40 razões para você não ter filhos.pdf

May 5, 2019 | Author: Valéria Vallecilo | Category: Breastfeeding, France, Brazil, Family, Europe
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^ Z Ö E S PARA V O C Ê N Ä o

Corinne Maier

A narrativa denuncia a banalidade e as limitações da vida doméstica dos que têm filhos e os malefícios da “educação” moderna, na qual a criança é o centro da família. Investiga o consumismo ditado pelas crianças, a indiferença dos adolescentes e as inevitáveis decepções dos pais com suas crias. Além disso, Sem filhos  relembra as custosas privações objetivas e subjetivas que uma criança representa: “Lazer, vida conjugal, amigos, sexo. E isso durante vinte anos, até que a criança se transforme em um jovem sem futuro.” Este livro mostra como a sociedade que privilegia as crianças na verdade penaliza os adultos, instaurando o que os especialistas já caracterizam como a era do “filiarcado”.

psicanalista e economista, nasceu em Genebra, Suíça, em 1963. Formada em relações internacionais e economia pelo Institut d’Etudes Politiques de Paris, foi pesquisadora na área de desenvolvimento da EDF (Companhia de Eletricidade da França), de onde foi exonerada após o lançamento de qual faz uma Bom dia ,  preguiça  pregui ça   ensaio no qual crítica ao trabalho. trabalho. Membro Memb ro da Aleph Aleph  Assossociação para o Estudo da Psicanálise e sua História publicou publ icou,, entre outras outras obras, Le divan c’est ammusant e Intello Academy. Academy. C o r in n e

M a i e r  ,

Filhos: afinal, seria melhor não têlos? Corin ne Maier, mãe de dois adolescentes, declara: “Em certos dias eu me arrependo, e ouso dizer isso.” Cansada do pensamento conformista que conclama mulheres e homens às alegrias da maternidade ou da paternidade, essa ensaísta rebelde revela aqui boas razões para não sucumbir à tentação e enfrentar as conseqüências e os sacrifícios que essa escolha pelos bebês pode representar. A autora analisa a onda de idealização e gla mourização da maternidade, onipresente na mídia contemporânea, com um discurso herético, sincero e politicamente incorreto. Assim, põe em xeque um dos tabus mais intocáveis da sociedade: a necessidade de ter filhos. Mesmo entre os homens, para quem a opção por não ter filhos é mais aceita, assumir que não se deseja crianças resulta em reprovação imediata. Para as mulheres, essa escolha é acompanhada por uma condenação: é impossível alcançar a plenitude sem filhos. Apesar do crescimento do movimento e das associações dos que optam por não ter crianças, a recusa em ter filhos não é apenas um tabu, mas uma atitude suspeita. Diante disso, Corinne Maier ressalta que quanto mais aumenta a fertilidade, menos as pessoas se declaram felizes. Ela relata as dificuldades das relações entre pais e filhos enfatizando que nem tudo se trata apenas de amor, mas de sentimentos ambíguos que envolvem também ódio, culpa, ressentimento, ciúme, e outros problemas que não se enunciam com clareza.

CORINNE

MAIER

Sem Filhos 40 razões para você não ter

TRADUÇÃO DE JORGE BASTOS

Copyright © 2007 Éditions Michalon, Paris TÍTULO ORIGINAL

No kid, quarante raisons de ne pas avoir d’enfant r ev is ã o

 Janir Hollanda Antonio dos Prazeres DIAGRAMAÇÃO

Ilustrarte Design e Produção Editorial CAPA E PROJETO GRÁFICO

Mariana Newlands IMAGEM DA CAPA

Norbert Schaefer/zefa/Corbis/LatinStock

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE. SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

M19 s

Maier, Corinn e, 1963Sem filhos: 40 razões para você não ter / Corinne Maier ; tradução Jorge Bastos. — Rio de Janeiro : Intrínseca, 2008. 160p. Tradução de: No kid, quarante raisons de ne pas avoir d’enfant Inclui bibliografia ISBN 978-85-98078-32-8 1. Reprodução humana — Aspectos sociais. 2. Anticoncepção — Aspec tos sociais. 3. Controle de natalidade — Aspectos sociais. 4. Papel sexual. 5. Família. I. Título.

08-2465.

[2008 ]

Todos os direitos desta edição reservados à EDITORA INTRÍNSECA LTDA.

Rua dos Oitis, 50 22451-050 - Gávea Rio de Janeiro - RJ Telefone: (21 ) 3874-0914 Fax: ( 21 ) 3874-0578 www.intrinseca.com.br

CD D 306.85 CDU 316.812.5

Para Sophie e Sabine.

SUMÁRIO

PRÓLOGO, 11 INTRODUÇÃO,

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Q U A R E N TA R A Z Õ E S PAR A V O C Ê N Ã O T E R F I L H O S

 1. O “desejo por crianças”: Uma aspiração ridícula, 23 2. O parto: Uma tortura, 27 3. Evite se tornar uma mamadeira ambulante, 3 1 4. Continue a se divertir, 35 5. Condução, trabalho, filharada: Não, obrigada!, 37 6. Saiba manter seus amigos, 41 7. Não aprenda a língua idiota usada para se dirigir às crianças, 45 8. O quarto de brinquedos é o fim da brincadeira, 49

9- O filho: Um estraga-prazeres, 53  10. Dobram os sinos para o casal, 55  11. Ser ou fazer: Não se sinta obrigado a escolher, 57  12. “A criança é uma espécie de anão cheio de vícios e com uma crueldade inata” (Michel Houellebecq), 59 13. Ela é conformista, 63 14. Crianças custam caro, 65 15. Um aliado objetivo do capitalismo, 69  16. Mantê-la ocupada: Um quebra-cabeça, 73 17. As piores tarefas dos pais, 77  18. Não caia na ilusão do filho ideal, 81 19. Seu filho obrigatoriamente o decepcionará, 85 20. Ser uma mãezona, que horror!, 87  21. Ser, antes de tudo, pai (ou mãe)? Não, obrigado, 89  22. Nada de livre trânsito para os profissionais da infância, 93 23. As famílias são um horror, 97 24.  Não volte você a ser criança, 101 25. Insistirem dizer “primeiro eu” é prova de coragem, 105 26. O filho é a despedida dos seus sonhos de juventude, 107  27. Você não pode deixar de querer a felicidade dos  filhos, íoç  28. O filho: Um grude, 111 29. Escola: Um campo disciplinar com 0 qual é preciso  pactuar, 115

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30. “Criar” um filho: Mas em qual direção?, 119 31. Fuja da neutralidade bem-comportada, 123 32. A paternidade infelizmente é uma doce cantilena, 127  33. A maternidade é uma armadilha para as mulheres, 131 34. Ser mãe ou ter sucesso: É preciso escolher, 133 35. Quando o filho aparece, o pai desaparece, 137 36. A criança de hoje é uma criança perfeita: Bem-vindo ao melhor dos mundos, 1 39 37. Cuidado, criança: Perigo, 143 38. Por que se sacrificar tanto por um futuro excluído?, 147  39. Crianças demais na Terra, 151 40. Vire as costas aos ridículos dez mandamentos do “bom” pai, 153 conclusão: BIBLIOGRAFIA,

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Criança? Não, muito obrigada, 155 157

PRÓLOGO

Uma única solução: A contracepção Em 2006 a França se tornou Campeã européia da fertilidade. O “milagre francês" foi alardeado com o canto Vitorioso do galo, o símbolo nacional: cocoricó. Assistese, nos dias de hoje, a uma glorificação da maternidade que não teria desagradado ao tristemente célebre marechal Pétain. É a face atual do patriotismo: para encarar uma Vida de imbecil é melhor sermos muitos. Franceses, estão fazendo pouco de Vocês. Fazem com que acreditem que a felicidade está ao alcance de algumas barrigas, num país tremendamente entediante e moralizador, cujas tetas são o trabalho e a família. A realidade é que quanto mais cresce a fertilidade, menos as pessoas se declaram felizes. Abram os olhos, seus filhos serão baby-loosers, fadados ao desemprego, a bicos precários ou desprezíveis, à condição de simples recurso humano. Terão uma Vida ainda menos diVertida do que esta que Vocês têm — e olhe que ela já não é tão engraçada assim. Não, os seus maravilhosos bebês não têm futuro algum, pois cada criança que

nasce num país dO primeiro mundo é um desastre ecológico para o planeta inteiro. E vocês vão pastar Vinte anos para "criálos”. A educação dos filhos se tornou um sacerdócio, já que a sociedade exige dos pais modernos performances dignas do SuperHomem ou da Mulher MaraVilha. Estar sempre disponível, sorridente, atento, pedagógico e responsável — o que não se faz para garantir a "felicidade” e a "plenitude” dos seus pirralhos? Tornarse paimãe significa estar pronto ao sacrifício de todo o restante. Vida de casal, lazer, vida sexual, amigos e sucesso social, no caso das mulheres. E tudo isso, para isso; francamente, acha que Vale a pena? Tomem suas precauções. Nada de filhos, por faVor. É tão fácil acontecer. Uma única solução: a contracepção.

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INTRODUÇÃO

Se eu soubesse, não teria tido Num dia de dezembro, eu me preparava para comemorar meus 40 anos. Estava com uma amiga num bar e, meio desanimada, “fiz um balanço”, depois de ter bebido umas doses: — Eu me enganei de rumo. Comecei a fazer análise com dez anos de atraso, não agüento os jantares sociais em meio a todas aquelas pessoas bem integradas. Não soube agarrar o destino pelos cabelos (e sei hoje em dia que ele usa um corte  punk...)7 meus filhos me enchem a paciência... — O que é isso? — perguntoume a amiga. — Pode questionar tudo, mas não está falando sério, não se arrepende de ter tido filhos. — Falo sério. Não fossem eles, estaria dando a Volta ao mundo com o dinheiro ganho com os liVros. Em Vez disso, estou presa em casa servindo refeições, obrigada a me leVantar às sete da manhã todos os dias da semana, a ajudar em deVeres de casa mais do que idiotas, a botar e tirar roupas da máquina de laVar. E tudo isso para que as crianças achem que sou sua empregada. As Vezes, de fato,

me arrependo e não tenho medo de confessar. Na época em que os tiVe, era joVem e apaixonada. Acho que fui manipulada pelos genes. Se recomeçasse, não tenho tanta certeza de que faria o mesmo. Ela ficou chocada. Há certas coisas que uma mãe de família não pode dizer, pois corre o risco de passar por um monstro. O discurso típico é: “Tenho orgulho dos meus filhos e se tem algo de que não me arrependo é disso.”

O culto da criança Ter um filho é o que há de mais bonito no mundo, um sonho ao alcance de todas as bolsas e barrigas. E mostrar para a Vizinhança o sucesso do casal, a comprovação da integração social dos pais, num mundo em que o maior dos temores é o de ser “excluído”. As crianças estão na moda e é chique carregar um bebê no colo ou bem bonitinho no carrinho. Quanto às mulheres grávidas, elas posam nuas nas revistas: não se esconde mais a gravidez. Nunca a maternidade e a paternidade foram a tal ponto levadas às nuvens. A grande aventura do século XXI é mesmo a procriação. Uma prova disso? John de Mol, o bilionário inventor de Star Academy * em particular e do reality show em geral, teve recentemente a idéia de um novo “conceito”: filmar uma gravidez do início até o parto. Tudo seria mostrado: enjôos, ultrasonografias, exames médicos, quilos a mais, estados de espírito... Um suspense insuperável e comovente. Mais forte do que The Bachelor , Koh Lanta ou Next Top Model  juntos. Pequeno  flashback. No início da humanidade, o homem apreciava as colheitas fartas, os seios grandes, os bisões gordos e os filhos numerosos. Era preciso povoar o mundo, ir à caça e se impor diante dos vizinhos belicosos. Vem daí o respeito religioso que a * Reality show   musical cujo formato foi reproduzido em diversos países — no Brasil recebeu o título de Fama.  (N. do E .) H

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fecundidade inspira. Ter filhos, então, tinha a Ver com fatalidade. Depois surgiu o desejo por crianças: uma idéia noVa na Europa. Desde a pílula e o aborto, a criança se tornou desejada. Não é mais a conseqüência de um ato sexual, mas o produto de uma Vontade controlada pela ciência. O imprevisto foi banido. ViVa a programação: o primeiro filho aos 30 anos, quando eu tiver um emprego estável; o segundo depois de ter comprado uma casa, o terceiro para deduzir do imposto de renda. O “desejo por crianças” dá asas a adultos com poucas perspectivas próprias (eles são muitos). A missão dos pais consiste em se concentrar de corpo e alma no desabrochar desses pequenos seres maravilhosos. Tornada totalmente sagrada, a criança representa, para muitos tolos ou ingênuos, o elo que faltava entre o humano e o infinito. Não se trata mais de Demain les chiens   [Amanhã, os cães], como se traduziu na França o romance de ficção científica de Clifford D. Si mak, mas sim Aujourdhui les enfants  [Hoje, as crianças]. Enquanto isso, Malthus, que já no final do século XVIII fez o elogio do controle da natalidade, tem seu nome raramente citado nos dias de hoje: os malthusianos, cada vez menos numerosos, são considerados uns an tipatriotas cínicos ou até mesmo anarquistas perigosos.

 A pró-natalidade vai acabar com a França!  A França se classificou como o país mais fértil1da Europa, em 2006, com 830 mil nascimentos; um recorde anunciado na im1Em 2006, com uma taxa de fecundidade ligeiramente superior a dois filhos por mulher, a França se tornou, com a Irlanda, o país mais fértil da Europa. A Bélgi ca apresentou 1,6 filho por mulher, e os Vizinhos italianos, alemães e espanhóis tiveram taxas que não chegaram a 1,4. Já os países do Leste estão enfrentando uma crise profunda em relação à natalidade. As taxas de fecundidade nos Es tados Unidos são mais eleVadas do que na Europa, com 2,1 filhos por mulher. Por quê? Porque demonstram maior “otimismo” e patriotismo, além de crenças religiosas mais fortes. se m

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prensa em tom de triunfo. Por que os jornalistas se interessam por isso? A maternidade tem ações cotadas na Bolsa? Por que seria uma Vitória? TalVez por ser só o que resta à França para subir em algum pódio? Com a natalidade e o familiarismo em gloriosa ascensão, teria assumido o poder o candidato da direita nacionalista, Philippe de Villiers? Na França é “normal” querer filhos. Mas nem sempre foi assim. Durante muito tempo os franceses reclamavam muito da obrigação de se reproduzir. Do século XVIII até a década de 1970, eles mantiveram distância das alegrias da paternidade: a natalidade francesa era bem baixa. A ponto de muitos se preocuparem com o futuro da identidade nacional (ainda não se chamava assim). Hoje em dia, eles parecem tomados por uma estranha febre. Todo mundo fala de desejo por crianças como de uma pulsão vital surgida do fundo das entranhas, irresistível, ardente, inexplicável e totalmente legítima. Muitos pais estão convencidos de cumprir uma missão de interesse nacional, um sacerdócio que vai às raias do sagrado e da transcendência: a criança representa um além que se pode improvisar com meios próprios. Todo mundo sonha ter um filho. Casais gays querem adotar crianças, e lésbicas gostariam de carregar o seu próprio fruto de carne, osso e gritaria — apesar de, por enquanto, o Código Civil não concordar com isso, pois o Direito gosta de se remeter ao “natural” e considera que a “verdadeira” filiação deve se vincular ao corpo. Mas o direito ao filho já mostra a ponta do nariz no horizonte, assim como, no sentido oposto, o direito à moradia, o direito à felicidade, o direito à saúde, o direito à magreza. Quando virá o direito à infância, que vai permitir que não se saia mais do país das maravilhas? Na França, quando alguém se casa, os colegas de trabalho não deixam de perguntar: “E então, como foi? Já está a caminho?” Certas mulheres, ao que dizem, inventam no escritório ter um filho para que as deixem em paz, de tal forma é rara a dissidência. I6

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POis é na França que a imposição da maternidade é mais forte, incentivada por vigorosa política familiar (abonos, creches, escolas maternais etc.). Com relação às mulheres que atualmente deixam a idade fértil, apenas uma entre dez francesas não teve filho; na Itália e na Espanha, as mulheres sem filho somam 14 por cento, na GrãBretanha, 20 por cento, na Alemanha, 30 por cento (45 por cento entre as que têm educação superior). Cada vez mais, a França é considerada um exemplo por outros países da Europa, tanto que a Alemanha acaba de estabelecer, para os pais, uma licença remunerada de um ano. Europeus, direto aos seus berços — a única imagem que se quer ver é a dos seus bebês.

O serviço obrigatório da chupeta O problema é que, na história da opressão dos povos (que se confunde com a simples História), a família com filho(s) foi um imperativo categórico que muitas vezes andou no mesmo passo que o trabalho. Basta lembrar “Trabalho, Família e Pátria”, do sinistro marechal Pétain. “Vocês, ao trabalho e à reprodução; com isso, não pensam em fazer nada errado e eu me encarrego de todo o resto.” Eis a exigência não escrita de qualquer ditador. O Estado tem pleno interesse na procriação: isso não parece estranho?  Já não seria uma boa razão para o questionamento do tal “dever cívico” de contribuição para a renovação das gerações? Tratase, claramente, de uma obsessão demográfica com a intenção de se preservar uma determinada visão de mundo. Pois o insistente argumento de que “a Europa está envelhecendo, a renovação das gerações não está garantida” não se sustenta nem por um segundo. Que venham os imigrantes. Eles podem ocupar os lugares que nossos jovens não querem (pedreiro, garçom, enfermeira) e, por outro lado, financiar nossas aposentadorias. Não falta quem se candidate; basta abrir as portas. Mas não s e m

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procurem, com um tom sabido, explicar que as crianças de hoje são o “crescimento” de amanhã: Que crescimento? Para quê? O crescimento econômico é, por si só, um objetivo digno de uma sociedade que se pretende democrática? Sonhase apenas com a compra de televisores, máquinas de laVar, telefones celulares? E isso gera empregos cuja total estupidez não deVia deixar contentes os que os oferecem nem os que os aceitam? Os discursos ultra repetidos dos economistas (São, no mais das Vezes, uns senhores maduros, falastrões e pretensiosos) sobre esse assunto só me fazem rir. A economia, que se pretende um metadiscurso sobre uma realidade bem difícil de ser pega numa rede de caçar borboletas, nunca me impressionou. Ainda mais porque eu mesma me auto proclamei economista durante anos e, por isso, conheço todos os meandros dessa nãoprofissão. Há, felizmente, “opositores conscientes” da fertilidade. Refiro me àquelas e àqueles que não querem filhos. Eles são discretos, em geral, por evidentes razões de prudência. As mulheres têm até o direito de adiar a idade da maternidade, mas negála, nunca. Os homens, de algum tempo para cá, flagramse dizendo que a vida é um fracasso quando não se tem filhos. Cresce a tolerância com relação às diversas formas de vida privada, mas explicar serenamente que não se quer ter filhos suscita reprovação. Os que têm essa coragem são vistos pelas pessoas ao redor como desviantes da norma, de tal modo se considera a família um valor universal. Na França, ser “semfilho” é uma anomalia. Permanentemente censurados, os que se atrevem a não têlos causam dó: “A pobrezinha provavelmente não pôde ter”; “Ele estragou sua vida”. Esses “egoístas”, “imaturos”, “pessimistas”, “instáveis” são esmagados por impostos num sistema fiscal injusto que favorece as famílias. São também deixados à margem num mundo em que tudo é feito para o modelo dominante. Alguns têm outras ambições? Todo I8

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mundo lhes dirá que elas têm pouca importância, comparadas às “alegrias” de engendrar, de “sentirse realizado”, prometidas pelo ato de gerar filhos. Veio do exterior uma saudável contraofensiva. Nos Estados Unidos e no Canadá, na Austrália e na Inglaterra, associações de “nãopais” foram criadas, já no meio da década de 1980. Tornandose verdadeiros grupos de pressão, essas associações impuseram o uso da palavra childfree  [livre de filho] no lugar de childless [semfilho]. Não ter filho é uma escolha, e não um defeito. Os que a assumem não têm nenhum tipo de carência; sentemse bem satisfeitos, obrigado. Além disso, certas associações dizem em voz alta o que muitos pensam baixinho: crianças são um transtorno horrível. A respeito delas, o ator Hugh Grant declarou, impassível: “Não suporto desordem nem feiúra.” Não se pode imaginar, na França, Christian Clavier ou Jean Dujardin dando esse tipo de declaração... Na Flórida, existem zonas childfree, condomínios com entrada proibida aos menores de 13 anos, destinados a trin tões que não suportam os inconvenientes ligados às crianças. Nos Estados Unidos e, mais recentemente, na Escócia, surgiram condomínios sem crianças, destinados aos aposentados: a demanda é bastante promissora. O “conceito”, tudo indica, agrada. Até agora, porém, não chegou à França. Os que o promovem têm medo de ser recebidos a pedradas.

Desestimular os pais em potencial  Este pequeno livro tem como objetivo desmotivar (no sentido de tirar a motivação) pais em potencial que ainda se perguntam se vale a pena ter filhos. Naturalmente, eles não têm a quem confessar suas dúvidas: não é coisa que se pergunte, pois ter filhos é bom. Existe, no entanto, uma quantidade de razões para se resolver não têlos — e mais razoáveis do que as normalmente usadas SEM FILHOS

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COm intenção inversa. Há, pelO menos, quarenta delas, que serão detalhadamente descritas mais adiante. Chega de discursos melosos sobre a felicidade da profissão pai mãe. Diante de tanto entusiasmo e de bons sentimentos obrigatórios, dizer “argh” a essa nurseryland é algo urgente e necessário. E sei do que estou falando. Filhos? Eu mesma tenho. Há coisas de que só uma mãe de família pode falar, se tiver coragem de fazer seu coming out.  Se assinasse este livro sem ter filhos, todo mundo acharia se tratar de alguma solteirona amarga e invejosa. Nesse caso, talvez me acusem de ser uma mãe indigna. Assumo o risco. Tendo traído a empresa onde trabalhava ao escrever meu livro Bom-dia,  preguiça , denuncio aqui um clichê da família que só existe nas revistas. Aproveito para fazer pouco de uma certa França prónatalidade e autosatisfeita, cujas únicas metas são o trabalho e a reprodução. E é exatamente o sinal de uma incômoda regressão: o que pode ser mais deprimente do que um país dobrado à reprodução da mesmice, sendo essa “mesmice” sem graça e prosaica?

