351363229-A-Missao-Como-Obra-de-Deus-VICEDOM-Georg-F.pdf

March 29, 2019 | Author: PrRoni Vitor | Category: Catholic Church, Trinity, God, Faith, Revelation
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o objetivo da redenção e da missão? - Por isso não se pode fundamentar a missão como o faz Holsten na fundamentação da missiologia. Ele parte tãosomente do motivo. Este, porém, só se torna efetivo se, simultaneamente, tam  bém tivermos sempre em vista o alvo16. Hoje se tenta encontrar a resposta fundamentando-se a missão a partir do senhorio régio de Deus. Seria possível concili ar essa resposta com a idéia básica da missio Dei? Creio que podemos compreender o agir de Deus com os seres humanos objetivamente tanto sob a idéia do senhorio de Deus quanto sob a idéia da missio Dei. Os dois conceitos, certamente, não descrevem o mesmo processo, mas têm muitos pontos em comum. Vendo a missio Dei fundamentada no fato de que Deus é Deus, então também o senhorio de Deus tem nela sua origem última. O alvo da missio Dei é incorporar os seres humanos na basileia tou theou, no senhorio de Deus, e transmitir-lhes seus dons. Com isso a justificação, que  para Holsten constitui o ponto de partida para todo pensamento missioná rio17, não é depreciada, e, sim, está envolvida pelo agir global de Deus com as  pessoas, que é maior do que a mera declaração de que o ser humano é justo e a recepção em sua comunhão, porque com o Reino é dado tudo que ele tam  bém faz alhures em favor do pecador justificado. Pois a justificação consiste cm nada menos do que na recepção no reino de Deus, c a doutrina da justificação destina-se a responder nenhuma outra per gunta a não ser como entramos no reino de Deus... Quem está justificado está aceito no serviço de Deus.18 Portanto, o reino de Deus poderia ser descrito como alvo da missio Dei. Outra relação existe no parceiro tanto da missio Dei quanto da basileia, a saber, o mundo do gênero humano. A partir dele é motivado o agir de Deus em seu amor e a ele está voltado. Por isso queremos, num primeiro passo, descrever esse vis-à-vis,  para que se nos tornem claros o alvo do envio e o dom da basileia.

2. O parceiro de Deus Ao contrário do que acontece em outras religiões, o parceiro de Deus existe pelo fato de Deus haver criado o mundo e as pessoas. O mundo não é uma emanação da divindade e, portanto, uma parte dela. Ele também não surgiu através de um nascimento. Sobretudo, porém, o mundo não surgiu ao lado de Deus ou em oposição a ele, de modo que representasse uma força oposta. Portanto, a relação não é nem dualista nem emanacionista. Ambas 16 W. HOLSTEN, op. cit. Cf. tainb ém W. ANDERSEN, Die kerygmatischc Begründung der Religions und Missionswissenschaft,  Evangelische Missionszeitschrift, 1954, pp. 29ss.; Hendrik KRAEMER,  Religion and the Christian Faith, London, 1956, pp. 196ss. 17 W. HOLSTEN, op. cit., pp. 52ss.; 61. 18 W. LÜTGERT, Das Reich Gottes und die Mission, p. 97.

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essas formas de explicação, conhecidas das outras religiões, estão completa mente fora de cogitação. O mundo com os seres humanos é criação de Deus, que veio a existir através de sua palavra todo-poderosa, de acordo com sua vontade. Portanto, ele próprio criou para si um parceiro, um tu, e com isso um campo de atuação. Este já era o caso antes da queda, pois a palavra acerca da imagem de Deus só pode significar que Deus criou para si um ser que  pudesse ler comunhão com ele e que encontrava nela o cumprimento de sua vida.  Nessa comu nhão não havia necessidade de um envio especial nem da acentuação do se nhorio de Deus. Este existia simplesmente. A comunhão que Deus concedia aos seres humanos era a basileia de Deus. Com isso o ser humano se encontra va sob o governo de Deus. Essa parceria de Deus na comunhão é restabelecida  pela redenção, sem que com isso o ser humano fosse absorvido na divindade, como o imaginam outras religiões. Redenção não é retorno à divindade, mas à atitude correta em relação a Deus. O ser humano caiu fora dessa parceria na qual se encontrava pela cria ção. A queda somente foi possível porque o ser humano era uma criatura de Deus. Se tivesse sido uma emanação de Deus, não poderia ter ofendido a Deus ou perder seu caráter divino. Por isso, sem dúvida, encontramos delitos do ser humano nas outras religiões, mas não pecados que tornassem a pessoa culpada  perante Deus. Nelas, se entende pecado sempre como atitude errada em rela ção ao divino, através da qual o ser humano se prejudica a si mesmo. Pecado como delito contra Deus é reconhecido somente quando a pessoa conhece a Deus como Criador e Senhor através da revelação. Então também necessita de um redentor. Por meio da queda foi perturbada a relação entre Deus e o ser humano, a inter-relação se tornou uma relação hostil po r culpa do ser humano. Com isso o ser humano saiu da comunhão com Deus. Ele fugiu de Deus e passou a desenvolver-se ao lado dele - é o que pensa - para chegar a ser uma grandeza autônoma que teria a liberdade de aceitar a Deus ou de não o aceitar. Todo seu esforço vai no sentido de impor-se ao lado de Deus ou contra Deus. Nessa tentativa chega ao cúmulo de c rer estar fazendo um favor a Deus se retornasse a ele, de maneira que agora Deus se tornaria dependente da mercê do ser humano. Portanto, o ser humano pecador questiona o senhorio de Deus. Por meio de sua natureza determina da pela queda, porém, o ser humano também envolve toda a criação restante na inimizade com Deus. Visto, porém, que possui na relacionalidade com Deus sua verdadeira razão de ser, sem o que não pode existir, tenta encontrar para si um substituto, procurando numa outra religião uma relação com a divindade que lhe seja conveniente. As religi ões, por mais profundas que sejam as idéias que defendem, são uma prova evidente desse desenvolvimento. Elas revelam a todo instante que também o ser humano após a queda não pode negar sua destinação para a comunhão com  Deus. Portanto, surgiu no âmbito da criação uma área que quer subtrair-se constantemente ao senhorio de Deus e que o combate. Superar essa área que lhe é hostil, recolocar o ser humano na correta posição de parceria, restabele cer a comunhão da pessoa com Deus e libertá-la do pecado - este é o objetivo e o conteúdo da missio Dei e do senhorio de Deus. 22

Ao mesmo tempo, também depois da queda, Deus considera seu parcei ro uma criatura. Por isso não destruiu simplesmente o ser humano pecador, como teria merecido seu desejo rebelde de ser ele mesmo o senhor. Antes,  permaneceu fiel a si mesmo em sua relação com suas criaturas, e desde a queda procura reconquistar os seres humanos, com longanimidade e paciên cia, através de juízo e misericórdia, e proporcionar-lhes a participação na basileia. Se não for por outra razão, deveríamos, a partir dessa atitude de Deus, guar dar-nos de descrever o senhorio de Deus em analogia ao domínio humano.

3. O outro reino Com essa exposição, porém, ainda não descrevemos em sua enormidade e  profundidade o abismo criado entre Deus e as pessoas por causa da queda. Por isso mesmo ainda não pudemos desdobrar a extensão do agir salvífico de Deus. A teologia evangélica hesita bastante em colocar ao lado da esfera do senhorio de Deus o outro, que lhe é oposto. Não obstante, é preciso saber que não se  pode falar da basileia de Deus sem falar de seu contrário, da dominação à qual o ser humano está subordinado. O embate entre as duas esferas de domínio per faz propriamente o tema da Sagrada Escritura. Não devemos atribuir esse fato à limitação dos autores bíblicos e ao condicionamento deles à época. Também a outra esfera de domínio é um fato e nos está preestabelecido da mesma forma como Deus em sua criação. Em todo caso, a Bíblia tem a mais imponente visão e a mais profunda compreensão de História que se pode conceber.  Não é nosso propósito desdobrar aqui uma satanologia, nem explicar a origem do mal. Falamos tão-somente do fato. Sem dúvida, encontramo-nos di ante de um mistério. A Bíblia fala do diabo sem dar explicações sobre sua proce dência. Fala dele como de uma realidade: ele é inimigo de Deus e dos seres humanos. Por isso é preciso vencer o reino dos diabos (Mt 4.3; cf. Lc 4.5). Ele está subordinado ao príncipe do mundo (Jo 12.31; 14.30; 16.11). Seu reino é um todo coeso (Mt 12.26; cf. Lc 11.18), porque concentra em si todas as forças opostas a Deus. E ele que seduz as pessoas e as leva à desobediência, procuran do, portanto, subtraí-las à esfera divina (Ef 6.11; 1 Pe 5.8). Ele c o inimigo do reino de Deus e logo também de sua missão, a qual combate constantemente (Mt 13.39; Lc 8.12). Assim como Deus, através de seu Espírito, concede aos seus força para uma vida que lhe agrada, assim o diabo transmite aos seus a força  para o mal (Jo 8.44; Ap 13.2s.). É ele, portanto, que, em última análise, seduz as  pessoas ao pecado, transformando-as constantemente em rebeldes contra Deus. Ele realmente exerce domínio como o entendem os seres humanos em virtude do pecado. Com seu reino ele é o adversário de Deus. Por isso Jesus entendeu que o objetivo do senhorio de Deus e o sentido de seu envio era o de destruir as obras do diabo e julgar o príncipe do mundo (1 Jo 3.8; Jo 16.11). Isso tem que estar claro, inclusive sob o risco de sermos tachados de fundamentalistas. Quem não conta com essas realidades é incapaz de executar a tarefa de Deus. Também não poderá compreender a derradeira dependên 23

