{7} Revista Voz Da Literatura Nov2018

June 23, 2019 | Author: Edson J. D. de Sousa | Category: Gramática, Sociologia, Linguagem Natural, Língua Portuguesa, Livros
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Voz da literatura....

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{CAPA} Angela Leite de Souza. Ilustração da página 14 do livro PAZ , de sua própria autoria (Ed. Abacatte, 2018).

{} COLABORADORES DESTA EDIÇÃO DESTA  EDIÇÃO  Angela Leite de Souza  Ivan Lima Gomes Eliane Galvão Maria Amélia Dalvi Maria Helena de Moura Neves

{} EDITOR  Rafael Voigt Leandro

{voz da literatura} literatura} revista de crítica e divulgação de obras literárias e afins. independente, mensal, gratuita e distribuída digitalmente.  www.v  www.vozdaliteratura ozdaliteratura.com .com | facebook | instagram  [email protected]  [email protected] brasília-df {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

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ANTONIO CANDIDO 100 ANOS Maria Augusta Fonseca e Roberto Schwarz (Org.) Editora 34 | 2018 | 495 p.

O crítico literário Roberto Schwarz possui extrema afinidade com o pensamento e a obra de  Antonio Candido (1918-2017). É considerado por muitos um herdeiro intelectual do autor de “Literatura e sociedade". Schwarz já havia analisado em outros trabalhos a obra de Candido, como, por exemplo, nos ensaios “Sobre a Formação da literatura brasileira" e “Sete fôlegos de um livro". Ao lado de Maria Augusta Fonseca, organizou Antonio Candido 100 anos. Schwarz e Fonseca prestam nova reverência ao ensaísta de “Dialética da malandragem" e se juntam a tantas outras homenagens oriundas de eventos, exposições e publicações dedicadas ao centenário do maior crítico literário do Brasil. A obra publicada pela Editora 34 já nasce como livro canônico sobre esta figura de proa de nossos estudos literários. Reúne mais de 30 pesquisadores brasileiros e estrangeiros, entre colegas, ex-alunos e novos intérpretes de Antonio Candido. Sobre uma personalidade com bibliografia tão plural e militância política e cultural destacada,  Antonio Candido 100 anos congrega   vasta coletânea de depoimentos e estudos inéditos. Logo na abertura, há dedicatórias de Mário de  Andrade, Oswald de Andrade, Manuel Bandeira e Graciliano Ramos, além de poema de Francisco Alvim ao homenageado. Em seguida, o livro se divide em cinco partes que mapeiam as diferentes dimensões de Candido, com ênfase em sua atuação como professor, militante político e crítico literário, ressaltando os pensamentos marcantes em sua extensa produção intelectual. São sempre bastante produtivas e singelas as memórias de colegas e ex-alunos de Candido, como Adélia Bezerra, Alfredo Bosi, Davi  Arrigucci Jr., Flávio Aguiar, Roberto Schwearz, José Miguel Wisnik, Walnice Nogueira Galvãoi. Esse memorialismo ajuda a reconstruir a figura humana de Candido em sua atuação docente e como intelectual.

 A parte mais longa da obra situa-se no exercício crítico do mestre. Nela revelam-se a dialética do localismo e universalismo, a formação do romance brasileiro, sua análise de Guimarães Rosa ou de  Alexandre Dumas, os estudos líricos, a sociologia, a forte presença do tema “realismo", que ajudam a recompor as tendências do pensamento crítico de Candido. O livro reserva ainda espaço para a publicação de um texto inédito do próprio Candido: “Como e por que sou crítico". Diante de Antonio Candido 100 anos, tem-se um paradigma de personalidade com perfil humanista, atuação política e produção intelectual rigorosa e genuína, que devem inspirar novas gerações de pesquisadores, críticos e educadores literários no Brasil. {} � � 3

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Maria Helena de Moura Neves e a gramática do português revelada em textos

 A linguista M ARIA  HELENA DE MOURA  NEVES, professora emérita da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp) e da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM), possui um extenso trabalho de pesquisa acerca das relações entre texto e gramática e sobre a teoria funcionalista da linguagem. Publicou mais de uma dezena de livros a respeito desses temas, entre eles: Gramática de usos do  português (Unesp, 2012), Guia de usos do  português (Unesp, 2011), Texto e gramática (Contexto, 2006) e Que gramática estudar na escola? Norma e uso na língua portuguesa

(Contexto, 2003). Nesta entrevista, a {voz da literatura} conversou com a autora que lançou em junho, pela editora Unesp, a obra monumental  A gramática do português revelada em textos. {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

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Como e quando surgiu o projeto de  A Gramática do  português revelada em textos ?

Na verdade, desde quando iniciei meu trato com língua e linguagem, vejo-me com atenção especialmente voltada aos textos, na busca (e na montagem) da gramática da língua. O desiderato é captar a 'gramática' da língua diretamente no uso linguístico, vendo-a como nada mais do que o cálculo de produção de sentido em linguagem, e vendo o arranjo construcional dos textos como a montagem de peças que responde à projeção de significados e de efeitos que um determinado ato de linguagem teve como propósito. Por outro lado, esse modo de apresentação que minha nova gramática tem (por exemplo, concebendo lições gramaticais específicas a partir de um texto mote) não poderia ser de tal modo tentado se minha experiência não tivesse passado pela reflexão que acompanhou a elaboração de livros autorais meus, cujos temas ficam transparentes nos títulos: Gramática na escola (1990), Gramática: história, teoria e análise (2002), Que gramática estudar na escola (2003), Texto e gramática (2006), Ensino de linguagem e vivência de língua (2006), A gramática passada a limpo (2012), e, em especial, a Gramática de usos do português (2000). Relevantemente, toda essa experiência se nutriu da atividade docente que nunca deixei de

exercer, a partir da data em que, completando 18 anos, entrei em sala de aula para nunca mais sair. Passei praticamente por todos os níveis de atuação escolar em linguagem e língua portuguesa, sempre fixada em leitura (muita literatura), redação e gramática, vistas como ingredientes de uma mesma engrenagem de lida com a língua: foi por aí que minhas aulas sempre se desenvolveram com textos abertos em cima da carteira (muitos literários), nutrindo-se deles as lições de gramática que iam emergindo.  A ‘arte’ da gramática sempre foi meu móvel de busca: por exemplo, o que me levou a escolher o Grego para a Licenciatura em Letras foi eu querer descobrir o que é que o povo grego tinha de especial que o levou a sentir a 'necessidade' de propor uma 'gramática' da sua língua, e lhe permitiu a consecução disso. Para a tese em Grego que propus, como docente de Língua e Literatura grega que fui, fixei exatamente esse objetivo, e descobri, por exemplo, que o berço dessa prontidão eu encontraria no desenvolvimento a que a literatura tinha elevado o espírito grego, com a compreensão, já em Homero (e a seguir, na filosofia clássica), da essência da condição humana. Na verdade, para mim a linguagem da literatura é a linguagem, exatamente, das essências.

A GRAMÁTICA DO PORTUGUÊS REVELADA EM TEXTOS Maria Helena de Moura Neves Editora Unesp 2018 p. 1398

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Foto: Carlos Siqueira. IV SIMELP, UFG, 2013.

Em que esta obra se diferencia de outros livros de sua bibliografia, como Gramática de usos do  português e Texto e gramática ?

Concretamente, a diferença desta gramática com a Gramática de usos é o abrigo de textos inteiros, ou partes maiores de textos, o que é imprescindível, na proposta. Infelizmente, a massa de textos inteiros mais recentes inicialmente levantada teve de ser reduzida, frente à descomunal despesa que haveria com o pagamento de direitos autorais pelos textos usados na explicitação das lições: nos últimos cinco anos meu livro foi reformulado quatro vezes, para contornar-se a impossibilidade da publicação, chegando-se, afinal, a um montante de gasto ainda alto, mas considerado viável.

