido realista, Marilla. A Josie Pye está chateada porque não conseguiu um papel que queria num diálogo. Ela queria ser a rainha das fadas. Mas isso seria ridículo, porque quem é que ouviu falar de uma rainha das fadas gorda como a Josie? As rainhas das fadas têm que ser elegantes. A Jane Andrews vai ser a rainha e eu vou ser uma das damas de honor. A Josie diz que uma fada ruiva é tão ridícula como uma fada gorda, mas eu não me importo com o que a Josie diz. Eu vou ter uma coroa de rosas brancas no cabelo e a Ruby Gillis vai-me emprestar os sapatinhos dela porque eu não tenho. É preciso que as fadas tenham sapatos, sabia? Não conseguia imaginar uma fada de botas, pois não? Especialmente com biqueira de metal. Nós vamos decorar o salão com folhas de cedro e ramos de pinheiro com rosas de papel cor-de-rosa. E vamos entrar a duas e duas depois do público estar sentado, enquanto a Emma White toca uma marcha no órgão. Oh, Marilla, eu sei que não está tão entusiasmada com isto como eu, mas não espera que a sua pequena Anne faça uma boa figura?” “Eu só espero que te portes bem. Eu vou ficar sinceramente contente quando esta confusão toda terminar e tu finalmente assentares. Não és capaz de fazer nada em condições com a cabeça cheia de diálogos e gemidos e peças. Quanto à tua língua, é de estranhar que não esteja completamente gasta.” Anne suspirou e retirou-se para o pátio das traseiras, onde a lua brilhava por entre os ramos despidos dos álamos, e o Matthew partia lenha. Anne encostou-se a um tronco e conversou sobre o concerto com ele, certa que nele pelo menos podia encontrar um ouvinte atento e compreensivo. “Pois, eu acho que vai ser um concerto bastante bom. E eu acho que vais fazer o teu papel muito bem,” disse sorrindo para o pequeno rosto ansioso e vivo. Anne sorriu-lhe também. Aqueles dois eram os melhores amigos, e Matthew agradecia muitas vezes o facto de não ter nada que ver com a educação dela. Essa era uma tarefa exclusivamente da Marilla, e se fosse sua ele teria sido afligido por frequentes conflitos entre a sua vontade e o que seria o seu dever. Tal como estavam as coisas, ele podia estragar a Anne com mimos – como dizia Marilla -, quantas vezes quisesse. Mas não era um mau negócio afinal de contas: uma certa dose de apreço faz por vezes mais falta do que toda a educação conscenciosa do mundo.

Capítulo XXV Matthew Insiste nas mangas de balão Matthew estava a passar um mau bocado. Tinha chegado à cozinha ao anoitecer de um certo dia frio e cinzento de Dezembro, e tinha-se sentado na caixa da lenha para descalçar as botas pesadas, sem saber que Anne e um grupo de colegas da escola estavam a praticar “A Rainha das Fadas” na salinha de estar. Naquele momento debandavam para a cozinha, rindo e conversando com alegria. Não viram o Matthew, que se

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encolheu timidamente para trás, oculto pelas sombras com uma bota numa mão e a calçadeira na outra, e observou-as durante um bocado enquanto elas vestiam os gorros e os casacos e conversavam sobre o diálogo e o concerto. Anne estava entre elas, de olhos brilhantes e animada como elas, mas o Matthew apercebeu-se subitamente que havia uma diferença entre ela e as amigas. E o que perturbava Matthew era que essa diferença não deveria existir. Anne tinha uns olhos maiores que as outras, e mais brilhantes e vivos, e feições mais delicadas que as outras; mesmo o tímido e pouco observador Matthew tinha noção disso, mas a diferença que o perturbava nada tinha a ver com estes aspectos. Então onde estava? Matthew ficou assombrado por esta questão muito depois de as meninas já se terem ido embora de braço dado pela alameda gelada e comprida e a Anne se ter entregue à leitura. Ele não ia falar no assunto a Marilla, que com certeza iria comentar que a única diferença que via entre a Anne e as outras meninas era que as outras por vezes davam descanso à língua. E isto, pensava Matthew, não era grande ajuda. Ele recorreu ao cachimbo nessa noite para o ajudar a pensar, para desagrado de Marilla. Depois de duas horas de reflexão atenta, Matthew chegou a uma conclusão: Anne não se vestia como as outras meninas! Quanto mais Matthew pensava sobre o assunto mais ele se convencia que Anne nunca se tinha vestido como as outras, nunca desde que estava em Green Gables. Marilla vestia-a com roupas escuras e direitas, todas do mesmo modelo. Se o Matthew tinha noção que havia tal coisa como moda em relação à roupa já era muito, mas ele tinha a certeza que as mangas de Anne não se pareciam nada com as mangas que as outras meninas traziam. Ele recordava as meninas que tinha visto naquela noite, todas alegres com cintos vermelhos e azuis, e cor-de-rosa e brancas, e interrogou-se porque é que a Marilla a vestia sempre de uma forma tão simples e sóbria. Claro que devia haver uma razão. A Marilla sabia resolver as coisas da melhor forma, e a Marilla estava a educá-la. Provavelmente havia uma razão sensata e imperscrutável. Mas concerteza não haveria mal nenhum em ela ter pelo menos um vestido bonito, como os que a Diana Barry usava sempre. Matthew decidiu dar-lhe um, isso certamente não poderia ser visto como uma intromissão pela irmã. O Natal era só dali por uns dias. Um vestido novo e bonito seria mesmo a prenda ideal. Matthew, com um suspiro de satisfação pôs o cachimbo de lado e foi-se deitar, enquanto Marilla abria as portas e arejava a casa. Na tarde seguinte Matthew foi a Carmody para comprar o vestido, determinado a acabar de vez com o assunto. Ia-se convencendo a si próprio que não seria muito difícil. Havia muitas coisas que Matthew sabia comprar sem ser enganado, mas ele sabia que estaria nas mãos do vendedor quando se tratava de comprar um vestido de menina. Depois de muito reflectir decidiu-se pela loja do Samuel Lawson em vez da do William Blair. Em geral, os Cuthbert iam sempre à loja do William Blair, era quase uma questão de consciência uma vez que ele era presbiteriano e conservador. Mas as duas filhas do William Blair atendiam muitas vezes os clientes e o Matthew tinha pavor de ser atendido por elas. Ele conseguia controlar-se se soubesse exactamente o que queria, mas num assunto destes que exigia explicações e sugestões o Matthew queria ter a certeza de ter um homem por detrás do balcão. Por isso iria ao Lawson, onde ele ou o filho o atenderiam. Oh, que azar! Matthew não sabia que na recente expansão do seu negócio o Samuel tinha contratado uma senhora para atender ao balcão, uma sobrinha da sua mulher e uma jovem muito atraente com lindos olhos castanhos e um grande e encantador sorriso. Ela estava muito bem vestida e usava várias pulseiras que tilintavam a cada movimento das suas mãos. Matthew ficou completamente confuso quando a viu ali, e aquelas pulseiras a tilintar tiraram-lhe completamente a coragem.

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“Em que posso ajudá-lo esta tarde, senhor Cuthbert?” perguntou a miss Lucilla Harris, atenta e delicada, batendo com as pontas dos dedos em cima do balcão. “Tem alguns…alguns..., bem, alguns... ancinhos?” balbuciou Matthew. A miss Harris ficou de certa forma surpreendida, e com razão, por ouvir alguém pedir ancinhos a meio de Dezembro. “Penso que ainda temos uns,” disse, “mas estão lá atrás no armazém. Vou lá ver.” Durante a sua ausência, Matthew tentou recuperar o raciocínio para outra tentativa. Quando a Miss Harris regressou com o ancinho e perguntou alegremente: “Mais alguma coisa, senhor Cuthbert?” Matthew reuniu toda a sua coragem e perguntou: “Bem, já que fala nisso, eu se calhar até levo, isto é, quero ver,... compro,... semente de feno.” A Miss Harris já tinha ouvido dizer que o Matthew Cuthbert era estranho. Nesta altura já o tomava por completamente louco. “Nós só temos semente de feno na Primavera,” explicou lentamente. “Neste momento não temos.” “Oh, claro, claro, com certeza,” respondeu o infeliz Matthew, pegando no ancinho e dirigindo-se para a porta. Quando lá chegou lembrou-se que não tinha pago e voltou atrás. Enquanto a miss Harris lhe fazia o troco, reuniu de novo forças para uma última tentativa. “Pois, bem, se não fosse dar muito trabalho, eu gostava de,...isto é,...eu queria,...eu gostava de ver...açúcar.” “Amarelo ou refinado?” perguntou a miss Harris pacientemente. “Oh, pois, amarelo,” disse Matthew baixinho. “Está ali uma saca,” disse a miss Harris, fazendo tilintar as pulseiras na direcção que apontava. “Só temos daquele.” “Eu, eu levo cinco quilos,” disse Matthew, com gotas de suor a formarem-se na testa. Matthew já tinha percorrido uma boa parte do caminho para casa quando voltou a si. Tinha sido uma experiência horrível, mas era bem feito por ter ido fazer compras a uma loja estranha. Quando voltou a casa escondeu o ancinho no barracão das ferramentas mas levou o açúcar a Marilla. “Açúcar amarelo!” exclamou Marilla. “Que diabo te passou pela cabeça para comprares tanto? Tu sabes que nunca usamos a não ser para as papas de aveia do ajudante e para fazer bolo de amoras. O Jerry já cá não está e eu já fiz bolo de amoras há muito tempo. Nem sequer é bom, é grosso e escuro, o William Blair normalmente nem tem açúcar deste.” “Eu, eu pensei que talvez viesse a fazer falta,” disse Matthew, dirigindo-se sorrateiramente para a porta. Quando Matthew pensou a sério no assunto decidiu que era preciso uma mulher para resolver a situação. Marilla estava fora de questão. Matthew tinha a certeza que o ia tentar dissuadir. Só sobrava a senhora Lynde, pois a mais nenhuma mulher de Avonlea Matthew se atreveria a pedir conselho. Assim, foi ter com a senhora Lynde e a boa senhora depressa tomou conta do assunto, para alívio do atormentado Matthew. “Escolher um vestido para dar a Anne? Claro que sim. Vou a Carmody amanhã e vou tratar disso. Pensou nalguma coisa de especial? Não? Bom, então escolho-o ao meu gosto. Acho que um castanho dourado ficaria bem a Anne, e o William Blair tem lá um que é muito bonito. Talvez você também gostasse que eu lho fizesse, porque se for a Marilla é muito difícil que ela não descubra e isso estragava a surpresa. Pois claro que faço. Não, não me dá trabalho nenhum. Eu gosto de coser. Eu vou fazê-lo como se fosse para a minha sobrinha, a Jenny Gillis, porque ela e a Anne são muito parecidas de corpo.” “Pois, então fico-lhe muito agradecido,” disse Matthew, “E...e,...eu não sei, mas eu gostava..., eu acho que elas agora usam umas mangas

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diferentes. Se não fosse muito incómodo, eu gostava das mangas dessa maneira.” “De balão? Claro. Não precisa de se preocupar com isso Matthew. Vou fazê-lo ao último grito da moda,” disse a senhora Lynde. Quando ele se foi embora pensou para com os seus botões: “Vai ser uma verdadeira satisfação ver aquela pobre criança usar qualquer coisa decente para variar. A forma como a Marilla a veste é perfeitamente ridícula, é o que é, e eu já estive quase para lhe dizer isso uma dúzia de vezes. Não lho disse porque eu bem vejo que ela não quer conselhos e pensa que sabe mais do que eu sobre a educação de crianças, apesar de ser uma velha solteirona. Mas é mesmo assim. As pessoas que já educaram várias crianças sabem que não há um método infalível que se aplique a todas. Mas aqueles que nunca as tiveram acham que é tudo tão fácil e simples como somar dois mais dois. Mas o sangue não obedece a regras de aritmética, e é aí que Marilla está enganada. Acho que ela está a tentar cultivar o espírito de humildade na Anne vestindo-a daquela forma, mas é mais provável que cultive a inveja e o descontentamento. Tenho a certeza que a criança vê a diferença entre as roupas dela e as das outras. Mas imaginem só, o Matthew a ter reparado nisso! Aquele homem está a acordar depois de ter dormido durante sessenta anos.” Marilla sabia desde a noite anterior que Matthew tinha qualquer coisa fisgada, mas não conseguia imaginar o que seria até à véspera de Natal, quando a senhora Lynde trouxe o vestido novo. Marilla portou-se muito bem, embora tenha provavelmente desconfiado da explicação muito diplomática da senhora Lynde, que disse que tinha feito ela o vestido porque o Matthew tinha medo que Anne descobrisse e estragasse a surpresa. “Então era por isto que o Matthew andava tão misterioso e se ria sozinho nestes últimos dias!” disse um pouco seca, mas tolerante. “Eu sabia que ele andava a planear um disparate qualquer. Pois, eu devo dizer que acho que a Anne não precisava de mais vestidos, eu fiz-lhe três vestidos práticos e discretos neste Outono, e mais do que isso é uma extravagância. Ou muito me engano ou há tecido suficiente nessas mangas para fazer o corpo de um vestido. Só vai inflamar a vaidade de Anne, Matthew, e ela já é vaidosa como um pavão. Bem, ao menos espero que ela se dê por satisfeita finalmente, anda a falar nessas mangas absurdas desde que veio para cá, apesar de nunca mais ter dito nada directamente desde que lhe fiz os primeiros vestidos. Essas mangas têm aparecido cada vez maiores e mais ridículas, agora mais parecem balões. Para o ano que vem as pessoas que as usarem vão ter que passar de lado nas portas.” A manhã de Natal revelou um lindo dia todo branco de neve. Tinha sido um Dezembro muito suave, e as pessoas esperavam um Natal verde; mas durante a noite caiu neve suficiente para transfigurar Avonlea. Anne espreitou pela janela do quarto cheia de gelo com olhos maravilhados. Os pinheiros no bosque assombrado estavam todos emplumados e brilhantes, as bétulas e cerejeiras estavam debruadas de pérolas, os campos lavrados eram riscos de montes de neve, e havia um ar crepitante que era glorioso. Anne correu lá para baixo a cantar até a sua voz ecoar por toda a casa. “Feliz Natal, Marilla! Feliz Natal, Matthew! Não é um lindo Natal? Estou contente por ser um Natal branco. Qualquer outro Natal não parece verdadeiro, não é? Eu não gosto de Natais verdes. Eles não são nada verdes, são castanhos e cinzentos, desbotados e feios. Porque é que as pessoas os chamam verdes? Olha-olha, Matthew, isso é para mim? Matthew tinha discretamente desdobrado o vestido do papel onde estava embrulhado e exibia-o com um olhar de desafio a Marilla, que fingia estar a encher a chaleira, mas ia olhando para a cena pelo canto do olho com um ar interessado.

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Anne pegou no vestido e olhou para ele num silêncio reverente. Oh, como era bonito, um lindo castanho claro com o brilho da seda, uma saia com pregas e uma cintura elaboradamente abotoada com vários botões à última moda, e uma rendinha no pescoço. Mas as mangas, elas eram a glória do vestido! Longas mangas de balão que partiam do cotovelo e eram divididas por fitas e laços de seda castanha. “Aqui está um presente de Natal para ti, Anne,” disse o Matthew timidamente. “Então, Anne, não gostas? Então, então…” Porque os olhos de Anne tinham-se subitamente enchido de lágrimas. “Se gosto! Oh, Matthew!” Anne pousou o vestido numa cadeira e juntou as mãos. “Matthew, é perfeitamente requintado. Oh, nunca lhe poderei agradecer. Olhem só para aquelas mangas! Oh, parece que estou a ter um sonho maravilhoso.” “Sim, sim, mas vamos tomar o pequeno-almoço,” interrompeu Marilla. “Devo dizer-te, Anne, que não penso que precises do vestido, mas uma vez que o Matthew to comprou vê se tens cuidado com ele. A senhora Lynde também te deixou uma fita para o cabelo. É castanha como o vestido. Agora vem sentar-te á mesa.” “Eu não sei como é que vou tomar o pequeno-almoço,” disse Anne encantada. “O pequeno-almoço é algo tão vulgar num momento tão excitante. Prefiro deliciar os meus olhos com o vestido. Ainda bem que as mangas de balão ainda estão na moda. Parece-me que nunca seria capaz de ultrapassar o facto, se eu não chegasse a usá-las antes de saírem de moda. Nunca me teria sentido completamente satisfeita, sabem. A senhora Lynde foi tão amorosa em dar-me a fita. Agora acho que tenho mesmo que ser muito boa menina. É nestas alturas que tenho pena de não ser uma menina modelo, e decido sempre que no futuro vou ser. Mas é tão difícil manter as nossas decisões quando aparecem tentações irresistíveis...Mesmo assim, vou tentar fazer um esforço extra desta vez.” Quando o vulgar pequeno-almoço terminou a Diana apareceu, atravessando a ponte de troncos do declive, uma pequena figura alegre na sua capa carmim. Anne correu pelo caminho na sua direcção. “Feliz Natal, Diana! E, oh, é um natal maravilhoso. Tenho uma coisa esplêndida para te mostrar. O Matthew deu-me o vestido mais lindo, com umas mangas!... Nem sequer consigo imaginar umas mais bonitas.” “Eu também tenho uma coisa para ti,” disse a Diana sem fôlego. “Toma, esta caixa. A tia Josephine mandou-nos uma caixa com imensas coisas lá dentro, e esta é para ti. Eu tinha-ta trazido ontem, mas só veio à noite e eu não gosto nada de passar no Bosque Assombrado depois de escurecer.” Anne abriu a caixa e espreitou. Primeiro viu um cartão que dizia ‘Para a miúda-Anne, um Feliz Natal’; e depois um par dos mais lindos sapatinhos de criança, com missangas e lacinhos e fivelas brilhantes. “Oh,” disse Anne, “Diana, isto é demais. Eu devo estar a sonhar.” “Eu acho que foi providencial,” disse a Diana. “Assim não tens que pedir os da Ruby emprestados e é uma sorte porque são dois números acima dos teus e seria horrível ouvir uma fada a arrastar os sapatos. A Josie Pye ficaria encantada. Sabes que o Rob Wright ontem foi para casa com a Gertie Pie depois do ensaio? Já tinhas ouvido tal coisa?” Todos os alunos de Avonlea estavam ardendo de excitação nesse dia, porque tinham que decorar o salão e fazer um ensaio geral. O concerto deu-se à noite e foi um sucesso estrondoso. O salão estava repleto, e todos os participantes se portaram lindamente, mas Anne foi a estrela mais brilhante da noite, coisa que nem a inveja em forma de gente da Josie Pye poderia negar. “Oh, não foi uma noite brilhante?” suspirou Anne, quando tudo terminou e ela e Diana caminhavam juntas para casa debaixo de um céu negro pontilhado de estrelas.

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“Correu tudo bem,” disse a Diana prática como sempre. “Acho que fizemos cerca de dez dólares. Sabes, o senhor Allan vai mandar um artigo sobre isto para os jornais de Charlottetown.” “Oh, Diana, achas que vamos ver os nossos nomes nos jornais? Fico arrepiada só de pensar. O teu solo foi tão elegante, Diana. Senti-me ainda mais orgulhosa do que tu quando pediram bis. Pensei para mim, ‘É a minha querida amiga do peito que está a ser homenageada’. “Bem, mas as tuas declamações quase deitaram a casa abaixo com aplausos, Anne. Aquela triste foi simplesmente esplêndida.” “Oh, mas eu estava tão nervosa, Diana. Quando o senhor Allan me chamou eu nem sei como consegui subir para o palco. Senti-me como se um milhão de olhos estivessem postos em mim, e por um momento temi não ser capaz de começar. Então lembrei-me das minhas maravilhosas mangas de balão e tomei coragem. Eu sabia que tinha que estar à altura daquelas mangas, Diana. Por isso comecei, e a minha voz parecia vir de muito longe. Senti-me como um papagaio. Foi muito bom ter praticado os recitais na cocheira tantas vezes, senão nunca teria sido capaz de as dizer. Gemi bem?” “Sim, claro, gemeste muito bem,” assegurou Diana. “Eu vi a velha senhora Sloane a limpar as lágrimas quando me sentei. É esplendido pensar que toquei o coração de alguém. É tão romântico tomar parte num concerto, não é? Oh, foi de facto uma ocasião memorável.” “Não achaste que o diálogo dos rapazes foi muito bom?” disse Diana. “O Gilbert Blythe foi esplêndido. Anne, eu acho que tratas muito mal o Gil. Ainda não te disse. Quando saíste do palco depois o diálogo das fadas uma das tuas rosas caiu do teu cabelo. Eu vi o Gil apanhá-la e metê-la no bolso do peito. Aí tens. És tão romântica, tenho a certeza que deves ficar contente com isso.” “Não tenho nada a ver com o que essa pessoa faz,” disse Anne secamente. “Eu limito-me a não desperdiçar um pensamento com ele.” Nessa noite, Marilla e Matthew que tinham ido a um concerto pela primeira vez em vinte anos, sentaram-se ao lume da cozinha durante um bocado, depois de a Anne se ter deitado. “Bem, pois parece-me que a nossa Anne se saiu tão bem como os outros,” disse Matthew com orgulho. “Saiu sim senhor,” Admitiu Marilla. “Ela é uma criança inteligente, Matthew. E também estava muito bonita. Eu nunca concordei com esta história do concerto mas acho que afinal não teve nada de mal. De qualquer forma, fiquei muito orgulhosa da Anne esta noite, mas não lho vou dizer.” “Pois eu fiquei orgulhoso dela e disse-lho antes dela ir para cima,” disse Matthew. “Nós temos que ver o que podemos fazer por ela um destes dias, Marilla. Acho que ela vai precisar de mais do que a escola aqui de Avonlea.” “Há muito tempo para pensarmos nisso,” disse Marilla. “Ela só faz treze anos em Março. Eu hoje reparei que está a ficar muito alta. A senhora Lynde fez o vestido um bocado comprido demais, e faz com que a Anne pareça muito alta. Ela aprende muito depressa e eu acho que o melhor que temos a fazer é mandá-la para Queen’s mais tarde. Mas não vale a pena falarmos disso por um ano ou dois.” “Pois, mas não faz mal nenhum irmos pensando nisso de vez em quando,” disse Matthew. “Essas coisas são das melhores para se ir pensando.” Capítulo XXVI Forma-se o Clube de Histórias A juventude de Avonlea teve dificuldade em regressar à normalidade depois do concerto. Para Anne em particular as coisas pareciam terrivelmente chatas, paradas, e sem valor depois da maré de excitação

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em que navegara durante semanas. Conseguiria regressar aos prazeres tranquilos daqueles dias distantes antes do concerto? De início, como confidenciou a Diana, pensou que não. “Tenho a certeza absoluta, Diana, que a vida nunca mais será a mesma,” disse com tristeza como se referisse a um período de há cinquenta anos atrás. “Talvez mais tarde eu me venha a habituar, mas receio que os concertos estraguem a vida das pessoas no dia a dia. Penso que é por isso que Marilla os desaprova. A Marilla é uma mulher tão sensata. Deve ser muito melhor ser sensata, mas ainda assim eu não acho que quisesse mesmo ser uma pessoa sensata, porque são tão pouco românticas. A senhora Lynde diz que não há qualquer risco de eu me vir a tornar numa, mas quem sabe? Eu até acho que posso vir a ser sensata quando crescer. Mas talvez eu sinta isso porque estou cansada. Eu simplesmente não consegui dormir na noite passada. Deixei-me estar acordada a imaginar o concerto uma e outra vez. O que é esplendido neste tipo de coisas é que é tão agradável recordar tudo de novo.” Com o tempo, a escola de Avonlea voltou ao normal, e retomou os seus interesses. De qualquer forma, o concerto deixou as suas marcas. Ruby Gillis e Emma White, que tinham discutido sobre os respectivos lugares no palco, nunca mais se sentaram na mesma carteira, e quebrou-se uma promissora amizade de três anos. A Josie Pye e a Julia Bell não se falaram durante três meses porque a Josie tinha dito à Bessie Wright que o laço que a Julia usava quando se levantou para recitar a fez lembrar uma galinha a abanar a cabeça, e a Bessie contou à Julia. Os Sloanes distanciaram-se dos Bell porque os Bells afirmaram que os Sloanes estavam muito representados no programa, e os Sloanes responderam que os Bells não foram capazes de fazer o pouco que tinham a seu cargo em condições. Finalmente, o Charlie Sloane brigou com o Moody Spurgeon MacPherson, porque o Moody Spurgeon tinha dito que a Anne Shirley tinha ficado com a mania por causa dos recitais, e o Moody Spurgeon tinha levado uma sova; em consequência disto a irmã do Moody Ella May não falou à Anne durante o resto do Inverno. À excepção destas pequenas fricções o trabalho no pequeno reino da senhora Stacy corria com regularidade e eficiência. As semanas de Inverno foram passando. Foi um Inverno invulgarmente suave com tão pouca neve que Anne e Diana podiam ir para a escola quase todos os dias pelo caminho das bétulas. No dia do aniversário da Anne era por aí que iam caminhando alegremente com os olhos e orelhas alerta entre as conversas, porque a miss Stacy tinha-lhes dito que teriam que escrever uma composição intitulada ‘Um passeio de Inverno no bosque’, e recomendara que fossem observadores. “Pensa só, Diana. Hoje faço treze anos,” lembrou Anne numa voz deslumbrada. “Eu mal posso acreditar que sou adolescente. Quando acordei esta manhã parecia-me que tudo deveria estar diferente. Tu já tens treze anos há um mês, por isso suponho que não te parece uma novidade tão grande como é para mim. Torna a vida muito mais interessante. Daqui por dois anos vou ser mesmo crescida. Fico muito aliviada por pensar que nessa altura vou poder usar palavras complicadas sem que se riam de mim.” “A Ruby Gillis diz que quer ter um namorado assim que fizer quinze anos,” disse Diana. “A Ruby Gillis não pensa em mais nada senão namorados,” disse Anne com desdém. “Ela fica mesmo contente quando alguém escreve o nome dela na parede apesar de se fingir zangada. Mas receio que esteja a ser indelicada com ela. A senhora Allan diz que nunca devemos ser indelicados com ninguém, mas as coisas saem-nos da boca antes de pensar, não achas? Eu não consigo falar sobre a Josie Pye sem ser indelicada, por isso nunca falo dela. Talvez tenhas reparado nisso. Eu estou a tentar parecer-me com a senhora Allan em tudo o que posso, porque eu acho que ela é perfeita. O senhor Allan também acha. A senhora Lynde diz que ele adora o chão que ela pisa, e que ela não