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O “desej o por cr i anças ”: Uma aspiração ridícula

Querer a todo custo Se reproduzir é um Objetivo formidavelmen te banal. Mas tudo indica que “fazer como todo mundo” e imitar o vizinho tranqüilizam. Estar “inserido” na sociedade, hoje em dia, significa ter um emprego e/ou um filho. Assumam isto e não se cansem de confirmálo. Para estar nessa, quem não consegue ter filho dá mostras de uma perseverança procriadora que desafia qualquer entendimento. Os obnubilados da reprodução enfrentam os obstáculos dos que lutam por tratamentos contra a esterilidade. E com a cumplicidade de médicos um tanto desarmados, como todo mundo, diante de uma ciência que avança com velocidade. O “desejo por crianças” é tamanho que elas se tornaram um negócio dos mais rentáveis e em forte ascensão. Óvulos, esperma e bebês são vendidos diariamente no mundo inteiro e úteros são alugados por nove meses. As clínicas especializadas vão de vento eni popa em todo o planeta. Os preços variam de acordo com a

“cotação” do produto: bebês brancos custam mais caro do que bebês negros. Nos Estados Unidos, os óVulos de uma estudante de Columbia Valem menos do que os de uma estudante de HarVard. O “bebê business” é menos desenVolVido na Europa e, oficialmente, não existe na França: o Estado, impondose como guardião do “bem” e da ética, Vigia. A idéia de crianças para todos e a qualquer preço gerou uma quantidade de discursos Vulgares e caricaturais. Escolha um campo, camarada; nunca se tem certeza do pior, mas da idiotice, sim. Na mão esquerda, tenho o fabuloso “direito ao filho”. Reivindi cação sagrada, podiase quase esperar que estiVesse inscrita no preâmbulo da Constituição. O filho é algo tão indispensável e maravilhoso que todo mundo deveria ter “direito” a isso. Quando virá o “direito inverso” à criança? Inverso a quem, exatamente, não se sabe, porém os mais brigões e inclinados a reparações judiciais vão certamente descobrir. Não tendo mais meus pais, pois os dois já morreram, posso reclamar um “direito a pais”? E fazer uma greve de fome para que a justiça seja feita e me deleguem... outros pais, na falta de poderem trazer de volta os verdadeiros, pelo menos enquanto a ciência não for capaz de ressuscitar os mortos. Voltemos à vacafria: o filho não é um direito nem uma necessidade. Ele é simplesmente... uma possibilidade. Mas, à minha direita, o que tenho não é melhor. A criança motiva, na França, discursos de uma cafonice infame. A família que garante a felicidade das crianças compõese de papai, mamãe e ponto final. Aceitar que duas pessoas do mesmo sexo adotem e criem uma criança é impensável, já que é o futuro dessas nossas queridas cabecinhas louras que está em jogo. Pelo viés do discurso de oposição à homopaternidade, é evidente que se faz uma chamada geral à ordem, dirigida a todos os “fora da norma”. Uma chamada à ordem que conta com diversos agentes: os  psis,  que, em nome do Edipo, dão sua opinião sobre o que quer que seja, 24

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e Os antropólogos, que tudo sabem sobre o Homem. Os políticos são os primeiros a se servirem das Crianças para uma normalização da população (nada de inseminação artificial para mulheres sozinhas, nem acesso aos métodos de fecundação com reconhecimento de paternidade para casais homossexuais, embora tudo isso seja possível em Vários outros países europeus). Resumindo, como cantaVa Patrick Bruel, “Qui a le droitT   [Quem tem direito?]. O que é o direito ao filho e quem tem direito de nos dizer o que fazer?

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O  parto: U ma tortura

As alegrias do parto são uma propaganda totalmente enganosa. Exceto para algumas mulheres, cujos corpos provavelmente foram projetados a partir de um modelo tubiforme, o parto dói. Aliás, dói muito. E claro, a ajuda da peridural (anestesia local) é de grande Valia, mas, mesmo assim, o parto está longe de ser algo agradáVel. Pessoalmente, o parto foi a experiência mais dolorosa da minha existência — é Verdade que bastante privilegiada. As mulheres que dizem “o parto foi o mais belo momento da minha vida” parecemme suspeitas: desde que passei por isso, tenho certeza de que mentem. Algumas, de forma mais prudente, declaram: “Não me lembro de nada”; o que muitas vezes significa: “Não quero falar disso ” A realidade é que OpartO dura horas, às vezes um dia inteiro. Ficase imobilizada como um grande escaravelho, com um tubo enfiado nas costas. As contrações dão a impressão de que a barriga vai explodir por dentro... Um parto é dor, sangue e cansaço (e

cocô também, ao que dizem, mas isso é um brinde para a parteira Ou O médico). VOcês lembram a cena dO filme Alien  em que um monstro sai do corpo de um dos personagens, rasgandolhe a barriga? Sabem por que essa cena é superconhecida? Simplesmente porque é muito próxima da realidade da nossa chegada ao mundo. Mas é depois do parto que o pior começa. A sensação de esgotamento. As dobras na barriga, que nunca Vai Voltar a ser a de antes. Enfrentar aquele rascunho de ser humano pelo qual Você passa a ser responsável por anos intermináveis. Michel Houelle becq evocou, em A  possibilidade de uma ilha , a “legítima repulsa que invade todo homem, normalmente constituído, ao ver um bebê”. De fato, um recémnascido que acaba de vir ao mundo é tão feio que dá medo: com o rosto avermelhado e molengo, traços inexistentes e o olhar velado por uma opacidade azulada, tudo nele deveria inspirar rejeição. Os jovens pais que cada vez mais freqüentemente enfeitam os cartões de aviso de nascimento com fotos dos seus rebentos não parecem se dar conta de que são os únicos (com seus próprios pais) a quem esse tipo de clichê agrada. A sociedade, no entanto, adula os bebês, e é de bomtom se pôr em adoração diante de toda larva humana de poucos dias. A mim, fingir cansa cada vez mais e, quando confessei à minha prima, que acabara de dar à luz, não me interessar por recémnascidos, ela estampou um ar constrangido diante do flagrante crime de lesobebê. Chega de bebês! Na televisão, na publicidade, eles estão em tudo — “por acaso”, no entanto, não são os recémnascidos, pois mostramse bebês de alguns meses, já apresentáveis. É claro, quanto mais se exibem bebês, mais o envelhecimento e a morte se ocultam, deixando de suscitar pavor. Haveria uma ligação de causa e efeito? Darseiam a mão a infantomania e a 28

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gerontofobia? ProVaVelmente. ViVa a juventude, abaixo a Velhice e, sobretudo, a morte, que não tem mais valor algum para nós. E, no entanto, no século XIX, quem gostava de moribundos fazia a festa: adoravase pintar, esculpir e fotografar os mortos. Hoje em dia, somente os defuntos célebres nos interessam, sobretudo o expresidente da França François Mitterrand, talvez porque o considerassem “Deus”...

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Evite se tornar uma mamadeira ambulante

Os profissionais da infância insistem: amamentar é o máximo. Breast is best   [Peito é melhor], como dizem os britânicos. Como no tempo das cavernas, da Vida natural, ao ar liVre, sem pesticidas nem transgênicos. Se nos anos 196070 amamentar tinha saído um pouco de moda, voltou com toda força nos últimos anos. Nem se contam os artigos enaltecendo as vantagens do seio que amamenta. O bebê será “menos doente”, “menos alérgico” e, além disso, “nada substitui a ligação com o filho”. Na França, 60 por cento das mulheres que têm filhos dão o próprio leite — por apenas algumas semanas, é verdade. E um objetivo do poder público chegar à marca de 70 por cento até 2010. Visto que explicar não basta para convencer as mais teimosas, consideradas “mal informadas”, ajudase com o cofrinho. Em 2003, a Caixa Primária de Segurosaúde da região de Morbihan decidiu conceder um “prêmio aleitamento” para quem ama mentasse o filho por pelo menos uma semana. Quando virão

as reduções de impostos para a amamentação? E por que não um prêmio para quem recusar a peridural, já que o parto sem anestesia é “mais natural” e, proVaVelmente, “melhor” para o bebê? Quando expliquei, na maternidade, que para mim estaVa fora de questão amamentar, a puericultora me lançou um olhar cheio de censura, dizendo que não era bom. Um mês depois, o ginecologista me acusou de estar “negando a ligação” com a criança. O círculo se fecha em torno das mulheres indignas que dão a mamadeira: amanhã Vão discriminálas nas ruas. Pois alimentar uma criança com mamadeira é um ato marcado pela culpa. É um crime contra o natural. Estudos demonstram que são mulheres sem diploma e que não ViVem no espaço urbano as mais contrárias à amamentação: o “natural” as atropela o dia inteiro, Vocês então podem imaginar... Mas, afinal, que “natural” é esse de que nos falam? São naturais a nossa alimentação, as nossas roupas, o telefone celular, o avião, o bronzeamento com luz ultravioleta? Que é isso?! Somos bombardeados por produtos químicos e, quando ouço a palavra “natural”, acho graça. Aliás, admitindose que a amamentação seja “melhor” para a criança, seria uma boa idéia gerar pessoas de 100 anos? A expectativa de vida, como a que se tem atualmente, nunca foi tão alta; devese, amanhã, ficar mais velho ainda? Lembrome do total estado de decrepitude do meu pai aos 90 anos e não tenho certeza de querer viver tanto assim. Aliás, não pretendo parar de fumar, o que já quer dizer muito. Amamentar é uma escravidão. Para começar, dói. Além disso,  já viram o peito de uma mulher que amamenta? Não dá muito apetite. Seios feridos por estrias, leite que sempre escorre dos bicos, argh, argh. Além disso, a mãe está sempre totalmente disponível para o recémnascido, presa o tempo todo. Adequável e 32

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escraVizáVel à VOntade, não tem sequer direito a uma cerVeja Ou a um aperitiVo, pois é proibida qualquer absorção alcoólica, que passa para o leite... Perguntei a uma amiga por que ela amamenta Va e ela respondeu, com um seco tom de crítica: “É uma escolha pessoal.” Mas não é mesmo; tratase cada Vez mais de uma obrigação coletiVa.

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Continue a se divertir 

Ter filho é um engajamento incondicional e irreVogáVel. Tomar essa decisão, então, é a coisa mais ameaçadora para os nerVos, em toda a existência. Conscientizarse disso ocasiona um grande choque: a depressão pósparto e as crises conjugais subseqüentes são doenças particularmente modernas, decorrentes do luto que se impõe em relação à Vida pregressa. Dali para a frente, as atividades liVres e de improViso de que Você deVerá desistir Vão se multiplicar. Você vai passar a viver no tempo de um outro, no tempo da criança, recortado em rígidas camadas controladas pela disponibilidade da babá, pela abertura da creche e pelo calendário escolar. A seguir, certas coisas que se tornam raras quando se tem o encargo (a carga) de um filho. — Dormir uma noite inteira (é pouco freqüente nos primeiros meses).

Permanecer na cama pela manhã (é difícil até a idade dos 8 anos, pois a “pulguinha” lhe salta em cima lOgO aos primeiros raios do dia). ResolVer ir ao cinema na última hora. Ficar na rua após a meianoite, pois é preciso liberar a babysitter.  Quem chega depois da meianoite está condenado a leVála em casa de carro ou lhe pagar o táxi. Ir a um museu ou uma exposição, já que as crianças começam a berrar após cinco minutos. Viajar para um lugar diferente daqueles mais idiotas, onde há mar, praia e um clube infantil. Partir fora do período das férias escolares (isso concerne a todos que têm filhos entre 5 e 18 anos). Beber antes da hora da última mamadeira, pois acompanhar uma criança à cama em estado de embriaguez é algo que não se faz. Fumar na frente dos filhos, pois hoje em dia é um crime contra a humanidade.

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Condução, trabalho ,  fi lhaTada: N ão , obrigada! 

A Vida com filhos é uma Vida banal: Você acorda todos os dias na mesma hora para leVálos à creche, à babá ou à escola. Depois Vai para o trabalho e, em seguida, à tardinha, Volta para casa e Vai se ocupar do banho, dos deVeres de casa, de preparar a comida e a cama das crianças. E é como se passam todos os dias.2 Os prisioneiros são deixados em liberdade condicional com uma pulseira de segurança que permite seguir todos os seus movimentos. Já você nem precisa disso. O filho é a sua corrente nos pés. As suas “pistas” estão garantidas. Na exUnião Soviética, o regime deixava alguns privilegiados viajarem para o Ocidente, mas os filhos ficavam em segurança, atrás da cortina de ferro; era um bom meio de se evitarem deserções. Procure o filho e encontrará os pais. Está

‘ Eliette Abécassis, em seu romance Un heureux événemerlt   [Um acontecimento feliz], descreveu o inferno da maternidade: as noites em claro, a liberdade que se vai, a tirania do cotidiano, a prisão domiciliar.

sendo procurado pela polícia na França? Graças aO seu filho, ela O encontrará sem dificuldade. Em BelleVille, bairro popular de Paris, os semdocumentos eram presos na saída das escolas quando iam buscar os filhos. Douce France , paraíso da infância. Há maridos que desaparecem dizendo que Vão comprar cigarros, prisioneiros que escapolem da guarda e Velhotes que tomam um chá de sumiço do asilo. Mas pais que pulam fora sem aVisar nada são raros. E uma boa idéia para um filme, mas não creio que um roteiro com esse argumento consiga apoio do Centro Nacional do Cinema.3 DeVido a essa presença obrigatória, ter filhos é extenuante. Na época em que eu tinha um emprego em tempo integral e meus filhos eram pequenos, calculei que trabalhava setenta horas por semana. Quarenta horas no escritório e mais trinta ocupandome das crianças. Três horas todas as noites destinadas a cuidar deles — e isso, cinco dias da semana, mais sete horas no sábado e o mesmo no domingo. É muito. Felizmente embromava no trabalho, ou não agüentaria tal ritmo. De alguns anos para cá, os pais, não podendo dar conta disso tudo, encontraram uma solução: a guarda alternada. O filho passa uma semana com o pai e depois uma semana com a mãe. É uma espécie de meio expediente familiar. É verdade, isso pressupõe que o casal se separe antes, mas este é um detalhe simples, comparado àquilo de que se escapa: o inferno das tarefas domésticas infindáveis, cada uma mais alienante que a outra. Afinal, a igualdade tem um preço, e a divisão igualitária das tarefas só acontece realmente se o casal se separa.

3E menos ainda da Comunidade Européia. Esta última aprecia, cito de memó ria, projetos “de alcance humanista e que dêem uma imagem positiva da huma nidade’'. Pode-se imaginar: Pasolini ou Fassbinder nunca teriam conseguido um centavo. E verdade que não faziam filmes para jovens.

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Algum ingênuo pode me dizer: “Ah, mas cuidar de criança nãO é trabalho/7É sim: criar filhos significa respeitar horários, assumir trabalheiras inadiáVeis; comporta suor, lágrimas e chateações garantidas. Aliás, na Áustria, as mulheres podem agora contabilizar o tempo dedicado aos filhos na soma dos anos para a aposentadoria. Se cuidar de crianças fosse tarefa agradáVel e gratificante, as pessoas fariam isso gratuitamente, mas não é o caso. Ninguém Vai querer cuidar dos seus filhos sem uma contrapartida financeira (exceto seus próprios pais, que querem outro tipo de pagamento: falaremos disso mais adiante): a puericultora, a professora, a babá são remuneradas. Mal remuneradas, pois todas as profissões ligadas à infância são desvalorizadas — os “profissionais da infância" ganham menos do que os que cuidam de adultos. Os psicólogos infantis não gozam de menor consideração do que os psicanalistas para adultos, assim como os professores primários com relação aos universitários? E por quê? Porque assumem uma tarefa incômoda e ingrata. Criança, triste paraíso.

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 Sai ba manter seus ami gos

COmO se sabe, Oamor imbeciliza as pessoas. NãO há quem agüente Oapaixonado que fala de sua Dulcinéia por duas horas a fio, contando suas qualidades e citando suas graças. O mesmo acontece em relação aos pais maravilhados, admirados com o produto das suas entranhas e que enchem todos em Volta pelo excesso de deVoção parental. O escritor Courteline foi enfático a esse respeito: “Um dos mais claros efeitos da presença de um filho num lar é o de completamente idiotizar alguns pais que, sem isso, seriam simples imbecis/' O drama começa na fase dos cartões de nascimento enViados: não são mais EVeline e Jacques que anunciam a Vinda ao mundo de Antônio, mas Antônio que aVisa ter chegado à casa de EVeline e Jacques. Os pais, encantados, fazem circular na internet fotos piegas de família, mostrando a quem quiser (mesmo que não queira) Vídeos do filho tomando banho ou desembrulhando os presentes de Natal. Colocam no Vidro traseiro do carro um piás

tico “bebê a bordo”: uma espécie de “santinho” dos tempos modernos, tão útil quanto um amuleto mágico para afastar energias negativas. Tomam ao pé da letra todo mundo que educadamente pergunta “como vai o neném?”, assim como se dissesse “bom dia”, sem necessariamente esperar resposta. Pois os pais babões sentemse obrigados a manter a Terra inteira a par dos progressos incríveis da prole (“Oscar está fantástico”; “Alice está trocando a noite pelo dia”; “Noé desenhou um boneco de neve que parecia de verdade”; “Ontem Ulisses disse papaicocô”; “Malu passou para o Jardim 2”). Nada é mais limitado do que a conversa de pais siderados por terem conseguido fabricar um ser humano. Por isso, quando surge a criança, os amigos somem. É verdade que muito rapidamente é o fofinho que atende o telefone, o que torna difícil falar com os pais: Júlio (a não ser que tenha sido a irmãzinha Melissa) organizou uma triagem supereficaz de todas as ligações que não lhe dizem respeito, desligando assim que ouve uma desconhecida voz de adulto. Há uma cena muito engraçada em Caro Diário , de Nanni Moretti: de saco cheio, o personagem principal do filme acaba desistindo de falar com os amigos. Outro tipo de obstáculo constrangedor: a voz infantil tatibitateando na secretária eletrônica dos pais, dizendo que eles não estão em casa. Isso significa, para o amigo childfree : meu filho conta mais, para mim, do que o restante do mundo. Não há diálogo possível entre pais recentes e uma pessoa sem filho, mesmo que uma consideração recíproca os devesse aproximar. O childfree  tem uma visão bem lamentável da vida sem atrativos dos pais (“O coitado, entre berros e fraldas, não tem mais um minuto próprio”), enquanto os pais lamentam a “solidão” do outro (“Coitado, na sua idade, não ter filhos, que tristeza”). E um total malentendido, com cada campo achando que o outro perde as boas coisas da vida. À minha esquerda, estão as saídas de última 42

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hora, Os fins de semana de namoro, as manhãs longas e preguiçosas e as noitadas Com amigos; à direita, a catapora de Oscar, as aulas de Violoncelo de Leo, a baby-sitter   que não Veio, a creche em greVe, os deVeres de casa de Max. Acham tratarse de um jogo equilibrado? Cabe ao leitor julgar. Você já Visitou pais recentes, com sua prole em casa? E incrí Vel. Chegase por Volta das oito da noite e as crianças, é claro, ainda não estão deitadas, pulando por todo lado, aos berros. Impossível qualquer conversa tranqüila entre amigos, pois os diabinhos correm sem parar, urram, fazem todas as besteiras do mundo para chamar atenção, jogam os brinquedos nos pratos de salgadinhos. Os pais tentam acalmálos com longas explicações que não convencem ninguém — “Filhinha, são dez horas e seria bom que fosse dormir, pois o sono é necessário”. E os convidados devem manter as aparências, sem demonstrar irritação. No fim de uma hora de pandemônio, o convidado se controla para não dizer “Se não se acalmarem, vou embora”. Mas em seguida vem o ritual de se deitar, levando cerca de uma hora até que os monstrinhos finalmente durmam. Os pais se sentem obrigados a fazer com que a criança se sinta amada, apesar de já terem dito isso o dia inteiro. Durante todo esse tempo, o convidado se controla, perguntando se por que não preferiu ir ao cinema... Quando, graças a Deus, a visita termina, ele dá um suspiro de alívio e (enfim) acende um cigarro na rua, para relaxar: é claro, não pôde fumar a noite inteira, pois isso é péssimo para as crianças. Imaginemos que o convidado, que acaba de sair fumegando de irritação, tivesse aceito passar um fim de semana em família. E quando as coisas se tornam francamente insuportáveis. Bramidos à mesa, gritos à noite, pais irritados, respeito religioso pelas horas da sesta: são coisas que estragam qualquer fim de semana. Mas o pior é que o convidado passa sempre para segundo plano, em comparação às crianças. Seu bemestar, fica claro, não tem tanta SEM FILHOS

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importância. Ele, entãO, terá que suportar uma série de coisinhas desagradáveis e aborrecimentos, como a porta do quarto do bebê aberta, pois o queridinho suporta mal o calor, e a impossibilidade de se fazer isso ou aquilo, que “pode irritar as crianças” etc. Um dia, com os filhos crescidos, o casal aqui descrito (qualquer semelhança com pessoas reais não é mera ficção) vai se encontrar sozinho e sem amigos, numa casa de subúrbio, contando o tempo que falta para a aposentadoria. E assim que vivem os homens (e as mulheres)... quando têm filhos? É de estremecer de medo.