cer ao povo (Rm 2), nem a ocupação (Mt 24.40), nem a mais íntima comunhão das pessoas entre si (Lc 17.34), c podemos acrescentar, também não o fato de  pertencerem à mesma Igreja. Somente a fé traça o limite, somente o fato de se  pertencer ao reino de Deus. É a ele que as pessoas devem ser chamadas pela missio Dei.

 4. O reino

de Deus

O reino do mundo ou do diabo é a expressão mais abrangente para a  perdição dos seres humanos, que não podem mais escapar dele por forças  próprias nem voltar à comunhão com Deus. Por isso Deus decidiu ajudar a essas pessoas, arrebatá-las do reino das trevas e transportá-las a seu reino por meio de sua missio.  Dessa maneira o reino de Deus não se torna apenas o oposto do reino dos diabos, mas, simultaneamente, o ponto de concentração dos que foram libertados de seu poder. Infêlizmente o pietismo estreitou o conceito de reino de Deus a tal ponto que o reino de Deus e o senhorio de Deus consistiam apenas na soma dos convertidos21. Para Warneck, porém, o reino de Deus é a manifestação antimundo que, conforme a vontade de Deus, deve abranger todos os seres humanos, o que, todavia, não significa que todos se deixem chamar para dentro dele22. Com esta última definição, porém, ainda não está dito tudo, pois não é somente o mundo do gênero humano que está sujeito ao domínio de Deus. Ele também não se restringe àqueles que retornam à comunhão com Deus. Pois Deus não dispensou absolutamente nada de sua criação de sua esfera de domí nio. Não existe um mundo que pudesse subsistir ao lado dele. Inclusive o reino dos diabos tem que servir, em última análise, a seus objetivos. Deus é rei (SI 93.1; 99.1) e reina no mundo inteiro e sobre o mundo inteiro (SI 103.19). Ele tem o poder, a glória da dignidade real, a eterna constância para isso (Mt 6.13). Todavia, tanto por sua natureza quanto por sua forma de expressão, seu reino é um reino oposto ao reino do mundo. Por isso, em contraste ao reino do mundo, ele pode ser descrito simplesmente como reino dos céus. Portanto, ele acontece de uma forma contrária ao reino do mundo. Isso se evidenciará so  bretudo quando tratarmos do conteúdo de seu reino e de seus dons. Ele reina em justiça, e o direito procede dele (SI 45.6; 49.3). Em seu reino não há mais separação entre as pessoas, não existem diferenças raciais, os contrastes sociais estão superados (Mt 8.11; Lc 13.29). Por isso esse reino contém tudo o que a comunhão com Deus oferece e pelo que as pessoas anseiam desde a queda. Esse reino, que Deus cria para si agindo com as pessoas, significa, simultanea mente, a redenção delas. Por isso sua proclamação pela missio  é evangelho, e

21 W. FREYTAG, op. cit., p. 2. 22 Gustav WARNECK  , Evangelische Missionslehre, 1897, vol. III/1, p. 170.

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Traduzido do original  Missio Dei. E in fü hrung in eine Theologie der Mission, © 1958, Chr. Kaiser Verlag, Munique, República Federal da Alemanha. Os direitos para a língua portuguesa pertencem à: Editora Sinodal Rua Amadeo Rossi, 467 Caixa Postal 11 93001-970 São Leopoldo, RS Tel.: (051) 592-6366 Fax: (051) 592-6543 Tradução: Ilson Kayser  Vilmar Schneider (Apêndice) Revisão da tradução: Martin N. Dreher Luís M. Sander  Revisão das provas: Luís M. Sander Coordenação editorial: Luís M. Sander Produção gráfica: Editora Sinodal Série: Teologia Prática - Estudos Pastorais 11 Publicado sob a coordenação do Fundo de Publicações Teológicas/Instituto Ecumênico de Pós-Graduação da Escola Superior de Teologia da Igreja Evangélica de Confissão  Luterana no Brasil.

CIP - BRASIL CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO Bibliotecária responsável: Rosemarie Bianchessi dos Santos CRB10/797 V 632m

Vicedom, Georg A missão como obra de Deus : intro dução a uma teologia da missão / Georg Vicedom ; tradução de Ilson Kayser. São Leopoldo : Sinodal, 1996. 127 pp. Título original: Missio Dei. ISBN 85-233-0426-6 1. Teologia Prática. 2. Missiologia. I. Título. CDU 24: 266

6. A alteridad e do reino de Deus Justamente em Jesus Cristo se revela que o sen horio de Deus é algo totalmente diferente do que o senhorio de seu oposto, do reino do mundo. Ele não traz aos seres humanos um reino de felicidade exterior. Sequer cum  pre seus desejos, que eles acreditam terem o direito de expressar como seres humanos. Nem mesmo lhes deixa a ilusão de que jun to a ele tudo sairá bem. Diz-lhes com clareza que terão que sofrer por sua causa. Ele não ajuda a ninguém a realizar seus objetivos terrenos, mas é o ajudador onde tudo está ence rrado na vontade do Pai. Também não tira sua comunidade da condição de estrangeiros neste mundo, concedendo-lhes um Estado próprio e unindoos nacionalmente. Afinal, ele não governa como um rei terreno. Seu reino é divino, e por isso subtraído da esfera de influência humana e demoníaca.  Não obstante, atua neste mundo. Ele é co ntrário às tendências dos seres hum anos (Mt 11.29). Jesus se revela como rei pelo fato de trazer às pessoas a redenção po r meio de sua morte. “A cruz, a redenção real, acontecida, não é apenas a solução da questão da culpa, mas também da questão do poder, e isso não somente então e lá, mas aqui e agora.”24 Seu reino deve ser entendi do em termos soteriológicos e tem por isso regras bem diferentes do que os reinos do mundo. Por essa razão ninguém pode entrar nesse reino, se não abandonar todas as idéias acerca dos reinos do mundo. Por isso a participa ção no reino de Jesus sempre está associada com a metanoia,  com a conver são. Quem não observar isso sempre colocará alvos errados para a Igreja e a missão e acabará no reino do mundo inclusive pelo trabalho mais piedoso. Com isso o reino de Deus está fora do alcance humano e se encontra fora de toda ética e legitimidade natural. Também está fora de qualquer ideal huma no. Por um lado, ele é estabelecido somente por Deus. Isso acontece por meio da  pregação e dos sacramentos. Ela é o meio adequado de difusão do reino. Eles são o meio adequado de comunicação do reino. Deus vincula sua missio a esses dois meios, quando envia sua comunidade e a torna sua mediadora. Mas tam  bém são descartados todos os recursos humanos com os quais gostamos de atrair as pessoas, tentando tornar-lhes o reino de Deus atraente; pois também elas estão sujeitas à metanoia, à conversão. Por outro lado, o reino também se encon tra fora de todo legalismo humano, n o qual a pessoa crê pode r ser alguma coisa e conquistar sua mercê. No reino de Deus valem somente as regras que ele determinou para isso e que deu aos seus por meio de Jesus Cristo. A escala de valores enfatizada no reino do mundo e em grande parte também na Igreja não tem nenhum valor normativo. Quem não se torn ar humilde como uma criança, que obedece totalmente ao Pai, não entrará nesse reino (Mt 18.4). No reino de Deus terá uma posição somente aquele que receber sua autoridade desse reino. O reino de Deus também está a salvo de toda tentativa humana de moldá-lo pelo fato de seu governo, em contraposição ao governo do mundo, se desenrolar na abscondidade. O que para este seria uma derrota, para o senhorio de Deus é onipotência e vitória. Ele acontece sob a máscara, como diz Lutero. 24 K. 11ARTENSTEIN, op. cit., p. 60.