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acha nada bem que um pastor se dedique tanto a um ser mortal. Mas Diana, mesmo os pastores são seres humanos e têm tendência para certos pecados como qualquer outra pessoa. Eu tive uma conversa tão interessante com o senhor Allan sobre os pecados para que temos mais tendência no domingo passado. Se há algumas coisas apropriadas para falar nos domingos esta é uma delas. O pecado para que eu tenho mais tendência é imaginar demais e esquecer-me dos meus deveres. Estou a tentar ultrapassá-lo, e agora que tenho mesmo treze anos pode ser que me consiga sair melhor.” “Daqui por quatro anos vamos poder usar o cabelo apanhado em cima,” disse Diana. “A Alice Bell só tem dezasseis anos e já o usa assim, mas eu acho que é ridículo. Eu vou esperar até ter dezassete.” “Se eu tivesse o nariz da Alice Bell,” começou Anne, ”não usava, mas pronto! Não vou continuar a dizer o que ia dizer porque é extremamente indelicado. Além disso eu estava a compará-lo com o meu e isso é vaidade. Receio que pense demais no meu nariz desde que o elogiaram há tanto tempo. Foi um grande consolo para mim. Oh, Diana, olha está ali um coelho. Aí está uma coisa para recordar na composição. Eu acho que os bosques são tão bonitos no Inverno como no Verão. São tão brancos e sossegados, como se estivessem a dormir e sonhassem sonhos bonitos.” “Eu não me importo de escrever a composição quando a professora pedir,” suspirou Diana. “Eu consigo escrever sobre os bosques, mas a composição que tivemos na segunda-feira foi terrível. A ideia da Miss Stacy de nos mandar escrever uma história inventada por nós!” “Porquê, é tão fácil!” disse Anne. “É fácil para ti porque tens muita imaginação,” respondeu Diana,” mas o que é que fazias se tivesses nascido sem ela? Suponho que já tenhas a tua composição feita?” Anne acenou afirmativamente, tentando não parecer complacente e falhando. “Escrevi-a na segunda-feira à noite. Chama-se ‘A rival invejosa, ou Nem a morte nos pode separar’. Li-a à Marilla e ela disse que era disparatada. Depois li-a ao Matthew e ele disse que estava muito boa. É o tipo de crítica que eu aprecio. É uma história triste e doce. Eu chorei como uma madalena enquanto a escrevia. É acerca de duas lindas donzelas chamadas Cordélia Montmorency e Geraldine Seymour que vivem na mesma aldeia e são muito devotadas uma à outra. A Cordélia é morena com uma madeixa de cabelo negro, e lindos olhos cinzentos. A Geraldine é loira e tem olhos de um lilás aveludado.” “Eu nunca vi ninguém com olhos lilás,” duvidou Diana. “Nem eu. Imaginei-os. Queria qualquer coisa fora do vulgar. A Geraldine tem um rosto de alabastro. Já descobri o que é um rosto de alabastro. É uma das vantagens de ter treze anos. Sabe-se muito mais do quando tínhamos doze.” “Sim, mas o que é que aconteceu à Geraldine e à Cordélia?” perguntou Diana, que se começou a interessar pelos seus destinos. “Cresceram em beleza lado a lado até fazerem dezasseis anos. Então Bertram DeVere apareceu na aldeia delas e apaixonou-se pela bela Geraldine. Salvou a vida dela quando o cavalo fugiu com a carruagem dela, e ela desmaiou nos braços dele e ele carregou-a durante uns quilómetros até casa, porque a carruagem ficou destruída, percebes? Eu tive muita dificuldade para imaginar como é que ele se declarou, porque não tenho experiência para me orientar. Perguntei à Ruby Gillis se ela sabia como é que os homens se declaravam porque pensei que ela fosse uma autoridade na matéria, com tantas irmãs casadas. A Ruby contou-me que estava na entrada quando o Malcolm Andres se declarou à irmã Susan. Ela disse que ele disse à Susan que o pai dele tinha posto a quinta no nome dele e depois perguntou, ’O que dizes, fofinha, se nos juntarmos neste Outono?’ E a Susan disse, ‘Sim,...não,...não sei, deixa-me pensar’ e ficaram noivos tão rápido como isto. Mas eu não achei que esse tipo de declaração fosse muito romântica e acabei por

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ter que imaginar uma como pude. Fi-la muito floreada e poética e o Bertram pôs-se de joelhos, apesar de a Ruby dizer que isso já não é assim hoje em dia. A Geraldine aceitou com um discurso que ocupou uma página. Posso dizer-te que me custou escrever aquele discurso. Escrevi-o cinco vezes e vejo-o como a minha obra-prima. Bertram deulhe um anel de diamantes e um colar de rubis, e disse-lhe que iam à Europa passar a lua-de-mel porque ele era imensamente rico. Mas então, tragicamente, nuvens negras começaram a ensombrar o caminho deles. A Cordélia estava secretamente apaixonada pelo Bertram, e quando a Geraldine lhe contou sobre o noivado ela ficou furiosa, principalmente quando viu o colar e o anel de diamantes. Todo o seu afecto pela Geraldine tornou-se num ódio amargo e ela jurou que a outra nunca casaria com Bertram. Mas ela fingiu ser amiga da Geraldine como antes. Numa noite elas estavam numa ponte sobre um rio de corrente turbulenta e a Cordélia, pensando que estavam sozinhas, empurrou a Geraldine para o rio com um riso louco de raiva. Mas o Bertram viu tudo e atirou-se ao rio, exclamando ’Irei salvar-vos, minha Geraldine sem igual’. Mas ele esqueceu-se que não sabia nadar e morreram os dois afogados, de mãos dadas. Os corpos deles deram à costa pouco tempo depois. Eles foram enterrados juntos e o funeral deles foi muito impressionante, Diana. É muito mais romântico terminar uma história com um funeral do que com um casamento. A Cordélia ficou louca de remorsos e foi para um asilo de loucos. Eu achei que era uma retribuição poética para o crime.” “Que lindo!” suspirou Diana, que pertencia ao mesmo grupo de críticos que Matthew. “Eu não sei como é que tu consegues inventar estas histórias arrepiantes, Anne. Eu gostava tanto de ter tanta imaginação como tu.” “Terias, se a cultivasses,” animou-a Anne. “Pensei numa coisa, Diana. Vamos ter um clube de histórias nós as duas para praticarmos. Eu ajudo-te até tu seres capaz sozinha. Deves cultivar a tua imaginação, sabes? A senhora Stacy é que diz. Mas temos que a levar na direcção certa. Eu contei-lhe do bosque assombrado e ela disse que a tínhamos levado na direcção errada dessa vez.” E foi assim que se formou o clube de histórias. No início estava limitado à Anne e à Diana, mas cedo incluiu a Jane Andrews e a Ruby Gillis e mais umas meninas que achavam que a imaginação delas precisava de ser cultivada. Não eram permitidos rapazes, apesar de a Ruby Gillis achar que a entrada deles tornaria o clube mais excitante, e cada membro tinha que escrever uma história por semana. “É extremamente interessante,” disse Anne a Marilla. “Cada rapariga tem que ler alto a história dela e depois comentamo-la. Vamos guardar todas as histórias para as lermos aos nossos descendentes. Todas temos um pseudónimo. O meu é Rosamond Montmorency. Todas as raparigas se estão a sair bem. A Ruby Gillis é muito sentimental. Ela põe muitas vezes as pessoas das histórias a namorar e você sabe que demais neste caso é pior que de menos. A Jane nunca põe, porque ela diz que soa estranho quando tem que ler alto. As histórias da Jane são extremamente sensatas. A Diana põe demasiados assassinatos nas delas. Ela diz que na maior parte das vezes não sabe o que fazer com as pessoas e mata-as para se ver livre delas. Na maior parte das vezes eu tenho que lhes dizer sobre o que é que devem escrever, mas não é difícil porque eu tenho milhões de ideias.” “Eu acho que esta mania de escreverem histórias é a maior parvoíce de todas,” resmungou Marilla. “Vão ficar com a cabeça cheia de disparates e perder tempo que deviam usar para estudar. Ler histórias já é suficientemente mau, mas escrevê-las é ainda pior.” “Mas nós temos sempre tanto cuidado em pôr-lhes um fundo moral, Marilla.” Explicou Anne. “Eu insisto muito nisso. Todas as pessoas boas são recompensadas e todas as más são castigadas. De certeza que isso deve ter um efeito educativo. A moral é uma coisa muito boa, o

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senhor Allan diz que sim. Eu li uma das minhas histórias ao senhor e à senhora Allan e eles ambos disseram que era excelente. Só que eles riram nas partes erradas. Eu prefiro quando as pessoas choram. A Jane e a Ruby choram sempre quando eu chego às partes tristes. A Diana escreveu à tia Josephine a contar-lhe do clube e ela pediu-lhe que lhe mandássemos algumas histórias. Por isso ela copiou quatro e mandoulhas. A senhora Josephine escreveu-nos a dizer que eram a coisa mais engraçada que já tinha lido na vida. Isso deixou-me um pouco intrigada porque eram todas tão tristes e quase toda a gente morria. Mas fiquei contente por a senhora Barry ter gostado. É sinal que o nosso clube está a produzir alguma coisa boa neste mundo. A senhora Allan diz que esse deve ser o nosso objectivo em tudo. Eu tento a sério fazer com que seja o meu objectivo, mas às vezes esqueço-me quando me estou a divertir. Eu espero ser um bocadinho como a senhora Allan quando crescer. Acha que tenho boa perspectivas, Marilla?” “Não penso que haja muitas,” foi a resposta encorajadora de Marilla. “Tenho a certeza que a senhora Allan nunca foi uma menina tonta e esquecida como tu és.” “Não, mas ela também não foi sempre tão boa como é agora,” disse Anne muito séria. “Ela contou-me que quando era pequena era muito asneirenta e que se estava sempre a meter em sarilhos. Eu sinto-me tão encorajada quando oiço isso. Sou muito má, Marilla, por me sentir encorajada quando oiço outras pessoas dizerem que foram más e fizeram asneiras? A senhora Lynde diz que sim. Ela diz que se sente sempre chocada quando ouve alguém dizer que foi maroto, por muito pequeno que fosse. A senhora Lynde diz que uma vez ouviu um pastor confessar que quando ele era pequeno roubou uma tarte de morangos da despensa da avó, e ela nunca mais teve respeito por esse pastor. Mas eu não me teria sentido assim. Eu teria pensado que era muito nobre da parte dele confessar essa falta, e teria achado que era de facto encorajador pensar que os rapazes que hoje em dia fazem maldades e se arrependem podem vir a ser pastores quando crescerem, apesar de tudo. Era o que eu achava, Marilla.” “O que eu acho nesta altura, Anne,” disse Marilla,” é que já são mais do que horas de teres essa loiça lavada. Demoraste mais meia hora do que devias com toda essa tagarelice. Aprende a trabalhar primeiro e a conversar depois.”

Capítulo XXVII Vaidade e Humilhação Marilla regressava a casa a pé ao anoitecer de uma reunião da Aid Society, reparando que o Inverno tinha terminado com o entusiasmo que a Primavera nunca deixa de trazer aos mais velhos e tristes, tal como aos novos e felizes. Marilla não era dada a análises subjectivas de pensamentos e sentimentos. Ela provavelmente imaginava que estava a pensar na Aid Society, na caixa dos missionários e na carpete nova para a sala dos paramentos, mas sob estas reflexões havia uma consciência harmoniosa dos campos vermelhos esfumando-se em neblinas arroxeadas ao pôr-do-sol, de longas e pontiagudas sombras de pinheiros caindo sobre o prado para além do bosque, de calmos bordos carregados de rebentos carmim em volta de um lago espelhado, de um despertar do mundo e um frémito de pulsações escondidas por debaixo do chão. A Primavera andava à solta pela terra e os passos da sóbria Marilla eram mais leves e rápidos por causa da sua satisfação profunda e instintiva.

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Os seus olhos dirigiam-se com afecto para Green Gables, espreitando por entre a profusão de árvores e a reflexão do sol em inúmeras janelas. Marilla pensava enquanto caminhava pela alameda enlameada, que era realmente uma satisfação regressar a casa quando tínhamos um fogão de sala aceso e a mesa posta para o chá, em vez do frio que encontrava no final de cada reunião, antes da Anne ter vindo para Green Gables. Por isso mesmo, quando Marilla entrou na cozinha e encontrou o lume apagado e nenhum sinal da Anne sentiu-se justamente desapontada e irritada. Tinha dito a Anne que tivesse o chá pronto às cinco, e agora tinha que andar à pressa para despir o vestido, vestir a roupa de casa e preparar o chá a tempo do regresso do Matthew. “Eu trato da menina Anne quando ela chegar a casa,” disse Marilla aborrecida, enquanto cortava uns paus para o lume com o machado da carne e mais força do que a seria necessária. Matthew já tinha chegado e esperava pacientemente pelo chá a um canto. “Ela anda para aí nalgum lado com a Diana, a escrever histórias ou a praticar diálogos, ou outra parvoíce qualquer, sem pensar sequer uma vez nos trabalhos que tem a fazer ou nas horas que são. Ela tem que ser castigada por este tipo de coisas. Não me interessa se a senhora Allan acha que ela é a criança mais doce e inteligente que ela conheceu. Ela pode ser doce e inteligente, não tenho dúvidas, mas tem a cabeça cheia de disparates e nunca se sabe que diabo vai inventar a seguir. Assim que se deixa de uma esquisitice começa com outra. Mas ora aí está! Estou precisamente a repetir aquilo que fiquei tão chateada por ouvir dizer à Rachel Lynde hoje na reunião. Fiquei muito satisfeita quando a senhora Allan falou a favor da Anne, porque se não o tivesse feito eu tenho a certeza que tinha respondido mal à Rachel à frente de toda a gente. A Anne tem muitos defeitos, Deus sabe, e longe de mim negá-lo. Mas sou eu que a estou a educar e não a Rachel Lynde, e ela encontraria defeitos até no Anjo Gabriel se ele vivesse em Avonlea. De qualquer forma, a Anne não tinha nada que sair de casa desta maneira quando eu lhe disse que devia ficar em casa a tratar das coisas. Devo dizer que com todos os seus defeitos nunca a vi ser desobediente nem pouco fiável, e estou muito aborrecida por lhos descobrir agora!” “Bem, pois não sei,” disse Matthew, que sendo paciente e sábio e acima de tudo estando esfomeado, sabia que era melhor deixar a Marilla ir descarregando a sua ira, pois pela sua experiência de anos sabia que ela faria o seu trabalho mais depressa se não tivesse que argumentar com ele. “Talvez estejas a ser muito dura com ela, Marilla. Não digas que ela é de pouca confiança antes de teres a certeza que ela te desobedeceu. Talvez tudo se explique, a Anne explica-se sempre tão bem.” “Ela não estava em casa quando lhe disse para estar,” respondeu Marilla. “Acho muito difícil que ela consiga explicar isso a ponto de me deixar satisfeita. Claro que eu sabia que ias ficar do lado dela, Matthew. Mas sou eu que a está a educar, não és tu.” Já estava escuro quando o jantar ficou pronto, e nem um sinal de Anne vindo à pressa da Alameda dos Apaixonados, sem fôlego e arrependida com a noção de ter falhado com os seus deveres. Marilla lavou e arrumou os pratos zangada. Então, à procura de uma vela para iluminar o caminho até à cave, foi ao quarto do sótão buscar a que geralmente ficava na mesa de Anne. Ao acende-la, voltou-se e deu com a Anne deitada na cama, com a cara para baixo entre as almofadas. “Valha-nos Deus!” disse Marilla espantada. “Estiveste a dormir, Anne?” “Não,” foi a resposta abafada que se ouviu. “Então estás doente?” perguntou Marilla ansiosa, dirigindo-se à cama. Anne enterrou-se mais profundamente nas almofadas, como se desejasse esconder-se para sempre dos olhos dos mortais. “Não. Mas por favor, Marilla, vá-se embora e não olhe para mim. Estou nos abismos do desespero e não me interessa quem é o melhor da classe,

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ou escreve a melhor composição ou canta no coro da escola dominical. Pequenas coisas como essas não têm qualquer importância agora porque acho que nunca mais poderei ir a lado nenhum. A minha carreira terminou. Por favor, Marilla, vá-se embora e não olhe para mim.” “Mas já alguém ouviu tal coisa?” perguntou a perplexa Marilla. “Anne Shirley, o que é que se passa contigo? O que é que fizeste? Levanta-te imediatamente e diz-me. Imediatamente, já disse. Então mas o que é que se passa?” Anne tinha deslizado para o chão numa obediência desesperada. “Olhe para o meu cabelo, Marilla,” murmurou. Marilla levantou a vela e olhou com atenção para o cabelo da Anne, que caía em pastas pelas costas abaixo. Tinha certamente uma aparência estranha. “Anne Shirley, o que é que fizeste ao cabelo? Está...está verde!” Poderia chamar-se verde, se existisse alguma cor no mundo que o definisse, um tom estranho de verde bronze com manchas aqui e ali do vermelho original para realçar o horrível efeito. Nunca na vida tinha Marilla visto algo tão grotesco como o cabelo de Anne naquele momento. “Sim, está verde,” gemeu Anne. “Eu pensava que nada podia ser tão mau como encarnado. Mas agora sei que é dez vezes pior ter cabelo verde. Oh, Marilla, você não imagina como estou miseravelmente infeliz.” “Eu não imagino como é que isto te aconteceu, mas pretendo descobrir,” disse Marilla. “Anda lá para baixo para a cozinha, está muito frio aqui, e diz-me o que é que fizeste. Já andava à espera de uma destas há algum tempo. Há dois meses que não te metias em sarilhos, e já não era sem tempo. Então afinal o que é que fizeste ao cabelo?” “Pintei-o.” “Pintaste-o! Pintaste o cabelo! Anne Shirley, não sabias que isso é uma coisa terrível de se fazer?” “Sim, eu sabia que era um bocadinho má,” admitiu Anne. “Mas eu pensei que valia a pena ser um bocadinho má para me ver livre do cabelo ruivo. Eu tive consciência, Marilla. E eu tencionava ser muito melhor a seguir para compensar.” “Bem,” disse Marilla sarcástica, “se eu tivesse decidido que valia a pena pintar o cabelo, pelo menos tinha escolhido uma cor decente. Eu nunca o teria pintado de verde.” “Mas eu não o quis pintar de verde, Marilla,” protestou Anne inconsolável. “Se eu fui má fui-o com um propósito. Ele disse que o meu cabelo ia ficar de um tom lindo, negro como um corvo, ele garantiu-me que sim. Como podia duvidar da palavra dele, Marilla? Eu sei como nos sentimos quando duvidam da nossa palavra. E a senhora Allan diz que nunca devemos duvidar da palavra de ninguém a não ser que tenhamos provas que estão a mentir. Agora tenho a prova, cabelos verdes serviam de prova a qualquer pessoa. Mas naquela altura não tinha e acreditei absolutamente em cada palavra que me disse.” “Quem é que disse? De quem é que estás a falar?” “Do vendedor ambulante que aqui esteve esta tarde. Eu comprei-lhe a tinta do cabelo.” “Anne Shirley, quantas vezes te disse que não deixassem entrar esses italianos dentro de casa! Eu não acho sequer que se devam encorajar a andar por aí.” “Oh, mas eu não o deixei entrar. Eu lembrei-me do que me disse e fui lá fora, fechei a porta com cuidado e vi as coisas que ele trazia na rua. E ele não era italiano, era um judeu alemão. Tinha uma caixa cheia de coisas interessantes e disse-me que trabalhava muito para trazer a mulher e os filhos da Alemanha. Ele falou deles com tanta sinceridade que me tocou o coração. Eu quis comprar-lhe qualquer coisa para o ajudar. Então vi a garrafa de tinta para o cabelo. O vendedor disse que era garantido que pintava qualquer cabelo de um lindo tom de negro azulado e que não saía com as lavagens. Vi-me logo com um lindo cabelo negro e a tentação foi irresistível. Mas o preço da garrafa era

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setenta cêntimos e eu só tinha cinquenta no meu mealheiro. Eu acho que o vendedor era uma pessoa boa, porque ele disse que uma vez que era para mim ele vendia-a por cinquenta e isso era estar praticamente a oferecê-la. Por isso comprei-a e assim que ele se foi embora eu vim cá a cima e apliquei-a com uma escova velha como dizia nas instruções. Usei a garrafa toda, e oh, Marilla, quando vi a cor horrível que ficou no cabelo eu arrependi-me de ter sido má, isso posso assegurar-lhe. E desde essa altura que me estou a arrepender.” “Pois, eu espero que o teu arrependimento te sirva de alguma coisa.” Disse Marilla severamente. “E que isto te abra os olhos para onde a tua vaidade te leva, Anne. Só Deus sabe como é que vamos resolver isto. Acho que a primeira coisa a fazer é lavar-te muito bem o cabelo e ver se dá algum resultado.” E assim, Anne lavou o cabelo, esfregando-o vigorosamente com água e sabão, mas a pouca diferença que trouxe fê-la continuar a desejar o seu tom vermelho original. O vendedor tinha dito a verdade quando afirmou que não saía com as lavagens, apesar de se ter revelado pouco fiável noutros aspectos. “Oh, Marilla, o que é que vou fazer?” perguntava Anne por entre lágrimas. “Nunca vou ultrapassar isto. As pessoas acabam por esquecer as minhas outras asneiras, o bolo de linhaça e ter embebedado a Diana e ter sido malcriada com a senhora Lynde. Mas nunca esquecerão isto. Vão pensar que não sou respeitável. Oh, Marilla, em que teias nos enredamos quando pensamos em ser más. Isto é poético mas também é verdade. E oh, como a Josie Pye se vai rir! Marilla, eu não consigo encarar a Josie Pye. Eu sou a rapariga mais infeliz da Ilha do Príncipe Eduardo.” A infelicidade de Anne continuou durante uma semana. Durante esse período ela não saiu de casa e lavou o cabelo. Apenas a Diana conhecia o fatal segredo, mas prometeu solenemente não contar, e podemos afirmar que cumpriu a promessa. No final da semana Marilla disse decidida: “Não vale a pena, Anne. Esta tinta não sai. Tens que cortar o cabelo, não há outra maneira. Não podes sair com o cabelo nesse estado.” Os lábios de Anne tremeram quando compreendeu a crua verdade das palavras de Marilla. Com um suspiro de desalento foi buscar a tesoura. “Por favor, corte-o de uma vez, Marilla, acabemos com isto. Oh, sinto o coração despedaçado. É uma aflição tão pouco romântica. As raparigas dos livros perdem o cabelo por causa de febres, ou vendem-no para ajudar uma boa causa, e tenho a certeza que não me importava de perder o cabelo dessa forma. Mas não há nada de reconfortante em ter que cortar o cabelo porque o pintámos de uma cor horrível, ou há? Vou chorar enquanto o estiver a cortar, se não a incomodar. Parece-me uma coisa tão trágica.” Anne chorou então, mas mais tarde quando subiu lá para cima e se viu ao espelho estava calma de desespero. Marilla tinha feito o trabalho com dedicação e tinha sido necessário cortá-lo tão curto como possível. O resultado não a favorecia, para usar a expressão mais suave. Anne virou o espelho para a parede. “Nunca, nunca mais olho para o espelho outra vez enquanto o meu cabelo não crescer,” exclamou apaixonadamente. Então subitamente voltou a colocar o espelho como estava. “Vou sim senhora! Vou penitenciar-me por ter sido má. Vou olhar para mim de cada vez que entrar neste quarto e ver como estou feia. E não me vou imaginar de outra forma. Nunca pensei que fosse vaidosa com o meu cabelo, mas agora vejo que era, apesar de ser ruivo porque era tão comprido e forte e encaracolado. Acho que a seguir me vai acontecer qualquer coisa ao nariz.” Os cabelos cortados de Anne fizeram sensação na escola no dia seguinte, mas para seu alívio ninguém desconfiou o que tinha

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acontecido, nem sequer a Josie Pye, que mesmo assim não perdeu a oportunidade de lhe dizer que parecia um espantalho. “Eu não respondi quando a Josie me disse aquilo,” confidenciou Anne nessa noite a Marilla, que estava deitada no sofá por ter tido uma dor de cabeça, “porque achei que fazia parte do castigo e devia suportá-lo com paciência. É difícil ouvir dizer que parecemos um espantalho, e eu queria responder-lhe. Mas não o fiz. Olhei para ela com desdém e perdoei-lhe. Faz-nos sentir muito virtuosas quando perdoamos as pessoas, não é? Eu tenciono dedicar todas as minhas energias a ser boa depois disto e nunca mais vou tentar ser bonita. Claro que é melhor ser boa. Eu sei que é, mas às vezes temos dificuldade em acreditar numa coisa mesmo quando sabemos que é assim. Eu quero mesmo ser boa, Marilla, como você e a senhora Allan e a miss Stacy, e tornar-me um orgulho para si. A Diana diz que quando o meu cabelo começar a crescer outra vez eu posso atar uma fita de veludo preto à volta da cabeça e dar um laço de lado. Ela diz que me deve ficar muito bem. Mas estou a falar demais, Marilla? Faz-lhe doer a cabeça? “A minha cabeça está melhor, agora. Estive muito mal esta tarde. Estas minhas dores de cabeça estão cada vez piores. Tenho que ir ao médico por causa disto. Quanto à tua conversa, não sei se me importo, acho que me habituei tanto a ela...” Que era a forma de a Marilla dizer que gostava de a ouvir. Capítulo XXVIII Uma infeliz Dama dos Lírios Claro que tens que ser a Elaine, Anne,” disse a Diana. “Eu nunca teria coragem de ir no barco.” “Nem eu,” disse a Ruby Gillis com um arrepio. “Eu não me importo de ir no barco se formos todas e sentadas. Assim é divertido. Mas deitar-me lá e fingir que estou morta – não consigo. Morria mesmo de medo.” “Claro que seria romântico,” concordou Jane Andrews, ”mas eu sei que não conseguia ir quieta. Ia-me levantar a cada instante para ver onde estava e se não estava a ir para longe. E tu sabes, Anne, que isso ia estragar o efeito.” “Mas é ridículo ter uma Elaine ruiva,” lamentou-se Anne. “Eu não tenho medo de ir no barco, e adorava ser a Elaine, mas mesmo assim é ridículo. A Ruby devia ser a Elaine porque é tão bonita e tem o cabelo loiro e comprido: a Elaine tinha ‘todo o seu brilhante cabelo caído’, não vêem? E a Elaine era a Dama dos Lírios. Uma pessoa ruiva não pode ser uma Dama dos Lírios.” “A tua pele é tão clara como a da Ruby,” disse a Diana sinceramente, ”e o teu cabelo é muito mais escuro do que era quando o cortaste.” “Oh, achas mesmo que sim?” exclamou Anne, corando um pouco de agrado. “Eu já tinha reparado, mas nunca me atrevi a perguntar a ninguém com medo que me dissesse que não. Achas que se podia chamar vermelho acastanhado, Diana?” “Sim, e acho que está muito bonito.,” disse Diana, olhando com admiração para os caracóis curtos e sedosos que coroavam a cabeça de Anne e estavam presos por uma bonita fita preta de veludo com um lacinho. Estavam na margem do lago, abaixo da Orchard’s Slope, onde uma manga de terra debruada a bétulas se destacava da margem; na ponta havia uma pequena plataforma de madeira construída sobre a água para uso dos pescadores e dos caçadores de patos. A Ruby e a Jane tinham vindo passar a tarde com a Diana, e a Anne tinha vindo brincar com elas. Anne e Diana tinham passado a maior parte do tempo naquele Verão a brincar junto ao lago. Idlewild era uma coisa do passado, porque o senhor Bell tinha cortado o círculo de árvores na Primavera. Anne tinha-se sentado entre os troncos cortados a chorar, impelida pelo sentido romântico da coisa, mas tinha-se consolado rapidamente, porque