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Não aprenda a língua idiota usada para se dirigir às crianças

Existe uma língua especial para se comunicar com as crianças. Você realmente tem Vontade de aprendêla? Vou explicar os rudimentos. E um idioma que baniu o imperativo, improvisando no lugar outros modos verbais. Não se diz “Camila, dê boanoite e vá se deitar”, e sim “Camila, você diz boanoite e sobe para se deitar”. O que mais se usa é: “Você se acalma?” Ou então: “Vamos nos acalmar?” Repetese isto como um mantra, mas, em geral, permanece letra morta. Quando o imperativo é aplicado, fazse, às vezes, de forma errada: “Sentado!” (em vez de “sentese”) tornouse uma espécie de refrão. Em geral, falase com a criança no presente. É mais simples. E o futuro se esvai lentamente: “Papai chega daqui a pouquinho”; “Amanhã você faz seus deveres”. Quanto ao passado, deve se limitar ao bem recente: “Você arrumou seu quarto, Melissa?” Com crianças, a língua parece uma cançoneta de dois tempos. Procurase não imbecilizar mais as crianças. E frases do tipo meu bebezinho está com o pezinho e os dedinhos frios” foram

banidas. É piegas. Além disso, atrapalha O desenVOlVimentO da criança, que deVe entrar com tudo na língua de Verdade, a de gente grande. POr issO, deVese falar com elas. De tudo, nãO importa o quê. Nada mais ridículo do que certas mães de família que fazem grandes discursos a pirralhos de duas semanas que nada podem fazer: “Mamãe Vai mudar sua fralda, KeVin, Você fez um coco zão, mamãe Vai mudar a fralda e depois a gente Vai Ver a VoVó, sabe, a VoVó que mora naquela casa grande, aquela casa perto da estação...” Isso pode durar horas. Algumas falam baboseiras assim, ridículas, em público. E preciso realmente ter um cocozão na cabeça, é o caso de se dizer... Mais tarde, com as crianças um pouco maiores, é possível ou Vir pais assim dizerem, com toda meiguice: “Cassandra, se você queimar o pêlo do gatinho, ele vai morrer, e você não quer que ele morra, não é?” E isso diante de uma criança horrível, ocupada simplesmente em torturar o gato do vizinho — o qual, felizmente, sabe se defender. Nunca, em todo caso, tabefes nem gritos: é pela persuasão que se deve agir, “devese explicar”. De preferência ajoelhandose no chão, para estar na mesma altura da criança, ou ela pode se sentir inferiorizada. Pais bemintencionados se esforçam para inventar formas de autoridade que não existiam quando eram pequenos, visando convencer, mais do que serem propriamente obedecidos. Curiosamente, acontece o mesmo no mundo empresarial, onde a autoridade é substituída pelo diálogo, e o diálogo pela comunicação. A criança dá o troco ao adulto na mesma moeda, tomandoo por imbecil e falando uma língua parecida. A conversa das crianças é cheia de perguntas descabidas, do tipo: “Na piscina, quando você relaxa, consegue afundar sem se mexer?” Ou: “Queria que lhe injetassem no coração um negócio superdoído para você se transformar em árvore?” Precisei de anos para dizer a meus filhos que não tinha vontade de responder. Na verdade, nossa época é 46

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contra isso. NãO se pode mais dizer a uma criança: “Cale a boca, estou pensando em coisas importantes.” Então, é simples, a gente não escuta: meus filhos sempre me acharam distraída. Na Verdade, quando eles falam comigo, muitas Vezes penso em coisas agradáveis, liVros a escrever, férias sozinha com um belo desconhecido numa ilha de sonho, ou em uma simples noitada beaujolais nouveau  com as amigas. Ou seja, momentos sem eles. Quando crescem, as coisas pioram. O vocabulário que usam é terrivelmente reduzido, o discurso é entrecortado, e cada frase entremeada com uns “puta merda” bem sinceros. O uso compulsivo de “tipo isso, tipo aquilo” traduz a incredulidade diante da realidade que têm em volta: “Tipo, eu berrava no telefone...”; “Tipo, estou me lixando, não está vendo?”; “Ela disse, vou me matar e eu disse, espera até amanhã, que hoje estou exausta”; “Sinistro, eu vi e foi um auê, viu só?”; “É como, nem sei, tipo quando te colocam com um cara, você tenta se adaptar, nem sei”. Se encontrasse alguém se exprimindo assim, num jantar ou num bar, francamente, teria vontade de manter uma conversa? Com certeza não. O diálogo paisfilhos faz com que a gente se sinta como se estivesse o tempo todo num jantar com um bando de idiotas.

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O quarto de br i nquedos é o f i m da bri ncadei ra

Deixe de lado a VisãO idílica das crianças: criar um filho é uma guerra. E isso não é só uma imagem. Cada Vez mais as crianças batem nOs pais. Enquanto nãO têm idade para acertar as contas, sua “doçura” Vai obrigálo a repetir sem parar: “Trate de se comportar direito”; “Não ponha lenços de papel usados em cima da mesa”; “Feche a boca quando mastiga”; “Arrume seu quarto”; “Jogue fora os lenços de papel usados”; “Vê se faz o dever de casa”. Para testar o poder sobre você, a criança vai tentar desmoralizálo exatamente no ponto em que vócê der mostras de desgaste. Lidar com várias crianças significa o dobro, ou mesmo o triplo do trabalho, sobretudo no caso de famílias recompostas que se orgulham do seu lado “moderno” — na falta de saber como qualificálas de forma mais inteligente. A família recomposta quer dizer, para a mulher, criar seus próprios filhos, além daquele ou daqueles do outro. Por que não uma colônia de férias inteira a suportar, já que é assim?

O pior é que a criança sabe como estar presente para lhe impedir qualquer prazer. É a sua face oculta. Acredite, ela se mostra muito criativa nesse campo. Vai ficar doente quando Você (enfim) puder sair para se divertir, Vai irritálo quando for comemorar seu aniversário com os amigos. Detesta que traga para casa um(a) desconhecido(a); aliás, você já nem pensava mesmo nisso, com medo de “traumatizála”. Além disso, ela vai conseguir se pôr a berrar precisamente quando você for se deitar com a tal amiga, ou amigo. E isso se ela dormir no próprio quarto, pois muitas crianças dormem na cama dos pais: 12 por cento dos pais americanos confessam que passam a noite com seus bebês.4 Podese imaginar o quão intensa é a sua vida sexual. Adeus carinhos, que tristeza! O que seria mais insuportável para a criança, sozinha na própria cama, do que imaginar o pai ou a mãe fazendo amor? E impensável. Além disso, talvez seja este o sentido do mito inventado por Freud em Totem e tabu:5 os filhos matam o pai porque o cretino leva uma boa vida, com todo o mulheril que ele tem, e isso é um escândalo inaceitável. Até a década de 1970, os pais davam o troco na mesma moeda, fazendo pesar sobre os filhos um controle sexual injusto, mas firme: nada de relações sexuais antes do casamento, nada de boogie-woogie   antes das orações da noite. A atividade sexual dos jovens, sobretudo das meninas, era cuida 4 De acordo com um estudo do Instituto Nacional de Saúde Infantil e DesenVolVimento Humano. Isso chega a tal ponto que pais americanos cada Vez mais apelam para  sleep consultants  que tentam desabituar a criança ao sono em suas camas. 5Concordo que a leitura que faço de Totem e tabu  é bem pouco ortodoxa. (O leitor culto está familiarizado com a seguinte análise: em Totem e tabu , Freud explicou que a morte do pai e o banqueteamento canibal que se seguiu não so mente instituíram a proibição do incesto, mas deram origem às relações parentais baseadas nas trocas homem-mulher. Além disso, teriam igualmente lançado os fundamentos de todas as religiões, uma Vez que elas representam e reproduzem simbolicamente a morte e a deVoração do pai. 5°

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dosamente controlada. No fundo, faziase justiça. Um tomalá dácá: “Você me impede de ViVer minha Vida e eu ponho sérios limites à sua liberdade.” Uma batalha. E a repressão sexual não era motiVada apenas pelo medo de uma graVidez indesejada. Pois durante quase um século, o XIX, pais e educadores uniram forças para lutar contra uma terrível ameaça, a masturbação dos filhos, que se supunha prejudicar a saúde da juventude, roubandolhe as forças. Hoje em dia, não se entende muito bem por que a punheta atemorizava tanto a sociedade da época. Vamos arriscar uma explicação. Ela parte de uma constatação lapidar e forte: um só não é bom, dois é melhor. Seguindo a mesma ordem de raciocínio, a clonagem, tão malfa lada, está para a reprodução como a masturbação para a sexualidade. Ter um prazer solitário, fazer um filho com os seus próprios genes apenas, é o mesmo combate — e o mesmo escândalo. Por quê? Porque não é aconselhável fazer sozinho o que se pode (e deve) fazer a dois. É uma bela maneira de diluir no casal a individualidade que, deixada por sua conta, pode levar a não mais se aderir aos fundamentos da sociedade, a ponto até — que horror! — de cessar a reprodução. Que relação tem isso com a criança? O discurso meloso e protetor da sociedade em relação a ela mal esconde a imposição “trate de andar direito”. Assim que foi anunciado um certo bebê clonado pela seita dos raelianos,* a imprensa se referiu a “transgressões de todas as leis relativas à experimentação humana”, a “algo irreversível que se produziu”, à “abominação, monstruosidade, a um atentado contra a ética”. Por que tanta celeuma por um bebê clonado da própria mãe? Falando sério, de qualquer maneira somos todos clones, não

Seita criada na França pelo ex-cantor e ex-jornalista esportivo Claude Vorilhon (que mudou o nome para Rael) após uma abdução que o levou a um planeta onde conheceu Buda, Moisés, Jesus, Maomé etc. (N. do T.) SEM FILHOS

dos nossos pais, mas de algum Vizinho Ou colega. As palavras de Ordem não são mais “amemse uns aos outros”, mas “pareçamse uns com os outros”. Assim como os tomates, as ervilhas ou as batatas: tudo precisa ter a mesma dimensão para caber em caixinhas.

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O  fi lho: U m estr aga- pr azer es

O  filhO nem sempre acaba com Oamor, mas muitas Vezes acaba

cOm Odesejo. O atentado estético contra o corpo da mulher a faz, durante Vários meses, parecer um bicho grande, disforme e engordado à força. Por tudo isso, ela fica obrigada a se Vestir como um saco. Por mais que nos repitam que mulher grávida é maravilhosa e exuberante, pessoalmente tenho muitas dúvidas: grávida, não era bem como eu me sentia com aquele tonel crescendo abaixo dos meus seios. Muitos depoimentos obtidos de amigas, entre a sobremesa e o cafezinho, me convenceram de algo raramente enfocado pelas revistas “pais e filhos”: muitos homens até acham bonitas suas namoradas ou esposas esperando filho, mas nem por isso têm tanta vontade assim de fazer amor com elas. Muitas vezes, então, é na gravidez que começa um longo inverno sexual. Uma notícia ruim que não vem seguida por uma boa, como nos seriados americanos. Não, essa privação não vai acabar quando a criança nascer. Ninguém tem vontade de fazer

amor após uma episiotomia, e mesmo que tenha, isso dói durante Várias semanas. Não sabe o que é uma episiotomia? Tratase, diz o dicionário, de “uma incisão do períneo, partindo da VulVa, praticada por ocasião do parto”. Ou seja, minhas senhoras, maltratase ferozmente a parte mais íntima do seu ser, aquela que, em geral, lhes permite gozar, mesmo que — e felizmente — haja outras. Segundo os médicos, a episiotomia é uma interVenção benigna; ela é freqüente pelo menos para quem escapa dos estragos da cesariana, que, esta sim, é uma Verdadeira operação. Seria a episiotomia um mal menor, mais ou menos como ter Votado em  Jacqu  Jac ques es C h ira ir a c para não ter L e Pen com co m o presidente presid ente da Rep R epúb úblilica? Mas isso é motivo para festejar? Não se tem vontade de fazer amor entre duas fraldas a trocar, depois de uma mamadeira a ser dada em plena noite, tendo passado por três horas de trabalho em casa após um expediente no escritório. Não se tem vontade de fazer amor tendo em volta o alvoroço de pirralhos brigando. Isso se agrava quando se mora num apartamento apertado, com as crianças aprisionadas num mesmo quarto, que não fica longe do dos pais. Podem imaginar um filme como Nove semanas e meia de amor   com crianças no quarto ao lado? A temperatura abaixa imediatamente nove graus e meio, mesmo com atores supersensuais. Adeus, erotismo.

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D obr am os os si nos par par a o cas cas al

BOmdia, filhO, adeus, sexo, adeus, casal. Este último não é sOlúVel na família. O desejo, que tem a Ver com a surpresa, o imprevisto, a capacidade inventiva dos parceiros, vai se reduzir muito quando tiverem um filho ou, mais ainda, dois. Com crianças a tiracolo, você se torna, antes de tudo, um “papai” ou uma “mamãe”. Você deixa de existir na primeira pessoa. Ao se dirigir ao filho, você mesma diz: “Mamãe não concorda que você ponha suas melecas no quadro, Ulisses.” No final de alguns anos, vão ver, serão unicamente “papai” e “mamãe” e, vinte ou trinta anos depois, já avós, “Jacques” e “Eveline”. A prioridade dada à criança é o que faz dobrarem os sinos para o casal? Muitas vezes, sim. Quando se tem filhos, deixase de ser a ]ovem um tanto volúvel que se divertia com as amigas e provocava 0 namorado; deixase de ser o rapaz impetuoso que levava vida boêmia e nem sabia a quantas andava, no final do mês, sua conta no banco. Jacques e Eveline serão avós, mas não obrigatoriamen-

te estarão juntos. Estatisticamente, têm pouca probabilidade de envelhecerem um ao lado do outro: a criação dos filhos os esgotou. Não souberam guardar recursos suficientes para si mesmos. Ele só enxerga nela a matrona que cuida da casa, do controle do dinheiro e das crianças. Ela só enxerga nele o bonachão que tem às vezes alguns casos bem sem graça, faz uns consertos na casa no fim de semana e gosta de cozinhar de vez em quando. Cinderela se transformou numa barrica e o príncipe encantado em sapo. Ao observar outros casais se tornarem pais e afundarem totalmente em seus papéis, eu ingenuamente acreditei que eles tinham caído na armadilha, mas que isso não aconteceria comigo. Erro: aconteceu comigo também. Quase não me olho mais no espelho, uso sapatos baixos, deixo de lado minhas lentes de contato (que ressecam no estojo) e só compro roupas uma Vez por ano. Meu companheiro, para começar, é o pai dos meus filhos e uma boa parte das nossas conVersas gira em torno deles. Quando um homem me dirige a palaVra, num jantar, nunca me passa pela cabeça que esteja me paquerando. E quando é o caso, leVo meses para me dar conta. Conseqüência: em cada dois casais, nas cidades grandes, um se divorcia ou se separa. Esses rompimentos acontecem, sobretudo, entre os casais mais jovens. Um número cada vez maior deles se separa com os filhos ainda bem pequenos: estatisticamente, é por volta do quarto ano depois do nascimento do primeiro, ou pouco tempo depois do segundo que tudo desanda. Desejar ou conceber; muitas vezes, é preciso escolher...

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 SeT ou fazer: N ão se si nta obrigado a escolher 

Por muito tempo o recémnascido foi considerado um simples tubo digestiVo, correspondendo à exclusiva definição que os obstetras do século XX lhe deram: “Objeto necessário e indispensável na sala de trabalho.” Em menos de trinta anos, porém, ele se tornou algo precioso, dotado de personalidade própria. Muitos psicanalistas, inclusive entre os maiores, se esforçaram para explicar que os bebês, as crianças, não são simples objetos, mas sujeitos cuja singularidade deve ser respeitada. Isto é verdade, mas abriu espaço para um malentendido: os pais compreenderam que se deve valorizar o lado precioso da criança e se puseram a mimála como a menina de seus olhos. Nada, nunca, deve lhes faltar. Eles se esfalfam para preencher necessidades que ontem mesmo nem sequer existiam: e é uma felicidade satisfazêlas. Isso mesmo, repilam comigo, é uma felicidade. Além disso, os pais compensam na prática (cuidando dos filhos) o que perderam com o ser (o fato de serem pais). À pergunta

“O que é ser pai (Ou mãe)?” nãO há mais resposta Clara. Antigamente, Os pais eram papai e mamãe. Era bem simples. Hoje em dia, há cada Vez mais crianças que, para nascer, mobilizam um terceiro: o doador de esperma que substitui o marido infértil, a doadora de óVulo que substitui a mãe estéril, ou ainda a chamada barriga de aluguel, que permite a uma outra mulher ter o filho que se concebeu com o marido ou o companheiro. Passam a ser necessários três corpos, em Vez de dois, para fazer uma criança. O mesmo se passa com famílias recompostas, só que no campo social: o homem ou a mulher que conViVe com os filhos da companheira ou companheiro contribui para a sua “criação”. Quem é a mãe? A mulher que deu à luz uma criança gerada pela implantação do ÓVulo de uma outra mulher fecundada por seu marido é “inteiramente” mãe? Quem é o pai? O homem que aceitou a inseminação da companheira com o esperma de um doador anônimo é “inteiramente” pai? Tudo isso é extremamente complicado; o certo é que quanto mais as coordenadas parentais são imprecisas, mais investimos na missão de ser pai ou mãe, pois é o filho que serve de  point de capition ,* para a família. Hoje em dia, ele é o centro, tudo gira ao seu redor, e os adultos que exageram o Valor da criança formam combinações cada Vez mais Variadas. Felizmente, há uma referência: “Ter filhos é dar amor”, como escreveu um jornalista da revista Parents, uma publicação água comaçúcar para pais em crise de identidade. Uamour , toujours Vamour   [O amor, sempre o amor]: é simples e tranqüiliza.

* A expressão, que Vem do lacanianismo, é em geral deixada sem tradução nos textos brasileiros. Em  Seminári o  3, As  psi coses , o psicanalista francês definiu-a como “ponto de convergência que permite situar retroativa e prospectiVamente tudo o que se passa em determinado discurso” (Rio de Janeiro: Zahar, 1988). (N. do T.)

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12.

“A cr i ança é uma espéci e de anão chei o de ví ci os e com uma cr ueldade i nat a” ( M i chel H ouel l ebecq)  JeanJacques Rousseau moldou a Visão que temos da criança. Esse autor, que, no entanto, se liVrou dos próprios filhos, entregandoos para adoção, celebrou com sensibilidade a aliança entre a criança e o selvagem. Tanto um quanto o outro ViViam em comunhão imediata com as coisas, na apreensão da Verdade, numa pureza que a ciVilização não teria ainda afetado. Vamos falar sério. A inocência da criança, já dizia Santo Agostinho, Vem da fragilidade dos seus membros, e não das intenções. A criança é como o seu cachorrinho: se fosse duas ou três Vezes maior, seria um animal feroz — seu melhor inimigo. Muitos meninos e meninas entrevistados na teleVisão confessam ter desejo de ficar grandes e fortes para poder se vingar de professores e professoras, bater nos colegas e até mesmo matar figuras de autoridade, pais e dirigentes da escola. É o tema do filme Querida , estiquei o bebê : um cientista distraído, após um acidente no laboratório, vê o filho de 2 anos crescer vários metros e começar a semear o terror na vizinhança.

LembreSe da sua infância. Colegas que debochavam de VOcê, rOubaVam sua merenda e bolinhas de gude, falavam mal das suas roupas, deixavam claro que você não tinha “estilo”. Uma criança só pensa em roubar o brinquedo da outra, humilhála em público, bater. E vir choramingar em seguida junto aos adultos, contando maustratos, pois a criança adora fazer queixa. Por natureza, ela sempre se considera vítima, nunca responsável nem culpada. Le ram O senhor das moscas ? O edificante livro conta a história de crianças que chegam a uma ilha deserta e acabam matando umas às outras. Isso acontece no mundo real, com freqüência cada vez maior, e às vezes perto da sua casa. Em fins de dezembro de 2006, um aluno de 12 anos foi morto na cidade de Meaux, a pontapés, por dois colegas de 11 anos. Alguns meses antes, uma espanhola de 13 anos foi espancada por três meninas da mesma sala de aula, a ponto de ter a perna direita fraturada em vários lugares. Senhor, perdoai essa infância. A criança é um lobo para a criança. Mas também é um mal maior para os adultos. Viajar de TGV, o trem de alta velocidade francês, ao lado de crianças pequenas é uma prova para os nervos: gritos, espirros de refrigerante nas cortinas, pontapés nas poltronas. Por um bom tempo, a única maneira de evitar tais incômodos era optar pelo vagão dos fumantes, mas não existe mais. Sugiro que a companhia de trens, a SNCF, venda passagens Sem  filhos.  Passaria por um certo desgaste: seria a garantia de morte do “politicamente correto”, mas um sucesso indiscutível. Pior do que viajar de trem, morar no apartamento embaixo de uma família com criança(s), num prédio com péssima acústica, é um calvário: dêem boasvindas à gritaria, aos móveis arrastados no chão, aos brinquedos lançados com violência que o acordam brutalmente assim que o dia amanhece. Há quem se veja obrigado a mudar de casa; tenho exemplos disso. 6o

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DO mesmo mOdO, morar perto de uma escola é sinônimo de chateação. Um pequeno exemplo real, tirado da Vida cotidiana, que é fonte inigualável de informações preciosas. Esse pequeno fato anódino tem a ver com os transtornos causados pelas crianças na saída da escola. Pais receberam a seguinte carta: “Há alguns meses, moradores das imediações da escola reclamam de prejuízos Ocasionados pela incivilidade dos alunos, tanto no espaço público quanto contra prédios privados. Além disso, constatouse que o agrupamento de alunos no fim das aulas causa desordens, e muitos deles cometem as tais incivilidades (abandono de detritos e lixo) e danos em bens públicos e privados.” Um conselho: quando comprar um apartamento, escolha de preferência a vizinhança de um asilo de velhos. Mesmo que você tenha filhos, pelo menos não será incomodado pela filharada dos outros.