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16. Igreja e apostolado ..................................................................................... 63 17. O novo povo de Deus................................................................................. 66 18. Igreja e m und o........................................................................................... 68 Capítulo 4: O alvo da m issão...........................................................................71 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13. 14. 15. 16.

A conversão dos povos............................................................................... 71 O conceito ta ethne ..................................................................................... 73 O objetivo da missão........................................................................... 74 As peculiaridades dos povos...................................................................... 75 Os cristãos procedentes dos gentios ......................................................... 76 A linha pedagógica..................................................................................... 77 Missão e civilização.................................................................................... 78 O desenvolvimento grad ativ o................................................................... 80 O método evangelístico.............................................................................81 Tornar-se cre nte .......................................................................................... 82 Os meios da missão.................................................................................... 83 A missão e o milagre.................................................................................. 85 A comunidade como alv o.......................................................................... 87 A importância do Batismo para a missão ................................................ 88 Santa Ceia e missão.................................................................................... 90 A Igreja - uma grandeza sui generis ......................................................... 91

Capítulo 5: A comunidade da salvação............................................................92 1. Comunidade e reino de Deus.......................................................................92 2. A com unidade do apostolado........................................................................93 3. A te stem unh a..................................................................................................94 4. A comunidade do sofrimento........................................................................95 Apêndice: A justificação como força conform adora da m issã o................................................................991 1. A situação........................................................................................................99 2. A missão como obra de Deu s......................................................................103 3. Deus realiza sua obra através de sua comunidade ................................... 107 4. A conformação da pregação missionária..................................................117 5. O caminho da comunidade até a justificação fi nal .................................. 124

 Apresentação da edição brasileira Publicar um livro como  Missio Dei  no Brasil, quase 40 anos após a sua edição original na Alemanha (Munique, 1958), exige uma explicação. Vicedom  provavelmente é um grande desconhecido das igrejas cristãs brasileiras. Sabe-se, todavia, que existem alguns pastores da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil que foram seus ouvintes e até alunos. Além disso, suas idéias influen ciaram a prática comunitária e até mesmo a opção pelos povos indígenas no Brasil. Baseados na teologia que este livro revela, podemos nos perguntar por que não frutificou muito mais. Por isso, achamos po r bem traçar, nesta Apresen tação, alguns aspectos de sua biografia e teologia que ajudem os leitores e leito ras brasileiros a conhecer mais de perto o autor deste livro. É bom lembrar que sua abordagem da missão figura como relevante em compêndios de missiologia1. Só este já seria um bom motivo para traduzir parte de sua obra para o portu guês. Destacamos abaixo alguns pontos que nos parecem importantes na obra de Vicedom. Antes, porém, vejamos alguns dados da biografia do autor.

Vicedom: missionário e teólogo da missão Georg Friedrich Vicedom (190S-1974) foi um missiólogo peculiar. Nasceu na Baviera, Alemanha, numa região rural há séculos ligada à Igreja Evangélica Luterana. Filho de camponeses, trabalhou até os 19 anos na roça com sua famí lia. Quem o conheceu mais de perto podia testemunhar como era visível na sua maneira de ser essa origem popular e trabalhadora, curtida pela vida rude e aberta às experiências do povo da terra, de poucas palavras e sem cerimônias, às vezes jovial e com algum humor, todavia profundamente piedosa e ética. Essas marcas também transpareciam quando Vicedom viajava pelo mundo como uma das maiores autoridades em missiologia, a ponto de ser chamado de  xmsdom, sabedoria em inglês, numa alusão carinhosa ao seu nome alemão. Vicedom entrou no Seminário para Missão e Diáspora de Neuendettelsau (Baviera), em 1922, tornando-se aluno de outro missionário, Christian Keysser, conhecido impulsionador da indigenização do evangelho e de uma1 1 Cf. Karl MÜI.LER, Teologia da Missão, trad. H enriqu e Perbeche, Petrópolis, Vozes, 1995, p. 66-69. Este professor de Teologia católico, que escreve em colaboração com o luterano Hans-Werner Gcnsichen, defen de que os “pensam entos desenvolvidos nos cinco primeiros capítulos de Ad Gen tes [docum ento do Vaticano II sobre a missão entre povos não-cristãos] corre spond em no essencial às colocações d e Vicedom sobre a Missio Dei” (p. 68).

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eclesiogênese autóc tone entre os aborígenes na Nova Guiné23 . Em 1929, após estudos complementares na Universidade de Hamburgo, foi enviado pela Obra Missionária de Neuendettelsau para a Nova Guiné. Na linha de Keysser, conviveu por dez anos com tribos no planalto central daquela ilha, povos até então não alcançados pelos brancos nem por qualquer ação evangelizadora (uma ob ra etnológica de três volumes docum enta esta experiência*), fundan do aí dois postos missionários. Durante esse trabalho pioneiro, viveu separa do da esposa e dos quatro filhos por quatro anos. Em 1939, viajando de licença à terra natal, foi surpreendido pela Segunda Guerra Mundial c con vocado ao serviço militar. De 1946 em diante atuou como professor no seu Seminário. Mais tarde, foi o primeiro catedrático de Missiologia na Escola Superior de Teologia da mesma localidade, além de tornar-se livre-docente na Universidade de Erlangen (Baviera). Foi um período rico, em que lecionou e publicou centenas de obras teológicas, entre as quais estas duas que são agora editadas no Brasil. Nessa época, ele cooperou em inúmeros grupos de trabalho, congressos, sínodos e assembléias, tanto em nível regional e nacional quanto internacional, no âmbito da família universal evangélica luterana, bem como do Conselho Mundial de Igrejas. As sim, chegou a visitar todos os continentes, vindo ao Brasil em 1967. As impres sões que colheu da então Federação Sinodal - Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil, foram por ele resumidas no ensaio “Igreja velha em terra nova”4. Nessa oportunidade, acompanhado pelo pastor Norberto Schwantes, vi sitou também duas áreas indígenas, o Parque Nacional do Xingu e uma aldeia Xavante no Mato Grosso. Onde quer que Vicedom andasse, colhendo informa ções, ouvindo ou falando, discutindo ou rebatendo, agia constrangido pela wiAsio  Dei, engajado na militância pela Igreja de todo e qualquer lugar, para que esta se tornasse autêntica na sua autocompreensão e no seu serviço.

A im po rtância da teologia de Vicedom 1. Vicedom decididamente adota um conceito ecumênico de missão. Mis são não é em primeiro lugar um conjunto de ações da Igreja. Esta é uma com

2 Cf. Roberto Hofmeister PICH, Big Man  Christia n Keysser cm  Papua-Nova Guiné; os Papu ano s e a Missão C rista, Estudos Teológicas, São L eop old o, 35(2): 146-176, 1995. 3 G eorg V1GEDOM , l>ieMbtnvamb; die Kultur de r Hagenb ergstämm e im östlichen Zentral-Neuguinea. Vol. 1:  Materielle Kultur,  Hamburg, 1943-48, 264 p. Vol. 2: Gesellschaft, Religion und Weltbild, Ha mb urg , 1943, 484 p. Vol. 3: Mythen un d Erzählungen, Hamburg, 1943, 196 p. 4 Alte Kirche im jungen Raum, ed. pelo M artin-Luther Verein, Evang.-Luth. Diasp oradienst in Bayern e.V., Neuendettelsau, Freimund, abr. 1968.