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afinal ela e Diana eram já raparigas de treze anos a caminho dos catorze e eram grandes demais para brincadeiras de casinhas e haviam passatempos mais fascinantes perto do lago. Era esplêndido pescar trutas em cima da ponte e as duas raparigas tinham aprendido a andar no pequeno bote que o senhor Barry tinha para caçar patos. Foi ideia da Anne dramatizar a Elaine. Elas tinham estudado o poema de Tennyson na escola no Inverno passado. Tinham-no analisado e partido em tantos bocados que era de estranhar que ainda tivesse algum significado para alguém, mas pelo menos a bela Dama dos Lírios e o Lancelot e a Gueneviere e o Rei Artur tinham-se tornado pessoas muito reais para eles, e a Anne era devorada pela infelicidade secreta de não ter nascido em Camelot. Essa altura, pensava, era muito mais romântica do que o presente. O plano de Anne foi acolhido com entusiasmo. As raparigas tinham descoberto que se o bote fosse empurrado do cais ia à deriva até outra manga de terra mais à frente. Já tinham feito este trajecto várias vezes e nada lhes parecia mais conveniente para interpretarem a peça. “Então serei a Elaine,” disse Anne, cedendo com relutância porque apesar de ficar deliciada por ter o papel principal, o seu senso artístico exigia-lhe que fosse adequada e sentia que as suas limitações o tornavam impossível. “Ruby, tens que ser o rei Arthur e a Jane vai ser a Gueneviere e a Diana tem que ser o Lancelot. Mas primeiro têm que ser os irmãos e o pai. Nós não podemos ter o velho criado mudo porque não há espaço suficiente no barco quando uma pessoa está deitada. Temos que forrar o barco por dentro de negro. Aquele xaile velho da tua mãe vai ser o ideal, Diana.” Quando encontraram o xaile velho, Anne cobriu o bote com ele e deitouse no fundo com os olhos fechados e as mãos juntas sobre o peito. “Oh, ela parece mesmo morta,” sussurrou Ruby Gillys com nervosismo, olhando para o pequeno rosto pálido e imóvel por debaixo das sombras ondulantes das bétulas. “Faz-me ficar assustada. Acham que é correcto fazer estas coisas? A senhora Lynde diz que todas as representações são abominações malvadas.” “Ruby, não devias falar da senhora Lynde,” disse Anne severamente. “Estraga completamente o efeito porque isto foi centenas de anos antes do nascimento dela. Jane, toma tu conta delas. É uma palermice a Elaine estar a falar quando devia estar morta.” A Jane portou-se à altura da situação. Não havia nenhum pano de brocado de ouro para cobrir Elaine, por isso usou-se uma cobertura de piano de crepe japonês amarelo. Também não se encontrou um lírio branco, mas uma íris azul nas mãos juntas de Anne fez um efeito bastante satisfatório. “Pronto, está tudo,” disse Jane. “Temos que beijar as sobrancelhas imóveis, e Diana tu dizes ‘Irmã, adeus para sempre,’ e Ruby, tu dizes ‘Adeus doce irmã’, as duas tão tristes como consigam parecer. Anne por favor sorri um pouco, tu sabes que a ‘Elaine jazia como se sorrisse’. Assim está melhor. Agora empurrem o bote.” O bote foi então empurrado raspando sobre uma velha estaca pelo caminho. Diana e Ruby só olharam o tempo suficiente para o verem ser arrastado pela corrente e dirigiram-se para a ponte antes de se embrenharem no mato e atravessarem a estrada, a caminho da pequena manga de terra onde já como Lancelot e Gueneviere e o rei Artur estariam prontas para receber a Dama dos Lírios. Durante uns minutos, Anne que ia lentamente à deriva, desfrutou plenamente do lado romântico da situação. Depois aconteceu algo que nada teve de romântico. O bote começou a meter água. Em poucos instantes foi necessário que a Elaine se levantasse, apanhasse o pano de brocado dourado e o tecido negro e ali ficou a olhar para uma fenda no fundo do bote através da qual a água jorrava literalmente. A estaca aguçada tinha aberto um rasgão no bote. Anne não se apercebera disso, mas não levou muito tempo a compreender que estava numa situação

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perigosa. Com a água a entrar a esta velocidade o bote ia encher-se e afundar-se muito antes de chegar à manga de terra lá mais à frente. E onde estavam os remos? Lá atrás na plataforma de madeira! Anne deu um pequeno grito sufocado que ninguém ouviu, estava pálida de medo, mas não perdeu o autodomínio. Só tinha uma hipótese, uma só. “Eu estava terrivelmente assustada,” contou à senhora Allan no dia seguinte, “e parece-me que demorei anos a afundar-me em direcção à ponte, com a água a subir a cada momento. Eu rezei, senhora Allan, tão intensamente, mas não fechei os olhos para rezar porque eu sabia que a única maneira de Deus me salvar era deixar o bote afundar-se suficientemente perto da ponte para eu me agarrar a um dos pilares. A senhora sabe que os pilares da ponte são troncos velhos e há muitos ramos cortados onde eu me agarrar. Era ocasião para rezar, mas eu tinha que fazer a minha parte estando atenta e sabia-o bem. Eu só dizia: ’Deus, por favor deixa-me perto de um pilar que eu faço o resto’ uma e outra vez. Nestas circunstâncias não fui capaz de fazer mais floreados. Mas a prece foi atendida, porque o bote esbarrou contra um poste e eu consegui apoiar-me num ramo partido. E ali fiquei, senhora Allan, agarrada àquele tronco escorregadio sem maneira de subir ou descer. Era uma posição muito pouco romântica mas eu na altura não pensava nisso. Não pensamos muito em romances quando acabamos de escapar de uma campa molhada. Eu disse logo uma oração de agradecimento e agarrei-me com toda a dedicação, porque sabia que dependia da ajuda humana para voltar à margem.” O bote ainda foi à deriva por baixo da ponte, e afundou-se rapidamente no meio do rio. Ruby, Jane e Diana, já à espera dele na margem mais abaixo viram-no desaparecer e não tiveram dúvidas que Anne estivesse lá dentro. Por um momento ficaram quietas, brancas como a neve, geladas de terror com a tragédia; depois, gritando a plenos pulmões, começaram numa doida correria através do bosque, sem sequer pararem enquanto atravessavam a estrada principal para darem uma olhada à ponte. Anne, desesperadamente agarrada ao tronco, viu as suas formas rápidas e ouviu os seus gritos. A ajuda não tardaria, mas a posição dela era das mais desconfortáveis. Os minutos foram passando, cada um parecendo uma hora para a infeliz dama dos lírios. Porque é que não vinha ninguém? Onde tinham ido elas? Imaginem se desmaiaram todas!! E se não vier ninguém? Imaginem se me canso e começo a ter caimbras e não consigo ficar agarrada mais tempo! Anne olhava para as profundezas esverdeadas por baixo de si, de sombras ondulantes, escuras e oleosas e tremia. A sua imaginação começou a descobrir uma imensidão de possibilidades pavorosas. Então, quando ela já quase não aguentava as dores nos braços e pulsos, Gilbert Blythe apareceu deslizando debaixo da ponte no bote do Harmon Andrews. Gilbert vinha na sua direcção, e para seu espanto encontrou um rosto pequeno com ar de desprezo, olhando para ele de cima para baixo com olhos grandes, assustados mas cheios de desdém. “Anne Shirley! Como é que vieste aqui parar?” exclamou. Sem esperar pela resposta encostou o bote ao poste e deu-lhe a mão. Não havia outra hipótese; Anne agarrou-a e atirou-se para dentro do bote onde se sentou descomposta e furiosa na proa com os braços cobertos pelo xaile ensopado. Era certamente muito difícil manter-se digna naquelas circunstâncias! “O que é que aconteceu, Anne?” perguntou Gilbert, começando a remar. “Nós estávamos a representar a Elaine” explicou friamente Anne, sem sequer olhar para o seu salvador,” e eu tinha que ir à deriva até Camelot na barca, quero dizer, no bote. Começou a entrar água e eu agarrei-me ao pilar. As outras foram procurar auxílio. Terás a gentileza de me levar até à margem?” Gilbert remou obediente em direcção a terra e Anne, dispensando a sua ajuda, saiu sozinha do barco.

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“Estou-lhe muito agradecida,” disse apressadamente enquanto se afastava. Mas o Gilbert também tinha saído do barco e agarrou-lhe um braço. “Anne,” disse repentinamente, ”ouve. Não podemos ser amigos? Estou muito arrependido de ter feito pouco do teu cabelo naquele dia. Eu não queria envergonhar-te, só o disse para ter piada. Além disso, foi há tanto tempo. Agora acho o teu cabelo muito bonito, de verdade que acho. Vamos ser amigos.” Anne hesitou por um momento. Ela teve pela primeira vez, e por debaixo da sua dignidade ultrajada, a estranha sensação que a expressão meio tímida meio ansiosa que se lia nos olhos cor de avelã de Gilbert era algo muito agradável de se ver. O coração dela bateu de uma forma estranhamente rápida. Mas a amargura da sua humilhação passada deu novo alento à sua determinação, por momentos hesitante. A cena de há dois anos voltou-lhe à memória de forma tão viva como se tivesse sido ontem. Gilbert chamara-lhe cenoura, e tinha-a envergonhado perante toda a escola. O ressentimento dela, que para outras pessoas mais velhas talvez parecesse tão ridículo como a sua causa, não tinha sido de forma alguma suavizado pelo tempo. Ela odiava Gilbert Blythe! Nunca lhe perdoaria! “Não”, disse friamente, ”nunca serei sua amiga, Gilbert Blythe; e não quero ser!” “Está bem!” Gilbert entrou para o bote com as bochechas vermelhas de raiva. “Nunca mais te vou pedir para sermos amigos, Anne Shirley. E não me importo nada!” Ele afastou-se remando com golpes rápidos e fortes, e Anne começou a subir pelo caminho íngreme debaixo dos aceres. Manteve a cabeça erguida, mas tinha consciência de uma estranha sensação de arrependimento. Ela quase desejava ter respondido a Gilbert de outra forma. Claro que ele a tinha insultado de uma forma terrível, mas... Ao mesmo tempo, Anne achava que seria bom poder sentar-se e chorar um bocado. Ela estava realmente abatida, pois a reacção ao susto e ao tempo que estivera agarrada começava a fazer-se sentir. A meio do caminho ela encontrou a Jane e a Diana que corriam para o lago num estado muito próximo da loucura. Não tinham encontrado ninguém em Orchard´s Sloape, o senhor e a senhora Barry tinham saído. Aqui a Ruby Gillis tinha sucumbido à histeria e deixaram-na a recuperar, enquanto a Jane a Diana atravessaram o bosque assombrado em direcção a Green Gables. Aí também não encontraram ninguém, pois Marilla tinha ido a Carmody e o Matthew estava a tratar do feno no campo de trás. “Oh, Anne,” gaguejou Diana, quase caindo enquanto se pendurava do pescoço da amiga a chorar de alívio, “oh, Anne...pensámos...que te tinhas...afogado...e sentíamo-nos umas assassinas...porque te tínhamos convencido...a ser a Elaine. E a Ruby está histérica, oh, Anne, como é que escapaste?” “Eu agarrei-me ao pilar,” explicou Anne já muito cansada, “e o Gilbert Blythe apareceu no barco do senhor Andrews e levou-me para terra.” “Oh, Anne, que simpático! Mas que romântico!” disse Jane, conseguindo reunir fôlego suficiente. “Claro que depois disto vais-lhe falar.” “Pois claro que não,” respondeu Anne, momentaneamente de regresso ao seu velho espírito. “E nunca mais quero ouvir a palavra romântico associada a ele, Jane Andrews. Tenho muita pena que tivessem ficado tão assustadas. A culpa foi toda minha. De certeza que nasci sob a influência de uma estrela desafortunada. Tudo o que faço mete as minhas mais queridas amigas em sarilhos. Agora afundei o bote do teu pai, Diana, e tenho o pressentimento que não vamos poder andar mais no lago.” O pressentimento de Anne revelou-se mais digno de crédito do que geralmente acontece. Foi grande a consternação nos lares dos Cuthbert e dos Barry quando os acontecimentos da tarde se tornaram conhecidos.

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“Alguma vez vais ganhar juízo, Anne?” resmungou Marilla. “Oh, sim, acho que vou, Marilla,” respondeu Anne de forma optimista. Uma crise de choro a sós no quarto do sótão tinha-lhe acalmado os nervos, e voltara à sua alegria habitual. “Acho que as minhas perspectivas de me tornar sensata estão agora melhores que nunca.” “Não vejo porquê.” Disse Marilla “Bem,” explicou Anne, ”Aprendi hoje uma nova e valiosa lição. Desde que vim para Green Gables que tenho feito asneiras, e cada uma delas me tem curado de uma grande falha. O episódio do pregador de ametista curou-me de me mexer em coisas que não me pertencem. O episódio do bosque assombrado curou-me de deixar que a minha imaginação me ultrapasse. O bolo de linhaça curou-me das distracções na cozinha. Ter pintado o cabelo curou-me da vaidade. Agora já nunca penso no meu cabelo ou no meu nariz, ou pelo menos penso muito pouco. E o sarilho de hoje curou-me de ser demasiado romântica. Cheguei à conclusão que não serve de nada ser romântica em Avonlea. Seria talvez muito fácil, na Camelot cheia de torres de há séculos atrás, mas o romance não é apreciado hoje em dia. Estou certa que brevemente me vai encontrar uma grande melhoria a esse respeito, Marilla.” “Espero bem que sim,” disse Marilla com cepticismo. Mas o Matthew, que tinha estado sentado em silêncio no seu canto, pôs uma mão sobre o ombro de Anne quando a Marilla saiu. “Não deites fora todo o teu romantismo, Anne,” murmurou timidamente, ”Um bocadinho é muito bom, não demasiado, claro, mas deixa ficar um bocadinho, Anne, deixa um bocadinho.” Capítulo XXIX Um ponto alto na vida de Anne Anne trazia as vacas do pasto de trás através da Alameda dos Apaixonados. Era um entardecer de Setembro e todos os recantos e clareiras dos bosques estavam repletos de uma luz de pôr-do-sol em tons avermelhados. Aqui e ali penetrava pela alameda, mas a maior parte do trajecto estava sombrio por causa dos carvalhos silvestres, e os espaços entre os pinheiros eram ocupados por uma escuridão violeta como vinho etéreo. O vento soprava lá em cima, e não há na terra música mais doce do que a do vento passando pelos ramos dos pinheiros ao entardecer. As vacas marchavam placidamente através da alameda, e Anne seguia-as sonhadora, repetindo alto o canto de batalha de Marmion - que fazia parte do curso de Inglês que tinham tido no Inverno passado e que a miss Stacy as fizera aprender de cor - exultando nas suas linhas de cadência rápida, e no tinir das lanças no seu imaginário. Quando chegou às estrofes: ‘Os teimosos lanceiros ainda progrediam A sua escura madeira impenetrável’ parou em êxtase para poder fechar os olhos e imaginar-se melhor como uma das personagens do heróico grupo. Quando os abriu novamente viu a Diana a passar pelo portão que levava aos campos dos Barry, com um ar tão importante que Anne adivinhou nesse instante que havia novidades. Mas não iria dar mostras de uma curiosidade demasiado aguçada. “Não achas que esta noite é como um sonho púrpura, Diana? Faz-me ficar tão contente por estar viva. De manhã acho sempre que as manhãs são as melhores, mas quando chega o entardecer acho-o ainda mais lindo.” “É um entardecer muito bonito,” disse Diana, “Mas, oh, eu tenho tão boas notícias, Anne. Adivinha. Tens três tentativas.” “A Charlotte Gillis afinal sempre casa na igreja e a senhora Allan quer que nós a vamos decorar,” disse Anne.

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“Não. O noivo da Charlotte não concorda porque ainda ninguém casou na igreja e ele acha que ia parecer um funeral. É uma pena, porque ia ser divertido. Tenta outra vez.” “A mãe da Jane sempre a deixa fazer a festa de aniversário?” Diana abanou negativamente a cabeça, os seus olhos negros dançando de alegria. “Eu não consigo imaginar o que seja,” desesperou Anne,” a não ser que o Moody Spurgeon MacPherson te tenha acompanhado a casa ontem depois da reunião. É isso?” “Com certeza que não,” exclamou Diana indignada. “Eu também não ia andar a falar disso se ele o fizesse, a horrível criatura! Eu sabia que não conseguias adivinhar. A mãe recebeu uma carta da tia Josephine hoje, e ela quer que tu e eu vamos à cidade ter com ela na próxima terça feira para ir à Exposição. Ora aí tens.” “Oh, Diana,” murmurou Anne, tendo que se apoiar num carvalho silvestre, “estás a falar a sério? Mas a Marilla não me deve deixar ir. Ela vai dizer que não é a favor desses divertimentos. Foi o que ela disse na semana passada quando a Jane me convidou para ir com eles ao concerto americano no Hotel de White Sands. Eu queria ir, mas a Marilla disse que mais valia que eu ficasse em casa a estudar as lições, e a Jane também. Eu fiquei amargamente desiludida, Diana. Fiquei tão desconsolada que não disse as minhas orações quando me deitei. Mas arrependi-me e levantei-me a meio da noite para as dizer.” “Sabes o que fazemos?” disse Diana. “Pedimos à mãe para falar com a Marilla. Então vai ser mais fácil ela deixar-te ir, e se deixar vamonos divertir tanto, Anne! Eu nunca fui a uma Exposição, e é tão irritante ouvir as outras raparigas falar disso. A Jane e a Ruby já foram duas vezes, e vão este ano outra vez.” Não vou pensar nisso enquanto não souber se posso ir ou não,” disse Anne com determinação. “Se eu ficasse desiludida era mais do que conseguiria suportar. Mas no caso de poder ir, é muito bom que o meu casaco novo já esteja pronto nessa altura. A Marilla achava que eu não precisava de um casaco novo. Disse que o meu velho estava muito bom e me servia ainda outro Inverno, e que eu devia dar-me por satisfeita com um vestido novo. O vestido é muito bonito, Diana, azul-escuro e tão na moda. A Marilla agora faz sempre os meus vestidos à moda, porque diz que não quer que o Matthew vá ter com a senhora Lynde para ela mos fazer. Fico tão feliz. É muito mais fácil ser boa se temos vestidos bonitos. Pelo menos é mais fácil para mim. Acho que não deve fazer muita diferença às pessoas que são naturalmente boas. Mas o Matthew disse que eu tinha que ter um casaco novo, e a Marilla comprou uma linda peça de fazenda e está a ser feito por um alfaiate em Carmody. Deve estar pronto no sábado à tarde, e eu estou a tentar não me imaginar a entrar na igreja no Domingo com o meu casaco e capuz novo, porque tenho receio que não seja muito correcto imaginar essas coisas. O meu capuz é tão bonito. O Matthew comprou-mo no dia que fomos a Carmody. É desses novos de veludo azul com cordões dourados e fivelas. O teu chapéu novo é tão elegante, Diana, e fica-te tão bem. Quando te vi chegar à igreja no domingo passado o meu coração encheuse de orgulho só de pensar que eras a minha amiga mais querida. Achas que é errado pensarmos tanto na roupa? A Marilla diz que é um grande pecado. Mas é um assunto tão interessante, não é?” Marilla concordou com a ida de Anne à cidade, e combinaram que a senhora Barry as levaria na próxima terça-feira. Como Charlottetown ficava a trinta milhas e a senhora Barry queria ir e vir no mesmo dia, tiveram que partir muito cedo. Mas Anne viu isso como mais uma alegria, e levantou-se antes do nascer do sol. Uma espreitadela pela janela e viu que o dia ia estar bom, porque o céu lá ao fundo estava brilhante e sem nuvens. Através das árvores ela viu uma luz a brilhar no quarto do sótão de Orchard Sloape, um sinal que Diana também já estava acordada.

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Anne estava vestida na altura em que Matthew acendeu o lume e tinha o pequeno-almoço pronto quando Marilla desceu, mas estava demasiado excitada para comer. Depois do pequeno-almoço o novo capuz e casaco foram estreados, e Anne correu por cima da ponte de troncos e pelo caminho até Orchard Sloape. O senhor Barry e a Diana estavam à sua espera, e rapidamente se fizeram à estrada. Foi uma longa viagem, mas Anne e Diana apreciaram cada minuto. Era maravilhoso percorrer as estradas orvalhadas à luz avermelhada da manhã que banhava os campos ceifados. O ar estava fresco e leve, e pequenas névoas azuladas aninhavam-se nos vales e flutuavam nas colinas. Às vezes a estrada passava por bosques onde os carvalhos silvestres começavam a ficar avermelhados, e às vezes atravessavam pontes que faziam Anne arrepiar-se ao lembrar-se do seu velho medo; às vezes passava pela costa, e viam-se grupos de cabanas de pescadores enegrecidas pelo tempo; voltava a subir colinas onde uma grande curva de terra ondulante ou rasgo de céu brilhavam de luz, e onde quer que passavam havia tanta coisa interessante para comentar. Era quase meiodia quando chegaram à cidade e se dirigiram a Beechwood. Era uma bela mansão antiga, situada longe da rua na privacidade de verdes ulmeiros e faias. A senhora Barry veio recebê-las à porta com um brilhozinho nos olhos negros e penetrantes. “Então, finalmente vieste ver-me, miúda-Anne,” disse. “Por Deus, pequena, como cresceste! Estás mais alta que eu. E estás muito mais bonita do que eras. Mas atrevo-me a dizer que sabes disso sem que eu to diga.” “Pois não sabia,” disse Anne radiante. “Eu sei que não tenho tantas sardas como tinha, e estou muito agradecida, mas não me atrevo a pensar que haja mais melhoramentos. Fico muito contente por pensar que os há, Miss Barry.” A casa da Miss Barry estava mobilada com grande magnificência, como Anne contou a Marilla mais tarde. As pequenas meninas do campo ficaram assombradas com o esplendor da sala de visitas onde a Miss Barry as deixou quando foi ver do jantar. “Não parece um palácio?” murmurou Diana. “Eu nunca tinha estado na casa da tia Josephine, e não fazia ideia que fosse tão grandiosa. Gostava que a Julia Bell pudesse ver isto, ela tem uma mania com a sala de visitas da mãe.” “Carpete de veludo,” suspirou Anne luxuriosamente, ”E cortinas de seda! Eu sonhei com estas coisas, Diana. Mas sabes que não me sinto muito confortável com elas afinal de contas? Há tantas coisas nesta divisão e tão esplêndidas que não há amplitude para a imaginação. Isso é um consolo quando somos pobres, há muito mais coisas para imaginar!” A sua tarde foi qualquer coisa que a Diana e a Anne recordaram durante anos. Do início ao fim foi coroada com encantos. Na quarta-feira a Miss Barry levou-as à exposição, e ficaram lá todo o dia. “Foi esplêndido,” relatou Anne a Marilla mais tarde. “Eu nunca imaginei nada tão interessante. Eu nem sei que departamento era mais interessante. Acho que o que mais gostei foram as flores, os cavalos e os trabalhos manuais. A Josie Pye ficou com o primeiro prémio de renda de duas agulhas. Eu fiquei muito contente por ela, e fiquei contente por ter ficado contente, porque mostra que estou a melhorar. Não é verdade, Marilla, quando fico contente pela Josie? O senhor Harmon Andrews ficou com o segundo prémio das maçãs Gravenstein e o senhor Bell ficou com o primeiro prémio por um porco. A Diana disse que era ridículo um diácono ser premiado por um porco, mas não vejo porquê. Você vê? Ela disse que ia sempre pensar nisso quando o visse a rezar solenemente. A Clara Louise Macpherson levou um prémio de pintura, e a senhora Lynde levou o primeiro prémio para manteiga e queijo caseiros. Por isso Avonlea foi muito bem representada, não acha? A senhora Lynde estava lá naquele dia e eu nunca soube como gostava dela até que vi a cara dela entre todos aqueles estranhos. Havia lá milhares de pessoas,

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Marilla. Fez-me sentir terrivelmente insignificante. E a Miss Barry levou-nos a ver as corridas de cavalos. A senhora Lynde não foi, porque disse que as corridas eram uma abominação, e que ela sendo um membro da igreja tinha a obrigação de dar o exemplo e não ir. Mas havia lá tanta gente que acho que a ausência da senhora Lynde passou despercebida. Eu não acho, no entanto, que deva ir muitas vezes às corridas porque são terrivelmente fascinantes e a Diana ficou tão excitada que quis apostar dez cêntimos comigo em como ganhava o cavalo vermelho. Eu não achei que ganhasse mas recusei-me a apostar porque eu queria contar tudo à senhora Allan e sabia que não lhe ia querer contar isso. É sempre mau fazer qualquer coisa que não podemos contar à mulher do pastor. Ter a mulher do pastor como amiga é tão bom como ter uma segunda consciência. E estou muito contente por não ter apostado porque o cavalo vermelho ganhou, e eu tinha perdido os dez cêntimos. Por isso bem vê que a virtude tem as suas próprias recompensas. Também vimos um homem subir de balão. Eu adorava poder subir de balão, Marilla; seria simplesmente arrepiante; e vimos um homem a dizer a sina. Dávamos-lhe dez cêntimos e um passarinho tiravanos a sina. A Miss Barry deu-nos dez cêntimos a cada uma para nos dizerem a sina. A minha era que ia casar com um homem de cabelo escuro muito rico, e que ia atravessar a água para ir viver com ele. Eu olhei com muita atenção para todos os homens de cabelo escuro que vi depois disso, mas nenhum me agradou e de qualquer forma acho que é muito cedo para andar à procura dele. Oh, foi um dia que nunca esquecerei, Marilla. Estava tão cansada que não consegui dormir de noite. A Miss Barry pôs-nos a dormir no quarto de hóspedes como tinha prometido. Era um quarto tão elegante, Marilla, mas dormir num quarto de hóspedes não é bem o que eu tinha imaginado. É o que crescer tem de pior, e estou a começar a aperceber-me disso. As coisas que desejámos tanto quando éramos crianças não parecem nem metade do maravilhosas quando as chegamos a viver.” Na quinta-feira as raparigas deram um passeio pelo parque, e ao fim da tarde a senhora Barry levou-as a um concerto na Academia de música, onde uma famosa prima-dona ia cantar. Para Anne, essa tarde foi uma brilhante visão de encanto. “Oh, Marilla, foi indescritível. Eu estava tão entusiasmada que nem conseguia falar, por isso pode avaliar. Eu fiquei sentada num silêncio deliciado. A Madame Selitsky era perfeitamente bela, e usava um vestido de cetim branco e diamantes. Mas assim que começou a cantar não pensei em mais nada. Oh, não lhe consigo dizer como me senti. Mas pensei que nunca mais teria dificuldade em ser boa. Senti-me como quando olho para as estrelas. Vieram-me as lágrimas aos olhos, e eram lágrimas tão felizes. Tive tanta pena quando acabou, e disse à Miss Barry que não sabia como iria voltar à vida de todos os dias. Ela disse que se fossemos ao restaurante do outro lado da rua e comêssemos um gelado talvez me ajudasse. Soou tão prosaico, mas para minha surpresa descobri que era verdade. O gelado era delicioso, e era tão maravilhoso estar ali sentada a comê-lo às onze da noite. A Diana disse que acreditava ter nascido para a vida da cidade. A Miss Barry perguntou-me qual era a minha opinião, mas eu disse que tinha que pensar no assunto de uma forma séria antes de poder dar uma resposta. Por isso pensei depois de me ter deitado. É a melhor altura para pensar. E cheguei à conclusão, Marilla, que não nasci para viver na cidade, e que estava contente por isso. É muito agradável comer gelado em restaurantes brilhantes às onze da noite uma vez por outra; mas para todos os dias eu prefiro estar no quarto do sótão às onze a dormir profundamente, sabendo que as estrelas brilham lá fora e o vento sopra por entre os pinheiros do outro lado do ribeiro. Eu disse isso mesmo à Miss Barry na manhã seguinte ao pequeno-almoço e ela riuse. A Miss Barry ri-se quase sempre de tudo o que digo, mesmo quando são coisas do mais solene. Eu acho que não gostei muito, porque não