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*

3-

Ela é conformista

Ninguém é mais mariaVaicomasoutras do que uma criança. É normal: ela imita os adultos, os garotos um pouco maiores ou aqueles que têm a idade que elas gostariam de ter. A criança passa a sua Vida de criança querendo ser um outro, com o intuito de ser “popular77. Quando compreende que crescer não é a finalidade única, percebe, ao mesmo tempo, que está envelhecendo — e aí terminou a infância e já é tarde para aproveitála. Como quer sempre ser um outro, a criança nunca está contente consigo mesma. Tem medo de que sejam alvo de zombarias, que a apontem na rua, que falem do seu pulôver ou da sua mochila. O resultado é que ela procura fazer tudo como os colegas de escola. Por via das dúvidas, usa os mesmos sapatos, escreve nos mesmos cadernos, adota a mesma maneira de falar. A infância é uma longa neurose, pois é neurótico viver de acordo com o que se acredita ser a expectativa dos outros. Muitas vezes, a neurose da infância não se cura e evolui suavemente para a neurose adulta.

A criança detesta ser diferente e nãO tolera que Os pais se sin gularizem. Meus filhos me avisaram que estaVa fora de questão os colegas os verem em nosso velho Peugeot 205, todo batido. Não querem que o pai vá buscálos na escola com sua bermuda furada. Não entendem que eu passe boa parte da vida em casa, escrevendo ou recebendo pacientes. E o mais novo, durante muito tempo, dizia aos amigos, sem deixar de sentir uma certa vergonha: “A mamãe não trabalha.” As mães das outras crianças saíam de casa para ir a algum escritório em horários marcados: para eles, era a prova de que, de fato, tinham uma profissão, apesar de ninguém saber muito bem o que fazia a “funcionária”. Sem ter noção exata do que é o trabalho, muitas crianças acham que é mais ou menos como a escola, com presença Obrigatória e professores estúpidos. O trabalho dos pais se tornou uma entidade totalmente abstrata para a sua prole. Ela estará madura para ter, quando crescer, empregos inúteis e desinteressantes. A sociedade espera das crianças, desde pequenas, um respeito cego pelas regras e pela disciplina: a creche e a escola são apenas elos do imenso aparelho de controle dos corpos e dos indivíduos que é o mundo. Do jardimdeinfância à empresa, não há nenhuma diferença essencial. O primeiro “toma conta” da criança e a segunda, do adulto. A criança imagina que isso, de repente, é normal. Um cantinho todo seu, com arcondicionado, horários a serem respeitados, um restaurante interno, colegas. Um sonho liliputia no bem do seu tamanho.

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Crianças custam caro

Um filho Custa uma fortuna. Está entre as Compras mais caras que o consumidor médio pode fazer em sua Vida. Em matéria de dinheiro, Custa mais Caro que um carro de luxo do último tipo, um Cruzeiro ao redor do mundo, um apartamento de quarto e sala em Paris. Pior ainda, o custo total pode aumentar no correr dos anos. Na França, é claro, há a ajuda do Estado, que distribui múltiplos subsídios (cuidado, nem todos têm direito a eles) agrupados sob a égide da instituição PAJE, de auxílio aos pais de crianças pequenas, assim como há os abonos no início do ano letiVo, uma bolsa para o ensino fundamental, para o médio... Mas tudo isso representa muito pouco em comparação ao que Você Vai gastar com seu filho. E preciso dar casa, comida, roupas, conseguir quem tome conta, pagar escola e/ou estudos, e tudo isso durante 18 ou 25 anos, podendo chegar a trinta. Sabese que isso representa, em média, 20 ou 30 por cento de um salário, mas, curiosamente, não

Se conhece exatamente o montante. E olhe que não faltam estatísticas na França, haVendo inclusive gente para quem isso é o próprio emprego, como os funcionários do Alto Conselho da População e da Família. Na prática, é uma conjuração mantida por gente prónatalidade, estes ideólogos convencidos de que a França precisa de bebês para fazer perdurar um modelo francês que, é claro, vai irremediavelmente desandar se não for abastecido por uma ninhada bem francesa. JoëlYves Le Bigot, presidente do Instituto da Infância, confirma: “Todos os que se preocupam com a demografia do país concordam que é melhor os franceses não saberem realmente quanto custa criar uma criança, pois, de outra forma, se reproduziriam menos.” Ocultamnos tudo, nada nos dizem. O segredo da paternidade feliz é, muito claramente, o dinheiro, que permite escapar da constante servidão inerente à profissão paimãe. Na revista Vòící, Angelina Jolie, Sharon Stone, Madonna, Nicole Kidman e Laeticia Hallyday são mães realizadas, não resistem ao prazer de declarar que a maternidade foi o que houve de mais importante para elas. Quanto aos homens, é o mesmo bordão: a paternidade revelou a Johnny Depp profundezas abissais e, a vida inteira, Tom Cruise quis ser pai. Ter empregados torna as coisas bem mais fáceis: uma baby-sitter   que passa a noite em casa quando você sai, uma babá para fazer a comidinha enquanto você janta com uma amiga, uma estudante para ajudar com os deveres de casa. É o mínimo que se precisa para tornar suportável a paternidade. Mas vamos parar de sonhar, pois você pertence à França de baixo ou à França média (cada vez mais parecidas) e tem, então, que fazer tudo você mesmo. Com um filho vai aprender, queira ou não, um monte de profissões: puericultor, amaseca, animador de festa, pedagogo, cozinheiro, mestreescola, policial, motorista, enfermeiro, psicólogo e conselheiro escolar. Mas, 66

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sobretudo, a profissão de ator, pois o filho constitui o público ideal para quem quer representar o papel de pai/mãe — pelo menos até a adolescência. E muito para uma pessoa só. E o mais impressionante é que as mães de família, no entanto flexíveis e pluridimensionais, tenham tão pouco valor no mercado de trabalho... Já viram patrões disputarem mães de mais de 45 anos para contratálas? Isso prova que há algo de podre no doce reino dos recursos humanos.

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! 5 -

Um aliado objetivo do capitalismo

O consumo é o principal pilar da paternidade. É preciso se munir de uma lista incríVel de objetos para se tornar um pai digno desse nome. Um berço, um cercado, um moisés, um móVel de canto com sofá e prateleiras, uma chaíse-longue , um carrinho de quatro rodas, um outro, menor e dobráVel, de duas rodas, uma caminha de dobrar, um portabebês dO tipo “canguru”, fraldas, roupas, es quentamamadeiras, esterilizador de mamadeira, produtos de higiene, lenços umedecidos, desobstruidor de nariz... Alguns desses objetos trazem requintes tecnológicos tão impressionantes quanto inúteis: o carrinho,6 por exemplo. Os modelos “último tipo” se chamam Vigour, Aéroport, Carrera. Podem ter seis ou até oito rodas (até 27,3 centímetros de diâmetro), pneus com câmara, freio

6 Ver o artigo de Catherine Millet, “La poussette surdimensionnée” [O carrinho superdimensionadol, na revista L e N ouvel O bservateur,   edição de 15 de março de 2007.

a disco na dianteira e OutrO de pedal na rOda traseira, guidOm ergonômico etc. Uma pequena maraVilha. Com o dobro do peso, é difícil leVálo no metrô e impossível numa bicicleta ou mesmo numa moto. Para transportar todo esse equipamento, um automóvel é indispensável, de preferência grande e com airbags , por evidentes motivos de segurança. Cada saída de casa se torna uma mudança completa, um pesadelo de malas e sacolas. Tudo isso é caro, mas estamos apenas começando, pois a criança se suja e come. E preciso, então, uma máquina de lavar roupas e outra de lavar louça. Há também uma orgia de fraldas descartáveis (seis ou sete por dia, durante dois ou três anos), o que é um verdadeiro desastre para o meio ambiente, pois não são recicláveis. Como o danadinho ocupa espaço, comprase um apartamento em que ele tenha seu próprio quarto, esperando que assim ele encha menos a paciência. Além disso, ele tem que se vestir e existe uma moda infantil que os pais aplicados tentam seguir, comprando as marcas especializadas. Inúmeros artigos nas revistas femininas e inclusive uma Vogue  crianças (chamada  Milk)  ajudam a escolher roupas tão caras quanto as de adultos. O bonitinho só vai usálas por três meses, talvez até nenhuma vez, mas que importância tem isso? A criança faz os pais consumirem tanto quanto ela própria. É o alvo favorito da publicidade de produtos eletrônicos. Quanto mais novo, mais brilhante, mais ela gosta. Pequenininha, já lida com o  gameboy   e aos 8 anos ganha seu primeiro computador: a tecnologia não tem segredos para ela. Aos 12 o MP3 é absolutamente indispensável para causar boa impressão no intervalo das aulas. Mas não basta. A máquina fotográfica digital multifunções se impõe. E, depois, um telefone celular. Segundo um estudo britânico, dois terços das crianças entre 6 e 13 anos têm um. O que fazem com isso? Diz um especialista em marketing infantil (profissão apaixonante, tenho certeza) que “as crianças querem ?o

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um, mesmo que usem pouco, ou apenas para ligar para casa”. Ligar para casa? Filhos e pais já não têm todas as ocasiões que precisam para... não se falarem? Aliás, as crianças têm um gosto que é um lixo: sapatos horríveis com cores inspiradas no último videogame da moda, roupas de séries televisivas imbecis, jogo de cartas YuGiOh! ou Duel Masters, bonecas Diddl. Bemvindos ao reino da feiúra. Para os pais, tudo isso representa dinheiro desperdiçado, tempo perdido comprando porcarias e milhares de horas passadas no trabalho para pagar as prestações do apartamento que estoca todas essas coisas. E não é qualquer um que serve, pois um quarto de criança é sempre um verdadeiro caos, com brinquedos amontoados até o teto e uma bagunça incrível de roupas, caixas nunca abertas, coisas quebradas, fora de moda ou com as quais ela implicou. A criança está em seu elemento no reino da mercadoria. O que o capitalismo promove — cada vez mais objetos, mais tralhas difíceis de serem reaproveitadas, bens intercambiáveis, rapidamente obsoletos e renovados sem parar — é exatamente o que ela quer. Enquanto houver crianças, o mundo absurdo em que vivemos tem futuro. Não garanto o mesmo com relação à espécie humana, mas isso é uma outra história.

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I6.  M antê- la ocupada: U m quebr a- cabeça

Há alguns anos, Os britânicos nos deram uma Obraprima típica de seu humor particular, enumerando possíveis “101 formas de usar um gato morto”. Cento e uma formas de usar uma criança ViVa exigem bem mais imaginação. Antigamente, as crianças brincaVam na rua, nos terrenos baldios e se divertiam umas com as outras. Hoje em dia, todo lugar está tomado pelos automóveis. E por seqüestradores de crianças, grande terror atual dos pais, que os imaginam em cada esquina. Está fora de cogitação dizer “vai brincar lá fora”, pois isso significa que vão brincar sozinhos num quintal de subúrbio — e a experiência pessoal me ensinou que não é uma distração de que gostem muito. A criança fica então trancada como em UArrache-Coeur   [O arrancacorações], de Boris Vian. No romance, a mãe, obcecada pela idéia de um possível acidente com os filhos, acaba trancandoos numa jaula. Com uma das mãos o capitalismo tirou das crianças o espaço natural que tinham para brincar e experimentar, mas com a outra

deulhes objetos em compensação. Um era gratuito e os outros são pagos, mas isso faz parte, é claro. Primeiro de tudo, a teleVisão, à qual a criança pode ficar grudada horas a fio, tendo o cérebro laVado. Durante esse tempo, ela pelo menos não pensa em se machucar. Mas as classes média e alta Vão com cuidado, pois sabem que isso idiotiza as crianças (e lobotomiza os adultos, mas, para eles, em geral, já é tarde demais). Preferem optar por instrumentos cada Vez mais aperfeiçoados (Game Boy, PlayStation...), que a meninada adora. Não são mais inteligentes, mas têm o mérito de mantêlos ocupados. ViVa a babá high-tech. Porém, o mais gratificante para os pais é quando suam a camisa para que os filhos se ocupem de forma inteligente. DeVese começar quando ainda são bem pequenos, com poucos meses. Os bebês nadadores são uma boa proVa disso. O princípio consiste em mergulhálos numa água morna (proVaVelmente cheia de xixi) a partir dos 4 meses de idade. Está super em Voga, tanto que, em Paris, é preciso se inscrever antes do nascimento do filho. E para que serve? Não sei, mas cito o que se lê num dos sites da internet voltados a isto: “A criança aprende a se sentir autônoma e o meio estimulante favorece o desenvolvimento psicomotor. Para muitas crianças, a piscina é uma ocasião para que entrem em contato com a sociedade. Essa socialização precoce vai melhorar a qualidade das suas relações futuras.” Autonomia, desenvolvimento, socialização: são as palavraschave para uma educação bemsucedida. Tudo se decide, então, em poucas semanas. Se seus filhos não nadarem, nada hão de fazer na vida, anote bem isto. Mais tarde, será necessário inscrever as crianças numa quantidade de atividades extraescolares, o que, na maioria das vezes, implica leválas e buscálas. Sigam a extenuante agenda7 de An

7Jornal L e M onde , edição de 7 de setembro de 2005: “Choisir des actiVités extrascolaires sans surcharger les emplois du temps” [Escolher atividades extra-esco lares sem sobrecarregar a agenda], artigo de Sylvie Kerviel. 74

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toine, de 11 anos: segundafeira, das 17h30 às 18h, Violão; terça-feira, handebol das 17h 15 às 18h30; quintafeira, solfejo das 18 às 19h30; sextafeira, de noVo handebol das 17h 15 às 18h30. Sábado sim, outro não, ensaio numa orquestra de Crianças. Essa agendamaratona foi montada para ocupar o menino ou os pais, que deVem acompanhálos nesses lugares? As atiVidades “inteligentes” são aquelas que desenVolVem o desempenho da criança na escola, sinal de que ela estará, mais tarde, adaptada ao mercado de trabalho. O jogo de xadrez e o solfejo se encaixam nessa categoria. Os pais podem também optar por ocupações criativas como o desenho ou o teatro, ótima ferramenta para se sentir à Vontade em público. Tudo deVe serVir ao “desabrochar”, essa palaVra o tempo todo relembrada, chaVe de um “desenvolvimento pessoal”, cuja receita, garantida, conduz à felicidade. Quanto ao esporte, ensina o gosto pela competição, o espírito de equipe, e tudo isso será muito útil quando seu filho estiVer numa empresa. Cuidado com o perigo do overbooking.  Uma agenda digna de um executivo — que é, aliás, o que os pais esperam que o filho se torne, se tudo correr bem. Desde a infância devese assumir o hábito: nunca tempo “desperdiçado”, nunca um momento vago, Olhando a chuva cair. É um aperitivo para a vida, a vida de verdade, aquela dos vencedores, pois os winners  são uma gente ocu padíssima, enquanto os loosers, como se sabe, uns desocupados. Estes últimos, no entanto, estão na vanguarda da modernidade; um dia, num mundo sem trabalho e sem muito a fazer, todos viverão de férias, aproveitando dispensas por horas de trabalho já efetuadas ou em licençamaternidade. Nesse dia, apenas os pais estarão trabalhando... na criação dos filhos.

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17 

 As  pi ores tarefas dos pai s

A profissão de pai e mãe é uma Viacrúcis com paradas múltiplas. Ninguém está obrigado a encarar todas, mas saibam que algumas delas não podem ser dribladas. A seguir, as piores: — A Eurodisney, um Vilarejo com brinquedos idiotas, onde reinam pessoas subremuneradas, Vestidas de pato. — O Marineland d’Antibes, onde peixes que parecem de plástico são ensinados a saltar cadenciadamente em tanques fedendo a cloro. — O hipermercado gigante na manhã de sábado, quando se deVe encher a geladeira para a semana (com Rafael que berra e Leonora querendo comprar todas as bobagens que Vê: OpirulitO em forma de coração, a lata de ervilhas cOm algum brinde dentro, o bolo enfeitado com um urso de pelúcia, as batatas fritas megacrocantes etc.).

— A pracinha sórdida com Vegetação rarefeita, único espaço para as crianças brincarem nas cidades. No fim de semana, é quase ineVitáVel leVar os filhos que, como os cachorros, ficam insuportáveis se não saem. O pai espera que o tempo passe (mas como demora) e, no inverno, ele congela. Deve levar um jornal ou um livro8para evitar o espetáculo à sua frente: punhados de areia nos olhos, rasteiras, acertos de contas, flores dos canteiros pisoteadas, xingamentos racistas: uma perfeita demonstração da anunciada falência de uma sociedade humana digna e justa. — A casa de subúrbio com um jardinzinho, lugar natural de retiro e proliferação da família suburbana, descrita pela célebre feminista americana Betty Friedan como “um campo de concentração confortável”. — O McDonald's, que serve uma comida imunda e gordurosa, num cenário qualquer nota, em fórmica, com brindes para atrair. É o Bocuse das crianças, a tortura dos pais. Uma única vantagem: é rápido. — O Acquaboulevard, paródia nojenta da praia, onde se fica preso num negócio superaquecido em concreto, com uma palmeira kitsch. — Thoiry, o zoológico dos “animais em liberdade”, que ilustra perfeitamente a fórmula “passa rápido, pois não há muito o que ver”; o que se vê é o turista preso dentro do próprio carro. — Os filmes infantis, cada um mais miserável que o outro: Inspetor Bugiganga; Procurando Nemo; Babe , o  porquinho

8 Por exemplo, de DaVid Abiker, L e M usée de I homme  [O museu do homem], da ed. Michalon (2005): um livro sobre o trabalho escraVo dos pais, com obser vações muito justas. CORINNE MAIER

atrapalhado; Harry Potter; Os órfãos Baudelaire ; Pocahontas; As tartarugas Ninja III...

— As férias de final dO VerãO, Cansativas aO extremo: engarrafamentos, estacionamentos lotados, praias idem, “pousadas” desconfortáveis e alugadas a preço exorbitante com seis meses de antecedência. Tudo bem se houver um plantão babá ou um “espaço criança”. Não sendo assim, é torcer pelo fim das férias. — E, sobretudo, o cúmulo da abominação: o Natal. Legiões de pais se precipitam nas lojas para comprar cada vez mais brinquedos, sempre os mais novos, mais barulhentos, mais na moda. Objetivo: provar a si mesmos que são bons pais. Uma missão impossível, pois é muito caro comprar uma consciência tranqüila, até porque ocasiões assim, na vida normal, pouco se apresentam. Devese imortalizar o instante com a câmera digital para captar o momento exato (e raro) em que a criança desembrulha os presentes junto à árvore e assume aquele ar encantado e um tanto sonso. Isso exige perícia, pois, afogada num mar de brinquedos inúteis e caros, ela logo se cansa (e se divertiria mais, certamente, num fundo de quintal, arrancando as patas de uma aranha). A cerimônia do desembrulhar dos presentes, então, deve ser inteiramente filmada — e todos os anos, sem perder uma migalha. Assistir aos filmes em seqüência, durante várias horas, serve como bela metáfora do capitalismo: cada vez mais bugigangas e nem por isso maior satisfação.

I 8. N ão ca cai a na na i l usão são do fi l ho i deal

Bela, poética, ideal é a nossa Visão do filho. Encarna o sonho de uma idade de ouro perdida que, como toda idade de ouro, nunca na Verdade existiu. Filmes como A voz do coração   (8,5 milhões de ingressos) ou séries teleVisiVas como Le Pensionnat de Chavagnes  [O internato de ChaVagnes] (6 milhões de espectadores) batem nessa tecla e são duplamente reacionários: exploram comercialmente a nostalgia de um outro tempo, da infância. Como a criança atrai o espectador, a teleVisão faz dela um álibi para os programas mais rasteiros que se possam imaginar. Entre eles, o Teleton, destinado à arrecadação de Verbas para ajudar crianças com doenças genéticas, um Verdadeiro Yom Kippur dos bons sentimentos que espetaculariza a generosidade. E um esforço titânico de coleta de fundos em tempo recorde. O que não se faz por crianças doentes? O resultado é obsceno e abissalmente idiota, mas é em nome da criança, então...