Meu propósito (segundo meus conceitos teóricos, de orientação funcionalista) é sempre o mesmo, e está claro nas minhas diversas produções, acredito: é buscar uma explicitação da gramática que responda pela língua em função, ou seja, pelas ações de linguagem que recebem empacotamento e estruturação em uma língua natural (no caso, particularmente a língua portuguesa): a evidência está em que meus estudos de gramática não trazem 'exemplos' que abonem formulações; pelo contrário, as formulações das lições partem de 'ocorrências' recolhidas em textos reais. Nessa linha, o móvel central é sempre buscar imprimir à formação escolar esse compromisso com a 'vivência da linguagem' no 'ensino da língua, não isolando a 'gramática' do 'texto', ou seja, construindo uma 'gramática de usos', e não recolhendo entidades que, já com rótulos gramaticais, entrem no cenário dos estudos a partir daquilo que avulsamente se diz delas em lições não dirigidas para o que elas representam no fazer do texto. {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

Na apresentação do livro A gramática do português revelada em textos , a senhora afirma que “pretende que ele vá às salas de aula, ou pela leitura direta de suas ‘lições’ (a depender do nível de ensino), ou pela voz dos professores que delas se sirvam nas suas aulas, mas sempre a partir da leitura dos textos/das ocorrências de linguagem que ele oferece.” A gramática do português revelada em textos pretende servir como obra de referência na educação básica para a construção de um novo paradigma de educação linguística no país, cada vez 6

que fizemos em equipe (o mais recente deles, no prelo), e de minhas gramáticas, acrescentando-se, porém, que, para essa segunda, houve inspiração muito diretamente derivada de leituras pessoais (livros, revistas, jornais e os demais veículos).

mais distanciado de uma visão sobre o fenômeno linguístico restrita apenas à chamada “gramática normativa”?

Uma gramática da língua é uma obra de referência, sim, e necessariamente com todo um encorpamento teórico. Também respondo positivamente quanto à necessidade de que as ações escolares tenham Nos últimos dez anos, algumas gramáticas foco na educação básica, e a própria centração de apareceram com novas abordagens, como minhas propostas na língua em função remete a essa Gramática Houaiss da língua portuguesa  (José destinação. Entretanto, no caso, a destinação é, com Carlos de Azeredo), Gramática Pedagógica do certeza, indireta: não é aos alunos do ensino básico, Português Brasileiro  (Marcos Bagno), Nova mas é aos professores (“licenciados”) que deve ser  gramática do português brasileiro  (Ataliba T. de dada essa formação que os leve a entender que a Castilho), Gramática do português brasileiro 'língua' não existe fora da 'linguagem', portanto o (Mário A. Perini). Essas gramáticas de alguma 'ensino' de língua alheado da visão do uso linguístico maneira estimularam a elaboração de A Gramática não tem como atuar positivamente no trato escolar do Português Revelada em Textos ? com língua portuguesa. Pela ordenação dos fatos, não é o caso de falar-se Por outro lado, a proposta passa longe de qualquer em estímulo dessas obras para as minhas, já que cogitação de estabelecimento de 'paradigmas', no minha primeira gramática de usos foi entregue campo da educação linguística, o que seria nova para publicação por volta de 1998, e a segunda distorção. Não se trata, porém, de proposta de (na verdade, um simples passo além, em relação à um trabalho escolar com linguagem que exclua primeira) foi entregue em 2012. As obras desses o cuidado com a “norma" funcional, o que seria estudiosos – grandes amigos –, de lúcida e cegueira de visão: a noção de “norma”, no uso, lá está consistente orientação, são magníficas e fazem funcionalmente contemplada (como está no Guia história. São novas propostas de explicitação de uso, 2003). A bandeira erguida é o abandono de gramatical em língua portuguesa merecedoras de lições que, divorciadas da produção de linguagem, grande destaque positivo, e foi isso que proclamei se contentem com o recorte de peças isoladas da quando, no IV Simelp (Goiânia, 2013), lancei a esses inserção em enunciados, simples carimbos sem gramáticos aí relacionados (e também a M. H. M. contraparte funcional. Mateus, de Portugal, e a E. Bechara, assim como a mim mesma) esta provocação: cada um de nós deveria completar esta frase "Defino minha obra De que modo foram selecionados os textos que gramatical como.....". O resultado foi notável, e com compõem o corpus do livro? Na Unesp de Araraquara dispomos de um córpus de isso a historiografia linguística passou a contar com centenas de milhares de ocorrências, constituído de um registro inestimável do que, nos anos recentes textos, em português, de todos os gêneros e tipos, (em especial no Brasil), se desenvolvera, em relação à montado para sustentar a elaboração de dicionários, gramática da língua portuguesa*. * O registro mencionado encontra-se no livro Gramáticas contemporâneas do português: com a palavra, os autores (Parábola, 2014), organizada por Maria Helena de Moura Neves Neves e  Vânia Cristina Casseb-Galvão.

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{������} DOSTOIÉVSKI NA RUA DO OUVIDOR A LITERATURA RUSSA E O ESTADO NOVO Bruno Barretto Gomide | EDUSP | 2018 | 464 p.

Bruno Gomide é professor livre-docente de literatura russa na Universidade de São Paulo (USP). Sua tese de doutorado (2004) resultou no livro  Da estepe à caatinga o romance russo no Brasil (18871936), lançado pela Edusp (2011). Focaliza o que se pode chamar de a primeira inavasão literária russa por aqui.  Dostóievski na rua do Ouvidor: a literatura russa no Estado Novo pode ser considerada como a continuidade do projeto de pesquisa de Bruno Gomide. Se no livro anterior o pesquisador debruçava-se sobre um período de quase 50 anos, dessa vez, passa em revista, ou um pente fino, em um intervalo de 15 anos, entre 1930 e 45, na primeira Era Vargas, em que definitivamente se vê a literatura russa permeando e por que não dizer integrando - o sistema literário nacional, com presença forte no horizonte de editores, críticos, tradutores, escritores e leitores do país. Neste momento, os nomes de Górki, Gógol, Tchekhov, Tostói, Dostoiévski, Turguêniev, Púchkin, Maiakóvski vão se tornando comuns e palatáveis para o público brasileiro. Este é o trabalho que resultou na tese de livre-docência de Bruno Gomide, desenvolvida entre 2008 e 2015, defendida na USP. No trabalho do autor, observa-se que a russofilia literária entre nós tem sua fase de consolidação mesmo diante de uma ditadura como a varguista. Gomide demonstra seu rigor e excelência como pesquisador que mergulha fundo na reconstrução de uma época. Vislumbra-se um amplo cenário literário. De críticos como Brito Broca e Otto Maria Carpeaux que escreviam com frequência para jornais da época alargando a recepção de autores e temas russo. De editora engolidas pela poeira do tempo como a Selzoff que desempanharam papel de relevo na difusão dessa literatura. De escritores engajados na atmosfera soviética como Jorge Amado e José Lins Rego que {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

representavam um trânsito de mão dupla entre URSS e Brasil, inclusive tendo traduções russas de suas obras. São trabalhos como esse de Gomide que deslindam as razões para a regular publicação de escritores russos em nossa contemporaneidade, com importantes tradutores, editoras entusiastas da russofilia, graduações e pós-graduações em letras russas como o da USP, leitores passionais... Neste ano, em particular, em razão da Copa do Mundo, o tema Rússia proporcionou uma positiva avalanche editorial de história e literatura russa. A leitura histórica proporcionada por Bruno Gomide mostra de maneira inequívoca a instalação do espírito literário russo entre nós.  Dostóievski na Rua do Ouvidor   merece estar na estante de todo o amante da literatura russa e de pesquisadores de literatura em geral, como uma obra de referência, seja pela sua perícia como parâmetro de profícua pesquisa, seja pela amplitude de tantas implicações do universo russo para a nossa cultura literária e política. O trabalho de Gomide oferta ainda uma minuciosa bibliografia ao final, com rico catálogo de obras consultadas em fonte primária, ano a ano do período em análise no livro. � � 8