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tive intenção de ser engraçada. Mas ela é uma senhora muito hospitaleira e tratou-nos como se fôssemos realeza.” A Sexta-feira era o dia do regresso a casa, e o senhor Barry foi buscar as raparigas. “Bem, espero que se tenham divertido,” disse Miss Barry, enquanto se despedia delas. “Divertimo-nos bastante,” disse Diana. “Então e tu, miúda-Anne?” “Eu gostei de cada minuto,” disse Anne, atirando os braços para cima da velha senhora e beijando-lhe o rosto enrugado. A Diana nunca se teria atrevido a fazer tal coisa, e surpreendeu-se bastante com o à vontade de Anne. A Miss Barry ficou contente, e esperou na varanda até perder o buggy de vista. Então entrou para dentro com um suspiro. Parecia tudo muito sozinho, sem aquelas jovens tão vivas. A miss Barry era uma velhota egoísta, diga-se em abono da verdade, e nunca se tinha importado muito com ninguém para além dela própria. Só gostava de pessoas que lhe fossem de alguma utilidade, ou que a divertissem. Anne tinha-a divertido, e por isso estava bastante bem colocada na consideração da velha senhora. Mas a Miss Barry deu por si a pensar cada vez menos nos discursos elaborados de Anne e mais no seu entusiasmo refrescante, nas suas emoções transparentes, na sua maneira de estar encantadora e nos seus doces olhos e palavras. “Eu achei que a Marilla Cuthbert era uma velha tonta quando ouvi dizer que tinha adoptado uma menina órfã de um asilo” disse para ela própria, “mas acho que não fez nenhuma asneira afinal de contas. Se eu tivesse uma criança como a Anne comigo seria uma mulher melhor e mais feliz.” Anne e Diana acharam a viagem de regresso a casa tão agradável como a anterior, mais agradável de facto, uma vez que no final desta chegariam a casa. Foi ao pôr-do-sol que passaram por White Sands e viraram para a estrada da costa. Daí, as colinas de Avonlea projectavam-se a escuro sobre o céu cor de açafrão. Por detrás, a lua subia por cima do mar que parecia radiante e transfigurado sob a sua luz. Cada pequena reentrância ao longo da estrada era uma maravilha de ondas a dançar. As ondas rebentavam com um som suave nas rochas lá em baixo, e o aroma do mar estava no ar fresco e denso. “Oh, que bom é estar viva e voltar a casa,” disse Anne, inspirando fundo. Quando atravessou a ponte de troncos sobre o riacho, a luz da cozinha de Green Gables piscava com uma luz convidativa de boas vindas, e através da porta aberta via-se o brilho do lume, mandando o seu calor através do frio da noite de Outono. Anne subiu rapidamente e entrou na cozinha, onde uma refeição quente a esperava na mesa. “Então, voltaste?” disse Marilla, dobrando o trabalho de tricot. “Sim, e é tão bom estar de volta,” disse alegremente Anne. “Eu era capaz de beijar tudo, até o relógio. Marilla, uma galinha estufada! Não me diga que a cozinhou por minha causa!” “Fiz sim senhora,” disse Marilla. “Achei que ias ter fome depois de uma viagem tão grande e que te ia agradar uma coisa substancial. Despacha-te e despe o casaco, que vamos jantar assim que o Matthew chegar. Tenho que admitir que estou contente por teres chegado. Isto sem ti é terrivelmente sozinho, e não aguentava outros quatro dias.” Depois do jantar Anne sentou-se à frente do lume com Matthew e Marilla, e fez-lhes o relato completo da visita. “Passei uns dias esplêndidos,” concluiu alegremente, “e acho que estes dias marcaram um ponto alto na minha vida. Mas o melhor de tudo foi ter regressado a casa.” Capítulo XXX

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Organiza-se a classe de Queen’s Marilla pousou o trabalho de tricot e encostou-se para trás na cadeira. Os olhos dela estavam cansados, e ela pensou vagamente que tinha que ir tratar dos óculos da próxima vez que fosse à cidade, porque ultimamente cada vez cansava mais a vista. Estava quase escuro, pois a noite tinha caído quase completamente sobre Green Gables, e a única luz da cozinha vinha das chamas ondulantes do fogão. Anne estava enrolada à maneira turca no chão em cima do tapete, olhando para o ponto distante onde o sol de milhares de verões desaparecia por detrás dos carvalhos silvestres. Ela tinha estado a ler, mas o livro caíra para o chão e ela estava perdida em sonhos com um sorriso nos lábios entreabertos. Castelos de areia brilhantes tomavam forma nas brumas e arco-íris da sua imaginação; protagonizava aventuras maravilhosas e interessantíssimas na sua terra imaginária, aventuras que se resolviam sempre de uma forma triunfante e em que ela nunca se via metida em sarilhos como lhe acontecia na vida real. Marilla olhou para ela com uma doçura que nunca se revelaria numa ocasião mais luminosa do que aquele ambiente de sombras e luz difusa. A lição de um amor que se exibe facilmente em palavras e olhares abertos era uma lição que Marilla nunca aprenderia. Mas ela tinha aprendido a amar esta miúda magra de olhos cinzentos com um afecto ainda mais profundo e forte pela sua falta de expressividade. O seu amor tornava-a receosa de se tornar demasiado mole e indulgente. Ela tinha a sensação que era quase pecaminoso afeiçoar-se tanto a uma criatura viva como ela se afeiçoara a Anne, e talvez ela se penitenciasse por isso tornando-se mais rígida e crítica do que teria sido se gostasse menos dela. Certamente que Anne não fazia ideia de quanto Marilla gostava dela. Pensava por vezes que era muito difícil agradar a Marilla e que ela não tinha muita capacidade de compreensão ou simpatia. Mas ela recriminava-se sempre por pensar assim, lembrando-se do quanto lhe devia. “Anne,” disse Marilla abruptamente, ”a miss Stacy esteve cá hoje à tarde quando tu tinhas saído com a Diana.” Anne regressou do seu mundo de sonhos e suspirou. “Esteve? Oh, que pena eu cá não estar. Porque é que não me chamou, Marilla? A Diana e eu estávamos só no bosque assombrado. O bosque agora está lindo. Todas as pequenas coisas do bosque - os fetos, e as folhas sedosas e as bagas - adormeceram mesmo como se alguém as tivesse ido aconchegar com folhas até à chegada da Primavera. Eu acho que foi uma pequena fada cinzenta com um cachecol de arco-íris que veio pé ante pé na última noite de lua cheia. A Diana não tem a mesma opinião. Ela nunca mais se esqueceu do raspanete que a mãe lhe deu por imaginar fantasmas no bosque assombrado. Teve um péssimo efeito na imaginação dela. Limitou-a. A senhora Lynde diz que a Myrtle Bell é uma pessoa limitada. Eu perguntei à Ruby Gillis porque é que ela era limitada e a Ruby diz que acha que é porque o namorado dela a deixou. A Ruby Gillis só pensa em rapazes, e quanto mais velha fica pior. Os rapazes estão muito bem lá no lugar deles, mas não faz sentido arrastá-los para todas as conversas, não acha? A Diana e eu estamos a pensar seriamente em prometer uma à outra que nunca nos vamos casar e vamos viver como solteironas as duas juntas para sempre. Mas a Diana ainda não se decidiu, porque ela acha que seria mais nobre casar com um homem deslumbrante, mau e selvagem e modificá-lo. Eu e a Diana agora falamos muito sobre assuntos sérios, sabe? Nós sentimo-nos tão mais velhas do que anteriormente que já não nos fica bem falar de assuntos infantis. É uma coisa tão solene ter quase treze anos, Marilla. A miss Stacy levou todas as meninas que já são adolescentes até ao riacho para falarmos sobre isso. Ela disse-nos que nunca podíamos ser demasiado cautelosas quanto aos hábitos que adquiríamos e

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aos ideais que abraçávamos na nossa adolescência, porque quando chegássemos aos vinte anos a nossa personalidade estaria formada e lançadas as fundações para a nossa vida futura. E ela disse que se as fundações fossem fracas nós nunca conseguiríamos construir qualquer coisa que valesse a pena. A Diana e eu falámos sobre o assunto enquanto voltávamos a casa. Sentimo-nos extremamente solenes, Marilla. E decidimos que íamos tentar ter muito cuidado em formar hábitos respeitáveis e aprender o mais possível para ser tão sensatas quanto possível, para que quando tivermos vinte anos os nossos caracteres estejam devidamente formados. É tão perfeitamente apelativo pensar em ter vinte anos, Marilla. Parece tão assustadoramente adulto, crescido. Mas porque é que cá veio a miss Stacy?” “Era isso que eu te queria dizer, Anne, se me deres uma hipótese de dizer umas palavras. Ela veio falar sobre ti.” “Sobre mim?” disse com ar assustado. Então corou e exclamou: “Oh, eu sei o que ela disse. Eu queria contar-lhe Marilla, de verdade que queria, mas esqueci-me. A miss Stacy apanhou-me a ler o ‘Ben Hur’ na aula ontem à tarde quando devia estar a estudar história canadiana. A Jane Andrews emprestou-mo. Eu li-o à hora do almoço, mas estava mesmo na cena das corridas de cavalos quando começaram as aulas outra vez. Eu estava desejosa de saber como ficavam as coisas, apesar de eu achar que o ‘Ben Hur’ devia ganhar, porque não haveria justiça poética se perdesse, por isso abri o livro de história na secretária e escondi o livro do ‘Ben Hur’ no colo. Olhei para baixo como se estivesse a estudar história, sabe, enquanto lia o ‘Ben Hur’. Eu estava tão interessada naquilo que não reparei na miss Stacy que se aproximava até que olhei para cima e lá estava ela, chateada comigo. Não imagina como fiquei envergonhada, Marilla, especialmente porque ouvi a Josie Pye a rir-se. A miss Stacy levou-me o ‘Ben Hur’. Eu tinha agido mal em dois aspectos. Em primeiro lugar estava a desperdiçar o tempo que devia dedicar ao estudo; e em segundo estava a enganar a minha professora quando fingi que estava a ler história quando estava a ler um livro de histórias. Eu não me tinha apercebido até aquele momento, Marilla, que o que eu estava a fazer era uma falsidade. Fiquei chocada. Chorei amargamente e pedi à miss Stacy que me perdoasse e que nunca ia fazer outra coisa assim; e ofereci-me para me penitenciar não olhando para o ‘Ben Hur’ durante uma semana, nem para saber como acabava a corrida. Mas a miss Stacy disse que não achava que fosse necessário, e que me perdoava de boa vontade. Por isso parece-me que não foi muito delicado da parte dela vir aqui falar consigo afinal de contas.” “A miss Stacy nem sequer mencionou o assunto, Anne, e é a tua consciência culpada que te preocupa. Não tens nada que levar livros de histórias para a escola. Tu lês novelas demais, seja como for. Quando eu tinha a tua idade nem me deixavam olhar para uma novela, quanto mais lê-la.” “Oh, como é que pode chamar uma novela ao ‘Ben Hur’, quando é um livro tão religioso?” protestou Anne. “Claro que é excitante demais para ser uma leitura de domingo, e eu só o leio nos dias de semana. E eu nunca mais li livros que a miss Stacy ou a senhora Allan não achem adequado para uma rapariga de treze anos e três quartos. A miss Stacy fez-me prometer isso. Ela encontrou-me um dia a ler um livro chamado o ‘Mistério Sombrio do Hall Assombrado’. Foi a Ruby Gillis que mo emprestou e, oh, Marilla era tão fascinante e assustador. Gelava-me o sangue nas veias. Mas a miss Stacy disse que era um livro muito palerma e pouco saudável, e ela pediu-me que não o lesse, nem a outros como aquele. Eu não me importei de lhe prometer que não lia mais, mas não saber como aquele acabava foi terrível. Mas o meu amor pela miss Stacy passou o teste e eu fi-lo. É verdadeiramente maravilhoso, Marilla, o que nós podemos fazer para agradar a uma dada pessoa.”

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“Bem, acho que vou acender a lâmpada e começar o trabalho”, disse Marilla. “Bem vejo que não queres saber o que a miss Stacy cá veio fazer. Estás mais interessada em ouvir o som da tua voz.” “Oh, por favor, Marilla, eu quero saber,” exclamou Anne. “Eu não digo nem mais uma palavra, nem uma. Eu sei que falo demais, mas estou mesmo a tentar ultrapassar este problema, e apesar de ainda falar demasiado se você soubesse as coisas que tenho para dizer e não digo dava-me mais crédito. Por favor conte-me Marilla.” “Bem, então a senhora Stacy quer organizar uma classe entre os alunos mais adiantados que pretendem estudar para o exame de admissão em Queen’s. Ela pretende dar lições extra durante uma hora depois da escola. E ela veio perguntar ao Matthew se nós gostávamos que tu fosses também. O que é que tu achas, Anne? Gostavas de ir para Queen’s e estudar para professora?” “Oh, Marilla!” Anne pôs-se de joelhos e juntou as mãos. “Tem sido o sonho da minha vida, isto é, desde há seis meses, quando a Ruby e a Jane começaram a falar de estudar para a admissão. Mas eu não falei no assunto porque pensei que fosse inútil. Eu adorava ser professora. Mas isso não é muito caro? O senhor Andrews diz que ter lá a Prissy lhe custou cento e cinquenta dólares, e ela não é burra a geometria.” “Acho que não te deves preocupar com esse assunto. Quando o Matthew e eu decidimos ficar contigo resolvemos que íamos fazer o melhor que pudéssemos por ti e dar-te uma boa educação. Eu acho que uma rapariga deve saber sustentar-se, quer tenha que o fazer ou não. Tu vais ter sempre a tua casa em Green Gables enquanto eu e o Matthew estivermos cá, mas ninguém sabe o que vai acontecer neste mundo incerto e é melhor estarmos preparados. Por isso podes ir para a classe de Queen’s, Anne, se quiseres.” “Oh, Marilla, obrigada.” Anne abraçou-se à cintura de Marilla e olhou para cima directamente para os olhos dela. “Estou-lhe extremamente agradecida, a si e ao Matthew. E eu vou estudar tanto quanto possa para ser um motivo de orgulho para vocês. Aviso-vos já que não esperem muito a geometria, mas acho que talvez consiga, se trabalhar bastante.” “Parece-me que te vais sair bem. A Miss Stacy diz que és esperta e diligente.” Nunca na vida iria Marilla dizer a Anne exactamente o que lhe fora dito; isso seria alimentar a vaidade. “E tu não deves exagerar ao ponto de te matares a estudar. Não há pressa. Não vais ter que fazer o exame senão daqui por um ano e meio. Mas a Miss Stacy disse que é bom começar a tempo para ficares bem preparada.” “Eu vou estar mais interessada do que nunca nos meus estudos,” disse Anne encantada, “porque agora tenho um propósito na vida. O senhor Allan diz que devemos ter um propósito na vida e esforçarmo-nos por o atingir. Só que ele diz que temos primeiro que nos assegurar que é um propósito digno. Eu acho que querer ser professora como a Miss Stacy é um propósito digno, não acha, Marilla? Eu acho que é uma profissão muito nobre.” A classe de Queen’s foi organizada no tempo devido. Gilbert Blythe, Anne Shirley, Ruby Gillis, Jane Andrews, Josie Pye, Charlie Sloane e Moody Spurgeon MacPherson faziam parte dela. A Diana Barry não, uma vez que os pais dela não pretendiam que ela fosse para Queen’s. Isto foi nada menos que uma calamidade para Anne. Nunca, desde a noite em que Minnie May teve crupe, se tinham separado em nada. Na tarde em que a classe de Queen’s ficou na sala pela primeira vez para as lições extra e Anne viu a Diana ir sozinha para casa pelo caminho das bétulas e pelo Vale Violeta, teve que se esforçar para não correr atrás dela. Ficou com um nó na garganta, e retirou-se apressadamente para trás das páginas da gramática de latim para esconder as lágrimas que lhe vinham aos olhos. Nunca admitira que Gilbert ou Josie vissem aquelas lágrimas.

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“Mas, oh, Marilla, eu senti realmente as amarguras da morte, como o senhor Allan disse no sermão do Domingo passado, quando vi a Diana partir sozinha,” disse com tristeza nessa noite. “Eu pensei como seria esplêndido se ela pelo menos estivesse a estudar para a admissão. Mas não há coisas perfeitas neste mundo imperfeito, como diz a senhora Lynde. A senhora Lynde não é exactamente uma pessoa reconfortante, mas não há dúvida que ela diz muitas verdades interessantes. E eu acho que a classe de Queen’s vai ser extremamente interessante. A Jane e a Ruby vão só estudar para professoras. É o cúmulo da ambição delas. A Ruby diz que só vai ensinar durante dois anos depois de passar, e depois tenciona casar. A Jane diz que vai devotar toda a vida ao ensino, e que nunca, nunca vai casar, porque para ensinar recebe-se um salário e um marido não nos paga nada e ainda resmunga por causa do dinheiro dos ovos e da manteiga. Parece-me que a Jane fala por experiência própria, porque a senhora Lynde diz que o pai dela é um sovina de primeira. A Josie Pye diz que vai para o colégio por uma questão de educação, porque ela não precisa de ganhar a vida; ela disse que ‘claro que isso é diferente para os órfãos que vivem da caridade, esses têm que trabalhar’. O Moody Sprugeon diz que vai para pastor. A senhora Lynde diz que ele não podia ser mais nada, com um nome daqueles. Espero que não seja mesquinho da minha parte, Marilla, mas pensar no Moody Spurgeon como Pastor faz-me rir. Ele é um rapaz tão cómico com aquela cara redonda e os olhos azuis pequeninos, e as orelhas de abano. Mas talvez venha a ter um ar mais intelectual quando crescer. O Charlie Sloane diz que vai ser político e um membro do parlamento, mas a senhora Lynde diz que ele não terá grande sucesso, porque os Sloanes são todos pessoas honestas e só os aldrabões é que são bem sucedidos na política hoje em dia. “E o que é que o Gilbert Blythe quer ser?”, questionou Marilla, vendo que Anne lhe apresentava um flanco. “Eu não faço ideia de qual será a ambição de Gilbert Blythe, se é que tem alguma,” disse Anne desdenhosa. Agora havia uma rivalidade aberta entre Anne e Gilbert. Antes a rivalidade corria só de um lado, mas agora não havia grandes dúvidas quanto ao facto de Gilbert querer ser o primeiro na classe tal como Anne. Era um rival digno da determinação dela. Os outros membros da classe reconheciam tacitamente a sua superioridade, e nunca sonhavam tentar competir com eles. Desde o dia ao pé do lago, em que ela se recusara a ouvir o pedido de desculpas dele, Gilbert tinha ignorado por completo a existência de Anne Shirley, à excepção da dita rivalidade agressiva. Ele falava e brincava com as outras raparigas, trocava livros e puzzles com elas, discutia lições e planos, algumas vezes acompanhava-as a casa depois da reunião da igreja ou do clube de debate. Mas ele simplesmente ignorava Anne Shirley, e Anne descobriu que não era agradável ser ignorada. Foi em vão que disse a si própria com uma sacudidela de tranças que não se importava. Lá no fundo do seu pequeno coração feminino ela sabia que se importava, e que se tivesse outra oportunidade como aquela do Lago das Águas Brilhantes outra vez ela teria respondido de forma muito diferente. Ao mesmo tempo, e para seu assombro, apercebia-se que o velho ressentimento que tinha guardado contra ele tinha desaparecido, logo quando ela mais necessitava dele. E era em vão que recordava todos os incidentes e emoções daquela ocasião memorável, e tentava sentir a velha e satisfatória raiva. Aquele dia no lago tinha sido o seu espasmo final, e Anne apercebeu-se que tinha perdoado e esquecido sem se dar conta disso. Mas era tarde demais. Mas pelo menos nem Gilbert nem mais ninguém, nem sequer Diana, alguma vez suspeitariam como estava arrependida e como desejava não ter sido tão orgulhosa e má. Ela estava determinada a ‘embrulhar os seus sentimentos na mortalha do esquecimento’, e pode-se desde já afirmar

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que o conseguiu, com tanto sucesso que Gilbert, que possivelmente não era tão indiferente como parecia, não encontrou consolo sentindo que Anne sofria por causa do seu desprezo. O único conforto que tinha vinha da forma como ela desprezava o pobre Charlie Sloane, sem dó nem piedade, e acima se tudo sem que ele o merecesse. Apesar de tudo o Inverno passou-se num círculo de deveres agradáveis e estudos. Para Anne os dias passavam como missangas douradas no colar do ano. Ela estava feliz, ansiosa, interessada; haviam lições a aprender e honras a ganhar; livros deliciosos a ler e novas peças a praticar para o coro da escola dominical; agradáveis tardes de sábado passadas com a senhora Allan; e então, antes mesmo que Anne se apercebesse, a Primavera regressou a Green Gables e o mundo floresceu novamente. Os estudos avolumaram-se um pouco nessa altura; a classe de Queen’s, deixada para trás a estudar enquanto os outros se espalhavam a correr pelos campos verdes e bosques cheios de folhagem, olhava para fora da sala com ar desejoso, e descobria que os verbos latinos e franceses tinham de certa forma perdido o encanto que possuíram nos meses frios do Inverno. Até Anne e Gilbert se deixaram ficar indiferentes. A professora e os alunos ficaram igualmente felizes quando passou o trimestre e as alegres férias se aproximavam. “Mas vocês fizeram um bom trabalho este ano,” disse-lhe Miss Stacy na última tarde, ”e merecem umas boas férias descansadas. Divertiam-se quanto possam no mundo lá fora, e acumulem uma boa dose de saúde e vitalidade e ambição para vos levar através do próximo ano. Vai ser o mais difícil, sabem, o último ano antes da admissão.” “Vai voltar a ser nossa professora no ano que vem, Miss Stacy?” perguntou Josie Pye. A Josie Pye nunca tinha escrúpulos em fazer perguntas; neste caso, o resto da turma ficou-lhe agradecida pois nenhum se tinha atrevido a perguntar isso a Miss Stacy mas todos queriam que voltasse, e tinham havido relatos alarmantes na escola que ela não regressaria no próximo ano, que lhe tinha sido oferecido um lugar num colégio perto da sua zona e que ela tinha intenção de aceitar. A classe de Queen’s esperava sem respirar uma resposta. “Sim, acho que vou,” disse Miss Stacy. “Eu pensei em ir para outra escola, mas decidi que ia voltar a Avonlea. Para dizer a verdade, acho que comecei a interessar-me tanto pelos meus alunos daqui que acho que não os consegui deixar. Por isso vou ficar e acompanhá-los na admissão.” “Urra!!” disse Moody Spurgeon. O Moody nunca tinha sido tão efusivo antes, e corou desconfortavelmente de cada vez que se lembrou disso durante a semana seguinte. “Oh, fico tão contente,” disse Anne de olhos brilhantes. “Querida miss Stacy, seria terrível se não voltasse. Eu não acho que fosse capaz de continuar os meus estudos se viesse para cá outro professor.” Quando Anne voltou para casa nessa noite ela guardou todos os livros de estudo num baú no sótão, fechou-o e meteu a chave na caixa dos cobertores. “Eu não vou sequer olhar para um livro de estudo nas férias” disse a Marilla. “Estudei tanto quanto pude, e trabalhei aquela geometria até saber cada proposição do livro de cor, mesmo quando mudam as letras. Eu sinto-me cansada de tudo o que é sensato, e vou deixar a minha imaginação em liberdade este Verão. Oh, não precisa de ficar alarmada, Marilla. Eu vou deixá-la em liberdade dentro dos limites razoáveis. Mas eu quero divertir-me bastante este Verão, porque se calhar é o meu último Verão como rapariguinha. A senhora Lynde diz que se eu continuar a crescer no próximo ano como cresci neste vou ter que arranjar saias mais compridas. Ela diz que eu sou só pernas e olhos. E quando eu vestir saias mais compridas vou sentir que tenho que ficar à altura delas e ser muito digna e séria. Nem sequer vou poder acreditar

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em fadas, nessa altura; por isso vou acreditar nelas de todo o coração este Verão. Eu acho que vamos ter umas férias muito alegres. A Ruby Gillis vai dar uma festa de aniversário em breve e no próximo fim-desemana é o piquenique da escola dominical, e há o concerto dos missionários no próximo mês. E a senhora Barry diz que uma destas tardes nos vai levar a mim e à Diana ao Hotel de White Sands para jantar. Eles servem lá jantares, sabe? A Jane Andrews foi lá uma vez no Verão passado e disse que era uma coisa extraordinária, ver as luzes eléctricas e as flores, e as senhoras com aqueles fatos lindos. A Jane diz que foi a primeira vez que ela teve noção da vida da alta sociedade, e que nunca se vai esquecer até ao dia que morra.” A senhora Lynde apareceu na tarde seguinte para saber porque é que a Marilla não tinha ido à reunião da Aid Society na quinta-feira. Quando a Marilla não ia à reunião, as pessoas sabiam que alguma coisa se passava de errado em Green Gables. “O Matthew esteve mal do coração na quinta-feira,” disse Marilla, “E eu não quis deixá-lo sozinho. Oh, sim, ele agora está bem, mas ele tem mais crises do que costumava ter e eu estou a ficar preocupada com ele. O médico diz que ele deve ter cuidado para evitar excitações. Isso é fácil, porque o Matthew não anda por aí à procura de excitações, nem nunca andou, mas ele também não deve fazer trabalhos pesados e sabes bem que ele não deixa de os fazer. Anda pôr ali as tuas coisas Rachel. Ficas para o chá?” “Bem, já que insistes, talvez fique” disse a senhora Lynde, que não tinha a menor intenção de fazer outra coisa. A senhora Lynde e a Marilla sentaram-se confortavelmente na sala de visitas enquanto a Anne arranjou o chá e fez uns biscoitinhos que eram suficientemente leves e claros para desafiar até as críticas da senhora Rachel. “Devo dizer que a Anne se tornou uma rapariga muito esperta,” admitiu a senhora Rachel, enquanto Marilla a acompanhava até ao fim da alameda ao pôr-do-sol. “Ela deve ajudar-te muito.” “Pois ajuda,” disse Marilla, “e agora é muito certinha e trabalhadora. Eu cheguei a ter medo que não perdesse aquela cabeça de vento que tinha, mas ultrapassou isso tudo e eu agora não tenho medo de lhe confiar qualquer tarefa.” “Eu nunca pensei que ele ficasse assim, depois daquele primeiro dia há três anos atrás,” disse a senhora Rachel. “Santo Deus, nunca me vou esquecer daquela birra dela! Quando fui para casa disse ao meu Thomas, ’Ouve o que eu te digo Thomas, a Marilla Cuthbert vai arrepender-se amargamente do passo que deu’. Mas enganei-me e estou contente por isso. Eu não sou daquelas pessoas, Marilla, que nunca são capazes de admitir que se enganaram. Não, não sou assim, graças a Deus. Eu enganei-me ao julgar a Anne, mas não me admiro porque nunca ouvi falar de uma criança mais estranha e imprevisível. Não havia maneira de a educar da forma que resultava com outras crianças. É admirável a forma como ela mudou nestes anos, especialmente no aspecto. Ela está uma linda rapariga, apesar de eu não gostar muito daquele género pálido e de olhos grandes. Eu gosto de mais cor e vivacidade, como tem a Diana Barry ou a Ruby Gillis. A Ruby Gillis é muito bonita. Mas de certa forma, não sei como, quando estão todas juntas ela fá-las parecer comuns, normais, como aqueles lírios de Junho que ela chama narcisos ao pé das peónias grandes e vermelhas.” Capítulo XXXI Onde o riacho se junta com o rio Anne teve o seu Verão em pleno, e gozou-o do fundo do coração. Ela e Diana passaram o tempo na rua, deliciando-se com a Alameda dos Apaixonados, a Bolha da Dríade, Willowmere e com a Ilha Vitória.