Curiosamente, a criança se tornou um modelo ideal que faz adultos sem perspectivas próprias sonharem. Não são mais as crianças que sonham com a liberdade da idade adulta, como sublinhou Benoít Duteurtre em La petite filie et la cigarette [A menina e o cigarro], mas os adultos que sonham com a infância como um lugar ideal que eles nunca mais haverão de ter. Exceto na televisão, como mostram o reality reality show Star S tar Academ y e outros do gênero, que exibem adultos participando por vontade própria de espécies de escolas para aprender a cantar, dançar, dormir em dormitórios, implicar com os colegas e depois pedir desculpas ao vivo. A  televisão adora crianças, mesmo e principalmente quando são os adultos que escrevem e representam o seu papel. Os (assim chamados) informativos jornalísticos também gostam muito de crianças. Têm predileção por acontecimentos sórdidos. Crianças desaparecidas ou assassinadas em geral abrem o telejornal da noite. A opinião pública, dizem, é que pede isso. A França adorou o pequeno Grégory — uma morte nunca elucidada com a qual nos encheram as medidas durante meses, senão anos: um suspense emocionante. Podese acreditar que entre 1986, quando teve início o “caso”, e 1989, ano da queda do Muro de Berlim, nada aconteceu. Alguns anos mais tarde, felizmente, a opinião pública (ou os jornalistas, é difícil distinguir o ovo da galinha) teve para se satisfazer os assassinatos do imundo belga Dutroux. Mais recentemente, todo o interesse voltouse para o destino dos filhos do doutor Godard, que desapareceram no mar e dos quais achouse apenas um crânio. Depois apaixonouse por Natascha Kampusch, a austríaca raptada aos 10 anos, que ficou seqüestrada por oito. Indignouse com Véronique Courjault, uma francesa cujos dois filhos foram encontrados congelados na sua geladeira, em Seul. Estremeceu com a alemã que matou 82

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nove recémnascidos seus e escondeu Os cadáveres em VasOs de plantas. O fascínio mórbido é de praxe, diante dessas Medéias modernas. A cruel infanticida, o perverso assassino de criancinhas: são estes os monstros! Mas em casa tudo vai bem, obrigada; em casa as crianças estão em “pleno desenvolvimento” e os pais são “equilibrados”.

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 Seu fi lho obr i gat or i amente o decepci onar á

O filho é a reVanche que tarda, mas não falha. Procriase querendo uma reVanche contra OdestinO adVersO. Estamos convencidos de poder preservar o filho do erro de que achamos ter sido vítimas. E claro, cometemse outros, talvez mais “graves”. Para evitar isso, as mães se obrigam a ser melhores, estando “atentas” a seus bebês performáticos: é uma verdadeira missão. E muito trabalho. Há uma superabundância de famílias convencidas de que seus filhos são mais inteligentes do que a média, querendo avaliarlhes o QI desde a idade de 4 anos, imbuídas da tarefa de encontrar a escola especial que facilite ao futuro Einstein o desenvolvimento das suas aptidões. Como se reconhece a criança “precoce”? E simples, segundo os genitores: “Ele (ou ela) se entedia na escola.” Dado o número de crianças que ficam ouvindo as moscas voarem durante a aula, podese achar que a França é o país preferido da genialidade. Como dão pena os pais envolvidos em idas e vindas cotidianas, às vezes com longos percursos entre a casa da criança

Superdotada e a tal escola. Mas nada é o bastante para ela, não? O que não se faria para “estimular” uma Criança tão ViVa? O que não se faria para se ter “sucesso” por procuração? O pediatra Winnicot, no entanto, já chamara atenção: o que a criança precisa é de uma mãe “suficientemente boa” — mais do que isso é um exagero... A boa mãe, então, deVe às Vezes saber se desligar, e isso é difícil. Desligarse um pouco significa aceitar que o filho não é uma criança ideal. Pois criança alguma é ideal e não deixará de decepcionar os pais, na medida em que a sonhem perfeita. Notas baixas na escola? Os pais ficam meio desiludidos e obrigados a dar um desconto quanto aos talentos do queridinho. O mais estranho é assistir a pais, antes maravilhados com as “capacidades” do filho, obrigados a confessar (entre os dentes) que ele, atualmente com 20 anOs, passou cOm dificuldade nO vestibular e segue seu curso “superior” na Faculdade PagouPassou ou na Escola Técnica Rebimboca da Parafuseta... Uma vergonha para quem, no entanto, tinha tantos atributos geniais. Mais tarde, se o queridinho da mamãe, em vez de se tornar independente, flexível e responsável, for um imaturo destrambelhado, será de fato uma vergonha. Se não trabalhar, se estiver condenado ao perpétuo tempo livre, que é a maldição dos pobres, ninguém mais pedirá notícias suas. Mas imaginemos que essa criança, criada na modernidade mais cheia de qualidades, mais divertida, pluralista e generosa, se torne antidemocrata, anti União Européia, antiprogressista. É impossível, pois as urnas em época de eleições são instaladas nos pátios das escolas e, com isso, fazem já a campanha de um futuro radiante. Mas ainda há piores alternativas, e ela pode se tornar terrorista. Isso não! E inimaginável; alguém tão bem integrado, num modelo de sociedade tão bemsucedido, não pode desejar o seu fim.

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 Ser uma mãezona , que hoTroTl

A mãezona é uma mãe de família que antes de tudo... é uma mãe de família. Ela pode trabalhar, é Verdade, mas por razões econômicas e também porque o modelo mãedefamíliaemcasa por toda a Vida não leVa à plenitude. A sua própria mãe é exemplo disso. A mãe da mãezona foi, a Vida inteira, uma donadecasa e dedicou tempo integral à ninhada, repetindo o tempo todo que fazia grandes sacrifícios por ela, deixando de lado algo essencial e motivador: o trabalho. Os quarentões da minha geração muito freqüentemente foram criados por esse tipo de mulher: de corpo e alma dedicadas às tarefas domésticas e à educação dos filhos, totalmente frustradas pelo vazio da sua existência. Cansaço crônico, solidão, insatisfação, excessos à mesa e interesse obsessivo pelos filhos: geralmente gordas e tensas dentro de roupas de baixo desconfortáveis, nossas mães eram umas harpias. Já a mãezona  jurou se sair melhor nessa tarefa. No entanto, nada mudou realmente, pois a principal preocupação da mamãezona é a prole. O exemplar típico tem a foto dos

filhos em cima da mesa de trabalho e uma outra na carteira. E ela não hesita em mostrar. Não trabalha nas quartasfeiras, pois as crianças não têm aula e é preciso, então, organizar suas múltiplas atividades, leVar uma a algum aniVersário, outra ao caratê. Tem tendência a provar os pratos que lhes prepara, por isso planeja começar um regime e bebe apenas água mineral. Não tem muito assunto para conversa, pois passa a maior parte do fim de semana cuidando de Lea, Mateus e João Batista. Assim que se tenta dirigir a conversa para assunto que interesse um pouco mais quem não tem filhos, a mãezona fala do desempenho escolar de um, dos talentos artísticos da outra e compara o nível das escolas do subúrbio a oeste de Paris. Ou seja, ela afugenta muita gente, exceto outras mãezonas conscientes de que ser mãe é um sacerdócio, exigindo muitos sacrifícios, uma total entrega. Ela “tira” férias durante as férias escolares, e estas são muitas: dez dias no feriado de Todos os Santos, duas semanas no Natal, duas semanas em fevereiro, duas outras na Páscoa e dois meses no verão. Quase quatro meses, em que precisa se desdobrar e estar em casa, ou mandar as crianças para a casa dos avós, ou para colônias de férias. Um pequeno milagre de organização, toda vez. Felizmente, a semana de trabalho francesa de 35 horas permitiu que ela se “organizasse” para estar com mais freqüência em casa. Essa orgia de férias escolares teve conseqüências importantes nos hábitos trabalhistas franceses e explica por que os estrangeiros acham que na França trabalhase muito pouco. É verdade, nas empresas não há muita “gente de escritório” durante as férias escolares. É difícil “marcar uma hora” para uma reunião entre o Natal e o Anonovo, durante as férias de fevereiro, de Páscoa, no mês de agosto e no início de novembro. E daí? A globalização pode esperar, não pode?

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 Ser , antes de tudo ,  pai (ou mãe) ?  N ão , obrigado

MesmO que ela dirija uma empresa, Venda milhões de discos Ou tenha uma profissão apaixOnante, esperase sempre que a mulher diga que Os filhos Vêm antes de tudo. E, cada Vez mais, ao homem também se impõe o parentalmente Correto. Como imaginar, por exemplo, os dois principais candidatos à eleição presidencial de 2007 na França, Ségolène Royal e Nicolas Sarkozy, confessando que as atividades políticas Vinham em primeiro plano? No entanto, com as agendas que têm, os nossos políticos, homens ou mulheres, não devem passar muito tempo em casa... É o caso de François Bayrou, que também foi candidato e cujo modelo familiar foi revelado pelo jornal Le Monde : “Seis filhos e Elizabeth, a esposa, que os criou muitas vezes sozinha na cidade de Bordères, enquanto François se dedicava à política em Paris.”9 Nenhuma

9 Jornal L e M onde , edição de 21 de março de 200 7: “François Bayrou et son double” [François Bayrou e seu duplo], artigo de R. Bacqué e P. Ridet.

preocupação, mas uma bela roupagem de pai de família bem talhada para as eleições; muito bem, François. Na França, nunca houVe um presidente da República sem filhos. No exterior também não há muitos, e uma childfree  como a chanceler alemã Angela Merkel destoa. Ser pai é certamente um argumento eleitoral de peso que os candidatos não deixam de explorar no cenário midiático, sob a forma de edificantes fotos de família. Na década de 1960, o presidente Kennedy10 dera o tom. Todos se lembram da imagem dele à mesa, na Casa Branca, e o filho brincando debaixo da escriVaninha. Criança, simplesmente, Vende. É um cartaz publicitário ambulante que diz: “Meu pai (ou mãe) é confiável, Vote nele sem medo; como ele (ela) tem filhos, vai compreender seus problemas.” Ninguém pode imaginar alguma personalidade reconhecendo: “Meu trabalho vem antes de tudo. Não foi para os cachorros que se inventaram as babás.” Seria um erro de comunicação enorme, passível de arruinar uma carreira. Mãe em primeiro lugar, profissional depois e mulher no final: é a trinca vencedora. Não procure alterar as prioridades, isso não se faz. As afirmações francas e cheias de bom senso da top model Adriana Karembeu valeramlhe muita chateação, após a sua declaração: “As crianças me assustam. Tenho medo de não estar à altura ou de repetir os erros dos meus pais.” E, no entanto, ela estava com a razão. Toda mãezona é uma péssima mãe em potencial e se sente culpada. O fato de pôr uma criança no mundo e, sobretudo, quem sabe,  por vontade própria, é uma fonte de culpa terrível. “Criei um ser humano, sou respon10Que gênio da comunicação ele foi! Até me pergunto, às Vezes, se aquela morte espetacular não teVe uma direção cinematográfica encomendada por seus con selheiros. Um ótimo meio de fazer o mundo acreditar tratar-se de um grande es tadista ameaçado pelas forças do mal, e isso depois do fracasso da baía dos Porcos, em Cuba, e do engajamento americano no Vietnã. 90

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sável” é algo muito pesado de se carregar. TOda mãezona teme ser uma madrasta (no pior sentido): nunca faz o bastante; não cuida direito dos filhos; nunca está suficientemente disponíVel; não está “atenta”; não prepara quitutes demorados em casa nem menus “equilibrados”. Não, nunca o suficiente, ainda mais porque a sua mãe (e as feministas) tanto lhe encheu os ouVidos para que fosse trabalhar. Fica então presa entre a marreta do trabalho doméstico e a bigorna do assalariado. Sentese culpada. Culpada de Voltar extenuada do trabalho, culpada de não entoar a canção de ninar à noite, culpada de ter uma crise de nerVos após duas horas de berreiro, culpada de se sentir aliviada ao deixar as crianças na creche pela manhã, culpada de se sentir feliz quando elas partem em uma excursão da escola. Falta pouco para que peça desculpas aos filhos. Desculpas por não saber o que significa ser uma “boa mãe”, desculpas por parecer, sem querer, a madrasta da Branca de Neve. O que significa desejar um filho? Quem sabe o que se deseja quando se deseja um filho? É o seu bem o que se quer? A psicanálise ensina que nada é mais destrutivo do que querer o bem de alguém, pois é o seu próprio bem que se projeta no do outro e, além disso, um belo dia você vai inevitavelmente querer ser pago pelo tal bem que quis lhe impor. Ou seja, querer a todo custo o “bem” do outro é destrutivo, pois pai algum está de fato à altura de tudo que ele projeta para seus descendentes. Sigmund Freud deu uma resposta lúcida a Marie Bonaparte, que lhe pedia conselhos para a criação dos filhos: “Faça como quiser, de qualquer maneira estará errado.” Antigamente, isto é, há apenas algumas décadas, aceitavamse os filhos como uma fatalidade, o que estava longe de ser uma situação ideal, mas tinha a vantagem de livrar os pais de uma responsabilidade pesada demais. Atenção, não se trata de nostalgia de um tempo que nem conheci, mas é verdade que existe hoje a tenSEM FILHOS

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dência de Se preocupar mais e até de SuperprOteger um filho que se quis ter. A generalização da contracepção teve de fato efeitos espantosos, como sugeriram os autores do livro Freakonomics : diminuiu a criminalidade em NoVa York. Pois tudo indica que filhos desejados se integram mais facilmente na sociedade do que os outros. Daí a se imaginar que a pílula e o diafragma foram patrocinados pelo grande capital, para dispor de uma mãodeobra mais dócil, é apenas um passo...

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N ada de li vre tr ânsi to par a os profissionais da infância

Para criar um filho, especialistas são necessários. Assistente social, pediatra, fonoaudiólogo, psicólogo: uma Verdadeira inVasão médica da família. Como faziam nossos aVós sem eles? Nosso mundo é obcecado pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância. Pequeno parêntese: é interessante observar que a transferência das competências paternas a outras pessoas é paralela à expropriação das competências técnicas dos trabalhadores pela direção da empresa moderna. Nada a Ver? Ledo engano, um dos suportes do mundo em que ViVemos é o seguinte: estamos inundados por conhecimentos esotéricos dos quais os assim chamados especialistas dizem ter as chaVes. A família se encontra sob a Vigilância de um Estado terapêutico que a mantém sob permanente controle. São pessoas que ali estão para lhe encher o saco, como todos que pretendem ajudar. Estão lá também para que Você saiba o que a sociedade espera de Vocês, pais. E o que ela espera não é pouco. E tanto que em breVe

será necessário VOltar à escola para aprender a profissão de ser pai. Não, isso não é uma brincadeira; Ségolène Royal defendeu essa idéia muito seriamente: “Quando se multiplicam as inciVilidades, é necessário um sistema que obrigue os pais a fazer estágios em escolas para pais”, declarou a então futura candidata à presidência da República.11 Enquanto não se cria um estágio para Você, Vou já enumerando alguns dos deVeres paternos. E bom que tenha autoridade, mas também que “dialogue” com a criança. Ocupese dela dezenas de horas, mas, além disso, os dois membros do casal deVem ter um trabalho remunerado, para que a criança não se sinta “sufocada” pela solicitude, em geral materna. (E o caso na França, já na Alemanha é bastante malVisto que mulheres com filhos trabalhem.) É importante que Você seja uma espécie de alter ego  Virtuoso, ligado ao bemestar da criança e ao seu respeito pelos Valores morais. Que o casal seja equilibrado e responsáVel. Calmo e pedagógico. De espírito aberto e capaz de estimular a curiosidade do filho. Ou seja, um pouco de tudo e também o seu contrário — todo tipo de coisa, mas também o seu complemento. Com que finalidade? Uma criança “estruturada”, isto é, bem presa na coleira. O ideal: uma criança “enquadrada”, que “compreenda seus limites”. Traduzindo: que os genitores possam amestrála suficientemente para ser manipulada pelos outros. Todo esse exército de especialistas fala um bocado. A pediatria, a psicologia, as ciências da educação dedicadas aos problemas da infância e suas respectivas indicações chegam aos pais por meio de uma vasta literatura de vulgarização. Esta, que, no entanto, tem curto alcance intelectual, é aceita de braços abertos pelo mercado editorial. É verdade que o espaço comercial aberto é tentador.

11Em 31 de maio de 20 06, na cidade de Bondy. Cf. www.lefigaro.fr. 94

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NO pódio desse besteirOl, figura entre Os primeiros um manual — 100 recettes pour booster Vintelligence de votre enfant  [100 maneiras de impulsionar a inteligência do seu filho]. Por caridade não revelaremos o nome do autor. Algumas obras são Verdadeiros bestsellers, como as da prolixa Edwige Antier (Attendre rtion en  fant aujourd7hui7Mon bébé dort bien , Com ment aider votre enfant à sépanou ir... [Esperar por um filho hoje, Meu bebê dorme bem, Como ajudar seu filho a se desenvolver]), que desbancaram os clássicos de Laurence Pernoud. Tais livros são estudados com minúcia pela mãezona desorientada que procura receitas de como criar “bem” o filho. Quanto à higiene física e mental, ela procura agir, não segundo seu entendimento e sentimento, mas de acordo com a imagem (bastante imprecisa) do que deve ser uma boa mãe. Quando tem a impressão de que todos esses bons conselhos não a estão levando a parte alguma, ela liga a televisão e assiste à Super  Nanny , no canal M6. Tratase de uma série vista por 5 milhões de telespectadores na França, cujo tema, segundo o site do canal na internet, é: “Uma babá diferente das demais, que põe ordem nas famílias em que falta autoridade, ameaçadas por terem deixado tudo correr solto.” Na verdade, são exercícios práticos para domar os anjinhos que devastam a vida dos seus pais.12 Os “especialistas” em infância, verdadeiros gurus das famílias, são muito bons em lançar modismos. De onde eles vêm? Ninguém sabe. Alguns são perfeitamente fantasiosos. Lembro que quando minha filha nasceu, há cerca de 12 anos, deviase “diversificar” a alimentação do bebê. Já tentaram fazer um recémnascido de poucas semanas engolir uma colherada de creme de espinafre, suco de laranja e clara de ovo batida? E impossível, mas lá pelos idos da década de 1990 era o que se devia tentar, pois o equilí12SerVe também com o ótimo antídoto para crianças: assiste-se unia vez e questio na-se seriamente o “desejo por filhos7’ durante uns seis meses. SEM FILHOS

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brio alimentar da criança dependia disso. Confusão certa e crise de nerVos garantida. Alguns anos depois águas rolaram — percebeuse que uma diversificação tão prematura provoca alergias em nossos queridinhos — e proezas daquele tipo deixaram de ser exigidas dos pais. Há modas para tudo, desde a maneira como deitar os bebês até a troca das fraldas, ou qual o tipo de carrinho utilizar. Não, a ciência da criança não está absolutamente definida e nossos especialistas parecem bem perdidos, apesar dos ares que assumem. Devese jogar o bebê fora, junto com a água suja do banho? Cabe a cada um decidir.

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 As  famí li as são um hor r or 

Bondade, afeto, espontaneidade: eis o papelabrigo da família. Um Cantinho garantindo segurança, diante de um espaço público Cada Vez mais dominado por mecanismos impessoais de mercado. A Vida familiar idealizada, celebrada — refúgio da autenticidade que permitiria a liVre expressão da “personalidade” —, é com certeza uma imagem idílica. E uma idéia fabricada que deVe ser abandonada. Na prática, a família moderna é uma prisão Voltada para si mesma e centrada na criança. Família significa brigas  junto da árvore de Natal, “instantesverdade” difíceis com a sogra (sem que você tivesse absolutamente desejado algo assim), ódios requentados há várias gerações, segredos familiares vergonhosos que ninguém se atreve a evocar, mas que pesam sobre todos. A maioria dos assassínios e dos episódios de pedofilia acontecem no âmbito familiar; deveríamos nos lembrar mais disso. Toda família é um ninho de víboras inextricável. Bomdia, neurose; alô, psicose. As relações filhospais estão longe de ser uma brincadeira. Não é apenas amor, mas também

ódio, ressentimento, ciúme, ou seja, sentimentos de que não se fala, pois não fica bem.  No entanto, estão ali, não é preciso caVar muito. A psicanálise foi lúcida nesse ponto. Freud explicou que o menino quer matar o pai para se deitar com a mãe: o que pode ser mais simpático e meigo? Winnicot, por sua Vez, enumerou 17 motiVos para uma mãe detestar o próprio bebê: é um perigo para o seu corpo, uma interferência em sua Vida priVada, machu calhe os seios, trataa como uma nulidade, impõe a sua lei e a deixa frustrada... Estamos longe de uma concepção adocicada da maternidade. Quem tem filhos precisa “administrar” essas ambi Valências. Muitos preferem recalcálas; talvez seja o segredo da paternidade autorealizada. As crianças ganham com isso? Não se pode garantir, pois, seja como for, num momento 011  outro da árvore genealógica, alguém Vai ter que pagar a conta.13 E é tão complicado quanto se Vê nos esquetes de Muriel Robin. Mas Voltemos à sua família. Com um filho, Você Vai ter que agüentála. E paradoxal, pois se Você teVe um filho, já não pagou a díVida com os seus genitores, que lhe “deram” a Vida? Poderia achar que, finalmente, está quite. Pois bem, não é o que acontece. Seria fácil demais. Seus pais e seus sogros Vão lhe explicar a arte de criar um filho e enchêla de ridículos conselhos que ninguém pediu. Mas isso não é nada em comparação às críticas disfarçadas, aos subentendidos e às pequenas lições cuja mensagem é simples: Você, noVato, é insatisfatório como pai ou mãe, não sabe fazer direito, seu filho está longe do “pleno desenVolVimento”. Julinho faz de Vez em quando xixi na cama, Alexandre tem eczema e Isodorina não gosta da professora de matemática? E culpa sua. E porque Você mudou de casa no meio do ano, porque trabalhou demais ou não o bastante, porque cuida mais de Isodorina do que 13 E para o que serVe a psicanálise: para ajudar os outros a pagarem a conta. Mas custa caro, é Verdade. 98

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de Alexandre (Ou O contrário); porque tinha inVeja — quando Você mesmo era criança — do irmão asmático, era apaixonado pela irmã ou colecionava selos. O discurso  psi  bateu forte nas famílias, e toda mãezona o utiliza com patas de elefante, orgulhosa de ter na biblioteca um ou dois livros (mal digeridos) de Françoise Dolto. A mãezona maneja um jargão  psi   simplificado, que é uma espécie de esperanto das famílias: “Ele está na fase do Édipo” (como quem diz “está trocando um dente de leite”) significa que ele é agarrado à mãe, e ela está amando ter à disposição quem a adore. “Ele tem uma mãe castradora” aplicase somente aos outros, que têm mães difíceis, nunca aos próprios filhos. “Está na fase anal” pode ser traduzido por “ele brinca com cocô, é nojento, mas normal”. O pior de tudo, porém, é que você cai numa armadilha. Como a sua família (ou a do consorte) é uma reserva generosa de babysitting gratuita, você aceita sem reclamar (é isso mesmo, acredite) seus ditames, fofocas, lições e considerações psicológicas do tipo “analista de mesa de bar”. A gente se sente menos culpada deixando a criança com alguém da família do que com uma babá: a vil mercenária pode até ajudar, pois quebra um galho, mas não ama de fato os seus filhos, uma vez que é remunerada. Nos dois casos, entretanto, livrarse dos filhos por algumas horas ou dias é uma alegria que se paga. Mas preste bastante atenção: não é necessariamente o pagamento em dinheiro o mais caro.