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 preensão equivocada que precisa ser superada. Missão é missio Det\   ação in condicional e livre de Deus que tem por objetivo a salvação da humanidade. A missio de Deus se revela na vida e na obra, na m orte e na ressurreição de Jesus Cristo. Cristo é o centro da missão de Deus. A Igreja é o seu povo, chamado  para participar dessa missio.  Por conseguinte, a Igreja e a missão não podem ser grandezas autônomas, mas se implicam mutuamente a partir da vontade amorosa de Deus. Deus envia e é, ao mesmo tempo, o enviado. E assim como atuou em Jesus de Nazaré, hoje o faz pelo Espírito Santo, a presença atual do mesmo Jesus, que atua no m undo po r meio de seu povo de testemunhas. A concepção missiológica de Vicedom é trinitária: Deus envia seu Filho, e o Filho e o Pai enviam o Espíri to. Decorre daí que, na missão, a soberania de Deus é incontestável, pois ele não se deixa cercear nem pela religião nem pela descrença das pessoas. A ação de Deus nos atinge e envolve constantemente de modo surpreendente (extra nos). Esta concepção de missão é bastante crítica em relação às igrejas estabe lecidas, norm almente muito envolvidas consigo mesmas em detrimento de sua razão primeira: ser o povo que testemunha o evangelho hoje e aqui, ainda que isto lhe custe caro. 2. Vicedom faz a crítica ao paradigma civilizatório como referencial para a concepção de missão. Ele defende o caráter disfuncional e inconformista da missão diante de qualquer status quo  (Rm 12.1-2). Não sendo assim, a conse quência é confundir e afastar os povos do evangelho de Cristo. Por esta razão, Vicedom não concorda com o social gospel  (“evangelho social”) de inspiração norte-americana. Pois, a seu ver, a liberdade que o evangelho confere necessa riamente implica a transformação da vida social, econômica e política. O evan gelho confronta pessoas e povos com o Cristo de Deus diante do qual se decide a salvação da humanidade. A concepção missiológica de Vicedom é, pois, emi nentemente teológica. Importa para Vicedom que todo esse processo acontece a partir da miseri córdia de Deus (Rm 11.32). Esta nada mais é do que a materialização da graça divina, da sua missão amorosa. Neste particular, Vicedom retom a um pensamen to caro a Martim Lutero exposto na sua interpretação do Magnificai (1521), onde afirma que a primeira e maior obra de Deus é a misericórdia (Ix 2.46-55). Esta caracteriza e conforma a ação da Igreja e a nossa ação como pessoas cristãs. A fé cristã é fé na compaixão de Deus e dessa fé flui o serviço que atua pelo amor (G1 5.6). Caso contrário, desprezamos a graça e podemos perdê-la. 5 5 Urn dos primeiros que caracterizou a missão como atividade d o pró prio Deus foi Karl Barth, em 1932. No ano seguinte, Karl Hartenstcin esposou convicção similar no seu livro “Missão como Problema Teológico”. Mas foi na 5* Conferência Mundial de Missão em Willingen/Alemanha (1952) que este conceito ganho u foros de cidada nia c reconhecim ento na teologia da missão e nas mais diversas igrejas. A concepçã o da missio Dei afirm a que o Pai enviou o Filho, que, po r sua vez, enviou o Espírito. Estes três na s ua unida de indissolúvel enviam a Igreja ao mu ndo . A missão da Igreja c, pois, derivada da missio Dei.  Vicedom foi quem mais aprofundou e alastrou o referido conceito (cf. David J. BOSCH, Transforming Mission; Paradigm Shifts in Theology of Mission, Maryknoll, Orbis, 1993, p. 389-393).

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Tal compreensão de missão, desfazendo os nossos complexos e a nossa  permanente mania de autocomiseração, coloca-nos no caminho onde a missio está acontecendo. Ela nos convida a entrar na liberdade dos filhos e filhas de Deus dispondo-nos ao seu serviço, com ânimo, lucidez e senso crítico. Ao mesmo tempo, aponta para uma compreensão comunitária de missão: a mis são nunca é tarefa apenas de especialistas, mas de todo o povo de Deus, onde estiver, na casa, na rua, no bairro, na aldeia, na fábrica, na praça, na associa ção, no governo e assim por diante. 3. Vicedom é responsável por uma fundamentação reformatória  da mis são. No apêndice selecionado especialmente pa ra esta edição, a justificação somente pela fé é o único fundamento firme para a missão. A missão realizada  pela Igreja no âmbito da missio Dei é uma ação de fé, impulsionada pelo Espí rito Santo. Ela só pode ser assumida em atitude de profundo agradecimento  pela misericórdia recebida de Deus. Assim a Igreja se to rna sinal da vida plena, dádiva da graça divina. Por isso, o paradigma da obediência não serve, como po r via de regra se interpreta o famoso texto de Mateus 28.18-20. Quando nos engajamos na mis são, não o fazemos atendendo a uma ordem, como se Deus fosse um general e a Igreja seu lugar-tenente. O que verdadeiramente nos conduz a participar daquela missio é a graça eficaz que se realiza no meio de todos os povos. Nesta  perspectiva, a missão é ob ra do Espírito Santo, que trabalha sem cessar para que a Igreja de Deus - de muitas e diferentes maneiras - anuncie a compaixão de Deus por toda a humanidade. 4. Vicedom sempre é missionário. Quer somente ganhar e reunir gente  para a missio Dei. Prático da missão, nunca faz dela teoria, campo de pesquisa ou fonte de prestígio. Vive na selva da Nova Guiné com pessoas tão diferentes, mas igualmente tocadas e transformadas pela missio Dei. Aqui Vicedom experi menta o milagre da comunidade de Jesus Cristo entre os povos, comunidade à disposição da missio Dei. Assim parte para conscientizar homens e mulheres,  paróquias e igrejas da importância da missão. Ele as instiga a acompanhar a missio Dei e a se deixar envolver por ela. Vê nisso o centro e a meta de quantos crêem no Deus que se revela em Jesus Cristo. A lerta e chama para a única coisa que vale, enquanto todo o resto “não nos conforta, mas abate e é sem valor” (Hinos do Povo de Deus,   171, 1). Com a profundidade e o entusiasmo que apenas uma vida sob a missio  Dei confere, Vicedom desdobra, então, a justificação p or graça e fé como úni co motivo e critério da missão: “a fé vive do testemunho” e “inexiste sem co munhão” (citando N. von Zinzendorf); “a missão nada mais é do que a Igreja que se movimenta” (retomando W. Lòhe, fundador do Seminário de  Neuendettelsau); os sacramentos fazem experimentar a missio Dei e viver ale gremente para a missão e na missão; a comunidade contextualizada é alavanca de Deus no mundo, mostrando a vida partilhada, antecipação da vida plena no reino de Deus; a comunidade se auto-sustenta com o dízimo dos membros, usando 10% do orçamento para manter um missionário de tempo integral e colocando os outros 90% à disposição da missio Dei local e universal.

A missio Dei - embora liberte indusivc paróquias c igrejas sufocadas pelos encargos religiosos e cansadas devido ao peso do seu aparelho administrativo causa estranheza. Vicedom o exemplifica de muitas maneiras. Mostra como cada  pessoa e grupo, cada povo e sociedade, cristãos ou não, igrejas inteiras até, afirmam ter a sua visão e tarefa junto aos demais e as defendem com unhas e dentes, não raras vezes contra a missio Dei. Num contexto desses, a missio Dei só  pode causar estranheza, que resulta em resistência, e esta em perseguição, den tro e fora das paróquias e igrejas. Exclusivamente em tal situação se evidencia,  para Vicedom, a missio como sendo de fato Dei, já que depende, em definitivo, de Deus. A cruz revela o caráter da missio Dei,  sinalizando a sua consumação irresistível no “novo céu e nova terra, onde habitará a justiça” (2 Pe 3.13).  No entanto, a partir das nossas experiências e motivações, levantamos as seguintes perguntas diante desta teologia da missão aqui brevemente esboçada: a) Relação entre evangelho e culturas'. Vicedom critica fortemente concepções e práticas que amarram o evangelho a certas civilizações e culturas, etnias e nações. Assevera que agindo assim compreenderíamos mal o evangelho e redu ziríamos o seu alcance global. O evangelho se dirige a todos os povos e os trans forma. Não os elimina nem submete - isto é pacífico -, mas cria neles novas e surpreendentes expressões de sua cultura. Tal convicção de Vicedom surgiu da sua experiência na frente missionária e da rejeição bíblico-teológica tanto do american way of life como motivo da missão quanto dos desvirtuamentos naciona listas do evangelho na Alemanha de Hitlcr e onde mais se manifestem. Será que hoje essa opção está superada? Na América Latina sabemos que a missão cristã, desde o século XVI, se impôs a ferro e fogo, eliminando povos inteiros, descaracterizando outros e destruindo culturas milenares. Essa histó ria bárbara, cuja abrangência nem de longe temos suficientemente claro, nos constrange a valorizar e a defender, com carinho e garra, etnias e culturas. Cremos que Deus na sua missio está presente entre elas e no que delas sobrou. Ousamos estar ao seu dispor. Tentamos seguir o evangelho que, justamente na cultura de cada povo, assume uma forma concreta e convincente. A duras  penas descobrimos que apenas na inculturação - tão particular, frágil e escan dalosa - se evidencia a universalidade do evangelho. Fazemos, pois, a mesma experiência de Vicedom, só que na via contrária. Enquanto ele confessa a uni versalidade da missio Dei acima de todas as particularidades, nós confessamos a universalidade da missio Dei  nas particularidades. Não podemos saber o que Vicedom diria em nossa situação. Mas certamente teria insistido no fato de que o evangelho é fermento transformador em toda e qualquer cultura.  b) Conversão ejuízo divino: Para Vicedom, a missão começa com a manifes tação do juízo de Deus. Só a partir do reconhecimento do nosso pecado e da aceitação do juízo acontecem a conversão e a entrada na vivência da graça. Esta questão, entretanto, necessita de cuidadosa interpretação. Pois entre nós se acusam as igrejas de manipularem a noção de pecado e de sei em responsáveis  pela culpabilização de consciências no intuito de manter as pessoas submissas ao seu poder e torná-las objetos mansos da sua exploração financeira. Não  podemos nem queremos negar que tais práticas antievangélicas existam, quem sabe até aumentem em nosso contexto neoliberal. Nenhuma Igreja está a salvo delas. Em meio a essa versão eclesiástica da opressão geral, lembramo-nos de 11