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Marilla não levantou objecções a toda esta vadiagem. O médico de Spencervale que tinha vindo na noite em que Minnie May teve o crupe viu a Anne em casa de um doente, olhou para ela atentamente, torceu a boca, abanou a cabeça, e mandou recado a Marilla por outra pessoa. Era o seguinte: “Veja se essa sua miúda ruiva anda ao ar todo o Verão e não a deixe ler livros até que ganhe um ar menos doente.” Esta mensagem assustou profundamente Marilla. Ela viu nela o prenúncio da morte de Anne por esgotamento, a não ser que a ordem fosse escrupulosamente cumprida. Como resultado, Anne teve o Verão dourado da sua vida, no que diz respeito a liberdade e brincadeira. Ela caminhou, apanhou bagas, correu, e sonhou até não poder mais; e quando Setembro chegou ela tinha os olhos brilhantes e alerta, um ar que teria satisfeito o médico de Spencervale, e um coração cheio de ambição e vontade mais uma vez. “Sinto-me cheia de vontade para estudar a todo o vapor,” declarou enquanto trazia os livros do sótão. “Oh, meus bons velhos amigos, estou tão contente por ver as vossas caras alegres mais uma vez, sim mesmo a ti geometria. Eu tive um Verão perfeitamente lindo, Marilla, e agora regozijo-me como um homem forte ante uma corrida, como disse o senhor Allan no domingo passado. O senhor Allan prega sermões magníficos, não acha? A senhora Lynde diz que ele melhora de dia para dia e que um dia destes aparece aí uma igreja de uma cidade grande que o leva e nós vamos ter que desbastar outro pastor novo. Mas eu não acho que se deva pensar nessas coisas com tanta antecedência, não acha, Marilla? Eu acho que será melhor desfrutar do senhor Allan enquanto ele cá está. Se eu fosse um homem acho que queria ser pastor. Eles podem ter tanta influência para o bem, se a sua teologia for correcta; e deve ser tão arrepiante fazer aqueles sermões magníficos e tocar os corações do público. Porque é que as mulheres não podem ser pastores, Marilla? Eu perguntei à senhora Lynde e ela disse talvez houvessem mulheres pastores nos Estados Unidos, e ela acreditava que sim, mas que ainda bem que ainda não tínhamos chegado a esse estado aqui no Canadá e ela esperava que nunca chegássemos. Mas não vejo porquê. Eu acho que as mulheres fariam excelentes pastores. Quando há um evento social ou um chá de beneficência ou qualquer outra coisa para angariar dinheiro as mulheres é que têm que deitar mão ao trabalho. Tenho a certeza que a senhora Lynde podia orar tão bem como o diácono Bell e tenho a certeza que também podia pregar se praticasse um bocadinho.” “Sim, acho que sim,” disse Marilla secamente. “Ela já faz bastantes sermões tal como é. Não há grande hipótese de alguém fazer qualquer coisa de mal em Avonlea sem que ela saiba.” “Marilla,” disse Anne num laivo de confiança, ”eu quero dizer-lhe uma coisa e perguntar-lhe a sua opinião. Tem-me preocupado terrivelmente, nas tardes de domingo, quando penso mais nestes assuntos. Eu quero mesmo ser boa, e quando estou consigo ou com a senhora Allan ou a Miss Stacy eu quero-o mais que nunca e faria qualquer coisa que lhes agrade. Mas na maior parte das vezes em que estou com a senhora Lynde eu sinto-me desesperadamente má, como se só quisesse fazer as coisas que ela me diz que não devo. Eu sinto-me irresistivelmente tentada a fazê-las. Porque é que acha que me sinto desta maneira? Acha que é porque sou mesmo má e irrecuperável?” Marilla pareceu duvidosa por um instante. Depois começou a rir. “Se tu és má e irrecuperável, então acho que eu também sou, Anne porque a Rachel tem o mesmo efeito em mim. Eu às vezes acho que ela teria uma maior influência para o bem, como tu dizes, se não andasse sempre a chatear as pessoas para fazer o fazerem. Devia haver um mandamento especial para impedir as pessoas de serem chatas. Mas não devíamos falar assim, a Rachel é uma boa mulher cristã, e tem boas

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intenções. Não há em Avonlea uma alma mais condoída e ela nunca se nega ao trabalho.” “Fico tão contente por sentir o mesmo,” disse Anne. “É tão encorajante. Já não me vou preocupar tanto com isto. Mas atrevo-me a dizer que vão surgir coisas novas para me preocupar. Elas não param de chegar todas novas, coisas que me deixam perplexa, sabe? Resolvemos uma questão e aparece outra logo a seguir. Há tantas coisas a pensar e a decidir quando começamos a crescer. É uma coisa muito séria, crescer, não é Marilla? Mas quando se têm tão bons amigos como você e o Matthew, a senhora Allan e a miss Stacy eu devo conseguir crescer bem, e tenho a certeza que a culpa será minha se não o fizer. Se eu não crescer bem não posso voltar atrás e começar de novo. Eu sinto que é uma grande responsabilidade porque só tenho uma oportunidade. Eu cresci quatro centímetros este Verão, Marilla. A senhora Gillis mediume na festa da Ruby. Fico tão contente por ter feito os meus vestidos novos mais compridos. O verde-escuro é muito bonito, e foi tão amorosa em ter posto aquele folho em baixo. Claro que sei que não era necessário, mas os folhos estão tão na moda neste Outono e a Josie Pye tem folhos em todos os vestidos. Eu sei que vou conseguir estudar melhor por causa do meu. Eu vou ter sempre uma sensação tão confortável por causa daquele folho.” “Então realmente valeu a pena tê-lo feito,” admitiu Marilla. A miss Stacy regressou à escola de Avonlea e encontrou todos os seus alunos desejosos de começar a trabalhar de novo. Especialmente a classe de Queen’s, que se preparava para o esforço final, uma vez que no final daquele ano já se ia projectando no seu caminho a terrível coisa conhecida como Admissão, que os fazia a todos encolherem-se de medo. Imaginem que não passavam! Esse pensamento assombrava Anne nas horas tardias desse Inverno, incluindo as tardes de domingo, até à quase total exclusão de problemas de natureza moral e teológica. Quando Anne tinha pesadelos, via-se olhando miseravelmente para as listas de passagem dos exames de Admissão, onde o nome de Gilbert Blythe estava brasonado no topo e o seu nem sequer aparecia. Mas foi um Inverno alegre, ocupado, e que passou num piscar de olhos. O trabalho da escola era tão interessante e a rivalidade entre alunos tão absorvente como nos anos passados. Novos mundos de pensamentos, sentimentos e ambições, novos campos de conhecimento por explorar pareciam abrir-se em frente dos olhos ansiosos de Anne. “Colinas apareciam diante dos seus olhos, e Alpes se erguiam” A maior parte era motivada pela direcção cuidadosa, cheia de tacto e aberta de Miss Stacy. Ela levava a sua classe a pensar e explorar e descobrir por si sós, e encoraja-os a prosseguir por caminhos novos de uma forma que chocava a senhora Lynde e os procuradores da escola, que viam todas as inovações nos métodos estabelecidos de uma forma dúbia. Para além dos seus estudos, Anne expandia-se socialmente porque a Marilla, ciente da ordem do doutor de Spencervale, não a impedia de sair. O Clube de Debate floresceu e deu vários concertos, houve uma ou duas festas quase adultas, e houve passeios de trenó e grandes palhaçadas em patins. Entretanto Anne crescia, tão de repente que Marilla ficou assombrada um dia quando estando lado a lado, viu que a rapariga estava mais alta do que ela. “Anne, como cresceste!” disse, quase sem acreditar. Um suspiro seguise às palavras. Marilla sentiu pena pelos centímetros que Anne tinha a mais. A criança que ela tinha aprendido a amar tinha desaparecido e aqui estava aquela rapariga alta e séria de quinze anos, com um olhar ponderado e uma cabeça que se erguia orgulhosa no seu lugar. Marilla amava a rapariga tanto quanto tinha amado a criança, mas tinha consciência de um estranho sentimento de perda. E nessa noite, quando Anne foi à reunião da igreja com a Diana, Marilla sentou-se sozinha no anoitecer de Inverno e permitiu-se chorar um pouco. Matthew, que vinha

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de fora com uma lanterna, apanhou-a desprevenida e olhou para ela tão consternado que Marilla se viu obrigada a rir por entre as lágrimas. “Eu estava a pensar na Anne,” explicou. “Ela está tão grande, e provavelmente já cá não vai estar no próximo Inverno. Vou ter tantas saudades dela.” “Ela vai poder vir a casa muitas vezes,” confortou-a Matthew, para quem Anne era ainda e sempre seria a criança desejosa que ele tinha trazido para casa da estação de Brigth River há quatro anos, naquela tarde de Junho. “O ramal de Carmody vai ficar pronto nessa altura.” “Não vai ser como tê-la aqui o tempo todo,” suspirou Marilla imperturbável na sua determinação de estar desgostosa. “Mas claro, os homens não compreendem estas coisas.” E haviam outras mudanças em Anne para além das mudanças físicas. Para começar, tornou-se mais calada. Talvez ela pensasse ainda mais e sonhasse tanto quanto antes, mas certamente que falava menos. Marilla reparou nisto e comentou: “Tu não falas nem metade do que falavas, Anne, nem usas palavras complicadas. O que é que te aconteceu?” Anne corou um bocadinho e pousou o livro e olhou com ar sonhador para fora da janela, onde os grandes rebentos vermelhos já cresciam na trepadeira em resposta ao sol da Primavera. “Não sei, não me apetece falar tanto,” disse apoiando o queixo na mão. “É mais agradável pensar coisas bonitas e queridas e deixá-las no nosso coração, como tesouros. Eu não gosto que se riam delas ou que fiquem a pensar outras coisas. E já não gosto de usar palavras complicadas. É uma pena, não é, agora que estou quase crescida o suficiente para as dizer se quisesse. É divertido ser quase crescida nalguns aspectos, mas não é tanto como eu esperava, Marilla. Há tanto para aprender e para pensar que não há tempo para palavras complicadas. Além disso, a miss Stacy diz que as mais pequenas são mais fortes e melhores. Ela faz-nos escrever as nossas composições tão simples quanto possível. No princípio foi difícil. Eu estava tão habituada a atulhá-las com as palavras maiores e mais complicadas que eu conhecia, e eu conhecia imensas. Mas já me habituei e vejo que assim é muito melhor.” “E o que aconteceu ao vosso clube de histórias? Não te oiço falar dele há muito tempo.” “O clube de histórias já não existe. Nós não tínhamos tempo para isso, e além disso acho que nos cansámos. Era uma tolice andar a escrever sobre o amor e assassinatos e mistérios e suspense. A miss Stacy às vezes faz-nos escrever uma história para nos treinarmos, mas não nos deixa escrever sobre nada que não possa ter acontecido em Avonlea ou nas nossas vidas, e critica-as com muita atenção e faz-nos criticarnos a nós próprios também. Eu nunca pensei que as minhas composições tivessem tantos defeitos até que os comecei a procurar. Senti-me tão envergonhada que quis desistir, mas a miss Stacy disse que eu conseguiria aprender a escrever se me treinasse de forma a ser a minha mais severa crítica. E estou a treinar-me para isso.” “Só tens dois meses antes da admissão,” disse Marilla. “Achas que vais conseguir?” Anne tremeu. “Eu não sei. Ás vezes acho que sim, que vou conseguir, e depois fico terrivelmente assustada. Estudei muito, e a miss Stacy também tem puxado muito por nós, mas mesmo assim, podemos não passar. Cada um de nós tem um problema. O meu é a geometria, claro, e a Jane é com o latim, a Ruby e o Charlie é a álgebra e a Josie é a aritmética. O Moody Spurgeon diz que vai chumbar a história inglesa. A miss Stacy vai-nos fazer exames em Junho tão difíceis como eles têm na admissão, e corrigi-los com tanto rigor, para ficarmos com uma ideia. Eu só desejava que isto passasse, Marilla. Persegue-me. Ás vezes acordo à noite e fico a pensar o que faço se não passar.”

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“Pois vais para a escola e tentas outra vez,” disse despreocupadamente Marilla. “Oh, eu não acredito que tivesse coragem. Seria uma vergonha tal chumbar, especialmente se o Gil - se os outros passassem. E fico tão nervosa com o exame que o mais provável é só fazer asneiras. Eu só queria ter a calma da Jane Andrews. Nada a afecta.” Anne suspirou e desviando o olhar dos feitiços do mundo primaveril, do fim de dia de brisa e azul, e das coisas verdes que despontavam no jardim, entregou-se novamente à leitura. Haveriam outras primaveras, mas se ela não conseguisse passar no exame de admissão a Queen’s Anne sentia que nunca recuperaria a ponto de ter gosto nelas. Capítulo XXXII Saem as listas de passagem Com o fim de Junho veio o final do trimestre e o fim da docência da Miss Stacy na escola de Avonlea. Anne e Diana regressaram a casa nessa tarde sentindo-se muito sérias. Olhos vermelhos e lencinhos molhados atestavam que as palavras de despedida de miss Stacy tinham sido tão tocantes como as do senhor Phillips nas mesmas circunstâncias há três anos atrás. Diana olhou para trás para a escola ao pé da colina de abetos e suspirou longamente. “Parece mesmo o fim de tudo, não parece?” disse com tristeza. “Tu não te deves sentir tão mal como eu,” disse Anne, procurando sem sucesso um canto seco no lenço. “Tu vais voltar de novo no próximo ano, mas eu acho que deixei esta querida escola para sempre, se tiver sorte, pelo menos.” “Não vai ser a mesma coisa. A miss Stacy não vai estar aqui, nem tu, nem a Jane Andrews nem a Ruby provavelmente. E eu vou ter que me sentar sozinha porque não me vou conformar com mais nenhuma companheira de carteira depois de ti. Oh, nós passamos excelentes bocados, não foi, Anne? É terrível pensar que acabaram.” Duas grandes lágrimas rolaram pelo nariz de Diana abaixo. “Se tu parasses de chorar talvez eu conseguisse parar também,” implorou Anne. “Assim que guardo o lenço vejo-te choramingar e começo outra vez. Como diz a senhora Lynde, ’se não consegues ser alegre, sê tão alegre como consigas’. E depois, eu posso voltar no próximo ano. Esta é uma das alturas em que eu sei que não vou passar. Estão a tornar-se cada vez mais frequentes e alarmantes.” “Mas tu saíste-te tão bem nos exames da miss Stacy.” “Sim, mas naqueles exames eu não estava nervosa. Quando eu penso nos verdadeiros tu não imaginas a sensação fria que me chega ao coração. E depois o meu número é o treze e a Josie Pye diz que dá tanto azar. Eu não sou supersticiosa e sei que não tem importância. Mas ainda assim, desejava não ser o número treze.” “E eu desejava poder ir contigo,” disse Diana. “Não seria perfeitamente elegante? Mas deves ter que estudar à noite.” “Não, a miss Stacy fez-nos prometer que não abríamos um livro. Ela disse que só nos ia cansar e confundir, que devemos andar bastante e não pensar nos exames e ir cedo para a cama. É um bom conselho, mas acho que vai ser difícil segui-lo, como costuma acontecer com os bons conselhos. A Prissy Andrews contou-me que estudou metade das noites da semana do exame de Admissão, e eu tinha decidido estudar pelo menos tanto como ela. Foi tão amável a tua tia Josephine em convidar-me a ficar em Beechwood enquanto lá estiver”. “Vais-me escrever enquanto lá estiveres, não vais?” “Vou escrever na terça-feira à noite a dizer como correu o primeiro dia” prometeu Anne. “Não vou largar os correios na Quarta,” prometeu Diana.

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Anne foi para a cidade na segunda-feira seguinte e na quarta-feira, como combinado, a Diana não largou os correios, e teve a sua carta. “Querida Diana” (escreveu Anne) “Aqui é noite de terça-feira e estou a escrever na biblioteca de Beechwood. Na noite passada senti-me horrivelmente sozinha no quarto e desejei tanto que cá estivesses. Eu não pude estudar porque prometi à miss Stacy que não o fazia, mas foi tão difícil não abrir o livro de História como costumava ser não abrir os de histórias quando tinha que estudar. Esta manhã a miss Stacy veio cá buscar-me e nós fomos à Academia, indo buscar a Jane, a Ruby e a Josie no caminho. A Ruby pediu-me que lhe pegasse nas mãos e estavam frias como gelo. A Josie disse que eu parecia que não tinha pregado olho e que não acreditava que eu tivesse ânimo para aguentar o curso de professora mesmo se conseguisse passar. Ainda agora há alturas em que sinto que não fiz progressos no que diz respeito a aprender a gostar da Josie Pye! Quando chegámos à Academia haviam lá imensos alunos de toda a ilha. A primeira pessoa que vimos foi o Moody Spurgeon sentado nos degraus a murmurar sozinho. A Jane perguntou-lhe o que estava a fazer, e ele disse que estava a repetir a tabuada para se acalmar e pediu-lhe por tudo que não o interrompesse porque se parasse por um momento assustava-se e esquecia tudo o que sabia, mas a tabuada mantinha todos os factos firmes nos seus lugares! Quando fomos para as nossas salas a miss Stacy já não pôde ficar connosco. Eu e a Jane ficámos juntas e ela estava tão composta que eu a invejei. Não há qualquer necessidade de tabuadas para a calma e sensata Jane! Eu perguntava-me se o meu aspecto correspondia à maneira como me sentia, e se conseguiam ouvir o meu coração a bater do outro lado da sala. Então veio um homem e começou a distribuir os exames de Inglês. As minhas mãos gelaram e senti-me tonta quando lhe peguei. Por um horrível momento, Diana, senti-me exactamente como há quatro anos atrás quando perguntei à Marilla se podia ficar em Green Gables – e então tudo ficou claro na minha cabeça e o meu coração começou novamente a bater - esqueci-me de dizer que tinha parado por completo!- porque vi que conseguia fazer alguma coisa com aquele exame pelo menos.” “Ao meio-dia fomos comer a casa e voltámos à tarde para o exame de História. Este era muito difícil e eu baralhei-me um bocado nas datas. Ainda assim, acho que me saí bem. Mas oh, Diana, amanhã temos geometria e tenho que reunir toda a minha força de vontade para não abrir o meu Euclides. Se eu achasse que a tabuada me ajudava eu ia dizê-la todo o dia, hoje e amanhã. Fui ver as outras raparigas hoje à noite. Pelo caminho encontrei o Moody Spurgeon que andava distraído a passear. Ele disse que sabia que tinha chumbado a História e que tinha nascido para ser uma desilusão para os pais e que ia para casa no comboio da manhã; e que de qualquer forma seria mais fácil ser carpinteiro que pastor. Eu tentei animá-lo e convenci-o a ficar até ao fim, porque seria injusto para a miss Stacy se se fosse embora. Ás vezes desejava ter nascido rapaz, mas quando vejo o Moody Spurgeon fico sempre contente de ser rapariga, e não ser irmã dele. A Ruby estava histérica quando cheguei à residência delas; tinha acabado de descobrir um grande erro que tinha feito no exame de inglês. Quando ela recuperou fomos ao centro comer um gelado. Desejámos tanto que estivesses connosco. Oh, Diana, se o exame de geometria já tivesse passado! Mas, como diria a senhora Lynde, o sol vai continuar a nascer e a pôr-se, quer eu chumbe ou passe a geometria. Isso é verdade mas não é especialmente reconfortante. Acho que mais valia que nunca mais nascesse se eu chumbar! Devotamente tua:

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Anne” O exame de geometria e todos os outros foram feitos no devido tempo e Anne regressou a casa na Sexta-feira, bastante cansada mas com um ar de triunfo à sua volta. A Diana veio a Green Gables quando ela chegou, e encontraram-se como se não se vissem há anos. “Minha querida velha amiga, é perfeitamente esplêndido ver-te novamente. Parece que passou uma década desde que te foste embora, e oh, Anne como é que te saíste?” “Bastante bem, acho eu, em tudo menos geometria. Não sei se passei ou não e tenho um pressentimento arrepiante que chumbei. Oh, como é bom estar de volta! Green Gables é o sítio mais lindo e mais querido do mundo.” “Como se saíram os outros?” “As raparigas dizem que sabem que não passaram, mas eu acho que se saíram bastante bem. A Josie diz que o exame de Geometria era tão fácil que até uma criança de dez anos o conseguia fazer. O Moody Spurgeon diz que chumba a História e o Charlie a Álgebra. Mas nós não sabemos nada, realmente, e só vamos saber quando a lista sair. E ela nunca sai antes de depois de amanhã. Imagina só, viver dois dias nesta ansiedade! Só queria dormir até isto terminar.” Diana sabia que seria inútil perguntar-lhe como se tinha saído Gilbert, por isso limitou-se a dizer: “Oh, tu vais ter boas notas. Não te preocupes.” “Eu preferia não passar a vir a meio da lista,” disparou Anne, o que significava, e Diana sabia-o, que o sucesso seria incompleto e amargo se ela não tivesse melhores resultados que o Gilbert Blythe. Com este fim em vista Anne tinha-se esforçado ao máximo nos exames. E Gilbert também. Eles tinham-se encontrado e passado um pelo outro uma dúzia de vezes sem darem um sinal de reconhecimento e de cada vez Anne tinha erguido a cabeça um pouco mais alto e desejado um pouco mais ter feito as pazes com Gilbert naquele dia no lago, e jurava com mais determinação ultrapassá-lo nos exames. Ela sabia que todos os alunos de Avonlea se perguntavam quem se sairia melhor; sabia até mesmo que o Jimmy Glover e o Ned Wrigth tinham uma aposta relativamente a isso, e que a Josie Pye tinha afirmado que não haviam dúvidas que o Gilbert Blythe seria o primeiro; e ela sentia que a humilhação seria insuportável se falhasse. Mas ela tinha um outro motivo mais nobre para desejar ter boa nota. Ela queria ficar nos primeiros lugares por causa do Matthew e da Marilla, especialmente pelo Matthew. Ele tinha afirmado que ela ia ‘ser a melhor da ilha’. Isso, pensava Anne, seria esperar demais, mesmo na hipótese mais optimista. Mas ela esperava fervorosamente estar entre os primeiros, para que pudesse ver a expressão gentil de Matthew iluminar-se de orgulho com o seu feito. Isso, sentia, seria uma recompensa suficiente para justificar todo o seu trabalho árduo e paciente esforço diante de equações sem imaginação e conjugações. No final do prazo Anne começou a rondar a estação dos correios, na companhia de Jane, Ruby e Josie, abrindo os jornais diários de Charlottetown com mãos trémulas e sentimentos de frio e desamparo tão maus como os que tivera durante o exame. Charlie e Gilbert também o faziam, mas Moody Spurgeon ficava resolutamente longe. “Eu não tenho coragem de ir ali olhar para um papel a sangue frio,” disse a Anne. “Eu vou esperar que alguém venha dizer-me se passei ou não.” Então passaram-se três semanas sem que a lista aparecesse, e Anne começou a sentir que não conseguia aguentar a pressão. Perdeu o apetite e o seu interesse pelo que se passava em Avonlea diminuiu. A senhora Lynde dizia que mais não se podia esperar de um ministro da educação conservador, e Matthew que notava a palidez de Anne e a

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indiferença do ar com que regressava da estação dos correios começou a duvidar seriamente se votaria nos conservadores nas próximas eleições. Mas certa noite vieram as notícias. Anne estava sentada à frente da janela aberta, esquecida das preocupações dos exames enquanto absorvia a beleza do anoitecer de Verão, perfumado com flores do jardim lá de baixo e sibilante com o restolhar dos álamos. O céu a este por cima dos pinheiros estava levemente rosado com os reflexos do oeste, e Anne pensava vagamente se o espírito das cores seria assim, quando viu Diana correndo pela ponte de troncos e subindo a colina, agitando um jornal nas mãos. Anne pôs-se em pé, sabendo de imediato o que o jornal continha. A lista de passagem tinha saído! A cabeça dela dava voltas e o coração batia com tanta força que doía. Ela não se conseguia mexer. Pareceulhe que demorou uma hora até que Diana entrou em casa sem sequer bater, de tão grande que era o entusiasmo. “Anne, passaste,” gritou, ”passaste em primeiro lugar, tu e o Gilbert empatados, mas o teu nome vem primeiro. Oh, estou tão orgulhosa!” Diana atirou o papel para cima da mesa e a ela própria para a cama de Anne, completamente sem fôlego e incapaz de falar mais. Anne acendeu o candeeiro, tendo que usar meia dúzia de fósforos antes de conseguir que as suas mãos trémulas completassem a tarefa. Então pegou no papel. Sim, ela tinha passado, lá estava o nome dela no início de uma lista de duzentos! Valia a pena viver por momentos destes. “Tu foste esplêndida, Anne,” disse Diana, recuperando o suficiente para se sentar e falar, porque Anne, de olhos esbugalhados e em delírio, não tinha dito uma palavra. “O pai trouxe o jornal de Brigth River nem faz dez minutos, veio no comboio da tarde, sabes, e não vai chegar cá antes de amanhã pelo correio, e quando eu vi a lista de passagem corri para cá como louca. Vocês passaram todos, mesmo o Moody Spurgeon, apesar de estar condicionado a História. A Jane e a Ruby também se saíram bem, estão acima do meio, e o Charlie também. A Josie safou-se por três valores, mas vais ver que vai andar tão presunçosa como se fosse das primeiras. Não achas que a miss Stacy vai ficar encantada? Oh, Anne, qual é a sensação de ter o nosso nome no início de uma lista de passagem? Se fosse eu sei que enlouquecia de alegria, mas tu estás tão calma e fresca como uma noite de Primavera.” “Eu estou confusa,” disse Anne. “Eu quero dizer uma centena de coisas e não encontro palavras para as dizer. Eu nunca sonhei com isto, não, sonhei só uma vez! Eu deixei-me pensar uma vez ’e se for a primeira?’ a medo, sabes, porque pareceu-me tanta vaidade e presunção achar que podia ser a primeira da Ilha. Desculpa-me só um minuto, Diana, eu tenho que ir a correr ao campo dizer ao Matthew. Depois vimos andando para cima e damos a boa notícia aos outros.” Elas correram para o campo por baixo do celeiro onde o Matthew estava a enfardar o feno, e por sorte, a senhora Lynde estava a conversar com a Marilla ao pé da vedação da alameda. “Oh, Matthew,” exclamou Anne, “passei e fui a primeira, ou uma das primeiras! Não estou vaidosa, mas estou agradecida.” “Pois eu sempre disse que tu conseguias,” disse o Matthew, olhando deliciado para a lista de passagem. “Eu sabia que tu eras capaz de os bater com facilidade.” “Portaste-te muito bem, devo dizer-te, Anne,” disse Marilla, tentando esconder o seu orgulho extremo em Anne dos olhos vigilantes da senhora Rachel. Mas aquela boa alma disse sinceramente: “Eu acho que ela se portou muito bem e longe de mim não o dizer. És uma alegria para os teus amigos, Anne, e estamos todos muito orgulhosos de ti.” Nessa noite, Anne que tinha terminado a tarde com uma conversa com a senhora Allan na casa paroquial, ajoelhou-se ao pé da sua janela aberta debaixo da luz da lua e murmurou uma oração de agradecimento e desejo que lhe veio do fundo do coração. Nela havia agradecimento pelo

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passado e petição reverente para o futuro; quando ela se encostou para dormir na sua almofada branca os sonhos foram tão lindos e brilhantes como a sua juventude poderia desejar.