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Em busca de pontes entre leitura e cultura:

uma reflexão sobre o livro infantil e juvenil na contemporaneidade por E����� A�������� G����� R������ F�������

[...] sem questionar as condições culturais a que está submetida a criança [e o jovem], sem relacionar a  promoção da leitura e tais situações,  parece difícil criar condições que  facilitem a descoberta de pontes entre leitura e cultura, ou seja, entre leitura e o universo de relações, valores, objetos, concepções que sobrevivem à nossa precariedade – o mundo. Edmir Perrotti (1990, p.99) 9

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  a   r   u    t   a   r   e    t   a    z   o   v    @   :   e    t   r   a

 A consolidação das redes sociais e da mídia deveu-se às inovações tecnológicas da sociedade pósindustrial que favoreceram à mundialização da cultura, da comunicação social e formaram a infraestrutura material. Para Renato Ortiz (2006), a articulação entre ciência e tecnologia implica em transformações profundas no setor produtivo, criando novas classes sociais e padrões de racionalidade. As novas tecnologias incidem diretamente sobre as noções de tempo e espaço, estimulando a integração e a sincronia. Desse modo, com a microeletrônica, a codificação e a transmissão das mensagens adquirem um caráter de transversalidade. Assim, um evento remoto torna-se próximo, contudo,o que nos rodeia pode estar afastado. De acordo com Zygmunt Bauman, o tempo já não estrutura o espaço, ele perdeu sua característica de vetor, pois inexistem os conceitos de para frente ou para trás, “o que conta é exatamente a habilidade de se mover e não ficar parado (1998, p.113).” Prevalece a ideia de adequação do indivíduo, como capacidade de se mover rapidamente para onde a ação se encontra. Nesse contexto, toda memória cultural é posta em choque. Assim, qualquer tomada de decisão que {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

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demande reflexão e, por isso, implique certa demora, perde seu significado, pois não há tempo algum como seta para medi-la. Por consequência, as relações humanas se estabelecem sob a forma de um jogo curto que significa tomar cuidado com compromissos a longo prazo e fixar-se a um lugar, e/ou a uma vocação apenas. Produz-se a sensação de que de posse do meio – mídia – para se comunicar, todo sujeito é capaz de fazê-lo e dispõe de competência para isso. Não importa se há domínio de um campo específico, interessam as impressões pessoais. Assim, o que afeta um indivíduo, suas crenças e experiências – a sua verdade – deve ser posto em verbo, atuando como guia para os que ainda não tiveram a mesma “revelação” que ele. Em relação aos livros infantis e juvenis, questiona-se e observa-se com lupa os que estão mais próximos, chancelados pela escola, por um programa pedagógico, por uma política pública de leitura e/ou por um professor ou mediador. O livro que adentra a casa pelas mãos do filho, sobrinho ou menor sob os cuidados de um adulto, pode representar uma ameaça. Conforme Peter Hunt, “para muitos leitores um livro tem tamanha autoridade que o simples fato de algo ser

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incluído nele confere-lhe marca de respeitabilidade. Há uma mística em torno do livro que aumenta na mesma medida que a competição entre outras mídias” (2010, p.203 – destaque gráfico do autor). A mesma percepção não ocorre em relação aos títulos dispostos em listas de “Os mais vendidos”, nem à produção cultural fílmica ou televisiva em canais abertos e fechados, com suas séries de elevada audiência. Esses produtos não representam ameaça alguma, antes configuram-se como desejáveis, pois sugerem uma forma de socialização, em que o indivíduo se sente incluído entre muitos sujeitos, partilhando de um mesmo universo de conhecimento proveniente da indústria cultural. Há nessa solidariedade do consumo uma integração do imaginário coletivo, às vezes, mundial, a qual confere certa ordem aos indivíduos e aos modos de vida, de acordo com uma nova pertinência social (ORTIZ, 2006). Segundo Jair Ferreira dos Santos (1986), as sociedades pós-industriais, planejadas pela tecnociência (ciência aliada à tecnologia), programam a vida social dos indivíduos em todos os detalhes. Desse modo, embora a produção seja massiva, o consumo é personalizado, o sistema propõe e o sujeito dispõe. Há ofertas variadas de produtos, inclusive de livros, entre eles, pode-se escolher um, optar por um, entretanto, deixar de consumir, não se apresenta como opção. Nesse cenário contemporâneo de anonimato das grandes cidades e do capitalismo corporativo, as relações sociais pulverizam-se, deixando os indivíduos “soltos” na malha social (ORTIZ, 2001). Justamente, por isso, a sociedade inventa novas instâncias para a integração das pessoas. Entre elas, pode-se observar o emprego das redes sociais, como meio para diálogo e expressão de opiniões que se configuram, como forças reguladoras. Nesse contexto, a tradição, a pesquisa e a crítica tornam-se insuficientes para orientar a conduta, quem a norteia, então, são os canais de comunicação, oferecendo informações personalizadas de sujeitos que asseguram deter discernimento e, por causa dele, prometem segurança a quem lhes confere crédito.  Assim, as opiniões veiculadas por essas redes assumem o caráter pedagógico de instâncias de socialização

da cultura, capazes de determinarem, inclusive, no âmbito do livro, o que pode ser lido – é válido – e o que deve ser rechaçado – excluído, renegado. Para Arnaldo Cortina, na eleição de uma obra pode ocorrer um processo de identificação “o leitor lê aquilo que julga ser sua própria verdade ou, arriscando mais ainda, aquilo que ele deseja ouvir (ler) para reafirmar sua verdade” (2006, p.30). Em síntese, as questões individuais passam a constituir o horizonte de expectativa do homem urbano da sociedade contemporânea. Por consequência, obras que põem em choque uma visão única de mundo ou de “verdade” devem ser evitadas e/ou suprimidas de qualquer forma de acesso. Pela observância dos meios de comunicação, muitos leitores constroem seus julgamentos, a partir de notícias e/ou informações retiradas das redes sociais. Aliás, algumas delas tornam-se virais, como as que se pautam pela condenação de obras pela temática, pelo emprego da linguagem, pelo conteúdo ideológico, pela estruturação da trama, pelo desfecho da narrativa, entre outras características. Em consonância com Hunt (2010, p.267), “Qualquer valor atribuído ao texto deve ser entendido, então, como sendo especificamente um dentre três tipos: cultural, pessoal ou educacional; e nenhum deles deve ser privilegiado.” Se para o crítico (2010, p.267), resulta desse processo social de julgamento o fato “libertador” de que a literatura infantil, e podese incluir também a juvenil, tenham atingido status semelhante a de outra literatura, isto não impede a constatação de que a importância de um texto é igual a de qualquer outro, até que se aplique sobre ele um desses três sistemas de valor. Justamente, a principal justificativa para a exclusão dessas obras do universo de leitura de crianças e jovens refere-se ao desconforto causado aos seus pais e/ou responsáveis. Esse sentimento advém da constatação de que, embora a literatura possua, conforme Antonio Candido, força humanizadora, “é artificial querer que ela funcione como os manuais de virtude e boa conduta” (2002, p.83).  Vale destacar que a sensação de prazer – obtida pela leitura de um livro que atende aos horizontes de expectativa do leitor, produzindo-lhe a sensação de 11