que a missio Dei vem, antes de mais nada, libertar. Ela parte bem de baixo e do mais insignificante (cf. Mt 13.31s.). Eis o juízo de Deus. Na medida em que a missio Dei  liberta, aparecem as nossas amarras, inclusive eclesiásticas. Assim continua o juízo de Deus, pois ele “começa na casa de Deus” (1 Pe 4.17). Vicedom, o crítico incansável da Igreja estabelecida e autoconfiante, ressalta do seu jeito o seguinte: apenas penitentes podem cham ar pessoas ao arrepen dimento. Como gente confessa e arrependida, nos aproximamos delas para conviver com elas solidariamente a partir do perdão de Deus. c)  Diálogo inter-religioso: Em relação às religiões, Vicedom nos choca. Importa ver, no entanto, que a sua opção em absoluto vem de uma sup eriorida de moral ou qualquer coisa parecida. Trata-se simplesmente da manifestação da sua fé no homem de Gólgota. Ela se funda sem rodeios e meandros em trechos bíblicos que proclamam Jesus Cristo como único e universal. Ela se sente confirmada ao registrar que a missio Dei chama e congrega o seu povo de dentro das religiões e o envia para o meio delas. Visto assim, Vicedom nos desafia. A quantas anda a nossa fé, qual o seu centro e fundamento, o que nos é inalienável nela? Para o nosso afã no diálogo inter-religioso temos muitos e  bons motivos, mas qual é o nosso objetivo último? Pensando na visão crítica da Igreja que Vicedom revela e na soberania da missio Dei que esboça, será que ele se oporia a um diálogo com as religiões, com a finalidade de obter a paz com justiça entre os povos, a sobrevivência da espécie humana e a conservação da criação? Sempre tão sensível aos aconteci mentos do mundo, seria ele insensível aos clamores cada vez mais ensurdece dores dos pobres e postergados, às absurdidades criminosas que os fundamentalismos de qualquer matiz provocam às vésperas do século XXI? Certamente não lhes ficaria alheio. Continuaria aprendiz. Encararia aquilo que as religiões oferecem em nossos dias - rejeição da filosofia de vida e da cosmovisão oci dentais; exemplos de convivência pacífica entre as pessoas e com a natureza como mais um chamado da missio Dei para que a Igreja dê meia-volta. Nem a Igreja nem comunidades cristãs exemplares (se um dia surgirem) salvam o nosso mundo conturbado, mas unicamente a missio Dei, quando e do jeito que a ele apraz. Graças a Deus!, diria Vicedom. Nós também? A nossa gratidão não nos tira dos conflitos do mundo, pelo contrário, nos joga para dentro deles a fim de colocarmos sinais da compaixão de Deus, materializada na cruz de Jesus Cristo. Sob e com esta cruz quebramos outras cruzes nas quais nós mes mos e outras pessoas e idéias colocamos homens, mulheres e crianças. Alegramonos que hoje podemos ap render de pessoas não-cristãs como se eliminam cru zes. Ainda assim o fazemos - oxalá o façamos - por causa do Crucificado e em seu nome. Para que não nos esqueçamos disto, lemos e relemos Vicedom. Esperamos que o estudo do presente livro seja também um estímulo  para obreiros e obreiras, presbíteros e presbíteras, enfim, para todo o povo das comunidades. Urge que nos conscientizemos de que a missio Dei nos con voca a lhe emprestar a nossa cabeça, as nossas mãos e pés, e a nossa boca.  Albérico Baeske e Roberto E. Zwetsch

Introdução Vivemos numa época em que todas as coisas surgidas historicamente são desvalorizadas. Isto também acontece na teologia. Com vistas a nosso tema, retorna repetidas vezes a pergunta se Jesus quis a Igreja e sua missão e se ambas são dimensões legítimas do evangelho. Essa pergunta já vinha sendo feita à missão desde sempre. No entanto, é significativo que hoje, na era da eclesiologia, essa pergunta também seja dirigida à veiculadora da missão. Em si, a ampliação do questionamento é objetivamente necessária, pois a missão não é uma dimensão independ ente, mas sempre pode ser somente um resulta do do comportam ento da Igreja de acordo com o evangelho. Por isso, questio nar a missão diz respeito também ao direito de existência da própria Igreja.  No contexto do presente trabalho, porém, é impossível expor uma fundamen tação nova e autorizada da Igreja. Por outro lado, a missão não pode ser fundamen tada como dimensão autônoma. Por isso a fundamentação da missão que ora em  preendemos também terá que oferecer, necessariamente, referências à fundamenta ção da Igreja e de sua tarefa. Permanece, todavia, a pergunta se não seria preferível o caminho inverso. Para isso, porém, não me sinto autorizado nem habilitado. A fundam entação da missão não é coisa nova. Ela foi tentada repetidas vezes desde os dias de Justinian von Welz*. Na missiologia evangélica alemã ela recebeu sua forma clássica através de Gustav Warneck** e de seus discípu los. Pouco considerada pela teologia científica, constantemente atacada pela massa dos incrédulos e indiferentes, objeto de mofa e zombaria por parte da imprensa sensacionalista, muitas vezes contestada por governos totalitários, a missão sempre se viu na contingência de comprovar sua razão bíblica de sen Por esse motivo ela se encontrou numa posição apologética até tempos recen tes. Em nossos dias, porém, ocorreu uma grande mudança. Todas as funda mentações da missão de que temos notícia hoje não tentam mais justificá-la em termos teológicos e, eventualmente, também fundamentá-la com argumentos secundários, como, por exemplo, o fez G. Warneck. Falam, antes, da autorida de e do comprometimento com a missão. Há uma mudança evidente de uma abordagem antropocêntrica para uma abordagem teocêntrica da missão. Isso *

N. do E.: Ju stia nia n von Welz (1621-1668): leigo luteran o, co ntestou a conce pção da ortodoxia luterana a respeito do trabalho missionário, qu e negava a validade atual da G rande Comissão (Mt. 28.18-20). Welz insistiu no envio d e estudantes cristãos co mo volun tários do an úncio do evangelho cm terras pagãs. Foi um dos que impulsionaram a formação de sociedades missionári as evangélicas.

** N. do E.: Gustav Warneck (1834-1910): teólogo alemão, foi o primeiro a sistemati zar, nos tempos mode rnos, a com preensã o da tarefa missionária da Igreja cristã. Por isso a teolo gia européia o considera “pai da ciência da missão”. Apoiou decididamente as sociedades missionári as do séc. 19. Cf. Jam es A. SCHERER, Evangelho, Igreja e Reino; Estudos Comparativos de Teolog ia da Missão, São Leop oldo , Sinodal, 1991, cap. 2; Valdir STEUERNAGEL, Obediência  Missionária e Prática Histórica; em Busca de Modelos, São Paulo, ABU, 1983, cap. 5.

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é, sem dúvida, um resultado do redescobrimento da mensagem reformatória  pela teologia dialética. A Igreja recebeu novo ânimo para o testemunho.  Não obstante, é preciso constatar que a teologia no território alemão per maneceu estéril e imune com vistas à missão, apesar da detalhada reflexão sobre ela na Kirchliche Dogmatik   de K. Barth. A teologia limitou-se essencialmente à definição do conteúdo do testemunho, mas não se deixou chamar por Deus a  ponto de se desencadear uma dinâmica missionária. Difundiu-se um subjetivismo tal que hoje ninguém mais sabe dizer em que consiste a fé dos cristãos, da qual a Igreja vive (Tambaram*). Por isso mesmo ela não pode ser transmitida a outros. A pregação e atividade da Igreja se desenvolvem em convulsões nervosas, de maneira que é preciso perguntar se ainda existe uma autoridade para a missão. Isso tem profundas influências sobre a missão. Visto que ela não é uma grandeza sui generis, mas apenas traço característico e expressão de vida da Igre  ja, acabam manifestando-se nela sintomaticamente as mazelas da Igreja e da teologia. Em conseqüência, toda fundamentação da missão terá que tocar nas falhas básicas da Igreja. Esse trabalho poderia ser empreendido de modo abrangente apenas por um teólogo universal. Por isso temos que tomar o outro caminho: elaborar a autocompreensão da missão sem que nos percamos em discussões sem fim. É possível que, por este caminho, possamos ajudar também a Igreja a encontrar uma nova autocompreensão. Na Escandinávia, Holanda e Suíça foram feitos significativos começos nesse sentido. Nos capítulos seguintes iremos ocupar-nos essencialmente com os resultados alcançados na Holanda,  porque se preocupam de maneira mais incisiva que os outros com as fraquezas da teologia alemã e com o conceito alemão sobre missão. Desde 1945 nós somos os atacados. A crítica foi muito proveitosa e frutífera, apesar de ter cometido exageros e não ter merecido atenção por parte da teologia alemã. Acusam-nos de uma visão dc povo e identidade étnica oriunda do romantismo que teria levado a uma ideologia etnopatética,   redundado em numerosos desvios do posicionamento bíblico básico para a Igreja e missão, eliminado o momento escatológico e, finalmente, levado a enxergar a comunidade somente como “um  prolongamento do povo” e da identidade étnica, como “cumprimento abençoador da estrutura étnica”.1