Capítulo XXXIII O Concerto no Hotel “Veste o teu branco de organdi, claro, Anne,” aconselhou Diana decididamente. Elas estavam juntas no quarto do sótão; lá fora caía a noite – um lindo anoitecer amarelo-esverdeado num céu azul e limpo. Uma grande lua redonda, mudando lentamente de um pálido amarelo para um prateado brilhante, erguia-se sobre o bosque assombrado; o ar estava cheio de doces sons de estio, pássaros ensonados a piar, brisas caracoleantes, vozes longínquas e risos. Mas no quarto de Anne, a cortina estava fechada e a lâmpada acesa, porque uma importante toilete estava a ser terminada. O quarto do sótão estava muito diferente do lugar que tinha sido quatro anos antes, quando Anne tinha sentido o seu espírito penetrado pelo vazio com o seu frio pouco hospitaleiro. As mudanças tinham-se insinuado, e Marilla tinha-se resignado conivente com elas, até que ficou um ninho tão elegante e suave como qualquer rapariga poderia desejar. A carpete de veludo com as rosas cor-de-rosa e as cortinas de seda a condizer nunca se materializaram, mas os sonhos dela acompanharam o seu crescimento, e não era provável que ela os lamentasse. O chão estava coberto com um bonito tapete, e as cortinas que adornavam a janela e flutuavam nas brisas perfumadas eram de musselina verde clara. As paredes não eram forradas a brocado de ouro e prata mas com um lindo papel cor-de-rosa, e eram adornadas com umas figuras que a senhora Allan tinha dado a Anne. A fotografia de miss Stacy ocupava o lugar de honra, e Anne fazia questão de ter flores frescas na jarra que tinha ao pé. Esta noite, um ramo de lírios brancos perfumava o quarto como fragrância de sonho. Não havia mobília de mogno, mas havia uma estante para os livros pintada de branco, uma cadeira de baloiço almofadada, uma mesinha de toilete com uma saia de musselina branca, um espelho de moldura larga que costumava estar no quarto de hóspedes, com cupidos e uvas pintadas no topo arqueado e uma cama branca. Anne estava a arranjar-se para um concerto no Hotel de White Sands. Os convidados tinham-no organizado a favor do hospital de Charlottetown, e tinham andado à cata de talentos amadores nos distritos circundantes para ajudarem. Bertha Sampson e Pearl Clay do coro baptista de White Sands tinham sido convidadas a cantar um dueto; Milton Clark de Newbridge ia fazer um solo de violino; Winnie Adella Blair de Carmody iria cantar uma balada escocesa; e Laura Spencer de Spencervale e Anne Shirley de Avonlea iriam recitar. Como Anne teria dito há algum tempo atrás, era um ponto alto na sua vida, e ela estava deliciosamente arrepiada com a excitação do evento. Matthew estava no sétimo céu do orgulho, grato pela honra conferida à sua Anne e Marilla não lhe ficava muito atrás, apesar de ela preferir morrer a admiti-lo, e ter dito que não lhe parecia correcto que os jovens se andassem a encontrar no hotel sem nenhuma pessoa responsável para olhar por eles. Anne e Diana deveriam ir com a Jane Andrews e Billy o irmão dela no buggy; e muitos outros rapazes e raparigas de Avonlea também iriam. Havia um grupo de visitantes de fora da cidade que eram esperados, e depois do concerto seria servida uma ceia para os participantes.

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“Achas mesmo que o de organdi é o melhor?” perguntou Anne ansiosamente. “Não acho que seja tão bonito como o meu de musselina com flores azuis, e também não está tão na moda.” “Mas fica-te muito melhor,” disse Diana. “É tão macio, justo e cheio de folhinhos. A musselina é dura e faz-te parecer demasiado bem vestida. Mas o de organdi é mesmo como tu.” Anne suspirou e cedeu. A Diana começava a ter uma reputação notável quando ao bom gosto para vestir, e o seu conselho nesses assuntos era muitas vezes pedido. Ela estava muito bonita também nesta noite com um vestido de um lindo tom rosa-selvagem, que a Anne estaria vedado para sempre; mas ela não teria parte no concerto, pelo que a sua aparência era de menor importância. Toda a sua atenção estava depositada em Anne, que para orgulho de Avonlea deveria ir bem vestida e penteada e enfeitada. “Arranja melhor aquele folho ali, assim; deixa-me atar o laço da cintura, agora os sapatos. Eu vou entrançar-te o cabelo com duas tranças grossas e atá-las ao meio com dois laços brancos, não, não deixes sair o cabelo para a testa. É a maneira como o teu cabelo fica mais bonito, e a senhora Allan diz que pareces uma Madonna quando o arranjas assim. Eu vou-te pôr esta rosinha branca por trás da orelha. Só tinha uma na roseira e guardei-a para ti.” “Achas que deva pôr o meu colar de pérolas de fantasia?” perguntou Anne. “O Matthew trouxe-mo da cidade na semana passada, e eu sei que ele gostava de me ver com ele.” Diana pensou por um bocado, inclinou a cabeça para um lado criticamente e finalmente pronunciou-se a favor do colar, que foi posto à volta do pescoço fino e branco de Anne. “Tu tens qualquer coisa de distinto, Anne,” disse Diana, com uma admiração sem inveja. “Ergues a cabeça de uma forma...Suponho que seja a tua estrutura fina. Eu sou um bocado reboluda. Tive sempre medo de ser, e agora sei que sou. Bem, suponho que me tenho que resignar a sêlo.” “Mas tu tens tantas covinhas,” disse Anne, sorrindo afectuosamente para o rosto bonito e alegre tão próximo do seu. “Lindas covinhas, como pequenas covinhas no leite-creme. Eu desisti completamente das covinhas. O meu sonho nunca se realizará, mas já se realizaram tantos que não me posso queixar. Estou pronta?” “Sim,” assegurou Diana, enquanto Marilla aparecia à porta, uma figura aprumada com cabelo mais grisalho que antigamente e com os mesmo ângulos, mas um rosto muito mais suave. “Entre e olhe para a sua recitante, Marilla. Não está linda?” Marilla emitiu um som entre uma fungadela e um resmungo. “Ela está limpa e decente. Gosto dessa maneira de arranjar o cabelo. Mas parece-me que ela vai sujar o vestido no caminho com o pó e o orvalho, e parece-me muito fino para estas noites tão húmidas. O organdi é o tecido menos prático do mundo, e eu disse isso ao Matthew quando ele to comprou. Mas não vale a pena dizer nada ao Matthew hoje em dia. Já lá vai o tempo em que ele aceitava os meus conselhos, ele agora compra as coisas para a Anne sem ligar a nada, e os caixeiros em Carmody sabem que lhe conseguem empurrar qualquer coisa. Basta dizerem-lhe que qualquer coisa é bonita e que está na moda, e o Matthew desaperta os cordões à bolsa. Vê se manténs a saia afastada da roda, Anne, e põe um casaco quente.” Então Marilla desceu rapidamente as escadas, pensando que bonita que estava a Anne, com aquele: “Raio de luar da testa até à coroa” e lamentando não poder ir ao concerto ouvir a sua menina a recitar. “E se estiver húmido demais para o meu vestido?” perguntou Anne ansiosamente. “Nem um bocadinho,” disse Diana, abrindo a cortina do quarto. “Está uma noite perfeita, e não vai haver neblina. Olha para o luar.”

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“Fico tão contente por a minha janela dar para este, para o sol nascente,” disse Anne dirigindo-se a Diana. É tão esplendido ver a manhã a chegar por cima daqueles montes e o sol a brilhar por detrás das copas aguçadas dos pinheiros. Todas as manhãs é novo e diferente, e sinto-me como se lavasse a minha alma naquele banho de luz matinal. Oh, Diana, eu amo tanto este quartinho. Não sei como vou passar sem ele quando me for embora no mês que vem.” “Não fales disso hoje,” pediu Diana. “Eu não quero pensar nisso, fazme sentir tão infeliz, e quero divertir-me hoje à noite. O que vais recitar, Anne? Estás nervosa?” “Nem um bocadinho. Já recitei tantas vezes em público que já não ligo. Decidi recitar ‘O Voto da Donzela’. É tão melancólico. A Laura Spencer vai recitar uma coisa cómica mas eu prefiro fazer chorar as pessoas.” “E o que vais recitar se pedirem bis?” “Eles não vão sonhar sequer em pedir bis,” respondeu Anne, que não deixava de ter uma certa esperança que o fizessem, e que já se imaginava a contar tudo a Matthew na manhã seguinte à mesa do pequenoalmoço. “Ali estão o Bill e a Jane, oiço as rodas. Vamos.” O Billy Andrews insistiu que a Anne deveria ir no lugar da frente com ele, e por isso ela subiu sem grande vontade. Ela preferiria ir atrás com as outras raparigas, onde teria rido e conversado todo o caminho. Não havia muito riso nem muita conversa com o Billy. Ele era um rapaz grande, gordo e forte, com um rosto redondo e pouco expressivo e uma dolorosa falta de talento para a conversa. Mas ele admirava imensamente a Anne, e estava inchado de orgulho com a perspectiva de chegar a White Sands com aquela figura esguia e altiva ao seu lado. Anne ia conversando por cima do ombro com as meninas e ocasionalmente ia dizendo qualquer coisa ao Billy, que sorria e nunca se lembrava de uma resposta enquanto era tempo, e isso contribuía para que ela desfrutasse da viagem apesar de tudo. Era uma noite para se divertir. A estrada estava cheia de buggies, todos deslocando-se em direcção ao hotel, e risos claros como cristal ecoavam e ressoavam por todo o lado. Quando chegaram ao Hotel este estava iluminado de cima abaixo. Foram recebidos pelas senhoras do comité do concerto, uma das quais levou Anne para o vestiário dos participantes que estava cheio com os membros do Clube Sinfónico de Charlottetown, entre os quais Anne se sentiu tímida, assustada e provinciana. O vestido dela, que no quarto do sótão tinha parecido tão elegante e bonito, agora parecia-lhe simples e comum, demasiado simples e comum, pensou, entre todas aquelas sedas e rendas que brilhavam e restolhavam à sua volta. O que era o colar de pérolas de fantasia comparado com os diamantes da senhora ao pé de si? E como devia parecer pobre a sua rosinha ao pé das flores de estufa que as outras senhoras usavam! Anne despiu o casaco e o chapéu, e encolheu-se miseravelmente a um canto. Desejou tanto estar de novo no seu quarto de Green Gables. Foi ainda pior na plataforma do grande salão de concertos do hotel, onde acabou por se encontrar. As luzes eléctricas encandeavam-na e o perfume e o barulho entonteceram-na. Ela desejou estar sentada na plateia com a Diana e a Jane, que pareciam estar muito divertidas lá atrás. Ela estava entalada entre uma senhora forte vestida de cor de rosa e uma rapariga alta e com ar de troça, com um vestido branco de renda. A senhora forte ocasionalmente virava a cabeça e vigiava Anne através dos óculos, até que Anne, consciente de ser tão observada, sentiu vontade de gritar; e a rapariga do vestido de renda não parou de falar com a vizinha do lado sobre os provincianos e as belezas rústicas do público, que esperavam deliciados os espectáculos de talento do programa. Anne sentiu que ia odiar a rapariga até ao fim dos seus dias. Infelizmente para Anne uma recitante profissional estava hospedada no hotel e foi convidada a recitar. Era uma mulher ágil, de olhos

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escuros, vestida com uma roupa cinzenta de um material que parecia raios de luar, com pedras preciosas ao pescoço e no cabelo. Ela tinha uma voz maravilhosa e flexível, e o público delirou com a actuação dela. Anne, esquecendo tudo sobre ela própria e sobre os seus problemas da altura, ouviu com olhos brilhantes e deliciados; mas quando a recitação terminou ela levou subitamente as mãos ao rosto. Ela nunca conseguiria levantar-se e recitar, nunca mais. Como é que ela pensou que conseguiria? Oh, se estivesse de novo em Green Gables! Foi neste momento pouco propício que o seu nome foi chamado. Ainda assim Anne – que não reparou no ar de surpresa que a rapariga do vestido de renda fez quando a viu levantar-se, e não teria compreendido o cumprimento subtil nele contido – levantou-se e dirigiu-se um pouco tonta para a frente. Ela estava tão pálida que a Diana e a Jane, lá ao fundo da plateia, agarraram as mãos uma à outra numa empatia nervosa. Anne foi vítima de um envolvente ataque de medo do palco. Apesar de recitar muitas vezes em público, nunca antes tinha enfrentado um tão vasto como este, e a sua vista paralisou-lhe completamente as energias. Era tudo tão estranho, tão brilhante, tão envolvente, as filas de senhoras em traje de noite, os rostos críticos, toda a atmosfera de riqueza e cultura esmagava-a, tão diferente dos bancos simples do clube de debate, repletos de rostos simpáticos de vizinhos e amigos. Estas pessoas, pensou Anne, vão ser críticos sem piedade. Talvez como a rapariga vestida de renda branca, eles esperassem divertir-se com os rústicos esforços dela. Ela sentiu-se desesperada, desamparada, envergonhada e triste. Os joelhos tremiam-lhe, o coração galopava, uma horrível sensação de desmaio abateu-se sobre ela; não conseguia pronunciar uma palavra, e no momento seguinte ela teria fugido da plataforma apesar da humilhação que, sentia, a acompanharia para sempre se o fizesse. Mas subitamente, enquanto os seus olhos dilatados de medo observavam o público, ela viu Gilbert Blythe lá ao fundo, inclinando-se para a frente com um sorriso no rosto, um sorriso que pareceu a Anne triunfante e desafiador. De facto, não o era de todo. Gilbert estava meramente a sorrir por estar a apreciar o espectáculo e o efeito que a forma esguia e o rosto espirituoso de Anne produzia com um fundo de palmas em particular. Josie Pye, a quem ele tinha trazido, estava sentada a sua lado e essa sim tinha certamente um ar triunfante e desafiador. Mas Anne não viu Josie, e não se teria importado se a visse. Ela respirou fundo e levantou a cabeça com orgulho e determinação a invadi-la como um choque eléctrico. Ela não ia falhar perante Gilbert Blythe, ele nunca se iria rir dela, nunca, nunca. O seu medo e nervosismo desapareceram e ela começou a recitar, a sua voz clara e doce chegando até ao canto mais longínquo sem um tremor ou uma quebra. Recuperou completamente a presença de espírito, e como resposta àquele horrível momento de impotência ela recitou como nunca antes tinha feito. Quando terminou, houve explosões de aplausos sinceros. Anne, recuando para o seu lugar, corando de timidez e satisfação, viu a sua mão ser vigorosamente apertada pela senhora forte vestida de seda cor-de-rosa. “Minha querida, saiu-se maravilhosamente,” exclamou. “Eu tenho chorado como uma criança, de verdade que tenho. Olhe, estão a pedir bis – querem-na de volta outra vez!” “Oh, não sou capaz,” disse Anne confusa. “Mas ainda assim, eu devo ir ou o Matthew ficará desapontado. Ele disse que iam pedir mais.” “Então não desaponte o Matthew,” disse a senhora de cor de rosa, rindo-se. Sorrindo, corando e de olhos brilhantes de lágrimas, Anne voltou ao palco e declamou uma pequena selecção que encantou o público ainda mais. O resto do serão foi um pequeno triunfo para ela.

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Quando o concerto terminou, a senhora de cor de rosa, que era mulher de um milionário americano, meteu-a debaixo da asa e apresentou-a a toda a gente, e toda a gente foi simpática para ela. A declamante profissional, senhora Evans, veio e conversou com ela, dizendo-lhe que tinha uma voz encantadora e que as suas escolhas tinham sido lindamente interpretadas. Até a rapariga vestida de renda branca lhe fez um cumprimento lânguido. Cearam na grande sala de jantar, elegantemente decorada; Diana e Jane foram convidadas a participar, mas o Billy tinha desaparecido com um receio mortal de ter que aceitar um tal convite. Ele estava à espera delas junto aos cavalos, e quando tudo terminou as três raparigas chegaram felizes rodeadas do brilho do luar. Anne suspirou fundo, e olhou para o céu limpo para além dos ramos escuros dos pinheiros. Oh, era tão bom estar cá fora outra vez, na pureza e no silêncio da noite! Como tudo era grandioso e calmo e belo, com o murmúrio do mar a rodear o espaço e os penhascos lá em baixo como gigantes guardando as costas encantadas. “Não foi uma noite esplêndida?” suspirou Jane, enquanto regressavam. “Eu gostava de ser uma americana rica e poder passar o Verão num hotel e usar jóias e vestidos decotados e comer gelado e salada de galinha em cada dia abençoado. Tenho a certeza que é muito mais divertido do que dar aulas. Anne, o teu recital foi muito bom, apesar de eu pensar no princípio que nunca mais começavas. Acho que foi melhor do que o da senhora Evans.” “Oh, não digas uma coisa dessas, Jane,” disse Anne rapidamente, “porque parece palermice. Eu não poderia ser melhor do que a senhora Evans porque ela é uma profissional e eu sou só uma aluna da escola com jeito para recitar. Estou muito satisfeita por as pessoas terem gostado das minhas peças.” “E eu tenho um elogio para ti, Anne,” disse Diana. “Pelo menos eu acho que deve ter sido um elogio por causa do tom de voz em que foi dito. Pelo menos parte. Estava um americano sentado por trás da Jane e de mim, um homem com um ar tão romântico, com cabelo negro como carvão e olhos escuros. A Josie Pye disse que ele era um artista distinto, e que a prima da mãe dela que mora em Boston é casada com um homem que andou à escola com ele. Bem, nós ouvimo-lo dizer, - não foi, Jane?-, ‘Quem é aquela rapariga no palco com aquele esplêndido cabelo à Titiano? Ela tem um rosto que eu gostava de poder pintar’. Ora aí tens, Anne. Mas o que quer dizer cabelo à Titiano?” “Acho que quer dizer simplesmente ruivo, penso eu,” riu-se Anne. “Titiano era um artista muito famoso que gostava de pintar mulheres ruivas.” “Viste quantos diamantes aquelas senhoras usavam?” suspirou Jane. “Eram estonteantes. Vocês não gostavam de ser ricas, meninas?” “Nós somos ricas,” afirmou Anne. “Só temos dezasseis anos, somos felizes como rainhas e temos mais ou menos imaginação. Olhem para aquele mar, todo prata e sombra e imagem de coisas nunca vistas. Não podíamos desfrutar mais da sua beleza se tivéssemos milhares de dólares e cordas de diamantes. Vocês não trocavam de lugar com nenhuma daquelas mulheres se pudessem. Queriam ser aquela rapariga de vestido de renda e usar aquele olhar amargo toda a vida, como se tivessem nascido já a torcer o nariz ao mundo? Ou a senhora de cor-de-rosa, simpática e gentil como é, tão baixa e forte que não tem figura nenhuma? Ou até a senhora Evans, com aquele olhar triste? Ela deve ter sido terrivelmente infeliz para ter aquele olhar. Tu sabes que não trocavas, Jane Andrews!” “Eu não sei, de certeza,” disse Jane sem se convencer. “Eu acho que os diamantes reconfortam muito uma pessoa.” “Pois eu não queria ser ninguém senão eu própria, mesmo se passe a minha vida sem ser confortada por diamantes,” declarou Anne. “Eu estou muito feliz por ser a Anne de Green Gables, com o meu colar de pérolas

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de fantasia. E eu sei que o Matthew mas deu com tanto amor, como nunca teve a Madame cor-de-rosa com todas as suas jóias.”

Capítulo XXXIV Uma rapariga de Queen's As próximas três semanas foram de grande azáfama em Green Gables, porque Anne preparava-se para ir para Queen’s, e havia muito para coser, e muitas coisas para combinar e arranjar. O guarda-roupa de Anne era amplo e bonito, pois Matthew tratou do assunto, e Marilla pela primeira vez não levantou quaisquer objecções àquilo que ele comprou ou sugeriu. Para além disso, numa noite foi lá a cima ao quarto do sótão com os braços cheios de um tecido delicado, verdeclaro. “Anne, está aqui um tecido para fazer um vestido bonito de cerimónia para ti. Não é que te faça falta, tens muitos vestidos bonitos; mas eu pensei que gostasses de uma coisa mesmo fina no caso de seres convidada a sair à noite, a uma festa ou qualquer coisa do género. Eu ouvi dizer que a Jane, a Ruby e a Josie têm vestidos de noite, como elas dizem, e não quero que lhes fiques atrás. Eu pedi à senhora Allan que me ajudasse a escolher o tecido na cidade na semana passada, e vamos pedir à Emily Gillys para o fazer. A Emily tem bom gosto e o corte dela não tem comparação.” “Oh, Marilla, é lindo,” disse Anne. “Muito obrigada. Não devia ser tão boa para mim, está a tornar a minha partida cada dia mais difícil.” O vestido verde foi feito com tantos pontos e folhos e brilhos quantos quis o bom gosto de Emily. Anne vestiu-o numa noite para o Matthew e para a Marilla, e recitou ‘O Voto da Donzela’ para eles na cozinha. Enquanto Marilla observava a face brilhante e animada, e os seus movimentos graciosos, os seus pensamentos levaram-na à noite em que Anne tinha chegado a Green Gables, e a memória recordou a imagem nítida da estranha e assustada criança no seu indecente vestido amarelo acastanhado, e o ar despedaçante dos seus olhos chorosos. Alguma coisa naquela imagem trouxe lágrimas aos olhos da própria Marilla. “Será possível que a minha recitação a tenha feito chorar, Marilla?” Perguntou Anne, dirigindo-se a Marilla para lhe dar um beijo no rosto. “Isso é um verdadeiro triunfo.” “Não, eu não estava a chorar pela história,” disse Marilla, que nunca admitiria ser apanhada numa fraqueza daquelas devido a qualquer poesia. “Eu não consigo deixar de pensar na menina que foste, Anne. E estava a desejar que pudesses ter ficado uma menina, mesmo com todas as tuas esquisitices. Tu cresceste e agora vais-te embora; e estás tão alta e distinta e tão...tão diferente nesse vestido - como se não pertencesses de todo a Avonlea- e eu senti-me sozinha só de pensar nestas coisas.” “Marilla!” Anne sentou-se no colo de Marilla, agarrou-lhe a cara com as mãos e olhou-a com ar sério e terno nos olhos. “Eu não mudei nem um bocadinho, de verdade. Eu estou só arranjada e ampliada, mas o meu verdadeiro eu está cá, é sempre o mesmo. Não vai fazer diferença nenhuma para onde vou ou como vou mudar por fora; no meu coração eu vou sempre ser a sua pequena Anne, que os vai amar a si e ao Matthew e à querida Green Gables mais e melhor cada dia da sua vida.” Anne colocou o seu rosto fresco junto do de Marilla, e estendeu a mão para dar uma palmada no ombro de Matthew. Marilla teria dado muito nessa altura para possuir o dom de Anne para transferir para palavras aquilo que sentia; mas a natureza e o hábito tinham determinado outra coisa, e ela só conseguia envolve-la com os braços e segurá-la

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ternamente junto ao coração, desejando que ela nunca se tivesse que ir embora. Matthew, com uma humidade suspeita nos olhos, levantou-se e foi para a rua. Debaixo das estrelas da noite azul de Verão ele caminhou agitado através do pátio e até ao portão por baixo dos álamos. “Pois bem, eu acho que ela não foi mimada demais,” murmurou orgulhoso. “Acho que eu ter metido o bedelho de vez em quando acabou por não fazer muito mal. Ela é esperta e bonita, e gosta muito de nós, o que é melhor que tudo o resto. É uma benção para nós, e nunca houve um erro mais afortunado que o que fez a senhora Spencer, se é que foi sorte e eu não acredito que fosse tal coisa. Foi a Providência, porque o Senhor viu que nós precisávamos dela, acho eu.” Chegou finalmente o dia em que Anne teve que ir para a cidade. Ela e Matthew foram de buggy numa linda manhã de Setembro, depois de uma chorosa despedida de Diana e outra sem lágrimas mas muito prática, pelo menos pelo lado de Marilla. Mas quando Anne partiu a Diana secou as lágrimas e foi para um piquenique na praia em White Sands com alguns dos seus primos de Carmody, enquanto Marilla se atirou a todo o tipo de trabalho desnecessário e todo o dia sofreu a mais amarga dor de cabeça: do tipo que mói e arde e não se deixa lavar em lágrimas. Mas nessa noite, Marilla foi para a cama aguda e tristemente consciente que o quarto do sótão ao fundo do corredor estava vazio de qualquer vida jovem e activa, e imperturbado por qualquer respiração. Enterrou a cara na almofada e chorou pela rapariga com uma emoção de soluços que a chocou quando se acalmou o suficiente para reflectir como era mau afeiçoar-se tanto a uma criatura mortal e pecadora. Anne e o resto dos alunos de Avonlea chegaram à cidade mesmo a tempo de se aprontarem para a Academia. Aquele primeiro dia passou agradavelmente num remoinho de excitações, conhecendo todos os alunos, reconhecendo os professores e sendo organizados em turmas. Anne pretendia entrar no segundo ano como aconselhara a miss Stacy, e Gilbert Blythe decidiu fazer o mesmo. Isto equivalia a tirar a licença de Professor de Primeira Classe num ano em vez de dois, se conseguissem, mas também equivalia a muito mais trabalho. Jane, Ruby, Josie e Moody, não sendo assediados pela ambição, davam-se por satisfeitos com a licença de Segunda Classe. Anne teve consciência do peso da solidão quando se encontrou numa divisão com cinquenta outros estudantes que não conhecia, à excepção de um alto de cabelo castanho, e conhecê-lo da forma que conhecia não a ajudava muito, como reflectiu com pessimismo. Mas estava sem dúvida contente por estarem na mesma turma; a velha rivalidade podia ser mantida, e Anne não saberia o que fazer sem ela. “Eu não me ia sentir confortável sem ela,” pensou. “O Gilbert parece muito determinado. Deve estar a decidir aqui e agora, que vai ganhar a medalha. Tem um queixo tão bonito! Nunca tinha reparado. Gostava tanto que a Ruby e a Jane também tivessem vindo para a turma da Primeira Classe. Mas acho que não me vou sentir tão deslocada quando conhecer umas pessoas. Quais destas raparigas irão ser minhas amigas? É uma especulação realmente interessante. Claro que eu prometi a Diana que nenhuma rapariga de Queen’s, fosse como fosse que eu gostasse dela, me seria tão querida como ela é; mas eu tenho muitos segundos melhores afectos para distribuir. Eu gosto do aspecto daquela rapariga de olhos castanhos e vestido carmim. Ela parece-me viva e rosada; ali está aquela pálida e bonita a olhar pela janela. Ela tem um cabelo bonito, e parece saber umas coisas sobre sonhos. Eu gostava de as conhecer às duas, suficientemente bem para andar com elas de braço dado e tratarmo-nos por diminutivos. Mas agora eu não as conheço, e elas não me conhecem a mim, e provavelmente nem me querem conhecer em particular. Oh, que solidão!” Ainda se sentiu mais sozinha quando se encontrou na entrada do quarto, nesse dia ao anoitecer. Ela não ia ficar com as outras raparigas, que

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tinham todas parentes na cidade que as acolheram em casa. A miss Josephine Barry teria gostado de lhe dar alojamento, mas Beechwood ficava muito longe da Academia e estava portanto fora de questão. Por isso miss Barry descobriu uma pensão, assegurando a Matthew e a Marilla que era o local indicado para Anne. “A dona é uma senhora de classe que teve problemas financeiros” explicou miss Barry. “O marido dela era um oficial britânico e ela tem muito cuidado com o tipo de hóspedes que recebe. Anne não vai conviver com pessoas a quem se tenha seja o que for a apontar debaixo do tecto dela. A comida é boa e a casa é perto da Academia, e é uma vizinhança sossegada.” Tudo isto podia ser verdade, e realmente viu-se que era, mas não ajudou a Anne na agonia de saudades que a tomou de assalto. Ela olhava triste para o seu quartinho estreito, com as suas paredes de papel monótono e sem quadros, a pequena cama de ferro e a estante vazia; e um horrível soluço chegava-lhe à garganta quando pensava no seu quarto em Green Gables, onde tinha consciência do exterior verde e grandioso, de ervilhas de cheiro que cresciam no jardim e do luar a debruçar-se sobre o pomar, do riacho lá em baixo e dos abetos que ondulavam ao vento por detrás dele, de um vasto céu estrelado e da luz do quarto da Diana a brilhar por entre as árvores. Aqui não havia nada disto, Anne sabia que para lá da janela dela era uma rua com uma rede de fios de telefone a atravessarem o céu, o barulho de pés estranhos e os brilhos de muitas luzes reflectidos em rostos estranhos. Ela sabia que ia chorar e lutou contra isso. “Eu não vou chorar. É uma palermice e uma fraqueza, lá está a terceira lágrima a escorregar pelo nariz. E vêem mais! Tenho que pensar em qualquer coisa engraçada para as parar. Mas não há nada engraçado que não esteja relacionado com Avonlea, e isso só torna as coisas piores – quatro, cinco. Vou para casa na sexta-feira e isso parece a séculos de distância. Oh, Matthew está quase em casa a esta hora, e Marilla está ao portão, a olhar para a estrada à espera dele, seis, sete, oito, oh, não vale a pena contá-las! Vêem de enxurrada agora. Não consigo animar-me, não quero animar-me. Mais vale estar infeliz!” E a enxurrada de lágrimas teria continuado, sem dúvida, se não fosse a Josie ter aparecido naquela momento. Com a alegria de ver um rosto familiar Anne esqueceu-se que nunca tinha morrido de amores por Josie. Mas como parte da vida de Avonlea, mesmo uma Pye era bem vinda. “Ainda bem que cá vieste,” disse Anne com sinceridade. “Estiveste a chorar,” reparou Josie, com uma pena irritante. “Deves estar com saudades de casa, algumas pessoas têm tão pouco autocontrole a esse respeito. Eu não tenho qualquer intenção de ter saudades de casa, digo-te já. A cidade é muito mais divertida depois daquela velha chata Avonlea. Eu nem consigo pensar como é que lá vivi tanto tempo. Não devias chorar, Anne, não te fica nada bem porque os teus olhos e o nariz ficam vermelhos e assim pareces toda vermelha. Eu diverti-me imenso hoje na Academia. O nosso professor de francês é simplesmente um pão. O bigode dele ia fazer-te ter palpitações. Tens aqui alguma coisa que se coma? Estou esfomeada. Ah, eu logo vi que a Marilla te mandava bolo. Foi por isso que vim. Senão tinha ido ao parque com o Frank Stockley. Ele está hospedado no mesmo sítio que eu, e é muito divertido. Ele reparou em ti hoje na turma, e perguntou-me quem era a ruiva. Eu disse-lhe que era uma órfã que os Cuthbert tinham adoptado, e que ninguém sabia muito bem por onde tinhas andado antes disso.” Nesta altura já Anne se perguntava se as lágrimas e a solidão não eram mais satisfatórias que a companhia da Josie quando apareceram a Ruby e a Jane, cada uma com três centímetros de fita com as cores de Queen’s – roxo e vermelho vivo - pregadas orgulhosamente ao casaco. Como a Josie não falava à Jane nessa altura teve que se reduzir a uma postura mais inofensiva.