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familiaridade e de conforto, ainda, por ser facilmente compreendido, a de consolo – não é visada pela obra literária. A obra dotada de valor estético busca exatamente o desalojar de seu leitor, pelo rompimento de seus conceitos prévios, a fim de levá-lo à ampliação de seus horizontes de expectativas. Nesse contexto, a leitura corre o risco de se esgotar em um uso utilitário, associado à esfera da produção, da necessidade. Desse modo, afasta-se dos interesses e desejos dos jovens, e dificilmente consegue ser vista como ato  verdadeiramente cultural. Por consequência, o jovem adquire um repertório cultural reduzido, constituído basicamente de referências provenientes de seu mundo privado, em que prevalecem os interesses da vida sobre os do mundo (PERROTTI, 1990). Em tais condições, os produtos culturais são forjados como construção, destinados a modelar o real, e não a dialogar com ele, em um percurso contrário ao que se busca durante o desenvolvimento de um trabalho com a formação do leitor crítico.  Assim, segundo Perrotti (1990),nega-se ao jovem e à criança a experiência direta da multiplicidade. Em troca, o modelo cultural propõe-lhe atos linguísticos cujos referentes são outros atos linguísticos, sem condições de se confrontar com o real: “propõe-lhe a linguagem transformada em labirinto sem saída, em espelho que reflete sempre as mesmas imagens, num jogo narcisista cada vez mais emaranhado, complexo e inconcluso” (1990, p.98-9). Conforme Santos (1986), o exagero narcisista do individualismo é um acréscimo da sociedade pós-industrial, mobilizada pelo consumo e pela informação. Aliás, o tipo de consumo é um dos fatores que difere a sociedade industrial da pós-industrial, a primeira consome bens materiais; a segunda, serviços, sob a forma de informações e possibilidades de comunicação (por diferentes meios). Na sociedade pós-industrial, a capacidade de se expressar pelas redes sociais é

apresentada como exercício de cidadania. Logo, nesses espaços, o indivíduo exerce a sua “liberdade”, firmando sua individualidade. Nas redes, ele se identifica com outros sujeitos, quanto ao padrão de comportamento e de valores, formando assim um “nós”. Pelo exposto, pode-se notar que o repúdio de alguns livros na sociedade contemporânea não decorre somente de um precário funcionamento do sistema cultural – cujas pontes entre leitura e cultura estão, muitas vezes, obstaculizadas –, o qual atinge a infância e a juventude, mas também do âmbito social e político. Apesar de existirem algumas generalizações sobre livros infantis e juvenis, os conceitos de criança e de jovem são inúmeros, aliás, “de uma casa para outra, e de um dia para outro” (HUNT, 2010, p.291). Em síntese, como bem afirmou Bauman (2003), em um mundo globalizado – sobretudo pautado pelas redes sociais –, o destino do livro não depende apenas das tecnologias de impressão, nem pode ser explicado somente por elas ou por sua relação com o mercado editorial, ele está condenado a compartilhar da mesma sorte das sociedades a que pertence.

� BAUMAN, Z. O mal-estar da pós-modernidade. Trad. Mauro Gama, Cláudia M. Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998. CANDIDO, A. A literatura e a formação do homem. In: ______. Textos de intervenção: seleção, apresentação e notas de Vinici us Dantas. São Paulo: Duas Cidades; Ed. 34, 2002. CORTINA, A. Leitor contemporâneo: os livros mais vendidos no Brasil de 1966 a 2004. Araraquara, 2006. 252p. Tese (Livre-Docência em Linguística) – Faculdade de Ciências e Letras de Araraquara, Universidade Estadual Paulista. HUNT, P. Crítica, teoria e literatura infantil. Trad. Cid Knipel. São Paulo: Cosac Naify, 2010. ORTIZ, R. A moderna tradição brasileira: cultura brasileira e indústria cultural. 5.ed. 4.reimpr. São Paulo: Brasiliense, 2001. PERROTI, E. Confinamento cultural, infância e leitura. São Paulo: Summus, 1990. SANTOS, J. F. dos. O que é pós-moderno. São Paulo: Brasiliense, 1986.

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ELIANE APARECIDA GALVÃO RIBEIRO FERREIRA é professora do Departamento de Linguística na Universidade Estadual Paulista (Unesp), Câmpus de Assis-SP.

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Formação de leitores e educação literária: uma base que desaba

Tenho pensado a questão da educação literária no Brasil como um desafio que excede a formação de leitores – embora passe também por aí. De minha perspectiva, a identificação quase imediata que fazemos da educação literária ao ensino da literatura, à leitura literária e à formação de leitores é uma forma de reducionismo. Reducionismo tanto da amplitude da ideia de “educação” (que é muito mais ampla que as questões do “ensino” e muito mais ampla que o espaço-tempo formativo “escolar”), quanto da ideia de “literário” (pois, como sabemos, o literário está para bem além das questões disciplinares). Ademais, pareceme pouco ousado quando fazemos equivaler a ideia de educar literariamente alguém com a ideia de formá-lo como um leitor de literatura – embora reconheça, claro, que estamos falhando desde esse mínimo. Nesse sentido, alguém poderia perguntar: “Se não conseguimos fazer o esse mínimo na educação literária, que seria formar leitores de literatura, como poderíamos ousar mais do que isso?”.

por M���� A����� D����

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Minha hipótese é: não conseguimos formar leitores não porque esse objetivo seja difícil demais, mas porque, o modo como a ideia de formação leitora é tradicionalmente concebido é restrito e limitador demais. Se quiséssemos mais, se mirássemos mais longe do que temos feito, penso que, consequentemente, mais pessoas se interessassem em ler (e escrever, editar, ilustrar, publicar, mediar, criticar, comerciar...) literatura. Uma educação literária efetiva precisa ir além de ensinar a ler textos literários. É necessário defrontar o sujeito com a complexidade (cultural, social, histórica, econômica...) das práticas atinentes ao literário, para que o próprio sujeito possa entender que literatura não se reduz à escrita e à leitura de obras: há toda uma intrincada e sedutora teia de trabalho, filiação,  valoração e escolhas que, se não vem à tona, fica esquecida, e não mobiliza e engaja os sujeitos que têm diferentes interesses, perfis, modos-de-ser no mundo. Minha aposta é a de que, uma vez que o sujeito se identifique com uma ou mais das diferentes práticas que constituem a complexidade do literário (práticas que passam pela leitura, mas vão além dela), ele irá {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

entender a importância da literatura na vida social e, por isso mesmo, irá compreender alguns dos sentidos possíveis para ser um leitor de literatura autônomo, crítico, contumaz. Entre esses sentidos, decerto, cabe aquele que me parece extremamente relevante: pensar seu tempo, sua sociedade, seu lugar no mundo como indivíduo e como partícipe de uma teia de relações. Qual seria, então, minha concepção de educação literária? Para início de conversa, ela contempla a educação escolar (no que incluo a educação superior), mas não se restringe a ela. Minha concepção de educação literária contempla a disciplina escolar de Língua Portuguesa ou o campo universitário dos Estudos Literários, mas também, igualmente, não se restringe a eles. Por isso, minha defesa da educação literária confirma a escola, a disciplina escolar e o professor de Literatura (seja na educação básica, seja no ensino superior) como partícipes privilegiados do processo de educação literária, mas não alija do processo outros partícipes sem os quais o literário e o processo educativo não acontecem, na amplitude da acepção de educação com que trabalho: formação omnilateral do ser humano pelo desenvolvimento 14