Há que se encontrar uma resposta a esses ataques bastante duros. Não a daremos defendendo-nos contra cada uma das objeções feitas. Os interessados nisso podem consultar o supramencionado trabalho de Knak. Nós preferimos aceitar esses estímulos muito frutificantes e tentar, num confronto crítico com eles, construir uma nova fundamentação da missão e das demais tarefas da Igreja. Procederemos de maneira a sempre estabelecermos primeiro o que a Bíblia diz a respeito, para então fazer a comparação.*1 * N. do F„: Conferência missionária organizad a pelo antigo Comin - Conselho Missionário Interna cional em Madras, índia, n o ano d e 1938, no campus do Madras Christian Collcge. A Conferência anterior havia se realizado em Jerusalém , dez anos antes, no Monte das Oliveiras. Essas reuniões fazem parte dos primeiros esforços, neste século, para elaborar um pensamento missionário ecumênico. 1 S. KNAK, Oeku menischer Dienst in de r Missionswissenschaft, Theologia Viatorum, 1950, p. 157.

Capítulo 1:

 A missio Dei

As antigas fundamentações da missão sofriam sobretudo dos seguintes defeitos: ou tentavam comprovar apologeticamente que a missão estaria  justificada em virtude do pensamento missionário da Bíblia, e que seria possí vel e necessária entre os povos; ou fundamentavam missão secundariamente como tarefa da Igreja, ou, inclusive, a derivavam da difusão da cu ltura “cristã”2.  No presente contexto não nos iremos ocupar com as fundamentações secundá rias. No entanto, a fundamentação apologética também não faz jus à Escritura. Ela destaca a missão como ob ra especial desejada po r Deus, enquanto, de acor do com a concepção global da Escritura, se atribui a Deus somente uma inten ção: salvar as pessoas. Por isso o serviço missionário não pode ser derivado do serviço da Igreja. Todo serviço da Igreja só tem sentido se levar à missão e nisso encontrar seu objetivo último. Por mais louvável que seja o fato de a Igreja e a missão se aproximarem cada vez mais e de em muitos pontos da terra a missão se identificar com a Igreja, nem por isso está banido o perigo da indolência missionária, e o mal-entendido da missão não está resolvido. Existe o perigo de a Igreja tornar-se o ponto de partida da missão, seu objetivo, seu sujeito. No entanto, com base na Escritura ela não é isso. Pois o atuante sem  pre é o próp rio Deus triúno, que incorpora seus crentes em seu reino3. Tam  bém a Igreja é apenas um instrumento na mão de Deus. Ela própria é o resul tado da atividade do Deus que envia e salva. Para descrever esse fato, a Confe rência de Willingen* adotou o conceito de missio Dei. A missão não c somente obediência a uma palavra do Senhor, não é apenas o compromisso dc congregar a comunidade; ela é participação na missão do Fi lho, na missio Dei, com o abrangente objetivo do estabelecimento do senhorio de Cristo sobre toda a criação redimida.'4

2 Cf. a rica bibliografia indicada cm Walter HOLSTEN,  Das Kerygma und der Mensch,  1953, pp. 24ss., 32ss. 3 W. ANDERSEN, A u f dem Weg zu einer Theologie der Mission, 1957, pp. 30ss. * N. do E.: Conferência organizad a nesta cidade d a Alemanha, em 1952, pelo Co nselho Missioná rio Internacional, cuja tarefa consistiu em refo rmula r o man dato missionário c revisar as políticas de missão tradicionais. Valeu-se par a tanto do conceito cen tral de missio Dei. A declaração final afirm a que o movimento missionário tem sua origem na p róp ria ação do Deus Triúno. A Igreja cristã e cada pesso a cristã são co-participantes dessa ação qu e visa a salvação do m und o. Elas são enviadas ao mun do p ara dis cernir os sinais dos tempos e proclam ar o reinado oculto do Senhor. 4 K. HARTENSTEIN, in: W. FREYTAG, Mission zwischen G e s te r n u n d  Morgen,  1952, p. 54.

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O movimento missionário do qual somos parte tem sua fonte no próprio Deus triúno.J

1. O conceito  Missio Dei significa, antes de mais nada, que a missão é obra de Deus. Ele é

o senhor, o doador da tarefa, o proprietário, o executante. Ele é o sujeito ativo da missão. Se atribuímos a missão desse modo a Deus, ela está isenta de todo arbítrio humano. Portanto, temos que mostrar que Deus quer a missão e como ele próprio a executa. Com isso já estão estabelecidos todos os parâmetros ne cessários.  A missão, e com ela a Igreja, são obra do próprio Deus. Portanto, não é  possível falar da “missão da Igreja”, muito menos podemos falar de “nossa mis são”. Visto que tanto a Igreja quanto a missão têm sua origem na vontade amoro sa de Deus, podemos falar de Igreja e missão somente na medida em que elas não são entendidas como grandezas autônomas. Ambas são tão-somente instru mentos de Deus, através dos quais Deus promove sua missão. Somente se a Igre  ja cumpre, em obediência, a intenção missionária dele, ela pode também falar de sua missão, porque esta então está acolhida na missio Dei. Com isso nosso tema se reveste de grande seriedade. Se é verdade que Deus quer a missão, porque ele próprio faz missão - o que deve ser dem onstra do -, então a Igreja nada mais pode ser do que vaso e instrumento de Deus, se ela se deixar usar por ele. Se ela resiste à intenção de Deus, ela se torna desobe diente e já não pode mais ser Igreja no sentido divino: “Não há participação em Cristo sem participação em sua missão ao mundo.”56 Portanto, não cabe à Igreja decidir se ela quer fazer missão, mas ela só pode decidir se quer ser Igreja. Ela não pode determinar quando e onde será feito missão; pois missão sempre é iniciativa de Deus, como fica evidente sobretudo no livro dos Atos dos Apóstolos. Missão como causa de Deus significa que ele reivindica o direi to de dispor sobre todos os seus crentes da mesma forma como é seu desejo compartilhar com todos os seres humanos seu amor através de seus crentes. Deus torna clara essa pretensão executanto primeiramente a missão  por si mes mo. A Igreja somente pode repetir o que Deus fez e faz, e pode apontar para o que ele fará. Com isso a missão está fundamentada na ação do próprio Deus.

2. A missão através de Deus  No entanto, para fazer jus à concepção bíblica, o conceito de missio Dei deve ser entendido, simultaneamente, como genitivo atributivo, por meio do