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“Bem,” disse Jane com um suspiro,” parece-me que vivi muitos meses desde esta manhã. Eu devia estar em casa a estudar Virgílio, aquele horrível professor velho deu-nos vinte linhas para estudar para amanhã. Mas eu não conseguia estudar hoje. Anne, parece-me ver restos de lágrimas. Se estiveste a chorar diz-me. Vai restaurar o meu amorpróprio, porque eu estava lavada em lágrimas quando a Ruby apareceu. Eu não me importo de ser choramingas se tiver companhia. Bolo? Vais-me dar um bocadinho, não vais? Obrigada. Tem o verdadeiro sabor de Avonlea.” Ruby, vendo o calendário da academia em cima da mesa quis saber se Anne ia tentar ganhar uma medalha de ouro. Anne corou e admitiu que tinha pensado nisso. “Oh, tinha-me esquecido,” disse Josie,” Queen’s afinal sempre vai ter uma das bolsas Avery. Soube-se hoje. O Frank Stockley disse-me - o tio dele faz parte da comissão de governadores, sabem. Vai ser anunciado na Academia amanhã.” A bolsa Avery! Anne sentiu o coração bater mais depressa, quando os horizontes da sua ambição mudaram e alargaram como por magia. Antes de a Josie ter falado na bolsa, o pico da ambição de Anne tinha sido a licença de ensino provincial de Primeira Classe no fim daquele ano, e talvez a medalha! Mas neste momento Anne viu-se a ganhar a bolsa Avery, a começar um curso de artes no colégio de Redmond e a formar-se de capa e batina ainda antes de Josie se ter calado. Porque a bolsa Avery ia para Inglês, e Anne sentia-se com um pé em casa. Um rico industrial de New Brunswick tinha deixado ao morrer parte da sua fortuna para financiar um grande número de Bolsas de estudo que seriam distribuídas entre as várias escolas e Academias das províncias marítimas, de acordo com os seus respectivos estatutos. Tinham havido dúvidas se seria ou não atribuída a Queen’s, mas o assunto fora por fim resolvido e no final do ano o aluno que terminasse com melhor nota a Inglês e a Literatura Inglesa ganharia a bolsa, duzentos e cinquenta dólares por ano, para quatro anos de bacharelato no colégio de Redmond. Não admira que Anne fosse para a cama nessa noite com um sorriso nos lábios! “Eu vou ganhar essa bolsa de estudo se o trabalho árduo o permitir,” decidiu. “O Matthew ficaria tão orgulhoso se eu fosse bacharel de artes. Oh, é maravilhoso ter ambições. Estou tão contente por ter tantas. E não parecem ter fim, que é o melhor. Assim que conquistamos uma vê-se logo outra que brilha ainda mais alto. Torna a vida tão interessante!” Capítulo XXXV O Inverno em Queen’s As saudades que Anne tinha de casa foram-se diluindo, em parte devido às visitas que fazia nos fins-de-semana. Enquanto durou o bom tempo os estudantes de Avonlea iam até Carmody no novo ramo do caminho-de-ferro todas as sextas feiras à noite. A Diana e muitos outros jovens de Avonlea iam ter com eles e voltavam todos juntos num grande e alegre grupo. Anne achava que essas deambulações de sexta à noite pelos vales outonais rodeados de um ar frio e dourado e com as luzes de Avonlea a brilhar mais à frente, eram as melhores e mais queridas horas de toda a semana. O Gilbert Blythe caminhava quase sempre com a Ruby Gillis e levava-lhe a mala. A Ruby era uma jovem muito bonita, e agora considerava-se bastante crescida; usava as saias tão compridas quanto a mãe deixava e usava o cabelo apanhado ao alto na cidade, embora tivesse que o apanhar para baixo quando vinha a casa. Tinha grandes olhos azuis, uma pele bonita e uma estrutura arredondada e vistosa. Ela ria-se muito,

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era alegre e de fácil convívio, e gostava francamente das coisas boas da vida. “Mas eu não acho que ela seja o tipo de rapariga de quem o Gilbert goste,” segredou Jane a Anne. Anne também não achava, mas ela não o iria dizer nem pela bolsa de Avery. Ela não conseguia deixar de pensar, apesar de tudo, que seria muito agradável ter um amigo como o Gilbert para conversar e brincar, e trocar ideias sobre livros e estudos e ambições. O Gilbert tinha ambições e ela sabia-o, e a Ruby Gillis não parecia ser o tipo de pessoa com quem estas pudessem ser devidamente discutidas. Não havia qualquer outro sentimento nas ideias de Anne a respeito de Gilbert. Os rapazes eram para ela acima de tudo meramente possíveis bons companheiros. Se ela e o Gilbert fossem amigos ela não se importaria com quantos mais amigos ele tinha, ou com quem acompanhava a casa. Ela tinha génio para as amizades; tinha muitas amigas raparigas; mas tinha uma vaga consciência que as amizades masculinas também poderiam ser uma boa coisa para aumentar as concepções de companheirismo e alargar os seus parâmetros de julgamento e comparação. Não que Anne fosse capaz de definir os seus sentimentos quanto a este assunto com esta precisão. Mas ela achava que se o Gilbert alguma vez a tivesse acompanhado a casa pelos campos gelados e veredas cheias de fetos, eles teriam tido conversas alegres e interessantes acerca do mundo que se abria perante eles e das esperanças e ambições que acalentavam. O Gilbert era um rapaz esperto, com as suas próprias ideias acerca das coisas e determinado a gozar o melhor da vida e colocar o melhor de si mesmo nela. A Ruby Gillis disse à Jane Andrews que não compreendia metade do que dizia o Gilbert; ele falava tal e qual como a Anne Shirley quando tinha um ataque de pensamentos, e ela pessoalmente não achava que fosse divertido pensar tanto em livros e esse tipo de coisas quando não o tinham que fazer. O Frank Stockley tinha muito mais audácia, mas não era tão bonito como o Gilbert e ela não se conseguia decidir de qual gostava mais. Na Academia, Anne atraía gradualmente um pequeno círculo de amigos imaginativos, reflexivos e ambiciosos como ela própria. Com a rapariga de rosa e vermelho, Stella Maynard, e a rapariga sonhadora, Priscilla Grant, ela rapidamente ficou íntima, concluindo que a última, de ar mais espiritual era cheia de alegria e partidas e divertimento, enquanto que a Stela de olhos negros tinha um coração cheio de sonhos e fantasias, tão aéreas e coloridas como as de Anne. Depois das férias de Natal os estudantes de Avonlea deixaram de ir para casa nas sextas-feiras e começaram a trabalhar a sério. Nesta altura todos os alunos de Queen’s já tinham gravitado em direcção aos seus lugares, e as diferentes turmas tinham assumido distintas e assumidas formas de individualidade. Certos factos tinham sido aceites pela generalidade. Admitia-se que a medalha de ouro estava limitada a três alunos – Gilbert Blythe, Anne Shirley, e Lewis Wilson; A bolsa Avery era mais duvidosa, haviam seis pessoas que poderiam ser possíveis vencedores. A medalha de bronze para a matemática era considerada certa para um rapaz gordinho e de aspecto cómico da zona norte da ilha, com um casaco remendado. A Ruby Gillis era a rapariga mais bonita do seu ano na academia, e nas turmas do segundo ano a Stella Maynard tinha o primeiro lugar, com uma pequena mas crítica minoria a favor de Anne Shirley. Ethel Marr era reconhecida por todos como a mais elegante em termos de penteado, e a Jane Andrews – a simples, trabalhadora e conscenciosa Jane – teve as honras do curso de ciências domésticas. Até a Josie Pye adquiriu uma certa proeminência como a língua mais afiada de Queen’s. Por isso pode afirmar-se que todos os antigos alunos de miss Stacy se distinguiram na arena maior dos cursos académicos.

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Anne trabalhou duramente e sem descanso. A sua rivalidade com Gilbert Blythe era tão intensa como tinha sido na escola de Avonlea, e apesar de não ser conhecida pela generalidade da turma, mas de certa forma o ressentimento percebia-se. Anne já não desejava ganhar só para derrotar o Gilbert mas pela orgulhosa consciência de uma vitória bem merecida sobre um rival à altura. Seria bom ganhar-lhe, mas ela já não achava que a vida seria insuportável se isso não acontecesse. Apesar dos estudos, os alunos tinham oportunidade de passar momentos agradáveis. Anne passava grande parte das suas horas livres em Beechwood, e geralmente almoçava lá nos domingos e ia ao serviço religioso com a senhora Barry. Esta estava, como ela própria admitia, a ficar velha, mas os seus olhos negros não estavam diminuídos, nem o vigor da língua abatido. Mas ela nunca a afiava em Anne, que continuava a ser a favorita da velha senhora. “Aquela miúda-Anne melhora de dia para dia,” disse. “Eu canso-me das outras raparigas, têm uma provocante e eterna semelhança umas com as outras. Anne tem tantas tonalidades como um arco-íris e cada uma é mais bonita que a anterior. Eu não sei se ela é tão divertida como quando era pequena, mas faz-me gostar dela, e eu gosto de pessoas que me fazem gostar delas. Poupa-me o trabalho de me obrigar a gostar.” Então, sem que ninguém se apercebesse, chegou a Primavera; lá em Avonlea as flores de maio começavam a brotar nos campos onde ainda haviam franjas de neve, e as brumas de verde entravam nos bosques e nos vales. Mas em Charlottetown os alunos atormentados pensavam e falavam apenas nos exames. “Não parece possível que o período esteja já a acabar,” disse Anne. “Se ainda no Outono passado parecia tão longe, um Inverno cheio de aulas e estudos. E aqui estamos, a uma semana dos exames. Meninas, às vezes sinto-me como se os exames fossem tudo, mas quando olho para os rebentos a crescerem nos castanheiros lá fora e o ar azul enevoado não me parecem ter metade da importância.” A Jane, a Ruby e a Josie, que tinham chegado, não partilhavam deste ponto de vista. Para elas, os exames eram mesmo muito importantes, muito mais do que os rebentos dos castanheiros ou as névoas de Maio. Era tudo muito bonito para Anne nos seus momentos de contemplação, porque pelo menos ela tinha a certeza de passar, mas quando todo o nosso futuro dependia deles, como as raparigas acreditavam que era o seu caso, não se podiam olhar filosoficamente. “Eu perdi três quilos nas últimas duas semanas,” suspirou Jane. “Não vale a pena dizer ’não te preocupes’. Eu vou preocupar-me. A preocupação ajuda-nos um bocado, parece que nos ocupa. Seria horrível chumbar depois de ter estado em Queen’s todo o Inverno e ter gasto tanto dinheiro.” “Eu não me importo,” disse Josie Pye. “Se eu não passar este ano venho no próximo. O meu pai pode mandar-me de volta. Anne, o Frank Stockley disse-me que o professor Tremaine achava que o Gilbert Blythe ganha com certeza a medalha e que a Emily Clay fica com a bolsa Avery.” “Isso talvez me preocupe amanhã, Josie,” riu-se Anne, “mas eu agora sinto honestamente que enquanto souber que as violetas estão a despontar todas púrpura no declive por baixo de Green Gables e que os fetos estão a rebentar na Alameda dos Apaixonados, não me faz grande diferença ganhar ou não a bolsa Avery. Eu dei o meu melhor e começo a compreender o que se quer dizer com a alegria do trabalho. A seguir a tentar e ganhar, a única coisa melhor é tentar e falhar. Meninas, não falem dos exames! Olhem para aquele arco de céu azul-claro por cima daquelas casas, e imaginem como deve estar sobre as faias arroxeadas em Avonlea.” “O que é que vais usar para a cerimónia de encerramento, Jane?” perguntou Ruby de forma prática. A Jane e a Josie responderam as duas ao mesmo tempo, e a conversa desviou-se para as questões da moda. Mas Anne, com os cotovelos no

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parapeito da janela, o queixo apoiado nas mãos e os olhos perdidos no espaço, olhava sem distracções para aquele cenário gloriosos do pôrdo-sol e teceu os seus sonhos de um possível futuro com os tecidos dourados do optimismo juvenil. Todo o futuro lhe pertencia com as suas possibilidades brilhando alegremente nos anos vindouros, cada ano uma rosa de promessas a serem tecidas numa teia imortal. Capítulo XXXVI A Glória e o Sonho Na manhã em que os resultados dos exames finais iriam ser afixados em Queen’s, Anne e Jane vieram para a Academia juntas. Jane ia feliz e sorridente; os exames tinham terminado e ela estava certa de ter passado pelo menos; mais preocupações não a perturbavam de todo; ela não tinha grandes ambições e consequentemente não era afectada pela ansiedade da espera. Porque nós pagamos um preço por tudo o que damos ou tiramos neste mundo, e apesar das ambições serem boas de ser ter, elas não se deixam ganhar por pouco e aplicam as suas taxas de trabalho e sacrifício, ansiedade e desencorajamento. Anne ia pálida e calada; em dez minutos saberia quem tinha ganho a medalha e quem tinha ganho a bolsa Avery. Para além desses dez minutos parecia-lhe não haver nada a que se pudesse chamar Tempo. “Claro que vais ganhar uma delas,” disse Jane, que não achava que a faculdade fosse ser tão injusta que decidisse outra coisa. “Eu não tenho esperanças relativamente à bolsa Avery,” disse Anne. “Toda a gente diz que a Emily Clay a vai ganhar. E eu não vou olhar para aquele painel antes de toda a gente. Não tenho força moral. Eu vou direita ao vestiário das raparigas. Tu podes ler os resultados e vens-me dizer, Jane. E imploro-te em nome da nossa amizade que o faças tão depressa como possas. Se eu falhar diz-me logo, sem rodeios; e seja o que for que faças não tenhas pena de mim. Promete-me isso, Jane.” Jane prometeu solenemente, mas não houve qualquer necessidade de cumprir a promessa. Quando chegaram aos degraus de entrada de Queen’s elas encontraram a entrada cheia de rapazes que levavam Gilbert Blythe aos ombros e gritavam a plenos pulmões, ‘Urra para o Blythe, vencedor da Medalha!’” Por um momento, Anne sentiu o desagradável choque da derrota e desilusão. Então ela tinha perdido e o Gilbert tinha ganho! Bem, o Matthew ficaria desapontado, ele tinha a certeza que ela ia ganhar. E então! Alguém gritou: “Três vivas para a miss Shirley, vencedora da Avery!” “Oh, Anne,” gaguejou Jane, enquanto fugiam para o vestiário das raparigas entre cumprimentos sinceros. “Oh, Anne, estou tão orgulhosa! Não é esplêndido?” E então as raparigas rodearam-nas e Anne ficou no centro de um grupo alegre. Os ombros dela levaram muitas palmadas, e as mãos foram vigorosamente apertadas. Foi puxada e apertada e abraçada e entre todas conseguiu sussurrar a Jane: “Oh, o Matthew e a Marilla vão ficar tão contentes! Tenho que lhes escrever quanto antes.” A cerimónia de encerramento foi o próximo acontecimento importante. Os protocolos desenrolaram-se no grande salão da Academia. Foram dados agradecimentos, leram-se os ensaios, cantaram-se canções, entregaramse os diplomas, os prémios e as medalhas. O Matthew e a Marilla estavam lá, com os olhos e ouvidos postos numa só aluna no palco. Uma rapariga alta de vestido verde-claro, com as

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faces rosadas e os olhos vivos, que leu o melhor ensaio e foi apontada como a vencedora da bolsa Avery. “Deves estar contente por termos ficado com ela, não estás, Marilla?” sussurrou Matthew, falando pela primeira vez desde que entrou no salão, quando Anne terminou o ensaio. “E não é a primeira vez,” respondeu Marilla. “Tu gostas muito de frisar isso, Matthew Cuthbert.” A miss Barry, que estava sentada por detrás deles, inclinou-se e bateu no ombro de Marilla com o chapéu-de-sol. “Não estão orgulhosos daquela miúda-Anne? Eu estou,” disse. Anne voltou para casa com o Matthew e a Marilla nessa noite. Ela não vinha a casa desde Abril e sentia que não podia esperar mais um dia. Os rebentos de macieira despontavam e o mundo todo estava fresco e novo. Diana estava em Green Gables para a receber. No seu pequeno quarto branco, onde Marilla tinha posto uma jarra com rosas de santa teresinha no parapeito da janela, Anne olhou à sua volta e deu um longo suspiro de felicidade. “Oh, Diana, é tão bom estar em casa outra vez. É tão bom ver as pontas dos pinheiros a destacarem-se no céu rosado, e o pomar florido, e a rainha da neve. O cheiro da hortelã-pimenta não é delicioso? E aquelas rosinhas, são uma oração e uma canção e uma esperança, tudo ao mesmo tempo. E é tão bom ver-te de novo, Diana!” “Eu achei que tu gostavas daquela Stela Maynard mais do que de mim,” disse Diana. “A Josie Pye disse-me que sim. A Josie disse que estavas apaixonada por ela.” Anne riu-se e bateu em Diana com os lírios murchos do ramo dela. “A Stella Maynard é a miúda mais querida do mundo à excepção de uma, e essa és tu, Diana,” disse. “Eu adoro-te mais do que nunca, e tenho tantas coisas para te contar. Mas agora parece-me felicidade suficiente sentar-me aqui e olhar para ti. Estou cansada, acho eu, cansada de estudar e ter ambições. Amanhã vou passar pelo menos duas horas lá em baixo no pomar deitada na relva a pensar em absolutamente nada.” “Tu foste esplêndida, Anne. Agora não vais ensinar, como ganhaste a bolsa Avery?” “Não. Vou para Redmond em Setembro. Não é maravilhoso? Vou ganhar novas ambições depois destes três gloriosos meses de férias. A Jane e a Ruby vão dar aulas. Não é bom pensar que todos nos saímos bem, até o Moody Spurgeon e a Josie Pye?” “Os administradores de Newbridge já ofereceram a escola à Jane,” disse a Diana. “O Gilbert Blythe também vai dar aulas. Ele tem que trabalhar porque o pai afinal não o pode mandar para o colégio no próximo ano, por isso ele tem que juntar dinheiro para ir. Em princípio fica com a escola daqui se a miss Ames se for embora.” Anne sentiu uma leve sensação de surpresa. Ela não sabia disto, estava à espera que o Gilbert também fosse para Redmond. O que iria fazer sem a rivalidade inspiradora entre os dois? Não seria o trabalho, mesmo num colégio com um grau académico em perspectiva, um bocado chato sem o seu amigo o inimigo?” Na manhã seguinte ao pequeno-almoço Anne apercebeu-se subitamente que Matthew não parecia estar bem. Estava concerteza mais grisalho do que no ano passado. “Marilla,” disse hesitante quando ele saiu, “o Matthew está bem?” “Não, não está,” disse Marilla com um ar preocupado. “Ele teve algumas crises de coração esta Primavera, mas não se poupa nada. Eu tenho estado muito preocupada com ele, mas ele agora tem andado melhor e temos um bom empregado, por isso espero que ele abrande o ritmo e descanse um bocado. Talvez o faça, agora que estás em casa. Tu consegues sempre alegrá-lo.” Anne inclinou-se sobre a mesa e tomou o rosto de Marilla nas mãos.

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“Você também não está tão bem encarada como eu gostava de a ver, Marilla. Parece-me cansada. Anda a trabalhar demais. Agora tem que descansar, enquanto eu estou em casa. Vou só tirar este dia para visitar os meus velhos sítios queridos e caçar os meus velhos sonhos, e depois é a sua vez de ficar preguiçosa enquanto eu trabalho.” Marilla sorriu afectuosamente à sua menina. “Não é o trabalho, é a minha cabeça. Tenho agora quase sempre uma dor, por detrás dos olhos. O Doutor Spencer tem mexido e remexido nos meus óculos, mas não me ajudam. Vem um conhecido oculista cá à ilha no fim de Junho e o doutor diz que eu devo ir consultá-lo. Acho que vai ter que ser. Eu não consigo ler nem coser em condições agora. Bem, Anne tu saíste-te muito bem em Queen’s, devo dizer-te. Tirar a licença de professor de primeira classe e a bolsa Avery, bem, bem, a senhora Lynde diz que o orgulho precede a queda, e que ela não acredita numa educação de nível superior para as mulheres; ela diz que as incapacita para a sua verdadeira esfera. Eu não acredito numa palavra. Falando da Rachel lembrou-me - tens ouvido alguma coisa sobre o Banco Abbey ultimamente, Anne?” “Eu ouvi dizer que andava tremido,” respondeu Anne. “Porquê?” “Foi o que disse a Rachel. Ela esteve aqui um dia da semana passada e disse que se falava nisso. O Matthew ficou muito preocupado. Todas as nossas economias estão naquele banco, cada cêntimo. Eu queria que o Matthew as pusesse no Savings Bank, mas o senhor Abbey era um grande amigo do pai e ele sempre lhe tinha confiado o dinheiro. O Matthew dizia que qualquer banco com ele à frente era um bom banco para qualquer pessoa.” “Eu acho que ele só já é um membro nominal há muitos anos,” disse Anne. “Ele já é muito velho, os sobrinhos dele é que estão à frente da instituição.” “Pois, mas quando a Rachel nos disse isso, eu quis que o Matthew tirasse de lá o nosso dinheiro e ele disse que ia pensar no assunto. Mas o senhor Russel disse-lhe ontem que o banco ia bem.” Anne teve o seu dia grande na companhia do mundo exterior. Ela nunca se esqueceu daquele dia, foi tão dourado, brilhante e bonito, tão livre de sombras e cheio de vida. Anne passou uma boa parte das horas no pomar; foi à Driad’s Bubble e a Willowmere e ao Vale Violeta; fez uma visita à casa paroquial e teve uma conversa agradável com a senhora Allan; e finalmente ao anoitecer foi com o Matthew buscar as vacas através da Alameda dos Apaixonados até à pastagem de trás. O bosque estava glorioso com a luz do pôr-do-sol e o seu doce esplendor estendia-se através do espaço entre os montes a oeste. O Matthew caminhava lentamente com a cabeça baixa; Anne, alta e direita, adaptou o seu passo ao dele. “Você trabalhou demais hoje, Matthew,” repreendeu-o. “Porque é que não leva as coisa com mais calma?” “Bem, pois parece que não sou capaz,” disse Matthew, enquanto abria o portão para as vacas entrarem. “É que estou a ficar velho, Anne, e estou-me sempre a esquecer disso. Enfim, sempre trabalhei muito, e prefiro morrer assim.” “Se eu tivesse sido o rapaz que vocês queriam,” disse Anne,” eu tinhao ajudado muito e poupado em todos os sentidos. Eu penso muitas vezes que desejava ter sido esse rapaz, só por isso.” “Pois eu prefiro-te a ti antes de uma dúzia de rapazes, Anne,” disse Matthew, dando-lhe uma palmadinha na mão. “Não te esqueças disso, uma dúzia de rapazes. Pois parece-me que não foi um rapaz que ganhou a bolsa Avery, ou foi? Foi uma menina, a minha menina, a minha menina de quem me orgulho tanto.” Ele sorriu com o seu ar tímido para ela enquanto atravessava o pátio. Anne levou essa memória consigo quando foi para o quarto dela nessa noite, e se sentou por um longo bocado diante da janela aberta, pensando no passado e sonhando com o futuro. Lá fora a rainha da neve

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estava misticamente branca ao luar, as rãs cantavam no lago para lá de Orchard Slope. Anne recordou para sempre a beleza branca e prateada e a calma fragrância daquela noite. Foi a ultima noite antes que o desgosto tocasse a sua vida, e nenhuma vida pode voltar a ser a mesma quando aquele toque frio e santificante se pousa sobre ela. Capítulo XXXVII A Ceifeira Cujo Nome é Morte “Matthew, Matthew, o que é que se passa? Matthew, estás doente?” Era Marilla quem falava, com alarme em cada palavra que dizia. Anne vinha a passar na entrada, com os braços cheios de narcisos brancos levou muito tempo a voltar a gostar do cheiro dos narcisos brancos – a tempo de a ouvir e de ver o Matthew encostado à porta das traseiras com um papel dobrado nas mãos e o rosto ausente e acinzentado. Anne largou as flores e correu através da cozinha em direcção a ele ao mesmo tempo que Marilla. Foram ambas tarde demais, antes que o alcançassem Matthew caiu à porta. “Ele desmaiou,” gaguejou Marilla. “Anne, corre a buscar o Martin, rápido, rápido, ele está no celeiro.” Martin, o empregado que tinha acabado de chegar dos correios, foi de imediato buscar o médico, passando pelo caminho por Orchard Slope para pedir ao senhor Barry que viesse. A senhora Lynde, que lá estava a fazer um recado, veio também. Encontraram Anne e Marilla concentradas a tentar reanimar Matthew. A senhora Lynde puxou-as gentilmente para um lado, tomou-lhe o pulso e encostou-lhe o ouvido ao coração. Olhou para os seus rostos ansiosos com pena, e as lágrimas vieram-lhe aos olhos. “Oh, Marilla,” disse seriamente. “Eu não acho que possamos fazer nada por ele.” “Senhora Lynde, não acha, não pode pensar que o Matthew está...está” Anne não conseguia dizer a terrível palavra; ficou pálida e agoniada. “Querida, sim, receio que sim. Olha para o rosto dele. Quando se vê aquele ar tantas vezes quantas eu o vi sabemos o que quer dizer.” Anne olhou para o rosto quieto e pacífico e ali estava o selo da Grande Presença. Quando o médico chegou disse que a morte tinha sido instantânea e provavelmente indolor, talvez causada por um choque súbito. O segredo do choque foi descoberto no papel que Matthew tinha na mão e que Martin tinha trazido dos correios nessa manhã. Dava notícia da falência do Abbey Bank. As notícias espalharam-se rapidamente por Avonlea, e todo o dia amigos e vizinhos encheram Green Gables e foram e vieram para exprimir o seu afecto pelo morto e pelos vivos. Pela primeira vez o tímido Matthew era uma pessoa de importância central; a majestade branca da morte tinha caído sobre ele e elevara-o como alguém superior. Quando a noite caiu suavemente sobre Green Gables, a velha casa estava sossegada e tranquila. Na sala de visitas jazia Matthew no seu caixão, o seu longo cabelo cinzento emoldurava o rosto pálido no qual havia um pequeno sorriso simpático, como se dormisse e sonhasse com coisas agradáveis. Haviam flores à sua volta, flores doces e antiquadas que a sua mãe tinha plantado no jardim nos seus dias de juventude, e pelas quais Matthew sempre tivera um amor secreto e sem palavras. Anne tinha-as apanhado e trazido para ele, os seus olhos angustiados e sem lágrimas queimando no rosto pálido. Era a última coisa que podia fazer por ele. Os Barry e a senhora Lynde ficaram com elas nessa noite. Diana foi ao quarto do sótão onde Anne estava à janela e perguntou: “Anne, querida, gostavas que eu dormisse contigo hoje?”