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crítico de sua inteligência, emoção e sensibilidade em diferentes campos artísticos, científicos e filosóficos, visando à participação ativa e consciente na transformação das condições de vida humanas, em um contexto histórico e social complexo. Nesse sentido de educação, a educação literária perpassa o campo artístico-cultural, obviamente, mas perpassa também o filosófico (pois há uma  vastidão de questões ontológicas, gnosiológicas e/ou epistemológicas elaboradas na literatura ou a partir do estudo da literatura em seus processos) e os diferentes campos do conhecimento científico (pois há um extenso corpo de conhecimentos especializados e de práticas e procedimentos produzidos, transmitidos e transformados ao longo do tempo, por meio de diferentes escolhas teórico-metodológicas, envolvendo a literatura). Obviamente, essas diferentes esferas cambiam entre si todo o tempo, friccionam-se com outras, e são constituídas por múltiplos agentes, que vivem diferentes experiências e se posicionam nas disputas internas ao campo literário de modos  variados. Para mim, uma educação literária efetiva precisa ao menos dimensionar para os sujeitos essa complexidade. De saída, dar noção ao menos dessa complexidade teria o efeito de desfazer aquele equívoco tradicional que faz parecer que literatura é uma coisa antiga, sem vida, de gente desocupada ou ociosa ou que  vive no mundo da lua e se recusa a encarar a realidade. Por isso tudo, minha defesa da educação literária confirma o lugar da escola, da disciplina escolar e do professor de Literatura, mas incorpora também outros espaços-tempos educativos e experiências, que acontecem em bibliotecas, salas e clubes de leitura, feiras, jornadas, lançamentos, palestras e mesasredondas, teatros, óperas, slam’s, saraus, debates, programas midiáticos, batalhas de repentistas e rappers, cineclubes (alguns dedicados a recriações cinematográficas de obras literárias) etc. A educação literária que defendo e acredito dialoga com toda a cadeia de trabalho e agentes que constituem os modos de existência do literário em nossa sociedade: o escritor/produtor, o ilustrador, o tradutor, o performer, o editorador, o editor, o projetista gráfico,

o revisor, o adaptador, o ator que interpreta um papel ou monólogo literário, o mediador de leitura, o crítico, o ativista, o oficineiro literário, o museólogo e o arquivista dedicado a acervos e instituições de cultura literária, o agente literário, o cineasta, o “mecenas” ou “benfeitor” literário, o profissional do marketing, o jornalista cultural, o intelectual que planeja e o corpo técnico que executa programas públicos atinentes ao literário, o profissional de vendas... Desse modo, uma educação literária que faça jus à ideia de educação que defendo precisa dimensionar ao sujeito em formação essa complexidade – e prepará-lo para atuar de modo crítico, ativo e responsável nela. Por isso, não me contenta quando penso em uma educação literária a ser realizada por professores e estudantes em contexto escolar em afinidade com uma Base Nacional Curricular Comum (BNCC) produzida paraatenderaumaagendainternacionalparaaeducação (da Unesco, do Banco Mundial, da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) e a uma demanda de planificação curricular que interessa à lógica do controle e responsabilização da “ponta” do processo (leia-se: das escolas, professores e alunos). Merece um olhar cuidadoso uma BNCC que nasce no contexto de uma significativa participação de grupos empresariais privados e grandes corporações na assessoria ao Ministério da Educação, com o fito de permitir a definição de objetivos e procedimentos estandardizados para a educação básica e com o fito de permitir a produção de indicadores quantitativos e comparáveis. Penso que, no que tange a uma proposta de educação literária complexa, ampla, sofisticada, aberta tal como aquela que defendi nas linhas acima, uma Base Comum pode vir a ser nefasta no médio prazo – de novo, não porque o que propõe seja muito exigente e difícil, mas justamente porque pode ser limitador, simplificador, pouco ousado. Porém, é preciso ser realista na compreensão do momento presente para a educação literária em contexto escolar: a) os currículos de formação de professores (entre os quais os de literatura), seja na graduação, seja no mestrado, têm sido sistematicamente 15

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          a       r                u    t           a       r                e    t                       i l           a                 d      z           o         v              @            :                 e   t      r           a 

reformulados na direção de um esvaziamento de um corpo sólido e reconhecível de conteúdos, experiências e saberes oriundos de diferentes campos do conhecimento e na direção de uma defesa da formação “prática” ao custo do apagamento da formação e reflexão “teórica” (inclusive com a redução da carga horária a uma carga horária realmente mínima); b) fomos empurrados, em nome de nossa culpa e de nossa ausência de reflexão sistemática  vincada pela dialética entre particular e universal, bem como em nome de nossa incipiente participação política na esfera pública, à falsa escolha entre etnocentrismo e relativismo cultural, com os riscos para os mais pobres do empobrecimento da educação escolar no que tange à garantia da apropriação de conteúdos e práticas reconhecidamente importantes no desenvolvimento humano; c) os exames em larga escala (para a educação básica e para a educação superior), via de regra, prescindiram da leitura de obras literárias integrais {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

– e trabalham com fragmentos “com unidade de sentido”, de modo que, no que tange ao processo de educação escolar/universitária deu-se o esvaziamento da experiência individual e partilhada de leitura literária integral e a inviabilização da mediação literária qualificada, em um sistema feito pela racionalidade técnica, pela lógica do controle e do lucro que vê nos exames um fim educacional, e não um instrumento de avaliação educacional; d) há, como dado constitutivo da história do Estado brasileiro, a descontinuidade de políticas para o livro e a leitura no Brasil e uma ênfase na aquisição de obras em detrimento da formação de mediadores de leitura literária e da disseminação de espaços de leitura literária; e) vivemos sob o ideário de projetos como “Escola sem partido” e sob os riscos do avanço desse ideário por sobre todo o sistema literário (crítica especializada, circulação de materiais de leitura, formação de escritores, sistema editorial etc.). 16

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Como vamos nos mover neste cenário? No Congresso da Associação Brasileira de Literatura Comparada realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, em 2017, propus o que chamei de um “plano emergencial de trabalho”: • Reconhecimento de que toda escolha literária e educacional é política e é ideológica, com articulações e desdobramentos históricos – previstos e imprevistos – na realidade social; • Reconhecimento da educação literária como trabalho (portanto, intencional) que concorre para a produção da humanidade no homem; • Defesa da qualidade (que difere de tradição ou legitimidade), que só se conhece por comparação e ampliação de repertório e tendo ferramentas teórico-conceituais e repertório partilhados, para que se efetive uma discussão qualificada que, inclusive, questione os saberes até então disponíveis; • Defesa de que à relação com os textos antecede a relação entre pessoas, sujeitos humanos sóciohistórico-culturalmente situados – e que se aprende por mediação e não por mera interação sujeito-objeto; • Consciência clara de que não basta assegurar a circulação dos textos literários; é necessário assegurar o ensino-aprendizagem de seus múltiplos modos de materialização/existência e de seus múltiplos modos de apropriação/resposta em diferentes situações sóciohistórico-culturais com propósitos sociais diversos; • Atuação com conhecimento de causa e com pauta político-estratégica clara no redesenho dos cursos e programas de formação de professores; • Reconhecimento e defesa da especificidade do trabalho do professor de Literatura e de um perfil profissional suficientemente amplo mas imediatamente reconhecível: é necessário assegurar uma formação pedagógica para a educação literária mas que jamais pode prescindir de uma formação

pela literatura na complexidade de sua existência nas sociedades, pois alguém que não tenha trânsito pelas múltiplas esferas da atividade humana tocadas pela literatura não poderá mediar adequadamente o processo de educação literária de sujeitos menos experientes, menos informados e em processo de constituição e desenvolvimento subjetivo, identitário, cognitivo, interpessoal e social. De igual modo, alguém desprovido de conhecimentos claros e sistematizados sobre como é possível mediar o processo de educação literária em contextos específicos (como é o caso do contexto escolar), que não se aproprie de um campo profissional com seu acúmulo de experiências, saberes e conteúdos não poderá mediar o processo de educação literária. Finalizando, é preciso, sim, garantir a experiência de leitura, de escrita e de discussão literária na escola, mas é preciso mais. A literatura é, historicamente, uma dimensãoprivilegiadada criatividade,questionamento, resistência, problematização, tensão. Sua abertura e sua generosidade com o processo de produção de sentidos devem ser mobilizadas para sofisticar nossa inteligência, nossa emoção e nossa sensibilidade, para complexificar e lançar adiante nossa vida intra e intersubjetiva. Não faz sentido que ela, a literatura – com toda a sua complexidade constitutiva e com sua fluidez que escapa às definições e circunscrições limitadoras – não seja central, fundante, estruturante, nuclear em nossos processos de educação.  A educação literária que defendo e os leitores de literatura que espero que essa educação literária forme não cabem em um rol de competências e habilidades, não são mensuráveis a partir de um rol de descritores compatíveis com testes padronizados de múltipla escolha... mesmo que o nome nos engane e fale em escolha, e em multiplicidade.