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N ão volte você a ser cr i ança

O jOVem é Osumo sacerdote do gosto. O look “jovem” é devastador. Muitas são as mães que tentam se vestir como as filhas adolescentes. Blusinha curta, umbigo de fora. Os gostos da infância se tornaram os da maioria das pessoas. Antigamente as meninas imitavam a mãe e se vestiam como senhoras. Agora as senhoras imitam a filha e se vestem como meninas. Sai de cena a mulher sexy e misteriosa que as estrelas de cinema encarnavam nos velhos tempos: podemos nos perguntar por que os costureiros têm tanto trabalho para vestir uma mulher mulher que não quer mais ser isso. Uma prova é que as modelos são cada vez mais jovens. É verdade que só a infância é sexy, e não a idade adulta. Podese achar que as modelos de amanhã serão “préado lescentes”, pois com essa nova categoria semântica a infância inteira encolheu e termina mais cedo, aos 10 anos de idade, mais ou menos. Depois disso, cuidado, a data de validade fica ameaçada. Tudo o que se destina à infância tem vocação a se tornar um culto, como os brindes Kinder Ovo, que se transformaram em ob

 jetos de coleção para adultos e, ouVi dizer, são inclusiVe expostos em museus: puzzles, figurinhas, carrinhos ou robôs de montar, criaturas moVidas a mola ou a corda... É isso mesmo, é arte sim; em todo caso, tratase de um mercado em torno do qual giram peritos, colecionadores, donos de galeria, especuladores e até... falsários.14O adulto adora produtos destinados às crianças e desVia alguns para seu próprio uso, como mobiliário infantil e motoci cletinhas. E tudo é miniaturizado: aspirador de bolso, minipro dutos de beleza, caVe de Vinhos para bebês, barris de cerveja Hei neken tamanho extra-small.  Se é pequeno, é bonitinho. O sonho do adulto? ViVer, num quarto de criança, uma Vida extra-small. Única Vantagem: quem se acha criança não precisa se preocupar com as suas próprias, pois não as tem. O gosto infantil formata todos os demais. E Verdade em relação aos liVros. Na França, Les histoires inédites du Petit Nicolas [As histórias inéditas do pequeno Nicolas] teVe um sucesso fulgurante, com 650 mil exemplares Vendidos do Volume 1, publicado em 2004. Entre os liVros mais procurados no mundo estão os Harry Potter , do qual é preciso ter lido o último episódio para se estar “em dia” e poder, caso necessário, falar disso com conhecimento de causa. Quem não leu é considerado completamente defasado. Enquanto isso, o que acabou se chamando “fenômeno” Harry Potter (eruditamente comentado por um monte de  psis , sociólogos e filósofos) pelo menos tem a honestidade de assumir a sua real Vocação, isto é, a de ser leitura juvenil. Como o filão é promissor, Vêemse nas liVrarias seções inteiras de “literatura para  joVens”. Podese apostar que ela Vai estar presente em quantidade cada Vez maior: para que complicar a Vida com liVros difíceis?

14 É estranho com o profissão, não é? Posso imaginar um cartão de Visita com a menção “falsário de brinquedos Kinder”; é mais engraçado do que piadas com belgas. 102

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“Literatura para jOVens” é um belo exemplo de OximOrO, essa figura de estilo que consiste em associar termos contrários. Não, Kafka, Shakespeare, Proust, Cervantes não escreveram livros para menores de 12 anos. A moda jovem é contagiosa. Cada vez mais há livros de literatura para adultos que parecem... literatura para jovens. A li teraturaparajovensdestinadaaosadultos tem, como uma de suas estrelas, Antéchrista,  de Amélie Nothomb, que conta a história de duas amigas “bem diferentes”, uma das quais hiperinvejosa da outra. E também Oscar e a Senhora Rosa , de ÉricEmmanuel Schmitt, cujo tema é o encontro de uma criança muitomuito doente com uma misteriosa senhora. Ambos são acessíveis a partir dos 10 anos de idade (talvez 8, para o segundo). Utilíssima, a função social desse tipo de leitura é a de dar, ao adulto que não lê, a ilusão de pelo menos ter feito a xepa na feira daquilo que chamam cultura. Alexandre Jardin, com Zèbre  [Zebra], tinha ido mais longe: o livro dirigiase diretamente à criança adormecida no interior de cada adulto. Mas foi na obra Les coloriés que o autor revelou do que é capaz, alardeando como se fosse uma novidade incrível a criançarei, a espontaneidade da juventude, sua desinibição natural e sua inocência. Tratase de um apelo para despertar “nossa parte mais autêntica”, supostamente esmagada pela “civilização da gente grande”. Que a invasão do pueril seja bemvinda!

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I nsi sti r em em di zer zer “pr i mei r o eu eu ” é prova de coragem

A família é um egoísmo compartilhado. Um egoísmo grupai que nega o indivíduo. E não é, como às Vezes se diz, produto de um individualismo desenfreado. Muitas vezes se apresentou a evolução dos últimos séculos como o triunfo da liberdade sobre as obrigações sociais, entre as quais se incluía a família. Onde está o individualismo, quando toda a energia do casal concentrase em favorecer as crianças? A evolução dos hábitos contemporâneos demonstra, pelo contrário, um prodigioso crescimento do sentimento familiar. Foi a família quem mais ganhou, em detrimento das relações sociais, dos amigos, dos vizinhos... Ela reina, e isso não é bom sinal, é sinal de “regressão da identidade”, segundo a mídia. O historiador Philippe Ariès assim formulou essa idéia: “O sentimento familiar, o sentimento de classe e talvez até o de raça aparecem como manifestações de uma mesma intolerância com relação à diversidade, uma mesma preocupação com a uniformidade.” Não é a família a base de movimentos políticos de extrema direita como o Front National?

ViVemoS numa sociedade de formigas em que os atos de trabalhar e cuidar das crias modelam as expectativas mais extremadas da condição humana. O trabalho é o ópio do povo; seriam as crianças o seu consolo? Uma sociedade em que a vida se limita ao ganhapão de cada dia e à reprodução é uma sociedade sem futuro, pois sem sonhos. Ter um filho é a melhor maneira de evitar se colocar a questão do sentido da vida, pois tudo gira a seu redor: é um ótimo tapaburaco da busca existencial. “Meu filho, minha batalha”, como cantava Daniel Balavoine; o que é muito bonito, mas se você não tiver outras batalhas além desta, sua vida se reduz realmente a muito pouco. O filósofo Kojeve dizia que “o animal se define por esgotar suas possibilidades existenciais na procria ção”. Muitos pais, hoje em dia, não estão longe da animalidade. Responder à questão do sentido da vida com a reprodução é transferir a questão para a geração seguinte. Absterse de responder, ou de pelo menos tentar, não é a pior das covardias? Não é passar para as crianças uma carga bem pesada? Além disso, adultos que desistiram de qualquer entusiasmo com relação à própria vida apresentam um espetáculo pouco edificante para nossas queridas cabecinhas louras. Um dia, não tão distante, os filhos julgarão seus pais, e o veredicto virá sem atenuantes, sobretudo se levam uma vida imbecil. Uma vida imbecil é uma existência de pequeno assalariado servil, cuja grande preocupação, na falta de coisa melhor, é a de aperfeiçoar o seu psiquismo; sentir e viver plenamente suas emoções, imergir na sabedoria oriental, dar caminhadas ou correr para “se sentir bem no seu corpo”, aprender a estabelecer relações “autênticas” com o outro, “superar o medo de ser feliz”. Felizmente, cidadãos, vocês podem dormir tranqüilos, pois reina a ordem: os jovens de hoje têm menos “bravura” do que os de 1968. Está fora de cogitação, para eles, ir gritar na rua que lhes deram um mundo de merda, ou exigir um acerto de contas e deses tabilizar a ordem para se vingar. Estão ocupados demais tentando... integrarse na sociedade. Io6

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O  fi lho é a despedi da dos seus  sonhos de j uventude

Durante dezenas de séculos, hOuVe uma forte pressão sobre os casais para que se mantivessem juntos e criassem os filhos que tinham gerado. Cada um dos membros do casal devia virar as costas às aspirações próprias, permanecendo unidos em prol da criação dos filhos. Nos dias de hoje, estando o melodramático “sa crifiqueime tanto por vocês” fora de moda, muitos pais adotaram uma versão mais atualizada: “Renunciei aos meus desejos mais íntimos por você. Para que seja feliz. Plenamente desenvolvido. Para que tenha uma boa educação e possa dar prosseguimento aos estudos, mais tarde.” Muda o refrão, mas a hipocrisia é a mesma. Quem não tem filhos às vezes se espanta com tanto sacrifício em prol de crianças que nada pediram. Nesse caso, recebe como resposta: “Você não pode entender, não tem filhos.” Parafraseando Céline, para quem o amor é um infinito que se alcança tendo um bichinho de estimação, a criança é a imortalidade na altura, mais ou menos, daquela de um carneiro. Não, a

criança não é Ofuturo dO adulto. É mais uma mentira inVentada pela sociedade para nos manter tranqüilos, assim formulada: seus filhos Vão ser bemsucedidos onde Você fracassou, tendo os meios para isso graças à escola e à ação social; não tem erro. O paraíso não é imediato, mas Virá amanhã. A felicidade é para os seus filhos, não para Vocês. Enquanto esse alegre amanhã da sua prole não Vem, trate de se comportar. Um 'meu filho talVez Venha a ter isso” Vale mais do que “eu quero isso, aqui e agora”? E discutível. Por parte dos pais que têm a vida estragada em nome dos filhos, ouvese facilmente a frase: “Não posso fazer de outro modo, tenho filhos para criar.” Não posso largar um trabalho que me chateia, pois tenho filhos: bela desculpa. “Não pude realizar meus sonhos, tive filhos para alimentar.” É terrível dizer isso, não acham? Antigamente, no tempo dos nossos pais, minha mãe dizia: “Não posso deixar o seu pai por causa de você.” Deime conta de que não era bem isso. Ela preferia ficar em casa para azucrinar meu pai, e ele fazia o mesmo com ela. Há quem prefira ser infeliz a dois a ser feliz sozinho. É assim que acontece. Na verdade, as crianças muitas vezes são uma desculpa fácil para a desistência sem sequer uma tentativa. Moral da história: quando não se faz o que realmente se tem vontade, não há desculpa que valha. Nem o trabalho, nem a família, nem a pátria.

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V ocê não pode dei xar de querer a felicidade dos filhos

A felicidade que Se deseja aos filhos, e que se promete, é uma coisa engraçada. Para início de conVersa, ninguém sabe exatamente o que é a felicidade. Seria o bemestar material? O sucesso social? Bebedeiras e surubas? Cada um responde à sua maneira, pois ninguém sabe direito. A felicidade surgiu no período das revoluções francesa e americana, tendo sido inclusive inscrita como um direito na Constituição do Estados Unidos. “A felicidade é uma idéia nova na Europa”, escreveu SaintJust. O que se pode dizer é que é um produto da democracia, da massificação dos modos de vida, com cada um achando ter direito a uma fatia do bolo. Nesse mundo de incertezas, para usar a expressão consagrada pelos futurólogos, é normal que se viva no presente e se olhe o próprio umbigo, como Michel Onfray aconselhou a seus muitos leitores. A difusão dessa idéia por muito tempo se apoiou no progresso, pois acreditavase que o amanhã seria mais alegre que o presente. Nos dias de hoje, porém, prometer felicidade a uma criança é dar

proVa de flagrante máfé. Não pretendo apresentar nenhuma lição sobre o estado do planeta, mas não há com que se entusiasmar muito. Buracos na camada de ozônio, aquecimento global, recursos marítimos e florestais exageradamente explorados; é como estamos. E, sobretudo, como eles, das gerações futuras, Vão estar, pois pagarão a conta de tudo isso. Nessa corrida de revezamento, hão de receber um bastão bem podre. Viremse como puderem e agradeçam: seus pais fizeram tudo para que sejam felizes. É bem Verdade, eles não tentaram mudar o mundo: estavam ocupados demais trocando as suas fraldas. Os pais se esforçam pela felicidade dos filhos. Felizes. Eles não prometem realmente a felicidade aos filhos, eles cobram. “Seja feliz” é uma exigência feroz e obscena, à imagem do superego descrito por Freud e que, ao mesmo tempo, dá ordens e impõe o gozo. Gozar, já de início, é suspeito: no sistema capitalista, qualquer liberdade termina sempre no mesmo ponto, a obrigação universal do gozo e de se oferecer ao gozo. “Aproveite a Vida, goze, meu filho” é uma injunção perigosa. Pois, ao mesmo tempo, os pais estão dizendo: “Não faça isso, não faça aquilo, procure agradar aos seus pais.” Se alguém lhe disser que quer apenas a sua felicidade, desconfie, pois a pessoa Vai certamente se achar no direito de lhe passar sermões, dar conselhos e tentar obrigálo a coisas que Você não quer. Por isso, aliás, educar é uma missão sempre destinada ao fracasso, pois querer o bem ou a felicidade do outro causa devastações. Felicidade? Não, obrigado, não é por cerimônia não, agradeço.

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O  fi lho: U m gr ude

O que fazer com uma criança? Todo mundo a adula, mas ninguém a quer. Passar anos inteiros em casa para cuidar dos filhos, deVese reconhecer, é um tédio mortal. Ao contrário dos países escandinavos, nada se faz na França para que a mãezona os leVe com ela ao restaurante ou ao cinema. Fica reduzida, então, a uma vida monástica, ao ritmo das fraldas, do banho e das mamadeiras. Bem rapidamente, cuidar do filho revelase mais cansativo do que trabalhar. E mais esperto, quando possível, voltar ao emprego burocrático que se abandonou e passar o dia fingindo trabalhar. Pelo menos podese ficar sentada tranqüilamente, ir à academia de ginástica entre meiodia e duas da tarde, relaxar com um cafezinho, enviar uns emails, falar por duas horas ao telefone com os amigos sem ser incomodada. Acho inclusive que por isso tantas mulheres voltam a trabalhar depois de ter filhos: a norma, na Europa, é a mulher que trabalha. Neste ponto estou falando especificamente no feminino pois, em nossa sociedade, é ainda sempre a mulher

que assume Oessencial dO trabalho na Criação dos filhos. Os homens, mais espertos ou mais preguiçosos, sempre conseguiram Cair fora. Trabalhar, sim, mas é preciso que alguém fique com as crianças. Como encaixálas na sua agenda? Uma babá fixa em casa sai muito caro. Começam os problemas. Nada fácil encontrar onde enfiar o diabinho. Parece que todas as creches e escolas estão sem Vagas no exato momento em que Você precisa que outros, isto é, aqueles que têm isso como profissão, façam o seu trabalho. Primeiramente é necessário ter pensado em tudo com antecedência pois, como Vai perceber, há sempre maior demanda do que oferta: é a impiedosa lei da estrutura de cuidados com as crianças. Já era assim na minha infância, mas podiase achar que a culpa era do baby boom : hoje em dia, é “estrutural”. E isso é Válido da creche à Escola de Comércio, passando pelas temporadas em estações de esqui para adolescentes e pelos comitês de serviços sociais da empresa onde Você trabalha. Mesmo para adultos, não há Vaga em lugar algum (e isso explica por que os que conseguem uma agarramna com unhas e dentes). Com os semteto aconteceu o mesmo; todos os bancos foram tirados das ruas, e isso certamente não foi por acaso. Tratem de circular, Vão procurar algo ali na esquina. Mas, Voltando às crianças, 70 por cento das que têm menos de 3 anos ficam em casa, em geral sob os cuidados da mãe. Vaga numa creche; como conseguir uma: fazer o cerco na Prefeitura e responder formulários extremamente detalhados que podem ser considerados literalmente inVasiVos. “Quanto Você ganha? E o seu cônjuge? Não é casada? Diplomas? Profissão? Horários habituais de trabalho? É proprietária da casa onde mora ou inquilina? Quantos cômodos tem o apartamento? Quantas pessoas ViVem nele? Tem familiares no bairro? Problemas de saúde?” E estou deixando de lado as questões esotéricas, como “Coeficiente familiar” e Várias siglas a se decifrar. É um Verdadeiro interrogatóII2

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riO policial. O que não fazemos para nos Ver liVres do nosso fardo, das 8 às 18 horas? As dificuldades continuam na etapa seguinte, a da escola. E obrigatório, mas escolarizar um filho não é algo tão simples. Assim como a creche, faltam Vagas, pois “estão esgotadas”, “Você será colocado na lista de espera” e “nós o estaríamos favorecendo, se o aceitássemos”. Sobretudo se a intenção for a de colocar o filho numa “boa” escola — ou, na melhor das hipóteses, na menos pior das redondezas. Em certos bairros pudicamente chamados “misturados” (onde há pobres, prédios de habitação popular ou zonas carentes denominadas “prioritárias”), os genitores devem optar entre ser bons pais ou bons cidadãos. Em geral, preferem a primeira alternativa. Como não se pode, na França, escolher a escola do filho, as pessoas têm que fazer uma verdadeira ginástica se tiverem minimamente uma preferência, mas sem darem bandeira e sem serem apanhadas em fllagrante. São necessários então paciência, habilidade, tato, muitas visitas à direção de ensino, às vezes um endereço falso e uma certa dose de desonestidade para evitar aquela escola em que nenhum dos seus vizinhos quer colocar sua prole. E verdade, a escola é uma máquina de triagem, um formidável dispositivo de distribuição de privilégios sociais que reforça as divisões de classe, enquanto hipocritamente promove a igualdade. Liberdade, Igualdade, Fraternidade — mas que isso fique entre nós. O elitismo republicano é um outro belo oximoro: há as escolas elitistas de um lado, e as escolas “republicanas” (que recebem todo mundo) de outro, e elas não recebem os mesmos alunos. Um lugar para a criança, mas há lugares e “lugares”.

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29 . Escola: Um campo disciplinar  com o qual é preciso pactuar 

A criança passa a maior parte do seu tempo na escola. Isso a “socializa”, dizem os pais, o que significa que é bom para ela, pois mesmo que nada aprenda, pelo menos brinca com os amigui nhos. A escola, no entanto, não é o lugar do franco companheirismo ou da liVre expressão: pelo contrário, é o reino do controle social. A partir dos 6 anos, quando termina o maternal e começam as coisas sérias, a criança de fato não brinca mais. Foi no final do século XVII que o que se deve chamar “regime disciplinar” se estabeleceu. Assim como os loucos, os pobres e as prostitutas, as crianças (que ViViam até então no meio dos adultos) passaram por um processo de confinamento. A quarentena da criança se chama escola, colégio, liceu. A escola é um lugar de domesticação e doutrinação. Foi calibrada para os franceses médios, não brilhantes, mas também não estúpidos demais, que se encaixem nesse modelo. São os que se adaptam bem ao molde, que aprendem a ler no ano em que lhe

dizem para aprender a ler, e nãO nO anO seguinte. Os que aceitam fazer exercícios idiotas sem perguntar o porquê. A escola é muito normativa. SerVe para adequar as pessoas ao trabalho, a uma rotina que não requer competências técnicas nem intelectuais particulares. A sociedade industrial exige uma população estupidificada, resignada a efetuar um trabalho desinteressante e a procurar realização apenas nas horas previstas para o lazer. A escola é a sua perfeita antecâmara. Nesse lugar de obrigações, reina o mestre ou, mais exatamente, a mestra que, em geral, não gostava da escola quando criança — do contrário, teria sido mais brilhante nos estudos, conseguindo uma profissão mais interessante e mais bemremunerada. A “tia” básica, então, é freqüentemente uma pessoa amarga, formatada pelos estereótipos horripilantes dos IUFM franceses, os institutos universitários de formação de mestres. Uma simples bola de jogar, num IUFM, é denominada “referencial movente”, e um aluno, um “sujeito em aprendizado”. É uma gente que utiliza expressões incompreensíveis, como “triângulo didático”. Com toda presteza podem detectar qualquer desvio e rapidinho encaminham os alunos para um exército de fonoaudiólogos e psicólogos, querendo, com isso, omitirse de boa parte do trabalho que têm. É com tais pessoas que os pais vão ter que assinar um pacto de nãoagressão, que nem sempre é fácil respeitar. Podese imaginar que a criança fique bem perplexa; o funcionamento da escola é completamente contraditório ao discurso familiar, centrado no tal pleno desenvolvimento. Cabe à escola e à sociedade fazer o trabalho que os pais não fazem. Na escola, desejase ver uma só cabeça; e se por acaso a do seu filho for um pouco mais alta, os pais serão repreendidos — primeiro estágio antes da expulsão da criança. Já me aconteceu levar uma “chamada” de um professor, num pátio de escola, entre um busto da República e um monte de bancos de madeira. Era culpa minha n6

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Omeu filho nãO se interessar pelas aulas, brigar nO recreio, esquecer suas coisas em casa. Eu executava mal minha função de mãe. TiVe a impressão de estar diante de um juiz. E fiquei ali, muda, obrigada a assumir um ar contrito, tamanho o medo de meu filho ser expulso. Seria preciso encontrar, em desespero e no meio do ano letivo, uma escola privada que o aceitasse... É difícil, muito difícil ser pai de um estudante. Sobretudo de um estudante “atípico”, tradução para aquele que não se encaixa no lugar previsto: e parece haver cada vez mais deles. Se a escola não conseguir fazer a criança andar no passo certo, a sociedade vai se encarregar. Pela via da repressão. Em 2005, Nicolas Sarkozy era ainda ministro da Justiça quando incluiu, em seu anteprojeto de lei para a prevenção da delinqüência, o princípio de uma “detecção precoce das perturbações do comportamento” na criança pequena, “podendo levar à delinqüência” o adolescente. Isso significa o quê? Que em toda criança considerada não “normal” (associai, agitada...) se esconde um delinqüente em potencial e que a sociedade tem o dever de erradicar o mal pela raiz. Que seja bemvinda a paranóia da segurança... É algo delirante, mas que se baseia num relatório do Instituto Nacional da Saúde e da Pesquisa Médica (INSERM) francês. Ou seja: viva a ciência, o melhor aliado do policiamento generalizado. Graças a uma petição denominada “Nada de nota zero para crianças de 3 anos” e à condenação pelo Comitê Consultivo Nacional de Ética, o projeto de lei foi jogado no lixo. Mas o aviso foi dado. Seria a França laxista? Fala sério. O discurso dos que lamentam o assim chamado “laxismo” e os estragos causados por maio de 1968 não se sustenta. Pelo contrário, é a falta de jogo de cintura, de capacidade de adaptação e até de desordem que torna essa sociedade irrespirável. Aquelas e aqueles que não se encaixam nas categorias previstas são, primeiramente, postos de lado, depois punidos e, enfim, pura e simplesmente abandonados à própria sorte. SEM FILHOS

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É o que se passa em certos subúrbios: selVagens, caiam fora! Ou então coloquem uma máscara ninja, como se diz na música do Fatal Bazooka, e que pelo menos assim a gente não Veja mais suas caras feias. ViVa o modelo francês de integração, que consegue desintegrar todo mundo que não esteja integrado.