5 Norman GOODAL,  Missions under the Cross,  1953, p. 189. 6 ID., ibid., p. 190.

qual Deus não se torna apenas o enviador, mas também o enviado. Por isso a dogmática católica fala, desde Agostinho, de envios ou da missio intratrinitária. “Sob ‘envio’ se entende a comunicação de uma das pessoas divinas através de outra às criaturas, o que ocorre em virtude da ordem original intradivina.”78 Todo envio de uma das pessoas tem por conseqüência a presença da outra. A teologia evangélica não trata desses envios como artigo dogmático próprio,  porque existiria o perigo de a unidade essencial de Deus tornar-se inconcebí vel. Ela tenta, antes, compreender os processos imanentes à Trindade na relacionalidade de Deus com os seres humanos. Na piedade evangélica, po rém, a compreensão para o envio divino, essencial à Trindade, permaneceu vivo em alguns corais: “Ao Filho disse o Pai no céu: ‘O tempo está chegado...’” {Hinos do Povo de Deus, 155,5.) Ou: “Vai, Filho, te compadecer...” (Ibid., 43,2.) Essas e outras estrofes descrevem esse enviar intratrinitário e nos lembram novamente o verdadeiro motivo da missio.  Neste ponto nos encontram os diante de um derradeiro mistério de Deus, que só pode ser percebido a partir do agir de Deus com os seres humanos. O derradeiro mistério da missão, do qual ela emana e do qual vive, é: Deus envia seu Filho, Pai e Filho enviam o Espírito. Com isso ele não apenas se torna o enviado, mas, simultaneamente, o conteúdo do envio, sem que com essa trin dade da revelação fosse anulada a consubstancialidade das pessoas divinas. Pois em cada uma das pessoas da divindade Deus age por inteiro. Esse proces so do envio intradivino é de eminente importância para a missão e o serviço da Igreja. Sua missão está prefigurada na missão divina, seu serviço está  preestabelecido pelo serviço divino, o sentido e conteúdo do trabalho estão determinados a partir da missio Dei. Por sua missio Deus se revela, ao mesmo tempo, como Senhor soberano. Ele não se deixa prescrever, nem po r parte das religiões nem da incredulidade, o que pode e o que não pode. Faz parte da divindade de Deus o fato de não estar sujeito a nenhuma restrição humana. Desse modo ele dispõe de si de uma forma não mais acessível a nenhum conceito humano. O agir de Deus encon tra-se extra nos*. Assim justamente a missio Dei, como está estabelecida na dou trina da Trindade, se torna a expressão do singular governo de Deus, fato, aliás, que Maomé, p. ex., não entendeu ao tentar, através da negação da divin dade de Cristo e do Espírito Santo, restabelecer a Deus em sua unidade e transcendência. Com isso, na verdade, degradou a Deus e o privou da plenitu de de revelação e essência.

7 M. SCHMAUS, Katholische Dogmatik,  1948, vol. I, p. 377. 8 W. HOLSTEN, op. cit., p. 44. 17

3. Agir salvifico de Deus e envio Visto que a Sagrada Escritura não tem interesse especulativo, ela revela a Deus sempre somente na medida em que isso é importante para seu agir com os seres humanos. Nela Deus faz asserções a respeito de si mesmo somente na medida em que são necessárias para a salvação dos seres humanos. Por isso toda revelação de Deus em sua missio acontece na intenção de salvar a humani dade. Ao revelar-se através de seu agir, faz, ao mesmo tempo, enunciados a respeito do ser humano, coloca-o sob seu juízo e, desse modo, capacita seus mensageiros a levarem ambas as coisas às pessoas: o conteúdo do envio e, com isso, a salvação dos seres humanos. Portanto, a missão outra coisa não pode ser do que a continuação do agir salvífico de Deus através da transmissão dos atos salvíficos. Esta é sua maior autoridade e sua maior incumbência.  Na Escritura esse agir de Deus, conforme estabelecido pela missio Dei, sua relação com o mundo e seu agir com as pessoas são descritos com o conceito “envio”. Ele é, com efeito, a essência da atividade criadora e do agir de Deus, de maneira que toda a história salvífica se apresenta como história da missio Der*. Por isso não forçamos a Escritura, se tentarmos definir a tarefa da Igreja a partir desse conceito. Ao mesmo tempo permanecemos dentro dos moldes da teologia autêntica, que jamais pode ser um sistema de pensamentos a respeito de Deus, mas que tem por tarefa descrever o agir de Deus na História910. Se por ora não nos referimos à especial missio Dei cm Jesus Cristo e no dom do Espírito Santo e deixamos de lado o envio dos profetas e apóstolos, ainda nos restam muitas passagens que descrevem a missio Dei. Deus envia inclu sive realidades totalmente impessoais e expressa com isso que também atua dire tamente sobre o mundo. Envia, p. ex., a espada após seu povo (Jr 9.16). Envia cereal e vinho, e também azeite (J1 2.19), e dessa maneira revela-se como Deus do amor através de seu agir; por isso envia especialmente ao povo de sua propri edade bondade e fidelidade (SI 57.S), bondade e sabedoria (SI 43.3), sua palavra (SI 107.20) e fome da Palavra (Am 8.11), sua redenção (SI 111.9). Através de seu envio, portanto, Deus sustenta o mundo e conduz os seres humanos. Ele se revela um Deus que não dispensou sua criação de seus cuidados.  Nesse enviar Deus sempre está presente. Por isso envio é expressão de sua presença atuante em juízo e graça. Com isso a missio se torna um a afirma ção de sua divindade. Deus não seria o Deus dos seres humanos, se não agisse com vistas ao mundo e para dentro da realidade mais próxima das pessoas. Teria o mesmo destino que levaram todos os deuses-criadores dos seres huma nos, que, na melhor das hipóteses, ainda estão presentes na lembrança das  pessoas, mas já não são mais realidade. Deus, porém, sempre se revelou como um Deus que a ninguém e a nada dispensou de seu governo. Através de seu

9 K. II. RENGSTORFF, quanto ao uso d os conceitos apostolas eapostellein, in: Theologisches Wörterbuch  zum bleuen Testament, vol. I. 10 O. CULLMANN, Christus und die Zeit,  1946, p. 19.

enviar ele se confronta com todos os seres humanos em sua divindade. Todas as pessoas estão confrontadas efetivamente com ele, que sustenta a criação por meio de seu agir. Seu enviar se torna uma revelação específica onde ela se torna uma palavra ao povo (SI 19.1-6; 7-10), e em Jesus Cristo, no qual dá aos seres humanos o Redentor. Aqui serve de fundamentaçã o da missio em geral o mesmo fato objetivo do qual Holsten deriva sua fundamentação da missiologia: “Essa base é, em breves palavras, o querigma neotestamentário, a mensagem do agir decisivo de Deus em Cristo e que, por sua vez, chama à decisão.”11 Portanto, a missio  de Deus sempre é, ao mesmo tempo, um chamado à decisão; seu agir, aconteça ele de maneira pessoal ou impessoal, sempre é um mensageiro que transmite o chamado; sua intervenção sempre é uma incum  bência que exige resposta. Ninguém pode subtrair-se a esse chamado ou sim  plesmente ignorá-lo. O agir de Deus sempre comprom ete o ser humano (At 14.17; Rm 1.8). Portanto, quem se nega a pôr-se à disposição da missio Dei tenta restringir o senhorio de Deus em seu serviço com vistas ao mundo e à salvação da humanidade. Direito, autoridade, mandato e obrigação para a missão sem  pre emanam do agir do próprio Deus triúno. “Enquanto um culto é divulgado somente entre compatriotas, mesmo que seja fora da pátria, Deus somente é o Senhor p ara esta uma tribo ou cidade. Se, porém, se faz missão de fato, então se alcançou a idéia da kyrioles (senhorio) absoluta.”12Essa missio Dei, que abran ge todo o agir de Deus, pode, p or isso, ser descrita também com o senhorio de Deus.

11 W. HOLST EN, op. cit., p. 42. 12 W. FOERSTER, Herr istJesus, 1924, p. 78.

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Capítulo 2:

O senhorio de Deus

1. O motivo da missão A fundamentação da missão sob o ponto de vista do senhorio de Deus é antiga. Já Zinzendorf argumentava a partir desse princípio. Daí a linha passa  pelo pietismo até G. Warneck. Para este o senhorio de Deus era apenas uma idéia a partir da qual também se podia fundamentar a missão. Sua intenção era libertar a missão do afunilamento pietista, que interpretava a idéia do reino de Deus de modo individualista, propondo-se assim a conquistar somente os que haviam sido chamados para o reino. A idéia do reino de Deus encontrou receptividade especialmente na teologia americana, e as missões americanas  procuravam concretizá-la no serviço social. Diante desse fato a missiologia alemã se tornou muito cautelosa. Sentiam-se escrúpulos de fundamentar a mis são a partir da idéia do reino de Deus que havia sido usurpada de modo tão unilateral. Isso foi um erro. W. Lütgert foi o único que tentou mostrar como o reino de Deus se realiza também na História Mundial, dando-lhe conteúdo e sentido, e que reino de Deus e atividade estão relacionados tão intimamente que a pessoa que pertence ao reino de Deus também se deixa engajar no serviço social13. Se nos tivéssemos ocupado seriamente com a idéia do reino de Deus, teríamos obtido, como nos mostram os holandeses, o necessário aspecto escatológico. Hoje, quando todas as motivações para a missão se revelam insus tentáveis14, a missão alemã, estimulada por essa fundamentação, volta à idéia do reino de Deus15. O motivo da missão sempre se ocupa com a pergunta: por que temos que fazer missão? Antigamente a resposta mais simples era: Deus quer salvar a todos os seres humanos. Essa resposta tem sua validade ainda hoje. No entanto, hoje também as outras religiões se oferecem para salvar as pessoas e resolver seus  problemas existenciais e contestam a pretensão da mensagem cristã. Desse modo surgem no mínimo mais perguntas: por que quer Deus salvar os seres humanos? Sua pretensão se justifica? Que resposta temos que dar às outras religiões? Qual 13 W. LÜTGERT,  Reich Gottes und Weltgeschichte, 1928; allgemeine Missionszeitschrift, 1927, pp. 97ss.