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MARIA AMÉLIA DALVI é professora de literatura na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES).

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{�������} A VEGETARIANA Han Kang | Tradução Jae Hyung Woo | Todavia | 2018 | 176 p.  A literatura sul-coreana não é das mais conhecidas pelos leitores brasileiros. Em 2009, pela editora Landy, apareceu Contos contemporâneos coreanos,  por iniciativa da tradutora Yun Jung Im, professora da USP. A edição preparada por Yun conta ainda com prefácio de Boris Schnaiderman.  Ainda por iniciativa de Yun, outras obras foram publicadas, como O pássaro que comeu o sol:  poesia moderna da Coreia e Sijô, poesia coreana clássica. O romance A vegetariana entra na esteira da recepção da literatura sul-coreana no Brasil. Publicado pela editora Todavia em setembro, o livro é de autoria da Han Kang (1970), escritora que vem publicando ficções e ensaios desde 1995. A vegetariana recebeu o Prêmio Internacional Man Booker. A jovem Yeonghye, após sonhos perturbadores, decide parar de comer carne. Essa decisão impacta em sua relação com o marido e os demais familiares. Divido em três partes, o romance destrincha um estado psicológico de alterações de Yeonghye sobre sua relação com a carne, não somente no caráter alimentar, mas em suas múltiplas manifestações, incluindo a do ser humano como ser carnal. A incompreensão familiar leva a personagem a ser internada em hospital psiquiátrico e sofrer consequências gravosas. Essa trama construída com rigor por Han Kang conduz o leitor a um enredo de fundo altamente filosófico, que descarna as certezas de qualquer um sobre as implicações da carne na  vida humana.

FIGURAS DA HISTÓRIA  Jacques Rancière | Tradução de Fernando Santos | Editora Unesp | 2018 | 79 p.  Figuras da história é a mais nova obra do filósofo Jacques Rancière publicada no Brasil. A obra não é de toda inédita. Compõe-se de dois textos escritos para a exposição Face à l’Histoire ocorrida

em 1996 no Centro Georges Pompidou (Paris). É o próprio Rancière quem explica a origem dos textos logo no frontispício da obra. O primeiro ensaio intitulado “O inesquecível” joga com a ideia das relações entre a lente da objetiva cinematográfica e os fatos históricos. A dialética de Rancière passa por uma cena de A saída dos operários da fábrica Lumière (1895) a Gente no domingo (Siodmak e Ulmer, 1929) ou Ivan, o Terrível   (Eisenstein, 1944-58). Nas palavras do autor, “(...) a era em que o cinema toma consciência dos seus poderes é também o tempo em que uma nova ciência histórica se afirma diante da história-crônica(...)” (p. 25). No segundo ensaio, “Sentidos e figuras históricas”, o filósofo Jacques Rancière se dedica à imbricação entre as artes pictóricas e a história, passando pelas obras de diferentes pintores, como Greuze, Kurt Schwitters, De Chirico, Felix Nussbaum. Para tomar emprestado um dos pensamentos lapidares do ensaísta: “(...) a desmesura vivida da história encontra incessantemente a sua expressão pictórica.” (p. 78)

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Sobre quadrinhos, livros e literatura ��� I��� L��� G����

 A mais recente lista de indicados ao Man Booker Prize teve repercussão incomum na mídia especializada. Tido como o mais importante prêmio literário da Grã-Bretanha, o prêmio incluiu pela primeira vez uma graphic novel como melhor obra literária de 2018. A indicação de  Sabrina, de Nick Drnaso, pareceu chamar mais atenção do que o próprio prêmio em si ou os outro indicados, merecendo algumas notícias de jornal a respeito. Em geral, destacaram o feito inédito de uma  graphic novel   – no mundo anglossaxão – ou uma história em quadrinhos – conforme noticiou a imprensa local – ter sido indicada ao Man Booker Prize como livro do ano, na mesma categoria de um nome como Michael Ondaatje, com seu Warlight   – ele próprio vencedor do prêmio em 1992, com O Paciente Inglês. No ultimo dia 16 de outubro, anunciou-se – de maneira bastante discreta, diga-se de passagem – o prêmio para Anna Burns, por  Milkman. 19

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  a   r   u    t   a   r   e    t   a    z   o   v    @   :   e    t   r   a

 A ênfase na indicação de Sabrina suscitou reações pra lá de variadas. A partir da constatação de que uma premiação literária desta envergadura ampliava o alcance das suas indicações, alguns diagnosticaram o que seria o sinal de certo cansaço da produção literária mais recente. Não raro, tais interpretações sinalizaram para uma “crise da literatura contemporânea”, que precisa dialogar com formas de comunicação mais “acessíveis” e “simples”, como os quadrinhos, para poder continuar existindo. Houve mesmo quem interpretasse tal diálogo como sinal de decadência cultural, representativo dos nosso tempos de leituras breves e sem fôlego e onde a crítica, por meio de premiações, precisa fazer todo tipo de concessão para alcançar um público mais amplo. Outros, por outro lado, celebraram o ineditismo da indicação, apontando o dado novo que as novelas gráficas introduzem nas formas de narrar histórias no nosso tempo. Nem tanto ao mar, nem tanto à terra.  Ambas as avaliações parecem perdem de vista as relações históricas entre imagem e texto e, mais especificamente, entre quadrinhos e literatura. A  visualidade do texto é uma presença recorrente na produção histórica dos impressos, cujo marco decisivo pode ser apontado, segundo a famosa formulação de Marshall McLuhan, a invenção da imprensa moderna em meados do século XV. Ali estabeleceram-se as bases de uma cultura essencialmente voltada para o visual, onde a visibilidade e o olhar ganham centralidade na apreensão e construção do saber letrado. Não por acaso, logo nos anos iniciais que se seguiram à difusão da nova tecnologia de Gutenberg, as relações entre imagem e texto fizeram-se presente de forma fundamental para a consolidação do livro enquanto formato, seja a partir do cuidado com a tipografia presente numa obra como Champfleury  [1525], de Geoffrey Tory, dedicada a compor o alfabeto a partir de cuidados proporções anatômicas; seja a partir de obras que exploraram mais a fundo as interações  visuais no texto para a elaboração de narrativas. Um dos incunábulos mais conhecidos a explorar tais possibilidades é seguramente o  Hypnerotomachia  Poliphili . Impresso porAldus Manutius em 1499, contém {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

Capa de Sabrina , de Nick Drnaso.