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o.

“C r i ar ” um fi l ho: M as em qual di r eção? 

A partir dos 6 anos, a criança traz da escola seus “deveres”. Deve res de casa que ela não tem a menor Vontade de fazer, e a gente se põe no seu lugar. Exercícios de gramática escritos em jargão pedagógico, “autoditados”, poemas capengas a serem decorados, tudo para acrescentar mais uma camada de trabalhos forçados à agenda já repleta... dos pais. Além disso, tudo o que a criança não entendeu na escola deVe ser reexplicado em casa. Dos deVeres, então, adivinha quem tem a incumbência. Na maioria das Vezes, a mãezona. É de esperar que dormisse no fundo da sua alma uma vocação frustrada de professora, pois ela vai gastar nisso muitas horas por semana, até o filho se sentir “independente”, o que pode demorar muito a acontecer. Muitas vezes a mãezona fica tão irritada com a má vontade da criança que acaba fazendo, ela mesma, os deveres, para ir mais rápido.  Já me aconteceu, em certas noites, de perder uma hora e meia para conseguir dar cabo dos deveres. E olha que meus filhos fo-

ram escolarizados numa ZEP (Zona de Educação Prioritária, que se traduz como escola para pobres) onde, se minhas informações estão corretas, a “equipe pedagógica” é menos exigente do que numa escola seletiva de bairro rico. Ajudar a fazer os deVeres de casa durante anos é um trabalho escravo inominável; devo dizer que, quando criança, detestava a escola, mas não gosto de explicar por que e, menos ainda, de ser repetitiva. Com meus filhos, tive a impressão de repetir todas as séries tão odiadas e isso até o dia em que, não me agüentando mais, deixei de lado e disse: “Crianças, viremse sozinhas e seja o que Deus quiser. Os resultados escolares continuaram tão fracos quanto antes, mas pelo menos parei de lavrar aquele solo árido do saber. E duplo o escândalo dos deveres de casa: para começar, os de veres escritos são teoricamente proibidos no ensino fundamental francês, mas os professores fingem não lembrar, provavelmente para manter um ar importante. Em segundo lugar, é evidente que os deveres são um fator agravante da fratura social e cultural, pois somente as crianças que têm um dos pais em casa para ajudálas (ou alguém remunerado no lugar) podem dar conta deles. Por que os pais aceitam tal pesadelo? Porque têm a impressão de que é “bom” para os filhos, que eles “aprendem coisas” passíveis de lhes proporcionar uma bagagem preciosa no futuro. De início, ingenuamente acreditei que apenas uma pequena minoria de revanchistas do saber aceitava, sem resmungar, transformar se diariamente em professor(a). No final de alguns anos, deime conta de que a França inteira estava tomada pelo mesmo vírus dos “bons métodos antigos” do vovô: debates em torno do aprendizado silábico,15 volta do uniforme, lengalengas moralizadoras

15E um método de leitura que parte do “bê-á-bá”, ao contrário do método global, adotado pelas escolas [francesas] a partir de 1968. I20

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SObre Oesforço e Otrabalho, requestionamento das escolas mistas. Quando Voltarão a pena de ganso e a palmatória? Mas a escola não basta para acompanhar a criança na ascensão às luzes do saber. Todo pai e mãe de classe média que se respeite acha que a criança deVe ler. Colocase então a aflitiva e crucial questão: “Como fazer meu filho ler?” E um verdadeiro desafio, pois disso dependem o desenvolvimento pessoal do fofinho, o progresso da sua inteligência, o desabrochar do seu imaginário. Uns broncos caricaturais e totalmente incultos, que lêem apenas um livro por ano (e sabese lá qual), discursam sobre a importância da leitura. São os mesmos que requentam para os filhos a frase que tanto nos encheu os ouvidos — e que deixou de ser verdadeira neste mundo em que um encanador ganha mais do que um clínico geral mediano ou um advogado: “Se tiver boas notas na escola, terá um bom emprego mais tarde.” Na verdade, a leitura é uma grande inimiga do sucesso material. O malentendido é total: as crianças que realmente gostam de ler são esquisitas e eu mesma sou uma prova disso. Quando era criança, nada mais me interessava: escola, música, passeios, nem mesmo férias. Resultado: sou associai e incapaz de “trabalhar em equipe”. A real paixão por leitura nos torna inaptos para o serviços rentáveis. Tudo bem, é um certo exagero, mas muitas vezes crianças que realmente gostam de ler se tornam no máximo bons assessores, ou vivem das subvenções públicas à cultura, de bicos no mercado editorial, são bibliotecários ou colaboradores mal remunerados e pouco considerados em jornais. De qualquer forma, são pessoas com instrução demais para os trabalhos disponíveis no mercado. São uns eternos amargos, para quem qualquer reunião na empresa é um suplício. A simples expressão “fechar um projeto” é outra tortura e qualquer entrevista de avaliação com um chefe parece um choque entre dois mundos. Esses desclassificados ainda são numerosos, mas tendem a desaparecer, pois os SEM FILHOS

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 joVens lêem cada Vez menos, sobretudo os que Vêm de formações “prestigiosas”, de escolas especializadas ou coisas assim. Sejamos sérios, a elite da nação não tem tempo a perder com liVros e com cultura: vade retro, Satanás.

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Fuja da neutralidade bem-comportada

O bebê é uma pessoa, já nos repetiram tanto. Foram os  psis  que nos puseram essa idéia na cabeça. Freud foi o primeiro a dar crédito, em seu trabalho, a uma criança (o pequeno Hans), depois Dolto, Winnicott... O que ouViram, no entanto, não era nenhuma amenidade. Foi à própria custa que deram ouVidos a crianças pequenas, pois eram pioneiros dispostos a entender uma palaVra que incomodava. MaS muitos educadores de hoje acham que a comunicação com a criança tem apenas um objetivo: integrá la ao mundo, fazer com que “se sinta bem”, que se “exprima”. Resumindo, a palavra que utilizam e que suscitam é puramente decorativa, sem qualquer efeito, nenhuma conseqüência. Tem a mesma função da comunicação empresarial: troca de conversa fiada, mas cheia de convicção. Tem uma função também instrumental. Com que finalidade? Tentar fazer com que as crianças obedeçam. E difícil, pois os pais não dão mais ordens aos filhos. Experimentam maneiras mais su

tis de mantêlas em seus lugares. NãO dizem mais “nãO” a EliOtt nem a Úrsula pois, de mOdO geral, nãO se pode mais dizer nãO. Da mesma maneira, Oseu chefe também nãO lhe diz mais “nãO”; ele diz “talvez”. Já Oseu gerente de banco assegura que Vai “estudar Oseu caso”; se for necessário (lamentando muito, apenas porque Você insistiu numa resposta), ele finalmente pode dizer: “Creio que não será possíVel.” Nada mais no mundo diz não. Tudo já foi Visto e explorado, dos planetas mais longínquos às partes mais recônditas do corpo. Até o processo de reprodução foi esclarecido. No que se refere aos desejos, ao inconsciente, ainda falta, mas as neurociências, ao que parece, estão debruçadas no assunto. Quem pode ainda nos dizer não hoje em dia? O terrorista, talVez. Ele, aliás, não contente em dizer não, acrescenta um “merda”, para fazer o serViço completo. Para ser um “bom” pai, no sentido que a sociedade espera, deVese ser neutro. O filho quer decorar o quarto com um cartaz imundo do Megadeath? A filha coleciona os adesiVos Diddl e os cola em todo lugar? Ele ou ela gosta de comer sempre a mesma coisa, recusa Verduras e o prato preferido é o hambúrguer com fritas do McDonald's? Sua expressão deVe se manter inalterada, sem demonstrar qualquer julgamento de Valor, pois isso pode “traumatizar” a criança. Tudo é admissíVel. Ela deVe poder “encontrar o seu espaço”. Na sociedade de hoje não fica bem Vociferar: “Tire essa imundice do seu quarto, até noVa ordem sou eu que decido aqui, pois sou eu que pago o aluguel.” Ou ainda: “Que porcarias são essas? Alguém que se interessa por coisa tão estúpida não pode ser carne da minha carne, isso é genética em mutação.” Os pais, como o chefe de empresa, deVem se manter calmos em toda circunstância e demonstrar sua capacidade de ouVir. Violência, então, nunca! Bater em criança se tornou inconcebível. Na Escandinávia, castigos físicos nas famílias foram literalmente proibidos. Um livro como Le bébé de Monsieur Laurent 124

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[O bebê do sr. Laurent], em que Ofértil e debochado Topor imaginou uma história absurda e cômica de um bebê pregado numa porta, provavelmente não seria publicado hoje em dia (aliás, não foi mais reeditado). Quanto a mim, sem aptidão para o uso de um martelo, confesso que já dei um tapa no meu filho. Bem sei que essas linhas são passíveis de chocar um leitor sensível e até valer uma denúncia à liga dos direitos da criança. Mas eis os fatos: ele corria de um lado para o outro, aos berros, na biblioteca municipal, incomodando todo mundo, sem ouvir minhas reclamações. Deilhe um tapa. Não ficou nada bem: uma senhora bem intencionada me explicou ser monstruoso bater numa criança. Quando lhe disse que cuidasse da própria vida, ameaçou chamar a polícia. Ao ter filhos, correse muito risco de ter problemas com as autoridades e com a opinião pública.

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 A  paterni dade i nfeli zmente é uma doce canti lena

Sempre contente, alegre, sorridente. Mesmo que choVa, que Venham reclamações do colégio ou que seu tio preferido tenha acabado de morrer. No trabalho, esperase de quem está em contato com a clientela que demonstre um permanente entusiasmo (a França, nesse ponto, ainda tem muito a progredir, e não sei se isso é ruim). Em casa, a mesma coisa. Repetese aos pais que eles deVem “despertar” a criança desde a mais tenra idade. ConVém conversar com ela, exclamar “Muito bem!” quando tatibitateia, fazê la brincar, ler para ela desde pequenininha, cantar cançonetas acompanhadas de gestos com as mãos, transformar o momento das refeições em “momento de convívio, agradável”, exprimir alegria e interesse diante da explosão de um arroto ou do conteúdo de uma fralda. Para conseguir fazer isso diariamente, é preciso ser idiota de nascença ou se encher de Prozac. Ver seus pais bancarem os palhaços o dia inteiro torna as crianças mais inteligentes?

TenhO minhas dúVidas. TalVez as faça ficarem igualmente idiotas. E uma pista para explicar o famoso e tão insistentemente repetido “baixo nível” dos alunos, que tanto preocupa os pedagogos desde... a Antiguidade! Sendo o filho um pouco mais Velho, é bom dar o exemplo. No diaadia, é difícil. Empanturrarse de torradas com Nutella no sofá, fumar maconha depois de um dia de trabalho, bebericar uma boa (ou não) garrafa de Vinho na cama não são espetáculos edificantes para uma criança. Arrastarse em casa com os cabelos grudentos e um penhoar sujo também não é um exemplo que a ajude a se tornar um adulto responsável e positiVo. Como, em tal contexto, ela vai poder “se construir”? Cair no choro na sua presença porque Josiana lhe aprontou uma boa ou porque você foi passada para trás numa promoção no trabalho é igualmente desaconselhado. Isso sem falar do bateboca com sua carameta de, acompanhado da respectiva cota de gritos e insultos: são cenas que condenam um filho a anos de divã, quando não ao alcoolismo e à delinqüência. O mais difícil é manter diante da criança um discurso asséptico sobre a sociedade em que ela acaba de entrar. Devese, no entanto, tentar. E falar dos “valores” (honestidade, consideração pelo outro, fidelidade à palavra dada), mesmo sendo coisas que não devem   ser respeitadas para escalar as etapas numa sociedade de concorrência e competição. Devese também explicar a igualdade entre homens e mulheres, comprando brinquedos antisexistas (boneca para os meninos, laboratório de química para as meninas, livros infantis sem os antigos estereótipos), mesmo que, em casa, não haja realmente igualdade. Nunca esquecer que os pais são os enviados especiais do Império do Bem. Os capatazes da terradosimsim. Conformismo e julgamento moral são rigorosamente necessários. O desprendimento, o ceticismo são malvistos. Você é naturalmente pessimista, ou até, de vez em quando, 128

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meio depressivo? Questiona o sentido da Vida, o peso da palavra “democracia”, “os valores emancipadores da República”? Traba lhese para banir essa negatividade mortífera. Quando se tem filho é preciso disfarçar e se esforçar; em toda circunstância, manter um discurso limpo e amigo, um discurso cidadão.  Sem aspereza. Neutro. Compassivo. Digno de um telejornal. Uma suave melopéia enfeitada com palavras positivas, como o discurso político. E o que a sociedade espera dos pais, apesar de alguns fraquejarem, pois é dura a tarefa. Se, apesar deste livro, você quer ser pai ou mãe, comece desde já a treinar na frente do espelho, pois é um trabalhão. Aconselho que se inscreva em aulas de teatro cuja diretriz poderia ser: “Pareça bem para os seus filhos e dê a eles uma imagem positiva da sociedade em que vivem.” Ser pai não é brincadeira de criança, mas é fazer teatro.

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 A maternidade é uma armadilha  par a as mulher es

3 culto da criança tem um peso enorme para as mulheres. A mulher francesa moderna é necessariamente mãe, trabalhadora e companheira. De preferência, magra. DeVese reconhecer que é pedir muito. Ainda mais porque as mulheres cumprem 80 por cento das tarefas domésticas. Na saída das escolas Vêemse sobretudo mulheres e o mesmo se repete nas reuniões de pais de alunos e no consultório do pediatra, quando um filho tem uma bronquite ou uma catapora. A maternidade significa, para muitas mulheres, sair rápido do trabalho para cuidar das crianças, perder as reuniões estratégicas que acontecem depois das sete da noite (são sempre depois das sete), recusar (ou nem mesmo postular) empregos mais interessantes, mas “cronófagos”. Se até recentemente as mulheres tiVeram pouco lugar na história cultural da humanidade, foi simplesmente por terem lhes deixado o trabalho sujo: o parto com dor e a criação da filharada. Até o século XX, poucas mulheres se notabilizaram na literatura,

na pintura, na música, nas ciências. Fazer filhos talVez fosse um substituto: “criar” um ser humano pôde ser Visto como equivalente da criação de uma obra. Um substituto ou um calaboca? “Criar uma obra” por meio da maternidade está ao alcance de todas; é uma Verdadeira democracia do útero. Algumas, entretanto, preferiram se exprimir por alternativas mais exigentes — e Hannah Arendt, Simone Weil, Marguerite Yourcenar e Simone de Beauvoir não tiveram filhos. Para Beauvoir, foi uma escolha, pois achava que não se pode ao mesmo tempo ser intelectual e boa mãe. Em O segundo sexo , ela definiu a maternidade como um obstáculo à transcendência. Pedese imaginar algo novo limpando bumbuns, dando ma madeiras e fazendo o filho decorar a tabuada? A questão continua em aberto. Devese reconhecer, no entanto, que as tarefas prosaicas e emburrecedoras da maternidade são um tremendo freio para o desfraldar das asas gigantescas do pensamento. As mulheres são vítimas de uma ordem injusta imposta pelos homens ou vítimas dos próprios filhos, que constituem boa desculpa para nada criar, nada realizar? Não respondo, apenas devaneio no meu canto: quem sabe o que me tornaria se não tivesse tido filhos, se estivesse menos atolada na administração doméstica, nas compras a fazer e nas refeições a servir? Confesso que só espero uma coisa: que meus filhos passem no vestibular para poder, enfim, dedicar mais tempo às minhas pequenas atividades criativas. Estarei com 50 anos. Depois, quando eu crescer, a vida para mim vai começar.

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 SeT mãe ou ter sucesso: É preciso escolher 

Na Europa, as mulheres que trabalham são maioria hoje em dia: um progresso, talVez, mas certamente não uma promoção, pois raras são bemsucedidas profissionalmente, apesar da política social favorecendo as famílias com crianças. A mulher francesa, com certeza, é invejada no mundo inteiro (creches, subsídios do Estado, generosas licençasmaternidade...), mas a diferença de salário entre homens e mulheres permanece por volta dos 27 por cento. Tornarse mãe significa perder dinheiro. A mãezona deixa de trabalhar todo o tempo que dedica aos filhos, prepara as refeições, passa o aspirador e recita fábulas piegas. Segundo uma economista, as mulheres perdem, em média, de 100 mil a 150 mil euros, ao longo da carreira, criando os filhos. Apesar de 80 por cento das francesas trabalharem, apenas 30 por cento chegam a cargos de responsabilidade. É um pouco melhor do que na Alemanha e, sobretudo, em comparação com a

Itália, mas pior dO que nO ReinO UnidO e, principalmente, do que nos Estados Unidos. Conhecem muitos presidentes de empresas, chefões das empresas de comunicações ou deputados do sexo feminino? O famoso “teto de Vidro” as impede de ter acesso aos cargos de responsabilidade. Estes, apesar de tudo, têm uma Vantagem: quanto mais se sobe na hierarquia, menos há idiotas acima de nós. Não é de espantar que as biografias de mulheres que “chegaram lá” nunca deixem de assinalar o número de filhos que tiVeram. São obstáculos que precisaram saltar para tornar a Vida interessante: é mais ou menos como correr uma maratona com pesos de cinco quilos (por filho) nos pés. A maternidade, por outro lado, é freqüentemente sinônimo de emprego em horário reduzido, sem perspectiva nem esperança de promoção: 31 por cento das mulheres trabalham hoje em dia em meio expediente. Muitas das que trabalham atuam no setor terciário ou, no máximo, na educação pública, que são atiVidades mal remuneradas, mas deixam tempo para o deVer materno. Para as mulheres, a negociação implícita é: “Você tem um trabalho que não é ótimo, mas reservam tempo para cuidar dos filhos; está reclamando de quê?” Quanto às menos diplomadas, as ajudas financeiras bemintencionadas literalmente as incentivam a abandonar o mercado de trabalho. Que não me venham falar dos “novos papais”, mais envolvidos com o lar do que as gerações anteriores de machões. E verdade, eles sabem trocar uma fralda e dar mamadeira. Mas nem por isso sacrificam suas carreiras. Prova disso: quando os homens se tornam pais, sua atividade profissional aumenta e eles investem ainda mais em seus empregos — ao contrário das mulheres. Estudos mostram que os homens que fazem brilhantes carreiras muitas vezes são pais de família cheios de filhos, enquanto as mulheres com mais sucesso freqüentemente não têm filhos. Não há dúvida, l 34

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as crianças são um acelerador de carreira para um e um peso para a outra. ProVa disso: no goVerno espanhol de Zapatero haVia, no início de 2007, oito homens e oito mulheres, e o primeiro grupo tinha ao todo 24 filhos, o segundo somente cinco. (Não, que o leitor se tranqüilize, não se trata de um problema de matemática escolar.) Querem a igualdade mulherhomem? Um bom começo é parar de ter filhos.