Das Reich Gottes un d die Mission, Neue

14 As discussões sobre os motivos da missão encontram-se em W. FREYTAG, Vorn Sinn der Wcltinission, Evangelische Missionszeitschrift, 1959, pp. Iss. 15 Cf. S. KNAK, op. cit., pp. 157s.

G eorg F. F. Vicedom

 A missão como obra de Deus Introduç ão a um a teologi teologiaa da missão

1996

A

 

Editora

 fS  fSinodal 

cia do ser humano, nem tomar a sério o pecado em sua força real. Jamais conseguirá desvencilhar-se do sonho de que o reino de Deus seja um reino a ser realizado no mundo, que poderia ser configurado com recursos humanos. Em última análise, as outras religiões devem ser entendidas a partir das liga ções com esse outro reino. Sem dúvida, elas contêm muitas coisas boas, mas estas estão inseridas no mal e por ele ocultas. Nelas atuam os satânicos pode res antidivinos. Somente reconhecendo isso, chega-se ao verdadeiro juízo mi sericordioso sobre a pessoa gentia, que é escrava desses poderes. O reino do mundo ou o reino do diabo como oposto do reino de Deus e da missio Dei é  mais perigoso ainda porque jamais se manifesta com sua verda deira face. Sempre tenta disfarçar-se sob a máscara do bem, do que con%'ém ao ser humano, com objetivos muitas vezes ideais. Por isso o limite entre ele e o reino de Deus pode ser traçado com nitidez e de modo visível somente em casos raros. Nele os bons propósitos dos seres humanos se manifestam para o mal e a ruína. Por isso K. Heim afirma, na controvérsia sobre o livro de H. Kraemer intitulado  Die christliche Bolschaft in einer nichtchristlichen Welt:  Nada do que Deus criou está a salvo dessa dcmonização. Tudo pode ser atingido  po r ela. Por isso existe uma auto-adoração demoníaca do eu, que é imagem de Deus, uma sexualidade demoníaca, que o ser humano não domina mais, o demonismo da técnica, o demonismo do poder, a depravação demoníaca do nacionalismo. Existe o demonismo da piedade, inclusive a oração pode degene rar em convulsão demoníaca. Até mesmo o dom do Espírito Santo pode ser demonizado, como o presenciamos no movimento pentecostal. O aspecto satâ nico cm questão reside no seguinte: o poder demoníaco vive apenas de Deus e do que ele criou. Ele nada tem que não viesse de Deus. Sempre é um reflexo da glória de Deus o que é demonizado e usado contra Deus . 19

Em seu recente livro sobre as religiões, Kraemer avançou repetidas vezes até essa profundeza da compreensão das religiões. Ele chama a atenção pa ra o fato de que nem o ser humano em sua profunda miséria, nem as religiões  podem ser entendidas sem o poder do mal, do diabo, que transforma todo o mal em luz e perverte todo o bem. O mundo da religião e das religiões (da cultura como um todo) pertence à esfe ra do “velho homem”, do homem não-redimido, ainda não recriado à imagem de Deus, a cuja semelhança íbi criado originalmente, e por isso se encontra, com seus maravilhosos feitos e desvios satânicos, sob o o juízo de Deus, aguardando de modo obscuro ou inconsciente sua redenção .20

 No entanto, não nos cabe desenvolver aqui a compreensão bíblica das religiões; isso seria um estudo em separado. Aqui basta esboçar o outro reino que expressa com maior nitidez a realidade da perdição dos seres humanos. Somente está livre do reino deste mundo quem se deixa salvar dele para o reino de Deus pelo envio de Jesus Cristo. Esse é o único caminho. Nem o nascimento o leva para o reino de Deus (Caim e Abel), nem o fato de perten 19 K. HEIM, Die Stru ktu r des Heiden tums,  Evangelisches Missionsmagazin, 1939, p. 17. 20 Hendrik KRAEMER, op. cit., p. 257; cf. também pp. 321, 337, 378ss.

Sumário

Apresentação da edição b rasileira ............................

.. 7

Introdução...................................................................

.13

Capítulo 1: A missio D e i ...................................................

.15

1. O conceito............................................................... 2. A missão através de Deus ....................................... 3. Agir salvífico de Deus e envio ...............................

.16 .16 .18

Capítulo 2: O senhorio de Deus ................................

.20

1. O motivo da missão .............................................. 2. O parceiro de D eu s .............................................. 3. O outro reino ........................................................ 4. O reino de D eu s ................................................... 5. Jesus, o conteúdo do Reino ................................. 6. A alteridade do reino de De us ............................ 7. O reino de Deus como dád iv a ............................ 8. O Reino como salv ação ....................................... 9. Presente e futuro do R ein o ................................. 10. O caráter decisório do Reino .............................. 11. A universalidade da salvação ............................... 12. Quis Jesus a missão entre os gentios? ................. 13. O lugar escatológico da missão entre os gentios

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Capítulo 3: O envio ....................................................

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1. O sentido do envio ............................................... 2. Enviador e en viad o .............................................. 3. Eleição e en vio ...................................................... 4. A missio Dei specialis ............................................. 5. Os apóstolos .......................................................... 6. O nome “apóstolo” ............................................... 7. Ministério apostólico e com unidade .................. 8. Comunidade e envio, o apostolado .................... 9. Teologia do apostolado ........................................ 10. O que é “apostólico”?   .......................................... 11. A premissa do apostolado ........................ ............ 12. O discipulado ........................................................ 13. Discipulado e apostolado ..................................... 14. O serviço do discipulado ..................................... 15. Missão e Igreja ......................................................

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 justamente como tal o reino de Deus é, ao mesmo tempo, um chamado, um apelo às pessoas. Por meio de sua proclamação, elas são chamadas a Deus e assim à decisão, à conversão (Mt 6.33; Rm 14.17). O reino é o alvo de Deus com os seres humanos.

5. Jesu s, o con teúdo do Reino Esse reino de Deus não pode se restringir a formas terrenas, mas sempre tem, enquanto o reino do mundo existir, caráter escatológico. Visto que a comu nidade de Deus tem que viver sempre no mundo, ela pode p ertencer ao reino de Deus somente na medida em que, em oposição ao mundo, se deixar determinar  por ele em sua atitude de vida pela fé. Ela vive sempre no anseio e na esperança de ver o reino de Deus realizado. Primeiramente Deus satisfez esse anseio, dan do a sua comunidade as promessas messiânicas e ensinando-a a esperar pelo Redentor. O reino realizou-se pela aparição do Messias, todavia, de acordo com sua oposição ao reino do mundo, de modo diferente do que os seres humanos o haviam imaginado. Continua sendo tropeço para as pessoas e tentação para sua comunidade o fato de o Messias não ter estabelecido na terra um reino terreno com as características do reino de Deus, mas ter apenas revelado aos seres huma nos o modo de ser do reino. Somente se tivermos isso em mente seremos preser vados de muitos caminhos errados na Igreja e na missão. O reino de Deus não pode ser realizado em formas humanas. Deus, po rém, o realiza para os seres humanos, permitindo que seu Filho se torne ser humano, enviando o Messias, tornando-o portador do reino de Deus, porque o Messias se encontra e vive na comunhão com Deus e, conseqüentemente, na basileia.  Ele é o enviado em nome do Senhor (Mt 21.8), ao qual competem todas as honras reais pela glorificação nas maiores alturas (Lc 18.38). Ele é o rei, que cuida dos seus regiamente e lhes retribui centuplicado o que tiverem sacrificado po r ele (Lc 18.29). Não existe poder que não lhe estivesse submisso e que ele não destruirá ao estabelecer seu reino (Mt 28.18). Por isso o senhorio de Deus e Jesus Cristo são a mesma coisa. Portanto, quem proclamar o nome de Jesus também proclama o senhorio de Deus (At 8.12; 28.31). Jesus é a res  posta de Deus às perguntas das pessoas e por isso, o conteúdo da mensagem do reino (2 Tm 4.1). Tudo isso se encontra resumido na Epístola aos Colossenses, onde se afirma de Cristo tudo que no Antigo Testamento é atribuído' a Deus23. Todavia, é preciso lembrar que o reino de Deus é mais abrangente do que as obras salvíficas dejesus; ele abrange todo o agir do Deus triúno com o mundo. O reino consiste sobretudo no agir do Pai, e por conseguinte tem por conteú do aquilo que se poderia chamar de divindade. A Epístola aos Colossenses mostra isso.

23 Com referenda a todo o asunto: K. L. SCHMIDT, art. basiUia, in: Theologisches Wörterbuch zum  Neuen Testament, vol. I.

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