belas imagens que acompanham o texto creditado a Francesco Colonna. Integrados, imagem e texto assumem atmosfera enigmática como a de um sonho, tornando  Hypnerotomachia Poliphili   uma daqueles obras envoltas em mistérios e que suscitam toda sorte de interpretações sobre seu significado ainda hoje. Fatores como tipografia, qualidade do papel, cores etc. apontam para o importante papel da dimensão material na composição de um livro, incluindo aqui as obras literárias. A visualidade do texto literário também pode ser explorada a partir do impacto que as transformações tecnológicas e os inúmeros dispositivos óticos – do daguerreótipo à fotografia – que se proliferaram ao longo do século  XIX introduziram sobre os processos criativos de uma série de escritores. a literatura já se mostrara sensível às alterações na sensibilidade promovidas por novas tecnologias e artes técnicas como a fotografia e o cinema. Os escritores se mostravam sensíveis ao novo “horizonte técnico” que se desenhava diante deles. Como sintetizou em 1909 o cronista carioca João do Rio “ao demais, se a vida é um cinematógrafo colossal, cada homem tem no crânio um cinematógrafo de que 20

e jornais antigos. Em “A Misteriosa Chama da Rainha Loana”, de Umberto Eco, os quadrinhos lidos ao longo da infância de Yambo – cujo nome completo, Giambattista Bodoni, é uma referência direta ao tipógrafo e editor italiano de fins do século XVIII e início do XIX – são um recurso gráfico e narrativo para enfrentar a perda de memória vivida pelo personagem.  A intertextualidade e a atenção dada à dimensão visual poderiam conferir à obra a alcunha de “novela gráfica”, se esta já não estivesse em voga no mercado de quadrinhos desde fins dos anos 1970. E aqui voltamos para “Sabrina”, obra herdeira desta tradição editorial que se tornou reconhecida a partir dos anos 1980 através de nomes como Alan Moore, Frank Miller e Neil Gaiman, entre outros. Herdeira principalmente por se dedicar a explorar a linguagem das HQs para desenvolver uma narrativa ficcional de fôlego sobre temas como depressão e boatos. O trabalho de Nick Drnaso explora a difusão de uma série de notícias falsas em torno do assassinato brutal da personagem-título, e como a circulação destes boatos via imprensa altera as vidas de alguns dos seus conhecidos. Para além dos super-heróis que tanto marcaram as revistas em quadrinhos por décadas, uma graphic novel como “Sabrina” reforça o

o operador é a imaginação”. À guisa de exemplo, é possível identificar um engajamento de boa parte da produção literária americana do século XIX com o olhar e a câmera, desenvolvidas a partir de metáforas  visuais e terminologias fotográficas, apontando para aquilo que se convencionou chamar de realismo. Porém, resumir o realismo literário a apenas um esforço para representar o mundo tal como ele é redutor, quando o que está em jogo é justamente um poética da representação, envolvendo tanto o que pode quanto o deve ser representado – e como fazê-lo. Linguagem que se desenvolveu historicamente a partir da mídia impressa, as histórias em quadrinhos se alimentaram de fontes bastante parecidas das descritas até aqui. Que se trata de linguagem  visual e gráfica, não restam dúvidas; cabe reforçar, porém, que novas tecnologias de impressão – rotogravura e impressora rotativa, por exemplo – logo adotadas pela moderna imprensa de fins do século XIX permitiram a impressão em larga escala e a cores de suplementos inteiros dedicados aos quadrinhos. Aquele que é considerado por muitos como “o primeiro personagem de quadrinhos” ganhou destaque especial em parte pelo interesse dos donos do jornal The New York World em explorar as capacidades de uma recém-adquirida impressora rotativa em quatro cores. Nascia The Yellow Kid.  A partir de então, os quadrinhos ganhariam autonomia e alimentariam a imaginação de geração de leitores. Tal como Ítalo Calvino, muitos devem ter aprendido a “pensar com imagens” a partir dos quadrinhos. Outros tantos devem ter lido primeiras  versões de clássicos da literatura mundial e brasileira em adaptações para a linguagem dos quadrinhos – para, em seguida, seguirem os conselhos dos editores e deixarem de lado o “aperitivo” dos quadrinhos e correrem para “ler o próprio livro” e organizar sua biblioteca, “porque uma biblioteca é sinal de cultura e bom gosto”. Leitura fugidia, mas não de todo esquecida; não raro, os quadrinhos podem vir a se localizar nas zonas cinzentas da memória, a serem retomadas a partir de um contato afetivo com revistas

fragmento de Sabrina .

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interesse deste formato de quadrinhos em enfatizar as  vidas de pessoas comuns, anônimas e deconhecidas, quando atravessadas por acontecimentos maiores e que superam suas capacidades de controlá-los. As especificidades da narrativa gráfica dos quadrinhos conferem a Sabrina especial relevância no debate contemporâneo, pois permitem dar corpo a uma série de sensações – ansiedade, medo, angústia, vazios – que experimentamos em nosso dia a dia recente em torno da proliferação de informações e notícias que, apesar de caberem nas nossas mãos, terminam por nos soterrar diariamente. Em contraste, a narrativa é lenta e quase impessoal: várias páginas não apresentam nenhum texto sequer e retratam cenas banais do cotidiano, como diálogos sobre memórias de infância, alguém se preparando para dormir ou aguardando um voo. Tudo numa linguagem gráfica minimalista, mais próxima do design informativo de manuais de segurança presente em aviões do que das tons berrantes em quatro cores que historicamente marcaram a estética dos quadrinhos. Não por acaso,  Sabrina  é uma ótima  graphic novel para colocar em questão as formas como produzimos e consumimos notícias a todo momento.

Se dialoga explicitamente com o contexto americano e suas fake news, certamente também terá a muito a dizer aos leitores brasileiros. Tal como lá, por aqui nos  vimos igualmente envolvidos numa trama eleitoral com ares conspiratórios, onde uma série de elementos indicam que houve suporte financeiro ilegal para a promoção de propagandas ilegais e conteúdo falso. Tais maquinações contribuíram sobremaneira para que chegássemos ao atual momento, onde uma candidatura fundamentada no ódio político e moral e carente de propostas concretas - ao ponto de eximir-se do contraditório ao negar-se a comparecer a debates no segundo turno - foi declarada vitoriosa pelas urnas. Num cenário confuso como esse e à beira do colapso, talvez seja realmente difícil acompanhar o turbilhão de reportagens, postagens e memes – afinal, “quem lê tanta notícia”? Algumas obras – de arte, literárias, em quadrinhos – servem justamente para propor uma leitura criativa do seu tempo, sintetizando muitos dos dilemas que observamos e introduzindo questões que podem nos ajudar a pensar caminhos. Com ou sem prêmio literário,  Sabrina é dessas obras.

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IVAN LIMA GOMES é Doutor em História pela UFF, com tese de doutorado premiada no 28º HQ Mix na categoria “melhor tese de doutorado”. Professor da Faculdade de História na UFG. Autor do livro: “Os novos homens do amanhã: projetos e disputas em torno dos quadrinhos na América Latina” (Prismas, 2018).

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Abbas Kiarostami

O cineasta iraniano Abbas Kiarostami (1940-2016) projetouse internacionalmente com o filme Onde fica a casa do meu amigo? (1987).  Venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes com o Gosto da Cereja (1997). Seu filme O vento nos levará (1999) foi agraciado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza. A poética de suas produções cinematográficas espelha a personalidade do poeta Kiarostami na antologia de haikus de Nuvens de Algodão, livro inédito no Brasil, publicado pela Editora  Âyiné. A r evista {voz da literatura} compartilha alguns dos haikus de Kiarostami com seus leitores. 23

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Na tua ausência  converso contigo, na tua presença  converso comigo. **  Aproximo meu ouvido do sussurro do vento do estrondo do trovão da melodia das ondas. **

Trad. de Pedro Fonseca | Edição Bilíngue | Ed. Âyiné | 2018 | 189 p.

No silêncio da noite não me deixa dormir  a nênia dos cupins. **  A brancura da pomba  perde-se nas nuvens brancas em um dia de neve. **  A luz do luar  derrete o fino gelo de um velho rio.