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Q uando o fi lho aparece, o pai desaparece

O pai não é mais O que era. NãO é mais aquele pai por VOntade diVina, que impõe a lei em Casa e diante de quem todo mundo fica manso. Ninguém sabe o que aconteceu com ele, desapareceu de fininho, de mãos dadas com o stakhanoVismo soviético, do qual, também, ninguém mais ouViu falar. O pai dos dias de hoje, na maior parte das Vezes, é um cara legal, de uns 40 anos, meio careca, cheio de amor para dar, razoavelmente desiludido com o mundo e consigo mesmo. Tem dificuldade de contar, à noite, como foi seu dia de trabalho, pois as crianças lhe cortam a palavra o tempo todo e ele mesmo, na verdade, se entedia no emprego. Inúmeros sociólogos e  psis discorrem sobre a morte do pai e o declínio da autoridade. Entretanto, não foi o pai que morreu; foi a sua palavra, capaz de afugentar todo mundo, que se mandou. E nem por isso vivemos numa sociedade permissiva, bem pelo contrário, só que a obediência nos é imposta por sistemas, e não por pessoas. Na década de 1970, Christopher Lasch, filósofo america-

nO à frente dO seu tempo, teorizou sobre a idéia de que o momento atual se caracteriza por um “paternalismo sem pai”: ninguém pode se Voltar contra os pais de hoje, pois eles continuam calmos e abertos, sem assumir uma posição de autoridade e de lei. Ao lado disso, o paternalismo floresce, ao sabor do EstadoproVedor, de um sistema social protecionista e de uma burocracia que se pretende benfazeja. Exemplo disso: nas grandes estruturas administrativas ninguém mais lhe fará críticas diretas, mas esperase que você, por si só, se autoimponha o que a organização deseja. O poder, dessa forma, se torna totalmente impessoal e não precisa mais de uma autoridade qualquer para que as pessoas obedeçam. O rolo compressor funciona sozinho. É esperto, não? Não há mais pais, há apenas genitores. E olhe lá! Tornarse pai, para o homem, é ter seu espaço reduzido ao devido tamanho. O homem não é mais quem decide a paternidade. Há 50 anos, eram eles que transformavam as mulheres em mães, às vezes até contra a vontade delas. A relação de forças, hoje em dia, se inverteu. Apenas a maternidade é voluntária, não a paternidade. Os homens são obrigados, para serem pais, a ser aceitos como tal. As mulheres têm, atualmente, o total controle sobre os filhos: se devem vir ao mundo ou não, por quem devem ser criados, quais nomes terão. As mulheres não fisgam mais os homens pela boca, mas pela barriga — a delas próprias. Enquanto o pai divorciado, em nome do reconhecimento igualitário, combate uma Justiça que o priva dos filhos, a mulher reivindica o reequilíbrio das tarefas domésticas e parentais nas famílias. E injusto? Bastante. Mas a verdadeira igualdade entre os sexos é provavelmente uma quimera. No final das contas, como são as mulheres que continuam a assumir o essencial do trabalho escravo em casa, é bastante lógico que também decidam, não? Quem trabalha que arbitre: se a mesma lógica se aplicasse ao mundo dos negócios e da política, as coisas seriam muito diferentes. 138

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 A cri ança de hoj e é uma cr i ança perfei ta: Bem-vindo ao melhor dos mundos

Ser pai ou mãe é Vigiar de perto a Saúde dos queridos rebentos. As crianças gozam de ótima saúde, talvez graças à constante Vigilância de que são objeto. Nada mais de tuberculose nem cólera. A mortalidade infantil nunca foi tão baixa. No entanto, nunca se temeu tanto por suas vidas. Muitos pais se precipitam e os levam ao pediatra ou lotam as emergências dos hospitais ao menor resfriado. Os grandes males foram erradicados, mas outros surgiram. Nos últimos Vinte anos multiplicaramse as doenças noVas, que Vão desde as perturbações do sono aos problemas de desenvolvi mento afetiVo, passando por alergias, atrasos de linguagem, obesidade, fobia escolar... A maldição dos pais é a criança hiperatiVa, uma doença inventada recentemente. Há poucos anos, era considerada apenas como um fio desencapado: a campainha do seu relógio biológico toca ao amanhecer e, durante o dia, encadeia besteira atrás de besteira, fala sem parar e berra à menor contrariedade. A criança

hiperatiVa preocupa ainda mais... por ser difícil diferenciála de Outra qualquer. E exatamente como a criança contemporânea, mas piorada. Apenas pior. E esse “apenas” que torna a situação in suportáVel. Algumas crianças acumulam senões: no grande sorteio dos gametas, Você corre o risco de ganhar um obeso hiperatiVo. Para eVitar doenças, é preciso defender a criança de si mesma. Explicar tudo sobre todo tipo de coisa, com um tom calmo e res ponsáVel. ConVencêla pela força dos argumentos a comer Vagens, tomates, e não apenas pizzas cheias de ketchup e hambúrgueres.  Já Vi pais arrancarem os cabelos porque o filho “não come” (e, no entanto, está ViVo; como consegue?). Como não se pode forçálo — isso não se faz mais —, é preciso muita diplomacia e paciência para que engulam uma ou outra colherada de legume ou um pedaço de fruta. Normalmente os pais sabem como fazer, tendo em uma das mãos a ameaça e na outra a persuasão, pois é como muita gente se dirige a eles: os políticos, os diretores da empresa e alguns médicos. Não é o adulto uma criança irresponsáVel, cercada de programas sociais, higienistas, humanistas, protetores? DeVese ser maternal com ele, proibindo o fumo, explicando o lado ruim do álcool... Tudo isso é para o seu próprio bem e para o bem da coletividade. Para educar o cidadão, precisase de pedagogia, essa palaVra repetida o tempo todo: só a pedagogia faz recuar a demagogia. Acham que somos crianças? Pessoalmente, quando ouço a palaVra pedagogia, saco meu reVólVer (quer dizer, minha caneta). A pedagogia é a arte de enganar uma pessoa sem que ela se dê conta. A criança deVe estar com boa saúde, integrada em grupos, adaptada à escola. E enorme a pressão que lhe pesa nos ombros. E preciso haVer compensação por tudo o que se dá a ela, todos os brinquedos, todo o tempo despendido, todas as esperanças depositadas. Tudo isso se paga, e caro. Para rentabilizar a quantidade CORINNE MAIER

de cuidados e angústias investida nela, a criança deVe apresentar bons resultados (físicos e mentais). Nesse sentido, devese consultar um logopedista se ela custa a aprender a ler, um ortodon tista para lhe endireitar os dentes, um nutricionista para ajudar a emagrecer, um psicólogo caso ela não pareça “plenamente desenvolvida”. Só uma criança da qual não se espera muito (foi o meu caso, e os meus pais nem por isso eram uns monstros) sabe e aprecia, já como adulto, a liberdade que isso dá: o que quer que se faça, não vai decepcionar. Você quer se assegurar de ter um filho em boa saúde, bem disposto a enfileirar, como se fossem pérolas num colar, os anos de contribuições que dão direito à única liberdade do assalariado (refirome à aposentadoria)? Graças aos progressos da genética, você pode apelar para diagnósticos préimplantatórios (denominados em geral DGPI, pois sem o acrônimo que impressiona bem, a palavra perde sua pose e fica totalmente desamparada). Tratase de uma análise genética para permitir que se saiba, antes ou durante a gravidez, se um embrião sofre de certas doenças ou deformações hereditárias. Com que finalidade? Ter crianças sadias. Prontas para funcionar por muito tempo, como as pilhas Duracell. Vêm com garantia de fábrica. Criança defeituosa? Descartase. Anomalia? Mais adiante, não aqui em casa. Mozart, hoje em dia, como muito provavelmente sofria da síndrome de Gilles de la Tourette, seria considerado falho e indigno de viver. Até o momento, apenas 34 crianças nasceram na França tendo passado por um DGPI, mas é bem provável que futuramente venham mais. Um dia, todas as crianças nascerão sem deficiência alguma, sem doença, sem câncer, sem esquizofrenia, sem depressão. A existência delas, com isso, não apresentará defeitos? E o mundo em que vão viver será também sem defeito? Tenho sérias dúvidas...

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Cuidado, criança: Perigo

FilhO é perigoso. POde lhe Valer processos judiciais e lhe custar a liberdade (que já era relatiVa, conVenhamOs). POis Opequeno ser inocente muito facilmente denuncia os pais e os enVia às garras da Justiça, sem maldade alguma. Lembremos que, nos regimes totalitários, as crianças são rapidamente cooptadas; o bom comu nistazinho que entregaVa os pais à polícia secreta por se terem enganado ideologicamente serVe de modelo. A França não fica atrás: Outreau, uma cidade do norte, lúgubre, onde, é preciso reconhecer, há pouca distração, serVe de exemplo. Em 2001, por denúncia de Várias crianças, 18 pessoas foram presas e passaram de um a três anos numa cela — uma delas se suicidou. Foi um erro judiciário: os diabinhos tinham mentido, com o apoio de peritos superpreparados e levados a sério por juizes incompetentes. Outreau primeiro ultraja e depois assusta. Podia ser com qualquer um de nós, pais. Um calafrio nos passa pela espinha. Aliás, o mesmo quase aconteceu com um amigo meu: sua filha de 13

anOS disse na escola, num dia de mau humor, que Opai a tinha amarrado na Cama. A polícia assumiu o Caso e os pais foram Chamados a depor. Foram necessários Vários meses para proVar inocência. Aliás, é preciso lembrar a “circular Ségolène Royal”, de 1997, que obrigaVa as autoridades escolares francesas a nunca duVidar da palaVra das crianças que dissessem ter sofrido qualquer tipo de abuso. Por que a palaVra da criança tem mais peso do que a do adulto? Porque ela diz a Verdade; sendo Vítima em potencial, ela é obrigatoriamente inocente. Não estamos longe do mito da pureza original. Além disso, como os pais as acham a sétima maraVilha do mundo, estão convencidos de que inúmeros adultos mal intencionados as rondam para fazêlas passar por odientos abusos sexuais. Lolita , o diabólico romance de Nabokov, poderia ser publicado nos dias de hoje? Não sei não. Nosso mundo está habitado pelo violador como imagem do mal absoluto, pior do que a antiga SS. A encarnação do assassinoestuprador de crianças em toda sua abjeção é Marc Dutroux, um monstro culpado de inúmeros assassínios e estupros. Foi em nome de Dutroux que tivemos Outreau, isto é, uma espécie de princípio de precaução de amplo espectro: visto que em todo adulto dorme um Dutroux, vamos trancafiar todos os adultos. Não é preciso ser denunciado pelo próprio filho. Fotografálo  já basta para que se tenha ten ha problem prob lemas as com co m a Justiça. Just iça. Q u e os ico nófilos se cuidem. Em 2005, uma artista holandesa, Kiki Lamers, foi condenada a oito meses de prisão com sursis  e pagou 5 mil euros de multa por ter feito fotos dos próprios filhos nus, para usálas em suas pinturas, como modelos. A proteção da criança  justific  jus tificaa a repressão; parec pa recee que estamos estam os sonhan son hando. do. Mas o pesadelo continua e, em 2006, o diretor da Escola de BelasArtes de Paris, HenryClaude Cousseau, foi posto sob observação por ter organizado, em 2000, uma exposição, Présumés innocents: Vart I44 I44

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contemporain et Venfance   [Supostos inocentes: a arte contempo-

rânea e a infância]. O que haVia de Violento, pornográfico ou contrário à dignidade naquela exposição que juntaVa a nata da arte contemporânea, Christian Boltanski, Jeff Koons, Cindy Sherman e outros? Anette Messager desencadeou a fúria dos autoproclama dos defensores da infância com uma obra intitulada Les enfants aux yeux rayés  [As crianças de olhos riscados], na qual mostra fotos de crianças publicadas em jornais, cujos olhos foram riscados com uma caneta esferográfica. É de perder a Voz. Isso é graVe, inspetor? Aposto que um dia as ultrasonografias Vão substituir a imagens pornográficas e Vão ser trocadas às escondidas. No fundo, o princípio é o mesmo: tudo deVe ser Visto até o osso, estando fora de questão deixar algum mistério solto em algum canto.

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38 . Por que se sacrificar tanto  por um futur o excl uí do? 

VOcê Vai carregar Oseu filho por décadas. Um Verdadeiro peso de que será difícil se liVrar. Um conselho: se é para sustentar um parasita, que seja um gigolô. É mais agradável e, pelo menos, Você sabe por que paga. Você há de dizer que dentro de Vinte anos o mundo será mais acolhedor para os jovens; mas isso é bem pouco proVáVel, já que as coisas, desde a última geração, cada Vez mais se degradam. Tem início aqui um momento cabeça : a criança encarna o que o psicanalista Jacques Lacan denominou objeto a (objeto pequeno a)y ou seja, ela ao mesmo tempo é um objeto maravilhoso e um dejeto. Antigamente era um pouco disso tudo. Por muito tempo foi vista como um parasita. Nem sempre desejada, longe disso, sua existência era incerta. A gente se lembra da indiferença com que Montaigne, em seus Ensaios,  considerava os próprios filhos, quase todos mortos em idade prematura: “Prefiro um bom livro a um filho”, dizia ele, basicamente. É verdade que todo recém

nascido brota do desejo dos seus pais, permanecendo, por bastante tempo, um parasita na família ou no seu clã. Hoje em dia, a criança é exclusivamente um objeto maraVilhoso. E isto não é tão bom assim, pois forçosamente vai se tornar um jovem, mas para o qual está previsto o papel pouco atraente de dejeto, de outsider. Está fora de cogitação a introdução de algo novo no mundo e o  jovem tem como tarefa apenas a confirmação da juventude como mito. Compreendese que muitas estrelas não queiram crescer, Michael Jackson em primeiro lugar, mas também os rebeldes, como Brad Pitt e Johnny Depp. A tão mimada criança tem pela frente um futuro de jovem descartável. A sociedade preza sua beleza, sua juventude e seu frescor. É um objeto de luxo a ser admirado, mas que deve se manter calado. Refirome ao jovem que vive em países ricos, pesados, onde tudo já foi feito e experimentado: ele sente que não é desejado como tema. Não havendo mais, na Europa, guerras nem colônias, que eram as tradicionais saídas para a juventude desocupada, o jovem pode apenas girar os polegares, à espera de dias melhores. Ele tem, é verdade, direito ao sexo, o que não era o caso até a década de 1970 — lembremse de que Maio de 1968 começou porque os rapazes queriam ter acesso aos dormitórios das moças. Gozar, tudo bem, mas nem por isso pensem que podem dar palpite sobre o que for, mesmo sem falar em mudar o que seja. A França, país criançófilo por excelência, mostrase bem pouco acolhedora com relação a seus jovens, oferecendo uma expectativa de desemprego em massa, contratos de trabalho precários e moradia exígua até, no mínimo, os 30 anos de idade. Na faixa etária dos 2025 anos, apenas um jovem em cada quatro trabalha, e esses que conseguiram “se inserir” carregam nos ombros toda a “flexibilidade trabalhista” que a França não quer de jeito algum: 87 por cento dos jovens têm um contrato precário — isto é, um 148

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emprego de merda. Mais pObres dO que Os pais na mesma idade, apesar de terem mais diplomas, esses baby-loosers  são uns fardos para o sistema do segurodesemprego. São delinqüentes em potencial ou, aqueles que se safam um pouco melhor, desclassificados sociais. O sistema precisa de indivíduos sem história, sem uma identidade marcada nem fixa, ViVendo num presente em frangalhos. Seu filhâo, futuro “sememprego”, Vai ViVer um dia atrás do outro uma Vida sem ideal, sem projeto nem qualquer sonho além daquele de “se integrar”. Segurança, certeza, domínio da própria Vida — ele Vai esquecer até mesmo o sentido dessas palavras. Não terá motivo algum para estar ali. Rápido, cada vez mais rápido, para o lixo. Ele será a imagem do próprio modo de vida, em que nada foi feito para durar e todos os objetos úteis e indispensáveis de hoje se tornam os rebotalhos de amanhã. Na incerteza do dia seguinte, na aflição do futuro, ele vai se ver obrigado a se virar, sem conhecer as regras imprecisas de uma sociedade que as embaralha de propósito. Não há mais “modo de usar” para quem nela quiser traçar seu caminho: se você tem filhos, nada tem a lhes transmitir, receita alguma, nenhum know-how  que valha. Não é surpreendente que o número de jovens adultos sofrendo de depressão tenha dobrado em doze anos.16 De Gaulle dizia que a velhice era um naufrágio; hoje em dia é a juventude.

16 Segundo

a Fundação Joseph Rowntree, citada pelo jornal The G uardi an , na edição de 27 de novembro de 2002: John CarVel, “Depression on the rise among  young” [Depressão em alta entre os jovens]. SEM FILHOS

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39 *

Crianças demais na Terra

Bens em demasia, bares em demasia, lOjas em demasia, assim cOmO um exagero de diferentes tipOs de pão integral orgânico. Gente demais. A população mundial conta 6,5 bilhões de indivíduos; em 2030, deveremos estar próximos dos 8 bilhões. São os pobres que têm mais filhos, com a taxa de fecundidade nos assim chamados países desenvolvidos tendo caído abaixo do número mágico de 2,1 filho por mulher, considerado taxa de substituição (população com crescimento zero). No entanto, o planeta não está superpovoado. Se as populações da índia e da China, reunidas, se mudassem para o continente norteamericano, ele não ficaria mais povoado do que a Bélgica, a Holanda ou a Inglaterra. O problema é a superpoluição. A população relativamente insuficiente dos países ricos consome dois terços da energia total utilizada. Na verdade, não há gente demais no planeta; há ricos demais. Nós, bicões planetários, é que consumimos mais e mais. De fato, é justo ter filhos, crianças que consumirão ainda e cada vez

mais, em prejuízo dos pobres? Ninguém precisa dos nossos filhos, pois nós e eles somos os filhos mimados de um planeta que está encurralado. Para quem ViVe na Europa ou na América, ter filhos é imoral: são cada Vez mais recursos raros desperdiçados por um modo de Vida sempre mais Voraz, mais fantasista, mais sedento de combustíveis, mais destruidor do meio ambiente. Ter filho num país rico é um ato nãocidadão. São aqueles que decidem não têlos que o Estado deveria ajudar. Menos desemprego, menos amontoamento, menos guerra. Imaginemos um pouco a França com vários milhões de habitantes a menos: menos gases de efeito estufa, filas para alugar apartamentos a preços exorbitantes, engarrafamentos na autoestrada no fim de semana, menos confusão diante dos cinemas para ver Borat, prazos de espera menores para uma cirurgia ... Um verdadeiro país dos sonhos. Outros países da Europa têm a inteligência de ser menos férteis do que a França. Prevêemse, no horizonte de 2050, uma Alemanha povoada por somente 73 milhões de habitantes (80, atualmente), uma Itália com 50 milhões (em vez de 58), a Espanha com 35 (em vez de 40). Você tem vontade de visitar a Grande Mesquita de Córdoba sem ser tragado por uma horda de turistas, conhecer a Capela Sistina com toda calma? Amanhã será possível. E preciso imitálos. Franceses, esforcemse mais no caminho da desnatalidade. Sem filhos  é um objetivo que se pode atingir, havendo solidariedade: se estivermos todos atentos, espermatozóide algum chegará ao óvulo.

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40 . Vire as costas aos ridículos dez mandamentos do “bom” pai 

— O filho é mais importante do que Você ou qualquer projeto Seu. Mais importante do que o casal, do que todas as demais crianças, todos os adultos ViVos ou mortos, ou a sociedade em que se ViVe. — DeVemse transmitir Valores “frouxos” (tolerância com relação ao outro, honestidade) que ninguém respeita e que não ajudam a se inserir socialmente ou ganhar dinheiro — são, inclusive, empecilhos. — Devese desejar a sua “felicidade”; ninguém sabe o que é isso, mas ele talvez venha a saber, se você se dedicar muito ao trabalho. Os jovens de hoje não parecem tão felizes assim? E porque os pais não fizeram o bastante por eles, só isso. — Você deve fazer com que ele esteja ocupado o tempo todo, da maneira mais variada possível. E uma trabalheira enor

me, mas necessária para que ele seja “estimulado” e alcance o “pleno desenvolvimento”. Seja um exemplo para ele: nada de fumo, birita nem suru ba em casa. Nada de mau gosto nem piadas impróprias. O ideal é que não haja lágrimas, brigas nem lutos, mas isso é às vezes inevitável. Proteja seu filho dos múltiplos perigos que o espreitam, pois ele é uma vítima em potencial; o que quer que ele faça, nunca será culpado nem responsável. A criança sempre diz a verdade. Prepare seu filho para que ele se “adapte”, circule, seja “flexível” num mundo em transformação. Não esqueça que um dia ele estará no mundo, antes de mais nada, como um turista.  Jamais bata nele. Nunca punição alguma nem esculacho: a escola e a sociedade farão isso a marretadas, para que ele entre nos eixos. Fale com ele (o mais que puder) e explique (tudo e muito mais). Seja positivo. Fale do mundo em que ele vai viver quando crescer, um mundo cidadão, plural, globalizado, contrário às discriminações: ele vai ficar cheio de vontade de crescer. Mas não tão rápido, pois o único e verdadeiro paraíso, afinal, é a infância...

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CONCLUSÃO

Criança? Não, muito obrigada Nada de criança, obrigada. Mais Vale eVitar. A baixa natalidade é a única esperança. Senhoras, o futuro do país está em suas mãos. A última liberdade é “preferir não...”. Como Bartleby, o herói sub VersiVo de Hermann MelVille, que espalhava desordem no trabalho com sua pouca vontade e, manifestamente, não tinha filhos. “Preferir não...” é a fórmula do pensamento negativo, da dúvida desconstrutora. E o refúgio de quem não tem a ingenuidade de acreditar que tem soluções a propor, ou o cinismo de fazer os outros acreditarem que tem. E o estandarte daqueles que se perguntam por que devem dizer sim, cheios de entusiasmo e bons sentimentos, a esse repeteco do melhor dos mundos que nos vendem como a meta final de séculos de progresso e de humanismo. Eu mesma preferiria não ter filhos. Não trabalhar. Não assistir ao telejornal. Não participar da competição econômica. Você também pode escolher “preferir não...”. Nãozistas de todos os países, minhas irmãs e meus irmãos, mantenhamonos desunidos, céticos e, se possível, sem descendência.

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