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“Obrigada Diana.” Anne olhou francamente para o rosto da sua amiga. “Acho que não me vais interpretar mal, mas eu gostava de ficar sozinha. Eu não tenho medo. Eu não estive sozinha um minuto desde que aconteceu...e preciso de estar. Eu quero estar em silêncio, e quieta e tentar mentalizar-me. Eu não consigo acreditar. A metade do tempo parece-me que o Matthew não pode estar morto, e na outra metade parece-me que ele já morreu há muito tempo e que tenho esta horrível dor desde então.” A Diana não compreendeu muito bem. O desgosto evidente de Marilla, quebrando todas as barreiras de reserva temperamental e hábitos de uma vida com a sua energia tempestuosa conseguia ela entender melhor do que a agonia sem lágrimas de Anne. Mas ela foi-se embora gentilmente, deixando Anne sozinha para a sua primeira vigília de mágoa. Anne tinha esperado que as lágrimas viessem com a solidão. Parecia-lhe uma coisa terrível que não conseguisse derramar uma lágrima por Matthew, a quem tinha amado tanto e que tinha sido tão bom para ela, o Matthew que tinha caminhado ao seu lado na última noite ao anoitecer e agora estava deitado naquela sala escura com aquela horrível paz no rosto. Mas de início nenhumas lágrimas vieram, nem quando se ajoelhou à janela e rezou, olhando para as estrelas para lá dos montes, nenhumas lágrimas, só aquela dor horrível de tristeza que continuou a doer até que adormeceu, exausta com a dor e a excitação do dia. Durante a noite acordou, com o sossego e a escuridão à sua volta, e a lembrança do dia atingiu-a como uma vaga de mágoa. Ela conseguia ver o rosto sorridente de Matthew quando se despediu dela ao portão na última noite, podia ouvir a voz dele que dizia, ’a minha menina, a minha menina de quem me orgulho tanto’. Quando as lágrimas vieram, e Anne chorou o que lhe ia na alma, Marilla ouviu-a e entrou para a confortar. “Então, então, não chores assim, minha querida. Não o vai trazer de volta. Não…não é correcto chorar assim. Eu sabia isso hoje, mas não consegui evitar. Ele foi sempre um irmão tão bom, tão meigo para mim...mas Deus é que sabe.” “Oh, deixe-me chorar Marilla,” soluçou Anne. “As lágrimas não me magoam como aquela dor. Fique aqui um bocadinho e abrace-me, assim. Eu não podia deixar aqui ficar a Diana, ela é boa, e meiga e querida, mas não é o desgosto dela, ela está fora dele e não pode chegar perto do meu coração para me consolar. É o nosso desgosto, seu e meu. Oh, Marilla, o que é que vamos fazer sem ele?” “Temo-nos uma à outra, Anne. Eu não sei o que fazia se não fosses tu, se não tivesses vindo. Oh, Anne, eu sei que fui um bocado dura e rígida contigo talvez, mas tu não deves pensar que eu não gostava tanto de ti como o Matthew por causa disso. Quero dizer-te isso agora que posso. Nunca tive facilidade em dizer coisas do fundo do coração, mas nestas alturas é sempre mais fácil. Gosto tanto de ti como se fosses minha, do meu sangue, e tens sido a minha alegria desde que vieste para Green Gables.” Dois dias mais tarde levaram Matthew Cuthbert para fora da ombreira do seu lar, para longe dos campos que ele tinha cultivado e do pomar que amava e das árvores que plantara; e então Avonlea regressou à sua placidez habitual e até em Green Gables as coisas começaram a resolver-se no ritmo habitual e o trabalho fazia-se e os deveres cumpriam-se tal como antes, apesar de haver sempre um sentimento de perda em tudo o que era familiar. Anne, estreante no desgosto, achou quase triste que assim fosse, que pudessem continuar à mesma sem o Matthew. Sentiu qualquer coisa como vergonha ou remorsos quando descobriu que as auroras por detrás dos pinheiros e os rebentos rosa pálidos que surgiam no jardim lhe davam a mesma alegria que antes, que as visitas de Diana eram agradáveis e que as palavras alegres de Diana a levavam a rir e a sorrir, que o mundo maravilhoso de rebentos e

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amizades e amores não tinha perdido o poder de lhe agradar e arrepiar o coração, que a vida ainda a chamava com muitas vozes insistentes. “De certa forma parece-me desleal para com o Matthew, ter gosto nestas coisas agora que ele não está,” reflectiu com a senhora Allan numa noite em que estavam juntas no jardim da casa paroquial. “Eu tenho tantas saudades dele o tempo todo, e ainda assim, senhora Allan, o mundo e a vida parecem-me bonitos e interessantes. Hoje a Diana disse qualquer coisa engraçada e eu dei por mim a rir. Quando aconteceu pensei que nunca mais seria capaz de rir. E de certa forma parece-me que não devia.” “Quando o Matthew cá estava ele gostava de te ouvir rir e gostava de saber que tu gostavas das coisas agradáveis à tua volta,” disse a senhora Allan suavemente. “Ele agora está longe, e continua a gostar de saber que estás feliz e bem. Eu tenho a certeza que não devemos fechar os nossos corações às influências curativas que a natureza nos oferece. Mas eu consigo compreender o que tu sentes. Eu acho que todos experiênciamos a mesma coisa. Nós ressentimo-nos com o facto de pensar que alguma coisa nos pode dar prazer quando alguém que amamos já cá não está para partilhar esse prazer connosco, e quase nos parece estarmos a ser infiéis ao nosso desgosto quando vimos os interesses da vida regressarem a nós.” “Eu estive no cemitério para plantar uma roseira na campa do Matthew esta tarde,” disse Anne de forma sonhadora. “Eu tirei uma estaca da roseira escocesa que a mãe dele trouxe da Escócia há tantos anos; o Matthew sempre preferiu aquelas rosas, são tão pequenas e perfumadas. Senti-me bem por poder plantá-las na campa dele, como se estivesse a fazer qualquer coisa que lhe devesse agradar, ao levá-las para perto dele. Eu espero que ele tenha rosas daquelas no céu. Talvez as almas de todas aquelas rosinhas brancas de que ele gostou tanto tantos verões lá estivessem para o receber. Eu tenho que ir para casa, agora. A Marilla está sozinha, e ela sente-se só ao anoitecer.” “Ela vai sentir-se ainda mais sozinha, parece-me, quando tu te fores embora para o colégio,” disse a senhora Allan. Anne não respondeu; disse boa noite e regressou devagar a Green Gables. Marilla estava sentada nos degraus da porta da frente e Anne sentou-se ao seu lado. A porta estava aberta atrás delas, segura por uma concha rosada com reflexos de pôr-do-sol marinhos no seu interior macio. Anne apanhou alguns pés de florinhas amarelas e pô-las no cabelo. Agradava-lhe sentir a fragrância, como uma benção aérea, acima de si de cada vez que se mexia. “O Doutor Spencer esteve aqui quando tu estavas fora,” disse Marilla. “Ele diz que o especialista vem à cidade amanhã e insiste que eu lá vá para ele me examinar os olhos. E eu acho que mais vale ir de uma vez. Vou ficar mais do que agradecida se o homem me conseguir encontrar uns óculos adequados. Não te importas de cá ficar sozinha enquanto eu for, pois não? O Martin vai ter que me levar e é preciso passar a ferro e fazer pão.” “Eu vou ficar bem. A Diana vem cá fazer-me companhia. E vou tratar muito bem da roupa e do pão, não precisa de se preocupar que eu engome os lenços e ponha óleo de linhaça no pão.” Marilla riu-se. “Eras cá uma peça para fazeres asneiras naquele tempo, Anne. Estavas sempre a meteres-te em sarilhos. Eu cheguei a pensar que estavas possuída. Lembras-te de quando pintaste o cabelo?” “Sim, claro. Eu nunca me hei-de esquecer,” sorriu Anne, tocando na grossa trança que estava enrolada no cimo da cabeça. “Eu agora rio-me um bocado quando penso como me chateava com o meu cabelo, mas não me rio muito porque era mesmo um problema para mim. Eu sofria muito por causa do cabelo e das sardas. As sardas desapareceram, e as pessoas são simpáticas e dizem que o meu cabelo está acastanhado, todas menos

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a Josie Pye. Ela informou-me ontem que achava que estava mais encarnado que nunca, ou pelo menos que o meu vestido preto o fazia parecer mais encarnado, e perguntou-me se as pessoas que têm cabelo ruivo alguma vez se chegam a habituar a ele. Marilla, eu já quase decidi que não vou tentar gostar da Josie Pye. Eu fiz o que dantes consideraria um esforço heróico, mas a Josie não quer que gostem dela.” “A Josie é uma Pye,” disse a Marilla cortante, “por isso ela não consegue evitar ser desagradável. Esse tipo de pessoas se calhar têm algum propósito na sociedade, mas eu não faço ideia qual é. A Josie vai dar aulas?” “Não, ela vai regressar a Queen’s no próximo ano. O Moody Spurgeon e o Charlie Sloane também. A Jane e a Ruby é que vão dar aulas, e já têm escolas, a Jane em Newbridge e a Ruby em qualquer sítio no oeste.” “O Gilbert Blythe também vai dar aulas, não vai?” “Sim,” disse. “Ele é um rapaz muito bonito,” disse Marilla casualmente. “Eu vi-o na igreja no Domingo passado e pareceu-me tão alto e senhor de si. Ele parece-se muito com o pai na idade dele. O John Blythe era um rapaz muito simpático. Nós costumávamos ser bons amigos, ele e eu. As pessoas diziam que ele era o meu namorado.” Anne olhou com súbito interesse. “Oh, Marilla, e o que é que aconteceu? Porque é que...” “Nós tivemos uma briga. Eu não lhe perdoei quando ele me pediu. Eu queria, depois de um tempo, mas estava irritada e zangada, e quis castigá-lo. Ele nunca mais voltou, os Blythe são todos muito independentes. Mas eu senti-me sempre um bocado arrependida. Desejei sempre tê-lo perdoado quando tive oportunidade.” “Então também teve um certo romance na sua vida,” disse Anne com meiguice. “Sim, pode-se dizer que sim. Tu não ias dizer, ao olhares para mim, não é? Mas nunca se podem julgar as pessoas pela aparência. Toda a gente já se esqueceu de mim e do John. Eu própria me esqueci. Mas lembrei-me de tudo quando vi o Gilbert Blythe no domingo passado.” Capítulo XXXVIII A Curva na Estrada Marilla foi à cidade no dia seguinte e regressou ao anoitecer. Anne tinha ido a Orchard Slope com a Diana e quando voltou encontrou a Marilla na cozinha, sentada à mesa com a cabeça apoiada nas mãos. Qualquer coisa na sua postura deprimida provocou um choque no coração de Anne. Ela nunca vira Marilla sentada quieta daquela forma. “Está muito cansada, Marilla?” “Sim…não...não sei,” disse Marilla lentamente, olhando para cima. “Acho que devo estar cansada, mas não pensei nisso. Não é isso.” “Viu o oculista? O que é que ele disse?” perguntou ansiosamente Anne. “Sim, fui lá. Ele observou-me os olhos. Ele diz que se eu deixar de ler e coser, e de fazer qualquer trabalho que canse os olhos e se tiver cuidado para não chorar, e se usar os óculos que ele me deu, talvez os meus olhos não piorem e as minhas dores de cabeça se curem. Mas se não o fizer, ele diz que concerteza fico completamente cega dentro de seis meses. Cega! Anne, imagina!” Por um minuto, depois da sua pequena exclamação de surpresa, Anne ficou calada. Parecia-lhe não conseguir falar. Então disse com coragem, mas com um tremor na voz: “Marilla, não pense nisso. Você sabe que ele lhe deu esperança. Se tiver cuidado não vai perder a vista, e se os óculos lhe curarem a dor de cabeça vai ser muito bom.”

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“Não me parece que seja uma grande esperança,” disse Marilla amargamente. “Como é que eu vou viver se não puder ler ou coser, ou fazer qualquer coisa do género? Mais valia ser cega, ou morrer. E quanto a chorar eu não consigo evitar quando me sinto sozinha. Mas pronto, não vale a pena falarmos mais disto. Se me trouxeres uma chávena de chá vou ficar satisfeita. Estou esgotada. Não digas nada disto a ninguém para já. Eu não suportava que as pessoas viessem cá fazer-me perguntas, falarem do assunto e terem pena de mim.” Quando a Marilla comeu o seu jantar Anne convenceu-a a ir para a cama. Então Anne subiu para o quarto do sótão e sentou-se à janela sozinha na escuridão com as suas lágrimas e a tristeza no seu coração. Como tinham mudado as coisas desde que ela se tinha sentado no quarto no dia em que regressara a casa! Nessa altura estava cheia de esperança e de alegria, e o futuro parecia-lhe carregado de promessas. Parecia-lhe que tinha vivido anos desde essa altura, mas antes de se deitar tinha um sorriso nos lábios e paz no coração. Tinha olhado o seu dever nos olhos e encontrou nele um amigo, um dever é-o sempre quando o encaramos com franqueza. Numa tarde uns dias depois Marilla voltou lentamente do pátio da frente onde tinha estado a falar com uma pessoa, um homem que Anne conhecia de vista como um Sadler de Carmody. Anne perguntou-se o que teriam falado para Marilla vir com aquele olhar. “O que queria o senhor Sadler, Marilla?” Marilla sentou-se à janela e olhou para Anne. Havia lágrimas nos seus olhos apesar da proibição do oculista, e a voz dela quebrou quando disse: “Ele ouviu dizer que eu ia vender Green Gables e quer comprá-la.” “Comprá-la! Comprar Green Gables?” Anne perguntou-se se tinha ouvido bem. ”Oh, Marilla, você não pode querer vender Green Gables!” “Anne, eu não sei o que mais possa fazer. Já pensei em tudo. Se os meus olhos estivessem bem eu podia aqui ficar e tratar das coisas com um bom empregado. Mas eu não posso como as coisas estão. Eu posso perder por completo a vista; e de qualquer forma não estou capaz de tomar conta das coisas. Oh, nunca pensei que visse o dia em que tivesse que vender a minha casa. Mas as coisas só se degradariam mais e mais e chegaria a um ponto em que ninguém a ia querer comprar. Cada cêntimo do nosso dinheiro foi-se com aquele banco, e há umas contas do Outono passado para pagar. A senhora Lynde acha que devo vender a quinta e ir viver para qualquer lado, com ela, suponho. Não vai render muito, é pequena e os edifícios são velhos. Mas deve ser o suficiente para eu viver. Ainda bem que tu ficaste orientada com aquela bolsa de estudo, Anne. Tenho muita pena que não tenhas uma casa para vires passar as férias, mas penso que nos arranjaremos de qualquer maneira.” Marilla quebrou e começou a chorar amargamente. “Você não pode vender Green Gables,” disse resolutamente Anne. “Oh, Anne, eu só desejava não ter que o fazer. Mas podes ver por ti, eu não posso ficar aqui sozinha. Eu dava em louca com as preocupações e a solidão. E perdia a vista, eu sei que perdia.” “Você não tem que aqui ficar sozinha, Marilla. Eu vou ficar consigo. Eu não vou para Redmond.” “Não vais para Redmond!” Marilla levantou o rosto aflito das mãos e olhou para Anne. “O que é que queres dizer com isso?” “Isso mesmo. Eu não vou aceitar a bolsa de estudo. Decidi isso na noite em que você voltou da cidade. Concerteza não achou que eu a fosse deixar sozinha com tantos problemas, Marilla, depois de tudo o que fez por mim. Eu tenho estado a pensar e a planear. Deixe-me contar-lhe. O senhor Barry quer alugar a quinta no próximo ano. Por isso não tem que se preocupar com esse aspecto. E eu vou dar aulas. Eu candidatei-me à escola daqui, mas não estou à espera de ficar com ela porque os administradores prometeram-na ao Gilbert Blythe. Mas posso ficar com a escola de Carmody, o senhor Blair disse-me isso ontem à

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tarde na loja. Claro que não vai ser tão bom como se ficasse com a escola de Avonlea. Mas eu posso ficar em casa e ir e vir todos os dias, pelo menos quando o tempo estiver bom. E mesmo no Inverno posso vir a casa nas sextas-feiras. Vou ficar com um cavalo por causa disso. Oh, eu já tenho tudo pensado, Marilla. E vou ler-lhe e mantê-la alegre. Não vai ficar aborrecida nem sozinha. E nós vamos ficar muito confortáveis e felizes aqui as duas, você e eu.” Marilla ouviu tudo como se estivesse a sonhar. “Oh, Anne, tudo se resolvia se cá estivesses, eu sei. Mas não te posso deixar sacrificar por minha causa. Seria terrível.” “Que disparate!” Anne riu com alegria. “Não há qualquer sacrifício. Nada seria pior do que perder Green Gables, nada me custaria mais. Nós temos que ficar com esta querida velha casa. Eu já decidi, Marilla. Não vou para Redmond, e vou ficar aqui e dar aulas. Não se preocupe comigo.” “Mas, as tuas ambições, e...” “Eu sou tão ambiciosa como antes. Só mudei o objecto das minhas ambições. Eu vou ser uma boa professora, e vou salvar a sua vista. Para além disso, tenciono estudar cá em casa e tirar um curso por correspondência. Oh, tenho dúzias de planos, Marilla. Ando a pensar nisto há uma semana. Eu vou dar o meu melhor a esta vida aqui, e eu acredito que ela me vai dar o seu melhor em troca. Quando eu deixei Queen’s o meu futuro parecia estender-se à minha frente como uma estrada direita. Eu achava que conseguia antevê-lo por vários quilómetros. Agora tem uma curva. Eu não sei o que está para além da curva, mas vou acreditar que são coisas melhores. Tem um fascínio próprio, essa curva, Marilla. Pergunto-me como é a estrada a partir daí, o que tem de glória e suaves luzes e sombras, que novas paisagens e belezas, que curvas e montes e vales se seguirão.” “Eu não acho que te deva deixar desistir,” disse Marilla, referindo-se à bolsa de estudo. “Mas não pode evitar. Eu tenho dezasseis anos e meio e sou teimosa como uma mula, como me disse um dia a senhora Lynde,” riu-se Anne. “Oh, Marilla, não tenha pena de mim. Eu não gosto que o façam e não há razão para isso. Eu fico realmente contente ao pensar que vou ficar na querida Green Gables. Ninguém poderia gostar dela como você e eu, por isso temos que a conservar.” “Oh, criança abençoada!” disse Marilla, cedendo por fim. “Sinto como se me tivesses dado uma nova vida. Parece-me que eu me devia impor e fazer-te ir para o colégio, mas eu sei que não consigo, por isso nem sequer vou tentar. Mas eu vou compensar-te, Anne.” Quando se soube em Avonlea que Anne Shirley tinha desistido de ir para o colégio e tencionava ficar por lá a dar aulas houve grandes discussões sobre o assunto. A maioria das pessoas, não sabendo do problema de visão de Marilla, acharam que era um disparate. A senhora Allan não foi dessa opinião. Ela disse-o a Anne de uma forma que trouxe lágrimas de satisfação aos olhos da rapariga. O mesmo se passou com a boa senhora Lynde. Ela veio um dia ao entardecer e encontrou Anne e Marilla sentadas no degrau da porta da frente a saborear o anoitecer quente de Verão. Elas gostavam de se sentar ali quando o sol se punha e as mariposas voavam no jardim, com o aroma da hortelãpimenta a encher o ar carregado de maresia. A senhora Lynde depositou a sua substancial pessoa no banco ao pé da porta por detrás do qual crescia um molho de flores amarelas e cor-derosa, com um grande suspiro de uma mistura de cansaço e alívio. “Pois eu estou mesmo contente de me sentar. Tenho estado de pé todo o dia, e noventa quilos é muito peso para ser carregado só por dois pés. É uma grande benção não ser gorda, Marilla, e espero que dês valor a isso. Bem, Anne, ouvi dizer que tinhas desistido da ideia de ir para o colégio. Fiquei muito contente. Tu agora tens a educação suficiente para fazer uma mulher sentir-se confortável. Eu não acho que as

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raparigas devam ir para o colégio com os homens encherem a cabeça de Latim e Grego e todos esses disparates.” “Mas eu vou estudar Latim e Grego na mesma, senhora Lynde,” disse Anne rindo-se. “Eu vou tirar o meu curso de Artes aqui, e estudar tudo o que se estuda num colégio.” A senhora Lynde levantou as mãos ao céu num terror sagrado. “Anne Shirley, vai ser o teu fim.” “Não me parece. Eu vou conseguir. Oh, eu não vou exagerar. Como dizia a mulher do Josiah Allen, eu vou ser ‘mejiana’. Mas eu vou ter imenso tempo livre nas noites de Inverno, e eu não tenho queda para os lavores. Eu vou dar aulas em Carmody, sabe?” “Não, parece-me que vais ficar por aqui em Avonlea. Os administradores decidiram dar-te a escola.” “Senhora Lynde!” exclamou Anne, pondo-se de pé surpreendida. “Eu pensei que eles tinham prometido a escola ao Gilbert Blythe!” “E é verdade. Mas assim que o Gilbert soube que tu a tinhas pedido foi falar com eles - eles tinham uma reunião de negócios na escola na noite passada - e disse-lhes que retirava a candidatura dele e sugeriu que aceitassem a tua. Ele disse que ia dar aulas em White Sands. Claro que ele sabia o quanto tu querias ficar com a Marilla, e eu acho que foi muito gentil e altruísta da parte dele. Um grande sacrifício, também, porque ele vai ter que se hospedar em White Sands e toda a gente sabe que ele pensa juntar dinheiro para ir para o colégio. Por isso os administradores decidiram aceitar-te a ti. Eu fiquei entusiasmadíssima quando o Thomas me disse.” “Eu acho que não devia aceitar,” murmurou Anne. “Quer dizer, eu acho que não devia deixar o Gilbert fazer esse sacrifício por...por mim.” “Eu acho que não o podes evitar, agora. Ele já assinou o contrato com os administradores de White Sands. Não adiantava nada se recusasses agora. Claro que vais aceitar a escola. Vais-te sair bem, agora que não há Pyes na escola. A Josie foi a última, e também era uma boa peça... Nos últimos vinte anos houve sempre um ou outro Pye na escola, e a missão deles na terra parecia ser a de mostrar a todos os professores que o lugar deles não era aqui. Louvado seja Deus! O que significa todo aquele tremer de luzes na casa dos Barry?” “A Diana está-me a fazer sinais para lá ir,” riu-se Anne. “Sabe que mantivemos o velho costume. Dão-me licença, eu vou lá ver o que ela me quer.” Anne correu pela encosta abaixo como um veado, e desapareceu por entre as sombras dos pinheiros do bosque assombrado. A senhora Lynde olhou para ela com um ar indulgente. “Ainda há uma grande parte de criança dentro dela em muitas coisas.” “Mas há muito mais de mulher nela noutras,” respondeu Marilla, com um regresso momentâneo da sua antiga rispidez. Mas a rispidez já não era uma das características mais nítidas de Marilla. Como a senhora Lynde pôde dizer ao seu Thomas nessa noite. “A Marilla Cuthbert ficou mole, é o que é.” Anne foi ao pequeno cemitério de Avonlea na tarde seguinte para pôr flores frescas na campa de Matthew e regar a roseira escocesa. Deixouse por ali ficar até anoitecer, agradando-lhe a paz e a calma do lugar, com os seus álamos cujo restolhar era como uma conversa amigável e suave, e o vento corria na relva à vontade por entre as campas. Quando finalmente se foi embora e caminhou pela longa colina que levava ao Lago das Águas Brilhantes já se tinha posto o sol e toda a Avonlea se estendia à sua frente como um sonho – “Uma assombração de paz antiga”. Havia uma frescura no ar como se o vento tivesse soprado sobre doces campos de trevo. As luzes das casas cintilavam aqui e ali entre as árvores dos quintais. Mais além estava o mar, enevoado e púrpura, com o seu murmúrio constante e assombrado. O oeste era uma glória de suaves tons, e o lago reflectia-as todas em tons ainda mais

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suaves. Toda esta beleza tocava o coração de Anne, e ela abriu-lhe agradecida as portas da sua alma. “Querido mundo,” murmurou, “tu és lindo e eu estou muito contente de viver aqui.” A meio da colina um rapaz alto vinha saindo de um portão em frente à casa dos Blythe a assobiar. Era Gilbert e o assobio morreu-lhe nos lábios quando reconheceu Anne. Levantou educadamente o boné, mas teria passado em silêncio se Anne não tivesse parado e estendido a mão. “Gilbert,” disse com as bochechas coradíssimas,” eu gostava de te agradecer teres desistido da escola por minha causa. Foi muito gentil da tua parte, e quero que saibas que fiquei muito agradecida.” Gilbert aceitou a mão que ela ofereceu com gosto. “Não foi particularmente generoso da minha parte, Anne. Eu fiquei muito contente por te ter prestado este pequeno serviço. Vamos ser amigos a partir de agora? Perdoaste mesmo a minha velha ofensa?” Anne riu-se e tentou sem sucesso retirar a mão. “Eu perdoei-te naquele dia no lago, apesar de não o saber. Fui uma palerma teimosa, ou melhor, tenho sido, mais vale confessar, e tenhome arrependido desde aí.” “Então vamos ser os melhores amigos,” disse Gilbert satisfeito. “Nós nascemos para ser bons amigos, Anne. Tu já desafiaste o destino por tempo suficiente. Eu sei que não nos evitamos em muitas coisas. Tu vais continuar os teus estudos, não vais? Eu também. Anda, eu acompanho-te a casa.” Marilla olhou curiosa para Anne quando esta entrou na cozinha. “Quem estava na alameda contigo, Anne? “Gilbert Blythe” disse Anne, envergonhada por dar consigo a corar. “Eu encontrei-o na colina do Barry.” “Não pensava que tu e o Gilbert fossem amigos ao ponto de ficares meia hora ao portão a falar com ele,” disse Marilla, com um sorriso seco. “Não temos sido, temos sido bons inimigos. Mas decidimos que seria muito mais sensato sermos bons amigos no futuro. Passou mesmo meia hora? Pareceram-me poucos minutos. Bem, pode ver que temos cinco anos de conversas a pôr em dia, Marilla.” Anne sentou-se muito tempo é janela acompanhada por uma sensação de contentamento. O vento ronronava suavemente nos ramos da cerejeira, e o perfume da hortelã-pimenta veio ter com ela. As estrelas brilhavam por cima dos pinheiros pontiagudos e a luz da Diana via-se através das árvores. Os horizontes de Anne tinham-se fechado desde a noite em que se tinha sentado ali vinda de Queen’s; mas se esse caminho aberto a seus pés era mais estreito, ela sabia que flores de calma felicidade iriam crescer nas suas bermas. A alegria de um trabalho sincero, das aspirações merecedoras e da amizade verdadeira iriam ser suas, e nada lhe podia roubar o seu direito inato à fantasia ou ao seu mundo de sonhos. E havia sempre a curva na estrada. “Deus está no céu e tudo está bem no mundo,” murmurou Anne suavemente. ***FIM***

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