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 A arte desta página reproduz um trecho do livro infanto-juvenil ���, escrito e ilustrado por A NGELA  L EITE DE SOUZA , lançado pela editora mineira Abacatte, especializada em obras desse gênero.  A revista {voz da literatura} convidou  Angela Leite para compartilhar com os leitores sua relevante trajetória como escritora e comentar as possibilidades de leitura do livro ��� pelo público em geral e especialmente nas salas de aula do Brasil. 25

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 A NGELA  L EITE DE SOUZA : Pode-se dizer que minha carreira literária começa aos 7 anos de idade, quando fui alfabetizada. A partir daí, passei a escrever quadrinhas, textos “jornalísticos”, bilhetes… enfim, tudo o que acontecesse à minha volta ia para o papel, em forma de prosa ou de poesia. Aos 11, fiz o primeiro conto - “Confissões de uma bola branca de sinuca”. E na adolescência começaram a nascer os primeiros versos líricos, que eu ainda escondia na gaveta, insegura de sua qualidade. Aos 16, um crítico literário finalmente teve a disponibilidade de ler esses poemas e viu neles uma ressonância com Cecília Meireles. Fiquei mais confiante e passei a mostrá-lo a outros experts. Mas o maior incentivo veio anos mais tarde. Houve então um hiato na criação literária, porque em 1972 me formei em jornalismo pela PUC do Rio de Janeiro e durante muito tempo exerci meu lado repórter, trabalhando nas redações de O Globo,  Veja e outros importantes órgãos da imprensa. Na década de 80, surgiu a oportunidade de mostrar minha produção poética aos grandes escritores que frequentavam a famosa reunião carioca de literatos que ficou conhecida como Sabadoyle. Lá, ganhei o aval dos poetas Homero Homem e Gilberto Mendonça Teles e entrei em um concurso literário promovido pela Imprensa Oficial de Minas Gerais, que escolhia as dez melhores obras de vários gêneros e as premiava com a publicação. Assim nasceu, em 1982, meu primeiro livro, “Amoras com açúcar”, que Homero Homem me deu a honra de prefaciar. A partir daí, em três décadas e meia, foram publicados cerca de 70 títulos meus, de vários gêneros. Entre os anos 70 e 90, uma feliz descoberta – a literatura infanto-juvenil, em que acabei fazendo especialização na PUC de Minas Gerais. Essa nova vertente me deu grandes alegrias, em forma de prêmios - “Deusmelivre!”, Prêmio João de Barro da Prefeitura de Belo Horizonte; “Meus Rios”, Prêmio Carioquinha de Literatura Infantil; “Entre Linhas”, Prêmio de Poesia Odylo Costa, filho, da Fundação {voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

   o     h    n     i    t    u    o    C    o     i    v     l    y    S    :    o    t    o    F

Nacional do Livro Infantil e Juvenil, entre outros reconhecimentos. Esse gênero literário também me abriu outro caminho, o da ilustração, uma área em que fui praticamente autodidata, já que até então havia dedicado minha formação e prática à palavra escrita. Com esse trabalho obtive também reconhecimento, até internacional, como a seleção e exposição de minhas ilustrações por três vezes na Bienal de Bratislava, na Eslováquia. A última aconteceu em 2017, em que foram expostas as ilustrações de “Cantiga dos meninos pastores”, poema de Adélia Prado. A maior láurea foi conquistada em 1998 por meu livro “Estas muitas Minas”, de poesia para adultos, que foi o Prêmio Casa de las Américas de Literatura Brasileira, de Cuba. Meu livro mais recente, “PAZ” levou um bom tempo para ser elaborado, já que fiz texto e ilustração. Ele tem me proporcionado fortes emoções porque vem sendo lido por um público surpreendente: crianças de três, cinco anos, adultos de todas as idades! Estes, homens e mulheres, me contam que chegaram às lágrimas. E os pequeninos, embora não saibam ler, demonstram uma total compreensão do conteúdo. Eis, sem dúvida, o grande “salário” de um autor. 26

Capa de PAZ.

Sei de uma professora que se valeu do “PAZ” para literalmente acalmar a turma, que havia voltado com toda a energia do recreio. Acho que assim deveria ser trabalhado o livro em sala de aula. Ou seja, uma leitura tranquila, pausada, deixando aos alunos pausas para reflexão sobre o que foi lido. Isto, claro, com as crianças menores. A elas devem ser mostradas as imagens correspondentes, porque são parte intrínseca da compreensão do texto. E será interessante dar a cada criança a oportunidade de manifestar a sua interpretação. Tenho o vídeo de uma menina de dois anos e meio que “decorou”o texto e vai folheando o livro como se lesse. A certa altura, para e aponta com o dedo, por exemplo, os botões que representam a indiferença, dizendo: “este aqui não quis entrar”. Ou, na página do medo: “olha, ele está com medo!”, diz indicando o pequeno botão “encolhido” no canto escuro da página. Com os maiores, acho que é praticamente ilimitada a

possibilidade de fazer um trabalho rico. O livro chegou em um momento de grande tensão e desentendimento em nosso país. Este, penso eu, deve ser o aspecto mais explorado, já que as situações abordadas no “PAZ” se aplicam ao nosso conturbado cotidiano. Como conviver harmoniosamente, como aceitar o “outro” colocandonos em seu lugar, como respeitar quem pensa de modo diferente, enfim,fazer a esse outro aquilo que desejamos seja feito a si próprios. Questões relativas à cidadania, ao meio ambiente, à xenofobia, estas e outras podem ser levantadas e gerar debates, murais, dramatizações.  A mesma criança pequena que citei, ao chegar à última página do livro, exclamou, enquanto procurava com o indicador: “Deixa eu ver qual sou eu!” Escolheu um dos botões e demonstrou, assim, um perfeito entendimento da mensagem final, já que se incluiu entre aquele “mundo inteiro”.

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{�������} PEREGRINOS E PEREGRINAÇÃO NA IDADE MÉDIA Susani Silveira Lemos França, Renata Cristina de Souza Nascimento e Marcelo Pereira Lima |  Vozes | 2017 | 212 p.

Este livro faz parte da série “A Igreja na História”, da editora Vozes. Cada um dos autores de Peregrinos e peregrinação na Idade Média é responsável por um dos capítulos, que são, na verdade, estudos e ensaios independentes, mas que guardam uma forte noção de todo. Susani Silveira Lemos França, professora livre-docente em História Medieval na Unesp, tece no capítulo de abertura “Peregrinos e centros de peregrinação” narrativa instigante sobre a história quase milenar durante o período medieval de sucessivas peregrinações e destacados peregrinos, desde a aristocracia romana, levando o leitor a conhecer os mais diversos perfis de peregrinos (monges, armados, letras e urbanos) e os principais lugares de peregrinação (Jerusalém, Roma, Santiago de Compostela). O segundo capítulo, “Nos passos de Cristo e de seus apóstolos – relatos de viagem e peregrinações”, Renata Cristina de Souza Nascimento, professora da UFG, ocupa-se da peregrinação na Antiguidade Tardia, relembrando a figura de Augusta Helena, mãe do Imperador Constantino, e sua peregrinação à Palestina. Renata Nascimento recupera o relato de Etéria na rota das cenas bíblicas, escrito após o ano 360, bem como outras narrativas, tal qual O livro das maravilhas, de Marco Polo. Outro ponto de destaque da reconstrução da figura de São Luís, considerado como um dos maiores reis-peregrinos. O volume se encerra com o estudo de Marcelo Pereira Lima, professor da UFBA. Tem como enfoque a ambiência jurídica que cercava a figura do peregrino, para ampliar a visão sobre o direito medieval.

{voz da literatura} | n. 7 | novembro | 2018

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